Ler ou dizer que leu: uma história sobre a leitura e sobre a

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Ler ou dizer que leu: uma história sobre a leitura e sobre a
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Ler ou dizer que leu: uma história sobre a leitura e sobre a experiência
sócio/literária
Gustavo Vargas Cohen*
Resumo: Este texto é um debate sobre a alegação da leitura versus a leitura efetiva e os significados pessoais e
sociais acarretados pela tensão exercida por esse conflito. O objetivo é analisar criticamente eventos literários
individuais e coletivos para melhor compreender as causas e os efeitos que compõem sua trajetória histórica,
para, então, autonomamente, selecionar o quanto da história da leitura pode ser oferecido nos dias de hoje para
informar futuras práticas pedagógicas. Dois livros de teoria sobre o assunto são utilizados como referencial
teórico, Bookmarks: Reading in Black and White, de Karla F. C. Holloway (2006), e Institutions of Reading:
The Social Life of Libraries in the United States, de Thomas Augst e Kenneth Carpenter (2007).
Palavras-chave: História da leitura. Leitura individual. Leitura social. Experiência literária.
Minhas leituras criaram um vasto senso de distância entre o mundo em que eu vivia e eu.
(Richard Wright, Black Boy)
As palavras de Richard Wright descrevem com acurácia a ideologia que a professora
de Direito e História da Mulher da Universidade Duke, Karla F. C. Holloway, imprimiu em
seu livro Bookmarks: Reading in Black and White, publicado em 2006. Seu texto traz uma
discussão sobre as listas de livros encontradas nas autobiografias de escritores afroamericanos e sobre o quanto a leitura dessas obras significou para esses autores. São
comentadas as listas de W. E. B. Du Bois, Ralph Ellison, Richard Wright, Maya Angelou,
Langston Hughes, entre outros. Além disso, o livro de Holloway apresenta um segundo
subtítulo, que é Memoir. Este explica as vinhetas retrospectivas intercaladas ao corpo do texto
principal, em que conta suas próprias experiências com livros e com a leitura.
Uma das passagens mais memoráveis aparece no Capítulo 4, intitulado “A Prison
Library” (“Uma biblioteca de prisão”), em que Holloway descreve os hábitos de leitura de
afro-americanos célebres, como Malcolm X, Angela Davis e Eldridge Cleaver. Além das
grandes lições tiradas da experiência dessas figuras em seu tempo de encarceramento,
destacam-se também dois diálogos que a autora teve com seu filho, Bern, enquanto ele era um
jovem detento no presídio do Instituto de Correção Odom, em Jackson, na Carolina do Norte.
*
Doutor em Literaturas de Língua Inglesa pelo Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal
de Roraima (UFRR). (E-mail: [email protected]).
Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 55, jan./jun. 2014.
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Ela relata que Bern nunca havia sido um bom leitor, ou sequer um leitor, porém, durante o
tempo de sua detenção, ela, como mãe, não havia desistido de acreditar, como o fez durante
toda a infância do filho, que a salvação dele (e também dela) dependeria do que parecia uma
chance cada vez mais improvável – que Bern encontrasse um “santuário” na leitura. Holloway
enviou vários livros para seu filho durante esse período, por vezes utilizando-se de práticas
que contornavam e até burlavam a burocracia disciplinar da instituição. Ela lembra que:
durante uma visita [Bern] me contou que finalmente havia lido Ender’s Game, um
livro que eu oferecia a ele desde sua pré-adolescência. Ele disse que eu estava certa
sobre o fato do livro ser tão absorvente que ele quase não conseguia largá-lo uma
vez que nele adentrava. Eu sorri com uma satisfação que raramente tinha naquelas
visitas. (HOLLOWAY, 2006, p. 77, tradução nossa)1
O deleite que Holloway sentiu ao saber que seu filho havia lido algo que ela
recomendara significa muito mais que o prazer de encontrar um súbito senso de comunhão
com ele. Aquilo refletiu o compromisso com a ideologia de Holloway sobre o ideal de
letramento e sobre sua crença na promessa do que a leitura pode fazer (HOCHMAN, 2009). A
esperança no poder transformador da leitura atingiu seu pico naquele instante de revelação.
Entretanto, a esperança, inesperadamente, tornar-se-ia vã. Bern seria morto ao tentar escapar
da prisão pouco tempo depois, e o relato de Holloway termina da seguinte maneira:
Um dia, perto do fim, de uma maneira confessional, como eu a vejo agora, ele me
disse: Mãe, você sabe, eu nunca realmente li aquele livro, Ender’s Game. Eu não
consegui responder. Eu lembrava apenas de compartilhar com ele aquela conversa,
de compartilhar um sorriso com ciência mútua sobre o quão bom aquele livro era.
(HOLLOWAY, 2006, p. 88)
Holloway expressa brevemente o amargor que sentiu ao perceber que havia sido mais
uma vez levada, de forma involuntária, pelas “fantasias” ou “mentiras” contadas por seu filho.
Entretanto, o capítulo termina em uma nota mais positiva, quando cita a explicação de Bern
quando disse que sabia que aquilo faria sua mãe feliz e que ele queria muito vê-la feliz. Ela,
no entanto, não deixa de ponderar o quanto aquele gesto de amor indicou que não haveria
santuário para ele nos livros, nenhum refúgio na imaginação gerada por aquelas páginas,
nenhum desejo formado e buscado surgido dali. Significou, porém, que ele a amava o bastante
para querer vê-la feliz, que havia dor dentro dele ao compreender o que ela estava passando
depois de perder seu convívio para a prisão e para os horrores dela decorrentes. Significou,
também, que ele soube escolher qual seria o único gesto com poder suficiente para fazê-la
1
Todas as citações apresentadas neste texto foram traduzidas pelo próprio autor.
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feliz em meio à dor do distanciamento. Ao mesmo tempo, é possível encontrar uma ironia um
tanto dolorosa:
na nossa casa, enquanto as crianças estavam crescendo, a regra era que você nunca
poderia perturbar alguém quando este estava lendo. Se houvesse um livro nas mãos
de alguém, esta pessoa estaria livre dos afazeres domésticos, ou de quaisquer das
pequenas tarefas enfadonhas que os pais geralmente conseguem elaborar para dar
aos filhos um senso de responsabilidade. (HOLLOWAY, 2006, p. 77).
Enterrado na narrativa, a interpretação de Holloway sobre aquele episódio torna mais
complexo um texto que não é tanto sobre a leitura de livros, mas sobre as implicações do que
significa alguém dizer que os leu. A lacuna entre ler realmente e apenas reportar que leu
levanta questões sobre que evidências são indispensáveis em qualquer tentativa de avaliar o
que o processo de leitura significou, seja para um indivíduo, seja para um grupo social
(HOCHMAN, 2009). A experiência de Holloway não demonstra apenas a vontade de uma
mãe ver seu filho lendo e desfrutando do processo, mas, naturalmente, da proteção (ilusória)
que isso fomentaria no ambiente carcerário. Seus diálogos com Bern refletem algumas das
tensões que informam os estudos atuais sobre a história contemporânea da leitura. Por um
lado, as armadilhas ou ciladas acarretadas pelo falso testemunho de uma leitura; por outro, o
efeito recíproco e complexo que permeia a história cultural e a história pessoal de um
indivíduo, bem como os desafios decorrentes das generalizações que podem ser percebidas a
partir dos comentários (falsos com aparência de verdadeiros) de um leitor.
Holloway repetidamente utiliza as palavras “íntimo” e “intimidade”, diretamente
associadas ao processo de leitura, o que, dentro desse contexto, pode ser interpretado como
“culturalmente modulado e modelado por instituições: família, escola, biblioteca, prisão”
(HOCHMAN, 2009, p. 846). Seu livro, entre outras coisas, é o desabafo sincero de uma mãe
em aflição. Ao mesmo tempo, ele interroga com maestria as alegações provenientes da
apropriação indevida do processo de leitura no tocante à força modeladora que o poder do
letramento (tal qual seu limite) acarreta por intermédio de um investimento culturalmente
marcado.
O relato de Holloway funciona como um exemplo ilustrativo a respeito das
dificuldades em acreditar no que os leitores têm a dizer. A falta de confiança no testemunho
de um suposto leitor apresenta-se, definitivamente, como um dos fatores mais problemáticos
para a tentativa de construir uma história da leitura. Os subcomponentes que a moldariam
podem ser tornar ainda mais complexos quando hábitos de leitura culturalmente típicos
deparam com prazeres ou conflitos avivados por encontros individuais com livros específicos.
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Esses fatores problemáticos podem ser mais bem compreendidos quando transformados em
perguntas, conforme demonstrado por Hochman (2009, p. 847):
O que deve ser considerado como evidência de leitura? Quantas evidências são
suficientes? Quantos tipos de evidências são o bastante para se poder afirmar o que a
leitura significou, seja como prática cultural ou como experiência privada? Quais
ferramentas interpretativas nos permitem avaliar as evidências que selecionamos?
Onde entra o conteúdo da leitura?
Um esboço de resposta pode ser encontrado no trabalho de Thomas Augst e Kenneth
Carpenter. O primeiro é professor de Inglês na Universidade de Nova York (NYU); o
segundo, estudioso da história das bibliotecas e bibliotecário emérito na Universidade de
Harvard. Sua obra, intitulada Institutions of Reading: The Social Life of Libraries in the
United States, publicada em 2007, é uma coleção de ensaios que, de uma maneira geral,
propõem-se a examinar as metas, as políticas internas e a práticas das instituições que tornam
os livros disponíveis para todos os públicos. Assim como o livro de Holloway, este opera
interdisciplinarmente e reflete tendências recentes nos estudos sobre a história contemporânea
da leitura e suas ligações temáticas bidirecionais com outros campos do saber, como História,
Literatura e, de um modo mais amplo, os Estudos Culturais. Ambos os livros selecionam o
que seus autores julgam ser evidências fidedignas de atos individuais de leitura e, ao mesmo
tempo, salientam, de maneira clara, os impactos das convenções interpretativas e das normas
sociais, tanto nos indivíduos leitores como no processo de leitura per se.
Nas duas obras, a leitura é entendida como um comportamento culturalmente situado,
e seus focos recaem sobre a experiência sócio/literária, ou seja, o papel dos livros na vida
social. Na seção introdutória de Institutions of Reading, o organizador explica esse papel
social da leitura, instituindo a biblioteca como a principal responsável por criar “comunidades
físicas de leitores, unidos não apenas por textos compartilhados, mas também por práticas
comuns de sociabilidade, educação e entretenimento” (AUGST; CARPENTER, 2007, p. 9).
Não obstante, se a leitura era tradicionalmente vista como um ato isolado, a circulação de
textos nas bibliotecas deu uma forma social para esse ato outrora solitário, haja vista que
“qualquer texto cria um público ao mover-se por múltiplas mãos” (WARNER, 2001, p. 9).
Algo semelhante não poderia se afirmar sobre a experiência de leitura atual em
computadores pessoais, em tablets e em outros e-readers, mesmo que um renovado interesse
tenha, de fato, sido despertado recentemente na leitura para consolidá-la como objeto
científico de estudo, particularmente graças à emergente ansiedade (econômica ou não) sobre
o futuro do livro impresso e sobre sua leitura na era eletrônica.
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Todos que usam um PC podem acessar o mundo em sua casa ou na escola, quase
sempre envolvendo leitura e escrita de alguma maneira. Este ato confere poder a
uma comunidade universal de mentes que possuem pensamentos em comum [...] nós
podemos estar mergulhados em informação, mas contanto que nós nos sintamos
conectados enquanto netizens [cidadãos da NET] nós não mais parecemos estar
nadando sozinhos. (FISCHER, 2003, p. 308).
Tanto na Academia quanto na imprensa popular, pesquisas proliferam com o intuito de
estabelecer se as pessoas estão lendo a partir de um agrupado organizado de celulose ou a
partir de uma tela de cristal líquido ou LED. Seja como for, uma área séria de estudo, a
história da leitura, está florescendo e prosperando, em parte abastecida justamente por essas
inquietações.
Atenção a modos historicamente específicos de leitura fornece picos de discernimento
na compreensão do significado cultural do letramento e de sua função como uma ferramenta
prática ou como um princípio de crença. Porém, a resposta dos leitores está entrelaçada com a
história pessoal de cada indivíduo, tanto quanto está com a história cultural como um todo. É
uma tarefa bastante delicada encontrar um equilíbrio entre a análise de experiências
individuais e experiências culturais, mas é indispensável para a expressão de uma história da
leitura (HOCHMAN, 2009).
As diferenças entre uma história da literatura e uma história da leitura são muitas. A
primeira busca refletir um consenso sobre a importância de textos selecionados para a
inclusão no cânone; já a segunda objetiva refletir o significado de toda a leitura e de todos que
leem (HOCHMAN, 2009). Em outras palavras, a história da leitura torna importante o
movimento de introduzir o leitor na narrativa sobre como os livros importam em determinado
contexto cultural. Desse ponto de vista, o leitor costuma ser referido como um indivíduo dito
real, e não como um construto teórico, como, muitas vezes, é tido na história, na teoria e na
crítica literária.
Segundo Zboray e Zboray (2006), o leitor não precisa ser famoso (na verdade, eles
excluem o leitor profissional de seu relato), mas deve ser, invariavelmente, um criador ativo
de significado e que almeja beneficiar-se de forma material, emocional ou espiritual da leitura
de livros. Sem querer soar falsamente romantizada, a história da leitura não vacila ao afirmar
seu objeto de estudo como um bem moral, em paralelo com a função de aliança e vinculação
social. De acordo com Hochman (2009), se a história da leitura pretende ser vista como
abrangente ou completa, ela deve adotar os leitores mais diversos, incluindo aqueles que, por
vezes, rejeitaram o hábito da leitura ou aqueles que tiveram que lutar em algum momento da
vida para ter acesso a materiais de leitura (a experiência em uma prisão é um exemplo).
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Salvo exceções, a questão do acesso a materiais de leitura se torna ainda complexa na
contemporaneidade, com o aumento exorbitante de textos publicados. Para se ter apenas uma
ideia, nos Estados Unidos, em 1750, apenas 10 revistas especializadas em assuntos técnicos,
científicos e contendo resenhas estavam sendo publicadas no país. Cinquenta anos mais tarde,
esse número se multiplicou por um fator de 10. Em mais cinquenta anos, 10 vezes mais. Em
1950, havia cerca de 100 mil títulos. Daquele ano até o ano 2000, a multiplicação
quintuplicou, chegando a meio milhão de periódicos apenas nos Estados Unidos (FISCHER,
2003). Com as publicações online, esses números estão se multiplicando exponencialmente e
estão disponíveis para públicos globais à distância de um toque do mouse: “multiplicação,
diversificação, proliferação e aceleração de matéria escrita caracterizam a presente ‘pandemia
da informação’” (FISCHER, 2003, p. 307-308).
Uma estratégia social em particular na qual se obteve sucesso foi a nova encarnação
da livraria tradicional, isto é, a moderna megastore. Com vários andares, elegante,
climatizada, com cafés e lanches gourmet, apresentações culturais, lançamentos de livros,
espaços para crianças, exposições de arte, shows em teatros próprios, a nova livraria
transformou a experiência humana de macroacesso à informação impressa. O desejo das
novas livrarias vai além da conquista do cliente como mero comprador eventual. Elas
demonstram uma busca por fidelidade que ganha nova terminologia – emprestada dos leitores
de blogs e de outros diários online –, as megastores não querem apenas “leitores”
(consumidores) fiéis, elas querem “seguidores”. Em países desenvolvidos, as bibliotecas
públicas estão começando a copiar essa fórmula:
Longe estão dos dias de estantes da altura de babel organizadas pelo sobrenome dos
autores. Nas ilhas aconchegantes de coleções individuais de livros, o leitor moderno
encontra um ambiente harmonioso e bem organizado, que exalta a
compartimentalização, permitindo uma visão total e encorajando identificação
pessoal [...] para muitos, é o que a igreja local costumava ser. (FISCHER, 2003, p.
308).
Durante o curso do século XIX, quando a leitura altamente difundida ainda era um
fenômeno relativamente novo, ministros, educadores e escritores competiam para elaborar os
textos que assumiriam o papel de livros indispensáveis à vida dos estudiosos, dos leitores não
profissionais, dos imigrantes e das crianças (HOCHMAN, 2009). Livros eram entendidos pela
maioria como coisas boas, positivas. No entanto, quais livros, quantos e para quem era outra
questão. Foi nesse contexto que a prescrição de Frank Norris (1976, p. 127), “melhor livros
ruins do que sem livros”, tornou-se, para muitas pessoas, uma crença inviolável de que o ato
da leitura trazia benefícios de modo automático. Tal crença encorajaria bons hábitos, desde
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boa postura até a capacidade melhorada de “atenção e ordem” (ZBORAY; ZBORAY, 2006,
p. 158). O gosto por livros melhores seria, naturalmente, o estágio seguinte.
Como acontece com uma frequência mais do que desejável na história humana,
algumas pessoas logo se mostrariam menos otimistas em relação ao progressivo avanço no
bom gosto do público em geral, o mesmo público ao qual Norris se referiu como um “animal
faminto” e “grandes brutos” (1976, p. 126-127). Como era de se esperar, à medida que o
século se aproximava do fim, novos bibliotecários profissionalizados e outros guardiões da
cultura tomaram para si a missão de guiar, regular e controlar a ascendente maré de matéria
impressa (HOCHMAN, 2009). De acordo com Janice Radway (2007, p. 245), nos anos de
1870 a 1900, o movimento da biblioteca pública foi caracterizado não apenas por “um desejo
de promover a circulação de livros de todos os tipos [mas também promover] argumentos
conservadores sobre a respeitabilidade moral da ficção e sobre seu lugar apropriado na
biblioteca”.
Já no século XX, atos de leitura foram tão celebrados quanto contestados (uma
realidade que se estende até os dias de hoje, como se percebe na proibição dos livros de Toni
Morrison em pleno século XXI). Não é surpreendente, portanto, concluir que os livros já
chegam às mãos dos leitores inseridos em determinado contexto cultural e totalmente
carregados de significados sociais, que os precedem e neles aderem altamente consolidados.
Quando Zboray e Zboray (2006, p. 55) declaram que até mesmo diários pessoais dos
habitantes da Nova Inglaterra do século XIX “circulavam entre amigos, familiares e além” e
que isso ocorria muito menos que apenas ocasionalmente, então surge o que eles chamam de
“escrever para fins sociais” (ZBORAY; ZBORAY, 2006, p. 60). Partindo dessa perspectiva, a
lacuna entre uma história social e uma experiência pessoal com a leitura está ameaçada de
desaparecer. Para Hochman (2009), interpretar o testemunho de leitores é tão delicado quanto
interpretar textos literários ou eventos históricos. Segundo Elizabeth Long (1990, p. 191),
hábitos de leitura são formados de acordo com o que ela chama de “infraestrutura social”. Em
outras palavras, os significados atribuídos a uma leitura são influenciados por múltiplos
fatores, entre eles a maneira pela qual o indivíduo adquiriu seu letramento e, até mesmo antes
disso, quando o indivíduo, na infância, ouviu alguém lendo para ele. Essas práticas são,
naturalmente, instruídas por classe, gênero e outros tipos de posicionamento cultural
(HOCHMAN, 2009). Nossos relacionamentos com nossas leituras estão inextricavelmente
ligados a nossas histórias pessoais e sociais.
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É interessante que leitores não profissionais, anteriormente chamados de leitores
comuns, passaram a ocupar o papel principal de sujeitos em estudos sobre leitura. Entretanto,
nesta era de fácil acesso à Internet, a redes sociais e a blogs, leitores comuns também podem
escrever de forma amadora sobre os livros que leram e divulgar para um público mundial.
Esses leitores/escritores formariam, então, um grupo especial para os interessados na
metodologia de pesquisa e na seleção de participantes para coleta de dados.
A história da leitura é também, como era de se esperar, uma parte integral da história
do livro, o que faz sentido, porque, à primeira vista, seria difícil estabelecer discussões
historiográficas acerca da leitura sem mencionar os livros. Diz-se à primeira vista, porque,
como notam Augst e Carpenter (2007, p. 157), referindo-se à circulação de livros nas
bibliotecas públicas, quando se estuda o hábito da leitura, “os conteúdos em particular de cada
livro se tornam menos importantes”, e, de fato, como demonstram os estudos sobre
bibliotecas, aquisição de proficiência em leitura, letramento e leitura como prática social de
uma maneira geral, o conteúdo dos livros em si tem pouca importância.
As pessoas que estudam literatura e que falam sobre a leitura tendem a ver a leitura
como uma atividade, um modo de sociabilidade, uma prática que reflete e que
elucida a comunidade leitora. Os livros se tornaram artefatos culturais, e atenção
para sua aparência física, seu modo de publicação, catalogação e disponibilidade
frequentemente desloca qualquer coisa que os livros podem ter dito para os
indivíduos que os leram. (HOCHMAN, 2009, p. 834).
Em contrapartida, análises sobre a disseminação, o acesso e o “uso” dos livros nos
estudos sobre história da leitura predominam. Aparentemente, mais estudiosos sobre literatura
do que sobre história participam de eventos como os congressos da SHARP, promovidos pela
Society for the History of Authorship, Reading, and Publishing (Sociedade pela História da
Autoria, Leitura e Publicação), os American Antiquarian Society’s Summer Seminars
(Seminários de Verão da Sociedade Americana de Antiquários), que tratam da história do
livro, entre outros eventos, ou as convenções da Modern Language Association (MLA)
(Associação de Línguas Modernas).
Na convenção da MLA de 2008, ocorrida em San Francisco, Califórnia, cuja pauta era
“a maneira que ensinamos hoje”, uma série de painéis levantou questões sobre como e por
que ensinar literatura em um momento em que a leitura em si está em franco declínio.
Alguns dos aspectos diversos do ensino nos dias de hoje que as sessões irão abordar
incluem a oposição entre ensino e pesquisa, política na sala de aula, discurso
acadêmico e estudantil, o ensino de letramento cívico, o que os estudantes devem ler
e como eles devem ler, encurtar a lacuna entre as ciências humanas e as demais
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ciências, o ensino de escrita criativa, e o ensino de alta cultura e de cultura popular.
(GRAFF, 2008, p. 1, grifo nosso)
Uma das sessões temáticas recebeu o título de Why Study Literature in School and
College, and How Do We Judge Good Reading? (Por que estudar literatura na escola e na
faculdade e como julgar uma boa leitura?). Nessa sessão, alguns dos painelistas chegaram a
professar uma espécie de fé (ora hesitantes, ora inverossímeis) no futuro da leitura baseandose em dados apresentados sobre o presente. Outros advogaram práticas pedagógicas que se
propõem a encorajar os estudantes a “perderem-se” nos livros em primeiro lugar e apenas
mais tarde pensarem em adquirir ferramentas analíticas (o que aparenta fluir contra a corrente
do que acontece historicamente em escolas no mundo todo, inclusive no Brasil, nas aulas de
literatura).
Em contraste com o que acontecia apenas um século atrás, hoje os nomes
Shakespeare, Goethe, Hugo e Cervantes (esqueça Homero e Virgílio) conotam
enquanto regra, tarefas de colégio, de faculdade ou de universidade, raramente para
serem desfrutados após a formatura [...] sistemas educacionais ainda tentam
sustentar os pilares literários da civilização e despertam, em alguns, uma fome
permanente por mais. (FISCHER, 2003, p. 308).
Talvez o presente seja o momento ideal para questionar os processos de apresentação
de textos literários e suas apreciações – na forma de avaliação de leitura – desde o ensino
fundamental até o ensino superior (e por que não nas pós-graduações?). Também pode ser
conveniente para repensarmos de que forma a leitura é encorajada em nosso país e o que
acontece durante esse encorajamento que permite a um número significativo de alunos ser
aprovado em suas respectivas avaliações simplesmente ao responderem corretamente questões
que possibilitam a alegação de uma leitura, em vez da confirmação de seu impacto na vida do
aluno (e, principalmente, na maneira como ele viverá essa vida em sociedade dali em diante).
Recebido em março de 2014.
Aprovado em abril de 2014.
Reading or Saying that We Read: a history of reading and of the social / literary experience
Abstract: This text is a debate about the allegation of reading versus actual reading and the personal and social
meanings derived from the tension exerted by this conflict. The aim is to critically analyze individual and
collective literary events in order to better understand the causes and effects that compose their historical
trajectory and then autonomously choose to what extent the History of Reading may currently be offered to
inform future pedagogical practices. Two books on the theory of the History of Reading, namely Karla F. C.
Holloway’s Bookmarks: Reading in Black and White de (2006) and Thomas Augst and Kenneth Carpenter’s
Institutions of Reading: The Social Life of Libraries in the United States (2007) are used as theoretical
background.
Keywords: History of Reading. Individual reading. Social reading. Literary experience.
Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 55, jan./jun. 2014.
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Referências
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Libraries in the United States. Boston: University of Massachusetts Press, 2007.
FISCHER, Steven Roger. A History of Reading. Londres: Reaktion Books, 2003.
GRAFF, Gerald. Presidential address. MLA, San Francisco, 2008. The Way We Teach Now.
Disponível em: <http://www.mla.org/pdf/presforumbrochures1d.pdf>. Acesso em: 20 fev.
2014.
HOCHMAN, Barbara. The History of Reading and the Death of the Text. American Literary
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Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 55, jan./jun. 2014.
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