Revista 07.2016

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Revista 07.2016
REVISTA REDAÇÃO
PROFESSOR: Lucas Rocha
DISCIPLINA: Redação
07
DATA: 28/02/2015
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Crise política: a culpa é de quem? (VITOR BARTOLETTI)
As promessas da civilização ocidental não são
cumpridas na medida mesma em que se proclama
a "era dos direitos", em que se tece um "elogio à
serenidade" e em que a virtude liberal da
tolerância parece ter as melhores condições
possíveis para se realizar
PARA muitos, o colapso do "comunismo"
parecia abrir uma nova era, plenamente
democrática, e marcada, seja à direita, seja à
esquerda (se é que estas noções ainda fariam
algum sentido), pela moderação e pela serenidade.
Após o "curto século XX", a "era dos extremos",
para que se use a expressão de Eric Hobsbawm
(1917-2012), parecia estar efetivamente aberto o
caminho para soluções negociadas e conciliadoras,
em uma "era dos direitos", marcada pela garantia
da participação cidadã e pela centralidade da
política juridicamente mediada e garantida.
++99++9Tendo em conta este panorama,
outros poderiam dizer que o século XXI mostra
que, em verdade, é o oposto que se deu - não são
poucas as guerras que marcaram nossa época
desde o fim da URSS (símbolo de grande parte das
esperanças da esquerda no século XX); conflitos
religiosos e "fundamentalismos" (inclusive quando
se diz oficialmente que "Deus abençoe a América")
não são raros, sendo que as próprias promessas
dos melhores momentos das revoluções burguesas
(principalmente a francesa e a americana, com
suas garantias individuais e políticas presentes nas
cartas de direitos humanos) - Estado laico,
participação política, cidadania, resolução das
"questões sociais" - passaram longe de se realizar
de modo pleno; em verdade, nem mesmo
garantias mais básicas como a vedação de tortura
são obedecidas pelos principais baluartes da
"democracia" (basta pensar em Guantánamo).
A
posição
habermasiana
sobre
as
possibilidades de um mundo em que o socialismo
parecia não ser mais solução está no enfoque de
uma razão específica, a razão comunicativa, por
meio da qual se trataria justamente de realizar as
promessas, no limite, "iluministas", tendo-se o "
iluminismo como um projeto inacabado". Portanto, mesmo que Jürgen Habermas (1929) seja um autor que passa longe de
um otimismo cândido quanto ao "colapso do comunismo", há de se apontar que se trata de um autor que não deixou de
enxergar uma abertura importante neste. Na medida mesma em que caía a URSS, alguns falsos caminhos saíam do
horizonte, sendo possível a retomada de uma espécie de "democracia radical", tratada pelo autor, sobretudo, em Direito e
democracia, obra bastante influente na intelectualidade brasileira, e - de modo bastante mediado, é verdade - mesmo na
intelectualidade ligada aos dois principais partidos nacionais, o PT e o PSDB.
A QUESTÃO DO CAPITALISMO
Dada não só a envergadura de um autor do calibre de Habermas, mas também sua seriedade e sinceridade na crença
do potencial crítico que os intelectuais (e da razão mesma) poderiam ter, é necessária uma análise mais cuidadosa da
questão: o próprio modo pelo qual a serenidade, tratada por Norberto Bobbio (1909-2004), vem a se ligar à "conciliação" e
às soluções "negociadas" já indica que talvez haja algo subjacente a ser tratado, e o autor alemão não deixa de perceber
isto, claro.
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Primeiramente, isto se dá porque, no próprio modo como se constroem as esperanças posteriores ao "colapso do
comunismo" tem-se como suposto que, afinal de contas, a tarefa colocada pela esquerda do século XX, a saber, a supressão
do capitalismo, era algo impossível, inviável, e mesmo indesejável. Ou seja, grande parte da "mudança de paradigma" considerada central e inafastável por muitos (inclusive por Habermas) - consistiu em "superar" uma questão pungente,
diriam alguns (como aqueles que ainda acreditam que o marxismo seja uma referência inafastável, como David Harvey, só
para citar um exemplo), fingindo que ela nem sequer era uma questão a ser tratada como tal. Para que se coloque em
termos bastante rasteiros: a sujeira pode ter sido colocada "embaixo do carpete".
E, com isso, a centralidade da luta anticapitalista foi abandonada por parte da esquerda (da qual faz parte o próprio
Habermas), restando certo equilíbrio entre uma forma de ação estratégica que lidaria com aspectos como a burocracia, as
finanças e a própria organização do trabalho de um lado, e uma ação mais ligada à formação das subjetividades e das
identidades que passariam pelo reconhecimento intersubjetivo e comunicativo, opostos ao agir estratégico, por outro. Isto,
como se percebe, não é nada ingênuo - autores como Habermas e Axel Honneth (1949), por exemplo, precisam ser
respeitados, certamente: quanto a isto, não há dúvidas - no entanto, talvez tal posicionamento traga como ponto cego
questões que pareciam "ultrapassadas", mas que, diante do desenvolvimento da sociedade contemporânea, fazem que a
serenidade possa, no limite, ser levada a seu oposto.
DIREITO E DEMOCRACIA, DE JÜRGEN HABERMAS, É BASTANTE INFLUENTE NA INTELECTUALIDADE BRASILEIRA
LIGADA AOS DOIS PRINCIPAIS PARTIDOS NACIONAIS, O PT E O PSDB
Uma esquerda que se coloca como "esquerda para o capital" solapa as próprias bases, como aconteceu com o Partido dos
Trabalhadores, principalmente na última década
Manter a serenidade, bastante defendida por um autor "progressista" importante como Norberto Bobbio, diante da
crescente influência dos imperativos econômicos na gestão estatal é bastante difícil, por exemplo. Autores como Habermas
certamente se opõem a isto, não há dúvida. No entanto, se seguirmos o diagnóstico de Karl Marx (1818-1883) (retomado
por Harvey e outros), a resolução da questão traz à tona, novamente, a retomada decidida de uma luta anticapitalista, e
não a contraposição entre duas formas de razão. A questão é bastante mediada e complexa, no entanto; para o que
tratamos aqui, basta que tenhamos mencionado a influência habermasiana na teorização contemporânea, bem como certa
recusa, por parte da grande maioria daqueles influenciados por este grande pensador, de um enfrentamento decididamente
anticapitalista.
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BRASIL E A SERENIDADE
Para tratar do tema que aqui abordamos de modo mais explícito, pode-se dizer que a questão acerca da "mudança de
paradigma" da história recente efetivamente se colocou na medida em que, em âmbito mundial, mas de modo particular na
história recente do Brasil, o modo pelo qual se organizou, seja a oposição, seja o apoio àqueles que detinham
institucionalmente o aparato político-partidário, foi essencialmente "conciliador" (em oposição à radicalidade de uma solução
"comunista") na medida em que se reconciliou também com aquilo que subjaz na organização social contemporânea (a
própria estrutura produtiva capitalista) e que fez que toda "conciliação" fosse também, literalmente, uma "negociação". E,
neste ponto, as coisas adquirem contornos que são bastante importantes para se tratar do presente, e do Brasil em
específico.
De certo modo, a própria serenidade e
moderação passam a ter que ser coniventes com
aquilo mesmo que traz a impossibilidade de um
"reconhecimento" autêntico entre os autores sociais
(questão tida como central por Honneth e, de modo
mais mediado, por Habermas); neste sentido, ao se
deixar de tratar da supressão do capitalismo como
uma questão de grande relevo, este último bate na
porta e faz que o próprio ímpeto de um Habermas e
de um Honneth (bastante influentes em parte da
esquerda da década de 1990 e 2000, e ainda
bastante influentes hoje) veja-se reforçado somente
na medida em que é ontopraticamente, em
verdade, inviabilizado pela continuidade das
questões que foram "colocadas embaixo do tapete".
Aquilo mesmo que é tirado de campo pela
"mudança de paradigma" inviabiliza a realização das
promessas daquela mudança.
Na medida mesma em que a separação entre
"sistema" (em que os imperativos de mercado
aparecem) e "mundo da vida" (esfera de
reconhecimento intersubjetivo e de um agir As passeatas "populares" que vêm sendo apoiadas pelo PSDB dariam
orgulho aos organizadores da famigerada "Marcha pela família com
destituído de dominação) parecem ser centrais para
Deus pela liberdade", de março de 1964
um autor como Habermas, e para muitos ideólogos
dos partidos da ordem do Brasil, para preservar a esfera democrática nas sociedades atuais, a questão, ligada à estrutura
objetiva da sociabilidade capitalista, traz à tona o fato de só ser possível se colocar contra a influência econômica nas
decisões, por assim dizer, "políticas", ao se suprimir o próprio capitalismo. Uma forma de sociabilidade mais democrática é
certamente desejável e a dificuldade de tal tarefa não é pouca. E, neste sentido, Habermas e Honneth passam longe de
qualquer defesa cínica da convivência com o ímpeto agressivo da reprodução diuturna do capital; no entanto, aqueles que
se viram como gestores de problemas urgentes de uma sociedade capitalista hipertardia como o Brasil, tanto o PT quanto o
PSDB, se quisessem apresentar resultados imediatos em seus mandatos da presidência, foram levados a certas
"negociações" e "conciliações" justamente com o que há de mais vil na sociabilidade capitalista (ao contrário do que seria
defendido por Habermas, por exemplo). Um fato importante a se notar, pois, é que longe de se tratar de governos que
tiveram a falta de intelecto como marca, teve-se o apoio de certa nata da intelectualidade brasileira de cada lado - o PSDB,
por exemplo, foi apoiado pelo filósofo José Arthur Giannotti (1930), ao passo que o PT foi apoiado pela filósofa Marilena
Chaui (1941). E, neste sentido, as mudanças efetivas não se dão tanto ao se mudar o modo de conceber determinadas
noções - não se trata sequer de "ressignificá- las"; antes, é necessário transformar efetivamente a própria realidade.
TANTO O PT QUANTO O PSDB, PARA APRESENTAREM RESULTADOS IMEDIATOS EM SEUS MANDATOS, SERÃO
LEVADOS A NEGOCIAÇÕES E CONCILIAÇÕES COM O QUE HÁ DE MAIS VIL NO CAPITALISMO
O ELOGIO à serenidade pode parecer real e efetivamente como o outro lado da necessidade de convivência com uma
potência social cujo ímpeto agressivo já foi destacado por muitos, e principalmente por Karl Marx, o capital
Uma "mudança de paradigma" teve apoio ativo da intelectualidade nacional. No que é necessário, novamente, algum
cuidado quanto a esta "mudança" - ela pode muito bem trazer uma continuidade decisiva - não basta, assim, "compreender
o mundo de diferentes maneiras; trata-se de transformá-lo", como apontou Marx na sua XI tese sobre Feuerbach. Para que
se explicite a coisa por outro ângulo: no fundo, também o "elogio à serenidade", de um Norberto Bobbio, tem por trás de si
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como pressuposto a mesma assunção: afinal de contas, a sociabilidade capitalista não é algo a ser colocado em questão,
tratando-se de um dado ineliminável, a ser "compreendido de maneira diferente". E isto tem consequências grandes para o
pensamento crítico, é preciso que se diga. Os vernizes de serenidade, de tolerância e todas as virtudes liberais imagináveis,
para que se use a dicção de Marx sobre Georg Hegel (1770-1831), ao final, poderiam ter uma função - mesmo que
inconsciente - nefasta: a de "tornar sublime o existente". Se Marx ainda é atual como querem Harvey e outros, na medida
mesma em que se coloca "debaixo do tapete" uma questão pungente, nada mais se faz que "dourar a pílula". Neste sentido,
tal "mudança de paradigma" pode ter errado o alvo de modo decisivo, dando ensejo justamente à permanência daquilo que
parecia não ser mais um problema decisivo, mas que, ao final, pode ser central em diversos sentidos, a própria posição
anticapitalista.
Quando se percebe que, no Brasil, ao final,
para que se atue em meio à política institucional
dos partidos da ordem foi necessário "dourar a
pílula" e supor como dado imutável justamente o
que tem que ser questionado, a "crítica" corre o
sério risco de se colocar de modo bastante
paradoxal: como aquilo que Paulo Eduardo Arantes
(1942) chamou - justamente ao analisar o
pensamento uspiano de um Giannotti, mas também
de outros - de "crítica a favor". Por vezes,
justamente ao se criticar o desenvolvimento de
aspectos pontuais da sociabilidade capitalista (e
não o capitalismo como tal), vem-se a legitimar o
último, e mesmo as consequências do último, de
modo que o discurso crítico, neste ponto, aparece
como essencialmente esvaziado: novamente,
correndo-se o risco de ser bastante rasteiro, podese dizer que se criticam os sintomas sem se buscar
um modo de curar o paciente da doença. Uma
"esquerda" que atue deste modo somente poderia
se conformar como uma "esquerda para o capital",
como disse Eurelino Coelho. O cenário do PSDB social-democrata, no nome - também é bastante
preocupante, dado que o partido não só é levado à
defesa de programas de governo que se colocam
A democracia brasileira, desde seu início, convive em conciliação com
contra qualquer conquista de uma social-- aqueles que apoiaram o golpe em 1964 e que, se não contemplados
democracia digna de tal nome; ele também é seus interesses financeiros, apoiam-no também hoje
levado a se apoiar nas camadas mais
conservadoras (e raivosas) da sociedade brasileira. Se antes se buscava o apoio dos Giannottis, hoje, parece ser mais
importante o apoio daqueles que vociferam contra qualquer programa social e que tendem a ter posições políticas
claramente à direita (inclusive, demonstrando simpatias por um golpe militar ou por qualquer coisa que vá retirar "a
esquerda" do poder).
O QUADRO POLÍTICO BRASILEIRO MANTÉM INTACTAS AS BASES E OS PROTAGONISTAS SOCIAIS QUE
APARECERAM ATÉ ENTÃO AO LADO DAQUELES QUE DERAM APOIO À DITADURA MILITAR
RESQUÍCIOS DA DITADURA
Diante disso, deve-se dizer: o cenário político brasileiro atual, até certo ponto, é absolutamente vergonhoso - depois de
uma transição "lenta, gradual e segura", elege-se, sem eleição direta, Tancredo Neves - um presidente que não assume e
em seu lugar aparece José Sarney, um tradicional político do partido de apoio à ditadura. Depois, com a primeira eleição
direta da "nova república" é eleito Fernando Collor de Mello, outro político cuja família era intimamente ligada à preservação
da ditadura militar - a "nova república" já nasce velha, pois. Depois disso, em 1994, parte da nata da intelectualidade
brasileira, representada na "esquerda" do MDB (conformada no PSDB dos anos 1990) faz justamente aquilo que os "liberais"
(economicamente) saídos da ARENA, partido de apoio à ditadura, não conseguiram dar conta no mandato inacabado de
Collor; depois disso, de 2002 até 2014, o PT, é verdade que com algumas importantes "conquistas" (que podem se perder
com os "ajustes" de hoje...) no aspecto social, mantém intactas as bases mesmas e os mesmos protagonistas sociais que
apareceram até então ao lado daqueles que deram apoio, inclusive, à ditadura militar no passado. Neste sentido, a
conciliação permeia a história política recente na medida em que se tem uma reconciliação com o velho, representado pelas
forças sociais retrógradas que noutro momento derrubaram o presidente João Goulart.
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As consequências da "volta dos que não foram"
Colocada a questão nestes termos, é preciso que se reconheça uma dupla irracionalidade: de um lado, uma "esquerda"
que vem a ter como palavra de ordem "não vai ter golpe" já admite que, ao final, na melhor das hipóteses, as coisas vão
continuar como estão, sendo seu potencial crítico extirpado. Doutro lado, a "volta dos que não foram", coloca-se de modo
absolutamente animalesco, nas ruas, com demonstrações racistas, homofóbicas e com um discurso contrário a qualquer
posição, não só à esquerda, mas minimamente tolerante - eis que o próprio discurso liberal é visto como "comunista".
Ou seja, a rigor, a "redemocratização" nem sequer retirou de cena o espectro do "golpe" o qual - tal qual as
vicissitudes inerentes à sociabilidade capitalista - foi colocado, por assim dizer, " debaixo do tapete", esperando-se que, por
si, nunca mais voltasse à cena política; no cenário atual é claro tal espectro que, com a "bancada da bala", aparece
desavergonhadamente em deputados e, inclusive, em algumas figuras públicas. O ridículo da situação é evidente na medida
em que justamente aqueles que se contrapuseram à "ordem" pós-1964 (tanto a intelectualidade do PSDB, quanto do PT),
ao buscar compor governos com base na conciliação e na negociação com aqueles mesmos que apoiaram a ditadura militar,
acabaram - indiretamente - propiciando as condições para que soluções negociadas e conciliadoras fossem vistas como
sinônimo de democracia, restando a "democracia radical" (defendida por um autor como Habermas) como algo, ao fim,
inalcançável, e mesmo indesejável: trata-se de "governabilidade", afinal de contas. E o momento atual é aquele em que a
sujeira já não cabe mais "embaixo do tapete".
Neste sentido específico, por mais que se trate
de algo absolutamente brutal, e por mais que seja
vergonhosa, de qualquer ponto de vista, a defesa
de um golpe militar (ou de um "golpe branco",
como ocorrido recentemente no Paraguai), não é
surpreendente que tal dicção volte à tona.
Primeiramente, porque ela nunca foi
efetivamente extirpada - a morte natural de
posições conservadoras e intimamente afinadas
com aquilo de pior na realidade nacional não é algo
que possa se dar. Em segundo lugar, a pauta da
esquerda institucional da nova república foi
emergencial: diminuir significativamente a miséria
(PT), por exemplo, era algo urgente, e há de se
reconhecer que isto realmente se deu nos três
primeiros mandatos do PT no Planalto. Isto, porém,
foi conseguido com um elevadíssimo custo:
alianças
espúrias
feitas
em
nome
da
"governabilidade" confluíram com a perda do
destaque dado aos movimentos sociais e aos
próprios trabalhadores, de tal feita que o Partido
dos Trabalhadores começa a deixar de ter sua base
de apoio nos próprios trabalhadores. Mesmo os
programas sociais do governo não reverberam no
incremento de direitos - trata-se de programas de
governo, conseguidos, também, mediante acordos
espúrios, e a manutenção destes acordos não só é
custosa; dependendo da conjuntura econômica
(que tem o "mercado mundial" como principal
ator), só pode ser mantida com concessões
tremendas justamente nos campos que foram, e
teoricamente ainda são, os mais valorizados pela
esquerda.
A "esquerda" institucional, pois, deixa de lado
os próprios programas da esquerda e vê-se
realizando o programa (neo)liberal com um ajuste
fiscal que não teme cortar as verbas da Educação.
Em nome da "governabilidade", a Educação sofre cortes gritantes por
Neste sentido, a estratégia "realista" da conciliação parte do atual governo, ao passo que o imposto sobre grandes
e das reformas graduais leva a seu oposto. Na fortunas acaba se tornando algo não só distante, mas impossível com
medida mesma em que se colocaram questões uma agenda conciliadora
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pungentes "debaixo do tapete", elas cobram a conta hoje, de modo brutal: tanto a busca de uma democracia de massas
(que não rompesse com o capitalismo) quanto a manutenção da arquitetura institucional da ditadura militar (como no caso
da militarização da polícia, por exemplo, e do aparato jurídico, como mostrou Gilberto Bercovici) se apresentam na medida
em que, de um lado, o "mercado" não só é personificado, é muito mais considerado que movimentos sociais, dando as
rédeas da política econômica do governo. Doutro lado, cresce a "bancada da bala" e as posições conservadoras em todos os
campos, as quais, coligadas com diversos tipos de intolerância, não têm vergonha alguma em dizer para todos que queiram,
e não queiram ouvir, que há de se render homenagens à ditadura militar, aos torturadores, tendo-se bandeiras como
aquelas dos direitos humanos como algo a ser aviltado e extirpado.
A serenidade, pois, neste contexto, torna-se seu oposto, sendo impossível contar com qualquer tipo de tolerância.
"Negociar" neste terreno não só é uma tarefa inglória: talvez, seja efetivamente fadada ao fracasso, sendo a conciliação um
rendimento àquilo de mais vil.
SERENIDADE E AGRESSÃO
A manutenção mesma das bases da sociedade
capitalista nos moldes brasileiros, bem como da
organização
política
da
"nova"
república,
supostamente defendidos em nome da serenidade
e das soluções que não fossem "radicais", tem
como consequência o fortalecimento daquilo que foi
colocado
"debaixo
do
tapete"
na
"redemocratização", e que aparece com toda a
força hoje, quando a "era dos direitos" é conciliada
com o ataque aos direitos trabalhistas ao passo que
o "elogio à serenidade", e mesmo a tolerância, são
confundidos com nada menos que "o comunismo"
em certas camadas mais virulentas e raivosas dos
conservadores.
Neste sentido, se uma crítica ao capitalismo
mesmo foi vista como algo "utópico", talvez seja
muito mais "utópico" se acreditar no poder da
conciliação e da negociação; assim, talvez possa ser
o caso de se voltar àquele que tratou com mais
cuidado justamente daquilo que, o desenvolvimento
social mesmo mostrou, não pode ser colocado
"embaixo do tapete", Karl Marx. Isto se dá, não só
porque, talvez, trate-se do autor mais mal lido na
tradição filosófica ocidental; o autor ganha relevo
na medida em que, como mostraram István
Mészáros (1930) e David Harvey, por caminhos
distintos, mas convergentes, a existência e
reprodução mesma da sociedade capitalista, hoje,
trazem consigo aquilo de mais grotesco na
sociabilidade contemporânea. Para estes autores, Que fique claro: a "corrupção" disseminada não é fruto senão daquilo
que "resta da ditadura"
tal qual em Marx, formas distintas de agressão e de
opressão não são simplesmente algum acidente na história do capitalismo: são o modo mesmo de expressão deste sistema
social, que tem como certidão de nascimento a "acumulação originária" realizada principalmente com os cercamentos
(expropriação sangrenta dos camponeses de suas terras) e como atestado de sua reprodução diuturna aquilo que Harvey
chamou de "acumulação por espoliação", realizada tanto por meio de guerras como de privatizações de serviços básicos e
tantas outras maravilhas do (neo)liberalismo.
Dificilmente seria possível negar que os ânimos estão à flor da pele no Brasil contemporâneo. Isso, porém, não significa
necessariamente que exista uma polarização clara no campo da política institucional - antes, justamente este acirramento de
ânimos pode advir da falência do projeto conciliador da nova república, desenvolvida a partir da transição "lenta, gradual e
segura". O modo pelo qual a questão se coloca (principalmente na mídia oligopolizada brasileira) passa longe de esclarecer
as raízes da questão. Hoje, no Brasil, a serenidade de outrora dá lugar ao discurso inflamado, convertendo-se em uma
crítica ao "tamanho do Estado" e à "ineficácia do Estado", tendo-se por claro que, com aquilo que fora colocado "debaixo do
tapete", há uma defesa exacerbada de uma nova rodada de "acumulação por espoliação" (e não é por acaso que a
"indignação seletiva" volta-se contra a Petrobras). Até mesmo o "combate à corrupção" não é possível com a conciliação e
com a negociação - muito pelo contrário: estas últimas que, mediante a preservação tanto da égide do capital (agora,
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bastante financeirizado) quanto daquilo que "resta da ditadura", levam à necessidade desta na política institucional. Neste
sentido, aquilo colocado "debaixo do tapete" cobra um alto preço também quando parece haver certo curto-circuito entre a
"volta dos que não foram", a reprodução diuturna do capital e o financiamento (que é um investimento) privado e
empresarial das campanhas políticas. Até certo ponto, dizer que uma esfera pública que tem estas bases é realmente
democrática só pode ser uma piada, de muito mau gosto, diga-se de passagem.
O discurso verborrágico que vem ganhando força é justamente o discurso a favor da manutenção destas vicissitudes.
E, dado que a conciliação já não se mostra mais possível, é preciso se dizer que um programa contra estes vícios somente é
possível com uma posição decidida contra "o que resta da ditadura", o que tem como consequência uma posição firme
contra a própria conformação do capitalismo brasileiro. Certamente pode-se falar de crise hoje, não há dúvidas. Isto, porém,
não se dá tanto nos termos propagandeados pela mídia oligopolizada, quanto na medida em que esta traz consigo uma
situação insustentável dentro das estruturas vigentes (tanto econômicas quanto políticas). Tratar desta questão no Brasil
certamente é bastante difícil, dado que na crise, "verificam-se os fenômenos patológicos mais variados".1 Por aqui,
certamente, verificamos estes fenômenos, expressos na "volta dos que não foram"; no entanto, aqui "o velho" nem sequer
morreu, e parece não estar disposto a qualquer espécie de eutanásia. O "novo", por sua vez, tratado por A ntonio Gramsci
(1891-1937), só pode nascer com uma posição decidida contra a ordem presente, e, neste sentido, não é tanto preciso uma
"mudança de paradigma", mas uma crítica resoluta à própria conformação do capitalismo, como aquela feita por Karl Marx.
1
GRAMSCI, 2002, pág. 184
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MARX, Karl. O Capital, Volume I. Tradução por Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
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MÉZSÁROS, István. A montanha que devemos conquistar. Tradução por Maria Izabel Lagoa. São Paulo: Boitempo, 2015.
________. Estrutura social e formas de consciência II. Tradução por Rogério Bettoni. São Paulo: Boitempo, 2011.
VITOR BARTOLETTI é professor da Faculdade de Direito e Ciências Sociais da UFMG, Mestre em História Social pela PUC-SP,
Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito ela USP e autor do livro “Lukács e a crítica Ontológica ao Direito”. Revista
FILOSOFIA, fevereiro de 2016.
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Militarização das escolas públicas: uma propaganda enganosa
(ARTHUR MEUCCI)
TENHO recebido muitos e-mails de educadores de Goiânia, Manaus e São Paulo preocupados com as recentes políticas
de militarização das escolas públicas. Atualmente é um dos principais temas debatidos em Secretarias de Educação,
sindicatos e meios de comunicação. Em muitos Estados do País, especialmente em Goiás e São Paulo, cresce a oferta de
escolas públicas oferecidas aos cuidados da Polícia Militar. Em sua defesa, os políticos alegam que sob o comando da PM as
escolas têm uma melhora das notas em exames nacionais e redução dos índices de violência. 1
1
Reportagem da BBC Brasil: www. bbc.com/portuguese/noticias/2014/08/140819_
salasocial_eleicoes_educacao_escola_militarizada_ rm> Acesso em 22 dez. 2015.
Graças aos relatos de educadores que já trabalharam nestas escolas e da documentação disponibilizada pelo site do
Ministério da Educação, é possível analisar criticamente esse fenômeno. O que mais me chamou a atenção nessas escolas é
sua flexibilidade legal diante da legislação que rege o funcionalismo público, das Leis de Diretrizes e Bases da Educação
(LDB) e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Quando uma escola estadual é militarizada, os novos administradores retiram todo o corpo docente e escolhem
educadores que aceitem as regras militares. Os homens não podem ter barba, tatuagem visível, devem usar sapato social,
camisa, se afirmar como heterossexuais e obedecer aos militares sem questionar. As mulheres também devem obedecer, ter
cabelo preso, usar jaleco com distintivo da PM, pintar as unhas com esmalte branco, sem tatuagem visível ou
comportamento homossexual. Educadores que não seguem as regras, ou faltam, podem ser substituídos por outros
educadores da rede pública. Muitos profissionais relatam que nessas escolas a maioria dos professores é parente de
militares (esposa, tia, sobrinha ou filha) e defende esse regime. Não sei qual é o respaldo legal para afastar ou selecionar
funcionários da rede, pois esse procedimento não é legalmente permitido em outras escolas públicas.
Se os diretores das escolas estaduais pudessem afastar educadores que faltam muito e compor o quadro docente com
profissionais de sua preferência, alinhados com o seu projeto pedagógico, essas escolas também teriam um desempenho
melhor. Porém, isso não acontece por questões legais e pela falta de um projeto político alternativo.
Ao assumir, os militares estipulam um critério para manter alguns poucos alunos da comunidade (os de melhores notas
e sem histórico de problemas) e retiram os demais. Depois, montam um processo seletivo com prova e estudo do histórico
para selecionar os educandos que desejam entrar.2 A polícia cobra mensalidade e exige o uso de uniformes - em Goiânia,
cada uniforme custa em média R$ 600 e em Manaus, R$ 150. Se o educando tiver problemas com nota ou comportamento,
ele é desligado da instituição.
Quando se pede para reduzir o nível de violência em uma escola pública, espera-se que as medidas resolvam os
problemas da comunidade de educandos que estudam na instituição. É óbvio que expulsar os alunos com histórico de
problemas e aceitar outros com bons antecedentes vai diminuir a violência, porém não resolve o problema da comunidade.
É um efeito cosmético e ilegal, afinal, tanto a LDB quanto o ECA proíbem discriminar educandos com necessidades
especiais, histórico de mau comportamento, retirar o aluno de uma escola da comunidade, cobrar uniforme e mensalidade.
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9
Uma política educacional de verdade precisa lidar com problemas de comportamento, baixo desempenho, limitações
financeiras e deficientes.
Educandos que podem pagar por uniforme e mensalidade pertencem a uma classe econômica, social e racial
totalmente distinta da maior parte da população brasileira. Essa visão retrógada de "ordem e harmonia" baseada na seleção
de uma pequena parcela da população detentora de privilégios já deveria ter sido superada com a derrota do nazismo na
primeira metade do século XX.
A própria ideia de uma educação baseada na disciplina militar, estruturada na ideologia prussiana de controle das
massas desde a infância, está na contramão das necessidades do século XXI. As empresas precisam inovar cada vez mais, o
mundo está em um processo acelerado de mudanças, as regras sociais são continuamente revistas e tudo isso exige uma
educação que ofereça cidadãos ativos, criativos, críticos, pensando fora da caixa, desafiando velhos sistemas para melhorar
o mundo. Marchar em fila, bater continência, ficar calado, discriminar o diferente, reprimir a sexualidade e obedecer às
ordens sem questionar não faz mais sentido. Se é que fez em algum momento...
A militarização escolar é mais uma propaganda enganosa criada por setores segregacionistas da sociedade: não
melhora o ensino nem reduz a violência. A velha tática de domesticar a população por medo e força já não funciona tão
bem neste século. Não devemos nos preocupar com o avanço destas escolas, pois estão fadadas ao fracasso. Porém,
precisamos nos preocupar com as diversas infrações à LDB e ao ECA que os militares e os governos estaduais estão
cometendo e cobrar soluções do judiciário.
ARTHUR MEUCCI é Mestre em Filosofia pela USP, Doutorando em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie e membro da Associação Filosófica “Scientiae Studia”. Professor, conferencista da ECA/USP, e do Curso de
Ética e Meio Ambiente do PEC/FGV-SP e consultor do Espaço Ética (www.meucci.com.br). Revista FILOSOFIA, Fevereiro de
2016.
Sociedade brasileira: violência e autoritarismo por todos os lados
(JUVENAL SAVIAN e LAÍS MODELLI)
A filósofa Marilena Chaui analisa a situação
política e econômica brasileira e comenta a
ocupação das escolas paulistas
DESDE o início dos anos 1980, Marilena Chaui
tem proposto como chave de leitura de nosso país a
ideia de que a sociedade brasileira é autoritária e
violenta. Em obras como Cultura e democracia: o
discurso competente e outras falas, de 1981 (que
será reeditado em seusEscritos, publicados pela
Editora Autêntica), a filósofa contraria a imagem de
uma cultura nacional pretensamente formada pelo
acolhimento recíproco e pela cordialidade, revelando
estruturas enraizadas de hierarquização e de
sedução pela autoridade.
Não se trata, porém, de considerar os
brasileiros como individualmente violentos. Trata-se
de esclarecer as estruturas históricas que produzem
uma vida social em que o espaço público e
republicano é minguado, transferindo-se ao Estado o papel de sujeito da cidadania e reproduzindo-se, no cotidiano, relações
de poder. Essa chave de leitura permanece, aos olhos de Marilena Chaui, extremamente atual para analisar o momento
vivido pelo Brasil. Apesar dos percalços éticos, políticos e econômicos das duas últimas décadas, o país tenta entrar na
Modernidade, que exige necessariamente inclusão social. Essa mesma inclusão, no entanto, desperta resistência. Se os
auxílios financeiros para inserção econômica, distribuídos por países como Alemanha e França às populações mais pobres,
são considerados por lá sinais de desenvolvimento, o Bolsa Família, no Brasil, é chamado de assistencialismo e de estratégia
eleitoreira. Se a ação do Estado no controle do mercado é vista como necessária em outras partes do mundo, aqui ela é
chamada de “ameaça comunista” e de inchaço da máquina pública.
O problema é que ainda não sabemos muito bem o que é o espaço público, porque não agimos como sujeitos,
transferindo a responsabilidade pela construção da cidadania aos aparelhos de governo. Focamo-nos nas salvações que
podem vir do poder e não obrigamos o poder público a representar de fato todos os setores sociais. O resultado dessa
prática (ou ausência de prática) é o fortalecimento da violência e do autoritarismo, que atualmente se intensificam nas
formas de controle policial, por exemplo, e a falta de pensamento no jogo político (não somente de direita, mas também de
esquerda!). Chamar atenção para essa dinâmica perversa é o que faz Marilena Chaui na entrevista que concedeu à CULT.
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10
CULT: Como a senhora vê a situação política vivida pelo Brasil hoje?
Marilena Chaui: É uma situação gravíssima. É gravíssima não por causa daquilo que a mídia apresenta como falência do
governo, mas pelo movimento conservador, reacionário, de extrema direita e protofascista que está tomando conta da
pauta política. Quando examinamos os pontos da pauta política discutidos de outubro de 2015 até agora, vemos o poder
dos grupos dos “3B”: o boi, a bala e a Bíblia. É uma regressão sociopolítica fora do comum. É uma pauta regressiva,
antidemocrática, de violação de todos os direitos que foram conquistados ao longo dos últimos quinze anos.
Todo o fundo reacionário protofascista que existe no Brasil e que é alimentado pela classe média urbana brasileira veio
à tona e pegou as esquerdas completamente desprevenidas. As esquerdas tinham pautas como o antineoliberalismo, os
direitos, a questão da Palestina e do Oriente Médio, do surgimento do Estado Islâmico, enfim, pautas voltadas aos
problemas da democracia e do socialismo, e foi pega completamente despreparada por uma onda de extrema direita que
repôs para o Brasil os tópicos que estiveram em vigência no início dos anos 1960.
É uma ameaça de golpe para reverter o processo de consolidação dos direitos sociais obtidos nos últimos anos e
sustentada pela pauta “boi, bala e Bíblia”. Aliás, a atuação de grupos religiosos é muito preocupante e vai além de uma
questão propriamente política, porque, apesar de se manifestar na representação política, ela é uma questão
socioeconômica: é a maneira como as igrejas evangélicas interiorizaram e reformularam a concepção neoliberal.
CULT: Como se dá essa interiorização e reformulação evangélica da concepção neoliberal?
Marilena: Uma das características do neoliberalismo é a maneira como ele concebe o indivíduo, que não é entendido nem
como parte de uma classe social, nem como ser em formação que vai se relacionar com o restante da sociedade. O
indivíduo não é pensado nem como átomo nem como classe, mas como um investimento. Na medida em que um indivíduo
é um investimento, o salário não é entendido como salário, mas como provento, como renda.
Então, o ser humano é programado para ser rendoso e rentável. A família, a escola e o emprego passam a ter por
função a rentabilidade do indivíduo, porque ele é um investimento. As igrejas evangélicas se apropriam desse ideário e o
desenvolvem por meio de uma teologia – a teologia da prosperidade, que considera cada indivíduo justamente como um
investimento ou uma empresa. Ele não é um empresário, mas uma empresa, e, como tal, precisa de uma série de condições
para funcionar. Então as igrejas, além de convencerem a pessoa de que ela nasceu para vencer na vida e ser rentável,
levam a ética calvinista ao máximo, explorando a crença de que ser rentável é um sinal de salvação, porque é isso que Deus
espera.
Como se sabe, a maior parte das igrejas evangélicas possui franquia. Elas se espalham no campo da produção e do
comércio e empregam todas as pessoas, fazendo com que elas provem que Deus as escolheu e que são um investimento
rendoso. Pouco a pouco, as pessoas se apropriam da franquia; depois abrem outra e assim por diante. Há, portanto, um
fenômeno de fortalecimento da ideologia neoliberal e das concepções conservadoras da classe média por meio da maneira
como as igrejas evangélicas incorporam o neoliberalismo, com uma teologia para isso. Se você juntar o conservadorismo
com o reacionarismo da classe média urbana e a presença avassaladora das igrejas evangélicas, além de toda a discussão
sobre a vida no campo (a reforma agrária), vai entender por que politicamente se exprime, de modo efetivo, nos grupos do
“boi, bala e Bíblia”, a pauta ultraconservadora que está aí.
A minha preocupação é, evidentemente, por um lado, denunciar de todas as maneiras possíveis a tentativa de golpe.
Por outro, assegurar que governos voltados para os direitos sociais (e, desse ponto de vista, com uma pauta antineoliberal)
sejam garantidos. Ao lado disso, a minha preocupação é com a sociedade, ou seja, com a ideologia. Depois de muito tempo,
lá retorno eu à questão da ideologia. É preciso refletir sobre como erguer um dique para impedir a entrada avassaladora da
ideologia neoliberal na sua forma teológica. Estamos vivendo um momento que vai fazer 1964 parecer uma coisa muito
simples. 1964 estava inserido na Guerra Fria, no poderio dos Estados Unidos sobre os países da América Latina. Por causa
do exemplo de Cuba, acreditava-se ser possível uma revolução socialista. Os componentes eram muito óbvios. Havia uma
clareza na compreensão do momento vivido. Agora não há clareza. Tudo é muito difuso, muito opaco, obscuro, porque há
fundo teológico.
CULT: A senhora acredita em um golpe militar?
Marilena: Está fora de questão.
CULT: O que pode acontecer?
Marilena: Se as coisas continuarem no ritmo em que estão e se o golpe dos 3B se concretizar, haverá uma efervescência
social enorme, porque todos aqueles cujos direitos foram garantidos pelo Estado depois da era militar terão esses mesmos
direitos cortados. E haverá ameaças: ameaça no campo, ameaça urbana, uma situação de vigilância e intimidação em todas
as instituições. Isso provocará reação, uma resposta social enorme. É um risco que o PSDB não quer correr porque ele não
tem condição de conter essas reações; e esse risco também não interessa ao PMDB, porque o partido está dividido. Então,
no fim das contas, as forças que poderiam produzir um golpe não têm mais interesse que ele aconteça, porque a convulsão
que ele vai provocar, à direita e à esquerda, não pode ser controlada nem pelo PSDB e nem pelo PMDB. Eles não têm
quadros e condições institucionais para controlar convulsões sociais.
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11
CULT: E o que daria as condições de governabilidade nesse possível contexto?
Marilena: Se houver golpe, a prática será a pura intimidação e a violência. Aquilo que a gente viu com os Atos
Institucionais. Um Ato Institucional poderia concretizar, por meio da polícia – já que o Exército não se misturará –, a
intimidação e a violência.
Marilena Chaui entre Juvenal Savian Filho e Laís Modelli / Foto Bob Sousa
CULT: Pensando na materialização da violência, que espaço resta ao diálogo nesse momento condicionado à
truculência?
Marilena: Nenhum. Vamos tomar o caso de São Paulo como exemplo. Há uma coisa muito interessante: quase ninguém se
dá conta de que o estado de São Paulo – o único estado realmente capitalista no Brasil, já que os outros são
semicapitalistas – é governado desde o final dos anos 1980 por um único partido político. Economicamente, São Paulo é um
estado capitalista, mas politicamente é uma capitania hereditária. Parece haver um contrassenso entre o conservadorismo
político e o desenvolvimento econômico. Mas é só na aparência que isso é contraditório, porque o conservadorismo político
é a base de sustentação desse tipo de desenvolvimento capitalista. Vejam o que acontece com o governador. Há o problema
da água, da luz, das escolas, da saúde – escândalos –, mas nada gruda no Geraldo Alckmin. Escorre. Isso acontece porque
ele representa o tipo de poder político do estado de São Paulo: forte e autoritário. A juventude sai às ruas e faz uma
manifestação? Polícia nos jovens, bate neles! O pessoal do transporte sai para se manifestar? Polícia neles, bate neles! Isso
é referendado pela sociedade paulista, não só a paulistana, que está de acordo e espera que isso seja feito. Esperaríamos
uma reação profunda, mas não é o que acontece. Eu me lembro de ter visto pela televisão estudantes algemados durante a
ocupação das escolas. Eu disse, “Meu Deus, não se algema estudante!”. Eles não só foram algemados, como isso foi dado
pela mídia como algo natural; e pela sociedade, como uma coisa necessária.
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12
Então nós temos a consagração, da maneira menos retórica possível, da violência estrutural da sociedade brasileira.
Não uma violência pontual, de modo que possamos falar em “ondas de violência”. Não. Há uma violência estruturante. É a
estruturação violenta de uma sociedade hierárquica, vertical, oligárquica, conservadora, que defende os privilégios contra
qualquer forma de direitos; é a mesma que dá a sustentação ideológica e política para a manifestação da violência
governamental. Essa violência governamental é a expressão da violência não só paulista e paulistana, mas brasileira, e é ela
que legitima essas ações. Se consideramos todo o ideário da burguesia e da alta classe média brasileira, vemos que
qualquer contestação, qualquer revolta é uma “crise”. A noção de crise está identificada por essa classe com a ideia de
desordem e perigo. Ora, diante da desordem e do perigo, o que é que se pede? Repressão. Cada vez que há uma luta por
direitos contra privilégios, essa luta é vista como violenta e precisa ser reprimida. Há, portanto, uma inversão ideológica
fantástica no Brasil: a violência é vista como ordem.
CULT: A senhora ainda acredita na desobediência civil?
Marilena: Eu acho necessária! Outro dia um colega me disse: “Marilena, você tem que levar em conta que a juventude que
tinha 13, 14 anos em 2000 só conhece o PT como governo, não conhece a história do PT como movimento social e sindical,
como presença contestadora e de desobediência civil no interior da ordem brasileira”. Isso quer dizer que a figura do PT se
apagou e sobrou somente esse pedaço, esse triste pedaço que é o PT no aparelho de Estado.
Seria preciso lembrar, por exemplo, a criação do CEDEC [Centro de Estudos de Cultura Contemporânea]. Existia no
Brasil o CEBRAP [Centro Brasileiro de Análise e Planejamento], que era dirigido pelo Fernando Henrique Cardoso. O
Francisco Weffort, em 1976, disse que o CEBRAP era muito economicista e que precisávamos de um centro que pensasse as
questões políticas e sociais. Reunimo-nos, então, o Francisco Weffort, o José Guilhon de Albuquerque, o José Álvaro Moisés,
o Lúcio Kowarick e eu, criamos o CEDEC. A Sociologia, a Ciência Política e a História explicavam (e ainda explicam) o Brasil
sempre a partir do aparelho de Estado. A História do Brasil era contada como história das mudanças no aparelho de Estado
e das decisões tomadas pelo Estado. O Estado aparecia como o sujeito histórico, político e econômico, como se não existisse
uma sociedade nem uma luta de classes. O CEDEC propôs inverter esse processo e lembrar que a sociedade brasileira
existe, com os movimentos sociais e populares. Era o momento em que surgia o Movimento dos Sem Terra, o movimento
feminista, o movimento sindical. Os movimentos começavam a se organizar; os sindicatos criam as comissões de fábrica no
ABC e fazem as greves. É desse momento histórico que nasce o PT. Nós surgimos da ideia de que a história do Brasil e a
sociedade brasileira não são feitas pelo aparelho de Estado e de que o Estado não é o sujeito social. Existe a luta de classes
e é no interior do conflito que se criam as bases da democracia. O PT se originou, então, de atos de desobediência civil. Mas
isso os jovens não sabem, porque eles só conhecem o PT como um partido institucionalmente posto, envolvido nas questões
do Estado e governamentais, como se isso desse conta de toda a história do PT.
É isso que permite entender também por que jovens de esquerda querem outras opções, em vez de ligar-se ao PT.
Proliferam os pequenos partidos de esquerda porque toda a história social e política ficou encolhida nesses últimos quinze
anos. Isso também explica o quanto nós do PT ficamos despreparados na hora em que surgiu o atual golpe. Imagine o PT
do qual eu venho, o PT dos anos 1980 e 1990… Ele não teria aceitado minimamente aquilo que iria desencadear o golpe.
Ele nem permitiria que isso sequer aflorasse. Muito do que estamos vendo em termos de pauta conservadora na política
está ligado ao encolhimento de tudo aquilo que representa uma pauta de esquerda.
CULT: A esquerda tornou-se obediente?
Marilena: Sim, claro. O PT ficou desarmado no momento em que teria de tomar uma posição pública e esclarecer as
coisas. Agora, de um lado temos o Eduardo Cunha, com as igrejas evangélicas, e, do outro, o Alckmin, com a Opus Dei. É
demais da conta! Eu venho de uma tradição em que a grande aliança era sustentada pela Teologia da Libertação e as
Comunidades Eclesiais de Base. Ver os cristãos perdidos entre os evangélicos e a Opus Dei é demais; é insuportável para a
minha cabeça porque eu vi a outra experiência que o cristianismo é capaz de ter e que teve na América Latina inteira.
CULT: A senhora interpreta a frase “Meu partido é meu país”, comum nas manifestações de 2013, como a
manifestação de um desejo de algo novo ou como uma frase conservadora?
Marilena: “Meu partido é meu país” é uma frase nazista. Ela nasceu na luta contra a social-democracia, sobretudo quando
o nazismo se opõe à República de Weimar e leva a pensar que os partidos políticos roubam ou tomam para si as ações
políticas que caberiam exclusivamente ao governante. O governante aparece, então, como o chefe. É dele que deve
emanar, transcendentemente, toda a decisão política. Desse ponto de vista, se os partidos políticos usurpam uma função
que não é deles, é preciso eliminá-los. Daí a ideia de que “meu partido é meu país”.
CULT: Falando de encolhimento da pauta de esquerda, como a senhora interpreta a ação de setores do
movimento estudantil que consideram os docentes como inimigos ou representantes do capital? É delicado
tocar nesse ponto, porque não se trata de ser contra o movimento estudantil. Mas entender a universidade
como espaço de tensão entre estudantes, servidores (técnicos) e docentes não é também uma forma de
violência ou de exclusão de diferenças?
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Marilena: Há algo que marca com força a história da política de esquerda no Brasil: é o fato de que, periodicamente,
vindos da baixa classe média ou da classe média, há grupos que se apropriam do marxismo e do leninismo e se apresentam
como revolucionários. Na verdade, o encolhimento do espaço público e de tudo o que ele representa alimenta pequenas
formas privatizadas do pensamento de esquerda, dando origem a pequenos movimentos e pequenos partidos. Não vou
nomear nenhum deles, mas estou apontando para a origem deles, a maneira pela qual eles privatizam um ideário. Isso
significa, em primeiro lugar, fazer com que esse ideário não apareça como um ideário em expansão, mas como um ideário
de exclusão. Esses partidos e movimentos se fecham sobre si mesmos, porque a condição de sobrevivência deles está na
recusa de qualquer inclusão e de qualquer ampliação. Eles se mantêm pela sua pequeneza e pelo fato de que eles excluem
tudo o que não se restrinja a uma pauta mínima produzida por eles mesmos. É uma mescla da vulgata marxista, da vulgata
leninista e do stalinismo puro, simples e cru. É mais do que uma coisa reacionária, é uma vertente totalitária. E é por essa
maneira totalitária, privatizada e excludente de se organizar que esses grupos encaram todo o restante como inimigo que
precisa ser destruído. O outro não é inimigo por causa disso ou daquilo. Ele é inimigo porque simplesmente é outro. É a
mesma lógica de Carl Schmitt, incorporada por grupos pretensamente de esquerda.
“Você conversa com alguém da direita e vê que ele é
capaz de dizer quatro frases contraditórias e sem perceber
as contradições. Você conversa com alguém da extrema
esquerda e vê o totalitarismo que também opera com a
ausência do pensamento.
Então nós estamos
ensanduichados entre duas maneiras de recusar o
pensamento.” / Foto Bob Sousa
CULT: A senhora sabe que um curso seu, de leitura
rigorosa
da Ética de
Espinosa,
seria
hoje
considerado, em alguns contextos, como um
trabalho burguês, não sabe?
Marilena: Eu sei!
CULT: Então, por que a cultura erudita ou o
pensamento é associada por alguns movimentos a
uma prática burguesa?
Marilena: O pensamento é associado à prática burguesa
porque esses movimentos operam pela ausência de
pensamento. Estamos em uma situação aterradora: do
lado da direita e da esquerda há ausência de pensamento.
Você conversa com alguém da direita e vê que ele é capaz
de dizer quatro frases contraditórias e sem perceber as
contradições. Você conversa com alguém da extrema
esquerda e vê o totalitarismo que também opera com a
ausência do pensamento.
Então nós estamos
ensanduichados entre duas maneiras de recusar o pensamento. Lá onde o pensamento estiver se exercendo, ele receberá
mil e um nomes, e como para esse pessoal de esquerda xingar é chamar de burguês, eles tratam a cultura erudita como
coisa de burguês. Mas se você perguntar o que é a burguesia e o que é o capital, se pedir uma explicação, verá que eles
não sabem muita coisa; apenas repetem um chavão. Nesses grupos há uma coisa muito parecida com o que acontece nas
igrejas evangélicas: uma teologia e uma lavagem cerebral. É um esvaziamento de qualquer capacidade de pensamento. Não
é por acaso que dos dois lados o exercício da violência é igual, e vai da violência verbal à física, à exigência de sangue.
Quando o João Grandino Rodas foi reitor da USP e houve a segunda ocupação da reitoria, nós, professores, fomos negociar
com os alunos e com a própria reitoria, e os alunos finalmente aceitaram desocupar. Veio então um membro desses
pequenos partidos de esquerda e disse: “Ninguém sai; nós queremos ver sangue”. Por que ele queria ver sangue? Porque
ele achava que ganharia poder pela destruição física do outro – uma destruição que não é nem política, nem social.
CULT: Há um encolhimento da capacidade humana de refletir e fazer escolhas ponderadas? Tanto do lado da
polícia como do de certos grupos de esquerda…
Marilena: Eu entendo isso com Espinosa. O que há nos seres humanos? Há paixões. A maneira como entendemos o
mundo, a nós mesmos e aos outros é dada pela maneira como o mundo e os outros nos afetam. Eles causam em nós a
sensação de perigo ou de aumento da nossa capacidade de viver. Se tudo o que se passa em mim é produzido pela maneira
como o que está fora age sobre mim, eu sou passiva e todos os meus sentimentos são apenas paixões: o amor, a
esperança, o ciúme, a misericórdia, a honra, a glória etc. O que eu sinto é pura e simplesmente uma reação passiva ao que
vem de fora.
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14
Ao contrário, se eu tenho força interior para saber que eu posso ser a causa dos meus sentimentos e, que se sinto
raiva de você, não é por sua causa, mas por aquilo que eu sinto com relação ao que eu penso a seu respeito, então me vejo
como a causa da raiva que sinto por você, em função do modo como eu penso em você ou percebo você. A partir do
momento em que eu sou capaz de me reconhecer como causa dos meus sentimentos, eu sou ativa e descubro que não
tenho de responsabilizar os outros por aquilo que se passa em mim. Se eu for passiva, nunca serei livre; tudo o que eu fizer
será determinado pelo que os outros exigem de mim; e, mesmo que eles não façam nenhuma exigência, eu sinto como uma
exigência. Então só obedeço ao que eu imagino que seja o desejo do outro. Ao contrário, se é o meu desejo que determina
o que eu vou fazer e como vou fazer, eu sou livre.
Dessa perspectiva, o que é a violência? É aquilo que se passa inteiramente no campo das paixões, porque é lá que os
desejos entram em conflito. Se eu me entregar a elas, faço o meu desejo valer destruindo o desejo do outro; e o outro faz a
mesma coisa: ele acha que, para existir, deve dobrar o meu desejo, deve se apropriar de mim e me dominar física e
psicologicamente, pela manipulação dos desejos e sentimentos, pela ideologia, por um série de manipulações sociais,
amorosas etc. Pense no caso da violência policial: é a força física pura e simples. Um policial não é capaz de tomar uma
decisão em que ele enfrentaria uma ordem recebida, dizendo, por exemplo: “Puxa vida, um filho meu poderia estar entre os
manifestantes…”. Mas isso não acontece só porque ele recebeu uma ordem. É porque essa ordem constitui o modo como
ele é, pensa e opera. Ele encarna essa ordem, é o portador dela e opera em um contexto de pura paixão. Essa é uma
análise puramente psicológica. É preciso pensar também em termos sociais: o policial encarna a repressão; ele a realiza em
nome da ordem, da paz e da segurança. Psicologicamente, ele não é capaz de deliberar sobre como poderia agir diante de
manifestantes que gritam por direitos e denunciam privilégios, porque ele é, naquele instante, pura paixão. Social e
institucionalmente, ele só existe como policial porque recebe, cumpre ou dá uma ordem. A polícia existe, então, como
instituição social garantidora de determinados privilégios de classe. Trata-se do embate entre o direito e o privilégio. Esse
embate se realiza, na sociedade brasileira, por meio da violência.
CULT: A senhora diria que o movimento de ocupação das escolas foi um bom uso político das paixões?
Marilena: Um excelente uso…
CULT: E que diferença a senhora vê entre esse movimento e o das ruas de 2013?
Marilena: Em 2013, o movimento foi algo inesperado. Pouco antes das manifestações, eu estava dando um seminário na
faculdade e ouvi um tambor pelos corredores. Me falaram: “É o movimento do Passe Livre, que está convocando uma
reunião”. Havia só uns 30, 40 gatos pingados. Até que eles puseram nas redes sociais e aconteceu aquela movimentação
toda. Mas na primeira manifestação tinha de tudo. Era um evento com a motivação mais diversa possível. Não estou
dizendo que era um movimento totalmente despolitizado, mas que tinha um pequeno conteúdo determinado pelo grupo do
Passe Livre, ao qual se juntaram outras formas de descontentamento. Foi estarrecedor ver que, na segunda manifestação,
quando a juventude começou a comemorar, levando bandeiras do PT, do PSTU, do PSol, do movimento dos sem teto,
apareceram jovens embrulhados na bandeira do Brasil, atacando, espancando e ensaguentando os manifestantes de
esquerda. Assim, em lugar do conflito democrático, passou-se ao combate violento e à agressão ao adversário. Mas algo
curioso aconteceu: construiu-se um sentido político para toda aquela movimentação. A própria mídia, que falava dos
“vândalos” das primeiras manifestações, depois passou a falar de “manifestantes”. Houve uma construção política de uma
manifestação que não existiu realmente como algo político. Ninguém prestou atenção nisso! Eu procurei falar do assunto e
fui violentamente agredida, mesmo pela esquerda. Disseram que eu não tinha entendido o momento histórico. Mas fizeram
mais: pegaram a afirmação que eu fiz sobre o caráter fascista dos jovens vestidos com a bandeira e disseram que eu havia
considerado todas as manifestações como fascistas. Na época das eleições, o Fernando Gabeira chegou a escrever um
artigo de uma página inteira no jornal O Globo contra mim, afirmando que, na minha opinião, a presença do povo na rua
era fascismo. O que eu tinha dito era: houve um momento fascista nessas manifestações e ninguém está prestando atenção
nisso. Aí, quando começaram os panelaços de 2015, ficou evidente o que eu queria dizer. O que veio a seguir? Veio a
demanda de retorno da ditadura, a presença da TFP [Grupo de extrema direita intitulado Tradição, Família e Propriedade] e
a afirmação da pauta conservadora dos 3Bs.
CULT: Na verdade, em 2013, a senhora previu, em entrevista à CULT, que no Brasil iriam acontecer panelaços
parecidos com os da Argentina.
Marilena: Fui a única. Eu não sei por que as pessoas – algumas delas inclusive feridas por 1964 e 1968 muito mais do que
eu, como o próprio Gabeira – não se deram conta do que estava vindo. Não sei se eu conseguia ver porque presto muita
atenção no Brasil como uma sociedade violenta e autoritária… Não sei se é por isso, mas eu fiquei muito surpresa ao
perceber que muita gente de esquerda não percebia o que estava se montando e que junho de 2013 não era maio de 1968.
Maio de 1968 foi a ocupação das escolas agora. Isso foi maio de 68.
CULT: Por quê?
Marilena: Porque, no caso da ocupação das escolas, há, em primeiro lugar, um movimento de inclusão e ampliação. A
marca dos movimentos realmente libertadores é sempre a inclusão e a ampliação. Em segundo lugar, pelo fato de que ele
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15
foi se dando à maneira do que, no meu tempo, se conhecia como “greve pipoca”. Em uma fábrica, por exemplo, às seis
horas da manhã, um setor para por 40 minutos. Durante o tempo em que ele parou, outros três ou quatro setores não
conseguiram funcionar. Então, aquele primeiro setor volta a funcionar, mas, daí, em outra ponta, outro setor para por 40
minutos. Tudo o que está em volta não funciona.
Assim, sobretudo quando a greve era proibida, ia pipocando paralisação, de modo que as instituições (uma fábrica,
uma escola etc.), mesmo sem parar, ficavam inteirinhas paralisadas. Nos lugares estratégicos pipocava a paralisação. Foi
assim que a ocupação das escolas seguiu o princípio da greve pipoca. Quando os administradores da educação achavam
que iam resolver a ocupação de uma escola, começava na outra; quando eles iam resolver nessa outra, começava em outra.
Ou seja, ela foi pipocando até o instante em que parou tudo.
Além disso, a maior diferença entre a ocupação das escolas e o movimento de 2013 é que a paralisação aconteceu no
interior de uma instituição pública e social para a garantia do caráter público dessa instituição. Não foi um evento em favor
disso ou daquilo; foi uma ação coletiva de afirmação de princípios políticos e sociais. Os dois grandes princípios foram,
primeiro, o princípio republicano da educação – a educação é pública; segundo, o princípio democrático da educação – a
educação é um direito. A ação dos estudantes e professores foi tão significativa porque eles disseram: “O espaço da escola
é nosso. Somos nós, alunos e professores, que somos a escola”. Então, foi a “integração de posse” das escolas pelos alunos
e professores. É gigantesco o fato de alguém no Brasil pensar que algo público é nosso! É diferente das ocupações de
reitorias, em que os estudantes dizem: “Nós somos contra isso que o reitor fez…” Agora, os estudantes disseram: “Esse
lugar, essa instituição é pública; ela é nossa e não vamos sair daqui”.
Eles se posicionaram contra algo típico do neoliberalismo – posto em prática, sob certos aspectos, no decorrer da
Ditadura e, depois, explicitamente nos governos Fernando Henrique Cardoso: a ideia de que um direito social e político é
aquilo que pode ser transformado em serviço e comprado no mercado. As pessoas falam das privatizações como se elas
fossem apenas a da Vale e das grandes empresas… É isso também, mas o núcleo da privatização está em outro lugar, está
na transformação de um direito social em serviço que se compra e vende no mercado. Isso foi feito com a educação, com a
saúde, com o transporte, com todos os direitos sociais. E, em São Paulo, com grandes baterias, isso foi feito. Os estudantes
mostraram que a escola pública não é mercadoria; fizeram uma ação republicana e democrática de um alcance incrível. Eu
só vi algo parecido, em termos de configuração social no Brasil, nas greves de 1978 e 1979 no ABC. Por quê? Não pela
repercussão, mas pelo sentido que elas tiveram.
Pensem no fato de que, durante as ocupações, só foram chamados para dar entrevistas cientistas políticos, sociólogos,
historiadores, mas nenhum professor ou estudante das escolas ocupadas! Nenhum professor ou estudante foi considerado
capaz de explicar o que se passava. Só se ouviu gente que estava fora das salas de aula e que vinha explicar falando
disparates. Quando a mídia entrevistava algum estudante, só perguntava coisas do tipo: “O que você sente? Do que você
gosta e não gosta? O que você quer?”. Ou seja, ficava no nível puro e simples do sentimento, não do pensamento. Apesar
disso, a palavra deles chegou à sociedade por outras vias; e isso mostra o tamanho da ação que eles realizaram. Houve
uma solidariedade que há muitos e muitos anos não se via no estado de São Paulo inteiro. Por fim, as ocupações deixaram
claro o motivo de fechar as escolas. Em um país como o nosso, não se fecha escola; se abre. Mas o governador de São
Paulo queria os terrenos para uma exploração imobiliária gigantesca.
E para fazer o quê? Para fazer fundo de campanha. É claro que agora o Geraldo Alckmin vai tentar fragmentar tudo e
implantar devagarzinho o seu projeto. Hoje essa escola, amanhã aquela. Não sei se ele vai conseguir, mas vai tentar. Como
o Ensino Fundamental é praticamente todo municipal, o Ensino Médio é estadual e, de um modo geral, o Ensino
Universitário é responsabilidade federal, essas instâncias operam de modo fragmentado; e isso permite tentativas de
reestruturação como as de São Paulo e de Goiás. De todo modo, os estudantes revelaram que a ideia de fechar uma escola
não significava fechar uma escola, significava vender um terreno. Portanto, eles denunciaram o caráter corrupto da suposta
política de reestruturação escolar.
CULT: Como a senhora vê o atual momento da economia brasileira?
Marilena: No primeiro ministério montado pela presidente Dilma, enfatizou-se, por um lado, a crise internacional em que o
elemento financeiro é decisivo, e, por outro, o fato de haver, no Brasil, uma disputa entre a indústria, o comércio e o setor
agrário. A Dilma pôs representantes desses setores no governo e deu a eles a responsabilidade de resolver o conflito. Um
banqueiro junto com o agronegócio. Eles não resolveram. Não sei se a presidente foi maquiaveliana, mas ela parecia prever
que eles fracassariam e que o fracasso mostraria para onde o barco deve ir. Então, o que ela está fazendo agora? Ao
chamar o principal assessor do Guido Mantega, ela sinaliza claramente que vai retomar a política de desenvolvimento e
crescimento econômico, a começar pelo aumento do salário mínimo. É claro que há uma crise internacional gigantesca e
que vai pegar os membros do BRIC. Já pegou a China, está pegando a Índia; a situação vai complicar. Mas, de todo modo,
a opção agora é a do desenvolvimento. Sem desenvolvimento e crescimento não se faz, efetivamente, a política dos
programas sociais. Se não há mudança no mercado de trabalho com aumento do emprego e da escolaridade, a manutenção
dos programas sociais vira assistência.
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“A ação dos estudantes e professores foi tão significativa porque eles disseram: ‘O espaço da escola é nosso. Somos nós,
alunos e professores, que somos a escola’. ” / Foto Bob Sousa
CULT: Como a senhora entende a crítica da classe média alta e de alguns economistas que afirmam ser o
Brasil um país protecionista e que faz pouco investimento?
Marilena: O grito contra o protecionismo é o grito da direita. São os republicanos nos EUA, o Le Pen na França, o pessoal
da Alemanha. O que eles entendem por fim do protecionismo? Um “liberou geral”, um capitalismo “adulto”. A ideia de que o
Estado intervenha é o que eles chamam de protecionismo. Mas se o Estado não limitar a ação do capital, cai-se na barbárie.
Com relação ao investimento, a gente sabe que o Estado brasileiro investe. Há dados inacreditáveis. Na verdade, não são
inacreditáveis se conhecermos bem a burguesia brasileira. Vejam: o BNDES liberou todos os recursos possíveis para os
empresários brasileiros, mas eles não investiram; eles puseram tudo nos bancos, nas ilhas Cayman, em Miami, onde
quiseram. Em vez de investir no país, o dinheiro do BNDES foi parar no setor financeiro fora do Brasil. E daí se diz que o
país não investe! Eu adoro a burguesia brasileira. Quando ela disse “quero café”, foi ótimo. No mundo inteiro, quem vai
plantar café constrói estrada de ferro para levar o café até os pontos de distribuição. Aqui no Brasil, porém, é o Estado que
tem de construir estradas de ferro. A burguesia só plantava o café. Se ela precisa de porto, no mundo inteiro ela constrói
portos. Aqui não. É o Estado que tem de construir o porto para a burguesia mandar o café. A burguesia quer industrializar,
mas é o Estado que tem de fornecer eletricidade. A burguesia brasileira mama nas tetas do Estado desde que ela nasceu. E
tem a ousadia de se colocar contra os programas sociais, quando ela depena o Estado sistematicamente.
CULT: Recentemente, a senhora afirmou que o Bolsa Família fez pelas mulheres o que seis décadas de
feminismo no mundo não conseguiu…
Marilena: Esses dados estão consagrados em um livro feito pela Walquíria Leão Rego sobre o Bolsa Família ( Bolsa Família:
autonomia, dinheiro e cidadania, em coautoria com Alessandro Pinzani, Editora da UNESP). O que ela mostrou? Primeira
coisa: como o dinheiro vai para as mulheres, elas foram transformadas em chefes de família. Na tradição brasileira, o
dinheiro costuma ir para o homem, e só uma parte vai para a família; a outra parte vai para os gastos pessoais dele. Com o
Bolsa Família, quebra-se o monopólio masculino sobre a administração da casa. Em segundo lugar, as mulheres passaram a
cuidar mais de si mesmas. Juntando o dinheiro do Bolsa Família com os serviços do SUS, por exemplo, elas fizeram diminuir
o número de doenças femininas. Finalmente, elas têm participado mais de atividades públicas, filiaram-se a movimentos
sociais e criaram cooperativas. Há uma quantidade enorme de cooperativas criadas pelas mulheres com o que sobra do uso
do dinheiro do Bolsa Família.
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CULT: Qual seria o papel do Estado na promoção da igualdade e dos direitos das mulheres?
Marilena: A função do Estado não é a de promover. Ele tem de reconhecer os direitos das mulheres e decretá-los. Sua
função é consignar na lei, institucionalmente, aquilo que os movimentos das mulheres exigem e produzem, mas essa ação é
social. A política se faz pela sociedade. O Estado brasileiro precisa parar de agir como se não houvesse uma sociedade. A ele
cabe salvaguardar tudo o que há de republicano e democrático nas ações políticas da própria sociedade. Mais do que
promover, o Estado tem de garantir.
JUVENAL SAVIAN é professor de História da Filosofia da UNIFESP. LAÍS MODELLI é repórter da revista CULT. Revista CULT,
Fevereiro de 2016.
A ENGRENAGEM DO TERROR - Cinco conflitos entrelaçados (PIERRE CONESA)
O entusiasmo quase unânime dos líderes políticos pela “guerra” traduz um grave desconhecimento da realidade do
terreno. Decidido em 2014, depois da tomada de Mossul e na emoção suscitada pelas decapitações, o engajamento
militar ocidental acrescenta uma quinta camada a uma sobreposição de conflitos que inflamam o terri.
EM 1979, a Revolução Iraniana instaurava um regime político oficialmente “islâmico”, mas na realidade
exclusivamente xiita. Ela revivia assim uma lenta sedimentação, na qual o conflito ancestral entre sunitas e xiitas representa
a primeira camada. Quando, depois da tomada de poder em Teerã, o aiatolá Ruhollah Khomeini pediu uma gestão coletiva
dos locais santos do islã, o desafio se mostrou insuportável para a Arábia Saudita. Um ano antes de encontrar a morte perto
de Lyon, depois dos atentados de 1995 na França, o jovem jihadista Khaled Kelkal declarava ao sociólogo alemão que o
interrogava: “O xiismo foi inventado pelos judeus para dividir o islã”. 1 Os wahabitas sauditas têm o velho hábito de
massacrar os xiitas, como testemunha desde 1802 a tomada de Kerbala (hoje no Iraque), que se traduz pela destruição de
santuários e túmulos, entre eles o do imã Hussein, e o assassinato de diversos habitantes.
Essa “guerra de religião” esfacela atualmente sete países da região: Afeganistão, Iraque, Síria, Paquistão, Líbano,
Iêmen e Bahrein. Ela surge esporadicamente no Kuwait e na Arábia Saudita. Na Malásia, o xiismo está oficialmente banido.
Na escala planetária, os atentados mais aleatórios, como os cometidos durante as peregrinações, matam dez vezes mais
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muçulmanos do que não muçulmanos, e os três países mais atingidos são Afeganistão, Iraque e Paquistão. A oumma, a
comunidade dos crentes, que os salafistas jihadistas pretendem defender, recobre hoje um gigantesco espaço de
enfrentamentos religiosos. Nesse contexto, compreendemos por que Riad mobiliza bem mais facilmente seus aviões e suas
tropas contra os hutis do Iêmen, assimilados aos xiitas, do que para prestar socorro ao regime pró-xiita de Bagdá. Não
entendemos por que os ocidentais deveriam tomar partido nessa guerra, e com que legitimidade.
A segunda guerra é a dos curdos para se tornarem mestres de seu destino, em particular contra o Estado turco. Ela
surgiu em 1923, nos escombros do Império Otomano, com o Tratado de Lausanne, que dividia o Curdistão entre os quatro
países da região: Turquia, Síria, Iraque e Irã. As diversas revoltas que abalaram o Curdistão turco entre 1925 e 1939 foram
todas esmagadas por Mustafa Kemal Ataturk. Desde os anos 1960, todos os levantes, na Turquia, no Iraque e no Irã, foram
afogados no sangue, diante da indiferença da comunidade internacional. Desde 1984, essa guerra causou mais de 40 mil
mortes na Turquia, onde 3 mil vilarejos curdos foram destruídos, com um custo estimado em cerca de US$ 84 bilhões. 2
Ninguém deveria se surpreender com o fato de que Ancara tenha deixado afluir os candidatos jihadistas para as duas
principais forças nas quais eles se reconhecem, a Frente Al-Nusra e a Organização do Estado Islâmico (OEI), já que elas
combatem os curdos do Iraque e principalmente da Síria, muito próximos dos da Turquia. Principal ameaça para Ancara, o
Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) continua classificado como grupo terrorista pela União Europeia e pelos
Estados Unidos, e não pode receber ajuda militar ocidental. Único país da região a pertencer à Organização do Tratado do
Atlântico Norte (Otan) e a ter a capacidade de modificar a situação militar no campo, a Turquia acabou por se unir à
coalizão. Mas ela concentra seus meios na retomada dos enfrentamentos com o PKK e não vê com bons olhos os curdos do
Iraque e da Síria que conquistam uma independência de fato.
Terceira guerra em andamento: a que divide os islamitas entre si desde a Guerra do Golfo (1990-1991) e ainda mais
desde as revoltas árabes. A rivalidade mais conhecida opõe a Irmandade Muçulmana, apoiada pelo Catar, e os salafistas,
apoiados pela Arábia Saudita, no Egito, na Líbia e na Tunísia. Mais nova é a concorrência entre, por um lado, a Al-Qaeda e
suas derivações e, por outro lado, os companheiros de Abou Bakr al-Baghdadi, o chefe da OEI. Ao longo dos primeiros
meses de 2014, estes últimos sobrepujaram a Frente Al-Nusra, filial local da Al-Qaeda na Síria, ao custo de mais de 6 mil
mortes.3 A proclamação do “califado” suscitou diversas passeatas. Os combatentes estrangeiros da OEI provêm de uma
centena de países. Ao designar Al-Baghdadi como seu inimigo principal, os países ocidentais orientam de maneira decisiva a
mobilização dos jihadistas para seu lado. Enfim, uma das guerras mais assassinas, que fez cerca de 250 mil mortos e
milhões de refugiados, é a conduzida pelo presidente sírio, Bashar al-Assad, contra todos os seus oponentes.
Quinze no Iraque, cem no Iêmen
A batalha à qual se entregam os ocidentais aparece como um novo episódio de uma guerra muito mais antiga, com
uma autojustificativa histórica insuportável para as populações da região. Seria preciso voltar aos Acordos de Sykes-Picot e à
partilha colonial da região entre a França e o Reino Unido sobre as ruínas do Império Otomano? Seria preciso retornar a
Winston Churchill, então secretário de Guerra do Reino Unido, mandando destruir cidades e vilarejos curdos –
bombardeados com o gás químico iperita – e matar dois terços da população da cidade curda de Souleimanye, ou
reprimindo violentamente os xiitas iraquianos entre 1921 e 1925? Como esquecer a Guerra Irã-Iraque (1980-1988), na qual
ocidentais e soviéticos apoiaram o agressor (Bagdá) e impuseram um embargo ao agredido (Teerã)? Barack Obama é o
quarto presidente norte-americano a enviar bombardeiros ao Iraque, país já ferido por 23 anos de ataques militares
ocidentais. Desde o fim da invasão norte-americana (2003-2011), cerca de 120 mil civis foram mortos.4 Em 2006, a revista
médica The Lancet estimava o número de mortes imputadas à guerra em 655 mil, uma catástrofe demográfica se somarmos
as 500 mil mortes causadas pelo embargo internacional, entre 1991 e 2002. Segundo as palavras da ex-secretária de Estado
Madeleine Albright, em 12 de maio de 1996, no canal CBS, isso “valia a pena”.
Hoje, por que os ocidentais intervêm contra a OEI? Para defender princípios humanistas? É possível duvidar disso
quando constatamos que três países da aliança continuam a praticar a decapitação, a lapidação e a cortar as mãos dos
ladrões: o Catar, os Emirados Árabes Unidos e – muito acima dos dois primeiros – a Arábia Saudita. A liberdade religiosa?
Ninguém ousa exigi-la de Riad, onde um tribunal de segunda instância acaba de condenar à morte um poeta palestino por
apostasia.5 Trata-se então de impedir os massacres? A opinião árabe tem dificuldade em acreditar nisso quando, dois meses
após os 1,9 mil mortos pelos bombardeios israelenses em Gaza, que haviam deixado as capitais ocidentais estranhamente
indiferentes, a decapitação de três ocidentais bastou para levá-los a atacar o norte do Iraque. “Mil mortos em Gaza, e
ninguém faz nada; três ocidentais degolados, e mandam o Exército!”, denunciava um site salafista francófono. Pelo
petróleo, então? A maior parte dos combustíveis da região vai para os países da Ásia, totalmente alheios à coalizão. Para
estancar o afluxo de refugiados? Mas, neste caso, como aceitar que os riquíssimos Estados do Golfo não acolham nenhum?
Para proteger os “direitos humanos” defendendo a Arábia Saudita? Riad acaba de demonstrar sua concepção inovadora
desses direitos ao condenar Ali al-Nimr, um jovem manifestante xiita, a ser decapitado e crucificado para que depois seu
corpo fosse exposto publicamente até apodrecer.6
No plano militar, as contradições são ainda mais evidentes. Hoje, apenas os aviões ocidentais realmente bombardeiam
a OEI. Os Estados Unidos empregam cerca de quatrocentos aviões, e a França, uns quarenta, dentro da operação
“Chammal”, com a chegada do porta-aviões Charles de Gaulle.7 A Arábia Saudita dispõe de cerca de quatrocentos aviões de
combate, mas só utiliza uns quinze no Iraque, ou seja, o mesmo que a Holanda e a Dinamarca reunidas. Por outro lado, no
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Iêmen, cerca de uma centena de aviões sauditas participam dos bombardeios da coalizão dos dez países árabes sunitas
contra os hutis (xiitas), organizada por Riad. Dez países árabes contra os xiitas do Iêmen, cinco contra a OEI: estranho
desequilíbrio! E é realmente contra os hutis que Riad mobiliza todas as suas forças, e não contra a Al-Qaeda na Península
Arábica (AQPA), da qual se reivindicava pertencente Cherif Kouachi, o autor dos atentados contra o Charlie Hebdo em Paris.
O antigo diretor da CIA David Petraeus qualificava a organização como o “ramo mais perigoso” da nebulosa de mesmo
nome, e ela tomou o controle de Aden, a segunda maior cidade do Iêmen.
A partir de agora, a OEI atingiu três objetivos estratégicos. Em primeiro lugar, ela aparece como defensora dos sunitas
oprimidos na Síria e no Iraque. Suas vítimas são em 90% dos casos muçulmanas. No Afeganistão, no Iraque, na Síria e no
Paquistão, as vítimas dos atentados são primeiro os xiitas, depois os “maus muçulmanos” – em particular os sufis – e os
representantes dos regimes árabes e, em último lugar somente, membros de minorias religiosas ou ocidentais. Além disso,
a OEI conseguiu deslegitimar a Al-Qaeda e seu ramo local na Síria, a Frente Al-Nusra. Os chamados do sucessor de Osama
bin Laden, Ayman al-Zawahiri, notificando Al-Baghdadi para se submeter à sua autoridade, traduzem uma impotência
patética. O somatório das deserções no seio dos grupos jihadistas mostra a nova dinâmica criada pela OEI.
Califa deverá desafiar a Arábia Saudita
Por fim, a OEI se tornou o inimigo número um do Ocidente. Este deu início a uma “cruzada” contra ela, sem dizer esse
nome, mas que pode facilmente ser apresentada como tal pelos propagandistas do jihad. A operação norte-americana
“Inherent Resolve” (“Determinação Absoluta”) reúne principalmente doze países da Otan (mais a Austrália), e a aliança
restabelecida com a Rússia reforçará ainda mais o caráter de “frente cristã” que a propaganda da internet sabe utilizar tão
bem. Segundo uma petição on-line assinada por 53 membros do clero saudita, os ataques aéreos russos visavam
“combatentes da guerra santa na Síria” que “defendem a nação muçulmana em sua totalidade”. E, se os combatentes forem
vencidos, “os países do islã sunita cairão todos, uns após os outros”.8
A contraestratégia militar dos sauditas não deixa nenhuma ambiguidade no ar: ela é essencialmente orientada em sua
luta contra os xiitas. Riad, como as outras capitais do Conselho de Cooperação do Golfo, não pode considerar a OEI a
principal ameaça, sob pena de se ver contestada por sua própria sociedade. A intervenção militar saudita no Bahrein em
2012 visava quebrar o movimento de contestação republicano, principalmente xiita, que ameaçava a monarquia sunita dos
Al-Khalifa. No Iêmen, a operação “Tempestade Decisiva”, lançada em março de 2015, visava restabelecer o presidente
Mansur al-Hadi, deposto pela rebelião huti. Evidentemente, para Riad está fora de questão enviar sua infantaria contra a
OEI enquanto 150 mil homens são empregados na fronteira com o Iêmen.
No entanto, o próximo objetivo da OEI deveria ser conquistar a legitimidade religiosa de seu “califa”, que se
autodenominou “Ibrahim (Abrahão) al-Muminim (“comandante dos crentes”, título da época abássida) Abu Bakr (nome do
primeiro califa) al-Baghdadi al-Husseini al-Quarashi (nome da tribo do Profeta)”. Uma verdadeira competição foi iniciada
contra a outra potência que pretende encabeçar a oumma e representar o islã: a Arábia Saudita está sendo de agora em
diante contestada no terreno. Para ganhar, Al-Baghdadi deve desafiar o “defensor dos locais santos”. Podemos então pensar
que no fim, uma vez que todas as zonas xiitas forem reduzidas, o “califa” vai mirar a Arábia Saudita.
Quais são as prováveis consequências para a Europa? Depois dos refugiados afegãos, iraquianos e sírios, ela deve
rapidamente ver a chegada dos refugiados do Iêmen. País mais populoso do que a Síria, ele não pode evacuar seus
habitantes para os países fronteiriços, todos membros da coalizão que o bombardeia. Desde 2004, a guerra já fez mais de
340 mil deslocados, dos quais 15% vivem em campos, segundo o Escritório de Coordenação nos Casos Humanitários das
Nações Unidas. Além disso, o Iêmen acolhe 246 mil refugiados, 95% deles somalianos. Os países do Conselho de
Cooperação do Golfo mostrarão o mesmo egoísmo que durante o êxodo sírio, quer dizer, nenhum lugar oferecido aos
refugiados. Resta então a Europa.
Compreendemos melhor por que a aliança faz uma guerra para a qual não pode fixar um objetivo estratégico claro:
cada um de seus aliados está em conflito com outro. As intervenções no Iraque, na Síria, no Mali ou no Afeganistão se
parecem com o tratamento de metástases; o câncer salafista tem seu lar nos países do Golfo, protegidos pelas forças
ocidentais. Pode-se destruir a OEI sem reforçar outros movimentos jihadistas, o regime de Al-Assad ou Teerã? A guerra será
longa e impossível de ganhar, pois nenhum dos aliados regionais enviará tropas ao solo, o que poderia ameaçar seus
próprios interesses.
A estratégia ocidental, fundada nos bombardeios e na formação de combatentes locais, fracassou na Síria e no Iraque,
assim como no Afeganistão. E esse fracasso traduz o caráter fundamentalmente exógeno dos objetivos europeus e norteamericanos nas crises internas ao mundo árabo-muçulmano. Quanto mais o engajamento militar se acentuar, mais o risco
terrorista vai aumentar, ante o enfrentamento previsível e destruidor que deveria por fim opor a OEI e a Arábia Saudita.
Será que essa guerra é “nossa”?
1 Ler Akram Belkaïd, “L’obsession des complots dans le monde arabe” [A obsessão dos complôs no mundo árabe], Le
Monde diplomatique, jun. 2015.
2 Ler Allan Kaval, “Les Kurdes, combien de division?” [Os curdos, quantas divisões?], Le Monde diplomatique, nov. 2014.
3 Segundo o Observatório Sírio dos Direitos do Homem, citado pelo Le Monde, 25 jun. 2014.
4 Conta estabelecida pelo site .
5 Segundo a organização Human Rights Watch, citada por Reuters, 20 nov. 2015.
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6 “Un jeune de 21 ans risque la décapitation” [Um jovem de 21 anos pode ser decapitado], Anistia Internacional, Londres,
24 set. 2015.
7 Segundo o ministro da Defesa, a operação mobiliza 3,5 mil homens, 38 aviões de combate e diversos meios de logística e
proteção. [“‘Chammal’: situação em 19 de novembro”]. Disponível em: .
8 “Des religieux saoudiens appellent au jihad contre Assad et ses alliés” [Religiosos sauditas chamam ao jihad contra AlAssad e seus aliados], L’Orient Le Jour, Beirute, 6 out. 2015
PIERRE CONESA é antigo alto-funcionário da Otan. Autor, entre outros, de Mécaniques du chaos: bushisme, prolifération et
terrorisme, editora L'aube, La Tour d'Aigues, 2007. Ilustração: Kurdishstruggle/cc. Jornal LE MONDE DIPLOMATIQUE,
Fevereiro de 2016.
Garotas generosas e sinceras
(LUIZ FELIPE PONDÉ)
O MERCADO de garotas de programa só cresce. Muita gente acha estranho devido aos "avanços" nos costumes
sexuais. Não acredito nesses "avanços", apesar de que está na moda dizer que hoje todo mundo transa com todo mundo e
que está tudo muito legal. Acho que a atividade sexual "não remunerada" deve estar decrescendo na humanidade, se
contarmos do Alto Paleolítico pra cá.
Duvido mesmo de que haja qualquer mudança na sexualidade dos mais jovens (voltarei a esse tema em seguida).
Acho, sim, que há um novo mercado "psi" que fala disso o tempo todo, inclusive, gerando fantasmas, que a mídia alimenta
e reproduz como "pauta". O próprio fato de que o mercado das garotas de programa só cresce é, de alguma forma, prova
de que uma insistente ancestralidade permanece no fundo desse rio de modinhas que encanta esse mundinho de ricos e
entediados.
Outro dia, uma aluna, assustada, perguntava pra mim como era possível que ainda existissem garotas de programa,
mesmo depois da emancipação feminina e da conclusão, que se tira normalmente (e que julgo equivocada), de que as
mulheres "ficaram mais livres e, por isso mesmo, o sexo ficou mais fácil e satisfatório". E pior: o mercado só cresce! Que
horror nos olhos dela, coitada! Exemplo claro de uma juventude pouco informada que tem sido, sistematicamente,
enganada por seus professores pastores de Marx, Foucault e Jesus. Ela teria lido algo numa revista sobre isso, talvez de fora
do Brasil. Ao ouvi-la, lembro da reportagem que a revista inglesa "The Economist" fez alguns poucos anos atrás sobre o
crescimento desse mercado, inclusive, defendendo que o PIB do Reino Unido passasse a somar o mercado de garotas de
programa.
Uma das razões para o crescimento seria apenas tecnológico, devido à "uberização" do mercado das meninas. Com as
redes sociais, elas se tornaram livres dos intermediários. Podemos dizer, com todo respeito, é claro: "Graças a Deus" que as
meninas estão ficando livres desses atravessadores violentos. Mas, e esta era a razão do horror da jovem em questão, uma
das causas para o crescimento seria, justamente, a emancipação feminina. Como pode uma coisa dessas ser verdade? Por
que a emancipação feminina tornou a garota de programa mais desejável? Se pensarmos que uma mulher emancipada é
uma maravilha, já que "ela se paga", por qual razão dos céus alguém pode imaginar uma maior procura pelo sexo
profissional justamente depois que as mulheres ficaram mais "fáceis"?
Simples responder: aumentou a cobrança. A garota de programa só pede mil reais. Uma mulher pede tudo. Homens
sempre tiveram medo das mulheres e, agora, com as meninas superpoderosas à solta, ficou pior. A garota de programa é a
mulher mais confiável que existe. Homens odeiam cobrança feminina, e as meninas adoram cobrar os caras. Emancipadas,
as mulheres se tornaram verdadeiros dragões de cobrança. Mulher emancipada estressa todo mundo. A garota de programa
acalma todo mundo.
Quando uma mulher deixa de "custar" só dinheiro, ela passa a custar muito mais caro. Por isso, eu disse à minha
querida aluna: é que a emancipação feminina estimula o mercado do sexo. E mais: no mercado do sexo só corre dinheiro, e
dinheiro é a coisa mais honesta, sincera e reta do mundo. Por isso ele dá tanta raiva.
Mas, voltando à suposta mudança na vida sexual dos mais jovens. Se há alguma mudança de fato, é um maior
"encaretamento" dos jovens. Nunca houve uma geração mais careta do que esta, de Y a Z. Confunde-se perder a virgindade
com deixar de ser careta. Confunde-se beijar alguém do mesmo sexo com deixar de ser careta. Os jovens de hoje são um
poço de moralismo, por isso se levam tão a sério.
As meninas do passado davam lição de safadeza pra essas meninas descoladinhas de hoje. Podiam casar virgens
(será?), mas davam tudo que tinham antes, generosamente e sem medo.... Com tanta gente jovem careta querendo sexo
saudável sem sangue, só uma garota de programa mesmo pra tocar o fundo de nossos corações solitários sedentos de
alguma sinceridade no mundo.
LUIZ FELIPE PONDÉ é filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel
Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de
vários títulos, entre eles, 'Contra um mundo melhor' (Ed. LeYa). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Fevereiro de 2016.
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A violência no trote
(ROSELY SAYÃO)
TODO santo ano, sem exceção, nesta época, lemos notícias a respeito de trotes universitários violentos, que às vezes
se transformam em tragédias, envolvendo morte ou lesões sérias em jovens, e outras vezes modificam radicalmente a vida
de calouros, que abdicam de seu projeto profissional por conta desse costume, que de civilizado não tem nada. Neste ano,
por exemplo, já li duas notícias desse tipo — e eu me recuso a ler mais, porque já estou suficientemente afetada pelo que li.
Numa delas, fiquei sabendo que calouros do curso de agronomia na cidade de Vilhena (RO) foram queimados, alguns
gravemente, com uma mistura de um larvicida — usada em animais de grande porte — com creolina. Na segunda notícia,
soube que um calouro da Famerp (Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto), no interior paulista, desistiu do curso
por ter sido seriamente humilhado e machucado fisicamente por veteranos na chamada "Festa do Bicho", que foi realizada
em um clube da cidade. Ao comentar com colegas que tomaria providências com a direção da faculdade, o calouro recebeu
ameaças de morte.
No primeiro caso, a diretora geral da instituição lançou uma "Nota de Repúdio", em que anuncia que os veteranos
responsáveis serão punidos. No segundo, a mesma atitude: a faculdade comunicou que, assim que os responsáveis forem
identificados, serão punidos. Como assim? Essa é a única coisa que essas faculdades podem — e devem — fazer? Não:
esses comunicados só servem para poupar e proteger a instituição e os adultos, e responsabilizar os jovens veteranos —e
somente eles — pelos fatos acontecidos. Coincidentemente, foi justamente agora, no início do ano letivo, que entrou em
vigor a lei de combate ao bullying, que determina que toda a sociedade — escola, principalmente, acrescento eu- deve ter
programas de combate a esse tipo de violência. Os clubes e agremiações recreativas — como o que recebeu a "Festa do
Bicho" da Faculdade de Medicina em São José do Rio Preto — também têm o dever de ter essa programação.
E vamos parar com essa lenga-lenga de que educação se recebe em casa, de que na escola os mais novos devem
receber é instrução. Como afirma Fernando Savater, não é possível educar sem instruir e instruir sem educar. Os alunos de
agronomia estavam devidamente instruídos para o uso das substâncias que usaram para machucar seus colegas, não é? Só
que todo tipo de instrução deve vir acompanhado do princípio do amor à vida. A escola — da educação infantil à
universidade — tem a obrigação, a missão de ensinar valor moral e ética, que devem fazer parte de seu currículo. Isso exige
planejamento e prática. Não! Não cabe apenas à família essa função, porque é na escola que os mais novos encontram seus
pares, com os quais não têm ligação afetiva alguma.
É na escola que os mais novos devem aprender a ter relações interpessoais democráticas, justas e respeitosas. Você
conhece algum curso universitário, de ensino médio ou do ensino fundamental que cumpra essa parte de seu currículo, caro
leitor?
Vamos ignorar os rankings baseados em ensino de conteúdos. Eles não significam nada! Aliás, conteúdo nem sempre
resulta em conhecimento. Vamos, de fato, valorizar a boa educação! As escolas que não formam bons cidadãos devem ser
consideradas fracas por nossa sociedade.
ROSELY SAYÃO é psicóloga, consultora em educação e articulista do programa “Seus Filhos” da Rádio BandNews FM, fala sobre
as principais dificuldades vividas pela família e pela escola no ato de educar e dialoga sobre o dia-a-dia dessa relação. Jornal
FOLHA DE SÃO PAULO, Fevereiro de 2016.
Ciao, Eco
(CONTARDO CALLIGARIS)
UMBERTO Eco praticava um regime singular: quando chegava a dois terços de sua porção, de repente empurrava o
prato para longe, exclamando: "Basta!". Quem almoçasse com ele podia facilmente se assustar. Paradoxalmente, a voz
interna do superego nos proíbe e nos limita –"não faça sexo com um anjo; com dois, ainda menos!" – ou nos manda
exagerar – "goze!", "tome mais uma saideira!".
Eco fazia bom uso do superego, conciliando suas duas funções. Graças ao "basta!", ele podia comer de tudo, porque
comia com juízo. Há, nessa minha lembrança, uma metáfora da extraordinária qualidade e variedade da produção de Eco.
Ele publicou, em 1975, o "Tratado Geral de Semiótica" – isso na tradução da Perspectiva; de fato, era "tratado de semiótica
geral". Mas sua grande paixão não era a de conseguir descrever o funcionamento da linguagem e da significação, e ainda
menos a de apresentar esse funcionamento de maneira sistemática.
Eco amava a linguagem e os signos porque sentia e sabia que o mundo no qual vivemos é o conjunto infinito e aberto
de tudo o que foi dito, escrito ou significado (de uma maneira ou de outra) desde que os homens começaram a falar e
escrever –ou seja, desde que foram homens.
Em outras palavras: a coisa mais parecida com o mundo no seu conjunto não é um mapa-múndi nem um globo: é uma
biblioteca. Quando passeamos pelas ruas da cidade, andamos entre estantes. Quando amamos, odiamos ou transitamos
pelo leque das paixões humanas, estamos apenas retirando algumas narrativas da estante pela qual passamos –e, claro,
mergulhando entre as páginas.
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Você acha que se apaixonou perdidamente hoje mesmo ou ontem? É que você tirou da estante um romance de amor e
sacudiu seus sentimentos de uma das formas que já foi contada (ou, com um pouco de sorte, você misturou várias e, nesse
sentido, inventou algo novo).
Você pode não ter lido "Os Sofrimentos do Jovem Werther" nem os romances melados de Barbara Cartland, mas traços
dos dois chegaram até você pelas mil narrativas graças às quais você aprendeu o que é amar –quadrinhos, filmes,
telenovelas, contos de fada que a sua mãe contava... Em suma, o andaime de seus amores são histórias, livros, filmes –
linguagem.
Eco devia estar cansado desta brincadeira, mas é impossível não pensar que havia uma espécie de destino contido no
sobrenome dele: o eco faz com que, quando você acha que vai falar ou gritar com a natureza (ou seja, com qualquer coisa
que nada tem a ver com a linguagem), o que você recebe de volta é também linguagem. As pedras do Grand Canyon
existem porque respondem aos turistas que gritam.
Não fica claro? Pois bem, ninguém dava a menor pelo pôr do sol, ninguém parava para olhar aquilo, até que Turner
decidiu fazer dele o protagonista de tantos quadros. O pôr do sol existe porque alguém o pintou. O amor existe porque
alguém o narrou. Enfim, Eco foi se interessando menos pela teoria linguística e semiológica e muito mais pelas histórias que
dão forma ao mundo e à vida da gente. E ele começou a contar histórias nas quais os verdadeiros protagonistas são outras
histórias.
O livro dele que eu prefiro é "A Misteriosa Chama da Rainha Loana" (Record, 2005) porque é uma obra sobre as
histórias que sustentaram a infância de Eco –e, como ele, eu tive uma infância italiana. Sobre meu primeiro romance, "O
Conto do Amor", um crítico medíocre escreveu que ele era no estilo de "O Nome da Rosa". Contrariamente ao tal crítico, eu
adoraria essa ascendência, mas, de fato, para Eco, tudo acontecia, por assim dizer, dentro da biblioteca do mundo: se tem
salvação, ela vem graças a outras histórias da mesma estante. Eu sou mais iludido: para meu protagonista, se havia
salvação, ela não se encontrava na biblioteca do mundo, mas em alguma coragem de agir.
Numa coletânea de frases de Eco, no UOL, foi citada esta, de não sei qual entrevista: "Eu passei a acreditar que o
mundo inteiro é um enigma. Um enigma inofensivo que é feito por nossa própria tentativa furiosa de interpretá-lo, como se
houvesse nele uma verdade secreta" – a qual, entende-se, não existe, como não existe um autor divino do livro do mundo.
Eco pode ser lido por qualquer um. Mas não é para principiantes.
Nota: em 1995, para a Folha, entrevistei Umberto Eco em Nova York. Reli a conversa, comovido por sua inteligência e
clareza. Quem quiser ler, está emfolha.com/no1741488.
CONTARDO CALLIGARIS é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School de NY
e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade e as
aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Fevereiro de 2016.
O Oriente Médio em ebulição (OLIVIER ZAJEC)
APÓS A INTERVENÇÃO RUSSA NA SÍRIA - Duplo golpe do presidente russo, que acaba de fazer sua entrada no
campo de batalha sírio. Putin deixou escapar que recebeu no Kremlin o presidente Bashar Al-Assad; na sequência,
ele organizou uma reunião quadripartite (Estados Unidos, Rússia, Arábia Saudita e Turquia) para interromper os
conflitos militares
"É HORA de transformar o Irã em nosso amigo e a Arábia Saudita em nossa inimiga?” Com esse título provocador, o
jornalista britânico Michael Axworthy escrevia em janeiro de 2015 que “a ideia segundo a qual o Irã se tornou uma força
estabilizadora na região do Golfo é hoje uma evidência aceita”.1 Estamos longe da retórica do “eixo do mal” repisada desde
o 11 de setembro de 2001 e imposta com paixão e tenacidade. Nem o discurso inflamado do primeiro-ministro israelense,
Benjamin Netanyahu, diante do Congresso norte-americano, em 3 de março de 2015, nem os combates de retaguarda dos
discípulos neoconservadores de Thérèse Delpech2 no Quai d’Orsay conseguiram evitar essa inversão de mentalidades.
Passando do papel de bicho-papão ao de pivô regional antijihadista, fortalecido por um acordo nuclear habilmente
negociado e por uma aliança objetiva com Washington no Iraque, para combater a Organização do Estado Islâmico (OEI), a
mudança de papel do Irã já não é um caso isolado. As inversões de percepção desse tipo se multiplicam.
Com uma ameaça terrorista interna grave e uma crise migratória que abala os equilíbrios políticos da União Europeia,
nenhum dos frágeis sustentáculos que estruturavam o discurso dominante parece garantir a mínima solidez, impotência
analítica da qual a imprensa francesa oferece, talvez, o exemplo mais notório. Da periculosidade do Irã dos aiatolás ao dever
moral de “punir” Bashar Al-Assad, da impossibilidade de um califado jihadista ao destino europeu do “modelo democrático
turco”,3 da necessidade de convencer Vladimir Putin da urgência de uma parceria justa com o núcleo globalizado dos
emirados do Golfo, da solidez da dupla franco-alemã aos gozos obscenos que se seguiram ao enforcamento com
transmissão ao vivo de Saddam Hussein, as certezas cederam lugar às tergiversações, a satisfação ao descontentamento, a
firmeza à hesitação.
Pior: enquanto o direito de ingerência coercitiva, a comunidade de destino atlântica e as cruzadas movidas contra a
“merda soberanista” (segundo a expressão vigorosa de Bernard-Henri Lévy)4 são sempre promovidos com uma admirável
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constância, a opinião pública, sondagem após sondagem, insiste em achar que a queda do regime sírio, o fortalecimento
dos laços com a Arábia Saudita, a contenção da Rússia e a assinatura do Tratado de Livre-Comércio Transatlântico (Tafta)
não são provavelmente as grandes prioridades do momento.
Essa inversão ideológica, assumindo a forma de um violento realismo reacionário com respeito ao balanço das
aproximações messiânicas e intervencionistas do pós-11 de setembro, tem muito com que inquietar os responsáveis pela
política externa francesa da era Sarkozy-Hollande. Também não se exclui reconhecer humildemente o fracasso das
mudanças de regime erráticas dos últimos anos. A fim de justificar o injustificável, só resta, pois, uma solução: transferir a
responsabilidade do naufrágio a um ator passível de culpa e digno de crédito. Ora, dos dirigentes mundiais da atualidade,
qual, pela fraqueza e irresolução, parece merecer mais que Barack Obama a acusação de permitir o caos no Oriente Médio?
Para o chefe de Estado turco, Recep Tayyip Erdogan, Obama não passa de um fraco. Os monarcas sunitas do Golfo,
por seu turno, só a duras penas escondem seu ódio – e seu desprezo racista – a esse presidente que agora faz o jogo do
“diabo” iraniano. Segundo seu adversário republicano de 2008, John McCain, sempre truculento quando fala do Irã ou da
Ucrânia, Obama está “enterrando” a liderança norte-americana.5 E a vedete atual do mesmo partido, Donald Trump, faz
coro. Já François Hollande repete sem pestanejar que o motivo principal do fortalecimento da OEI é a “fraqueza” norteamericana que, num “sábado negro do fim de agosto de 2013”,6 impediu Paris de bombardear o regime Al-Assad.
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Acontece, porém, que a política externa de Obama não é redutível a uma série de indecisões. Pode-se dizer até que
ela, apesar de inúmeros reveses e descontinuidades, permanece muito superior à de seus parceiros britânicos, sauditas,
franceses e israelenses. Longe de abusar das pesquisas anabolizantes tão ao gosto dos “presidentes guerreiros”, Obama
tentou respeitar o processo diplomático global de que se fizera advogado ao assumir o posto, depois do principado
apocalíptico de George W. Bush. O acordo de 30 de junho de 2015 com Cuba, o de 14 de julho sobre o programa nuclear
iraniano, a relativa prudência observada na Ucrânia apesar da animosidade pessoal de Putin, malgrado sobretudo as
explosões histéricas de seus adversários saudosos de Ronald Reagan, tudo isso são marcos num trajeto relativamente
seguro. O contraste é gritante com a herança caótica do aventureirismo líbio de Nicolas Sarkozy em 2011, com a
agressividade autista de Netanyahu e com a teimosia de Hollande no caso sírio, desde 2012.
Obama só decepciona, no fundo, os sonâmbulos inconsoláveis com o fato de Donald Rumsfeld, Tony Blair e
Condoleezza Rice7 terem sido relegados ao quarto de despejo da diplomacia mundial. Sua postura, razoável e sóbria, é a de
recusar o aventureirismo que constituiria, sobretudo no Oriente Médio, uma nova mudança de regime coercitivo sem
solução de continuidade durável. Trata-se, aqui, daquilo que poderíamos chamar de “doutrina Gates”, do nome do
secretário de Defesa norte-americano entre 2006 e 2011: “A última coisa de que [os Estados Unidos] precisam é um novo
exercício de nation building [construção de uma nação]”,8 disse Robert Gates referindo-se à guerra da Líbia. Enunciada
perante o Congresso no exato momento em que Obama era censurado por sua leading from behind (ou liderança a partir
dos bastidores), essa frase lapidar encerrava simbolicamente a era das intervenções. Após inúmeras vertigens, tudo
acontece como se, fechando os manuais dos teóricos neoconservadores Norman Podhoretz e Irving Kristol, a Casa Branca
houvesse consultado Aristóteles para nele redescobrir o sentido da deliberação estratégica: “Nenhum espartano delibera
sobre a melhor forma de governo para os citas. [...] Deliberamos sobre aquilo que depende de nós e que podemos
concretizar. [...] Não deliberamos sobre os fins, mas sobre os meios de alcançá-los”.9
Na Síria, Obama pode ser recriminado por muita coisa, a começar pela fraqueza que mostrou perante o governo turco,
o ator mais cínico e manipulador do conflito. Infelizmente, o último país com moral para censurá-lo nesse caso é a França.
Como o virtuosismo semântico não pode disfarçar eternamente o vazio estratégico, convém reconhecer que a storytelling
francesa alinhavada na ocasião da tragédia síria não resiste à análise. Durante meses, Paris sustentou que não
bombardearia a OEI, pois estava fora de questão reforçar o regime de Damasco, considerado o inimigo número um.
Tomando assim partido numa guerra civil, o governo francês chegou ao extremo de sua lógica despachando armamentos
destinados a uma oposição moderada mal definida, armamentos que foram logo avolumar os arsenais jihadistas (Le Monde,
21 ago. 2014). Em 30 de setembro de 2015, a situação se degradou e a França decidiu finalmente bombardear o Daech. No
Eliseu, falou-se de uma “evolução estratégica”, metáfora audaciosa para o caso de alguns observadores pouco perspicazes
se sentirem tentados a ver nisso apenas a ausência total de estratégia. Escudado na tal “evolução”, Hollande, recebendo
Putin em 4 de outubro de 2015, “lembrou” a seu hóspede que “o Estado Islâmico é o inimigo a combater”.10
A grandiosidade da fórmula é, reconheçamos, admirável. Lamentavelmente, ela só conseguiu impressionar quem tinha
amnésia. Desde o início da revolta síria, em 2011, e da progressiva intrusão, nesta, de facções islâmicas cada vez mais
agressivas, Vladimir Putin (que, como se sabe, é cabeçudo) defende a mesma estratégia em duas etapas: apoiar Al-Assad a
fim de destruir a Al-Qaeda e a OEI, ameaças prioritárias, e depois encontrar uma solução política negociada em Damasco,
sob a forma de uma evolução do regime. Quaisquer que sejam os pensamentos secretos do Kremlin, ninguém em Moscou
acha que Al-Assad permanecerá para sempre no poder (ver artigo na próxima página). Eis o motivo pelo qual diversos
emissários da oposição síria, como Khaled Khoja e Haytham Manna, foram recebidos em 2015 pelo ministro das Relações
Exteriores, Serguei Lavrov. “Não haverá outro Kadafi”: a estratégia de Moscou, por mais criticável que seja, é constante e
clara. Nada do cinismo de Ancara, do arrebatamento de Riad ou das mudanças de rumo de Paris, que contrastam com as
escolhas operacionais e diplomáticas da França no Mali e na África central, amplamente saudadas em 2013 e 2014.
Reféns desse impasse moralizante e ineficaz, as relações internacionais assistem à multiplicação de iniciativas
diplomáticas que já não repousam apenas nas decisões ocidentais. Essa mudança estratégica é fundamental. Pois quem são
hoje os game-changers11 no Oriente Médio? Certamente não Obama, pressionado a agir por seus tributários na Europa
oriental e no Eufrates, mas reticente nesse caso porque sua verdadeira prioridade é o “pivô Pacífico”. Muito menos Hollande,
que se arrasta atrás de Berlim na Europa e atrás de Washington em todos os outros lugares, criticando essas duas capitais a
fim de preservar a ilusão de uma independência já bem desgastada. As potências regionais? Israel, sem saber o que fazer,
paralisado pela convergência Teerã-Washington e pela retomada da revolta palestina. A Arábia Saudita, às voltas com a
queda dos preços do petróleo e embaraçada por sua intervenção no Iêmen. A Turquia, de novo em guerra com o Partido
dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) e doravante desacreditada por haver, durante muito tempo, atirado a OEI contra os
curdos.
A liberdade de ação está hoje com a Rússia e o Irã, à espera de que a China, por enquanto alheia ao conflito, possa
um belo dia aproveitar a ocasião de propor sua solução diplomática. Moscou já tentou mudar a situação em 2013 ao
oferecer a todos os protagonistas uma porta de saída graças à neutralização do arsenal químico sírio. Atualmente, Putin faz
um novo movimento duplo no tabuleiro sírio, depois de apresentar, num primeiro momento, o plano de mais uma coalizão
antiterrorista perante a ONU em 28 de setembro de 2015; em seguida, ele interveio militarmente – a pedido do governo
sírio –, autorizando bombardeios que, conforme sua leitura do conflito, visam tanto as posições da OEI quanto as do
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Exército da Conquista, uma coordenação sustentada pela Arábia Saudita, a Turquia e o Catar (que agrupa principalmente os
salafistas de Ahrar al-Sham e a Frente Al-Nosra, ramo sírio da Al-Qaeda).
Bastou essa iniciativa para redistribuir as cartas de um jogo mesopotâmico confuso. Após um ano de operações aéreas
e 7 mil “golpes” contra uma OEI tenaz, parece que a estratégia seguida desde 2013 pela coalizão ocidental liderada pelos
Estados Unidos fracassou. O secretário de Estado, John Kerry, já reconhece que a data de saída de Al-Assad é negociável e
que a colaboração com a Rússia e o Irã é necessária.12 Assim, os comentários jornalísticos mudam de rumo outra vez: “Se
a partida de Al-Assad, a derrota da OEI e um futuro pacífico para a Síria constituem o objetivo último, não insistamos em
fazer tudo de uma vez”.13 Como muitos outros, Matthew Rojansky, especialista norte-americano do Wilson Center,
redescobre o que Sun Tzu, no século VI a.C., já sabia: é melhor combater em uma frente que em duas. Henry Kissinger
acaba de chegar, recentemente, mais ou menos à mesma conclusão.14 O mantra comum a Erdogan e Laurent Fabius,
ministro das Relações Exteriores francês, segundo o qual existe uma “aliança objetiva entre Al-Assad e os terroristas”,15 não
tem mais nenhuma aplicação. Percebe-se bem, no lado francês, a vontade de garantir um balanço exterior razoável por
causa dos debates eleitorais de 2017. Mas esse “nem-nem” insustentável, além de ter se revelado contraproducente em
termos de estratégia, será logo inaudível na mídia. Talvez mesmo politicamente suicida, ainda que Palmira seja retomada
pelas forças russas e sírias; trata-se de uma opção em forma de golpe decisivo, que não sabemos se é possível, mas que
não pode ter deixado de passar pela cabeça de Lavrov e Putin. No aguardo, a estratégia russa atual é apoiada abertamente
pelo Irã... e pelo Iraque.16 O Egito não se opôs. Pequim observa... e não desaprova.
Assim, o inesperado e o surpreendente, combustíveis preferenciais da ação estratégica, são hoje manejados no campo
fechado mesopotâmico por atores alheios ao “Ocidente”. No vórtice do Oriente Médio, uma América enfraquecida e uma
Rússia oportunista continuam a defender seus interesses – que não serão jamais, por completo, os da Europa. Tomar
partido inteiramente de Washington ou de Moscou, nesse caso, equivale a uma espécie de capitulação intelectual. Mais
satisfatório seria fazer aqui o elogio da diplomacia francesa do que constatar, porquanto a honestidade tem suas exigências,
a superioridade tática de Putin. Mas a estrela morta que é o neoconservadorismo continua a iluminar as margens do Sena; e
a União Europeia alienou sua segurança externa, se pusermos de lado as ações da França na África. Os que lamentam essa
situação são cada vez mais numerosos, independentemente de suas tendências políticas – mas esse consolo medíocre não
basta.
1 Michael Axworthy, “Is it time to make Iran our friend and Saudi Arabia our enemy?” [É hora de transformar o Irã em amigo e a
Arábia Saudita em inimiga?], The Guardian, Londres, 28 jan. 2015.
2 Thérèse Delpech (1948-2012), especialista em assuntos nucleares e estratégicos, autora prolífica (L’Ensauvagement du monde
[O asselvajamento do mundo], 2005; Le grand perturbateur. Réflexions sur la question iranienne [O grande perturbador.
Reflexões sobre a questão iraniana], 2007), foi diretora de assuntos estratégicos do Comissariado de Energia Atômica.
3 “Le parti islamique turc AKP s’érige en modele démocratique pour le monde musulman” [O partido islâmico turco AKP se erige
em modelo democrático para o mundo muçulmano], La Croix, Paris, 1º out. 2012.
4 Bernard-Henri Lévy, La Guerre sans l’aimer. Journal d’un écrivain au cœur du Printemps Libyen [A guerra que não se ama. Diário
de um escritor em plena Primavera Líbia], Grasset, Paris, 2011.
5 Sandy Fitzgerald, “McCain: ‘Putin’s actions in Syria the fault of Obama’s weakness” [McCain: “As ações de Putin na Síria são
culpa da fraqueza de Obama”], Newsmax, West Palm Beach (Flórida), 30 set. 2015.
6 A expressão é de Bernard-Henri Lévy em seu “Bloc-Notes” do Point, 15 out. 2015.
7 Condoleezza Rice e Donald Rumsfeld foram, respectivamente, secretária de Estado de 2005 a 2009 e secretário da Defesa de
2001 a 2006, durante a administração George W. Bush.
8 Spencer Ackerman, “US gunships will be ‘on stand-by’ in NATO’s Libya war” [Canhoneiras americanas ficarão “de prontidão” na
guerra líbia da Otan], Wired, San Francisco, 31 mar. 2011.
9 Aristóteles, Ética a Nicômaco, III, 4.
10 Benoît Vitkine, “‘L’EI est l’ennemi que nous devons combattre’, rappelle Hollande à Poutine” [“O EI é o inimigo que devemos
combater”, lembra Hollande a Putin], LeMonde.fr, 2 out. 2015.
11 No jargão estratégico, agentes capazes de mudar sozinhos o curso de um conflito.
12 Karen DeYoung, “Obama administration scrambles as Russia attempts to seize initiative in Syria” [A administração de Obama
se complica enquanto a Rússia tenta tomar a iniciativa na Síria], The Washington Post, 30 set. 2015.
13 Citado em “Syrie: Obama traite avec Moscou et s’accommode d’Assad” [Síria: Obama trata com Moscou e se acomoda com
Assad], Les Échos, Paris, 30 set. 2015.
14 Henry Kissinger, “A path out of the Middle East collapse” [Uma saída para o colapso no Oriente Médio], The Wall Street
Journal, Nova York, 17 out. 2015.
15 Entrevista de Laurent Fabius no final da Conferência de Montreux, Conferência de Genebra II, 22 jan. 2014.
16 Hélène Sallon, “La tentation russe de Bagdad” [A tentação russa de Bagdá], Le Monde, 17 out. 2015
OLIVIER ZAJEC é encarregado de estudos da Companhia Européia e Inteligência Estratégica (Paris).Ilustração: Samuel Casal.
Jornal LE MONDE DIPLOMATIQUE, Fevereiro de 2016.
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Mobilização inédita pela educação (MANUEL PALÁCIOS)
OS JORNAIS noticiam, seus editores e colunistas opinam, milhares de reuniões acontecem. Nas escolas e por toda
parte discutem-se os direitos e objetivos da aprendizagem da educação básica que compõem a proposta preliminar da Base
Nacional Comum Curricular, publicada pelo Ministério da Educação em setembro do ano passado.
Os dados de participação são eloquentes: 10 milhões de contribuições à base curricular já foram encaminhadas ao
portal do MEC, mais da metade produzida por escolas públicas. Temos 35 mil colégios cadastrados no portal. Esse
movimento conta com o apoio decisivo do Conselho Nacional dos Secretários de Educação e da União Nacional de Dirigentes
Municipais de Educação, organizações que reúnem
todos os secretários de educação do Brasil.
Também
participam
inúmeras
entidades
científicas, dentre as quais, vale destacar a Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência, pois foi em
sua sede, na cidade de São Paulo, em abril do ano
passado, que se fez a primeira reunião com as
associações científicas do atual ciclo de debates da
Base Nacional Comum Curricular.
Não é a primeira vez que se discute o currículo
da educação básica no país. Mas a base, com a
intenção de especificar os objetivos de aprendizagem
para cada ano e o componente curricular da
educação básica, mobiliza em uma escala inédita a
opinião pública e os profissionais da educação.
Isso é muito bom, e que sejam bem-vindas as
controvérsias sobre a história a ser ensinada nas
escolas, o aprendizado da leitura e da escrita na
infância, o lugar da tecnologia e da ciência na
formação dos jovens.
Nada mais importante para o progresso da
educação brasileira do que a busca da convergência e
do compromisso público, entre tantas e diferentes
crenças e orientações intelectuais da sociedade,
sobre quais são os conhecimentos e as competências
que todos os brasileiros devem ter a oportunidade de
aprender e desenvolver.
A construção desse entendimento é tarefa
complexa e inadiável. Não há atalho que abrevie o
caminho. Em abril, uma segunda versão do
documento preliminar será publicada, com o
acolhimento das críticas e a incorporação das
contribuições mais relevantes.
Para maio, estão previstos seminários em cada
unidade da federação, com a participação de
professores, estudantes, pesquisadores e suas
equipes técnicas, assegurando assim ampla
participação e pluralidade no debate. É sempre bom lembrar que a Base Nacional Comum Curricular é, conforme diz a lei,
um pacto interfederativo, com a adesão da União, dos Estados e dos municípios.
De outra parte, e com igual relevância, multiplicam-se as reuniões e chegam as contribuições das sociedades
científicas, associações profissionais e universidades. Para fazer frente a esse imenso desafio, as comissões instituídas para
redação e revisão da proposta foram compostas, desde os primeiros passos, por profissionais de todo o país. Foram
reunidos professores e técnicos das redes estaduais e municipais e professores de instituições de educação superior.
Todas as contribuições estão disponíveis para consulta no portal da Base Nacional Comum Curricular e, até 15 de
março, todos podem enviar comentários e sugestões. E que se multipliquem as reuniões, as controvérsias e os debates na
busca de uma ampla convergência.
MANUEL PALÁCIOS, 59, é secretário de Educação Básica do Ministério da Educação. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO,
Fevereiro de 2016.
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