A Holanda e a América do Sul: A Formação do Suriname

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A Holanda e a América do Sul: A Formação do Suriname
INTELLECTOR
Ano XI
Volume XII
Nº 23
Julho/Dezembro 2015
Rio de Janeiro
ISSN 1807-1260
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A Holanda e a América do Sul: A Formação do Suriname
Iuri Cavlak1
Resumo
Este artigo visa refletir sobre a expansão comercial holandesa nos primeiros séculos após a
chegada dos europeus na América, tendo em vista o contexto do extremo norte da América do
Sul e a formação do Suriname.
Palavras-chave: Expansão Marítima, Holanda, América Holandesa, Suriname, Colonização.
Abstract: This article aims reflect about the Dutch’s commercial expansion in the first
centuries after the Europeans arrive in the America, regarding the context of the extreme
north of South America and the formation of Suriname.
Keywords: Maritime Expansion, Holland, Dutch´s America, Surinam, Colonization.
Doutor e Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), com pós-doutorado pela New York
University. Professor do Colegiado de História e do Mestrado em Desenvolvimento Regional da Universidade
Federal do Amapá (UNIFAP). E-mail: [email protected]
Recebido em 26/04/2015. Aprovado para publicação em 31/07/2015
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Introdução
A
presença holandesa na América do Sul desdobrou-se em duas etapas. Domínio do
nordeste português, de 1580 a 1640, e posteriormente a soberania no extremo norte
do subcontinente, com idas e vindas e muitos percalços até a segunda metade do século
XX.
Interessante ter em mente que o fulcro do processo foi a atividade comercial, delegada para
Companhias de Comércio, investidores individuais e mesmo províncias separadas, que
privilegiaram a hegemonia das trocas sem uma preocupação mais acurada com o povoamento
e a evangelização. Diferente das nações ibéricas, a Holanda não preencheu o lugar com sua
população e nem espalhou a sua cultura de modo significativo.
Por outro lado, suas colônias sul-americanas foram cruciais para a expansão ultramarina. As
disputas com ingleses e franceses e os gastos com a importação de escravos africanos e
posteriormente imigrantes asiáticos sugerem a lucratividade auferida, bem como essa ligação
entre o desenvolvimento colonial e a realidade metropolitana.
Meu objetivo neste artigo é reconstituir a formação do Suriname, enfim o único território sulamericano que a Holanda dominaria em definitivo a partir da Convenção de Londres em 1814,
levando em consideração a história comercial dessa nação europeia e a concretização da
sociedade surinamesa no século XIX.
O domínio holandês
As Províncias Unidas emergiram na época moderna através de várias guerras contra a
dominação ibérica, culminando na separação em relação ao trono Habsburgo em 1581. O fato
de terem participado, enquanto pertencentes do Império Espanhol, das grandes navegações e
de possuir uma posição geográfica favorável para a atividade comercial deram de saída
vantagens para esses pequenos Estados, que se unificaram politicamente e passaram a
dedicar imensos esforços nas trocas marítimas. Durante o século XVII, os holandeses foram
hegemônicos no comércio de longa distância, ensejando seu chamado “século de ouro”,
seguido por uma decadência que deslocou a nação para um segundo plano durante o
desabrochar da Revolução Industrial. Os protagonistas da europeização do mundo no início
do Renascimento passaram a ser coadjuvantes nos séculos XVIII e XIX.
Naquele início do XVI, buscando o fortalecimento frente a ex-metrópole, as Províncias Unidas
(entre as quais a Holanda era a principal, batizando com seu nome toda a federação)
permitiram a liberdade religiosa, franqueando a imigração de milhares de refugiados no
contexto na Reforma. A religião protestante tornou-se dominante na maioria dos estados,
levando a necessidade de afirmação econômica e política no sentido de fortalecer essa nova
perspectiva que surgia. Junto com o patriotismo das cidades e o comércio, a Holanda passou a
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ser compreendida como uma entidade política unificada, embora um Estado composto por
diversas línguas e costumes. Possivelmente, na ausência de um forte nacionalismo, as
importantes cidades tiveram como destaque certa tolerância a diferença, em vez de apego a
uma dinastia ou um país que, em outros lugares, levaram amiúde a xenofobia.
Com efeito, grande parte burguesia holandesa, precocemente fortalecida mesmo na ausência
de um Estado absolutista e abastecida pelo afluxo de recursos advindos dos novos habitantes
de religião protestante, tendiam a formar um rederij, combinação de pequenos comerciantes
que acumulavam uma soma de recursos e estabeleciam uma empresa marítima, comprando
barcos, contratando mão de obra, abastecendo e estabelecendo rotas comerciais. Assim, o
poder político e econômico encerrava-se nessa classe de empreendedores (BOXER, 1965, p.
6).
Um exemplo de como as guerras religiosas serviam ao fortalecimento comercial é dado por
Boxer: quando a cidade de Parma capturou a cidade de Antuérpia, em 1585, para facilitar a
rendição dessa última foi permitido que os calvinistas que não estavam dispostos a abrir mão
de sua religião emigrassem com todos os seus bens imóveis, em um período de dois anos.
Grande parte foi para Amsterdã, que entre 1585 e 1622 viu sua população saltar de 75 mil
para 105 mil habitantes. Por falta de terras, esses recém chegados, possuidores de algum
capital, não viram outra oportunidade melhor senão investir no comercio ultramarino,
retroalimentando essa atividade (ibid, p. 18-19).
Duas grandes corporações comercias foram criadas: “United Netherlands Chartered East India
Company”, a chamada Companhia de Comércio das Índias Orientais, que na língua holandesa
ficou conhecida como VOC, em 20 de marco de 1602; e, o que nos interessa, em 3 marҫo de
1621, a “West Indian Company”, Companhia Comercial das Índias Ocidentais, ou WIC.
A WIC, que nos primeiros momentos de sua fundação demonstrou interesse na prata da
América espanhola, passou a dedicar grande esforço na conquista da produção do açúcar na
América portuguesa, sobretudo no nordeste do Brasil, e no ouro, marfim e escravos na costa
africana dominada também pelos lusos.
O historiador Cornelis Goslinga entende que a WIC foi acima de tudo um instrumento de
guerra e pirataria contra os espanhóis na região do Caribe, enquanto comércio e colonização
seriam apenas a segunda opção. Essa companhia possuía uma organização peculiar, sendo seu
comitê executivo, órgão máximo de comando, conhecido como “Heren XIX” ou simplesmente
“the XIX”, composto por oito representantes de Amsterdã, quatro da Zeelandia, dois
provisórios de três outros distritos e um último representando a monarquia (GOSLINGA,
1979, p. 21).
Em 1648, pelo Tratado de Munster, a Espanha reconheceu a independência das Províncias
Unidas. Naquela altura, a presença holandesa se fortalecia de Arcanchel a Recife, de
Manhattan a Nagasaki. Na Europa, os barcos holandeses eram responsáveis por cerca de três
quartos do comércio de madeira, metal e grãos que transitava pela parte norte, bem como três
quartos do sal que chegava em Portugal e na França através dos Balcãs. Mais da metade das
vestimentas eram manufaturadas na Holanda, maior responsável pelo tráfico de especiarias,
açúcar e porcelanas. A vida cultural holandesa se tornou uma das mais avivadas da Europa,
com o aparecimento de gênios da pintura, literatura e filosofia, nomes como Rembrant,
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Vermeer, Erasmus, Spinosa, Grotius e o próprio Descartes que por muito tempo ali viveu.
Cantões do mundo que nunca havia ouvido falar de Londres ou Paris sabiam da existência de
uma cidade chamada Amsterdã (BOXER, 1965, p. 4).
Toda essa pujança econômica levou a sérios atritos com outra grande potência marítima da
época, a Inglaterra. Devido as desavenças, sobretudo econômicas, mas não só elas, ocorreram
três grandes guerras entre a britânicos e holandeses no século XVII. As razões mais imediatas
repousaramna disputa pela pesca no mar do norte, pelos mercados de tecidos no continente e
a problemática envolvida no mundo colonial. O esforço dedicado a essas guerras certamente
contribuiu para o enfraquecimento das Províncias Unidas e, consequentemente, para o
fortalecimento inglês.
Em 1650, o parlamento em Londres proibiu o comércio com a Holanda, proclamando, um ano
depois, o “First Navegation Act”, mirando o monopólio. Em 1652 teve início a primeira guerra
entre ambas, marcada pela vitória da Inglaterra, melhor fornida de navios adequados para o
combate e uma agricultura interna capaz de suportar queda momentânea de produtos
importados. A falta de união das Províncias Unidas, na questão das despesas bélicas,
desempenhou um papel deletério para o lado holandês. A guerra terminou em 1653,
resultando em perdas inglesas de 250 embarcações, enquanto 1700 chegou o número de
navios holandeses afundados ou postos fora de combate.
Pelo tratado de Westminster, assinado em abril de 1654, Cromwell logrou que a Holanda
retirasse alguns direitos da Casa de Orange, enfraquecendo assim o apoio que os exilados
Stuarts possuíam de seus primos. Todavia, as tensões continuaram e a Holanda rapidamente
conseguiu se recuperar financeiramente, alarmando a maioria dos políticos ingleses
envolvidos no comércio marítimo. Em marҫo de 1665, o rei Carlos II novamente declarou
guerra as Províncias Unidas, sendo essa segunda a mais equilibrada, tendo sido decretada a
paz em 1667 através do Tratado de Breda. Havia um receio em comum de que a França se
beneficiaria da guerra para avançar suas posições na Europa e nas colônias. Interessante que
esse tratado selou a troca, algo hoje impensável, de Nova Amsterdã (ilha de Manhattan) pelo
Suriname, o que parece não ter tido muitas reclamações pelo lado holandês a época.
Novamente, em 1672, a derradeira guerra no século XVII foi declarada pela Inglaterra, agora
em aliança com a França, não rendendo muitos ganhos efetivos para os primeiros, que
selaram a paz em 1674 (BOXER, 1974).
As companhias comerciais empregavam grande número de estrangeiros, na medida em que a
maioria dos holandeses preferiam viver perto de casa e não nas difíceis condições inerentes as
navegações. Pelo fato de existirem muitos pobres, refugiados, e pouca atividade industrial, a
Holanda podia contar com uma mão de obra significativa para ser empregada, disposta a
trabalhar por baixos salários e conviver com as altas taxas de mortalidade no oficio. Em 1644,
cerca de 80 mil marinheiros sob comando holandês povoavam o oceano mundo afora, em
mais de 2 mil navios, metade dedicados a guerra. Em torno de 6 mil embarcações eram
utilizadas na navegação interna. A VOC (Companhia de Comércio das Índias Orientais) chegou
a 200 navios e 30 mil homens (BOXER, 1965, p. 58).
Quando voltavam para casa, a maioria dos marinheiros gastavam o que haviam recebido em
Amsterdã, fomentando a circulação do comércio varejista, bares, tavernas; trazendo
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conhecimento e vivências de outros lugares e costumes, contribuindo de sorte para o
cosmopolitismo da cidade e espicaçando a curiosidade de filósofos e pensadores a respeito do
gênero humano. Os holandeses produziram, no decorrer do XVII, os principais mapas, cartas
de navegação, manual de viagens e descrições de lugares exóticos. No final desse século, havia
mais livros impressos nas Províncias Unidas do que em todos os outros países europeus
somados.
Em relação as viagens, o Oriente era o mais popular e o mais lucrativo lugar para o comércio
holandês. Pimenta e especiarias foram os primeiros produtos importantes, seguidos de
tecidos e tapeçarias da Índia, China, Bengali e Pérsia. No século XVIII, a supremacia recaiu no
chá e café, os estimulantes tomando a vantagem dos tecidos. Teve importância igualmente as
plantações de café e açúcar em Java. Por volta de 1730, 90% do açúcar vendido pela VOC na
Europa advinha dessa ilha asiática. (ibid, p. 200).
Por outro lado, as Províncias Unidas padeceram de um isolamento diplomático nas primeiras
décadas após o Tratado de Munster. Apenas o reino da Dinamarca era um importante aliado,
enquanto Portugal e Inglaterra se tornavam opositores cada vez mais ferrenhos. O declínio da
nação articulou-se com o declínio das companhias de comércio, uma vez que os gastos
militares e as guerras foram sobrepujando os lucros.
A meu juízo, um dos principais motivos para o estancamento da dominação holandesa
repousou no comportamento de sua classe dominante. Mistura de nobres e burgueses, grosso
modo passaram a optar pelo reforço dos investimentos na atividade puramente financeira
quando a dificuldade acumulação na esfera do capital comercial se fez presente. A carência de
reaplicação dos lucros nas trocas prejudicou o salto necessário exigido pela economia
internacional no início do século XVIII, bloqueando uma política econômica que privilegiasse a
construção de indústrias e os melhoramentos infra-estruturais. Sendo um país pequeno, com
poucas matérias primas e divididos em onze províncias, que no momento da retração não se
entenderam no sentido de gastos federalizados, cedeu espaço para que outros povos
tomassem a dianteira naquela fase do capitalismo. A guerra contra a Inglaterra em dezembro
de 1780 liquidou a preponderância do “Século de Ouro”.
Um dos maiores especialistas no assunto, bastante citado neste artigo, o historiador holandês
Charles Boxer acrescenta aos motivos do encerramento do ciclo holandês a escassez de mão
de obra, na medida em que muitos desempregados, expulsos dos campos no contexto da
acumulação primitiva, passaram a preferir as cidades inglesas e suas manufaturas ao invés
das incertas e muito longas viagens transoceânicas, e a consequência de anos longe da terra
natal. A tirania dos líderes das companhias comerciais inibiu a eventual imigração de
burgueses, artistas e camponeses para os trópicos (BOXER. 1965, p. 205).
No bojo do crescimento da competição entre os Estados europeus, as Províncias não foram
capaz de responder a contento com políticas protecionistas e mercantilistas, incapazes de
fomentar um robusto mercado interno, dado que a maioria dos produtos importados eram
revendidos e consumidos na Europa.
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As colônias na América do Sul
Os holandeses fundaram Caiena em 1615, Essequibo em 1616, Berbice em 1627 e Demerara
em 1715, os principais estabelecimentos que formariam a Guiana Inglesa e a Guiana Francesa.
Ironicamente, o povoado que daria origem a Guiana Holandesa (Suriname) foi criado pelos
ingleses, datando a primeira colonização em 1651 (tomado pelos holandeses em 1667)
(HYLES, 2014, p. 25). A centralização desse empreendimento colonizador ficou a cargo da WIC
(Companhia de Comércio das Índias Ocidentais).
Nessa região sul-americana, pode-se afirmar os mesmos motivos para o assentamento
europeu em outros lugares, a procura de metais preciosos, o estabelecimento de postos
comerciais e de defesa militar e, quando necessário, o cultivo de produtos tropicais. Nesse
último aspecto, a monocultura de açúcar passou a ser importante a partir da exaustão dos
solos das ilhas do Caribe no século XVIII, já no período descendente holandês.
A posse desses territórios e a troca de soberania foi uma constante no decorrer dos séculos.
De acordo com Chaitram Sing, as mais significativas ocorreram com a conquista inglesadas
três colônias holandesas (Demerara, Berbice e Essequibo) em 1781, a restauração da
soberania holandesa em 1783 e a nova conquista e permanência inglesa entre 1796 e 1802,
culminando, finalmente, com a cessão por parte da Holanda das colônias para a Inglaterra em
1814. A partir de 1831, foram unificadas e chamadas de Guiana Inglesa, trocando de nome
pela última vez em 1966, quando da independência política (SING, 1988, p. 15).
Após serem expulsos do Brasil, os holandeses passaram a desenvolver um interesse mais
acurado nesse extremo norte sul-americano, buscando se espalhar para o leste do platô.
Assim, um colonizador chamado Jean Claessen Langendyck recebeu recursos da WIC, e com
cerca de 40 pessoas fundou uma possessão em Caiena, em 1659, até ser expelido por
franceses em 1664. Muitos judeus portugueses que estavam em Pernambuco escaparam para
essas novas terras.
No momento em que a WIC foi fundada, a província de Zeelandia era a responsável pelo
Suriname. Em 1682, esse Estado vendeu seus direitos para a WIC, que recebeu o monopólio
comercial por dez anos e o direito de traficar escravos. Porém, os gastos com a administração
e defesa do território tornaram-se proibitivos, e a WIC teve que pedir auxílio de dois lados: a
cidade de Amsterdã e um rico burguês, diplomata a época, chamado Cornelis Aerssen van
Sommelsdyck. De sorte que a colônia se desenvolveu em vários sentidos, como na tolerância
religiosa, na medida em que coexistiam vários grupos protestantes e também católicos, e na
implementação de taxas de exportação de açúcar para melhoramentos internos, revertida
muitas vezes na construção de canais de irrigação, coincidentemente necessários tanto na
metrópole quanto no litoral habitado surinamês. Fortes foram levantados e a paz com os
índios teve um período duradouro, com o número de fazendas subindo de 50 para 200,
incrementando assim não só a produção de açúcar senão de tabaco e madeiras (HYLES, 2014,
p. 90).
Entre 1742 e 1751, outra figura importante assumiu o governo do Suriname, Johan Jacob
Mauricius. Novas culturas floresceram como cacau, café e algodão. Além disso, uma tentativa
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de extrair ouro e outros minerais foi feita, cedida a Wilhelm Hack os direitos da “Charter
Surinam Mneral Company”. A prosperidade comercial era auferida através do volume de
produtos exportados, das fortunas sendo acumuladas e da frequência com que os navios
partiam rumo a Europa. No contexto do final do século XVIII chegou-se a 450 fazendas com
cerca de 60 mil escravos. Paramaribo concentrou uma população de 10 mil pessoas em 1788,
com 1400 casas (GOSLINGA, 1979, p. 100).
A administração holandesa franqueou a região para colonização de qualquer nacionalidade.Os
ingleses demonstraram bastante interesse, tanto que, de acordo com dados de 1760,
Demerara passara a contar com noventa e três fazendas produtoras de açúcar, das quais
quarenta e quatro capitaneadas por britânicos. Assim, o governo era holandês enquanto parte
da atividade econômica ficara a cargo de grandes plantadores britânicos, posto que a
companhia de comércio estava mais interessada nos negócios do que na proibição de
estrangeiros em solo holandês (DALY, 1985, p. 83).
A partir de 1788, o conselho da WIC unificou a corte de justiça, consistindo num diretor geral,
no comandante de Essequibo, num fiscal (o economista chefe da WIC) um fiscal de Demerara
e dois grandes plantadores de ambas. Em 1792, o lugar passou a ser denominado de Colônias
Unidas de Demerara e Essequibo.
Os momentos de prosperidade eram interrompidospor frequentes crises, como revoltas de
escravos, demora nos melhoramentos infraestruturais, guerras na Europa e pirataria nos
mares. A existência de Amsterdã como uma praça forte de financiamento ajudava na
manutenção do interesse de novos plantadores, que tinham facilitado o acesso aos
empréstimos, facultando, por outro lado, o absenteísmo. No final do século XVIII, de 500
plantações, apenas 80 ou 90 viviam no Suriname (GOSLINGA, 1979, p. 98).
A severidade com que os administradores tratavam os escravos contribuiu para várias
revoltas e fugas, consequentemente para o aumento dos preços de produção. Toda uma
população de negros fugitivos, conhecidos no Brasil como quilombolas, se tornaram Marrons
ou Bush Negroes, escapando para as florestas no intuito de construir comunidades, de
importância primordial para a vida social surinamesa. Entre 1667 e o começo do século XIX,
mais de 300 mil escravos foram trazidos para o Suriname, uma média superior a 2 mil
escravos por ano. Ao contrário dos ibéricos, os holandeses nãohaviam tido experiência com
esse tipo de comando de trabalho, o que levanta questões como a maior crueldade no trato
com os africanos, dado a racionalidade do sistema que intentava desumanizar o trabalhador
cativo.
A colonização holandesa teve as peculiaridades de não conseguir estabelecer sua língua ou
sua religião, e pouco da sua cultura se comparado aos ingleses, franceses, espanhóis e
portugueses. Não demonstraram vontade da evangelização protestante, nem no sentimento
de lealdade das elites e plantadores médios. A imbricação entre interesses comerciais e
políticos acabou sendo tendendo para o primeiro, contribuindo para um fraco “sentimento
surinamês” no decorrer do século XIX. A mortalidade sempre foi alta, e tanto a companhia
comercial quanto a metrópole, na fase de retração, estiveram mais interessadas nas
possessões orientais, reservando poucos recursos aos seus súditos sul-americanos. Em 1791 a
WIC desapareceu.
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Em 1814, a presença holandesa ficou reduzida ao Suriname, com a conformação das
fronteiras a leste para a Guiana Francesa e a leste para a Guiana Inglesa. Paramaribo possuía
então 1200 casas, duas igrejas protestantes e cerca 1200 habitantes brancos. Talvez a colônia
inteira somasse 2000 brancos, 3000 libertos ou mulatos e 50 mil escravos. O cultivo
continuava de açúcar, cacau, café e algodão (ibid, p. 193).
O Suriname no século XIX
Reconhecendo o problema relativo ao gerenciamento da mão de obra escrava, cujo tráfico
havia sido abolido em 1814, o governo holandês enviou para a colônia um representante
pessoal do Rei Willem I, Johannes Van den Bosch, no intuito de investigar a situação do
trabalho em 1828. Bosch concluiu que a escravidão havia se tornado deficitária, e com o
avizinhamento da abolição na vizinha Guiana Inglesa, que depois da insurreição em Demerara
em 1823 acelerara seu processo de passagem para a mão de obra assalariada, o conselho era
de terminar com esse tipo de trabalho também no Suriname.
O historiador Joshua Hyles argumenta que esse plano de Bosch havia sido tomado como
diretriz governamental, só não ocorrendo por conta da junção entre o Suriname com as
Antilhas Holandesas no Caribe. Com o fracasso dessa política, e novamente a separação entre
as duas colônias, Bosch perdeu prestigio e assim a escravidão continuou, embora deficitária e
problemática na medida em que várias fazendas surinamesas já estavam no caminho de
dedicar recursos para o avanço tecnológico (HYLES, 2014, p. 79).
A escravidão nessas possessões holandesas possuía, do ponto de vista do debate em torno de
sua viabilidade, um acentuado caráter negocial em detrimento do ideológico. O que
emperrava uma decisão nesse sentido era a necessidade de indenizar os donos de escravos,
que por sua vez detinham grande poder de decisão na política econômica.
Assim, a situação se arrastou até os próprios fazendeiros convencerem o governo holandês a
pagar pela emancipação dos escravos. O temor entre a minoria branca de que os escravos
libertos da Guiana Inglesa poderiam chegar no Suriname e causar uma insurreição antes que a
emancipação pudesse ocorrer resultou na decisão de manter a escravidão por mais algum
tempo, com a manutenção assim das forças policiais, até que os fazendeiros conseguiram um
preço três vezes maior para os escravos em relação ao que havia sido cotado.
Os problemas holandeses na administração desenvolveram num único assunto.
Neste período, a Grã Bretanha estava tentando unificar suas colônias, assimilando
seus colonos sob uma única rubrica cultural, e tentando acabar com as rebeliões
escravas. A Franҫa estava mudando sua visão sobre a Guiana de um posto
avançado culturalmente e uma viável colônia autogovernada para um armazém e
uma instituição penal diretamente administrada por Paris. Os holandeses, por
conta de seus problemas financeiros e falta de investimentos na inclusão de negros
libertos na sociedade guianense colonial, encontraram-se governando duas
colônias fundamentalmente separadas (ibid, p. 82).
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Uma colônia era na costa, com urbanização e uma elite branca cercada por afro-guianenses,
muitos deles libertos e em contato diário com a cultura europeia. De outro lado, no interior,
centenas de comunidades de quilombolas formando uma sociedade extremamente diversa,
com ligações, cultura e língua diferente dos antigos mestres.
De acordo com o especialista Richard Price, a comunidade quilombola no Suriname talvez
tenha sido no século XIX a segunda maior do Ocidente, apenas atrás do Haiti. Na língua
inglesa, ficaram conhecidos como marroons ou bush negroes, tendo desempenhado um papel
primordial na história surinamesa até os dias atuais. Para alguns estudiosos, o volume dos
escravos fugitivos que formaram novas comunidades na mata seria uma prova do alto grau de
exploração e violência sofrido nas plantations holandesas na América do Sul, o que
galvanizaria as fugas e a permanência fora das fazendas.
Por quase 300 anos, as Guianas foram o cenário clássico para as comunidades
quilombolas. Enquanto os quilombolas locais na Guiana Francesa e na Guiana
Inglesa foram destruídos no final do século dezoito, os quilombolas no Suriname,
conhecidos como “bush negroes”, se caracterizaram como a maior população
quilombola do hemisfério. Com a possível exceção do Haiti, essa foi a sociedade e a
cultura mais altamente desenvolvida de forma independente na história da AfroAmérica (PRICE, 1976, p. 2).
O fato dos holandeses prestarem pouca atenção para a assimilação cultural também ajudou no
sentido de fortificar uma separação entre a sociedade branca e a sociedade escrava. A extrema
dificuldade de sobrevivência no novo ambiente surinamês levou as comunidades a
estabelecerem laços de solidariedade. Para alguns donos de plantations, a comunidade no
interior da colônia poderia servir como válvula de escape para os indivíduos que, no limite do
descontentamento, poderiam abandonar a plantação e ter para onde se esconder. Por outro
lado, quando os quilombos se mostravam bastante populosos, excursões de captura eram
organizados pelas forças policiais holandesas, em aliança com alguns indígenas e negros
libertos.
As revoltas foram constantes. Em 1821, por exemplo, um grupo de quilombolas invadiram
Paramaribo e incendiaram mais de 400 casas, em resposta a um ataque anterior e a
dificuldade de sobrevivência na selva. A falta de alimentos, as epidemias de febre amarela e o
constante assedio das tropas governamentais, sempre na captura de escravos fugitivos,
colaboravam para a manutenção de um clima tenso através dos anos.
A opção pela renovada compra de escravos, implicando na renovação continua do plantel,
igualmente atuou no sentido de separar os escravos recém chegados dos antigos maroons,
fortalecendo essa cultura segregada. A combinação de tradições africanas com as novas
formadas no local resultou num amalgama conhecido como creole, uma vida social afroamericana bastante original.
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A rápida criolizaҫão não pode ser explicada pela origem dos escravos somente –
escravos da Inglesa e Guiana Francesa geralmente vieram da mesma região, tribos
e passaram pelos mesmos pontos comerciais. Os grupos de cativos africanos que
chegaram nas Guianas eram relativamente similares pelas três colônias. Ainda
assim, os escravos holandeses criaram com maior sucesso e com uma maior
hibridização sociedades duradouras, um resultado direto da forma que os colonos
foram governados (HYLES, 2014, p. 84).
As dificuldades levaram a uma maior união entre as tribos dentro da comunidade. Era comum
que os filhos pequenos tivessem vários pais e mães, na medida em que todos cuidavam de
todos. Três novas línguas foram criadas entre os escravos – Sranan, Ndjuka, Saramaccan-, uma
mistura de 20% de inglês, 20% de português / espanhol, 10% de holandês e o restante de
50% uma mistura de dialetos tribais africanos.
A abolição da escravidão no Suriname ocorreu em 1863, quando o governo holandês proibiu
esse tipo de trabalho nos seus domínios no Caribe e na América do Sul. A solução para o
problema da mão de obra foi, como na vizinha Guiana Inglesa, a importação de trabalhadores
imigrantes, na medida em que o trabalhador negro não despertava confiança ou mesmo
importância para ser reabsorvido na sociedade colonial.
Uma década depois, em 5 de junho de 1873, 399 indianos oriundos de uma parte da Índia sob
domínio britânico aportaram no subcontinente, seguidos por um fluxo que chegaria 34 mil até
1916. Imigrantes das possessões holandesas na Indonésia, mais especificamente na ilha de
Java, terminariam por compor a maioria da força de trabalho, outros 33 mil entre o final do
século XIX e 1939. Esse movimento representou uma pequena parcela de cerca de 2,5 milhões
de pessoas que deixaram a Índia no período, sendo que provavelmente menos de um quarto
conseguiu retornar. Para o Caribe vieram mais de meio milhão, sendo as outras regiões Ilhas
Mauricio, Reunião, Fiji e África Ocidental (HOEFTE, 1998, p. 207).
A região do Suriname, embora inóspita e muitas vezes relegada a um segundo plano na
administração colonial, participou de importantes fases da expansão colonial holandesa. De
acordo com Hoeftte:
O cultivo de tabaco logo se tornou não lucrativo, e todas as atenções voltaram para
o açúcar. A exportação de açúcar era 7,500 toneladas em 1745; em 1794, esse
número cresceu para 9,700 toneladas. Na metade do século dezoito, Suriname se
tornou a primeira colônia caribenha a cultivar café em fazendas separadas, o que
provou ser bem sucedido como primeiro produto na segunda metade desse século.
Exportações cresceram de 2,500 toneladas em 1740 para 10,115 toneladas em
1775. Na segunda metade do século XVIII, o algodão foi introduzido, e essa cultura
também contribuiu substancialmente para a expansão da economia de plantation
no Suriname... Por volta de 1775, o número de pessoas livres (excluindo soldados,
marrons e ameríndios) era 2.600, enquanto o número de escravos alcançou 60 mil
(ibid, p. 11)
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O problema era que no século XIX a economia surinamesa havia entrado em decadência. Java
se tornou então a segunda maior produtora de açúcar do mundo, atrás apenas de Cuba, e a
abertura do Canal de Suez em 1869 deslocou ainda mais o interesse da metrópole. O dinheiro
oriundo das indenizações foi investido em outros lugares, e a produção de açúcar acabou
monopolizada. Em 1890, somente 14 fazendas produziam esse produto, número que diminuiu
para 4 em 1930, embora a área cultivada tenha aumentado.
Uma companhia de comércio, a Duch Trading Company, comprou uma grande fazenda em
1880, a chamada Marienburg, transformando-a na mais moderna produtora de açúcar da
colônia, equipada com luz elétrica, estrada de ferro e novas tecnologias. “A fábrica, com a
capacidade de processar 300 mil quilos de cana por dia era considerada como a segunda
maior do mundo” (ibid, p.15). Em 1890, cessou o plantio do café.
Essa Companhia de Comércio, fundada em 1820, surgiu como uma tentativa de revigorar a
forte presença holandesa no comercio mundial, a essa altura perdida para outros povos. Era
uma mistura de agricultura com banco, que chegou a dominar quase toda economia
surinamesa no correr da primeira metade do século XX. Além do açúcar, refinado e mascavo, a
Companhia também exportava cacau, melaço e rum. Entre 75% e 90% do açúcar eram
exportados, na maioria para os Estados Unidos. O Suriname possuía 50 mil habitantes em
1880, saltando para 133 mil em 1930.
Conclusão
Mesmo com a chegada do século XX e as transformações na geopolítica mundial o Suriname
seguiu como uma colônia subdesenvolvida. Ganhou força atividades novas como a mineração
de ouro e de bauxita, sempre nos padrões de produção para o mercado externo com forte
exploração da mão de obra imigrante. Na medida em que a Holanda havia perdido
preponderância nas trocas internacionais, a colônia também se defasou em relação as
possessões de outras nações.
Com o processo de descolonização, fruto do contexto após a Segunda Guerra Mundial, a
colônia foi recebendo graus mais avançados de organização política e soberania, até a
emancipação total em1975.
Desde então, o país luta para escapar de níveis preocupantes de pobreza, violência e baixa
atividade industrial. A aproximação em relação ao Mercosul e demais organizações sulamericanas, potencializadas a partir da última década, pode ser um caminho para a melhora
da inserção internacional surinamesa e incremento nas condições de vida de seu povo.
Bibliografia
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