UM CASO DE FUSÁO DO TARSO NUM INDIVÍDUO DA

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UM CASO DE FUSÁO DO TARSO NUM INDIVÍDUO DA
UM CASO DE FUSÁO DO TARSO NUM INDIVÍDUO DA NECRÓPOLE DE NOSSA SRA. DE
FINISTERRA (SOURE, PORTUGAL)
Maria Joao NEVES, Maria Teresa FERREIRA, Ana Maria SILVA e Ana Leonor SILVA
1. Introdu<;ao
A escava<;ao da necrópole da 19reja de Nossa Sra. de Finisterra (Eg. 1) proporcionou um vasto
leque de vestígios essenciais para a compreensao das práticas funerárias, da rela<;ao com a l11.orte e
também do quotidiano das popula<;6es medievais e modernas da regiao do Baixo Mondego (Neves et al.
sd).
A distribui<;ao sexual e por classes etárias indicia, tanto em tempos medievais, como Inodernos, a
presen<;a de popula<;6es naturais.
De entre os diversos casos patológicos detectados nos esqueletos exumados desta necrópole, aqui
apresentamos o Indivíduo 57 com uma fusao dos ossos do tarso, lesao de etiologia incerta.
2. Material e Métodos
A realiza<;ao de uma vala para um enterramento posterior interceptou a sepultura que alojava o
Jndivíduo 57, e provocando uma afecta<;ao signjficativa do seu esqueleto, que, por consequencia, apenas
pode ser recuperado muito incompleto. Com efeito, rótulas, tíbias, perónios e ossos dos pés sao as únicas
pe<;as esqueléticas preservadas deste indivíduo 57 (Fig. 2).
A diagnose sexual foi tentada através da análise méh'ica ao talus e ao calcaneo esquerdos,
baseada na metodología proposta por Silva (1995), com resultados inconclusivos.
A estatura estimou-se através das fórmulas de Santos (2002) utilizando o comprimento 1°
metatársico esquerdo. A robustez e o achatamento da tíbia foram calculados seguindo as recomenda<;6es
de Olivier e Demoulin (1990). Quanto a patologia degenerativa, articular e nao articular, a intensidade
das les6es foi classificada de acordo corn as propostas de Crubézy (1988).
3. Resultados
o Indivíduo 57, adulto, de sexo indeterminado, teria uma estatma a rondar os 154 cm, e uma
tíbia robusta e achatada. Os resultados do exame macroscópico exaustivo aos vestígios deste indivíduo,
realizado ern fW1.<;ao da observa<;ao preliminar da patologia referida do tarso, assim como da análise
radiológica, serao descritos de seguida.
3.1. Análise lIlacroscópicn
As rótulas nao mostram sinais de patologia degenerativa ou outra. As pe<;as ósseas da pema
esquerda nao apresentam indícios de artrose. Tanto a tíbia como o perónio esquerdos demonstram
entesopatias ligeiras (grau 1 de Crubézy, 1988). Também no calcaneo esquerdo se pode observar uma
entesopatia de grau 1 na inser<;ao do tendao de Aquiles.
O perónio direito está bastante fragmentado, nao se tendo recuperado as extremidades. A tíbia
direita, fragmentada, mas com o ter<;o distal bem preservado, exibe altera<;6es patológicas: artrose
exuberante da articula<;ao do tornozelo; porosidade e forma<;ao de osso novo (Eg. 3).
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LAS SOCIEDADES HISTÓRICAS PENINSULARES: EDAD MEDIA Y MODERNA
No pé direito, cinco ossos formam urna pe<;a única: calcaneo, talus, navicular, cubóide, e
cuneiforme lateral (Fig. 4). Se o talus está completamente fundido com o navicular, já com o ca1caneo,
lateralmente está separado e, posteriormente, existem algumas pontes ósseas.
Também entre o navicular e o cuneiforme lateral a fusao nao é total, tal como entre este
cuneiforme e o cubóide. O calcaneo e o cubóide estaD fundidos, sendo impossível de perceber os antigos
limites do osso. Tal como a articula<;ao da tíbia para o tarso, os restantes ossos do pé mostram graves
les5es de artrose.
Na superfície medial da diáfise do 4° metatársico direito observa-se urna pequena cavidade, com
cerca de 2x4 mm (Fig. 5). Aparentemente, os seus bordos estaD remodelados, excluindo-se a hipótese de
se tratar de um fenómeno tafonómíco.
Um outro caso de fusao, mais discreto, ocorreu entre urna falange medial e urna distal, de lateralidade
indeterminada.
3.2. Análise radiológica
Na radiografia (Fig. 6) pode-se observar a linha de uniao entre o talus e o navicular, bastante
ténue. J4 entre o cubóide e o cuneiforme lateral, notam-se claramente os limites de cada pe<;a óssea. Pelo
contrário, o calcaneo e O· cubóide estaD completamente fundidos. Pode-se constatar que, apesar da
existencia de pontes ósseas, o talus e o calcaneo nao estaD completamente fundidos, preservando mesmo
algum do espa<;o intra-articular. A análise radiológica nao revela indícios de fractura.
4. Discussao
A linha de uniao entre o talus e o navicular é apenas visível na radiografia, nao se notando na
observa<;ao macroscópica. A fusao entre o calcaneo e o cubóide parece total, tanto pela análise
macroscópica como pela radiológica. Ambas as análises mostram as nítidas linhas de uniao entre o
cubóide e o cuneiforme lateral, e entre este último e o navicular.
Quanto a etiologia da lesao sao de excluir patologias como a artrite psoriática (porque afecta
sobretudo os membros superiores com les5es muito características - falanges e metacarpianos e
metatarsianos em bico de lápis); espondilite anquilosante (dado que nao existem quaisquer les5es na
articula<;ao do joelho, sinais de periostite ou entesopatias no ca1caneo); e gota (que se caracteriza pela
existencia de les5es osteolíticas com bordo esclerosado e localizado nas margens articulares, dando
origem a urna artrite mutilante) (Cunha, 2003; Queiroz, 1998; Rogers e Waldron, 1995; Vaz, 2000).
Quanto a artrite reumatóide (que apresenta habitualmente um padrao simétrico de les5es), notese que apesar de poderem existir les5es a nível do tarso, estas sao posteriores as les5es interfalangicas e
metatarsicofalangicas (Vaz, 2000). Ressalve-se que foi apenas encontrada urna uniao entre urna falange
medial e urna distal, argumento porém insuficiente para o diagnóstico da lesao. No entanto, segundo
Rogers e Waldron (1995) é impossível diagnosticar a artrite reumatóide num esqueleto sem os ossos das
maos.
Contrariamente, nao se pode descartar a hipótese da doen<;a de Reiter, que afecta as grandes e
pequenas articula<;5es nos membros inferiores, com especial incidencia nas articula<;5es do pé, com um
padrao assimétrico (Cunha, 2003; Queiroz, 1998).
Urna etiologia congénita é igualmente de considerar, pois as fus5es ósseas congénitas dos ossos
do tarso (sinostoses), condi<;5es raras, podem afectar dois ou mais ossos e podem ou nao ser bilaterais
(Kulik e Claton, 1996; Percy e Mann, 1988; Stormont e Peterson, 1983; Vu e Mehlman, 2005)
Por fim, também se nao deve excluir a origem traumática, apesar de nao se terem observado quer
na análise macroscópica quer na radiológica qualquer linha de fractura.
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5. Conc1usao
o estado incompleto do esqueleto dificultou o diagnóstico
diferencial da lesao, nao tendo sido
possível identificar a sua etiologia. Apesar de as informa<;6es obtidas a partir deste indivíduo serem.
escassas, já que nem. sequer foi possível determinar o sexo, podemos estimar que a sua locomo<;ao teria
sido afectada, pelo que este indivíduo, em vida, deveria certamente claudicar.
BIBLIOGRAFIA
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LAS SOCIEDADES HISTÓRICAS PENINSULARES: EDAD MEDIA Y MODERNA
Figura 1. Aspecto parcial da necrópole da Igreja de Nossa Sra. de Finisterra e trabalhos de campo.
Figura 2. Individuo 57 in silu.
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Figura 3. Detalhe da extremidade distal da tíbia direita em articula<;3o.
Figura 4. Calcáneo, talus, navicular, cubóide e cuneiforme lateral direitos fundidos (normas superior, lateral e medial).
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LAS SOCIEDADES HISTÓRICAS PENINSULARES: EDAD MEDIA Y MODERNA
Figura 5. Vista medial do 4° metatársico direito com uma pequena cavidade de etiología desconhecida.
Figura 6. Radiografia do tarso díreíto.
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