Ler ou dizer que leu: uma história sobre a leitura e sobre a
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Ler ou dizer que leu: uma história sobre a leitura e sobre a
133 Ler ou dizer que leu: uma história sobre a leitura e sobre a experiência sócio/literária Gustavo Vargas Cohen* Resumo: Este texto é um debate sobre a alegação da leitura versus a leitura efetiva e os significados pessoais e sociais acarretados pela tensão exercida por esse conflito. O objetivo é analisar criticamente eventos literários individuais e coletivos para melhor compreender as causas e os efeitos que compõem sua trajetória histórica, para, então, autonomamente, selecionar o quanto da história da leitura pode ser oferecido nos dias de hoje para informar futuras práticas pedagógicas. Dois livros de teoria sobre o assunto são utilizados como referencial teórico, Bookmarks: Reading in Black and White, de Karla F. C. Holloway (2006), e Institutions of Reading: The Social Life of Libraries in the United States, de Thomas Augst e Kenneth Carpenter (2007). Palavras-chave: História da leitura. Leitura individual. Leitura social. Experiência literária. Minhas leituras criaram um vasto senso de distância entre o mundo em que eu vivia e eu. (Richard Wright, Black Boy) As palavras de Richard Wright descrevem com acurácia a ideologia que a professora de Direito e História da Mulher da Universidade Duke, Karla F. C. Holloway, imprimiu em seu livro Bookmarks: Reading in Black and White, publicado em 2006. Seu texto traz uma discussão sobre as listas de livros encontradas nas autobiografias de escritores afroamericanos e sobre o quanto a leitura dessas obras significou para esses autores. São comentadas as listas de W. E. B. Du Bois, Ralph Ellison, Richard Wright, Maya Angelou, Langston Hughes, entre outros. Além disso, o livro de Holloway apresenta um segundo subtítulo, que é Memoir. Este explica as vinhetas retrospectivas intercaladas ao corpo do texto principal, em que conta suas próprias experiências com livros e com a leitura. Uma das passagens mais memoráveis aparece no Capítulo 4, intitulado “A Prison Library” (“Uma biblioteca de prisão”), em que Holloway descreve os hábitos de leitura de afro-americanos célebres, como Malcolm X, Angela Davis e Eldridge Cleaver. Além das grandes lições tiradas da experiência dessas figuras em seu tempo de encarceramento, destacam-se também dois diálogos que a autora teve com seu filho, Bern, enquanto ele era um jovem detento no presídio do Instituto de Correção Odom, em Jackson, na Carolina do Norte. * Doutor em Literaturas de Língua Inglesa pelo Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Roraima (UFRR). (E-mail: [email protected]). Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 55, jan./jun. 2014. Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos> ISSN 1808-043X – Versão eletrônica 134 Ela relata que Bern nunca havia sido um bom leitor, ou sequer um leitor, porém, durante o tempo de sua detenção, ela, como mãe, não havia desistido de acreditar, como o fez durante toda a infância do filho, que a salvação dele (e também dela) dependeria do que parecia uma chance cada vez mais improvável – que Bern encontrasse um “santuário” na leitura. Holloway enviou vários livros para seu filho durante esse período, por vezes utilizando-se de práticas que contornavam e até burlavam a burocracia disciplinar da instituição. Ela lembra que: durante uma visita [Bern] me contou que finalmente havia lido Ender’s Game, um livro que eu oferecia a ele desde sua pré-adolescência. Ele disse que eu estava certa sobre o fato do livro ser tão absorvente que ele quase não conseguia largá-lo uma vez que nele adentrava. Eu sorri com uma satisfação que raramente tinha naquelas visitas. (HOLLOWAY, 2006, p. 77, tradução nossa)1 O deleite que Holloway sentiu ao saber que seu filho havia lido algo que ela recomendara significa muito mais que o prazer de encontrar um súbito senso de comunhão com ele. Aquilo refletiu o compromisso com a ideologia de Holloway sobre o ideal de letramento e sobre sua crença na promessa do que a leitura pode fazer (HOCHMAN, 2009). A esperança no poder transformador da leitura atingiu seu pico naquele instante de revelação. Entretanto, a esperança, inesperadamente, tornar-se-ia vã. Bern seria morto ao tentar escapar da prisão pouco tempo depois, e o relato de Holloway termina da seguinte maneira: Um dia, perto do fim, de uma maneira confessional, como eu a vejo agora, ele me disse: Mãe, você sabe, eu nunca realmente li aquele livro, Ender’s Game. Eu não consegui responder. Eu lembrava apenas de compartilhar com ele aquela conversa, de compartilhar um sorriso com ciência mútua sobre o quão bom aquele livro era. (HOLLOWAY, 2006, p. 88) Holloway expressa brevemente o amargor que sentiu ao perceber que havia sido mais uma vez levada, de forma involuntária, pelas “fantasias” ou “mentiras” contadas por seu filho. Entretanto, o capítulo termina em uma nota mais positiva, quando cita a explicação de Bern quando disse que sabia que aquilo faria sua mãe feliz e que ele queria muito vê-la feliz. Ela, no entanto, não deixa de ponderar o quanto aquele gesto de amor indicou que não haveria santuário para ele nos livros, nenhum refúgio na imaginação gerada por aquelas páginas, nenhum desejo formado e buscado surgido dali. Significou, porém, que ele a amava o bastante para querer vê-la feliz, que havia dor dentro dele ao compreender o que ela estava passando depois de perder seu convívio para a prisão e para os horrores dela decorrentes. Significou, também, que ele soube escolher qual seria o único gesto com poder suficiente para fazê-la 1 Todas as citações apresentadas neste texto foram traduzidas pelo próprio autor. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 55, jan./jun. 2014. Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos> ISSN 1808-043X – Versão eletrônica 135 feliz em meio à dor do distanciamento. Ao mesmo tempo, é possível encontrar uma ironia um tanto dolorosa: na nossa casa, enquanto as crianças estavam crescendo, a regra era que você nunca poderia perturbar alguém quando este estava lendo. Se houvesse um livro nas mãos de alguém, esta pessoa estaria livre dos afazeres domésticos, ou de quaisquer das pequenas tarefas enfadonhas que os pais geralmente conseguem elaborar para dar aos filhos um senso de responsabilidade. (HOLLOWAY, 2006, p. 77). Enterrado na narrativa, a interpretação de Holloway sobre aquele episódio torna mais complexo um texto que não é tanto sobre a leitura de livros, mas sobre as implicações do que significa alguém dizer que os leu. A lacuna entre ler realmente e apenas reportar que leu levanta questões sobre que evidências são indispensáveis em qualquer tentativa de avaliar o que o processo de leitura significou, seja para um indivíduo, seja para um grupo social (HOCHMAN, 2009). A experiência de Holloway não demonstra apenas a vontade de uma mãe ver seu filho lendo e desfrutando do processo, mas, naturalmente, da proteção (ilusória) que isso fomentaria no ambiente carcerário. Seus diálogos com Bern refletem algumas das tensões que informam os estudos atuais sobre a história contemporânea da leitura. Por um lado, as armadilhas ou ciladas acarretadas pelo falso testemunho de uma leitura; por outro, o efeito recíproco e complexo que permeia a história cultural e a história pessoal de um indivíduo, bem como os desafios decorrentes das generalizações que podem ser percebidas a partir dos comentários (falsos com aparência de verdadeiros) de um leitor. Holloway repetidamente utiliza as palavras “íntimo” e “intimidade”, diretamente associadas ao processo de leitura, o que, dentro desse contexto, pode ser interpretado como “culturalmente modulado e modelado por instituições: família, escola, biblioteca, prisão” (HOCHMAN, 2009, p. 846). Seu livro, entre outras coisas, é o desabafo sincero de uma mãe em aflição. Ao mesmo tempo, ele interroga com maestria as alegações provenientes da apropriação indevida do processo de leitura no tocante à força modeladora que o poder do letramento (tal qual seu limite) acarreta por intermédio de um investimento culturalmente marcado. O relato de Holloway funciona como um exemplo ilustrativo a respeito das dificuldades em acreditar no que os leitores têm a dizer. A falta de confiança no testemunho de um suposto leitor apresenta-se, definitivamente, como um dos fatores mais problemáticos para a tentativa de construir uma história da leitura. Os subcomponentes que a moldariam podem ser tornar ainda mais complexos quando hábitos de leitura culturalmente típicos deparam com prazeres ou conflitos avivados por encontros individuais com livros específicos. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 55, jan./jun. 2014. Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos> ISSN 1808-043X – Versão eletrônica 136 Esses fatores problemáticos podem ser mais bem compreendidos quando transformados em perguntas, conforme demonstrado por Hochman (2009, p. 847): O que deve ser considerado como evidência de leitura? Quantas evidências são suficientes? Quantos tipos de evidências são o bastante para se poder afirmar o que a leitura significou, seja como prática cultural ou como experiência privada? Quais ferramentas interpretativas nos permitem avaliar as evidências que selecionamos? Onde entra o conteúdo da leitura? Um esboço de resposta pode ser encontrado no trabalho de Thomas Augst e Kenneth Carpenter. O primeiro é professor de Inglês na Universidade de Nova York (NYU); o segundo, estudioso da história das bibliotecas e bibliotecário emérito na Universidade de Harvard. Sua obra, intitulada Institutions of Reading: The Social Life of Libraries in the United States, publicada em 2007, é uma coleção de ensaios que, de uma maneira geral, propõem-se a examinar as metas, as políticas internas e a práticas das instituições que tornam os livros disponíveis para todos os públicos. Assim como o livro de Holloway, este opera interdisciplinarmente e reflete tendências recentes nos estudos sobre a história contemporânea da leitura e suas ligações temáticas bidirecionais com outros campos do saber, como História, Literatura e, de um modo mais amplo, os Estudos Culturais. Ambos os livros selecionam o que seus autores julgam ser evidências fidedignas de atos individuais de leitura e, ao mesmo tempo, salientam, de maneira clara, os impactos das convenções interpretativas e das normas sociais, tanto nos indivíduos leitores como no processo de leitura per se. Nas duas obras, a leitura é entendida como um comportamento culturalmente situado, e seus focos recaem sobre a experiência sócio/literária, ou seja, o papel dos livros na vida social. Na seção introdutória de Institutions of Reading, o organizador explica esse papel social da leitura, instituindo a biblioteca como a principal responsável por criar “comunidades físicas de leitores, unidos não apenas por textos compartilhados, mas também por práticas comuns de sociabilidade, educação e entretenimento” (AUGST; CARPENTER, 2007, p. 9). Não obstante, se a leitura era tradicionalmente vista como um ato isolado, a circulação de textos nas bibliotecas deu uma forma social para esse ato outrora solitário, haja vista que “qualquer texto cria um público ao mover-se por múltiplas mãos” (WARNER, 2001, p. 9). Algo semelhante não poderia se afirmar sobre a experiência de leitura atual em computadores pessoais, em tablets e em outros e-readers, mesmo que um renovado interesse tenha, de fato, sido despertado recentemente na leitura para consolidá-la como objeto científico de estudo, particularmente graças à emergente ansiedade (econômica ou não) sobre o futuro do livro impresso e sobre sua leitura na era eletrônica. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 55, jan./jun. 2014. Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos> ISSN 1808-043X – Versão eletrônica 137 Todos que usam um PC podem acessar o mundo em sua casa ou na escola, quase sempre envolvendo leitura e escrita de alguma maneira. Este ato confere poder a uma comunidade universal de mentes que possuem pensamentos em comum [...] nós podemos estar mergulhados em informação, mas contanto que nós nos sintamos conectados enquanto netizens [cidadãos da NET] nós não mais parecemos estar nadando sozinhos. (FISCHER, 2003, p. 308). Tanto na Academia quanto na imprensa popular, pesquisas proliferam com o intuito de estabelecer se as pessoas estão lendo a partir de um agrupado organizado de celulose ou a partir de uma tela de cristal líquido ou LED. Seja como for, uma área séria de estudo, a história da leitura, está florescendo e prosperando, em parte abastecida justamente por essas inquietações. Atenção a modos historicamente específicos de leitura fornece picos de discernimento na compreensão do significado cultural do letramento e de sua função como uma ferramenta prática ou como um princípio de crença. Porém, a resposta dos leitores está entrelaçada com a história pessoal de cada indivíduo, tanto quanto está com a história cultural como um todo. É uma tarefa bastante delicada encontrar um equilíbrio entre a análise de experiências individuais e experiências culturais, mas é indispensável para a expressão de uma história da leitura (HOCHMAN, 2009). As diferenças entre uma história da literatura e uma história da leitura são muitas. A primeira busca refletir um consenso sobre a importância de textos selecionados para a inclusão no cânone; já a segunda objetiva refletir o significado de toda a leitura e de todos que leem (HOCHMAN, 2009). Em outras palavras, a história da leitura torna importante o movimento de introduzir o leitor na narrativa sobre como os livros importam em determinado contexto cultural. Desse ponto de vista, o leitor costuma ser referido como um indivíduo dito real, e não como um construto teórico, como, muitas vezes, é tido na história, na teoria e na crítica literária. Segundo Zboray e Zboray (2006), o leitor não precisa ser famoso (na verdade, eles excluem o leitor profissional de seu relato), mas deve ser, invariavelmente, um criador ativo de significado e que almeja beneficiar-se de forma material, emocional ou espiritual da leitura de livros. Sem querer soar falsamente romantizada, a história da leitura não vacila ao afirmar seu objeto de estudo como um bem moral, em paralelo com a função de aliança e vinculação social. De acordo com Hochman (2009), se a história da leitura pretende ser vista como abrangente ou completa, ela deve adotar os leitores mais diversos, incluindo aqueles que, por vezes, rejeitaram o hábito da leitura ou aqueles que tiveram que lutar em algum momento da vida para ter acesso a materiais de leitura (a experiência em uma prisão é um exemplo). Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 55, jan./jun. 2014. Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos> ISSN 1808-043X – Versão eletrônica 138 Salvo exceções, a questão do acesso a materiais de leitura se torna ainda complexa na contemporaneidade, com o aumento exorbitante de textos publicados. Para se ter apenas uma ideia, nos Estados Unidos, em 1750, apenas 10 revistas especializadas em assuntos técnicos, científicos e contendo resenhas estavam sendo publicadas no país. Cinquenta anos mais tarde, esse número se multiplicou por um fator de 10. Em mais cinquenta anos, 10 vezes mais. Em 1950, havia cerca de 100 mil títulos. Daquele ano até o ano 2000, a multiplicação quintuplicou, chegando a meio milhão de periódicos apenas nos Estados Unidos (FISCHER, 2003). Com as publicações online, esses números estão se multiplicando exponencialmente e estão disponíveis para públicos globais à distância de um toque do mouse: “multiplicação, diversificação, proliferação e aceleração de matéria escrita caracterizam a presente ‘pandemia da informação’” (FISCHER, 2003, p. 307-308). Uma estratégia social em particular na qual se obteve sucesso foi a nova encarnação da livraria tradicional, isto é, a moderna megastore. Com vários andares, elegante, climatizada, com cafés e lanches gourmet, apresentações culturais, lançamentos de livros, espaços para crianças, exposições de arte, shows em teatros próprios, a nova livraria transformou a experiência humana de macroacesso à informação impressa. O desejo das novas livrarias vai além da conquista do cliente como mero comprador eventual. Elas demonstram uma busca por fidelidade que ganha nova terminologia – emprestada dos leitores de blogs e de outros diários online –, as megastores não querem apenas “leitores” (consumidores) fiéis, elas querem “seguidores”. Em países desenvolvidos, as bibliotecas públicas estão começando a copiar essa fórmula: Longe estão dos dias de estantes da altura de babel organizadas pelo sobrenome dos autores. Nas ilhas aconchegantes de coleções individuais de livros, o leitor moderno encontra um ambiente harmonioso e bem organizado, que exalta a compartimentalização, permitindo uma visão total e encorajando identificação pessoal [...] para muitos, é o que a igreja local costumava ser. (FISCHER, 2003, p. 308). Durante o curso do século XIX, quando a leitura altamente difundida ainda era um fenômeno relativamente novo, ministros, educadores e escritores competiam para elaborar os textos que assumiriam o papel de livros indispensáveis à vida dos estudiosos, dos leitores não profissionais, dos imigrantes e das crianças (HOCHMAN, 2009). Livros eram entendidos pela maioria como coisas boas, positivas. No entanto, quais livros, quantos e para quem era outra questão. Foi nesse contexto que a prescrição de Frank Norris (1976, p. 127), “melhor livros ruins do que sem livros”, tornou-se, para muitas pessoas, uma crença inviolável de que o ato da leitura trazia benefícios de modo automático. Tal crença encorajaria bons hábitos, desde Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 55, jan./jun. 2014. Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos> ISSN 1808-043X – Versão eletrônica 139 boa postura até a capacidade melhorada de “atenção e ordem” (ZBORAY; ZBORAY, 2006, p. 158). O gosto por livros melhores seria, naturalmente, o estágio seguinte. Como acontece com uma frequência mais do que desejável na história humana, algumas pessoas logo se mostrariam menos otimistas em relação ao progressivo avanço no bom gosto do público em geral, o mesmo público ao qual Norris se referiu como um “animal faminto” e “grandes brutos” (1976, p. 126-127). Como era de se esperar, à medida que o século se aproximava do fim, novos bibliotecários profissionalizados e outros guardiões da cultura tomaram para si a missão de guiar, regular e controlar a ascendente maré de matéria impressa (HOCHMAN, 2009). De acordo com Janice Radway (2007, p. 245), nos anos de 1870 a 1900, o movimento da biblioteca pública foi caracterizado não apenas por “um desejo de promover a circulação de livros de todos os tipos [mas também promover] argumentos conservadores sobre a respeitabilidade moral da ficção e sobre seu lugar apropriado na biblioteca”. Já no século XX, atos de leitura foram tão celebrados quanto contestados (uma realidade que se estende até os dias de hoje, como se percebe na proibição dos livros de Toni Morrison em pleno século XXI). Não é surpreendente, portanto, concluir que os livros já chegam às mãos dos leitores inseridos em determinado contexto cultural e totalmente carregados de significados sociais, que os precedem e neles aderem altamente consolidados. Quando Zboray e Zboray (2006, p. 55) declaram que até mesmo diários pessoais dos habitantes da Nova Inglaterra do século XIX “circulavam entre amigos, familiares e além” e que isso ocorria muito menos que apenas ocasionalmente, então surge o que eles chamam de “escrever para fins sociais” (ZBORAY; ZBORAY, 2006, p. 60). Partindo dessa perspectiva, a lacuna entre uma história social e uma experiência pessoal com a leitura está ameaçada de desaparecer. Para Hochman (2009), interpretar o testemunho de leitores é tão delicado quanto interpretar textos literários ou eventos históricos. Segundo Elizabeth Long (1990, p. 191), hábitos de leitura são formados de acordo com o que ela chama de “infraestrutura social”. Em outras palavras, os significados atribuídos a uma leitura são influenciados por múltiplos fatores, entre eles a maneira pela qual o indivíduo adquiriu seu letramento e, até mesmo antes disso, quando o indivíduo, na infância, ouviu alguém lendo para ele. Essas práticas são, naturalmente, instruídas por classe, gênero e outros tipos de posicionamento cultural (HOCHMAN, 2009). Nossos relacionamentos com nossas leituras estão inextricavelmente ligados a nossas histórias pessoais e sociais. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 55, jan./jun. 2014. Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos> ISSN 1808-043X – Versão eletrônica 140 É interessante que leitores não profissionais, anteriormente chamados de leitores comuns, passaram a ocupar o papel principal de sujeitos em estudos sobre leitura. Entretanto, nesta era de fácil acesso à Internet, a redes sociais e a blogs, leitores comuns também podem escrever de forma amadora sobre os livros que leram e divulgar para um público mundial. Esses leitores/escritores formariam, então, um grupo especial para os interessados na metodologia de pesquisa e na seleção de participantes para coleta de dados. A história da leitura é também, como era de se esperar, uma parte integral da história do livro, o que faz sentido, porque, à primeira vista, seria difícil estabelecer discussões historiográficas acerca da leitura sem mencionar os livros. Diz-se à primeira vista, porque, como notam Augst e Carpenter (2007, p. 157), referindo-se à circulação de livros nas bibliotecas públicas, quando se estuda o hábito da leitura, “os conteúdos em particular de cada livro se tornam menos importantes”, e, de fato, como demonstram os estudos sobre bibliotecas, aquisição de proficiência em leitura, letramento e leitura como prática social de uma maneira geral, o conteúdo dos livros em si tem pouca importância. As pessoas que estudam literatura e que falam sobre a leitura tendem a ver a leitura como uma atividade, um modo de sociabilidade, uma prática que reflete e que elucida a comunidade leitora. Os livros se tornaram artefatos culturais, e atenção para sua aparência física, seu modo de publicação, catalogação e disponibilidade frequentemente desloca qualquer coisa que os livros podem ter dito para os indivíduos que os leram. (HOCHMAN, 2009, p. 834). Em contrapartida, análises sobre a disseminação, o acesso e o “uso” dos livros nos estudos sobre história da leitura predominam. Aparentemente, mais estudiosos sobre literatura do que sobre história participam de eventos como os congressos da SHARP, promovidos pela Society for the History of Authorship, Reading, and Publishing (Sociedade pela História da Autoria, Leitura e Publicação), os American Antiquarian Society’s Summer Seminars (Seminários de Verão da Sociedade Americana de Antiquários), que tratam da história do livro, entre outros eventos, ou as convenções da Modern Language Association (MLA) (Associação de Línguas Modernas). Na convenção da MLA de 2008, ocorrida em San Francisco, Califórnia, cuja pauta era “a maneira que ensinamos hoje”, uma série de painéis levantou questões sobre como e por que ensinar literatura em um momento em que a leitura em si está em franco declínio. Alguns dos aspectos diversos do ensino nos dias de hoje que as sessões irão abordar incluem a oposição entre ensino e pesquisa, política na sala de aula, discurso acadêmico e estudantil, o ensino de letramento cívico, o que os estudantes devem ler e como eles devem ler, encurtar a lacuna entre as ciências humanas e as demais Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 55, jan./jun. 2014. Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos> ISSN 1808-043X – Versão eletrônica 141 ciências, o ensino de escrita criativa, e o ensino de alta cultura e de cultura popular. (GRAFF, 2008, p. 1, grifo nosso) Uma das sessões temáticas recebeu o título de Why Study Literature in School and College, and How Do We Judge Good Reading? (Por que estudar literatura na escola e na faculdade e como julgar uma boa leitura?). Nessa sessão, alguns dos painelistas chegaram a professar uma espécie de fé (ora hesitantes, ora inverossímeis) no futuro da leitura baseandose em dados apresentados sobre o presente. Outros advogaram práticas pedagógicas que se propõem a encorajar os estudantes a “perderem-se” nos livros em primeiro lugar e apenas mais tarde pensarem em adquirir ferramentas analíticas (o que aparenta fluir contra a corrente do que acontece historicamente em escolas no mundo todo, inclusive no Brasil, nas aulas de literatura). Em contraste com o que acontecia apenas um século atrás, hoje os nomes Shakespeare, Goethe, Hugo e Cervantes (esqueça Homero e Virgílio) conotam enquanto regra, tarefas de colégio, de faculdade ou de universidade, raramente para serem desfrutados após a formatura [...] sistemas educacionais ainda tentam sustentar os pilares literários da civilização e despertam, em alguns, uma fome permanente por mais. (FISCHER, 2003, p. 308). Talvez o presente seja o momento ideal para questionar os processos de apresentação de textos literários e suas apreciações – na forma de avaliação de leitura – desde o ensino fundamental até o ensino superior (e por que não nas pós-graduações?). Também pode ser conveniente para repensarmos de que forma a leitura é encorajada em nosso país e o que acontece durante esse encorajamento que permite a um número significativo de alunos ser aprovado em suas respectivas avaliações simplesmente ao responderem corretamente questões que possibilitam a alegação de uma leitura, em vez da confirmação de seu impacto na vida do aluno (e, principalmente, na maneira como ele viverá essa vida em sociedade dali em diante). Recebido em março de 2014. Aprovado em abril de 2014. Reading or Saying that We Read: a history of reading and of the social / literary experience Abstract: This text is a debate about the allegation of reading versus actual reading and the personal and social meanings derived from the tension exerted by this conflict. The aim is to critically analyze individual and collective literary events in order to better understand the causes and effects that compose their historical trajectory and then autonomously choose to what extent the History of Reading may currently be offered to inform future pedagogical practices. Two books on the theory of the History of Reading, namely Karla F. C. Holloway’s Bookmarks: Reading in Black and White de (2006) and Thomas Augst and Kenneth Carpenter’s Institutions of Reading: The Social Life of Libraries in the United States (2007) are used as theoretical background. Keywords: History of Reading. Individual reading. Social reading. Literary experience. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 55, jan./jun. 2014. Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos> ISSN 1808-043X – Versão eletrônica 142 Referências AUGST, Thomas; CARPENTER, Kenneth (Eds.). Institutions of Reading: The Social Life of Libraries in the United States. 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