atrama das humanidades - olhares-discursos

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atrama das humanidades - olhares-discursos
A TRAMA DAS HUMANIDADES
Olhares
Discursos
Intervenções
Ariane Pereira
Everly Pegoraro
Jane Drewinsky
Manuel Moreira
Milton Stanczick Filho
(Orgs)
A TRAMA DAS HUMANIDADES
Olhares
Discursos
Intervenções
Ariane Pereira
Everly Pegoraro
Jane Drewinsky
Manuel Moreira
Milton Stanczick Filho
(Orgs)
Projeto gráfico e capa: Waldecir Kurpias
Revisão: Níncia Cecília Ribas Borges Teixeira
Ficha Catalográfica
T771
A TRAMA das humanidades: olhares, discursos, intervenções /
Organização de Ariane Pereira, Everly Pegoraro, Jane Drewinsky,
Manuel Moreira e Milton Stanczick Filho . – – Guarapuava: Unicentro,
2010.
470 p. : il.
Inclui bibliografia.
Diversos autores.
ISBN 978-85-7891-068-6
1. Ciência da comunicação. 2. Comunicação social. 3. Educação
– Tecnologia . 4. Mídia. 5. Jornalismo. I. Autores. II. Organizadores.
III. Título.
CDD 302
Ficha catalográfica elaborada por Regiane de Souza Martins -CRB9/1372.
SUMÁRIO
Apresentação
O caráter das humanidades e sua articulação na era tecnológica
por Manuel Moreira da SILVA, 07
Parte I: Ética, Tecnologia e Educação
1. Reflexões sobre o EaD no contexto das novas tecnologias da Educação
Zinara Marcet de Andrade NASCIMENTO, 23
2. Ética, Educação e as novas tecnologias
Alessandro de MELO, 53
3. Ética, tecnologias de educação e natureza humana: ou sobre a emergência de
uma nova humanidade os desafios de sua formação
Manuel Moreira da SILVA, 71
Parte II: Estudos Culturais e Humanidades
4. O sujeito professor no discurso das propagandas governamentais: interdiscurso e
construção da identidade
Adriana Dalla VECHIA, Luciana Ferreira DIAS, 93
5. Base-superestrutura: modos de usar
Rodolfo LONDERO, 113
6. A festa das cavalhadas em Guarapuava
Carlos SCHIPANSKI, 141
7. Produção de antologias de ensaios sobre o Brasil: identidade e diferença
Luciana Ferreira DIAS, 161
SUMÁRIO
Parte III: Crítica Literária, Estética e Contexto Social
8. Murilo Rubião: uma perspectiva contemporânea
Giuliano HARTMANN, 187
9. Realidade, Kant e jornalismo gonzo
Evandro BILIBIO, 209
10. Casamento à vista: as crescentes relações sobre arte e mídia
Marcio FERNANDES, 229
Parte IV: Teoria da Arte, Público e Universo Pessoal
11. Arte para todos: a humanização e o desafio do acesso livre à produção artística
Maria Inês PEIXOTO, 245
12. Debate sobre arte contemporânea e formação do público
Adriana VAZ, 271
13. Maximalização sonora: meandros da estética musical contemporânea
Daiane da CUNHA, 291
14. Aspectos da Performance Art, Happening e Body Art - possibilidades de registro
e apropriação de universo pessoal
Clóvis CUNHA, 319
SUMÁRIO
Parte V: A Mulher na História e na Mídia
15. Mulheres do além-mar lusitano e suas estratégias de bem viver. Curitiba (19651805)
Milton STANCZIK FILHO, 343
16. O lugar da mulher e de sua sexualidade no Brasil colônia
Carmen DIEZ, 379
17. Discurso, gênero e mídia
Níncia Cecília Ribas BORGES, 401
Parte VI: Mídia e Linguagem
18. Jornalismo ambiental nas páginas de Veja: uma análise discursiva
Ariane PEREIRA, 415
19. Ciências Humanas: pesquisa em Comunicação e Linguagem
Francismar FORMENTÃO, 435
20. Globalização e regionalização da mídia brasileira
Anamaria FADUL, 459
PREFÁCIO
Na sociedade atual, as esferas culturais, educacionais,
econômicas, políticas, científicas são interligadas, de forma que
nenhuma pode ser compreendida profundamente ao ser isolada
das demais. Qualquer ação realizada em uma dessas esferas
reflete sobre as restantes.
Diante
da
era
do
conhecimento
e
dos
avanços
tecnológicos, as Humanidades tratam o conhecimento como um
bem inviolável que procura não se deixar enganar pela
informação. Suas relações com o conhecimento são sempre
formas de exercício da possibilidade, por isso a área das
Humanidades não postula nenhuma certeza, mas se propõe a
investigar aspectos dos fatos humanos em todas as variáveis que
possam se transformar em matéria do saber, considerando o ser
humano como matéria-prima de suas investigações.
A área das Humanidades é composta por todos os núcleos
dos saberes que saem do homem como objeto de estudo e voltam
para o homem como objeto do conhecimento. São eles: saberes
psicológicos,
sociológicos,
antropológicos,
filosóficos,
econômicos, administrativos, judiciários e linguísticos, literários,
artísticos ou estéticos. Estes
se abrem à análise e à
interpretação do homem e das suas relações, caracterizam-se por
tratar da busca de invariantes em fenômenos do comportamento
humano que são essencialmente mutáveis e imprevisíveis. Nisso
reside a sua complexidade e, ao mesmo tempo, seu fascínio. As
faculdades que o humanismo pretende desenvolver são a
05
capacidade crítica de análise, a curiosidade que não respeita
dogmas nem ministérios, o sentido de raciocínio lógico, a
sensibilidade para apreciar as mais altas realizações do espírito
humano, a visão de conjunto, face ao panorama do saber.
Para António Fidalgo (2007), o espírito que preside as
humanidades corresponde
a uma formação humanística que
possibilita ganhar bagagem e competência para atingir setores
variados, o que importa é aceitar novas formações que buscam e
de que precisam o saber e a sabedoria das clássicas disciplinas da
palavra. Desse patrimônio nada se perde, o que importa, porém,
é renová-lo, usá-lo no dia a dia das atividades culturais e sociais
contemporâneas e abri-lo aos desafios permanentes com que se
veem confrontados.
A coletânea de textos A trama das humanidades: olhares,
discursos, intervenções é resultado
do fórum de debates
organizado pelo Setor de Humanas, Letras e Artes da Unicentro e
se apresenta de modo unívoco, existe uma multiplicidade de
vozes que compõem os diferentes discursos sobre o mundo e que
tecem a complexa trama da vida cotidiana. À medida que esses
discursos se ampliam, aumentam as informações e conhecimentos
acerca do mundo. Dessa forma, ao se ter uma maior compreensão
das múltiplas interconexões que se estabelecem na constituição
do
conhecimento,
será
possível
atravessar
as
fronteiras
disciplinares, de modo a apreender a complexidade do ato
educativo e a complexidade do mundo contemporâneo.
Dra Nincia Cecília Ribas Borges Teixeira
06
APRESENTAÇÃO
O caráter das humanidades e sua articulação na Era tecnológica
A trama das humanidades: olhares, discursos, intervenções
reivindica para si a tessitura do Humano na época de hoje; essa
caracterizada especificamente por apresentar-se nos quadros de
uma transição que teima em jamais terminar. Época, tessitura e
transição que, como o fio de Ariadne, desfaz o próprio Humano de
sua trama milenar, exigindo deste, qual Sísifo rolando sua pedra,
que teça novamente toda a malha de seu ser – este que, como o ser
próprio do Humano, ou o ser humano ele mesmo, é o que não é e não
é o que é. Uma nova tessitura cuja trama, no entanto, não se fixa em
nada outro que ela própria e seu desvanecer, fazendo-se, pois,
enquanto olhares, discursos, intervenções...
A trama das humanidades: olhares, discursos, intervenções
aqui em questão concebe-se como a tessitura possível e real, virtual
e atual das humanidades, então, em transição. Não só as
Humanidades como tais, essa a nomenclatura que – justamente por
se impor enquanto plural – apesar de unir, mais propriamente,
mantém o Humano ele mesmo dilacerado em seus múltiplos
registros enquanto objeto formal das chamadas ciências humanas,
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mas também as próprias humanidades em seu caráter a um só tempo
empírico e transcendental, em sua recíproca disputa pelas mentes
daqueles que, ainda em seu processo de formação, a elas podem ou
não aderir. Tal é o que, em suas linhas gerais, o presente volume visa
explicitar ou, antes, deixar falar e deixar ver, olhar, dis-cursar,
inter-vir...
A trama das humanidades: olhares, discursos,
intervenções, essa que aqui se apresenta, compõe-se, então, de
seis partes, melhor, de seis camadas de fios e tecidos em sua trama.
Na primeira camada, está em questão o domínio mesmo do Humano;
no caso, de suas dimensões éticas, antropológicas e ontológicas, as
quais, nos dias de hoje são cada vez mais e mais postas em xeque. De
certo modo, segundo certa concepção do Humano, essa camada
poderia mostrar-se como fundamento das demais; porém, pelo
menos aqui, ela se constitui mais propriamente como a pele a mais
tênue de um corpo que, poder-se-ia dizer, quanto mais se quer sem
órgãos, mais dependentes destes e de sua fragilidade se torna. Tal
camada ou parte intitula-se Ética, Tecnologia e Educação e se volta
para o fenômeno das chamadas novas tecnologias da educação.
Abrindo, pois, a trama que, então, urde-se, o texto
Reflexões sobre o EAD no contexto das novas tecnologias da
educação, de autoria de Zinara Marcet de Andrade Nascimento,
discute o avanço da ciência e da tecnologia, bem como as mudanças
substantivas na área da educação possibilitadas por esse avanço –
em especial a Educação à Distância, ou simplesmente a EAD. Em sua
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análise, a autora critica a concepção e o uso desta modalidade de
ensino enquanto instrumento de acumulação de capital,
defendendo-a, ao contrário, como recurso de qualificação para a
inserção profissional da classe trabalhadora. Questionando
inclusive esse aspecto, Ética, educação e as novas tecnologias, de
Alessandro de Melo, visa por em xeque o caráter supostamente
socializador de conhecimentos das novas tecnologias tal como
defendido pelos seus entusiastas; além disso, este segundo texto
ainda busca denunciar o caráter de fetiche das mesmas, as quais, ao
contrário de uma solução para todos os males da educação,
estariam na verdade servindo como mistificação e, por isso, como
instrumento de alienação dos educadores. Mostrando como que a
relevância de ambas as direções, mas também certos limites a elas
imanentes, Ética, tecnologias de educação e natureza humana, de
Manuel Moreira da Silva, põe-se à tarefa de pensar justamente a
emergência de uma nova humanidade e os desafios de sua
formação.
Trata-se, pois, neste caso, de um questionamento filosófico
em torno dos limites éticos, antropológicos e ontológicos inerentes
ao uso das novas tecnologias de educação, bem como, para além de
tal uso, sobre as suas conseqüências no tangente à natureza humana
em geral e à formação humana em especial. Para este autor, as
conseqüências do uso massivo das novas tecnologias de educação já
se mostram como que assimiladas, pelo menos em suas linhas
gerais, pelas consciências de formação mediana; o que exige, por
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conseguinte, a determinação dos limites éticos, antropológicos e
ontológicos das novas tecnologias de educação, bem como a
discussão de suas conseqüências no concernente à natureza humana
como tal, tendo em vista justamente a integração cada vez maior
entre o orgânico e o artificial, do humano e do tecnológico. Nesse
sentido, o autor propõe um novo conceito de Tecnologia de
Educação, distinguindo, como seus momentos, as atuais e usuais
tecnologias de ensino e as essenciais – mas ainda meramente
possíveis – tecnologias de formação.
Sobre essa primeira camada, assenta-se uma segunda,
constitutiva, portanto, da segunda parte desta obra e assim
intitulada: Estudos Culturais e Humanidades. Nesta e nas duas
outras camadas que a seguem perfaz-se a um só tempo os aspectos
universal e particular da trama aqui em jogo: do elemento universal
sobrevém o caráter mesmo do Humano e os conflitos que o
instauram; do elemento particular, as múltiplas e as mais diversas
determinações nas quais e pelas quais o Humano ele mesmo se
constitui. Desse modo apresentam-se em sua identidade e em sua
diferença os seguintes textos: O sujeito professor no discurso das
propagandas governamentais, de Adriana Dalla Vechia e Luciana
Ferreira Dias, que discute questões relativas ao interdiscurso e à
construção da identidade; Base-superestrutura: modos de usar, de
Rodolfo Londero, que explicita os usos metodológicos considerados
adequados das categorias chave do Marxismo em contraposição a
certas apropriações do modelo marxiano pelos expoentes dos
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chamados Estudos Culturais; A festa das cavalhadas em
Guarapuava, de Carlos Shipanski, uma espécie de resposta ao texto
anterior na medida em que se baseia na tradição local, desta
buscando extrair os elementos explicativos e mesmo constituintes
do objeto investigado, ainda que, de um modo ou de outro,
pressuponha certo arranjo categorial nos moldes acima aludidos.
Encerrando esta segunda parte, Produção de antologias de ensaios
sobre o Brasil: identidade e diferença, de Luciana Ferreira Dias,
discute questões de identidade e diferença na constituição da
brasilidade a partir das antologias Nenhum Brasil existe (de João
Cezar Rocha) e Morte e progresso (de Francisco Foot Hardman),
considerando seus processos de formulação, constituição e
circulação, assim como os efeitos de sentidos que tais antologias
produzem.
Neste mesmo sentido, mas agora no âmbito de uma nova
camada, intitulada Crítica Literária, Estética e Contexto Social, a
qual se sobrepõe à segunda, perfazendo assim a terceira parte da
presente publicação, os três textos que seguem buscam tematizar
justamente o desenvolvimento da produção literária em seu
confronto com a realidade ou, mais especificamente, com o
contexto social no qual a mesma se produz. Desse modo, em Murilo
Rubião: uma perspectiva contemporânea, Giuliano Hartmann
propõe uma leitura da narrativa contemporânea de Murilo Rubião à
luz das teorias de Umberto Eco, evidenciando as relações dialéticas
dentro e fora do texto, reconduzindo-as, porém, para o âmbito da
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afirmação do caráter inultrapassável daquilo que a estrutura
narrativa comporta. Já em Realidade, Kant e Jornalismo Gonzo,
Evandro Bilibio põe em questão a possibilidade mesma de um
discurso objetivo sobre o mundo, assim como o apelo da mídia em
geral, via jornalismo, para o fato de poder apresentar um discurso
objetivo do mundo. Retomando Thompson, jornalista norteamericano que zombou literalmente de tal possibilidade, o autor
pretende mostrar que o criador do jornalismo gonzo está certo e que
é uma ilusão julgar ser possível construir um discurso objetivo do
mundo; Kant, filósofo alemão de fins do século XVIII é também
retomado pelo autor justamente para mostrar esta impossibilidade.
Enfim, a terceira camada se conclui como que sob a forma de um
contraponto às teses discutidas nos textos anteriores, precisamente
com Casamento à vista: as crescentes relações sobre arte e mídia,
de Marcio Fernandes, que discorre sobre as crescentes relações
entre Arte e Mídia, relações que, segundo o autor, estão provocando
o fim das fronteiras entre estas.
Passando-se em seguida à quarta parte dessa trama das
humanidades, intitulada Teoria da Arte, Público e Universo Pessoal,
conclui-se o perfazer dos aspectos acima aludidos; busca-se agora
compreender artística e esteticamente o elevar-se do particular
mesmo ao universal, afirmando-se, pois, a universalidade da pessoa
naquilo que ela tem de mais especificamente seu, vale dizer, seu
próprio caráter universal e, com isso, seu universo propriamente
pessoal. Essa quarta parte se abre então com o texto Arte para
12
todos: a humanização e o desafio do acesso livre à produção
artística, de Maria Inês Peixoto, que parte da constatação de que,
nas sociedades regidas pelo sistema capitalistas, a área das artes,
assim como a da cultura em geral, não constitui prioridade dos
governos, mas que, entretanto, o comércio de arte floresce. Para
explicar este fato, a autora retoma alguns dos aspectos
fundamentais da história da Arte e de sua administração, mostrando
que a arte constitui uma arma construtiva poderosa na luta para “a
superação do homem desumanizado-atomizado no processo
produtivo, com vista à sua humanização e à construção de uma
'sociedade plenamente constituída'” e, enfim, lançando aos artistas
e à sociedade organizada o desafio de “desmitificar o campo das
artes como produção de poucos “iluminados” para outros poucos
econômica e ou culturalmente aquinhoados, para promover o
acesso livre e irrestrito: a arte para todos!”.
Em outro viés, mas de certo modo em diálogo com o texto
anterior, em Debate sobre arte contemporânea e formação do
público, Adriana Vaz põe-se como objetivo compreender a formação
do público consumidor de arte e suas práticas, frente aos
pressupostos teóricos da arte moderna e contemporânea,
considerando, de um lado, que o tipo de arte exposta define o
público, e, de outro, que seu principal mediador é a educação. No
entanto, ao invés de uma reflexão de caráter engajado, a autora
questiona as condições de ascensão do público, na
contemporaneidade, de passivo ou meramente contemplador, a co-
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autor; em suma, Adriana Vaz defende o ponto de vista segundo o
qual mais do que responder às questões então postas, o professor
deve estar apto a perceber e identificar que cada produção exige
um perfil específico de público. Como cerne de tal discussão, podese dizer que se apresenta o problema da contradição entre a
maximalização sonora e a imbecilização musical na
contemporaneidade; esse desenvolvido em Maximalização sonora:
meandros da estética musical contemporânea, de Daiane da Cunha,
que, a partir de Adorno, busca compreender a arte musical numa
perspectiva da época e do homem na nova ordem social do mundo
contemporâneo, mostrando que elementos como cultura de massa,
poder dos meios de comunicação e novas manifestações estéticas na
área musical evidenciam a pluralidade de estilos e técnicas
composicionais, justapondo assim fenômenos tão díspares como a
maximalização sonora e a crescente imbecilização musical da
contemporaneidade. A autora mostra ainda que, ao contrário de tal
imbecilização prenunciada pela sociedade de consumo, a música
maximalista insere-se na trajetória estética musical pós-tonalista,
ampliando as possibilidades de escuta e produção sonora,
configurando não o público musical, mas um público dentre os
possíveis numa sociedade multicultural.
Por fim, Aspectos da performance art, happening e body art
- possibilidades de registro e apropriação de universo pessoal, de
Clóvis Cunha, tematiza a natureza híbrida da linguagem
performática e sua constituição a partir de contribuições de áreas
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diversas como filosofia, rituais tribais, jogos esotéricos, tecnologia,
artes etc. Aqui, diferentemente do que está em jogo nos textos já
referidos, afirma-se justamente o interesse de “distanciar”, ou
melhor, de dificultar o acesso do espectador à ficção, à fábula;
exemplo disso, de acordo com o autor, é o caso de Gerald Thomas,
que se apropria do conteúdo pessoal dos atores na construção de
seus espetáculos, mas também insere ou traz à cena o seu próprio
conteúdo pessoal. Por fim, no dizer de Clóvis Cunha, afirmando sua
presença não ficcional sobre a cena, como também faz o performer,
de forma espontânea ou induzida, por apropriação, o diretor marca
a influência de linguagens performáticas na construção da cena
contemporânea, as quais se apresentam como características
relevantes do teatro de nosso século.
Tal como as três últimas camadas, que se perfazem em um
todo e assim se reatam à primeira, também as duas próximas
desenvolvem temas e problemas específicos que, por sua
universalidade, se impõem como elementos indispensáveis da
trama ora tecida. Agora, de modo mais acentuado que na camada
anterior, a questão do universo pessoal se impõe nos quadros da
quinta parte, A Mulher na História e na Mídia, a qual busca por em
diálogo a História e Mídia no que respeita à questão específica da
Mulher e o caráter universal de sua atividade, essa determinada
tanto social quanto historicamente, tanto espacial quanto
temporalmente. Neste sentido, em Mulheres do além-mar lusitano
e suas estratégias de bem viver. Curitiba (1765-1805), Milton
15
Stanczik lança um olhar sobre os caminhos mais recorrentes
utilizados pelas mulheres setecentistas para obter privilégio,
prestígio e distinção, mais especificamente para aquelas que
amealharam bens nos sertões curitibanos; atento ao fato de que,
muitas vezes, pobreza e prestígio caminham lado a lado, o autor
analisa as atividades que duas mulheres tiveram durante a vida –
tendo em vista seu patrimônio – e em quais garantias se apoiavam
para adquirir um determinado cabedal, seja ele simbólico ou
material.
Seguindo em suas linhas gerais essa mesma perspectiva, O
lugar da mulher e de sua sexualidade no Brasil colônia, de Carmen
Diez, tem por norte realizar uma arque-genealogia dos lugares
femininos no Brasil Colonial a partir dos discursos sobre a mulher,
discursos que elaboraram um controle da sexualidade
coetaneamente com a edificação da imagem de fragilidade
feminina. Partindo da noção foucaultiana de 'biopoder' e,
consequentemente, da duplicidade da relação de poder aí
envolvida, a saber, que o “biopoder sobre os corpos tratou de
proclamá-los como corpos recolhidos e encobertos, mas na
verdade, incitou-os à sexualidade”, a autora afirma que “a
propalada fragilidade da mulher, não obstante ser cantada em prosa
e verso, prestou-se apenas ao reforço sexista”, buscando então
desmistificá-la. Fechando essa quinta parte, Discurso, gênero e
mídia, de Níncia Cecília Ribas Borges Teixeira, busca compreender o
processo da determinação cultural e histórica das relações de
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gênero, porém, reconduzindo sua discussão para os meios de
comunicação, os quais, segundo a autora, desempenham um papel
nodal na cultura contemporânea e oferecem, assim, importantes
elementos lingüísticos e discursivos que permitem analisar os
vestígios que atravessam e constituem os movimentos identitários
da mulher.
Desse modo, a quinta camada permite passar
imediatamente à sexta na medida em que, se naquela estavam em
jogo as relações entre Mídia e História, ainda que mediante o caso
concreto das questões de gênero, agora estará em jogo
precisamente as relações entre Mídia e Linguagem, sendo seu
elemento mediador precisamente questões de cunho ético,
científico e tecnológico, fazendo assim com que se perfaça em sua
inteireza a trama assim tecida. Nessa perspectiva, Jornalismo
ambiental nas páginas de Veja: uma análise discursiva, de Ariane
Pereira, discute o “binômio esperança-desesperança” no discurso
da referida revista entre 2003 e 2008; binômio que se exprime, de
um lado, na preocupação da revista com o aquecimento global e o
efeito estufa e, de outro, na mudança de tom de seu discurso
“verde”, passando do “alarme do caos ambiental” para a
“esperança das soluções possíveis para o planeta” – isso, nos
quadros de uma explicitação do que a autora entende ser o papel de
Veja, que, por exemplo, convidando o leitor a agir, se mostra como
uma publicação de “espírito de vanguarda informativo” também
nas questões ambientais. Em outro viés, Ciências humanas:
17
pesquisa em comunicação e linguagem, de Francismar Formentão,
põe em questão algumas das contradições que permeiam as ciências
humanas nos dias atuais; por exemplo: a transformação da ciência
em produto de consumo, sua produção em massa, sua fragmentação
e a ausência de rigor ético, epistemológico e metodológico – na
maioria dos casos, resultado de crises na cultura contemporânea.
Em face disso, o autor defende a valorização do sujeito humano em
sua relação de alteridade e o emprego de métodos com rigor ético,
afirmando que uma alternativa para a condução de pesquisas em
ciências humanas, numa sociedade cada vez mais tecnológica e
midiatizada, encontra-se no entendimento da linguagem como
elemento constitutivo da existência humana, dado que a mesma é
principio, meio e fim de toda consciência e existência social. Por
fim, em Globalização e regionalização da mídia brasileira,
Anamaria Fadul discute os processos de globalização e
regionalização da mídia que tiveram lugar, a partir da década de
1990 do século passado, com a ampliação do acesso à televisão por
assinatura e à internet, ao mesmo tempo em que se ampliou
também o interesse pela mídia regional, como resultado da
necessidade e do interesse de se acompanhar o que acontecia na
realidade mais próxima.
Assim, A trama das humanidades: olhares, discursos,
intervenções retorna, então, ao seu ponto de partida, mostrando
que a tessitura do Humano na época de hoje, mais do que em
qualquer outra época, radica fundamentalmente na sua
18
compreensão de si e na passagem à ação como chave dessa mesma
compreensão. Que o fio de Ariadne aí tecido jamais se perfaça, mas
sempre se desfaça, este não é senão o elemento que impulsiona o
homem a tornar-se Homem ou este, enquanto mero hominídeo, a
tornar-se Humano em sentido pleno; questão cada vez mais
presente, sobretudo nos quadros dos Estudos Culturais, de Gênero e
da história das civilizações. Eis aí, pois, o desafio da humanidade
presente, deixemo-la falar, ver, olhar, agir, inter-vir...
Manuel Moreira da Silva
DEFIL-UNICENTRO/PR
19
PARTE I
Ética, Tecnologia e Educação
Reflexões sobre o EaD no contexto das novas tecnologias da Educação
1
Zinara Marcet de Andrade NASCIMENTO
Uma das características marcantes do final do século XX
consiste no avanço da ciência e da tecnologia. Esse fenômeno é, sem
dúvida, reconhecido por todas os segmentos sociais, assim como é
consenso que foram muitos os impactos sobre as sociedades e os
indivíduos.
Nesse contexto, as inovações foram cada vez mais intensas e
velozes nos diversos setores de reprodução da base material,
progressivamente incentivadas em razão da principal forma de
organização social vigente: o capitalismo, no qual inovar significa
vantagem competitiva no mercado global.
No que diz respeito à educação, uma prática social, foram
inúmeras as alterações proporcionadas pelo atual estágio técnicocientífico, com perspectivas de melhorias tanto para docentes como
para discentes. Entre a vasta gama de possibilidades na área
educacional, a partir da fusão da microeletrônica à informática, houve
o revigoramento da modalidade de Educação a Distância (EaD). Sob
essa circunstância, o ensino superior foi intensamente incentivado, em
especial a formação de professores. Importante destacar que nem
1. Doutora pela Universidade Federal do Paraná - [email protected]
23
sempre essas mudanças possibilitadas pela aplicação do avanço
técnico-científico no setor educacional foram plenas de positividade.
Entretanto, é necessário compreender que tais questões não são
naturais ou espontâneas, mas decorrentes da forma predominante de
organização social do presente contexto histórico.
Por tais razões, apreender EaD no contexto das “Novas
Tecnologias” requer percebê-la e analisá-la dentro do cenário global da
articulação mundial de forças e a constante necessidade de valorização
do capital.
Neste sentido, a fim de destacar as determinações da
educação na perspectiva da totalidade histórica, com destaque para a
EaD, utiliza-se o materialismo histórico como referencial teóricometodológico para abordar o referido tema.
Na primeira seção, apresenta-se um breve resgate da
conformação da modalidade EaD no Brasil, com enfoque no seu início e
na contemporaneidade. Na segunda, busca-se relacioná-la com a
reforma educacional que viabilizou a sua expansão. Em seguida, as
bases que garantem a pertinência da EaD na presente fase histórica.
Educação a Distância no Brasil
A modalidade de Educação a Distância não é algo recente.
Entretanto, ganhou “novas formas” a partir do final do século XX em
virtude das profundas e intensas mudanças ocasionadas pela
intensificação do uso da microeletrônica e da informática, dentre as
quais a implementação das chamadas Tecnologias da Informação e
24
Comunicação, TICs, uma vez que, em tese, possibilitam resolver um
antigo problema: vencer a distância que afasta e impede o contato
entre professores e alunos e com isso qualificar a contento não
apenas a força de trabalho existente, mas todos os indivíduos de
uma dada sociedade. Logo, as TIC's possibilitaram a expansão e a
popularização do ensino em diversos níveis.
Porém, faz-se imprescindível um breve recuo no tempo para
melhor compreender como e o por quê a EaD tornou-se tão
pertinente na sociedade contemporânea, na qual o discurso
hegemônico propaga a educação como a cura para os males da
humanidade.
No que diz respeito ao Brasil, a primeira questão a ser
levantada nesse percurso histórico, está em lembrar que,
diferentemente da maioria dos países, o início da educação a
distância brasileira não se “consolidou” pelo uso de
correspondências, pois além da falta de infra-estrutura para o envio
e recebimento dessas, 75% da população era analfabeta até 1920
(RIBEIRO, 1978). Segundo Pretti, a EaD no Brasil teve como marco
decisivo o ano 1923 com programas de rádio que transmitiam cursos
de línguas, literatura, radiotelegrafia, telefonia (PRETTI, 1996). Na
ocasião, o modelo econômico brasileiro ainda era o primárioexportador (1500 a 1930), a maior parte da população era rural e
sem acesso à escola, pois as culturas latifundiárias, quase nada
mecanizadas, não exigiam sequer saber ler e escrever.
Nesse cenário, a educação era extremamente elitizada e os
25
cursos oferecidos em 1923 pela Fundação da Rádio Sociedade do Rio
de Janeiro, atingiam apenas uma pequena parcela da sociedade,
pois além do analfabetismo, um rádio naquele momento era um
artefato de luxo, possível apenas para as famílias de maior poder
aquisitivo.
É importante, sobretudo, perceber que a criação dos cursos
de rádio não ocorreram ao acaso, mas foram frutos da transição
histórica que passava a sociedade brasileira, que vivia uma grave
crise em razão do esgotamento de crescimento da produção de
bens-primários destinados à exportação, em especial o café. O
descontentamento da população com a situação sócio-econômica
fez eclodir acontecimentos marcantes com desdobramentos
importantes no futuro, a exemplo da Semana da Arte Moderna
(fevereiro/1922), que buscava a emancipação cultural do Brasil, a
fundação do Partido Comunista (março/1922) com o objetivo de
iniciar a organização da classe operária brasileira; a Revolta do
Forte de Copacabana, também chamado de Movimento Tenentista
(julho/1922), que visava inserir os militares na vida política e
administrativa do país. (BRUM, 1987).
Portanto, o marco do EaD no Brasil ocorreu numa época de
forte desejo de emancipação política e cultural, o que desencadeou
um movimento em prol do desenvolvimento nacional autônomo e
auto-sustentado. Era preciso criar indústrias e com isto qualificar a
força de trabalho existente com o objetivo de vencer as barreiras
internas de produção e enfrentar a concorrência das mercadorias
26
vindas do exterior.
O esforço inicial de industrialização ampliou a urbanização.
Porém, trabalhar na cidade não era como trabalhar no campo. Foi
preciso ensinar a ler escrever. A educação básica passou a ser
condição para a inserção nas melhores vagas do mercado de
trabalho nas cidades. Em prol da urbanização e das indústrias,
então, ampliaram-se as escolas e outras formas de ensino. A
educação a distância avançou.
Diante de tal cenário, com melhoras na infra-estrutura
decorrentes das necessidades do setor produtivo, em 1941 ocorreu a
fundação do Instituto Universal, cuja método consistia em produzir
material impresso e enviá-lo via correio como forma de qualificar
parte da população. O referido instituto, além de pioneiro nesta
modalidade de ensino, ainda está em vigor e oferece inúmeros
cursos.
Contudo, segundo Pretti (1996) foi somente a partir de 1960
que o ensino a distância ganhou relevância, ocasião em que surgiu a
Comissão de Estudos e Planejamento da Rádio Fusão Educativa. Ao
final dessa década surgem várias iniciativas: a TV Educativa do
Maranhão; a TVE do Ceará com o programa TV escolar, a fundação do
Instituto de Radiodifusão do Estado da Bahia; o Centro Educacional
de Niterói; e o Centro de Ensino Tecnológico de Brasília com a
finalidade de qualificar profissionais para as empresas, com
destaque para o Projeto Acesso, desenvolvido em parceria com a
PETROBRÁS (ALBERTI, 2008).
27
No decorrer dos anos 70, o destaque é o programa rádio
educativo do governo federal chamado de Projeto Minerva e o
Projeto Sistema Avançado de Comunicações Interdisciplinares SACI. O primeiro oferecia cursos de primeiro e segundo grau, com o
objetivo de ofertar algum tipo de educação aos cidadãos brasileiros
que por algum motivo não tinham como frequentar as escolas. O
segundo refere-se à formação de professores leigos, via satélite,
ofertado entre 1967 e 1974 no Rio Grande do Norte.
No final da década de 70, a TV Cultura (Fundação Padre
Anchieta) em parceria com a TV Globo (Fundação Roberto Marinho)
criam o Telecurso 2º. Grau e posteriormente o 1º. Grau na década de
80 e o Telecurso 2000 nos anos 90.
No entanto, foi no final da década de 90 que o ensino a
distância consagrou-se. As TIC's foram, sem dúvida, o elemento
possibilitador, mas não a principal causa, pois a educação a
distância “ [...] não deve ser simplesmente confundida como
instrumental, com as tecnologias a que recorre.” (PRETTI, 1996,
p.7)
O incentivo à essa modalidade de ensino tem sido
gigantesco. Numa das séries de reportagens do Jornal Nacional, em
abril de 2009, o tema destacado foi o crescimento da EaD no ensino
superior no Brasil nos últimos anos. Uma das reportagens da série
trouxe depoimentos de alunos que exaltaram os aspectos positivos e
a satisfação em fazer esses cursos. A matéria enfatiza que uma das
alunas entrevistadas mora em São Paulo e uma vez por semana, sem
28
sair do país, estuda na Universidade de Harvard, uma das mais
tradicionais dos Estados Unidos e de reconhecimento internacional.
A entrevistada apontou a importância de poder trabalhar e, em
qualquer lugar do Brasil, estar conectada nos momentos da aula.
Ressaltou ainda que cursar aqui no país é “muito mais barato” do
que presencial, em razão de evitar os custos de transporte, moradia
e hospedagem.
A reportagem destacou o fato do professor do curso de
especialização em políticas educacionais, a 8 mil quilômetros de
distância, ministrar e transmitir
aulas em inglês via internet.
Apontou ainda que o curso possui alunos de sete países que debatem
os conteúdos via “chat” em tempo real.
Outro entrevistado, que realizava uma pós-graduação em
administração de empresas, gerente de desenvolvimento de
produtos, apontou utilizar todos os minutos disponíveis de seu
tempo para aprender ao transformar qualquer lugar em sala de
aula.
Como se pode perceber pela matéria divulgada num dos
canais de comunicação de maior audiência no país, há uma
gigantesca propaganda a favor do ensino a distância no Brasil, o que
em muito contribui para a expansão dessa modalidade de ensino,
em especial para o nível superior e pós-graduação.
Segundo dados oficiais do Censo da Educação Superior de
2006/INEP a oferta de cursos superiores no Brasil entre 2003 e 2006
cresceu 571%. Um outro levantamento, de 2007, mostra que o
29
número de alunos avançou 356% em três anos. Dados da mesma
fonte informam que 73% desses cursos são ofertados em escolas
particulares. A educação a distância foi decisiva para tal aumento.
Apesar da maioria dos cursos a distância, atualmente,
serem ofertados em instituições privadas, após muitos debates e
resistência, paulatinamente as universidades públicas, federais e
estaduais, passam a ofertar esses cursos. Sobre este aspecto, na
mesma reportagem destaca-se que:
Demorou, mas a maior universidade do país,
fundada há 75 anos, se rendeu a educação a
distância. Depois de seis anos de ensaio, a USP
estreia na modalidade com um curso de
graduação para formar professores de
ciências, uma área carente de profissionais
qualificados. Em laboratórios, todos os
sábados, eles vão pôr em prática o que a
prenderem pelo computador. Na primeira
turma, serão 360 alunos, gente que não teria
como se deslocar todos os dias até a
universidade. “É uma universidade de peso
como a universidade de São Paulo dizer o
seguinte: 'Olha, o ensino a distância é
importante, nós temos que encarar'. [...] Na
pós-graduação a distância, a USP já tem
experiência. Só a escola de engenharia formou
mais de 500 pessoas (Jornal Nacional, 2009).
A reportagem lembrou que a educação a distância exige
disciplina, iniciativa e autonomia, o que justificaria a faixa etária de
30
seus alunos ser mais elevada. De acordo a Associação Brasileira de
Educação a Distância, também entrevistada, houve um
levantamento em 140 instituições que oferecem EaD o qual revelou
que apenas 22% dos estudantes estão abaixo dos 24 anos de idade. O
presidente da associação destacou que: “O aluno que é mais
maduro, determinado, que quer conseguir aquele diploma, que
preciso daquele conhecimento, esse é um ótimo candidato para
educação a distância” (Jornal Nacional, 2009).
Como se pode perceber por meio da reportagem
transmitida pela Rede Globo, mídia que atinge maciçamente todas
as classes sociais do país, a EaD seria plena de positividades. Logo,
não é de se estranhar os dados oficiais divulgados dessa modalidade
de ensino em 2009: 760.599 alunos matriculados, apesar de cerca de
1.300 instituições privadas tenham sido fechadas devido à falta de
estrutura.
Contudo, existem pesquisas acadêmicas que apontam as
deficiências e contradições de tais cursos, a começar pela sua
concepção pragmatista, imediatista e tecnicista. Em razão do limite
deste texto, enfoca-se apenas a formação de professores, tomandose por base os estudos de Scheibe (2006), Shiroma (2000), Alberti
(2008). Tais estudos apontam o aligeiramento e superficialidade dos
conteúdos apresentados, o papel secundário dos tutores, as
avaliações como meras atribuições de notas, a falta de infraestrutura adequada para a interação professor-aluno, o que leva a
crer que o diploma pode ser uma mercadoria obtida com o
31
pagamento de razoáveis prestações mensais.
Há, também, quem aponte essa modalidade como uma
política educacional para compensar a falta de cursos regulares e de
qualidade:
O seu uso na substituição aos cursos
presenciais e não como complementar a estes
não atende aos princípios de formação
construídos pelo movimento de educadores
brasileiros. Mais grave ainda é o fato de que no
Brasil a educação a distância é utilizada
tendencialmente para suprir a ausência da
falta de cursos de formação inicial a uma
determinada “clientela” apresentando-se
dessa forma como uma política
compensatória. (MAUÉS; BAZZO apud SHEIBE,
2006, p.7)
Todavia, e como afirmado anteriormente, o revigoramento
e a ascensão da EaD a partir do final dos anos 90 não podem ser
analisadas em si mesmas, muito menos como uma mera
consequência do avanço da ciência e da tecnologia aplicadas ao
setor educacional. É preciso ter a clareza de que a EaD só pode ser
apreendida como parte das políticas educacionais vigentes e que
estas,
por sua vez, estão articuladas às relações sociais de
produção desenvolvidas por um coletivo em determinado contexto.
Elucidar a conformação das políticas educacionais vigentes é o
objetivo da próxima seção.
32
As políticas Educacionais vigentes e a Educação a Distância
A centralidade da educação tem sido tema recorrente em
todas as áreas de conhecimento, independente de concepção
ideológica, religiosa ou partidária. A importância da educação é
“cantada em verso e prosa” no discurso hegemônico, em especial
nas duas últimas décadas:
Ante os múltiplos desafios do futuro, a
educação surge como um trunfo indispensável
à humanidade na sua construção dos ideais de
paz, da liberdade e da justiça social. “[...] Não
como um “remédio milagroso”, não como um
“abre-te sésamo” de um mundo que atingiu a
realização de todos os seus ideais, mas entre
outros caminhos e para além deles, como uma
via que conduza ao desenvolvimento humano
mais harmonioso, mais autêntico, de modo a
fazer recuar a pobreza a exclusão social, as
incompreensões, as opressões, as gerras ...”
(DELORS, 2006, p.11)
A primeira vista, e sem maior compreensão sobre a
conformação da relevância atribuída à educação, o texto acima,
início do famoso Relatório Jaques Delors, ressalta um enfoque
humanitário, no qual a educação estaria acima de tudo imbuída na
construção de indivíduos melhores do ponto de vista intelectual,
afetivo e social.
Todavia, a retórica em questão tem como finalidade
encobrir a realidade perversa do atual estágio do modo de produção
33
capitalista no qual as condições de sobrevivência digna são cada vez
menores para a maioria da população, em especial aquelas dos
chamados países em desenvolvimento e subdesenvolvidos com altos
índices de desemprego, pobreza e ainda com analfabetos.
Assim, apesar da intensa retórica, a principal questão
consiste no fato de que a qualificação da força de trabalho
taylorista/fordista, não seria eficiente para as novas necessidades
de valorização constante do capital. Por tais motivos, houve uma
ampla reforma educacional.
As análises de cunho crítico apontam que no Brasil a
referida reforma foi realizada a partir da década de 90, bem como
apontam que o primeiro marco substancial na investida do capital
em torno da qualificação, a fim de preparar o trabalhador de forma
condizente com a atual fase de acumulação, foi a Conferência
2
Mundial de Educação para Todos, em Jomtien, Tailândia, organizada
pelas agências multilaterais, que reuniu uma comissão de
especialistas de todo o mundo para refletir e deliberar sobre os
caminhos da educação para o século XXI.
O referido encontro, de caráter internacional, tinha como
orientação os últimos paradigmas do mundo do trabalho resultantes
da nova forma de acumulação que se pautava na reestruturação
produtiva do capital que, por sua vez, embasava-se no uso
progressivo da informática e da microeletrônica. Denominado como
Modelo das Competências Profissionais (DELUIZ, 1995), seus
princípios expressam as preocupações dos empresários com a crise
34
2. De acordo com Nora Krawczyk, em “A construção social das políticas educacionais no Brasil e na América
Latina”, as reformas nos diferentes países iniciaram-se no quadro dos compromissos assumidos na referida
conferência, na qual a educação voltou a fazer parte das agendas nacionais e internacionais como tema central das
reformas políticas e econômicas. (KRAWCZYK, 2000, p.3)
estrutural do modo de produção capitalista que se instalou nos
países centrais no início da década de setenta e tem como objetivo
“[...] racionalizar, otimizar e adequar a força de trabalho face às
demandas do sistema produtivo” (DELUIZ, 1995, p.1)
3
A partir da estreita relação entre educação e trabalho, a
Conferência Mundial de Educação para Todos foi uma necessidade
histórica da burguesia internacional e seguiu os pressupostos
elaborados pelos mesmos que, mais do que nunca, vincularam a
educação ao mercado competitivo e globalizado. Ou seja, garantiu
a proximidade da escola das necessidades empresariais.
Por tais razões, o governo nacional, subordinado aos
capitais internacionais e suas respectivas agências multilaterais,
dos quais depende de financiamentos para os projetos
educacionais, deu início a um processo que denominou de “[...]
modernização da educação que implicou mudanças importantes nos
modos de gestão do sistema e das escolas, nos conteúdos, nas
formas de financiamento, na estrutura acadêmica e no conjunto de
princípios e valores que orientam o dever ser educativo [...]”
(TIRAMONTI, 2000, p.118).
Apesar das polêmicas e resistências, as reformas
educacionais de cunho capitalista tiveram seu início com a
promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional em
1996 (Lei 9.394/96), conhecida como a nova LDB. No decorrer dos
seus parágrafos, por várias vezes, destacam-se a importância da
ciência e da tecnologia. Entretanto, essa mesma lei possibilitou a
3. Importante frisar que esta relação é sempre mediada por múltiplos fatores, o que dificulta em muito a percepção
de sua realidade concreta
35
eliminação do chamado “currículo mínimo” e a flexibilização das
grades curriculares, seu principal enfoque. Além dessas duas
questões, criou os Institutos de Ensino Superior (IES) para formar
professores para o ensino fundamental e médio de forma rápida e
sem a exigência de vínculo com as universidades, possibilitou a
prática docente a qualquer profissional mediante treinamento;
acabou com a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão;
criou os cursos seqüenciais por área de conhecimento; instituiu a
possibilidade de universidades por campo de saber. Viabilizou a
modalidade de EaD para as graduações.
A análise crítica de tais questões articulada às mudanças
ocorridas do mundo do trabalho evidencia, entretanto, que a
preocupação central da referida reforma estava em adequar o
processo educacional à empregabilidade possível em decorrência
das inúmeras e substantivas alterações ocorridas nas relações
materiais e sociais de produção, pois a incorporação da
microeletrônica e da informática, sob a lógica do lucro, diminuiu
drasticamente os postos de trabalho.
Portanto, a redação da legislação em vigor não deixa
dúvidas quanto à sua raiz: as orientações das agências multilaterais,
sob a égide do sistema capitalista, que financiaram a Conferência
Mundial de Educação para Todos, adequando a educação às
exigências da reestruturação produtiva e ao mercado globalizado.
Assim, mesmo com a intensificação da ciência e da
tecnologia, bem como da exigência de profissionais altamente
36
qualificados frente à complexidade das forças produtivas,
flexibilizou-se o processo educacional por meio de vários
mecanismos, tais como a orientação de encurtamento do tempo em
sala de aula, a ampliação da possibilidade de atividades
complementares para a integralização curricular, a diminuição das
exigências nos processos avaliativos, bem como a expansão da EaD.
Houve, então, a falsa percepção de que o empenho destas
mudanças estariam na viabilização da vida dos alunos diante das
suas necessidades imediatas para uma melhor inserção ao mercado
de trabalho.
A reforma educacional instituída, que a primeira vista
aparenta ser uma melhoria em todos os níveis de ensino, mas oculta
sua real intencionalidade, foi o passo mais importante para as
implementações que vieram na seqüência, pois além de torná-la
legal, impregnava-a com ares de imprescindibilidade.
A iniciativa privada ao perceber que a reforma educacional,
ao possibilitar a flexibilização do ensino tornou a educação uma
mercadoria ainda mais interessante, ampliou a oferta de seus
serviços.
Um desses serviços ofertado com sucesso tem sido a EaD.
Por meio da Lei 9.394/96, artigos 80 e 87, com o Decreto n. 2.494 de
10 de fevereiro de 1998, posteriormente o Decreto 5.622 de 2005, a
Portaria n. 4.361 de 2004, a EaD foi expandida por todas as áreas de
conhecimento e em todos os níveis. Pode, portanto, ser oferecida na
educação básica, educação de jovens e adultos, na educação
especial, na educação profissional (técnicos de nível médio e
37
superior), na educação superior, em cursos sequenciais,
especializações, mestrados e doutorados.
São cursos mais rápidos, mais baratos, enfim, flexíveis, tal e
qual a legislação em vigor recomenda, porém com rótulo de avanço
educacional:
Enquanto discurso oficial, a EaD é considerada como uma
possibilidade de garantir a igualdade de oportunidades no acesso à
educação de qualidade a todos os que, por qualquer motivo, possam
estar arredados do ensino presencial, no tempo considerado útil
pelo atual sistema de ensino (ALBERTI, 2008, p.53).
Feitas estas considerações acerca das políticas
educacionais que viabilizaram a expansão da Educação a Distância
nas duas últimas décadas, necessário se faz esclarecer as bases e
sua pertinência na atual fase da acumulação capitalista.
As bases da Educação a Distância no atual contexto de acumulação
do capital e as consequências para a classe trabalhadora
Como foi visto até aqui, a educação a distância é uma
modalidade praticada há muito e em diferentes contextos.
Contudo, foi revigorada e consagrada a partir do avanço técnicocientífico das últimas décadas (característica marcante da atual
fase capitalista) e sustentado pelas reformas educacionais dos anos
90. Destacou-se, também, nas seções anteriores o discurso oficial
de incentivo à essa modalidade de ensino em razão de sua
viabilidade e qualidade.
38
Importa, pois, compreender suas bases e sua pertinência,
uma vez que pesquisas indicam a péssima qualidade de alguns
desses cursos, em especial a formação de professores, fenômeno
contraditório ao discurso sobre a centralidade da educação e ao
avanço tecnológico que requer indivíduos com maior qualificação
profissional e desempenho pessoal. Vale lembrar que muitos cursos
regulares padecem dos mesmos males.
A primeira questão a ser retomada, já mencionada, é a
configuração da principal forma de organização social vigente: o
modo de produção capitalista, com sua natureza contraditória, no
qual a reprodução da vida se dá por meio da produção de
mercadorias. Logo, é fundamental compreender a relação entre a
qualificação dos trabalhadores e a acumulação capitalista, a qual só
pode existir por meio da extração da mais-valia, parcela de trabalho
não pago.
A partir desse pressuposto, a análise das relações sociais
capitalistas aponta que a mercadoria, forma elementar da riqueza,
possui um caráter fetichista que encobre a essência predatória do
capitalismo ao impossibilitar a percepção de que o trabalho social é
transformado em trabalho alienado, que enriquece o proprietário
dos meios de produção na razão direta em que reduz a dimensão
4
humana do trabalhador.
Todavia, uma mercadoria no capitalismo, que constitui uma
relação social, só interessa se possuir tanto valor de uso como valor
de troca, pois é no ato da troca que o capitalista se apropria da parte
4. Para Marx o trabalho humano possui uma dimensão ontológica: “Antes de tudo o trabalho é um processo entre o
homem e a natureza [...]”(MARX, 1998, p. 142). Porém, ao explicar sobre “Processo de Trabalho e Processo de
Valorização”. Esclarece que esta é uma forma genérica, insuficiente para compreender a forma social do capital e
seus elementos constitutivos..
39
de trabalho realizada pelo operário que não foi devidamente pago,
a mais-valia, o único elemento capaz de valorizar o capital. Porém,
para produzir uma mercadoria um trabalhador deve ter a
preparação necessária, o que tem um custo para o capitalista,
inserido no salário.
Em O Capital, Marx percorreu um longo caminho analítico
para deixar claro que a luta dos capitalistas para conseguir o
aumento da “mais-valia” não está em simplesmente comprar a
5
força de trabalho abaixo do seu valor; tampouco é possível
simplesmente aumentar a jornada de trabalho, porque há um limite
que não pode ser ultrapassado, pois não há como impedir a exaustão
e o desgaste físico do trabalhador. Demonstrou, então, que se faz
imprescindível aumentar a força produtiva do trabalho, isto é, criar
alterações no processo de produção de mercadorias que
possibilitem a redução do tempo de trabalho socialmente
necessário.
Como resultado, mesmo que não planejado, o valor da força
de trabalho, que é composto pelos ramos que constituem os meios
de subsistência do trabalhador (um deles a qualificação do
trabalhador), cai e desta forma, diminui o salário e o acúmulo de
capital é obtido.
Marx preocupou-se em diferenciar a “mais-valia absoluta”
da “mais-valia relativa”. A primeira justamente por ser obtida por
meio do prolongamento da jornada de trabalho, tal como afirmado
acima: inviabiliza-se pela existência de limitação do dispêndio de
energia pelo organismo do trabalhador, quer execute trabalho
40
5. Porque, segundo Marx, a regra básica da economia mercantil é que as mercadorias são sempre compradas pelo
seu valor, inclusive a Força de Trabalho.
simples ou altamente qualificado; portanto, tornou-se insuficiente
perante a crescente concorrência capitalista. A segunda, relativa
aos dois componentes da jornada de trabalho, trabalho necessário e
mais-trabalho, consiste na redução do primeiro, isto é, do tempo de
trabalho social necessário, o qual diminui na razão direta do
desenvolvimento da força produtiva do trabalho, enquanto o valor
6
das mercadorias cai na razão inversa do seu desenvolvimento.
Para demonstrar a necessidade do capitalismo para além da
obtenção da mais-valia absoluta, Marx, a partir do Capítulo XI,
analisou as fases de organização e gestão do processo de trabalho
iniciando pela sua forma mais simples, a cooperação, até o que
havia de mais complexo na sua época: a maquinaria da grande
indústria.
Embora o objetivo de Marx não estivesse em analisar os
processos de organização e gestão do trabalho, valeu-se de tal
prerrogativa para demonstrar que o capital criou formas para
manter o seu movimento incessante de acumulação. Ao procurar
produzir cada vez maior quantidade de mercadorias com o menor
tempo possível, diminuiu continuamente o tempo de trabalho
socialmente necessário e, conseqüentemente, o valor da própria
7
força de trabalho que, como qualquer outra mercadoria, “[...] é
determinado pelo tempo trabalho de necessário à produção,
6. O desenvolvimento da força produtiva do trabalho, no seio da produção capitalista, tem por finalidade encurtar a
parte da jornada de trabalho na qual o trabalhador tem de trabalhar para si mesmo, justamente para prolongar a
outra parte da jornada de trabalho durante a qual pode trabalhar gratuitamente para o capitalista. (MARX, 1988, v.1,
p.243)
7. “Enquanto valor, a própria força de trabalho representa apenas determinado quantum, de trabalho social médio
nela objetivado. A força de trabalho só existe como disposição do indivíduo vivo. Sua produção pressupõe,
portanto, a existência dele. Dada a existência do indivíduo, a produção da força de trabalho consiste em sua
própria reprodução ou manutenção. Para sua manutenção o indivíduo vivo precisa de certa soma de meios de
subsistência. O tempo necessário à produção da força de trabalho, corresponde, portanto, ao tempo de trabalho
necessário à produção desses meios de subsistência ou o valor da força de trabalho é o valor dos meios de
subsistência necessários à manutenção do seu possuidor” (MARX, 1988, v.1, p.137)
41
portanto também reprodução desse artigo específico” (MARX, 1988,
v.1, p.137).
Esse barateamento da força de trabalho não excluiu os
trabalhadores que exercem trabalho complexo; muito pelo
contrário, pois são estes os mais dispendiosos. A esse respeito, Rubin
(1980) esclarece que a produção de mercadorias tem dois tipos de
trabalho: simples e qualificado. Para o autor, “o primeiro consiste
na capacidade física inerente a todos os indivíduos, sem a
necessidade de educação especial. O segundo, o trabalho
qualificado, complexo, requer “uma aprendizagem mais longa ou
profissional” e, portanto, se expressa de duas formas “no maior
valor dos produtos produzidos pelo trabalho qualificado e no maior
valor da força de trabalho qualificada” (RUBIN, 1980, p.176).
Portanto, o fenômeno de barateamento e enxugamento dos
salários é uma construção sócio-histórica, relativa à apropriação da
ciência pelo capitalismo e, também, relacionado ao processo
educacional.
Dessa forma, embora na primeira fase do capitalismo, isto
é, na cooperação, aparentemente não tenha ocorrido modificação
substantiva no modo de trabalho do indivíduo, que utilizava suas
ferramentas para realizar seu trabalho manual e ainda possuía as
condições de controle intelectual da mercadoria que produzia,
8
numa análise mais apurada, percebem-se mudanças qualitativas,
pois o gerenciamento do capitalista do trabalho coletivo para
aproveitar melhor os meios de produção, possibilitou diminuir a
42
8. Nas palavras de Marx: “De início a diferença é, portanto, meramente quantitativa” (MARX, 1988, v.1, p.244).
Cabe lembrar que existem duas formas de cooperação: a cooperação simples, em que todos fazem o mesmo, isto
é, não há divisão do trabalho; e a cooperação com divisão do trabalho, que é a manufatura desenvolvida. A
cooperação, como categoria geral, é a base da produção de mais-valia relativa.
média de trabalho socialmente necessário uma vez que “[...] 1
dúzia de pessoas juntas, numa jornada simultânea de 144,
proporciona um produto global muito maior do que 12 trabalhadores
isolados [...]” (MARX, 1988, v.1, p.247).
Foi dado o primeiro passo no sentido da desqualificação
9
técnica do trabalhador, fator que posteriormente possibilitou a
diminuição da necessidade de preparação técnica de mesmo nível
para todos pelo fato de cindir a unidade do trabalho que é composta
por atividades manuais e intelectuais. Todavia, o que o processo de
trabalho perdeu em razão dessa cisão, foi compensada, pois ao
trabalharem juntos os trabalhadores geram uma força coletiva de
trabalho, que por sua vez, aumenta o rendimento individual, por
promover uma adição à capacidade do trabalho de cada indivíduo.
A constante, porém, insaciável necessidade de valorização
do capital levou à busca do aumento de produtividade e, em
conseqüência, surgiu a manufatura, a qual requer a decomposição
10
de determinada atividade em suas diversas operações parciais. Ao
executar apenas uma operação simples, o trabalhador “transforma
todo seu corpo em órgão automático unilateral dessa operação e,
portanto, necessita para ela menos tempo que o artífice, que
executa alternadamente toda uma série de operações. (MARX,
1988, v.1, p.256). Por outro lado, a repetição contínua da mesma
ação limitada, bem como a concentração de atenção, ensina o
trabalhador a atingir o efeito útil com o mínimo de esforço.
9. De acordo com o materialismo histórico, a qualificação profissional tem duas dimensões: uma técnica (que
prepara para as tarefas intelectuais e manuais) e uma superestrutural, de caráter comportamental, que prepara
para a conformação de classe.
10. De acordo com Marx, a manufatura: introduziu a divisão técnica do trabalho e a desenvolveu mais do que na
cooperação na cooperação simples; combina ofícios anteriormente separados (esta é só uma das formas da
manufatura. A outra é a decomposição das operações de um mesmo ofício em suas fases sucessivas, cada uma
atribuída a um trabalhador); pode ser composta ou simples; todavia, depende da força, habilidade, rapidez e
43
Por ser o parcelamento das tarefas a principal característica
da organização do trabalho capitalista, a separação entre as
atividades intelectuais e manuais foi cada vez mais acentuada. Em
decorrência, aumentou a diferença entre os trabalhadores mais
qualificados e os menos qualificados, ao mesmo tempo em que
trouxe a eliminação ou a redução dos custos para com o processo de
aprendizagem e, em conseqüência, uma proporcional
desvalorização relativa da força de trabalho.
Com a separação formal entre as atividades intelectuais e
manuais houve também a hierarquização da força de trabalho. A
aptidão para o trabalho dos indivíduos passou a ser considerada de
acordo com uma escala de referências que os classifica de hábeis a
inábeis. Os primeiros recebem preparo para o desempenho de sua
atividade profissional e desenvolvem alguma forma de habilidade
especial, o que demanda custos de aprendizagem. Os segundos
limitam-se a funções fragmentadas, cuja execução não requer
preparação formal e por isso não há custos. Todavia, mesmo para os
considerados hábeis o custo tornou-se cada vez menor uma vez que
a partir da divisão manufatureira as atividades foram cada vez mais
simplificadas. Os maiores salários são pagos àqueles cuja
preparação da força de trabalho demandou maior tempo e maior
quantidade de dinheiro, o equivalente geral de todas as
mercadorias.
Dessa forma, além de aumentar a produtividade e,
portanto, aumentar a quantidade produzida com menor custo
unitário, a divisão manufatureira, ao restringir a compreensão do
44
processo de trabalho na sua totalidade, restringiu tanto a
possibilidade de autonomia intelectual, como manual da classe
trabalhadora. Por outro lado, necessitou preparar força de trabalho
complexa para implementar e criar as máquinas, bem como foi
preciso manter, ou mesmo incorporar, alguns poucos trabalhadores
com conhecimento e experiência para auxiliar ou substituir o
capitalista na sua função de fiscalização do processo de trabalho e
controle da massa proletária.
Com a maquinaria e o trabalho fragmentado, cada uma das
parcelas da confecção de um produto é realizada sem o
conhecimento total do processo de sua elaboração. Desta forma, a
classe trabalhadora foi expropriada tanto dos meios de produção
como dos conhecimentos para a elaboração das mercadorias
necessárias, ficando cada vez mais subjugada ao capital. O
capitalista, ao contrário, não dependia mais, para a acumulação e
ampliação de lucros, da habilidade e experiência dos trabalhadores.
O capital retirou os principais entraves que lhe eram externos para a
produção: “O trabalhador, com sua habilidade, com sua
qualificação, não passa mais a ser o limite para o capital”
(FRIGOTTO, 1984, p.81)
Portanto, a dualidade estrutural da educação que qualifica
uma minoria com o domínio da ciência e do método científico e uma
maioria para tarefas simples que requerem mediana qualificação,
contraditoriamente, decorre do próprio avanço tecno-científico
que complexifica o trabalho de poucos e simplifica o trabalho de
muitos. Esse fenômeno é um produto de longo processo, cujas
45
raízes estão no início da formação da burguesia que proclamava a
necessidade da escola universal, gratuita e obrigatória, portanto,
uma escola comum a todos, mas de forma distinta “Que é preciso
dar a todos, igualmente, a instrução que é possível ser estendida a
todos, mas não recusar a uma parcela dos cidadãos a instrução mais
elevada que é impossível fazer aquinhoar à massa ativa dos
indivíduos”, escrito no Iluminismo por Condorcet (1792).
Mesmo assim, o discurso sobre a centralidade da educação e
sua necessária flexibilização foi paulatinamente incorporado pela
sociedade, inclusive por segmentos da esquerda e da academia.
Sem as condições para perceber a lógica sociedade capitalista e que
o atual desemprego é causado pela forma como se organiza a
produção e a distribuição de mercadorias, a maior parte da
população, mesmo aquela com maior tempo de escolaridade, não
possui elementos suficientes para perceber as incoerências
embutidas nas propostas educacionais e suas verdadeiras
intencionalidades.
Porém, ao contrário do que possa parecer, não é fácil para
os detentores dos meios de produção e capital, que são os
interessados em resguardar e manter a organização social vigente,
zelar pelas bases de sustentação da sociedade capitalista, pois a
história tem demonstrado que os processos de ajustes necessários
são mediados por conflitos, pressões, resistências dos
trabalhadores, suas entidades de representação e mesmo algumas
lutas sangrentas.
46
Assim, ao mesmo tempo em que precisam “educar” a massa
de trabalhadores para operarem suas unidades produtivas da
melhor forma possível e não danificarem os meios de produção, o
que seria uma perda de capital, eles reconhecem a ameaça do
conhecimento que contém em si os germes da revolução, há muito
destacado por Lenin.
Logo, foi prudente seguir os conselhos de Adam Smith no
11
século XVIII, ou seja, dosar os conhecimentos em doses
homeopáticas a fim de que a produção científica produzida fosse
devidamente apropriada e resultasse na valorização do capital.
Dessa forma, apesar da EaD ser um recurso que expressa o
alto grau de desenvolvimento social alcançado pelo humanidade e
que pode trazer grandes benefícios em prol da classe trabalhadora,
sua expansão sob a acumulação capitalista tem como finalidade
primeira a valorização do capital, ofertada com a qualidade
necessária para uma minoria a exemplo da aluna de São Paulo que
faz um curso em Harvard, ao passo que para a massa de
trabalhadores cursos aligeirados e superficiais na lógica “do
rapidinho e baratinho” (KUENZER, 2004), apesar do seu verniz
modernizador e democrático.
Considerações finais
O presente texto procurou evidenciar, à luz do materialismo
histórico, que existe uma relação entre a qualificação profissional
da classe trabalhadora e a manutenção da ordem capitalista desde
11. A Riqueza das Nações: investigação sobre sua natureza e suas causas, publicado em 1776.
47
suas raízes. Por não ser uma relação imediata e sim mediada por
múltiplos fatores, sua percepção é nebulosa para a população em
geral. As mediações, que permitem o entendimento da realidade
concreta para além da superficialidade, são várias e de difícil
apreensão: a divisão técnica e social do trabalho de caráter
internacional; a apropriação da ciência pelo capital e sua
conseqüente organização e gestão da produção de mercadorias; a
reconfiguração do trabalho complexo e a simplificação do trabalho
da maioria; a chamada dimensão superestrutural da qualificação
que prepara para a inserção de classe; as políticas educacionais
neoliberais; o desemprego estrutural; as competências profissionais
relativas à atual organização e gestão do processo de trabalho; a
alienação da classe trabalhadora, e, sobretudo, a valorização
constante do capital que determina todas as demais.
Portanto, ao mesmo tempo em que a EaD apresenta-se
como nova ao se valer das TIC'S, traz em si aspectos concernentes ao
seu passado, pois resulta de um processo de incorporação de novas
características das relações sociais de produção que lhe foram
alterando as configurações, sem, contudo, modificar o objetivo da
educação capitalista: qualificar para a melhor exploração da classe
trabalhadora e extrair a mais-valia.
Contudo, infelizmente, não foi possível destacar todas as
contradições ao longo das variações da modalidade EaD, há muito
praticada, optando-se pelo breve resgate histórico do início e da
contemporaneidade EaD no Brasil para evidenciar que as relações
48
sociais de produção, dentre elas a educação dos trabalhadores, não
ocorrem aleatoriamente, mas são constituídas a partir das questões
reais, traduzindo a forma como os indivíduos organizam tanto suas
necessidades materiais imediatas, como as suas regras, crenças,
valores, convenções, ética, enfim, o que os indivíduos são,
portanto, depende das condições materiais de sua produção (MARX;
ENGELS, 1978).
O mesmo objetivo teve o resgate da conformação da atual
política educacional, isto é, esclarecer que a qualificação
profissional dos trabalhadores resulta das relações que os seres
humanos estabelecem ao produzir as condições de existência,
conscientemente ou não, e estão repletas de contradições só
percebidas ao se apreender o movimento decorrente dos interesses
antagônicos entre os que vendem sua força de trabalho e os
detentores de capital.
Assim, acredita-se que tenha sido possível contribuir para
desvelar a utilização da EaD em tempo de retórica de
supervalorização da educação, pois suas contradições apontam a
continuidade da existência de uma aprendizagem diferenciada para
as distintas classes sociais. Apesar da educação diferenciada não ser
exclusiva do capitalismo, nessa forma de organização social, em
disputa material e ideológica cada vez mais refinada, há um
discurso lapidado e sutil de igualdade e liberdade que encoberta a
exploração, a dualidade estrutural do ensino e a polarização das
competências: formação erudita e intelectualizada para a elite
49
dominante e uma educação profissionalizante “estratificada” para
a venda da força de trabalho, nem sempre formal, para a classe
trabalhadora.
Os fatos acima agravam-se pelo fato de serem ofertados por
instituições que mercantilizam a educação, que percebem a
necessidade e a vontade de trabalhadores com pouco poder
aquisitivo de freqüentar uma graduação, muitas vezes privando-se
de satisfazer outras necessidades ao deixar significativa parcela do
seu salário para pagar um curso e receber um diploma. Todavia,
apesar do diploma, adquirem pouco conhecimento e ficam em
desvantagem para disputar as “melhores” vagas no mercado de
trabalho, preenchidas, na maioria das vezes, por aqueles que
puderam graduar-se em instituições de reconhecida competência.
Nesta perspectiva, não seria abusivo afirmar que significativa
parcela da EaD ofertada consiste em mais um caça-níquel dos
empresários da educação.
Logo, não restam dúvidas de as leis que sustentam as
desigualdades do capitalismo, também estão presentes nos
aspectos relativos à educação, que só poderão ser alteradas numa
outra forma de organização social.
Referências
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tecnologias de informação e comunicação: Análise do Programa Especial
de Capacitação para a Docência no Estado do Paraná. Dissertação (Mestrado
em Educação) Universidade Federal do Paraná, 2008.
50
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51
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HADDAD, S. (orgs), O Cenário Educacional Latino-Americano no Limiar do
Século XXI. Reformas em Debate. Campinas: Autores Associados, 2000.
52
Ética, Educação e as novas tecnologias
1
Alessandro de MELO
Ética, educação e novas tecnologias são elementos que,
cada qual individualmente, desafia-nos na complexidade inerente
à sua “natureza”. Juntos, estes elementos amplificam este desafio.
Ao escolher o caminho que-se pretende seguir nesta exposição, ou
seja, o caminho de uma análise marxista (na verdade o mais próximo
possível dos próprios textos de Marx), não se quer, de forma alguma,
desprezar a tradição, também marxista, dos estudos da Escola de
Frankfurt, que em tudo se coaduna com os temas da ética, educação
e novas tecnologias. Tal caminho, com certeza, pode ser percorrido
por outros autores que se dedicaram ao estudo desta escola
(GUILHERMETI, 2007).
Mas, então, como é possível uma discussão marxista (ou
marxiana) da ética, educação e novas tecnologias? Esta
possibilidade, nos limites deste texto, será desenvolvida no sentido
de estudar os limites (na verdade, a impossibilidade) da realização
de uma ética universal na sociedade de classes. Com relação à
educação escolar, esta é entendida nos limites do que os teóricos
1. Professor do Departamento de Pedagogia – UNICENTRO Campus de Guarapuava.
53
marxistas têm entendido como sendo seu núcleo realizador, ou seja,
a educação escolar como (im)possibilidade emancipatória por meio
da socialização dos conhecimentos, da cultura em geral (SAVIANI,
1991; DUARTE, 1993; 2001). As novas tecnologias serão aqui apenas
brevemente tratadas, e sobre ela não se despenderá mais que uma
análise inicial, e nunca ultrapassando o que todos podemos
conhecer sobre o avanço destas tecnologias na sociedade e no
âmbito da vida cotidiana.
A relação entre ética e educação escolar, portanto, é aqui
entendida em termos da possibilidade de que a educação escolar
cumpra ou não um papel emancipador na sociedade, e que, para
isso, contribuam ou não as novas tecnologias. Ainda que seja um
tema polêmico, defenderemos aqui que a educação escolar tem
como papel principal a socialização do conhecimento/cultura para
todos, sendo, portanto, um projeto ancorado numa perspectiva
iluminista/racionalista. A questão, portanto, é a seguinte: as novas
tecnologias, aplicadas à educação, têm servido a este objetivo? Ou
seja, contribuem as novas tecnologias para a socialização do
conhecimento/cultura para todos?
Para realizar esta discussão, antes demais nada é preciso
construir uma análise conjuntural da sociedade capitalista
contemporânea, partindo do conceito de decadência ideológica,
construída pela tradição de Lukács. A partir daí, far-se-á uma
discussão sobre a ética como mediadora entre o indivíduo e a
sociedade, entendendo-se esta como uma relação ontológica, cujo
54
objetivo é a emancipação do indivíduo da amarra de sua própria
singularidade, rumo à generalidade; da superação da lógica da
necessidade para a lógica da liberdade. Ou seja, parte-se da
concepção de ser social como o indivíduo e a sociedade, que
constituem dois pólos intrínsecos.
A partir desta discussão apontam-se elementos para a
reflexão sobre as novas tecnologias e a educação, suas
possibilidades e limites no âmbito já limitado das possibilidades da
própria educação como elemento emancipador.
O que é a decadência?
A decadência ideológica tem como marco a ascensão da
burguesia ao poder, a partir da derrota da classe trabalhadora nas
jornadas revolucionárias de 1848, movimento descrito e analisado
por Marx em “O 18 de Brumário de Napoleão Bonaparte” e outros
escritos da década de 1850. A derrota imposta à classe trabalhadora
e seu projeto de uma sociedade sem classes sociais, neste período,
consolidou o mundo capitalista tal como o conhecemos atualmente,
possibilitando à burguesia a constituição de um mundo à sua
imagem e semelhança (TONET, 2002).
Para a economia política, 1848 constituiu-se como um
“toque de finados”, segundo Marx, ou seja, a partir de então a
ciência desinteressada foi abolida e o que se chama de ciência
passou a servir à classe dominante. A ciência passa a ser uma
“atividade mercenária”, longe inclusive dos limites alcançados por
55
autores como Adam Smith e David Ricardo.
Voltando para a configuração social, a derrota de um
projeto societário de igualdade levou à perpetuação, até hoje, de
um sistema caracterizado pelo regime de propriedade privada e,
logo, de exploração do homem pelo homem, algo, aliás, nada novo,
mas amplificado como nunca antes.
Não se pode esquecer que este movimento significou um
retrocesso inclusive nas posições da própria burguesia, que
abandonou seu papel revolucionário, presente na luta contra o
feudalismo, e passou a ocupar definitivamente uma posição
conservadora, em termos políticos (a revolução técnica de que trata
Marx no Livro I de O Capital nunca deixou de ocorrer, como o provam
as novas tecnologias de que se irá tratar mais adiante).
Naquele primeiro momento, em sua luta
contra a ordem feudal, a burguesia foi
responsável pelo impulso conferido ao
desenvolvimento da ciência e da tecnologia;
pela supressão dos privilégios feudais, e,
portanto, pela ênfase na igualdade de todos os
indivíduos; pela valorização da razão e da
atividade humanas; pela intensificação do
caráter universal da humanidade e pela
ampliação do processo de individuação.
(TONET, 2002)
Do universalismo “prometido” no projeto burguês de
superação do feudalismo, na verdade o que restou foi a
56
configuração de uma sociedade essencialmente desigual, baseada,
porém, numa “igualdade formal”, ou seja, em uma igualdade
pautada pela legislação que passa a mediar as relações sociais,
inclusive as relações entre as classes sociais, tendo como parâmetro
o regime de propriedade privada.
Sendo o cerne do capitalismo a propriedade privada, as
consequências não podem ser outras que não a marginalização dos
não-proprietários, que, na verdade, constituem a grande maioria da
população, que, portanto, passa a viver da venda de sua mão-deobra, como assalariada.
Também há de se considerar que o mercado de trabalho
reproduz a marginalização, ou seja, ele próprio não fornece
condições para que todos tenham acesso a um emprego, ou seja, a
ter a condição de assalariado. Assim, vemos nas ruas milhares de
pessoas marginalizadas das mínimas condições de vida que se
considera dignas, com moradia, alimentação adequada,
saneamento básico, emprego, transporte, educação etc.
Ao mesmo tempo em que isso ocorre, não se pode negar as
excelentes oportunidades de generalização de boas condições de
vida a todos, alcançadas pelo avanço tecnológico na produção de
alimentos e de outros elementos essenciais para que isso ocorra. No
entanto, o que vemos é que há uma distribuição desigual desta
produção no mundo e dentro dos países, fazendo com que bilhões de
pessoas no mundo pereçam em condições sub-humanas.
57
Este é exatamente o fundamento da
decadência desta forma de sociabilidade. Uma
ordem social que, tendo alcançado a
possibilidade de criar riquezas capazes de
satisfazer as necessidade de todos, vê-se
impossibilitada de atender essa exigência. E
que, para manter-se em funcionamento,
precisa impedir, de maneira cada vez mais
aberta e brutal, o acesso da maior parte da
humanidade à riqueza social. Em vez de
impulsionar a humanidade toda no sentido de
uma elevação, cada vez mais ampla e
profunda, do seu padrão de ser (ontológica e
não apenas material e empiricamente
entendido), o que se vê é uma intensa e
crescente degradação da vida humana.
(TONET, 2002)
Da “promessa” de igualdade, para uma realidade
essencialmente desigual. Este é o cenário da sociedade sob o regime
capitalista de propriedade. E é sob este respaldo da realidade que
reafirmamos a impossibilidade de uma ética sob o capitalismo,
entendida esta como a busca pelo “bem comum”, como na tradição
desde os gregos. A possibilidade do bem comum, como afirmação
ética ou como realidade, somente será possível em uma sociedade
baseada em outro regime de propriedade que não a propriedade
privada.
No entanto, para os educadores resta a esperança de agir,
nos limites da educação, na construção de indivíduos preparados
para viver em outro tipo de sociedade.
58
Ética – do gênero em-si para o gênero para-si
Na esteira da questão acima colocada para a educação, a
questão que se coloca é: qual(is) a(s) possibilidade(s) de que a
educação possa ser mediadora na superação da sociedade alienada?
Como isso pode acontecer desde as nossas salas de aula?
Uma resposta possível a esta argüição é o trabalho na
superação da consciência alienada (em-si) para uma consciência
crítica (para-si), ou seja, a educação, por meio de seu papel
fundamental, que é a socialização do saber escolar, pode ser
mediadora no enriquecimento dos indivíduos, enriquecimento este
que não significa apenas ser rico materialmente, mas ser rico
ontologicamente, como ser humano. Mas como isso ocorre?
A humanidade não é algo naturalmente dado aos homens,
mas é processo histórico-social, construído nas relações sociais
concretas em que se inserem. Logo, o ser humano não pode ser
entendido como o resultado de um desenvolvimento espontâneo, ao
nível biológico, mas sim como ser social, e, portanto, “[...] ser
criativo, social, consciente, livre e universal” (TONET, 2002).
Neste sentido, e tendo como parâmetros da ação educativa
a construção de um ser humano universal, livre, consciente, é que
se pode afirmar a eticidade relacionada à educação, ou seja, a
ética, como bem comum, só pode ser entendida, no caso da
educação, como uma educação que se paute na busca incessante do
homem universal, que se coadune ontológica e empiricamente, com
a humanidade toda, abandonando cada vez mais os traços
59
individualistas (singulares) impostos pela sociedade capitalista.
A educação, nessa perspectiva, é uma
categoria específica do ser social: só o homem
pode ser educado (Lukács, 1981, v. II*, p. 152)
e, como tal, passa a se constituir complexo
integrante e não alienável do devir-homem dos
homens. Nesse quesito, podemos ainda
destacar que a práxis educativa inaugura um
processo especial de relação do indivíduo com
a totalidade, na atualização das possibilidades
de efetivação da liberdade. Pontuamos que a
práxis educativa, entretanto, só assume sua
função social mais radical e mais autêntica
quando
passa a se efetivar como mediação
das ações de natureza ética, ou seja, quando
se realiza na sociedade capitalista,
possibilitando a superação da relação
dicotômica existente entre indivíduos e
sociedade; e também quando facilita e
generaliza o entendimento de que os homens
são os sujeitos de sua história, ainda que em
circunstâncias não escolhidas por eles (p. 304325) (TASSIGNY, p. 85).
No que se refere ao papel da educação, ela encontra-se na
dialética entre objetivação e apropriação no interior da atividade
humana, e, mais especificamente, na apropriação por cada
indivíduo das objetivações humano-genéricas, de que fazem parte a
cultura, a ciência, a linguagem, a arte etc. Simplificando, cabe à
educação escolar a socialização das objetivações, ou seja,
possibilitar a apropriação das objetivações humanas concretizadas
nos conteúdos escolares, que resumem este verdadeiro patrimônio
humano.
60
É somente por meio da apropriação do que é humano
(construção sócio-histórica) que os homens se fazem humanos, e é
papel da educação promover a humanidade em cada indivíduo
particular, por meio da socialização dos conhecimentos, da cultura,
da ciência, da arte, da linguagem e de outras formas de objetivação
humana.
Ética e educação, portanto, coadunam-se num projeto
humanizador, no sentido acima conferido, ou seja, num projeto de
humanização que significa a apropriação das objetivações humanogenéricas, e, portanto, constitui um projeto de homem como ser
social, que visa superar a alienação dada nas relações sociais
capitalistas.
Novas tecnologias e as possibilidades educativas
É no interior das reflexões acima construídas, ou seja,
entendendo a educação como processo de socialização das
objetivações humano-genéricas, que se vai indagar a respeito das
novas tecnologias na educação. Será que a implantação das novas
tecnologias no âmbito educacional proporciona, facilita ou
promove esta socialização de que se tem tratado acima? Ou será que
as novas tecnologias, como têm sido tratadas, não constituem mais
que um fetiche?
Em primeiro lugar, é interessante discutir o que seriam
“novas” tecnologias, afinal de contas a questão do “novo”, tão em
voga atualmente, deve ser problematizado. Por exemplo, os data-
61
shows, tão comumente encontrados nas nossas salas de aula na
universidade, podem se transformar em velhas lousas, apenas com a
diferença de que são projetadas na parede, sem o problema da letra
do professor, mas reproduzindo a mesma lógica da aula tradicional.
Neste caso, a questão em pauta da ética vinculada à socialização
dos conhecimentos já apontada em nada avança ao já existente.
Outro exemplo é a tecnologia do retroprojetor. Anterior ao
data-show, o retroprojetor, na verdade, pode também ser usado
apenas para substituir o trabalho, e economizar o tempo do
professor, para escrever na lousa, e nada mais.
Já a lousa, por exemplo, o mais clássico recurso da
educação escolar, pode ser instrumento de democratização do
conhecimentos, que fica, pelo menos no tempo da aula,
materializado para que todos tenham acesso a ele, por meio da
cópia do conteúdo. Tal recurso, aliado a uma boa aula expositiva,
dialogada ou de outra forma que envolva os alunos na discussão,
pode contribuir para a apropriação efetiva dos conhecimentos por
parte dos alunos.
Outros exemplos exigem nossa atenção. Todos os
professores enfrentam atualmente um forte dilema em relação aos
trabalhos dos alunos, em todos os níveis de ensino: o plágio. Não é
incomum que os alunos entreguem seus trabalhos em parte ou
totalmente copiados da internet, valendo-se do simples recurso do
CtrlC + CtrlV (copiar colar). Neste caso, o trabalho, escolar ou
acadêmico, transforma-se em mais uma forma alienante na relação
62
entre os estudantes e o conhecimento, não sendo instrumento de
apropriação efetiva de conhecimentos, mesmo que para isso os
estudantes demonstrem amplos conhecimentos desta ferramenta
virtual.
Ao mesmo tempo, o plágio nos coloca frente a um problema
ético: é correto usar as idéias de outros como se fossem de si
próprios? A resposta, que parece óbvia, insere na relação educativa
uma questão moral: plágio é crime, segundo a Lei nº 9610, de 19 de
fevereiro de 1998. A questão apenas ética passa a ter consequências
legais, ou seja, adentra no âmbito das sanções sociais, da moral
mesmo.
No caso acima, o uso da tecnologia na educação não avança
em relação ao projeto de humanização, ao contrário, é instrumento
antiético e criminal, ou seja, desqualifica o ato educativo, sendo,
portanto, elemento alienador e não humanizador.
A televisão, outro exemplo de instrumento tecnológico, é
um importante mediador na sala de aula. Ela apresenta infinitas
possibilidades para o trabalho educativo, ainda mais por ser um
suporte tecnológico que se coaduna com veículos documentais
importantes, como o VHS, DVD, o CD-ROM, programas televisivos
abertos ou de canais por assinatura, enfim, uma infinidade de canais
que podem ser reproduzidos pela televisão, e que são conteúdos
importantes para a socialização aos estudantes.
No entanto, como produto da indústria de massa, o uso da
televisão na sala de aula pode estar a serviço apenas da reprodução
63
dos temas já clássicos do senso comum, ou seja, para reproduzir, na
sala de aula, aqueles conteúdos que a televisão trabalha
cotidianamente, sem uma crítica, apenas para que a escola esteja
sintonizada com o cotidiano dos alunos.
Com relação ao cotidiano, discurso também muito
difundido no meio pedagógico, é importante ressaltar que a
educação escolar, nos moldes aqui trabalhados, tem por função
ultrapassar o cotidiano, e não o reproduzir, pois o processo
educativo é um processo que se coloca contrário ao espontaneísmo
presente no cotidiano, ou seja, é preciso que a educação escolar
traga para a socialização instrumentos que possam fazer com que os
estudantes possam viver seu cotidiano de forma crítica, podendo
entendê-lo em seus determinantes estruturais, ou, por outro lado,
para que possam ter acesso a conteúdos, conhecimentos, cultura,
linguagem não presentes cotidianamente, mas que são, de fato,
patrimônios a serem apropriados.
Neste caso, por exemplo, encontra-se o fato, do nosso
ponto de vista inquestionável, de que a escola deve ensinar a
linguagem culta aos estudantes de todas as classes sociais, mesmo
que saibamos que nas periferias a linguagem usual não seja essa. No
entanto, se a escola não ensinar esta linguagem, como os
estudantes a aprenderão, se no seu dia-a-dia não têm contato com
ela?
A mesma regra é válida para a História e a Geografia.
Defendemos o ensino destas disciplinas, mesmo que,
64
aparentemente, aquilo que é estudado não tenha, aparentemente,
comunhão com o cotidiano dos estudantes. Em que lugar os
estudantes poderão aprender sobre a escravidão, se não for na
escola? Como aprenderão sobre geopolítica, se não nos bancos
escolares?
Os conteúdos das Ciências Naturais entram no mesmo
parâmetro acima assinalado, ou seja, é na escola que os estudantes
podem aprender, de forma sistematizada, os conteúdos relativos às
várias áreas científicas que, direta ou indiretamente, vinculam-se à
vida cotidiana, ou que apesar de não estar presentes no cotidiano,
devem ser estudados como patrimônio inerente para os
conhecimentos sobre os processos naturais do planeta.
Percebe-se, portanto, que o uso das novas tecnologias à
educação não podem ser julgadas a priori, mas apenas como
instrumentos para o fim da educação, que é a socialização dos
conhecimentos científicos, artísticos, culturais etc. Todos os meios
que auxiliarem para que isso ocorra serão aliados éticos na
construção de uma educação humanizadora, no sentido aqui
defendido.
Novas tecnologias e a Educação a Distância
Não poderíamos deixar de tratar neste texto da questão da
educação à distância, mesmo que superficialmente, e nos
parâmetros aqui já delineados. Tal discussão está na pauta do dia,
devido aos projetos governamentais para a Educação à Distância –
65
EAD, especialmente, na UNICENTRO, no âmbito da Universidade
Aberta do Brasil – UAB.
A questão da ética, no caso, pode ser pensada de duas
formas: a primeira é a questão da socialização do conhecimento no
que se refere aos cursos de graduação. Os cursos a distância podem
ser mais efetivos que os cursos presenciais no que se refere a uma
formação de qualidade em nível de graduação? Será possível pensar
nesta qualidade fora dos parâmetros concretos do que temos na
educação superior presencial? Outra questão a ser levantada é com
relação ao vínculo entre professor e instituição, ou seja, o vínculo
trabalhista dos professores de EAD no âmbito da UAB.
Com relação à primeira questão, ou seja, a socialização dos
conhecimentos e a formação de qualidade, a questão a ser
levantada é se os vínculos entre estudante e instituição são fortes o
suficiente para que possam efetivamente pertencer ao curso e se
manterem no curso com qualidade. Ao mesmo tempo é necessário
verificar como se dá a avaliação da aprendizagem nestes cursos
EAD, e se as mesmas exigências de leitura e produção escrita
existem nestes cursos, haja vista a distância entre o estudante e a
instituição, inclusive o distanciamento destes com relação à
biblioteca universitária, foco fundamental de apropriação de
conhecimentos necessários para a formação na graduação.
Ainda neste quesito, é importante salientar que, à
distância, a relação entre professor e acadêmicos se dá de forma
diferenciada, e a questão é saber se esta diferença constitui-se em
66
uma relação mais afastada do que se exigiria em uma relação
pedagógica efetiva e de qualidade.
Há ainda a mediação dos tutores, como elementos
fundamentais da EAD. Será que os tutores, substituindo os
professores na avaliação, podem ser elementos dificultadores ou
facilitadores? Será que esta mediação não importa em prejuízo para
a qualidade, haja vista esta segunda mediação entre professor,
acadêmicos e conhecimentos. A formação dos tutores, geralmente
menor que a dos professores, pode minimizar ainda mais a
qualidade da EAD.
Com relação ao segundo quesito, o vínculo dos professores
com a instituição no âmbito da UAB, a questão ética se coloca de
forma efetiva e importante para a discussão. No âmbito da UAB os
professores se vinculam apenas por meio de bolsas, pagas apenas no
período em que o professor tem a disciplina no ar, ou no período em
que escrevem os conteúdos para as disciplinas. Há, ainda, a
possibilidade de que sejam professores diferentes a escrever os
conteúdos e os que se responsabilizam pela disciplina no ar, o que
ainda amplia a divisão do trabalho na EAD, o que torna ainda
problemática a relação.
O fato é que nos cursos de graduação a distância ocorre o
fato de que os acadêmicos se formam em quatro anos sem ter seus
professores com vínculos efetivos com a instituição, ou seja,
formam-se por meio de professores precarizados, que ganham
bolsas em um valor muito abaixo das exigências para a reprodução
67
digna da vida dos professores.
A questão que fica é a seguinte: como fica a questão ética na
relação entre professores e instituição que perpetua relações
precárias de trabalho? Se nesta relação primordial a relação fica
permeada por uma relação precária, o que dizer do restante do
processo? Estas e outras questões aqui não levantadas devem ser
refletidas no caso da EAD devem ser levadas em conta na relação
entre ética, educação e novas tecnologias.
Considerações finais
Partindo do pressuposto da educação como socializadora do
conhecimento científico, artístico, cultural, ou seja, de um projeto
educacional que procure a humanização dos indivíduos, entendida a
humanização como processo histórico-social alcançada pela
apropriação dos resultados objetivos do processo humano,
materializado nos conteúdos escolares, discutiu-se neste breve
texto questões relacionadas à ética, educação e novas tecnologias.
A questão principal que permeou a discussão é que uma
educação ética, ou seja, que parte da busca do bem comum, é uma
educação humanizadora, que supera a alienação presente na
sociedade capitalista. Neste sentido, as novas tecnologias têm
contribuído para que isso ocorra? Ou têm cumprido apenas um papel
fetichizado e, portanto, mistificador?
A ética na sociedade capitalista é impossível de ser
concretizada em sua concepção de bem comum, haja vista a
68
essencialidade de classe desta sociedade, que é permeada pela
contradição entre os interesses particulares destas classes, que
afetam toda a totalidade social, inclusive atingindo a subjetividade
dos indivíduos, e naturalizando relações sociais e históricas, como a
da propriedade privada.
Sendo impossível a ética na sociedade capitalista, logo a
educação, como determinada e subordinada aos interesses de
classe, não é capaz, sozinha, de garantir eticidade na prática
educativa. A escola na nossa sociedade sempre esteve vinculada e
subordinada aos interesses da classe dominante, logo, os seus
limites como educação humanizadora são postos desde a partida.
A proposição que se fez ao longo do texto, ou seja, das
possibilidades éticas de uma educação humanizadora, não pode ser
separada da análise real da sociedade, e, portanto, tais
possibilidades devem ser problematizadas ou mesmo limitadas em
seu alcance concreto. Não queremos aqui defender abstratamente
uma educação ética, desgrudada das relações reais, mas sim
afirmar que os professores podem, na sua prática pedagógica,
proporcionar atividades de socialização dos patrimônios culturais,
científicos, artísticos e da linguagem, a todos os seus alunos.
Com relação à escola, e ainda mais a escola pública, é
necessário ressaltar que esta deve estar a serviço das classes
dominadas historicamente, e, assim, ser uma mediadora na possível
superação da sociedade de classes.
69
Referências
DUARTE, Newton. A individualidade para-si: contribuiçäo a uma teoria
histórico-social da formaçäo do indivíduo. Campinas: Autores Associados,
1993
______. Vigotski e o "aprender a aprender": crítica as apropriações
neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. 2. ed. Campinas: Autores
Associados, 2001.
SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 2. ed.
São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1991. (Coleção Polêmicas do nosso
tempo; v. 40).
TASSIGNY, Mônica Mota. Ética e ontologia em Lukács e o complexo social
da educação. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, n. 25, Abril 2004. Disponível
em: http://www.scielo.br. Acesso em 20 junho 2009.
TONET, I. Ética e capitalismo. Disponível em: www.geocities.com
/ivotonet/.../ETICA_E_CAPITALISMO.pdf. Acesso em 10 maio de 2009.
70
Ética, tecnologias de educação e natureza humana:
ou sobre a emergência de uma nova humanidade e
os desafios de sua formação
1
Manuel Moreira da SILVA
Trata-se de um questionamento filosófico em torno dos
limites éticos, antropológicos e ontológicos inerentes ao uso das
chamadas novas tecnologias de educação, bem como sobre as
conseqüências destas no tangente à natureza humana em geral e à
formação humana em especial. As novas tecnologias de educação
constituem, nos dias de hoje, a mais cultuada de todas as formas de
se proceder no trato com a educação, seja em um sentido
meramente técnico, seja em um sentido supostamente crítico. De
qualquer modo, as conseqüências do uso massivo das novas
tecnologias de educação já se mostram como que assimiladas, pelo
menos em suas linhas gerais, pelas consciências de formação
mediana; exemplo disso, ainda que um tanto quanto prosaico, e não
diretamente implicado por procedimentos puramente tecnológicos,
não é senão a substituição da Pedagogia como Ciência prática da
Educação pela Pedagogia enquanto Ciência teórica da Educação.
Fenômeno antecipado historicamente pela substituição da Paidéia
grega pelo Educere latino ou, em outros termos, da Formação pela
1. Professor do Departamento de Filosofia – UNICENTRO.
71
Educação; em termos contemporâneos, da Bildung concebida nos
quadros da Filosofia clássica alemã, sobretudo de Goethe a Hegel,
pela Erziehung ou pela Science of Education – contraposta não só à
Bildung e, por definição, à Paidéia, mas inclusive ao Educere. Por
isso, na época hodierna, dificilmente um pedagogo ou um educador
se põe a pensar o sentido ético ou antropológico do “levar pela mão”
dos primeiros pedagogos ou a significação ontológica do “tirar de
dentro” dos primeiros educadores; ao invés disso, por seu turno,
cada vez mais se impõem as chamadas 'novas tecnologias da
educação'.
A expressão 'novas tecnologias da educação' não diz o
mesmo que 'novas tecnologias de educação'; enquanto na segunda
está em jogo um conceito pura e simplesmente geral, ou
indeterminado, das novas tecnologias de educação, há na primeira
uma dupla determinação, essa a um tempo subjetiva e objetiva. Isto
significa que, no caso das novas tecnologias da educação, a própria
educação é que emerge de um lado como objeto das novas
tecnologias e de outro como sujeito das mesmas; o que lhe permite
aceder não só a uma consciência em torno do objeto sobre o qual as
novas tecnologias se aplicam, mas também e principalmente sobre
o próprio sujeito que as produz. Ao fazer isso, já que tal acesso se
constitui como a sua possibilidade mais própria e inclusive a mais
efetiva, a educação pode aceder ao plano de sua autoconsciência,
quando então deve retornar ao seu ponto de partida e assim por em
questão os fundamentos que a informa enquanto tal. Ora, no que
72
tange ao caso presente, esses fundamentos não são senão os
fundamentos das novas tecnologias de educação, sobre as quais em
última instância se assentam as novas tecnologias da educação; por
isso, uma consideração que se pretenda rigorosa em torno dessas
últimas, que são sobretudo uma particularização das primeiras e
dependem portanto de sua noção mais geral, tem que se voltar
especialmente para estas, sob pena – caso não o faça – de se perder
na ambigüidade constitutiva do genitivo que informa a designação
'novas tecnologias da educação' e as novas tecnologias da educação
elas mesmas.
Não se trata pois de uma refutação ou de uma defesa, de
uma crítica ou de uma apologia, das novas tecnologias atualmente
em voga na educação; trata-se antes de uma auto-reflexão da
própria educação, no que concerne ao seu caráter propriamente
formativo, em torno dos limites éticos, antropológicos e ontológicos
de sua atuação na esfera das novas tecnologias. O que significa que
a educação ela mesma tem que se voltar para aquele campo mais
geral e indeterminado das novas tecnologias de educação; o qual,
não obstante, não só a informa tecnologicamente, mas também a
limita em seus contornos mais fundamentais.
O alargamento de tais contornos e, por conseguinte, a
superação de seus limites só é possível mediante a determinação do
que permanece indeterminado no âmbito das novas tecnologias de
educação; mais especificamente, da esfera mesma das novas
tecnologias em geral, das quais as novas tecnologias de educação
73
constituem o elemento mais instável e profundo. Até que ponto as
novas tecnologias de educação contribuem para que o “levar pela
mão” e o “tirar de dentro” não sejam simples lembrança ou algo
meramente exterior e mecânico não foi ainda um ponto levado em
consideração, nem pelos pedagogos em geral, nem pelos
educadores em especial; não obstante, muito se tem discutido em
torno dos limites éticos, antropológicos e ontológicos inerentes às
novas tecnologias de educação, mas não também sobre as
conseqüências destas no tangente à natureza humana em geral e à
formação humana em especial. Essa a questão que a época
presente, muito propriamente denominada Era tecnológica, impõe
aos educadores e a todos aqueles que em sua origem são sobretudo
formadores; os quais, enquanto assim se reconhecem, se ocupam
não apenas daqueles cujos destinos lhes são confiados, mas antes se
ocupam do destino mesmo de sua natureza.
No que se segue, buscar-se-á determinar os limites éticos,
antropológicos e ontológicos das novas tecnologias de educação,
bem como discutir suas conseqüências no concernente à natureza
humana, vale dizer, de seu fim terminal ou de sua transformação.
Em vista disso, considerar-se-ão os desafios – também éticos,
antropológicos e ontológicos – referentes ao fim mesmo da espécie
humana (ou ao menos de sua concepção tradicional) e à sua
transformação (nos quadros do gênero humano como tal) ou,
portanto, à formação de uma nova humanidade. Enfim, propor-se-á
um novo conceito de Tecnologia de Educação, distinguindo, como
74
seus momentos, as atuais e usuais tecnologias de ensino e as
essenciais – mas ainda meramente possíveis – tecnologias de
formação.
Limites éticos, antropológicos e ontológicos das novas
tecnologias da educação, consequências no concernente à
natureza humana: fim terminal ou transformação
Jamais na história humana conhecida até aqui o homem
defrontou-se com desafios que lhe afrontavam ao mesmo tempo
como gênero e como espécie ou punham em risco seu próprio seu
destino enquanto tal. Os desafios que interpelam a humanidade
pensante nos últimos séculos parecem ser desse último tipo,
sobretudo aqueles que mobilizaram as mais diversas correntes de
pensamento a se colocarem como problema de uma Ética da Era
tecnológica ou para a Era tecnológica e que, como tais, pouco a
pouco foi tornando a expressão homo tecnologicus algo comum.
Problemas como o da bomba atômica, o da catástrofe ecológica e o
da manipulação genética rondam as mentes daqueles poucos que,
sobretudo nos dias de hoje, ainda se preocupam com a Idéia de uma
Ética universal, da Idéia de uma Ética do Discurso ou da
Responsabilidade e que, acima de tudo, se defina como uma macroética e se volte para os problemas em cuja solução encontra-se a
chave do destino da humanidade presente. Não obstante, o grosso
dessa humanidade não parece haver alcançado o estágio em que se
torna consciente da verdadeira gravidade de tais problemas e muito
75
menos o de sua autoconsciência em relação ao seu próprio destino;
i.é, consciência e autoconsciência de que tudo isso lhe diz respeito.
Mas será que tais problemas realmente dizem respeito à
humanidade no estágio presente de seu desenvolvimento; qual a
humanidade que, de fato, hoje se põe como problema o seu próprio
destino e qual a humanidade de cujo destino não parece ainda estar
plenamente consciente? Talvez este seja o caso de se distinguir
entre o homo sapiens e o que, na falta de um termo melhor, alguns
tem designado homo tecnologicus; esse que também deve ser
distinto daquelas expressões certamente parciais que buscavam
apenas enfatizar certas características do homo sapiens sapiens,
como por exemplo a do homo oeconomicus. O que está aqui em jogo
parece ser uma profunda mudança não só histórica e cultural, mas
também e principalmente de natureza em sentido próprio;
2
fenômeno já detectado entre outros por Teilhard de Chardin e que,
apesar de seu registro diverso, foi assim descrito por Henrique
Cláudio de Lima Vaz:
Uma revolução profunda e silenciosa, cujos
efeitos visíveis e ruidosos acabam por ocultar
sua verdadeira natureza e seu alcance, está
em curso há pelo menos dois séculos nas
camadas elementares do psiquismo e nos
fundamentos das estruturas mentais do
indivíduo típico da civilização ocidental. Ela
vem transformando, num nível de radicalidade
até hoje aparentemente desconhecido na
história humana, as intenções, atitudes e
2. PIERRE TEILHARD DE CHARDIN, O fenômeno humano. Trad. Léon Bourdon e José Terra. Porto: Tavares
Martins, 1970.
76
padrões de conduta que tornaram possível
historicamente nosso “ser-em-comum” e,
portanto, as razões que asseguram a
viabilidade das sociedades humanas e do
próprio predicado da socialidade, tal como
tem sido vivida nesses pelo menos cinco
milênios de história (3000 a.C.-2000 d.C.)
(LIMA VAZ, 2002, p.269).
Ainda que a verdadeira natureza e o alcance dessa
revolução profunda e silenciosa estejam ocultos para grande parte
da humanidade presente em geral e da humanidade ocidental em
particular, é possível investigar pelo menos a verdadeira natureza
de tal revolução a partir dos seus efeitos nas camadas elementares
do psiquismo e nos fundamentos das estruturas mentais do indivíduo
típico da civilização ocidental. Para isso, um campo privilegiado de
investigação parece ser justamente o da formação do indivíduo para
a Ciência em geral e o da sua educação ética e política em
particular; contudo, investigar essa verdadeira natureza a partir da
questão do conhecimento e da cognição, ainda que nos limites do
psiquismo e das estruturas mentais ordinárias do indivíduo nos
últimos dois séculos, não parece uma tarefa cuja matriz já esteja
consagrada. Aqueles que têm investigado essa questão esbarram
talvez no que possa ser compreendido como um falso dilema, a
saber, a necessidade de ter de escolher entre as duas matrizes de
inteligibilidade, das quais, no dizer de Lima Vaz, “derivam todas as
estruturas constitutivas e toda a malha de relações e tendências do
complexo e enigmático ser humano” (LIMA VAZ, 2002, p.269), a
77
saber, a natureza e a cultura, que então se apresentariam como
supostamente contrárias e mesmo contraditórias. Essas duas opções
foram como que estilizadas por Lima Vaz, conforme se segue:
Deverá essa transformação ser interpretada a
partir da matriz natureza, assinalando um
novo estádio, qualitativamente novo da
evolução biológica do homo sapiens,
caracterizado pela definitiva emergência da
noosfera e o definitivo desprender-se do
neolítico, como queria Teilhard de Chardin? Ou
será ela um fenômeno de origem e essência
culturais, desencadeando uma mudança
radical nos padrões até hoje vigentes de
avaliação dos valores e das condutas e
provocando, portanto, uma profunda
reestruturação psíquica e mental dos
indivíduos e, conseqüentemente, novos estilos
de vida comunitária? (LIMA VAZ, 2002, p.269)
Embora as duas opções pareçam bastante claras, e até
mesmo necessárias, não parece que sejam suficientes; pelo menos
se se levar a sério a constatação de que hoje se vive nos quadros de
uma Era tecnológica e de que o indivíduo típico desta não é senão o
que mais acima foi designado homo tecnologicus. De fato, se este
for considerado apenas a partir de sua natureza exterior, nada
indicará que se trata aí de algo novo e surpreendente; o que faz com
que a melhor opção seja justamente a que parte da cultura e nesta
procura os elementos mais consistentes para a explicação dessa
78
profunda reestruturação psíquica e mental que a humanidade vem
experimentando nos últimos séculos. Entretanto, pode-se dirigir à
cultura a objeção fundamental de que também ela não penetraria a
natureza interior ela mesma de tal reestruturação, limitando-se
quando muito à fixação de algumas das características pelas quais
esta se manifesta e se torna reconhecível no âmbito das
transformações históricas e culturais.
A questão importante é que se podem constatar no processo
das transformações em curso tanto elementos oriundos da matriz
natureza quanto elementos da matriz cultura; o que se mostra nos
quadros das diversas tecnologias atualmente em voga, em especial
a tecnologia genética e as tecnologias de educação; a diferença
aqui essencial é que enquanto a primeira é meramente irreflexiva,
as segundas são, por definição, reflexivas; podendo chegar inclusive
à auto-reflexividade. O que não ocorre tão somente em função do
tipo de tecnologia em jogo em uma e em outras, isto é, devido ao
aporte cultural aí envolvido, nem em função de uma concentrar-se
na transformação da natureza física, química ou biológica do
homem e as outras voltarem-se para a natureza social, histórica e
cultural do mesmo, mas em vista de que, embora em ambos os casos
estar em jogo uma e mesma natureza interior, no primeiro esta se
mostra ainda irreflexiva, ao passo que no segundo ela se depara
consigo mesma enquanto tal, tendo pois que assumir o que é
constitutivo de seu ser e rejeitar o que não é; tarefa essa que não se
apresenta como pacífica, nem isenta de riscos ou erros os mais
79
decisivos. As ciências humanas, em geral, e as da educação, em
particular, ora se apresentam justificando esse estado de coisas,
quando assumem acriticamente seu aspecto tecnológico, ora se
mostram recusando-o, quando se querem críticas em relação ao que
é constitutivo do tal aspecto; mas isso, ao fim e ao cabo, não se
mostra ainda interiorizado ao nível de um diálogo interior da
natureza interna do homem consigo mesma nos quadros da época
atual.
Esse o limite mais fundamental e tangível da educação
tecnológica hodierna, sobretudo em sua aplicação às ciências
propriamente humanas e à formação do indivíduo humano como tal
sem questionar a que humanidade o seu conglomerado de
tecnologias está servindo. As tecnologias de educação em geral e as
tecnologias da educação em particular não podem ser dissociadas
do quadro mais geral da Era tecnológica na qual se produzem, sob
pena de não cumprirem os seus verdadeiros propósitos que são, em
última instância, os de fazer com que a época em que se encerram
aceda a uma auto-compreensão crítica de si mesma, vale dizer, de
sua natureza propriamente interior. Desse modo, parece que os
desafios que hoje estão na ordem do dia sejam, sobretudo, os de
ordem ética, antropológica e ontológica, no seio dos quais está a
própria
auto-compreensão
da
espécie
humana
e
a
autotransformação de sua natureza interior; desafios esses que não
exprimem senão os limites mesmos da educação contemporânea e
das suas tecnologias.
80
Desafios éticos, antropológicos e ontológicos referentes
ao fim da espécie humana, à sua transformação
ou à formação de uma nova humanidade
Considerando-se que, em última instância, a ciência em
geral ocupa-se da natureza humana e as ciências humanas e da
educação em particular ocupam-se, por sua vez, da natureza
interior do homem ela mesma, há que se reconhecer, sobretudo
nestas últimas, que o cuidado com a espécie humana é aí
fundamental. Isso quer dizer que numa época como a atual esse
cuidado deve revestir-se de uma preocupação com os próprios
modos como a referida ocupação se dá; o que, especificamente no
caso das tecnologias de educação, deve ser compreendido nos
quadros do próprio Devir tecnológico do ser humano e nos de seu
tratamento pedagógico. Embora esse pareça um assunto por demais
abstruso e por isso distante dos objetivos da educação
contemporânea ou dos limites das tecnologias por ela produzidas ou
apropriadas, o estranhamento em relação a uma discussão como
esta prova justamente o quanto essa educação e suas tecnologias
estão dissociadas do humano e das transformações que nele tem
lugar, ainda que esteja plenamente vinculada às mesmas. Para
melhor ilustrar este ponto, consideremos as seguintes palavras de
Jürgen Habermas:
O corpo repleto de próteses, destinadas a
aumentar o rendimento, ou a inteligência dos
anjos, gravada no disco rígido, são imagens
81
fantásticas. Estas apagam as linhas
fronteiriças e desfazem as coerências que até
o momento se apresentaram ao nosso agir
cotidiano como transcendentalmente
necessárias. De um lado, o ser orgânico que
cresceu naturalmente se funde com o ser
produzido de forma técnica; de outro, a
produtividade do intelecto humano separa-se
da subjetividade vivenciada. Pouco importa se
nessas especulações se manifestam idéias
malucas ou prognósticos dignos de serem
levados a sério, necessidades escatológicas
postergadas ou novas variedades de uma
science-fiction-science. Para mim, tudo isso
serve apenas como exemplo de uma
tecnicização da natureza humana, que
provoca uma alteração da autocompreensão
ética da espécie – uma autocompreensão
normativa, pertencente a pessoas que
determinam sua própria vida e agem com
responsabilidade (HABERMAS, 2004, p.58-9).
Seja do ponto de vista da natureza meramente externa,
seja do ponto de vista da inteligência propriamente humana, a
humanidade presente está cada vez mais cercada não só de objetos
técnicos ou artificiais que, enquanto tais, concorrem com ela
mesma no sentido de levá-la à realização de alguns de seus fins os
mais elevados, mas também se cerca de possibilidades técnicas e
tecnológicas nunca antes imaginadas que, como tais, não obstante,
se confundem com a própria natureza humana – tanto interior,
quanto exterior –, chegando, enfim, a por em crise a concepção até
82
aqui tradicional do que seja a natureza humana, se não a substituir
ou a transformar a própria natureza humana enquanto tal.
Discussões em torno de uma fusão, suposta ou real, entre o homem e
a máquina ou entre o orgânico e o artificial não são mais simples
exercícios de ficção científica, mas se movem em torno de
projeções científicas as mais sérias, como, por exemplo, as
promovidas pelos estudiosos da nanotecnologia; da mesma forma,
ainda no campo da fusão do homem à máquina ou desta àquele, mas
agora no campo próprio da inteligência, põe-se em questão
justamente o problema da ampliação ou da limitação da
inteligência propriamente humana com o advento da inteligência
dita artificial, quando se impõe a questão da superação definitiva
das limitações do chamado hardware humano pelas inteligências
superiores cada vez mais adequadas a seu fim e a seu meio, bem
como a da imortalidade e a da perfeição ilimitada justamente do
software então extraído do cérebro humano. Diante dessas ordens
de questões, torna-se crucial e mesmo dramática a função da
tecnologia, seja ela aplicada ao que for, caso não se pense nos seus
limites éticos, antropológicos e ontológicos, em especial no que
tange à vida humana como tal e à autocompreensão do homem
enquanto espécie – o que faz dos problemas aqui em jogo também
problemas atinentes à educação e às suas tecnologias.
Quaisquer que sejam as conseqüências da integração cada
vez maior entre o orgânico e o artificial, do humano e do
tecnológico, o certo é que aquela revolução profunda e silenciosa
83
da qual falara Lima Vaz não pode ser interpretada pura e
simplesmente como sendo apenas um fenômeno de origem e
essência puramente cultural. O que também não parece justificar
certa revanche do jesuíta francês em relação à tese do brasileiro e à
sua tomada de partido pela matriz cultura em oposição à matriz
natureza; isso justamente porque, no dizer de Chardin, “a mola e o
segredo da Hominização”, do situar-se do Fenômeno Humano no
Mundo, seria precisamente o que ele designara “esfericidade
geométrica da Terra e curvatura psíquica do Espírito que se
harmonizam para contrabalançar no Mundo as forças individuais e
coletivas de dispersão e substituir-lhes a Unificação” (CHARDIN,
1970, p.264), esse o resultado da Evolução entendida como
“Ascensão de consciência” e esta, por seu turno, concebida como
“Efeito de unificação” (CHARDIN, 1970, p.265ss). No horizonte das
questões, que hoje interpelam a humanidade pensante, nem a
matriz natureza, nem a matriz cultura se mostram suficientes para
sua compreensão, explicação e resolução últimas: se há natureza
aqui, esta não é mais puramente natural; se há cultura, esta não é
simplesmente de ordem cultural – a natureza mesma parece
finalmente ceder à exigência dos sofistas e afirmar-se como
artificial, quando a cultura ela mesma reivindica para si o legado
propriamente natural. O que, enfim, pode ser visto como o
espetáculo que celebra o fim da humanidade tal como esta foi
conhecida até aqui, bem como o que celebra a sua transformação
ou, antes, a formação de uma nova humanidade.
84
As tecnologias que hoje os mais diversos indivíduos humanos
têm à mão, incluindo-se aí as tecnologias de e da educação, não são
mais que a ponta o iceberg no qual a velha e a nova humanidade
estão a travar seus destinos. Contudo, as tecnologias de educação –
e mais especialmente as da educação – parecem apresentar-se
como as armas principais com as quais uma e outra humanidade se
põe a defender o território pretensamente conquistado e a avançar
sobre o que ainda está em poder da humanidade adversária. Já deve
ter ficado suficientemente claro até aqui que o campo de batalha
onde essas duas humanidades travam a sua luta ou o território pelo
qual cada uma se entrega inteiramente à conquista não é senão o
corpo e a mente dos indivíduos que constituem a espécie humana
como tal, justamente aqueles cujos pais entregam aos pedagogos
em geral e aos educadores em particular para que estes então
cuidem não só de sua educação e/ou de sua formação, mas também,
e principalmente, de seu destino enquanto portador da manutenção
da espécie. Mas levemos a sério a metáfora aqui empregada: Esta é
uma guerra na qual está em jogo o destino da humanidade tal como
conhecida até aqui, guerra essa que, porém, é travada em um
iceberg, do qual ninguém sabe nem a extensão, nem a massa, nem a
profundidade, nem a altura, nem a rota, nem a temperatura, nem o
entorno, etc., em suas dimensões e em sua realidade propriamente
ditas; uma guerra cujos despojos se deixam espalhados por aí, como
projéteis, minas e outros, em mãos de crianças ou de profissionais
em sua maioria despreparados ou mesmo incautos, que não tem o
85
menor cuidado com as armas que estão a utilizar, vendo-as
geralmente como brinquedos ou instrumentos de diversão, jamais
imaginando serem tais brinquedos ou instrumentos de diversão (e
outros), na verdade, artifícios de assimilação – para utilizar-se aqui
de um conceito comum tanto à educação quanto à forma
privilegiada de abordagem dos Borgs em torno de outras espécies,
em sua luta incansável contra os humanos pelo domínio final da
galáxia no conhecido seriado Star Trek – em especial em The Next
Generation e Voyager.
Tal como o conhecimento dito científico ou outro, as
tecnologias, sobretudo as de educação e da educação, não são
neutras; assim como não foi neutra a revolução da gramaticalização
e da escrita aproximadamente cinco mil anos atrás, também não é
neutra a revolução profunda e silenciosa do presente; em ambos os
casos é o destino da humanidade que está em jogo – para onde ela
vai, dependerá, sobretudo, das escolhas feitas no presente,
precisamente das escolhas dos educadores.
Pouco a pouco, o Devir tecnológico se torna apto a
despertar o inconsciente maquínico adormecido em cada indivíduo
humano; das máquinas mais rústicas de um passado hoje remoto ao
programa mais avançado e sofisticado de poucos segundos atrás,
muitos poucos tem se dado conta de que aí ocorre a emergência
mesma do humano, sua auto-produção. Mas, se isso é precisamente
assim, como fazer com que essa produção de si do humano não
permaneça alienada e estranhada de si mesmo, senão partindo de
86
suas manifestações e seus efeitos os mais elementares; no caso,
aqueles dos quais cada um tem uma experiência que é única e
intransferível, seu próprio aprendizado de si, em si e para si? Com
isso, enfim, não se estaria contribuindo para a emergência do
consciente e do autoconsciente maquínicos eles mesmos e
justamente no indivíduo até então considerado humano; assim, o
que então deveria de ora avante ser considerado humano e o que
deveria ser considerado maquínico? Essas as questões que só
poderão ser devidamente respondidas quando se passar além da
discussão em torno das chamadas tecnologias de educação e da
educação.
A guisa de conclusão: para um novo conceito de tecnologia de
educação, as atuais e usuais tecnologias de ensino e as essenciais
– mas ainda meramente possíveis – tecnologias de formação
Ao final desta exposição, certos pedagogos e educadores
que a seguiram até aqui poderiam não esconder algum
desapontamento com o fato de nela não se ter, em nenhum
momento, levado em consideração as tecnologias de educação e as
tecnologias da educação em seu uso concreto. A esses teríamos de
dizer que tal uso pretensamente concreto seria irrelevante ou ainda
obsoleto, assim como as tecnologias o são quando destituídas do
mesmo, caso se leve em conta apenas o uso pelo uso, ou o uso sem
mais de toda e qualquer tecnologia como algo meramente exterior
àquele que dela se utiliza. Isso porque não se está lidando aqui tão
87
somente com um instrumento ou um meio capaz de instrumentar
melhor ou pior os indivíduos humanos em sua adaptação às novas
exigências do mercado de trabalho ou de uma vida cidadã. Como foi
dito antes, a situação é bem mais dramática, trata-se de pôr em
questão o caráter determinante ou condicionante das novas
tecnologias no trato mesmo com a natureza humana naquilo que ela
tem de mais interior.
Neste sentido, talvez fosse o caso de se distinguir
radicalmente, no âmbito das tecnologias de educação, entre as
atuais e usuais tecnologias de ensino e as inatuais, mas essenciais,
tecnologias de formação. Enquanto as primeiras se limitam à
facilitação do aprendizado nas áreas do saber as mais diversas e ao
tratamento daqueles óbices que se apresentam nos quadros desse
processo, sejam tais óbices de ordem ética, política, tecnológica,
cultural, etc., as segundas deveriam voltar-se mais propriamente
para aquele núcleo existente no mais recôndito de cada indivíduo
humano que é precisamente a sua capacidade de ser si mesmo e seu
desenvolvimento em si e para si mesmo. As tecnologias usuais na
maioria das vezes, pelo menos do modo como são hoje utilizadas e
justificadas, contribuem mais para o embotamento dessa
capacidade do que para o seu pleno desabrochamento; e isso por
mais que tenham contribuído até aqui para a elevação do saber
global (embora nos limites de sua concepção técnica) e a superação
das ordens de insuficiência que, sem essas tecnologias, deixavam
boa parte dos indivíduos humanos como que relegados a uma
88
condição animal ou a um nível pré-cultural ou semi-cultural. Por
isso, as tecnologias de formação não excluem as de e da educação,
mas visam compreender em que medida as mesmas podem servir a
um tipo de propósito que ou as põem em xeque ou as elevam para
um nível de compreensão tal no seio do qual elas deverão ser
compreendidas como sendo um com o si mesmo que nelas se
desenvolve.
O que, ao fim e ao cabo, impõe um desafio extremamente
novo e interessante para as ciências humanas e da educação; a
saber: reconsiderar o seu próprio nascimento, mas agora à luz da
transformação radical de seu objeto ou do próprio Homem, i.é, de
sua natureza interior a mais recôndita e de sua autocompreensão
de si mesmo como tal. A humanidade presente ainda envolvida em
seu sono natural (no qual tudo permanece indeterminado) não
suspeita a revolução profunda e silenciosa pela qual já está
passando fazem alguns séculos; revolução cujos efeitos já se
mostram a cada dia nas experiências individuais as mais prosaicas,
como por exemplo o simples sentar-se diante de um computador e,
na resolução de atividades não menos prosaicas, deixar-se guiar
pelos programas ali instalados. Como já demonstram algumas
pesquisas, se essa simples atitude interfere de certo modo nas
rotinas e modos de pensar do indivíduo humano; o que dizer da
generalização da tecnologia em todos os níveis do ser e do saber
humanos hoje reconhecidos como tais?
89
Referências
CHARDIN, Pierre Teilhard de. O fenômeno humano. Trad. Léon Bourdon e
José Terra. Porto: Tavares Martins, 1970.
LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Raízes da modernidade. São Paulo: Loyola,
2002.
HABERMAS, Jurgen. O futuro da natureza humana: a caminho de uma
eugenia liberal? Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins fontes, 2004.
90
PARTE II
Estudos Culturais e Humanidades
O sujeito professor no discurso
das propagandas governamentais:
interdiscurso e construção da identidade
1
Adriana Dalla VECCHIA
Luciana Cristina Ferreira DIAS
Luciana FRACASSE
Ao reconhecermos a necessidade de reflexões e
posicionamentos perante a formação de professores, alunos do
curso de Letras da Universidade Estadual do Centro-Oeste,
consideramos pertinente a realização de um estudo que visualize os
diferentes enfoques conferidos à educação por meio do discurso de
nossos governantes divulgados pela mídia.
Nesse contexto, buscaremos analisar o discurso de uma
propaganda de caráter governamental veiculada em canais abertos
de TV, em maio de 2009, enfatizando a realização da 5ª Olimpíada
Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP). Adotaremos
como dispositivo teórico-metodológico as noções e os conceitos
erigidos pela Análise do Discurso francesa. Assim, verificaremos as
condições de produção, o interdiscurso e a construção da identidade
atribuída ao sujeito professor na propaganda governamental.
O discurso publicitário e a Análise do Discurso
O discurso publicitário, ao transmitir fatores ideológicos,
1. Este trabalho faz parte das atividades desenvolvidas pelo Grupo de Pesquisa Línguas & Linguagens, na
Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), coordenado pela Professora Dra. Sheila Elias de Oliveira.
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históricos e sociais, representa uma valiosa fonte de pesquisa para a
Análise do Discurso.
Segundo Vestergaard e Schroder, “a função da propaganda
vai muito além da venda de um produto – ela opera por caminhos
sutis no sentido de nos levar a adotar um determinado modo de vida
ou incorporar determinados padrões de necessidades” (2000, p.7).
Ao procurarmos compreender os efeitos de sentido
produzidos por uma publicidade, levamos em conta um aspecto que
é essencial para a AD, a noção de ideologia, definida por Gregolin
(1995) como um conjunto de representações que dominam as
diferentes classes dentro da sociedade.
Para Althusser, a ideologia “é a representação imaginária
que interpela os sujeitos a tomarem um determinado lugar na
sociedade, mas que cria a ilusão de liberdade do sujeito” (2001,
p.85). Para ele, a ideologia é reproduzida através de aparelhos
ideológicos, como por exemplo: o aparelho religioso, o político, o
escolar, entre outros, nos quais as classes sociais são organizadas em
um todo complexo de atitudes e representações.
A mídia, hoje, funciona como um dos mais fortes aparelhos
ideológicos e, entre as diversas formas de textos midiáticos, a
publicidade destaca-se como grande disseminadora de valores.
Segundo Monnerat (2003), ao propagar os valores e ideais da
classe dominante, a ideologia apresenta-se no discurso publicitário
em três dimensões: na construção das relações entre o
produtor/anunciante e o público; na construção da imagem do
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produto; e na construção do consumidor como membro de uma
comunidade. A dimensão voltada para o consumidor torna-se a mais
relevante para o publicitário, pois é a propaganda que constrói “o
tipo ideal de consumidor pelos modelos de comportamentos
consumistas divulgados e baseados no senso comum” (MONNERAT,
2003, p.46).
Nesses termos, quando tentamos compreender os efeitos de
sentido produzidos por uma propaganda, devemos considerar o
poder ideológico que a permeia, bem como as condições de
produção em que ela se realiza.
Para Orlandi (2001), as condições de produção
correspondem ao sujeito, à situação e também à memória. Em
sentido estrito, referem-se ao momento da enunciação, ou seja, ao
contexto imediato; em sentido amplo, abrange o contexto sóciohistórico e ideológico.
A memória refere-se ao interdiscurso, definido por Orlandi
“como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente”
(2001, p.31). É através do interdiscurso, ou memória discursiva, que
as palavras que dizemos fazem sentido, pois seus significados são
oriundos de outros dizeres que se encontram armazenados em nossa
memória e que vem à tona com outras palavras a cada enunciado
produzido.
Desse modo, constatamos uma ligação entre o que já foi
dito e o que se está pronunciando, há, portanto, relação entre o
interdiscurso e o intradiscurso. O interdiscurso, como já dissemos,
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corresponde à constituição do sentido por meio de formulações
produzidas e já esquecidas que dão respaldo à nossa fala. O
intradiscurso designa o ato da formulação do que dizemos em um
certo momento, em determinadas condições.
Para a autora (2001, p.40), é importante ressaltar que as
condições de produção abarcam o que é material (a língua sujeita a
equívoco e a historicidade), o que é institucional (a formação social,
em sua ordem) e o mecanismo imaginário, também chamado
formações imaginárias. Sobre este último aspecto, a autora afirma
que não são os sujeitos físicos nem os seus lugares empíricos como
tal que funcionam no discurso, mas suas imagens que resultam de
projeções, assim sendo, esse mecanismo produz imagens dos
sujeitos e do objeto do discurso, em uma conjuntura sóciohistórica.
De fato, o sentido de um texto não existe em si, é, pois,
definido pelas posições ideológicas dispostas no processo sóciohistórico no qual as palavras são produzidas. Seguindo o mesmo
raciocínio teórico, lembramos que em todo texto devemos
considerar aquilo que é dito naquele momento, o que já foi dito e
esquecido e também aquilo que não foi dito, mas faz sentido. A
partir das noções de interdiscurso, de ideologia e de formação
discursiva a Análise de Discurso aborda o não-dizer. Estas noções
nortearão o desenvolvimento da pesquisa dando-nos respaldo para
comprovarmos que “há sempre no dizer um não-dizer necessário”
(Orlandi, 2001, p.82). Segundo a autora, para analisarmos o não-
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dizer, temos que partir do dizer, de suas condições e da relação com
a memória, com o saber discursivo, para então delimitarmos as
margens do não-dito que contornam o dito significativamente.
Um meio de veiculação do discurso publicitário: a televisão
É do conhecimento de todos que os textos publicitários são
veiculados pela mídia eletrônica: televisão, Internet, rádio,
cinema; e pela mídia impressa: revistas, listas e guias, jornais, mala
direta entre outros. No entanto, nessa pesquisa enfocaremos
especificamente um meio de veiculação eletrônica: a televisão, a
qual, do ponto de vista da mídia, é o maior veículo de comunicação
do país, atingindo 80% dos lares brasileiros, isto é, possui uma
grande capacidade de cobertura.
A televisão é um veículo de comunicação que, na
atualidade, de forma direta, intervém na constituição dos sujeitos e
na sua produção identitária, uma vez que os indivíduos estão sob o
domínio dessa mídia, porque, para eles, o momento em que se está
assistindo, preenche o tempo de lazer, transformando-se em
entretenimento; por outro lado, a televisão domina porque
condiciona a forma de ver e pensar das pessoas por meio da própria
linguagem, caracterizada pela rapidez e pela repetição constante,
que acabam internalizando idéias, conceitos, sons e imagens na
mente das pessoas, exercendo, segundo Gonzáles (2003, p. 30),
fascínio sobre estas.
As mensagens publicitárias exibidas na televisão são em
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forma de comerciais. Estes se apresentam como pequenos enredos
que fragmentam os programas e determinam o tempo de corte e
intervalo. Para Nagamini (2001), a presença da propaganda na mídia
televisiva representa “uma espécie de suspensão, um devaneio
momentâneo, que leva o telespectador a vivenciar um conjunto de
imagens simbólicas”, construídas por meio de um discurso de
persuasão.
Conforme Tasso, a produção estética televisiva traz o
mundo até o sujeito-telespectador em imagens articuladas com o
verbal e o sonoro. Segundo a autora, a união das três dimensões visual, verbal e sonora – organiza “fragmentos do universo e os
apresenta, com freqüência, em forma de espetáculo e de
simulacro” (2006, p.132), dois efeitos de sentidos estruturados na
relação dinâmica da imagem-vídeo, com valores de tempo e de
espaço relativos, em um constante jogo de enunciados que se
repetem e produzem novos significados nas práticas discursivas.
Nesse contexto, a autora (2006) trabalha com o fato da
espetacularização, a qual diz respeito ao poder de a mídia televisiva
relatar e comentar os fatos do mundo com qualidade tal de
produção que, por si só, seduz o leitor, sem que, necessariamente a
mensagem veiculada tenha muita relevância. Ao utilizar-se dos
recursos de produção em larga escala, a televisão consegue fazer de
qualquer simples acontecimento cotidiano um espetáculo,
mantendo o telespectador horas e horas frente à televisão, sem
questionar a própria atitude em relação à programação e também à
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programação em questão. Além do poder da espetacularização, há
também a ocorrência do simulacro, que interferirá na construção da
identidade dos sujeitos, pois refere-se à dissimulação do mundo
exterior, criando e manipulando signos, e, assim, produzindo
sentidos.
O discurso dos programas governamentais para a educação
Ao focalizarmos o discurso das propagandas governamentais
veiculado pela mídia televisiva, reconhecemos que a sua finalidade
maior é apresentar os programas educacionais e instrumentos de
avaliação do ensino público desenvolvidos pelo Governo Federal e
buscar o engajamento da comunidade escolar, desde a administração, o
corpo docente e discente e a família.
A propaganda analisada refere-se à 5ª Olimpíada Brasileira de
2
Matemática das Escolas Públicas – OBMEP. A OBMEP é uma competição
organizada pela Sociedade Brasileira de Matemática, em estreita
parceria com o Instituto de Matemática Pura e Aplicada – IMPA, é aberta
a todos os estudantes dos Ensinos Fundamental (a partir da 5ª série),
Médio e Universitário das escolas públicas brasileiras. Em torno desta
competição, a Sociedade Brasileira de Matemática elaborou um projeto
que visa empregar competições matemáticas como veículos para a
melhoria do ensino de Matemática no país, além de contribuir para a
descoberta precoce de talentos para as Ciências em geral, criando um
ambiente estimulante para o estudo da Matemática entre alunos e
professores de todo o país.
2. Informações disponíveis no site: http://www.obmep.org.br/regulamento.html
99
A construção de identidades a partir do discurso governamental:
Seja como pesquisadores, professores ou acadêmicos, não
podemos negar que a mídia intervém na constituição dos sujeitos na
pós-modernidade. Nesse sentido, os estudos sobre o conceito de
identidade e a sua formação ganham especial relevância em nosso
trabalho, uma vez que estamos investigando o papel da mídia
televisiva na disseminação das propostas elaboradas pelo Governo
Federal, em consonância com a identidade que é atribuída ao
sujeito professor no discurso assinado pelo Ministério da Educação.
Mey (1998) em “etnia, identidade e língua” afirma que a
língua se relaciona com
a sociedade porque é a expressão das
necessidades humanas de se congregar socialmente, de construir e
desenvolver o mundo. “A língua não é somente a expressão da alma
ou do íntimo, ou do que quer que seja, do indivíduo; é, acima de
tudo a maneira pela qual a sociedade se expressa como se seus
membros fossem a sua boca” (p.77).
Na realidade, como afirma Hall (2006), “a identidade
plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma
fantasia”, pelo contrário, com a multiplicação dos sistemas de
significação e representação cultural, nos deparamos com uma
multiplicidade desconcertante de identidades possíveis, e, muitas
vezes, acabamos nos identificando, ainda que temporariamente,
com cada uma das identidades apresentadas.
Ainda segundo o autor (2006), “os fluxos culturais”, entre as
nações e o consumismo global criam possibilidades de “identidades
100
compartilhadas”, assim temos “consumidores para os mesmos bens,
“clientes para os mesmos serviços, “públicos” para as mesmas
mensagens e imagens. Nesse ponto, Tasso (2006) afirma que as
práticas sociais e discursivas veiculadas na mídia materializam
discursos de saber e de poder, ditando aquilo que somos ou que
devemos ser.
Diante das considerações feitas até o momento, nos
voltamos ao âmago da nossa pesquisa que é as formas do silêncio e
nos deparamos com a afirmação de que a linguagem se constitui
para garantir e unificar os sentidos e os sujeitos, ou seja, a
identidade construída pela nossa relação com a linguagem nos torna
familiares à espécie humana. (ORLANDI, 2002).
Nesses termos, devemos também considerar o silêncio
como o rompimento da “absolutização narcísica do eu” (ORLANDI,
2002, p.51), ou seja, o silenciamento é parte da experiência da
identidade, uma vez que é parte constitutiva do processo de
identificação, é o que fornece condição de movimento na
constituição do sujeito.
Propaganda 1 - Ministério da Educação – OBMEP 2009 60” –
Maio/2009
Cena 1
Legenda: A 5ª Olimpíada Brasileira de Matemática da
Escolas Públicas está chegando.
101
Cena 2
Legenda: Diretores e professores, motivem seus
alunos.
Cena 3
Legenda: As inscrições só podem ser feitas pela
internet. Um banco de questões com problemas e
soluções está disponível na sua escola.
Cena 4
Legenda: E, se quiser, tem mais no portal da
Olimpíada. www.obmep.org.br
Cena 5
Legenda: Participe da 5ª Olimpíada Brasileira de
Matemática das Escolas Públicas e concorra a
medalhas e a bolsas de estudo.
102
Cena 6
Legenda: OBMEP 2009 somando novos talentos para o
Brasil. Ministério da Educação.
Brasil, um país de todos.
O presente anúncio coletado em maio de 2009 refere-se à
competição organizada pela Sociedade Brasileira de Matemática,
em estreita parceria com o Instituto de Matemática Pura e Aplicada
– IMPA, denominada Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas
Públicas – OBMEP, em sua 5ª edição. A OBMEP é um projeto que
pretende criar um ambiente estimulante para o estudo da
Matemática entre alunos e professores de todo o país, voltada para
a escola pública, seus estudantes e professores, tem o compromisso
de afirmar a excelência como valor maior no ensino público. Suas
atividades vêm mostrando a importância da Matemática para o
futuro dos jovens e para o desenvolvimento do Brasil.
Em relação à nomeação Olimpíada Brasileira de Matemática
das Escolas Públicas, o primeiro elemento do sintagma, Olimpíada,
diz respeito a uma competição, cuja origem é grega, rememorando
a disputa de um conjunto de modalidades esportivas que ocorre de
quatro em quatro anos em locais diferenciados a cada evento,
reunindo delegações de vários países. Os gregos, por volta de 2.500
103
AC, homenageavam aos deuses, principalmente Zeus, com disputas
em diversas modalidades esportivas centralizadas na cidade de
Olímpia, os vencedores das Olimpíadas ganhavam uma coroa de
louros e eram recebidos em suas cidades como heróis. No caso
analisado, temos o uso desse vocábulo desvinculando a matemática
de uma metodologia tradicional, demonstrando que é possível
diversão no estudo dessa área do conhecimento e que ela está muito
mais próxima do cotidiano do aluno do que ele possa imaginar.
Ainda em relação à nomeação, percebemos o qualificador
brasileira, diferentemente do utilizado para o instrumento de
avaliação da educação nacional Prova Brasil, sendo Brasil uma
marca formal que participa da construção de sentidos ligados ao
Governo Federal, o qual mobiliza um sentimento de brasilidade ou
de pertencimento à nação para constituir um instrumento avaliativo
e conquistar o público das escolas em torno desse processo. Ao se
utilizar do qualificador brasileira, a propaganda mostra que é uma
competição pensada, pelas instituições já mencionadas, para a
sociedade brasileira. Esta olimpíada não partiu de uma iniciativa do
Governo Federal, mas é apoiada por ele, uma vez que ao final do
vídeo, temos a presença da assinatura do Governo, incluindo esse
evento ao PDE, o Plano de Desenvolvimento da Educação.
É relevante observarmos também a presença de elementos
que retomam aspectos típicos da nação brasileira, como, por
exemplo, as cores verde e amarelo predominantes nas cenas, desde
as roupas usadas pelos alunos até os espaços visitados por eles. O
104
próprio ambiente do zoológico contribui para essa composição
tipicamente brasileira, ao expor animais como a onça pintada e o
lobo guará, encontrados no território brasileiro.
No âmbito do intradiscurso, ou seja,
no momento da
formulação da propaganda, verificamos que a linguagem verbal se
compõem em duas formas distintas: a oralidade (narrativa
definindo a Olimpíada e orientando acerca dos procedimentos para
inscrição); a escrita, a qual aparece em suportes diferenciados
(placas e roupa do funcionário do zoológico compondo o cenário e
textos lançados na tela para intensificar as informações fornecidas
pela locutora).
A linguagem não-verbal é construída pela imagem de uma
turma de alunos que é levada (provavelmente por um professor) ao
Zoológico e, enquanto visitam os animais, um dos alunos vê as
informações sobre a Olimpíada de matemática em placas e na roupa
de um funcionário do Zoológico. Produz-se um efeito de sentido
voltado ao comportamento dos animais, pois estes parecem mostrar
que está chegando a hora da Olimpíada e que estão torcendo pelo
aluno. Além disso, o cenário ressalta a presença da matemática em
todo lugar, aliada à simplicidade e à diversão encontradas numa
visita ao Zoológico por exemplo.
A composição das cenas remete-nos a uma memória
discursiva voltada aos diferentes níveis de interesse para se
concorrer a uma olimpíada entre outras atividades competitivas.
Assim sendo, o fato de apenas um menino, entre tantos outros,
105
perceber as informações sobre a Olimpíada nos diversos lugares por
onde passavam, faz referência ao grau de afinidade e envolvimento
dos seres humanos em atividades como esta, ou seja, sabemos, por
nossa própria vivência, qual é a nossa proporção de engajamento e
estímulo quando o assunto é participar de eventos como olimpíadas,
campeonatos, maratonas ou festivais.
Os efeitos de proximidade e diálogo com o sujeitotelespectador são assegurados pela presença dos dêiticos temporais
3
“está chegando”, “a OBMEP vem aí”; dos dêiticos pessoais “seus
alunos”, “sua escola”, “todos estão torcendo por você” e dos
dêiticos espaciais identificados nos enunciados: “as inscrições só
podem ser feitas pela internet”, “a matemática está em todo
lugar”, “tem mais no Portal da Olimpíada”, “procure o banco de
questões”. O uso dos elementos dêiticos produz um efeito de
orientação e incentivo tanto para os alunos quanto para os
professores.
4
Outro recurso lingüístico utilizado é o uso dos imperativos,
como podemos visualizar nos enunciados “Diretores e professores,
motivem seus alunos”, “Participe da 5ª Olimpíada Brasileira de
Matemática das Escolas Públicas”, “procure o banco de questões”,
“Participe, todos estão torcendo por você”, “concorra a medalhas e
a bolsas de estudo”. Diferentemente das propagandas sobre
produtos e serviços de empresas não-governamentais, a presença
de imperativos neste anúncio não configura uma ordem ou um
106
3. Toda atividade de linguagem é um processo marcado pela inscrição do sujeito. Nesse sentido, temos os marcadores dêiticos, definidos como os elementos lingüísticos que
mostram a presença do locutor no enunciado. São os pronomes pessoais: eu, tu; os pronomes demonstrativos: este, esta, isto; os pronomes possessivos de 1ª e 2ª pessoas;
os advérbios de lugar e tempo: aqui, agora, lá; as locuções adverbiais; os morfemas verbais do tempo presente de 1ª e 2ª pessoas.
4. De acordo com Sandmann (2001, p. 27), o modo imperativo do verbo “é a principal marca lingüística do texto de função apelativa explícita”, visando alcançar determinado
comportamento do consumidor. Para Monnerat (2003), na publicidade, o uso do imperativo deve ser entendido como uma “sugestão para comprar” e não como uma ordem
propriamente dita.
apelo, mas sim, sugere, com o auxílio de um cenário convidativo, o
engajamento da comunidade escolar no evento.
Os textos dispostos nas placas encontradas ao longo do
percurso feito pelos alunos apresentam diferenças gráficas
significativas. Algumas palavras são escritas em formato maior,
direcionando os possíveis leitores para a informação principal ou
para a ação que estes devem desempenhar: “a matemática
convida”, “Participe todos estão torcendo por você”.
Reconhecemos que o destaque conferido a estas palavras
corresponde aos recursos utilizados na fala, como a entonação e o
volume, quando o falante pretende enfatizar uma ou outra
informação.
Em relação à identidade do professor, construída na
propaganda em análise, observamos que os diretores e professores
são chamados a motivar seus alunos quanto à participação na
olimpíada, reproduzindo em nossa memória o discurso referente ao
papel ou função dos docentes em relação aos seus alunos,
independente se estão de acordo, ou não, com a ideologia adotada
na formulação dos vários eventos para os quais sua colaboração é
solicitada, como: motivar, incentivar ou orientar os alunos para se
inscreverem na olimpíada. Assim sendo, esse professor é construído
discursivamente enquanto um sujeito que precisa estar engajado
com as propostas feitas às escolas.
Baumann afirma que numa sociedade líquido-moderna,
caracteristicamente plural com discursos plurais em qualquer
esfera do conhecimento, em que qualquer conceito deve ser
107
relativizado, não há sentido em se buscar uma identidade individual
ou de uma classe, afinal “ uma posição fixa dentro de uma
infinidade de possibilidades [...] não é uma perspectiva atraente”
(2005). Nesse sentido, a propaganda governamental busca expor a
identidade cristalizada do professor, um professor que “assume
todas as tarefas da conjuntura escolar””, ignorando as mudanças
sociais que exigem uma nova concepção da profissão professor que
precisa refletir sobre seu fazer pedagógico e não somente executar
tarefas preestabelecidas.
Considerações finais
Com base na análise da propaganda, podemos dizer que a
representação da identidade do professor, construída no discurso
governamental, projeta-se a partir de um discurso já conhecido, ou
seja, é ao docente que compete a tarefa de conduzir e auxiliar seus
alunos nas diversas atividades que se engajem.
É relevante salientarmos a presença da nomeação brasileira
dando ênfase ao apoio do governo para a olimpíada, o qual é
evidenciado não só pelos recursos lingüísticos, como pela
composição do cenário, as cores escolhidas e os animais
apresentados.
Acrescente-se a isso que a propaganda enfatiza o Brasil,
retomando um discurso já identificado em outros anúncios, como a
Prova Brasil e a Provinha Brasil. Em todos eles, percebemos o
compromisso de melhorar os índices de aprendizagem dos alunos
nos diferentes níveis de escolaridade, por meio de um ambiente
108
propício para um ensino mais significativo que prepare os alunos
para atuarem em situações sociais reais.
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111
Base-superestrutura: modos de usar
Rodolfo Rorato LONDERO
1
Na produção social de sua vida, os homens
estabelecem relações definidas que são
indispensáveis e independentes de sua
vontade, relações de produção que
correspondem a uma fase definida de
desenvolvimento de suas forças produtivas
materiais. A soma total dessas relações de
produção constitui a estrutura econômica da
sociedade, a base real, sobre a qual se levanta
uma superestrutura jurídica e política e à qual
correspondem formas definidas de consciência
social. O modo de produção da vida material
condiciona os processos social, político e
intelectual da vida em geral. Não é a
consciência dos homens que determina seu ser,
mas, pelo contrário, o seu ser social que
determina a sua consciência. Numa certa fase
de seu desenvolvimento, as forças produtivas
materiais da sociedade entram em conflito
com as relações de produção existentes ou – o
que é apenas a expressão jurídica da mesma
coisa – com as relações de propriedade dentro
das quais até então operaram. De formas de
desenvolvimento das forças produtivas, essas
relações se transformaram em suas correntes.
Começa então uma época de revolução social.
Com a modificação da base econômica, toda a
imensa superestrutura se transforma mais ou
1. Professor do Departamento de Comunicação Social – UNICENTRO
113
menos rapidamente. Ao examinar essas
transformações, uma distinção deve ser
sempre feita entre a transformação material
das condições econômicas de produção, que
podem ser determinadas com a precisão da
ciência natural, e as formas jurídica, política,
religiosa, estética ou filosófica – em suma,
ideológicas – pelas quais os homens se tornam
conscientes desse conflito e o tentam
solucionar.
Karl Marx
Quando as palavras acima foram escritas por Marx em 1859,
num prefácio para sua Contribuição à crítica da economia política,
surge não apenas um modelo que compreende as relações de
produção (WILLIAMS, 1979, p. 79-80), mas também um problema:
como ocorrem essas relações, ou melhor, como se resolvem as
determinações entre uma base econômica e uma superestrutura
ideológica? Desde então, várias soluções foram apresentadas, sem
desconsiderar aquela apressadamente deduzida da própria
formulação do problema, pois, como observamos nas palavras
acima, “o modo de produção da vida material condiciona os
processos social, político e intelectual da vida em geral”. Está
preparado o terreno do determinismo econômico, que ainda produz
frutos mesmo após as considerações de Engels, feitas a Bloch numa
carta de 1890: “[...] se alguém torce o que dissemos para afirmar
que o elemento econômico é o único elemento determinante,
transforma essa proposição numa frase sem sentido, abstrata,
absurda” (ENGELS apud WILLIAMS, 1979, p. 83; grifo do autor). Na
114
verdade, já nas palavras de Marx constatamos que a solução do
problema não é tão simples como nos faz pensar o determinismo
econômico, pois, se a superestrutura é determinada pela base,
então como essa, ou seja, como as “formas jurídica, política,
religiosa, estética ou filosófica” tornam os homens conscientes dos
conflitos? Colocando em palavras claras: como transformar a base a
partir de idéias condicionadas pela própria base? Este paradoxo,
veremos logo adiante, é uma das “Questões de método” (1957)
desenvolvida por Sartre, mas que também é abordado por Engels na
carta citada acima:
A situação econômica é a base, mas os vários
elementos da superestrutura – formas políticas
da luta de classe e seus resultados, ou seja,
constituições estabelecidas pela classe
vitoriosa depois de uma batalha bemsucedida, etc., formas jurídicas, e até mesmo
os reflexos de todas essas lutas práticas nos
cérebros dos participantes, teorias políticas,
jurídicas, filosóficas, opiniões religiosas e seu
desenvolvimento em sistemas de dogma –
também exercem sua influência sobre o curso
da lutas histórias e, em muitos casos, são
preponderantes na determinação de sua forma
(ENGELS apud WILLIAMS, 1979, p.83-84; grifo
do autor).
Mas não adiantemos o debate, pois o objetivo deste artigo é
discutir justamente as várias interpretações do modelo base-
115
superestrutura. Esclarecemos desde já que tomaremos a produção
artística como lugar privilegiado para nosso debate, pois, como
acrescenta Jameson, especificamente a respeito do “domínio
fechado da literatura”, “[...] seus problemas característicos de
forma e conteúdo, e da relação da superestrutura com a infraestrutura, oferece um microcosmo privilegiado para se observar o
pensamento dialético em operação” (JAMESON, 1985, p.2-3). Não é
por acaso, portanto, que o modelo base-superestrutura desaponta
insistentemente nos textos de crítica literária, desde Arte e vida
social (1913) e sua teoria do reflexo desenvolvida por Plekhanov.
Mas antes de adentrar nesta primeira interpretação do modelo,
voltemos a Jameson para afirmar que a relação entre base e
superestrutura “[...] é anterior a qualquer das categorias
conceituais, tais como causalidade, reflexo, ou analogia,
elaboradas subseqüentemente para explicá-lo” (JAMESON, 1985,
p.13). Portanto, as diversas interpretações do modelo são “[...]
tentativas da mente, depois do fato, em dar conta de sua própria
capacidade de subsumir dois termos díspares dentro da estrutura de
um único pensamento” (JAMESON, 1985, p.13). Ou seja, as
interpretações são formas de abarcar a dualidade do modelo, como
se uma palavra (reflexo, mediação, etc.) correspondesse às duas
que figuram no modelo – mas quando a própria dualidade do modelo
é questionada pelos Estudos Culturais, alguns autores se levantam,
inclusive Jameson, para criticar o pós-marxismo de tais estudos.
Deixemos de lado esta querela, pelo menos por enquanto, e
116
vejamos como a teoria do reflexo surge no texto de Plekhanov: ao
discorrer sobre “a arte pela arte” – tendência parnasiana que
defende a autonomia da arte enquanto exercício puramente formal
–, o autor afirma que mesmo esta tendência, que procura
desvencilhar-se das condições materiais negando qualquer função
referencial no plano da obra, é também determinada, ou melhor,
refletida por tais condições:
A inclinação da arte pela arte se manifesta e
fortalece quando existe o desacordo insolúvel
entre a pessoa e o meio social que a cerca. Esse
desacordo reflete-se na obra artística tanto ou
mais voluntariamente quanto ajuda os artistas
a se elevarem sobre o meio que os rodeia
(PLEKANOV, s/d, p. 54; grifo nosso).
O que nos interessa aqui não é tanto a explicação do autor,
mas os termos por ele utilizados, como o que grifamos. Isto nos leva
a pensar se o problema base-superestrutura não é, antes de tudo,
um problema terminológico. Pois há uma simplicidade no termo
“reflexo” que parece não atingir a complexidade do problema,
reduzindo-a a conclusões como esta:
O ideal de beleza que prevalece em
determinado tempo, em determinada
sociedade ou em determinada classe de uma
sociedade, tem sua raiz, parte nas condições
biológicas do desenvolvimento do gênero
humano que criam particularidades de raça, e
117
parte nas condições históricas do nascimento e
da existência dessa sociedade ou classe
(PLEKANOV, s/d, p 47).
Se não encontramos o termo “reflexo” citado aqui,
verificamos outro igualmente problemático: o termo “raiz”, apesar
de remeter à “base real” de Marx, sugere algo completamente
diferente: as idéias germinam a partir das condições biológicas e
históricas. Não somente por causa de metáforas naturalistas como
esta, mas também devido às explicações mecanicistas, Gramsci
identifica nos textos de Plekhanov tanto um “método positivista”
quanto um “materialismo vulgar” (GRAMSCI apud KONDER, 1967,
p.41). Ou como afirma Konder:
Ao defender o princípio materialista da
dependência da arte em relação à vida social,
Plekhanov dá-lhe uma formulação estreita, de
dependência servil da criação estética ante a
ditadura implacável e mesquinha das
circunstâncias sócio-econômicas. A arte, para
o materialismo dialético, não é um mero
produto do meio: é também uma manifestação
da presença ativa do homem na transformação
criadora do meio. E o meio, para o
materialismo histórico, não é jamais um meio
homogêneo, como o figurava Taine (KONDER,
1967, p.41).
Taine, filósofo positivista que identificava a
hereditariedade, o meio ambiente e o momento histórico como
118
fatores determinantes do comportamento humano, é justamente o
autor citado por outro seguidor da teoria do reflexo (BUKARIN, s/d,
p.121). De fato, em Materialismo histórico (1925), Bukharin afirma
que, “da mesma forma que a ciência ou qualquer outro reflexo da
produção material, é a arte um produto da vida social” (BUKARIN,
s/d, p.111). E ainda no mesmo parágrafo, traça uma comparação
naturalista: “Como a ciência, [a arte] só pode desenvolver-se quando
as forças da produção alcançam determinado nível. Do contrário,
fenece e morre” (BUKARIN, s/d, p.111). Para não nos perdermos em
tantos exemplos, voltemos à crítica de Konder: a insuficiência da
teoria do reflexo, enquanto interpretação do modelo basesuperestrutura, reside na ausência do homem como transformador do
meio, sendo apenas compreendido como determinado pelo meio. Ao
confrontar estas duas relações entre o homem e o meio –
transformação e determinação –, Engels resume dialeticamente o
problema numa frase bem conhecida: “São os próprios homens que
fazem sua história, mas em determinado meio que os condiciona”.
Esta questão é central na já citada obra de Sartre:
... os homens fazem a sua história na base de
condições reais anteriores (entre as quais,
deve-se contar com os caracteres adquiridos,
as deformações impostas pelo modo de
trabalho e de vida, a alienação etc.), mas são
eles que a fazem e não as condições anteriores:
caso contrário, seriam os simples veículos de
forças inumanas que, através deles, regeriam o
mundo social (SARTRE, 2002, p.74).
119
Compreender que os homens criam as próprias condições
materiais que os determinam é reconhecer a incoerência da teoria
do reflexo – também criticada por Sartre, como veremos adiante –,
pois estas condições são criadas justamente a partir dos produtos
superestruturais (leis, manifestos políticos e obras culturais de
grande apelo, etc.). É também a partir da afirmação de Sartre que
entendemos porque explicações do tipo causa-efeito, praticadas
pelos teóricos do reflexo, são denominadas mecanicistas: o relógio,
após dado corda, movimenta-se independentemente da
interferência humana, sendo, portanto, uma força inumana. Tais
explicações remetem às filosofias mecanicistas do século XVII
(filosofia cartesiana, por exemplo), demonstrando que a teoria do
reflexo é anterior às hipóteses marxistas aqui debatidas. Na
verdade, segundo Lukács,
... a idéia em si é muito mais antiga: ela já
constituía um problema central na estética de
Aristóteles; e, desde então, excetuadas as
épocas de decadência, predomina em quase
todas as grandes estéticas. [...] Basta-nos,
contudo, recordar de passagem o fato de que
muitas estéticas idealistas (como, por
exemplo, a de Platão) baseiam-se, a seu modo,
nesta teoria (LUKÁCS, 1968, p 28).
A origem idealista da teoria do reflexo também é outro
argumento que atesta sua insuficiência, pelo menos para qualquer
filosofia que se autodenomina materialista: para Williams (1979,
120
p.100), ao projetarmos a atividade artística enquanto reflexo,
eliminamos seu “caráter material e social”, ou seja, deixamos de
compreendê-la, por exemplo, como instituição social vinculada às
demais instituições (escolas, mercado, museus, etc.). Ainda assim,
considerando essa origem, Lukács desenvolve sua própria teoria do
reflexo, argumentando, porém, que tal teoria, como sustentada
pelo materialismo histórico, “[...] é decididamente diferente do
materialismo mecanicista” (LUKÁCS, 1968, p.28). Podemos indicar,
ao menos, duas diferenças entre sua teoria do reflexo e aquelas
abordadas até então: a primeira refere-se aos diversos graus que,
para Lukács (1968, p.31), a realidade apresenta, desde a “realidade
fugaz e epidérmica” até a “realidade mais profunda”. Portanto,
“[...] a arte deve refletir não a superfície do real, mas a sua
essência” (KONDER, 1967, p.152). O essencial é justamente o mais
profundo, o que Lukács compreende como totalidade:
A verdadeira arte visa o maior
aprofundamento e a máxima compreensão.
Visa captar a vida na sua totalidade
onicompreensiva. [...] A verdadeira arte,
portanto, fornece sempre um quadro de
conjunto da vida humana, representando-a no
seu movimento, na sua evolução e
desenvolvimento (LUKÁCS, 1968, p. 32).
O conceito de totalidade é a segunda diferença,
fundamental para Lukács, pois a obra artística, enquanto
organização formal, oferece uma reconciliação utópica entre o
121
homem e o mundo (JAMESON, 1985, p.137). Mas apesar dessas
diferenças, a teoria do reflexo lukacsiana também apresenta
dificuldades, principalmente ao desenvolver-se como estética
normativa, ao invés de descritiva. Sendo assim, Lukács e sua teoria
do reflexo não visam compreender as relações entre base e
superestrutura – ainda que apresentem conceitos valiosos –, mas
propor a relação mais adequada para a “verdadeira arte”.
Entretanto, em suas primeiras obras, como História e consciência de
classe (1922), Lukács rejeitava a teoria do reflexo (KONDER, 1967,
p.151), adotando-a somente posteriormente, quando sofre duras
críticas que quase culminaram na sua expulsão do Partido
Comunista húngaro. A partir daí, Lukács encontra em Lenin
elementos para formular sua própria teoria, como nesta passagem
dos Cadernos filosóficos citada por Konder:
Quando a inteligência humana aborda a coisa
individual e dela extrai uma imagem, um
conceito, isso não é um ato simples, imediato,
morto, não é um reflexo num espelho, e sim
um ato complexo, de dupla face,
ziguezagueante, um ato que implica na
possibilidade de um vôo imaginativo para fora
da vida (LENIN apud KONDER, 1967, p.151).
Compreender a relação entre base e superestrutura como
um movimento ziguezagueante, ou seja, como uma relação de via
dupla – base determinando superestrutura, superestrutura
122
determinado base – é superar o determinismo econômico da teoria
do reflexo e perceber que as duas vias são variações do mesmo
modelo (JAMESON, 1985, p.13). De certa forma, notamos esse
movimento na teoria da mediação desenvolvida pela Escola de
Frankfurt, que propõe um terceiro elemento entre a base e a
superestrutura: a linguagem (ADORNO, 1980, p.198) ou mesmo a
cultura (WILLIAMS, 1979, p.102). A linguagem e a cultura, enquanto
códigos universais, destacam-se como lugares de mediação, entrelugares, onde as idéias e as condições materiais atuam igualmente.
Em sua conferência sobre “Lírica e sociedade” (1958), por exemplo,
Adorno afirma que “[...] a linguagem estabelece a mediação entre
lírica e sociedade no que há de mais intrínseco” (ADORNO, 1980,
p.198). Entretanto, esta mediação não se resolve como um simples
reflexo, devido à própria condição da lírica em “não reconhecer a
potência da socialização” (ADORNO, 1980, p.193) – o que, contudo,
não impede que estabeleçamos relações entre lírica e sociedade,
desde que não tomemos exemplos da primeira como “objetos de
demonstração de teses sociológicas” (ADORNO, 1980, p.193).
Notamos aqui uma crítica à teoria do reflexo, que, apesar de tudo, é
adotada por outros teóricos da Escola de Frankfurt: Kracauer, por
exemplo, afirma que os “filmes atuais” (de 1928)
... dão um tingimento cor-de-rosa aos mais
negros cenários. Porém, não é por isso que eles
deixam de refletir a sociedade. Ao contrário,
quanto mais incorreta é a forma que eles
123
mostram à superfície das coisas, mais corretos
eles se tornam e mais claramente eles
espelham o mecanismo secreto da sociedade.
Na realidade não é freqüente o casamento de
uma copeira com um dono de Rolls Royce.
Porém, não é fato que todo o dono de Rolls
Royce sonha que as copeiras sonham em ter o
seu status? As fantasias estúpidas e irreais do
cinema são devaneios da sociedade,
principalmente porque os colocam em
primeiro plano como de fato o são e porque,
assim, dão forma a desejos que, noutras
ocasiões, são reprimidos (KRACAUER apud
RÜDIGER, 2002, p. 135-136).
Entretanto, esta teoria do reflexo difere-se das demais em
dois pontos: em primeiro lugar, temos o reflexo compreendido
positivamente, ou seja, não como alienação, mas justamente como
desalienação, pois, ao refletir incorretamente as relações sociais, a
assimetria entre as classes se faz nítida; em segundo lugar, temos
esse reflexo invertido que, de algum modo, aproxima-se da própria
mediação proposta por Adorno na conferência que até então
discutíamos. Pois voltemos a ela para destacar sua hipótese: para
Adorno, tanto mais a sociedade sedimenta-se na lírica “[...] quanto
menos a formação lírica tematizar a relação entre eu e a sociedade,
quanto mais involuntariamente cristalizar-se essa relação, a partir
de si mesma, no poema” (ADORNO, 1980, p.197). Ou seja, é uma
relação inversamente proporcional, semelhante ao reflexo
invertido proposto por Kracauer. É claro que Adorno nunca
124
concordaria com esta aproximação – para ele, Kracauer “possuía
algo do cinemeiro ingênuo” (ADORNO apud RÜDIGER, 2002, p.149) –,
mas não estamos sozinhos nesta interpretação, pois Jameson afirma
algo semelhante:
A obra de arte 'reflete' a sociedade e é histórica
na medida em que recusa o social, e
representa o último refúgio da subjetividade
individual em relação às forças históricas que
ameaçam esmagá-la: tal é a posição adotada
na conferência sobre 'A Lírica e a Sociedade',
um dos ensaios mais brilhantes de Adorno.
Assim, o sócio-econômico é inscrito na obra,
mas como o côncavo para o convexo, como o
negativo para o positivo (JAMESON, 1985, p.
34; grifo do autor).
A sociedade surge não como tema, mas como resposta à
própria condição histórica que favorece a formação da lírica –
considerando que, para Adorno (1980, p.195), a lírica é um gênero
moderno, pelo menos como a entendemos –, caracterizada por
“[...] um eu que se determina e se exprime como oposto ao coletivo,
à objetividade” (ADORNO, 1980, p.196). Quanto mais este eu lírico
afirma-se, mais se expõe a fratura entre ele e a sociedade. É
porque, para Adorno, mas também para Lukács, houve um momento
de reconciliação entre o sujeito e a objetividade, agora distante
(JAMESON, 1985, p.36-37). De qualquer forma, temos aqui a
mediação travestida de reflexo invertido, sendo adequada,
125
portanto, a crítica que Williams lhe faz:
É difícil ter certeza do quanto se pode ganhar
substituindo a metáfora da “mediação” pela
metáfora do “reflexo”. De um lado, ela vai
além da passividade da teoria do reflexo;
indica alguma forma de processo ativo. Por
outro lado, em quase todos os casos, perpetua
um dualismo básico. A arte não reflete a
realidade social, a superestrutura não reflete
a base, diretamente: a cultura é uma
mediação da sociedade. Mas é praticamente
impossível manter a metáfora da “mediação”
(Vermittlung) sem um certo senso de áreas
separadas e preexistentes, ou ordens de
realidade, entre as quais o processo de
mediação ocorre, quer de maneira
independente, quer determinado pelas suas
naturezas anteriores. No legado da filosofia
idealista, o processo é habitualmente, na
prática, considerado como uma mediação
entre categorias, consideradas como distintas.
A mediação, nesse uso, parece então pouco
mais do que uma sofisticação do reflexo
(WILLIAMS, 1979, p.102; grifo do autor).
De fato, a teoria da mediação apresenta problemas
semelhantes aos da do reflexo, principalmente ao persistir num
idealismo de origem platônica, numa divisão entre idéias e formas.
Mas este problema subsiste na própria divisão entre base e
superestrutura: é então o modelo infundado, pelo menos para uma
filosofia que se arroga materialista?
126
Ainda não é tempo de respondermos esta pergunta, se é que
temos uma resposta, mas Althusser parece resolvê-la como quem
resolve o enigma do nó górdio, cortando definitivamente a relação
entre base e superestrutura. Temos ainda uma divisão, mas sem
comunicação entre as partes. Para Anderson,
… o rompimento radical de Althusser com as
concepções tradicionais do materialismo
histórico reside em sua firma convicção de que
a “ideologia não tem história”, porque é –
assim como o inconsciente – “imutável” em sua
estrutura e em sua operação no interior das
sociedades humanas (ANDERSON, 1989, p.
118).
Uma ideologia sem história somente é concebível a partir da
“dependência íntima e fatal” que Althusser estabelece entre
marxismo e estruturalismo: mas fatal para o primeiro, produzindo
“[...] uma versão de marxismo onde os sujeitos foram totalmente
abolidos, exceto como efeitos ilusórios de estruturas ideológicas”
(ANDERSON, 1984, p.44). São então os sujeitos e as condições
materiais, numa interpretação marxista-estruturalista, um
conteúdo mutável estruturado por uma ideologia imutável – e entre
eles, nenhuma relação perceptível:
Se a ideologia não exprime a essência objetiva
total do seu tempo (a essência do presente
histórico), pode, pelo menos, exprimir muito
bem, pelo efeito de leves deslocamentos
127
internos de ênfase, as transformações atuais
da situação histórica: diferentemente de uma
ciência, uma ideologia é ao mesmo tempo
teoricamente fechada e politicamente
maleável e adaptável. Ela se curva às
necessidades da época, mas sem movimento
aparente, contentando-se com o refletir por
alguma modificação imperceptível de suas
próprias relações internas, as transformações
históricas que ela tem por missão assimilar e
dominar (ALTHUSSER, 1980, p. 87; grifos do
autor).
O conteúdo histórico adapta-se à estrutura ideológica que,
apesar de curvar-se diante desse, é quem o assimila e o domina por
inércia. Althusser parece pensar numa eterna ideologia da
dominação, onde as relações entre senhores e escravos, nobres e
servos, burgueses e proletariados são apenas variações desta
ideologia. Entretanto, se é duvidoso seu anti-historicismo, há que
defender seu anti-humanismo, pois é o que denuncia o falso
universalismo da condição proletária (ALTHUSSER, 1980, p.86).
Falso universalismo, pois, ao reconhecer a condição proletária, logo
sócio-econômica, como aquela que define a essência humana (homo
economicus), esse humanismo marxista oculta as demais formas de
dominação a favor da luta de classes. Portanto, não há uma essência
humana, mas várias identidades: o homem define-se enquanto
classe social, gênero, etnia, etc. Isto é um problema de nomeação,
128
como Haraway observa no feminismo:
A consciência da exclusão que é produzida por
meio do ato de nomeação é aguda. [...] A
existência de uma dolorosa fragmentação
entre as feministas (para não dizer “entre as
mulheres”), ao longo de cada fissura possível,
tem feito com que o conceito de mulher se
torno escorregadio: ele acaba funcionando
como uma desculpa para a matriz das
dominações que as mulheres exercem umas
sobre as outras (HARAWAY, 2000, p. 52).
Ou seja, para citarmos um exemplo de Haraway, o nome
“mulher” oculta as diferenças entre as mulheres brancas e as
mulheres negras a favor das primeiras. Do mesmo modo, o nome
“proletariado” esconde as diferenças entre os proletariados
brancos e os proletariados negros, ou entre os proletários e as
proletárias, sempre a favor dos primeiros. Dominações que ocultam
dominações.
Estamos já na alçada dos Estudos Culturais, onde “[...] os
processos culturais estão intimamente vinculados com as relações
sociais, especialmente com as relações e as formações de classe,
com as divisões sexuais, com a estruturação racial das relações
sociais e com as opressões de idade” (JOHNSON, 2004, p.13), ou
seja, são entendidos não apenas através da luta de classes, mas
também através das relações de gênero, etnia, etc. Mas talvez a
maior revisão do marxismo realizada pelos Estudos Culturais não
129
seja esse destronamento do proletariado, mas a integração do
modelo base-superestrutura: a respeito do legado teórico de
Williams, Hall afirma que ele “[...] é dirigido contra um
materialismo vulgar e um determinismo econômico. Ele oferece,
em seu lugar, um interacionismo radical: a interação mútua de todas
as práticas, contornando o problema da determinação” (HALL,
2003, p.137). Portanto, ao integramos base e superestrutura numa
única prática, a determinação deixa de ser um problema, pois não
há mais dois lados e, consequentemente, a sobreposição de um em
relação ao outro. A linha que divide base e superestrutura é borrada
pelos Estudos Culturais, permitindo que a materialidade invada a
superestrutura, antes restrita à base. Ao criticar o marxismo
ortodoxo, Williams afirma o seguinte:
O que essa versão do marxismo desconhece
especialmente é que o “pensamento” e
“imaginação” são, desde o início, processos
sociais [...] e que só se tornam acessíveis de
modos físicos e materiais que não são passíveis
de argumentação: em vozes, em sons feitos
por instrumentos, em escrita manuscrita ou
impressa, em pigmentos dispostos na tela ou
em gesso, em mármore ou pedra trabalhados.
Excluir esses processos sociais materiais do
processo social material é o mesmo erro que
reduzir todos os processos sociais materiais a
meros meios técnicos para alguma outra
“vida” abstrata (WILLIAMS, 1979, p. 67;
grifo do autor).
130
Ou seja, as idéias somente existem socialmente quando
materializadas, não havendo sentido pensá-las como separadas do
processo social material. Portanto, pensar nelas como abstrações é
desconsiderar a inversão radical do idealismo hegeliano que Marx
propõe. Os pecadores medievais, por exemplo, nunca duvidaram da
materialidade do Inferno.
No caso específico da produção artística, Cevasco afirma
que
...a metáfora da base/superestrutura abre
espaço para a colocação das artes em um
domínio separado, obscurecendo o fato de que
a produção artística é ela mesma material, não
só no sentido de que produz objetos e
notações, mas também no sentido de que
trabalha com meios materiais de produção
(CEVASCO, 2003, p. 67).
Entretanto, não é que o modelo base-superestrutura seja
enganoso, mas que ele é mal-interpretado, pois, como afirma
Williams, “o que ele expressa primordialmente é o sentido
importante de uma 'superestrutura' visível e formal que poderia ser
analisada por si mesma, mas que não pode ser compreendida sem se
perceber que repousa sobre uma 'base' (ou infra-estrutura)”
(WILLIAMS, 1979, p.81). Ou seja, o modelo base-superestrutura não
separa as idéias e as formas, como fazem os mais diversos
idealismos, apenas considera a autonomia interpretativa de cada
lado do modelo.
131
Como notamos ao longo deste artigo, a revisão do marxismo
realizada por Williams baseia-se consideravelmente na sua crítica à
teoria do reflexo. Mas quem também promove essa crítica, pelo
menos uma década antes e chegando a conclusões semelhantes, é
Sartre:
Mas o que se pode e deve construir [...] é uma
teoria que situa o conhecimento no mundo
(como a teoria do reflexo tenta, de forma
des39,95 em sua negatividade [...]. Só então,
compreender-se-á que o conhecimento não é
conhecimento das idéias, mas conhecimento
prático das coisas; então, será possível
suprimir o reflexo como intermediário inútil e
aberrante (SARTRE, 2002, p. 38; grifos do
autor).
Como não pensar nesta teoria que compreende o
conhecimento não como idéia, mas como prática material, sem nos
remetermos ao “interacionismo radical” de Williams?
Parafraseando Borges, somente refletindo sobre os Estudos
Culturais e seus precursores – Sarlo (2002, p.48) elege Gramsci, por
exemplo –, ou seja, somente realizando inversamente o percurso
das gerações, é que detectamos tais semelhanças. E elas não se
restringem ao comentado anteriormente, pois Sartre também
compreende os homens como “sínteses horizontais”, ou seja, como
“[...] objetos em si mesmos, isto é, em todos os níveis da vida
social” (SARTRE, 2002, p.68): temos aqui outro destronamento do
132
proletariado, pois o homem em todos os níveis da vida social é o
homem enquanto classe, mas também enquanto gênero, etnia, etc.
Barthes, em suas Mitologias de 1957, já afirmava que, “hoje, é o
colonizado que assume plenamente a condição ética e política,
descrita por Marx como condição do proletariado” (BARTHES, 1980,
p.168), nos dando um exemplo das sínteses sartrianas e sinalando as
mutações do marxismo. Pois ao proporem novos sujeitos históricos,
esses autores (Williams, Sartre e Barthes) parecem transformar o
marxismo num “meta-discurso dos discursos sobre alteridade” –
para adaptarmos estas palavras de Spielmann (2001, p.184),
referidas em outro contexto, numa introdução às diversas
manifestações do Outro: a mulher em Simone de Beauvoir, o
colonizado em Fanon, o negro em DuBois, o louco em Foucault, o
pós-colonizado em Said e Bhabha. Entretanto, mesmo que os
autores citados por Spielmann não sejam marxistas, seus exemplos
de alteridade foram assimilados pelo marxismo, o que autoriza
nossa adaptação.
Mas o que surpreende nesse percurso inverso, para
voltarmos a ele, é encontrar na obra de Sartre elementos para uma
crítica aos Estudos Culturais, principalmente à sua predisposição,
pouco problematizada, em compreender dialeticamente as
relações sociais: Eu-Outro, identidade-diferença, etc. Em
“Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual”
(1997), texto que exprime esta predisposição, Woodward nos
oferece um exemplo – os conflitos entre sérvios e croatas na antiga
133
Iugoslávia – para ilustrar como as identidades se formam
negativamente, ou seja, a partir das diferenças. Entretanto, o que a
autora parece não perceber é um terceiro elemento: a oposição
entre sérvios e croatas organiza-se a partir da observação de um
jornalista (WOODWARD, 2005, p.7-8). Ou como afirma Jameson,
comentando a Crítica da razão dialética (1960) de Sartre:
... o par, ou o relacionamento diádico, não é a
forma mais fundamental da vida interpessoal,
apesar da clara prioridade que lhe é dada pelo
senso comum. Desde que o par não pode ser
realmente uma unidade, a unificação deve ser
operada por um terceiro, por um observador
ou testemunha de fora; e o papel crucial
desempenhado, então, pelo “terceiro”
confirma a prioridade do relacionamento
triádico sobre a díade que, de sua vez, é um
fenômeno posterior, do ponto de vista lógico e
ontológico (JAMESON, 1985, p. 188).
Ou seja, a unidade do par dialético é impressa de fora, pois,
sendo dialético, cada lado exclui o outro, impossibilitando uma
unificação interna (SARTRE, 2002, p.231). Por “observador ou
testemunha de fora”, devemos compreender não apenas pessoas –
pois o modelo de Sartre não se limita à relação interpessoal –, mas
também condições: “O roubado não é o contrário do ladrão, nem o
explorado o contrário (ou o contraditório) do explorador:
explorador e explorado são homens em luta em um sistema cujo
caráter principal é constituído pela escassez” (SARTRE, 2002, p.99;
134
grifo do autor). Ou seja, as relações entre burgueses e
proletariados, por exemplo, são formadas no contexto da escassez,
isto é, numa sociedade determinada por suas necessidades
(SARTRE, 2002, p.102). Contudo, se é discutível o possível
reducionismo econômico que o termo “escassez” sugere, há nele,
por outro lado, uma definição proveitosa das condições sociais como
terceiro elemento, formadoras dos pares dialéticos.
Agora é hora de abandonar nosso percurso inverso para
seguir de onde paramos e encontrar outra crítica aos Estudos
Culturais, desta vez posterior a eles: para Jameson (1997, p.68), ao
desabilitar o modelo base-superestrutura, Williams não produz uma
releitura dos textos originais de Marx como pretendia, mas sim uma
nova leitura que sepulta Marx sem questionar seus herdeiros, enfim,
um pós-marxismo. Ainda segundo Jameson,
... é fundamental que se entenda que a
formulação “base e superestrutura” não
consiste realmente em um modelo, mas sim
em um ponto de partida e um problema, algo
tão pouco dogmático quanto um imperativo de
simultaneamente abarcar a cultura em si e por
si, mas também em sua relação ao que lhe é
externo, seu conteúdo, seu contexto e seu
espaço de intervenção e de efetividade
(JAMESON, 1994, p. 53).
O modelo base-superestrutura não é então um modelo, algo
que surge espontaneamente da realidade, mas sim um problema,
135
uma forma complexa de observar a realidade: a cultura
compreendida simultaneamente em relação ao seu contexto. E
neste problema, ressurge a superestrutura, antes subsumida nos
Estudos Culturais: para Jameson, “[...] o termo estigmatizador de
superestrutura deve ser retido a fim de lembrar-nos de um hiato que
tem de ser superado de alguma maneira mais adequada do que pelo
mero esquecimento” (JAMESON, 1997, p.71). O hiato referido por
Jameson é o entre trabalho manual e intelectual, decorrente das
divisões do trabalho, acirradas a partir da consolidação do sistema
capitalista. Sartre parece abordar a questão de maneira
semelhante, apesar de insistir na primazia da base, da matéria:
Aqui, tentamos mostrar que todas as pretensas
superestruturas já estão contidas na infraestrutura como estruturas da relação
fundamental do homem com a matéria
trabalhada e com os outros homens. Se, em
seguida, aparecem e põem-se para si como
momentos abstratos e como superestruturas é
porque um processo complexo as refrata
através de outros campos e, em particular, no
campo da linguagem (SARTRE, 2002, p. 356).
Constituem as divisões do trabalho, como Jameson propõe,
esse processo complexo que refrata a superestrutura? Se sim, então
a querela entre ele e Williams não se fundamenta, pois, apesar de
abordarem o mesmo assunto, o abordam em pontos diferentes,
reunidos na citação de Sartre: a materialidade (Williams) e o
136
“surgimento” (Jameson) da superestrutura.
Como conclusão, podemos agora representar, através das
figuras abaixo, as cinco interpretações do modelo basesuperestrutura que discutimos ao longo deste artigo:
Superestrutura
Superestrutura
Cultura
Linguagem
Base
Base
Teoria da mediação
Teoria do reflexo
Processo
Social
Material
Estudos Culturais
137
Na teoria do reflexo, temos o modelo original, mas
especificada as relações entre suas partes: a determinação da
superestrutura pela base. Na teoria da mediação, há um acréscimo
no modelo original, uma terceira parte, mediadora entre as duas
outras: as determinações advêm tanto da base quanto da
superestrutura. Nas propostas seguintes, as determinações são
suprimidas: em Althusser, elas desaparecem justamente por não
mais haver contatos entre base e superestrutura. A ideologia é uma
estrutura eterna, as condições materiais são conteúdos perenes. Os
Estudos Culturais retornam ao modelo original, mas eliminam a
divisão entre as partes e, consequentemente, as determinações:
base e superestrutura tornam-se um só processo social material.
Jameson critica esta supressão realizada pelos Estudos Culturais e
também retorna ao modelo original, mas o circunscreve como
problema: as determinações existem, mas dependem da
abordagem.
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140
A festa das cavalhadas de Guarapuava
1
Carlos Eduardo SCHIPANSKI
Nos âmbitos regionais da nossa terra vivem,
obscuros, tesouros folclóricos à espera de
quem os garimpem ( Alberto Lamego Filho)
Analisando essa frase nos colocamos a pensar em quantas
cidades brasileiras os tesouros culturais preservados pela tradição
local estão à espera de quem os garimpem e sejam pela luz da
ciência transformada em verdadeiras obras de artes à disposição de
todas as gerações futuras.
Esse estudo deve contribuir com a produção do
conhecimento e da escrita da história local, tornando-o um estudo
muitas vezes apaixonante e ligado diretamente às nossas raízes,
mas nem por isso é uma tarefa fácil, pois como afirma Rosa Maria
Godoy Silveira:
Mesmo uma pequena cidade possui um passado
rico, e para se chegar a ele, seja através de um
estudo solitário ou em equipe, faz-se
necessário ser paciente, como também deixar
1. Professor do Departamento de Comunicação – UNICENTRO
141
falar a razão ao coração para descobrir e amar
a vida dessa comunidade, de um público
heterogêneo (SILVEIRA, 1985, p.86).
Nesse contexto, a tradição da representação das
cavalhadas em Guarapuava é o tesouro que vamos garimpar ao longo
dessas páginas.
Ao garimpar essa tradição vamos procurar demonstrar como
essa representação ao ser introduzida nos Campos de Guarapuava
encontrou aqui um ambiente fértil, e que ao ser regado pela fé
cristã dos colonizadores, firmou-se pela prática. Ao ser transmitido
pela oralidade entre os primeiros executores, que posteriormente
legaram a seus descendentes, as cavalhadas mantiveram-se viva
mesmo diante de todas as inovações culturais e tecnológicas da
modernidade.
Para compreender essa permanência é fundamental a
analise da inserção do fator popular nas comemorações, pois é nas
camadas populares que se processa a folclorização das
sobrevivências eruditas. Desse processo de assimilação e
preservação emergiu a tradição da representação da luta de mouros
e cristãos.
Já na década de 70, Renato Almeida nos alertava sobre a
permanência da tradição.
o tradicional não está no elemento
supersticioso, mas aplicado a alguma coisa de
moderno e atual. Esse é o caráter dinâmico do
142
fato folclórico que lhe acentua a marca social.
Ele não desaparece, porque o povo cria
incessantemente, recebendo os legados das
camadas superiores e estas transformam, por
sua vez, os resíduos das crendices que lhes
chegaram com a tradição. (ALMEIDA, 1970, p. 4)
Entre os estudiosos locais parece haver consenso de que as
cavalhadas se tornaram uma festa tradicional em nossa cidade e
recentemente com a modernização do espetáculo despertou na
população guarapuavana um gosto particular em participar da
festa, como um cavaleiro, um simples figurante ou então um
espectador anônimo.
Ao mesmo tempo, a realização da representação das
cavalhadas foi se tornando ao longo dos anos, mesmo com intervalos
temporais de quase duas décadas, uma referência na construção da
identidade local. A construção dessa identidade e a dependência na
tradição, segundo o sociólogo francês, Augusto Comte é explicado
pelo fato psicológico de que, “o espírito humano, é mais apto a
aperfeiçoar do que criar, não pode bem assentar as suas
especulações senão sobre uma primeira execução da empresa que
ele prossegue”. (COMTE, 1987, p.79).
Importante e fundamental para a permanência dessa
tradição foram às experiências deixadas pelas gerações anteriores
que povoaram os campos de Guarapuava. Elas não se perderam no
tempo, foram preservadas e transmitidas pela oralidade para as
novas gerações que ao seu tempo e modo fecundaram os seus
143
espíritos para manutenção e para novas elaborações mentais.
E é por meio relatores orais que vamos garimpando nossas
primeiras informações sobre a festa. Segundo o pesquisador Walter
Murilo Teixeira, não há como precisar até o momento quando foram
realizadas efetivamente as primeiras cavalhadas em Guarapuava
sob os moldes de uma representação teatral. Para ele, as
cavalhadas “certamente só aconteceram quando a cidade de
Guarapuava teve certo desenvolvimento urbano e aglomerou
pessoas com condições financeiras e aptas para desenvolverem uma
coreografia dramática, ou mesmo, os jogos eqüestres”.
Uma possível explicação sobre a origem das cavalhadas em
solo guarapuavano, citada por Teixeira, e posteriormente descrita
por João Rodrigues de Oliveira, em seu livro “Folclore Nacional”,
que segundo relato de Benjamin Cardoso Teixeira, seu pai, aparece
um texto sob o título: ”A Capela de São Sebastião” originou-se de
uma subscrição popular, encabeçada por Domingos Moreira no
tempo que ali ocorriam as tradicionais Cavalhadas, posteriormente
ao ano de 1870”.
Essas informações que nos chegam datam de 1870 e se
referem a um pequeno encontro de fazendeiros em frente à Capela
de São Sebastião, nos arredores da cidade, local de morada da
Senhora Cândida Batista e que todos os anos oferecia uma festa em
homenagem a São Sebastião. Lá sob o comando de Domingos Moreira
Gamalier, os fazendeiros vindos de vários cantos da cidade,
montava seus acampamentos e durante dias ensaiavam a
144
coreografia que seria apresentada no dia 20 de janeiro, dia de São
Sebastião, como uma forma de pagar promessa para o referido
Santo eleito como protetor contra todas as formas de pestes.
Sob esse fato não foi encontrado nenhum documento
comprobatório. No entanto, a ausência de documentação escrita
sob esse fato não desautoriza a documentação oral, muito ao
contrário é pelas fontes orais que vamos suprir essa lacuna.
Segundo ainda depoimentos orais de fazendeiros o costume
de pagar promessa feita pelos fazendeiros do século XIX era antigo e
foi generalizado por toda a região pelos tropeiros que por costume
faziam várias promessas em função do elevado índice de
mortalidade dos rebanhos de muares e bovinos durante as viagens
em direção da feira de Sorocaba. Para não terem muito prejuízo
com a tropa que estavam conduzindo, além de farta alimentação
encontrada aqui nos campos de Guarapuava, buscavam proteção e
ajuda aos Santos da Igreja Católica, fazendo promessa e pagando
uma cavalhada.
Foi a partir daí que esse costume de pagar promessa
generalizou-se entre os demais fazendeiros da região e de
Guarapuava, dando origem a tradição de pagar uma cavalhada,
participando como cavaleiro ou assistindo a sua realização e no final
do evento fazendo uma significativa doação em dinheiro para a
Igreja.
Pagar ou correr uma cavalhada foi o costume deixado pelos
tropeiros resultante da introdução nos campos de Guarapuava da
145
criação de muares, gado bovino e mais tarde da criação do cavalo.
Essa herança portuguesa foi disseminada pelos paulistas quando da
ocupação e colonização das áreas próximas da fronteira espanhola.
As grandes fazendas e a criação de bovinos desenvolveram-se graças
às grandes quantidades de pastos existentes e a abertura de
caminhos. A consolidação disso como a atividade econômica foi
muito importante e durou mais de dois séculos.
Nas palavras da economista e historiadora Raquel DallaVechia,
com a abertura do Caminho do Sul inauguravase uma nova fase para os habitantes do Sul: o
tropeirismo, que consistia em ir comprar
muares no Rio Grande do Sul, Uruguai e
Argentina, conduzi-los em tropas numa
caminhada de três meses pelo Caminho de
Viamão, inverná-lo por alguns meses nos
Campos Gerais no Paraná e negociá-lo na feira
de Sorocaba, onde vinham comprá-lo
principalmente paulistas, mineiros e
fluminenses.(DALLA-VECHIA, 2001, p. 139)
Com isso, a extensão dos campos de criar e engordar gado
na região de Guarapuava apresentou um aumento significativo,
principalmente com o estabelecimento das primeiras sesmarias na
região, fazendo com que o número de cabeças de gado criadas
dobrasse em números absolutos, de 35.000 para 80.000, segundo
dados obtidos nos relatórios da câmara Municipal de Guarapuava de
1859. Dessa forma, o Tropeirismo foi o primeiro ciclo econômico
146
importante que Guarapuava obteve, graças a sua localização
privilegiada e estratégica no contexto geográfico brasileiro.
Dentro desse contexto histórico, a cultura Guarapuavana
foi se formando pela introdução de vários elementos, como por
exemplo, o consumo do chimarrão, o churrasco, das danças típicas e
os divertimentos eqüestres. Tudo isso se deu pela vinda das
expedições tropeiras que buscavam os fartos pastos para os
rebanhos e posteriormente se dirigiam para a feira de Sorocaba e
até a capital Rio de Janeiro.
Durante as invernadas aqui pelos campos de Guarapuava,
parada obrigatória para que os animais ganhassem peso, os
tropeiros aproveitavam o tempo para exibir suas vestimentas e
divulgar seus costumes culturais conforme se observa na figura
seguinte.
O vestuário masculino era composto de camisas brancas de
manga longa, bombachas, botas pretas de cano alto, esporas de
prata, lenços coloridos e ponchos de seda pura, sem dispensar o
sempre companheiro chapéu de aba larga. A montaria era o muar
(burro ou a mula), animal resistente a longas marchas e que
suportava uma carga considerável sobre o seu lombo. Como
divertimento durante as invernadas os tropeiros se utilizavam de
corridas de pequena distância, dada às limitações das montarias.
Posteriormente, com a substituição do muar pelo cavalo, as
atividades eqüestres como o jogo de argolinhas ganhou dinamismo e
se difundiram entre os fazendeiros.
147
Figura. 01.
Dessa forma, o tropeirismo promoveu condições para que os
habitantes da cidade de Guarapuava, notadamente os fazendeiros,
desenvolvessem uma cultura específica, vinculada à atividade
econômica: as cavalhadas, um espetáculo ricamente produzido e
desenvolvido pelos “melhores” da sociedade campeira
Segundo José Loureiro Fernandes, as cavalhadas de
Guarapuava são, na sua essência, “um folguedo vinculado aos ciclos
da vida campeira, às áreas das regiões criadoras de gado, onde o
cavalo e o cavaleiro desempenhavam um papel de primeira
grandeza”
Os fazendeiros de Guarapuava eram as pessoas que
possuíam condições sociais e econômicas para adquirir e manter um
cavalo pronto para os festejos, pois além de custear suas próprias
despesas com as vestimentas tinha que também “aprontar” os
cavalos adestrados e ricamente ajaezados para o espetáculo. Isso
também fazia parte da promessa a ser paga aos Santos.
Como meio de locomoção e para realizar as atividades de
Figura. 01 - Tropeiros em Guarapuava: século XIX. Fonte: Arquivo da Câmara Municipal de Guarapuava
148
manejo do gado nas invernadas, desde cedo foi utilizado o cavalo.
Eurico Branco Ribeiro descreve da seguinte maneira uma das
hipóteses sobre a origem do cavalo guarapuavano:
O primeiro cavalo a chegar aos campos
guarapuavanos foi o andaluz, vindo na
expedição do espanhol Álvarez Nuñes Cabeza
de Vaca, em 1541. Cabeza de Vaca
desembarcou nas costas do Estado de Santa
Catarina e marchou serra acima, rumo a
noroeste, com destino a Nossa Senhora de
Assunção, no Paraguai, atravessando
obrigatoriamente os rincões guarapuavanos.
Portanto, não está fora da duvida a assertiva
de que alguns eqüinos se tenham desgarrado
da expedição, ficando extraviados naquelas
magníficas paragens e se procriaram ao sabor
da natureza.
Há outro relato a respeito da origem desse tipo de cavalo,
segundo Goulart, diz que:
Antes mesmo da fundação da freguesia de
Nossa Senhora de Belém, nos campos de
Guarapuava, pela expedição de Antonio da
Rocha Loures e o Padre Francisco das Chagas
Lima, as expedições anteriores tivessem
deixado animais quando se retiraram,
apressadamente, fugindo aos ataques dos
índios, como aconteceu com a do Tenente
Cândido Xavier de Almeida, em 1771, com a do
Coronel Afonso Botelho, em 1772, com a do
149
Coronel Diogo Pinto de Azevedo Portugal,
Padre Francisco das Chagas Lima e Frei
Nolasco, em 1809.
A partir de 1845, época do grande comércio de muares, que
se realizavam nas feiras de Sorocaba, em São Paulo, os tropeiros
procedentes do Rio Grande do Sul, tropeando com grandes manadas
de cavalgaduras e de bovinos, levavam também um bom número de
cavalos criados nos campos de Guarapuava para negociar com
paulistas, mineiros, fluminenses e baianos, devido à fama e
rusticidade que gozavam aqueles animais.
Aqui nas fazendas e para a lida no campo utilizava-se de
bons animais de sela, com os aparatos necessários para o
enfrentamento das diversas situações no trato com o gado. Dessa
forma incorpora-se assim a relação do cavaleiro com o cavalo, figura
esta muito típica ainda em algumas propriedades rurais de
Guarapuava.
Em Guarapuava, a introdução e disseminação do cavalo
como animal de lida com o gado foi fundamental para o
aprimoramento das evoluções utilizadas durante as representações
da luta de mouros e cristãos. O cavalo guarapuavano deu mais
velocidade ao espetáculo o que permitiu ao cavaleiro a
possibilidade de demonstrar maior habilidade e melhor destreza
durante as evoluções.
O tropeirismo em Guarapuava foi perdendo sua força
econômica no final do século XIX, quando o destino das tropas
150
passou a ser Curitiba, encurtando a viagem até Sorocaba, mas a
tradição e os costumes já estavam enraizados na sociedade
guarapuavana, principalmente a fé católica e o costume de pagar
promessa a Santa Padroeira.
De 1875 em diante só restou lembra-los saudosamente nos
desfiles cívicos de 7 de setembro. No livro “Continente
Guarapuavano: Transição político-social de Guarapuava”, o
pesquisador Murilo Walter Teixeira, saudosamente e em
homenagem aos tropeiros que por aqui passaram, deixaram
descendentes e contribuíram para a inserção da economia de
Guarapuava no cenário nacional, cita algumas “frases de efeito”
utilizado pelos tropeiros para vender seu produto na feira de
Sorocaba:“Mulada redondinha de gorda, de berro grosso, bico
arcado e rastro grande”; “Chifre de vela, anca de viúva e peito de
donzela”.
Figura. 02.
Figura. 02. Desfile de descendentes de Tropeiros em Guarapuava. Fonte: Arquivo da Câmara Municipal de
Guarapuava
151
Mesmo havendo a tradição da representação das
cavalhadas, observamos que a cidade de Guarapuava também está
inserida no contexto festivo nacional através de outros eventos
culturais, como a Festa da Cevada, o Encontro das Etnias e o Festival
de Teatro. Observamos assim que Guarapuava pode como a exemplo
de outras regiões do Brasil se constituir em um grande filão de
pesquisas para os historiadores, principalmente pelas suas
diversidades étnicas e culturais. Em Guarapuava, cidade
componente de um país de múltiplos aspectos, principalmente nas
relações sociais, revela que tudo pode ser estudado em função da
sua diversidade social e cultural, onde desde o mais simples convívio
nos lugares públicos até as relações familiares, podem servir de
objetos a muitos estudos.
Um componente dessa diversidade cultural são as
cavalhadas de Guarapuava, que despertam o interesse da
comunidade científica local e a curiosidade de centenas de turistas
que se deslocam para a cidade para registrarem essa festividade.
Essa fama nacional que goza a representação dramática da luta de
cristãos e mouros em Guarapuava baseia-se não apenas nas
informações fragmentadas e superficiais de turistas que para cá se
deslocam por ocasião da representação, mas também pela forma
como essa tradição foi assimilada pelos moradores tradicionais e
preservada ao longo dos tempos, principalmente os descendentes
dos primeiros povoadores, os primeiros atores, verdadeiros
“cavaleiros de cristo”.
152
No que toca à representação das lutas, as cavalhadas de
Guarapuava desenvolvem dois aspectos temáticos. O lúdico e o
religioso. O primeiro consiste em representações de lutas e disputa
de atividades recreativas entre os dois grupos de cavaleiros. Já o
segundo aspectos observamos a parte dramática, teatral, herança
portuguesa. É durante esta fase que observamos a realização das
lutas entre os dois grupos, as guerrilhas, ocupação do castelo por
parte dos mouros, rapto da princesa, escaramuças e a conversão dos
mouros.
Durante o espetáculo, a roupa utilizada pelos cavaleiros
apresenta-se muito rica em decoração e pertinente ao enredo a ser
desenvolvido. As armas usadas eram a lança, com um lenço ou uma
fita amarrada próxima à ponta, azul para o grupo cristão e vermelho
para os mouros, usavam ainda uma espada. Da mesma maneira seus
animais apresentavam-se ricamente ajaezados. Cada corredor é
acompanhado por um pajem que carrega suas armas e cuidar dos
animais quando os corredores vão à igreja para o batismo dos
mouros.
Tal como em muitas regiões do Brasil, as apresentações das
cavalhadas de Guarapuava eram realizadas em suas primeiras
edições como parte integrante da programação de uma festa
religiosa, e duravam três dias, com um dia de intervalo e respeito ao
dia dedicado às celebrações religiosas em louvor a Padroeira local
A fé era tão intensa que nada atrapalhava a realização do
espetáculo. Em 1899, nos dias dedicados às comemorações em
153
homenagem à santa padroeira, circulou uma noticia no jornal “O
Guayra” contando que a cidade de Guarapuava foi atingida por um
enorme temporal, mas não foi suficiente para interromper as
festividades.
Apezar (sic) do mau tempo que muito estorvou
os festejos do programma (sic) esteve
bastante concorrida a festa que se celebrou
com toda a solennidade (sic), agradando muito
os torneios executados por moços destros na
arte da equitação.
Podemos observar que independente das condições internas
e externas ao fato e diante de tal importância que a festa da
Padroeira significava para população da região, ela se deslocava e
participava ativamente do espetáculo, dezenas de pessoas eram
envolvidas na organização. Enquanto que na representação do
teatro aristocrático que relembrava a vitória dos cristãos sobre os
mouros apenas os 24 cavaleiros, divididos em dois grupos de 12
cavaleiros, vestidos a caráter e seus pajens entravam em cena.
Era um espetáculo realizado pelos melhores cavaleiros da
sociedade guarapuavana.
Figura. 03.
154
Figura. 03. Cavaleiros cristãos e seus pajens nas cavalhadas de 1899.Fonte: Arquivo particular de Júlia de Santa
Maria Pereira.
Seguindo a tradição das cavalhadas espalhadas pelo
território brasileiro, o grupo de cavaleiros cristãos usava vestimenta
branca com detalhes em azul e era identificado com a cruz fixada no
peito de cada cavaleiro. Os mouros vestiam-se com traje na cor
carmim com detalhes em amarelo e identificado pela lua crescente
pressa no peito do cavaleiro. Essas cores e símbolos são utilizados
ainda hoje e representam o símbolo da Ordem dos Cavaleiros de
Guarapuava.
Cada grupo de 12 cavaleiros, um cristão e outro mouro, são
organizados internamente por, um mantenedor, um embaixador, um
corta fila e mais nove cavaleiros. Cada personagem tem ainda a sua
disposição um cavalo, uma espada, uma lança e uma garrucha e um
pajem.
As cavalhadas de Guarapuava, conforme afirmamos são
classificadas como uma representação teatral devido ao seu
conteúdo dramático desenvolvido durante as evoluções dos
cavaleiros. O local onde ocorre à representação é um espaço
aberto, plano e preparado especialmente para o espetáculo. Em
Guarapuava foram utilizados os seguintes espaços para as
cavalhadas: Largo da Igreja Matriz, atual Praça 9 de dezembro,
largo 7 de setembro, atual Colégio Estadual Francisco Carneiro
Martins, Campo de Futebol do Guarapuava Esporte Clube, Parque de
Exposições Lacerda Werneck, Parque das Araucárias, Pista de laço
do Centro de Tradições Gaúchas Fogo de Chão.
155
Figura. 04.
Apesar das cavalhadas constituírem-se como uma festa
realizada pelos “melhores da terra”, a platéia era formada em sua
maioria por pessoas de todas as classes sociais. Conforme se observa
na figura 06, o cenário era um amplo espaço aberto e cercado em um
dos lados por camarotes de diversos tamanhos que eram alugados
por aqueles que podiam pagar com dinheiro o direito de assistir em
local privilegiado. A decoração ficava também por conta da família
da pessoa que havia adquirido. Era pelo tamanho e decoração dos
camarotes que se avaliava a importância social e financeira das
famílias.
Segundo o Jornal O Pharol, 50% da renda bruta das festas da
Padroeira era proveniente do aluguel de camarotes.
A renda bruta até hoje arrecadada, orça em
11:181$500 estando na mesma incluída a
importância de 5:294$000, provenientes do
156
Figura. 04. População assistindo uma cavalhada em 1922 no Largo 7de setembro.Fonte: Arquivo Câmara
Municipal de Guarapuava.
aluguel de camarotes, a cuja importância se
deve somar 230$000, de alugueis de camarotes
que não foram pagos.
Em outra edição das cavalhadas em 1928, o resultado final
apresentado a todos os paroquianos indicou que a participação
econômica dos “melhores” na festa foi também bastante
significativa. O Jornal O Pharol publicou o balanço final da festa em
benefício da Igreja Matriz.
Resultado bruto do aluguel de camarotes e
vendas de entradas para as cavalhadas e para o
jogo de foot-Ball foi de 5:627$500”. Despesas
com o pagamento da Banda Musical durante os
dias de cavalhadas e foot-Ball – 550:000, fogos
para as cavalhadas – 150:000, argolinhas e
cabeças – 183:000, trabalhadores para arrumar
e desarmar os camarotes – 2:213$800,
pagamento a Ernesto Chagas como
gratificação da pintura do castelo para as
cavalhadas – 35:000.
As principais evoluções apresentadas durante as cavalhadas
são: embaixadas, quatro tornos, a brasileira, cruz de quatro
pelotões, alcancilha de lança, entrevero guarapuavano, fogo e
cortejo, dois corações, cruz de quatro cavaleiros, briga de
Napoleão, tomada do castelo, retorno da rainha, conversão dos
mouros e limpa pátio. Todas essas evoluções serão detalhadas
posteriormente quando tratarmos da coreografia da festa.
157
Segundo depoimento do senhor Sebastião Meira Martins,
“foi com grande entusiasmo principalmente dos descendentes de
fazendeiros que a representação das cavalhadas, firmou-se como
uma “tradição”“. Percebe-se assim através dessa fala uma
característica presente na mentalidade dos habitantes de cidades
de pequeno porte que a preservação das comemorações,
principalmente as religiosas, revela um aspecto muito marcante de
um atavismo enraizado e próprio de sociedades interioranas.
Sobre essa questão da tradição, cabe destacar a posição de
Hunt.
o que para os jovens é o significado do
progresso, da evolução, para os mais
velhos, é o desejo de manter viva a
memória, o passado e recordação dos
bons tempos de uma vida diferente
(HUNT, 1995, p.43)
Em geral, as cavalhadas carregam consigo diferenças
marcantes de região para região, principalmente nas suas formas de
execução. Embora muitos autores clássicos do folclore brasileiro
tenham pesquisado e escrito sobre festas populares com
representações de cavalhadas, essa temática não foi ainda
analisada à luz das modernas tendências historiográficas.
O medievalista francês Jacques Heers afirma que a festa,
independente da sociedade que a realiza,
158
apresenta-se também como o reflexo duma
sociedade e de intenções políticas”, segue
dizendo ainda que “a exaltação da situação e
dos valores, ainda mais das influências, dos
privilégios e dos poderes, tudo é reforçado
pela exibição do luxo e pela distribuição de
benesses. (HEERS, 1987, p. 87)
De fato, as cavalhadas de Guarapuava no passado
constituíram uma grande festa da qual só participavam os grandes
“senhores da terra”, os fazendeiros que podiam apresentar os
animais e eles próprios ricamente vestidos, uma demonstração de
riqueza, uma festa de sedas e veludos, cujo resultado financeiro era
destinado em benefício da Igreja e de outros órgãos de assistência,
cumprindo assim uma de suas funções enquanto espaço de
sociabilidade.
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160
Produção de antologias de ensaios sobre
o Brasil: identidade e diferença
Luciana Cristina Ferreira DIAS
1
Este estudo parte de uma preocupação com a construção de
sentidos sobre a identidade nacional em duas antologias de ensaios
de múltiplos autores publicadas recentemente no Brasil: Nenhum
Brasil existe (João Cezar Rocha), um trabalho de caráter
comemorativo e Morte e progresso: cultura brasileira como
apagamento de rastros (Francisco Foot Hardman) uma coletânea
temática produzida a partir da reunião de autores, num dado evento
científico.
O foco de análise repousa na problemática da constituição
da cultura brasileira, a partir de uma produção intelectual-cultural
como as antologias. Neste aspecto, estamos levando em
consideração que a antologia é um gênero discursivo que nos
permite compreender o papel desempenhado pela literatura em
uma cultura e época dadas ou ainda refletir sobre a construção do
leitor, na representação político-cultural de literaturas nacionais ou
regionais.
A antologia, ao construir representações da cultura
Professora do Departamento de Letras - UNICENTRO
161
brasileira em sua tessitura, nos exige fazer escolhas em termos de
abordagem
desse tema. Para tanto, buscarei compreender a
categoria da alteridade discursivo-cultural em oposição à categoria
da diversidade, a fim de relacionar as representações de Brasil com
questões de identidade cultural (SERRANI, 2006, p 98),
considerando que a antologia organiza sentidos a partir de um
trabalho com o interdiscurso e com identificações que jogam com a
produção do inconsciente.
Identidade para a AD: lugar da diferença
Na área das ciências humanas, podemos ressaltar os
estudos focados na perspectiva da diversidade cultural, os quais
relacionam a identidade individual à percepção consciente de si
mesmo, ou identificam os indivíduos segundo elos de raça,
nacionalidade, classe, cultura etc., agrupando-os conforme
características que os tornam “iguais” por oposição aos “nãoiguais” (ênfase na distinção indivíduo/grupo social). Neste tipo de
abordagem, a análise recaí na noção de contraste que implica o
estabelecimento de características próprias de um dado grupo.
A partir de uma visão discursiva, na análise de um material
como as antologias de ensaios, trabalharei não com a diversidade,
mas com um conceito mais amplo, o da alteridade, a partir de
reflexões no quadro da Análise do discurso (PÊCHEUX, 1998;
ORLANDI, 1999; 2001; SERRANI, 1993). Sendo assim, a consideração
da alteridade cultural do Brasil nos leva, diferentemente de estudos
162
alicerçados na dimensão da diversidade, a pensar a respeito do
inconsciente e da contradição como constitutivos e determinantes
de toda cultura.
Se, nos termos de Serrani (1998), na abordagem da
diversidade, a análise está baseada na comparação contrastiva das
dessemelhanças entre um grupo e outro ou ainda na análise de
traços comuns internos (individuais) relativos a uma dada
comunidade que permitiria um reconhecimento mútuo entre os
membros de uma cultura, a alteridade desloca a visão de individuo
para a de sujeito afetado pelo inconsciente e pego na rede
simbólica.
Neste caso, o sujeito do discurso não é o indivíduo ou
sujeito egóico, dono e fonte do seu dizer que encontraria na língua
um instrumento de comunicação. A partir de uma visão discursiva, é
preciso vincular a questão da identidade à inscrição do sujeito em
formações discursivas para a produção de sentidos, ou seja, a
processos de identificação (identificação imaginária e simbólica).
A concepção de sujeito nesta dimensão é a do sujeito afetado pela
memória e pelo inconsciente.
Os conceitos de identificação simbólica e identificação
imaginária são fundamentais para que compreendamos a complexa
constituição do sujeito na /pela linguagem. A primeira
identificação, a simbólica, tem como componente o significante e o
inconsciente de modo que o sujeito se constitui a partir do outro,
isto é, a singularidade do sujeito é dada pela marca do exterior, uma
163
marca que nos singulariza e da qual estamos despojados (NASIO,
1995, p.115).
Serrani (1998, p.255) estabelece relações entre a
psicanálise e a AD e afirma que a dimensão do interdiscurso se
relaciona com os componentes da identificação simbólica. Segundo
a autora “não se trata do eu-falante, mas do sujeito-efeito de
linguagem”, um sujeito desejante, significado a partir da produção
do inconsciente. Nos termos de Chnaiderman (1998), para que
ocorra o reconhecimento do eu com a imagem é preciso que ele
esteja imerso em uma estrutura simbólica. Diante dessas
considerações, vale citar Lacan (1979) que define o Um afrontando
qualquer lógica de identidade. Nas palavras do autor supracitado:
“O Um como tal é Outro”. E o Outro é o lugar da palavra”.
Dessa maneira, analisar as antologias que constroem
representações culturais sobre o Brasil implica que deixemos de
lado comparações entre visões individuais e dos brasileiros como
um todo ou ainda em uma análise de traços comuns à brasilidade.
Compreender a alteridade discursiva, é partir para uma análise em
que a identidade seja compreendida como contraditória (uma
unidade dividida em si mesma) e que a memória e o inconsciente
são constitutivos da cultura brasileira.
Com efeito, na abordagem das antologias não se trata de
determinar características de um povo tido como um bloco único e
homogêneo, mas sim é preciso experimentar o exercício analítico
de compreender que, mesmo dentro de um mesmo grupo social e
164
cultural, existem diferença e pontos de vistas divergentes.
Também, é preciso levar em conta o fato de o sujeito não
apresentar um discurso uno e homogêneo. Na análise das
antologias, a partir da dimensão da alteridade cultural, é preciso
conceber um sujeito cindido, cujo dizer não lhe pertence e sobre o
qual o enunciador não tem controle.
Uma vez que a alteridade precisa ser entendida como
heterogeneidade enunciativa que remete ao discurso-outro
simbólico, conforme Authier-Revuz (1990, p. 26): “é
heterogeneidade mostrada (discurso do outro encenado pelo
enunciador e do sujeito encenado como de um outro) e é
heterogeneidade constitutiva (discurso do sujeito aquém deste,
que o desestabiliza, lhe escapa ao controle consciente).
Dessa forma, o sujeito retoma sentidos preexistentes e
negocia diferentes vozes no interior de seu texto. Isso se dá tanto
pelo discurso do outro posto em cena pelo enunciador quanto pela
interdiscursividade que desestabiliza o controle dos sentidos.
Nenhum Brasil existe:
um vazio que persiste e um outro que preenche
Uma vez que a alteridade é da ordem do interdiscurso, ou
seja, do domínio da determinação histórica do dizer, vale ressaltar
que a antologia Nenhum Brasil existe mobiliza, justamente, uma
memória relacionada à convivência do Brasil com o outro
estrangeiro.
165
A alteridade cultural se constitui na relação do trabalho
antológico Nenhum Brasil existe: Pequena Enciclopédia com o
contexto acadêmico estadunidense (outro-cultural). Em termos de
condições de produção do discurso, a antologia fora publicada
inicialmente nos Estados Unidos sob o título “A revisionary of
Brazilian literature and culture”, em face dos 500 anos do Brasil, em
2000 e reeditada em uma segunda versão em língua portuguesa, em
2003, intitulada: Nenhum Brasil existe- Pequena Enciclopédia.
Tomando-se como base a contradição como constituinte de
uma cultura, é preciso compreender a constituição da alteridade
cultural brasileira relacionada ao gesto de interpretação do sujeitoorganizador com os sentidos conflitantes provenientes do
interdiscurso que apontam para representações de Brasil vazio e
completo, tendo-se em vista a voz do outro.
Primeiramente, olhando para textualidade do ensaio
introdutório, espécie de apresentação da antologia, é válido
destacar uma representação (imagem) para a escrita de histórias
literárias e culturais como impossibilidade, como resultado
lacunar, na medida em que o organizador se posiciona a partir de
marcas formais negativas (não, nunca), utilizando, para tanto, uma
forma do nós inclusivo, a partir da formulação “nunca daremos
conta de um Brasil que não existe” , numa espécie de diálogo com
um leitor imaginariamente construído como um sujeito que quer
dar conta do Brasil. (que reflete, que problematiza). A contradição
se instaura na própria tentativa de a antologia pretender ser um
166
arquivo (conjunto de textos) e contar com o esforço de seu
organizador. Temos a identificação do organizador com a
representação da lacuna e da impossibilidade também para sua
obra ou prática de escrita.
SD (1)A essa altura, imagino já estar clara a
seguinte impossibilidade no tocante à escrita
de histórias literárias e culturais, o resultado
será sempre lacunar, pois nunca daremos
conta de um Brasil que não existe.
Outrossim, o gesto de nomear (GUIMARAES, 2000) Nenhum
Brasil existe também é uma forma de (in)determinação particular
produzida pelo pronome indefinido nenhum que, de acordo com
Serrani (1993), produz um efeito de determinação, mas em meio ao
esvaziamento. A contradição mais uma vez se instala, já que a
própria existência do Brasil é determinada, entretanto por um
esvaziamento, que ainda carrega um sentido negativo. A antologia
enquanto processo de nomeação se constitui a partir do
esvaziamento de sua identidade, de modo que o sujeito-autor é
afetado por uma alteridade, isto é, uma memória que traz à baila
sentidos de país que ainda não é nação e que é, portanto, fantasma
ou ainda país que não chegou lá e que ainda é vazio e marcado por
lacunas. A imagem de Brasil discursivamente construída, assim
como o projeto antológico-fantasma, aponta para esse vazio.
167
Ensaio introdutório: entre a apresentação da antologia
e a problematização do Brasil
O ensaio introdutório assinado por João Cezar Rocha, o
organizador da obra, responsável pelo controle da dispersão de
texto está sendo tomado aqui como um metatexto que comenta e
discute as seis seções nas quais se dividem os 88 ensaios que
compõem a antologia, ancorando-se em uma reflexão a respeito do
país problematizado neste ensaio.
Se um locutor-editor garante a unidade da obra, há que se
ter em vista que Nenhum Brasil existe é marcada por uma dispersão
e se representa discursivamente como um mosaico de vozes, de
textos e de perspectivas a respeito do Brasil, em meio à
materialidade concreta do alentado volume que se constrói como
unidade, na perspectiva documental. Em relação à função-autor,
essa é agenciada por um locutor-organizador do projeto que ao
mesmo tempo que discute a obra, fala da problemática evocada
pelo título Nenhum Brasil existe, dialogando com um leitor cuja
imagem é associada à reflexão sobre o Brasil e a uma espécie de
diálogo compartilhado (o leitor é um cúmplice nesta reflexão).
Pensar a alteridade discursiva a partir da antologia de
ensaios culturais sobre o Brasil nos exige trazer o inconsciente e o
discurso dentro de tal abordagem. Em outras palavras, é preciso ter
em mente o fato de que o sujeito-organizador da coleção não é
fonte intencional de um sentido que lhe seria transparente, ou seja,
aquilo que é dito sobre o Brasil tem uma espessura semântica e
168
relaciona o sujeito com a história e com a ideologia.
Neste caso, a identidade nacional se constrói a partir da
repetição de itens ou construções lingüísticas ao longo da obra, de
modo que são reiterados sentidos de que o Brasil não existe, é signo
vazio, à espera de definições. Assim sendo, vale a pena analisar
algumas marcas lingüístico-discursivas recorrentes no início do
ensaio introdutório que funciona como uma apresentação não
somente da antologia, mas do próprio Brasil colocado como
referente do discurso.
SD (2) No trabalho dos mais importantes
“pensadores” do Brasil reaparece a
pertubadora contradição drummondiana: seus
textos desenvolvem o que já denominei de
“arqueologia da ausência. Embora busquem
definir a brasilidade, terminam repetindo o
artifício da teologia negativa, característica
de uma certa hermenêutica religiosa (...). Os
principais pensadores que se dedicaram à
tarefa de revelar o propriamente brasileiro do
Brasil terminam às voltas com uma
melancólica descrição do que o país não foimoderno, democrático, etc- do que deixou de
ser- igualitário, iluminista, etc- do que ainda
não é- país de primeiro mundo, potência
mundial, etc.
Tal inexistência se perfaz em um movimento em que os
efeitos de sentidos apontam para a multiplicidade de
interpretações para o Brasil. Se o Brasil é inexistente porque o
169
Brasil oficial sufoca o outro Brasil, podemos também dizer que o
país se constitui a partir de uma identidade incompleta, cujo ponto
de ancoragem está na teologia negativa, constitutiva do discurso
intelectual brasileiro, denominada pelo autor do ensaio, o
organizador da obra, como “arqueologia da ausência”. Ressoam
nestes fragmentos as expressões parafrásticas: pertubadora
contradição, arqueologia da ausência, teologia negativa,
melancólica descrição, participando de sentidos dominantes de
Brasil como lugar do problema e do vazio.
Neste caso, o Brasil não existe, o Brasil não foi, não é, está à
espera de ser. O autor, neste caso, recupera, em seu texto, a fim de
garantir a progressão e a coerência ao ensaio uma memória relativa
à intelectualidade brasileira marcada pela presença de autores e
pensadores que descrevem melancólica e negativamente um país.
Dessa forma, o pessimismo e a negação são representações
dominantes ao longo do texto do ensaio.
Finalmente, o autor constrói uma representação
contraditória para um discurso documental, como da antologia, que
se constitui como lacuna à espera de outras análises nesses vãos de
significado, uma representação de antologia-fantasma. A análise de
itens lexicais como: fantasmas, lacunas, novas, futuros, convite
constroem essa representação de história de cultura como lugar do
vazio, a imagem do fantasma, desloca sentidos de antologia como
volume concreto, arquivo que conserva e permite o nãoesquecimento. Vamos às formulações do organizador da antologia.
170
SD (3) Como esta coletânea se destinava
originalmente ao público de língua inglesa e
era a primeira vez que se fazia uma
apresentação tão abrangente da literatura e
da cultura brasileira nessa língua, lacunas
eram (e permanecem) inevitáveis (..). Que
sejam bem-vindos outros futuros volumes,
pois só nos resta conjurar fantasmas com
outros fantasmas, isto é, as histórias de
cultura que escrevemos.
Vale ainda destacar as marcas de heterogeneidade
mostrada marcada (formas de alteridade) a partir das quais Rocha
delimita um espaço para outras vozes como as de Sérgio Buarque de
Holanda e Antonio Candido para garantir um efeito-verdade ao seu
texto que toma e retoma sentidos de que o Brasil é incompleto e
vazio.
SD (4) Desde a difusão do vocábulo, ser
brasileiro é literalmente uma espécie de
estrangeiro para si mesmo, um hóspede
alheio- “uns desterrados em sua terra”- na
formulação paradoxal e definitiva de Sérgio
Buarque de Holanda(...)
SD(5)Na introdução à Formação da literatura
brasileira, Antonio Candido argumenta que
uma literatura como a do Brasil necessita de
um contato permanente com literatura
estrangeiras para não correr o risco de perderse num inevitável provincianismo.
SD (6) )Seria interessante associar a noção de
antropofagia à pesquisa de Luiz Felipe de
171
Alencastro, como estratégia de superação ou
ao menos de problematização da “teologia
negativa”
SD (7) Intuição que Oswald de Andrade já havia
arranhado com sua inteligência relâmpago e
cujas conseqüências mais radicais ainda não
soubemos enfrentar. Ao contrário da teologia
negativa, marcada por uma certa melancoliaafinal, seu propósito secreto era nada menos
que desvelar a essência da nacionalidade- o
gesto antropofágico, partindo da necessária
presença do outro, pode transformar
alegremente o tabu em totem
As expressões sintáticas “como estratégia de superação ou
ao menos de uma problematização da teologia negativa” ou “a
antropofagia enquanto conceito de estratégia cultural ofereceu um
modelo de diálogo – o banquete antropofágico- para a
interpretação” funcionam como formas implícitas da inscrição do
outro no discurso de Rocha. Assim, na forma do discurso indireto as
vozes de O. de Andrade e Alencastro são trazidas para cena, a partir
de uma tentativa de negociação no texto das vozes polêmicas que
significam o Brasil.
Vale destacar que martelam sentidos de mescla entre o eu e
o outro na construção de representações da identidade nacional.
Considerando-se as formas parafrásticas (semanticamente
equivalentes) que nos definem na cadeia do discurso: estrangeiro
para si mesmo, uns desterrados em sua terra, necessária presença
do outro, o outro como se fosse próprio, numa análise intra-
172
interdiscuriva, podemos notar a retomada de um já-dito
constitutinte da nossa memória discursiva: ser brasileiro é ser um
pouco de outro lugar, é ser estrangeiro.
Neste caso, podemos destacar que as marcas formais
apontam para explicações e predicações que designam a
antropofagia (a devoração simbólica do outro) não como
provincianismo ou marca de uma ausência, mas como alegria e
problematização da negatividade. Ser brasileiro é devorar o outro e
é isso que desloca um sentido de negatividade atribuído para nossa
identidade. Neste caso, deixamos de ser vazios, a partir da
completude propiciada pelo estrangeiro, pelo outro. E o fazemos
alegremente.
Nesse caso, a partir de uma imbricação entre o eixo
interdiscursivo (a dimensão da interdiscursividade constitutiva de
todo dizer) e o eixo intradiscurso (dimensão da formulação da obra),
a alteridade cultural brasileira se constitui não como uma simples
oposição de binarismos tais como o Brasil é vazio ou o Brasil é
completo, ser brasileiro é ser puro ou ser brasileiro é ser em partes
estrangeiro, mas sim como um espaço do sujeito afetado pela
determinação sócio- histórica do dizer por memórias discursivas
contraditórias (SERRANI-INFANTE, 1998, p.245). Assim sendo, ser
brasileiro é ser puro e estrangeiro ao mesmo tempo, é ser vazio e
preenchido pelo outro.
173
Morte e progresso:
uma produção intelectual e o deslizamento dos sentidos
A coleção de ensaios Morte e progresso: cultura brasileira
como apagamento de rastros foi publicada, em 1998, no Brasil, pela
editora da Unesp e não se relaciona diretamente a um rito
comemorativo. A coleção de ensaios surge a parti de um Congresso
ocorrido fora do Brasil no qual, em um outubro de 1995, Francisco
Foot Hardman, o organizador da antologia, encontrara amigos que
estavam todos espalhados pelo Europa. E reunindo todos no hotel
Sokrates, foi possível a apresentação de um Fórum temático sobre
violências antigas e modernas no processo civilizatório brasileiro,
no III Congresso Latino-Americano na Universidade de Varsóvia
Também, pensando a problemática da alteridade
discursiva, temos uma obra que possui uma memória e espessura
semântica. De fato, a textualização do título da coleção de ensaios
Morte e Progresso se relaciona em termos de sentidos com a
formulação que se inscreve na Bandeira Nacional (alteridade),
inspirada no positivismo, ordem e progresso. Neste caso, o
deslizamento dos sentidos, do item lexical morte em lugar de
ordem, já revela todo o trabalho do equívoco, no jogo língua e
história.
Em sintonia com Orlandi (1986, p. 132) essa formulação,,
forma de discurso-outro, nos permite observar os efeitos materiais
da língua, enquanto sistema passível de jogo, na história. O item
lexical morte em lugar de ordem desloca sentidos de que a ordem é
174
somente do âmbito da sistematização organizacional, das leis, do
funcionamento do Estado. Ordem é morte, que, ao entrar em seu
lugar da morte, na transferência, desliza sentidos.
Segundo Pêcheux (1975) a metáfora está na base da
significação. Metáfora pode ser entendida como efeito de uma
relação significante: uma palavra por outra. E a relação de
substituição entre ordem e morte trata-se de um efeito metafórico.
O sentido, para Pêcheux, é sempre uma palavra, por outra ou uma
proposição, por outra. Tal fenômeno, chamado de efeito
metafórico, produz um deslizamento de sentido entre ordem e
morte, que é constitutivo do sentido designado por ordem e por
morte.
O deslizamento de um enunciado Ordem e progresso em
Morte e progresso nos faz compreender o que chamamos de
historicidade do dizer, do trabalho dos sentidos no texto. A ordem é
a mola propulsora para se matar aquele que está em (des)ordem.
Assim o sentido, para a Análise do discurso, não está preso à letra,
visto que se ordem aponta, num mundo semanticamente normal
(PÊCHEUX, 1990), para a organização e administração do país, de
modo equívoco, no Brasil em nome dessa ordem, houve o
apagamento do outro visto como atrasado, inferior, estranho.
Assim a junção morte e progresso, além de colocar em cena
um paradoxo, como que com morte (apagamento, eliminação)
poderia haver progresso (pelo apagamento do atrasado, do
irracional) atualiza uma condensação de sentidos dominantes de
175
que a ordem que se representa também como morte (no Brasil, no
processo civilizatório brasileiro) funciona como apagamento
daquele que atrapalha, na perspectiva de quem tem o poder, o
progresso.
O subtítulo “cultura brasileira como apagamento de
rastros” também revela que o sentido não é unívoco, mas sim plural,
marcado pelo trabalho dos sentidos históricos no texto. Se segundo
Orlandi (1998, p. 204) a identidade é um movimento na história, se
constituindo como um percurso na história, com suas repetições e
deslocamentos, podemos dizer que a antologia se movimenta e
retoma sentidos que ainda hoje produzem seus efeitos. Se a cultura
brasileira apagou rastros da morte, da violência, da dor, ainda
assim, hoje o poder lança mão de práticas muito semelhantes, como
a de apagar os rastros e deixar vir à tona um acontecimento alegre,
festivo em lugar do acontecimento violento.
Elemento metatextual ou crítico- O prefácio da obra
O ensaio que abre a antologia, é agenciado por um autorapresentador da obra, convidado para tal pelo organizador da
coleção de ensaios. Para tanto, o autor trabalha com a própria
pluralidade dos sentidos sobre a violência. O efeito produzido sobre
o leitor é se estrutura pelo próprio efeito-autor que insiste o tempo
todo em evidenciar a força da violência, a partir de várias marcas
formais: força, impetuosidade, intensidade.
Essa equivocidade, nos termos de Lagazzi- Rodrigues (2006,
176
p. 84), tem a ver com o fato de as palavras, em funcionamento,
serem sempre passíveis de sentidos contraditórios, de diferentes
interpretações. A violência na medida em que se apresenta como
disseminação de sentidos na história, no Brasil essa se dispersa em
lugares, expressões, mas contraditoriamente, algo que é tão forte,
tão intenso, tem a tendência de se esconder, de se ocultar.
SD (1) Desde que foi pronunciada pela primeira
vez, a palavra violência arrasta consigo
profunda complexidade. Da raiz latina, vis,
está a força. No fim do século XIII, em inglês,
violence já era usada no sentido da agressão a
um padre. Mas em latim violentia também já
queria significar veemência, impetuosidade,
estando ausente a força física. Shakespeare,
no século XVII, a usa como agressão, em
sentido figurado, como a intensidade de
sentimento de Desdemona “ com que violência
ela primeira vez amou o Mouro, no Otelo.
SD (2)Não surpreende que Morte e progresso:
cultura brasileira como apagamento de rastros
possa surpreender a violência em tantos
lugares, sob diversas e dissimuladas
expressões da ordem como morte.
A violência como ponto nodal da antologia organizada por
Francisco Foot Hardman irrompe o ensaio de Paulo Sérgio Pinheiro e
dá corpo a uma memória de violência -que mesmo sendo uma forma
de ação-, contraditoriamente, no processo civilizatório brasileiro,
esconde-se, camufla-se.
177
Assim, cabe a esta função, a de locutor-apresentador da
obra autor, a de organizar no espaço do ensaio comentários a
respeito dos ensaios que compõem a primeira seção da antologia
assinados pelos ensaístas Stella Bresciani, Fábio Landa, Eva Landa e
Ettore Finazzi-Agrò, que por sua vez, configuram outra funçãoautor, mobilizando a imagem de um locutor-especialista em
Literatura, Psicanálise ou História e por conseguinte, a de um leitor
que se interessa por tais questões (intelectual, estudante de pósgraduação, aluno universitário).
Orlandi (2001, p.83) considera que “há uma injunção à
textualidade na linguagem e não há texto sem autor”. Neste caso,
ao se colocar na origem do dizer, o sujeito produz este efeito de
coerência a seu texto, um ensaio de caráter didático que apresenta
a obra e os ensaios que nela estão perfilados. E cabe ao leitor traçar
seus percursos de leitura, tendo em vista sua história de leitura ou
mesmo sua posição ideológica que jogam na produção dos sentidos.
Neste caso as representações dominantes da violência no
Brasil construídas no texto introdutório que apontam para sentidos
de Nação constituída na ocultação, na violência e nas guerras que
emergem enquanto lugares do apagamento, do esquecimento, de
deslocamento de sua existência.
E essas guerras ou conflitos que surgem em nossa sociedade
estão relacionados justamente a uma dificuldade que certos grupos
no Brasil - as elites que se inspiram pelos ideais do positivismo e do
autoritarismo, da modernização- têm em lidar com o outro, com sua
178
diferença. Assim, as ressonâncias apontam para conflitos e tensões
entre classes dominantes (elite) e os excluídos, os racionais e os
irracionais, os que querem a modernidade e os ditos atrasados.
SD (3) Como se não estivéssemos, sempre sob
ameaça da guerra de um estado de natureza
da guerra. Como se não estivéssemos, como
estivemos, sempre sob a ameaça da guerra de
um estado de natureza à espreita em todos os
momentos. E deparamos, bela surpresa, de
novo, com Walnice
SD (4) Não sei, mas arrisco a resposta à
maneira de Sartre: os irracionais são sempre
os outros, no Brasil. Desde os mais remotos
tempos da nossa existência, desde o
“descobrimento”, faz quinhentos anos, há
sempre uma expressão prepotente de um
olhar que em nome da racionalidade
classifica, nega o outro.
SD (5) Índios rebeldes, índios preguiçosos,
seguidores de Antônio Conselheiro, escravos
indolentes, meninos de rua perversos, todos
sobrevivendo ao mesmo tempo no museu
ideológico que é o tempo do presente no
Brasil. ,
No final, em uma tentativa de o texto apresentar uma
extensão com limites, pausas e beiradas possíveis, há no texto uma
alusão a Michel Debrun. O homenageado, Michel Debrun, nas
palavras de Pinheiro, teria ficado maravilhado com a obra. Isso
porque Debrun se identificaria com a proposta da antologia
179
organizada por Foot justamente em virtude de a antologia Morte e
progresso: cultura brasileira como apagamento de rastros buscar
desnaturalizar sentidos (desmontar) de que o Brasil é cordial, de
que aqui reina a paz e a tranqüilidade, de que somos um povo
pacífico. Mas é importante dizer que às margens do texto, convivem
textos fantasmas que diluem as bordas da textualização, seus
limites. E outros sentidos podem vir a produzir efeitos neste texto
que apresenta a obra.
Em termos de representação de Brasil, este texto constrói
uma representação dominante que caracteriza o eixo norteador da
antologia como uma obra. O Brasil enquanto cultura carrega em si o
signo da violência “velada”, sentido predominante que se constrói
graças à vibração de construções em meio à textualização da
antologia, quer olhemos seu título, o texto do prefácio ou a própria
organização discursiva da antologia.
SD (6) Tudo aqui dito combina-se bem com a
incansável busca de arquétipos da ideologia
brasileira que Debrun nos legou. Apesar de
conhecer, ou por conhecer tão bem os horrores
das estratégias da conciliação, dedicou-se
incansavelmente a desmontá -las.
Neste sentido, considerando Morte e progresso: cultura
brasileira como apagamento de rastros, a memória está ligada a um
acontecimento que se dá a partir do deslizamento: da mexida dos
180
sentidos que transitam da ordem para a morte, de progresso para o
apagamento, da violência para o rastro.
Conclusão
Na análise das antologias Nenhum Brasil existe e Morte e
progresso: cultura brasileira como apagamento de rastros, pode-se
dizer que o desafio de compreender a problemática da alteridade
cultural nos exige deslocamentos conceituais em relação à visão de
identidade: é preciso superar uma visão de identidade como uma
completude constitutiva, em termos de linguagem, consciência,
atos etc relacionados aos brasileiros e compreender a identidade
como lugar da falta e da divisão do sujeito (consciente e
inconsciente).
A alteridade como espaço delimitado ao outro constitui
processos de identificação, seja a partir da voz de autores
pertinentes ao domínio da Literatura (em Nenhum Brasil existe:
Pequena Enciclopédia), seja a partir do deslocamento do lema da
Bandeira Nacional, espaço de alteridade (em Morte e progresso), a
identidade nacional constrói-se a si mesma como unidade
contraditória inscrita na memória.
Neste sentido, a análise da identidade cultural construída
nas antologias de ensaios não se limitou a determinar as categorias
nas quais o Brasil se enquadra em contraposição a outros povos ou a
considerar a brasilidade como construção de um bloco fechado e
homogêneo. A partir da categoria de alteridade, foi preciso
181
compreender o Brasil como lugar do conflito, como objeto
representado a partir de processos identificatórios que mobilizam
imagens inscritas no inconsciente- que reorganizam imagens de
vazio e completude ou de morte e progresso- e um trabalho com a
historicidade ou determinação histórica dos sentidos.
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184
PARTE III
Crítica Literária, Estética
e Contexto Social
Murilo Rubião: uma perspectiva contemporânea
1
Giuliano HARTMANN
A questão da literatura na contemporaneidade
Uma das grandes questões da atualidade é delimitar os
temas e escritas que abarcam e delineiam as relações entre
moderno e pós-moderno. Os termos propostos já trazem em si a
complexidade e a controvérsia. Uns assumem a ruptura, outros
pregam a continuidade. Neste sentido, Steven Connor (1993)
assevera que a literatura pós-moderna, assim como as demais artes,
dialoga com a fundamentação artística herdada do modernismo,
permitindo encontrar nas literaturas da modernidade, “a
materialidade da linguagem, formas na página e sons no ar”. (1993,
p.90). Formas e sons que abusam e acusam a mudança.
A literatura contemporânea é estranhamente autêntica,
possui sobre si uma aura sui generis, difícil de ser enquadrada,
permitindo no máximo conjecturas, devido à estranheza com que
leva o leitor a percorrer as vielas tortuosas de narrativas insólitas.
Um universo quebradiço com seus personagens perdidos em um
mundo terrivelmente adverso que amarra o ficcional e o real,
1. Professor do Departamento de Letras - UNICENTRO
187
transformando o absurdo em algo possível. Promove a inquietude de
questionar a vida em uma atmosfera apocalíptica e deslocada de si
mesma, confinada e ao mesmo tempo assustadoramente sedutora.
Nesta perspectiva, o estudo a que este artigo se propõe, é
mergulhar no universo fantástico de Murilo Rubião no conto “Teleco,
o coelhinho” (1965), promovendo uma leitura à luz do olhar
contemporâneo, evidenciando o jogo pelo qual o texto em sua
fragmentação e crise, vai tecendo armadilhas para seu leitor,
desatento ou não acerca da hemerticidade latente na narrativa. Um
diálogo entre teorias do contemporâneo e a proposta de Umberto
Eco acerca da leitura do texto literário, nas relações travadas
autor/leitor com a dissimulação do texto.
Teoria revisitada
A teoria usada como base para este estudo parte da
proposta de Umberto Eco com suas reflexões em Leitura do texto
literário (1983) e as relações que são travadas dentro, para e pelo
texto. O autor salienta a questão da importância de uma correta
interpretação da obra, no qual o texto não pode deliberadamente
permitir toda e qualquer tipo de leitura ou interpretação. Há limites
a serem respeitados. Partindo de um pressuposto estruturalista,
sem esquecer o papel fundamental do leitor nesse quadro, papel
esse que o estruturalismo desconsidera, Eco atesta sua preocupação
“antes em estabelecer qual o aspecto que, no texto, estimulava e
ao mesmo tempo regulava a liberdade interpretativa”. (ECO, 1983,
188
p.07). Dessa forma, a proposta acerca da leitura e interpretação do
texto literário, deve ser perpassada pelo próprio texto, este,
ativado como uma espécie de regulador dessa possível
interpretação. Vale lembrar que, o texto pertence a alguém, foi
escrito, possui densidade à medida que traz em si toda a carga
ideológica e histórica de quem o produziu. Na outra extremidade
está o leitor que também ao fazer suas inferências e apropriações, o
decompõe e tenta transformar o texto em algo novo, agora seu. É
nesse momento que está latente o perigo, uma leitura indevida
pode vir a ser, conforme afirma o autor, apenas um 'devaneio', uma
interpretação dirigida por parte de um leitor despreparado e/ou
desatento.
A proposta teórica, dessa forma, ressalta a importância da
presença do leitor como peça chave, afirmando que “o leitor, como
princípio activo de interpretação, faz parte do quadro generativo do
próprio texto” (ECO, 1983, p.9), ou seja, levando em conta que o
texto literário pode ser entendido em sua estrutura, sendo formado
por elementos que, justapostos e entrelaçados integram a cadeia
estética textual, o leitor passa a fazer parte dessa estrutura,
tornando-se
também elemento textual, subtendido como peça
imanente do todo. O autor reitera que “um texto, tal como aparece
na sua superfície (ou manifestação) lingüística, representa uma
cadeia de artifícios expressivos que o destinatário deve actualizar”
(ECO, 1983, p.53), atualização essa, que se faz necessária à medida
que a escrita do texto literário abre, ou mesmo, tendo em si lacunas
189
que necessitam ser preenchidas pelo processo de inferências de um
outro olhar, outra perspectiva que venha a completar esses espaços
vazios ou simplesmente permita que caminhos possam ser
percorridos para uma interpretação segura e satisfatória do
universo da escrita literária, pois vale lembrar que a literatura
nunca é tecida de forma alheia e desinteressada, há sempre um
motivo, um não dito que tem algo a dizer dentro de um organismo
lingüístico quase autônomo.
Este estudo se vale também das teorias de Tzvetan Todorov
como tentativa de se esclarecer a narrativa inexplicavelmente
insólita de Murilo Rubião em suas quebras e deturpações da
realidade. A interpretação do segundo se faz pelo suporte dado
pelas teorias do primeiro, e essa se faz necessária, já que também o
Fantástico exige para si a presença do leitor como peça chave para o
alcance do exato ponto no qual o elemento abrupto e perturbador
acontece, a experiência inquietante da dúvida, pode-se dizer então
que “o fantástico implica portanto não apenas a existência de um
acontecimento estranho, que provoca hesitação no leitor e no
herói; mas também numa maneira de ler” (TODOROV, 2004, p.38). A
hesitação se dá pela ambigüidade que se forma no texto, uma
lacuna que tem o poder e capacidade de alterar as relações que são
estabelecidas com a realidade do mundo exterior. O autor cria a
fantasia, perturbadora ou não e cabe ao leitor um posicionamento
na tentativa de restaurar a aparente relação harmônica da
narrativa. O Fantástico traz em si uma aura fantasmagórica,
190
sobrenatural, é inquietante em todos os seus extremos, provoca o
questionamento e a necessidade de se restaurar a ordem, assim o
texto de caráter fantástico atesta que “a literatura existe pelas
palavras; mas sua vocação dialética é dizer mais do que diz a
linguagem, ir além das divisões verbais” (TODOROV, 2004, p.175).
Dessa forma, Todorov respalda o caráter fundamental do próprio
texto literário à medida que este, dentro do universo das literaturas
fantásticas, reivindica para si a presença de uma entidade externa
para dar valor e sabor à interpretação e a leitura, confirmando o
fato que tudo acontece dentro do texto e nunca fora dele.
Como pano de fundo para a tentativa de aplicação das
teorias de Umberto Eco sobre a narrativa de Murilo Rubião, já
perpassada pelas inferências do Fantástico, toda a atmosfera fica
calcada pelas reflexões acerca da literatura e das teorias do
contemporâneo. Conforme já citado anteriormente, esse universo
permeado pela justaposição entre moderno e pós-moderno acusa o
fim de tudo ou o começo do nada. Tudo se faz e se refaz, não existe
mais o sólido, tudo acontece de forma independente e fluída,
Sevcenko atesta o lado positivo desse momento das sociedades
humanas afirmando ser:
Uma vantagem e um alívio que o pós-moderno
se apresente como um castelo de areia e não
mais como uma nova Bastilha, um novo
Reichstag, um novo Kremlin, um novo
Capitólio. Apenas um castelo de areia, frágil,
inconsistente, provisório, tal como todo ser
191
humano. Um enigma que não merece a
violência de ser decifrado (SEVCENKO, 1995,
p.55).
A literatura contemporânea nesse sentido é frágil à medida
que tenta se construir e se fazer notar na modernidade. Reflete a si
mesma e a impotência do homem diante do impacto de rápidas
mudanças que o transformam e ao mundo que o cerca. Nesta
perspectiva, capta e percebe as inferências do prefixo 'pós' que
aliado a nomenclatura 'moderno' atesta “que todas as práticas
culturais têm um subtexto ideológico que determina as condições
da própria possibilidade de sua produção ou de seu sentido”.
(HUTCHEON, 1991, p.115). A literatura se faz pelo homem e sua
cultura social, sendo forte e impactante, refletindo sobre as
mudanças que fragilizam este mesmo homem, agora amedrontado
em si mesmo. Ela também se faz registro e documento à medida que
deve ser lida como testemunho de si mesma, cabendo ao leitor
captar essa voz silenciosa, diagnosticar o dito e buscar entender o
não dito pelo texto.
Um autor de temas insólitos
O universo brasileiro possui um si uma constelação de
grandes e consagrados autores. Uns discutidos ao extremo, outros
deixados ao esquecimento, mas sempre com a consciência que essa
literatura é aquela que assegura a brasilidade em todos os seus
horizontes. E pela mão desses grandes autores, o texto literário
192
permitiu a si mesmo explorar todos os veios e vielas possíveis, que
permeiam desde um regionalismo nu e cru ao intimismo urbano
latente, do clássico ao ousado, do nada ao tudo. Abriu
possibilidades, ampliou fronteiras, demonstrou ousadia e retratou
um Brasil genuíno sob todos os olhares e perspectivas.
Uma dessas perspectivas cabe a Murilo Rubião (1916-1991),
que trilhou um caminho inusitado, curiosamente perturbador. O
autor traz em sua pena a desarmônica dualidade da literatura
fantástica, resgata para seus textos a solidão humana por um
enfoque impactante, insólito. Quando escreve, seu texto traz e si a
aura da inquietação, revela a dúvida, busca uma verdade que acaba
por ser, mais pergunta do que resposta. A narrativa que possui vida
própria, fala de e por si mesma. A literatura de Murilo Rubião
percorre caminhos aos moldes de Kafka, mesmo sem nunca ter
recebido influência deste, trabalha com o estranho, mescla um
fundo religioso, sem exercer uma didática moral ou sacra, que é
incorporado a seus contos pelas epígrafes com as quais denuncia
seus temas. E nesse sentido, atesta Jorge Schwartz que:
O que primeiro chama a atenção em
praticamente todos os seus contos é a
utilização de epígrafes extraídas da Bíblia.
Esses minitextos, além de universalizar os
temas tratados e longe de exercer qualquer
função religiosa, servem como fragmentos
antecipadores das temáticas dos contos. É
como se o autor reafirmasse continuamente
193
que, embora fantásticos, seus temas são tão
antigos e tão atuais como a própria Bíblia.
(SCHWARTZ, 2006, p.101)
Na literatura de Murilo Rubião há uma reformulação da
condição humana pela perspectiva do fantástico, há o bíblico e há o
homem, mas este está só. A narrativa reside exatamente no fato de
expor pelas inversões e inadequações da realidade o ser humano e o
mundo, as relações sociais, a solidão. O autor retrata assim, dentro
de uma atmosfera de sonho e pesadelo, ou mesmo de magia e
negação da realidade, a situação humana no universo social da
contemporaneidade, uma realidade fria e quebradiça.
Entrando na narrativa
Em uma linha de narrativas de vertente brumosa, magia
inquietante e negação da realidade, o conto “Teleco, o coelhinho”,
está escrito bem ao estilo fantástico de Murilo Rubião. A saga
multifacetada de um personagem que multiplica identidades
animais à medida que tenta simplesmente ser homem. Uma história
inusitada contada em primeira pessoa por um narrador que traz em
suas palavras a experiência de ter convivido com Teleco, que a
princípio era um coelhinho, o primeiro de tantos outros bichos que
este se tornaria na busca desesperada de se tornar humano, aliás,
quase chega a isso, quando assume a postura de um canguru
chamado Antônio Barbosa que conforme aponta o narrador era um
“bicho mesquinho, de pêlos ralos, a denunciar subserviência e
194
torpeza. Nada nele me fazia lembrar o travesso coelhinho”
(RUBIÃO, 2006, p.61). A narrativa abarca a questão social humana e
o que exatamente significa ser homem nesse contexto. O aspecto
humano nessa atmosfera que mistura o devaneio com a dura
realidade, o autor mostra que o socialmente humano independe da
aparência biológica, é simplesmente essência, vai além de
convenções sociais.
Interpretando a fabula
As teorias até aqui apresentadas, fatalmente estarão
amarradas ao se entrelaçar dando assim o suporte necessário para a
leitura a que este estudo se propõe. Uma primeira e principal que é
a que parte das reflexões de Umberto Eco e sua preocupação com o
texto literário e seu papel mediador entre autor e leitor, como
também por sua funcionalidade ao mediar uma leitura proveitosa e
crítica. Um texto nunca é uma ilha no mar desconexo.
Salienta-se que no ato de leitura, um texto sempre
interpela por outro texto anterior, como uma espécie de resgates de
valores prévios. Eco assevera que este buscar sentidos funciona no
mesmo sentido em que ao “abrir o dicionário significa aceitar,
também, uma série de postulados de significação: um termo é em si
mesmo incompleto ainda quando recebe uma definição em termos
de dicionário mínimo” (ECO, 1983, p.53-54), ou seja, promover uma
leitura séria da narrativa de Murilo Rubião vai exigir de seu leitor,
primeiramente a postura interessada de quem realmente quer
195
alcançar a proposta do autor. Segundo, para que haja um maior
proveito dessa leitura, se faz necessário por parte do leitor, esse
conhecimento prévio de alguns valores e dicionários pessoais que
serão acionados ao longo dessa viagem pelas narrativas fantásticas
de Rubião.
Ler Murilo Rubião requer esses dicionários à parte, devido
ao fato de sua literatura pertencer a um veio que tem em si a
ambigüidade como proposta, também pelo fato que se trata de um
escritor da contemporaneidade, sua escrita é profunda, complexa,
apela para um prévio conhecimento das correntes de pensamento
que tentam definir esse momento da literatura de um modo geral,
definir os aspectos que regem e deliberam regras para uma
literatura que pode ser entendida como pós-moderna. Pois cabe
aqui salientar que “Um texto distingue-se de outros tipos de
expressão por uma maior complexidade. O motivo principal dessa
complexidade é o próprio facto de ser entretecido de elementos
não-ditos” (ECO, 1983, p.54), a narrativa acaba assim por se tornar
uma armadilha tendenciosa para quem o lê.
Cabe salientar que, o conto em questão “Teleco, o
coelhinho” do já referido autor traz em si tal complexidade, seja
pela inocência do título, seja pela epígrafe bíblica tirada de
Provérbios (XXX, 18 e 19), com a qual a narrativa se abre dizendo
“Três coisas me são difíceis de entender, e uma quarta em a ignoro
completamente: o caminho da águia no ar, o caminho da cobra sobre
a pedra, o caminho a nau no meio do mar, e o caminho do homem na
196
sua mocidade” (RUBIÃO, 2006, p.56). A Epígrafe aqui, deixa ao
leitor uma lacuna, primeiro pelo fato de que o texto bíblico em
nenhum momento faz alusão ao título. Uma brecha se abre pelo
pressuposto não-dito, emerge do título o fato de que não se trata de
um conto de fadas e a epígrafe deixa em aberto o fato de que não é a
experiência de vida de um coelho, mas sim da atemporalidade do
tema humano que é tão contemporâneo quanto o é a Bíblia. O texto
sacro deixa claro assim nesse contexto que “em Murilo Rubião, a
essência fantástica que caracteriza suas obras é a alegoria”
(SANTOS, 2006, p.2), e flui para uma pluralidade interpretativa à
medida que o bíblico se esvazia, mostrando que “a constituição dos
espaços é o cenário urbano moderno, a relação do homem com o
caos gerado pelo progresso desumano das grandes cidades”
(SANT0S, 2006, p.2), é a narrativa do homem que está sozinho. Esse
espaço moderno, essa solidão do ser pertencem sem sombra de
dúvidas ao ceticismo da modernidade, e sobre a questão que se
insere na narrativa, fica evidente que “o texto está, portanto,
entretecido de espaços em branco, de interstícios a encher, e quem
o emitiu previa que eles fossem preenchidos e deixou-os em branco”
(ECO, 1983, p.55), para que fatalmente um leitor ativasse possíveis
interpretações pelas inferências que fatalmente são feitas durante
o processo, simplesmente pelo fato de que “um texto é um
mecanismo preguiçoso que vive da mais-valia de sentido que o
destinatário lhe introduz” (ECO, 1983, p.55). Um texto literário
assim, é produzido, traz dentro de si toda a carga ideológica e
197
histórica de quem o produziu, mas ao estar no mundo, torna-se
incompleto, não se faz por si próprio, pois como afirma Eco, “um
texto é emitido para que alguém o actualize – mesmo quando não se
espera que esse alguém exista concreta ou empiricamente” (ECO,
1983, p.56), apenas exista para completar a narrativa, seja também
um elemento crucial do próprio texto.
Até o presente momento nessa reflexão aqui proposta, se
tem debatido bastante sobre a importância do leitor para a
totalidade interpretativa de um texto literário, e nesse caso
específico, o conto “Teleco, o coelhinho” de Murilo Rubião. Mas vale
lembrar que, se de um lado o leitor pode ser visto e é elemento de
estratégia textual, de outro, o mesmo vale para tantos outros que
também comportam a estrutura narrativa, como o autor e também
o próprio texto. É nessa esteira que, torna-se relevante ressaltar
neste momento a forma pela qual o próprio texto literário prevê seu
possível leitor, afinal trata-se de uma via de dois sentidos e não mão
única, pois para que haja um leitor é preciso um autor que escreva,
e nessa relação percebe-se de certa maneira um desnível, pois “a
competência do destinatário não é necessariamente a do emissor”
(ECO, 1983, p.56), ou seja, o texto reivindica para si determinado
tipo de leitor e leitura. Um texto literário, ou mesmo qualquer outro
tende a se tornar elitista à medida que exige para si seus leitores e
como afirma Eco:
O texto postula a cooperação do leitor como
condição própria da sua actualização.
198
Podemos melhorar essa formulação, dizendo
que um texto é um produto cujo destino
interpretativo deve fazer parte do seu próprio
mecanismo generativo: gerar um texto
significa actuar segundo uma estratégia que
inclui as previsões dos movimentos do outro –
tal como que inclui as previsões dos
movimentos do outro – tal como acontece em
toda estratégia. (ECO, 1983, p.57)
Há sempre a estratégia que envolve então autor e leitor no
campo textual, e um precisa sempre tentar prever as ações do
outro. Tal afirmação vale para a narrativa de Murilo Rubião que ao
ser acionada delibera elementos e pistas para uma determinada
competência de leitura, fornece para o leitor escolhido indícios da
interpretação que requer pra si:
–
Moço, me dá um cigarro?
A voz - era sumida; quase um sussurro.
Permaneci na mesma posição em que me
encontrava, frente ao mar, absorvido com
ridículas lembranças.
O importuno pedinte insistia:
–
Moço, oh! moço! Moço, me dá um
cigarro?
Ainda com os olhos fixos na praia,
resmunguei:- Vá embora, moleque, senão
chamo a polícia.
–
Está bem, moço. Não se zangue. E, por
favor, saia da minha frente, que eu também
gosto de ver o mar.
Exasperou-me a insolência de quem assim me
199
tratava e virei-me, disposto a escorraçá-lo
com um pontapé. Fui desarmado, entretanto.
Diante de mim estava um coelhinho cinzento,
a me interpelar delicadamente:
– Você não dá é porque não tem, não é, moço?
(RUBIÃO, 2006, p.56).
Conforme já exposto anteriormente, não se trata de uma
fábula infantil ou mesmo de moral bíblica. Trata-se de um conto de
temática social para um determinado tipo de público,
preferencialmente adulto. Tais indícios podem ser verificados no
fragmento acima por meio de um olhar atento primeiramente para a
linguagem, o discurso aplicado na narrativa está remetido ao falar
coloquial diário. Falar adulto e travado em contextos sociais
cotidianos, não se respeita nesse sentido a regra da literatura
canônica que se diferencia pela erudição da linguagem, fazendo
alusão direta às literaturas da contemporaneidade. De antemão, o
texto tece uma proposta de leitura a quem já possui em sua
bagagem certo discernimento sobre leituras do contexto pósmoderno e à forma como estas leituras tendem a uma postura
negativa diante da outra, já consagrada e dada como ultrapassada.
No contemporâneo “a literatura é revelada como algo que deixou de
ser simples e transcendentemente ela mesma” (CONNOR, 1993,
p.107), exige mais de si mesma e de quem a absorve.
Nessa mesma linha de raciocínio, observando o mesmo
fragmento, há um outro ponto digno de nota, o momento em que o
200
narrador olha e percebe que não se trata de moleque, e sim de um
coelho cinzento que o interpela. Esse é o marco zero da narrativa,
ou mesmo um ponto zero, pois é a abertura a qual o texto se permite
para a grande viagem de proposta por Rubião e que o leitor
escolhido precisa aceitar. Trata-se do veio fantástico da história,
não é um moleque que fala e sim um coelho. Qual a melhor forma de
explicar tal situação ao tentar não fazer escolhas, se o próprio
fantástico já define e impõe uma escolha. Todorov afirma que:
O fantástico exige que três condições sejam
preenchidas. Primeiro, é preciso que o texto
obrigue o leitor a considerar o mundo das
personagens como um mundo de criaturas
vivas e a hesitar entre uma explicação natural
e uma explicação sobrenatural dos
acontecimentos evocados. A seguir, esta
hesitação pode ser igualmente experimentada
por uma personagem; desta forma o papel do
leitor é, por assim dizer, confiado a uma
personagem e ao mesmo tempo a hesitação
encontra-se representada, torna-se um dos
temas da obra; no caso de uma leitura
ingênua, o leitor real se identifica com a
personagem, enfim, é importante que o leitor
adote uma certa atitude para com o texto.
(TODOROV, 2005, p.38-39)
Assim, o que se percebe é que o texto de Murilo Rubião
oferece tais condições, e está densamente marcado pelo
mascaramento de algo que pretende mostrar ou simplesmente
201
esconder e usa como artifício um jogo lúdico de sedução com o
leitor. É válido afirmar nessa perspectiva que a narrativa exclui
alguns leitores em prol de outros, ou seja, o que reivindica para si é
aquele que tenha em seu dicionário interno um prévio
conhecimento das teorias do Fantástico, como também das que
alicerçam a contemporaneidade. Eco reitera que:
Para organizar a própria estratégia textual, um
autor deve referir-se a uma série de
competências (expressão mais vasta que
<<conhecimento dos códigos>>) que conferem
conteúdo às expressões que utiliza. Deve
assumir que o conjunto de competências a que
se refere é o mesmo do seu leitor. Por
conseguinte, deverá prever um Leitor-Modelo
capaz de cooperar na actualização textual
como ele, o autor, pensava, e de se mover
interpretativamente tal como ele se moveu
generativamente. (ECO, 1983, p. 58)
O texto está sempre buscando uma espécie de leitor
proposto e especifico, de acordo com as coordenadas do autor, um
leitor que passa então a ser chamado de Leitor-Modelo e que precisa
estar afinado com as intenções de quem escreveu, já que este se
esconde por trás das malhas textuais. E ainda é possível afirmar
que, “prever o próprio Leitor-Modelo não significa apenas
<<esperar>> que exista, significa também conduzir o texto de forma
a construí-lo. Um texto não se limita a apoiar-se sobre uma
competência, contribui para a produzir” (ECO, 1983, p.59), ou seja,
202
o autor prevê o possível Leitor-Modelo para si e através do texto,
busca e constrói esse indivíduo. Ele vai existir no e para o texto em
questão, é estrutural. Um texto estará sempre buscando e criando
seus possíveis leitores, não importando se, aberto ou fechado, em
ambos os casos ele “constrói o seu Leitor-Modelo escolhendo os
graus de dificuldade lingüística, a riqueza das referências, e ainda
mediante a inserção no texto de chaves, remissões, e
possibilidades, inclusive variáveis, de leituras cruzadas” (ECO,
1983, p.62).
No que se refere a narrativa de Murilo Rubião, a
linguagem, conforme já afirmado anteriormente, aparece como
fator determinante da escolha de seu público leitor, o texto o
interpela:
Barbosa tinha hábitos horríveis. Amiúde cuspia
no chão e raramente tomava banho, não
obstante a extrema vaidade que o impelia a
ficar horas e horas diante do espelho.
Utilizava-se do meu aparelho de barbear, de
minha escova de dentes e pouco serviu
comprar-lhe esses objetos, pois continuou a
usar os meus e os dele. Se me queixava do
abuso, desculpava-se, alegando distração.
(RUBIÃO, 2006, p.61)
Em Rubião fica latente que a narrativa possui vida própria,
traz em seu bojo uma estrutura completa na qual seus elementos
trabalham para a efetivação da leitura pretendida. O texto traça o
perfil de seu leitor e exige deste prévios conhecimentos para um
203
melhor entendimento das entrelinhas. Vale lembrar que para que
tais efeitos interpretativos sejam alcançados, esse leitor
pressuposto precisa aceitar o jogo e pistas dadas pelo Autor-Modelo
que se esconde por trás da narrativa, “mas nem sempre o AutorModelo é tão fácil de distinguir” (ECO, 1983, p.66), ele se esconde
do leitor e aparece enquanto estratégia textual. Aparece sempre
como uma voz aparentemente solta nas malhas textuais, não se
posiciona, simplesmente fala e conduz seu leitor à interpretação
pretendida e aceita pelo jogo proposto entre autor e leitor, ele
atravessa a narrativa: “Não mais falava: mugia, crocitava, zurrava,
guinchava, bramia, trissava” (RUBIÃO, 2006, p.64), o que
transforma a cooperação textual um tanto quanto imprevisível.
Assim, o conto de Murilo Rubião permite o entrelaçamento de
estratégias que estão dentro e fora do texto é que permitem uma
leitura interpretativa satisfatória. O texto é denso, e fecha de
forma a transformar um simples coelho cinza em um ser humano
ainda hibrido devido à forma que seu universo social o recebe, nada
resta agora ao narrador senão descrever os últimos momentos de
Teleco:
Por fim, já menos intranquilo, limitava as suas
transformações a pequenos animais, até que
se fixou na forma de um carneirinho, a balir
tristemente. Colhi-o nas mãos e senti que seu
corpo ardia em febre, transpirava.
Na última noite, apenas estremecia de leve e,
aos poucos, se aquietou. Cansado pela longa
204
vigília, cerrei os olhos e adormeci. Ao acordar,
percebi que uma coisa se transformara nos
meus braços. No meu colo estava uma criança
encardida, sem dentes. Morta. (RUBIÃO, 2006,
p. 65)
O conto tem seu desfecho em um final aterrador, fica a
reflexão de quem leu e também daquele que produziu tal texto. De
que forma o autor expressa seu universo através de sua literatura e
de que forma seu público a contempla e a interpreta. O texto
narrativo nunca deixa de ser um campo muitas vezes minado para
quem pretende por ele caminhar, pois vale lembrar que quando se
trata de um passeio pela literatura, o caminho nunca é totalmente
seguro.
Concluindo
A reflexão a que este artigo se propôs, tendo como objeto
de estudo, a narrativa fantástica de Murilo Rubião, foi promover
uma interpretação desta pela perspectiva teórica de Umberto Eco e
suas afirmações acerca dos elementos que formam um texto,
literário ou não. No caso do conto em questão, buscou-se configurar
aspectos relevantes que permitissem a inferência das teorias acerca
da presença do leitor e do autor como estratégias textuais. Tal
proposta buscou balizar a narrativa de Rubião à luz das perspectivas
da contemporaneidade evidenciando que para entender
determinadas narrativas ou mesmo seu processo criativo, é preciso
205
antes de tudo uma mobilização e seleção de determinado publico
leitor, já que a obra em si, possui vida própria como também
autonomia para delimitar seu campo de alcance. Autor e leitor são
trabalhados dentro do texto como elementos internos permitindo
que sempre a leitura literária possa fluir de forma que a
interpretação seja plena. Isso não isolando o fato de que o conto do
referido autor sempre atinge seus objetivos pela forma como usa a
temática humana de forma insólita evidenciando a solidão de estar
e viver no mundo contemporâneo. Leitor, autor, texto literário, uma
tríade indissociável que se presta a um objetivo maior, explorar o
imaginário pelas malhas tecidas de uma narrativa, uma viagem
deliciosa que sempre tende ao inesperado.
Referencias
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Girassol Vermelho e outros contos. São Paulo: Companhia das Letras,
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Mario Brito. Porto: Editora Presença, 1983.
206
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sessão livre. PPG-LET-UFRGS – Porto Alegre – Vol. 02 N. 02 – jul/dez 2006. In:
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RUBIÃO, Murilo. O Pirotécnico Zacarias e outros contos. São Paulo:
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207
Realidade, Kant e o Jornalismo Gonzo
1
Evandro BILIBIO
O tema da arte, em suas origens platônicas, relaciona-se
diretamente com a idéia do belo. A idéia de cosmos grego era o
orientador destas concepções. E arte, ao final, devido ao seu
caráter mimético, apenas vista como um ofício secundário. Pois, lhe
era relegada a tarefa de apenas imitar ou reproduzir do modo mais
verossímil possível uma perfeição, uma ordem, já preestabelecidas
na natureza. Por exemplo, poderíamos lembrar das esculturas
gregas que tentavam reproduzir ao máximo, em suas linhas,
impressões e feições humanas. Não qualquer feição ou expressão,
mas tão somente aquelas que poderiam inspirar, lembrar a perfeição
e a harmonia destas mesmas feições. Ali, a simetria matemática era
o paradigma da perfeição. Assim como o universo era simétrico,
harmonioso, perfeito em seus detalhes, onde cada elemento
ocupava e desempenha seu papel; ali, na reprodução das feições
humanas, e na arte grega valiam os mesmos paradigmas.
Obviamente que este modo de interpretação grega era puramente
metafísico.
Poderíamos lembrar, também, do teatro grego. O qual, com
Mestre em Filosofia, professor do Departamento de Filosofia - UNICENTRO
209
suas tragédias, procurou imitar de modo claro e realista as
vicissitudes, os caminhos e descaminhos, o absurdo e as maravilhas
da existência humana.
Na verdade, inclusive os mitos gregos
poderiam ser elencados como exemplos, também. Não somente a
isto estava restrita a arte grega, mas, também, em reproduzir feitos
heróicos de homens, deuses e semideuses. Ora, haveria algo de mais
belo, mais perfeito daquele que vence a escuridão, o dissimulado, o
obstáculo em direção ao restabelecimento da perfeição e harmonia
do cosmos?! Obviamente não. O herói grego é aquele que devolve a
harmonia ao mundo. Restabelece a ordem. Reafirma a perfeição e o
lugar humanos no cosmos, mostrando seu valor. Os heróis gregos
dizem, de certo modo: “sim, apesar de tudo, não somos meras peças
em um tabuleiro, reduzidos a vítimas ou a mais um elemento inerte
e sem sentido a perambular pelo mundo. Nós temos [entendemos o
homem] o nosso espaço, a nossa função. O nosso phatos tem uma
função.” Mas é claro, este phatos esgota-se em si mesmo. Ser
humano já basta ao grego, não a todos, é claro.
Ao longo da história do ocidente o que restou destas visões
gregas de mundo e cosmos, ao final, foi, de diversos modos,
distorcido pelos mais diversos interesses. Entretanto, de diversos
modos, Helenismo, Idade Antiga e Medieval foram apenas uma
extensão, distorcida ou não, daquele modo grego de conceber
mundo. A idéia geral sobre arte continua sendo aquela da arte
mimética. Obviamente que esta afirmação não visa diminuir todas
aquelas obras de valor histórico inestimável produzidas ao longo
210
deste período; o que seria absurdo. Pelo contrário, poderíamos nos
perguntar se este modo de conceber ou fazer-se arte não seria o
único e mais elevado de todos? Ou alguém poderia dizer que há algo
mais sublime, difícil, absurdo, tarefa mais ingrata do que tentar
reproduzir o humano e suas vicissitudes? Não seria o Phatos humano
uma das figuras mais difíceis de serem reproduzidas? Acreditamos
que sim, mas isto não é o foco neste momento. O que temos,
entretanto, é que a arte, enquanto arte mimética, estava
condenada a um plano inferior com relação ao mundo, a natureza e
ao homem. Essa interpretação metafísica perdura e perdurou de
diversos modos ao longo da história ocidental.
Mas, naqueles tempos remotos, o tema arte não era
compreendido como na atualidade. Aqueles estudos iniciais com
relação à arte não incluíam o que hoje chamamos e entendemos por
estética. Por outro lado, na atualidade, os termos arte e estética
estão tão ligados que o uso de um quase implica no do outro.
Contudo, nem sempre foi assim. Todavia, isto apenas começou a
ocorrer no séc. XVIII, na obra de Kant, Critica da Razão Pura e,
ainda, não estava vinculado ao que identificamos pelo termo arte.
Somente em 1790 Kant utilizou o termo estética relacionando-o a
idéia de beleza e do sublime, em sua terceira Critica. Depois disso, a
estética passou a ser, via de regra, considerada a ciência da arte e,
como tal, uma disciplina estritamente filosófica.
Contudo, aqui, faremos uma breve torção, por assim dizer, e
nos deteremos na idéia de estética enquanto tão somente aesthesis,
211
ou seja, percepção de mundo, muito mais geral da estética
enquanto experiência estética. Seguindo esta pista nos
perguntaríamos se o mundo percebido, sentido, visto,
experimentado, ao final, por nós, nos chega de algum modo
privilegiado? Ora, falar sobre o modo como percebemos mundo,
implica, ora falarmos nas condições que nos possibilitam esta
mesma percepção e, por outro lado, nisso que chamamos de
realidade.
Novamente, aqui, podemos lembrar os gregos. Todos
conhecem, via de regra, os problemas colocados pelo mito da
caverna platônico. Iremos nos concentrar apenas em um aspecto
que se desprende da narrativa platônica. De um lado temos aqueles
que estão presos no interior da caverna, incapazes de perceber o
mundo real, pois estão presos de tal forma a não poderem vê-la.
Mais do que isso, estão tão absorvidos pelas imagens que passam
diante de seus olhos, reflexos de uma realidade que não percebem,
para a qual estão virados de costas, e que nem julgam a
possibilidade destas mesmas imagens serem falsas e de existir,
portanto, uma outra realidade, esta sim, verdadeira. Chamaremos
de realidade 1, esta realidade percebida por aqueles que estão
presos e vivem achando perceber a realidade quando percebem, tão
somente, a realidade falsa. E, chamaremos de realidade 2, a
realidade verdadeira, que aqueles que estão acorrentados na
caverna nem supõem existir.
A tarefa do filósofo e de todo que tem amor pelo
212
conhecimento deve procurar pela realidade 2. Mas, para isso, deve,
antes, libertar-se da realidade 1, a qual, na verdade, é uma falsa
realidade. Deixando de lado muitas outras questões que se
desprendem do mito da caverna platônico gostaríamos de salientar
a idéia da existência (em sentido fraco) de duas realidades e, ao
final, de dois modos de percebermos o mundo. Um falso, daqueles
que estão entretidos pelas sombras e um verdadeiro, por aqueles
que se libertaram da falsa realidade e acederam ao mundo do
conhecimento, da sabedoria, ou seja, das idéias e das formas.
Essa idéia geral, digamos assim, se perpetuou de diversos
modos até nossos dias. As religiões e todo tipo de pensamento que
poderíamos chamar de místico ou religioso conservam e se
sustentam mantendo essa concepção. A qual, não seria uma
invenção platônica. Contudo, para a história do pensamento do
ocidente, os gregos, e suas teorias, representam o início de muitas,
senão todas, concepções que, no decorrer da historia do ocidente,
sofreram diversas mudanças. Mas, que no geral, conservaram o
modo de formulação grega do problema. Este modo dos gregos
conceberem o mundo refletiu-se, inclusive, na linguagem. A qual é
denunciada por Heidegger como tendo um grave problema,
considerado insuperável pelo filósofo, face a herança cultural e o
consequente débito do ocidente para com os gregos. O aspecto de
conceber a linguagem que se reflete na realidade é o caráter
hipostaziador que ela, a linguagem, possui e que, Heidegger
considerou insuperável. Isto significa que ao nomearmos o mundo a
213
nossa volta sempre incorreremos no erro de hispostaziá-lo.
Deixando, por ora, esta questão e, seguindo a idéia
platônica citada anteiormente e que se perpetuou ao longo da
história do ocidente de diferentes modos até nossos dias
gostaríamos de salientar esta idéia de que há, para além do que é
percebido uma outra realidade e que, esta sim, é a verdadeira,
legitima. Seguindo isto, somos levados a imaginar que o mundo tal
qual percebemos não é o mundo real, mas uma espécie de engodo,
uma espécie de ilusão. Da qual, seria necessário nos libertarmos. E,
o primeiro passo para tal seria, tal qual aquele acorrentado do mito
platônico, perceber ou aceitar a idéia de que o que vê, percebe, não
corresponde ao real. Assim, para aceder a realidade 2 é necessário
um esforço. Neste movimento é necessário apreender a ver com os
olhos da alma e não simplesmente com os do corpo. E, através deles
vislumbrar e poder discernir o conhecimento verdadeiro do falso.
Isso, parece-nos, durante muito tempo, para não dizer
sempre, estimulou os mais diversos devaneios com relação ao modo
como concebemos a realidade e até que ponto podemos a conhecer.
Num primeiro momento, o que temos é a idéia de que a simples
percepção da realidade não é suficiente para acedermos ao real, ou
seja,a verdade não é algo que se mostra de qualquer jeito e num
primeiro momento. Mas, quem poderia então, ou teria a capacidade
deste discernimento?
Obviamente, desde Platão, não são muitos que teriam esta
capacidade. Contudo, isto parte da convicção de que o que nos
214
percebemos não é o real. E que o verdadeiro conhecimento não se
atinge pela percepção. E, ao longo da historia muitos, para não
dizer todos, aceitaram como obvia esta noção de mundo. Ora, a
pergunta mais obvia, contudo, por vezes foi deixada de lado, qual
seja, o que é isso que chamamos e podemos chamar de realidade?
Aliás, isso, o real existe? É possível ver com os olhos da alma? E
discernir o verdadeiro do falso?
E é aqui, neste ponto, e sem entrar em detalhes sobre o
paradoxo inaugurado pelos gregos que gostaríamos de fazer mais
uma torção. O que está em jogo, ao final, entre outras coisas é a
possibilidade de fazermos um discurso objetivo sobre o mundo a
nossa volta. Ora, para tal, pelo que vimos e se aceitarmos como
dada a questão, o discurso objetivo sobre a realidade seria algo a ser
perseguido e, além disso, privilegio de poucos. Somente daqueles
que se libertaram do mundo das sombras e acederam ao mundo das
formas, da verdade.
Agora, isso é realmente possível? Há possibilidades de
construirmos um discurso objetivo sobre a realidade? E, aqui, vamos
deixar de lado o que seja verdadeiramente isso, a realidade, o que
tornaria a questão bem mais problemática. Mas, por qual motivo
esta seria ou é uma questão, digamos, interessante? Válida e ou
legítima? Além da filosofia, por exemplo, outra área em que está
presente esta questão seria o jornalismo. Obviamente que não do
mesmo modo como para a filosofia e nem com as mesmas
implicações. Ora, em que outra área, talvez, a idéia de um discurso
215
objetivo, seria tão perseguida? Um discurso que descrevesse a
realidade como se apresenta? Ora, em quase todas, poderia alguém
objetar e estaria certo. Contudo, nas outras há um resquício de
dúvida que é mantido por aquele que o produz quanto ao discurso
produzido que se pretende objetivo.
Todavia, isto parece não ocorrer com os jornalistas. E a
idéia de um discurso original, verdadeiro, fidedigno a realidade, é
um apelo recorrente na mídia em geral. E isso atingiu, já, tamanha
proporção que admitir o oposto seria como admitir o erro, o logro, o
dolo. Ninguém quer ou fará qualquer coisa que possa retirar a
credibilidade de seu discurso e, portanto, ninguém, principalmente
jornalistas fariam isso. Ainda mais por se colocarem como os
portavozes da realidade. Aqueles que esclarecem, explicitam,
tornam inteligíveis o mundo à aqueles que estão presos as sombras,
a uma realidade falsa, por assim dizer.
Partiremos e tentaremos sustentar que esta tarefa e
missão, por assim dizer, assumidos como óbvios, principalmente
pelos profissionais citados é uma quimera, um engodo, um dolo.
Pois, não há base filosófica para uma crença deste calibre. E,
acreditamos que nem científica. Contudo, aqui, apartir do que nos
diz Kant, já no século XVIII, não podemos aceitar que haja um modo
de discurso totalmente objetivo. Isto significa que não haveria um
modo puro de captar a realidade ou, ainda, ter uma experiência
disso que se chama realidade.
No prefácio da segunda edição da Critica da Razão Pura diz
216
Kant:
Com efeito, a própria experiência é uma forma
de conhecimento que exige concurso do
entendimento, cuja regra devo pressupor em
mim antes de me serem dados os objetos, por
consequência, a priori e essa regra é expressa
em conceitos a priori, pelos quais têm de se
regular necessariamente todos os objectos da
experiência e com os quais devem concordar
(KANT, 1997, p.20)
Ora, parece claro que a experiência, segundo Kant, já é uma
forma de conhecimento, ou seja, não é um puro dado que se
apresenta a percepção. Pelo contrário, enquanto tal, a experiência
somente é captada por ser, ela mesma, adaptar-se, enquadrar-se
em certas regras, ou categorias, que já são uma forma de
conhecimento, a priori, que tornam possíveis, por um lado, captar a
experiência enquanto tal e, por outro, entende-la. Desse modo,
fica claro que a experiência somente pode ser captada enquanto tal
e compreendida pelo concurso do entendimento ou, em outras
palavras, pela intervenção da razão.
Mas, é claro que isso não significa que a experiência esteja
em segundo plano, ou que seja algo dispensável na formulação do
que podemos identificar pelo nome de conhecimento. Mais adiante,
ainda na obra citada de Kant, ele diz:
Não resta dúvida de que todo o nosso
conhecimento começa pela experiência;
217
efetctivamente, que outra coisa poderia
despertar e pôr em acção a nossa capacidade
de conhecer senão os objectos que afectam os
sentidos e que, por um lado, Põe em
movimento a nossa faculdade intelectual e
levam-na a compará-las, ligá-las ou separálas, transformando assim a matéria bruta das
impressões sensíveis num conhecimento que
se denomina experiência? Assim, na ordem do
tempo, nenhum conhecimento precede em
nos a experiência e é com esta que todo o
conhecimento tem o seu início (KANT. 1997,
p.36)
Está clara a importância da experiência na formação do
conhecimento humano. E, além disso, a idéia de que a experiência
já é uma forma, em si mesma, de conhecimento. O qual transforma
a matéria bruta das impressões, como nos diz Kant, em experiência.
Desse modo, se hierarquizássemos o nosso contato com o mundo
sensível, poderíamos dizer que em primeiro lugar teríamos a as
impressões sensíveis, as quais ainda não seriam conhecimento.
Depois, em segundo lugar, a experiência mesma.
Contudo, a matéria bruta que nos chega via essa
experiência, ela mesma, somente é percebida via experiência.
Desse modo, o que chamamos de matéria bruta já é um dado, uma
forma de conhecimento constituinte da experiência. Assim, o que
chamamos de realidade ou, a possibilidade de construirmos uma
discurso sobre a realidade fidedigno, ou seja, de tal forma que
218
descreva aquilo que se dá a percepção de modo puro, como ele é,
não é nada mais nada menos do que um engodo.
Por outro lado, Kant, contudo, diz ao final da citação que é
na experiência que todo o conhecimento tem seu início, ou seja,
não há como haver conhecimento sem experiência. Mas, isso não
significa que todo o conhecimento derive somente da experiência.
Diz Kant, mais adiante, “se, porém, todo o conhecimento se inicia
com a experiência, isso não prova que todo ele derive da
experiência.” (1997, p.36). Pois, está claro para Kant que muitos
conhecimentos que temos da natureza e do mundo não podem ser
simplesmente ficar restritos a possibilidade da experiência. Embora
dependam e estejam, até certo limite, condicionados por ela. E,
tais conhecimentos, que não mais se restringem a experiência de
mundo, e que Kant chama de conhecimentos a priori constituem,
até mesmo, quer saibamos ou não, o senso comum.
Desse modo, e sem nos estendermos demasiadamente nas
questões kantianas, fica claro que falar em uma experiência pura do
mundo, da possibilidade de captarmos a realidade objetiva do que
está a nossa volta e, além disso, termos acesso a isso que chamamos
de realidade. Realidade identificada como uma forma na qual o
mundo se apresenta de forma objetiva e pura como ele é, sem
interferência de construções subjetivas ou preconceitos, não se
sustenta. O discurso que podemos e efetivamente construímos do
mundo a nossa volta é, em maior ou menor grau transpassado pela
subjetividade, ou seja, pelo entendimento, pela razão. O que
219
implica em já captarmos mundo a partir de determinados conceitos
e pressupostos, os quais, eles mesmos, por um lado, possibilitam e
constituem este mesmo entendimento.
Se aceitarmos a posição kantiana teremos que aceitar,
também, que não há a possibilidade de construirmos um discurso no
qual a realidade, o mundo, se apresenta de forma pura, como ele é
(seja lá o que significa isso). E, aqui, gostaríamos de lembrar de uma
figura, no mínimo polêmica, o jornalista norte-americano Hunter S.
Thompson, com a sua idéia do jornalismo feito sem qualquer
possibilidade de objetividade e que entrou para história através da
expressão jornalismo gonzo. Se Thompson tinha ou não
conhecimentos filosóficos ou científicos sobre o tema não se sabe,
mas, com certeza, Thompson, sabendo ou não tocou em um tema
que a muito é uma questão controversa, pelo menos, na filosofia. E,
além disso, a sua posição, também, é coerente com o que, depois de
Kant, tornou-se mais claro do nunca. Qual seja, a interferência e o
papel da subjetividade na formação da nossa concepção da
realidade.
A expressão jornalismo gonzo, contudo, não foi, na
verdade, criada ou utilizada por Hunter S. Thompson para
identificar o seu estilo de narrativa ou sua posição com relação a
impossibilidade de um discurso objetivo. A expressão, ao que tudo
indica, foi utilizada pela primeira vez pelo repórter do Boston
Sunday Globe, Bill Cardoso, com o intuito de comentar um artigo do
mesmo Thompson; fazendo com que a expressão fosse associada a
220
posição de Thompson e o seu estilo de narrativa.
Mas, o que seria especificamente o termo gonzo? Ainda
seguindo o reporter do Boston Sunday, o termo seria uma gíria
irlandesa do sul de Boston usada para fazer referência e identificar
aquele que após uma bebedeira, comparada a uma maratona,
conseguiria ficar de pé, ou seja, gonzo designa o último homem de
pé após uma maratona de bebedeira.
Vamos, agora, relatar de modo breve e sem muitas
pretensões como surgiu o que foi chamado posteriormente de estilo
Gonzo com a intenção de tornar a questão mais clara.
É bem
conhecido, em sua área, pelo menos, a tarefa que o jornalisa norte
americano foi incubido de cobrir, uma corrida de motos, a Mind 400,
encomendada pela revista Roling Stone, e realizada no deserto, em
Las Vegas. Esta tarefa acabou, até mesmo,virando filme e sendo
considerado por alguns um exemplo paradigmatico do estilo de
narrativa gonzo.
O motivo é que nesta narrativa, Thompson, narra as suas
impressões sobre o evento. Na verdade, um evento que ele mal
chegou a cobrir. A sua narrativa sobre o mesmo, a corrida em si, se é
que podemos falar assim, é mais um acontecimento entre as
diversas situações que ele relata, como a viagem até o local, os
hoteis por onde passou, as pessoas com quem entrou em contato e,
é claro, a sua convivência como seu companheiro de reportagem.
Entretanto, isso é feito de tal maneira que o que temos, ao
final, é a impressão de um relato que mais parece uma amálgama de
221
impressões sem sentido, na qual, o evento que deveria ser o escopo
da viagem, é mais um elemento perdido entre.
Esta sua
experiência, digamos assim, acabou por transformar-se em um
livro, Medo e Delírio em Las vegas: uma jornada selvagem ao
Coração do Sonho Americano.
Thompson usa a expressão em sua narrativa como o
resultado de uma matéria que deveria ser feita sem uma pauta, uma
orientação, sem critérios claros a serem seguidos. O que ele
também compara, sarcasticamente, ao Sonho Americano.
Lemos no livro de Thompson citado anteriormente:
Mas qual era a pauta, exatamente? Ninguém se
dignou a dizer. Teriamos que descobrir
sozinhos. Livre iniciativa. O sonho americano.
Horatio Alger destruido pelas drogra em Las
Vegas. Fazer tudo na hora: puro jornalismo
gonzo. (THOMPSON, 2007, p.18)
O livro citado acima, está longe de poder ser considerado
um ícone do jornalismo. Muito menos um exemplo de relato
jornalistico tal qual entendemos que o mesmo deva ser. Esta mais
para um romance literário do que para uma crônica. Este livro, seria
o registro de Thompson de sua aventura para cobrir a corrida no
deserto. Experiência regeada de drogas, bebedeiras, fugas de
hoteis e restaurantes sem o pagamento das contas, entre outros.
Um relato cínico, do início ao fim, feito de tal forma a redicularizar,
debochar e escrachar com todos os padrões e valores que poderiam,
222
em certa medida, serem considerados importantes em uma
sociedade. Tais como, responsabilidade, descência, pudor,
respeito, cometimento, honestidade e muitos outros.
Isso coloca o leitor do livro citado a frente a narrativas que
são muitas vezes hilárias, absurdas, impensáveis e, para nao dizer,
algumas vezes, até mesmo grotescas. Tudo isso sempre regeado por
um uso desmedido dos mais diferentes tipos de drogas, sem
qualquer critério ou pudor. Além disso, vemo-nos, por diversas
vezes, frente a certas passagens e análises que arriscariamos dizer
quase que antológicas do relato de
Thompson. Sem falar nos
palavrões, xingamentos, e nos surtos mais sem sentido possíveis
provocados pelos alucinógenos.
Grande parte da sua experiencia, também é digno de nota,
se passa dentro de um ícone da indústria automobilistica americana
e um representante legítimo do sonho americano, um enorme
cadilac Chevrolet, vermelho e conversível, ao qual chamam de o
grande tubarão vermelho. Cujo portamalas do carro, diz, em certa
altura de sua narrativa, mais parecer um laboratório móvel do
departamento da narcóticos, tamanha era a variedade e quantidade
de drogas.
Estas cenas, contudo, dividem, em alguns momentos,
espaço com análises muito perpicazes. Como a que faz dos anos 60 e
da era Nixon nos Estados Unidos, à página 188 de seu relato já
citado, Thompson, em um surto de consciência diz reconhecer que a
perda e o fracasso daqueles idos anos 60 sao as perdas e fracassos
223
“...também nosso”. A época da cultura do ácido, como diz Hunter,
citada conjuntamente com a era Nixon, estava apoiada em uma
falácia mistica, qual seja: “o pressuposto desesperado de que
alguém – ou pelo menos alguma força – está cultivando a Luz no fim
do túnel.” (p.189). Ilusão que passou, segundo ele, desapercebida.
Em resumo, ao final da narrativa os protagonistas estão, eles
mesmos, exaustos e exauridos de suas forças.
Contudo, o final da narrativa nao é menos inigmática,
debochada e sarcástica. Novamente, Hunter cita Horatio Alger,
famoso romancista do século XIX citado como aquele que de certo
modo melhor encarna o mito do Sonho Americano. Nos romances de
Alger, encontram-se, via de regra, pessoas pobres que vivem na
periferia de Nova York e que com obstinação alcançam o sucesso e a
riqueza. Diz Hunter, na última frase de seu livro: “Eu me sinto uma
reencarnaçao monstruosa de Horatio Alger....um Homem em
Movimento, doente o bastante para se sentir totalmente seguro de
si.” (p.214)
De modo, digamos, questionável, tentamos expor alguns
exemplos de narrativas presentes no livro do repórter norte
americano com o intuito de dar, mais ou menos, um panorama sobre
o mesmo. Deixaremos de lado, agora, isso e tentaremos integrar o
que foi dito com a questão filosófica. Julgamos que o estilo gonzo
imortalizado neste livro de Thompson não pode ser lido Ipsis literis.
Mas, como um exemplo de que qualquer pretensão de construirmos
um discurso objetivo, isento de pré conceitos; um discurso que
224
mostre a realidade, os fatos, o mundo, tal qual ele se apresenta ou é
captado por nós, não passa de uma ilusão.
A todo momento, no relato de Thompson, o personagem que
fala, que seria o próprio Thompson, não tem noção se o que diz
realmente aconteceu ou foi o resultado do uso das drogas. E fica
confuso com isso. As alucinações provocadas pelos uso literalmente
descontrolado dos mais variados tipos de alucinógenos, poderia ser
lido como um modo de dizer que não há uma linha demarcartória
clara com relação ao que percebemos e ao que pensamos a respeito
do que foi experimentado.
O personagem de Thompson, ou o próprio, levando em
consideração que o livro é uma narrativa veridica de sua
experiência, não sabe, em diversas ocasiões, se o que está vendo,
pensando, corresponde ao real, à realidade como tal. A ficção, se é
que podemos falar assim neste caso, se mistura com a realidade. Já
na primeira página da edição brasileira de Medo e Delírio, de 2007, o
episódio dos morcegos já deixa claro a perda desta linha
demarcatória entre realidade e percepção. Bem como um sem
número de passagens. A obra de Thompson, mais do que um tratado
sério ou um ensaio (o que nem com muita boa vontade podemos
dizer que seja), poderia ser concebido como um exemplo da
impossibilidade de um discurso objetivo. Um exemplo, talvez, bem
questionável, mas, com certeza, um exemplo.
Ao final, o que foi tentado aqui ser feito? Mostrar que o
discurso que pretende ser construido alegando ser fidedigno a
225
realidade, tal qual ela se apresenta, como se aquele que
pronunciasse este mesmo discurso desfrutasse de um lugar
privilegiado, apartir do qual pudesse vislumbrar o mundo real, é
falso. Pois, como vimos em Kant, não há experiencia pura do mundo
e que, a experiencia mesma, já é um tipo de conhecimento. E
Thompson, com seu estilo de narrativa jornalística, que rejeita a
possibilidade de um discurso objetivo da realidade, sabendo ou não,
foi de encontro a uma das grandes questões para a filosofia. E tendo,
segundo nosso entendimento,tomado o partido certo, quando
recusou a possibilidade de um discurso objetivo.
Isso implica, caso aceitemos a posição de Kant com relação
a questão, que não existem e nunca existirão narrativas
privilegiadas e nem alguém que as possa construir. Por ora,
gostaríamos de finalizar dizendo que outros autores filosóficos
poderiam ter sido abordados, mas, aqui, optou-se tão somente por
Kant face a sua importância na história da filosofia e por julgarmos
que o modo como Kant apresentou a questão e a formulou não foi
superada, tanto em clareza quanto em solução. Mas, é claro, a
questão nao foi esgotada pela abordagem kantiana.
Referências
CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia: dos pré-socráticos a
Aristóteles. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
KANT, Immanuel. A Crítica da Razão Pura. 4.ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1997.
226
THOMPSON, Hunter S. Medo e Delirio em Las Vegas: uma jornada
selvagem ao coraçao do Sonho Americano. Sao Paulo: Conrad Editora do
Brasil, 2007.
227
Casamento à Vista: as crescentes relações entre arte e mídia
Márcio FERNANDES
1
Mentes que não possuem nada de original
voltam-se com arrogância contra todo
talento que não lhes seja agradável ao
primeiro olhar .
W B Yeats
Tal qual conhecemos, o mundo multimidiático que agora
temos é a cristalização de processos havidos nos últimos 30 anos,
quando se iniciaram revoluções sob o prisma das tecnologias, afetas
2
à criação de máquinas, e das narrativas, que transformaram a
maneira do Ser Humano de produzir, difundir e consumir conteúdos,
qualquer que seja a área do conhecimento. Quando, na metade dos
anos 70, o pensador, cientista e professor americano Nicholas
NEGROPONTE deu vida ao termo 'multimídia', a sociedade
contemporânea estava adentrando em uma época desconhecida,
em um misterioso universo, na melhor semelhança ao Homem
Vesuviano (figura 1), como séculos antes imaginara o gênio
renascentista Leonardo DA VINCI.
1. Jornalista com 14 anos de carreira e professor concursado do Departamento de Comunicação Social da
Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro). Líder do grupo de pesquisa 'Processos Midiáticos Eletrônicos
e Impressos'. Mestre em Comunicação e Linguagens e professor de disciplinas como Arte e Estética em
Comunicação. E-mail: [email protected].
229
Figura. 01.
Pois nestes 30 anos, duas formas de expressão humana
passaram a tirar proveito do mundo multimeios que se formou,
mesclando-se cada vez mais intensamente desde então: a Arte e a
Mídia. Ambas souberam incorporar com talento as possibilidades
ofertadas pela Convergência dos Meios, termo que designa, a partir
da visão de autores como Wilson DIZARD JR, uma nova técnica que
permite que um conteúdo seja tornado público em diferentes
plataformas ao mesmo tempo, possibilitando ao público-alvo a
assimilação de distintos modos em distintos momentos.
Assim, está cada vez mais difícil dissociar Arte da Mídia, por
exemplo, e se torna uma operação complexa descobrir se uma capa
de uma revista semanal de informação geral obedece aos
fundamentos do Design de Imprensa (similaridade, contraste, etc)
ou se uma videoarte é exatamente isso ou um vídeo publicitário
puramente. O mesmo vale para as criações do artista multimídia Bill
Viola (nascido nos Estados Unidos, em 1951), cuja obra,
originalíssima aliás, é extremamente difícil de ser classificada.
Neste cenário, o presente artigo discorre sobre as
crescentes relações entre estas duas formas da expressão humana,
230
provocando, em última instância, o fim das fronteiras entre elas,
tendo por base dois textos de distintas épocas – Convenção e
inovação (de 1976), constante do livro Estética doméstica, escrito
por Clement GREENBERG, e Modernidade, hiperestímulo e o início
do sensacionalismo popular, de Ben SINGER, incluído no livro O
Cinema e a invenção da vida moderna (2001), organizado por Leo
CHARNEY e Vanessa SCHWARZ.
Enquanto GREENBERG aborda a arte formalizada (aquela
dita clássica, aceita pelo bom senso ocidental, consumida em
galerias e museus de prestígio) e as rupturas para com a mesma,
SINGER versa quanto aos aspectos socioeconômicos da
Modernidade. Em particular, SINGER aponta como uma das
consequências da Modernidade a explosão 'de uma cultura de
consumo de massa' (p. 115), que levou o Ser Humano, em larga
escala, a passar a consumir produtos (como automóveis) e serviços
(restaurantes), além de investir mais tempo e recursos financeiros
no lazer (caso do Cinema e Artes Plásticas).
Ademais, este estudo entrega a seu interlocutor
apontamentos sobre experiências artístico-midiáticas havidas nos
últimos anos, no Brasil e no exterior, como indicativos bastantes
interessantes acerca deste ora noivado entre as partes, mas de
casamento à vista.
Da Convenção e Inovação
O tempo presente é recheado por quebras de parâmetros,
231
algo que, na Arte, é perceptível. Outrora, os instrumentos
essenciais de um artista não iam muito além de tinta, tela, pincel,
bronze, ferro e similares. O sujeito que, em 2004, visitou a
exposição hiPer – Relações Eletro//digitais, em Porto Alegre,
deparou-se com videoinstalações, ciberliteratura, arte telemática,
nanoarte, projeções em realidade aumentada, robótica, etc –
inovações tecnológicas e de narrativas, portanto. O designer
Ricardo Ribemboim, ilustra-se, depositou uma escultura em
madeira no fundo da Lagoa da
Conceição, em Florianópolis, e lá
instalou uma câmera de vídeo
para
acompanhar
as
transformações daquilo que se
chamou
'vídeo-objeto'.
O
resultado (figura 2) é aberto a
Figura. 02
todo tipo de interpretações.
De seu turno, o estilista e artista plástico Carlos Miele levou
para a mostra seu vestido de fibra ótica, uma criação feita no ano de
2000. E estes são apenas dois dos casos atípicos para uma galeria de
arte, tendo provocado controvérsias de toda sorte entre os
visitantes de hiPer. Estavam, portanto, Ribemboim e Miele
quebrando, com suas criações, convenções artísticas, convenções
essas que, na ótica de GREENBERG, impõem resistências, obstáculos
e restrições ao fluxo comunicacional (p. 95).
Oliver GRAU é outro pensador que indica as revoluções
232
artísticas e midiáticas em curso. Em texto para o livro Imagem
(ir)realidade: comunicação e cibermídia, o autor sustenta que
Hoje, artistas da mídia estão moldando áreas
extremamente diferenciadas, como arte
telepresencial, arte biocinética, robótica,
arte na internet e arte espacial;
experimentando com nanotecnologia, vida
artificial ou 'A-life art'; criando agentes e
avatares virtuais, além de arte envolvendo
coleta de dados (datamining), realidades
mistas e bases de dados. (GRAU, 2006, p.260).
Ao analisar a obra do pintor e escultor francês Marcel
Duchamp e suas obras no começo do século 20, GREENBERG (p. 106)
classifica que, com peças como Roda de bicicleta e Suporte para
garrafas (as duas de 1913), Duchamp operava com 'uma experiência
estética descompromissada, em estado bruto', ainda que
'institucionalmente viável (passível de ser exposta em galerias e
museus, discutida pela Imprensa e por pessoas interessadas em
Arte). Ora, o caminho trilhado por Ribemboim e Miele (e Patrícia
Piccinini, de Serra Leoa, com seu enigmático DVD em áudio surround
chamado Plasmid Region, dentre outros tantos que poderiam ser
citados) é deveras similar ao que Duchamp fizera quase 100 anos
antes. Escreveu GREENBERG:
(Com Duchamp) Era possível criar, agir, moverse, gesticular, conversar numa espécie de
vácuo – sendo o vácuo propriamente dito mais
233
“interessante” ou, ao menos, mais valorizado
do que qualquer coisa que acontecesse nele. O
ponto principal da associação com a arte era
ficar intrigado, confuso, receber algo sobre o
que falar, e assim por diante (1976, p.106).
Note-se que artistas contemporâneos como os três citados
acima, bem como Helga Stein (artista plástica brasileira
especialista em Design de Hipermídia) ou Lula Vanderlei (para
quem, como apontado no documentário Tudo É Brasil/2004,
subverter o olhar é fundamental) lidam essencialmente com esse
'conversar numa espécie de vácuo', na medida em que criam peças
pouco convencionais ao gosto atual e se servem sobremaneira de
recursos largamente utilizados pelos meios de comunicação.
Em 2004, recorda-se, Helga Stein criou uma obra, Argos,
para um evento multimídia, o Nokia Trends Festival. À época, Argos
(figura 3) consistia em um aparato similar a um par de óculos que
mesclava aparelhos de telefonia celular com câmeras fotográficas
digitais, almejando construir um retrato coletivo e mutante de
bocas e olhos. E, como bem se sabe, não é de hoje que telefones e
máquinas fotográficas são instrumentos fundamentais para o fazer
comunicacional.
Figura. 03
234
Figura. 04
Paralelamente, Lula Vanderlei também se serviu da Mídia
para criar o vídeo Arte é um futebol sem bola (figura 4), no qual
exibia sequência de imagens consagradas pelos meios de
comunicação, como lances dos ex-jogadores Garrincha e Maradona
driblando e fazendo gols seus adversários, mas sem que bola
pudesse ser vista na tela, provocando o que ele chamou de 'consolo
catártico', tido neste caso como uma atitude subversiva à lógica do
jogo, deixando aflorar o que Lauro CAVALCANTI, no livro Tudo é
Brasil (2005, p. 39), chama de 'balé subjacente' do futebol.
Da Modernidade
Enquanto que Clement GREENBERG era um influente crítico
de arte do século 20, Ben SiINGER é um expert contemporâneo em
estudos cinematográficos que, no artigo mencionado
anteriormente, enfoca a Modernidade sob três lados: enquanto
conceito moral e político, no qual o mundo pós-sagrado e pós-feudal
que temos apresenta normas e valores (sempre) sujeitos a
235
questionamentos (p. 115); enquanto conceito cognitivo, já que a
Modernidade 'aponta para o surgimento da racionalidade
instrumental como a moldura intelectual por meio da qual o mundo
é percebido e construído (idem); e pelo aspecto socioeconômico
(ibidem), trazendo à tona questões relativas às novas tecnologias e
meios de transporte, saturação do capitalismo avançado e, o
principal para a presente discussão, o surgimento e aceleração da
cultura de massa. Este terceiro ponto da Modernidade serve de
lastro para o que vem a seguir no presente paper.
SINGER
(p. 116) recorda que, ainda em 1903, Georg
SIMMEL, no escrito The Metropolis and the mental life, sugeria que a
Modernidade estava promovendo uma 'intensificação da
estimulação nervosa'. Dito de outro modo, a experiência subjetiva
estava ganhando forças rapidamente nos grandes aglomerados
urbanos que se formavam mundo afora. Eram os tempos da
'imprevisibilidade de impressões impetuosas', nas palavras de
SIMMEL, um sociólogo alemão nascido no século 19. Tal
imprevisibilidade era, em boa medida, sustentada pelo que a Mídia
trazia cotidianamente a seu público.
Subitamente, continua SINGER, os jornais começaram a se
interessar pelos acidentes ocorridos nas alturas dos grandes
edifícios; pelas mortes de pedestres; pelas competições de carros,
não raro havendo atropelamentos; pelos efeitos do grande número
de pessoas vivendo nos bairros; e pelas mutilações nas fábricas,
dentre outros pontos. Para além disso, o comércio urbano crescia
236
vertiginosamente, bem como o consumo de produtos de
entretenimento, o Cinema entre eles. Era, então, o começo da
Cultura de Massa, a explosiva Cultura de Massa citada por SINGER (p.
115).
Como já visto, por aqueles tempos a Arte Clássica estava
sendo solapada pelos novos criadores, como Duchamp, mentor do
conceito 'ready made', que trazia para o universo da Arte objetos
que, em um primeiro julgamento, não eram vistos como artísticos –
vide as célebres peças Roda de bicicleta e A fonte (um antigo urinol
branco, esmaltado). Não demoraria muito e surgiriam Pablo Picasso
e Salvador Dalí, dois criadores extremamente surpreendentes. Na
esteira deles, o número de artistas buscando apresentar algo novo à
sociedade em termos de produção diferenciada era considerável.
Pois essa Modernidade atravessou o século 20 e bateu ao
tempo presente conservando algumas de suas características
primordiais. No caso da Arte, é possível se utilizar o termo
'acentuando' no lugar de 'conservando'. O sensacionalismo dos
acontecimentos é uma dessas características, servindo-se a Arte
justamente de plataformas midiáticas para atingir suas metas.
Em hiPer, Patricia Piccinini era um dos casos, com suas
misteriosas imagens e (para muitos) repulsantes cenas em Plasmid
Region. O mesmo pode se dizer de Ribemboim e dos criadores
multimídia Luiz Duva e Wilson Sukorski, que levaram para hiPer a
peça Vermelho Sangue, um espetáculo multimeios (com dança,
videoarte, música e performance) que tingia de tonalidades fortes
237
um cenário que, a priori, era bucólico.
A mesma Helga Stein aponta na direção na referida
imprevisibilidade e na intensa estimulação nervosa de seu
interlocutor. A narcísica galeria disponível na Web denominada
Andros Herz é um exemplo disso. Ali, Helga revira seu próprio rosto,
através de softwares de tratamento de imagens, provocando
metamorfoses que ora encantam ora escandalizam o interlocutor
comum, aquele mais apegado à Arte Clássica.
Em 1932, diz SINGER, o filósofo espanhol José ORTEGA Y
GASSET escreveu algo que ainda tem notável valor:
O ritmo da vida moderna, a velocidade com a
qual as coisas se movem hoje, a força e energia
com que tudo é feito angustiam o homem de
compleição arcaica, e essa angústia é a
medida do desequilíbrio entre suas pulsações e
as pulsações de seu tempo (p.142).
A diferença entre 1932 e o agora é que o Ser Humano,
distintamente de quase 80 anos atrás, está mais adaptado ao tal
'ritmo da vida moderna', o que permite o surgimento de criadores
como Vik Muniz, louvado pela Imprensa brasileira e internacional
por suas peças cujas matérias-primas vão do açúcar à pasta de
amendoim, passando pela fumaça de aviões publicitários, máquinas
que, como o próprio nome indica, são instrumentos amplamente
utilizados para propaganda aérea.
238
Dos apontamentos (nada) finais
A busca constante pelo conhecimento é, claro, anterior ao
surgimento dos grandes aparelhos midiáticos (jornais, TVs, Cinema,
Rádio, câmeras fotográficas, etc). Mais recentemente, tem sido
concomitante ao surgimento e desenvolvimento desses
instrumentos de mediação. Por volta de 1740, quando o meio Jornal
possuía razoável estrutura e prestígio na Europa, franceses ainda se
informavam das novidades além-fronteiras de Paris através da
Árvore da Cracóvia, uma castanheira descomunal disponível no
Palais-Royal, na capital francesa, como descreve Robert DARNTON:
Como um poderoso imã, a árvore atraía
nouvellistes de bouche, ou boateiros, que
espalhavam de boca em boca informações
sobre os eventos correntes. (…) Diplomatas
estrangeiros supostamente enviavam agentes
para colher notícias, ou plantá-las, junto à
Árvore da Cracóvia (2005, p.39).
É justamente essa natureza curiosa do Ser Humano que tem
alimentado a Arte Contemporânea, com suas características
eletro//digitais, como descrito em hiPer. Como já parece ser
definitiva a instalação dessa sociedade mediada e midiatizada no
seio da Terra, a Arte tem intentado se aproveitar dos recursos
comunicacionais para formar/angariar/fidelizar seu público/sua
clientela comercial. Juntas, Arte e Mídia têm ofertado quantidades
de conteúdos jamais vistas, com facilidades de acesso/consumo
quase inacreditáveis ao olhar comum.
239
Claro que, se tal oferta é de qualidade ou não, isso cabe ao
interlocutor de cada obra artístico-midiática decidir. Há muito é
assim – DARNTON (idem, p. 41) lembra que grupos sociais de
distintas épocas sempre criaram meios peculiares de formas de
estruturar, disseminar e fazer consumir conteúdos - , com a
diferença de que agora, em vez da contemplação apenas mental,
pode-se apertar um botão do mouse e enviar sua opinião para o
criador da obra, já que o mesmo costuma disponibilizar um blog, um
twitter ou um orkut como decorrência do noivado referido nos
primórdios deste texto.
Referências
CAVALCANTI, Lauro (org). Tudo é Brasil. São Paulo/Rio de Janeiro: Itaú
Cultural / Paço Imperial, 2005.
DARNTON, Robert. Os dentes falsos de George Washington – um guia não
convencional para entender o século XVII. São Paulo: Companhia das Letras,
2005.
DIZAR JR, Wilson. A nova Mídia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
GRAU, Oliver. Integrando a arte-mídia em nossa cultura: história da arte
como ciência da imagem. IN: ARAÚJO, Denize Correa (org). Imagem
(ir)realidade: comunicação e cibermídia. Porto Alegre: Sulina, 2006, p.
260-270.
GREENBERG, Clement. Estética doméstica. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
240
SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo
popular. IN: CHARNEY, Leo; SCHWARZ, Vanessa (orgs.). O Cinema e a
invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p. 115-148.
241
PARTE IV
Teoria da Arte, Público e Universo Pessoal
Arte para todos: a humanização e o desafio
do acesso livre à produção artística
Maria Inês Hamann PEIXOTO
1
A habilidade de captar os traços essenciais do
seu tempo e desvendar novas realidades pode
ser considerada a medida de grandeza do
artista e de sua obra.
Ernest Fischer
Como facilmente se constata, nas sociedades regidas pelo
sistema capitalista (e a elas este texto vai se restringir), a área das
artes, assim como a da cultura em geral, não constituem prioridade
dos governos, com relação à promoção do acesso livre – e fácil! –
para a maioria da população, assim como em relação à intensidade
2
da presença da arte, na educação formal. No Brasil, a iniciativa
privada, com honrosas e raras exceções, reluta até mesmo em
aplicar parte do imposto de renda em projetos artísticos e culturais.
A par dessa realidade, entretanto, o comércio de arte
floresce. A idéia não é nova. O mercantilismo das artes começou na
1. Doutora em Educação (UNICAMP), Professora da UFPR (Aposentada), Artista plástica e performer.
2. Segundo informações verbais de funcionário ligado à área de artes da SEED/Paraná, nosso Estado é uma
exceção positiva, entre os demais, no que diz respeito ao ensino da arte. Está sendo implantada uma nova
estruturação no quadro das disciplinas do Ensino Médio: sem alterar a carga horária, o conjunto das disciplinas é
dividido em dois blocos, que são ministrados um em cada semestre. Isso permitiu que as aulas de arte passassem
a quatro por semana, como também de serem efetivadas em todos os anos desse nível do ensino. Sem dúvida, um
ganho para a área, que vem associado à melhoria da formação dos professores, por diversos programas de
aprimoramento criados pelo governo do Estado. Quanto ao ensino de 5ª à 8ª, a legislação abre a possibilidade de
duas a quatro horas semanais, para a disciplina de arte, em todos os anos: um bom número de estabelecimentos
definiu-se por três.
245
época do Renascimento, com o desenvolvimento do grande
comércio para além-mar e com a fundação das colônias, o que
coincide com início da acumulação do capital, fatos que ensejaram
“a apropriação colonialista de objetos desconhecidos para a cultura
3
européia e gerou um acúmulo desses objetos nas metrópoles”.
Compondo esse contexto, havia o acúmulo de grande riqueza
resultante do desenvolvimento mercantil, o que favoreceu a criação
de um mercado para tais objetos exóticos, reputados como arte.
Simultaneamente, surgiu a necessidade de se construírem
espaços para guardá-los, expô-los ou vendê-los. Criaram-se, então,
os museus e as galerias que, junto com as grandes coleções
particulares formadas em cidades como Florença e Veneza,
demarcaram para a obra de arte um território próprio, distinto e
distanciado do público em geral. (CANCLINI, 1984, p.97-98).
Nos primórdios da era moderna, esse é o quadro que
demarca o processo do mercantilismo da arte e, paralelamente, o
de sua elitização. Não obstante o florescimento cultural e artístico,
o Renascimento não garantiu uma ampliação do público para além
das camadas aristocrática e burguesa: “as massas populares sequer
tomavam conhecimento da existência de tais obras.” A Renascença
configurou um movimento restrito “a uma elite intelectual e
latinizada” que “consistia principalmente naquelas classes da
sociedade que estavam associadas ao movimento humanista e
neoplatônico” para as quais as obras de arte importantes eram
3. “Esses objetos, quando retirados do ambiente de origem, perdem sua função, seu 'valor de uso', próprio da
cultura da qual são originários. Caracterizados como simples 'mercadorias', objetos de diferentes culturas têm
mascarado o seu sentido de origem e passam a ser um mero 'valor de troca', uma mercadoria sujeita às 'leis de
mercado'” (PEIXOTO, 2001, p. 73-74).
246
destinadas (HAUSER, 1995, p.320-322). No século XVIII, com a
4
consolidação da sociedade de classes, o distanciamento entre arte e
público foi se aprofundando, de modo crucial e aparentemente
irreversível, dentro dos padrões estabelecidos por essa nova ordem
social (PEIXOTO, 2001, p.75).
Neste texto, aborda-se a problemática do mercantilismo e
da elitização da arte, em dois momentos: no primeiro, será
levantada a situação da arte e sua comercialização tal como se
apresentam na contemporaneidade. No segundo momento será
tratada a concepção materialista dialética de arte e suas
implicações para a produção artística, assim como para as relações
entre arte e grande público, tendo em vista o processo histórico de
humanização que a todos deve ser facultado, para o qual a
sensibilização, promovida nos indivíduos pelo acesso às diversas
formas de arte, é um determinante essencial.
Parte 1
Mercantilismo e elitização da arte, na contemporaneidade
Contemporaneamente, os processos de mercantilagem e
elitização da arte se exacerbaram. No plano internacional – e, sem
dúvida, com ramificações no Brasil –, a arte já se instituiu com “o
grande negócio”, em detrimento do artista que a produz. Ou seja, o
capitalismo já submeteu as artes à condição de mercadoria, sob as
leis de um modo de produção em escala. Como afirma Arantes, “O
4. Essa nova sociedade cindiu-se em duas classes fundamentais: a dos capitalistas – proprietários dos meios de
produção, e a dos proletários, que, para proverem sua subsistência, passam a vender a única mercadoria que lhes
restou – a força de trabalho –, num mercado regido por leis próprias, estabelecidas à revelia do indivíduo produtor
(PEIXOTO, 2001, p. 75, rod. 4).
247
poder público e as elites dominantes tanto gerem o Estado quanto
administram a sociedade em termos puramente mercadológicos,
quer dizer, fornecendo todo tipo de garantias aos ambientes de
negócios considerados estratégicos” (ARANTES, 2005, p.1).
Na contemporaneidade, apesar de considerada
“estratégica” em termos de veiculação de novas ideias e de
resistência política a regimes ditatoriais, a arte, no “varejo”,
quando comparada à produção em escala, ainda é considerada uma
área menor, dado o volume mediano de negócios dos marchands e
das pequenas galerias. Mas, “no atacado”, a arte, no conjunto da
cultura, há tempos se tornou a “mercadoria vedete”, no dizer
profético de Guy Debord (1997, p.126), já na década de 1960, na
obra intitulada A sociedade do espetáculo, pois “a cultura passa a
ser adotada pelo novo poder soberano no mundo como a última
trincheira civilizatória do capital” (ARANTES, 2005, p.1).
Veja-se, como exemplo, o caso da Sotheby's, que opera em
quarenta países com os principais centros de venda de artes (ou
salesroom, como preferem os ingleses), inclusive em Nova York,
Londres, Hong Kong e Paris. A partir da área de leilões de arte,
estendeu seu raio de ação criando cinco áreas de atuação: 1. O
Sotheby's Institute of Arts, em Londres, onde são ofertados os
cursos: Contemporary Art, Fine & Decorative Art, Photography, East
Asian Art e Contemporary Design. Não contente, essa grande
empresa passou a oferecer cursos de graduação e mestrado em Art
Business – que forma mão de obra para atuar no mundo dos negócios
248
da arte. E foi adiante. Usando o prestigiado nome vinculado às
artes, seus negócios incluem: 2. O Sotheby's Cafe, uma requintada
confeitaria; 3. A Sotheby's International Realty, voltada à venda de
imóveis de luxo, em diversos países; 4. A Sotheby's Diamonds,
dedicada à venda de diamantes e, 5. A Sotheby's Financial Services,
a única financiadora, no mundo, que oferece um serviço completo
para a aquisição de obras de arte. Como se vê, é um dos maiores e
melhores exemplos do que veio a resultar a transformação da arte
em negócio, e, por tabela, de como sua chancela de algo “nobre e
próprio da elite”, coerentemente permitiu a expansão dos negócios
em várias direções, para atender a essa camada social: o
financiamento para compra de objetos de arte (leia-se, de luxo),
diamantes e imóveis suntuosos.(Fonte: <http://www. sothebys.
com/services.html> ). Nada mais longínquo do significado da arte
como fonte de humanização!
Outro exemplo, agora relacionado a um museu de arte, o
Guggenheim, de Nova York, transformado em franquia (ao estilo do
5
McDonald's!) por Thomas Krens diretor da Fundação Solomon R.
6
Guggenheim, de 1998 até novembro de 2008. Administrando o
museu como uma empresa, Krens criou uma rede internacional de
museus satélites do Guggenheim, que envolve a Peggy Guggenheim
5. As ações do polêmico ex-diretor da Salomon R. Guggenheim Foundation, Thomas Krens, acessar
<http://www.nytimes.com/2008/02/28/arts/design/28muse.html> .
6. Em 2003, o então prefeito do Rio de Janeiro, César Maia, negociou a vinda do Guggenheim para o Rio de
Janeiro; um projeto milionário, que envolvia como arquiteto o francês Jean Nouvel. A polêmica se estendeu pelo
ano de 2003, e, após intensa luta política, em que se envolveram muitos artistas, na justiça o projeto foi embargado.
Custaria aos cofres públicos municipais cerca de 150 milhões de dólares! Veja a situação em que se encontrava a
Fundação Guggenheim, à época: “A situação financeira da Fundação Guggenheim, comandada pelo francês
Thomas Krens, é grave. A filial em Las Vegas foi fechada, a de Nova York demitiu quase a metade dos seus
funcionários, o projeto de uma nova filial em Manhattan foi cancelado. A famosa filial em Bilbao, na Espanha,
enfrenta graves problemas. Na verdade estamos comprando uma franquia, vamos pagar pela construção do
projeto, vamos pagar pelas obras e não teremos a gerência sobre o que será visto, e nem a mínima idéia sobre
quaisquer benefícios para cidade”. (MAGALHÃES, 2003). Para saber mais sobre a Fundação Guggenheim,
acessar <http://www.guggenheim.org/guggenheim-foundation>.
249
Collection, de Veneza; o Guggenheim Bilbao, na Espanha; o
Guggenheim de Berlin, na Alemanha, e o Guggenheim Hermitage
Museum, em Las Vegas, mantendo como centro dessa constelação o
museu de Nova York. Há também o projeto já em andamento do
Guggenheim Abu Dhabi (Emirados Árabes), que será o maior de
todos, com trinta mil metros quadrados, e tem previsão para ser
inaugurado em 2011. O motor dessa empreitada é o mesmo das
empresas capitalistas, no seu processo de ampliação em busca de
novos mercados: o aumento dos lucros. E é uma idéia contagiante:
trata-se de um modelo de expansão de negócios que atingiu o
7
conjunto da Tate (Tate Britain e Tate Modern, em Londres; Tate
Liverpool e Tate St. Ives) e o tradicionalíssimo Museu do Louvre
(Paris) (VOGEL, 2008).
O campo da produção da arte, tradicionalmente, constitui
um forte reduto de defesa da liberdade de criação, contra toda e
qualquer ingerência externa. Nem todos os artistas, no entanto,
defendem esse pensamento: impregnados pelo individualismo
imposto a todos como padrão de conduta na vida em geral – pelo
mesmo sistema que submete sua produção às leis implacáveis do
mercado –, muitos artistas se mostram ávidos por “fazer sucesso”,
“ganhar fama”, ou mesmo enriquecer. Crédulos de que isso será um
bem para sua produção artística, almejam alcançar uma posição de
destaque, julgando que o melhor caminho é ser premiado em
salões, expor nas grandes galerias, lutar pelo aval de críticos de
arte, conquistar a confiança de marchands, e... Vender, vender
7. Para conhecer a Tate, acessar <http://www.tate.org.uk/ >.
250
muito, o que nessa sociedade é sinônimo de ser um “grande artista”,
ou ainda, de “vencer na vida”. A quantidade é o que mais conta,
nesses casos. Para falar do seu “sucesso artístico”, invariavelmente
tudo deve ser traduzido em números: quantos quadros o artista
vendeu, no último ano; para quantos e quais salões foi selecionado
ou em quantos foi premiado; com quantos marchands de quantos
países – e continentes – ele trabalha (e até mesmo a quantia
aproximada – em dólares, preferencialmente! – que lhe rendeu a
venda de uma obra. Isso vai permitir ao sistema estabelecer a
posição do artista na bolsa de artes); quantas individuais realizou,
quem comprou e o número de pessoas que as visitaram, etc., etc. A
qualidade, no mundo business, quase sempre fica em segundo
plano. Se alguém das altas finanças comprou uma obra, ou um
crítico de renome escreveu algumas linhas sobre o artista, é o que
basta. Ele deve ser bom!
Embarcando no sistema de arte, não se dão conta, os
incautos – e via de regra jovens artistas –, de que terão de abrir mão
de algo essencial: sua autonomia para criar, um altíssimo preço de
que só alguns poucos se verão relativamente livres do pagamento.
Em casos extremos, o artista chega a aceitar se submeter aos
ditames da moda – em geral impostos pelo marchand, e produzir
arte “para combinar com as cortinas da sala”, porque isso
“vende”... De livre criador passa a defender a ideia de que em arte,
tal como em qualquer outro ramo da produção capitalista de
251
8
mercadorias, os fins justificam os meios. E quando o fim é ganhar
fama, dinheiro e expandir os negócios, para alcançá-lo o artista
facilmente se rende, frente às exigências do cliente...
Em casos menos evidentes, alguns artistas passam a
espelhar sua produção no que é exibido nas grandes mostras
internacionais: Veneza, Kassel, Nova York, etc., para alinhar sua
produção com a dos grandes nomes internacionais que por lá
transitam. É evidente que todo artista necessita estar informado
sobre o que é produzido por seus contemporâneos! Jamais,
contudo, com vistas ao alinhamento de sua própria produção, pois
que isso também constitui uma imposição externa – apesar de provir
de dentro da própria área –, limitação de todo dispensável para uma
produção que deve ter por fundamento a livre expressão da
humanidade do homem.
Contudo, a partir do pressuposto de que cada um deva viver
do próprio trabalho, a partir do acima exposto, um problema
persiste sem solução: de que modo o artista poderá garantir sua
sobrevivência, se o seu trabalho é fazer arte?
O sistema de arte e a produção da arte
O problema da sobrevivência do artista, deve-se
reconhecer, não é causado pelo tipo de produção, a artística, mas,
9
sim, pelo sistema de arte, que compõe o mundo capitalista dos
negócios, regendo tanto a produção quanto a comercialização, e
252
8. A desenfreada busca do lucro a qualquer preço faz com que a indústria de alimentos, por exemplo, possa pôr em
risco a saúde das pessoas, ao colocar nos alimentos uma química agressiva ao organismo; ou ainda, que a
indústria moveleira possa devastar florestas, arruinando o meio ambiente e as condições gerais da vida no nível
planetário, para o corte de madeiras nobres direcionadas à produção de mobiliário fino, para um consumo elitizado,
e assim por diante.
que, sob uma aparência de requinte, transforma a arte em
mercadoria. Faz com ela o que fez, ao longo da história, com a
produção dos grandes mestres artesãos: destitui-os das condições
gerais para produzir livremente, assim como da possibilidade de o
artesão, ao seu único juízo, definir a destinação do produto final e
assenhorear-se do valor total auferido com a venda. Em resumo: tal
como aconteceu com os mestres artesãos, para conseguir manter-se
produzindo, o artista passou a depender das decisões de marchands,
galeristas, críticos, etc., não apenas para vender suas obras, mas
até mesmo para planejá-las e criá-las. Isso significa que o sistema
de arte, com o passar do tempo se foi introduzindo/apropriando
também das múltiplas decisões, essenciais a cada fase da criação da
obra de arte: planejamento, produção, distribuição e venda. Se
antes, o indivíduo criador definia o quê criar; o porquê criar; para
quem criar (o público, de modo genérico); como criar (com que
materiais, formato, dimensões, etc.) e, a quem dar a destinação
final da obra, o sistema de arte substituiu-o ou, no mínimo o
direcionou nessas tarefas. Tudo foi sendo subjugado ao objetivo
maior: sacralizar e elitizar, para... vender! Com alguma elegância,
uma relativa qualidade e um certo bom gosto... Mas, vender!
Essa lógica, irremediavelmente imiscuiu-se no pensamento
– e na ação – de muitos artistas, que, com maior ou menor grau de
consciência sobre o processo, passaram a se inquirir: de que vale
9. Neste trabalho, entende-se por sistema de arte a estrutura das relações sociais de produção, circulação e
consumo, do campo da arte erudita, cujo funcionamento envolve uma série de instâncias e seus respectivos
especialistas: as instâncias de produção – o artista isolado ou associado – e de
consagração/legitimação/conservação/difusão e venda: as academias, o corpo de críticos, os salões, os museus,
as revistas especializadas, o sistema de ensino com seus diplomas, títulos, as galerias, etc. (BOURDIEU, 1999,
Cap. 3. passim.) Tais instâncias desenvolvem códigos ritualísticos sofisticados e formam um quadro de iniciados –
do artista produtor ao marchand, passando pelos críticos de arte e professores da área – que alimenta a gama das
inúmeras intermediações para o acesso à produção e ao consumo da arte.
253
uma produção artística de qualidade se não cair nas boas graças da
clientela compradora? Em outras palavras, quando a venda, quase
que inexoravelmente, passou para as mãos do comerciante de arte
profissional ou marchand, toda a produção artística se viu de algum
modo afetada, tanto no que diz respeito à qualidade quanto em
relação ao seu sentido maior, sua dimensão humana: a de ser a
concretização do processo humano de objetivar-se esteticamente no
mundo, enquanto indivíduo e ser genérico, livre para criar. Este é o
tema que será tratado na segunda parte deste trabalho.
O mais pernicioso e devastador, nesse quadro, é que muito
artista (nem todos, é claro!), levado por esse individualismo
interesseiro e exacerbado (entre outras determinações, que não vêm
ao caso, neste momento), “esqueceram-se” de que a arte – enquanto
objetivação do homem no mundo, uma criação humana livre – tem
por objetivo sensibilizar as pessoas – ou seja, ela tem um papel social:
é feita por um ser social, para a fruição dos demais seres sociais...
Nunca somente para o “freguês”, aquele que pode pagar! Sendo uma
objetivação e forma de expressão das capacidades humanas, só faz
sentido quando é posta à fruição de todos, indiscriminadamente. Ao
transformar arte em mercadoria, o sistema elitizou e privatizou a
fruição das obras de arte tornando-as inacessíveis para a maioria da
população. Do mesmo modo que um pacote de feijão (também uma
mercadoria), na prateleira do supermercado, sem que importe a
fome de quem o olha, somente poderá ser consumido pelo “freguês
de posses”, que passar pelo caixa.
254
Tal concepção, entretanto, não implica que, no âmbito
particular e numa relação direta e pessoal com indivíduos ou
instituições interessadas, o artista não possa vender suas obras
para, com o fruto da venda garantir o próprio sustento e a
continuidade de sua produção. Implica, sim, que a criação de um
objeto de arte não pode ser submetido, seja lá pelo que for: não
deve ser criado tendo a colocação no mercado (com suas exigências)
como finalidade primordial, assim como não deve se deixar
direcionar pelo gosto do cliente, ou ainda, por imposições da moda!
Mais ainda: o artista não deve submeter-se aos atravessadores da
13
arte, que, muitas vezes aproveitam-se da penúria do criador para
comprar seus trabalhos por preços irrisórios, vendendo-os por somas
altíssimas – exclusivamente em proveito próprio – em relação ao
10
valor pago ao artista. Esse tipo de exploração do trabalho alheio
equipara-se àquele sobre o qual o sistema capitalista se assenta e se
expandiu: a extração da mais-valia, que nada mais é do que trabalho
11
não pago. O artista plástico que cede a tais situações “nega-se a si
10. Certa vez, estava participando de uma coletiva, em uma grande cidade do interior, ocasião em que fui apresentada ao
artista que era considerado o melhor da cidade, e o “mais famoso”, segundo palavras do diretor da galeria pública da
cidade. Cumprimentou-me apressadamente, logo se pondo a me explicar sua pressa: seus marchands do Canadá, da
Bélgica e de um terceiro país de que não me recordo, chegariam para apanhar um lote de suas obras, na semana
seguinte. Disse-me, então, que faltavam ainda oito (!!) quadros a serem pintados, do total que ele deveria entregar. E
eram telas de porte razoável (cerca de 3mx2m) pelas quais, segundo ele, os negociantes usualmente lhe pagavam mil
reais cada, mas que ele sabia (e parecia orgulhoso sobre o fato!) que eles vendiam por quatro mil dólares, nos países de
origem. Terminou dizendo que não se importava com esse fato... (E eu emendo: contanto que venda!)
11. De modo sucinto, a extração da mais-valia no processo produtivo se dá da seguinte forma: no mercado de trabalho, a
venda da mercadoria força de trabalho, pelo trabalhador – e a respectiva compra, pelo capitalista, com a finalidade de
empregá-lo na produção (ou seja, gerar riqueza nova no processo produtivo) – é feita por um contrato de tempo de uso,
como, por exemplo, oito horas diárias. Em troca, o contrato estipula que o trabalhador dono da força de trabalho receberá
um salário fixo, que corresponde ao valor do que seu corpo necessita para manter-se, durante o período em que está
trabalhando. “As necessidades do trabalhador reduzem-se assim à necessidade de o manter durante o trabalho e de
maneira a que a raça dos trabalhadores não se extinga.” (MARX, 1989, p. 174). Dessa forma, o salário que recebe pela
venda de sua mercadoria força de trabalho, durante o período das oito horas diárias, será sempre menor do que o valor
das mercadorias que produz, ou seja, as novas riquezas que resultam do emprego da sua capacidade produtiva para
transformar os materiais em mercadorias terão sempre um valor maior, um excedente. Como o trabalhador não foi
contratado por produção, mas por número de horas trabalhadas, a mais-valia é justamente essa diferença entre a riqueza
produzida pelo trabalhador e o que ele recebe: o equivalente para garantir sua sobrevivência no período de trabalho. O
sistema capitalista de produção prevê que o capitalista dela se aproprie legalmente (é o que reza o contrato assinado!).
No sistema, portanto, é necessário que o valor da mercadoria força de trabalho seja inferior ao valor (riqueza nova) que o
trabalhador pode produzir nas oito horas de trabalho pelas quais ele é contratado, pois, se assim não for, não será
possível a extração da mais-valia. Assim sendo, o modo de produção capitalista é um sistema econômico que se assenta
na extração da mais-valia pela única forma possível: a exploração do trabalho alheio.
255
mesmo como trabalhador livre, como construtor consciente da
história. Quando assim age, dificilmente poderá manter a dignidade
profissional e a autonomia, ou seja, o estatuto de artista.”
(PEIXOTO, 2001, p. 31). “Assim, entre o 'tudo tem seu preço' de uns e
o 'negócio é negócio' de outros, volatiliza-se e desmistifica-se a
'pureza', a 'neutralidade' e a 'incontaminação' dos
artistas/intelectuais 'eruditos'. Diz bem MARX: 'Não revelando o
dinheiro aquilo que nele se transforma, converte-se tudo em
dinheiro, mercadoria ou não. Tudo se pode vender e comprar.'
(MARX, 1987, p. 146) Para muitos, a consciência profissional,
inclusive.” (PEIXOTO, 2001, p. 90)
Parte 2
Todas as [...] relações humanas ao mundo –
visão, audição, olfacto, gosto, percepção,
pensamento, observação, sensação, vontade,
actividade, amor – em suma, todo os órgãos de
sua individualidade [...] são no seu
comportamento objectivo [...] a apropriação
da realidade humana.
Karl Marx
Uma consciência precária sobre o significado, a importância
e a necessidade da arte como apropriação da realidade humana, ou
fonte de humanização é, sem dúvida, uma determinante do descaso
– tanto na formação acadêmica do artista ou dos professores de
arte, quanto nos plano social institucional e individual – quanto à
256
defesa do acesso, no cotidiano de todos, às variadas formas de
produção artística.
Para tratar tal temática sob a ótica do materialismo
histórico e dialético – como para qualquer outro tema referente à
constituição do humano –, parte-se da concepção de homem como
ser social e histórico, aquele que pelo trabalho coletivo constroi a
história, e a sociedade, enquanto, simultaneamente, é por elas
constituído. Em sendo a arte uma das formas de produção
exclusivamente humana, este texto assume a concepção de arte
12
como trabalho humano de criação.
Arte e humanização: fundamentos
Para o materialismo histórico e dialético, uma sólida
formação humana se dá, necessariamente, com o desenvolvimento
da totalidade das dimensões humanas: a corporal, ou dimensão
sensório-motora e emocional; a intelectual, ou dimensão teórica; a
ética, ou dimensão dos valores; a política, isto é, a dimensão da
comunicação, ação e intervenção no real; e a dimensão estética, da
sensibilidade.
Assim, o fundamento para a valorização da arte no que diz
respeito à formação humana é o de que o contato com as diversas
formas de criação artística promove o desenvolvimento de uma
sensibilidade acurada, que, no conjunto das demais dimensões, dá
12. Entende-se por trabalho humano o processo histórico de domínio da natureza, realizado de modo coletivo, para
a produção da sobrevivência humana. Nesse processo, o homem, ao objetivar-se no mundo, simultaneamente
subjetiva/humaniza a natureza, constrói a história e se autoconstitui. Contrapõe-se, portanto, ao trabalho tal como
é tratado na esfera da economia política (ou seja, sob o regime da produção capitalista), em que passou a significar
a alienação do homem em relação ao produto do trabalho (MARX, 1989, p. 159-161), ao processo da produção
(1989, p. 161-163) e ao homem enquanto ser genérico (1989, p. 163-166). Confronta-se, portanto, à concepção de
trabalho como “desrealização do trabalhador, a objectivação [do homem no mundo] como perda e servidão do
objecto, a apropriação [da natureza] como alienação” (MARX, 1989, p. 159). (In: PEIXOTO, 2001, p.12-15)
257
ao indivíduo a estatura humana que os seres humanos vêm
construindo coletivamente, no processo histórico.
Entretanto, a maior parte da produção artística, na
sociedade ocidental atual, sustém-se ao sabor de modismos ditados
pela hegemonia das idéias e interesses do sistema de arte,
vinculados (se bem que não de modo evidente) à concepção arte
pela arte. Para muitos, tal concepção é acompanhada de resquícios
13
da idéia do artista como alguém especial, o gênio criador, que
persistem e ainda rendem alguns bons frutos para o mercado da
arte, associada a uma produção exótica.
A concepção arte pela arte, ao defender a centralização na
forma como única possibilidade para a arte autêntica, rompe a
unidade forma-conteúdo da obra, cindindo a unidade arte-vida, que
é referência imediata à unidade-totalidade do homem criador. Ao
mesmo tempo, consolida uma visão fragmentada da arte. Advoga,
assim, a autonomia da arte em relação à vida, ou seja, a
desumanização da arte. Nessa linha, Ortega y Gasset defende a
evitação de toda e qualquer referência à vida, tendendo a
considerar a arte um puro jogo (1991, p. 31). Essa posição descrê da
arte como produção de um indivíduo humano integral, na sua
totalidade de mãos-sensibilidade-razão-emoção-valoração-ação,
258
13. Na primeira sistematização da estética, a Crítica da faculdade do juízo, KANT (1790) trata das características
do gênio criador – idéia posteriormente adotada e acalentada pelo movimento filosófico e artístico do romantismo.
O artista passa a ser percebido (e a se ver) como alguém especial, diferente do vulgo. Na obra, ele afirma que “o
génio é a originalidade exemplar do dom natural de um sujeito no uso livre das suas faculdades de conhecimento
(...) favorito da natureza, (...) aparição rara, (...) o seu exemplo produz para outras boas cabeças uma escola, isto é,
um ensinamento metódico segundo regras (...) extraídas dos produtos de seu espírito e peculiaridade”. (1992, p.
211-226) Apesar de, no início, o movimento romântico ter significado, em especial, uma reação de
descontentamento frente aos resultados funestos da Revolução Industrial (segunda metade do século XVIII) para a
maioria da população e, portanto, ter se mesclado a um forte sentimento de solidariedade com a miséria da classe
trabalhadora, no âmbito das artes, historicamente, prevaleceu a posição individualista e elitista do gênio criador,
bem ao gosto e em acordo com os interesses mercantis da classe burguesa, voltados para a obra única, original e
exclusiva que, assim sendo, alcança altos preços no mercado, segundo a lei da oferta e da procura. (PEIXOTO,
2003, p. 11-12)
ou seja, um indivíduo concreto do qual cada ação ou atitude só é
compreensível, só adquire sentido quando e se dialeticamente
relacionada ao todo.
A concepção arte pela arte, tem suas raízes no Iluminismo e
no liberalismo. O primeiro defende a neutralidade da arte em
relação a questões sociais e políticas, característica que antes era
reivindicada apenas para as ciências exatas –, como se o artista
pudesse “desvestir-se” de sua visão de mundo, de suas posições pró
ou contra as questões sociais que estão postas como parte do seu
contexto, como se fosse possível omitir-se de todo e qualquer
julgamento de valor, para produzir seus trabalhos.
14
O liberalismo, ao de fender o individualismo e a liberdade
do artista no processo criador e sua autonomia em relação à história
e à cultura, além de dar suporte à idéia de que a arte deva ser
neutra, assume uma concepção negativa de liberdade, entendida aí
como desvinculação, como ruptura de laços entre o indivíduo
criador e a sociedade em que vive e trabalha. Ou seja, a arte pela
arte é uma concepção de cunho nitidamente dissociativo, que tenta
negar os vínculos da arte com uma realidade específica, de um
15
homem datado, já fragmentado no processo produtivo, que é
característico do modo de produção capitalista, consolidado na
14. O liberalismo ganhou alento ao final da Idade Média e se constituiu historicamente associada à consolidação do
modo de produção capitalista, no século XVIII. Como filosofia, possibilitou uma justificativa racional para a
transformação das relações legais entre os homens – agora, de cunho puramente contratual. Como visão de
mundo hegemônica, sob os auspícios da classe burguesa, essa filosofia fundamentou-se na defesa da
propriedade privada, do individualismo e da liberdade (entenda-se, de modo especial, como liberdade de ir e vir
para produzir, comerciar e acumular riquezas), desconsiderando questões relativas ao bem comum da maioria da
população (LASKI, 1973. passim.).
15. Esse homem fragmentado é visto e tratado pelo sistema produtivo exclusivamente como força de trabalho, uma
mercadoria que se vende/compra no “mercado de trabalho”, cujo valor é regido pela lei da oferta e da procura. Essa
mercadoria força de trabalho, como qualquer outra que entre no processo produtivo, é nele consumida enquanto
produtora de um novo valor (valor de troca), submetida à produção de mais-valia (lucro) para o capitalista, dono dos
meios de produção. Portanto, nessa concepção, o homem, já alienado do produto final do trabalho e dos meios de
produção só terá valor pelo que produz/consome, segundo os interesses do modo de produção capitalista.
259
história a partir do século XVIII, com a Revolução Industrial inglesa.
Amparado na concepção arte pela arte, desenvolveu-se o
sistema de arte com tudo o que ele comporta: uma estrutura de
ensino que prima pela ortodoxia cultural ao definir o que pode ou
não ser considerado obra legítima, promovendo critérios para
distingui-la das ilegítimas; que reproduz, pela inculca, a obediência
consciente aos modelos preconizados e, simultaneamente, garante
a formação do habitus, ou seja, a reprodução de esquemas de ação,
expressão, concepção, imaginação, percepção e apreciação
disponíveis numa sociedade dada. Participam desse sistema as
academias, os museus e salões, que difundem, consagram e
legitimam a produção artística considerada autêntica, além de
instituições como o próprio Estado – pela concessão de honrarias.
(BOURDIEU, 1999, p. 117-125) A arte pela arte privilegia, ainda,
uma concepção igualmente fragmentária e linear de história da
arte, ora entendida como uma sucessão cronológica de estilos ou
escolas, ora como parte da história das civilizações, ora como o
conjunto de biografias dos denominados gênios criadores ou
história dos artistas, ora como história das obras de arte.
(HADJINICOLAOU, 1973, p. 33-76). Compõe também esse sistema, o
mercado de arte, com as figuras do galerista e do marchand, que,
juntamente com o crítico, constituem um corpo de mediadores
entre os produtores e os consumidores de arte, supostamente para
promover o conhecimento e a aproximação entre os pólos da
produção (artista) e do consumo (público apreciador e/ou
260
comprador), historicamente distanciados. Por exigir o domínio de
códigos não acessíveis a todos, a apreciação das obras da
denominada “grande arte” permanece privilégio de poucos,
configurando-se como mais um meio de exclusão: a cultural.
Arte para todos:
do homem, pelo homem e para sua humanização.
À concepção liberal arte pela arte contrapõe-se o
materialismo histórico e dialético, com uma concepção de arte do
homem e para o homem, vinculada à vida concreta: a arte como
trabalho humano de criação, livre e, como tal, fonte de
humanização. Contra a fragmentação, erige a unidade do conteúdoforma da obra de arte como expressão da totalidade humana, que a
cada ato fruitivo cria e recria a obra. Entende-se que o artista –
indivíduo concreto, enquanto integralidade de trabalhadorcriador-cidadão-ser ético-político, construtor-partícipe de uma
dada sociedade e de um dado momento histórico –, em cada obra,
por uma ótica singular, através da criação estética expressa o
humano genérico que nele existe. Assim, enquanto fruto da
construção coletiva histórica, o autor se posiciona frente à
contemporaneidade – além de colocar-se como indivíduo –, na obra,
com toda a complexidade das suas dimensões humanas:
O autor, como momento constitutivo da (...)
[obra], é a atividade organizada e oriunda do
interior, do homem como totalidade, que
261
realiza plenamente a sua tarefa, (...) é,
ademais, o homem todo dos pés à cabeça: ele
precisa de si por inteiro, respirando (o ritmo),
movimentando-se, vendo, ouvindo,
lembrando-se, amando e compreendendo.
(BAKHTIN, 1998, p. 68)
Assim, além de ampliar e revitalizar a sensibilidade, a arte
humaniza o homem: por condensar uma cosmovisão peculiar,
permite àquele que se dedica à fruição atenta, compartilhar de uma
16
nova consciência do mundo, o que caracteriza a arte como forma de
conhecimento. Simultaneamente, pela experiência da presença do
novo, no momento da fruição ativa ou co-criação, favorece um
17
adensamento da autoconsciência. A seguir, intenta-se uma análise
dessas posições.
A formação dos cinco sentidos é a obra de toda
a história mundial anterior” (MARX, 1989, p.
199), ou seja, no processo de construção da
existência, a sensibilidade estética
desenvolveu-se como “resultante do
desenvolvimento dos sentidos físicos e
espirituais humanos pari passu ao domínio da
natureza, o que só é possível ao homem (...)
portanto, todos os sentidos do homem se
fazem humanos somente no âmbito da
sociedade, na práxis. (PEIXOTO, 2003, p 44)
262
16. Consciência refere-se “ao processo aproximativo de construção, pela práxis humana, do conhecimento sobre a
multiplicidade de determinações do concreto, no embate com a natureza em busca da sobrevivência”. (PEIXOTO,
2003, p. 47)
17. Autoconsciência é “uma ideologia individual; é a imagem de mundo – construída, em última instância, com a
ajuda de conceitos filosóficos, éticos – com a qual cada um ordena sua própria atividade individual na totalidade da
práxis. Nessa medida (...) assume a vida cotidiana do indivíduo um caráter filosófico; e como tal se realiza quando e
na medida que o indivíduo é guiado pela concepção de mundo na tarefa de dirigir sua vida, na ordenação de sua
forma própria de viver”. (HELLER, 1982, p. 16)
Numa sociedade excludente, que trata o humano como
mercadoria, entretanto, a tendência dos sentidos é a de se
restringir ou se embrutecer, diminuindo nas pessoas a sensibilidade,
a necessidade do contato com a arte. Contenta-se, assim, com os
produtos da indústria cultural
Enquanto produção que opera com a matéria e a
particularidade, a arte aguça e refina os sentidos, em especial o
olhar e a audição; enriquece, portanto, o ser humano, tanto o
artista criador quanto o fruidor. Assume, assim, um papel primordial
no processo de formação, revitalização e aprimoramento dos
sentidos.
Sabe-se que a necessidade de algo pode ser gerada pelo
contato com o próprio produto, na relação dialética produçãoconsumidor, a produção determina não só o objeto do consumo, mas
também o modo do consumo. Logo, o produto arte pode criar seu
consumidor-fruidor. Como escreveu Marx, “a necessidade que sente
do objeto é criada pela percepção deste. O objeto de arte - tal como
qualquer outro produto - cria um público capaz de compreender a
arte e de apreciar a beleza [no original, sem grifo]. Portanto, a
produção não cria somente um objeto para o sujeito, mas também
um sujeito para o objeto. Logo, a produção gera o consumo” (MARX,
1983, p. 210).
Daí a importância de se colocar a arte – em todas as suas
formas – à disposição, no cotidiano, para a maioria da população.
Não importa se conhecem algo a respeito do campo da arte, ou não;
263
se demonstram – ou não – um interesse imediato e explícito. O
contato direto e intensivo se encarregará de criar o interesse e a
necessidade.
Para Marx, a produção [no caso, da arte] pode gerar
consumo de três modos: primeiro, ao proporcionar “condições
concretas de acesso às obras, em quantidade (extensão) e em
qualidade (intensidade) compatíveis com um padrão elevado de
arte, ao maior número possível de pessoas”. Segundo: ao
determinar a forma do consumo, ou melhor, ao disponibilizar não
um “consumo massificado e passivo”, mas sim “uma apropriaçãofruição das obras que promova a consciência e permita o
desenvolvimento da autoconsciência”. Terceiro: ao gerar no
consumidor a necessidade do produto: “não só despertar, mas criar
necessidades e prazeres especificamente humanos, tais como: a
acuidade perceptiva e a agudeza de sensibilidade, o exercício da
capacidade de reflexão, de interpretação e de crítica (...)”.
Entende-se, pois, que “o processo de (re)humanizar os sentidos do
homem, ampliar-lhe o âmbito da reflexão e criar uma sensibilidade
genuinamente humana é um desafio histórico posto a cada dia para
todos aqueles que trabalham ou se preocupam com a educação” e
com a arte (PEIXOTO, 2003, p. 47-48), desafio que deve,
necessariamente, estar presente na formação e na práxis do artista.
A partir da concepção de que a totalidade do trabalhadorcriador materializa-se na obra – de que sua visão de mundo permeia
todo o processo de criação –, entende-se que a arte possibilita uma
264
forma de conhecimento sensível, uma maneira de apreender e
compreender a realidade, mas que não se restringe à racionalidade
ou ao discurso; logo, uma forma de conhecimento não científica,
mas estética, pela intermediação da produção estética de uma
totalidade humana (o artista, o outro). Esse conhecimento o
indivíduo fruidor apreende na contraposição-confronto de si
próprio como totalidade humana (seus conhecimentos, sua
sensibilidade e emotividade, suas posições éticas e políticas, sua
visão de mundo, enfim) com uma nova realidade-totalidade
concreta (a obra de arte) materializada livremente por uma outra
totalidade humana (um trabalhador-criador). No cotejo, aquele
que frui a obra, ao decidir-se livremente pelo envolvimento e
interação com ela, no ato interpretativo cria uma nova obra,
assimilando-a e enriquecendo-a, assimilando-se a si mesmo como
interlocutor que dialoga com a obra, com seu criador e consigo
mesmo, no processo interpretativo. Trata-se, portanto, de um
processo de co-criação.
Desse processo resulta que nada ou ninguém permanecerá o
mesmo: obra, autor e fruidor transformam-se durante o processo de
interação humana que configura a experiência estética. A
consciência do mundo se amplia e se intensifica pela abertura ao
estético como uma forma específica de conhecimento do real, que,
simultaneamente, enseja ao fruidor/co-criador um crescimento
humano ao ampliar-lhe a autoconsciência. Assim, a obra de arte
permite-lhe “extrapolar a simples consciência espontânea de si
265
mesmo e do seu ambiente, o chamado 'senso comum' (...) pela
construção de uma 'consciência filosófica', através da reflexão”.
(PEIXOTO, 2001, p. 107) Entende-se que “a construção da
consciência e da autoconsciência estão (...) dialeticamente
imbricadas e dizem respeito, numa dada sociedade, à superação do
senso comum” (PEIXOTO, 2003, p. 48), gerando um processo de
humanização dos sentidos e do homem por inteiro.
Urge que se recupere a arte por seu valor humanizador, em
sua especificidade, para que seja posta ao alcance de todos. No ato
de interpretar a obra de arte, quando o público se deixa avassalar
por ela, é trabalhada a totalidade das dimensões humanas: a
sensibilidade, associada à razão, às emoções e às posições éticas e
políticas. Por esse motivo, o fruto do trabalho humano de criação
tem muito a contribuir para a constituição do homem rico, de que
fala Marx, que, contraditoriamente, é aquele que se apresenta
pleno de necessidades – humanas, porém – o homem “dotado de
todos os sentidos, como sua permanente realidade (...) que
necessita de uma totalidade de manifestações humanas (...) cuja
realização existe como urgência natural interna, como
necessidade” (MARX, 1989, p.200-202). Em suma, tornar-se um ser
humano rico significa deixar-se tomar, conscientemente, por uma
série de necessidades humanas, que levam o indivíduo à busca de
ser mais e melhor.
Por tudo o que foi argumentado, a arte constitui uma arma
construtiva poderosa na luta para, “a superação do homem
266
desumanizado-atomizado no processo produtivo, com vista à sua
humanização e à construção de uma 'sociedade plenamente
constituída'” (PEIXOTO, 2003, p.49).
Subscrevo, então, as palavras de Antônio Callado, na
Introdução da obra de FISCHER: “Um dos males da sociedade atual é
que a própria angústia da condição humana só pode ser sentida (ia
quase dizer saboreada) por uns poucos. Esse tipo de angústia é hoje
em dia um privilégio dos que dispõem de ócio. Precisa ser estendido
a todos” (CALLADO in: FISCHER, 1987, p.10).
Aos artistas, e à sociedade organizada, fica aqui lançado o
desafio: desmitificar o campo das artes como produção de poucos
“iluminados” para outros poucos econômica e ou culturalmente
aquinhoados, para promover, sim!, o acesso livre e irrestrito: a arte
para todos!
Referências
ARANTES, O. B. F. A “virada cultural” do sistema das artes. SESC/SP,
Seminário Internacional Estética e Política. São Paulo, abril de 2005.
Disponível em: <http://www.sescsp.org.br/sesc/conferencias/index.cfm?
forget=12&inslog=12SESCSP/conferências/Otília Arantes >. Acesso em: 03
de jul.2009.
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. 5.ed. São Paulo:
Perspectiva, 1999.
FISCHER, E. A necessidade da arte. 9.ed. (trad. de Leandro Konder). Rio de
Janeiro: Guanabara, 1987.
267
HADJINICOLAOU, N. História da arte e movimentos sociais. Lisboa:
Edições 70, 1973.
HAUSER, A. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins
Fontes, 1995.
HELLER, A. La revolución de la vida cotidiana. Barcelona: Península,
1982.
KANT, I. Crítica da faculdade do juízo. Lisboa: Imprensa Nacional, 1992.
LASKI, H. J. O liberalismo europeu. São Paulo: Mestre Jou, 1973.
MAGALHÃES, L. E. Ação tenta impedir construção do Guggenheim Rio. O
Globo, 20 de fevereiro de 2003. Disponível em:
<http://www.consciencia.net/artes/gug.html> Acesso em: 02 jul. 2009.
MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro Primeiro: o processo
de produção do capital. 11. ed. v. I e II. São Paulo: Bertrand Brasil, 1987.
_____. Manuscritos económico-filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1989.
ORTEGA y GASSET, J. A desumanização da arte. São Paulo: Cortez, 1991.
PEIXOTO, M. I. H. Relações arte, artista e grande público: a prática
estético-educativa numa obra aberta. Campinas (SP), 2001. 259 f. Tese
(Doutorado em História, Filosofia e Educação) – Faculdade de Educação,
Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP.
_____. Arte e grande público: a distância a ser extinta. Campinas: Autores
Associados, 2003.
SOTHEBY'S. Disponível em: http://www.sothebys.com/services.html>
Acesso em: 04 jul. 2009.
268
VOGEL, C. Guggenheim's Provocative Director Steps Down. New York
Ti m e s , 2 8 . 0 2 . 2 0 0 8 . D i s p o n í v e l e m : < h t t p : / / w w w.n y t i m e s
.com/2008/02/28/arts/design/28muse.html> Acesso em: 02 jul.2009.
269
Debate sobre arte contemporânea e a formação do público
Adriana VAZ
1
Produção Brasileira, da arte concreta a neoconcreta
O debate a cerca da arte concreta e neoconcreta na
produção brasileira, e seus desdobramentos para o entendimento da
arte contemporânea e com ela à teoria da não-compreensão,
permitem aprofundar o estudo interdisciplinar entre arte,
geometria e sociologia.
Na dicotomia entre uma produção racional em oposição, há
outra mais sensível e expressiva, que ocorre a ruptura no interior do
concretismo brasileiro: a arte concreta a neoconcreta. Publicado
em 1952, o manifesto do grupo concretista, Grupo Ruptura –
assinado por Waldemar Cordeiro, Geraldo de Barros, Lothar
Charoux, Kazmer Féjer, Leopoldo Haar, Luís Sacilotto e Anatol
Wladislaw – que propunham uma nova linguagem para as artes
plásticas, fazendo uso da abstração geométrica, ou seja, o
concretismo buscava nas formas geométricas o caminho de uma arte
racional, universal, e “moderna” ao seu tempo. No Rio de Janeiro, e
não apenas em São Paulo, a nova linguagem a favor da forma
1. Professora da Universidade Federal do Paraná
271
também recebe adeptos com o Grupo Frente, que se reúnem em
torno do Museu de Arte Moderna (MAM-RJ). O grupo Frente era
integrado por Aluísio Carvão, Lygia Clark, João José Silva Costa,
Vincent Ibberson, Lygia Pape, Ivan Serpa, Carlos Val, Décio Vieira,
Abraham Pal atnik, Hélio Oiticica, César Oiticica.
Independente de serem integrantes do Grupo Ruptura (São
Paulo) ou do Grupo Frente (Rio de Janeiro), com a “I Exposição
Nacional de Arte Concreta”, realizada em 1956, funda-se uma
identidade concreta formada por artistas brasileiros – porém, a
unidade de ambos os grupos direcionada pela abstração geométrica
parte-se em dois: de um lado, os artistas do Rio juntamente com os
divergentes do grupo que deu origem ao movimento paulista; e, de
outro, os que se mantiveram fiéis aos pressupostos teóricos do
Grupo Ruptura.
A dissolução foi oficializada com o Manifesto Neoconcreto,
publicado em 1959, assinado por Ferreira Gullar, Amílcar de Castro,
Franz Weissmann, Lygia Clark, Lygia Pape, entre outros:
A expressão neoconcreto é uma tomada de
posição em face da arte não-figurativa
“geométrica” (neoplasticismo,
construtivismo, suprematismo, Escola de Ulm)
e particularmente a face da arte concreta
levada a uma perigosa exacerbação
racionalista. [...]
O racionalismo rouba à arte toda a autonomia
e substitui as qualidades intransferíveis da
obra de arte por noções da objetividade
272
científica: assim os conceitos de forma,
espaço, tempo, estrutura – que na linguagem
da arte estão ligadas a uma situação
existencial, emotiva, afetiva – são confundidos
com a aplicação teórica que deles faz a
ciência. [...]
A arte neoconcreta, afirmando a integração
absoluta desses elementos [tempo, espaço,
forma, cor], acredita que o vocabulário
“geométrico” que utiliza pode assumir a
expressão de realidades humanas complexas,
tal como o provam muitas das obras de
Mondrian, Malevitch, Pevsner, Gabo, Sofia
Tauerb-Arp, etc. Se mesmo esses artistas
confundiam o conceito de forma-mecânica
com o de forma-expressiva, urge esclarecer
que na linguagem da arte, as formas ditas
geométricas perdem o caráter objetivo da
geometria para se fazerem veículo da
imaginação (...) A arte neoconcreta funda um
novo espaço “expressivo” (GULLAR, 1999,
p.283-87).
Segundo Zanini (1983), vários artistas de São Paulo, não
aceitavam a conceituação do Neoconcretismo, alegando que a
separação do grupo era de ordem pessoal ou de “problemas de
poder”, já que a produção realizada na prática não coincidia com a
teoria proposta pelo grupo, deste modo, a questão é: o que de
concreto permanece na produção neoconcreta?
Para esclarecer a dicotomia entre arte concreta e
neoconcreta, Ferreira Gullar, menciona:
273
A arte concreta encontrou, no campo da
escultura – ou da construção no espaço real –
terreno mais propício para o seu
desenvolvimento do que na pintura – espaço
bidimensional – onde se limitou na maioria dos
casos à ilustração de problemas perceptivos.
[...] A superioridade da escultura de [Max] Bill
[introdutor da arte concreta no Brasil] sobre
suas pinturas não indica simplesmente que Bill
é melhor escultor que pintor, mas, sobretudo,
que as idéias concretistas nasceram de
preocupações ligadas à construção no espaço
real (GULLAR, 1977, p.235).
O que simboliza a passagem da arte concreta a neoconcreta
é a valorização do ato de contemplação da obra de arte em que o
público participa como sujeito ativo, em oposição à racionalidade
proposta pela arte concreta – exemplificada pela produção de Lygia
Clark (Os bichos) e Hélio Oiticica (Penetráveis), bem como, a teoria
do não-objeto de Ferreira Gullar.
Do não-objeto a não-compreensão
Primeiramente, a teoria do não-objeto é fruto da produção
neoconcreta brasileira e trouxe implicações à prática do artista
tanto na linguagem da pintura quanto da escultura. Na pintura,
ocasionou três mudanças: primeiro, o abandono do espaço virtual
figurativo (em perspectiva) simbolizado pela moldura do quadro –
vigente desde o Renascimento até sua ruptura com a arte abstrata;
segundo, o quadro se transforma em objeto material e, não, apenas
274
suporte da ação do artista; terceiro, a participação do público na
obra como co-autor e, não apenas como apreciador. Ou seja, o
público é convidado a manipular a obra, e, assim, transforma-a,
mudando o significado proposto pelo artista. Na escultura, houve
alterações de ordem técnica e teórica. Tecnicamente, eliminou-se a
massa e a base. Teoricamente, a concepção do espaço, ou melhor,
valoriza-se sua inutilidade: a obra se espacializa negando o próprio
espaço. O objetivo de o artista produzir objetos tridimensionais não
é a sua representação e sim, a presentação.
Segundo Ferreira Gullar,
liberto da base e da moldura, o não-objeto
insere-se diretamente no espaço, do mesmo
modo que um objeto. Mas aquela transferência
estrutural do não-objeto, que o distingue do
objeto, permite-nos dizer que ele transcende
o espaço, e não por iludi-lo (como faz o
objeto), mas por nele se inserir radicalmente.
Nascendo diretamente no e do espaço, (...)
(GULLAR, 2007, p.97).
Num segundo momento, faz necessário compreender: qual
a relação entre a teoria do não-objeto e a teoria da nãocompreensão? O que implicará no tipo de obra produzida, sendo a
escultura no sentido clássico uma prática também com pouca
representatividade na arte contemporânea – referente à produção
local (VAZ, 2004).
Antes de articular os pontos que convergem as duas teorias,
275
serão mencionados como Hans-Thies Lehmann estruturou seu artigo
intitula do: Motivos para desejar uma arte da não-compreensão; o
qual o divide nos tópicos: 1) Irritação, como introdução; 2) Nãocompreensão; 3) Vôo panorâmico; 4) O efeito da não-compreensão;
5) Procedimento: 6) A tendência é clara; 7) A arte de nãocompreender; 8) Desenvolto; 9) Pará; 10) Apreender a nãocompreensão. Sendo que, os tópicos 3, 5 e 8 são específicos a
história do teatro e a conceitos de interpretação, portanto, não
pertinentes a proposta discutida neste artigo.
Irritação, como introdução: Remete as políticas públicas na
Alemanha, a partir de 1990, destinadas ao teatro e,
conseqüentemente o que significa “consumir” teatro, quando não
existe incentivo governamental e nem mesmo preocupação em
educar para o teatro e formar a juventude, ou seja, como acreditar
no futuro? Indaga Lehmann. E, prossegue: quem paga a conta, o
Estado, a Sociedade? Como arrecadar dinheiro para que muitas
pessoas possam consumir teatro? Concordando com Lehmann a
pergunta se estendem, as políticas públicas brasileiras e, abrange as
várias linguagens artísticas.
Não-compreensão: O que seria do mundo se tornasse real e
completamente compreensível? Para Lehmann, seria de
amedrontar. A não-compreensão ou a incompreensibilidade na arte
ocasiona os seguintes desdobramentos: primeiro, é sinônima de que
a compreensão se insere na experiência estética, por conseqüência,
gera uma repulsa da contextualização; segundo, no lugar da
276
tradicional hierarquia da compreensão surge a reflexão sobre o
caráter enigmático da arte; terceiro, as artes recusam a
compreensão que toda a contextualização busca.
O efeito da não-compreensão: Como mencionando
anteriormente a compreensão excessiva causa um fechamento da
obra devido sua interpretação pragmática, sendo que, na arte
contemporânea a prioridade é a experiência e não a compreensão.
Fator este relacionado com a “teatralização” da arte, ou seja, as
obras são como acontecimentos, nos quais o tempo marca o ritmo da
obra, por serem performáticas, instantâneas e cênicas.
O
espectador, completa a obra: o tempo do espectador é mais do que a
seqüência de atos de compreensão.
A tendência é clara: No teatro contemporâneo, nos
desdobramentos recentes da música erudita e das artes plásticas.
Partindo da afirmativa que, “a recepção tropeça, e isso de uma
forma intencional”, Lehmann (2007, p.145), coloca: “como
responde a teoria a esse fenômeno?” Primeiramente deve-se mudar
a perspectiva de análise: de um lado, não existe um único ponto
focal a ser priorizado, e, de outro, entendimento depende do
espectador, que por sua vez é único em sua vivência e experiência
empírica, possibilitando múltiplas interpretações de um mesmo
fenômeno.
Logo, a compreensão não é algo estanque, ela se
desdobra de maneira cíclica, ou seja, “a compreensão se torna
parcial, se contradiz e se interrompe, ela falha e retorna, vibra – e
dessa maneira, torna-se experiência” (Lehmann, 2007, p.145).
277
A arte de não-compreender: A questão fundamental é que a
experiência estética se diferencia da apreensão conceitualizadora,
ou seja, não existe uma interpretação central, o que se constitui
como colateral, secundário, por sua vez, também pode ser
analisado. O olhar ao se tornar periférico, faz com que a “poética da
compreensão” seja substituída por uma “poética da atenção”. O
ofício da arte da não-compreensão em paralelo às regras da
hermenêutica, leva à regra básica de Freud da “atenção igualmente
flutuante”, que se utiliza de uma forma mimético-sonora de escuta
de significados, pois o ato de compreender não pode ser
condicionado tendo como base apenas seqüências discursivas.
Pará: Produzir o NV-Effekt (efeito da não-compreensão)
não significa uma negação abstrata do ato de compreender, mas
uma mudança de hierarquia, ou seja, trata-se de uma compreensão
desenvolta e suplementar. A arte da não-compreensão é uma forma
de deixar acontecer, de possibilitar uma experiência – “faz parte da
práxis do NV-Effekt um modo de representação da autodesmontagem” (Lehmann, 2007, p.148).
Apreender a não-compreender: Novamente, citando vários
personagens da história do teatro desde a Antiguidade até Brecht e
Beckett, a exemplo: de Édipo, de Elektra, passando por Lear e
Hamlet até a Mãe Coragem, tem-se que: de um lado, “o teatro se
afirma como o lugar onde se apreende a perceber a nãocompreensão”, e de outro, “o teatro sempre foi o lugar em que se
experimentava o fracasso da compreensão” (Lehmann, 2007,
278
p.149).
Enfim, comparando as duas teorias, conclui-se que:
primeiro, a produção contemporânea é de ordem performática e
temporal, a obra cessa juntamente com o tempo de apresentação:
como um evento. No caso, das instalações artísticas a durabilidade
é o tempo em que à obra permanece exposta na galeria, no museu.
Segundo, a cultura moderna, e com ela, o não-objeto, sendo
“temporal e crítico”, nas palavras de Gullar (2007) supera a cultura
renascentista tanto espacial quanto racional. No não-objeto a obra
se consome a si mesma, na sua auto-significação tanto no aspecto
mental quanto sensorial; na não-compreensão as múltiplas
interpretações ocasionadas pela obra geram inúmeros significados,
não sendo possível uma leitura fechada – pois, cada um ao observar a
obra e consumi-la, terá diferentes percepções e experiências.
Terceiro, em ambas as teorias prioriza-se a experiência, e com isso o
foco recai sobre o espectador.
Debate: Teorias, posicionamentos e novas regras
A autonomia da arte
Em sua apresentação do livro No interior do cubo branco: a
ideologia do espaço da arte Brian O'Doherty, parafraseia Magritte,
e, argumenta que o mesmo poderia ter como título: Isso não é uma
galeria de arte – em sua essência o mito da pintura é posto a prova
por uma ação metalingüística. Os textos remetem a uma parcela da
produção de arte do século XX e a noção de espaço de arte
279
instaurada pelo Museu de Arte Moderna de Nova York, na primeira
metade do século XX.
O autor critica a forma esterilizada do cubo branco, em
defesa da vida, alertando para o caráter político e social que
envolve tais práticas neste espaço idealizado. Abaixo, seguem
algumas características apontadas por O´doherty que classificam a
Galeria Moderna. Galeria Moderna
G a le ria M o d e rn a
1 . O e s p a ç o f í s i c o é ig u a l à s ig r e j a s m e d ie v a i s , p r o j e t a d a s p a r a e x p u r g a r a
c o n s c iê n c ia
do
m undo
e x te rio r. O
p ó s -m o d e rn is m o
s u p e ra
o
p a r a d ig m a
a n te rio r, o re c in to d a g a le ria n ã o é m a is “ n e u tro ” .
2. A
a p a rê n c ia
a te m p o ra l re m e te
que
a
o b ra
já
p e rte n c e
à
p o s te rid a d e .
P o ré m , h o je , o s v a lo re s e s té tic o s e o s c o m e rc ia is p e rm u ta m -s e p o r o s m o s e .
3 . O e s p a ç o i d e a l i z a d o p r o m o v e o m i t o d e s e r e s e s p i r i t u a i s . “ O o lh o é o o l h o
d a a lm a ” , o u s e ja , p a ra a a rte p re v a le c e m o s in te re s s e s d e g ru p o e n ã o o s
in te re s s e s in d iv id u a is .
4 . A id é ia d a fo rm a p u ra , c o m a a m b iç ã o tra n s c e n d e n ta l d e e lim in a r a v id a é
u m d i s f a r c e c o m f i n s s o c i a is e s p e c í f ic o s .
5 . “ P in ta r u m a
m o ld u ra
c o is a
tra n s fe riu
é
essa
m e rg u lh á -la
fu n ç ã o
em
p a ra o
ilu s ã o , e
re c in to
o
d e s a p a re c im e n to
da
d a g a le r i a ” ( O ’ D O H E R T Y ,
2 0 0 2 , p .8 0 ).
6 . H o je , o c u b o b ra n c o é u m
“ p ro to m u s e u ” c o m
passagem
d ire ta p a ra o
a te m p o ra l.
Quadro 1: Galeria Moderna segundo Brian O'doherty.
A valorização do espaço físico se compara ao espaço
fundado pela teoria do não-objeto, o que se altera é o
comportamento do público. Quando o espaço real se torna obra: a
galeria, o museu; e despreza-se a forma física e a material.
O'Doherty (2002) exemplifica com as obras “O Vazio” de Yves Klein e
“O Pleno” de Arman. Na obra de Klein a galeria é a própria obra e
aparece vazia, em oposição, Arman enche a mesma galeria com lixo,
280
do chão ao teto e de parede a parede, sendo impossível à visitação.
Segundo GULLAR,
o não-objeto nasce, portanto, do abandono do
espaço virtual (ou fictício) e da ação pictórica
(metafórica) para o artista agir diretamente
sobre a tela (o quadro) como objeto material,
como coisa. Esta ação do artista se transfere
ao espectador que passa a manipular a obra
nova – o não-objeto – em lugar de apenas
contemplá-lo (GULLAR, 2007, p.46).
Considerando de um lado a galeria moderna descrita por
O'doherty e, de outro, as teorias do não-objeto e da nãocompreensão. O Manifesto Neoconcreto conceitua a obra de arte
como algo orgânico, ou seja, “pensar espontaneamente o mundo,
integrar o pensamento no fluir, pensar com o corpo” (GULLAR, 2007,
p.42), ou ainda, a obra de arte como quase-corpus (organismos
vivos) e não como objeto ou máquina. Existindo a participação ativa
do espectador que passa do ato de compreender para o ato de
experimentar.
No cubo branco, aceita-se uma vida e um eu diminuídos,
“nas galerias modernistas típicas, como nas igrejas, não se fala no
tom normal de voz; não se ri, não se come, não se bebe, não se deita
nem se dorme; não se fica doente, não se enlouquece, não se canta,
não se dança, não se faz amor” (O'DOHERTY, 2002, p. XIX).
281
Impureza e apropriações
Arthur Danto discute os limites entre moderno, pósmoderno e contemporâneo na arte, sendo assim, uma das
contribuições a partir de década de 1970 foi o surgimento da
imagem apropriada. O status do artista e conseqüentemente da
obra, dependem do espaço que está vinculada e da própria história
da arte no sentido de ser auto-referencial – colocação que coincide
com O'doherty. Porém, Danto e Hans Belting questionam a
representatividade da disciplina de História da Arte no contexto
atual, em função da impossibilidade de enquadramento, deste
modo à teoria é insuficiente para legitimar o que produz, e, com
isso, abre espaço para outras esferas de mediação. Com o “fim da
história da arte”, onde se legitima a produção atual?
Em seu livro Após o fim da arte: A arte contemporânea e os
limites da história, Danto discute a arte contemporânea em
contraponto à arte moderna definindo-a como impura ou não-pura;
sendo que, a noção de pureza remete a Clement Greenberg.
Segundo o autor a origem do livro é datada de 1995, como resultado
das Conferências Mellon sobre as Belas-Artes, ministradas na
National Gallery of Art em Washington. A expressão “fim da arte”
como sinônimo do “fim de narrativas mestras da arte” que
desemboca em estilos. Danto cita o fim da narrativa proposta por
Ernst Gombrich, ou seja, da tradicional representação da aparência
visual; e também, o fim da narrativa modernista de Greenberg
tendo como arcabouço a pureza da pintura e sua planaridade. Em
282
seus agradecimentos Danto, menciona, os vários interlocutores na
discussão polêmica sobre o fim da arte, dentre eles, Hans Belting.
O questionamento de Danto era como pensar a arte após o
fim da arte, em sua fundamentação utiliza-se do livro escrito por
Belting (A imagem antes da era da arte) que escreve sobre a arte
antes do início da arte, ou seja, ambos discutem em que momento o
conceito de artista e com ele o uso de narrativas surgem ou deixam
de serem únicas para fundamentar a história da arte. A distinção
entre o moderno e o contemporâneo, ultrapassa o sentido temporal
como sinônimo de “mais recente”, o moderno para Danto abrange o
período entre 1880 até algum momento da década de 1960, sendo
que, no seu parecer às décadas de 1970 e 1980 ainda continuavam
nebulosas.
Outra preocupação de Danto dizia respeito à nomenclatura
que irá utilizar para classificar a arte produzida após a década de
1980: obras pós-modernas, obras contemporâneas; opta por arte
pós-histórica.
O termo pós-moderno teria uma conotação de continuidade
do período anterior: moderno, prevalecendo à sensação de que
poderia se identificar algum estilo. O termo contemporâneo,
também era inadequado, pois, implicava a qualquer “coisa”
produzida por nossos contemporâneos, no sentido atual, podendo
abranger tanto arte moderna quanto arte tradicional. O termo póshistórico remete ao fim de uma narrativa histórica e linear,
fundamentado no caráter efêmero da produção atual.
283
Na seqüência, é possível visualizar didaticamente as
principais diferenças entre a arte moderna e a pós-histórica, em
discussão no capítulo 01, intitulado Introdução: moderno, pósmoderno e contemporâneo (DANTO, 2006, p.3-21).
A rte M o d e rn a
A rte P ó s -h is tó ric a
1 . P u re z a d a a rte .
2.
A rte
seu
G re e n b e rg ,
1 . Im p u r e z a d a a r t e .
p ró p rio
que
a s s u n to ,
s u b s titu i
c ita
V a s a ri
2. Tudo
pode
ser um a
p o s s ib ilit a
(n a rra tiv a d a p in tu ra re p re s e n ta tiv a ).
filo s o fic a m e n te .
3.
A rte
o b ra
pensar
de
a rte ,
a
a rte
P ré -m o d e rn is ta
p a ra
3 . N a a rte c o n te m p o râ n e a , o s a rtis ta s
c o n c o rd a n d o
com
e s tã o
M o d e rn is ta ,
liv re s
do
fa z e r
o
peso
que
da
h is tó ria :
q u is e r
e
a)
G re e n b e rg , c a ra c te rís tic a s m im é tic a s
podem
com o
p a r a a s n ã o - m im é t ic a s d a p in t u r a .
q u is e r; b ) p a ra q u a lq u e r fin a lid a d e o u
s e m n e n h u m a fin a lid a d e .
4.
M o d e rn is m o :
fo rm a l,
ou
lo c a l,
s e ja ,
m a t e r ia lis t a ,
p in tu ra
em
4 . N ã o e x is t e e s t ilo c o n t e m p o r â n e o .
sua
p u re z a .
5 . A s p in tu ra s d e ix a m
p a ra
cenas
d e s e r ja n e la s
im a g in a d a s
ilu s io n is ta ,
no
s e n t id o
c o n v e rte n d o -s e
em
5.
Uso
da
im a g e m
c o n fe rin d o -lh e s
um
a p ro p ria d a :
s e n tid o
e
um a
id e n tid a d e n o v o s .
o b je to s e m s i.
6 . R e p re s e n ta a S e g u n d a g e ra ç ã o d e
6 . A a rte c o n te m p o râ n e a é p lu ra lis ta ,
m useus,
s e n d o g ra n d e p a rte in c o m p a tív e l c o m
M useus
a rte d e fin id a e m
S u b s titu i
m useus
a
de
M o d e rn a ,
te rm o s fo rm a lis ta s .
P rim e ira
onde
A rte
o
g e ra ç ã o
c o n te ú d o
e ra
de
o
as
re s triç õ e s
T e rc e ira
de
g e ra ç ã o
um
de
m useu.
m useus
A
a in d a
e s tá p o r v ir.
p rin c ip a l.
Quadro 2: Arte moderna e Pós-histórica segundo Arthur C. Danto.
Cultura, Arte e Remake
Reflexões sobre a história da arte é o ponto focal do livro: O
fim da história da arte – uma revisão dez anos depois, escrito por
Hans Belting que retoma e amplia as discussões já propostas no
livro: O fim da história da arte? (1983). Discutir o fim da história da
arte é elucidar que não existe mais um único enquadramento a ser
seguido, dentre as transformações ocorridas cita o uso das novas
mídias, ausentes na modernidade clássica. Ancorado nas afirmações
284
de Arthur C. Danto, sobre a pluralidade e a fragmentação da
produção artística atual, na qual a disciplina de história da arte é
insuficiente para classificá-la, a arte contemporânea abre espaço
para novas instituições de reconhecimento: a exemplo das
exposições, como fontes de informação da arte e da cultura.
A tabela abaixo pontua algumas colocações sobre as
modificações na produção contemporânea que interferem na
disciplina de história da arte, discutidas no prefácio e no primeiro
capítulo: Epílogo da arte ou da história da arte? (BELTING, 2006,
p.7-22).
H is tó ria d a A rte
P ó s -h is tó ria d a A rte
1 . C o n c e ito d e u m a h is tó ria d a a rte :
1 . F im
d a h is tó ria d a a rte : p e rd a d e
re s titu ir u m a h is tó ria e fe tiv a e d a r-lh e
e n q u a d ra m e n to
s e n tid o .
d is s o lu ç ã o
da
e
com
im a g e m ,
ou
e la
a
s e ja ,
a
m u d a n ç a d e d is c u rs o .
2 . F im
d a h is tó ria d a a rte c o m o u m
a rte fa to e c o m
e le o fim
d a s re g ra s
d o jo g o .
2 . O p o s iç ã o
a
lin e a r, m a s o
com o
um a
jo g o
h is tó ria
da
a rte
c o n tin u a rá te n d o
in te rlo c u to r a
s o c ie d a d e
e
as
in s titu iç õ e s .
3 . A té c n ic a re p ro d u z u m
a p a r ê n c ia ,
s o b re tu d o
s u p re s s ã o
da
m undo da
nas
r e a l id a d e
m íd ia s ,
c o rp o ra l
e
e s p a c ia l .
3 . A a rte lig a d a a u m
a rtis ta q u e s e
e x p re s s a p e s s o a lm e n te n e la e a u m
o b s e rv a d o r
im p re s s io n a r
que
se
d e ix a
p e s s o a lm e n te
por
e la ,
o u s e ja , a a rte é riv a l d a té c n ic a . O
c o rp o
com o
te m a ,
o
c o rp o
e x p e rim e n ta a s i m e s m o .
4 . A m o d e rn id a d e tra n s fo rm o u -s e e m
4 . O t e a t r o c o m o r e f ú g i o d a r e a l id a d e
tra d iç ã o ,
a
na
p e rd id a , m a s re a l d o q u e p o d e m s e r
p re s e n ç a
da
por
t o d a s a s m íd i a s a n a l ó g ic a s e d ig i t a is ,
d u ra ç ã o
im p re s s õ e s
a rte
é
que
que
e x is t i a
s u b s titu íd a
se
a ju s ta m
ao
c a rá te r fu g a z d a p e rc e p ç ã o a tu a l.
5.
A
p re te n s a
m o d e rn id a d e ,
re p re s e n ta
u n iv e rs a lid a d e
aos
um a
o lh o s
v is ã o
de
espaço
em
que
o
o b s e rv a d o r
se
e n v o lv e c o rp o ra lm e n te .
da
h o je
5.
Todos
os
e s tilo s
são
a d m i t id o s ,
q u e m e s c o lh e é o a rtis ta .
e u ro c ê n tric a
q u e j a m a i s f o i g lo b a l .
Quadro 3: História da Arte e Pós-história da Arte de acordo com Hans Belting.
285
As características da arte pós-histórica e da pós-história da
arte, de Danto e Belting, respectivamente, os colocam como parceiros
e defensores de uma mesma posição, ou seja, Danto define o tipo de
obra e Belting, a teoria que a sustenta. A arte moderna de Danto é a
mesma que habita o espaço idealizado de O'doherty – teoricamente,
produção e espaço já superado pela arte atual.
Gullar define a obra como um organismo vivo, ou seja, o nãoobjeto: não era um relevo, não era uma escultura, e não era um objeto
no sentido utilitário, – propriedades definidas em oposição à pintura e a
escultura. Porém, os “livros-poema” ainda constituem um objeto, em
que a argumentação de Gullar (2007, p.50) recai sobre o aspecto nãoutilitário e em defesa da sua participação, como crítico e criador, na
vanguarda neoconcreta, em especial o que a individualiza como
vanguarda, ou seja, a participação do espectador. A pureza da obra é
transferida para o artista e o artista divide a responsabilidade com o
espectador.
Se a obra se torna corpo e o corpo se torna obra, o ator e
conseqüentemente o teatro por definição, legitimam este novo “local”
da produção contemporânea – portanto a teoria da não-compreensão
também tem seu espaço garantido. Porém, questionam-se quais as
semelhanças e diferenças entre o teatro e o museu, na arte
contemporânea?
Ou melhor, entre o co-autor e o público na arte
contemporânea? O museu, nas palavras de O'doherty e Danto, ainda não
representa a produção contemporânea no que a caracterizaria como
interativa.
286
Belting coloca a arte em oposição à técnica, e assim, o teatro
em oposição às mídias analógicas e digitais. Porém, a possibilidade de
co-autoria abrange vários campos de atuação, não apenas o teatro, ou
seja, é possível “experimentar” no sentido da não-compreensão tendo
como suporte corpos oriundos de novas tecnologias, serve de referência
o livro: A arte no século XXI: a humanização das tecnologias, de Diana
Domingues (1997).
A interdependência entre arte e cultura, apresentadas no
capítulo 2: O fim da história da arte e a cultura atual (BELTING, 2006,
p.23-34) permitem compreender que ao se modificar o tipo de arte,
altera-se, de um lado a posição do público e do outro o papel atribuído
às esferas de consagração – historiadores, museus, feiras de arte.
A rte e c u ltu ra
1. O
C u ltu ra e a rte
o lh a r p a s s iv o . A n te s , o o lh a r d o
a m a n te
da
a rte
e m o ld u ra d a
p o s tu ra
do
c u ltu ra
que
p a ra
e ra
a
hom em
e le
um a
p in tu ra
m e tá fo ra
c u lto
d ia n t e
d e s c o b ria
e
C om
ta m b é m
a
a
O
o lh a r
a s s im ila
in te ra tiv o .
c u ltu ra
H o je ,
p e la
não
se
o b s e rv a ç ã o
da
s ile n c io s a c o m o s e o lh a u m a im a g e m
da
fix a m e n te
q u e ria
c o m p re e n d e r.
2.
1.
e m o ld u r a d a ,
a p re s e n ta ç ã o
in te ra tiv a
m as
num a
ta l c o m o
um
e s p e tá c u lo c o le tiv o .
fo rm a ç ã o
p a c iê n c ia
d e s a p a re c e
p a ra
e x e rc íc io
c u ltu ra l o b rig a tó rio .
2 . S u rg e
o
d e s e jo
e n tre te n im e n to ,
p e la
que
c u ltu ra
deve
com o
causar
s u rp re s a s a o in v é s d e e n s in a r, c o m o
um
e s p e t á c u lo q u e p a r t ic ip a m o s s e m
c o m p re e n d e rm o s .
3.
O
p ro g re s s o
e ra
o rd e m , h o je , o fim
de
3 . C u lt u r a c o m o la z e r . H is t ó r ia d a a r t e
d a h is tó ria d a a rte
a
p a la v ra
c o m o re m a k e à p ro d u ç ã o d o a rtis ta , a
é o fim d e u m a n a rra tiv a .
a rte
p a r t ic ip a
de
ritu a is
de
re m e m o ra ç ã o o u c o n fo rm e o n ív e l d e
fo rm a ç ã o d o p ú b lic o , a c u ltu ra c o m o
re v is ta d e e n tre te n im e n to .
4.
E x p o s iç õ e s
m a n d a m e n to
v irtu d e
da
da
s e g u ia m
a rte
h is tó ria
a u tô n o m a ,
da
a rte .
o
em
P ú b lic o
4 . E x p o s iç õ e s q u e p re p a ra m a c u ltu ra
(o u
a
h is tó ria )
s o b re
d e te rm in a d o
te m a . P ú b lic o c o m o v is ita n te c u rio s o .
c o m o le it o r d e u m liv r o .
5. O
m useu
com o
m e d ia d o r e n tre
h is to ria d o r e o a rtis ta .
o
5.
O
m useu
e
a
fe ira
c ú m p lic e s
do
m e rc a d o . O s u c e s s o d a a rte d e p e n d e
d e q u e m a c o le c io n a e n ã o d e q u e m a
fa z .
Quadro 4: Paralelo entre Arte e cultura,
Cultura e arte de acordo com Hans Belting.
287
Considerações finais
A modernidade remete ao conceito de história
fundamentada na noção de estilos: lei e forma. O estilo é o pólo
oposto do indivíduo e a garantia de visão pura. Com o fim da história
da arte, é mais importante diante do que o artista toma posição do
que a forma como o faz. As instituições que valorizam o
posicionamento do artista e / ou a vivência do público são tão
importantes quanto o “espaço expositivo” no sentido formal. A
valorização do artista ao invés da obra (forma) e do conteúdo
(história da arte), e a afirmação que obra e corpo possuem a mesma
propriedade, ressalta a mudança de regras no campo da arte; mas,
não impossibilita que o jogo continue. A liberdade de criação do
artista elege o público como seu co-autor.
Teoricamente, artista e público andam lado a lado e, na
prática?
Atualmente fazemos algumas das velhas
perguntas sobre a ausência do público e para
onde ele foi. A maioria das pessoas que hoje
contempla a arte não está contemplando a
arte; elas contemplam a idéia de 'arte' que tem
na cabeça. Poderia ser escrito um bom artigo
sobre o público de arte e a falácia educacional.
Parece que ficamos com o público errado”
(O'DOHERTY, 2002, p.94).
Retomando, ficam em aberto, três questionamentos.
Primeiro: Quais as políticas públicas brasileiras de incentivo a arte e
288
a cultura? Segundo: O espectador como co-autor pode participar de
que tipo de linguagem além do teatro? O uso de novas tecnologias
seria uma das opções? Terceiro: Têm-se instituições aptas para
educar e formar um público da não-compreensão? O museu educa
para o clássico e o moderno, e, quem forma para as novas
tecnologias?
Os posicionamentos presentes nas teorias de Danto, Belting
e O'doherty – que se somam a de Ferreira Gullar e de Hans-Thies
Lehmann. Permite reconhecer a dilação do campo artístico. Cada
qual a sua maneira, articulam: o artista, o público e a instituição.
Pode-se dizer que a distância entre a produção e o consumo é
menor, a efemeridade da obra requer uma atenção continuada, a
memória precisa ser reabastecida continuamente, a velocidade
tecnológica exige do espectador uma nova compreensão.
Uma poética da compreensão é substituída
por uma poética da atenção que armazena o
estímulo e o mantém na pré-consciência; que
lhe possibilita uma inscrição efêmera no
aparelho perceptivo sem permitir que ele se
dissipe num ato de compreensão: um rastro de
memória ao invés de consciência, a
compreensão fica adiada. (...) A práxis da
não-compreensão é uma forma de deixar
acontecer, de possibilitar uma experiência
(...) (LEHMANN, 2007, p. 146-48)
289
Referêrncias
BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. São
Paulo: Cosac Naify, 2006.
DANTO, Arthur C. Após o fim da arte: A arte contemporânea e os limites da
história. São Paulo: Odysseus Editora, 2006.
DOMINGUES, Diana. A arte no século XXI: a humanização das novas
tecnologias. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.
GULLAR, Ferreira. O novo espaço. In: AMARAL, Aracy (org.). Projeto
Construtivo Brasileiro na Arte. Rio de Janeiro: Funarte, 1977. (Original:
Jornal do Brasil. 1960).
GULLAR, Ferreira. Etapas da arte contemporânea. Do cubismo à arte
neoconcreta. 3.ed. Rio de Janeiro: Revan, 1999. (1.ed. 1985). Apêndice:
Manisfesto Neoconcreto.
GULLAR, Ferreira. Experiência neoconcreta: momento-limite da arte:
Ferreira Gullar. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
LEHMANN, Hans-Thies. Motivos para desejar uma arte da nãocompreensão. In: Urdimento – Revista de Estudos em Artes Cênicas.
Florianópolis: UDESC/ CEART. vol.1, n.09 (dez 2007).
O'DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco: a ideologia do espaço da
obra. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
VAZ, Adriana. Artistas plásticos e Galerias de arte em Curitiba:
consagração simbólica e comercial. Curitiba, PR: [s.n], 2004. (Dissertação
de Mestrado). Universidade Federal do Paraná.
ZANINI, Walter (org.). História Geral da arte no Brasil. São Paulo. Instituto
Walther Moreira Salles, 1983. 2v., il.
290
Maximalização sonora: meandros da estética musical contemporânea
Daiane Solange Stoeberl da CUNHA
1
Tão numerosas quanto as produções musicais surgidas no
século XX são as teorias que as tentam explicar. Compreender o
movimento da arte, em suas diferentes características e formas,
exige uma busca dos olhares já direcionados a ela, tanto da estética,
quanto da história, da semiologia, da sociologia. Dessa forma, a
compreensão artística é também social, histórica, filosófica.
A arte, a história e a filosofia ocupam-se de um objeto em
comum: a produção humana. Não é de hoje que as pesquisas nestas
áreas se interligam de tal forma que, por exemplo, ao se tomar a
música do século XX como foco deste estudo, tem de se considerar o
conhecimento advindo das mesmas. Assim, a fim de realizar um
estudo integrado, toma-se como fonte os estudos realizados sobre a
trajetória da música na história da humanidade, principalmente do
século XX, o conhecimento sobre estética desenvolvido nas
pesquisas que integram a filosofia e a arte, e assim a música e as
análises sociológicas realizadas pelos frankfurtianos na
problematização da estrutura socioeconômica capitalista,
1. Professora do Departamento de Arte-Educação - UNICENTRO
291
abordando questões referentes à arte-estética.
Refletir sobre a música numa perspectiva da época e do
homem na nova ordem social do mundo contemporâneo, leva-nos,
obrigatoriamente, a problematizar a produção musical em suas
diferentes perspectivas, as quais assumem posturas dicotômicas
frente a realidade social imposta no mundo capitalista. Tomamos
como ponto de partida para esta análise o pensamento de Adorno,
que se constitui num marco teórico no campo da sociologia da
música.
Estética musical em transformação
A música, como uma criação social, com função estética,
com elementos, formas e técnicas específicas, sempre se
apresentou como manifestação coletiva. A música do século XX é
intimamente marcada pelos avanços tecnológicos produzidos por
esta mesma sociedade.
Não é correta a idéia de que a tecnologia só
esteve próxima da música a partir do
dinamismo e velocidade do século XX. Como
vimos, muitas foram as conquistas
tecnológicas que permitiram o
desenvolvimento da produção musical até os
dias de hoje. Muito embora apenas o presente
nos dê a impressão de modernidade e
complexidade, a arte de se fazer música no
Ocidente sempre esteve associada à
tecnologia. Mas, mesmo assim, não podemos
deixar de afirmar que as grandes
292
transformações e avanços científicos do século
XX, foram fundamentais para uma maior
aproximação entre a idéia de tecnologia e a
música (ZUBEN, 2004, p 10).
Desde a antiguidade, a tecnologia e a cultura disponível
determinaram a sonoridade produzida. Nas composições musicais
do século XX, somam-se aos instrumentos musicais a produção de
2
sons eletrônicos. A música eletroacústica é composta com recursos
tecnológicos “...desde o surgimento do gênero em 1948” (MENEZES,
2006, p.401). O músico da contemporaneidade não precisa,
necessariamente, possuir a técnica de um instrumento musical. A
compreensão tradicional de músico, como aquela pessoa com
habilidade para executar obras musicais utilizando-se da voz e/ou
de um instrumento musical da classificação padrão orquestral, não
é, mais, a única aceita.
A utilização da tecnologia disponível nas composições
musicais passa a ser ainda mais comum nas últimas décadas. É claro
que, em toda a história da humanidade o homem apropriou-se da
tecnologia para a produção musical. Na música primitiva a música
era equivalente às possibilidades sonoras possíveis a partir do
manuseio dos aparatos tecnológicos disponíveis, assim a presença
do ruído, da música vocal, dos sons corporais, da sonoridade atonal
ligada aos rituais sagrados a caracterizam.
Passando pela antiguidade e chegando à música medieval,
observa-se, na música profana um rico berço musical no que se
2. A música eletroacústica “... é a composição especulativa realizada em estúdio eletrônicos cujos traços principais
são a espacialidade sonora ( a forma como os sons são dispostos no espaço) e a investigação harmônica e
espectral”. (MENEZES, 2006, p. 403)
293
refere à instrumentos, ritmos e estrutura, já na música sacra
medieval
a influência cultural suprimiu as possibilidades
tecnológicas da época, pois a seleção dos sons vocais em detrimento
dos instrumentais e ainda, a exclusão do ruído, acabaram por
delimitar a música ao aprimoramento estrutural, do cantochão ao
contraponto, culminando nas inúmeras vozes corais do
renascimento. A música barroca é um ótimo exemplo da exploração
tecnológica utilizada a favor da produção artística, o
temperamento instrumental, a efetivação da tonalidade e ainda,
por outro lado, a estética do dualismo: consonância e dissonância,
melodia e harmonia, som e ruído...
A história dos instrumentos musicais nos revela claramente
o caminho paralelo entre a música a as invenções tecnológicas, a
utilização de diferentes materiais e técnicas para a confecção dos
instrumentos musicais é notável no romantismo e no classicismo
onde os instrumentos sinfônicos são estabelecidos enquanto
componentes da orquestra. O aprimoramento de materiais e
também das construções civis, nos ambientes de concerto, passam a
fazer parte da intenção do compositor.
Tão importante quanto as descobertas da Física e da
Informática, é a utilização destas descobertas para construção de
uma nova produção artística. O período de transição que separa os
séculos XIX e XX é marcado por inúmeras transformações
praticamente em todas as áreas da vida social, conceituais e
culturais, científicas e artísticas, trata-se da era da informação, da
294
aceleração do desenvolvimento tecnológico, das quais as produções
artísticas não poderiam ficar aquém. Tanto a ciência quanto a arte
desenvolvem-se a passos largos. A acústica, a física quântica, a
eletrônica, contribuem, e são suporte para as composições musicais
contemporâneas.
A música de nossos dias deve ser compreendida
como configuração de relacionamentos,
definida em termos de multidirecionalidade e
multidimensionalidade e em termos
qualitativos também. Pois é o reflexo de nossa
vida cotidiana, e a vida é transformação
constante, um processo que não se permite se
prender em objetivos específicos ou
interpretações. É preciso compreender que a
humanidade deve concentrar todos os seus
esforços nesse processo de transformação
constante, pois é este que constitui o único
aspecto inalterável de nossa existência.
(KOELLREUTTER, 1990, p.10)
Para compreender melhor as modificações estéticas na
música ocidental, toma-se a sistematização realizada por
Koeullreutter (apud ZAGONEL, 1987), nesta sinopse das fases
estéticas na música ocidental, este músico, define quatro períodos
distintos: primeiro período (séc.IV-XIV); segundo período (século XXIX); terceiro período (século XX) e quarto período (século XX).
O primeiro período apresenta uma estética musical préracional, como principais estilos o romântico e gótico, com
tendência espiritual de comunicação entre homem e Deus, tendo
295
como idioma musical o modalismo, com caráter dominantemente
ftegmático, quanto a estruturação mono e bidimensional, utilizava
a escrita neumática e tinha forma poética, circular. Os
predominantes são o gótico e o romântico.
O segundo período é caracterizado por um pensar racional,
uma vivência discernente com tendência materialista. Utiliza-se o
idioma musical tonal, com caráter clagal de estruturação
tridimensional. A conceitualização de tempo é cronométrica e de
espaço é perspectívica e tinha forma discursiva, triangular. Com a
utilização da notação precisa e estilos predominantes Barroco,
Classicismo e Impressionismo.
O terceiro período diferencia-se do segundo no que se
refere: ao idioma atonal de caráter clagal e à estrutura
quadridimensional; o conceito de tempo é acrônico e de espaço é
aperspectívico; os estilos predominantes são o expressionismo e as
tendências restaurativas: neoclassicismo e o nacionalismo.
Ainda no século XX, a partir da sua segunda metade,
estrutura-se o quarto período da estética musical ocidental, no
qual o pensamento é arracional, a vivência musical é integrante e a
tendência é intelectual. O idioma musical é elemental de caráter
psofal e estruturação multidimensional. O conceito de tempo e de
espaço é perceptivo, a forma é sinerética, esférica. Utiliza-se a
notação aproximada, roteiro ou gráfica para registro dos estilos:
concretismo, ruidismo, minimalismo, estruturalimo, neotoalismo,
296
reducismo e simplicidade nova.
Nota-se
apresentam
que as transformações estéticas da músicas
uma crescente ampliação de possibilidades e
estruturas.
Ainda, de acordo com Koellreutter, dentre os vários tipos de
estética, destacam-se a Estética Fenomenológica, a estética
descritiva, a Informacional e a Normativa:
A Estética Fenomenológica é estudo subjetivo
e interpretativo de ocorrência ou fenômenos
artísticos que se definem como manifestações
de caráter emocional, percebidos pelos
sentidos, conscientizados ou não. Entende-se,
aqui, por Fenomenologia, o estudo analítico e
detalhado de um fenômeno ou de um conjunto
de fenômenos em que estes definem por
oposição às leis abstratas, ou às realidades de
que seriam a manifestação. Estética
Descritiva: aquela que descreve os fatos
observados e averiguados. Estética
Informacional: estuda as estruturas das artes
sob o ponto de vista de um sistema de signos,
ou seja, de uma linguagem. Estética
Normativa: estabelece critérios e normas para
o julgamento e a apreciação da atividade
artística. (apud ZAGONEL, 1987, p.14)
Partilhando do ponto de vista do musicólogo alemão Carl
Dahlhaus, consideramos que não há separação entre História da
Música e a valorização estética da própria música, pois toda
297
atividade musical é baseada em pressupostos estético-filosóficos.
Assim:
... a Estética Musical não é tão-somente um
campo que se restringe ao estudo
comparativoe cronológico de obras, de
gêneros musicais u mesmo das histórias da
Filosofia e da Música; la é uma área que propãe
uma interpretação histórica dos problemas da
Estética Musical, valendo-se para tanto, de
todo o campo de escritos possíveis da Música
(...) buscando criar um campo intermediário e
tradutor entre a História da Filosofia e a
História da Música. (CASNOK, 2005, 43)
Na obra intitulada Terminologia de uma Estética da Música
(1990),
Koellreutter afirma que a nova imagem do mundo,
resultante de descobertas na área da física e a reviravolta radical do
pensamento humano, levam constantemente à revisão profunda e
pormenorizada da estética da arte e, principalmente, da
terminologia de que esta se serve. Surge no século XX uma estética
musical nova, a negação de quase todos os conceitos estéticos
tradicionais. Desaparece, gradativamente, o dualismo, assim como
a consonância e a dissonância, tempo forte e fraco, tônica e
dominante, melodia e acorde. “...surge um novo repertório de
signos musicais que compreende ruídos e mesclas, natural e
artificialmente produzidos. Revela-se um novo conceito de tempo,
e nega o conceito de tempo absoluto...” (1990, p.6)
A música contemporânea apresenta uma nova estética, na
qual o som é nada mais do que um feixe de energia, escolhido e
298
selecionado pela mente humana naquela parte do universo sonoro,
acessível ao ouvido. A música atual aproxima-se de um todo sonoro,
a partitura mostra, cada vez mais, os chamados 'campos sonoros',
frutos de uma estética relativista cujos conceitos fundamentais são
o impreciso e o paradoxal, onde os valores complementares de uma
estrutura musical definida e indefinida ao mesmo tempo, os
elementos são perceptíveis e imperceptíveis, contínuos e
descontínuos.
O conceito de silêncio diferencia-se da pausa tradicional, se
torna tão relevante para a composição musical como próprio som.
Há um intercâmbio entre o som e o silêncio.
Para o compositor de hoje o silêncio è
primordial, porque ele está se perdendo na
paisagem sonora. Assim sendo, o silêncio é
matéria-prima da música, um construto tão
importante como qualquer outro parâmetro, o
que leva uma quantidade expressiva dos
compositores importante da atualidade a
considerarem-no como centro de suas
preocupações...(VALENTE, 1999, p. 79)
A Indústria cultural e a “coisificação” da música
Ao analisar a estética musical no século XX, não se pode
desconsiderar o fato de que a arte está inserida no ambiente
capitalista, no qual não pode estar alheia às influências da indústria
cultural. A arte é submetida a uma servidão: as regras do mercado
capitalista e a ideologia da indústria cultural, baseada na idéia e na
299
prática do consumo de “produtos culturais” fabricados em série.
Numa perspectiva econômica, os chamados produtores
musicais, pois não há como considerá-los artistas, produzem música
para vender. A fama e o sucesso gerado pelos meios de comunicação
de massa, associados à lógica do lucro determinam a estética
musical para tal objetivo. São as relações de poder e saber que se
manifestam nesta cultura e o que antes era usado para expressão
diferenciada, agora, atende às demandas de um padrão musical
medíocre, incluindo-se numa homogeneidade massiva. As pessoas
deixam de valorizar o diferente, a música de qualidade, a
criatividade e acabam preferindo o produto musical que incita aos
discursos sobre o sexo e produz as condições de disciplinarização
padronizada dos corpos que se agitam sob os mesmos sons e ritmos.
É a industrialização da própria arte, a cultura convertendo-se em
semicultura, a formação convertendo-se em semiformação.
Ao refletir sobre as influências filosóficas nos textos
musicais de Adorno (1903-1969) nota-se que a música exerce um
papel essencial na construção teórica do filósofo alemão. Sua crítica
social é traçada mediante uma análise sociofilosófica da música de
seu tempo, é possível compreender que o filósofo tem o elemento
musical como indicativo para verificar as transformações no
pensamento, nas ações e nas relações sociais que se moldam à
ideologia burguesa. Ao considerar a música e a arte em geral como
forma de conhecimento, como um elemento cognitivo, Adorno
nunca deixou de conceber a música como um instrumento criativo
300
de denúncia, formação e experiência estética, em face da
transformação social e da barbárie que se instalou no mundo
contemporâneo, responsável por horrores como Auschwitz e
Hiroshima.
A teoria crítica da Escola de Frankfurt se tornou muito
conhecida pela sua crítica à cultura de massa. O termo Indústria
Cultural foi originalmente formulado por Adorno e Horkheimer na
década de 30, momento em que ambos estavam muito
impressionados com o desenvolvimento das indústrias fonográfica e
do cinema.
A industrialização vivenciada por Adorno e Horkheimer,
introduzia-se também nas artes, com a invenção do fonógrafo e do
cinematógrafo, “...foi, portanto, a utilização de meios mecânicos
para multiplicar as possibilidades de audição de um concerto que
lhe sugeriu a utilização do termo indústria cultural” (PUTERMAN,
1994, p.10).
Algumas das principais idéias dessa crítica estão ligadas à
música e estão inseridas numa análise ainda maior das relações de
produção e reprodução inerentes às classes na sociedade das massas
3
que foi, desde o início, objeto do Instituto para Pesquisa Social.
Como afirma FREITAG
Ao mesmo tempo que a obra de arte e a cultura
em geral se fechavam ao consumo da classe
trabalhadora, por serem considerados bens de
consumo reservados a uma elite,
representavam em sua própria estrutura um
3
3. O Instituto de Pesquisa Social, da Universidade de Frankfurt
– Alemanha, era formado por um grupo de filósofos
e cientistas sociais que deram origem à Teoria Crítica da chamada Escola de Frankfurt.
301
protesto contra a injustiça, mas esta só
poderia ser superada no futuro. (...) Os bens
culturais, concretizados em obras literárias,
sistemas filosóficos e obras de arte são
derrubados dos seus pedestais, deixam de ser
bens de consumo de luxo, destinados a uma
elite burguesa, para se converterem em bens
de consumo de massa (...) o que é viabilizado
pela revolução tecnológica-industrial, que
permitiu promover a reprodução em série da
obra de arte ou da sua cópia (...) transforma a
cultura de elite em cultura de massa. (1990,
p.71)
Neste processo da Indústria Cultural, acontece uma falsa
democratização, onde a obra de arte se torna mercadoria do
sistema capitalista. Assim, uma falsa reconciliação entre cultura e
civilização transforma o produto cultural, que deixa de ser apenas
cultura e passa a ter um valor de troca, o qual se denomina indústria
cultural, a qual pode ser definida como a cultura produzida para o
consumo de massa, atendendo às necessidades de valor de troca,
em que o produto cultural deixa de ter caráter único para ser um
bem de consumo coletivo, avaliado segundo sua aceitação e
lucratividade. Esse processo é cada vez mais aprimorado pelas
condições modernas de produção, que com o auxílio da ciência e da
técnica, facilitam a reprodução e disseminação dos produtos,
consolidando e perpetuando a produção capitalista, de tal forma
que essa passa a ser fundamental para a sobrevivência do sistema.
Essa nova produção cultural tem função de lazer, ocupando o tempo
302
livre do trabalhador de forma que ele não reflita sobre sua
realidade, eliminando a dimensão crítica da sociedade. Na escola,
na rua, nas festas, a música – massificada – posiciona-se em lugar
privilegiado, criando uma ilusão de acesso à arte, incentivando o
consumo cada vez mais intenso, o qual traz a falsa sensação de
realização social.
A supervalorização da dimensão instrumental da razão
significa a negação de uma dimensão emancipatória que também
aparece sob a forma de negação da arte.
A arte significativa para a transformação social e política
seria aquela não-repetitiva, caracterizada pela dimensão do novo,
que preserva o que lhe é próprio e se afasta do controle racional.
Contudo, a arte, assim como a educação, os meios de comunicação,
o não trabalho, passa pelo filtro da Indústria Cultural que é uma
manifestação exemplar da Razão Instrumental.
(...) a Indústria Cultural cumpre
perfeitamente duas funções particularmente
úteis ao capital: reproduz a ideologia
dominante ao ocupar continuamente com sua
programação o espaço de descanso e de lazer
do trabalhador; vende-lhe os produtos
culturais da mesma maneira que lhe vende os
bens de consumo. (PUCCI, 1994, p.27)
Para os frankfurtianos a vida, com a industrialização, passa
a ser padronizada, isto é, as produções parecem ser semelhantes,
como conseqüência, o poder de crítica e de opção se esvai, restando
303
apenas a adaptação aos esquemas de dominação progressiva,
contribuindo para a reiteração do sistema vigente.
Na música, observamos a entrada dos meios de captação,
fixação e remodelagem do som. “A fixação do som em discos e fitas
permitiu ao ouvinte misturar repertórios de tempos e espaços
dessemelhantes, prática que, até o século passado, consistiria em
justaposição inassimilável e absurda” (VALENTE, 1999, p.80)
Para SCHAFER (1991), com o advento do telefone e do rádio,
teve início a esquizofonia, neologismo que designa o som que tem
sua origem num local e sua audição em outro,
Desde a invenção dos equipamentos
eletrônicos de transmissão e estocagem de
sons, qualquer som natural, não importa quão
pequeno seja, pode ser expedido e propagado
ao redor do mundo, ou empacotado em fita ou
em disco, para as gerações do futuro.
Separamos o som da fonte que o produz
(SCHAFER, 1991, p. 172)
Neste contexto, ainda existe a problemática do gosto, como
prerrogativa pessoal ou ainda como construção social. Em relação a
esta problemática Adorno afirma:
Se perguntarmos a alguém se gosta de uma
música de sucesso lançada no mercado, não
conseguiremos furtar-nos à suspeita de que o
gostar e o não gostar já não correspondem ao
304
estado real, ainda que a pessoa interrogada se
exprima em termos de gostar e não gostar. Ao
invés do valor da própria coisa, o critério de
julgamento é o fato de a canção de sucesso ser
conhecida de todos; gostar de um disco de
sucesso é quase exatamente o mesmo que
reconhecê-lo. (ADORNO, 1983, p.165)
A Indústria Cultural, para os frankfurtianos, é exploração,
que por sua vez é alienante, pois os homens transferem cada vez
mais para o futuro seus desejos de felicidade e realização, na
medida em que se ajustam às formas desumanas de organização da
sociedade.
Assim, por um pensar crítico sobre a Indústria Cultural, esta
é identificada como forma de manipulação das consciências, já que
se utiliza da própria cultura para se estabelecer. Com essa
transformação da cultura em semicultura, restam poucas maneiras
de se realizar uma auto-reflexão crítica, uma delas seria a estética
e, mais especificamente, a música, que segundo Adorno, preserva a
utopia de um mundo melhor.
Percebe-se, nos trabalhos de Adorno, principalmente, que
em certo momento, há uma passagem de uma análise mais
sociológica para uma análise mais ligada à estética. Esse autor é o
principal responsável pelo surgimento da chamada Teoria Estética,
inserida na Teoria Crítica, para ele é uma teorização crítica da
realidade, uma única forma consistente de negar e criticar as
condições materiais e sociais da vida social.
305
Adorno em seu ensaio sobre a regressão da audição
(ADORNO, 1983) afirma que a música está sujeita à transformação
em mercadoria, principalmente, a música considerada leve,
contudo, ressalta que certas músicas eruditas (cita a dodecafônica)
não são tão acessíveis às massas, assim se preservam fora da
indústria cultural, suas formas não se prestam a reprodução e ao
consumo.
A Teoria Estética interpreta, decifra a representação
musical, revelando os seus elementos críticos contestadores, o que
permite uma análise e uma crítica das formas materiais de
organização da sociedade. Como afirma Freitag “O fato de que a
arte não reificada se fecha a toda e qualquer conceituação é a
garantia de sua conservação como forma de representar
criticamente a realidade alienada” (1990, p.83).
A tecnificação do mundo e a reprodutividade técnica da
arte, resultam na perda da aura da obra de arte, que é massificada e
transformada em consumo de bens artísticos. Isso tudo é resultado
da modernização da sociedade burguesa no século XIX e XX.
No texto Sobre música popular (1941), Adorno faz uma
reflexão sobre o conceito de estandartização da música popular,
procura enterrar o mito de que a diferença entre a música “séria”
ou erudita com a música de entretenimento ou popular pode ser
analisada sob o aspecto de “níveis musicais”, em termos de
complexidade ou simplicidade das composições. Para o filósofo, o
problema é muito diferente dessa tradicional discussão. A diferença
306
entre as esferas musicais não pode ser adequadamente expressa
unicamente em termos de complexidade e simplicidade. Todas as
obras do primeiro classicismo vienense são, sem exceção,
ritmicamente mais simples do que arranjos rotineiros de jazz
(ADORNO, 1994, p.119). O filósofo procura mostrar que, na
verdade, os músicos são neutralizados e reorientados para
satisfazer às funções do monopólio cultural, no sentido de que os
elementos musicais devam ser estandartizados, com detalhes
atrativos, para proporcionar lucro e garantia do status quo.
Para Adorno, quando a obra de arte perde sua aura,
acontece o desvirtuamento da obra, a dissolução na realidade banal
e a despolitização do seu destinatário. Adorno, Marcuse,
Horkheimer e Benjamin concordam ao atribuir à cultura, e à obra de
arte em especial, uma dupla função:
... a de representar e consolidar a ordem
existente e ao mesmo tempo a de criticá-la,
denunciá-la como imperfeita e contraditória.
(...) ela critica o presente e remete o futuro. A
dimensão conservadora e emancipatória da
cultura e da obra de arte encontram-se, pois,
de mãos dadas. (FREITAG, 1990, p. 77)
Assim, a Teoria Estética assume a posição de herdeira da
teoria crítica, sendo uma forma de opor-se ao presente instituído,
pois por meio dela, segundo Adorno, é possível evitar a
unidimensionalização da arte, situada diante de uma sociedade em
307
que suas relações suplicam pela reprodução do sempre idêntico, a
mesmice caminha de mãos dadas com o conformismo. Isso não
significa que tenha que ser sempre assim, a educação, que não se
limita à esfera formal, mas está presente também em todas as
outras relações sociais que necessitam de algum tipo de processo de
aprendizagem, tem em si um importante papel para aceitação de
um estado de coisas contraditório em si mesmo. A diversidade de
caminhos emaranhados no percurso artístico hodierno revela, ainda
que, diante dos mecanismos da Indústria Cultural, a maximalização
musical.
A música maximalista: a nova estética musical
Se a cultura de massas é definida por Adorno e Horkheimer
como uma falsa identidade entre o universal e o particular, a música
maximalista, contrapõe-se a cultura de massas, pois insere-se na
trajetória estética musical pós-tonalista, no século XX, ampliando
as possibilidades de escuta e produção sonora, configurando não o
público musical, mas um
público dentre os possíveis numa
sociedade multicultural. A arte contemporânea, assim como o ser
humano contemporâneo, é imprevisível, ousada e diversificada,
ampliando olhares, percursos e conceitos.
Os frankfurtianos já chamavam atenção qualidade das
composições musicais, quando destacam que a substituição dos
detalhes no todo da composição musical, é notável em uma
composição mais aprimorada, o qu ao ocorre numa composição
308
simplista. Na música mais radical, segundo a Dialética do
Esclarecimento (1947), um elemento particular se relaciona
criticamente com o todo. “Emancipando-se, o detalhe torna-se
rebelde e, do romantismo ao expressionismo, afirmara-se como
expressão indômita, como veículo de protesto contra a
organização” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p.118). Na música de
massas, isso não acontece, pois o detalhe funciona como simples
enfeite atrativo para o consumo, não possuindo nenhuma
articulação dialética com a totalidade da composição. Isso fica claro
nesta citação de Sobre Música Popular: Em Beethoven, a posição é
importante só numa relação viva entre uma totalidade concreta e
suas partes concretas. Na música popular, a posição é algo absoluto.
Cada detalhe é substituível; serve a sua função apenas como uma
engrenagem numa máquina”. (ADORNO, 1994, p.118)
Dentre as abordagens musicais de Adorno além da Dialética
do Esclarecimento estão os textos O Fetichismo na Música e a
regressão da audição (1938) e Sobre música Popular (1941). Nesses,
Adorno segue uma análise da situação social da música na era do
capitalismo avançado. Anteriormente, o filósofo já havia analisado
o fenômeno do jazz como música de consumo e negócio, em um
artigo de 1936. Já no texto de 1938 sua abordagem se volta para
toda a mudança estrutural da música. Segundo uma análise do
pensamento adorniano, realizada por Valls (2002, p.118), “Sua tese
não soa mais: a música de Jazz é mercadoria, (...) e sim: “...[a]
música se tornou mercadoria”. Dessa forma, em uma primeira
309
abordagem, Adorno retoma o conceito marxista de fetiche,
atribuído ao produto musical, e logo depois estuda sua apreciação
pelo público, enquanto mercadoria. Em Sobre Música Popular o
filósofo investiga com mais profundidade o fenômeno da música de
massas e suas diferenças explícitas da música “séria” e mais radical.
O título Fetichismo na música já fornece dicas sobre o que
trata a obra: uma dupla abordagem da música em seus aspectos
objetivo e subjetivo de um mesmo processo. Tanto a música séria
quanto a música leve exerciam papéis ao mesmo tempo idênticos e
diferentes. Mas Adorno percebe que essa situação de contradição
aberta só poderá ser resolvida não no plano das elaborações formais
da linguagem musical, e sim de uma total supressão das condições
sociais que causaram e sedimentaram tal contradição: Se as duas
esferas da música se movem na unidade da sua contradição
recíproca, a linha de demarcação que as separa é variável. A
produção musical avançada se independentizou do consumo. O
resto da música séria é submetido à lei do consumo, pelo preço de
seu conteúdo. Ouve-se tal música séria como se consome uma
mercadoria adquirida no mercado. Carecem totalmente de
significado real as distinções entre a audição da música “clássica”
oficial e da música ligeira. (ADORNO, 1983, p.170)
O fator polêmico que envolve as duas esferas da música é a
transformação radical de ambas em mercadoria. Para explicar esse
fenômeno Adorno apropria-se do conceito marxista de fetichismo da
mercadoria, uma contribuição essencial para a elaboração posterior
310
de sua crítica à indústria cultural. A utilização do conceito marxista
de fetichismo compreende especificamente o âmbito das
mercadorias culturais.
Em relação ao processo de transformação da arte em
mercadoria, consiste na perda de autonomia. A música, enquanto
obra, é um objeto, mas como arte possuía certa determinação
histórica. Ao longo desse devir histórico, a música foi se
emancipando de qualquer funcionalidade. O artista era livre para
criar, sem a tutela de reis ou clérigos. No capitalismo, ela passa a
assumir outra função específica: ser vendável.
Nas palavras de Adorno,
se a mercadoria se compõe sempre do valor de
troca e do valor de uso, o mero valor de uso –
aparência ilusória, que os bens da cultura
devem conservar, na sociedade capitalista - é
substituído pelo mero valor de troca, o qual,
precisamente enquanto valor de troca, assume
ficticiamente a função de valor de uso.
(ADORNO, 1983, p. 173)
Pode-se afirmar que esta análise da situação social da música
apontada por Adorno no texto do Fetichismo na música e a regressão
da audição pode ser encontrada em todos os produtos do mercado,
não só na música, ou ainda nas artes visuais, como é mais comum, mas
toda arte está sujeita aos mecanismos da Indústria Cultural.
No entanto, a produção musical contemporânea de
vanguarda, radical e especulativa demonstra a maximalização
311
sonora enquanto a sociedade de massas, prenunciada por Theodor
Adorno, decorre da crescente decadência musical da
contemporaneidade promovida pela Indústria Cultural. O século XX
é marcado pelo início de uma verdadeira revolução musical. De
maneira acelerada, o grau de avanço e complexidade da invenção
artística passou a ser cada vez mais intenso. Enquanto para a Idade
Média o século é a unidade de medida temporal para a descrição do
avanço histórico-musical, temos que para a história da música do
século XX passam a ser a década, o ano e o mês as unidades de
medida de tempo que permitem estudar a evolução estética e
técnica.
Dessa maneira, o marco traçado por Schoenberg na
transformação estética musical, apontam para uma infinidade de
compositores, da chamada música contemporânea, com novas
regras e procedimentos emergentes de estruturação musical.
“...talvez Schoenberg seja um caso atípico de criador que foi, à sua
maneira, um pouco de cada coisa: um grande mestre, um
importante inventor e, de certa forma, um diluidor em menor
medida”. (MENEZES, 2006, p.14). Schoenberg foi o maior
evolucionário, responsável pela ruptura do sistema tonal, ocupando
o papel de protagonista do atonalismo livre. Pierrot Lunaire Op.21,
composta por este músico ainda em 1912, é atonal, rompendo com
o idioma tonal dos últimos quatro séculos, na música ocidental. Esta
composição é contemporânea de outro marco histórico, A Sagração
da Primavera (1911-1913), de Igor Stravinsky.
312
Tanto Schoenberg quanto Stravinsky são vistos como
antípodas por Adorno, em um sentido de que o primeiro representa
uma recusa em pactuar com o sistema de industrialização e
comercialização da música erudita, custando o próprio isolamento
do compositor e de conseqüências na própria qualidade de suas
composições, e o segundo como um brilhante criador que se entrega
ao sistema que Schoenberg recusara, ao preço de um
enfraquecimento progressivo de suas composições e na decadência
de escrever trilhas sonoras para filmes de Hollywood, com
qualidade inferior ao melhor de sua produção.
O procedimento diametralmente oposto de
Stravinski se impõe ao exame e à
interpretação, não somente por sua validez
pública e oficial e seu nível de composição – já
que o próprio conceito de nível não pode ser
postulado de maneira dogmática e, assim
como o do “gosto”, está sujeito a discussão –
mas, sobretudo, porque destrói a cômoda
escapatória segundo a qual se o progresso
coerente da música conduz a antinomias,
deve-se esperar alguma coisa da restauração
do passado, da revocação autoconsciente da
ratio musical. (ADORNO, 2004, p. 10)
Schoenberg marcou a história da música, com suas
composições musicais inovadoras, as quais rompiam com a estética
musical tonal, e também com suas publicações como por exemplo
Harmonia, na qual é possível compreender com profundidade o
313
funcionamento do sistema tonal, suas leis e suas propriedades,
assim como se dar conta de suas limitações e do porquê de sua
superação histórica.
A partir, deste marcante músico, amplia-se aceleradamente
o panorama da música que impregnou a escuta contemporânea, a
partir do final dos anos 40, A fim de enriquecer esta abordagem da
maximalização da música, citamos referências que constituem
produções musicais importantíssimos da segunda metade do século
XX, comparados aos de Schoenberg na primeira metade desse
mesmo século: Pierre Boulez (1925), Henri Pousseur(1929),
Karlheinz Stockhausen (1928), Luciano Berio (1925-2003), Olivier
Messiaen (1908-1992), John Cage (1912-1992), György Ligeti (19232006), Iannis Xenakis (1922-2001), Michel Phillipot (1925-1996),
Pierre Henry (1927), Philippe Manoury (1952), Alban Berg (18851935), Willy Corrêa de Oliveira (1938), Robert Schumann (18101856) Lívio Tragtenberg (1961), Gilberto Mendes (1922), Erhard
Karkoschka (1923), Mesias Maiguashca (1938), Humpert (1940),
entre outros...
Em tempo, a compreensão da arte musical numa
perspectiva da época e do homem na nova ordem social do mundo
contemporâneo, remete aos elementos sociais como cultura de
massa, o poder dos meios de comunicação e as novas manifestações
estéticas na área musical evidenciam a pluralidade de estilos e de
técnicas composicionais. A produção musical contemporânea de
vanguarda, radical e especulativa demonstra a maximalização
314
sonora enquanto a sociedade de massas, prenunciada por Theodor
Adorno, decorre da crescente desqualificação musical da
contemporaneidade. A música maximalista insere-se na trajetória
estética musical pós-tonalista, no século XX, ampliando as
possibilidades de escuta e produção sonora, configurando não o
público musical, mas um
público dentre os possíveis numa
sociedade multicultural.
A arte contemporânea, assim como o ser humano
contemporâneo, é imprevisível, ousada e diversificada, ampliando
olhares, percursos e conceitos. Assim, a diversidade de caminhos
emaranhados no percurso artístico hodierno, revela, ainda que,
diante dos mecanismos da Indústria Cultural, a maximalização
musical.
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315
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316
ZAGONEL, B. Introdução à Estética e à Composição Musical
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ZUBEN, Paulo. Música e tecnologia: seus sons e seus novos instrumentos.
São Paulo: Irmãos Vitale, 2004.
317
Aspectos da Performance Art, Happening e Body Art
possibilidades de registro e apropriação de universo pessoal
Clóvis M. CUNHA
1
A natureza híbrida da linguagem performática se constituiu
a partir de contribuições de diversas áreas como a filosofia, rituais
tribais, jogos esotéricos, tecnologia, artes e etc... Para Jorge
Glusberg, o dia 10 de dezembro de 1896, com a noite de estréia de
Ubu Rei de Alfred Jarry, no Théâtre de l'Oeuvre de Paris de LugnéPoe foi um marco para a linguagem performática. A relevância desse
evento é citada devido ao rompimento de muitos dos pressupostos
dramáticos da época, apresentando particularidades de atuação nos
recursos de entonação da voz e na elaboração do cenário e figurino.
Para discutir os eventos performáticos, Duvignaud (1970)
reporta-se a uma ascendência do evento ritualístico discorrendo
sobre o desenvolvimento do espetáculo primitivo, que centrado em
conceitos de cerimônia e rito fatalmente desembocam no
aparecimento do happening.
Em outra vertente, o surgimento dos eventos performáticos
estão ligados ao pensamento pictórico e suas relações com o espaço
de exposição. Brian O'Doherty explica o aparecimento do
1. Professor do Departamento de Arte-Educação - UNICENTRO
319
happening, da performance e, consequentemente, da body art
como uma decorrência dos procedimentos estéticos da pintura, que
se inicia
com a crise da representação no século XIX pelo
impressionismo.
Características do happening
A característica mais comum atribuída ao happening é a
interação dos participantes em um evento em que as ações nele
executadas surgem ao acaso. Esta possibilidade do acaso, de certo
modo, o aproxima de uma vivência teatral despreocupada com um
resultado estético permanente. Sendo o happening uma forma de
expressão apoiada em um sistema anárquico de composição, as
relações que possam ser estabelecidas para os elementos que
surgem casualmente caracterizam a associação caótica. Para
Kenneth King (1975) o desenvolvimento do happening é o de um
teatro em que a resposta é instantânea, ainda que não haja uma
explicação lógica ou coesa para as ações nele apresentadas. Os
happenings, como conceituou o crítico francês Pierre Restany
(1979), seriam execuções de acontecimentos em sentido universal.
O ambiente de arena oferecido pelo evento do happening
privilegiava o envolvimento direto do público. Ainda que o
happening contasse com o acaso, com a sorte, o acidente, com a
colaboração caótica de ações executadas pelo público participante,
existia nele a intencionalidade. Os acontecimentos deste evento
estão associados com os acontecimentos de vida, poderíamos,
320
então, elaborar que o procedimento de construção estética do
happening se equivale a procedimento de construção de vida.
Kaprow não entendia a arte como um processo autônomo
separado da vida pela convenção: a arte era uma parte inerente da
realidade. O happening elaborado por Kaprow era uma collage
animada, envolvendo pessoas e materiais em uma situação diante
de uma audiência.
Uma das questões interessantes do happening está na
habilidade que o evento possui de não estar territorializado, sua
identidade nômade fragiliza as tentativas de
radicação em
linguagens ou épocas, tempo ou espaço, visto que transita entre
territórios de vida e esta perpassa tudo o que determinamos que
existe, tudo o que a linguagem pode ficcionar.
Os acontecimentos nestes eventos se desenrolaram com
recursos de repetição, justaposição de imagens, objetos e
relacionamentos não causais. O acontecimento pode ser repetido,
mas a instabilidade destas relações impede o happening de ser
reproduzido, enfatizando sua característica mutável, nômade. De
acordo com Kaprow, as fronteiras entre arte e vida devem ser
mantidas fragilizadas e nebulosas tanto quanto possível para que
este evento possa existir.
Quanto à forma de atuação, artistas das variadas linguagens
parecem partilhar de uma mesma premissa: os atuantes podem ser
utilizados como elemento estético retirados diretamente da vida,
em um processo semelhante ao ready made.
321
Segundo Glusberg houve um aumento considerável de
público dos happenings no final dos anos cinqüenta e início dos
sessenta. Estes espectadores que buscavam sempre um novo evento
eram importunados e agredidos. Glusberg entende esta agressão ao
público como signo que se opõem ao ritual e as performances em
geral. Para ele esta distinção é de grande importância e evidencia
“o espírito de uma vocação litúrgica e secreta dos performers em
relação aos protagonitas do happenings.”(GLUSBERG, 1987, p.106)
Características da performance
A performance de maneira oposta ao happening, coloca
limites no lugar da ausência sugerida pelo happening. A
performance estetizou a cena, ganhou em força sígnica, delimitou
melhor o território de linguagem artística, fortalecendo uma
fronteira onde havia a linha tênue que beirava o lado terapêutico
presente no happening.
Segundo Cohen (1989, p.138), o que diferencia a
performance do happening é a “cristalização” das cenas, que
permitiu a repetição do evento. Com isto a performance elabora
uma cena mais sofisticada fazendo uso de multimídia e abolindo o
uso do improviso comum no happening, por isto ela se aproximou do
“teatro estético”. O intenso grau de esteticidade da performance
faz com que a probabilidade de intervenção do espectador seja
muito inferior do que aquela ocorrida no happening, geralmente nas
performances o público não é chamado a intervir.
322
Entretanto, como desenvolve Glusberg (1987) a
performance aparece como um meio de resgatar a história do uso do
corpo e suas reflexões culturais. Sendo rejeitado o estereótipo
corporal amplia-se o número de possibilidades a fim de resgatar as
mais variadas formas de uso do corpo, “possibilidades estas
alimentadas ou não a partir da cultura e da sociedade.” (ibidim,
p.89) As performances tentariam então resolver a contradição do
homem com sua imagem espetacular, utilizando recursos cotidianos
para finalidades inéditas. A realidade utópica da representação
passa a ser substituída pela irrupção da verdade na ação ao vivo do
performer.
Na década de 60, uma atividade performática semelhante
as que se desenvolviam nos Estados Unidos, tomava crescimento na
Europa com o nome de Fluxus, um movimento intermidiático
internacional de artistas. Este movimento colocava-se como um
movimento anti-arte, compreendendo arte como produto de uma
tradição cultural institucionalizada. O Fluxus problematizava
objetos e situações cotidianas unidas á arte. Estes posicionavam o
corpo em termos fenomenológicos, fazendo irromper a vida.
Também no Novo Realismo francês aparecem discussões
fenomenológicas, onde Yve Klein posicionou o homem como centro
do universo, somando isto as Antropometrias do período Azul em
1960, onde modelos convertidas em pincéis vivos levam a action
painting de Pollock às últimas conseqüências. Yves Klein, em uma
manhã, saltou de um edifício para a rua. Fotografado no instante do
323
salto, Yves Klein apresentava-se como a obra em si. O Salto no Vazio
foi realizado no ano de 1962, na cidade de Nice, onde Klein havia
nascido. No uso da própria imagem Klein gerava confusão entre suas
habilidades pessoais de judoca e um possível truque fotográfico.
Ainda em 1962, durante o Festival Fluxus de Música Nova, realizado
no Städtisches Museum, de Wiesbaden, Nam June Paik mergulhou
sua cabeça, mãos e gravata em uma bacia cheia de tinta com molho
de tomate e de bruços desenhou uma linha ao arrastar sua cabeça no
chão. Tanto fluxus quanto os happenings e o novo realismo francês,
refletiam a proposta fenomenológica, nascida no dadaísmo dos anos
20, na intenção de fazer irromper a vida sobre a arte,
espetacularizando a existência cotidiana.
Na performance predominará o trabalho individual, que se
apresenta como uma leitura de mundo a partir da identidade do
artista, opondo-se ao trabalho coletivo que é a principal
característica de um happening. Renato Cohen (1989) reconhece na
performance uma marcante influência das artes visuais, onde o
performer conceitua, elabora e executa sua performance de modo
individual, semelhante a criação artística das artes visuais. Cohen
diz que a exposição do artista seria uma “pintura viva” utilizando
recursos da dimensionalidade e da temporalidade.
Desse modo, a performance contamina as artes cênicas com
procedimentos das artes visuais, que nos anos oitenta se desenrola
com o aparecimento do espetáculo autoral, no qual o diretor encena
suas memórias, referências, informações, teorias de áreas diversas,
324
como se construísse um quadro em collage, tornando a construção
da cena um ato individual como fez Gerald Thomas e Bob Wilson.
Performances são ações que não envolvem produção de
objetos concretos. O que se produz com a performance é um objeto
de qualidade semiótica e instantânea. A irrupção da vida como
matéria de construção da cena deflagra simbolicamente novas
alternativas, abarcando novas paisagens na concepção do corpo
como matéria significante, com intuito de lucrar uma quantidade de
significados multifacetados que se relacionam em contextos
artificiais.
Body art
O corpo apropriado como espetáculo da arte edificando
sobre si a identidade do indivíduo como temática artística acaba por
caracterizar a ação performática, evidenciando uma relação
sempre presente entre body art e performance. Estas são
fenômenos relacionáveis e possuem forma de expressão que
convergem consideravelmente entre si. Battcook define a body art
como arte que desenvolve referência direta ao corpo do artista.
Toda performance acarreta em seu desenvolvimento a expressão da
body art, visto que o corpo do artista é o centro de um discurso
propriamente individual, ainda que sua presença não
se faça
presente na cena performática.
Na performance art, o eu do artista é vinculado em um
processo radical, que realça sua liberdade temática fazendo com
325
que se organizem roteiros a partir de seu próprio ego (COHEN,
1989). Entretanto, Battcook grifa que nem todo espetáculo que
exiba um corpo pode ser considerado uma forma de body art. Mas a
complexidade do assunto vem do fato de que algumas formas de
expressão da body art podem ser autênticas performances.
De acordo com Licht (1975), a body art se
distingue tanto da teatralidade do Happening
quanto da formalidade da dança que lhe foi
contemporânea, embora tenha sido
influenciada por ambas. A body art é
primariamente pessoal e privada. Seu
conteúdo é autobiográfico e o corpo é usado
como o corpo próprio de uma pessoa particular
e não como uma entidade abstrata ou
desempenhando um papel. O conteúdo dessas
obras coincide com o ser físico do artista que é,
ao mesmo tempo, sujeito e meio da expressão
estética. Os artistas eles mesmos são objetos
de arte. Mesmo nos trabalhos criados para
existir apenas na forma de documentação
fotográfica ou videográfica, o poder da
fisicalidade e a diretividade psicológica do
gesto transcendem sua representação
imagética. (SANTAELLA, 2003a, p. 261)
Santaella (2003) diz que toda performance é body art se
observado determinados aspectos que lhe são característicos, pois a
presença do corpo ao vivo não é tão relevante quanto a ação que se
executa sobre ele. Porém, Santaella aponta que para alguns autores
326
é importante fazer distinções, ainda que sutis entre uma e outra
linguagem, onde a body art torna-se um termo mais abrangente do
que arte performativa, “... porque a body art envolve também
imagens e outros projetos em que o artista se desempenha de vários
modos” (p.261).
O que gera diferença na apropriação do corpo e da
identidade deste é a atitude estética que o corpo recebe perante os
olhos do público e do artista. A body art, na performance, aparece
disposta a problematizar a possibilidade ilusionista da
representação, vinculando diretamente a produção de uma ação
aparentemente real como atitude poética: “Isto se deve ao fato de
que o corpo humano é a mais plástica e dúctil das matérias
significantes, a expressão biológica de uma ação cultural”.
(GLUSBERG, 1987, p.52)
Pode-se compreender que a body art somente aparece
como forma artística no momento em que a performance se
estabelece como linguagem, ainda que anteriormente se
encontrem corpos em condições de arte. Isso se dá, de certa
maneira, porque a body art não teria para si uma mídia individual,
ainda que o corpo se apresente como mídia primária de sua
linguagem; esta para se expressar apropria-se de outras mídias
como o vídeo, a fotografia, a apresentação ao vivo, vozes gravadas,
pinturas, esculturas, instalações etc... Por volta do ano de 1964
[...] Jasper Johns deixava traços físicos de seu
próprio corpo nas suas pinturas e esculturas,
327
intitular body art, “revelando que o artista e sua obra se fundem em
uma mesma realidade e que o artista ele mesmo tem uma presença
estética” (SANTAELLA, 2003a, p.253) Ainda em 1920, Man Ray
fotografa Duchamp travestido de mulher, personagem que recebe o
nome de Rrose Sèlavy “transformando em arte a experiência da
encenação do sexo oposto” (p.253).
Tadeusz Kantor encena seu universo pessoal, deixando-se
ver na cena como personagem e como diretor. Seus atores, em
alguns casos, buscam a não-representação, desejando apenas ser e
colaborando para que o indivíduo seja lugar de ação artística. A
encenação da memória, do universo pessoal do artista utiliza sua
presença física em cena, como fazem Kantor e Gerald Thomas, não
representando personagens, mas apresentando a si próprios, como
faz um performer, interferindo, gerando dramaturgias paralelas,
apropriando-se de sua própria vida e fundamentalmente sendo
apropriado por sua obra.
Corpo em atuação, representado ou apropriado
No Teatro Cricot-2 de Tadeusz Kantor:
O ator (..) não procura ser expressivo, nem
quer ser espontâneo; em suma, não tenta
representar. Provoca, apenas, com sua
presença física, uma espécie de
estranhamento muito concreto no
espectador.” (AZEVEDO, 2002, p. 40) O corpo
se apresenta como um fator determinante,
328
símbolo da vida individual, do conteúdo
pessoal que cada ator carrega consigo.
“Kantor leva os atores ao seu verdadeiro ser;
não pretende outra coisa do que representem
seus próprios personagens. Não existem
papéis, no entanto quando existe um papel, o
ator não o interpreta: o toma e o assume
(ROSENZVAIG, 1996, p.29).
A utilização do conteúdo pessoal do ator vai aparecer no
teatro de Bob Wilson, no qual pessoas comuns são utilizadas como
elementos estéticos, fazendo uso de donas de casa e loucos como
atuantes, pois segundo Renato Cohen, Wilson trabalha com pessoas
e não com intérpretes. Desta forma os loucos em seus espetáculos
iniciais são verdadeiros loucos e não loucos interpretados por
atores.
No intitulado Teatro Zero, Tadeusz Kantor afirma ser
possível um estado de não-representação por apropriação do
indivíduo. No qual a não-representação é
[...] quando o ator se aproxima de seu próprio
estado pessoal e de sua situação, quando
ignora a ilusão (o texto) que o arrasta sem
parar e o ameaça. Quando acredita no seu
próprio curso dos acontecimentos, estados,
situações, que entram em colisão com o curso
dos acontecimentos da ilusão do texto, ou
estão completamente isolados. (KANTOR,
2003, p.118-119)
329
enquanto Bruce Nauman se deixava fotografar
com água saindo da boca, no seu Portrait of the
Artist as a Fountain. Pouco mais tarde, em
1969, Nauman usou uma câmera lenta para
explorar fenomenologicamente seus
movimentos faciais” (GLUSBERG, 1987,
p.259).
Em 1969, Barry Lê Va executou a performance Velocity
Piece 1 e 2, correndo de um lado para o outro de uma sala, batendo
violentamente o seu corpo contra duas paredes a uma distância de
15 metros uma da outra. Desenvolveu esta ação até esgotar sua
resistência. Um equipamento gravava o som de seus movimentos no
espaço, ao mesmo tempo em que sua atividade ficava visualmente
registrada nas manchas de sangue com que seu corpo marcava a
parede.
Depois do evento, os convidados a ouvir os
resultados de sua performance, seguiam o som
passo a passo no movimento em pinguepongue de suas cabeças. Para Nemser, o corpo
fantasmático de Lê Va deixou no espaço uma
impressão de lugar assombrado (SANTAELLA,
2003a, p.258).
Com a body art tomando o corpo do performer como lugar
artístico surge apropriações do próprio corpo ou identidade do
artista como matéria. Em 1919, Duchamp corta o cabelo em formato
de estrela, “gesto que pode ser visto como um vislumbre da arte da
performance” (GLUSBERG, 1987, p.19), anunciando o que viria a se
330
Kantor toma fascínio com a possibilidade de transgredir as
convenções aparentemente indissolúveis do teatro tradicional. E
elaborando o pensamento da cena a modo de collage e sobreposição
como é característico na performance ele ressalta:
De um lado a realidade do texto, do outro o
ator e seu comportamento. Dois sistemas sem
relação, independentes, que não se ilustram. A
conduta do ator deve paralisar a realidade do
texto. Então, a realidade do texto se fará
concreta. É possível que seja um paradoxo,
mas não no que diz respeito a arte (KANTOR,
2003,, p.118-119).
O conflito entre vida e ficção apresentado por Kantor não
está ligado a uma metodologia de interpretação, tem na
apropriação do comportamento, do conteúdo pessoal como
elemento estético forte apelo, trazendo e revelando a cena seu
corpo vivo: “Kantor não tem preocupação com a técnica do ator,
como preocupava a Stanislavsky, não pretende desenvolver uma
metodologia de trabalho, ao contrário, cada obra teria o seu próprio
método, seria a resultante de novas teorias estéticas”
(ROSENZVAIG, 1995, p.27).
Esta busca estética não se restringiu a uma fase de seu
trabalho, quando no Cricot2, reconstrói sua busca apresentando um
elenco formado de atores profissionais e não-profissionais e
2
também de pessoas “diretamente retiradas da vida cujo papel
cênico está de acordo, em determinado sentido, com o seu próprio
papel na vida” (KANTOR, 2003, p.222).
2. Se refere a pintores, poetas, teóricos da arte que chegam ao teatro por caminhos diferenciados aquele trilhado
pelo ator de teatro, enriquecendo, segundo Kantor de tal modo o seu formato geral.
331
Do encontro de Kantor com Allan Kaprow ficou o interesse
por uma linguagem contemporânea traduzida ao teatro. Desta
influência é possível identificar uma alteração das possibilidades
estéticas da cena teatral. Esta influência não age exatamente sobre
a prática de interpretação alterando seu desenvolvimento, mas traz
para o teatro uma maior variedade de ocupação do corpo enquanto
elemento cênico.
Desta forma, o corpo vivo colado a uma dramaturgia
construída a partir de universo pessoal do artista, ocupa a cena de
Tadeusz Kantor, Bob Wilson e mais tarde em Gerald Thomas.
No desenvolvimento do happening Kantor afirma apropriar-se
3
DA REALIDADE COMPLETAMENTE PRONTA,
prévia (ready made), os fenômenos e os
objetos mais elementares, os que constituem
a “massa” e a “mistura” de cada dia, me sirvo
deles, jogo com eles, os privo de função e
finalidade, desarmo-os e os inflamo,
deixando-os levar uma existência autônoma,
dilatando-se e evoluindo livremente e sem
objetivo (KANTOR, 2003, p.172).
Ao se alimentar, Kantor acaba incluindo na mistura da
“massa” a apropriação da realidade de maneira inversa ao que fez o
artista Yves Klein.
Klein, em sua produção, utilizou inúmeras apropriações do
corpo, tornando inclusive o seu próprio corpo em obra de arte. Em
outras de suas obras o corpo do público era transmutado:
3. Preservei na tradução a caixa alta existente no texto original.
332
“Chegamos – diz Klein – ao teatro sem ator, sem decoração, sem
cenário, sem espectador..., nada mais permanece com o criador só,
que não é visto por ninguém, exceto pela presença de ninguém, e o
teatro-espetáculo começa” (KLEIN, apud. ARNALDO, 2000 p.54). Em
sentido inverso a Kantor – que se apropria da “massa” e do “estado
pessoal”, gerando uma “mistura” para legitimar a cena – Klein, ao se
apropriar da “massa”, atinge a dissolução do teatro, a fim de
romper a distinção entre vida e arte: “Nos trabalhos do teatro do
Vazio se dramatizava a queima ininterrupta do supérfluo”
(ALCUBILLA, 2000, p.57.) O supérfluo seria a ilusão, a convenção,
assim com sua
eliminação o conflito entre corpo vivo e corpo
ficcional estaria descartado.
Os vínculos que as apropriações de Yves Klein possuem com
o teatro são ainda mais estreitos: “ 'criar uma espécie de teatro
privado, a
se freqüentar (afetivamente) por abandono', era a
4
proposta de Klein, que, no texto, se reconhecia em dívida com
Antonin Artaud.” (ALCUBILLA, 2000, p.57) Afirma, ainda, Arnaldo
Alcubilla , que o “Teatro do Vazio” antecipou muitos feitos
posteriores de um teatro mais radical, que por sua vez se
conectavam com um teatro mais recente, o do Absurdo.
Como o corpo vivo traz consigo um caminho já trilhado
anteriormente à sua presença cênica, o ator não necessita
“representar”, nem mesmo “tentar ser”, requer apenas “estar”,
permitindo que o espectador faça sua leitura, o produto estético
não se desvinculará da ação do corpo: “A pintura como arena da
4. Journal du Dimanche, jornal onde publica toda a intervenção do “Teatro do Vazio”.
333
ação (action painting) tornou-se ato corporal na tela, terminando
em uma pintura no próprio corpo humano, uma ação sem tela, até o
limite do corpo em si, encenando, seja lá o que for mesmo a inércia,
se transformar em arte” (SANTAELLA, 2003a, p.252).
Este corpo que é vida também é elemento estético
(modificado pela história da representação) em similaridade aos
ready mades de Duchamp. Esta alteração estética somente
acontece devido aos seus vínculos com o olhar, o lugar, e a
apropriação. São estes três elementos estéticos indispensáveis na
análise ou construção do corpo como obra de arte.
Apropriações presentes na cena
Para Grotowski as ações físicas são recordações do
intérprete, e as associações que este faz são “um retorno a uma
recordação exata, pois 'foi nossa pele que não esqueceu, nossos
olhos que não esqueceram. O que escutamos pode ainda ressoar
dentro de nós” (GROTOWSKI apud. AZEVEDO, 2002, p.29).
Imediatamente associado a uma percepção de si, o corpo é o
conteúdo pessoal do ator, a memória é transferida para a pele, pois
é “a pele que não esqueceu”. A pele é o motivador dos sentimentos,
é o interruptor que aciona os sentimentos, talvez por isto artistas da
body art mutilem o corpo, seria uma forma direta de atingir a
memória da pele. A mutilação então se apresenta como uma
referência a dor física que não se pode ver, mas que necessita
ganhar visibilidade, para que se reconheça a possibilidade da
334
cicatrização, ainda que provisória.
Nos anos 60 e 70 muitas foram as performances de artistas
que alternaram entre estados de
(..) intensa sensação física e desprendimento
cerebral extremo. Em entrevistas, esses
artistas não admitiam qualquer sentimento
pessoal de dor ou prazer enquanto realizavam
suas atividades, pois seus corpos eram
tomados simplesmente como materiais ou
instrumentos para a descoberta de processos
físicos e psíquicos. (SANTAELLA, 2003a, p. 258)
As apropriações como estratégias de construção dos
happenings e performances são absorvidas e transpostas para as
estruturas teatrais, e isto inclui a apropriação do conteúdo pessoal
daquele que atua como foi tratado no teatro de Kantor. Claramente
tais apropriações trouxeram novas formas de exploração no que diz
respeito ao treino do ator como também influenciaram na
organização de outros elementos que constroem a cena. Galizia
(1986) conta que, Bob Wilson por influência do modo pessoal de
Christopher Knowles construir arquiteturas poéticas com palavras
iniciou o tratamento arquitetônico do texto mais característico de
sua obra. Knowkes era aluno de uma escola especial onde era
considerado uma criança autista. Wilson ouviu uma gravação de
uma poesia feita por Knowles:
335
Eu não o conhecia, mas fiquei intrigado com a
fita. Fiquei ainda mais maravilhado quando o
conheci e percebi o que ele fazia com a
linguagem. Ele usava palavras quaisquer, do
dia-a-dia, e as destruía. Elas tornavam-se
como que moléculas, mudando sem parar,
quebrando-se em pedaços o tempo todo,
palavras multifacetadas, não uma linguagem
morta, mas como uma rocha se desintegrando.
Ele estava sempre redefinindo códigos. (BOB
WILSON, apud. GALIZIA, 1986, p. 27)
Knowles, aos 14 anos de idade, participou de uma cena da
peça A Vida e a Época de Joseph Stalin (1973), de Bob Wilson.
Depois de colaborações em mais três peças, Wilson desenvolveu
uma maneira própria de elaborar seus textos baseando-se nas
estruturas matemáticas que tanto apreciava em Knowles. Wilson
utiliza o texto como apenas um dos elementos teatrais, divide-o
“proporcionalmente entre as sessões de cada peça” (GALIZIA, 1986,
p.29). Para Galizia, seria como se Wilson estivesse utilizando a
técnica de Knowles de sua própria maneira, em seu próprio sentido
geométrico.
De maneira diferente, o conteúdo pessoal é apropriado no
teatro de Gerald Thomas. Em entrevista a Helio Ponciano, o diretor
se refere a uma “metalinguagem” adotada nos espetáculos, que
serve para apresentar suas alegorias vinculadas à “realidade dos
atores”:
336
É assim que Julian Beck, o fundador do
lendário grupo Living Theatre, representou,
com câncer terminal, um ator morrendo em All
Stange Away e That Time; que Fernanda
Montenegro e Fernanda Torres faziam mãe e
filha em The Flash and Crash Days; Marília
Gabriela, uma apresentadora de TV em
Esperando Beckett (2000); Reynaldo
Gianecchini, um ator desesperado no
hamletiano O Príncipe de Copacabana (2001).
Esse procedimento, de certo modo e
necessariamente, se amplia em Um Circo de
Rins e Fígados. (PONCIANO, 2005, p. 83)
Com interesse de “distanciar”, ou melhor, de dificultar o
acesso do espectador à ficção, à fábula, Thomas se apropria do
conteúdo pessoal destes atores na construção de seus espetáculos,
mas também insere na cena o seu próprio conteúdo pessoal. Suas
encenações são marcadas por uma narrativa feita na própria voz do
diretor, interferindo ou contrastando sobre as imagens cênicas.
Silvia Fernandes (1996) comenta a presença do encenador sobre o
palco, que se dá em situações específicas sem apresentar
possibilidades de alguma personagem em sua ação: “O performer
que está em cena é o próprio Gerald Thomas encenador, sem a
proteção de nenhuma máscara ficcional” (FERNANDES, 1996, p.
267).
O diretor afirmando sua presença não ficcional sobre a
cena, como também fez o performer, de forma espontânea ou
337
induzida, por apropriação, marcam a influência de linguagens
performáticas na construção da cena contemporânea;
apresentando-se como características relevantes do teatro de nosso
século.
Referências
ARNALDO ALCUBILLA, Javier. Yves Klein. Madrid: Editorial Nerea
2000.
S.A.
AZEVEDO, Sônia Machado. O Papel do Corpo no Corpo do Ator. São Paulo:
Perspectiva, 2002.
BATTCOCK, Gregory. A Nova Arte. São Paulo: Perspectiva, 1975.
COHEN, Renato. Performance como Linguagem. São Paulo: Perspectiva,
1989.
DUVIGNAUD, Jean. Espetaculo y Sociedad. Del teatro grieco al
happening:funcion de lo imaginario en la sociedad. ?: Editorial Tiempo
Nuevo S.A., 1970.
FERNANDES, Silvia e GUINSBURG, j. Um Encenador de Si Mesmo: Gerald
Thomas. São Paulo: Perspectiva, 1996.
GALIZIA, Luiz Roberto. Os Processos Criativos de Robert Wilson: trabalho
de arte total para o teatro americano contemporâneo. São Paulo:
Perspectiva, 1986.
GLUSBERG, Jorge. A Arte da Performance. São Paulo: Perspectiva. 1987.
338
KANTOR, Tadeusz. El Teatro de la Muerte. Buenos Aires: Ediciones de la
Flor. 2003.
KING, Kenneth. Por um Teatro de Dança Transliteral e Transtécnico. p.
151-159 In: BATTCOCK, Gregory. A Nova Arte. São Paulo: Perspectiva, 1975.
PONCIANO, Helio. O Paradoxo G.E.R.A.L.D. In revista Bravo! n.92, 2005.
RESTANY, Pierre. Os Novos Realistas. São Paulo: Perspectiva, 1979.
ROSENZVAIG, El Teatro de Tadeusz Kantor, el uno y el otro. Buenos Aires:
Editorial Leviatan, 1996.
SANTAELLA, Lucia. Culturas e Artes do Pós-humano, da Cultura das Mídias
à Ciber Cultura. São Paulo: Paulus, 2003a.
Catalogo de exposição Metacorpos. São Paulo: Paço das Artes, 2003b.
339
PARTE V
A Mulher na História e na Mídia
Mulheres do além-mar lusitano e suas estratégias de bem viver.
Curitiba (1695-1805)
1
2
Milton STANCZYK FILHO
A historiografia há muito tempo vem apontando o papel da
mulher no período colonial. Sob os mais diversos aspectos, ampliamse temáticas que buscam representar a vivência feminina. Podem
ser observadas, por um lado, olhares que atrelam a mulher à família
ou subjugada a figura de um “pater familia”. Por outro, o de
demonstrar os caminhos pelos quais a mulher pode ser reconhecida
enquanto agente num universo, por excelência, gerido pelo homem.
A proposta que norteia este texto, visa contribuir para o
debate acerca do papel da mulher, sobretudo aquelas que vieram a
residir nas terras do além-mar lusitano, nas franjas do Império, no
correr do seiscentos para o setecentos. A localidade analisada é a
região da Vila de Curitiba e de seus sertões, mais especificamente
entre 1695 e 1805. O estudo terá como foco a trajetória de vida de
duas famílias radicadas nesta localidade, atentos, principalmente,
ao papel que a matriarca exercerá para a busca e manutenção da
honorabilidade do grupo familiar.
1. Este texto é parte de uma discussão integrante à dissertação de mestrado intitulada À luz do cabedal: acumular
e transimitir bens nos sertões de Curitiba (1695-1805), defendida em 2005 junto ao programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal do Paraná, e continuada na Pesquisa de Dedicaçao Exclusiva junto ao grupo
de pesquisa Política, Poder e Instituições do Departamento de História da Universidade Estadual do Centro-Oeste
– UNICENTRO.
2. Docente do Departamento de História - UNICENTRO
343
Neste ponto, vale destacar, sob explicações diferentes, o
3
papel da família e das redes parentais no Brasil colônia. Neste
trabalho, entende-se a concepção de família como um arranjo
horizontal entre parentes, ou seja
cada familia proviene de la unión de otras dos
familias, lo cual quiere decir también que
proviene de su fragmentación: para que se
funde una familia es necesario que dos se vean
amputadas de sus miembros (...) Este
perpetuo movimiento de vaivén, que
desagrega las familias biológicas, transporta
sus elementos a distancia y los agrega a otros
elementos para formar nuevas famílias, teje
redes transversales de alianza en la que los
fieles de la iglesia 'horizontal' ven lás líneas de
fuerzaz que sirven de base e incluso engendran
toda organización social. (LÉVI-STRAUSS,
1988, p.12)
Este conceito seria apropriado para fundamentar estudos
que focalizam a América portuguesa, pois ao consultarmos o
dicionário de Antonio de Moraes Silva, de 1813, encontramos a
família definida como “as pessoas, de que se compõe a casa, e mais
propriamente as subordinadas aos chefes, ou pais de família. Os
parentes e aliados.”(SILVA, 1813, vol.II, 13). Tendo isso em vista,
observa-se que a 'família' exerceu importância fundamental no
344
3. Neste ponto tendo a concordar com Ronaldo Vainfas e Sheila de Castro Faria no que diz respeito ao
patriarcalismo, quando se estuda o período colonial brasileiro, pois família extensa e patriarcalismo não são
sinônimos e nem patriarcalismo e família conjugal se excluem. Se anteriormente estava-se preocupado em
analisar o domínio e o prestígio social dos senhores escravistas, ou seja, o poder local, agora os estudos têm
apontado para a atuação e a organização dos diversos grupos no conjunto social, tentando entender a lógica de
suas condutas. Ver: (VIANNA, 1987), (ALMEIDA, 1987, 53-66), (CORREA, 1994), (VAINFAS, 1998), (FARIA,
1998).
funcionamento e na montagem das atividades econômicas, nas
relações sociais e políticas dos indivíduos, assim como em suas
trajetórias de vida. “Da ou para a família, não necessariamente a
consangüínea, que todos os aspectos da vida cotidiana ou pública se
originavam ou convergiam.” (FARIA, 1997, p.256).
No Antigo Regime, a referência social ao indivíduo era
frágil, sendo sua identificação social quase sempre associada ao seu
pertencimento a um grupo mais amplo. Nota-se que o termo família
aparece no verbete de Moraes Silva, junto a elementos que
extrapolavam os limites da consangüinidade, entremeando-se à
coabitação e à parentela, incluindo relações rituais e alianças
políticas. Diante disso, pode-se inferir que, em muito, a família a
que pertencesse o indivíduo determinava sua condição social. Mas,
se o escravismo situava dois pólos opostos naquela sociedade,
colocando livres e escravos em esferas distintas, esta clivagem
jurídica não exauria toda a vasta gama de atores sociais que
interagiram no palco da colônia.
Estudos vêm mostrando que os mestiços de toda ordem
buscavam 'alçar condição', porque entendiam o sistema de
classificação que ordenava a posição das pessoas naquela sociedade
(LEWCOWICZ, set. 1988/ fev. 1989, p.101-114). A liberdade e a
posse de outros homens, conforme Laima Mesgravis, não era
suficiente para o exercício do poder ou gozo da estima social. “Para
tal era preciso ser 'homem bom'; 'um dos principais da terra'; 'andar
na governança'; 'viver à lei da nobreza'; 'tratar-se nobremente'; 'ser
345
limpo de sangue'; 'não padecer de acidentes de mecanismo'.”
(MESGRAVIS, 1983, p.799).
Como se sabe “homem bom” era uma expressão que refletia
uma atitude mental típica do Antigo Regime. Era incapaz de
considerar os indivíduos nascidos iguais e portadores dos mesmos
direitos. Eram o sangue, a linhagem, a ocupação e os privilégios que
estabeleciam as diferenças. “Homem bom” era aquele então, que
reunia condições para pertencer a um estrato social distinto o
bastante para manifestar a sua opinião e exercer determinados
cargos. No Brasil Colônia, associava-se em particular àqueles que
podiam participar da “governança” municipal, elegendo e sendo
eleito para os cargos públicos que, então, estavam reunidos nas
Câmaras, principais instâncias da representação locais da
monarquia (VAINFAS, 2000, p.284).
Neste ponto, observa-se que a distinção era uma das
principais metas que grande parte das famílias almejavam dispor.
Mesmo nos mais longínquos rincões da América Lusa, não se
pouparam esforços para alçar ou para manter posições dentro da
sociedade a fim de gozar de prestígio e distinção social. Entretanto,
ser livre não era suficiente para o gozo de reconhecimento.
A idéia do 'ser nobre' atuava no sentido de conformar
oposições distintas, que acabava criando uma miríade de pequenos
traços distintivos entre as pessoas, que eram zelosamente
cultivados por quem os conquistava, independendo da maneira pela
qual foi conquistado. Afinal estávamos em uma sociedade
346
outros homens e, no mesmo esteio, pelo pertencimento às
instâncias que controlariam o ordenamento social.
Através da recomposição da história de vida de Maria Maciel
Barbosa e Maria Rodrigues, cujas famílias representam os primeiros
moradores da vila de Nossa Senhora da Lux dos Pinhais de Curitiba, é
possível observar as relações sociais que suas famílias
estabeleceram na localidade e analisar o peso que essas mulheres
tiveram no encaminhamento de sua vida e a de seus descendentes,
ao longo do século XVIII.
Esta breve reconstituição da vida de Maria Rodrigues teve
como fonte principal seu Processo de Auto de Contas de 1750-1756
no qual está anexo seu testamento. Esse processo encontra-se no
Arquivo Metropolitano Dom Leopoldo Duarte, da Mitra
Arquidiocesana de São Paulo. Caixa: Testamentos 05-01-05 –
Processos Gerais Antigos – 1727-1777. Já a vida de Maria Maciel
Barbosa foi reconstituída através dos Processos de Auto de Contas de
seu filho Antonio Rodrigues Seixas de 1736, com testamento em
anexo de 1733. Este processo também se encontra no Arquivo
Metropolitano Dom Leopoldo Duarte, da Mitra Arquidiocesana de
São Paulo. Caixa: Testamentos 05-01-05 – Processos Gerais Antigos –
1727-1777. Ainda foram acrescidos os assentos de catolicidade
(batizado, casamento e óbitos) dos livros da Catedral Basílica Menor
de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba, além de
informações retiradas do “Dicionário Histórico e Geográfico do
Paraná” de Ermelino de Leão.
347
multiracial e desde o primeiro momento, conforme destaca muito
bem Gilberto Freyre, os portugueses não tiveram o menor pudor em
atuar no sentido de criar uma sociedade mestiça.
Vê-se que nobre, no dicionário de Antonio de Moraes Silva,
está definido como “conhecido e distinto pela distinção, que a lei
lhe dá dos populares, e plebeus, ou mecânicos, e entre os fidalgos
por grandes avoengos, ou ilustres méritos.” (SILVA, 1813, vol.II,
p.409).
Remete, portanto, para a existência de dois tipos de
nobreza: uma calcada no sangue, na linhagem, que passava de pai
para filho, formada pela alta aristocracia; e outra que estava
assentada em serviços prestados à Coroa, fosse pelo bom exercícios
de funções públicas ou, particularmente após a expansão marítima,
aos feitos prestados à monarquia lusa na própria construção do
Império Português. (FRAGOSO, BICALHO, GOUVÊA, 2001). Como
aponta Maria Beatriz Nizza da Silva em conformidade com o
tratadista luso Luís da Silva Pereira Oliveira, uma seria a 'nobreza
natural' e a outra a 'nobreza civil ou política'. (SILVA, 2005, p.16).
À medida que a nobilitação era um ideal disseminado na
sociedade que se organizou na América portuguesa e que no novo
mundo haviam brechas para alçá-la, muito dos homens e mulheres
que por aqui se radicaram desenvolveram estratégias com vista a
conquistar sua própria distinção. Os caminhos mais recorrentes para
o enobrecimento apontados pela historiografia, foram percorridos
por aqueles que se empenharam em associar-se a grupos de elite,
particularmente pela via matrimonial, pela posse da terra e de
348
O fio condutor desta investigação foi à busca de reorganizar
suas “estratégias do bem viver”, expressão utilizada para designar
um conjunto de atos que compreendem os arranjos matrimoniais,
organização parental e formação de 'cabedal'.
Mais um reinol em terras além-mar: o núcleo familiar de Maria
Maciel Barbosa
João Rodrigues Seixas, nasceu no Reino, na pequena vila
medieval de Vianna do Castelo, situada à margem da foz do Rio
Lima, na região do Alto-Minho. Era filho do Capitão Antonio
Rodrigues Seixas e de sua mulher Catharina Martins. A
documentação compulsada não nos permite saber se ele veio para
os domínios ultramarinos acompanhado de familiares ou não,
apenas que ele emigrou muito jovem.
Aqui chegando, estabeleceu morada inicialmente em
Cananéia, no litoral da capitania de São Vicente. Essa localidade já
agrupava população desde o início da chegada dos portugueses na
América e era um centro razoavelmente importante no contexto
regional. Em Cananéia, segundo a interpretação espanhola,
passaria o meridiano de Tordesilhas e, portanto, os portugueses se
ocuparam de incentivar fixação populacional bem como de que ela
se irradiasse pelo litoral sul, com vistas em garantir sua dominação
territorial. Além do mais, o intenso tráfego de navios portugueses,
espanhóis e de outras nações européias, particularmente no século
349
XVI, acabou concentrando desde muito cedo nessa região náufragos
(o mais famoso dele, o “bacharel de Cananéia”) e pessoas banidas
do reino que, interagindo com a população ameríndia, vão
produzindo a população mestiça, marca do caiçara paulista.
Até onde avançou a investigação, João Rodrigues Seixas ali
residiu por aproximadamente 30 anos e nesse período conheceu e
contraiu núpcias com Maria Maciel Barbosa. Como tantos outros
portugueses, casou-se com moça da terra, e pouco depois esta deu à
luz um menino, o primogênito Antonio Rodrigues Seixas, que
recebeu o nome do avô paterno.
Por algum motivo, talvez o de buscar melhores condições de
vida e novas oportunidades, João partiu de Cananéia e rumou com
sua família para o sul, transpondo a Serra do Mar e se fixando em
área do planalto. Naquela época eram poucos que faziam isso com
vistas a fixar-se, até porque eram poucas as vilas estabelecidas no
interior da América Portuguesa até meados do século XVII.
Estabeleceu morada nos campos de Curitiba por volta de 1689. Vale
notar que é possível que ele partilhasse expectativas próprias dos
inúmeros reinóis que tentavam a vida em alguma parte dos domínios
portugueses além-mar. Vê-se que a presença constante de lusos,
não somente na região sul, traz consigo uma gama de valores do
Antigo Regime. A este respeito já foi indicado que
Os indivíduos que foram para o ultramar
levaram consigo uma cultura e uma
experiência de vida baseadas na
350
percepção de que o mundo, a “ordem
natural das coisas” era hierarquizado; de
que as pessoas, por suas “qualidades”
naturais e sociais, ocupavam posições
distintas e desiguais na sociedade. Na
América, assim com em outras partes do
Império, esta visão seria reforçada pela
idéia de conquista, pelas lutas contra o
gentio e pela escravidão. Conquistas e
lutas que, feitas em nome del Rey,
deveriam ser recompensadas com mercês
– títulos, ofícios e terras.
Nada mais sonhado pelos
“conquistadores” – em sua maioria
homens provenientes de uma pequena
fidalguia ou mesmo da “ralé” – do que a
possibilidade de um alargamento de seu
cabedal material, social, político e
simbólico. Mais uma vez o Novo Mundo –
assim como vários outros territórios e
domínios ultramarinos de Portugal –
representava para aqueles homens a
possibilidade de mudar de “qualidade”,
de ingressar na nobreza da terra e, por
conseguinte, de “mandar” em outros
homens – e mulheres. (FRAGOSO,
BICALHO, GOUVÊA, 2001, p.24)
João Rodrigues Seixas, como qualquer outro emigrante
voluntário que vinha para a América, integrava a gama dos
indivíduos que vinham tentar a sorte. No entanto, há indicadores de
que sua família de origem pertencesse à pequena e empobrecida
351
fidalguia do Reino, haja vista que seu pai, Antonio Rodrigues Seixas,
era Capitão na vila de Vianna do Castelo. Mesmo não sendo possível
aferir se esse título referia-se a seu pertencimento ao oficialato das
tropas auxiliares ou das tropas pagas, é indicativo que sua família, e
ele por extensão, não pertencia à aludida 'ralé lusitana'.
A região para a qual ele se dirigiu, os campos de Curitiba, já
vinha sendo ocupada desde o início do século XVII, por uma
população luso-paulista oriundos de São Vicente, São Paulo de
Piratininga, Santos e Cananéia. Os diversos estudos que se
dedicaram ao movimento de ocupação do atual Estado do Paraná
convergem ao indicar essas vilas e povoados como locais de
irradiação da população que se radicou no planalto curitibano
(BALHANA, 1969); (NADALIN, 2004); (WACHOWICZ, 2001). Nesse
sentido, o deslocamento geográfico de João Rodrigues Seixas não
configurava nenhuma exceção no conjunto dos movimentos
migratórios que ocorreram no século XVII. É nesse período e em
função desses pequenos fluxos migratórios que se constituiu a
sociedade nos campos curitibanos, formada originalmente por
faiscadores e mineradores de ouro que vieram tentar a sorte no
planalto. Visto que o ouro não era mais encontrado nas veias dos rios
litorâneos, configurou-se como um contingente populacional
diminuto e disperso. Esses habitantes, morando provisoriamente
em choças cobertas com folhas de palmeira, “vasculhavam os
cascalhos dos riachos à procura de pequenas pepitas de ouro, tão
avaramente cobiçadas”. (WACHOWICZ, 2001, p.69).
352
Alguns estudos sugerem, contudo, que por volta de 1639
iniciou-se o povoado de Nossa Senhora da Luz, com vistas à
exploração agro-pastoril. Mas era uma região pobre, afastada das
atividades econômicas ligadas à exportação, e foi com a agricultura
de subsistência que essa gente sobreviveu, com uma condição de
vida descrita como sendo “miseráveis e primitivas”. (MACHADO,
1963, 4). Curitiba teve, então, sua população formada por lusos,
paulistas e seus descendentes que possuíam alguns escravos, poucos
índios e que conviviam com aqueles primeiros povoadores que
vieram à cata de ouro e, não o encontrando, se fixaram na região.
Prova da sua fixação é a construção de uma capela, provavelmente
na década de 1650. Vale dizer que “à época, Curitiba era o extremo
meridional da ocupação portuguesa na América”. (PEREIRA, 1993,
p.19).
João Rodrigues Seixas estabeleceu-se com sua família no
povoado de Nossa Senhora da Luz, e aí nasceu sua filha, Isabel
Rodrigues. Radicou-se num momento em que os povoadores
requeriam de Portugal a institucionalização do povoado. Embora o
Pelourinho já estivesse levantado desde 1668, somente vinte e cinco
anos depois é que o povoado de Curitiba foi elevado à categoria de
vila. Os moradores requeriam a criação das justiças, “paz quietasão
e bem comum deste povo, e por ser já oje mui crecido por passarem
de noventa homes”. (BOLETIM DO ARCHIVO MUNICIPAL DE
CURYTIBA, 1906, p.4). O Capitão-mor de Paranaguá Francisco da
4
Silva Magalhães, sabendo que Gabriel de Lara já havia autorizado
4, “Capitão-mór, ouvidor e alcaide mor da capitania de Nossa Senhora do Rosário de Paranaguá e das quarenta
legoas da costa do sul, loco-tenente perpetuo do donatário Marquez de Cascaes” (LEÃO, 1994, 729)
353
esse ato em 1668, concordou e deu ordens para o Capitão-povoador
Mateus Leme deferir o pedido. Aos 29 de março de 1693, na pequena
capela de Nossa Senhora da Lux e Bom Jesus dos Pinhais, reuniramse os “homens bons” para escolherem seus eleitores. Estes
indicaram os membros da câmara municipal, os juízes, o procurador
da câmara e o escrivão, organizando assim, politicamente a vila de
Curitiba.
Dadas essas condições, é possível entrever as possibilidades
que surgiam para os indivíduos com a criação de uma vila. Esse
momento se configurava como uma ocasião propícia para as pessoas
tentarem uma inserção no núcleo de poder da sociedade, já que ela
própria estava em processo de redefinição das posições sociais. O
reinol João Rodrigues Seixas era aceito e transitava nesse espaço,
pois detinha um saber precioso para essa localidade (como para
toda a América seiscentista): sabia ler e escrever, ou seja, ele
dominava as letras. Possuía assim uma competência que não era tão
comum na população das vilas coloniais, visto serem repletas de
homens analfabetos (SILVA, 1993). Mais do que isso, a habilidade de
ler e escrever estendia-se a seus familiares, pois seu filho
primogênito Antonio foi quem redigiu a ata de elevação do povoado
de Curitiba à condição de vila. Desde a primeira eleição camarária
da nova vila, em 1693, João Rodrigues Seixas foi convocado pelos
“seis omens de sam comsiensa (...) Agostinho de Figueiredo, Luiz de
Góis, Garsia Rodrigues Velho, João Leme da Silva, Gaspar Carrasco
do Reis (e) Paulo da Costa Leme” para ser o primeiro escrivão da
354
Câmara, cargo que exercera até a sua morte.
Os ofícios de escrivão, de tabelião, contador, inquiridor,
porteiro, carcereiro, integravam a estrutura do oficialato da justiça
local. Porém, esses cargos compunham o quadro dos funcionários
menores da administração em cujo ápice estavam os juízes e os
vereadores (SALGADO, 1985, p.47-72). Deve ser destacado que, aos
trabalhos de escrivão, João acumulava as funções de tabelião de
notas e escrivão de órfãos, recebendo o ordenado anual de 6$000
réis (LEÃO, 1994, p.996).
Vale notar que em Portugal esse cargo parecia ter sido
reservado para gente nobre de poucos recursos, ou empobrecidos,
pois permitia enriquecimento ora pela remuneração anual
recebida, ora pelos ganhos advindo do pagamento dos custos para a
elaboração dos diversos tipos de registros, bem como pelo
encaminhamento de outros processos ou de inventários. Com base
nos estudos de Antonio Manuel Hespanha, atenta-se para a
importância dos oficiais de justiça (notários, tabelião e escrivão),
não somente pelos rendimentos que eram recebidos, mas pela
centralidade dos seus ofícios no conjunto da estrutura
administrativa do poder local. Embora menores na hierarquia, eram
postos estratégicos, pois esses oficiais detinham em suas mãos os
documentos principais da sociedade, visto que:
Os documentos escritos eram decisivos
para certificar matérias decisivas, desde
o estatuto pessoal aos direitos e deveres
355
patrimoniais. As cartas régias de doação
(v.g., de capitanias) ou de foral, as
concessões de sesmaria, a constituição e
tombo dos morgados, as vendas e
partilhas de propriedades, os
requerimentos de graças régias, a
concessão de mercês, autorizações
diversas (desde a de desmembrar
morgados até à de exercer ofícios civis),
processos e decisões judiciais, tudo isto
devia constar de documento escrito,
arquivado em cartórios que se tornavam
os repositórios da memória jurídica,
social e política (...) De fato, parece que
muitas compras se destinavam
justamente à remuneração de favores ou
a atos de proteção; com que, além do
mais, se recebia em troca a garantia de
que os papéis, cômodos ou incômodos,
estavam em boas mãos. (HESPANHA,
1994, p.160-230).
Dado que a estrutura administrativa da América portuguesa
fazia-se nos moldes das existentes no Reino, é possível transpor
5
essas observações para a realidade colonial. Nos domínios
americanos, além de serem, em sua maioria, os “homens bons” da
vila iletrados, é a partir da instalação da câmara que a sociedade
curitibana se vê inserida às justiças, nos trâmites da burocratização
da época. Aqui fica o indício de que João Rodrigues Seixas tinha sua
importância, pois, pelo próprio fato de ser reinol, trazia consigo
356
5. De fato, o funcionamento administrativo do amplo império português, se fez, com a duplicação e devidas
adaptações das instituições portuguesas pelas diversas partes mantidas sob o domínio lusitano. Dentre os estudos
que pioneiramente destacaram esse fator de unidade do império português situam-se os de Boxer. Cf. (BOXER,
1969). Particularmente na Segunda Parte, capítulo XII.
uma noção de ordenamento jurídico, representação que deveria ser
incomum no planalto curitibano, ocupado em grande parte por
população nascida na colônia e onde a criação das justiças vai se dar
apenas em 1693. Como morou por 30 anos em Cananéia, ponto
regionalmente importante nos contatos com o reino e que era vila
desde meados do século XVI, fundada por Martin Afonso de Souza, é
possível pensar que, mais do que do Reino, sua vivência em
Cananéia tenha lhe ensinado os valores da vivência cívica, pois
aquela vila, já contava com Senado da câmara desde o século XVI.
Some-se a isso o domínio das letras e pode-se ver que ele detinha
uma posição privilegiada no conjunto dos homens bons da vila de
Curitiba. Mesmo sendo uma das funções menores da administração
pública, o ofício de escrivão consistia no posto mais alto de sua
categoria. E certamente na trama das relações da 'coisa' pública,
seu local social pode sugerir o sentimento de pertencimento ao
reino e mais do que isso, confere a João Rodrigues Seixas o trânsito
neste espaço social por seu sangue português e por regular em seu
ofício os atos sociais.
É então no espaço da Câmara Municipal e, sobretudo pelo
exercício dos ofícios de escrivão e de tabelião, que podemos tentar
recompor traços e analisar aspectos da trajetória de vida de João
Rodrigues Seixas. Um primeiro ponto a ser destacado é que ele foi
uma pessoa que circulou na administração camarária curitibana
6
desde a sua criação. Em função do cargo que ocupava, ele detinha
posição estratégica para observar o jogo social da região do planalto
6. Fonte: Atas da Câmara Municipal de Curitiba (1693-1780). Levantamento realizado no CEDOPE através do
projeto: Formação da sociedade paranaense: “população, administração e espaços de sociabilidade)” – módulo
“Pelouros e Barretes; juízes e vereadores da Câmara Municipal de Curitiba – século XVIII”.
357
curitibano, tendo acesso a informações e à documentação que
selava ou que rompia alianças entre os poderosos da localidade.
Mas, sobretudo, muitos elementos para avaliar a quem deveria
aliar-se e a quem deveria evitar o estreitamento das relações. Pois é
na câmara onde circulam os indivíduos que organizam o espaço
público. “Obviamente havia pouca coisa na vida colonial que a
câmara não considerasse atribuição sua (...) seria natural que a
câmara definisse bem comum como aquilo que beneficiaria os
grupos econômicos dominantes aos quais pertenciam os
conselheiros”. (LOCKHART; SCHWARTZ, 2002, p.287-288). Sendo
que a própria sociedade curitibana esta em formação, é na câmara
que ocorre a criação das próprias hierarquias entre os indivíduos,
suas necessidades, principalmente aquelas que darão aos sujeitos
maior prestígio e maior privilégio. (BICALHO, 2001, p.189-221). É
nesse espaço que João Rodrigues Seixas atua desde sua formação
em 1693 até a sua morte em 1700.
Entretanto, o que se observa é que não seria apenas um
espaço que diferenciaria os indivíduos. Mas, sobretudo na
instauração da câmara, parece ter sido entre os seus integrantes
que ocorrem as alianças que aumentariam os relacionamentos entre
os indivíduos, recentemente estabelecidos como da “nobreza da
terra” e que tenderiam a organizar suas alianças.
Como explicitado anteriormente, a referência social ao
indivíduo era frágil, sendo sua identificação social quase sempre
associada ao seu pertencimento a um grupo mais amplo, no caso, a
358
família. Sob a égide da economia, convém retratar que na capitania
de São Paulo num geral, eram escassos os recursos e a população
possuía somente bens e produtos de consumo básicos para a
sobrevivência. Era, então, fundamental instituir relações de
afinidade para melhor se estabelecer. Segundo Elizabeth Kuznesof,
nos séculos XVI e XVII
O que era importante para os paulistas era a
proximidade do grupo social no qual eles se
baseavam para obter ajuda e realizar a troca –
o clã familiar. A precária economia de
subsistência, a agricultura, apoiava-se e
protegia-se através de um sistema de troca de
grupo e ajuda mútua. Essas não eram relações
de mercado, nem relações baseadas em um
sistema de reciprocidade específico, mas sim,
um sistema de apoio generalizado para todos
os membros do grupo. (KUZNESOF, 1989, p.40).
O caminho mais eficaz para suprir essa carência e
solidariedade seria, justamente, a instituição do casamento, que
pela união de duas famílias permitia a configuração de um
relacionamento de proteção mútua. Além disso criava, num certo
9
sentido, uma relação de dependência entre os cônjuges e os
membros das duas famílias de origem de ambos. O desejo era que
10
essa aliança não somente garantisse estabilidade às famílias, mas
também que mantivesse sua posição e, ou alçasse algum degrau na
escala social. Nem sempre as coisas ocorriam a contento, mas
359
naquele contexto, o matrimônio definia em muito a posição de
distinção e os ganhos sociais, materiais e simbólicos advindos da
escolha correta.
A tais interesses eram acompanhados ainda o de adquirir,
com o tempo, maior representação social e política na sua
localidade. Desse modo, era importante escolher os cônjuges que
favorecessem os interesses das famílias de ambos os noivos. O
casamento religioso era a condição fundamental para a busca de
status, ascensão social e obtenção, em muitos casos, de posições
administrativas.
Assim, o casamento era não tanto um assunto
pessoal quanto era um assunto de família, e
isso favorecia a família de muitos modos. (...)
Além disso, o casamento de um filho dava a sua
família como um todo uma aliança com a
família da noiva, acrescida de uma nova
unidade produtiva, instalada, em sua maior
parte, com o dote da noiva. Inversamente,
pelo casamento de uma filha, a família
ganhava um novo sócio, que podia colaborar
para a expansão do empreendimento familiar.
(NAZZARI, 2001, 66).
Um primeiro indicador de que o cargo na câmara municipal
favoreceria a mobilidade social de uma família pode ser
exemplificado com as alianças que João Rodrigues Seixas obteve ao
casar seus filhos: Antonio Rodrigues Seixas e Isabel Rodrigues.
Ambos fizeram casamentos hipergâmicos, e pode-se aferir que isso
360
decorreu do relacionamento de João Rodrigues Seixas com as
pessoas de melhor qualidade na vila de Curitiba, desde o momento
em que ela se organizou juridicamente. Ainda, não se pode
desdenhar do capital simbólico que ele detinha por ser homem
branco e do Reino e até, por que não, de um certo carisma que João
detivesse, favorecendo suas relações. O fato é que os matrimônios
de seus filhos foram celebrados com pessoas de posição social e
econômica superior a dele.
Essa é uma das marcas da sociabilidade colonial, que
mesmo configurada sob os códigos de uma sociedade estamental,
detinha a especificidade de permitir trânsito no interior da
7
hierarquia social.
A trajetória de João em Curitiba sugere que ele tenha se
valido de um capital simbólico, tendo em vista que não era sesmeiro
e nem tinha um grande número de índios administrados. Deixou
8
pouco em bens materiais, mas, ao que tudo indica, legou para a
mulher e ao casal de filhos algo precioso nas representações do
Antigo Regime: respeito e honorabilidade social, conferidos a ele
tanto pela pureza de sangue como por não ter, ao longo da vida, se
maculado com ofícios mecânicos.
A viúva Maria Maciel Barbosa
A historiografia demonstra que, nas sociedades do Antigo
7. Vale retomar a indicação de Fernando Novais quando observou que “a sociedade da Colônia, ao mesmo tempo,
estratificava-se de forma estamental e apresentava intensa mobilidade; o que provavelmente, criava uma situação
de ambigüidade, pois a junção dessas duas características envolvia, simultaneamente, tendência de aproximação
e distanciamento entre as pessoas”. (NOVAIS, 1997, 13-39).
8. Arquivo Público do Paraná – Juízo de Órfãos de Curitiba, 10ª Vara Cível . Caixas 05-01-05 – Processos Gerais
Antigos – Processos de Auto de Contas – 1727-1777. 1736 – Auto de Contas de Antonio Rodrigues
Seixas.Testamento em anexo de 1733. Caixa PJI-04 – Processos Judiciários Inventários nº 04 - 045 – 1795 – Auto
de Inventário de Antonio Rodrigues Seixas.
361
Regime, era muito mais fácil a um viúvo estabelecer novas núpcias
do que a uma viúva. No entanto, Maria Maciel Barbosa, a viúva de
João Rodrigues Seixas, escapou do destino de tantas outras
desamparadas e retomou a vida conjugal após a morte de seu
marido. Naquele momento, seus dois filhos já estavam casados e,
mesmo sem fontes que forneçam algum indicador a respeito,
podemos imaginar que na ausência de seu marido, ela tenha
passado a chefiar o domicílio acompanhado de alguns escravos, ou,
com maior probabilidade, de alguns “servitos”, pois no início do
século XVIII eram mais comuns a escravidão indígena na região do
planalto curitibano. Seu segundo marido foi Luiz Rodrigues Velho,
irmão do capitão Garcia Rodrigues Velho. Não há documentação que
permita identificar a idade em que ela ficou viúva nem com quantos
anos ela recasou. No entanto, ela deveria estar entre 35 e 45 anos de
idade, à medida que, com seu segundo marido, ela teve mais um
filho.
Conhecido sertanista da região, Garcia Rodrigues tornou-se
detentor de um número significativo de índios administrados nas
últimas décadas do século XVII. Isto pode ser observado analisando a
presença de grande número de índios de sua propriedade que
recebiam o sacramento do batismo. Segundo esses registros, no
período de 1688 a 1691, Garcia Rodrigues Velho tinha posse de 17
servitos. Destaca-se que outros notáveis moradores da vila, como
Mateus Martins Leme, Manoel Soares, Baltazar Carrasco dos Reis e o
362
próprio João Rodrigues Seixas, também possuíam índios em suas
propriedades, num número considerável, porém inferior ao de
Garcia Rodrigues Velho.
A historiografia tem apontado que o aprisionamento
indígena manifestou-se como “elemento básico na formação e
reprodução da sociedade colonial e sua manutenção garantiu e
legitimou a continuidade de escravização dos povos indígenas”.
(ALMEIDA, 1996, p.46-58). Em São Paulo e no Rio de Janeiro no
seiscentos, ao menos, a montagem das fortunas das famílias mais
poderosas da região dependeu da guerra contra o gentio em prol de
conquistas de novos espaços e de mão-de-obra para as atividades
agrícolas ou extrativistas que eram desenvolvidas. Desse modo, a
posse de indígenas tornou-se um dos mecanismos fundamentais na
formação do processo produtivo colonial. (MONTEIRO, 1994).
Segundo João Fragoso, o patrimônio agrário carioca – que
posteriormente teve nos escravos africanos a mão-de-obra principal
– num primeiro momento “constituiu-se e reproduziu-se pela
doação de sesmarias, índios e créditos, aos quais [as famílias mais
poderosas] tinham acesso exatamente por suas estreitas relações
com o poder, o que lhes conferia a possibilidade de ocupar
importantes cargos de comando na colônia”. (FRAGOSO, 2000,
p.54).
Ainda que não conste nenhum registro de batismo cujo
proprietário de servitos fosse Luiz Rodrigues Velho, sua ligação com
seu irmão Garcia Rodrigues era visível na medida em que obtiveram
363
conjuntamente com seu pai, Domingos Rodrigues da Cunha, uma
sesmaria em 1668, uma das doze que foram doadas no século XVII na
vila de Curitiba. Assim, neste caso específico, não somente o pai,
mas também o irmão de Luiz Rodrigues Velho garantia a viabilidade
de uma aliança matrimonial que se apresentava bastante
interessante para ambas as famílias. Ainda que fosse escasso o
número de mulheres brancas e livres para o casamento nesse
período. (VAINFAS, 1997, p.221-273); (SCHWARTZ; LOCKHART, 2002,
p.305-316). Maria Maciel Barbosa apresentou-se como uma das
possibilidades que trazia benefícios para as duas famílias, já que era
branca e tinha sido casada com um reinol. Enquanto a família
Rodrigues Velho possuía bens materiais, o grupo dos Rodrigues
Seixas possuía o sangue português e os bons relacionamentos na
câmara, pois Antonio Rodrigues Seixas assume como escrivão após a
9
morte de seu pai.
Tendo em vista que os integrantes desta intrépida família de
10
sertanistas haviam, ao que a documentação demonstra, sido
comerciantes de índios e estarem bem estabelecidos na vila, agora
não necessitavam de alianças matrimoniais que suprissem carências
econômicas. O irmão mais novo dos Rodrigues Velho (ou da Cunha)
interveio com uma aliança política vantajosa em que a agregação de
novos membros garantisse uma certa proteção e uma melhor
inserção social, visto que o aprisionamento indígena estava sendo
coibido pelo reino. Como podemos observar nos Provimentos do
9. Vale lembrar que o ofício de escrivães judiciais ou da câmara, poderiam ter nomeação vitalícia e até hereditária.
(BICALHO, 2001, 192).
10. Acervo da Catedral Basílica de Curitiba. Livro de Assentos Paroquiais de Batismo, nº1. (1684-1732)
364
Ouvidor Raphael Pires Pardinho para a vila de Curitiba em 1721, no
título 72:
Proveo que os Juizes e Off.es da Câmera pello
q'tóca prohibão que nenhua pessoa entre pelo
certão a corre o Gentio pêra os obrigarem a seu
serviço, por ser contra as Leis expresas de Sua
Magestade, q'Deus G.de, e ainda contra o
serviço de Deus, em que muito em carregão
suas conciencias. E em nenhù cazo se pod
vender ao d.o Gentio e hindios, das
campanhas, armas alguas de qual quer gênero
que sejão quer offencivas, quer defencivas por
ser prohibido pellas Leis do Reyno, e expeciais
neste Estado, Subpenna de morte natural e de
perdimento de todos os seus bens a metade
para cativos (sic) e a outra para quem os
acusar, em q'em corre quem as ditas armas
vender. Os Juises e Off.es de Justiça que antes
nelles serviram proguntarão por este caso
como se declara no auto que se fez a dita
devasa este anno. (Apud: BOLETIM DO
ARCHIVO MUNICIPAL DE CURITYBA, 1906, 25).
Assim, manter um relacionamento com um membro da
câmara favorecia, se é que podemos aferir, num maior contato com
a legislação vigente e suscitando as brechas possíveis para que esses
sertanistas não sofressem alguns percalços. Podemos transpor o que
Hespanha indicou para Portugal sobre a importância das letras que,
sobre elas, os desígnios da Coroa deveriam ser colocados em prática
na municipalidade, atento que o escrivão detinha em suas mãos os
365
papéis, fossem eles cômodos ou incômodos a determinadas
famílias. (HESPANHA, 2001, p.186).
Vê-se também que, em 1713, quando já participavam de um
mesmo grupo de parentes, Garcia Rodrigues constituiu como seu
procurador Antonio Rodrigues Seixas, filho de Maria Maciel Barbosa.
Este, em Curitiba, tratava de representá-lo no inventário e herança
por testamento de sua primeira esposa, Izabel de Lara. (Apud:
BOLETIM DO ARCHIVO MUNICIPAL DE CURITYBA, 1924, p.49)
Percebem-se, assim, alguns indícios que podem ter
determinado a escolha de Antonio nesse processo. Além de implicar
uma relação de confiança entre dois envolvidos, ou como sugere
Elizabeth Kuznesof, um principio de lealdade pessoal (KUZNESOF,
1989, p.45), verificou-se também pelo lado prático, ou processual,
que exigia tal operação. Ou seja, era preciso saber ler e escrever
para fazer cumprir o que determinava tal documento. A
proximidade entre os membros das famílias, ainda que não
demandasse nenhuma consangüinidade direta entre eles,
fundamentava-se num relacionamento de colaboração contínua e
de troca de favores.
Além do mais, vale enfatizar que essa mulher soube muito
bem negociar a posição e o poder simbólico que o marido, João
Rodrigues Seixas, havia deixado a ela e a seus filhos quando morreu.
Na prática, sua herança material foi exígua: poucos escravos e não
tinham sesmarias. Mas, no tempo em que exerceu seus cargos na
câmara municipal de Curitiba esse homem parece tê-los usado para
366
estrategicamente se inserir no espaço dos “homens bons”. Essa
astúcia no jogo social foi, assim, reatualizada pela viúva, que a
desdobrou para garantir sua posição social e assegurar uma efetiva
mobilidade social para os seus descendentes.
O testamento de Maria Rodrigues
Como estudo de caso para verificar os desígnios que
demarcavam as garantias pautadas no encaminhamento de
herança, pode ser analisado o testamento de Maria Rodrigues.
Corria o ano de 1750. Mais especificamente dia 12 de
outubro, a data escolhida pela portuguesa Maria Rodrigues para
fazer seu testamento. Como se encontrava em sua morada, na
localidade chamada das Corujas, sertão dos Campos Gerais de
11
Curitiba, e a idade avançada a impedia de ir até o tabelião, Maria
solicitou a presença do 'Doutor Coronel' José Serino da Fonseca para
que lhe escrevesse seu testamento cerrado, já que ela não possuía
domínio sobre as letras. Para dar legalidade às suas últimas
vontades, de acordo com a legislação portuguesa vigente no Brasil
12
colônia durante os setecentos (as Ordenações Filipinas de 1603), era
necessária a assinatura de cinco pessoas, podendo se incluir ou não
o testador ('mesmo que a rogo de outrem'). Essa firma era um dos
meios de estabelecer a verdade do que se atestava, razão pela qual
13
deveria ser dada por indivíduos notoriamente idôneos para o Oficial
11. Duas fontes apresentam, aproximadamente, sua idade. De acordo com o assento de falecimento, encontrado
no Livro 1 de Óbitos da Paróquia de Nossa Senhora da Lux dos Pinhais de Curitiba, Maria tinha 65 anos. Vale dizer
que a data do assento é de 14 de julho de 1756, mas o pároco informa que seu falecimento ocorreu aos 8 de
fevereiro de 1756. Contudo, não é precisa essa data. Já no auto de aprovação do testamento, José Serino da
Fonseca argumenta ao tabelião Manoel Borges de Sampaio, que a testadora estava 'em saúde perfeita mesmo
sendo mulher muito velha'.
12. Especialmente no Título LXXX do Livro 4.
13. Entendendo-se que “a idoneidade das testemunhas é o complexo das qualidades que o direito exige delas,
para que entendam as declarações do testador, verifiquem a observância das formalidades exigidas e mereçam
fé”. (BEVILÁQUA, 1978, 217).
367
da Justiça, seja na pessoa do juiz ou do tabelião. Naquele ato
solene, na casa da testadora, estavam presentes, além de José
Serino da Fonseca, Pedro da Silva, Antonio José, Miguel Rodrigues e
Francisco Pereira. Pessoas reconhecidas pelo tabelião.
Maria, natural do Couto de São João da Foz, Bispado do
Porto, havia se casado com o português João da Silva Reis, natural
de Lordelo. Esta aliança matrimonial deu-se, como regra do direito
português, sob o regime de comunhão de bens ou 'carta a metade', o
que significava a junção de todos os bens dos cônjuges quando do
enlace matrimonial. De igual modo, também sob o sacramento
cristão, sua única filha Josefa da Silva casou-se com o reinol João
Pereira Braga. Todo esse núcleo familiar havia emigrado do reino
para os Campos Gerais de Curitiba, por volta de 1710, a pedido do
'Sargento-Mor da Praça de Santos' Manuel Gonçalves de Aguiar, tio de
João Pereira Braga, para que este pudesse administrar suas
fazendas. Como tantos outros portugueses, esta família, composta
de pais, filha e genro, fixa-se a terra e, ao que se sabe, nessa região
Josefa deu a luz a seis filhos de João: Maria Pereira da Silva Pacheco,
João da Silva Reis, Domingos Pereira da Silva, Ana Pereira da Silva e
Joana Pereira da Silva.
No momento de informar sua vontade quanto à transmissão
de seus bens, Maria reiterou sua filha Josefa como sua legítima e
universal herdeira, juntamente com apenas dois de seus netos: João
da Silva Reis (que levava o nome do avô) e Maria Pereira. De outro
lado, é importante destacar que Josefa, como filha única, tornou-se
368
a “herdeira necessária” e seus netos figuraram como legatários da
terça parte dos bens da avó, que poderiam ser entregue a quaisquer
pessoas, dependendo exclusivamente da vontade da testadora
(CÓDIGO PHILIPHINO, 1870, Livro IV, Titulo LXXXII, p.911). As
Ordenações Filipinas dedicavam especial atenção à transmissão de
heranças, embora não obrigassem à eleição de um herdeiro, nem à
disposição da totalidade da herança (como prescrevia o Direito
Romano); (CÓDIGO PHILIPHINO, 1870, Livro IV, Título LXXX, §1º, p.
900). Estabeleciam distribuições igualitárias, portanto,
independente do gênero e idade. Assim, as heranças paterna e
materna dividiam-se entre todos os filhos, não havendo privilégios.
Logo, Maria Rodrigues seguiu rigorosamente a lei, deixando um
terço de sua herança para sua única filha (a herdeira forçada). Vale
observar que essa lei permitia aos pais o deserdamento (CÓDIGO
PHILIPHINO, 1870, Livro IV, Título LXXXVIII, p.927-934), e nas outras
duas partes, em que podia impor suas vontades, ela escolheu apenas
dois netos e o restante, legou em obras pias, com missas para a
salvação de sua alma.
Como no ato de seu testamento encontrava-se viúva, é
muito provável que já havia passado a legítima de seu esposo à filha
Josefa, uma vez que não há menção no testamento de alguma dívida
quanto à legítima paterna. Com efeito, a portuguesa declarou as
doações que deveriam ser feitas da terça parte de seus bens:
deixava 5$000 réis à Ordem Terceira de São Francisco, outros 5$000
réis à Nossa Senhora da Luz e mais 13$000 réis à Capela de Nossa
369
Senhora da Conceição de Tamanduá. Mandou dizer ainda duas
missas de $640 réis cada uma, no altar de São Miguel na Igreja Matriz
de Nossa Senhora da Luz.
Quanto à outra parte destinada aos “herdeiros instituídos”,
Maria arbitrou como sucessores dois de seus seis netos: João e
Maria, ambos solteiros. Para Maria Pereira a avó deixava a metade
do preço da venda de um escravo. Esse legado suscita uma questão:
até que ponto o fato de ela ser a primeira na sucessão feminina não
lhe teria dado essa vantagem sobre os demais irmãos? É sabido que
Maria veio a se casar em 1753, três anos após a escrita do
testamento, o que pode demonstrar que a avó pretendia um bom
casamento para a neta, provendo-lhe de dote. Já quanto aos bens
deixados ao neto. Maria põe uma condição: João deveria se ordenar
sacerdote secular. Se isso não viesse a ocorrer, sua mãe receberia as
campinas chamadas de João Pereira de Aguiar, com 30 vacas, 10
touros, 10 éguas com seu pastor e 1 negro da nação Guiné (por nome
Manoel). Comparativamente, seria um montante de maior valor do
que o destinado a sua irmã. No caso do João da Silva, sua escolha
sugere que, encontrando-se em idade de preparar-se para a carreira
eclesiástica secular, talvez tivesse demonstrado vontade ou
disposição para aceitar esse ofício, e a avó providenciou, dotando-o
de um patrimônio. O dote clerical fazia parte das exigências para o
ingresso na vida religiosa.
Como forma de garantia de que suas vontades fossem
cumpridas, a portuguesa instituiu dois testamenteiros, ou seja, as
370
pessoas encarregadas de dar execução ao testamento. Em primeiro
lugar seu neto João da Silva Reis e em segundo Manoel Correa, que
viria a se casar com Ana Pereira da Silva (outra neta de Maria) em
1768.
Disposições declaradas, Maria Rodrigues terminou por ditar
seu testamento. O 'Coronel' José Serino da Fonseca assinou a rogo,
juntamente com as quatro testemunhas. O ato de ditar o
testamento estava previsto na lei, mas não era a ação final para lhe
conferir legitimidade. Tanto em testamentos redigidos no
tabelionato quanto em casa, em ambas as situações sob a presença
de testemunhas, impunha-se a necessidade de lavrar a aprovação
para 'cerrar' o documento, ou seja, fechá-lo para ser aberto
posteriormente. Quando feito no tabelionato, com a presença do
testador, o procedimento era cumprido da seguinte forma:
o oficial exaure o ato de aprovação,
declarando nele que o testador lhe entregou o
testamento por ele considerado como bom,
firme e valioso, que imediatamente após a
ultima palavra comece o instrumento de
aprovação que deve ser lido e assinado pelo
oficial, pelas testemunhas e pelo testador [ou
a rogo de] (...) e finalmente que o testador
cerre o testamento após concluir o
instrumento de aprovação. (DAUMARD, 1984,
p.191).
Já os realizados na moradia do testador, ficava a cabo do
371
redator entregá-lo ao tabelião para aprová-lo e cerrá-lo do mesmo
modo.
O Coronel, agindo em conformidade com a lei, entregou o
testamento ao tabelião da vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais,
Manoel Borges de Sampaio, que reconheceu as últimas vontades de
Maria, assim como a idoneidade das testemunhas, e deu validade ao
testamento em 15 de abril de 1751, aproximadamente seis meses
após ter sido ditado.
Maria Rodrigues mostrou-se extremamente previdente
quanto à feitura de seu testamento, uma vez que ela veio a falecer
14
somente em 1755. Tal cautela, embora presente em outros
indivíduos, não foi a tônica verificada em outros testadores dos
sertões de Curitiba durante o século XVIII. Sua intenção ao deixar
documentado que o neto receberia terras, animais e escravos caso
seguisse os desígnios da avó, foi, provavelmente, uma forma de
indicar que ele deteria um certo patrimônio. No entanto, esta
antecipação também pode indicar um senso prático: Maria fez seu
testamento no momento em que o neto estava se dirigindo para São
Paulo para iniciar os estudos que o habilitariam para a carreira
eclesiástica. Assim, a precocidade do testamento em relação a sua
morte pode ser reflexo de uma personalidade bastante previdente,
quanto ao futuro da família. Fato é que, em 1756, quando da
abertura do processo de implementação de suas vontades, quem
assumiu a função de testamenteiro foi Manoel Correa, o segundo
372
14. É digno de nota que, de acordo com o Livro de Óbitos nº 1 dos Registros Paroquiais constantes do acervo da
Catedral Basílica Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba, o assento que apresenta o óbito de Maria está
datado de 14 de julho de 1756. Entretanto, o pároco faz uma observação de que o registro não foi feito no mesmo
dia do falecimento, já que lhe faltava clareza de informações. O Reverendo propõe então como data do óbito de 8
de fevereiro de 1756. Contudo, o processo de auto de contas foi aberto em agosto de 1755.testador, verifiquem a
observância das formalidades exigidas e mereçam fé”. (BEVILÁQUA, 1978, 217).
indicado pela testadora, pois nessa época João da Silva Reis
encontrava-se estudando na cidade de São Paulo. Diga-se de
15
passagem, para ordenar-se sacerdote secular. Não se tem o
inventário da Maria Rodrigues, mas o auto de contas que Manoel
Correa apresentou ao juiz de órfãos demonstra que ele deu cabo das
vontades de Maria Rodrigues. A herdeira necessária e os herdeiros
instituídos receberam o que lhes coube de direito, assim como
foram quitadas as despesas com as missas e os legados pios.
Considerações Finais
Ao conseguirmos pinçar da malha da social as trajetórias de
homens e mulheres nos sertões de Curitiba, que conseguiram
amealhar ao longo da vida um cabedal, alguns pontos são colocados
à reflexão: nos meandros de uma sociedade, à primeira vista
hierárquica e ordenada, brechas de mobilidade social e de acúmulo
de cabedal estão sempre presentes. De acordo com Giovanni Levi,
“o discurso sobre a estratificação social não pode, portanto, ficar
limitado às dimensões das propriedades e nos conduz à
compreensão de estratégias familiares complexas, sobre as quais
funcionavam mecanismos fatais, que filtravam o sucesso e o
insucesso, a sobrevivência e o desaparecimento”. (LEVI, 2000,
p.96).
Como vimos nesses dois estudos de caso, podemos à luz do
rol de testamentos, inventários post-mortem e processos de autos
de contas, observar que as contradições presentes na sociedade
15. Sabe-se que foi nomeado por provisão de D. Frei Antonio de Madre Deus, em 17 de fevereiro de 1758, coadjutor
do vigário de Curitiba, cargo que exerceu até 1767 na capela de Nossa Senhora da Conceição de Tamanduá.
(LEÃO, 1994, 998-999).
373
monetarizada apontam para uma economia imperfeita. Ou seja, os
mecanismos de acumulação, mesmo no âmbito econômico,
estariam mediados pela política, gerando assim diferentes
oportunidades entre os indivíduos coloniais.
O que se observou nas sociabilidades desenvolvidas pelas
mulheres analisadas foi um jogo complexo de equilíbrio, na qual se
interpenetravam diferentes estratégias para alçar notoriedade no
seio da sociedade. Contudo, deve-se observar que não existiu uma
formação social única nos trópicos. É possível depreender o
hibridismo existente nos princípios organizadores da sociedade
colonial, em que a ênfase para a nobilitação – ser um homem bom –
originalmente situada no nascimento, na honra e na etnia coexistia
com outra esfera de valores próprios de uma sociedade de classes,
pautada no mérito pessoal, na riqueza e na fortuna.
As pessoas que conseguiram acumular bens, de forma geral,
encontravam sua unidade em alguns aspectos: primeiramente
pode-se observar que eram reinóis ou descendentes diretos de
portugueses nascidos no reino. Em segundo, que a estratégia mais
recorrente para alçar condição, quando esses reinóis chegavam
solteiros, foi casar com moças de boas famílias locais o que
significava adquirir honorabilidade pelo casamento. E finalmente
que, dentre aqueles que deixaram bens, o mais comum era serem
proprietários de terras e de homens que necessitavam serem
transmitidas às gerações futuras. Ou seja, detinham e transmitiam
tanto seu cabedal simbólico quanto patrimonial.
374
Muito embora essa sociedade seja marcada por tendências
quanto ao acúmulo e a transmissão patrimonial, tendo como fator
principal a rede de relacionamentos e as atitudes tomadas até a
hora da morte, os dados apontam que as possibilidades de transitar
por entre esferas sociais, são muito díspares. Se, por um lado, o
cabedal simbólico tem peso significativo para o enriquecimento
familiar, por outro, percebe-se que a vida dos indivíduos era
marcada por momentos-chave dentro da teia social. O casamento
seria o ato que visava tanto à manutenção da do status quo quanto à
busca de alianças que fortaleceriam as redes de parentais. Para
além disso, pode-se vislumbrar como pano de fundo da sociedade
constituída nos sertões de Curitiba nos setecentos a permanente
circulação dos indivíduos entre diferentes esferas da coletividade.
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378
O lugar da mulher — e de sua sexualidade — no Brasil Colônia
Carmen Lúcia Fornari DIEZ
1
O ponto de partida
A mutilação clitoriana que ainda grassa nos usos e costumes
africanos e muçulmanos, revolta a sociedade atual, não obstante o
esquecimento que paira sobre as mutilações de corpo e mente
femininas das clausuras, das prédicas acerca dos pecados, da
imposição das confissões sobre os mais recônditos pensamentos que
pudessem evocar quaisquer prazeres.
Tal reflexão motivou a realização desta pesquisa. O
contexto desta escavação é o Ocidente renascentista, com enfoque
no Brasil colonial e suas práticas de institucionalização dos
“recolhimentos” que se propunham a proteger as “frágeis
mulheres”, enquanto os fortes — homens— conquistavam,
colonizavam, guerreavam e navegavam.
As fontes que serão tratadas se referem a pesquisas
historiográficas sobre o Brasil colônia, das quais são enfatizadas as
relativas aos processos inquisitoriais contra as mulheres, dos quais
se projetam as “confissões da carne” e toda uma linguagem
1. Pós-doutora em Filosofia pela Universidade de Barcelona, professora da Universidade Federal do Paraná.
379
explicitadora — ao contrário do estigma forjado — da força e da
resistência dessas raparigas e matronas.
Os Recolhimentos
Delumeau descreve como o discurso teológico de fins do
século XVI representava a mulher:
Os antigos sábios nos ensinam que todas e
quantas vezes o homem fala por muito tempo
com uma mulher ele causa sua ruína e se
desvia da contemplação das coisas celestes e
finalmente cai no inferno. Eis aí o perigo que
há em ter demasiado prazer em tagarelar, rir e
mexericar com a mulher, seja boa ou seja má.
[conclui com o paradoxo do Eclesiástico:]' a
iniqüidade do homem é melhor do que a
mulher de bem. (DELUMEAU, 1996. p. 328)
Por isso, no espaço doméstico, o perigo era principalmente
percebido como vindo das mulheres, essas insidiosas conhecedoras
do veneno, dos sortilégios, “...da cizânia, e dos desfalecimentos, as
doenças inesperadas, os falecimentos sem causa aparente, o senhor
encontrado morto uma manhã em seu leito, intumescido, tudo
aparecia como provocado pelas artimanhas das mulheres (Duby,
1997, p.88).
O risco de desordem emergia silenciosamente no interior do
lar, não das mulheres submissas que obedeciam cegamente à dona
da casa, mas das bem-nascidas. Por isso, os conventos foram
380
remodelados para elas.
Em Portugal e no restante da Europa, os conventos
femininos se encontravam em estado de decadência quanto às
estruturas físicas e administrativas, crise ampliada com a
degenerescência moral. Essas instituições tinham sido difundidas na
Europa desde as Cruzadas, quando os senhores se ausentavam de
suas propriedades para as campanhas da cruz e desejavam deixar
suas mulheres protegidas de assaltos e assédios. Destinadas aos de
boas condições econômicas, foram projetadas segundo o sóbrio luxo
e o possível conforto medieval para abrigar essas mulheres, muitas
vezes acompanhadas por filhos e criados. Terminadas as Cruzadas,
como tais espaços cumpriam cada vez mais raramente os seus
objetivos iniciais, o rol das "recolhidas" a longo prazo foi ampliado às
viúvas e órfãs e aumentou também a população permanente de
religiosas.
Todavia a manutenção desses grandes edifícios não mais
interessava aos senhores que voltaram às propriedades e lá
realocavam suas famílias e criadagem. A crise financeira assolou os
conventos, repercutindo administrativamente e, por reflexo
cumulativo da desorganização, permitiu a difusão de
comportamentos considerados imorais.
Nesse tempo a ordem de Santa Clara encetou campanha de
resgate moral e da religiosidade dessas instituições. As clarissas
assumiram velhos mosteiros para implantar disciplina, sobriedade e
despojamento material seráficos. Tal iniciativa distribuiu a fama
381
dessa ordem e consolidou seu modelo.
Em relação a instituições similares no Brasil, Pauli (1997) e
Nóbrega (2000) registraram sobre a evangelização dos Carijós, em
Santa Catarina, desde 1538, por seráficos espanhóis. Pauli conta
que Cabeza de Vaca, governador do Plata, em viagem litorânea,
encontrou os Franciscanos, já em seu terceiro ano de atividades,
entre a Ilha de Santa Catarina e Laguna. Neste encontro, Cabeza de
Vaca coagiu os frades a que o acompanhassem por terra ao Paraguai.
Na estadia temporária em Assunción, construíram um convento com
o objetivo de reunir as jovens indígenas e lhes dar instrução,
salvaguardando-as da voluptuosidade dos brancos até o casamento.
Mesmo na ausência de maiores detalhes sobre as atividades
planejadas para as jovens, a instrução foi mencionada, indicando
que a proposta incluía transmissão de conhecimento.
Jaboatão (In: AZZI, 1992, p.223.) lembra: “Certo é que em
1576, ou já alguns anos antes, havia em Olinda terceiras
franciscanas que viviam em recolhimento (primeira casa no Brasil
de membros de comunidade religiosa), das quais fazia parte Maria
Rosa, que doou em 1585 este recolhimento aos franciscanos para
convento”. Rosa que auxiliara os jesuítas nas primeiras décadas da
atuação inaciana com os índios. Residia em Olinda, era catequista e
conhecedora da língua nativa. Essas qualificações permitiam que
intermediasse as confissões dos gentios com os sacerdotes,
desempenhando a função de intérprete. Quando o bispo de Olinda
proibiu a utilização de intérpretes para este sacramento a senhora
382
construiu um convento e uma igreja, alojando várias órfãs e
«recolhidas».(WILLEKE, 1977)
Com a chegada dos franciscanos portugueses — em 1585,
Rosa agiu para que sua obra fosse promovida à fundação franciscana
e abrigasse as clarissas. Ofereceu-a aos frades, que aceitaram, mas
condicionando essa aceitação à retirada das recolhidas para outro
prédio. A viúva concordou e seu recolhimento foi transformado em
Convento N. S. das Neves, casa oficial dos frades menores. A nova
construção foi denominado Recolhimento da Conceição servindo
como recolhimento e orfanato feminino. A instituição existiu até
fins do Século XVIII, amparando meninas pobres e órfãs de toda a
região. Este atendimento à orfandade pobre foi exceção, no tocante
a este tipo de instituição, pois, de modo geral, tinha-se como
clientela jovens e mulheres pagantes.
Essa narrativa evidencia que os dois primeiros
recolhimentos do País —
e
a
preocupação com
a
educação/evangelização/preservação feminina — aconteceram no
interior da ordem franciscana. Além disso, mostra um trabalho
feminino voluntário, ligado à evangelização, e portanto à educação,
que apoiava os padres da Companhia, no anonimato. Com isso
emerge mais uma interrogação — para o futuro — sobre inúmeros
trabalhos anônimos similares, mais limitados, ou até mais
abrangentes, realizados mas não escavados.
Azzi (1992) registrou dados sobre os recolhimentos do
século XVII, sendo eles: o do Desterro na Bahia, o da Ajuda no Rio e o
383
de Santa Teresa em São Paulo. Vainfas (2000) afirma que ainda nesse
mesmo século foi fundado o convento de Macaúbas em Minas Gerais.
O convento Santa Clara do Desterro, na Bahia, fundado em
1678 era, segundo Ribeiro (2000), uma edificação luxuosa abrigava
mundanamente suas recolhidas. Estas, não abdicavam de muitos
prazeres, nem mesmo da vaidade pois “vestem por baixo de seus
hábitos camisas bordadas (...) calção e meias de seda ligando-as
comumente com fivellas de ouro cravadas de diamantes" (RIBEIRO,
2000). Muitas mulheres de posses próprias foram ali internadas por
pais, irmãos, filhos e maridos que viam nessa organização uma
espécie de prisão mística. Como nesta época o Brasil ainda não
possuía bancos, essa função passou a ser desempenhada pelos
conventos, diante...
...do acúmulo de dotes e doações que
recebiam. Na realidade, as freiras
emprestavam dinheiro a juros aos
proprietários de terra, aqueles mesmos que as
haviam trancafiado nos conventos. Como
muitos não conseguiam saldar suas dívidas em
função de falências ou problemas no engenho,
seus bens, algumas vezes, eram entregues aos
conventos como forma de pagamento. Assim, o
patrimônio das freiras foi aumentando. No
convento do Desterro, na Bahia, elas se
revelaram tão boas gestoras que, além de
emprestarem dinheiro aos senhores,
compravam, vendiam e arrendavam
propriedades. (RIBEIRO, 2000, p.88)
384
Quanto à educação formal feminina, o ler e escrever tanto
era ensinado no lar como no convento. Vainfas (1997) analisa as
recomendações do bispo Azeredo Coutinho de que os recolhimentos
auxiliassem a proteger as mulheres dos “defeitos naturais de seu
sexo”, pois dizia Coutinho: “...elas nascem com uma propensão
violenta de agradar, ao logo se segue o desejo de serem vistas; os
homens procuram pelas armas ou letras conduzir-se ao auge da
autoridade e da glória, as mulheres procuram o mesmo pelos
agrados do espírito e do corpo.”
O medievalista Duby narra:
A esse grupo de mulheres inquietantes
estavam destinadas tarefas específicas, pois
era preciso que estivessem ocupadas, sendo a
ociosidade considerada particularmente
perigosa para esses seres demasiadamente
fracos. O ideal era uma divisão equilibrada
entre a oração e o trabalho, o trabalho do
tecido. No quarto, fiava-se, bordava-se, e
quando os poetas do século XI fazem tentativas
de dar a palavra às mulheres, compõem
canções 'de fiar' (1997, p.90).
Essa forma de convento elaborou um imaginário genérico de
luxo e boa vida, tornando-se uma espécie de sonho de consumo para
as mulheres da época.
385
Confissões da carne
Souza (1986; 1997 e 2000), Vainfas (1995; 1997), Pieroni
(2000), Mott (1988; 1997), e Trevisan (2000) elegeram os arquivos da
Inquisição para responder às suas interrogações historiográficas. De
seus relatos inquietantes desprendem-se realidades que denunciam
os bas-fonds da vida colonial. Trevisan identificou nos processos
inquisitoriais denunciações e confissões de numerosos casos de
lesbianismo no Brasil colonial. O autor discorreu sobre a temática
homossexualidade, apresentando vários exemplos, como o de
Guiomar Pinheira, cujo processo detalhava ser a mesma uma mulata
de 38 anos, viúva várias vezes, confessa de ter sido seduzida por
Quitéria Seca, quando contava com 18 anos de idade. Quitéria — a
sedutora — era esposa do alcaide de Ilhéus.
Outra processada, Guiomar Piçarra, quarentona, também
era casada e confessou ter mantido “desonesta amizade" com a
escrava Mécia. Na ocasião desse relacionamento pecaminoso,
Guiomar contava com 12 a 13 anos de idade, e a escrava, com 18.
Coagida pelo Tribunal do Santo Ofício a pronunciar
pormenorizadamente o pecado cometido, Guiomar revelou, que
nessa e noutras ocasiões, "...se ajustaram ambas em pé uma com a
outra, com as fraldas afastadas, abraçando-se e combinando e
ajuntando suas naturas e vasos dianteiros um com o outro, e assim
se deleitavam como homem com mulher" (TREVISAN, 2000, p.142).
Apesar de, ou porque pressionada, processada não se lembrava se
tinham ou não “cumprido".
386
Da Bahia, Isabel Marques, casada, mameluca filha de um
cônego da Sé, revelou aos inquisidores que, aos dez anos de idade,
tivera "torpe ajuntamento com a adolescente Catarina Baroa, sem
haver entre elas instrumento penetrante" (TREVISAN, 2000, p.142), e que a dita
Catarina teria feito o mesmo pecado em mais duas ou três ocasiões,
com outras moças menores de dez anos.
Destarte, neste ritual perverso de desnudamento das almas
e dos desejos, sobressai o caso de Felipa de Souza, freqüentemente
convocada a prestar contas de seus prazeres aos seriíssimos
senhores inquisidores:
...citada em vários relatórios inquisitoriais que
comprovam o diversificado número de suas
amantes. Mulher de um pedreiro, Felipa era
famosa na Bahia de 1590 porque 'tinha damas'
e lhes falava 'requebros e amores e palavras
lascivas, melhor ainda do que se fora um rufião
à sua barregã'. 'Ela mandava recados com
presentes às suas pretendentes, a quem
chegava a oferecer dinheiro, disputando-as
com seus maridos; afirmava ter 'usado do dito
pecado (nefando)' num convento de freiras e
de ter tido caso, entre 'muitas mulheres e
moças altas e baixas', com Paula Antunes,
Maria de Peralta e Paula de Siqueira — algumas
das quais foram ouvidas pela Inquisição
também por atos de feitiçaria. De Paula de
Siqueira, 40 anos e casada, as confissões
inquisitoriais da Bahia reportam que, durante
dois anos, recebeu de Felipa de Souza 'cartas
de amor e requebros', além de muitos
387
presentes, até terem se encontrado e se
tornado amantes. Maria Lourenço, também
casada e de 40 anos, confessou ter mantido
relação com a mesma Felipa, 'porém não
houve nenhum instrumento exterior
penetrante entre elas mais que somente seus
vasos naturais dianteiros (...) ajuntados (...) e
assim se estiveram ambas deleitando até que a
dita Felipa de Souza, que de cima estava,
cumpriu. (TREVISAN, 2000, p.141)
Para Foucault, o ardil da confissão é que a mesma se
transforma em hábito, sem que o confesso se dê conta de que é uma
injunção de poder que obriga o homem à explicitação de tudo que o
constrange. Quando essa prática transpôs a culpa do Tribunal para a
penitência religiosa, passou, gradativamente, a todos os espaços
das relações sociais. Além disso, Essas “confissões da carne”
(Foucault, 1976) se inscrevem no terreno da educação, por motivos
diversos, dentre os quais o fato de terem sido contemporâneas do
momento de difusão e expansão dos recolhimentos femininos.
Divulgado como “pecado nefando” o lesbianismo teve sua
negatividade elaborada e enfatizada nos processos inquisitoriais
sob o paradigma do castigo exemplar, pesquisado por Foucault em
Vigiar e Punir, objetivável por uma dentre as alternativas assentes
com anterioridade à sociedade disciplinar: deportação para as
2
colônias, trabalhos forçados, suplício — inclusive em praça pública,
ou exposição do delituoso à sociedade para que se envergonhasse do
388
2. Além do degredo constar oficialmente na História 2do Brasil como integrante do projeto de colonização,
TREVISAN (2000), VAINFAS(1995;1997) e MOTT(1988; 1997) observaram vários processos inquisitoriais de
degredados que repetiam no Brasil as acusações das mesmas culpas pelas quais haviam sido condenados em
Portugal. Assim, muitos casos foram objeto da Inquisição, primeiro em Portugal e depois no Brasil.
delito. Foi neste tempo que as “instituições austeras” iniciaram
lentamente seu processo de organização, alicerce necessário à
consolidação da disciplinarização (séculos XVIII e XIX) como
dispositivo de saber e poder. Nas práticas penais portuguesas
3
lançava-se mão da tortura — com instrumentos como polé, potro,
etc — sempre que os inquisidores não obtinham arrancar confissões
4
dos réus durante os interrogatórios. O tormento dos sentenciados
era um procedimento habitual e sua intensidade estava
condicionada ao arbítrio dos inquisidores, após o parecer do médico
e do cirurgião.
Com aplicação do castigo exemplar — para o qual o auto de
fé foi instrumento de excelência —, houve a ampliação de demandas
por recolhimentos. Castigo público, auto de fé, e toda a
teatralidade presente nos ritos possuíam endereço terreno. Os
inquisitores Eymerich e Peña já haviam afirmado ser a finalidade
última da fogueira, não a de salvação da alma do acusado, mas
aterrorizar o povo para a manutenção do bem público. “Confirma-se
assim, desde o berço, a vocação inquisitorial para a cena.”(Karnal,
2001) O auto público “nasce de uma imbricação entre o ódio da
massa inclinada a pogroms e excitada por pregadores e o poder de
morte do Estado” (Novinsky, 1992). Não obstante sentir-se
ameaçada, a massa se satisfaz com o espetáculo do sangue, da dor e
3. a polé, forma de tortura, que consistia em atar o réu pelas mãos e levantá-lo até o teto; e o potro, uma espécie de
cama na qual o condenado era amarrado pelos braços e pelas pernas, os quais eram apertados por cordas atadas
a um torniquete. A polé erguia o prisioneiro até uma roldana fixada no teto, aplicando-lhe um "trato corrido", que
consistia em abaixar o réu lentamente, ou um "trato esperto", de acordo com o qual o supliciado era deixado cair
bruscamente, sem que partes de seu corpo pudessem tocar o chão. Esse gênero de tortura fazia com que ossos e
articulações dos torturados se contraíssem dolorosamente. O potro pressionava violentamente os membros em
oito pontos do corpo, a corda ficava presa a uma manivela manipulada segundo a quantidade de voltas a serem
aplicadas: ¼, ½ ou um volta inteira". À medida que o torniquete contraía, as coroas rasgavam as carnes e às vezes
até quebravam os ossos dos infelizes. (PIERONI, 2000: 74-75)
4. Havia nas dependências do Santo Ofício uma sala destinada a torturas — a casa dos tormentos — onde se
encontravam os instrumentos necessários para torturar os prisioneiros.
389
da morte. Por isso, a Inquisição utilizava manequins para manter o
caráter público da execução quando a vítima não se encontrava
disponível ou já tinha sido executada no calabouço. “Porém, o
caráter cênico da Inquisição não se reduz à execução.[...] A cena
inquisitorial acompanha todo o processo, desde a chegada dos
decretos e do inquisidor até o próprio interrogatório.” (Karnal,
2001) O cênico como utilitário para o convencimento quando
falhava a razão e/ou o consenso.
Recolhidas as mulheres de família — em que pese serem os
claustros sobejamente conhecidos como facilitadores do
homossexualismo — afastava-se o risco da difamação. Por outro
lado, essas internações provocaram — em todos os cantos
suscetíveis aos influxos do Santo Ofício — a criação de ambientes de
ensino, para as mulheres, naturalmente priorizando o
desenvolvimento das prendas domésticas, mas também
promovendo proximidade com a instrução escolar. Foi disseminada,
a partir de então, e com timidez e lentidão, a preparação das
educadoras, tanto para os próprios lares como para o claustro, e
neste caso, de professoras que ensinariam as futuras educadoras.
Quanto às pobres, a maioria seguia a vida religiosa e algumas eram
preparadas para um exercício profissional dentre dois: magistério —
a partir do século XVIII — ou servilismo, isto é, para o trabalho
doméstico dos lares alheios.
Além dessa questão dos recolhimentos, que transpõem os
processos inquisitoriais citados para a esfera da educação, o caso da
390
Felipa de Souza, aquela das “cartas de amor e requebros”, também
se oferece ao olhar da educação. Ao irromper o século XX o País se
surpreendeu com o índice de 75% de analfabetismo da população
brasileira, e de acordo com Moncorvo (1927): “Assignalando o facto,
é Veríssimo de Mattos quem comenta: 'Pode-se afirmar que na época
da Independência (1822), mais talvez de 95% da população era
analphabeta.' ” É possível imaginar o que significava, duzentos anos
antes disto, saber ler e escrever. Mais ainda, saber ler e escrever
sendo mulher. Felipa era alfabetizada antes da eclosão dos
movimentos europeus por universalização do ensino. Quer tenha
aprendido em casa ou tenha sido enviada a algum recolhimento,
quer tenha sido recolhida por caridade e aprendido as letras por
contingência, Felipa possuía o privilégio — raríssimo para a época —
do letramento.
Em História da sexualidade: a vontade de Saber, Foucault
se refere à novidade da sociedade ocidental na modalidade de
poder confessional instituído a partir da Reforma e da ContraReforma. Tudo o que se relacionava ao sexo, desde os atos mais
corriqueiros e os pensamentos mais recônditos, deveria ser
detalhadamente verbalizado, confessado, mas a quem de direito: o
ouvinte autorizado. "Sob a capa de uma linguagem que se tem o
cuidado de depurar de modo a não mencioná-lo diretamente, o sexo
é açambarcado e como que encurralado por um discurso que
pretende não lhe permitir obscuridade nem sossego.” (Foucault,
1976, p.23-24) E dessas práticas de colocação do sexo em discurso
391
cujo norte é o de uma incitação à sexualidade, e não de sua
proibição, saberes foram edificados em direção às novas ciências.
Nesse momento, os prazeres mais singulares eram
solicitados a sustentar um discurso que nos séculos seguintes
deveria articular-se não mais àquele que fala do pecado e da
salvação, da morte e da eternidade, mas o que fala do corpo e da
vida — o discurso da ciência. O processo que extrai a verdade do
sexo pela confissão e constituiu as ciências sobre o sexo se iniciou
com essas práticas inquisitoriais, da articulação entre confissão e
exame; Em seguida, ocorre a imbricação entre a etiologia do sexo
com a da moralidade, justificando o interrogatório exaustivo e sem
conceder o direito a nenhum bloqueio: o dever de confessar o
inconfessável. Como a obscuridade do sexo se dá tanto em função
do que o indivíduo quer esconder, como do que lhe é desconhecido
e, portanto, oculta-se do próprio sujeito a que pertence, primeiro a
relação e depois a ciência assumem o poder para elucidar a verdade
do sexo, arrancando à força, através da confissão, o ocultado.
Finalmente, no século XIX a questão da sexualidade entrará
no imperativo de medicalização da confissão: o domínio do sexo
transposto de um regime de culpa ou pecado, para o de normal e
patológico. A confissão, não mais fixada na religião, mas na ciência,
torna-se necessária ao diagnóstico e permite uma descrição
metódica e científica das doenças, e de suas relações com as
práticas sexuais. A implantação de uma nosofobia impele à
confissão: “A verdade cura quando dita a tempo, quando dita a
quem é devido e por quem é, ao mesmo tempo, seu detentor e
392
responsável" (Foucault, 1976, p. 66).
Através desses atos de ajustamento, no cruzamento da
técnica confessional com a discursividade científica, surge a
"sexualidade", com uma nosografia específica, e, portando; objeto
de terapêutica e normalização. E a tecnologia do discurso que cria e
veicula um poder. Historicamente assim constituiu-se uma ciência
do sujeito, não sobre a verdade que lhe é pertinente, mas da
interpretação que a ciência faz sobre o dito e o não dito. “A
causalidade no sujeito, a verdade do sujeito no outro que sabe, o
saber, nele, daquilo que ele próprio ignora, tudo isso foi possível
desenrolar-se no discurso do sexo”(Idem, Ibidem).
Visionárias e blasfemas
Não obstante o terror carceral, o aprisionamento em
Portugal era mais consolador face à proximidade dos familiares e,
principalmente, da própria «civilização». Laura de Mello e Souza
(1986) lembra da função purgatória que o Brasil ocupava no
imaginário europeu do Século XVII: Para o Tribunal da Inquisição,
degredar os réus no Brasil significava, proporcionar que
terminassem aqui a expiação.
Inúmeros sentenciados ao purgatório brasileiro buscavam
escapar dessa fatalidade sob diversos argumentos, tais como
doenças, vínculos familiares ou ainda dos perigos que este local
bárbaro impunha à alma e à honra. Tais alegações, no entendimento
de Souza, independente da boa ou má fé dos que os utilizavam,
393
auxiliam a perceber a leitura habitual que o português fazia da
principal colônia: “distante vários meses de viagem por mar,
separada da Metrópole por uma barreira de riscos, doenças e
piratas; insalubre e infestada do vício e dos maus costumes;
imprópria, por fim, à vida em família e em nada conforme às regras
da religião católica”(SOUZA ,1986 , p.254).
A imagem de ambiente rústico levava os sentenciados ao
pedido de comutação da pena, como o apresentado por Luzia de
Jesus condenada em 1647 a dez anos de degredo para o Brasil.
Alegava a solicitante o perigo
...de dar com maiores abusos achando-se no
Brasil, donde a gente é mais simples e não
poderá haver facilmente quem a atalhe. Sua
mãe, a persistentíssima Maria Francisca,
insistiu na mesma tecla: 'se a dita filha sua no
meio de Portugal e entre tantos homens doutos
e pios foi tão enganada do Diabo e caiu em
erros tão graves, que será dela em partes
aonde com dificuldade se pode achar quem a
encaminhe'. Se o Santo Ofício visava
reconciliar o réu ao grêmio da Igreja e, desta
forma, possibilitar-lhe a salvação, que lhe
deixasse a filha cumprir pena em algum lugar
do Reino, concluía ela. Mãe e filha.(SOUZA
,1986 , p.254)
A travessia do oceano remetia a um medo lógico, pois não
poucas naus sucumbiam com as tempestades. Mesmo em tempos de
conquistas marítimas, era corrente o entendimento que esse
394
...elemento hostil, o mar é orlado de recifes
inumanos ou de pântanos insalubres e lança
nas regiões costeiras um vento que impede as
culturas. Mas é igualmente perigoso quando
jaz imóvel sem que o menor sopro o ondule.
Um mar calmo, 'espesso como um pântano',
pode significar a morte para os marítimos
bloqueados ao largo, vítimas de uma 'fome
voraz' e de uma 'sede ardente'
(DELUMEAU,1996:41,42)
Esse mar da incerteza poderia significar, ainda mais: a perda
da saúde, da honra e dos dotes físicos, diziam ainda as degredadas.
Por isso, queixando-se de fraqueza, Luiza de Jesus tentava não fazer
a travessia. Dizia que não tinha "forças e nem substância alguma
(...) e assim para passar as águas do mar corre muito perigo sua vida
e não é possível- chegar lá..."(SOUZA,1986,p.255) Lamuriando-se
de dores nas pernas e dificuldade para caminhar, Maria da Cruz não
se considerava em estado de atravessar o oceano, e necessitava
buscar recursos de cura em Caldas; um parecer médico, do cirurgião
da Santa Casa de Misericórdia foi anexado à solicitação: "e está
incapaz de poder embarcar para ir ao degredo"(SOUZA,1986,p.256).
A mãe de Luzia de Jesus temia que a filha não tivesse
iniciativa suficiente para prover com dignidade à própria
subsistência: escreveu aos inquisidores dizendo que Luzia estava "na
cidade da Bahia passando grandes necessidades e desamparo
porque além de não saber trabalhar nem usar de alguma indústria, é
395
doente há muitos anos, e naquela cidade lhe têm carregado muito
os achaques" (SOUZA,1986,p.256).
O barbarismo gentio e a ausência de infra-estrutura urbana
aproximavam o Brasil e Inferno: Esse foi o fundamento do pedido da
bígama Ana Lourença, que em 1647, manifestou os motivos para
suspensão do degredo em nome do grande perigo que corria sua vida
e sua alma. “O primeiro marido acorreu em seu socorro,
prometendo ao Santo Ofício voltar a fazer vida com ela: "com o que
se fica evitando o estragar-se a dita Ana Lourença por ser moça, e
pobre, o que não tem dúvida sucederá se for ao Brasil"
(SOUZA,1986,p.254).
A selvageria e tudo o que de fantástico e extravagante que a
ela foram associados na literatura e nos relatos orais assombravam
as degredadas e seus familiares, levando-os à inquietações sobre as
condições para uma mulher sozinha no Brasil: o apelo à prostituição,
a exposição a criminosos, a piratas e à mendicância: “ O pai da
jovem Francisca Cotta, que era capitão do Rei, temia que sua filha
aqui ficasse desamparada, “...por ele suplicante não poder ir com
ela por ser um cavaleiro pobre e achacoso das pernas, seja causa de
maior desonra sua por ser moça e bem parecida "
(SOUZA,1986,p.255).
Maria da Cruz, aquela cujas pernas não permitiam realizar a
travessia, desembarcou em Olinda e permaneceu 7 anos no
Nordeste, andando “...pelas casas e ruas recolhendo esmolas para
reformar o Recolhimento de Santa Isabel da Hungria, em
396
"
Lisboa (Idem,1986,p.254). Novamente aqui o imaginário tecido
sobre os recolhimentos como objeto de aspiração feminina, imagem
que alentou a fragilidade de tantas marias.
Percebe-se, corroborando com a afirmativa foucaultiana,
de que é de dentro do poder que o contra-poder se exercita, ou seja,
foi o mesmo enclausuramento que sufocou as vozes femininas, que
as permitiu bradar, pois a partir do acesso às letras o mundo foi se
lhes abrindo gradativamente, não apenas às «bem nascidas», mas às
órfãs e camponesas que puderam se tornar professoras e difundir a
educação para a mulher, antes privilégio masculino.
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399
Discurso, gênero e mídia
1
Níncia Cecília Ribas Borges TEIXEIRA
Os meios de comunicação desempenham um papel nodal na
cultura contemporânea, uma vez que, desde meados do século XX,
configuram-se como locus decisivo da produção e circulação de
discursos sobre os modos de ser e de fazer e sobre a subjetividade
humana.A comunicação publicitária veicula formas simbólicas que
não apenas reproduzem os dados do mundo real, mas também
representam-no, sendo assim, decisiva na construção da identidade
dos seres humanos.
A mídia publicitária, como objeto simbólico de
representação, reflete o pensamento do senso comum e, devido sua
presença maciça na vida das pessoas, contribui para a naturalização
de crenças e de papéis sociais, de preconceitos e de relações de
poder, entre elas as relações de gênero.
As relações de gênero são determinadas pela cultura e pela
história. Compreendê-las em suas representações e práticas
femininas e masculinas exige certa comparação entre os modos
como as pessoas enunciam e definem certas práticas sociais.
Nessa perspectiva, objetiva-se, neste trabalho, verificar,
1. Pós-doutora pela UFRJ. Doutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2005).
É Professora Adjunta da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO-PR). Professora nos cursos de
Letras e Comunicação Social, atua nas seguintes linhas de pesquisa: Gênero e Representação; Literatura e
Interfaces
401
através da análise da linguagem, como as representações sociais
sobre as feminilidades são veiculadas pela mídia publicitária, na
qual se verificam as representações discursivas (verbal e nãoverbal) e consideram-se as diferenças de gênero subordinadas aos
processos sociais.
Nosso interesse em melhor compreender o funcionamento
da linguagem publicitária advém do fato de que, ao enunciar o
feminino no bojo de uma sociedade marcada pelos valores da
cultura patriarcal, produzem-se efeitos de sentidos que, de um
lado, possibilitam-nos compreender a construção de alguns
discursos fundadores que são discursos (re)produzidos na
atualidade; de outro, oferece importantes elementos lingüísticos e
discursivos que nos permitem analisar os vestígios que atravessam e
constituem os movimentos identitários da mulher.
Ao reverberar as condutas e as maneiras de ser/viver
desejadas para o público visado, a propaganda pretende conquistar
possíveis compradores, mas a adesão somente ocorre se houver, a
rigor, uma identificação com os valores culturais trabalhados no
interior do anúncio. Há uma incessante busca e uma troca com um
interlocutor/consumidor cúmplice, próximo. É, pois, o
funcionamento discursivo dessas peças publicitárias e as imagens
que dali emergem que nos interessam e, para analisá-las,
focalizamos a relação entre discurso e prática identitária.
A língua, entendida pelo viés discursivo, não é
transparente; tampouco pode ser pensada isoladamente. A idéia de
402
que há, de um lado, uma “evidência”, uma “verdade” e uma
“realidade” na produção de sentidos e, de outro, um sujeito
fundante, origem daquilo que diz, é uma ilusão, pois a produção de
sentidos ocorre em função da articulação entre a língua e o discurso,
e dessa relação participam, de forma constitutiva, os elementos
sócio-históricos, a exterioridade. Isso torna impossível pensar que
os sentidos possam ser literais, ou mesmo que possam ser qualquer
um, já que a materialidade só produz sentido(s) porque está
enraizada na história e resulta de práticas sociais. São, portanto, as
condições de produção que regem a interpretação de qualquer
discurso.
O sujeito, na esteira do pensamento pecheutiano, é
interpelado em sujeito pela ideologia, pelo simbólico na história.
Orlandi (2006, p.42) explica essa noção com as seguintes palavras:
A interpelação do indivíduo em sujeito de seu
discurso se efetua pela identificação do
sujeito com a formação discursiva que o
domina. (...) essa identificação, fundadora da
unidade imaginária do sujeito, apóia-se no
fato de que os elementos do interdiscurso que
constituem, no discurso do sujeito, os traços
daquilo que o determina, são re-escritos no
discurso do próprio sujeito.
Ao considerar o discurso como o lugar de contato entre a
língua e a ideologia, uma vez que a materialidade ideológica se
403
concretiza no discurso, Pêcheux (1997) postula que os efeitos de
sentido de um discurso dependem da formação ideológica a partir
da qual o discurso é produzido. Isso porque o sentido de
determinadas palavras depende dessas posições ideológicas, dos
lugares sociais dos sujeitos que as empregam.
As formações discursivas, por sua vez, “são a projeção, na
linguagem, das formações ideológicas”, conforme Orlandi (2006
p17). Pêcheux (1997, p.166) argumenta que as formações
discursivas, inscritas em determinadas formações ideológicas,
“determinam o que pode e deve ser dito a partir de uma posição
dada numa conjuntura, isto é, numa certa relação de lugares no
interior de um aparelho ideológico (...)”. Nesse sentido, ao se
considerar as formações discursivas de um discurso, considera-se
também que o funcionamento do discurso acontece a partir de certa
regularidade, o que torna possível compreender o processo de
produção dos sentidos e a sua relação com a ideologia.
É necessário, ainda, acrescentar que os discursos, que são
produzidos no interior das formações discursivas, estão
constantemente dialogando com outros discursos produzidos em
outras formações discursivas, fazendo surgir daí o interdiscurso.
Isso significa que todo discurso é considerado uma dispersão de
textos porque se relaciona com outros discursos e os sentidos
procedem dessas relações. É um estado de um processo discursivo
mais amplo, contínuo, não possuindo nem início nem ponto final,
pois se apóia em já-ditos, que o sustentam, e se remete para outros
404
futuros. A interdiscursividade nos permite verificar, por exemplo,
que todo e qualquer discurso sempre nasce de um trabalho sobre
outros discursos, frente aos quais é uma resposta direta ou indireta,
ou sobre os quais ele 'orquestra' os termos principais, ou cujos
argumentos destrói, conforme postulou Pêcheux (1997).
Direcionamos nossas análises considerando, igualmente,
que o desenvolvimento dos papéis de gênero e a formação de
identidades são discursivamente construídos e aprendidos nas
relações históricas, sociais e culturais nas quais o sujeito se inscreve
desde seu nascimento. É, portanto, na dinâmica das relações sociais
que se começa a perceber a diferença entre o feminino e o
masculino. A noção de gênero é entendida aqui como relações
estabelecidas a partir da percepção social das diferenças biológicas
entre os sexos (SCOTT, 1995). Foucault (1999) afirma que aquele
que lê (uma obra de arte, um livro, um filme, uma fotografia, uma
história em quadrinhos) entra na cena e ao construí-la é construído,
é subjetivado pelos discursos que no texto operam e, neste mesmo
jogo, posicionado como sujeito.
A leitura do texto vai constituindo uma leitura dos objetos,
dos acontecimentos, das coisas descritas - no roteiro, no cenário, na
história –, e está ancorada em discursos tidos como verdadeiros num
tempo, num contexto, numa cultura. A linguagem constrói
“realidades”, sujeitos, posições a serem ocupadas, instituindo
oposições binárias.
Essa percepção, por sua vez, está baseada em esquemas
405
que se opõem masculino/feminino, sendo esta oposição homóloga e
relacionada a outras: forte/fraco; grande/pequeno; acima/abaixo;
dominante/dominado (Bourdieu, 1999). Os discursos que fomentam
tais oposições/hierarquizações são arbitrárias e, como já dissemos,
historicamente construídas. Entender as relações de gênero como
fundadas em discursos que promovem categorizações presentes em
toda a ordem social, permite compreender não somente a posição
dos homens e das mulheres, em particular, como subordinada, mas
também a relação entre sexualidade e poder.
Essa rápida e preliminar incursão por alguns conceitoschave da Análise do Discurso nos instiga a questionar o
funcionamento discursivo dos anúncios publicitários atentando para
a inscrição do dizer em uma dada formação discursiva e os efeitos de
sentido a partir do entendimento de que as peças publicitárias, que
compõem nosso corpus de análise, podem ser tomadas como um
lugar da memória, cuja rede simbólica que as envolve entrelaça e
emaranha discursos de determinada época e cultura o que, no nosso
entendimento, contribui na formação de identidades.
O conceito de gênero foi introduzido por Joan Scott em 1986
para teorizar sobre o caráter fundamentalmente social das
distinções baseadas no sexo, afastando a questão da naturalização e
incorporando a dimensão das relações de poder. O gênero foi, assim,
definido como uma categoria relacional de análise das construções
culturais que estabelecem relações sociais de dominação de um
sexo sobre o outro.
406
Pretendeu-se evidenciar, naquele momento, que as
distinções entre o feminino e o masculino eram forjadas pelos
indivíduos em sociedade, isto é, pela própria estrutura social;
enquanto que o termo sexo remetia à condição biológica, natural do
ser humano, o que reforçava a naturalização das desigualdades
entre mulheres e homens.
Toda a carga histórica de valores e comportamentos
diferenciados e discriminatórios entre mulheres e homens fundou o
que se convencionou chamar relações de gênero, constituídas e
perpetuadas social e economicamente e determinadas pela história
e pela cultura. Elas abrangem um “conjunto complexo de relações e
processos sociais historicamente variáveis” (FLAX, 1990, p.227). As
relações de gênero têm sido relações de dominação,
hierarquicamente controladas pelo sexo masculino.
Atualmente, o conceito de gênero refere que, como se
nasce e se vive em tempos, lugares e circunstâncias específicos,
existem muitas e conflitantes formas de definir e viver as
feminilidades e as masculinidades. Tais formas são sempre
mediadas pelas práticas sociais discursivas que contribuem para a
manutenção do status quo por meio de um discurso do senso comum
e para a maneira como esse discurso pode ser ideologicamente
condicionado por relações de poder, sustentando posições de mando
e de subordinação oriundas da imagem de superioridade ou
inferioridade como “destino da natureza”.
Em todas as sociedades, as relações de dominação têm um
407
caráter cultural e ideológico, particularizando relações de poder
assimétricas e duráveis que conduzem a desigualdades, como
aquelas baseadas em divisões de classes, etnias e gênero. Tais
relações assimétricas estruturam instituições sociais e espaços de
interação entre os indivíduos e, segundo Thompson (1990), são
estimuladas, estabelecidas e mantidas pelas formas
representativas que circulam no meio social, e que são
principalmente difundidas pelos meios de comunicação de massas,
sendo a expressão do senso comum.
As marcas identitárias atribuídas a cada sujeito nas
representações da mídia são essenciais na elaboração daquilo que
aprendemos e reconhecemos como determinada identidade.
Conforme Hall (2003, p.363), “cada fala está situada sobre a base de
um sentido já dado”, assim, as representações midiáticas assimilam
discursos, preconceitos e estereótipos já circulantes em nossa
sociedade.
Com base nessa idéia, Knoll (2007) afirma que a mídia capta
um universo discursivo, cultural e ideológico em processo contínuo
e infindável de significação e ressignificação, entretanto, as
representações de gênero na publicidade, freqüentemente, recaem
em construções estereotipadas,
[...] devido a dois fatores: em primeiro lugar,
por ser produto de uma sociedade perpassada
por uma estrutura de dominação masculina.
Em segundo, por se destinar a um público-alvo,
408
um recorte de pessoas de uma massa, o
anúncio se concentra em um perfil de público,
um conjunto de características (detectadas
por meio de pesquisas) compartilhadas por um
grande número de integrantes dessa massa.
(KNOLL, 2007, p 96).
Ao produzirmos discursos, não somos a fonte deles, porém
intermediários que dialogam e polemizam com os outros discursos
existentes em nossa sociedade e em nossa cultura. Toda
compreensão é um processo ativo e dialógico, portanto, tenso, uma
vez que traz em seu cerne uma resposta, implicando sujeitos.
O desenvolvimento dos papéis de gênero e a construção da
identidade são socialmente construídos e aprendidos desde o
nascimento, com base em relações sociais e culturais que se
estabelecem a partir dos primeiros meses de vida, mas é a partir da
relações sociais que se começa a perceber a diferença entre o
feminino e o masculino. A noção de gênero é entendida aqui como
relações estabelecidas a partir da percepção social das diferenças
biológicas entre os sexos (SCOTT, 1995). Foucault (1999) afirma que
aquele que lê (uma obra de arte, um texto publicitário, um filme,
uma fotografia, uma história em quadrinhos) entra na cena e ao
construí-la é construído, é subjetivado pelos discursos que no texto
operam e, neste mesmo jogo, posicionado como sujeito. A leitura do
texto vai constituindo uma leitura dos objetos, dos acontecimentos,
das coisas descritas - no roteiro, no cenário, na história –, e está
409
ancorada em noções tidas como verdadeiras num tempo, num
contexto, numa cultura. A linguagem constrói “realidades”,
sujeitos, posições a serem ocupadas, instituindo oposições binárias.
Por meio de textos e imagens publicitárias são divulgados e
reforçados papéis masculinos e femininos sancionados socialmente,
como o do homem trabalhador, chefe e provedor da família, e da
mulher como mãe e esposa. Joan Scott afirma que a categoria
gênero é relacional. Ou seja, as noções do feminino e do masculino
são construídas, em termos recíprocos, por homens e mulheres no
interior de relações sociais, culturais e historicamente localizadas.
O que aponta para a impossibilidade de se tratar o feminino e o
masculino, ou uma cultura das mulheres e uma cultura masculina,
isoladamente, pois um só existe e adquire significado através do
outro.
Nas últimas décadas do século XX, muitos estudiosos
passaram a utilizar a publicidade como um documento visando
compreender a sociedade que a produziu. O discurso publicitário,
também, hierarquiza os grupos sociais. Nos anúncios, vendem-se
estilos de vida, sensações, emoções, visões de mundo, relações
humanas. Sendo assim, o emprego de anúncios publicitários como
fonte de pesquisa é bastante recente e tem sido amplamente
empregado nos estudos de gênero para perceber as representações
acerca do corpo e dos papéis masculinos e femininos sancionados
socialmente.
As diferenças biológicas entre o corpo masculino e o
410
feminino são construídas como justificativas naturais para as
diferenças sociais entre os gêneros. Pierre Bourdieu (1999) aponta
que a definição social dos órgãos sexuais é produto não do registro
de propriedades naturais expostas à percepção, mas do processo de
acentuação de certas diferenças e obscurecimento de semelhanças.
Assim, legitima-se uma relação de dominação inscrevendo-a em
uma natureza biológica, a qual, também está disposta conforme
uma construção social naturalizada.
Partimos do princípio de que os textos publicitários
constituem-se numa unidade de significação que somente podem
ser analisados e interpretados se for considerada a natureza
sincrética desse tipo de texto em relação à situação discursiva e ao
conjunto de discursos possíveis que fazem emergirem as
significações, a partir de mitos, crenças e ideologias que povoavam
o imaginário coletivo da época em que tais discursos circularam. A
publicidade sempre se apresentou como espaço onde trafegam
discursos que sedimentam valores e ideologias de determinada
época.
Assim, por ser um campo fértil em que são cultivadas as
representações que os homens devem construir sobre o mundo, o
discurso publicitário dialoga com as representações que se
estabelecem de acordo com o modo de significação da ideologia da
época, sobretudo a que reproduz os valores burgueses,
estabelecendo sua legitimidade de publicização e fixando certos
padrões de pensamento e comportamento.
411
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro, Bertrand
Brasil, 1999.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências
humanas. 8ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
FLAX, J. (1990) Pós-modernismo e relações de gênero na teoria feminista.
In: HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Liv Sovik
(org.). Belo Horizonte, MG: Editora da UFMG; Brasília, DF: Representação
da UNESCO no Brasil; 2003.
KNOLL, G. F. Relações de gênero na publicidade: palavras e imagens
constituindo identidades. Dissertação de Mestrado. Santa Maria:
Universidade Federal de Santa Maria, 2007.
ORLANDI, Eni. Análise de Discurso. In: ORLANDI, Eni; LAGAZZI-RODRIGUES,
Susy (org.). Introdução às ciências da Linguagem – Discurso e
textualidade. Pontes, 2006: Campinas p.33-80.
PÊCHEUX, M. & FUCHS, C. A propósito da Análise Automática do Discurso:
Atualização e perspectivas. In GADET, F. & HAK, T. (org.) Por uma análise
automática do discurso. Uma introdução à Obra de Michel Pêcheux.
Campinas: Unicamp, 1997.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e
Realidade, Porto Alegre, v.20, n.2, p. 71-99, jul./dez. 1995.
THOMPSON, J. B. (1990) Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica
na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
412
PARTE VI
Mídia e Linguagem
Jornalismo ambiental nas capas de Veja:
uma analise discursiva
Ariane Carla PEREIRA
1
Reviravolta climática. Aquecimento global. Temperaturas
em elevação. Desmatamento. Geleiras derretendo. O alarme de que
nas questões ambientais estamos – nós, seres humanos – conduzindo
o planeta de maneira torta soou. E, depois da “Verdade
2
Inconveniente”, de Al Gore, o clima, o meio-ambiente e a ecologia
viraram – a partir da segunda metade de 2006 e continuam até os
dias de hoje – assuntos cativos na imprensa mundial e brasileira.
Jornais, revistas, TVs, emissoras de rádio, sites de conteúdo não
passaram sem registrar o medo de que seja tarde demais para o
planeta; os vilões do aquecimento global e as saídas possíveis para
esse lugar chamado Terra. Inevitável pauta. Inevitável?
Sim. Esta é/será, provavelmente, a resposta dos leitores de
Veja, publicação semanal da Editora Abril, revista de maior
circulação no país. Porém, esta afirmação, que também é minha
enquanto leitora, inicialmente, é baseada apenas na percepção
visual, nos registros da memória. Percepção e memória que,
1. Jornalista, mestre em Letras, professora efetiva do Departamento de Comunicação Social da UNICENTRO [email protected]
2. “Gore se transformou num pregador incansável em favor da salvação do planeta por meio de investimentos em
novas tecnologias e modelos de negócios. Nos últimos anos, ele já fez mais de 1 000 palestras em empresas e
universidades, discursando sobre as conseqüências das mudanças climáticas e o que pode ser feito para
combatê-las. Há três semanas, estreou nos cinemas americanos o documentário Aquecimento Global, uma
Verdade Inconveniente” - Veja, 21/06/2006
415
também, permitiriam afirmar que as matérias/reportagens
publicadas por Veja sobre o tema apresentam uma visão pessimista
em relação ao aquecimento global e à possibilidade de reverter o
“caos” ambiental que vivemos contemporaneamente.
Percepções de leitora da revista que levaram a inquietações
na analista do discurso. Como Veja abordava a temática antes de
2006? A “visão” da revista acerca dos problemas ambientais
permaneceu a mesma após a “Verdade Inconveniente” ou passou
por transformações? Ao longo dos últimos anos, entre 2006 e 2008, a
revista mantém o mesmo discurso, o do “caos ambiental”?
Tais questionamentos orientaram este trabalho de
pesquisa. Assim, num primeiro momento, foram “dissecados” os
exemplares de Veja publicados entre janeiro de 2003 e dezembro de
2005 e no período compreendido entre janeiro de 2006 e dezembro
de 2008 tendo como objetivo levantar as reportagens sobre o tema
com chamada de capa – não levando em consideração se principal ou
secundária.. Observação que apontou que nos últimos três anos
(2006, 2007 e 2008), o aquecimento global e/ou o efeito estufa
estiveram presentes na capa de Veja cinco vezes, nas edições de:
Ÿ21 de junho de 2006: Aquecimento Global: Os sinais do apocalipse
– O degelo dos pólos nunca foi tão violento – Ciclones agora açoitam
o Brasil – Os desertos avançam mais rapidamente – O nível dos
oceanos ameaça cidades (chamada principal);
Ÿ30 de dezembro de 2006: Alerta Global – 7 megassoluções para o
416
megaproblema ambiental (chamada principal);
Ÿ11 de abril de 2007: O alerta dos pólos – Veja foi ao Artico e à
Antártica e encontrou cientistas alarmados com o ritmo do
derretimento do gelo polar (chamada principal);
Ÿ24 de outubro de 2007: Salvar a Terra: como essa idéia triunfou -
Militância ecológica: dos “verdes” aos radicais do “planeta sem
gente” - O que pensam os poucos (e honestos) cientistas céticos
(chamada principal);
Ÿ07 de maio de 2008: Em 50 perguntas e respostas, tudo sobre o
aquecimento global (chamada secundária).
Nos três anos imediatamente anteriores (2005, 2004 e
2003), o assunto meio ambiente foi destaque em apenas uma capa
da revista:
Ÿ12 de outubro de 2005: A terra no limite – Já estamos arrancando
do planeta mais do que ele pode dar – O contra-ataque da natureza:
novos vírus e epidemias – O ciclo vital da floresta amazônica
começa a se romper (chamada principal).
Esse levantamento quantitativo inicial permite que seja
satisfeita uma das inquietações primeiras. A temática ambiental
passou a figurar nas capas de Veja – ou seja, ganhou destaque entre
as tantas outras editoriais da revista - a partir de meados desta
década.
Assim, terminado este “situar” do corpus, convido você,
leitor, a percorrer a trilha teórica e, concomitantemente – já que a
Análise do Discurso é feita de batimentos teoria-análise – a se
417
aventurar pela vereda da análise.
Um dos conceitos chave da Análise do Discurso de linha
francesa é o referente às Formações Imaginárias que, segundo
Pêcheux, não são os sujeitos físicos, mas as imagens que o
locutor/enunciador e o interlocutor formam de si, do outro e,
também, do que estão falando:
O que funciona nos processos discursivos é uma
série de formações imaginárias que designam o
lugar que A e B se atribuem cada um a si a ao
outro, a imagem que eles se fazem de seu
próprio lugar e do lugar do outro. Se assim
ocorre, existem nos mecanismos de qualquer
formação social regras de projeção, que
estabelecem as relações entre as situações
(objetivamente definíveis) e as posições
(representações dessas situações). (PECHEUX,
2001, p.82).
As formações imaginárias podem ser evidenciadas, de
acordo com a proposta pecheuxtiana, a partir de quatro questões –
duas referentes às imagens de A (o sujeito produtor do discurso) e
duas referentes às imagens de B (o sujeito receptor desse mesmo
discurso):
IA(A) (imagem do lugar de A para o sujeito
colocado em A): “Quem sou eu para eu lhe
falar assim?”
IA(B) (imagem do lugar de B para o sujeito
colocado em A): “Quem é ele para que eu lhe
fale assim?”
418
IB(B) (imagem do lugar de B para o sujeito
colocado em B): “Quem sou eu para que ele me
fale assim?”
IB(A) (imagem do lugar de A para o sujeito
colocado em B): “Quem é ele para que me fale
assim?” (PECHEUX, 2001, p.83)
Assim, as posições sociais ocupadas pelo sujeito produtor do
discurso e pelo sujeito receptor desse mesmo discurso são
constitutivas do dizer. Afinal, são “essas projeções que permitem
passar das situações empíricas – os lugares dos sujeitos – para as
posições do sujeito no discurso. Essa é a distinção entre lugar e
posição” (ORLANDI, 2003, p.40).
Esse conceito de formações imaginárias foi desenvolvido
por Michel Pêcheux a partir do conceito lacaniano de imaginário.
Dessa maneira, as formações imaginárias sempre são resultado,
também, de processos discursivos anteriores e, assim, se
manifestam, discursivamente, através das relações de força, de
sentido e da antecipação.
Esse último mecanismo trata da capacidade do locutor se
colocar no lugar do outro para, assim, poder dizer “de um modo, ou
de outro, segundo o efeito que pensa produzir em seu ouvinte”
(ORLANDI, 2003, p.39). Ou seja, o sujeito recorre à antecipação
para estabelecer suas estratégias discursivas. Dessa maneira, se
antecipar significa, segundo Pêcheux, dirigir o processo
argumentativo:
419
A antecipação de B por A depende da
“distância que A supõe entre A e B: encontramse assim formalmente diferenciados os
discursos em que se trata para o orador de
transformar o ouvinte (tentativa de
persuasão, por exemplo) e aqueles em que o
orador e seu ouvinte se identificam fenômeno
de cumplicidade cultural, “piscar de olhos”
manifestando acordo etc.) (PECHEUX, 2001,
p.85, grifos do autor)
Para a AD, o lugar de onde fala o sujeito é constitutivo de seu
dizer. Assim, essas posições determinam as relações de força de um
discurso. “Como nossa sociedade é constituída de relações
hierarquizadas, são relações de força, sustentadas no poder desses
diferentes lugares, que se fazem valer na 'comunicação'” (ORLANDI,
2003, p.40).
Já a relação de sentidos pressupõe que um discurso sempre
aponta para outros – já-ditos ou ainda por dizer. Nas palavras de
Orlandi, “um dizer tem relação com outros dizeres realizados,
imaginados ou possíveis” (ORLANDI, 2003, p.39).
Assim, segundo a AD, todo o discurso é um jogo de imagens:
dos dizeres com os ditos que os sustentam; dos sujeitos com os
lugares por eles ocupados na sociedade; e dos sujeitos (dos
discursos) com eles mesmos. Jogo esse presente, como não poderia
deixar de ser, no discurso “pró-verde” de Veja que vai do alarmismo,
do “caos ambiental”, do “apocalispe já”, à esperança de que “a
420
salvação do planeta triunfará”. Assim, os gestos de leitura do corpus
apontam para as seguintes imagens:
IB(B) (“quem sou eu para que ele me fale assim?”) = Imagem
do lugar do leitor da revista Veja (para os próprios leitores da
publicação) = Brasileiro(s) preocupado(s) em estar bem
informado(s) e não apenas isso, leitor(es) que busca(m) informação
acompanhada de análise e, também, opinião sobre assuntos
relevantes, que repercutam na própria vida, na família, nos
negócios, no Brasil e no mundo. E se .a questão ambiental preocupa,
contemporaneamente, ao mundo, também o(s) interessa.
IB(A) (“quem é ele para que me fale assim?”) = Imagem do
lugar da revista Veja (para quem se coloca como leitor da
publicação) = Veja é uma revista publicada pela Editora Abril há 40
anos e que, semana a semana, mostra responsabilidade em suas
matérias e que, através do jornalismo investigativo e isento que
brada exercer, conquistou a credibilidade dos leitores, como eu, se
consolidando como a revista semanal de informação mais lida no
país. Dessa maneira, eu, leitor, a autorizo a me informar nas
questões políticas, econômicas e, também, a me alertar sobre o
“caos climático”.
IB(B) e IB(A) possibilitam que a revista ocupe o
lugar/posição que a publicação imagina ter e que constituem seu
421
dizer. Discurso esse mais forte (relação de forças) por ser digno de
credibilidade , por ter conquistado a preferência dos leitores, por
estes recorrerem a ela quando querem informação objetiva e
análise isenta. E, por saber disso, que é tomada como “voz da
verdade” pelos leitores, Veja busca, incessantemente, se
“antecipar” e publicar assuntos de interesse primeiro dos
brasileiros, ou melhor, daqueles que assinam a publicação ou
compram as edições nas bancas.
Assim, a partir de 2006, inevitavelmente, o aquecimento
global está em pauta pelo tema estar no centro de todas as
discussões midiáticas e/ou cotidianas. Por isso, os sentidos dos
discursos de Veja (relação de sentidos), nos últimos três anos,
apontam para a onda verde de dizeres já proferidos ou ainda por
dizer depois do alerta de Uma verdade inconveniente,
documentário do ex-vice-presidente norte-americano Al Gore.
Porém, mantendo a proposta da revista de antecipar os assuntos, as
pautas, as discussões nacionais e mundiais, o efeito estufa e o
aquecimento global já estavam nas páginas da publicação e com
chamada de capa (já que são essas as reportagens que este estudo
se propõe analisar) desde o ano anterior, 2005. Antecipação essa
que a própria revista faz questão de ressaltar em suas páginas, como
na edição de 12 de outubro de 2005 que traz como chamada de capa
“A Terra no limite”, cujo texto da reportagem reafirma esse
“espírito de vanguarda informativa” de Veja aos seus próprios olhos:
422
A reportagem "A cegueira das civilizações" (7
de setembro) discutiu o risco de a humanidade
estar repetindo o erro de sociedades do
passado que entraram em colapso porque não
evitaram a destruição ambiental causada por
elas próprias. Em "Seis provas do aquecimento
global" (21 de setembro), VEJA demonstrou
que a mudança climática da Terra, acelerada
pelo homem, é um fenômeno real e que seus
efeitos não podem mais ser ignorados. E hora
de rever a forma como os recursos naturais são
explorados. (Veja, 12/10/2005)
Dessa forma, voltando às imagens presentes nos discursos
de acordo com Pêcheux, a análise dos textos publicados com
chamada – principal ou secundária – de capa (listagem completa
acima) sobre o tema meio ambiente pela revista Veja nas edições de
2006, 2007 e 2008 apontam para as seguintes formações
imaginárias:
IA(A) (“quem sou eu para falar assim?”) = Imagem do lugar
da revista Veja (para os repórteres, editores, colunistas da própria
revista Veja) = A luz vermelha do aquecimento global e suas
conseqüências acendeu na redação de Veja e nós, que fazemos a
revista, temos a obrigação de fazer a nossa parte que é alertar você
que, como nós (e por nós), é bem informado, assume as próprias
responsabilidades, tem visão de curto, médio e longo prazo. (Aqui,
cabe ressaltar que Veja é um veículo jornalístico que segue os
preceitos da imparcialidade, neutralidade e objetividade. Assim,
seus textos são em terceira pessoa, mostram os “dois lados” como
423
maneira de se mostrar isento. Isso significa que esse recado, o de
que tem a obrigação de informar, não é dado de maneira direta:
“atenção amigo leitor” ou “estamos preocupados, portanto, há
motivo para que você se preocupe também”, e sim a partir da
escolha dos temas abordados, da recorrência destes e pela
maneira/pelo tom com que as informações são passadas pelas
reportagens que é de alarme, de urgência.)
IA(B) (quem sou eu para lhe falar assim?”) = Imagem do lugar
dos leitores da revista (para os repórteres, editores, colaboradores,
ou seja, para a revista Veja) = Veja é a revista de maior circulação no
país, sucesso de vendas alcançado graças ao trabalho ético, isento,
investigativo. Fatores que são os responsáveis pela conquista da
credibilidade que a publicação goza. E se o discurso de Veja é o
discurso da verdade mais uma vez nossa palavra deve ser tomada
como realista. Isto significa que se você, leitor, adquiriu a revista é
porque confia na publicação. Portanto, acredite: o planeta passa
por um momento de caos ambiental provocado pelo próprio homem,
reverter o quadro é impossível, mas temos o dever de agir para que a
situação não se agrave ainda mais.
As imagens que a revista forma dela mesma e de seus
leitores, em relação ao “caos ambiental”, ou melhor, do que a
publicação imagina que seus leitores esperam dela, se mesclam,
mesmo se confudem. Assim, os exemplos abaixo são ilustrativos de
424
IA(B) mas, ao mesmo tempo, possibilitam formar IA(A):
1) “Aquecimento Global – Os sinais do apocalipse” - Veja,
21/06/2006
2) “Já começou a catástrofe causada pelo aquecimento global, que
se esperava para daqui a trinta ou quarenta anos. A ciência não sabe
como reverter seus efeitos. A saída para a geração que quase
destruiu a espaçonave Terra é adaptar-se a furacões, secas,
inundações e incêndios florestais” - Veja, 21/06/2006
3) “O entendimento sobre o fato de que 'somos parte do equilíbrio
natural' pode nos ser útil diante de uma catástrofe global iminente
provocada pelo aquecimento global” - Veja, 21/06/2006
4) “Como uma praga apocalíptica, as mudanças climáticas já
semeiam furacões, incêndios florestais, enchentes e secas com tal
intensidade que ninguém mais pode se considerar a salvo de ser
diretamente atingido por suas conseqüências” - Veja, 21/06/2006
5) “Até os mais céticos comungam agora da idéia apavorante de que
a crise ambiental é real e seus efeitos, imediatos. O que divide os
especialistas não é mais se o aquecimento global se abaterá sobre a
natureza daqui a vinte ou trinta anos, mas como se pode escapar da
armadilha que criamos para nós mesmos nesta esfera azul, pálida e
frágil, que ocupa a terceira órbita em torno do Sol – a única, em todo
425
o sistema, que fornece luz e calor nas proporções corretas para a
manutenção da vida baseada no carbono, ou seja, nós, os bichos e as
plantas” - Veja, 21/06/2006
6) “Irreversível? Muitos cientistas começam a acreditar que as
mudanças climáticas chegaram a um ponto de não-retorno” - Veja,
21/06/2006
7) “O impacto do aquecimento global pode ser percebido em toda
parte, mas não há nada mais explícito que a redução das geleiras e
do Artico. Praticamente todos os glaciares da Terra estão
encolhendo” - Veja, 21/06/2006
8) “Até os ecocéticos aceitam agora a idéia assustadora de que o
tempo disponível para evitar a catástrofe global está perigosamente
curto. Não há mesmo como ignorar o problema. Como uma praga
apocalíptica, as mudanças climáticas já afetam o cotidiano de
bilhões de pessoas de forma impossível de ser ignorada” - Veja,
30/12/2006
9) “O que se ouve nos pólos agora é, infelizmente, um grito agônico”
- Veja, 11/04/2007
10) “O desastre já começou” - Veja, 11/04/2007
11) “Dela (a hidróloga alemã Julia Boike, do Instituto Alfred
Wegener para Pesquisa Polar e Marinha, na Alemanha) se ouve uma
426
confissão alarmante: 'Há tantas transformações ocorrendo ao
mesmo tempo no Artico que nós, cientistas, mal temos tempo de
registrar e estudar'" – Veja, 11/04/2007
12) “O planeta tem pressa. Até mesmo os mais incrédulos já
concordam: a temperatura da Terra está subindo e a maior parte do
problema é provocada por ações do homem” - Veja, 07/05/2008
13) “Alguns limites já foram até ultrapassados. Não se pode esperar
mais cinco ou dez anos para começar a agir vigorosamente” - Veja,
07/05/2008
14) “E preciso agir agora” - Veja, 07/05/2008
O caráter de urgência é recorrente, bem como o tom
alarmista de que este é um momento de caos ambiental que deverá
se prolongar por toda a existência humana já que reverter o efeito
estufa e quadro atual de aquecimento global, “mesmo para os
cientistas mais céticos”, é improvável. Discurso este que teve início
ainda em 2005, na edição de 12 de outubro, como já dito acima,
quando a revista teve como manchete principal: “A Terra no
limite!”. Esta “antecipação” da agenda setting, ou seja das
discussões colocadas em pauta pela imprensa e que continuam e
ganham corpo nos debates cotidianos, evidencia a imagem que Veja
faz de si – a de revista preocupada com os problemas
contemporâneos, de publicação com “espírito de vanguarda
427
informativa”. Assim, as imagens presentes nas reportagens
publicadas entre janeiro de 2006 e dezembro de 2009 são reforçadas
pelos exemplos abaixo desta edição de 2005 que teve o meio
ambiente como capa:
A) “Wilson está entre os cientistas de vulto que clamam
insistentemente pela atenção da humanidade para o perigo real e
cada vez mais imediato para a sobrevivência de nós mesmos, que
podemos ser arrastados num paroxismo de autodestruição” - Veja,
12/10/2005
B) “os efeitos incontornáveis do aquecimento global podem ser
amenizados, na melhor das hipóteses, ou agravados em proporções
dantescas, na pior” - Veja, 12/10/2005
C) “A vida começou na Terra há cerca de 3,5 bilhões de anos e ainda
há 6 bilhões pela frente antes que o sol incinere a Terra. Cerca de 60
bilhões de seres humanos já viveram antes de nós. Seria demais
deixar um desaparecimento catastrófico acontecer justo no nosso
turno” - Veja, 12/10/2005
D) “Perigo real e imeditato – Para onde vamos com nossas agressões
ao planeta? O pessimismo da resposta varia, mas há um consenso: a
hora de agir é já” - Veja, 12/10/2005
428
Os dois últimos exemplos acima, A e B, bem como os de
número 13 e 14 pedem/conclamam atitudes verdes, em prol do
planeta. Porém, mesmo nesses casos e até nos que tem,
aparentemente, tom de esperança – como a chamada de capa “
Salvar a Terra: como essa idéia triunfou – Militância ecológica: dos
'verdes' aos radicais do 'planeta sem gente', de 24 de outubro de
2007 – o que prevalece, na verdade, mais uma vez, é a
desesperança, o caos climático e seus efeitos irremediáveis. E como
se Veja dissesse a seus leitores: “Façam! E preciso fazer! E dever de
todo cidadão, principalmente dos vanguardistas e conscientes
leitores de Veja. Porém, nosso esforço será em vão. Já é tarde
demais para a Terra, já não há mais tempo para os seres humanos”.
Assim, a mesma reportagem que apresenta a preocupação
dos cidadãos em reverter o efeito estufa e o aquecimento global – “a
realidade do aquecimento global criou uma preocupação com o
ambiente como nunca se viu: todo mundo quer fazer sua parte para
salvar o planeta” – Veja, 24/10/2007 – , questiona as conseqüências
destes...
Em que planeta vivemos? Se for no planeta Al
Gore, estamos em apuros. Um brasileiro que
nasça hoje chegará à idade adulta em um
mundo hostil e diferente, no qual restarão
raros ursos-polares fora do zoológico e se
poderá navegar pelas ruas do Recife,
submersas pela elevação do nível do mar. Seus
netos viverão num ambiente pestilento, com
429
surtos de malária, dengue e febre amarela
decorrentes do clima mais quente. Na
Amazônia, com temperaturas 8 graus mais
altas que as atuais, a floresta se transformaria
em cerrado e estaria sujeita a incêndios de
dimensões bíblicas. O que se chama aqui de
planeta Al Gore é aquele que o político
americano descreveu em seu documentário
U m a Ve r d a d e I n c o n v e n i e n t e , c u j a
dramaticidade lhe rendeu dois dos prêmios
mais cobiçados que existem. O primeiro foi o
Oscar, entregue em fevereiro. O segundo é o
Nobel da Paz de 2007, que ele receberá no dia
10 de dezembro em Oslo, ao lado do indiano
Rajendra Pachauri, presidente do Painel
Intergovernamental Sobre Mudanças
Climáticas das Nações Unidas (IPCC). Mas será
que a Terra só tem como futuro se transformar
no planeta Al Gore? Talvez não. - Veja
24/10/2007
...e também discursiviza a “falta de coração” dos cientistas
ditos “céticos” que mostram-se contrários às hipóteses do IPCC e de
Al Gore:
os ursos-polares estão realmente ameaçados.
Um estudo prevê que, devido à retração da
camada gelada do Artico, a população desses
animais magníficos estará reduzida a um terço
da atual em 2050. O dar de ombros de alguns
céticos, sob o argumento de que a extinção de
espécies faz parte do ciclo natural da
430
natureza, só nos enche de horror, Veja
24/10/2007.
Assim, nas páginas de Veja, ao longo do período
compreendido pelos anos 2003-2008, fica evidenciado o binômio
esperança-descrença. Outros exemplos discursivos que apontam
nessa direção são os relacionados a possibilidade de reversão “do
caos ambiental” a partir de ações da sociedade civil. Ou seja, a
publicação, ao mesmo tempo, convida o leitor a agir (convite este
acompanhado do engrandecimento de quem busca transformar a
realidade climática contemporânea e não esperar)...
a) “A realidade do aquecimento global criou uma preocupação com
o ambiente como nunca se viu: todo mundo quer fazer sua parte
para salvar o planeta” - Veja, 24/10/2007
b) “Hoje é cada vez maior o número de pessoas dispostas a
empreender ações individuais de combate ao aquecimento global” –
Veja, 11/04/2007
...e desacredita as ações individuais:
c) “Campanhas de ONGs e ambientalistas propõem que cada pessoa
faça sua parte, como deixar o carro na garagem alguns dias por
semana. São atitudes louváveis, mas de pouco efeito prático” –
Veja, 21/06/2006
d) “Ações individuais em favor da preservação ambiental têm
impacto praticamente nulo nos problemas que pretendem
431
combater, sobretudo no caso do aumento do efeito estufa. Em geral,
sua principal utilidade é tranqüilizar a consciência de quem as
pratica. De qualquer maneira, a disseminação do engajamento
verde serve para pressionar os governos a tomar as medidas
realmente eficazes para salvar a Terra” - Veja, 11/04/2007
e) “Diante desse quadro sombrio, ganha impulso entre cientistas e
políticos a idéia de que ações pontuais, por mais bemintencionadas, podem não ser suficientes para estancar o
aquecimento gradual da Terra. Por sua magnitude, problemas
globais exigem soluções também globais. Ou seja, intervir nos
processos que causam o aquecimento do planeta é uma tarefa
demasiadamente complexa para ser resolvida com o esforço
individual” – Veja, 30/12/2006
O discurso pró-causa ambiental de Veja embora, num
primeiro olhar, transpareça se transformar ao longo das edições – do
caos total, da falta de perspectivas para a esperança de que ainda é
possível reverter os possíveis efeitos do aquecimento global –, na
verdade, ao longo dos últimos anos manteve-se o mesmo. Isto é,
como evidenciam os gestos de leitura: “Sinais do apocalipse!”
(21/06/2006): “A terra no limite! Já estamos arrancando do planeta
mais do que ele pode dar” (edição 12/10/2005). Por isso,
apresentamos “7 megassoluções para o megaproblema ambiental”
(30/12/2006). Soluções que não passam por “ações pontuais, por
mais bem-intencionadas” (30/12/2006), mas “a disseminação do
432
engajamento verde serve para pressionar os governos a tomar as
medidas realmente eficazes para salvar a Terra” (11/04/2007). E é
esse o papel de Veja, publicação de “espírito de vanguarda
informativo” também nas questões ambientais.
Referências
GREGOLIN, Maria do Rosário. O papel da imagem e da memória na escrita
jornalística da história do tempo presente. In: ______. Discurso e Mídia – a
cultura do espetáculo. São Carlos: Claraluz, 2003. 95-110p.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise de Discurso – Princípios e Procedimentos.
5.ed. Campinas: Pontes, 2003
PECHEUX, Michel. Análise Automática do Discurso (AAD-69). In: GADET,
Françoise; HAK, Tony (Orgs.). Por uma Análise Automática do Discurso –
Uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 3.ed. Campinas: Editora da
Unicamp, 2001. p.61-162
433
Ciências humanas: pesquisa em comunicação e linguagem
1
Francismar FORMENTÃO
Neste estudo busca-se promover algumas reflexões sobre a
produção de conhecimento em ciências humanas além de discutir a
possibilidade de pesquisa na comunicação e alguma s proposições da
2
filosofia da linguagem de Mikhail Bakhtin. Em momento algum esta
pesquisa busca absolutizar algum conhecimento ou proposta, em um
eterno devir e inacabamento, pede ao leitor, que promova um
dialogismo do texto apresentado. Pois,
No mundo dos acontecimentos da vida, campo
próprio do ato ético, estamos sempre
inacabados, porque definimos o presente como
conseqüência de um passado que construiu o
pré-dado e pela memória de um futuro com
que se definem as escolhas no horizonte das
possibilidades. Nosso acabamento atende a
uma necessidade estética de totalidade, e esta
somente nos é dada pelo outro, como criação e
não como solução. A vida, concebida como
acontecimento ético aberto, não comporta
acabamento e, portanto, solução. (GERALDI,
2003, p. 47).
1. O autor é jornalista, Especialista em Comunicação, Educação e Artes, Mestre em Letras – Linguagem e
Sociedade (Unioeste); docente do curso de jornalismo da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro)
Guarapuava – PR. E-mail: [email protected]
435
As ciências humanas, em suas diversas esferas de produção,
destacam-se contradições como a transformação da ciência em
produto de consumo, sua produção em massa, sua fragmentação e a
ausência de rigor ético, epistemológico e metodológico. Num tempo
de diversidades, as ciências apontam para as instabilidades e
indeterminações, principalmente ligadas a impossibilidades e
limitações.
Aqueles que se beneficiam com a exclusão, os
únicos rumores que ouvem são os humores do
mercado. E no mercado atuam seus pares. A
estes não interessa pensar o inimaginável e
arriscar-se a extrair dos acontecimentos os
conteúdos para o futuro. Interessa-lhes
transmitir o conhecido para que o já
acontecido permaneça como o único
acontecimento possível para o futuro.
(GERALDI, 2003, p. 49).
Uma reflexão sobre a condução de pesquisas em ciências
humanas encontra-se no entendimento da linguagem como
movimento que constituiu a existência humana, uma compreensão
semiótica sobre todo objeto de pesquisa, um movimento de sentido
existente na linguagem, que é o princípio, meio e fim de toda
consciência e existência social.
A filosofia da linguagem existente em Mikhail Bakhtin, está
na encruzilhada de múltiplas formas de interpretação teórica e
metodológica; questões relacionadas a autoria e a traduções de
436
seus textos; as suas raízes epistemológicas – entre outros aspectos –
reiteradamente salientadas por inúmeros autores (Cristóvão Tezza,
Katerina Clark, Michael Holquist, Irene Machado, Diana Luz Pessoa
de Barros, Robert Stam, Beth Brait, Edward Lopes, por exemplo).
Todos autores que dialogizam o estudo bakhtinano, mesmo a
existência de perspectivas diversas, em nada desabona a reflexão
sobre a filosofia da linguagem, e sim, na diversidade se cria um
campo rico e pertinente de estudos e produção do conhecimento.
A pertinência e a atualidade teórica e metodológica de
Mikhail Bakhtin são demonstradas pelo acúmulo de pesquisas
realizadas no Brasil nos últimos anos, assumindo esses aspectos
salientados, uma condição de enfrentamento necessário ao
pesquisador e não um óbice. De fato, a
[...] obra de Bakhtin e de seu Círculo deu
origem a uma das correntes de pensamento
mais influentes do século XX. Entre os aspectos
responsáveis pela sua repercussão, está a
formulação de uma complexa malha
conceitual, construída nos interstícios de
diversos domínios das Ciências Humanas (a
Filologia, a Filosofia da Linguagem, a
Lingüística, a Sociologia, a Estética, a História,
a Antropologia) e, por isso mesmo, capaz de
produzir questões, de orientar abordagens e
de apontar caminhos de pesquisa que não se
esgotam em uma única disciplina acadêmica.
Essa natureza interdisciplinar pode explicar o
fato de que a obra do Círculo tenha sido
437
incorporada e articulada a diversos outros
teóricos, das formas as mais variadas.
(GRILLO. In: BRAIT, 2006, p. 133).
Ressaltada essa multiplicidade, a produção temática, a
riqueza de conteúdo e método, permitem uma concentração
temática fundada em Bakhtin, acompanhada de relevante
fecundidade em diferentes áreas do conhecimento científico. A
lógica dialética, ou um dialogismo da própria dialética, existente
nos textos de Bakhtin e o encadeamento interativo de seus
conceitos-chave são relevantes por sua coerência e alcance
conceitual nos estudos em ciências humanas, linguagem e
comunicação. Os conceitos/categorias deste autor enfeixam
dialogicamente as diretrizes nucleares existentes nas várias áreas
científicas, possibilitando a detectação, o registro e o estudo de sua
diversidade, de seus fundamentos, de suas interconexões na
interdisciplinaridade.
A concepção dialógica da criação verbal engloba a relação
vida/cultura, o real concreto, a formação da consciência dos
indivíduos e a materialidade sígnica de todas as produções
humanas, dotadas de valor; descentraliza o sujeito e o reconduz à
situação de agente ativo em interação constante e fluída, um
sujeito responsivo e responsável. Nessa concepção, a mediação é
integrante teórico-prático no plano volitivo-emocional e éticocognitivo, unindo o mundo sensível e o mundo inteligível em
conteúdo-forma-processo.
438
A originalidade da filosofia da linguagem não desconsidera a
tecnologia contemporânea. Discurso, enunciado, enunciado
concreto e alteridade, são elementos nucleares dessa concepção
explicitados em sua materialidade histórica, social e cultural da
interação comunicativa. As relações entre linguagem-sociedadeideologia são examinadas por Bakhtin considerando-se o discurso
em sua forma e conteúdo como objeto de significação na cultura
social e histórica, que inclui a enunciação (contexto) em suas
particularidades (enunciações anteriores e posteriores que são o
fluxo de circulação de discursos) e conecta sujeitos interlocutores
que se integram em um processo verbal e extraverbal.
O discurso (produção verbal e não verbal) é mediação para a
apreensão do mundo e para a apreensão de si mesmo e do outro no
mundo; nos discursos, texto e contexto se envolvem
dialogicamente. O discurso:
[...] encontra aquele objeto para o qual está
voltado sempre, por assim dizer, já
desacreditado, contestado, avaliado,
envolvido por sua névoa escura ou, pelo
contrário, iluminado pelos discursos de outrem
que já falaram sobre ele. O objeto está
amarrado e penetrado por idéias gerais, por
pontos de vista, por apreciações de outros e
por entonações. Orientando para o seu objeto,
o discurso penetra neste meio dialogicamente
perturbado e tenso de discursos de outrem, de
julgamentos e de entonações. Ele se entrelaça
439
com eles em interações complexas, fundindose com uns, isolando-se de outros, cruzando
com terceiros; e tudo isso pode formar
substancialmente o discurso, penetrar em
todos os seus estratos semânticos, tornar
complexa a sua expressão, influenciar todo o
seu aspecto estilístico (BAKHTIN, 1998, p. 86).
Determina-se, nesse processo, o horizonte social do
enunciador e do enunciatário, o horizonte espacial, o conhecimento
e a compreensão-avaliação que ambos têm de uma situação.
Bakhtin apresenta a compreensão da importância sígnica,
entendendo que o signo está presente em enunciados e enunciados
constituem-se signos e são resultados de uma relação com campo
social e esfera ideológica definidos.
Assim, a totalidade se determina historicamente nas
mediações e pelas mediações “pelas quais suas partes específicas
ou complexas – isto é, as 'totalidades parciais' – estão relacionadas
entre si, numa série de inter-relações e determinações recíprocas
que variam constantemente e se modificam” (BOTTOMORE, 1988,
p. 381). Ou seja, as esferas/campos que se dialogizam,
estabelecendo conteúdo e forma sígnica na produção de sentido.
O conceito de esfera da comunicação
discursiva (ou da criatividade ideológica, ou da
atividade humana, ou da comunicação social,
ou da utilização da língua, ou simplesmente da
440
ideologia) está presente ao longo de toda a
obra de Bakhtin e de seu Círculo, iluminando,
por um lado, a teorização dos aspectos sociais
nas obras literárias e, por outro, a natureza ao
mesmo tempo onipresente e diversa da
linguagem verbal humana. (GRILLO. In: BRAIT,
2006, p.133-134).
Os signos materializados nas esferas/campos sóciohistóricos refratam as relações comunicativas existentes na
linguagem e, através da linguagem, refletindo e refratando a
própria materialidade ideológica sígnica.
No domínio dos signos, isto é, na esfera
ideológica, existem diferenças profundas, pois
este domínio é, ao mesmo tempo, o da
representação, do símbolo religioso, da
fórmula científica e da forma jurídica etc.
Cada campo da criatividade ideológica tem seu
próprio modo de orientação para a realidade e
refrata a realidade à sua maneira. Cada campo
dispõe de sua própria função no conjunto da
vida social. (BAKHTIN, 1995, p.33).
Eixo central do pensamento baktiniano, o dialogismo
(relações discursivas entre homem-mundo, homem-natureza e
sujeito-objeto do conhecimento) ocorre entre discursos que
interagem na comunicação e, nessa interação, produzem o processo
441
de significação. “O discurso escrito é de certa maneira parte
integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele
responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e
objeções potenciais, procura apoio etc”. (BAKHTIN, 1995, p.123).
Através da linguagem, os discursos são produzidos em condições
específicas (enunciação), estabelecendo formas num intercurso
social (enunciados) que, além de instaurar relações entre o eu e os
outros, veicula o universo ideológico.
No dialogismo percebe-se que todo enunciado refuta,
confirma, complementa e depende dos outros, levando em
consideração o outro. O lugar onde brota o discurso ou a enunciação
está determinado por uma situação social imediata
independentemente da existência real do interlocutor. O meio
social concreto propicia a emissão de discursos, tendo em vista um
horizonte social do outro, da classe social do contexto histórico de
tal sorte que os discursos irão se aproximar “do auditório médio da
criação ideológica” sem “ultrapassar as fronteiras de uma classe e
uma época bem definidas”. (BAKHTIN, 1995, p.113). Para o autor, “a
situação social mais imediata e o meio social mais amplo
determinam completamente e, por assim dizer, a partir do seu
próprio interior, a estrutura da enunciação”. (BAKHTIN, 1995,
p.113). Compreende-se as enunciações quando “reagimos àquelas
(palavras) que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou
concernentes à vida”. (BAKHTIN, 1995, p.95).
Assim, a filosofia da linguagem de Bakhtin aparece no
442
dialogismo, que, nas palavras de Diana Luz Pessoa de Barros, é o
principio constitutivo da linguagem e a condição do sentido do
discurso. (BARROS. In: FARACO et alii, 2001, p.33). O dialogismo nos
textos de Bakhtin e seu Círculo trata do “princípio geral do agir” dos
seres humanos, pois toda interação comunicativa tem como ponto
de referência o “contraste com relação a outros atos de outros
sujeitos” (SOBRAL. In: BRAIT, 2005, p.106).
O pesquisador ao participar do evento
observado constitui-se parte dele, mas ao
mesmo tempo mantém uma posição exotópica
que lhe possibilita o encontro com o outro. E é
esse encontro que ele procurar descrever no
seu texto, no qual revela outros textos e
contextos. Dessa forma, vejo a situação de
campo como uma esfera social de circulação
de discursos e os textos que dela emergem
como um lugar específico de produção do
conhecimento que se estrutura em torno do
eixo da alteridade. (FREITAS, 2003, p 32).
O dialogismo celebra a alteridade, a necessidade do outro,
tornando-se, deste modo, a categoria primordial através da qual
Bakhtin pensará as relações culturais. Todos os fenômenos
analisados à luz do dialogismo são considerados em sua
multidirecionalidade, a orientação de um eu para o outro
(MACHADO, 1995, p. 310).
443
Enquanto pesquisador, minha tarefa é tentar
captar algo de modo como ele se vê, para
depois assumir plenamente meu lugar exterior
e dali configurar o que vejo do que ele vê.
Exotopia significa desdobramento de olhares a
partir de um lugar exterior. Esse lugar exterior
permite, segundo Bakhtin, que se veja do
sujeito algo que ele próprio nunca pode ver.
(AMORIM,2003, p14)
O movimento de produção de conhecimento em ciências
humanas pode ser compreendido como ato/atividade/evento em
que o objeto de estudo e o pesquisador se integram à teoria do
conhecimento e à “ação concreta (ou seja, inserida no mundo
vivido) intencional [...] praticada por alguém situado, não
transcendente” (SOBRAL. In: BRAIT, 2005, p.20); coloca o sujeito
que age no mundo em atos sucessivos de modo participativo e
responsável, respondendo a situações reais, nelas se incluindo.
Dessa forma, “o ato responsável envolve o conteúdo do ato, seu
processo, e, unindo-os, a valoração/avaliação do agente com
respeito ao seu próprio ato, vinculada com o pensamento
participativo” (SOBRAL, In: BRAIT, 2005, p.21).
(...) hoje, o desafio do pensamento para
poder tornar-se ato é renunciar a ser correto.
(...) fora das normas vigentes, mas
ressignificando seus termos, de modo a
444
assumir seu lugar no mundo atual. Fazer
pesquisa lidando com a questão da diversidade
convoca um pensamento ético, mas não há
ética sem arena e confronto de valores.
(AMORIM, 2003, p 25)
O sujeito, no evento de ser, processo de devir existencial,
constitui-se como tal na cultura em tempo e espaço dinâmicos que
entrelaçam passado, presente compartilhados pelos demais
sujeitos sociais e principalmente, num espaço ou arena de
confronto de valores. Define-se, desse modo, o produtor do
discurso, todo e qualquer sujeito, as criações artísticas, culturais e
científicas, o tempo homogêneo/heterogêneo nas esferas da
comunicação.
Os parâmetros epistemológicos da semiótica de Bakhtin
formam uma arquitetura que dimensiona as relações homemmundo, sujeito-objeto do conhecimento e conectados à ação
humana. A arquitetônica do conhecimento semiótico incorpora
dialogicamente o processo histórico e as condições de elaboração
de epistemes no processo de transformação contínua, na dinâmica
das forças vivas sociais que se determinam ética e esteticamente.
Esta filosofia da linguagem permite ainda estudos, epistemológicos,
ontológicos e cognitivos, em um movimento dialógico de
conhecimentos nas ciências humanas.
Bakhtin une dialógicamente sua fundamentação do signo
ideológico e da alteridade das relações sociais com essa
445
arquitetônica vinculada a diversas categorias conceituais, como
dialogismo, cronotopo, exotopia, polifonia, palavra, esfera,
campo, enunciação, entre outras.
As ciências humanas, sua produção e condição não deixam
de serem verificadas em uma sociedade que produz-se e faz existir,
organizada no caos e em relações na pluralidade dos diversos níveis
dos movimentos sociais, sejam de códigos lingüísticos como de
domínios dos instrumentos cognitivos, tudo já fetichizado, reificado
2
e alienado, este cuidado do pesquisador é essencial a produção de
qualquer estudo.
Os signos produzidos em pesquisas nas ciências humanas
podem ser discutidos em sua unidade conteúdo-forma,
acrescentando-se a “natureza do material” e os “procedimentos
por ele condicionados” (BAKHTIN, 2003, p.177-178). A forma é
dependente do conteúdo e do material. Nos signos ideológicos, o
objetivo é o conteúdo. Este conteúdo ético-cognitivo será
enformado e apresentado, subordinando o material ao próprio
objetivo. Concluir ao apresentar um resultado destes estudos em
2. O sentido de alienação aqui empregado foi de “ação pela qual (ou estado no qual) um indivíduo, um grupo, uma
instituição ou uma sociedade se tornam (ou permanecem) alheios, estranhos, enfim, alienados aos resultados ou
produtos de sua própria atividade (e à atividade ela mesma), à natureza na qual vivem e/ou a outros seres
humanos, e – além de, e através de, também a si mesmos (às suas possibilidades humanas constituídas
historicamente). Assim concebida, a alienação é sempre alienação de si próprio ou auto-alienação, isto é,
alienação do homem (ou de seu ser próprio) em relação a si mesmo (às suas possibilidades humanas), através
dele próprio (pela sua própria atividade)” (BOTTOMORE, 1988, p. 5); já fetichização constitui forma e conteúdo
com que se conferem propriedades aos objetos materiais, características e sentidos atribuídos que são
constituídos socialmente, mas determinados como sendo naturais (BOTTOMORE, 1988, p. 149); e reificação “é o
ato (ou resultado do ato) de transformação das propriedades, relações e ações humanas em propriedades,
relações e ações de coisas produzidas pelo homem, que se tornaram independentes (e que são imaginadas como
originalmente independentes) do homem e governaram sua vida. Significa igualmente a transformação dos seres
humanos em seres semelhantes a coisas, que não se comportam de forma humana, mas de acordo com as leis do
mundo das coisas. A reificação é um caso “especial” de “alienação”, sua forma mais radical e generalizada,
característica da moderna sociedade capitalista (BOTTOMORE, 1988, p. 314). Uma crítica a estes conceitos pode
ainda ser observada em: MAAR, Wolfgang Leo. Formação social em Lukács: dialética de reificação e realização – A
perspectiva marxista como consciência de classe e crítica ontológica. In: BOITO JR, Armando et al. A obra teórica
de Marx: atualidade, problemas e interpretações. São Paulo: Xamã, 2000; e EAGLETON, Terry. O sublime no
Marxismo. In: EAGLETON, Terry. A ideologia da estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993. Ver ainda MARX,
Karl, 1818-1883. Mercadoria e dinheiro. In: O capital: critica da economia política: livro primeiro o processo de
produção do capital. São Paulo: Editora Bertrand Brasil, 1987, p. 79-93).
446
ciências humanas, implica a subordinação do material a alcançar o
objetivo ético-cognitivo ou “tensão ético-cognitiva”. Há assim,
necessidade de superar o material na tarefa comunicativa.
Para compreender como o signo é resultado de um consenso
da interação social, “razão pela qual as formas do signo são
condicionadas tanto pela organização social de tais indivíduos como
pelas condições em que a interação acontece”(BAKHTIN, 1995,
p.44), é necessário estudar a ideologia como fator que influencia as
relações entre os signos e indivíduos. “[...] é apenas sob esta
condição que o processo de determinação causal do signo pelo ser
aparece como uma verdadeira passagem do ser ao signo, como um
processo de refração realmente dialético do ser no signo”
(BAKHTIN, 1995, p.44).
Bakhtin apresenta como questão indispensável para
compreensão da ideologia no signo:
1. Não separar a ideologia da realidade
material do signo (colocando-a no campo da
“consciência” ou em qualquer outra esfera
fugidia e indefinível).
2. Não dissociar o signo das formas concretas
da comunicação social (entendendo-se que o
signo faz parte de um sistema de comunicação
social organizada e que não tem existência
fora deste sistema, a não ser como objeto
físico).
3. Não dissociar a comunicação e suas formas
de sua base material [...]. (BAKHTIN, 1995,
p.44).
447
Assim, é importante a compreensão de uma comunicação
prevalente, meio de circulação de pesquisas e pesquisadores, seja
social (mais ampla e mediada) ou face a face, com a valorização da
linguagem e da comunicação em seus conteúdos e formas.
O pesquisador busca superar a linguagem (métodos
científicos, objeto estudado) afim de um sentido, ou a superação do
próprio objeto para a conclusão de um discurso, evidencia a
obediência de uma lógica criativa, “uma lógica imanente da
criação”, com os valores da produção de sentido, o contexto do “ato
criador”.
[...] antes de tudo precisamos compreender a
estrutura dos valores e do sentido em que a
criação transcorre e toma consciência de si
mesma por via axiológica, compreender o
contexto em que se assimila o ato criador. A
consciência criadora [...] nunca coincide com
a consciência lingüística, a consciência
lingüística é apenas um elemento, um material
[...]. (BAKHTIN, 2003, p.179).
O conteúdo apresenta os elementos do mundo, da vida,
forjado em parâmetros éticos e cognitivos. Interligado à forma,
conteúdo e forma são mutuamente condicionados, produzindo
sentido na própria criação. Aquele que cria é o artista e a arte (no
caso deste estudo, o pesquisador que apresenta um discurso, uma
visão, uma realidade materializada em seu estudo). A atividade
448
estética (apresentada no estudo) agrega sentidos de forma a buscar
acabamento em uma interação, e auto-suficiente. Trata-se de um
ato que passa a existir em um novo campo axiológico (científico),
num devir da interação comunicativa.
Assim, também o material condiciona-se com forma e
conteúdo, em que o signo é o meio de expressão; numa “lógica
imanente da criação”, o material deve ser superado, aperfeiçoado
num contexto de criação em que forma e conteúdo revelam o signo
em sua superação. De um contexto empírico, para a interpretação
científica, revelando conteúdos que provocam a “tensão” entre o
criador e este contexto de criação.
Nas Ciências Humanas conjugam-se as
dimensões ética e estética para dar origem a
uma outra dimensão que é a epistemológica.
Desse modo, a produção de conhecimentos e o
texto em que se dá esse conhecimento são uma
arena onde se confrontam múltiplos discursos.
(AMORIM, 2003, p. 12).
Diálogos, muitas vezes ignorados podem produzir
conhecimentos férteis para as pesquisas em ciências humanas, os
físicos Alan Sokal e Jean Bricmont em seu livro Imposturas
intelectuais (Nome original em inglês: Fashionable Nonsense),
promovem críticas a personalidades intelectuais como Jacques
Lacan, Julia Kristeva, Jean Baudrillard, Gilles Deleuze, Félix
449
Guattari entre outros, diálogos que em se tratando de ciências,
principalmente ciências humanas, não devem ser censurados,
podemos não concordar com posicionamentos epistemológico e
metodológicos deste ou aquele pesquisador, mas a propósito da
ciência, o único caminho possível não é ignorar a adversidade de
métodos, e sim o dialogismo destes discurso. Como exemplo disso,
eis um posicionamento da dupla de críticos das ciências:
[...] Embora a epistemologia básica da
investigação deva ser aproximadamente a
mesma para as ciências naturais e para as
ciências sociais estou perfeitamente ciente, é
lógico, que muitas questões metodológicas
especiais (e muito difíceis) surgem nas
ciências sociais a partir do fato que os objetos
de pesquisa são seres humanos (incluindo o seu
estado de espírito subjetivo); que esses
objetos de investigação têm objetivos
(incluindo em certo casos a dissimulação das
evidências ou a colocação de evidência
deliberadamente a seu serviço); que a
evidência Oe expressa (habitualmente) em
linguagem humana, cujo significado pode ser
ambíguo; que o sentido das categorias
conceituais (por exemplo, infância,
masculinidade, feminilidade, família,
economia etc.) muda no decorrer do tempo;
que o objetivo da pesquisa histórica não são
simplesmente fatos, mas sua interpretação
etc. De modo algum pretendo que meus
450
comentários sobre física sejam aplicados
diretamente sobre a história ou às ciências
sociais – isto seria um absurdo. Dizer que “a
realidade física é uma construção social e
lingüística” é uma tolice rematada, porém
dizer que “a realidade social é uma construção
social e lingüística” é virtualmente uma
tautologia. (SOKAL, 2006, p.287).
A relação de diversidade de discursos, o conflito entre o ser
analisado, o discurso do pesquisador e o próprio conhecimento faz
surgir uma grande diversidade de sentidos,
[...] Assumir esse caráter conflitual e
problemático da pesquisa em Ciências
Humanas implica renunciar a toda ilusão de
transparência: tanto do discurso do outro
quanto do seu próprio discurso. É portanto
trabalhando na opacidade dos discursos dos
textos, que a pesquisa contemporânea pode
fazer da diversidade um elemento constituinte
do pensamento e não apenas um aspecto
secundário. (AMORIM, 2003, p.12).
Infelizmente, naquilo que deveria ser a busca de conflitos e
tensões de conhecimentos, alguns pesquisadores procuram
pensadores que com eles concordam e assim dizem produzir
conhecimentos, quando de fato deveriam também buscar
pensadores com quem não concordam, promovendo diálogos, e
assim, efetivamente produzir conhecimento na diferença e no
451
embate de ideias.
Partindo de uma crítica sobre aquilo que Sokal e Bricmont
dizem ser cinco temas bem distintos, e apresenta de forma a
3
questionar a pesquisa de Harding (1991), apresentam questões que
podem promover reflexões nos campos do pensamento científicofilosófico:
1)
Ontologia. Que objetos existem no
mundo? Que afirmações sobre estes objetos
são verdadeiras?
2)
Epistemologia. Como os seres humanos
podem obter conhecimento das verdades
sobre o mundo? Como eles podem avaliar o
grau de confiabilidade deste conhecimento?
3)
Sociologia do conhecimento. Até que
ponto as verdades conhecidas (ou conhecíveis)
pelos seres humanos em determinada
sociedade são influenciadas (ou
determinadas) pelos fatores sociais,
econômicos, políticos, culturais e ideológicos?
A mesma questão vale para as afirmações
falsas que se julgou erroneamente serem
verdadeiras.
4)
Ética individual. Que tipos de pesquisa
deve um cientista (ou técnico) assumir (ou se
recusar a assumir)?
5)
Ética social. Que tipos de pesquisa deve a
sociedade estimular, subsidiar ou financiar
como fundos públicos (ou, por outro lado,
desencorajar, taxar ou proibir)? (SOKAL, 2006,
p.288-289).
3. Leituras de Sokal e Bricmont (2006) em: Harding, Sandra. 1996. “Science is “good to think with”. Social Text 46/47
(primavera/verão):15-26.
452
A leitura destes tópicos para o estudo da física parece
evidente em tais estudiosos, então por que não fecundar diálogos
que parecem tão distintos e inseparáveis como o mundo da ciências
humanas e das ciências exatas; vivemos no mesmo mundo, somos
todos sujeitos humanos numa mesma sociedade, este diálogo,
resulta em semelhanças como as destes cinco tópicos apresentados
com o próprio método da filosofia.
A produção de estudos em ciências humanas, em sua
gênese, carrega a objetivação de um conteúdo produzido segundo
esferas e campos específicos constituídos em determinado
tempo/espaço na interação comunicativa. Pela mediação desses
signos ideológicos, os valores axiológicos, presentes no conteúdo
em dialogismo com métodos, conhecimentos, e leitores de tais
estudos, produzem sentido como síntese reflexiva de um
pensamento e posicionamento perante a um objeto na busca de um
acabamento, mesmo que precário, para a interpretação e
entendimento. Assim, (...) é nesse jogo dialógico que o pesquisador
constrói uma compreensão da realidade investigada
transformando-a e sendo por ela transformado. (FREITAS, p. 37,
2003). Um espaço de tensão, que
Em síntese, o que este conceito quer dizer é
que a obra de arte é lugar de tensão porque
entre o eu e o outro, entre o retrato que faço
de alguém e o retrato que ele faz de si mesmo,
há sempre uma diferença fundamental de
453
lugares e, portanto, de valores. (AMORIM,
2003, p.14)
É importante afirmar para as pesquisas em ciências
humanas, a necessidade da valorização do sujeito humano em sua
relação de alteridades e o emprego de métodos com rigor ético.
Este estudo, ainda em caráter experimental, busca acabamentos e
refrações de sentido, e mesmo ancorado em estudiosos e
pesquisadores renomados, trata-se de um diálogo inicial e, sempre,
inacabado.
Nossa liberdade maior, aquela que a arte nos
ensina, é precisamente a capacidade de nos
darmos uma lei (...) Esta liberdade de darmonos uma lei remete à noção de
responsabilidade tal como definida por
Bakhtin e certamente não tendo compromissos
ontológicos outros que não como o próprio
princípio supremo do ato ético – a relação
concreta entre o eu e o outro, inscreve a lei a
nos darmos na complementaridade que o
excedente de visão do outro permite, porque
diferente seu posto de observação; calculados
nossos horizontes de possibilidades,
defendendo, ainda que conflituosamente
enquanto vivemos entre desiguais, a
sociedade que nossa memória do futuro
projetou, dando-nos acabamentos provisórios
para com eles construirmos nossos roteiros de
viagens: eles dirão de nós o que fomos.
(GERALDI, 2003, p.55).
454
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458
Globalização e regionalização da mídia brasileira
1
Anamaria FADUL
Panorama mundial
Os fenômenos relacionados com a comunicação
internacional começaram a adquirir uma maior importância com o
2
surgimento das redes de comunicação no século XIX. A primeira
delas surgiu com o telégrafo, que permitia ligar as diferentes regiões
do planeta através dessa nova tecnologia. A partir daí, foram
surgindo as tecnologias de comunicação como o telefone, o rádio e a
televisão, que também permitiam o estabelecimento de conexões
de internacionais.
Foi com a ampliação da televisão por assinatura e da
internet, a partir da década de 90 do século passado, e com as
mudanças surgidas na economia, que cada vez mais apontava para a
existência de mercados globais, que se começou a perceber que
nenhum fenômeno podia mais ser considerado local ou nacional sem
ter ao mesmo tempo uma dimensão internacional.
Ao buscar uma interpretação para essas mudanças
Sreberny-Mohammadi (1996, p.177) vai afirmar: "a retórica
contemporânea sugere que nós vivemos em um mundo unitário no
1. Professora do Programa de Pós-Graduação da Universidade Metodista de São Paulo
459
qual espaço e tempo entraram em colapso e a experiência de
distância implodiu para sempre. Os blocos antagonistas do Leste e
Oeste estão dando lugar para mercados, moedas e mídias
internacionais"
Os antigos conceitos e teorias não poderiam mais dar conta
da complexidade da situação.
A rapidez e complexidade da mudança no
panorama da mídia durante esta década
parece requerer um conjunto de termos mais
novos do que aqueles oferecidos pelas antigas
perspectivas, que freqüentemente parecem
congeladas em uma era passada (SREBERNYMOHAMMADI, 1996, p.178).
Dessa forma, o processo de globalização da cultura está
intimamente relacionado com a globalização da mídia, por um lado,
e com a globalização da economia, de outro lado. O surgimento de
um mercado de mídia global é o princípio desse processo. Como vão
dizer Herman e McChesney: "desde o princípio dos anos 80 tem
havido uma dramática reestruturação das indústrias de mídia
nacionais, com a emergência de um mercado de mídia comercial
global" (1997, p.1).
Panorama brasileiro - Internacionalização da Mídia
A intensificação do processo de internacionalização da
mídia brasileira está relacionada, por um lado, com as grandes
460
mudanças na economia e política nos anos 90 que levaram a uma
abertura do mercado brasileiro à economia internacional e, por
outro lado, com o surgimento da TV por assinatura e o processo de
desregulamentação da informática e das telecomunicações.
As diferentes experiências de internacionalização da mídia
brasileira podem ser consideradas de duas perspectivas: de fora
para dentro e de dentro para fora e a partir de várias abordagens: a)
a importação de produtos estrangeiros e a produção e exportação
de produtos brasileiros; b) co-produção de produtos estrangeiros
com empresas brasileiras e co-produções de produtos brasileiros
com empresas estrangeiras; c) as parcerias, associações, compras e
vendas de empresas estrangeiras de comunicação no Brasil e as
parcerias, associações, compras e vendas de empresas de
comunicação brasileiras no exterior.
Com a chegada da TV a cabo nos anos 90 do século passado,
assistiu-se a uma nova etapa da internacionalização da mídia
brasileira, uma vez que se conseguiu driblar a legislação brasileira
que impedia a participação de capital internacional nas empresas
brasileiras de jornais, revistas, rádio e televisão. Mas, a
participação do capital estrangeiro nas empresas jornalísticas e de
rádio e televisão finalmente foi aprovada através da emenda
constitucional ao Artigo 222, da Constituição Brasileira.
O processo de internacionalização de fora para dentro esta
presente em toda a história da mídia brasileira, pois ela sempre foi
muito dependente da mídia estrangeira no país, devido ao processo
461
de colonização do país. Entretanto adquiriu características
diferentes em cada época, e de acordo com cada mídia, uma vez
que esse fenômeno não é novo, e vem desde a implantação da
imprensa no país.
Devido ao caráter fechado da economia e da mídia
brasileira vai ser somente nos anos 90 que se percebeu com mais
clareza os movimentos dos grupos de mídia em sua busca de
parcerias internacionais e em seu crescimento para fora do país.
Algumas experiências pioneiras, entretanto, existiram
anteriormente. As primeiras aconteceram no início dos anos 50
quando o grupo Diários e Emissoras Associados decidiu criar uma
edição internacional de sua mais importante revista, O Cruzeiro.
Tratava-se de uma edição latino-americana que teve uma duração
de oito anos, tendo terminado por problemas internos do grupo
Mais tarde, na década de 60 surgiu outra tentativa, mas
agora na área da ficção televisiva, com a distribuição e venda de
telenovelas na América Latina pela Rede Tupi. É, entretanto, a
partir dos anos 70 que se ampliou essa internacionalização com a
entrada de outras emissoras nesse processo, entre as quais se
sobressaiu a Rede Globo. Hoje a telenovela brasileira é o produto
cultural, ao lado da música popular brasileira, mais conhecido
internacionalmente.
Posteriormente, outras emissoras que surgiram na década
de 80, SBT e Manchete, também buscaram seguir essa estratégia de
internacionalização, seguindo o caminho aberto pelas primeiras
462
emissoras produtoras de telenovelas.
A tentativa mais ousada de internacionalização, mas que
não teve o sucesso esperado, se deu com a compra pela rede Globo
de um canal de televisão aberta, a TV Montecarlo, que transmitia
para a Itália. Os grandes prejuízos enfrentados desde seu início
levaram finalmente à sua venda no início da década de 90.
Outras tentativas de internacionalização foram também
observadas na América Latina, especialmente com emissoras da
Argentina, e que resultaram em muitas co-produções na área da
ficção televisiva.
Dessa forma, o desenvolvimento das empresas de mídia
brasileiras obedece às mesmas estratégias daquelas internacionais,
que procuram criar sinergias entre as várias mídias e as várias
tecnologias, tanto no nível nacional como no internacional.
Globalização da Mídia
As mudanças surgidas com a ampliação do acesso à internet,
que segundo dados recentes conta com 65 milhões de usuários no
país, trouxeram novas perspectivas para a mídia, uma vez que todas
as mídias tradicionais passaram a ter a sua intermediação. Se o
antigo processo de internacionalização encontrava uma série de
barreiras, com essa nova mídia o processo de globalização da mídia
brasileira vai sofrer uma profunda mudança. Os jornais, as
emissoras de rádio e televisão podem ser acessados de qualquer
lugar do mundo, o que tem representado uma ampliação não
463
somente da recepção dessas diferentes mídias, como também da
participação de leitores, ouvintes e rádio e de telespectadores.
Regionalização da Mídia
Ao mesmo tempo em que se assiste a esse processo de
internacionalização e globalização, também se observa uma série
de mudanças ocorridas na mídia regional brasileira nas duas últimas
décadas. Elas estão relacionadas com o processo de
desconcentração industrial de São Paulo, o desenvolvimento
agrícola das regiões Centro-oeste e Norte e com o desenvolvimento
do setor de serviços, especialmente aquele voltado para o turismo,
que tem beneficiado especialmente as regiões do Nordeste e
também do Centro-oeste e Norte.
Essa situação despertou inicialmente o interesse das
agências de publicidade, dos anunciantes e dos veículos de
comunicação que, apesar das dificuldades econômicas enfrentadas,
estão descobrindo oportunidades de negócio em outras regiões do
país.
Entretanto, o que se afirma geralmente ainda hoje sobre a
mídia brasileira é quase sempre a partir da perspectiva do eixo
Rio–São Paulo, ignorando as mudanças que vem ocorrendo nas
regiões e que apresentam resultados significativos. Não se pode
ignorar que a mídia pode ter uma importante contribuição para o
desenvolvimento não somente econômico, como também político,
social e cultural.
464
A mídia regional, apesar desse desenvolvimento nos últimos
anos, enfrenta ainda vários problemas, como aqueles relacionados
com a questão econômica, tecnológica, recursos humanos, etc. Se o
diálogo da mídia regional com a mídia nacional é importante e deve
ser estimulado, não se pode deixar de reconhecer que em muitos
casos a força do poder modelizador da mídia nacional tem
contribuído para apagar características específicas da mídia
regional. Mas existem ainda muitos exemplos em que se pode
perceber a influência da cultura regional. Dessa forma, conhecer a
mídia regional pode ser uma forma de se aproximar das regiões e
suas identidades.
O estudo da mídia regional pode se beneficiar de uma
perspectiva comparada das cinco macro-regiões brasileiras: a
Região Norte, Nordeste, Centro-oeste, Sudeste e Sul. Os elementos
mais importantes a serem comparados são aqueles relacionados
com os indicadores geográficos, demográficos, econômicos e
educacionais, uma vez que eles representam um ponto de partida
para a compreensão dos diferentes sistemas de mídia regional.
Ao se examinar as grandes regiões brasileiras em uma
perspectiva comparada o aspecto que mais chama atenção é a
profunda assimetria existente entre elas, no que se refere à
população e domicílios, à relação da população urbana com a
população rural, assim como o número de municípios no país, e por
fim, o PIB de cada região, o PIB per capita, os indicadores de
analfabetismo e o IDH, que são os elementos mais importantes para
465
se compreender um sistema de mídia.
A mídia impressa, assim como vários setores da economia
brasileira, vem passando por dificuldades desde o ano de 1999,
quando ocorreu a desvalorização cambial no país. Mais
recentemente os jornais e revistas, estão sofrendo com a
diminuição dos investimentos publicitários que é um importante
termômetro da economia. Esta situação reflete-se nas tiragens dos
jornais.
A principal dificuldade para o desenvolvimento da mídia
impressa reside em dois importantes fatores: nível de escolaridade
e índice potencial de consumo. Estes dois fatores têm como
conseqüência uma grande assimetria no caso da mídia impressa,
que encontra nas duas maiores cidades brasileiras, São Paulo e Rio
de Janeiro, o maior número de títulos assim como as maiores
tiragens.
Segundo a ANJ e a Associação Brasileira de Representantes
de Veículos de Comunicação (ABRE), existem atualmente 2.684
títulos de jornais, dos quais somente 523 são diários. Em 2003
calculou-se uma tiragem de 3.335 milhões de exemplares em 2003
(Mídia Dados 2004, p.334). Entretanto, estes dados são muito
imprecisos, pois somente se poderia falar com segurança dos 75
jornais auditados pelo IVC.
Quando se examina a distribuição dos títulos de jornais
diários e não diários de acordo com as regiões brasileiras também se
constata a grande concentração de títulos nas regiões sudeste e
466
sul, que juntas representam 75,5 por cento de todos os títulos de
jornais diários existentes no país e 86,9 por cento dos jornais não
diários. Por outro lado, chama atenção o pequeno número de títulos
existentes na região nordeste, 10,7 por cento dos jornais diários e
4,7 por cento dos jornais não diários, apesar de possuir a segunda
maior população do país, Esse fato se explica em primeiro lugar pelo
grande número de analfabetos absolutos e funcionais na região,
assim como pelas condições econômicas.
Mas um fator positivo com relação aos jornais regionais é
que enquanto os jornais do eixo Rio-São Paulo estão perdendo
leitores, o mesmo não se poderia dizer dos jornais regionais. “Como
tem acontecido nos últimos anos, os jornais que circulam fora do
eixo Rio-São Paulo tiveram em 2005 um desempenho mais positivo
que seus congêneres paulistas e cariocas (Mídia Dados 2006, p.
326)”, pois “esses veículos vem sendo beneficiados pelo processo de
amadurecimento de seus respectivos mercados e também pela
regionalização dos investimentos publicitários por parte dos
grandes anunciantes do país” (idem, p.326).
Quanto às revistas, consideradas de forma geral como uma
mídia nacional e com uma grande concentração dos principais
títulos em São Paulo, nos últimos anos assiste-se a uma crescente
edição de revistas fora do eixo Rio-São Paulo.
Mas apesar do significativo número das revistas regionais e
de sua grande diversidade de gêneros, elas ainda enfrentam uma
série de dificuldades, devido ao seu caráter ainda recente. A
467
tendência parece ser de um crescimento expressivo, pois elas não
parecem sofrer tanto a concorrência da Internet como os jornais.
O Brasil possui um grande número de rádios AM e FM (3.668)
que está presente em todas as regiões do país, embora se observe
uma maior concentração nas regiões Sudeste (36,7 por cento), Sul
(23,9 por cento) e Nordeste (23,1 por cento). Entretanto, quando se
considera a rádio FM percebe-se que o Sudeste possui 45,0 por cento
de todas as rádios do país.
O surgimento de redes nacionais de rádio, no início da
década de 90 do século passado, introduziu outra realidade, pois à
antiga pulverização dessa mídia nas regiões brasileiras, observa-se
agora uma centralização das cabeças de rede na cidade de São
Paulo.
Foi assim se consolidando uma nova realidade no meio
radiofônico, com a possibilidade de intermediação entre o local, o
regional, o nacional e o internacional. As grandes redes nacionais do
Sudeste, com seus correspondentes e parcerias internacionais vão
distribuindo por todo o território brasileiro as informações sobre o
que está ocorrendo no mundo e na cidade.
A televisão é a mídia de maior alcance nacional, pois está
presente em 90,4 por cento dos domicílios brasileiros (Projeção de
Domicílios com TV, 2006, Mídia Dados 2006, p. 161). As redes
nacionais surgiram com a criação do sistema nacional de microondas
ainda na década de 60.
O surgimento das redes regionais de televisão está
468
relacionado, principalmente, com a formação de grupos de mídia
regionais que começam a buscar uma maior sinergia entre as várias
emissoras do grupo. Trata-se de um fenômeno dos últimos 20 anos
do século passado e início da década atual.
A implantação tardia da TV por Assinatura no Brasil, que se
deu somente no início da década de 90, ao contrário dos EUA (anos
70) e mesmo de outros vizinhos da América Latina, como a Argentina
(início dos anos 80), pode explicar em parte os números ainda
modestos, que em 2005 totalizava pouco mais de 4 milhões de
assinantes (Mídia Dados 2006, p.218). Mas existem também outros
fatores que podem justificar essa situação, como a crise econômica
do país que vem desde o início dos anos 80 do século passado, e por
fim o sucesso da televisão aberta brasileira que ainda atrai os
telespectadores de forma massiva e constante, como se pode
verificar por seus altos índices de audiência.
Pode-se afirmar, entretanto, que a TV por assinatura no
Brasil ainda tem grandes perspectivas de desenvolvimento, apesar
das dificuldades ainda enfrentadas pelas operadoras.
Conclusão
Apesar da intensificação dos processos de globalização e
regionalização da mídia brasileira não se poderia deixar de
constatar que, em muitos casos, não se está assistindo a uma
melhoria na qualidade dos conteúdos veiculados. Ao contrário, o
que se observa, principalmente nos programas de rádio e televisão,
469
é a reprodução dos mesmos gêneros e formatos apresentados na
programação nacional. O investimento na qualidade não pode ser
uma questão menor quando se fala na ampliação do acesso à mídia.
O breve panorama da mídia regional aqui apresentado é
muito mais um convite para a realização de estudos mais
sistemáticos que permitam construir um quadro de referência para
o estudo de seus diferentes aspectos, uma vez que com o
desenvolvimento econômico dos mercados regionais, a mídia
regional está passando por um processo de grandes mudanças.
Dessa forma, poderia-se contribuir para a superação de uma
visão etnocêntrica, que em sua grande maioria ainda têm
privilegiado as pesquisas sobre a mídia nas cidades de Rio de Janeiro
e São Paulo, onde estão localizadas as maiores e mais importantes
empresas de mídia, assim como as agências de publicidades e os
grandes anunciantes.
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