Scintilla vol. 7, n. 1

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Scintilla vol. 7, n. 1
COMENTÁRIOS INÚTEIS SOBRE ÉTICA...
SCINTILLA
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 1, p. 93-99, jan./jun. 2010
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ENIO PAULO GIACHINI
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Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 1, p. 93-99, jan./jun. 2010
COMENTÁRIOS INÚTEIS SOBRE ÉTICA...
SCINTILLA
REVIST
A DE FIL
OSOFIA E MÍSTICA MEDIEV
AL
REVISTA
FILOSOFIA
MEDIEVAL
ISSN 1806-6526
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 1, p. 1-168.
jan./jun. 2010
Instituto de Filosofia São Boaventura – IFSB
Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval – SBFM
Curitiba PR
2010
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 1, p. 93-99, jan./jun. 2010
3
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Capa: Luzia Sanches
Catalogação na fonte
Scintilla – revista de filosofia e mística medieval. Curitiba: Instituto de Filosofia São
Boaventura, Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval, Centro Universitário
Franciscano, v.1, n.1, 2004Semestral
ISSN 1806-6526
1. Filosofia – Periódicos 2. Medievalística – Periódicos.
3. Mística – Periódicos.
CDD (20. ed.) 105
189
189.5
SUMÁRIO
EDITORIAL ........................................................................... 7
Enio Paulo Giachini
ARTIGOS ............................................................................... 9
A vida ativa em Frei Egídio ............................................... 11
Hermógenes Harada
A compreensão de vida e seu sentido derivado como
vida ativa e contemplativa na visão mística dos
sermões de Mestre Eckhart ................................................ 25
Gilberto Gonçalves Garcia
O ideal de felicidade em Síger de Brabante ........................ 53
Idalgo José Sangalli
Coincidência dos opostos em Nicolau de cusa: Vida ativa
e contemplativa ................................................................ 79
Sonia Regina Lyra
Comentários inúteis sobre ética a partir de Bernardo
de Claraval ........................................................................ 93
Enio Paulo Giachini
A vontade na doutrina de João da Cruz ............................. 101
Marcelo Martins Barreira
TRADUÇÕES-TEXTOS ............................................................. 117
O que é felicidade ............................................................. 119
Tomás de Aquino
O repouso de Deus ........................................................... 139
Mestre Eckhart
Poema(s) da cabra ............................................................. 157
João Cabral de Melo Neto
COMENTÁRIOS ........................................................................ 161
Depoimento 1: O presente da morte do
Frei Hermógenes .............................................................. 163
Márcia Sá Cavalcante Schuback
Depoimento 2: Combati o bom combate ........................ 167
Emmanuel Carneiro Leão
COMENTÁRIOS INÚTEIS SOBRE ÉTICA...
EDITORIAL
Enio Paulo Giachini
O n. 7.1 de Scintilla traz 6 artigos, dois textos traduzidos e dois
depoimentos. Apesar de nossa intenção em apresentar um número
temático sobre ação e contemplação, ficamos muito aquém do desejado e requerido. Talvez transversalmente o número todo possa conter
indicações, sementes de reflexões sobre o tema, que nos provocam a
buscar ter mais clareza sobre o assunto.
Ação e contemplação, talvez, não sejam duas atividades humanas
frente ao fundamental existir humano. Talvez sejam dois modos de
ser, que em seu ponto de partida e em seu ponto de chegada estão às
voltas com o mesmo: a plena realização da vida. Não nos ajuda muito
buscar paradigmas na própria Escritura ou alhures para determinar
esses modos de ser (Raquel e Lia, Marta e Maria) ou surpreendernos com interpretações que, parece, invertem a precedência histórica
da contemplação sobre a ação, como se vê no sermão 86 de Mestre
Eckhart, por exemplo, ou como escreve Hannah Arendt em A condição
humana. Lendo com cuidado esse sermão 86, de Mestre Eckhart, por
exemplo, vemos que o importante não está na determinação de um
paradigma superior e inferior, mas na busca de alcançar maturidade
frente à vida. Crescer, não importa como, usar de todos os meios e
forças para chegar a alcançar a graça da maturidade, de ficar em pé,
de poder postar-se agradecidamente frente ao Senhor, frente à Vida,
e poder servir. Servir ao Senhor é estar a serviço do fundamental,
onde e quando for, como quer que queira, sempre essa disposição
e contentamento em cultivar a boa vontade para o crescimento e o
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EENIO
AULO
NIOPP
AULOG
GIACHINI
IACHINI
melhoramento. Parece ser esse o tom do Sermão. Parece ser isso que
lemos no texto de Fr. Hermógenes
... o que os gregos denominavam de dynamis, isto é, o dínamo do
agir, a dinâmica da ação de perfazer-se e perfazer a obra, ou numa
formulação diferente, o querer agir. Aqui compreender e querer ou
simplesmente querer coincide com agir ou fazer. Num modo banal
se diz: quis, fez. Mas, e... se não pode fazer? Não deixa de querer
fazer, isto é, aumenta o desejo de querer fazer, de fazer, o mais cedo
possível, logo que puder. Ou melhor, enquanto não pode fazer, não
fica de braços cruzados, começa a buscar alternativas, modalidades,
estuda de todos os modos para ver o que se pode fazer, por mínima ou nula que seja a chance de fazer. E, se não pode fazer nada
por enquanto, aumenta a ação de jamais se esmorecer no querer,
continua dinamizando o querer, a ponto de o querer, nessa espera,
se adensar em direção ao ponto de salto.
Essa disposição acena uma boa direção da ação, idêntica com
contemplação.
Assim este volume traz contribuições de Hermógenes Harada
(em memória), de Gilberto Garcia, Idalgo Sangali, Sônia Lyra, de
Marcelo M. Barreira. Tem também a tradução de dois textos de dois
dominicanos medievais, que abordam a temática, mesmo que não de
modo direto, e os depoimentos de dois pensadores que conviveram
com Fr. Hermógenes Harada, sobre o mesmo.
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ARTIGOS
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VIDA ATIVA – COMENTÁRIO DE UM TEXTO...
VIDA ATIVA – COMENTÁRIO DE
UM TEXTO DO BEATO
EGÍDIO DE ASSIS *
Hermógenes Harada
1. Texto
O texto a ser comentado é medieval. É atribuído a frei Egídio de
Assis e se intitula: Da vida ativa1. Diz frei Egídio da vida ativa:
Ninguém ouse aproximar-se da vida contemplativa se antes não
se exercitou fiel e devotamente através da vida ativa. Por isso, é
necessário estar no uso da vida ativa com empenho e com toda
solicitude.
*
Publicação póstuma.
1. Cf. EGÍDIO DE ASSIS, Dicta Beati Aegidii Assisiensis. 2ª edição, Ad Claras Aquas,
Quaracchi– Firenze 1939, p. 51-52. A tradução em português de Dicta Beati Aegidii
Assisiensis se encontra em: “Vida do Bem-aventurado frei Egídio”; “Vida de frei Egídio
– Homem santíssimo e contemplativo”; “Ditos do Bem-aventurado frei Egídio”; “Vida
de frei Junípero”, in: Fontes Franciscanas 4, Santo André: Editora Mensageiro de Santo
Antônio, 2001; ...Beato frei Egídio de Assis foi um dos primeiros companheiros de São
Francisco de Assis. Foi camponês. Possuía uma pequena propriedade nos arredores de
Assis. Nunca aprendeu a ler e a escrever. Conservou por toda a vida o modo de ser tosco,
sóbrio, simples e autêntico do campo. Tornou-se companheiro de São Francisco no ano
de 1209. Faleceu em Perusa no dia 23 de Abril de 1262. Segundo o prefácio dos
padres editores do Dicta Beati Aegidii Assisiensis, Egídio, “embora mal dado aos estudos, pela assídua contemplação das coisas celestiais, e pelo amor divino no qual ardia,
hauriu aquela plenitude da santa sabedoria que foi de admiração para o mundo”. Os
Ditos do Beato Egídio de Assis é coleção das palavras e orientações de Egídio sobre a
espiritualidade, transmitidas pelos confrades, seus discípulos. Mais detalhes acerca da
vida de frei Egídio e Os Ditos, veja a bibliografia fornecida por Lothar Hardick em:
Leben und “Goldene Worte” des Bruders Ägidius, Werl/Westf.: Dietrisch-Coelde-Verlag,
1953; por Leonardus Lemmens, em: Documenta Antiqua Franciscana, Pars I. Scripta
Fratris Leonis, Socii S. Patris Francisci, Ad Claras Aquas (Quaracchi), ex typographia
collegii S. Bonaventurae 1901.
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HERMÓGENES HARADA
É de boa vida ativa, aquele que, se fosse possível, alimentava e
vestia todos os pobres desse mundo, lhes dava em abundância
tudo que lhes fosse necessário e construía todas as igrejas, todos
os hospitais e pontes deste mundo. E então, se, depois de tudo
isso, fosse tido por homem mau por todos os homens deste
mundo, e ele, sabendo muito bem disso, não quisesse ser tido
senão por mau, se após tudo isso – e por causa de tudo isso não
se afastasse da boa obra, antes, pelo contrário, se exercitasse com
mais fervor em toda e qualquer obra como aquele que não quer
nem deseja e nem espera nenhum mérito nesse mundo – tendo
os olhos fixos no exemplo de Marta que, solícita em servir bem
ao Senhor, d’Ele recebe reprimenda, ao pedir a ajuda da irmã.
E, no entanto, não deixou de fazer a boa obra. Assim, também
o bom ativo não deve deixar a boa obra por nenhuma reprimenda
nem por nenhum desprezo. Pois ele não espera nenhum prêmio
terreno, mas sim, o eterno.
Se encontras graça na oração, reza; se não encontras graça, reza,
porque Deus também aceitava pelos das cabras no holocausto
(Ex 25,4).
2. Comentário
A vida ativa se distingue da vida contemplativa de vários modos.
Hoje, usualmente, a vida ativa é colocada ao lado da vida contemplativa se não como oposta, ao menos como distinta, ou no melhor
dos casos como complementar. Nessa última acepção é famosa a expressão beneditina: ora et labora. Como em todos os binômios desse
tipo, o pivô da questão está no termo de ligação et. Nessa presente
interpretação do dito de frei Egídio, entendemos a relação vida ativa e
vida contemplativa, portanto o conjuntivo e não como relação de oposição nem de complementação, mas sim de identificação diferencial2.
2 Identificação diferencial significa ser o mesmo (idem) na diferença. Mesmidade não é
igualdade. Esta é uma categoria somente válida para o ente que vem ao nosso encontro
a partir e dentro do horizonte do sentido do ser usualmente dito pelo termo coisa,
objeto, algo. Quando se trata, porém, de “coisa” do ser da profundidade humana, o
contacto de duas ou mais dimensões na sua possibilidade se dá na identificação no
mesmo. Aqui cada dimensão, em vez de perder sua diferença numa igualdade “co-
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Nesse sentido, tentemos escutar o que Egídio diz: “Que ninguém ouse
se aproximar da vida contemplativa, se antes não se exercitou fiel e devotamente através da vida ativa. Por isso, é necessário estar no uso da vida
ativa com empenho e toda solicitude”.
Não ouse é alerta, “imperativo” de chamada de atenção: é admoestação e exortação. Aqui é um alerta para o risco. Risco de encetar uma
caminhada cheia de perigos. É um alerta, porém, para quem já está
decidido a lançar-se livremente, como opção de uma vocação, isto é,
com inteligência e vontade para dentro do gênero de vida denominado
vida contemplativa. Portanto é um alerta que apela para a compreensão
da inteligência e decisão da vontade de quem, livremente por opção de
uma vocação, está prestes a entrar pelo “cano” de um perfazer-se no
per-curso do caminho, isto é, na história da vida chamada vida contemplativa cristã3. Aqui, em Egídio, que foi um frade, seguidor de São
Francisco, que por sua vez foi seguidor de Jesus Cristo, quando se fala
de vida e opção de vida, devemos entender esses termos dentro da
mundividência medieval cristã. Vida significa aqui o mesmo que existência, na acepção da palavra, quando queremos indicar a vida de alguém que doa a uma causa toda a sua vida, em tudo que pensa, sente,
faz e é, engajando todas as suas potencialidades, inteligência, sentimento e vontade; e vê nessa causa o sentido do seu viver. Assim, livremente, isto é, com a compreensão da inteligência e decisão da vontade, assume a existência, incluindo todas as implicações que um tal
destinar-se, um tal historiar-se possa acarretar, disposto a não olhar
para trás, mas ir até o fim4, jamais se negando a si na decisão da afirmamum” de uma classificação generalizante, se perfila na diferença que é profundidade da
identidade de cada dimensão. E nessa identidade da profundidade de si mesma, cada
dimensão co-entoa a ressonância da diferença da(s) outra(s) no toque da mesma percussão do abismo de possibilidade de ser.
3. Encetar o caminho da vida cristã é decisão de um engajamento todo próprio que tem
o característico de “entrar por um cano”, isto é, não admite alternativa de escolha a partir
de uma posição neutra.
4. Per-fazer-se, isto é, fazer-se, tornar-se através de, perseverando até o fim.
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HERMÓGENES HARADA
ção positiva e cordial da sua in-serção. É nessa acepção que temos expressões como: existência religiosa, existência científica, existência humanitária. Dito de outro modo, o termo vida deve ser, aqui em Egídio,
entendido não biologicamente, nem psico-somaticamente, mas existencialmente. Dentro dessa perspectiva da mundividência medieval
cristã, opção não é simplesmente uma escolha do sujeito-eu, mas sim
disposição de doação total a um apelo, a uma convocação, não para
ideal, meta ou objetivo, mas sim para vocação, isto é, literalmente chamamento que chama, num imperativo categórico todo próprio: vem,
segue-me, convocação vinda de uma pessoa que nessa mesma
mundividência medieval cristã se chama Jesus Cristo, um Deus feito
Homem5. Por isso, acima usamos a expressão opção de uma vocação.
O alerta, expresso na formulação negativa ninguém ouse, é uma
convocação positiva: de assumir para valer o trabalho de se aviar devidamente no caminho a seguir. O modo de agir, o destinar-se ou historiarse na vida como num trabalho artesanal no perfazer-se6 de uma obra
perfeita se chama em Egídio, ciência útil 7. Ciência aqui significa um
saber colocar-se retamente na abordagem de uma tarefa e na elaboração de sua obra. Esse modo de saber o que e o como trabalhar numa
obra se chama em latim ars, em grego téchne; e fazer uma obra, práttein,
5. Independentemente de, se aceitamos ou não tal mundividência cristã, é de importância decisiva ver toda essa implicação existente no pano de fundo do pensamento
medieval, que no seu tom fundamental se tinha por cristão. Do contrário, não conseguimos ver claro a lógica desse modo de ser e pensar. Aqui Deus feito homem não deveria
ser entendido como meta-física da divinização do homem, mas como humanização de Deus.
6. Perfeição diz per-feição, isto é, o que foi feito num perfazer, isto é, atravessando (per)
todas as vicissitudes do caminho, a saber, iniciar-se, crescer e se consumar, de tal modo
que o que foi iniciado chegue ao seu acabamento: à perfeição. Esse modo de fazer é
sempre um perfazer-se. No perfazer-se ou na ação do caminho da per-feição nenhuma
energia se esvai no desgaste de um trabalho transitivo, isto é, que passa toda a sua
energia só para dentro do objeto ou objetivo de busca, mas cada vez e sempre de novo
tem o seu retorno no crescimento de quem trabalha.
7. Cf. EGÍDIO DE ASSIS, op. cit. p. 55-57.
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donde vêm práxis, prática e pragma (obra). Aqui a ciência está intimamente ligada à prática e vice-versa. De tal modo que ciência e prática
parecem ser dois momentos de uma mesma ação. Para nós, hoje, a
teoria e a prática estão separadas. A prática pertence à ação, a teoria, à
intelecção. Pela intelecção sabemos da coisa. Pela ação a realizamos. E
dizemos: não basta saber, o que importa é fazer, realizar. E, de imediato e na maioria dos casos, por saber a gente entende informar-se, possuir muitas informações sobre uma coisa. Nessa colocação o que custa
não é tanto o saber, mas sim o fazer. Por isso, se diz freqüentes vezes:
chega de teoria, é necessário a prática! O que vale a teoria, se não se
alcança a realidade?
Frei Egídio foi analfabeto. Não era culto nem estudado. Foi camponês. E saiu da labuta do campo, para seguir São Francisco de Assis.
Dele, portanto, é de se esperar que faça apologia do fazer contra o saber
e falar muito sobre. Conta-se, pois que, “ao ouvir de um certo dono de
uma vinha, junto da qual habitava, a palavra Faite dita contra os trabalhadores da vinha, saindo da cela, gritava no fervor de espírito: Ouvi,
irmãos, a palavra que deve ser: faite, faite, no parlare (façam, façam,
não falem!)”. E, numa outra ocasião, ensinou a um pregador a dizer na
praça de Perusa: “Bo, bo, multo dico, poco fo (Bah, bah! Muito digo,
pouco faço!)”8. Entretanto... quando se trata de vida (leia-se existência) contemplativa, o Egídio analfabeto, ignorante do saber e da ciência, apela de modo insistente à compreensão da inteligência e decisão
da vontade: “Que ninguém ouse se aproximar da vida (leia-se existência) contemplativa se antes não se exercitou fiel e devotamente através
da vida (leia-se existência) ativa. Por isso, é necessário estar no uso da
vida ativa com empenho e toda solicitude”. É importante aqui observar
que a vida (leia-se existência) ativa no ativo do seu fazer deve ser uma
etapa para a vida (leia-se existência) contemplativa. Nessa perspectiva,
podemos suspeitar que a existência contemplativa, longe de ser pouco,
8. Cf. EGÍDIO DE ASSIS, op. cit. p. 91-92.
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HERMÓGENES HARADA
menos ou nada ativa, requer vigência de uma atividade que transcende
a excelência do ativo da existência ativa? Daí, a conclusão: antes de ir
para a contemplação, é necessário, é indispensável ter se exercitado fiel
e devotamente. Mas observemos: não na vida ativa mas através (per)
da vida ativa, isto é: estar no uso da vida ativa com empenho e toda
solicitude.
O que é, porém, exercício fiel e devoto? Exercitar-se pouco ou nada
tem a ver com adestrar-se. Adestramento é o que fazemos com o ente cujo
horizonte do sentido do ser está no nível do modo de ser da energética
vegetal ou animal. Aqui se constrói em cima da força espontânea “natural”, digamos “instintiva”, ainda no estado primitivo, para tirar dela o desenvolvimento máximo, optimal, através de infindas repetições do reflexo
condicionado, através de malhações, dirigidas para um determinado objetivo, prefixado de antemão como meta. O adestramento pode ser aplicado também ao ser humano, mas nesse caso tanto a inteligência como a
vontade estarão reduzidas ao modo de ser da “racionalidade cerebral”, isto
é, do potencial de energia psico-somática mais desenvolvido no processo
de evolução da energia vegetal, para energia animal, da energia animal para
energia cérebro-racional etc.9
Mas, há pouco, acima, não cometemos um erro, ao afirmar: quando se trata de vida (leia-se existência) contemplativa, o Egídio analfabeto, ignorante do saber e da ciência, apela de modo inequívoco à
compreensão da inteligência e decisão da vontade? Não é assim que o
texto de Egídio nos alerta a nos exercitarmos fiel e devotamente através da vida ativa e assim estarmos no uso da vida ativa com empenho
e solicitude? Não fala nada da compreensão da inteligência e decisão da
9. Esse encaixe da inteligência e vontade humanas no projeto do adestramento não as
fomenta, mas as reduz ao modo de ser da energética à la racionalidade cerebral, cujo
fomento e desenvolvimento está no horizonte do sentido do ser próprio do processamento dos materiais, dos recursos humanos para a produção optimal, ao serviço da
tecnologia de autoasseguramento da autointerpretação do homem como sujeito e agente
da realidade nas suas realizações, no cálculo e agenciamento.
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VIDA ATIVA – COMENTÁRIO DE UM TEXTO...
vontade! Como é que se contrabandeou sem mais nem menos inteligência e vontade na vida ativa? Entrementes, frei Egídio está falando
de vida ativa e vida contemplativa. Aqui é necessário não esquecer
que, para o medieval frei Egídio, vida significa vida humana, isto é:
existência. Ao falar da vida enquanto existência, que é o ser próprio da
vida humana, Egídio não está pensando na vigência da vitalidade vegetal, nem animal, mas racional, segundo a definição medieval do homem como animal racional10. No racional nomeado nessa definição
está subentendida como realidade da realização essencial, tanto a inteligência como a vontade num grau excelente11. Por isso diz Egídio no
capítulo da Ciência útil e inútil12: “O sumo de toda ciência é temer e
amar a Deus”. Temer é o timor Domini do Salmo 110: Initium
sapientiae timor Domini (O início da sabedoria é o temor do Senhor).
Temor aqui se refere à reverência que marca o início de referência da
dimensão do saber à dimensão da sabedoria13. Essa referência não é
propriamente passagem. Passagem como transição só é possível entre
ente e ente de uma determinada dimensão. Pois dimensão indica uma
totalidade. Entre totalidade e totalidade não há passagem. Para que
haja passagem, dever-se-ia sair de uma totalidade e entrar numa outra.
10. Cf. a ordenação medieval do universo em ser-coisa (substância); ser-vegetal (anima);
ser-animal (sensibilitas); ser-homem (animal rationale); espírito etc. A definição animal
rationale medieval é tradução do grego tò zõon lógon échon (o vivente atinente ao lógos).
Animal aqui não significa bruto, mas sim animus, vigência do ânimo (=vivente) impregnado pela ratio ou spiritus. É anacronismo entender ratio e rationale dos medievais
como se fossem idênticos com a razão e o racional do racionalismo moderno, na acepção
pouco analisada da essência da razão.
11. Por isso, não é muito clarividente opor ao racional dos medievais o irracional,
classificando p. ex. vontade, sentimento, coração, afetividade etc. como irracionais.
Com isso, nos equivocamos tanto em referência ao racional como em referência ao não
racional, compreendendo tanto um como o outro dentro do horizonte do racional
entendido a modo racionalista (irracionalista).
12. EGÍDIO DE ASSIS, op. cit. p. 55.
13. “Grosso modo”, em vez de dimensão, podemos também usar o termo horizonte ou
mundo ou até mesmo ser. Não há passagem entre dimensão e dimensão.
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HERMÓGENES HARADA
Se posso sair ou entrar na totalidade, a totalidade em questão não é
totalidade. Numa totalidade se está já sempre nela. Se há aqui de algum modo uma referência de uma dimensão a uma outra, ela é algo
como ressonância no âmago de uma dimensão que levada à plenitude
de sua consumação dá espaço dentro da própria dimensão à
interioridade como sensibilidade à flor da pele na plenitude da totalidade, em cuja interioridade principia o aceno da outra dimensão. No
saber, essa sensibilidade14 é temer, no querer é amar. Portanto, exercitar-se fiel e devotamente, através da vida ativa e estar no uso da vida
ativa, com empenho e toda solicitude, pressupõe e exige que se esteja
no pleno uso da responsabilização pelo saber e querer, pela compreensão e volição, pela inteligência e vontade que pertencem essencialmente ao ser, próprio do homem, no seu perfazer-se como existência humana. E isto de tal modo ativo que se esteja na plenitude da consumação do saber e do querer do engajamento pela vida (leia-se existência)
ativa da opção de uma vocação. Ali, então surje o espaço de sensibilidade do temer e amar, início da sabedoria, do prelúdio da vida (leia-se
existência) contemplativa. Exercitar-se no temer e amar, portanto, na
compreensão e na volição ou na inteligência e na vontade até a sua
consumação se chama aprendizagem. Nessa aprendizagem, toda a ação
que atua numa obra sempre reverte no crescimento de quem aprende,
de tal modo que, faça ele o que fizer, a própria ação não é outra coisa
do que se perfazer na obra per-feita do crescimento de si como existência. Isto é bem diferente do adestramento, no qual a energia da ação se
esvai no objetivo e na coisa produzida. O perfazer-se em e como obra,
e permanecer sempre atento a esse modo de ser, para não se dispersar
no desgaste da energia de ser e tornar-se, distraído do modo próprio de
14. Cf. em Nicolau de Cusa, a experiência do que ele chama de docta ignorantia, e
coincidentia oppositorum. Cf. Nicolau de Cusa, De docta ignorantia, PhilosophischeTheologische Schriften, Studien- und Jubiläumsausgabe, lateinisch-deutsch, Band I,
Wien: Verlag Herder, 1982, pp. 191-297.
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VIDA ATIVA – COMENTÁRIO DE UM TEXTO...
ser ativo, é o trabalhar, o exercitar-se fiel15 e devotamente16. Alguém
que nesse modo de se trabalhar a si mesmo, isto é, quem se exercita
através da vida ativa, entra no uso da vida ativa. O uso aqui, a utilidade,
o útil, não tem conotação de um instrumento. Estar no uso não significa, portanto, estar empregando, utilizando a vida ativa como meio
para um fim ou como instrumento, na acepção atual da palavra instrumento. Para o medieval, útil significa bom, perfeito, estar na “bondade”, na perfeição, isto é, na plenitude, no ponto de sua serventia. Serventia
aqui não é propriamente um meio para o fim de um projeto predeterminado para um objetivo, mas sim ser confiável na identidade de algo ou de
alguém que está à disposição, a serviço de. Em português a palavra servir se
presta a indicar esse modo próprio de ser bom, perfeito e confiável na
serventia, quando dizemos: “aquela pessoa é muito boa e caridosa, e tem
um grande desejo de servir aos pobres, mas ela não serve17, pois não percebe que sua caridade e seu desejo, no fundo, são uma espécie de
autocompensação”. Para o medieval, o humano que é bom, útil e per-feito
é aquele que dá no couro, isto é, se trabalhou a si mesmo, positiva e cordialmente, com fidelidade e dedicação, corpo a corpo, como se trabalha
ao perfazer uma obra. Ser tomado por esse modo de agir, esse modo
da dinâmica de ação é estar no uso da vida ativa.
Resumindo o que viemos dizendo até agora, portanto, a admoestação, a exortação inicial do texto de Egidio entende por vida ativa a
15. Fidelidade nada tem a ver com fixação de um bitolamento ideológico de um ideal
ou de uma causa como projeção fanática (de fã) da própria subjetividade, a que se apega
como táboa de autoasseguramento. Fidelidade é estarassentado, enraizado numa confiabilidade à dimensão a que se pertence, de tal sorte que não se deixa continuamente
des-locar do seu fundamento, em tentativas arbitrárias, vãs, aflitas por dúvidas e desejos
ensimesmados na subjetividade do eu.
16. Devoto do devotamente não se refere à devoção na acepção do devocionismo nem
piedade na acepção do pietismo, mas sim ao voto, disposição da decisão clara como
querer dedicar-se inteira e incondicionalmente a.
17. Numa linguagem popular dizemos: não dá no couro.
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19
HERMÓGENES HARADA
existência humana, na qual se tem pleno conhecimento de como se
deve trabalhar a si mesmo em tudo que se faz e não se faz, em tudo
que se é e não se é.
Mas, em que consiste o pivô dessa existência que recebe a qualificação ativa, cujo ser é ser-ativo? Como resposta, frei Egidio formula o
texto acima citado que começa: “É de boa vida ativa” e vai até “se
encontras graça na oração, reza; se não encontras graça, reza, porque Deus
também aceitava pelos das cabras no holocausto” (Ex 25,4).
Destaquemos do texto alguns pensamentos importantes.
É ativo:
• Aquele que, se fosse possível, faria tudo ou mais do que tudo.
• Aquele que se exercita com cada vez mais fervor em toda e
qualquer obra como aquele que não quer nem deseja e nem
espera nenhum mérito nesse mundo. Dito de outro modo:
como aquele que não espera nenhum prêmio terreno, mas sim,
o eterno.
• Aquele que tem como exemplos da vida ativa a Marta18 e o
próprio Deus19.
Fazer tudo ou mais do que tudo, se fosse possível indica uma disposição de prontidão para assumir a totalidade do compromisso, de antemão, com total generosidade e gratuidade da liberdade. Usualmente o
limite da possibilidade é impossibilidade. Se entendermos a liberdade
como ser ou estar livre de impedimentos, liberdade significa apenas ser
espontaneamente, digamos, instintivamente “natural”, sem nenhuma
coação, delimitação ou imposição, assim solto na necessidade vital.
Aqui a impossibilidade condicionada pela necessidade vital impede a
possibilidade. Posso entender no texto de frei Egídio a frase condicio18. Marta que, solícita em servir bem ao Senhor, d’Ele recebe reprimenda, ao pedir a
ajuda da irmã. E, no entanto, não deixou de fazer a boa obra.
19. Deus, que também aceitava pelos das cabras no holocausto.
20
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VIDA ATIVA – COMENTÁRIO DE UM TEXTO...
nal “se fosse possível” nessa acepção. Mas posso entender essa aparente
delimitação da possibilidade, formulada na frase condicional “se fosse
possível” de modo bem diferente. Como? Em que sentido? No sentido da dinâmica da essência da liberdade como ser disposto para. De que
se trata, pois? É interessante observar a dinâmica da disposição para o
faz o que pode. Mas aqui pode não significa possibilidade no sentido
usual de não estar delimitado por, impedido, ou não estar livre de.
Significa o que os gregos denominavam de dynamis, isto é, o dínamo
do agir, a dinâmica da ação de perfazer-se e perfazer a obra, ou numa
formulação diferente, o querer agir. Aqui compreender e querer ou simplesmente querer coincide com agir ou fazer. Num modo banal se diz:
quis, fez. Mas, e... se não pode fazer? Não deixa de querer fazer, isto é,
aumenta o desejo de querer fazer, de fazer, o mais cedo possível, logo
que puder. Ou melhor, enquanto não pode fazer, não fica de braços
cruzados, começa a buscar alternativas, modalidades, estuda20 de todos os modos para ver o que se pode fazer, por mínima ou nula que
seja a chance de fazer21. E se não pode fazer nada por enquanto, aumenta a ação de jamais se esmorecer no querer, continua dinamizando
o querer, a ponto de o querer nessa espera se adensar em direção ao
ponto de salto. Esse modo de ser da liberdade-para ou disposiçãopara, recebe em Egídio o nome de fé, que em latim é fides, que não
significa propriamente fé no sentido de crença, mas sim fidelidade22.
Entrementes, fidelidade não pode ser compreendida a não ser dentro da dimensão, onde está em casa o sentido do ser que é o próprio do
“relacionamento” “inter-pessoal do encontro”, como sói se dar na dimensão da existência humana, na sua profundidade, a mais íntima e
abissal. Esse característico todo próprio do ser da fidelidade está expresso no texto de Egídio como agir por agir; jamais deixar de agir;
agir, não por causa de um prêmio terreno, mas sim de um eterno.
20. Usa a cabeça, isto é, aciona a potência chamada inteligência da melhor maneira
possível: é o ativo do saber.
21. É o ativo do querer.
22. Cf. EGÍDIO DE ASSIS, op. cit. p. 6-8.
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HERMÓGENES HARADA
Aqui pode nos surgir uma dúvida. Esse alguém chamado o ativo,
cuja ação é de tal modo que, se fosse possível, faria tudo e mais do que
tudo; continua agindo, mesmo que não receba nenhuma recompensa
nem reconhecimento, portanto, esse alguém não estaria, no fundo,
numa postura interesseira, na qual de antemão tem por objetivo final,
receber o prêmio de Deus? Mas, se, nem Deus o recompensar? Se o
castigar por causa da sua fidelidade e seu empenho? Responde frei Egídio:
o homem ativo continuaria agindo, com maior fervor, ainda mais e
cada vez mais, pois tem por exemplo a Marta, a mestra da vida ativa e
principalmente a Deus, sim a Ele próprio, cujo modo de ser está expresso na admoestação: “Se encontras graça na oração, reza; se não encontras graça, reza, porque Deus também aceitava pelos das cabras no
holocausto” (Ex 25,4). Isto quer dizer: Deus, quando recebe de nós
holocausto, Ele, na imensidão, profundidade e na cordialidade da sua
gratuidade, isto é, da sua liberdade, se abre a nós com toda a dinâmica
ativa do seu bem querer, portanto da sua boa vontade, de tal modo
que inala e aspira com gosto tanto o cheiro agradável de um churrasco
como o fedor horrível de pelos queimados, isto é, todas as nossas boas
e más vontades, “de lambuja”.
Que tal, se essa positividade da boa vontade divina na sua dinâmica
de doação de si, simples, imediata e sem porquê for Vida Ativa? Aqui
o sem porquê não significa irracional. Pelo contrário se refere à clarividência da compreensão acerca da identidade da essência do homem
como imagem e semelhança de Deus, na dinâmica ativa da inteligência
e vontade, do saber e querer, na sua consumação, do temer e amar.
Vida ativa é viver no modo de ser e trabalhar da generosidade da liberdade jovial divina que está em toda parte, cuidando, sustentando, servindo a tudo quanto é e pode ser. Por isso, se alguém quiser achegar-se
a Deus, na contemplação, e querer conhecê-lo na intimidade abissal da
sua liberdade, é necessário, custe o que custar, exercitar-se, de todo o
coração, todo o tempo, sempre de novo na vigência ativa da positivi-
22
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VIDA ATIVA – COMENTÁRIO DE UM TEXTO...
dade do modo de ser da boa vontade divina que está nele, ou melhor,
é a essência da sua existência23.
Se a vida ativa é tudo isso que frei Egídio de Assis nos expõe,
como deve ser então a atividade da pura e límpida recepção da gratuidade
e cordialidade da liberdade divina, a contemplação? Talvez, enquanto
permanecermos na colocação da vida ativa e da vida contemplativa
como oposição, complementação ou equilíbrio entre as duas, como
possibilidades, uma ao lado, em cima ou debaixo da outra, jamais
possamos suspeitar de que se trata quando dizemos vida ativa e vida
contemplativa.
23. Esse exercitar-se, para Egídio, é decisivo e de importância tão grande que ele pode
se indignar e começar a vociferar à la italiana, se alguém faz pouco caso desse tesouro
precioso. Um dia alguém se aproximou de Frei Egídio e lhe disse: “O que faço para
sentir a suavidade de Deus?” E Egídio: “A ti, Deus, alguma vez, te inspirou boa vontade?” “Ora, muitas vezes...!”, respondeu o homem. Egídio começou a vociferar: “Por
que, então, não guardaste aquela boa vontade que te conduziria ao bem maior?!” (Cf.
EGÍDIO DE ASSIS, op. cit. p. 70).
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A COMPREENSÃO DE VIDA E SEU SENTIDO DERIVADO...
A COMPREENSÃO DE VIDA E SEU
SENTIDO DERIVADO COMO
VIDA ATIVA E CONTEMPLATIVA NA
VISÃO MÍSTICA DOS SERMÕES DE
MESTRE ECKHART
Gilberto Gonçalves Garcia*
Resumo: O presente artigo desenvolve a idéia do ser, em seu sentido primário, junto ao pensar especulativo de Mestre Eckhart, como forma de mobilidade originária. O ser será, nestas condições, assumido como modo de um
desempenho. A criação será, por conseguinte, pressuposta, em sua doutrina
mística, como forma de uma operação. Uma operação na qual todas as criaturas deverão perseguir sua natureza própria.
Com base nessa previsão, a vida será interpretada como uma “geração eterna”, cuja
gênese só poderá ser apreendida como irrupção, ruptura, rompimento. No âmbito da compreensão de vida como irrupção, a idéia do começo será apreendida
como mudança da impossibilidade para a possibilidade. O nascimento da
criatura é, desse modo, uma possibilidade tornada.
Uma ontologia da criação se afirmará, nessa circunstância, pelo sentido do ser que
vê no começo do caminho a doação da liberdade para a experiência do caminho.
O percurso de realização desse desabrochar não está dado a priori. Ele precisa
ser desempenhado pela elevação humana. Vida ativa e vida contemplativa
são formas possíveis dessa elevação, em cujo processo o homem se encontra
sempre “a caminho”. No estar “a caminho” ele se espelha em níveis de
responsabilização da tarefa de assumir para si suas condições prévias de realização. Vida – e sua modificação em vida ativa e vida contemplativa – será, em seu
fundamento, um salto sempre novo para formas originárias de vivência.
Palavras-chave: criação, vida nova, constituição do ser, mobilidade do ser,
conjuntura do ser, relação, proporção, irrupção e elevação do ser
*
Universidade São Francisco (USF), e-mail: [email protected]
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GILBERTO GONÇALVES GARCIA
Introdução
A compreensão de vida em geral no pensar místico de Mestre
Eckhart é, em qualquer circunstância, mediada pelo sentido primário
de criação. Nela, o sentido de criação é, desde seu fundamento, acolhido pela idéia ontológica do começo. Só a partir da idéia do começo é
que, para o pensar especulativo de sua mística, se pode falar em vida e
liberdade. Para Eckhart, o “começo do ser” deve provir, de algum modo,
da própria criatura. Assim, o começo é pensado como movimento de
autoantecipação no interior da criatura. Por isso, ao invés de propor a
questão do começo a partir do tratamento tradicional do conceito de
causa, ele apreende um sentido original de “anterioridade” ao qual denomina, nos sermões, de “irrupção”. Todo começo de identidade é
pensado como rompimento. Vida é, portanto, modo de irrupção.
A questão em torno da diferença ou composição entre a idéia de vida
ativa e de vida contemplativa se constitui, neste artigo, em ocasião para
uma interpretação possível do sentido geral de vida, na doutrina de eckhart,
enquanto gênese de uma movimentação própria. Guiado pelo pensamento especulativo de seu discurso, o percurso da constituição genética da vida
será interpretado através do conceito de “elevação”. Ao começo, como
irrupção, corresponde um percurso, uma elevação.
A compreensão geral de vida enquanto gênese própria
O sentido ontológico do começo inclui, certamente, a idéia de
tempo e de temporalidade. Mas, quais modos de tempo e de
temporalidade? Mesmo que estes conceitos não possam ser aqui de
antemão esclarecidos, cabe inicialmente uma indicação relevante: Não
há como conceber a idéia de tempo, em Eckhart, sem a imagem de
uma “operação” do ser. O ser, em sua essência, está previsto como
movimento. Ser é, pois, modo de um desempenho. O sentido de
criação, em sua “visão” mística, será sempre assumido como modo de
operação. Uma operação na qual todas as criaturas deverão perseguir
26
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A COMPREENSÃO DE VIDA E SEU SENTIDO DERIVADO...
sua natureza própria. Se a idéia da constituição do ser está presa à idéia
de mobilidade, os sentidos de tempo e de temporalidade deverão, de
certa forma, apontar para o sentido de mobilidade do ser. A imagem
do instante do “nascimento” é sempre, por isso, uma imagem do começo como operação:
Aqui no tempo, nutrimo-nos da geração eterna, que Deus o Pai
realizou e realiza sem cessar em eternidade, pois que esta mesma
geração nasceu agora no tempo em natureza humana. [...] Santo
Agostinho diz: Em que me ajuda que esse nascimento aconteça
sempre, se não acontecer em mim? O que importa, porém, é que
isso aconteça em mim. [...] Agora é conveniente que falemos desse
nascimento, de como ele acontece em nós e se realiza. [...] O que
pertence ao homem fazer, com sua obra, para que alcance e conquiste que esse nascimento aconteça e nele se realize?1
O que pertence ao sentido expresso do “fazer nele mesmo” para que o
começo (nascimento) aconteça, se efetue? O começo é pressuposto, no
sermão, como uma “obra própria”. Em Mestre Eckhart, o tempo da constituição do ser guarda sua temporalidade própria. O sentido de tempo se
confunde com o sentido da mobilidade constitutiva do ser ela mesma.
Concebido como “operação própria”, tempo se torna condição de possibilidade do surgimento do ser em conjunto com suas remissões possíveis,
isto é, o ser em sua conjuntura própria. Temporalizar-se é uma necessidade
conjuntural do ser. O ciclo vital do ser em sua conjuntura é, portanto, o
seu tempo próprio. Por isso, também é que o sentido e a verdade do ser
são resultados de experiências temporais. Sentido e verdade são, dessa forma, conceitos temporais. Na palavra dos sermões se descobre que a criatura só alcança plenitude de sentido no “tempo próprio” da criação. Fora de
uma temporalidade específica da criação, a criatura simplesmente não “é”.
Desse modo é que é inicialmente possível para a mística pensar os seres,
em seu sentido, não como substratos, mas como “momentos” do mundo
criado, em sua essência: um pensar, assim, absolutamente relacional. Nele,
as criaturas podem ser tomadas como “momentos” de uma constituição
1. Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães. Vol. II. (sermão 101) Bragança Paulista/
Petrópolis: Edusf/Vozes, 2008, p. 191 e 195.
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GILBERTO GONÇALVES GARCIA
mais ampla que elas mesmas não são. Em Eckhart, tempo é pensado como
o desempenho “interno” de uma rede relacional do ser. Chamamos a esta
rede, no interior de seu tempo, de “conjuntura do ser”. O ciclo (início e
fim) de uma conjuntura do ser coincide com seu tempo próprio. Diz
Eckhart:
Em nosso idioma, “in principio” significa tanto quanto um começo de todo ser [...]. Sobre isso, eu disse: É um fim de todo
ser, pois o primeiro começo é por causa da última meta final.
Sim, mesmo Deus não repousa ali, onde ele é o primeiro começo; ele repousa lá, onde ele é meta final e repouso de todo ser;
não como se esse ser fosse aniquilado, mas sim realizado como
em sua meta final [...]. O que é a última meta final? É a obscuridade abscôndita, para nós desconhecida, essa que jamais foi e
será conhecida2.
No entender de Eckhart, toda conjuntura do ser possui uma dinâmica na forma de uma mobilidade própria. A essa dinâmica pertence a
idéia de um “ciclo” da criatura, no sentido da admissão de um princípio e um fim nela mesma. A imagem da criação se elabora junto com
a evidência de que todo ser comporta sua temporalidade própria, pela
qual se articulam múltiplos nexos, sentidos, verdades, coerências e adequações com o mundo. A compreensão de finitude na criação é apreendida pela idéia da conjuntura do ser vista em seu “intervalo” de começo e de fim. Não é possível, portanto, supor criação, como gênese,
sem a noção de intervalo de começo e fim.
Eckhart “vê” na compreensão de “ciclo da criatura” uma articulação do significado de ens ab alio, categoria clássica da doutrina escolástica do ente criado. Assim é que, no jogo relacional, toda criatura pode
ser assumida como uma constituição a se (a partir de si), desde que se
dê ab alio (a partir de outro), isto é, na remissão “para o outro” e “com
o outro”: sua conjuntura. É possível verificar em seu pensamento que,
mesmo a idéia de Deus como ens a se não pode ser interpretada sem
uma forma criativa nele mesmo. Por admitir todo ser como forma
2. Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães. Vol I. (sermão 22) Bragança Paulista/
Petrópolis: Edusf/Vozes, 2006, p. 157.
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genética é que Eckhart irá transformar a idéia originária de Deus na
idéia de essência divina, Deitas (Deidade). Deus concebido como “essência superessencial” garante o sentido da mobilidade própria do ser
de Deus, nele mesmo, como intensificação do “ser próprio”. Em Eckhart,
mesmo Deus pode ser compreendido como intensificação do “ser próprio”. Quando Eckhart diz deidade, se refere a Deus desde sua essência
ou natureza, como intensificação do “ser próprio”. A estrutura de Deus
como deidade é o fio condutor para todo tipo de especulação mística,
pois parte da afirmação da essência de Deus nela própria. Do princípio
da essentia Dei se deriva todo espelhamento. Assim afirma:
Alias, outrora também, já falei do primeiro começo e do último
fim. O Pai é um começo da deidade, pois ele compreende a si
mesmo em si mesmo. Dele procede a palavra eterna, permanecendo dentro, e o Espírito Santo flui de ambos, permanecendo
dentro, e <o Pai> não o gera, pois ele é, permanecendo dentro,
um fim da deidade e de todas as criaturas, dentro, no qual é um
puro repouso e um descanso de tudo que um dia ganhou ser. O
começo é para o último fim, pois no último fim repousa tudo
aquilo que um dia cada ser dotado de intelecto recebeu3.
Vida como modo de irrupção própria
A idéia de vida, como surgimento, para Mestre Eckhart, não deve,
no entanto, ser entendida como um processo aleatório do começo do
ser. Liberdade como fundamento não se proporciona para uma
“ontologia do acaso”. O começo pelo começo é certamente uma medida estranha para responder ao sentido de início do movimento
constitutivo do ser. De acordo, um começo determinado tem de ser
“visto” como condição inarredável do processo constitutivo do ser.
Para Eckhart, ele deve provir, de algum modo, da própria criatura: um
começo, assim, pensado como movimento de autoantecipação e de
autoretroação no interior da criatura. A “existência”, na articulação dos
3. Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães. Vol. I (sermão 15). Op. cit. p. 119.
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sermões, nem pode ser “vista” como um processo exclusivamente “vindo de fora” (ab alio), nem pode ser “vista” como um princípio geral4
“por si mesmo” (a se). Nem pode mesmo ser interpretada como causa
sui 5. Ao invés de propor a questão do começo a partir do tratamento
tradicional do conceito de causa, Mestre Eckhart apreende um sentido
original de “anterioridade” ao qual denomina, nos sermões, de
“irrupção”. Ele interpreta começo como rompimento. Vida é modo
de irrupção. Todo começo de identidade é pensado como rompimento. A dinâmica da estrutura da irrupção se baseia numa hermenêutica
da imagem do espelho, conforme descreve:
Toda imagem tem duas propriedades: A primeira é receber seu
ser imediatamente daquilo do qual é a imagem, para além de
toda vontade, pois tem uma procedência natural e irrompe da
natureza como o ramo brota da árvore. Colocado diante do espelho, o rosto deve ali se refletir numa imagem, queira ou não.
Mas a natureza não se forma na imagem do espelho. [...] Isto
Deus reservou apenas para si mesmo, a saber, onde quer que Ele
forme sua imagem, sua natureza e tudo o que ele é e pode oferecer, forma totalmente ali dentro, para além de toda vontade;
pois a imagem é condição para a vontade e a vontade segue a
imagem, e a imagem tem da natureza a primeira irrupção, puxando para dentro de si tudo que a natureza e o ser possam
apresentar; e a natureza se extravasa plenamente na imagem
permanecendo, no entanto, inteiramente em si mesma. A vontade, no entanto, não é um mediador entre a imagem e a natureza; nem o conhecer, nem o saber nem a sabedoria podem aqui
4. O conceito de princípio geral era distinto do conceito de causa na filosofia medieval.
O princípio era aquilo de que procede algo de algum modo: o principiado. A causa era
aquilo de que procede algo de um modo específico: o causado. Princípio e causa são,
ambos, de algum modo “princípios, mas, enquanto o primeiro o é segundo o intelecto,
a segunda o é segundo a coisa (res). Assim se estabelecia a relação princípio-conseqüência e a relação causa-efeito.
5. A causa sui foi um conceito meticulosamente utilizado na filosofia medieval. Originariamente, causa sui não se referia a Deus. Deus era, antes, principium sui. Causa sui podia se
aplicar ao homem enquanto homem livre, indicando-se, com isso, que ele se determinava
a si mesmo livremente. Dizia-se, contudo, que nada é propriamente causa sui, pois todo
ente “é” enquanto tem uma origem distinta de si mesmo, ou seja, causado.
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A COMPREENSÃO DE VIDA E SEU SENTIDO DERIVADO...
ser um mediador, pois a imagem divina irrompe da fecundidade da natureza sem mediação alguma6.
A imagem do começo não se afigura como linearidade evolutiva
de algo. Para Eckhart, o começo do ser é o início de uma desenvoltura
que deverá retornar para si. A idéia do retorno é figurada, no sermão
16b, na imagem do espelho. Ao retornar para si, a imagem imprime,
no processo, a identidade constitutiva de si como “ser-próprio”. A
doutrina do começo como irrupção se explica, dessa forma, como
uma ontologia da transparência da imagem que vem e que volta e que
se sustenta no reflexo dela própria constituindo a identidade de um
acontecer único. Essa irrupção não ocorreu de uma vez e “pronto”.
Deus, ele mesmo, chama para si esse irromper a todo instante. O fim
da irrupção é o ser “si próprio”.
A interpretação de começo como irrupção encontra sua expressão
na alegoria da imagem espelhada. No fenômeno da imagem no espelho, a imagem só é real se algo atua constantemente sobre ela. Ela é um
acontecer constante e atual. Com base nessa concepção, a identidade
do acontecer da criação se permite desdobrar-se em muitas obras de si
mesma. A unidade da criatura se mantém nesta “suspensão” ativa do
instante de poder se consumar de diferentes modos.
A identidade do ato criativo, como irrupção, na fenomenologia
da imagem do espelho permite observar o alcance em que Eckhart
coloca o horizonte para a compreensão de natureza. Ao mesmo tempo
deixa ver como, por essa natureza, a criatura se mantém “ligada” a
Deus em sua identidade. A “ontologia do espelho” permite observar
uma consequência bastante original na teologia da criação de Eckhart:
a descrição da constituição da materialidade do mundo visível como
“instante” de Deus. A imagem vem (nasce) daquele que é espelhado,
mas não se forma no espelhado. Ela se forma na natureza do espelhado:
no “espelhante”.
6. Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães. Vol. I (sermão 16b), op. cit. p. 122. Grifo
nosso.
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GILBERTO GONÇALVES GARCIA
Do mesmo modo como o espelho “desaparece” para mostrar a
imagem (criatura), a imagem “desaparece” para mostrar o espelhado
(Deus). A imagem, embora venha do espelhado, não se “forma” propriamente nele. Forma-se, antes, na natureza do espelhado, onde ele é
de si para si, desde sempre. Assim como o espelho é “provisório” em
sua função de “deixar-ser” imagem, Deus também é “provisório” na
formação da imagem espelhada. A “deidade” em Deus é o princípio de
toda irrupção. Lá não há medium. Ela é “espelhante”; onde a imagem
do espelho se “forma” verdadeiramente. O “espelhante” (deidade) faz
aparecer no espelho o espelhado (Deus) e a imagem do espelhado (criatura). Por isso “Deus é mais nobre na imagem que a imagem possa ser
nele”7. A imagem, quando vem de Deus, ela vem do “criador”, mas
quando se forma em Deus, ela se forma em sua natureza (deidade)
como ela é. A imagem toma Deus, assim, “enquanto um ser dotado
de intelecto”, e o que é mais nobre na natureza “toma forma nesta
imagem no sentido mais próprio”.
Na alegoria da imagem refletida no espelho se pode ver como
Eckhart sustenta dois movimentos no fenômeno do refletir: primeiro
a imagem é pelo outro, mas ao mesmo tempo se forma, afora, desse
“ser-outro”. O movimento da imagem se desloca para encontrar a natureza da própria ação de espelhar. É como se Eckhart colocasse a pergunta: “Quem espelha?”, ao invés de “Quem se olha?” Os dois movimentos da imagem no espelho consistem nisso: enquanto a imagem
se volta para quem a olha, ela está aí para ele (o espelhado) e se torna
ela mesma uma irrupção. Porém, quando a imagem não se volta mais
para o espelhado, mas para aquele que, por assim dizer, a espelha por
primeiro, se pode, então, falar não de origem, mas de formação (forma). É como se Deus se voltasse para sua natureza nele mesmo. Os
dois movimentos da imagem inauguram uma identidade única. Um
só acontecer. Um instante eterno. Num ela irrompe, noutro ela se
forma. A criação como rompimento resguarda o sentido da finitude
na infinitude do ser.
7. Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães. Vol. I (sermão 16b), op. cit. p. 123.
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A COMPREENSÃO DE VIDA E SEU SENTIDO DERIVADO...
Vida como processo de rompimento e de composição: a
transformação
No imaginário especulativo da mística, a vida é interpretada como
uma “geração eterna”. Gênese é apreendida como irrupção, ruptura,
rompimento. O lugar da ruptura não é visto de antemão: “Isto Deus
reservou apenas para si mesmo”. O lugar do começo de um desenvolvimento conjuntural do ser, como rompimento, se declara à semelhança da essência de Deus como “um negar do negar.”
No sermão 71, Mestre Eckhart descreve, por exemplo, de forma
notável, a transformação (conversão) de São Paulo, sua “irrupção”, com
referência a um “ver cego”, no qual a crise que “antecipa” sua conversão
(mutação) é experimentada como vazio, descrito pelos sentimentos da
angústia e do medo. A angústia é uma antecipação. A estranheza é
percebida, de início, como angústia. A cegueira é a luz de uma “visão”, que
lhe permite divisar o “novo”. No salto do nada, São Paulo retorna ao lar.
No retorno ao lar, angústia e medo se esvaem. Eckhart comenta:
“Paulo levantou-se do chão e de olhos abertos nada via.” [...] Sentiu medo e angústia. [...] [Certa vez] pareceu a um homem como
num sonho – era um sonho acordado – que ele havia concebido do
nada como uma mulher concebe uma criança e no nada nascera
Deus; ela era o fruto do nada. Deus havia nascido no nada. Por
isso, ele diz: “ele se levantou do chão e de olhos abertos nada via”.
[...] O motivo por que ele nada via: a luz que é Deus não contém
nenhuma mistura; [...] pela luz ele não se refere a outra coisa a não
ser que, de olhos abertos, ele nada via. No fato de nada ver, ele viu
o nada divino. [...] Por isso, diz Santo Agostinho: quando a alma
estiver distanciada de todas as coisas que devieram, necessariamente deverá dar-se então de Deus nela reluzir e brilhar. A alma nada
pode ter a não ser angústia sem saber de onde esses provêm. Quando a alma não sai para as coisas exteriores, então retornou ao seu lar
e habita em sua luz simples e límpida. Ali ela já nem possui angústia nem medo8.
8. Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães. Vol. II. (sermão 71), op. cit. p. 67-69.
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33
GILBERTO GONÇALVES GARCIA
À irrupção da vida, como rompimento, não pertence apenas
estranhamento, mas o surgimento do que se pode chamar de “radicaloutro”. Materialmente, não é possível ver como, cada vez, a possibilidade concreta se abre em sua impossibilidade radical. Tempo, lugar e
ocasião se escondem: manifesta-se um “radical-outro”. O encontro com
o “radicalmente-outro”, pela irrupção, significa assumir a possibilidade como o concreto: a vida, a finitude. Eckhart apreende o sentido de
criação como a realização do previamente indisponível. Com efeito, o
processo criativo descreve o desempenho de uma tarefa própria: ter
que, inalienavelmente, ser, cada vez, decidida. Ato e potência exprimem o sentido de existência como a experiência de um “fardo” a ser
carregado por um movimento próprio. O ato se carrega a si mesmo,
mas isto que se carrega deve ser desempenhado e novamente carregado. Para a mística, o sentido de existência não é experimentado como
forma terminal de um processo, mas, sim, como o próprio processo.
Irrupção como origem, começo, nem está num início de tempo, nem
está nalgum lugar, mas na banalidade radical do cotidiano.
Vida, interpretada como irrupção da impossibilidade em possibilidade, é, com efeito, a abertura de um horizonte de possibilidades. A
nova possibilidade que se desdobra junto com o “radicalmente-outro”
é um campo de possibilidades: uma vida nova. A irrupção nunca é
doação do singular pelo singular. Ela é, antes, doação do singular no
surgir de outras singularidades, de outras doações: o ser exposto em
sua conjuntura. A irrupção da vida estrutura novas possibilidades de
pertenças mútuas de seres: um novo mundo. Nela não há nada que se
pareça com mundo “anterior”. Diz Eckhart:
Uma obra enquanto obra não é de si mesma, tampouco é por e
para si mesma; não acontece de si mesma. [...]Pois quando se
tornou obra, imediatamente tornou-se em nada e também o
tempo em que aconteceu, e não está nem aqui nem lá, pois o
espírito nada mais tem a ver com a obra. Se ele quiser operar
alguma coisa ainda, deve fazê-lo através de outras obras e também noutro tempo9.
9. Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães. Vol. II (sermão 105), op. cit. p. 236-237.
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A COMPREENSÃO DE VIDA E SEU SENTIDO DERIVADO...
A existência, na acepção mística, não é a condução de um estado
de vida para um “outro” ambiente de vida e de ser. Não é, ademais, a
passagem de um “antes” para um “depois”. A existência é percebida
como um salto para o novo, o que pressupõe a cegueira para um “anterior” e a “visão” para um novo, à semelhança do episódio paulino. A
conversão de São Paulo não descreve a condução de algo de um âmbito para outro. Ela manifesta o advento de uma individualidade nova.
Na conversão de São Paulo, o que lhe era “antes” está tão aniquilado (o
fenômeno da cegueira) como aquilo que, visto a partir do “anterior”, o
depois, parecia radicalmente impossível (o fenômeno da angústia).
Do ponto de vista teológico, o significado de perfeição espiritual
do homem emerge, na “visão” mística descrita pelos sermões, da evidência singular de uma infinitude da finitude da vida. A radicalidade
dessa compreensão confere à vida um sentido altamente positivo: nela
tudo se decide. Assim, da impossibilidade desponta a possibilidade.
Do negativo surge o positivo. A finitude da vida criada, compreendida
a partir de Deus, ganha um caráter de infinitude. Esse evento único
não se consuma dentro de um tempo histórico. Ele está concedido a
priori de modo absoluto: “Aqui no tempo, nutrimo-nos da geração
eterna, que Deus o Pai realizou e realiza sem cessar em eternidade, pois
que esta mesma geração nasceu agora no tempo em natureza humana”.
Vida, desde o horizonte do tempo de Deus, é o próprio “ser de Deus”
(deidade). Por isso Eckhart chama o tempo da salvação de verdadeira
eternidade.
Origem, começo, irrupção, são categorias que indicam, em seu
pensar, a compreensão de nascimento como aniquilação de uma realidade. Irrupção de vida pressupõe um processo de rompimento e de
composição. Uma vez despojado do sentido de ser precedente, os supostos elementos da aniquilação se tornam momentos do processo da
nova composição do ser. Como tal, Mestre Eckhart interpreta a determinação escolástica de criação creatio ex nihilo ao modo de irrupção.
O “nada” não é tomado como vazio prévio, mas quer dizer a impossibilidade que se faz possibilidade e, ao fazer-se, carrega consigo a imScintilla, Curitiba, vol. 7, n. 1, p. 25-52, jan./jun. 2010
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GILBERTO GONÇALVES GARCIA
possibilidade como seu campo. O que, antes, “era” é subsumido, posteriormente, como vida “nova”. Para sua ontologia mística, uma tal
gênese que, vinda da irrupção, se apresenta adentrando em sua
originariedade, é a criação ela mesma. A doutrina da criação é acolhida,
na mística, dentro de uma tal correspondência que, nela, aquilo que
vem “para fora” originariamente tanto é criador quanto criatura. Dessa
forma, também Deus, como criador, de algum modo se conduz “para
fora” em seu processo criativo. Na base dessa representação é que Eckhart
preserva o sentido de “deidade” no lugar de Deus, posto que Deus não
pode preceder à obra, colocando-se nela como imagem de uma subjetividade. O sentido de deidade preserva, na irrupção, a idéia da revelação do criador e da criatura originariamente na criação. A compreensão de criação alcança, desse modo, a evidência de que onde quer que
se manifeste, ela irá se dispor como identidade. No processo de identidade criativa, o que se cria é o todo da possibilidade de si, na criação.
O que, nestas condições, “surge” de uma criação traz o caráter de absoluto. O absoluto só é absoluto no processo criativo. O producente
se vivencia como uma condição do absoluto:
Ontem à noite ocorreu-me o pensamento de que toda comparação é apenas uma obra preliminar. Não posso ver nenhuma
coisa a não ser que seja igual a mim; nem posso conhecer alguma coisa se não for igual a mim10.
Em ambos os sermões, o 36a e o 20a, se pode encontrar uma
mesma passagem, na qual Eckhart descreve, de forma original, o processo dialético de rompimento e de composição que acompanha a circunstância da irrupção da vida. Trata-se da representação da idéia do
começo descrita na imagem do dia em seus períodos decorrentes. A
existência pode ser apreendida como manhã, tarde e noite. Nessa passagem, a idéia de irrupção, curiosamente, não aparece representada na
figura da manhã, como se haveria de esperar. Para Eckhart, não há
manhã, tarde ou noite, se não houver o “meio-dia”. O meio-dia é, para
ele, o símbolo da irrupção do ser. O meio-dia “está” no interior da
10. Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães. Vol. I (sermão 51), op. cit. p. 284.
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A COMPREENSÃO DE VIDA E SEU SENTIDO DERIVADO...
manhã, da tarde e da noite. O nascimento resulta do absoluto nada,
que é o meio-dia. É só quando o percurso do dia leva por e sobre o
meio-dia que “surge” a gênese: “a hora mais quente”, na palavra de
Eckhart. No “pino do sol” o dia se desmorona de uma vez, não só na
luminosidade das possibilidades da manhã, mas igualmente no ponto
do próprio “pino”. O meio-dia é um instante de “quebranto”, que se
transforma em rompimento, para, na insistência do dia, se abrir o
começo de um novo caminho: a tarde. A tarde é feita da materialidade
do esgotamento da manhã. É o esgotamento recriado da manhã. A
tarde é a manhã que se aniquilou. A manhã não se torna mais possível
através de nada. A tarde, porém, permanece não sendo passível de se
desempenhar e busca seu sucesso superveniente da indisponibilidade
da manhã. A tarde precisa, assim, conter o meio-dia. Só através desse
caminho que, por conseqüência, surgem a tarde e a noite, que contêm
toda a realidade do dia. Assim explica:
A tarde não pode chegar se antes não tiver havido uma manhã e
um meio-dia. Diz-se que o meio-dia é mais quente do que a
tarde. No entanto, porque a tarde contém em si o meio-dia e
porque o calor sobe, ela é mais quente, pois antes da tarde ali
está todo um dia cheio. Ao avançar do ano, quer dizer, depois
do solstício de verão, quando o sol começa a aproximar-se da
terra, a tarde torna-se quente. Jamais pode tornar-se o meio-dia
se a manhã não tiver passado, nem pode tornar-se tarde se o
meio-dia não tiver passado. Isso significa: Quando a luz divina
irrompe na alma, sempre mais e mais até o pleno dia vir a si,
então ali não se esvai a manhã <antes> do meio-dia, nem o
meio-dia <antes> da tarde: Juntos se incluem plenamente em
um. Assim, quando tudo o que a alma é se torna cheio da luz
divina, então é o dia todo, cheio na alma”11.
Quando o sol se levanta, dá-se a luz da manhã; depois ele brilha
mais e mais, até chegar o meio-dia. De igual modo, a luz divina
irrompe na alma, para iluminar mais e mais as forças até que se
torne meio-dia. De modo algum, faz-se dia espiritualmente na
alma se ela não recebeu uma luz divina12.
11. Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães. Vol. I (sermão 36a), op. cit. p. 212.
12. Cf. ECKHART, Mestre. Id. (sermão 20a), p. 137.
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GILBERTO GONÇALVES GARCIA
Vida ativa e vida contemplativa como modos de rompimento
e de constituição: a vida nova
No âmbito da compreensão de vida como irrupção, o começo é
apreendido como mudança da impossibilidade para a possibilidade.
Para Eckhart, o começo do ser é o início de uma desenvoltura que
deve retornar para si. A criatura “nasce”. Seu nascimento é possibilidade tornada. Uma possibilidade tornada, porém, não no sentido de
possibilidade aberta para a experiência. Eckhart exprime o sentido de
nascimento do ser como “dar-se à experiência”. “Ser possível” é se abrir
e se iluminar como um campo próprio. A criatura, ele entende, já
“nasce” como experiência de si mesma e de suas pertenças de mundo.
“Ser possível” é um modo de “autodeterminação” e de
“automaterialização”. Por isso, não será difícil perceber, em Eckhart,
que a compreensão da essência da humanidade do homem, em seu
caráter de criatura, está intimamente ligada a modos possíveis de ocupação. A condição humana se abre, criativamente, como ocupação e
sentido próprios. Ele confirma:
Quem pelo espaço de mil anos perguntasse à vida: “Por que
vives?” – se ela pudesse responder, não diria outra coisa a não
ser: “Eu vivo porque vivo”. Isso vem porque a vida vive do seu
próprio fundo e emana a partir do seu próprio. Por isso vive sem
porquê, justamente por viver <para> si mesma. Quem, pois,
perguntasse a um homem verdadeiro, que opera a partir do seu
próprio fundo: “Por que operas tuas obras?” – se quisesse responder direito, não diria outra coisa a não ser: “Eu opero porque opero”13.
O empenho, o cuidado, a obra, a lida, o conhecimento, são “espaços” possíveis da realização de vida humana, enquanto criatura. O grau
de vitalidade do homem (seu nascimento, sua geração) depende do
grau de seu desempenho, de sua “operação”. No entender de Eckhart
todo o ordenamento criativo vital do homem está em seu “operar”. A
criatura, em seu nascimento, está ligada à tarefa inalienável de ter que
13. Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães. id. (sermão 5b), p. 67.
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A COMPREENSÃO DE VIDA E SEU SENTIDO DERIVADO...
operar, e, cada vez, segundo um agir próprio. Sua identidade está de tal
modo ligada a essa possibilidade que ela é essa possibilidade mesma.
Com base nessa condição, o ser criado é sempre “ser singular”. A expressão “ser singular” inclui todas as pertenças de uma conjuntura própria. A conjuntura de ser da criatura, portanto, está, da mesma forma,
de tal modo ligada a essa possibilidade, que ela é a possibilidade mesma. Tudo, assim, “pertence” à criatura.
Na acepção de criação como nascimento, a criatura não é reconhecida
como um “estado” do ser, um ponto terminal de um processo criativo. A
criatura, e em especial o ser do homem, por mais que se tenha desempenhado, estará sempre de novo no “começo” de si, visto que jamais abandonou o ponto da impossibilidade, na qual e pela qual “começou”. A criatura
se dá sempre neste instante “em que agora se encontra”, como se dá a si
todo o tempo. O ponto de sua impossibilidade é a possibilidade de seu
salto para a realidade. O salto conduz ao princípio da singularidade do ser.
No salto, o salto se converte em origem.
Uma ontologia da criação se afirma, nessa circunstância, pelo sentido do ser que vê no começo do caminho a doação da liberdade para
a experiência do caminho. Este é o sentido “libertador” da experiência
de vida, como origem, na “visão” da mística especulativa. Em Eckhart
o sentido da obra da criação é levado para o horizonte da geração.
Nesta pressuposição sua doutrina enfatiza o caráter permanente do ato
criativo na criação. Com efeito, a imagem da liberdade da criação também é expressa pela idéia de “retorno”. A liberdade do ser é, por assim
dizer, assumida como movimento permanente de retorno para sua
possibilidade própria: “Aqui no tempo, nutrimo-nos da geração eterna, que Deus o Pai realizou e realiza sem cessar em eternidade”. O
nascimento não retorna a um “ponto” anterior, mas retorna à condição
de começar: um nascimento, assim, concebido como renascimento.
Por ele, o sentido de finitude da criatura se expressa sob uma base
ontológica completamente distinta daquela encontrada na acepção usual
do termo. Finitude é assumida como “materialização” da liberdade. A
geração eterna é mediada pela vida, assim interpretada. Por isso a vida
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é sempre uma novidade. Ela nunca pode ser a mesma, cada vez. A
mística de Eckhart reconhece na finitude, como “meio”, um fundamento da criatura e não seu término.
Uma espiritualidade que emerge desse pensar deverá necessariamente se diferenciar daquela que nega a corporalidade e não inclui o
corpo como experiência fundamental da vida. Com efeito, na mística
de Eckhart o mundo exterior é compreendido como condição de transformação interior da conjuntura humana. Sem interior não há exterior. O sentido místico de abnegação não descreve uma experiência de
rejeição ao mundo material. Pelo princípio da interioridade da conjuntura do ser, aquilo que é “exterior” só o é em determinado tempo
próprio de sentido. Fora de sua temporalidade própria ele não é coisa
alguma. A “coisa em si” da obra humana, junto à qual o homem opera, não é algo “solto” com uma interioridade oca. O “em si” da obra só
se manifesta quando o “para fora” é o que dá o interior ao exterior.
“Dar-se” para fora é modo de ocupação humana.
A palavra dos sermões revela uma doutrina que entende o sentido
de nascimento e de redenção da criatura como uma única constituição. Por isso a eternidade é o a priori ontológico do tempo da criação
e da redenção da criatura. Eternidade é o horizonte possível para toda
e qualquer compreensão fragmentada de tempo. Do ponto de vista
teológico, a profundidade do pensamento de Mestre Eckhart está na
prerrogativa de que a dimensão do ser da criatura já é compreendida
desde sua “divinização” originária. Na compreensão de redenção está
implícito que todo o ser do homem em sua propriedade, assim como
é, pode ser transferido para dentro da constituição ontológica da salvação. Por isso, o sentido de elevação espiritual, em Eckhart, não pressupõe a mortificação do corpo como condição necessária, mas, antes, o
engajamento concreto do homem em sua propriedade histórica:
“Lança fora a criada e seu filho, pois ele não deve ter herança
com o filho livre” (Gn 21,10). Toda oração ou jejum corporal e
toda obra exterior não pertencem à herança. E segundo isso:
Todas as obras espirituais, que operam no espírito, pertencem à
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A COMPREENSÃO DE VIDA E SEU SENTIDO DERIVADO...
herança. Por maior que seja o desejo, “lança fora a criada e seu
filho”. Mesmo que se colha grande recompensa e incomensurável recompensa na oração e no jejum [...]14.
O sentido de perfeição religiosa deve surgir da acolhida cordial da
finitude humana, a sua herança. A “espiritualidade mística” de Eckhart
e de sua escola é a concretização de uma ontologia da finitude. Nela
está configurada a responsabilização humana pela acolhida da existência concreta e finita. O modo de ser da finitude humana está preso à
tarefa de ter que assumir sempre de novo o seu ser. Ademais, ele precisa atuar para esse propósito, pois esse “operar” é uma tarefa inalienável.
Ela é cada vez sua. O homem “opera” a partir de um vazio, experimentado como sua libertação, como confirma:
Se uma boa obra acontecer por um homem, com a obra liberase o homem. E com essa liberação ele se iguala a seu começo e
dele se aproxima, mais do que estava antes de acontecer a liberação. E nesse tanto, ele é mais bem-aventurado e melhor do que
antes de acontecer a liberação. [...] a obra não possui essência e
tampouco o tempo em que aconteceu, pois se desfaz nele mesmo.
Por isso não é bom nem santo e nem bem-aventurado; antes, é
bem-aventurado o homem, em quem o fruto da obra permanece, não como obra ou como tempo, mas como um bom feito,
que ali é eterno com o espírito, [...] e é o próprio espírito15.
O resgate da dimensão da finitude, em Eckhart, aparece no entendimento de que o homem, em sua individuação e consciência, não é
um ser “ao lado de” ou “voltado para” suas operações. A constituição
da humanidade do homem acontece no salto (operar), para o qual
tudo retorna e onde ele é encontrado em tudo. O indivíduo se constitui como suas operações elas mesmas. No sentido especulativo da
mística, o homem é apreendido como um “reflexo” tardio de uma
conjuntura singular. As obras surgem e se esvaem por si mesmas
generativamente e assim produzem primeiramente o indivíduo (“ser si
próprio”), como “natureza boa”, em quem “permanece o fruto do es14. Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães. Vol. II, op. cit. (sermão 99), p. 187.
15. Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães. Vol. II, op. cit. (sermão 105), p. 237.
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pírito”. É a ocupação humana e seu fruto, a obra, que fazem aparecer o
indivíduo, não o contrário.
A vida é, pois, uma constituição genética. Em seu fundamento ela
é um salto sempre novo para formas originárias de vivência. A característica fatídica de “ter que ser” a partir de operações faz com que o
indivíduo seja sempre imprevisível, único e irrepetível. A existência
humana experimenta, desse modo, a unicidade da possibilidade; a identidade dessa possibilidade com o todo e a identidade de todos os eventos com essa possibilidade.
Vida ativa e vida contemplativa como modos de elevação
O âmbito da compreensão de vida como constituição genética
corresponde a uma “visão” peculiar da mística de Mestre Eckhart. Ele
não desenvolve, através de sua palavra, uma teoria da vida do espírito.
Ele apenas descreve uma “visão” da vida que se legitima pela ótica de
um olhar correspondente: Um pensar relacional da criação. Raramente
uma “visão” de mundo se constitui em uma doutrina. A “visão” da
liberdade da criação pelo olhar relacional é uma possibilidade de compreensão da experiência da vida. A “visão” da criação se antecipa, portanto, pelo olhar relacional. Assim como, pelo fenômeno da irrupção,
A vida constitui o desabrochar de si em um espaço próprio, ela também pressupõe um percurso próprio para o seu desabrochar. O percurso da constituição genética da vida é interpretado, na mística, através do conceito de “elevação”. Ao começo, como irrupção, corresponde um percurso, uma elevação. Eckhart instrui:
Um mestre pagão [Aristóteles] diz: Isso é bem-aventurança, a
saber, que se viva segundo a suprema força da alma. Essa deve
tender constantemente para o alto e receber sua bem-aventurança
em Deus. Lá onde, na primeira irrupção, o próprio Filho recebe, lá também devemos receber, no que há de mais elevado em
Deus. <Mas> então, também nós devemos sustentar igualmente ao encontro dele o que há de mais elevado em nós16.
16. Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães. Vol. I, op. cit. (sermão 45), p. 259-260.
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A COMPREENSÃO DE VIDA E SEU SENTIDO DERIVADO...
A “visão” relacional da criação em eckhart é novamente tomada numa
perspectiva diferenciada. Vale lembrar, aqui, algo que se afirmou anteriormente: Que sua mística especulativa assume os seres, em seu sentido, não
como substratos, mas como “momentos” do mundo criado, em sua essência, no qual as criaturas podem ser tomadas como “momentos” de uma
constituição mais ampla que elas mesmas não são. Pelo conceito de elevação, aquilo que se concebeu como “momento” constituinte de uma relação ganha, agora, dinamicidade e vitalidade.
A narrativa da obra humana, nos sermões 101 e 105, revela o sentido de “obra” como o desempenho único, através do qual uma multiplicidade de significações se abre na forma de conexões sucessivas: a
criação. Na linguagem dos sermões a obra humana é apreendida, em
sua desenvoltura, como o próprio nexo significativo que ela descobre.
O que emerge, desse modo, como resultado da obra, é simplesmente
um “momento” do nexo significativo, o qual encontra, nesse nexo,
seu sentido e temporalidade próprios. É o que motiva a indagação
reiterada de Eckhart: “o que pertence ao homem fazer, como sua obra,
para que alcance e conquiste que esse nascimento aconteça e nele se
realize?” E, noutra oportunidade, a afirmação: “acontecendo uma boa
obra por meio do homem, liberta-se, assim, com esta obra o homem”.
“Pois a obra, na medida em que se realizou [...] também imediatamente se aniquilou” junto com “o tempo em que ela tenha se dado”.
Caso deva “realizar algo mais, isto terá de se dar com outras obras,
como também num outro tempo”. Do mesmo modo como ocorre
no processo da irrupção, não é possível ver como, cada vez, a possibilidade concreta se abre em sua impossibilidade radical. Tempo, lugar e
ocasião se escondem: manifesta-se, pois, um “radical-outro”.
Aquilo para o que Eckhart chama a atenção, nos sermões sobre as
obras e o tempo (sermão 105), não é, na verdade, a relevância desta ou
daquela obra humana em particular. Nem a totalidade das obras humanas, em seu desempenho, lhe interessa. A palavra do sermão quer
apenas destacar o sentido de natureza humana, em sua origem, como
uma desenvoltura operativa. Em Eckhart, a natureza humana possui
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um percurso próprio para o seu desabrochar. O homem é visto, em
sua essência, como o desempenho de um percurso próprio. Este percurso é pensado na linguagem mística com o termo “elevação”. Pela
elevação o homem se desenvolve para sua criação.
A compreensão de obra humana, assim descrita, ainda não alcança
toda a dimensão do sentido de liberdade pretendida pelo pensar místico de eckhart. Falta-lhe confirmar, como ele mesmo enfatiza, os níveis
da amplitude de obra humana em seu desempenho concreto. A amplitude de percurso da vida humana, em níveis, é comumente reconhecida, em seu discurso, como “grau” ou “degrau” do ser. Mesmo
assim, não são os chamados “degraus do ser” do homem que, propriamente, revelam a dinâmica do percurso do desenvolvimento do homem para sua liberdade criativa. Esse desempenho acontece, de fato,
segundo o dinamismo de um movimento, cuja mobilidade eckhart
descreve como “elevação”. Os degraus do ser indicam, desse modo,
apenas graus (níveis) do comprometimento do homem ao assumir
para si as condições prévias de sua autorealização. Os degraus correspondem, pois, a níveis de elevação humana.
Mestre Eckhart compreende que a “nobreza” da condição humana
é diretamente “proporcional” à grandeza do princípio que a liberta. É
O princípio libertador próprio que determina o grau de autocorreção,
de transformação, de conversão e de consumação do desempenho humano como vida.
No sermão 86, Mestre Eckhart discursa o tratado da liberdade,
assim proposto. Em sua narrativa ele descreve como a vida, pela
irrupção, se constitui como o desabrochar de si em um “espaço” de
liberdade próprio. O percurso de realização desse desabrochar não está
dado a priori. Ele precisa ser desempenhado pela elevação humana. Na
elevação está configurada a responsabilização do ser humano pela acolhida da existência concreta e finita do ser. Nesse processo, o homem
se encontra sempre “a caminho”. No estar “a caminho” ele se espelha
em níveis de responsabilização da tarefa de assumir para si suas condições prévias de realização. O sermão 86 se alinha junto às mais bri44
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lhantes páginas da hermenêutica construída pela mística especulativa
de Eckhart. Nele, o mestre distingue vida ativa e vida contemplativa
como modos de elevação. Eis o resumo do texto:
Nosso Senhor Jesus Cristo entrou numa cidadela; ali foi recebido por uma mulher chamada Marta. Marta tinha uma irmã
que se chamava Maria. Ela, sentada aos pés de Nosso Senhor
escutava suas palavras; Marta, porém, andava de um lado para
outro servindo o Cristo amado. [...]
Então Marta diz: “Senhor, ordena que me ajude!” [...]Prestai
atenção! Ela percebeu que Maria estava tomada de prazer por
toda sua satisfação de alma. Marta conhecia Maria melhor do
que Maria conhecia Marta. [...]
ela disse: “Senhor, ordena que ela me ajude”, como se dissesse:
“minha irmã pensa que já pode fazer o que quiser, enquanto
permanece sentada junto a ti na consolação. Permita que veja se
as coisas são mesmo assim, e ordena que se levante e se afaste de
ti!” [...]Suspeitamos que a querida Maria de certo modo estava
sentada ali mais por causa do prazer do que pelo proveito racional. Por isso, Marta disse: “Senhor, ordena que se levante”, pois
temia que ela permanecesse no prazer e não fosse disso além.
Então o Cristo lhe respondeu, dizendo: “Marta, Marta, tu és
cuidadosa, estás aflita por muitas coisas. Uma coisa é necessária!
Maria escolheu a melhor parte, que jamais poderá ser-lhe tirada” (Lc 10,41-42). [...]
Mas por que chamou Marta duas vezes? Ele quis indicar que
Marta possuía plenamente tudo que é bem temporal e eterno e
tudo que a criatura deveria possuir. Na primeira vez que disse
“Marta”, demonstra sua perfeição nas obras temporais. Quando
pronunciou pela segunda vez o nome de “Marta”, demonstrou
tudo que pertence à bem-aventurança eterna, da qual ela nada
carecia. Por isso, ele disse: “tu és cuidadosa”, e quis dizer: “tu
estás junto às coisas e as coisas não estão em ti. E cuidadosos são
aqueles que em todos os afazeres se encontram sem impedimentos. [...]A alma tem três caminhos para dentro de Deus. O primeiro é: procurar a Deus em todas as criaturas, com múltiplo
empreendimento e com amor ardente. [...]
O segundo caminho é caminho sem caminho, livre e, no entanto, ligado, elevado e arrebatado muito acima de si mesmo e de
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todas as coisas, sem vontade e sem imagens, embora ali ainda
não seja instância essencial. [...] O terceiro caminho se chama
“caminho” e é, no entanto, lar, isto é: contemplar a Deus, sem
mediações no-que-é-seu-próprio. [...]São três as coisas que devemos ter em nossas obras. Isto é, que operemos de maneira
ordenada, racional e sábia. Chamo de “ordenado” àquilo que
em todos os pontos corresponde ao mais próximo. Chamo de
“racional” àquilo que não se conhece nada de melhor no tempo.
E chamo a algo de “sábio” quando nas boas obras encontro a
verdade viva com sua jovial presença. [...]
E o Cristo diz: “tu te afliges por muitas coisas, não por uma”.
Isso quer dizer: quando ela está pura e simples, sem qualquer
empreendimento, voltada para o alto, para o círculo da eternidade, então fica aflita se for intermediada por uma coisa, de
modo que não pode com prazer permanecer lá em cima. O homem ficar aflito na coisa, se mergulha ali ao estar junto ao cuidado. Mas Marta estava assentada numa virtude esplêndida,
madura e sólida, num ânimo livre, desimpedida de todas as
coisas. Por isso ela desejava que sua irmã estivesse assentada no
mesmo vigor, pois via que ela ainda não estava assentada de
modo essencial. Era uma base madura, aquela a partir da qual
ela desejava que também Maria estivesse fortalecida em tudo o
que pertence à bem-aventurança eterna. Por isso, o Cristo diz:
“uma coisa é necessária”. O que é isso? É o Um, é Deus. Isso é
necessário a todas as criaturas; pois, se Deus retivesse em si
mesmo o que é dele, todas as criaturas se tornariam nada. [...]Por
isso precisamos daquele um. Marta temia que sua irmã ficasse
presa no prazer e na doçura; e desejava que Maria se tornasse
como ela mesma, Marta. Por isso, o Cristo falou, como se lhe
dissesse: “fica sossegada, Marta, ela escolheu a melhor parte”.
Isso que agora pode estar afetando a Maria lhe será tirado. O
mais sublime que uma criatura pode ser, ela o será: ela será
bem-aventurada como tu”.
Então o Cristo diz: “tu te afliges por muitos cuidados”. Marta
era tão essencial que seu operar não criava nenhum impedimento; obras e operar conduziam-na para a bem-aventurança eterna. É verdade que havia algo mediado: a sustentavam natureza
nobre, empenho constante e virtudes, mencionadas anteriormente. Maria era antes Marta, antes de ela tornar-se Maria;
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pois enquanto estava sentada aos pés de Nosso Senhor, não era
Maria. [...] Eu chamo de Maria a isso: um corpo bem exercitado, obediente a uma alma sábia. A isso eu chamo de “obediente”: ao que a discrição ordena, a vontade satisfaz17.
A elevação, em seu sentido essencial, está ligada à possibilidade de
um agir próprio, mas de tal modo que esse agir é a possibilidade mesma de elevação. Pode-se dizer que a obra humana é uma forma de
desempenho da liberdade. Em toda ação do homem está embutida
uma tendência de melhoramento. O melhoramento humano é o sentido fundamental da liberdade. Ele significa não só melhoria das condições do caminho, mas a melhoria do próprio caminho. Este é o
fundamento dos “três caminhos” para dentro de Deus, na palavra do
sermão. Para Eckhart, melhoramento é um resultado da elevação. Mas
a elevação é sempre uma experiência que se confirma “dentro” de um
determinado grau próprio. Ela se estrutura a partir de um caminho
que se descobre a si mesmo como o sentido de si mesmo.
A idéia de degraus de elevação, nos sermões, é, em si, a retomada
da tradicional questão da analogia da proporção, sob uma postulação
diferenciada. Mestre Eckhart, com efeito, interpreta a analogia do ser
com o recurso da imagem da elevação. A elevação humana, apreendida
em gradações, é, nesse caso, um modo de proporção. Ela é experimentada como projeção do todo para uma visão futura modificada de si:
“chamo de ‘ordenado’ àquilo em que todos os pontos corresponde ao
mais próximo”. O pensar especulativo da mística entende a proporção
como a medida da diferença entre a intensidade operativa a ser desempenhada e os critérios para o seu desempenho. Quanto maior o grau
de elevação do homem, em conjuntura própria, tanto menor o seu
desempenho operativo no sentido de um mero afazer ocupado com
“coisas materiais” (“algo mediado”). Daí o fato de Marta ser tão essencial “que seu operar não criava nenhum impedimento”. Esta proporção é que mantém o equilíbrio conjuntural do ser de Marta. A idéia de
17. Cf. ECKHART, Mestre. Sermões alemães. Vol. II, op. cit. (sermão 86), p. 126ss.
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elevação é a idéia guia da proporcionalidade e está incluída nos principais disjuntivos na analogia entis: absoluto-relativo; necessário-contingente; infinito-finito; interior-exterior.
A dinâmica da elevação é um movimento interno da conjuntura
humana, que só se pode constatar exteriormente por vestígios. Ela é
experimentada como o caminho de uma busca identitária: ou bem se
realiza como “procura de Deus, com múltiplo empreendimento”, ou
se realiza como “um caminho sem caminho, elevado muito acima de
si” ou, finalmente, se consuma como um “‘estar em casa’, isto é, [como
um] contemplar a Deus sem mediações”. Por ser o caminho de uma
busca identitária, a elevação é sempre vivida como forma de propriedade. Por isso o elevar-se da criatura nunca pode ser visto “de fora”.
Daí a razão porque Marta “desejava que sua irmã estivesse assentada no
mesmo, pois via que aquela ainda não estava assentada de modo essencial”. Marta só podia sondar a Maria por vestígios.
O caminho da elevação para poder se constituir em caminho “próprio” não deve querer se conservar. Um caminho que não se desenvolve como elevação corre o risco de se converter num curso de piora, ao
invés de melhoria do ser. Sendo esse o caso, tudo aquilo que “antes” se
alcançou, “com múltiplo empreendimento e com amor ardente”, nem
progride, nem se conserva, antes, se aliena e se perde. Eckhart vê na
reação aflita de Marta uma preocupação desse gênero diante da beatitude
de Maria, nisto, quando aquela temia que esta “permanecesse no prazer e não fosse além disso”. Mestre Eckhart reforça este entendimento,
quando comenta a seguir: “como se dissesse: [...] gostaria que ela aprendesse a viver, para que possua a vida de maneira essencial”. Por não
poder se conservar, o caminho da elevação reconhece no degrau o sentido de uma estação provisória do ser. Não há degraus, de fato. O
máximo que se pode falar é em estações de um caminho. E na compreensão da mística, quanto mais elevado o grau de ser, tanto mais
instável o ser se torna. Na instabilidade se encontra a disposição do
indivíduo a se retomar. Quanto menos elevado o grau de ser, tanto
menos capaz de se recriar se encontra o indivíduo.
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Elevar-se e ocupar-se “com as coisas” do mundo são fenômenos
que não devem necessariamente se contrapor, na “visão” mística, como,
muitas vezes, ocorre na contraposição entre vida de oração e vida de
trabalho para a experiência contemplativa moderna. A “lida” com as
coisas do mundo é um dos três caminhos possíveis para dentro de
Deus na palavra do sermão. Ademais, em todas as ocupações “com” o
mundo também “devemos ter três coisas. Isto é, que operemos de
maneira ordenada, racional e sábia”. A mística, em Eckhart, retoma o
princípio de busca da perfeição alcançada por São Bento, que via no
ora et labora um condicionamento recíproco na forma da elevação.
Orar e trabalhar são, na medida “ordenada”, movimentos complementares. A questão que parte de Eckhart na exegese do sermão 86 é a
compreensão de que a obra humana sem elevação se torna uma ação
externa, do mesmo modo que a oração sem empenho é experiência
morta. O ora et labora evoca o começo impossível de todo empenho
humano pelo sentido da vida. Ele entende, dessa forma, que a elevação
humana é modo de intensificação de um processo dinâmico, que só se
realiza pelo esforço, empenho ou trabalho: “natureza nobre, esforço
constante e virtudes”.
Em Eckhart, a elevação recria a obra humana e todo seu sentido.
O trabalho, em seu desempenho, apenas “produz”. Enquanto o trabalho produz, a elevação recria. Estes são dois movimentos da dinâmica
da criação em sua “visão” mística. É o sentido daquilo que afirma nos
sermões 105 e 5b, já referidos: “Acontecendo uma obra, liberta-se,
com esta obra, o homem”. “A obra não possui ser algum, porquanto
se dissipa por si mesma”, ou, ademais, “eu vivo porque vivo, eu opero
porque opero”.
No sermão sobre a relação (proporção) entre Marta e Maria,
Eckhart mostra que o trabalho torna possível a existência humana a
partir “de baixo”. A elevação, quando autêntica, nunca dispensa a presença da obra. O desempenho básico da obra continua sendo a base
conjuntural humana da disposição de si própria. A elevação se cumpre
tanto na contemplação de Maria quanto no afazer de Marta. A figura
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de Marta representa, todavia, na interpretação de Eckhart, o sentido
ontológico de cura. Marta é a cura. Ela cuida da existência humana em
seu sentido pleno: “Marta possuía plenamente tudo que é bem temporal e eterno e tudo que a criatura deveria possuir”. Uma conjuntura
humana se dá a si mesma pela circunstância à qual se dirige: as coisas
do mundo ao seu redor. Por isso, em seu modo de possuir tudo plenamente, Marta se aflige por muitos cuidados. Ela zela pela existência humana ligada ao mundo. Seus afazeres se abrem desde uma interioridade na
qual se podem experimentar as coisas a partir de sua pertença a um todo.
Se não ao todo, como plenitude, de qualquer forma, como uma delimitação própria. Em todo caso, Marta responde por sua delimitação. Toda
delimitação própria conhece estranheza e “não tangenciamento”. Ocupada
com o cuidado da casa, o zelo de Marta é a elaboração completa de uma
possível relação com o mundo, com as coisas e com o “não-próximo”: sua
estranheza. A aflição de Marta é a expressão de sua estranheza. Em sua
autodelimitação está também a “desocupação” de Maria, como tal, incluída em sua estranheza. Marta toca a Maria sem a tocar. A desocupação de
Maria e seu “não tangenciamento” só concernem à vigilância fundamental de Marta. Pelo fato de a elevação só possuir relevo na obra humana,
a desocupação permanente de Maria se insiste referida e incluída na
aflição de Marta.
Também pode ser o caso em que o caminho da elevação busque sua
conservação e não se constitua em “caminho próprio”. A criatura permanece grosseiramente sem “caminho próprio”. Ela se “prende”. Torna-se
excluída. O excluído permanece “lá fora”, sem autocorreção, sem desempenho e elaboração. Nesse caso, o estranhamento se torna em alienação. A
aflição de Marta está voltada, pois, para o perigo da alienação e da perda de
Maria: “Marta temia que sua irmã ficasse presa no prazer e na doçura”.
Eckhart entende que a alienação é sempre uma autoalienação, pois ela
perfaz um modo de ser si mesmo. Nessa circunstância, o ser si mesmo não
reside dentro, mas se aloja no que Eckhart denomina de exterior do exterior. A obra humana perde, então, seu caráter de elevação. Uma obra humana pode perder seu caráter de elevação, mas a elevação nunca perde o
caráter de trabalho e empenho.
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Na preleção sobre a excelência de Marta sobre Maria, Mestre
Eckhart resume a experiência do renascimento pela idéia da elevação, a
qual, em outras passagens de sua homilética, ele denomina de “arrebatamento”. A elevação descreve como o processo do surgimento
(irrupção) se constitui como um caminho de muitas retomadas a serem empreendidas pela criatura. A elevação corresponde a um processo contínuo de autocorreção e de autoevidenciação da criatura em direção a sua maturidade plena.
O caminho da plenificação descrito como elevação do ser não encontra um fim. Mais e mais se torna evidente a necessidade de que nele
se manifeste a escuta atenta às suas possibilidades jacentes. A elevação é
uma experiência de autonomia. Seus estágios, assumidos como degraus, se tornam cada vez mais claros e também autônomos. Cada
degrau, pelo processo de retroação, assume o todo dos degraus precedentes. Cada grau, como tal, se mantém como o “todo” dos degraus,
do mesmo modo que um degrau, como o todo, repercute adiante em
direção à sua consumação, permanecendo vivo em seu processo de
começar de novo.
Mesmo que o sentido de elevação pelos degraus concorra para um
fim, essa conclusão não é um fechamento. Cada degrau significa, de
novo, uma retroação e uma repercussão, descrevendo um processo
genético e criativo. O fim do processo de elevação pertence ao próprio
processo. Ele não estabelece os limites de seu fim, mas se descobre
como um degrau, a partir do qual o todo pode ser recuperado
nascivamente em sua criatividade. Os degraus não representam, todavia, níveis progressivos ou colaterais do ser. Cada degrau é um começo
e um fim em si mesmo. Vida e morte. Morte e vida. Enquanto começo, só é conclusivo no fim. O jogo do todo em cada momento é
entendido como experiência absoluta. Aqui, o sentido da
relacionalidade criativa originária da criação se plenifica, “ganha corpo”. Em seu ciclo, a elevação “põe de pé” a criatura. E visto que no
processo de retroação e repercussão só se alcança o começo no fim, o
processo é sempre criativo. Seu resultado é experimentado como eternidade: “homem novo é: vida eterna”.
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Referências
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O IDEAL DE FELICIDADE EM SÍGER DE BRABANTE...
O IDEAL DE FELICIDADE EM
SÍGER DE BRABANTE
Idalgo José Sangalli *
Resumo: A partir do apoio de uma fonte indireta – Agostinho Nifo –
e confrontando com diversos passos de algumas das obras do próprio
Síger de Brabante (c.1240-1280/84), a proposta deste estudo é fornecer argumentos para mostrar a evolução sigeriana da concepção
filosófica de felicidade e, assim, tentar compreender alguns traços de
seu ideal de vida feliz. Ele defende que o intelecto humano, ainda
nesta vida e unindo-se aos outros intelectos, pode alcançar a felicidade no ato intelectual pelo qual compreende a essência de Deus sem
nenhum intermediário, embora assuma depois uma posição mais
moderada em que estabelece uma união operativa entre o intelecto e
o homem. Mesmo assim, ele reconhece a dificuldade da questão sem
abdicar de tentar, no conjunto de seu pensamento, recuperar a legitimidade da filosofia e o espaço do filosofar; como um dom de Deus, o
homem deve fazer o melhor uso de sua melhor parte e, assim procedendo, realizar-se e ser feliz enquanto criatura humana na sua existência terrena.
Palavras-chave: filosofia, felicidade, intelecto, copulatio, operação.
Abstract: From the support of an indirect source – Augustine Nifo – and
confronted with several steps of some of the works of their own Siger of
Brabant (c.1240-1280/84), the purpose of this study is to provide arguments
to show the development sigerian of the philosophical conception of happiness
and thus try to understand some features of his ideal of happy life. He argues
that the human intellect, even in this life and joining the other intellects, can
achieve happiness in the intellectual act which understand the essence of
God without any intermediary, although it takes then a more moderate
position establishing a operative union between the intellect and the man.
Still, he recognize the difficulty of the question without giving up on trying,
in the whole of his thought, to recover the legitimacy of the philosophy and
the space to philosophy; as a gift from God, the man must do the best use of
*
Professor Doutor em Filosofia Medieval, leciona no Curso de Filosofia da UCS.
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IDALGO JOSÉ SANGALLI
his best part, and doing so, to take place and be happy as human creature in
his earthly existence.
Key words: Philosophy, happiness, intellect, copulation,
operation.
Em 1945, Bruno Nardi publicou a marcante obra Sigieri di Brabante
nel pensiero del Rinascimento Italiano. À parte a polêmica explicitamente
agressiva entre ele e Steenberghen – referida, por exemplo, no prefácio, e
nos dois primeiros capítulos que reproduzem parte das discussões publicadas, primeiramente, no Giornale Critico della Filosofia Italiana –, a obra
tornou-se referência nas investigações filosóficas sobre o averroísmo. Isto
não só por tratar da produção intelectual dos filósofos da chamada “segunda fase do averroísmo” parisianense-italiano (João de Jandun, João de
Baconthorp, Tomás de Wilton, Tadeu de Parma, Pedro Trapolino, Alexandre Achillini e outros), mas por apresentar, a partir das obras de Agostinho Nifo, principalmente o Sobre o intelecto (De Intellectu), escrito em
Veneza em 1492 e publicado em 1503, diversas passagens das supostas
obras de Síger Sobre o Intelecto (De Intellectu), Livro sobre a felicidade
(Liber de Felicitate) e também uma outra obra de título desconhecido,
tidas todas, ainda hoje, como perdidas. Diz Nardi:
“[...] mi sembra che non siano da trascurare le numerose citazioni
che il Nifo fa di ben tre opere di Sigieri, le quali si leggevano ancora
a Padova e a Bologna alla fine del secolo XV, e che non figurano tra
gli scritti che si conoscono oggi di lui. […] Quest’ultimo riassunto
[De intellectu, 1503] della dottrina di Sigieri è importante per più
versi: anzi tutto, perché il Nifo indica l’opera del brabantino alla
quale attinge; indi, perché riferisce pensieri e frasi riportate alla
lettera, le quali e i quali non si trovano in nessuna delle opere di
Sigieri finora conosciute”1.
1. NARDI, B. Sigieri di Brabante nel pensiero del rinascimento italiano. 1945, p. 10 e
19. Além das informações e citações de Nifo, das obras sigerianas que tratam de moral,
são conhecidas apenas as breves páginas das Quaestiones morales, identificadas e descritas por Mgr Stegmüller, em 1931. De Boécio, colega de Síger, é conhecido o De summo
bono. Na tentativa de dar conta da falta de textos sobre a posição moral dos aristotélicos
radicais ou “la famille des Commentaires ‘averroïstes’ sur l’Ethique à Nicomaque”, Gauthier
publicou um longo artigo em 1948, Trois commentaires ‘averroïstes’ sur l’Ethique à
Nicomaque, onde analisa novos textos “averroístas” na intenção de tornar mais clara e
completa a doutrina moral desta corrente, em torno de dois problemas centrais: o
problema da felicidade e o problema da relação entre magnanimidade e humildade.
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O De intellectu, citado por Nifo, como obra sígeriana e que teria
sido mandada a Tomás de Aquino como resposta ao seu tratado De
Unitate Intellectus contra Averroistas, continua desconhecida. Nifo é o
único a fazer referência a esta obra, assim como ao Liber de Felicitate,
também desconhecido e que talvez fosse uma parte complementar do
De Intellectu 2. De qualquer modo, e dando crédito à fonte, algumas
das passagens citadas por Nifo lançam luz sobre o posicionamento de
Síger de Brabante (c.1240-1280/84) sobre o que seja a felicidade e
como e onde pode ser alcançada.
Diferentemente de Tomás de Aquino, que elaborou uma antropologia fundindo elementos da revelação com categorias filosóficas
mais consistentes que a proposta agostiniana, Síger, inspirando-se em
Averróis, Alberto Magno e no confronto com o próprio doutor Angélico,
faz a sua própria leitura de Aristóteles. Apresenta uma concepção da
natureza do ser humano enquanto constituído de alma e corpo, de
modo diferente de Tomás, com ênfase na operação própria para a realização do homem feliz por categorias filosóficas dependentes apenas
da razão natural. Ou seja, seus pressupostos metafísicos não necessitam, na argumentação filosófica, do reforço dos dados revelados para
garantir a possibilidade de uma existência humana na felicidade, pois é
através da união (primeiramente a união ocorre nas Quaestiones in
Tertium de Anima), mas é depois, nas Quaestiones de Anima Intellectiva
que se dá a copulatio no sentido operativo entre o corpo e o intelecto.
Procuraremos responder aqui à questão: o que é a felicidade para
Síger? Pela exposição de Nifo e por algumas passagens das obras
sigerianas, podemos tentar compreender a concepção de felicidade do
Brabantino. Atenhamo-nos, primeiramente, a alguns tópicos do texto
de Nifo nos quais ele declara ter resumido o pensamento de Síger – é
evidente que Nifo insere neles também as suas próprias concepções,
mas ultrapassa o âmbito do presente trabalho tentar identificar tais
inserções. Assim, por exemplo, diz Nifo:
2. Idem, ibid. p. 24-41.
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Por estas coisas Síger, homem prudente e sumamente peripatético,
e familiar na seita de Averróis, no Libro de Felicitate afirmou que a
felicidade é Deus, pois assumida aquela definição como premissa
maior [A felicidade é o fim último, ótimo, por si escolhível, a nenhum outro ordenável, graças ao qual todas as coisas são escolhidas, bom e perfeito, belíssimo, delectabilíssimo, por si suficiente,
honrável, por isso princípio de todos os bens existentes: e deste
modo em todo livro da Ética, Aristóteles diz o que ela é], acrescente
esta premissa menor: mas Deus é o último fim, ótimo, por si mesmo escolhível, a nenhum outro ordenável, graças ao qual todas as
coisas são escolhidas, bom e perfeito, belíssimo, delectabilíssimo,
por si suficiente, honrável, princípio e causa de todos os bens; logo,
Deus é a felicidade. Além disso, argumenta com mais força: aquilo
pelo qual são felizes todos os deuses é a suprema felicidade do
homem e de todos; mas Deus é aquilo pelo que todos se tornam
felizes, porque todos se tornam felizes compreendendo a Deus;
mas a intelecção com que Deus é inteligido é o mesmo Deus.
Portanto, por Deus todas as coisas se tornam felizes. E Aristóteles
parece colocar esta razão literalmente no décimo livro da Ética,
capítulo 10 [EN X 8, 1178 b, p. 204s]. Portanto, Deus formalmente é felicidade. Além disso, por aquilo que Deus é feliz, são
felizes os outros intelectos e tudo, como declara Aristóteles,
Metafísica 12 especialmente e Averróis, com. 38. Mas Deus não se
torna feliz a não ser por Deus, como diz o sétimo livro da Política:
Deus “é feliz e beato; não por causa de algo extrínseco, mas por
causa de si mesmo”. Portanto, pelo mesmo Deus todas as coisas se
tornam felizes; mas nada se torna feliz a não ser pela felicidade;
Deus é, portanto, a felicidade. Ainda, aquilo em que se encontra a
razão de todo bem e de todo o ente é formalmente a felicidade; a
felicidade pois, por ter a razão de todo o ente, sacia o intelecto.
Será, portanto, uma proposição perspicaz. Mas em nada a não ser
em Deus se encontra a razão de todo o bem e de todo o ente3.
3. NIFO, A. De intellectu, II, tr. 2. c. 2. “Ex his Subgerius, vir gravis ac maxime
peripateticus, et in secta Averroyca familiaris, in libro de felicitate dedit felicitatem esse
Deum, quoniam assumpta diffinitione illa pro maiori [Ergo felicitas est finis ultimus,
optimus, per se eligibilis, ad nullum alium ordinabilis, cuius gratia omnia eliguntur,
bonus et perfectus, pulcherrimus, delectabilissimus, per se sufficiens, honorabilis,
principium omnium bonorum denique existens: et hoc modo in libro Ethicorum
Aristoteles eam declarat], per te addetur et hec minor: sed Deus est ultimus finis,
optimus, propter se eligibilis, ad nullum alium ordinabilis, cuius gratia omnia eliguntur,
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Ainda no De intellectu, escreve mais adiante Nifo – depois de
dizer que todos os peripatéticos como Alexandre, Temístio, Simplício,
Averróis, Avicena, Al Gazel, Al Farabi, Avempace e todos os antigos,
afirmaram que a felicidade é formalmente o intelecto agente e que,
alguns destes, afirmaram que a felicidade da alma racional está nas
ínfimas inteligências separadas:
Dizendo, porém, que o intelecto agente é Deus, afirmaram que
a felicidade formalmente é Deus e que Deus mesmo é a felicidade, silogisando com esta condição: o intelecto agente é Deus; a
felicidade é o intelecto agente; portanto, a felicidade é Deus; e
vice-versa. Destas coisas se segue que numericamente com uma
felicidade única, Deus e todos os intelectos separados são felizes; porque em Deus todos os intelectos se tornam felizes: Deus
é numericamente a única felicidade. Portanto, todos os intelectos se tornam felizes em número com uma única felicidade;
Deus, portanto, por essência beatifica a Deus; a inteligência
próxima, pela essência de Deus como forma, se torna feliz. E o
intelecto de Júpiter em Deus se torna feliz, de novo, o intelecto
de Marte em Deus se torna feliz, visto que Deus torna feliz a
Deus; da mesma forma o intelecto de Vênus do mesmo modo
em Deus se torna feliz e, conseqüentemente, todos os demais
intelectos; de modo que o intelecto do homem se torna feliz
com a essência de Deus, visto que a essência de Deus é Deus.
Portanto, com uma única felicidade numericamente Deus é feliz, nela todos os outros; é, pois, a própria felicidade para si e
para os outros.
bonus et perfectus, pulcherrimus, delectabilissimus, per se sufficiens, honorabilis,
principium et causa omnium bonorum; ergo Deus felicitas. Amplius arguit fortius: id
quo felicitantur dij omnes est suprema hominis et omnium felicitas; sed Deus est quo
omnes felicitantur, quoniam omnes intellectus felicitantur intelligendo Deum; sed
intellectio qua Deus intelligitur est ipse Deus. Ergo Deo omnia felicitantur. Et hanc
rationem ad verbum videtur ponere Aristoteles decimo Ethicorum, capit. 10. Ergo
Deus formaliter est felicitas. Rursum, quo felicitatur Deus felicitantur alij intellectus et
omnia, ut declarat Aristoteles, 12. Metaphysicorum maxime et Averroes, comm. 38. Sed
Deus non felicitatur nisi Deo, septimo Politice dicens: Deus “felix quidem est et beatus;
propter nullum autem extrinsecorum, sed propter seipsum”. Ipso ergo Deo omnia
felicitantur; sed nihil felicitatur nisi felicitate; Deus ergo felicitas. Adhuc, id in quo
reperitur ratio totius boni et totius entis est formaliter felicitas; felicitas enim, quia totius
entis rationem habet, satiat intellectum. Erit ergo propositio perspicua. Sed in nullo
nisi in Deo reperiuntur ratio totius boni et totius entis” (Cf. NARDI, B. op. cit. p. 24s).
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Disto fica mais claro aceitar que qualquer inteligência se torna
feliz pela união do intelecto agente com o intelecto possível,
com exceção da primeira, que é feliz e beata por si mesma, no
sétimo livro da Política, capítulo primeiro, e no décimo livro da
Ética, capítulo décimo; todos os demais se tornam felizes pela união
com Deus, que é o intelecto agente, com suas essências, que, em
comparação com Deus, são intelectos receptivos e perfectíveis da
potência por ele segundo o ser intencional. Difere, porém, a união
do intelecto possível da Lua e de outros com a inteligência agente,
isto é divina, da união do intelecto agente com o intelecto possível
nosso; porque ela é simplesmente eterna segundo si mesma absolutamente e simplesmente e em relação; já a união do intelecto
agente com a alma racional é eterna de um modo e, segundo
outro modo, nova, como se irá mostrar.
Disto resulta, talvez por acaso, a verificação das palavras de
Aristóteles em todo o livro da Ética e alhures, onde a respeito da felicidade quis que a mesma fosse um ato ótimo, um ato nobilíssimo,
um ato perfeitíssimo, digníssimo, excelentíssimo, honorabilíssimo,
amantíssimo, finalíssimo, libérrimo, delectabilíssimo, etc., pois isto
tudo a respeito de Deus, segundo estes, ele crê que deve ser verificado;
é, pois, Deus ato ótimo, porque Deus é bom em si mesmo, nobilíssimo,
perfeitíssimo etc., como é fácil induzir ao inteligente. Estas são as coisas que colhemos do livrinho de Síger, homem muito ponderado, ou
algumas coisas, e nós com nosso trabalho desta forma expressamos4.
4. NIFO, De intellectu, II, tr. 2, c.17. “Dicentes autem intellectum agentem esse Deum,
dixerunt felicitatem formaliter esse Deum, ac Deum ipsum esse felicitatem hoc pacto
syllogizantes: intellectus agens est Deus; felicitas est intellectus agens; ergo felicitas est
Deus; et e contra. Ex his sequitur, quod una numero felicitate Deus et omnes intellectus
separati sunt felices, quoniam Deo omnes intellectus felicitantur: Deus est una numero
felicitas; ergo omnes intellectus felicitantur una numero felicitate; Deus ergo Deo per
essentiam beatificatur; proxima intelligentia essentia Dei ut forma felicitatur. Iterum
intellectus Iovis Deo felicitatur, iterum intellectus Martis Deo felicitatur, quemadmodum
Deus Deo felicitatur; iterum intellectus Veneris Deo eodem modo felicitatur, et
consequenter omnes residui intellectus; adeo quod intellectus hominis essentia Dei
felicitatur, quemadmodum Deus essentia Dei. Ergo una numero felicitate Deus est
felix, qua omnes alij; est enim ipse felicitas sibi et alijs.
Ex his amplius liquet accipere quod quelibet intelligentia felicitatur per copulationem
intellectus agentis cum intellectu potentie, excepta prima, que felix est et beata per
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O IDEAL DE FELICIDADE EM SÍGER DE BRABANTE...
Numa outra obra, Nifo novamente faz referência às ideias sigerianas
do suposto livro, como segue:
A respeito do segundo, isto é, que a alma racional seja capaz de
tal beatitude e que possa conhecer a Deus intuitivamente, com
o conhecimento que é Deus, não é pequena a ambigüidade: que
ela seja capaz de tal beatitude, os teólogos afirmam abertamente; mas o que é difícil é se com a razão natural se pode provar
que a mesma é capaz de tal beatitude. Síger, naquele livro que
escreve De felicitate, afirmou que isto é demonstrável pela razão
natural, porque pela razão natural aparece claro que a alma racional procura o sumo bem e a ciência máxima; e o sumo bem e
a máxima ciência é conhecer com o conhecimento que é Deus;
por isso, pela razão natural, é claro que a alma racional é capaz
de tal beatitude5.
seipsam ipsa, septimo Politice, capite primo, et decimo Ethicorum, capitulo decimo;
omnes autem relique felicitantur per copulationem Dei, qui est agens intellectus, cum
earum essentijs, que, comparatione Dei, sunt intellectus potentie receptivi ac perfectibiles
per illum secundum esse intentionale. Differt autem copulatio intellectus potentie
Lune et aliorum cum intellectu agente, scilicet divino, a copulatione intellectus agentis
cum intellectu potentie nostro; quoniam illa est simpliciter eterna secundum se absolute
et simpliciter et in respectu; copulatio intellectus agentis cum rationali anima est eterna
uno modo, et secundum alium modum nova, ut declarabitur.
Ex his rursum sequitur forte verificatio verborum Aristotelis in toto libro Ethicorum et
alibi, ubi de felicitate voluit ipsam esse actum optimum, actum nobilissimum, actum
perfectissimum, dignissimum, excellentissimum, honorabilissimum, amantissimum,
finalissimum, liberrimum, delectabilissimum; hec enim omnia de Deo, secundum hos,
verificanda esse credit; est enim Deus actus optimus, quia Deus bonus est seipso,
nobilissimus, perfectissimus, et reliqua, ut intelligenti facile est inducere. Hec sunt que
ex libello Subgerij, viri gravissimi, excipiuntur, vel quedam eorum, et nos labore nostro
hoc modo declaravimus” (Cf. NARDI, B. Op. cit. p. 25s).
5. NIFO, A. Dilucidarium metaphysicarum quaestionum, Venetiis, 1559, II, disp. 3, cap. 4,
p. 81, col. 2. “De secundo, videlicet utrum rationalis anima sit capax talis beatitudinis et
utrum Deum cognoscere possit intuitive, cognitione videlicet quae est Deus, non parva est
ambiguitas: ipsam enim esse capacem talis beatitudinis thiologi aperte tradunt; sed id
quod difficultatem facit, est si ratione naturali possit probari ipsam esse capacem talis
beatitudinis. Sugerius in eo libro quem de felicitate scripsit, tenuit hoc esse ratione naturali
demonstrabile, quia naturali ratione patet rationalem animam appetere summum bonum
et maximam scientiam; at summum bonum et maxima scientia est Deum cognoscere
cognitione quae est Deus; igitur ratione naturali patet rationalem animam esse capacem
talis beatitudinis” (Cf. NARDI, B. Op. cit. p. 26).
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IDALGO JOSÉ SANGALLI
Nifo faz referência também em outra obra, quando discute a questão
“Se Deus ou o intelecto agente é formalmente a beatitude”. Diz,
Na sua paz, parece-me que Deus seja formalmente a beatitude,
e nada em nós, exceto Deus, nos torna felizes: nem a ação do
inteligente, nem a espécie inteligível, nem a luz gerada. Por
isso, todas as vezes que Deus é para nós intelecção como a si,
então é beatitude, Metafísica, 12, com. 38. De nossa parte, pois,
nada é beatitude além de Deus; porque Deus é para si e para os
demais seres felizes, intelecção e ação: pois em Deus somos felizes, em Deus agimos e em Deus compreendemos, segundo
Averróis; e Síger, homem ilustre na seita Peripatética, atribui
esta posição a Aristóteles e aos teólogos, como diremos no livro
De Intellectu. E isto é provado, porque para que é posto aquele
ato de compreender? Ou como meio ou como representando.
Não como meio, porque através dessa luz é um meio inadequado; aquele ato do compreender, portanto, também não como
representante, porque Deus é irrepresentável, como diz. Por isso
deve-se ter presente, que nem de nossa parte, nem da parte de
Deus é necessário algo, além de Deus, para ser feliz. Para os
teólogos pois, é suficiente Deus que quer; ele, pois, querendo a
intelecção é aquela pessoa que ele quer; porém, segundo Averróis,
para aquele que tem um perfeito intelecto especulativo; porque
segundo Averróis, não há disposição de estar unido, mas de união;
isto é, devir e não ser do feito. Pois, segundo a forma, a ação da
matéria é ser no feito, e não por algum meio; assim Deus é ação,
intelecção e beatitude dos bem aventurados de fato, e sem ninguém mediando. Síger aduz esta razão, porque nós somos felizes como as outras demais inteligências, como diz Aristóteles,
Metafísica, 12. E isto nos promete nossa religião. Mas as demais
inteligências se comprazem pela essência do superior e de Deus,
e por nada mais mediando. Por isso nós quando nos comprazemos
é pela essência de Deus, como ele, e mediante nada mais6.
6. NIFO, A. De anima beatitudine, II, comm. 21. “Pace sua, mihi videtur quod Deus
sit formaliter beatitudo, et nihil in nobis, preter Deum, beat nos: nec actus intelligentis,
nec species intelligibilis, nec lumen genitum. Quoties igitur Deus est nobis intellectio
sicut sibi, tunc est beatitudo, 12. Metaph., comm. 38. Ex parte enim nostra, nihil est
aliud beatitudo preter Deum; quia Deus est sibi et ceteris beatis intellectio et actio: Deo
enim beamur, Deo agimus et Deo intelligimus, apud Averroem; et hanc positionem
ascribit Aristoteli et theologis Suggerius, vir in Peripatetica secta clarissimus, ut dicemus
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O IDEAL DE FELICIDADE EM SÍGER DE BRABANTE...
A partir dos textos citados até aqui, podemos tirar algumas conclusões
sobre o que Síger pensa da felicidade. Começamos resumindo os pontos
centrais: Deus é a felicidade, ela está em Deus e é preciso ao homem, via
intelecto, conhecer Deus para ser feliz; o intelecto agente é Deus que, embora separado, de certa forma, faz parte da alma humana, na medida em
que é condição do ato de entendimento humano e, no final deste processo
de desenvolvimento intelectual do homem, ele se une ao intelecto possível como forma; o intelecto humano pode chegar a conhecer as substâncias separadas e a primeira inteligência, que é o próprio Deus, pela união
(copulatio) intencional com a sua essência, isto é, alcançar a suprema perfeição e a felicidade desejada pelo homem, caso contrário, se o intelecto possível humano não pudesse conhecer tais realidades superiores, estas seriam
inúteis; no ato intelectual natural pelo qual o intelecto possível do homem
compreende pela sua essência o intelecto agente (Deus) está formalmente
a felicidade humana nesta vida; não só o intelecto humano alcança a felicidade no ato intelectual pelo qual compreende a essência de Deus sem
nenhum intermediário mas, também, as outras inteligências separadas atingem a sua felicidade pelo mesmo processo e, para todas estas inteligências,
o conhecimento pelo qual Deus é compreendido é o próprio Deus.
Em primeiro lugar, nada de novo na formula: Felicidade = Deus.
Que Deus seja a felicidade é uma conclusão de sabor neoplatônicoagostiniano, apoiada nas Escrituras e na concepção neoplatônica de
in libro De intellectu. Et hoc probatur, quia ad quid ponitur actus ille intelligendi? vel
ut medium, vel ut representans. Non ut medium, quia per ipsum lumen est inadequatum
medium; igitur et magis ille actus intelligendi non ut representans, quia Deus est
irrepresentabilis, ut dicit. Tenendum igitur, quod nec ex parte nostra, nec ex parte Dei
est necessarium aliquid, preter Deum, ad beatum esse. Apud theologos quidem, sat est
Deus volens; ipse enim volens illi est intellectio cui vult; apud Averroem vero, illi cui
perfectus est intellectus speculativus; quia apud Averroem non est dispositio copulati
esse, sed copulationis; hoc est, fieri, non facti esse. Nam sicut forma est actio materie in
facto esse, et per nullum medium; ita Deus est actio, intellectio et beatitudo beatorum
in facto, et nullo mediante. Adducit Suggerius hanc rationem, quia nos beamur ut
cetere intelligentie, ut dicit Aristoteles, 12. Metaphysice. Et hoc nobis promittit religio
nostra. Sed cetere intelligentie beantur per essentiam superioris et Dei, et per nihil aliud
medians. Igitur nos quandoque beabimur per essentiam Dei, ut ille, et per nihil medians”.
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IDALGO JOSÉ SANGALLI
retorno ao Uno. Síger parece estar (menos apoiado nas Escrituras do
que na concepção neoplatônica da reditio completa) visando o conhecimento mais elevado das substâncias separadas e de Deus. Não é novidade que nos tornamos felizes compreendendo Deus, a partir da
consciência de nossa finitude. Porém, esta compreensão não é pelo
amor agostiniano, pela fé, com ajuda da graça divina, mas pelo caminho da intelecção nesta vida, pelo esforço no uso do intelecto com as
suas potencialidades naturais. Deus formalmente é a beatitude por
aquilo que ele é em si mesmo e por si mesmo, pois nada lhe vem de
fora, mas arrasta para si tudo. Ele é a razão de todo o bem e de todo o
ser e, por ele, o intelecto pode ser feliz e isto é suficiente, não precisando de mais nada. A tese 36 (9), condenada em 1277, dizia que, “nesta
vida mortal podemos conhecer a Deus por sua essência” (Quod Deum
in hac vita mortali possumus intelligere per essentiam)7.
É na união (copulatio) da mente humana com as inteligências celestes e, principalmente, com Deus, que o intelecto humano é informado de sua essência de modo intencional. Esta união é como aquela
da matéria com a forma que atualiza as potencialidades constituindo
algo, uma realidade determinada. Este processo é ontologicamente
constitutivo do ser humano finito, com a possibilidade de ser atualizado em sua condição terrena, independentemente de uma existência
transcendente de total união com Deus. Logo abaixo, retornaremos a
esta complexa questão da copulatio e em que medida a felicidade é
realmente possível ao homem.
Muitos foram os comentários à Ética a Nicômaco redigidos pelos
mestres de artes da Universidade de Paris, porém Síger não tem uma
obra específica sobre isto. Entre as suas principais obras conhecidas,
encontram-se algumas passagens onde ele faz referência direta à Ética a
Nicômaco, principalmente o livro X, 7 em diante, em que Aristóteles
7. HISSETTE, R. Enquête sur les 219 articles condamnés à Paris le 7 mars 1277, 1977,
p. 30.
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O IDEAL DE FELICIDADE EM SÍGER DE BRABANTE...
fala claramente da eudaimonia como atividade do intelecto, no sentido de contemplatio, possível de ser atualizada na vida filosófica.
Em uma de suas primeiras obras, Quaestiones in Tertium de Anima (1265), apaixonado pela filosofia, Síger trata, em forma de questões, vários problemas (a relação entre o intelecto e as outras partes da
alma, a essência do intelecto, a relação do intelecto com o corpo, a
distinção entre o intelecto possível e o intelecto agente) que aparecem
no De Anima, de Aristóteles. Nesta obra juvenil, que caracteriza o
primeiro período de seu pensamento marcadamente “averroísta”, encontramos uma única referência à Ética a Nicômaco, quando ele fala na
questão 11, “Se a alma separada pode sofrer do fogo” (Utrum anima
separata pati possit ab igne) e reconhece ser uma “quaestio non multum
philosophica”: “Diz Aristóteles, na Ética a Nicômaco [X, 10, 1177 a,
12-18], que o prazer é a partir da contemplação. Ora, quando a alma
compreende (videt) que está no fogo, ela compreende (videt) isto não
por visão imaginativa, mas por visão intelectiva”8.
Já no De Anima Intellectiva (1273-1274), obra do período de
transição de sua posição em relação àquilo que ficou conhecido como
teoria do “monopsiquismo”, e posteriormente substituída pela teoria
moderna da subjetividade, várias vezes Síger menciona a obra
aristotélica. Quando fala no capítulo III, “Como a alma intelectiva
seja forma perfeita do corpo” (Qualiter anima intellectiva sit perfectio
corporis et anima), diz:
Deve-se dizer, em terceiro lugar, que sem dúvida a operação
própria do homem é o inteligir e nisto se torna feliz, como é
dito no décimo livro da Ética a Nicômaco [X, 7, 1177 a 13-18;
b 20s]. Pois o intelecto do qual procede o inteligir as coisas
supremas é uma virtude que está no homem e é própria ao homem. Mas para que inteligir seja a operação própria ao homem,
não é necessário que a substância do composto do próprio ho-
8. SIGER DE BRABANT. Quaestiones in tertium de anima, IV, q. 11, 20-21, p. 32.
“Dicit Aristoteles in Ethicis quod dellectatio est a contemplatione. Sed cum anima videt
se esse in igne, ipsa non videt hoc visione immaginativa, sed visione intellectiva.”
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mem da qual procede o inteligir se una à outra parte do composto como a figura à cera, mas é suficiente do modo predito9.
No capítulo VI, quando fala sobre “Como a alma intelectiva seja
separada do corpo e como se encontra separada” (Qualiter anima intellectiva
a corpore sit separabili set quem statum habeat separata), diz:
Mas nem a providência divina proíbe que no universo sejam
praticados males, como deverá ser visto em outro lugar; e além
disso, a boa obra é o prêmio para o que age bem, e nisto se torna
feliz, pois as operações segundo a virtude são de felicidade divina, como se diz no livro I da Ética [EN I 7, 1098 a 18-19];
além disso, as operações viciosas e más segundo a virtude servem como pena aos malfeitores, já que conforme tais operações
o homem vive miseravelmente, como é ensinado no livro IX da
Ética [EN IX 4, 1166 b 3s]10.
Na obra Quaestiones Super Librum de Causis (1275-1276), que
pertence ao terceiro período chamado “moderado”, pelos estudiosos
convencidos da autenticidade do escrito11, entre as diversas referências
9. Idem. De anima intellectiva, III, p. 87, 26-32. “Ad tertium dicendum quod sine
dubio propria operatio hominis est intelligere, et in hoc felicitatur, ut dicitur decimo
Moralium. Nam intellectus, a quo est intelligere suprema, est virtus in homine et
propria homini. Sed ad hoc quod intelligere sit homini propria operatio, non oportet
quod ipsius hominis compositi substantia a qua est intelligere uniatur alteri parti
compositi ut figura cerae, sed sufficit quod modo praedicto.”
10. Idem, ibid., VI, p. 99, 88-94. “Sed nec providentia divina prohibet ne in universo
fiant mala, sicut alibi videri debet; et iterum ipsi bene agenti bonum opus praemium
est, et in hoc felicitatur, cum operationes secundum virtutem divinae sint felicitatis, ut
dicitur primo Ethicorum; ipsis etiam malefactoribus operationes vitiosae et malae
secundum virtutem poenae sunt, cum secundum tales operationes homo misere vivat,
ut docetur nono Ethicorum”.
11. DRONKE, P. Dante e le tradizioni medievali, p. 159, sustenta a idéia de que a
Quaestion es super librum de causis seja uma obra de compilação e, neste caso, permitiria
rever e levantar outras hipóteses sobre a suposta evolução do pensamento de Síger (da
relação entre intelecto e corpo no interior de sua concepção da existência de um intelecto único para todos). Afirma em relação à obra: “Esse effettivamente contengono
alcune discussioni che, alla luce degli scritti riconosciuti di Sigieri, potrebbero essere
genuinamente sue, mentre le questioni fondamentali riguardo all’intelletto, 26 e 27,
sembrano essere opera di qualcuno che non era assolutamente in grado di discutere a
livello filosofico i principali problemi epistemologici sollevati da Sigieri”. Revendo esta
e outras posições, diz Petagine: “Dunque, possiamo concludere che non ci sorprende
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O IDEAL DE FELICIDADE EM SÍGER DE BRABANTE...
feitas à ética aristotélica, destacamos a questão 26 “Se a alma humana
é impressa no corpo, assim como a forma e a perfeição” (Utrum anima humana impressa sit corpori sicut forma et perfectio), onde afirma:
Porém, a alma intelectiva é o princípio da operação própria do
homem, posto que o inteligir é esta operação, como diz o décimo livro da Ética a Nicômaco [EN X, 7, 1178 a 5-7]; então, a
partir dela o homem é determinado à espécie. Mas a determinação de alguém a uma espécie é pela forma. Então, a forma do
homem é a alma intelectiva12.
No começo do livro II, das Quaestiones in Metaphisicam (de alguns
anos antes de 1273) há várias questões que tratam de modo indireto acerca
do argumento da felicidade; não há porém, referência à Ética a Nicômaco.
Num outro lugar da obra que lembra o começo da Ética a Nicômaco,
Síger trata na questão 7, “Se o homem mais estudioso deve estudar de
preferência para o seu próprio bem do que para o bem da comunidade”
(Utrum homo studiosus magis debeat studere ad bonum proprium quam ad
commune) e conclui que “ninguém deve estudar de preferência para o bem
da comunidade que para o próprio bem, seja de qual bem falemos, se
estudando para o bem da comunidade não adquirir mais bem para si que
se estudasse para o próprio bem”13.
che Dronke sospetti, in virtù della cosiddetta ‘critica interna’, che le Quaestiones super
librum de causis siano un’opera compilatoria. Tuttavia, se si accetta l’autenticità di tali
Quaestiones, non ci pare esegeticamente adeguato fermarsi alla somiglianza verbale delle
tesi qui contenute con quelle dell’Aquinate. Se si pone attenzione, come noi abbiamo
proposto, al fatto che le tesi più ‘tomiste’ sono inserite nel corso della critica a Tommaso,
potremmo avanzare l’ipotesi che, forse, in questo caso, Sigieri stia mettendo in atto le
sue doti di dialettico, utilizzando le tesi dell’avversario contro di esso, al fine di continuare
ad applicare all’intelletto quel concetto allargato di forma che già aveva discusso nel De
anima intellectiva” (PETAGINE, Antonio. Op. cit. p. 95).
12. SIGER DE BRABANT. Quaestiones super librum de causis. (Ed. critique du A.
Marlasca) Q. 26, p. 104, 51-55. “Anima autem intellectiva est principium propriae
operationis hominis, cum intelligere sit illa operatio, ut dicitur decimo Ethicorum; ergo
ex illa homo ad speciem determinatur. Sed determinatio alicuius ad speciem est a
forma. Ergo hominis forma est anima intellectiva.”
13. Idem, Quaestiones in metaphisicam (Reportatio de Viena, VII, 7, 48-51), p. 399.
“...nullus debet studere magis ad bonum communitatis quam ad bonum proprium de
quocumque bono loquamur, si studendo ad bonum communitatis non acquirat sibi
maius bonum quam si studuisset ad bonum proprium.”
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E nas Quaestiones Morales (1274) interessam as passagens da primeira questão, quando fala “Se a humildade é uma virtude” (Utrum
humilitas sit virtus) e a confronta com a virtude da magnanimidade
aristotélica. Contudo, a mais importante passagem parece ser a quarta
questão “Quis status magis competat philosophis” em que discute se o
estado celibatário ou o estado conjugal é o melhor para o filósofo (até
parece uma paráfrase da carta de Heloisa a Abelardo), diz: “O estado
conjugal tem numerosas ocupações mundanas, como para com os filhos e a esposa, os quais não existem no estado virginal. E, por este
motivo, é simplesmente melhor aos filósofos o estado virginal”14. Mas
isto é um assunto para outro momento.
Tanto nas citações de Nifo, acima reproduzidas, quanto nesses
passos das obras sigerianas sobre a felicidade aparece, como situação
para alcançar tal condição de felicidade, a ligação, a conjugação, a união
(copulatio) do intelecto possível com o intelecto agente. Então, uma
questão deve ser mais bem explicitada: Se a copulatio dos intelectos é
condição de possibilidade para a felicidade, pois nisto podemos conhecer e compreender Deus, como e de que modo é possível ao homem conhecer, ainda nesta vida, tais realidades divinas?
Mais uma vez Nifo resume o que Síger pensou sobre esta questão.
Afirma:
É necessário somente deter-se, de que modo o intelecto inferior,
por exemplo, o intelecto da Lua, compreende os superiores... ao
que alguns sábios disseram, que Deus é comparado pelas inteligências como luz a luz; e como o lume multiplica a espécie
num meio capaz de recebê-la, assim Deus multiplica a luz, que
é um certo acidente espiritual, existente nas mentes das inteligências, pelo qual são elevadas aquelas inteligências a compreender o primeiro... outros filósofos quiseram que a inteligência
inferior compreenda a primeira como causa, e esta seria a razão
de compreender-se aquela como causada. E assim disseram que
14. Idem, Quaestiones morales, q. IV, p.102, 20-22. “Status enim coniugalis multas
habet mundanas occupationes, ut circa filios et uxorem, quas non habet existens in
statu virginali. Et ideo simpliciter melior est philosophis status virginalis.”
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O IDEAL DE FELICIDADE EM SÍGER DE BRABANTE...
a inteligência inferior compreende a superior pela essência da
inferior ... Mas Síger, homem ilustre, num certo tratado das
inteligências e da beatitude, com muitos argumentos criticou
este modo de Averróis. Primeiro, porque, então, a segunda inteligência seria beata e feliz em si mesma e, igualmente, ato puro,
visto que não é aperfeiçoada pela superior. Mais, então, a ciência não seria o sabido, porque o sabido seria a inteligência superior, quem sabe seria a essência inferior. Além disso, então, a
inteligência posterior não compreenderia perfeitamente q superior, porque a mesma é deficiente em relação à primeira; portanto, não representa suficientemente a primeira. Finalmente,
então, aí não haveria composição, porque Averróis aí não coloca
nenhuma outra composição, a não ser do intelecto e do inteligível, como aparece aqui. Muitas outras coisas diz, que não se
deve narrar aqui.
Finalmente, utilizando as palavras com que Averróis opina, que
o intelecto inferior compreende o superior pela essência do superior; como, pois, o nosso intelecto é aperfeiçoado pelos intelectos, assim também a inteligência inferior é aperfeiçoada pela
superior. E também que um só é o modo em relação aos intelectos materiais e às inteligências, a não ser que haja esta diferença:
que os intelectos materiais não são intelectos em si, porque estão nas matérias, mas se tornam intelecto, enquanto a mente
remove aquelas da matéria; porém, os intelectos abstratos, como
em suas essências haja a mesma qüididade que o indivíduo, serão intelectos inteligentes.
Que isto, porém, pense Averróis, esforça-se por demonstrar,
porque na Fisica 8 [comm. 40 ao pé da página], diz: “em coisas
abstratas o inteligido e o intelecto são a mesma coisa”. E, na
Metafisica 12 [comm. 44], diz: “a perfeição de cada movente
aperfeiçoa a cada um dos círculos pelo motor primeiro”; mas
não efetivamente [nisto pois remove o erro de Avicena], nem
materialmente, portanto, formalmente. E, assim, uma é a forma do outro, como diz; e com isso um é o conhecimento e o
desejado alheio. E ali expõe isto; todavia ali está a causa e o
causado, pois que o intelecto é a causa do inteligente; deste
modo o inteligido não é causa material nem efetiva do intelecto, mas formal ou final, o que é a mesma coisa. E, além disso,
disse no mesmo comentário, que um é a causa de muitos, pelo
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IDALGO JOSÉ SANGALLI
fato de que por muitos é compreendido; e no grande comentário diz que em cada inteligência que compreende alguma coisa,
há algo semelhante à matéria e algo semelhante à forma. Haverá, portanto, uma segunda semelhante à matéria, portanto, um
sujeito quase recipiente; e a primeira semelhante à forma, portanto, recebida. E porque a primeira é matéria de nenhuma
forma, por isso diz que é sua qüididade; e outras também se
diferenciam do mesmo modo na qüididade e na essência, como
é evidente. E então, se verifica aqui sua palavra, que as inteligências abstratas se aperfeiçoam por si mutuamente, a tal ponto
que uma seja a forma da outra, como afirma.
Junto a estes, portanto, é oportuno dizer, que o intelecto inferior é
como a matéria, e o superior como a forma, que em si é substância, todavia, é quase acidentalmente ciência de outro, como diz Averróis, na
Metafisica 12 [comm. 17]. Destas coisas, conclui que a ínfima das inteligências é como a matéria de todos os seres superiores de uma determinada
ordem, como escreveu no livro De Intellectu; e que do intelecto superior
se faz mais verdadeiramente uno do que da matéria e forma, porque aquela união é mais sólida e mais essencial, como diz15.
15. NIFO, A. De anima. III, coll. ad t. c. 14, fol. 171, col. 3. “Oportet tantum
immorari, quomodo intellectus inferior, v.g. intellectus Lune, intelligit superiores …
Ad quod quidam sapientes dixerunt, Deum comparari intelligentijs ut lumen; et
quondam lumen multiplicat speciem in medio potenti recidere illam, ita Deus multiplicat
lumen, quod est quoddam accidens spirituale, existens in mentibus intelligentiarum,
per quod elevantur intellectus illi ad intelligere primum … Alij philosophi voluerunt,
quod intelligentia inferior intelligat primam ut causam, et ipsa sit ratio intelligenti illius
ut causatum. Et sic dixerunt quod intelligentia inferior intelligit superiorem per
essentiam inferioris … Sed Subiegius [sic; leggi: Subgerius], clarus vir, in quodam
tractatu intelligentiarum et beatitudinis, multis argumentis calumniavit hunc modum
Averroys. Primo, quoniam tunc secunda intelligentia esset beata et felix in seipsa, nullo
modo dependens a prima in intelligere, et sic esset eque perfecta sicut prima, et eque
actus purus, cum non perficiatur a superiori. Amplius, tunc scientia non esset scitum,
quondam scitum esset intelligentia superior, sciens essentia inferioris. Rursum, tunc
posterior intelligentia non intelligeret perfecte superiorem, quoniam ipsa deficit a prima; ergo non sufficienter representat primam. Postremo, tunc ibi non esset compositio,
quondam Averroes hic nullam aliam compositionem ponit, nisi ex intellectu et
intelligibili, ut patet hic. Multa alia dicit, que non sunt hic narranda.
Tandem colligens verba Averroys opinatur, quod intellectus inferior intelligat superiorem
per essentiam superioris; quemadmodum enim intellectus noster perficitur ab intellectis,
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O IDEAL DE FELICIDADE EM SÍGER DE BRABANTE...
E mais:
Há também outros, ilustres expoentes em filosofia, que quiseram ser mediadores entre latinos e Averroístas, como Síger, contemporâneo de Tomás, em certo tratado enviado a Tomás como
resposta àquele Tomás: ele pensa com os averroístas que o intelecto material é a forma perpétua de ambos os lados, e que não
é forma material, isto é, tirada da faculdade da matéria generável
e corruptível, e que é única numericamente em todos os homens e, por isso, diz que as posições dos latinos, contrários a
isto, não conhecem neste ponto profundamente a filosofia, e
isto ele procura provar com razões de Averróis e eu as anotei na
minha exposição no livro terceiro De Anima, num tópico somente, onde Averróis trata delas. E num meu comentário ao
ita et intelligentia inferior a superiori. Adeo quod unus est modus respectu intellectorum
materialium et intelligentiarum, nisi sit hec differentia: quod intellecta materialia non
sunt intellectus in se, quondam sunt in materiis, sed fiunt intellectus, prout mens
removet illa a materiis; intellecta autem abstracta, cum in essentiis eorum sit quidditas
idem quod individuum, erunt intellectus intelligentes.
Quod autem hec sit mens Averroys, conatur ostendere, quondam 8. Physicorum [,
comme. 40 in calce], dicit: ‘in abstractis intellectum et intellectus sunt idem’. Et 12.
Metaphysicorum [, comm. 44], ait: ‘perfectio uniuscuiusque moventium unumquemque
orbium perficitur per primum motorem’; sed non effective (in hoc enim removet
peccatum Avicenne), nec materialiter; ergo formaliter. Et sic una est alterius forma, ut
dicit; et hoc una est alterius cognitio et desideratum. Et hoc exponit ibi; tamen illic est
causa et causatum, secundum quod intellectum est causa intelligentis; modo intellectum
non est causa effectiva intellectus, nec materialis, sed formalis vel finalis, quod idem est.
Et ideo dixit eodem commento, quod unus est causa plurium, secundum quod a
pluribus intelligitur; et in magno commento dicit, quod in omni intelligentia intelligente aliud, est aliquid simile materie et aliquid simile forme. Erit ergo, secunda simile
materie, ideo subiectum quasi recipiens; et prima simile forme, ideo recepta. Et quia
prima est nullius forme materia, ideo dicit quod forma est quidditas eius; et alie quoquo
modo diversantur in quidditate et essentia, ut patet. Et tunc verificatur verbum suum
hic, quod intelligentie abstracte perficiuntur per se invicem, adeo quod una sit alterius
forma, ut dicit.
Apud hos ergo oportet dicere, inferiorem intellectum esse tamquam materiam,
superiorem tamquam formam, que in se substantia est, tamen est quasi accidentaliter
scientia alij, ut dicit Averroes, 12. Metaph. [, comm. 17]. Ex his concludit, infimam
intelligentiarum esse tamquam materiam omnium superiorum ordine quodam, ut
scripsit in libro De intellectu; et quod ex intellectu superiori fit verius unum quam ex
materia et forma, quoniam illa unio est firmior et essentialior, ut dicit” (Cf. NARDI, B.
Op. cit. p. 27s).
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IDALGO JOSÉ SANGALLI
Tratactus de Felicitate, de Averróis, expus aquelas quatro razões
que aí também trata Averróis. Mais, ele afirmou que o homem
fosse por si um composto de corpo e intelecto material predito,
diretamente classificado no predicamento da substância, sob o
gênero animal, intrinsecamente denominado pela intelecção e
constituído no último ser específico pelo mesmo ser racional
que é assumido pelo mesmo intelecto material predito. E acrescenta: “nem o intelecto pode informar a matéria, não informando a cogitativa, porque não permanece a matéria sem a forma
constituída no ser por ela; e o intelecto não pode informar sem
sua próxima disposição e última, e esta é cogitativa”. Por causa
disso diz que a cogitativa está ordenada para a intelectiva, embora a cogitativa não seja forma genérica. Nem pode a cogitativa
informar a matéria, sem o intelecto informante. Colocados, pois,
o informável ultimamente disposto e informativo, dá-se a informação: porém, a matéria informada cogitativa é o informável
próximo e por último disposto para receber o intelecto. E, assim, pode uma forma substancial ser disposta à outra, uma vez
que aquela forma preparante não seja a razão para a matéria
receptora. Eis como o ser homem, enquanto homem, existe, em
última análise por este intelecto; e como a diferença do homem,
enquanto homem, capta-se por este intelecto em última análise. E, finalmente, acrescenta que as inteligências são individualmente as mesmas com suas qüididades; por isso o intelecto
material, sendo a parte mais ínfima das inteligências, sua
qüididade como indivíduo será a mesma; pois na Metaphysica
VII, comm. 41, e no terceiro De Anima, IX e X, nas coisas
abstratas a qüididade não é diferente da matéria daquele a quem
pertence. Portanto, o intelecto material será individual e singular; e, por conseguinte, não repugna ao intelecto dar este ser,
embora seja uma qüididade universal. E, assim, o indivíduo
humano, como Sócrates, tem isto do intelecto; mas da matéria
dividida, informável informativa informante, mediante as dimensões, origina-se a possibilidade de multiplicação dos indivíduos sob a mesma espécie, e todas, por causa do ser universal
do intelecto, podem ser informadas por ele e dele receber este
ser uno. Quer, portanto, o mesmo intelecto, enquanto qüididade,
ser dividido pelas matérias informadas em dimensões e
cogitativos; enquanto é indivíduo, ser aquilo pelo qual o indiví-
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O IDEAL DE FELICIDADE EM SÍGER DE BRABANTE...
duo homem é isso. O intelecto, portanto, como tem ser real, é
a forma para o seu mundo; como tem o ser intencional, é a
matéria de todos os intelectos separadamente. Eis como Síger
está no meio entre latinos e averroístas: dos averroístas, com
efeito, recebe o intelecto indivisível, a imaterialidade e a unidade; dos latinos, por outro lado, ele recebe o intelecto como forma que constitui o homem e este homem, o homem em seu ser
específico, e este homem no seu ser isto [individual]; e, assim,
[que o intelecto seja isto] dá-se o ser no indivíduo e na espécie;
e, assim, o ser do qual recebe a última diferença específica e
ultimada. Confirma, porém, que esta última parte é própria do
pensamento de Averróis, colhida em muitos escritos que se encontram dispersos neste livro16.
16. NIFO, A. De intellectu, II, tr. 2, c. 39. “Sunt et alij viri in philosophia preclari, qui
voluerunt quasi mediare inter latinos et Averroycos, ut Subgerius contemporaneus
Thome, in quodam tractatu misso Thome in responsione ad illum Thome: qui opinatur
cum averroycis intellectum materialem esse formam perpetuam ex utroque latere, et
quod non est forma materialis, hoc est educta de facultate materie generabilis aut
corruptibilis, et quod sit una numero omnibus hominibus; et ideo dicit quod positiones
latinorum oppositum sentientes in hoc philosophiam penitus non sapiunt, et hec
conatur probare rationibus Averroys, et ego notavi eas in expositione mea libri tertij De
anima in singulo loco, ubi Averrois tangit illas. Et in commento meo tractatus de
felicitate Averroys declaravi illas quattuor rationes, quas ibidem tangit Averroys. Amplius,
voluit hominem esse per se unum compositum ex corpore et intellectu materiali predicto,
directe reponibile in predicamento substantie, sub animali, intrinsece denominatum
ab intellectione et constitutum in ultimo esse specifico ab ipso rationali, quod sumitur
ab illo intellectu materiali predicto. Et addit: ‘nec potest intellectus informare materiam,
non informante cogitativa, quia non stat materia sine forma constituta in esse per eam;
et non potest intellectus informare sine sua proxima dispositione et ultima, que est
cogitativa’. Propter quod, inquit cogitativam ordinari in intellectivam, quamvis cogitativa
non sit forma generica. Nec potest cogitativa informare materiam, non informante
intellectu. Positis enim informabili ultimate disposito et informativo, ponitur informatio:
est autem materia informata cogitativa informabile propinquum et ultimate dispositum
ad recipiendum intellectum. Et sic potest una forma substantialis esse dispositivo ad
aliam, dummodo illa forma preparans non sit materie ratio recipienti. Ecce quomodo
esse hominis, in eo quod homo, est ultimo per hunc intellectum; et quomodo differentia
hominis, in eo quod homo, sumitur ab hoc intellectu ultimate. Et postremo addit
intelligentias esse individua eadem cum earum quidditatibus; propter quod intellectus
materialis, cum sit infima intelligentiarum, erit ipsa, ut individuum, sua quidditas;
VIJ. enim Metaph., comm. 41, et tertio De anima, IX et X, in abstractis a materia non
differt quidditas ab eo cuius est. Intellectus ergo materialis erit individuus et singularis;
et per consequens non repugnat intellectum dare esse hoc, quamvis sit etiam quidditas
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Um pouco antes, na mesma obra, diz Nifo:
Para a segunda questão Síger, homem prudente, promotor da seita
averroísta, no tempo do Expositor [Tomás de Aquino], discípulo de
Alberto, explica em seu tratado De Intellectu: e imagina-se que o intelecto é eterno, e a natureza humana é eterna, e que o intelecto não é a
forma de Sócrates ou de Platão, a não ser pela união das intenções
imaginadas, segundo Averróis; mas é primeiro e por si forma e ato da
natureza humana, e por acidente ato e perfeição segundo a derradeira
perfeição de Sócrates e Platão e de outros; e, assim, o intelecto será a
primeira perfeição do homem e o ato segundo a primeira perfeição; e
porque as derradeiras perfeições estão numeradas, daí não se segue que
eu compreenda pelo teu e tu pelo meu inteligir17.
universalis. Et sic individuum humanum, ut Sortes, habet hoc ab intellectu; sed a
materia divisa, informabili informativa informante, mediantibus dimensionibus, oritur
possibilitas multiplicationis individuorum sub eadem specie; que omnia, propter esse
universale intellectus, informari possunt illo, et ab illo sumere suum esse hoc et unum.
Vult ergo ipse intellectum, inquantum quidditas, partiri per materias informatas
dimensionibus et cogitativis; inquantum est individuum, esse id per quod individuum
hominis est hoc. Intellectus ergo, ut habet esse reale, est forma suo orbi; ut habet esse
intentionale, est materia omnium intellectuum separatorum. Ecce quomodo mediat
inter latinos et averroycos: ab averroycis enim accipit intellectus impartibilitatem,
immaterialitatem et unitatem; a latinis autem, quod sit forma constituens hominem et
hunc hominem, hominem in esse specifico, et hunc hominem in esse hoc; et sic dare
esse in individuo et specie; et sic esse a quo sumitur ultima differentia specifica et
ultimata. Confirmat autem hanc ultimam partem esse mentis Averroys ex multis que
sparsim in hoc libro dicentur” (Cf. NARDI, B. Op. cit. p. 18).
17. NIFO, A. De intellectu, I, tr. 3, c. 26. “Ad secundam questionem Subgerius, vir
gravis, secte Averroystice fautor, etate Expositoris, discipulus Alberti, persolvit in suo de
intellectu tractatu: et imaginatur quod intellectus est eternus, et natura humana est
eterna, et quod intellectus non est forma Sortis aut Platonis, nisi per copulationem
intentionum imaginatarum, secundum Averroym; sed est primo et per se forma et
actus nature humane, et per accidens actus et perfectio secundum postremam
perfectionem Sortis et Platonis et aliorum; et sic intellectus erit prima perfectio hominis,
et actus secundum primam perfectionem hominis; aliorum vero, scilicet Sortis et Platonis,
actus secundum postremam et ultimam perfectionem; et quia postreme perfectiones
sunt numerate, ideo non sequitur quod ego intelligam per tuum et tu per meum
intelligere” (Cf. NARDI, B. Op. cit. p. 20).
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O IDEAL DE FELICIDADE EM SÍGER DE BRABANTE...
Outras passagens poderiam ser destacadas do texto de Nifo como
fez Nardi18, para mostrar os traços da posição sigeriana. Aliás, é possível identificar as principais teses defendidas por Síger nesses traços do
suposto tratado De Intellectu, escrito como resposta ao De Unitate
18. Eis mais alguns dos passos destacados por Nardi, em sua obra acima citada: “Tertia
questio: declaratum est in naturali philosophia, quod corporum, quorum prima perfectio
sit una numero in specie et substantia separata, non potest esse plus uno in specie: ergo,
cum hominis prima perfectio sit una numero, erit et unus numero homo tantum”
(NIFO, A. De intellectu, I, tr. 3, c. 25). “Ad tertiam eiusdem dicit Sugerius, quod maior
est vera respectu corporis, cuius primo et per se est prima perfectio; modo intellectus est
prima perfectio hominis, primo et per se; et ideo natura hominis est una numero natura
respectu corporum quorum est postrema perfectio, non oppositum. Vel dicas maiorem
esse veram, quando ad primam perfectionem sequitur corpus secundum esse, qualiter
est in orbibus, et non in omnibus; orbi enim, cum esse suum consistat in moveri, ideo
unus numero est sicut et motor: sed esse hominis non consistit in intelligere” (NIFO, A.
De intellectu, I, tr. 3, c. 26). “Multi in positione perypateticorum ac Averroys persistentes et ego diu credidimus intellectum potentie esse intellectum separatum, ultimum
abstractorum, ut Averroys, commento 19, tertii libri de anima... Intellectus autem
agens erit tunc secundum hoc Deus. Deus enim potest dupliciter intelligi: uno modo,
ut illuminans quoddam, illustrans omnia entia, et hoc pacto dicitur intellectus agens;
alio modo, ut efficiens omnia entia in esse, et sic dicitur primum principium ac primus
motor. Vollunt ergo hi quod, quo pacto ex nauta et navi, vel arte et instrumento fit
unum ens, unitate ad operationem unam efficiente, ita ex Deo et infimo intellectu, qui
dicitur potentia, fit unum tanta unitate, quanta sufficit ad operationem unam, scilicet
ad intelligere, quod dicitur respectu agentis abstrahere, respectu possibilis intelligere.
Rationalis ergo anima apud hos nihil aliud est, nisi colligatum ex Deo, ut illuminante,
et infimo abstractorum, ut illluminabili. Et hoc diu opinatus sum esse Averroys
positionem” (NIFO, A. De intellectu, I, tr. 4, c. 10). “Alij, ut Subgerius et multi sui
sequaces, deducunt consequentiam ex parte earum, et accipiunt primo, quod si
intellectus potentie non potest intelligere superiores intelligentias, ille non possunt
intelligere Deum, quoniam forma non apta suscipi in maximo receptivo alicuius generis,
illa non est receptibilis in minus receptivo illius generis. Sed intellectus potentie est
maxime receptivus in genere abstractorum. Ergo si primus intellectus non est natus
suscipi in intellectu potentie, nec in aliqua earum erit receptibilis. Modo habetur hoc,
quod, cum de facto intellectus potentie non intelliget primum intellectum, nulla
intelligentia intermedia intelliget eum. – Secundo accepit Subgerius, quod nulla
intelligentia media potest intelligere mediam nec aliquam infra primam, si non potest
intelligere primam. Arguitur ergo: nulla intelligentia que non potest intelligere
supremam, potest intelligere aliquam mediarum vel infimam, secundum Averroym;
sed ex primo accepto nulla intelligentiarum potest intelligere superiorem; ergo nec
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IDALGO JOSÉ SANGALLI
Intellectus contra Averroistas, de Tomás. Por exemplo: o intelecto possível, em si mesmo, é a ínfima das substâncias separadas e, também, o
único para toda a espécie humana; a alma intelectiva do homem é o
resultado da copulatio, isto é, o intelecto possível ou potencial, que é
eterno e separado, se une com a parte mais elevada da alma sensitiva do
indivíduo, que é a faculdade cogitativa; desta união com cada indivíduo singular, o intelecto, que em si mesmo é sempre uno, passa a ser
individual, pois está em cada indivíduo e, ao mesmo tempo, é múltiplo numericamente, na medida em que os indivíduos singulares são
múltiplos; a alma intelectiva pela união não é apenas forma acidental,
mas passa a ser forma substancial inerente ao homem e, como tal,
alcança a sua diferença específica; o intelecto possível é simplesmente
pura potência destituída de qualquer ato substancial, sendo que as suas
potencialidades somente são atualizadas mediante a ação do intelecto
agente, não de um golpe só, mas de modo gradual.
Isto pode ser melhor visto observando certos passos (aqui indicamos
apenas alguns) na própria obra conhecida de Síger19. Isto permite commediam; nec aliquam infra primam. Ex his arguit: intellectus potentie non potest
intelligere Deum, ergo nulla mediarum potest intelligere Deum; nulla mediarum potest
intelligere Deum, ergo nulla potest intelligere se; nulla potest intelligere se, ergo sunt
simpliciter ignorate, quoniam nulla potest intelligi ab aliquo intellectu, quia vel a
primo, vel ab infimo, vel a seipsis; non a primo quia nihil intelligit extra se; nec ab
infimo, quia non intelligit illas; nec a seipsis; ergo a nullo intellectu comprehendetur; et
sic natura egisset ociose. Hoc dicit Subgerius in tractatu suo de intellectu, tertio loco
inscripto, qui fuit missus Thome, pro responsione ad tractatum suum contra Averroym”
(NIFO, A. De intellectu, II, tr. 2, c. 2).
19. SIGER DE BRABANT. Quaestiones in tertium de anima, q. 9, 27, 52-54, diz:
“Ideo arguit Averroes quod, si intellectus multiplicaretur secundum multiplicationem
hominum individuorum, esset virtus in corpore”. Mais adiante continua tematizando
a relação do intelecto com o corpo: “Nota ergo quod intellectus et sensus copulantur
nobiscum in actu, sed diversimode. Sensus enim copulatur nobis per partem eius quae
est materia. Sed intellectus copulatur nobis per partem eius quae est forma” (q. 9, 28,
64-67). Numa outra passagem, diz: “Intellectus perficit corpus, non per suam
substantiam, sed per suam potentiam, quia, si per suam substantiam perficiret, non
esset separabilis” (q. 7, 23, 38-40). Na parte final da obra em que trata da distinção
entre o intelecto possível e o intelecto agente, diz: “Dico et credo quod intellectui
nostro non est innata aliqua cognitio intelligibilium, sed est in pura potentia ad omnia
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preender e avaliar estes e outros argumentos, pois lançam luz sobre a possibilidade humana de conhecer as realidades mais elevadas, através da
copulatio do intelecto agente com o intelecto possível. É claro que a questão da “evolução” do pensamento sigeriano é de difícil solução. Já foram
destacadas, acima, as três fases (“averroísta”, transição, moderada) ao menos em torno das teses sobre a relação corpo-intelecto que, sem dúvida,
refletem a postura metodológica geral adotada – provavelmente forçada
pelas críticas de Tomás – de rever os seus passos, de dialogar “consigo
mesmo” e com seus interlocutores, de encontrar a própria saída dos problemas, usando uma argumentação dialética sem aderir simplesmente aos
argumentos mais consistentes de seus adversários.
Quando Aristóteles no De Anima, III, 5, 430a, falava dos dois
intelectos, o potencial ou material e o agente ou produtivo, no intuito
de refutar a doutrina das Ideias de Platão, não foi claro o suficiente
para evitar dificuldades interpretativas. Averróis tentou solucionar o
problema. Síger de Brabante e seus seguidores assumiram a posição de
Averróis como a única interpretação válida do pensamento de
Aristóteles. Ou seja, o intelecto agente e o intelecto possível são um só
para todos os homens e sua união com os indivíduos singulares é determinada apenas na utilização das imagens sensíveis produzidas por
cada indivíduo. Deste modo, quando nós pensamos não somos nós
que pensamos com nosso intelecto particular, mas o intelecto único
que utiliza para tal finalidade as nossas impressões sensíveis. Por trás
desse problema, que provocou grandes disputas entre filósofos e teólogos, está em xeque muito mais do que o problema hermenêutico ou
de oposição à tradição cristã. Além da questão da natureza do homem
e da sua imagem, o que está em jogo é a finalidade do homem não
apenas enquanto indivíduo que deve procurar salvar-se, mas a finalidade do homem enquanto cives.
intelligibilia, nullius intus habens innatam cognitionem, sed ex phantasmatibus intelligit
quidquid intelligit” (q. 12, 40, 114-117). Ainda: “Et intellectus copulatio humanae
speciei essentialior est quam copulatio quae est huic individuo, propter hoc quod
humana species aeterna est (et) quia intellectus (qui) ei copulatur aeternus est”. E, por
fim: “Adhuc de intellectu agente et possibili intelligendum quod non sunt duae
substantiae, sed sunt duae virtutes eiusdem substantiae” (q. 15, 58, 42-43).
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A obra Quaestiones in Tertium de Anima reflete não só o pensamento antropológico de Síger mas, também, dos “averroístas” em geral. A concepção antropológica da tradição neoplatônico-agostiniana
foi da alma e do corpo como duas substâncias completas, quando
unidas, formam uma unidade: o homem. A posição de Tomás segue a
via de Aristóteles, fornecendo uma concepção antropológica oposta à
agostiniana. Tomás vê a unidade como união substancial entre alma e
corpo, onde a alma é uma forma substancial. A unidade corpo-alma
não se constitui pela união dual de substâncias em si mesmas completas. Diante destas duas leituras opostas, Síger apresenta a sua própria
concepção com um olho na proposta de Averróis e outro voltado em
Aristóteles. Mas não cabe aqui desenvolver esta temática20.
No entanto, um pequeno passo, no De Anima Intellectiva, quando trata desta complexa questão da união entre intelecto e corpo, mesmo após a sua posição mais moderada, aquela que estabelece uma união
operativa (intrinsecum operans) entre o intelecto e o homem, Síger
reconhece a dificuldade e, ao mesmo tempo, revela-nos o caráter metódico da dúvida:
Todas estas e outras dificuldades obrigam-me a dizer que há
muito tempo tenho algumas dúvidas sobre o que, se se segue a
via da razão natural, deve-se decidir neste problema e qual foi a
opinião de Aristóteles em relação a tal questão. Diante de semelhante dúvida, deve-se aderir firmemente à fé, a qual supera
toda razão humana21.
Como bom cristão, a fé é a última resposta. A fé pode eliminar a
dúvida, assim como a dúvida pode eliminar a fé, como temiam
Boaventura e o bispo de Paris Estevão Tempier.
20. Sobre isto vide GHISALBERTI, A. Le “Quaestiones de anima” attribuite a Matteo
da Gubbio. 1981, p. 11-20.
21. SIGER DE BRABANT, De anima intellectiva, VII, 108, 83-87. “Et ideo dico
propter difficultatem praemissorum et quorumdam aliorum, quod mihi dubium fuit
a longo tempore quid via rationis naturalis in praedicto problemate sit tenendum, et
quid senserit Philosophus de dicta quaestione: et in tali dubio fidei adhaerendum est,
quae omnem rationem humanam superat”.
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Se considerarmos o conjunto de seu pensamento, podemos concluir que Síger de Brabante não estava preocupado em fazer a apologia
da fé e nem em contrapô-la, mas, antes de tudo, recuperar a legitimidade da filosofia e o espaço do filosofar; como um dom de Deus, o
homem deve fazer o melhor uso de sua melhor parte e, assim procedendo, realizar-se e ser feliz enquanto criatura humana na sua existência terrena. Ideal também de alguns de seus colegas artistas, que juntos
vão fundamentar as suas posições não mais simplesmente na concepção ontológica de bem baseada na perfectio, mas na concepção de um
bem ético baseado na operatio. Isto pode facilmente ser visto, por exemplo, nos textos de Boécio de Dácia e de Giácomo de Pistóia.
Portanto, de modo diferente do contexto grego, para esses medievais, que seguem a trilha da doutrina do intelecto único de Averróis,
todos os seres humanos participam desse intelecto único universal e
comum a todos. Enquanto ideal filosófico, todos podem ser filósofos, embora a distinção, agora na prática, será entre os poucos filósofos
e as multidões de não-filósofos. É nesta perspectiva que devem ser
interpretadas a concepção ética da felicidade de Síger, de Boécio de
Dácia, entre outros e as ramificações posteriores desta posição, além
dos limites da Faculdade de Artes de Paris, com autores italianos como,
Giácomo de Pistóia, Guido Cavalcanti e Dante Alighieri.
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COINCIDÊNCIA DOS OPOSTOS EM NICOLAU DE CUSA...
COINCIDÊNCIA DOS OPOSTOS EM
NICOLAU DE CUSA: VIDA ATIVA E
CONTEMPLATIVA
Sonia Regina Lyra*
Resumo: Sendo Deus a necessidade absoluta, cuja via de acesso é aquela completamente inacessível (inaccessibilis), buscar-se-á, através do que se entende por
vida ativa e vida contemplativa, procurar essa verdade proposta por Nicolau de
Cusa. Para tal, é preciso admitir a coincidência dos opostos sobre toda a capacidade
racional e entrar numa escuridão acima de toda ascensão intelectual mais elevada,
chegando ao desconhecido. Assim, quanto mais obscura e impossível se reconhece ser essa impossibilidade, tanto mais essa necessidade resplandece e tanto
menos veladamente está presente e se aproxima.
Ação e contemplação
Quando se pensa em vida ativa e vida contemplativa, Marta e Maria
(Lc 10,38-42) surgem de imediato como símbolos da vida prática e
da vida teórica, tomando-se a contemplação em seu sentido de conhecimento intelectual, assim como para Platão e Aristóteles a contemplação (theoria) se contrapunha à práxis ou ação. No sentido místico
religioso, o termo indica o estado através do qual a mente se fixa em
uma realidade espiritual, nela imergindo até o total esquecimento de
qualquer outra realidade.
Para Plotino e o neoplatonismo, a contemplação é parte integrante do processo emanativo “com o qual pelo uno, através da contemplação, deriva-se a inteligência e também a alma”1. Da mesma forma,
Agostinho e Dionisio Areopagita vêem na contemplação o grau mais
* Doutoranda de filosofia medieval, pela Puc-SP e pesquisadora do Ichtys – Instituto
de psicologia e religião. [email protected]
1. Filosofia. Garzanti Editore, 1999. Itália, p. 210.
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SONIA REGINA LYRA
elevado da atividade espiritual humana. Outros autores como Bernardo
de Claraval, Guilherme de Saint Thierry, Ugo e Ricardo de São Vitor
e Tomás de Aquino também afirmam que a natureza da contemplação
é intelectual. Já em São Boaventura acentua-se a natureza da vontade,
sendo a contemplação descrita como um ato de amor. Para outros
místicos como Mestre Eckhart, Tauler e Ruysbroeck assim como de
Tereza D´Ávila e João da Cruz, a contemplação é entendida como
“oração mental não discursiva”2, constituindo o ápice da oração. Nas
tradições orientais encontram-se tendências místico-contemplativas na
cabala hebraica, no sufismo, no budismo etc., sendo consideradas o
“vértice do itinerário ascético”3 como uma anulação de todos os desejos e pensamentos.
Quanto à práxis, recebe especial atenção em Kant quando este a
aponta como “tudo aquilo que é possível por meio da liberdade”4,
surgindo como um conceito especulativo e não ainda como um veículo do conhecimento. Mais tarde aparece denominada pelo mesmo Kant
como técnico-prática, onde na especulação, a razão pura é por si mesma prática numa dimensão não sensível. São herdeiros dessa tradição
Fichte, com a Doutrina da ciência, e Schelling, com Lições sobre a essência da liberdade humana. Busca-se o conhecimento do a priori quando o espírito antecede o pensamento e, através da liberdade e da práxis,
o eu se entende a si próprio bem como o não-eu. Dentre os grandes
movimentos da filosofia, advém o pragmatismo em conseqüência da
crise do idealismo e também do positivismo.
Na filosofia de Nicolau de Cusa (1401-1464), a grande novidade
e a profunda originalidade está na caracterização do método simbólico, isto é, da dimensão interpretativa que aponta para a possibilidade
da coincidência dos opostos e sua transposição.
2. Idem, p. 210.
3. Idem, p. 210.
4. Idem, p. 890.
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COINCIDÊNCIA DOS OPOSTOS EM NICOLAU DE CUSA...
À dimensão interpretativa, afirma Nicolau de Cusa, ascende-se por
três etapas tomando-se inicialmente a finitude das figuras; em seguida
transpondo as figuras finitas “não já na sua finitude, mas projetadas na
dimensão da infinitude (nesta fase, o princípio da coincidência dos
opostos manifesta toda a sua força operatória)”5 e finalmente, exige-se
um “salto transsumptivo, de superação reassumptiva, em que do finito
figurado se passa ao infinito simples e absoluto”6. Assim, por exemplo, se vê primeiramente em Marta e Maria, duas mulheres que acolhem um homem/Deus em sua morada. Interpretando-as, vê-se que
podem significar modos de ser ou atitudes que apontam para uma
elevação do pensamento pela via do intelecto.
O Cusano propõe como figuras particularmente exploradas as
matemáticas, mas, especialmente no A visão de Deus (1998) se utiliza
de uma face humana pintada para, a partir de elementos finitos, ascender ao máximo simples desligado de qualquer figura.
Marta e Maria
Indo eles a caminho, entrou Jesus num povoado. E certa mulher, chamada Marta, hospedou-o na sua casa. Tinha ela uma
irmã, chamada Maria, e esta quedava-se assentada aos pés do
Senhor a ouvir-lhe os ensinamentos. Marta agitava-se de um
lado para outro, ocupada em muitos serviços. Então, se aproximou de Jesus e disse: Senhor, não te importas de que minha
irmã tenha deixado que eu fique a servir sozinha? Ordena-lhe,
pois, que venha ajudar-me. Respondeu-lhe o Senhor: Marta!
Marta! Andas inquieta e te preocupas com muitas coisas. Entretanto, pouco é necessário ou mesmo uma só coisa; Maria, pois,
escolheu a boa parte, e esta não lhe será tirada (Lc 10,38-42)7.
5. NICOLAU DE CUSA, A visão de Deus. Tradução de João Maria André. 2. ed.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998, p. 95.
6. Idem, p. 95.
7. http://www.bibliaonline.com.br/ra/lc/1.
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 1, p. 79-91, jan./jun. 2010
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SONIA REGINA LYRA
Mover-se e assentar-se; agitar-se e aquietar-se; o muito e o pouco;
são estados psíquicos e espirituais que têm gerado polêmicas e
conjecturas ao longo dos séculos. O pensamento de Nicolau de Cusa
implica essencialmente em primeiro expor as oposições para depois
conciliá-las pelo princípio da coincidentia opositorum. Pode-se, pela via
interpretativa, ao invés de pensar em Marta e Maria, pensar na linha e
no ponto, como por analogia.
Por exemplo: a unidade infinita entendida como ponto desdobrase em toda parte numa linha, que não é mais que um ponto, que não
é outra coisa que a própria unidade infinita, “porque ela é o ponto que
é o limite, a perfeição e a totalidade da linha e da quantidade, a qual ele
abrange. O primeiro desdobramento dele (do ponto) é a linha, na
qual não se acha senão o ponto”8. Dessa mesma forma pode-se entender o repouso como sendo a unidade que contém o movimento, “o
qual é repouso disposto em sucessão”9, sendo, pois, o movimento,
desdobramento do repouso. Também se pode entender o tempo como
contido no presente, sendo o passado e o futuro desdobramentos do
presente. Portanto, no tempo não se acha nada senão o presente ordenado. E esse presente é a unidade mesma, sendo, portanto, um só
presente a síntese de todos os tempos.
Esse processo de ascensão para o conhecimento que conduz a uma
visão incompreensível do infinito é caracterizado pela terceira etapa da
ascensão e denominado transumptio. Marta e Maria surgem como
imagens do visível, do signo à verdade, e no visível desvelam o invisível sem que este deixe de permanecer invisível, “em que o oculto se
revela na sua essência profunda e inesgotável de oculto”10.
É, pois, na experiência vivida da finitude que, continuamente, se
remete para a experiência intuída da infinitude. A partir das relações
8. NICOLAU DE CUSA. A douta ignorância. Trad. de Reinholdo Aloysio Ullmann,
EDIPUCRS, 2002, p. 117.
9. Idem, p. 118.
10. A visão de Deus, 97.
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COINCIDÊNCIA DOS OPOSTOS EM NICOLAU DE CUSA...
que progressivamente se estabelecem e são exploradas entre as figuras
finitas e as infinitas, percebe-se que entre o finito e o infinito surge
uma relação de participação. Esta aponta para a compreensão da dimensão ontológica presente na multiplicidade, na contingência e na
diferença, em face da unidade, da necessidade e identidade próprias do
infinito.
A coincidência dos opostos
Não há outra via para aceder a ti senão aquela que a todos os
homens, mesmo aos filósofos mais doutos, parece completamente inacessível (inaccessibilis), porque tu me mostraste que não
podes ser visto senão onde se nos impõe a impossibilidade11.
Para a mente humana, portanto, escreve o Cusano é necessário
entrar na escuridão e admitir a coincidência dos opostos, além de toda
capacidade da razão, e procurar lá onde se encontra a impossibilidade.
Sendo a coincidência dos opostos uma forma de conhecimento impossível, no sentido de que foge à própria apreensão, pode-se afirmar
com certeza que “efetivamente a razão do universo não é compreensível, posto que antecede todo o compreensível; portanto percebo que a
mesma é incompreensível, porque brilha compreensivelmente no que
é compreensível”12.
Essa impossibilidade lógica, que para o intelecto se transforma na
mais alta necessidade do pensamento, é precisamente a coincidência
dos contraditórios, que o Cusano expressa com a imagem do murus
paradisi sive coincidentiae.
É à porta da coincidência dos opostos guardada por um anjo
posto à entrada do Paraíso que te começo a ver, Senhor. Tu estás
aí, onde falar, ver, ouvir, saborear, tocar, raciocinar, saber e compreender são o mesmo e onde ver coincide com ser visto, ouvir
11. A visão de Deus, 166.
12. NICOLAU DE CUSA. Acerca de lo no outro, o de la definición que todo define. Trad.
Jorge M. MACHETTA, Buenos Aires: Editorial Biblos, 2008, p. 89.
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com ser ouvido, saborear com ser saboreado, tocar com ser tocado, falar com ouvir e criar com falar13.
Essa experiência, ao mesmo tempo impermeável pela razão e permeável pela visio mystica à qual conduz o intelecto, delimita aquele
lugar paradoxal e inacessível para a razão, no qual, além de toda oposição, habita Deus. Para Nicolau de Cusa, o homem possuindo uma
natureza intermediária entre o mundo inferior e o superior, pode ascender à visão intelectual, isto é, o saber negativo de caráter intuitivo
que é o fundamento da união mística denominado docta ignorantia.
A verdade então, o objeto próprio do intelecto, é a infinita essendi
forma na qual se resolve toda alteridade e oposição, pois, “o intelecto
finito não pode atingir com precisão a verdade das coisas através da
semelhança”14, uma vez que, na semelhança, há excedente e excedido
e, portanto, proporção. Essa verdade da qual se fala é, portanto, a
coincidentia oppositorum compreendida como não podendo ser composta de ser e não ser. Isto é, “nem parece que é, devido ao fato de
derivar descensivamente do ser, nem que não é, por ser antes do nada,
nem que é composta dos dois”15. Com isso, o intelecto que não pode
ir para além dos contraditórios “não atinge o ser da criatura ao modo
da divisão ou da composição”16, mas, porque deriva descensivamente
da unidade a criatura não pode dizer-se uma, nem plural porque o seu
ser é devido ao uno, nem ambas as coisas copulativamente. É por isso
que não há dúvidas de que entre o finito e o infinito não pode haver
qualquer proporção.
Aquele que procura esta compreensão segue rumo a ela com um
discurso diversificado e por vestígios, nos caminhos da diferença e da
alteridade racional, em busca da unidade complicativa, da visio
intellectualis. Esta é uma visão intuitiva e unitiva, sobretudo do inte13. A visão de Deus, 169.
14. A douta ignorância, 7.
15. Idem, p. 72.
16. Idem, p. 72.
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COINCIDÊNCIA DOS OPOSTOS EM NICOLAU DE CUSA...
lecto, que renuncia ao princípio da não-contradição a qual, quanto
mais constata essa impotência constitutiva da sua necessária ligação
com o mundo da alteridade, mais cria em si um estado de cisão e
alteridade no interior de si mesma.
Essa unidade simples onde estão unificadas todas as contradições é
pensada, por Nicolau de Cusa, como a própria infinidade incompreensível, “seja qual for o modo de compreensão”17.
Ativo e contemplativo na visão de Deus
“Todas as vezes que te invoco, estás próximo de mim, com efeito,
invocar-te é voltar-me para ti”18.
Nicolau de Cusa afirma que a visão de Deus é contemplação, assim como é dita providência, graça e vida eterna. Afirma ainda que
este olhar de Deus jamais pode abandonar aquele que for capaz de
recebê-lo. A este compete fazer o quanto puder para ser capaz de recebêlo, sendo que a capacidade de recepção que “preside a união”19 não é
senão semelhança.
Ser absoluto de tudo, Deus está com todos, como se não cuidasse
de nenhum outro, não podendo desviar-se jamais e, do mesmo modo,
o seu amor. O ver de Deus é, para o Cusano, o olhar contemplativo.
Neste olhar contemplativo de Deus, todas as oposições estão superadas na visio unitiva ou visio intellectualis, onde o pensamento metaconceitual (fundado somente sobre o princípio lógico da não contradição) torna absurda a sabedoria do mundo, da ratio, e ao qual se tem
acesso através do intelecto na coincidentia oppositorum.
17. A visão de Deus, 175.
18. Idem, p. 148.
19. Idem, p. 144.
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Co-incidência é para Schuback (2009)20 pre-sença de ser e não ser,
o hífen entre o claro-escuro, “o ‘entre’ em que ser e não-ser coincidem”21. Imensidão do mundo que não aparece nem como o mesmo
nem como o oposto de uma estranha tensão de contrários, na presença. Aparece como o não-outro ou non-aliud de Nicolau de Cusa. Presença para o Cusano é também momento, e momento é a substância
do tempo. Então Deus “pode muito convenientemente ser chamado
momento”22. Tirado o momento, nada resta do tempo, por isso, o
momento é a causa simplíssima da indivisibilidade e inalterabilidade
do tempo que também pode ser denominado duração. Conseqüentemente é o mesmo dizer que “são o mesmo, o agora, o momento e a
presença”23. No diálogo do cardeal com Ferdinando (em De li nonaliud), este compreende que “a presença é princípio do conhecer e de
ser de todas as diferenças dos tempos e das variedades; pois, por meio
da presença, conheço o pretérito e o futuro e tudo quanto é, e é por
meio dela mesma, posto que a presença no passado é pretérita; no
futuro é futura; mês, no mês; no dia, dia; e assim por diante”24. Ainda
porém que seja tudo e chegue a todos, a presença permanece incompreensível por todos e sem alteridade. Seu perfeito conhecimento é
denominado docta ignorantia. Conclui o Cusano que todos os que
especulam com a agudeza da visão mental vêem o não-outro, pois os
que tentam pela razão não encontram um caminho para isso que “é
desconhecido para toda razão”25. Essa verdade é contemplada com a
20. Do artigo “Imensidão e subjetividade”, apresentado por Márcia Sá Cavalcante
Schuback em: Scintila – Revista de filosofia e mística medieval, Curitiba, volume
especial n. 6.03.2009, p. 71-90.
21. Idem, ib.
22. NICOLÁS DE CUSA. Acerca de lo no-otro o de la definición que todo define. Nuevo
texto crítico original (edición bilíngüe). Introd. Jorge M. Machetta y Klaus Reinhardt.
Trad. Jorge M. Machetta. Buenos Aires: Editorial Biblos, 2008, p. 165.
23. Idem, p. 167.
24. Idem, p. 169.
25. Idem, p. 187.
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COINCIDÊNCIA DOS OPOSTOS EM NICOLAU DE CUSA...
mente para além da razão, uma vez que o ver proposto pelo cardeal
não é um ver que vê o visível, mas um ver que é ver no visível o
invisível e “este ver é definir”26. No caminho em busca desta visão do
princípio que é tudo em tudo, alguns são mais velozes que outros para
chegar à compreensão. Quiçá seja Maria mais veloz que Marta, por
estar assentada aos pés do Senhor e sendo guiada por ele mesmo.
Ampliando a reflexão acerca da coincidência dos opostos, André
(2001)27 propõe que da tensão gerada entre a contemplação e a ação,
entre o stress e o recolhimento, as referências religiosas parecem dissipar-se e desaparecer. Propõe ainda que são duas as dimensões que podem ser consideradas à luz do pensamento do Cusano: a mística e a
práxis existencial social comunitária. Mas diz André que,
se a dimensão mística supõe essa categoria como caminho para
Deus (e, ao falar da coincidência como caminho para Deus,
pretendo apenas ser fiel às indicações de Nicolau de Cusa que,
nomeadamente no seu De visione Dei, situa sempre Deus para
lá do muro da coincidência), a dimensão social e comunitária
supõe-na como caminho para a paz que não é, senão, em última
análise, o caminho da filiatio como deificatio e theosis, entendida
na perspectiva dinâmica própria da tensão que marca o homem
na finitude da sua condição e na infinitude do seu princípio
que é simultaneamente o seu fim28.
A forma de operar o movimento da coincidência em direção à paz
é a concórdia, isto é, supõe “um movimento de superação dialógica e
reassumptiva das diferenças em que o infinito se inscreve no finito por
um processo de inifinitização do próprio finito”29. Esse infinito que é
a unidade simples e absoluta só se realizará absolutamente na igualdade consigo própria, ou seja, como conexão amorosa.
26. Idem, p. 215.
27. Actas do Congresso Internacional realizado em Coimbra e Salamanca nos dias 5 a
9 de Novembro de 2001. Separata: Coincidência dos opostos e concórdia: caminhos
do pensamento em Nicolau de Cusa.
28. Idem, p. 214.
29. Idem, p. 214.
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SONIA REGINA LYRA
Transumptio é o nome para esse movimento de superação dialógica no percurso místico-especulativo, movimento este pensado por
André, em direção aos homens como concórdia, quando então o homem é ele mesmo um “símbolo por excelência”30, um símbolo vivo
que é imagem viva de Deus.
A natureza intelectual humana, na medida em que se reconhece
como imagem viva de Deus é também a única que tem consciência da
sua capacidade de se tornar semelhante ao modelo, ainda que, sendo
imagem, jamais possa se tornar o próprio modelo. Essas idéias aparecem transcritas em “várias metáforas extremamente interessantes, como
a da medida viva, a do diamante vivo, e, sobretudo, a do autoretrato
vivo, dotado da capacidade de se tornar cada vez mais semelhante ao
seu autor”31.
Trata-se de, ao introduzir o conceito de imago, “tematizar o acesso
do intelecto, à instância cognoscitiva mais elevada da mente humana,
a Deus como seu princípio, seu meio e seu fim”32.
Conclusão
Como símbolo pensa-se que é possível considerar Marta e Maria
dois modos de ser de uma mesma coisa. Elas hospedam o Senhor na
sua própria morada que é a alma humana. Há uma confluência entre
estes dois modos de ser que, através do diálogo com o Verbo, Jesus
Cristo, pode ir se efetivando numa aproximação que nasce pelo respeito à diferença.
Marta representa o movimento, a dinâmica. Um movimento que
pode, por probabilidade, desviar-se do Senhor, assim como declara
Nicolau de Cusa no capítulo V do A visão de Deus: “E o teu ser visto
30. Idem, p. 215.
31. Idem, p. 227.
32. Idem, p. 228.
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COINCIDÊNCIA DOS OPOSTOS EM NICOLAU DE CUSA...
não é senão o teu ver aquele que te vê. [...] Com efeito jamais fechas os
olhos, jamais os voltas noutra direção, e ainda que eu me desvie de ti
quando me volto completamente para outra coisa, tu, nem por isso
deslocas os olhos ou o olhar”33. O Cusano diz ainda que, se Deus não
olha com os olhos da graça, isso é devido ao desviar-se da criatura para
uma outra coisa que prefere em relação a ele.
Pode-se pensar que neste desviar do olhar surge a divisão, a separação e o mundo da ação, dissociado da contemplação. Ainda que, enquanto o homem vive, afirma Nicolau de Cusa, “não deixas de o seguir e de o incitar, com advertência doce e interior, a afastar-se do erro
e a voltar-se para ti a fim de viver na felicidade”34. Para o cardeal, a
suprema felicidade é experimentada ao se atingir a docta ignorantia.
Desse modo tentará o Cusano, também a nós, conduzir “até a
mais sagrada obscuridade”35 quando então caberá a cada um tentar por
si só e do modo que Deus lhe conceder aproximar-se cada vez mais do
“festim da felicidade eterna à qual somos chamados na palavra da vida”36
pelo evangelho de Jesus Cristo.
Quanto a Maria, faz pensar no aspecto único e necessário frisado
por Jesus Cristo, que é a contemplação. Contemplação para além de
toda a experiência sensível, racional e intelectual. Estado em que ação
não se opõe à contemplação, em que ver é saborear, ver é procurar, ver
é ter misericórdia e ver é atuar tão grande a profusão de doçura e “do
tesouro inexplicável da mais feliz alegria”37.
Saborear e contemplar são, pois, apreender num contato experimental a suavidade de todos os bens agradáveis na sua origem, “é atin33. CUSA, Nicolau de. A visão de Deus, 146.
34. Idem, p. 147.
35. Idem, p. 133.
36. Idem, p. 133.
37. Idem, p. 146.
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gir a razão de todos os bens desejáveis na tua sabedoria”38. Assentada
aos pés do Senhor, Maria apreende os seus ensinamentos. Dizer aos
pés do Senhor é idêntico a dizer voltada para ele, “não com os olhos
carnais”39 como quem olha para um ícone, mas com olhos mentais e
intelectuais vendo a verdade invisível da sua face como que na obscuridade “significada em contração”40. Diz ainda o cardeal que isto se dá
desta forma, pois, a sua verdadeira face está desligada de toda contração, não pertencendo nem ao domínio da quantidade, nem da qualidade, nem do tempo, nem do lugar.
Sendo a face e o ver de Deus anterior a todas as faces formáveis, é
ele o modelo e a verdade de todas as faces e, todas as faces, por sua vez,
são imagens da face divina não suscetível de contração ou de participação. É por isso que o olhar de Deus é a sua face. Assim sendo, quem o
olha amorosamente encontrará a sua face amorosa; quem o olha com
ira descobrirá na sua face tão somente ira e quem o olha com alegria,
descobrirá a sua face também alegre como a face daquele que o olha.
A felicidade, no entanto, consiste em transcender todas as semelhanças e figuras, assim como, todos os conceitos que possam ser formados sobre a face, toda cor, ornamento e beleza de todas as faces.
Pois, enquanto puder conceber algo, o homem permanecerá longe da
sua face. Contemplar é, então, ver para além de todas as faces, “num
secreto e oculto silêncio”41 onde nada reste do conceito de face ou de
ciência. É esta a treva, a escuridão, a docta ignorantia em que mergulha
todo aquele que contempla, pois a face de Deus só pode ser vista
veladamente. Diz ainda o cardeal que, por fim, somente a fé encerra
em si todo o inteligível. Podendo-se concluir ainda que, numa perspectiva ética, é o amor a forma de realização suprema da conjunção
38. Idem, p. 146.
39. Idem, p. 149.
40. Idem, p. 149. Esse conceito não será desenvolvido aqui, uma vez que permeia
praticamente toda a teoria de Nicolau de Cusa.
41. Idem, p. 152.
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COINCIDÊNCIA DOS OPOSTOS EM NICOLAU DE CUSA...
desses opostos, onde as categorias de identidade e diferença não se anulam. Mais que isso, elas se fecundam e enriquecem. Chega-se então ao
princípio designado por ação e contemplação pela transposição e
reassumpção no âmbito da própria unidade infinita e não pela eliminação da diferença.
Referências
ANDRÉ, João Maria. Coincidência dos opostos e concórdia: caminhos do
pensamento em Nicolau de Cusa. Actas do Congresso Internacional,
Coimbra e Salamanca, 2001.
NICOLAU DE CUSA. A visão de Deus. Tradução de João Maria André.
2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998.
NICOLAU DE CUSA. A douta ignorância. Trad. de Reinholdo Aloysio
Ullmann, Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.
NICOLÁS DE CUSA. Acerca de lo no-otro o de la definición que todo
define. Nuevo texto crítico original (edición bilíngüe). Introd. Jorge
M. Machetta y Klaus Reinhardt. Trad. Jorge M. Machetta. Buenos
Aires: Editorial Biblos, 2008.
VV.AA. Enciclopedia Garzanti di Filosofia. Milano: Garzanti Editore,
1999. p. 210.
SCUBACK, Márcia Sá Cavalcante. “Imensidão e subjetividade”, in:
Scintilla – Revista de filosofia e mística medieval, Curitiba, volume
especial n. 6.3, 2009.
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 1, p. 79-91, jan./jun. 2010
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COMENTÁRIOS INÚTEIS SOBRE ÉTICA...
COMENTÁRIOS INÚTEIS SOBRE
ÉTICA A PARTIR DE BERNARDO DE
CLARAVAL
Enio Paulo Giachini *
“Não só em seu ponto de partida, como também em seu ponto
de chegada e sobretudo na ponte de passagem de um ponto para outro, a ética se concentra em interrogações sobre os modos de ser e agir
dos homens e se recolhe a questões sobre o ser e realizar-se de indivíduos e grupos, de instituições e ordens.” Trata-se de questões milenares, questões tão velhas que já estão de barbas brancas. O que possuem
de novo é apenas isso: a necessidade histórica de serem questionadas sempre de novo.
Nós nos propomos aqui a trazer alguns pontos dessa temática (a
ética) para reflexão, partindo de um pensador medieval. A sua
desatualidade é evidente e patente. No entanto, pode ser que nem
tudo que seja atual seja também atuante ou originariamente efetivo.
Ao longo dos últimos séculos, nós modernos elaboramos padrões
de comportamento e construímos modelos de ação para assegurar valores e garantir práticas de relacionamento, mas o fizemos cada vez
mais subordinados ao conceito da utilidade e comprometidos com o
lucro. A crise radical da ética com que nos sufoca e nos confunde hoje
o mercado arroga-se a competência de supremo tribunal de decisão
para qualquer valor. Quem determina o que vale ou não vale hoje é o
mercado. Os valores tornaram-se mercadoria. Essa derrocada de valores em filosofia é chamada de nihilismo. Em seu aspecto prático,
nosso agir e pensar pautam-se pela funcionalidade. O que importa
* Professor do IFSB, [email protected]
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 1, p. 93-99, jan./jun. 2010
93
ENIO PAULO GIACHINI
mesmo hoje não são as pessoas, os bens, a natureza e a vida em constante transformação. O que interessa são as funções. É indispensável
que tudo funcione.
Assim, se nosso objeto de reflexão apesar de ser muito antigo é
desatualizado, fica o apelo para nos concentrarmos no que ele tem de
novo: repensar a questão da ética.
A questão da ética nos convoca a pensar, a voltar-nos para a origem
de nós mesmos. Repensar o passado é reconhecer-se pertencente e vindouro de raízes que ultrapassam a vigência da atualidade. A força do
futuro sempre vem do passado. Não podemos fazer isso apenas como
turistas ou visitantes, empenhados em buscar distração para as
premências de nosso tempo. Nosso empenho deve ser de busca autêntica de transformação.
Não só na Idade Média como em toda Antiguidade o pensar sempre se deu conta de sua responsabilização: Trazer à fala e deixar que o
ser ganhe formulação. Assim a ética não tem sua função primordial na
regulagem normativa das ações, de como se deve agir ou deixar de agir,
mas em possibilitar a morada ao ser.
Na história da metafísica, toda concepção ética quase sempre esteve subordinada à técnica de um fazer, seja na moralidade ou na utilidade, na busca de dominar a natureza, na subordinação de povos, na
busca de perfeição de virtude, na salvação da alma etc. Essa postura de
pensar busca aproximar o fazer ao ser, segue o caminho de retorno em
direção à fonte. Sua força e direcionamento vêm do próprio homem
que busca a virtude, a salvação etc.
O grande desafio do pensar ético é a identidade de ser e dever-ser
(pensar)
Um mote grego de Píndaro dizia: Venha a ser o que já és.
Em sua diferença, identidade de ser e vir a ser. Esse vir a ser, no
entanto, pode ser pensado de dois modos distintos: a) a caminho da
fonte e b) provindo da fonte. “Na medida em que nos sentirmos ape94
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 1, p. 93-99, jan./jun. 2010
COMENTÁRIOS INÚTEIS SOBRE ÉTICA...
nas a caminho da fonte, a ética se torna um obstáculo para as ações e se
faz empecilho para a liberdade de ser o que já se é. Uma vez, porém,
que nos descobrimos provindo da fonte, nossas ações tornam-se livres
pela e para a verdade de ser.”
Nos propomos refletir sobre a ética em Bernardo de Claraval. O
tema central do pensamento antropológico de Bernardo de Claraval
vem pautado pela frase do Gênesis: E façamos o homem à nossa
imagem e semelhança. O conceito imagem e semelhança pode ser
visto como a versão cristã do mote grego: vir a ser o que já se é.
Todo esforço de pensamento de Bernardo, e sua formulação mística, buscam estabelecer identidade entre imagem e semelhança no homem. O humano já se descobre sendo a própria imagem do criador.
Já lhe é dada essa pertença, de tal modo que isso se torna inamissível.
Mesmo que ele tenha decaído e jamais encontre o caminho de retorno
na direção dessa identidade, o homem não pode perder essa sua grandeza de ser imagem de seu criador. Essa é sua dignidade primeira e
jamais poderá ser perdida. O paradoxo, todavia, está em que apesar de
ser inamissível precisa ser encontrada e conquistada.
A imagem tem o modo de ser da liberdade. O homem, imagem
de Deus, possui livre arbítrio para fazer e deixar com que a imagem se
torne igualmente semelhança. Pelo mau uso de sua liberdade, pode-se
tornar dessemelhante à imagem, pode não vir a ser o que é essencialmente ou o que deve ser. Significa dizer: se por um lado jamais pode
perder sua imagem, pode perder sua semelhança com a origem. Assim, ele tem a responsabilidade ética de vir a ser o que ele já é essencialmente, ou seja, deve tornar-se semelhante à imagem.
Provavelmente nós modernos entendemos esse convite de modo
subjetivo e até por demais piedoso, como a responsabilidade heróica
de, por nossas próprias forças, conduzirmos nossa vida de volta para
Deus, a origem.
Lendo os textos modernos de Pico della Mirandola, por exemplo,
percebemos claramente que a Dignidade do homem está em sua capaScintilla, Curitiba, vol. 7, n. 1, p. 93-99, jan./jun. 2010
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cidade e possibilidade de gerir e dever gerir por próprias mãos a provisão de seu mundo.
O sumo pai, Deus criador, havia formado a morada do mundo
e dado a cada ser sua beleza e lugar determinado, mas não restava nenhum para a nova criatura, o homem. Todos já estavam
ocupados. “Não te dei, Adão, nem um lugar determinado nem
um aspecto teu próprio, nem qualquer prerrogativa tua, porque
o lugar, o aspecto, as prerrogativas que desejares, tudo enfim,
conforme teu voto e teu parecer, obtenhas e conserves. Tu determinarás tua natureza, conforme o arbítrio, a cujo poder te
entregarás” (Discurso sobre a dignidade do homem).
A dignidade do homem moderno está em sua plena e absoluta
responsabilização. O pósito primeiro aqui é sujeito. O sujeito é que
determina, conforme seu arbítrio, sua natureza. Nos conceitos de
Bernardo, compreendidos sob a vertente moderna, portanto, a dignidade humana estaria em fazer com que o que é propriamente humano
se assemelhe o maximamente possível à imagem. A dignidade estaria
na semelhança.
No entanto, “a ação e o comportamento se fazem éticos quando a
imagem originária emerge como realidade e na realidade viva dos relacionamentos cotidianos”, ou seja, quando a imagem vem à realização
na semelhança. Quando o movimento se dá da fonte para “fora”. É
um movimento que vem do interior do homem. Mas esse interior
não é o interior da subjetividade. É o interior ao qual ele já sempre se
descobre pertencendo e do qual é “missionário”.
“Enquanto lidarmos com esforços ou procurarmos meios de entrar ou buscarmos caminhos para chegar à fonte originária, ainda não
nos demos conta de que já estamos nela.”
Nesse modo de pensar, livre arbítrio e liberdade não são capacidades de o homem fazer e poder o que quiser. Não pode dispor, como
rei da criação, do domínio sobre a natureza, sobre os bens, sobre a
vida, como imagina a biogenética, p. ex. O homem nesse pertencimento
é instrumento e co-instrumento de realização do real, é o lugar que a
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COMENTÁRIOS INÚTEIS SOBRE ÉTICA...
imagem escolheu para deixar e fazer aparecer mundo, vida. A vida, seja
qual for a formulação que possui, não é propriedade e posse nossa.
Nos conceitos de imagem e semelhança, Bernardo distingue portanto, na primeira a dignidade humana e na segunda a justiça ou retidão humana. Uma pessoa reta, para Bernardo, é aquela que em tudo
que faz ou deixa de fazer deixa que a força e a vida da Imagem primordial, o Verbo venha à realidade, se torne real.
É isso que maximamente caracteriza o conceito de liberdade. Liberdade em Bernardo é a vontade livre para bem julgar. Assim para ele
a estrutura da vontade no homem é extremamente simples. Dizer que
é simples, porém, não significa que é simplória, que é pobre ou atrasada. A simplicidade aqui diz de elementar. Tudo que é elementar é simples, coloca e mantém sua força de consistência antes e depois de toda
complexificação. A força de todo composto, complexo ou sofisticado
provém do sim-plex, daquilo que ainda não tem plexos. A vontade
consiste no poder dizer sim ou não. Só se pode dizer sim ou não a
uma convocação. Essa convocação vem da imagem, constitutiva da
grandeza e dignidade do homem, de tornar-se semelhante a si mesmo,
de levar à consumação, à realização aquilo que ele já sempre foi.
O arbítrio, o outro componente da vontade livre, implica conhecimento e julgamento. A vontade tem ciência de si e de seus atos e
pode julgá-los porque sempre se vê pertencendo à imagem. Quanto
mais os atos da vontade forem conformes à imagem originária, tanto
mais claros e retos.
O parâmetro, a “medida”, para conhecer e julgar atos e decisões é
sempre a imagem primordial. Quanto mais afinada e ob-audiente para
com a imagem for a vontade, tanto mais se assemelha a esta, e também tudo que produz. Essa sintonia é o caminho de superação da
distância que se interpôs entre elas pelo pecado original, que criou
dessemelhança.
Essa proposta de Bernardo não está preocupada primariamente
com o fazer e o produzir, mas com o agir. Busca a identidade de agir e
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ser. Há uma diferença brutal entre o fazer e o agir. Hoje, pressionados
pela premência da técnica moderna, do mercado globalizado, da era
do enlatado e pronto, temos de fazer e produzir cada vez mais. E nisso
nossa mente e nosso coração estão sempre esparramados nas coisas,
produtos terminais dos processos da vida. Nosso fazer está mais conformado com uma re-ação diante da imposição exterior. A concepção
antropológica de della Mirândola convoca para uma superação da reação, pela ação. O pensar antropológico de Bernardo vai mais na linha
de uma não-ação do que de reação ou ação. Não-ação como agir que
vêm da própria fonte originária donde fomos e seremos. A não-ação
implica uma responsabilização tal que não descura de nada. O agir
passa a ser uma repercussão da imagem que se é originalmente.
Diante da necessidade de agir e tomar decisões, “a vontade é precedida de uma reflexão sobre se algo deve ser feito ou não, bem como de
um ato de agrado ou desagrado”. A primeira é chamada por Bernardo
de liberdade de conselho e a segunda, liberdade de complacência.
Uma consiste na ponderação dos motivos da ação, a outra é o efeito da
atração ou repulsa que os motivos exercem sobre a ação.
Esses dois fatores – a liberdade de conselho e de complacência –
dentro da liberdade, podem ser perdidos, são amissíveis, ao contrário
do livre arbítrio.
Significa dizer que a retidão ética para o pensador comporta três
momentos do caminho da liberdade:
a) o livre arbítrio – é o poder de decisão e autodeterminação (imagem de Deus)
b) a liberdade de conselho – é a aptidão de bem avaliar os valores
em vista da ação e
c) a liberdade de complacência – o gozo imperturbado nos referidos valores, pelo qual somos libertos da miséria (semelhança de
Deus).
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COMENTÁRIOS INÚTEIS SOBRE ÉTICA...
A proposta ética bernardiana não implica grandes dificuldades conceituais. As questões que fazemos a ele podem ser respondidas por ele,
teoreticamente, com lógica e clareza.
A dificuldade está justamente em percebermos que de há muito
estamos aturdidos, de há muito turvamos o espelho de nosso conselho e nossa complacência. A crise de valores e de sentido que nos impõe o mercado globalizado hoje, a igualitação niveladora que exerce
sobre toda vitalidade da vida nos fazem pensar que o que importa
ainda é só e apenas sobrevivermos. De há muito que embotamos a
limpidez da fonte, da imagem, sempre doadora de vida, e assim
inamissível. E assim buscamos suprir nossa saudade da origem pela
exacerbação dos fazeres e do produzir.
Fica para nós a convocação do pensar a ética. Só se pensa realmente
quando se é e na medida que se é o que se pensa, não no sentido de um
conteúdo imposto por um padrão de dever e sim no sentido de um
dom, o dom de em sua diferença, aproximar ser e pensar.
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A VONTADE NA DOUTRINA DE JOÃO DA CRUZ
A VONTADE NA DOUTRINA DE
JOÃO DA CRUZ
Marcelo Martins Barreira*
Resumo: João da Cruz valoriza a vontade em sua doutrina sobre a
vida espiritual. O artigo pretende analisar a função da vontade na
contemplação mística, conforme a reflexão apresentada em sua obra
Subida do Monte Carmelo. O valor da contemplação reside exatamente
em sua capacidade de unir a alma com Deus numa experiência fruitiva.
A influência da contemplação na vontade, em conformidade com o
modo divino presente na alma, faz esta participar do amor suave decorrente dessa união, pois priva a vontade de sua capacidade natural
de operar.
Abstract: John of the Cross highly values the will in his doctrine about the
spiritual life. The article aims to analyze the function of the will in mystical
contemplation, according to Saint John’s reflections in his book Ascent of the
Mount Carmel. The value of contemplation lies precisely in its capacity to
unite the soul with God in a fruitful experience. The influence of contemplation, in accordance with the divine order present in the soul, allows the
will to participate in the mild love deriving from this union, for it deprives
the will of its natural capacity to act.
Em que pese a indeterminação das múltiplas influências teóricas
no pensamento de João da Cruz, sua doutrina sobre a estrutura da
alma, mais do que enfatizar sua divisão principal, em sensível e espiritual, e suas subdivisões, importa ter presente sua visão unitária; isto,
caso suas partes não estejam em desarmonia, pois, nesta situação, tãosó a noite escura da contemplação poderá restabelecer satisfatoriamente
sua harmonia originária. De início, com referência à estrutura da alma,
vale dizer que, malgrado a estrutura da alma apoiar-se na terminologia
escolástica (LUCIEN-MARIE, 161, n.1), apropriando-se de sua lógi* Professor Adjunto da Universidade Federal do Espírito Santo.
[email protected]; [email protected].
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MARCELO MARTINS BARREIRA
ca e metafísica1, nosso autor jamais apresentou sua concepção antropológica de forma organizada e sistemática2. Quiçá devido ao seu interesse pelo crescimento espiritual, sublinhando a dinâmica da alma e
seus diversos níveis, mais que sua estrutura.
João da Cruz entende que a alma se divide em parte sensível (sensual, externa e inferior), que inclui o corpo e os sentidos externos e
internos, e em espiritual (racional, interna e superior), as potências
espirituais e a substância da alma. Em síntese, na parte sensível, além
dos cinco sentidos externos, há os internos: a imaginação e a fantasia.
No tocante à espiritual, subdivide-se em: entendimento, ativo e o passivo, em que acontece a notícia geral e obscura da contemplação; a
vontade – por extensão, os apetites e as paixões –, a ser ordenada pela
razão; a memória e sua capacidade de apreensão, cuja função é acolher
a comunicação divina; por fim, a substância da alma, ponto de convergência dessas potências espirituais.
Com relação à parte sensível da alma, cabe ressaltar que o corpo
corruptível pesa (2N 1, 2), inibindo o crescimento espiritual da alma
quando nele se compraz, não agradecendo a Deus pela beleza, graça, elegância, constituição corporal e todos os outros dotes corporais (3S 21, 1). Assim, a alma, estando unida ao corpo, cuja natureza é doente e corrompida
pela queda de Adão (CB 23, 2-6), não fica suscetível nem do conhecimento direto de Deus, nem de receber suas comunicações. Por conta disso
certas experiências extraordinárias nesta vida, mesmo sob intervenção direta de Deus, não serão percebidas pela alma sem que nela se dê uma inter1. Os conceitos de substância e acidentes, causa e efeito, potência e objeto, hábitos e
atos, necessário e contigente, entendimento ativo e passivo; enfim, aceitando que as
experiências místicas envolvam conhecimento e amor (ver 2S 13, 4; 2N 12, 2-7; ChB 3,
22-39); por isso, eventualmente, será útil uma espécie de contraponto com a perspectiva tomasiana.
2. Tarefa empreendida por Steven Payne em John of the Cross and the Cognitive Value of
Mysticism – An Analysis of Sanjuanist Teaching and its Philosophical Implications for
Contemporary Discussions of Mystical Experience (Dordrecht/Boston/London: Kluwer
Academic Publishers, 1990, p. 16-49), servindo como esteio na análise do tema neste
capítulo.
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A VONTADE NA DOUTRINA DE JOÃO DA CRUZ
venção igualmente extraordinária de Deus, suprindo as funções naturais
da alma dependentes da limitação corporal (2S 24, 3)3; também para
Tomás, o afastamento dos sentidos seria indispensável à visão direta e
essencial de Deus (Sobre a verdade XIII, 3).
Em João da Cruz, o conhecimento natural do mundo parte da
experiência sensível (1S 3, 3); antes dele, porém, essa posição aristotélica
(Sobre a alma III, 429a10-432a14) de que o conhecimento intelectual
deriva da sensação e implica na recepção da forma ou espécie da coisa
conhecida foi seguida pelos escolásticos, principalmente após Tomás
de Aquino4.
A alma nada conhece sem imagens, pois depende do corpo enquanto potência espiritual. O entendimento precisa recorrer a elas na
presente vida. Portanto, no caso de um órgão lesionar-se, o entendimento fica impedido de operar – ainda que não se utilize diretamente
de nenhum órgão corporal. Segundo o Aquinate (S. T. I, 14, 2), a
coisa sentida e o sujeito que sente formam uma unidade na espécie
sensível5. O material fornecido pelos sentidos produzirá o conhecimento
sensível. Após este conhecimento acontecerá, num nível superior e mais
perfeito, o conhecimento intelectual, cuja relação entre a coisa conhecida e
o sujeito que conhece produz a espécie inteligível, capacitando a alma para
que entenda as coisas extramentais (que não entram fisicamente no espíri3. Urbina analisa o extraordinário em João da Cruz: Trata-se de uma ação ou influência
divina extraordinária, recebida na alma passivamente. É um fenômeno extraordinário no
sentido de que supera a ação ordinária das energias da alma, ainda que estejam elevadas pela
graça e pelas virtudes. É neste sentido uma graça (atual) extraordinária. Trata-se, pois, de um
conceito de sobrenatural que poderia chamar-se de segundo grau, porque é uma nova e
extraordinária operação de Deus numa alma que já está inserida no sobrenatural essencial
(grifo no original, La persona humana..., p. 198-199); pois, pela graça (ordinária), a
criatura já participa da vida divina (ver VAZ, Experiência mística..., p. 23, n. 24).
4. Nihil est in intellectu nisi prius fuerit in sensu (S. T. I, 84. 6; 85, 1); ver FERREIRA,
Anderson D’Arc. “A abstração em Santo Tomás de Aquino: uma investigação sobre a
importância da abstração nos modos de intelecção”. In: Ágora filosófica 2 (2001) 123.
5. A espécie sensível é a alteração que os agentes físicos produzem nos sentidos, formando uma imagem do objeto percebido; ver FERREIRA, “A abstração em Santo Tomás de
Aquino...”, p. 123.
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to); assim, o entendimento compreende, o quanto possível, a forma e
essência de cada coisa, possuindo-as imanentes em si. Desse modo, a
verdade não está nas coisas ou no entendimento mas na adequação
entre estes, que se assemelham entre si6.
Numa perspectiva tomasiana, a racionalidade carateriza o homem
e é seu elemento mais nobre. Contudo, esta racionalidade, por si só, é
insuficiente para ele alcançar a perfeição moral, desencadeando uma
dinâmica em seu interior que suscita (naturalmente) o entendimento e
a vontade como determinantes para a realização de sua liberdade. A
vontade traduz-se pelo apetite natural do bem, ou melhor, daquilo
que toma como seu bem, amando-o livremente por suas escolhas. Aí,
no plano dos passos concretos, reside o caminho que cabe ao homem
percorrer para ser o que é, plenamente livre.
Tomás de Aquino divide o elemento racional conforme esteja
no plano do conhecimento ou da ação. No primeiro caso a razão especulativa dedica-se ao conhecimento da verdade. No segundo, uma razão prática cujo fim último é o bem. A razão prática conhece espontaneamente o bem, fim último ao qual o homem aspira. O agir humano
visa um fim ou bem, objeto da vontade. A afetividade, subordinandose ao comando da razão, é o lugar natural de certos hábitos: a temperança e a fortaleza, virtudes cardeais, são hábitos impressos pelo espírito na sensibilidade, sob seu duplo aspecto, concupiscível e irascível 7 6. Consoante a célebre expressão adaequatio rei et intellectus (ver Sobre a verdade I, 3);
ver FERREIRA, “A abstração em Santo Tomás de Aquino...”, p. 126.
7. MENESES, O conhecimento afetivo..., p. 44-45. Foi Platão quem expôs, no livro IV
de A república, as três partes da alma: a concupiscível, a irascível e a racional. A parte dos
apetites, ou concupiscível, faz o homem obedecer, quer dizer, obriga-o a beber na sede,
comer na fome, desesperar-se ao ter medo. A parte racional e superior responsabiliza-se
pelo comando, pelo cálculo e pela capacidade de o homem agüentar a imposição das
paixões, desejos e apetites. Platão diz que muitos não a alcançam plenamente; outros, só
em idade avançada. A parte irascível, não corrompida pela má educação, ajuda a razão
a governar, assistindo-a. A ira é, de pronto, posta por Glauco na parte concupiscível –
mas Sócrates observa que muitas vezes vai contra os desejos, ao suportar fome e sede ou
ao sentir-se vítima da injustiça; as paixões, contrárias à razão, forçam o homem a agir
contra ela que, por sua vez, autocensura-se, irrita-se e luta contra as paixões. Logo, o
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A VONTADE NA DOUTRINA DE JOÃO DA CRUZ
distinção assumida por João da Cruz8, ainda que pouco repetida9. Os
hábitos são um modo de alguém ser, disposições ou capacidades da alma10;
inclinações, orientações estáveis difíceis de remover; diferentemente das
disposições instáveis semelhantes a saúde ou a doença11. Qualidades que
facilitam, assistem e orientam as operações das potências espirituais, sobretudo da vontade, embora não as executem: Hábito não é outra coisa do que
habilidade para o ato12. Adquirem-se hábitos pela repetida execução de
atos; inclinando-se a bem agir (adquirindo virtudes) ou dispondo a vontade para mal agir ou agir contra sua natureza (vícios).
A vontade se orienta para o bem, cujo conhecimento é claro para o
entendimento. No entanto, por não se conhecer a Deus em sua essência, o exercício ordinário da vontade torna-se incapaz de buscá-lo como
Ele é13. Face a isso, João da Cruz condiciona a perfeição moral ao
aprofundamento teologal. A purificação da vontade abrange mas não
se esgota nos bens morais14. Em razão de os hábitos ou virtudes morais serem concreções derivadas das potências, o método ascético-moelemento irascível é positivo quando vinculado à razão, à semelhança de um cão ao
obedecer a seu pastor. O concupiscível é responsável pela insaciedade ante as riquezas e
os prazeres corporais, por isso, quando domina o indivíduo, este torna-se seu escravo; o
inverso se dá, caso domine o elemento racional, ou melhor, a pessoa assenhora-se de si
(ver JAEGER, Werner. Paidéia – A formação do homem grego. São Paulo/Brasília: Martins
Fontes/Ed. Universidade de Brasília, 1989, p. 551-558).
8. Ver CB 20-21, p. 4.
9. Ver 3S 29, p. 2-4.
10. Ver S. T. I-II, p. 49-54.
11. Ver MENESES, O conhecimento afetivo..., p. 48; VAN STEENBERGHEN, O
tomismo, p. 142s.
12. S. T. III, 31, 2, 4, corpo; ver MENESES, ib., p. 43.
13. Ver 3S 12, 1-3.
14. No terceiro livro da Subida, os capítulos dedicados à vontade-caridade (16-45)
agrupam os bens em terrenos e celestiais, consoante seu caráter mais natural ou espiritual. Há, no primeiro grupo, os três primeiros tipos de bens: os temporais (18-20), os
naturais (21-23) e os sensuais (24-26); o segundo, mais espiritual, inclui outros três
gêneros de bens: os morais (27-29), os sobrenaturais (30-32) e os espirituais (33-45).
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ral busca a perfeição moral, dispersando a atenção da alma pelos diversos setores da vida moral.
As virtudes teologais, inversamente, por unirem a alma inteira diretamente com Deus, são atitudes que enfocam e afetam sua íntima
estrutura, onde não alcançam suas habilidades naturais15. Assim, tendo-se em vista a comunhão divina, quanto mais a alma adquire as
virtudes morais por uma diligente atitude teologal, tanto mais é forçoso um amor obscuro na vontade correspondente à obscuridade comunicada ao entendimento16.
O entendimento, ocupando-se com notícias particulares e distintas, não recebe as comunicações divinas, gerais e obscuras, promovendo um duplo dano à alma: privá-la do espírito de Deus, e, ademais, tais
notícias cansam, atormentam, obscurecem, sujam, enfraquecem e chagam
a alma em que vivem17; não podendo caber dois contrários no sujeito da
alma18, pois, a obscuridade das criaturas e a luz divina opõem-se mutuamente, sem qualquer semelhança entre si. Conseqüentemente, a
luz da divina união não se faz presente a ela enquanto não se lhe erradicarem as afeições das criaturas19. Do mesmo modo, os apetites, quando centrados nas espécies sensíveis, ficam desordenados, impedindo a
vontade de unir-se com Deus pelo amor.
A união de semelhança com Deus é a união da vontade divina
com a humana20, o que não se traduz, em absoluto, numa negligência
quanto à dimensão noética da contemplação, haja vista o estreito vín-
15. Assim, os hábitos infusos transformam a natureza da alma.
16. Ver 1N 10, 6; 11, 1; 2N 5, 1; 11, 4; 12, 2; 5-7; 13, 2; 16, 14.
17. 1S 6, 1. Danos que os apetites causam à alma no primeiro livro da Subida: privação
do espírito de Deus (cap. 6), cansaço e fadiga (cap. 6), tormento (cap. 7), escuridão e
cegueira (cap. 8), impureza (cap. 9), enfraquecimento na virtude (cap. 10).
18. 2N 5, 4.
19. Ver 1S 4, 2; 6, 1-4; 2N 5, 4; 9, 2.
20. Ver 1S 5, 3; 2N 11, 3; CB 38, 3-4; ChB 3, 24.
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A VONTADE NA DOUTRINA DE JOÃO DA CRUZ
culo entre entendimento e vontade na vida espiritual21. Em 1 Subida
8, 2, memória e vontade, segundo suas operações, dependem do entendimento. De igual modo, o entendimento e as outras potências não podem admitir ou negar nada sem que nisso haja vontade22. João da Cruz
valoriza a vontade, apesar de sua difícil doutrina sobre ela23, atenuada
pela interrelação entre as potências; todas elas, baseando-se num mesmo quadrante teórico24.
O Cântico espiritual demonstra com nitidez o desenvolvimento
da vida espiritual como um caso de amor, num relacionamento amoroso entre o divino e o humano, evidenciando o tom afetivo na experiência contemplativa, no mínimo, tão relevante quanto sua qualidade
noética – haja vista a diferença de abordagem na Noite e no Cântico
quanto à purificação passiva; naquela obra acentua-se a obscuridade da
fé e nesta, a ausência de amor25.
Na reflexão em torno da vontade, as afeições e sentimentos da
alma ajudam a compreendê-la; outros termos reafirmam o relevante
papel da afetividade na vida espiritual, a saber: querer; concupiscência;
21. Ver CB 38, 5; BOUILLARD, “La ‘sagesse mystique’...”, p. 516.
22. 3S 34, 1.
23. Para melhor entender os raciocínios do autor, convém distinguir quatro planos ou níveis,
que misturam suas respectivas capacidades no exercício do amor: a) Caridade sobrenatural: É a
força do Espírito Santo, a graça que impulsiona e guia todo o processo. Centraliza o amor em
Deus, abarca o horizonte, incluindo novos objetos, estabelece hierarquias de valor, cura e
potencializa as fontes psíquicas da afetividade humana. b) Vontade: Inclui a eleição e a decisão
livres, a valorização de realidades do espírito, capacidade de se dar e de realizar ações generosas e
sacrificadas, que não compensam à sensibilidade. c) Afetividade sensível: Desdobramento da
energia afetiva no plano da sensibilidade. Tem objetivos próprios e diretos, com uma ampla
gama de atrações e repugnâncias. Aqui residem as paixões. Daqui tira o apetite, como atuação
da energia passional, de forma autônoma e despersonalizada. d) Sexualidade: Como tendência
sensível e passional, faz parte da categoria anterior. Dada sua especial força e amplitude, seu
enraizamento no corpo, seus desvios, trata-a como setor particular (grifo no original, RUIZ
SALVADOR, Místico e mestre..., p. 226-227).
24. Ver 3S 34, 1.
25. Capítulos de 8 a 11; ver RUIZ SALVADOR, Místico e Mestre..., p. 51.
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gosto; cobiça; ânsias; desejos; fome; afeições etc.26, sendo apetites e
paixões os principais.
Ante a absoluta diferença entre Deus e o ser finito, sua semelhança
pode apenas ser entrevista na expressão ferida de amor27, que fundamenta o desejo e a possibilidade do retorno da criatura à origem de seu
ser em Deus28. Ferida que faz a alma reconhecer a origem de seu desejo
em Deus, convertendo-se pouco a pouco, no curso da experiência, em
ânsia de amor por ele29. O desejo que, desprendido do imediato e
longe dele, funda tal aspiração se debate entre a fascinação do nada,
com seus desequilíbrios e confusão face ao risco de aniquilação psíquica e moral30, e a vertigem da perfeição.
Para se abordar como os desejos afetam a vontade, serão analisados
num único bloco os apetites sensíveis e as paixões31. Para isso, é preciso
responder à seguinte questão: seriam estes a simples tendência ou ação de
cada potência referida ao seu objeto ou às faltas morais? Ou, noutras palavras: seria a afetividade sensível desviada ou uma inclinação da alma?
Em que pese não serem definidos de maneira precisa nas obras
joãocrucianas, do ponto de vista moral pode-se dizer que os apetites são
neutros32, nem bons nem maus. Atraídos por gostos e satisfações dos senti26. Ver ib., Introducción..., p. 581-585.
27. Ver MOREL, Le sens de l‘existence..., v. II, 234.
28. O conceito de amor como desejo do que falta, a posse eterna do bem – que denota
o ímpeto do homem em seu amor pelo divino enquanto eros e não ágape –, remonta a
Platão (ver Banquete e Fedro; MOREL, ib., v. II, p. 288).
29. Ver ib., v. III, p. 75.
30. Ver ib., v. II, p. 92 e 104.
31. A respeito da historicidade da distinção entre desejo e apetite, ver FERRATER
MORA, Diccionario de Filosofia, v. 1, p. 836.
32. Às vezes, emprega apetites num sentido indiferente, nem positivo nem negativo,
apenas uma inclinação natural do afeto (ver 2N 11, 4; ChB 2, 34; URBINA, La persona
humana..., p. 52); outras, num sentido positivo: apetite de Deus (1S 10, 1; ChB 2, 34); de
imitar a Cristo (1S 13, 3; ver DAMIÁN GAITÁN, Negación y plenitud..., p. 22).
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dos – o olfato pelo perfume, o tato pelas coisas delicadas e macias, o gosto
por algo saboroso etc. – e marcados pela intensidade de sua aderência afetiva, fazem da parte sensível a casa de todos os apetites33; por conta disso, são
ainda redundantemente denominados de apetites sensíveis34.
Quanto às paixões, parecem ser o impacto afetivo na alma dos
movimentos do apetite pela apreensão de um bem ou pelo afastamento de um mal. Enquanto tais, também não têm nenhum sentido pejorativo, sobretudo ao entendê-las simplesmente enquanto a tendência
dos apetites sensíveis a seus respectivos objetos35.
Convém, no entanto, examinar as paixões – gozo, dor, esperança e
temor36 – na ótica tradicional, sob a qual nosso autor as concebe37;
ademais, onde vai uma atualmente, também vão as outras virtualmente38. Conforme Cícero39 e Agostinho40, diante da posse do bem, temse o gozo (presente)41; não o conseguindo, provoca-se o desejo42 de
33. 1S 15, 2. O apetite joãocruciano é um dinamismo da psique do homem, próprio de
sua condição animal (ver CAPANAGA, San Juan de la Cruz..., p. 157-161).
34. A despeito de referir-se aos apetites espirituais ou da vontade; ver 2N 11, 3; CB 28,
8; 40, 1.
35. Também para Tomás as paixões não seriam intrinsecamente más (ver MENESES,
O conhecimento afetivo..., p. 33).
36. Ver 1S pról, 7; 13, 5; 2S 21, 8; 3S 16, 6; 1N 13, 15; CB 20-21, 4.9-10; 26, 18.
37. Ver GARCIA, Juan de la Cruz y el misterio del hombre, p. 158.
38. 3S 16, 5; ver 1S 6, 1; 12, 3-5.
39. Ferrater Mora remete esta doutrina das paixões fundamentais também a Zenão de
Cítio (ver Diccionario de filosofia, v. 1, p. 836).
40. Ver GILSON & BOEHNER, História da filosofia cristã, p. 188.
41. O amor e o gozo são duas orientações do afeto que marcam sua dinâmica fundamental:
o amor é dom, o gozo é posse; o amor busca união, o gozo, satisfação. Os quatro planos
indicados antes podem ser vividos plenamente em chave de amor; e todos eles podem ser
instrumentalizados e reduzidos a simples gozo ou desfrute (RUIZ SALVADOR, Místico e
Mestre..., p. 227). Por isso, o sentimento e o gozo, ao invés de serem excluídos da vida
espiritual, são suscetíveis de uma dinamização teologal, quando a vontade os leva a se
transcender e se abrir ao amor (ib., p. 228); neste momento, o gozo de amor significará
a extraordinária capacidade transformadora do amor de Deus (ver ib. p. 315).
42. É uma reação do concupiscível.
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consegui-lo; sendo pouco provável sua aquisição, engendra-se esperança ou desespero (futuro). Diante do mal tem-se tristeza ou dor (presente)43; na dificuldade de evitá-lo, audácia ou temor (futuro). Tomás,
posto que enumere onze paixões, vê as quatro acima como principais44; conforme ressalta Maritain: as enumeradas por Boécio e citadas
por João da Cruz45.
Uma vez orientadas pela razão, as paixões contribuem à riqueza e
fortaleza da alma. Similarmente, tem-se o mesmo ante os apetites;
estes, quando ordenados, são fundamentais à união46. Por conseqüência, no primeiro livro da Subida, é preciso que apenas os desordenados
e voluntários47 sejam esvaziados, pois estes desviam a atividade afetiva
de seu objeto ou tendem desordenadamente a ele. Isso é um dos motivos por que são longamente analisados nas páginas referentes à purificação da vontade, do cap. 16 até o fim do terceiro livro da Subida,
em que se enunciam as diferentes formas de gozo ativo48, isto é, quando
a alma entende distinta e claramente do que se goza49.
Portanto, ante à reciprocidade entre a vontade e o entendimento, a
primeira visa um determinado objeto que este apresenta como de interesse; assevera João da Cruz: nas operações e atos naturais da alma, a
43. Ou irascível (ver loc. cit.). Observa Josaphat que na psicologia de São Boaventura e
dos autores escolásticos, o apetite irascível designa a capacidade ou função de reagir diante do
mal, dos obstáculos, tentando superá-los. Esse apetite se realiza primeiramente no plano
sensível, mas se encontra transposto de maneira analógica ao domínio espiritual (Contemplação e libertação, p. 105).
44. Ver S. T. I-II, 25, 4.
45. Ver S. Jean de la Croix practien de la contemplation, p. 102, n. 1.
46. Ver 1S 8, 1-3; 9, 6; 3S 16, 2; 26, 5-6; 29, 2; 1N 6, 6; CB 20-21, 4; ChB 3, 72-75.
47. Ver 1S 8, 2-4; 11, 2-3; 12, 3-6; embora, via de regra, não se acrescentarem tais
adjetivos.
48. 3S 17, 1.
49. 3S 17, 1.
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A VONTADE NA DOUTRINA DE JOÃO DA CRUZ
vontade não ama senão o que distintamente entende o entendimento50.
Por isso, diante de um bem mais elevado, abandona-se um prazer: A
fortaleza da alma consiste em suas potências, paixões e apetites, tudo
governado pela vontade51.
O inverso igualmente acontece: a intensidade de desejos obscurece
a mente, fixando sua atenção num objeto que rejeitaria caso estivesse
em outras circunstâncias52. Isto é, ao dominar a alma, a paixão a
direciona; para onde esta for, irá também toda a alma e a vontade e as
outras potências, e viverão todas cativas em tal paixão53. Quer dizer: os
apetites e paixões desregrados restringem a liberdade da alma; o que
evidentemente se desdobra em sua relação com Deus.
Para a divina união, a velha forma vinculada às criaturas precisa ser
expelida a fim de que o divino amor infunda sua nova forma, esta,
sim, unificará a afetividade, habilitando-a e dirigindo-a para encontrar-se com Deus54: tão baixa fica como aquela criatura, e de alguma
maneira mais baixa ainda, porque o amor não só iguala, mas sujeita o
amante ao que ama55.
Contudo, face aos danos dos apetites na natureza humana, que
exigem o despojamento da vontade de todos seus velhos quereres e gostos
de homem para que seu obrar de humano se torne em divino56, a afetividade é positiva. Não é o mesmo aniquilar e reformar; o interesse de
nosso autor é de apenas reorientar os apetites e as paixões quando
desordenados e voluntários. Digno de nota a este respeito é a correção
50. ChB 3, 49; ver CB 26, 8.
51. 3S 16, 2.
52. Ver 1S 8, 1-7; 12, 5; CB 16, 4-7; ChB 3, 70-75.
53. 3S 16, 6.
54. Ver 1S 4, 3; 5, 2.7; 6, 2; 14, 2; 1N 11, 1; 2N 4, 1-2; 8, 2-4; 9, 1-3; 11, 1-4; 13,
11; CB 28, 1-4.
55. 1S 4, 3.
56. 1S 5, 7.
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MARCELO MARTINS BARREIRA
feita em 1S 3, 1: os apetites necessitam ser apagados ou, melhor dizendo, mortificados. O esforço é para que deveras chegue a Deus por união
de vontade por meio da caridade; porque nela se manda ao homem que
empregue em Deus todas as potências e apetites, operações e afeições de
sua alma57. Daí o valor da afetividade ante a união da alma com Deus,
satisfazendo seus apetites e potências58; ora, isto só faz sentido ao não se
eliminarem os apetites.
Diante do exposto, infere-se que a noite escura não se traduz, em
absoluto, num estéril e contraproducente excesso de penitências, mas
numa mortificação dos apetites que aumente na alma a intensidade de
seu amor por Deus59.
Mais que renúncias materiais ou bloquear a tendência desordenada,
a noite visa lançar a alma à plenitude em Deus impulsionada por um
novo amor. Sintetiza Baruzi: A luta contra os sentidos está condenada
ao fracasso se não for completamente transfigurada por uma espécie de
triunfo de um amor sobre outro amor. Triste é a vitória de uma alma que
renuncia, mas sem estar animada por nenhum novo ardor60.
A finalidade da contemplação mística é, portanto, a experiência
fruitiva de Deus61; noutros termos: ela é apelo a uma união em que
prevalece a participação e a fruição62. Decerto, porém, o pensador espanhol não propõe um emocionalismo irracional ao relacionar vontade e apetite. Ora, sentimento não é critério de vida espiritual; aliás,
57. 3S 16, 1.
58. CB 35, 4.
59. Ver BARUZI, Saint Jean de la Croix et le problème..., p. 419-426; JUAN DE
JESUS MARIA. “El díptico Subida-Noche”. In: VV.AA. Sanjuanística. Roma: Studia,
1943, p. 71-72.
60. BARUZI, Saint Jean de la Croix et le problème..., p. 412.
61. Ver FLOUCAT, Libres réflexions..., 21. O pati divina, consoante a experiência
fruitiva e amorosa de Dionísio (ver Nomes Divinos II, 9; apud: CONTICELLO, De
Contemplatione, p. 407; ver FLOUCAT, ib., p. 32).
62. Ver VAZ, Experiência mística..., p. 16.
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conforme Capanaga: quanto mais perfeita for a vida do espírito, maior
compenetração se dá entre a faculdade de conhecer e amar. O amor busca igualar-se com a inteligência, a compenetrar-se intimamente com o
mundo objetivo63. Portanto, o entendimento está sempre presente e
atuante devido à necessária unidade das potências64.
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63. Embora não seja apenas uma lei psicológica conforme afirma Victorino Capanaga
(San Juan de la Cruz. Valor psicologico de su doctrina. s/ed., Madrid 1950, p. 227).
64. Ver ChB 3, 49.
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Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 1, p. 101-115, jan./jun. 2010
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TRADUÇÕES
Textos
O QUE É FELICIDADE
O QUE É FELICIDADE*
Tomás de Aquino
Temática dividida em oito artigos
Agora será necessário considerar o que seja felicidade; e o que se
requer para isso.
Sobre o primeiro item requerem-se oito pontos
Primeiro: Se a felicidade é algo incriado.
Segundo: Sendo algo criado, se é a operação
Terceiro: Se é uma operação da parte sensível ou da intelectiva.
Quarto: Sendo uma operação da parte intelectiva, se é uma operação do intelecto ou da vontade.
Quinto: Se é uma operação do intelecto especulativo ou prático.
Sexto: Sendo uma operação do intelecto especulativo, se consiste
na especulação das ciências especulativas.
Sétimo: Se consiste na especulação das substâncias separadas, a saber, dos anjos.
Oitavo: Se consiste somente na especulação de Deus, pela qual se
vê pela essência.
ARTIGO I – SE A FELICIDADE É ALGO INCRIADO
Em primeiro lugar, procede-se do seguinte modo. Parece que a
felicidade seja algo incriado.
* Texto tirado de AQUINO, T. Summa theologiae. Cura et studio Instituti Studiorum
Medievalium Ottaviensis. Vol. II. Studii Generalis O Pr: Ottawa: 1941, p. 718a734b. Trad. de Enio Paulo Giachini.
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TOMÁS DE AQUINO
1. Isso porque, no De Consolatione III, Boécio afirma: “É necessário confessar que Deus é a própria felicidade”.
2. Ademais, a felicidade é o bem supremo. Mas ser bem supremo
convém a Deus. E uma vez que não há muitos sumos bens, se vê que
a felicidade é idêntica com Deus.
3. Ademais, a felicidade é o fim último ao qual tende naturalmente a vontade humana como a seu fim. Mas a vontade não deve tender
como seu fim a nada a não ser a Deus; o único que se deve fruir, como
diz Agostinho. Portanto, a felicidade é idêntica com Deus.
Contra isso: Nenhum feito é incriado. Mas a felicidade do homem é algo feito: uma vez que, segundo Agostinho, De Doctrina
Christiana, I: “Deve-se fruir daquelas coisas que nos tornam felizes”.
Portanto, a felicidade não é algo incriado.
Respondo: Deve-se afirmar que, como se disse acima, fala-se de
fim de dois modos. De um modo, a própria coisa a que desejamos
alcançar, como o fim do avaro é o dinheiro. De outro modo, o próprio alcançar ou a possessão, o uso ou a fruição daquela coisa que se
deseja; como se se dissesse que a possessão do dinheiro é o fim do
avaro e fruir de alguma coisa voluptuosa é o fim do intemperante. No
primeiro modo, portanto, o fim último do homem é o bem incriado,
a saber, Deus, o único que pode preencher perfeitamente a vontade do
homem com sua bondade infinita. No segundo modo, o fim último
do homem é algo criado, algo existente nele, que nada mais é que a
apropriação ou fruição do fim último. O fim último, portanto, é
chamado de felicidade. Se a felicidade do homem, pois, é considerada
quanto à causa ou ao objeto, então será algo incriado; se considerada
quanto à própria essência da felicidade, então é algo de criado.
Em primeiro lugar, deve-se dizer que Deus é felicidade por sua
essência; é feliz, portanto, não por apropriação ou participação de alguma coisa diversa, mas por sua essência. Os homens são felizes, como
afirma Boécio, por participação; assim como são chamados também
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O QUE É FELICIDADE
de deuses por participação. A própria participação da felicidade, portanto, segundo a qual o homem é chamado de feliz, é algo criado.
Em segundo lugar, deve-se dizer que a felicidade se diz ser o bem
supremo do homem, uma vez que é a conquista ou fruição do sumo bem.
Em terceiro lugar, Deve-se dizer que a felicidade se diz o fim último, do mesmo modo que a conquista do fim é se chama de fim.
ARTIGO II – SE A FELICIDADE É UMA OPERAÇÃO
Em segundo lugar, procede-se do seguinte modo. Parece que a
felicidade não é uma operação.
1. Diz o apóstolo: “Tendes vosso fruto na santificação, mas o fim
é a vida eterna (Rm 6,22). A vida, porém, não é operação, mas o
próprio ser dos viventes. O fim último, que é a felicidade, portanto,
não é uma operação.
2. Ademais, no De consolatione, III, Boécio afirma que a felicidade
é “o estado perfeito com a agregação de todos os bens”. Mas o estado
não nomeia uma operação. Logo a felicidade não é uma operação.
3. Ademais, a felicidade significa algo existente no que é bom,
sendo a última perfeição do homem. Mas a operação não significa
algo como que existente no operante, mas antes algo que dele procede.
Portanto, a felicidade não é uma operação.
4. Ademais, a felicidade permanece na pessoa feliz. Mas a operação
não permanece, mas depassa. Portanto, a felicidade não é operação.
5. Ademais, Cada homem tem uma única felicidade. Mas as operações são muitas. Portanto a felicidade não é uma operação.
6. Ademais, a felicidade está dentro da pessoa feliz ininterruptamente. Mas a operação humana é interrompida frequentemente, como
por exemplo, no sono, por alguma outra ocupação ou pelo repouso.
Portanto a felicidade não é uma operação.
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TOMÁS DE AQUINO
Contra isso, porém, temos o que afirma o Filósofo na Ética a
Nicômaco I: “Felicidade é a operação segundo a virtude perfeita”.
Respondo: Ao afirmar que a felicidade humana é algo criado e
nele existente, é necessário afirmar que a felicidade do homem é uma
operação. A felicidade é pois a última perfeição do homem. Qualquer
intenção (intentum) é perfeito quando está em ato; pois a potência
sem o ato é imperfeita. É necessário, então, que a felicidade consista
no último ato do homem. Está claro que a operação é o último ato do
operante. É por isso que no De anima, o Filósofo o chama também de
ato segundo; pois tendo forma também pode estar operante em potência, assim como o ciente é considerante em potência. E é por isso que
em outras coisas “cada uma é dita ser por sua operação”, como se afirma no De Caelo. É necessário, então, que a felicidade do homem seja
uma operação.
Em primeiro lugar, afirme-se que a vida se diz de dois modos. De um
modo, o próprio ser do vivente. E assim a felicidade não é vida; foi demonstrado, pois, que o ser de um homem, quem quer que seja, não é a
felicidade do homem; é só a felicidade de Deus que é seu ser. – De outro
modo, se diz que a própria vida é a operação do vivente, segundo a qual o
princípio da vida é conduzido a ato; e assim chamamos de vida ativa ou
contemplativa ou voluptuosa. E desse modo, ao último fim, chama-se de
vida eterna. Isso fica patente pelo que afirma Jo 17,3: “Esta é a vida eterna,
que conheçam a ti, Deus verdadeiro e uno”.
Em segundo lugar, diga-se que, ao definir a felicidade, Boécio considerou-a como razão comum da felicidade. A razão comum da felicidade,
portanto, é que seja bem comum perfeito; e quis dizer isso ao afirmar que
é “um estado perfeito pela agregação de todos os bens”, com o que nada
mais quer deixar entender que a pessoa feliz está em estado do bem perfeito. Mas Aristóteles expressou a própria essência da felicidade, demonstrando através de que o homem estaria em tal estado, uma vez que isso se dá
através de certa operação. E assim na Ética a Nicômaco também ele demonstrou que “a felicidade é o bem perfeito”.
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O QUE É FELICIDADE
Em terceiro lugar, diga-se que como se afirma na Metafísica IX, a
ação é de dois modos. Uma que procede do que opera para a matéria
exterior, como queimar e serrar. E essa operação não pode ser a felicidade; pois tal operação não é ação e perfeição do agente, mas antes do
paciente, como se diz ali mesmo. Outro modo é a ação que permanece no próprio agente, como o sentir, o inteligir o querer, e esse tipo de
ação é perfeita e ato do agente. E tal operação pode ser a felicidade.
Em quarto lugar, deve-se afirmar que, uma vez que a felicidade
significa certa perfeição última, segundo o que diversas coisas capazes
de felicidade podem atingir diversos graus de perfeição, então é necessário afirmar que a felicidade se define de diversos modos. Isso porque, em Deus, há a felicidade por essência: porque o seu próprio ser é
sua operação, pois não frui de outra coisa mas de si mesmo. Nos anjos, porém, a felicidade é a perfeição última segundo certa operação,
pela qual estão conjugados com o bem incriado; e neles essa operação
é única e sempiterna. Nos homens, porém, segundo o estado da vida
presente, é a última perfeição de acordo com a operação pela qual o
homem está ligado a Deus; mas essa operação não pode ser contínua,
e consequentemente tampouco única, pois a operação é multiplicada
pelo interseccionamento. E por causa disso, no estado da vida presente, não pode haver felicidade perfeita a partir do homem. Sendo que
na Ética I, o Filósofo, tendo colocado a felicidade humana nesta vida,
afirma que ela é imperfeita, concluindo após muitos argumentos: “Chamamos de felizes, portanto, enquanto homens”. A nós porém nos foi
prometida por Deus a felicidade perfeita, quando seremos “como anjos no céu”, segundo afirma Mt 22,30.
Mas no que respeita àquela felicidade perfeita, portanto, cessa toda
e qualquer objeção, porque, pela operação una, contínua e sempiterna,
a mente humana se une a Deus naquele estado de felicidade. Mas na
vida presente, o quanto carecemos de unidade e continuidade de tal
operação é o tanto que carecemos da perfeição da felicidade. Mesmo
assim, há certa participação na felicidade; e quanto mais contínua e
una puder ser a operação, tanto mais está na posse da razão da felicidaScintilla, Curitiba, vol. 7, n. 1, p. 119-137, jan./jun. 2010
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TOMÁS DE AQUINO
de. E, portanto, na vida ativa, que se ocupa de muitas coisas, há menos
de razão da felicidade do que na vida contemplativa, que versa sobre
uma coisa somente, a saber, sobre a contemplação da verdade. E mesmo que às vezes o homem não opere em ato esse tipo de operação,
porque a tem de prontidão, sempre pode operá-la; e também porque
subordina essa mesma cessação, que se dá por exemplo, pelo sono ou
por alguma outra ocupação natural, à operação predita; parece que a
operação seja quase contínua.
E através disso fica clara a solução do quinto e do sexto pontos.
ARTIGO III – SE A FELICIDADE É UMA OPERAÇÃO DA PARTE SENSÍVEL OU APENAS DA INTELECTIVA
Em relação ao terceiro, procede-se do seguinte modo. Parece que a
felicidade consiste também numa operação dos sentidos.
1. No homem não se encontra nenhuma operação mais nobre
que a sensitiva com exceção da intelectiva. Mas em nós a operação
intelectiva depende da operação sensitiva, pois “não podemos inteligir
sem imagens (Phantasmate)”, como se diz no De anima, III. Portanto, a felicidade reside também na operação sensível.
2. Ademais, no De consolatione, III, Boécio afirma que a felicidade
é “um estado perfeito pela agregação de todos os bens”. Certos bens
são sensíveis, que alcançamos pela operação dos sentidos. Conclui-se
portanto que se requer a operação dos sentidos para a felicidade.
3. Ademais, “a felicidade é o bem perfeito”, como se demonstra na
Ética I; e isso não seria tal, a não ser que por ela o homem se aperfeiçoasse em todas as suas partes. Mas certas partes da alma são aperfeiçoadas pelas operações sensíveis. Portanto, a operação sensível é requerida para a felicidade.
Mas contra. Com os animais brutos temos em comum a operação sensível, mas não a felicidade. Portanto, a felicidade não reside na
operação sensível.
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O QUE É FELICIDADE
Respondo. Deve-se dizer que algo pode pertencer à felicidade de
três modos: de um modo, essencialmente; de outro modo,
antecedentemente; no terceiro modo, consequentemente. A operação
dos sentidos não pode pertencer à felicidade essencialmente. Isso porque a felicidade do homem consiste na união do mesmo com o bem
incriado, que é o fim último, como ficou demonstrado acima, com o
qual o homem não pode se unir pela operação dos sentidos. E de
modo semelhante também porque, como foi demonstrado, a felicidade do homem não reside nos bens corpóreos: os quais só atingimos
pela operação dos sentidos. – Mas as operações dos sentidos podem
pertencer à felicidade de modo antecedente e consequente. De modo
antecedente segundo a felicidade imperfeita, que pode ser tida na presente vida, uma vez que a operação do intelecto exige previamente a
operação dos sentidos. – De modo consequente, naquela felicidade
perfeita que se espera no céu, porque após a ressurreição, dessa felicidade da alma, como afirma Agostinho na epístola Ad Dioscorus, se dá
certa confluência no corpo e nos sentidos corpóreos, para serem aperfeiçoados em suas operações; isso será demonstrado mais claramente
abaixo ao tratar da ressurreição. Mas então a operação pela qual a mente humana se une com Deus não dependerá dos sentidos.
Em primeiro lugar, portanto, deve-se dizer que aquela objeção
demonstra que se requer a operação dos sentidos, antecedentemente,
para a felicidade imperfeita, que pode ser possuída nesta vida.
Em segundo lugar, deve-se dizer que a felicidade perfeita, que possuem os anjos, reúne em si todos os bens por estar conectada à fonte
universal de todo bem; não que precise dos bens singulares em particular. Mas nesta felicidade imperfeita, se requer a congregação dos bens
suficientes para a operação perfeitíssima desta vida.
Em terceiro lugar, deve-se dizer que na felicidade perfeita se aperfeiçoa todo o homem, mas na parte inferior, por redundância da parte
superior. Mas na felicidade imperfeita da vida presente, ao contrário,
partindo da perfeição da parte inferior chega-se à perfeição da superior.
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TOMÁS DE AQUINO
ARTIGO IV – SENDO A FELICIDADE DA PARTE
INTELECTIVA, SE É OPERAÇÃO DO INTELECTO OU DA
VONTADE
Em relação ao quarto ponto, procede-se do seguinte modo: Parece
que a felicidade consiste no ato da vontade.
1. No De civitate Dei, XIX, Agostinho afirma que a felicidade do
homem consiste na paz; e no salmo 147,3: “Quem pôs paz em tuas
fronteiras”. Mas a paz pertence à vontade. Portanto, a felicidade do
homem reside na vontade.
2. Ademais, a felicidade é o sumo bem. Mas o bem é objeto da
vontade. Portanto, a felicidade consiste na operação da vontade.
3. Ademais, à motivação primeira corresponde o fim último: assim como o fim último de todo o exército é a vitória, que é o fim do
general que motiva a todos. Mas a primeira motivação para a operação
é a vontade, porque motiva as outras forças, como se dirá abaixo. Portanto, a felicidade pertence à vontade.
4. Ademais, se a felicidade é alguma operação, é necessário que seja
a operação mais nobre do homem. Mas a dileção de Deus, que é um
ato da vontade, é mais nobre do que o conhecimento de Deus, que é
uma operação do intelecto, como mostra o Apóstolo na 1Cor 13.
Parece, portanto, que a felicidade consiste no ato da vontade.
5. Ademais, no De trinitatis, XIII, Agostinho afirma que “é feliz
aquele que tem tudo que quer e nada quer mal”. E logo depois afirma:
“E se aproxima do feliz aquele que quer bem o que quer que queira...;
as coisas boas, portanto, tornam feliz, e a própria boa vontade já tem
alguma coisa de seus bens”. A felicidade, portanto, consiste no ato da
vontade.
Mas em contrário, é o que diz o Senhor em Jo 17,3: “Essa é a
vida eterna, que conheçam a ti, Deus uno e verdadeiro”. Mas a vida
eterna é o fim último, como foi referido. Assim, a felicidade do homem reside no conhecimento de Deus, que é um ato do intelecto.
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O QUE É FELICIDADE
Respondo, dizendo que, como se disse acima, duas coisas são necessárias para a felicidade: uma, que é o ser da felicidade; outra, que é
como que um acidente da mesma, a saber, o deleite que a acompanha.
Digo portanto que quanto ao que é essencialmente a própria felicidade, é impossível que consista no ato da vontade. Das premissas, portanto, fica evidente que a felicidade é a consecução do fim último.
Mas a consecução do fim não consiste no próprio ato da vontade. Mas
a vontade se constitui ao desejar o fim e o ausente; mas quando repousa no presente deleita-se nele. Fica claro porém que o próprio desejo
do fim não é a consecução do fim, mas a motivação para o fim. Mas
advém o deleite à vontade quando está presente o fim; e não se dá o
contrário, a saber, que algo se faça presente pelo fato de a vontade se
deleitar nele. É necessário, portanto, que haja algo distinto do ato da
vontade, pelo qual o próprio fim se torne presente à vontade. – E isso
aparece claramente a respeito dos fins sensíveis. Se o conseguir dinheiro se desse pelo ato da vontade, de imediato quem o desejasse já o teria
conseguido desde o princípio, no momento em que o quer ter. Mas
este lhe é ausente desde o princípio; mas se consegue o dinheiro pelo
fato de tomá-lo com a própria mão, ou de algum outro modo; e
então deleita-se por ter alcançado o dinheiro. Assim acontece também
em relação ao fim inteligível. Pois queremos conseguir o fim inteligível desde o princípio; mas nós o conseguimos quando se nos torna
presente através do ato do intelecto; e então a vontade deleitada repousa no fim já alcançado.
Assim, portanto, a essência da felicidade consiste no ato do intelecto, mas à vontade pertence o deleite, que se segue da felicidade; de
acordo com isso, em Confissões X, Agostinho afirma que “a felicidade é
o gáudio da verdade”, uma vez que o próprio gáudio é a consumação
da felicidade.
Quanto ao primeiro, portanto, deve-se dizer que a paz pertence ao
fim último do homem e não como se ela fosse essencialmente a própria felicidade, mas porque se porta para com ela antecedente e
consequentemente. Antecedentemente, pois, enquanto já foram reScintilla, Curitiba, vol. 7, n. 1, p. 119-137, jan./jun. 2010
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TOMÁS DE AQUINO
movidas todas as perturbações e os empecilhos frente ao fim último.
Mas consequentemente enquanto o homem, tendo alcançado o fim
último, já se demora pacífico, com o desejo aquietado.
Quanto ao segundo, deve-se dizer que o primeiro objeto da vontade não é o seu ato, assim como o primeiro objeto do ver não é a
visão, mas o visível. Assim, do fato mesmo de a felicidade pertencer à
vontade como seu primeiro objeto, segue-se que não pertence a ela
como se fosse seu ato.
Em terceiro lugar, deve-se dizer que o intelecto apreende o fim
primeiramente que a vontade, embora o motivo para o fim comece na
vontade. E, assim, deve-se à vontade aquilo que se consegue por último na consecução do fim, a saber, o deleite ou a fruição.
Em quarto lugar, deve-se dizer que, quanto ao movimento, a
dileção precede o conhecimento, mas o conhecimento precede a dileção
no alcançar. Não se ama a não ser que se conheça primeiro, afirma
Agostinho no De trinitate X. E assim atingimos o fim inteligível primeiramente pela ação do intelecto; assim como também atingimos
primeiramente o fim sensível através da ação dos sentidos.
Em quinto lugar, deve-se dizer que aquele que tem tudo que quer
é feliz pelo fato de ter aquelas coisas que quer; o que pois é através de
outra coisa que não pelo ato da vontade. Mas para a felicidade se requer não querer nada mal, segundo certa disposição devida à mesma.
A boa vontade, porém, é colocada entre o número dos bens que tornam feliz, na medida em que é certa inclinação nela; assim como o
movimento é reduzido ao gênero de sua determinação, e a alteração à
qualidade.
ARTIGO V – SE A FELICIDADE É UMA OPERAÇÃO DO INTELECTO ESPECULATIVO OU DO PRÁTICO
Quanto ao quinto artigo, procede-se do seguinte modo. Parece
que a felicidade consista na operação do intelecto prático.
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O QUE É FELICIDADE
1. O fim último de qualquer criatura consiste em assemelhar-se a
Deus. Mas o homem se assemelha a Deus pelo intelecto prático, que é
causa das coisas intelectuais, mais do que pelo intelecto especulativo,
cuja ciência recebe através das coisas. A felicidade do homem, portanto, consiste mais na operação do intelecto prático do que na do especulativo.
2. Ademais, a felicidade é o bem perfeito do homem. Mas o intelecto prático se ordena ao bem mais do que o especulativo, que se
ordena ao verdadeiro. É assim também que somos chamados de bons,
de acordo com a perfeição do intelecto prático e não de acordo com a
perfeição do intelecto especulativo; de acordo com esse, antes, somos
chamados de cientes ou inteligentes. Portanto, a felicidade do homem
consiste mais no ato do intelecto prático do que no do especulativo.
3. Ademais, a felicidade é certo bem do próprio homem. O intelecto especulativo se ocupa mais com as coisas que estão fora do homem, mas o intelecto prático se ocupa com aquelas coisas que são do
próprio homem, a saber, suas operações e paixões. Portanto, a felicidade do homem consiste mais na operação do intelecto prático do que
na do intelecto especulativo.
Contra isso, porém, temos o que disse Agostinho no De trinitate
I: “Nos é prometida a contemplação, fim de todas as ações e perfeição
eterna das alegrias”.
Respondo, dizendo que a felicidade consiste mais na operação do
intelecto especulativo do que na do prático. É o que fica evidente a
partir de três pontos. Em primeiro lugar, do fato de que, se a felicidade
do homem é uma operação, é necessário que seja uma operação humana ótima. Mas uma operação humana ótima é aquela de ótima potência e referida a um objeto ótimo. A potência ótima porém é a do
intelecto, cujo objeto ótimo é o bem divino, que não é objeto do
intelecto prático mas do especulativo. E assim a felicidade consiste
maximamente em tal operação, a saber, na contemplação das coisas
divinas. E visto que “a cada um parece-lhe ser aquilo que há de ótimo
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TOMÁS DE AQUINO
nele”, como se diz na Ética IX e X, por isso, tal operação é maximamente própria ao homem e maximamente deleitável. – Em segundo
lugar, o mesmo se mostra do fato de que a contemplação é quista
maximamente por causa de si mesma. O ato do intelecto prático não
é quisto por causa de si mesmo, mas por causa da ação. As próprias
ações, portanto, são subordinadas a algum fim. Sendo assim, é manifesto que o fim último não pode consistir na vida ativa, que pertence
ao intelecto prático. – Em terceiro lugar, o mesmo se mostra do fato
de que na vida contemplativa o homem tem comunidade com os
superiores, a saber, com Deus e com os anjos, aos quais se assemelha
pela felicidade. Mas nas coisas que pertencem à vida ativa, também os
outros animais têm comunidade, de algum modo, com o homem,
embora de modo imperfeito.
E assim a felicidade última e perfeita, esperada para a vida futura,
consiste total e primordialmente na contemplação. Mas a felicidade
imperfeita, que se pode ter aqui, consiste primeira e principalmente na
contemplação: de modo secundário, porém, também na operação do
intelecto prático, que ordena as ações e paixões humanas, como afirma
a Ética X.
Quando ao primeiro ponto, portanto, deve-se dizer que a predita
semelhança que o intelecto prático tem para com Deus se dá segundo
proporcionalidade, ou seja, está para seu objeto conhecido como Deus
está para o seu. Mas a semelhança que tem o intelecto contemplativo
para com Deus se dá segundo união ou informação, que é uma semelhança muito maior. – E além disso, pode-se dizer que em relação a
seu principal objeto conhecido, que é sua essência, Deus não tem um
conhecimento prático mas apenas especulativo.
Quanto ao segundo, deve-se dizer que o intelecto prático possui
um bem que está fora dele mesmo; mas o intelecto especulativo possui um bem que está nele mesmo, a saber, a contemplação da verdade.
E se esse bem for perfeito, dele o homem todo será aperfeiçoado e se
tornará bom; coisa que o intelecto prático não tem, mas a isso ordena.
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O QUE É FELICIDADE
Quanto ao terceiro, deve-se dizer que aquela razão procederia se o
homem fosse para si mesmo seu fim último e então a felicidade seria a
consideração e a ordenação de seus atos e paixões. Mas como o fim
último do homem é outro bem extrínseco, a saber, Deus, a quem
atingimos pela operação do intelecto contemplativo, assim a felicidade do homem consiste mais na operação do intelecto especulativo do
que na operação do intelecto prático.
ARTIGO VI – SE A FELICIDADE CONSISTE NA CONSIDERAÇÃO DAS CIÊNCIAS ESPECULATIVAS
Quanto ao artigo VI deve-se proceder da seguinte forma. Parece
que a felicidade do homem consiste na consideração das ciências
especulativas.
1. No livro de Ética, o Filósofo diz que “a felicidade é a operação
segundo a virtude perfeita”. E ao distinguir as virtudes, não admite a
não ser três virtudes especulativas: ciência, sabedoria e intelecto; todas
elas pertencem à consideração das ciências especulativas. Portanto, a
última felicidade do homem consiste na consideração das ciências
especulativas.
2. Ademais, parece que a felicidade última do homem seja aquilo
que é desejado naturalmente por todos por causa de si mesmo. Mas a
consideração das ciências especulativas é desse modo porque, como se
diz na Metafísica I, “todos os homens desejam saber por natureza”; e
logo a seguir afirma que as ciências especulativas são desejadas por si
mesmas. Portanto, a felicidade consiste na consideração das ciências
especulativas.
3. Ademais, a felicidade é a última perfeição do homem. Mas qualquer coisa tem seu aperfeiçoamento ao ser conduzida de potência para
ato. O intelecto humano é conduzido a ato pela consideração das ciências especulativas. Parece, portanto, que a felicidade última do homem
consista nesse tipo de consideração.
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TOMÁS DE AQUINO
Contra isso, está o que disse Jeremias 9,23: “Que o sábio não se
glorie de sua sabedoria”. E está falando da sabedoria das ciências
especulativas. Portanto, a felicidade última do homem não consiste
nessa consideração.
Respondo dizendo que, como foi dito acima, a felicidade humana é de dois modos: uma perfeita e outra imperfeita. Mas é necessário
compreender a felicidade perfeita como a que alcança a verdadeira razão da felicidade; mas a felicidade imperfeita não alcança mas participa
de certa semelhança particular da felicidade. Assim como é perfeita a
prudência no homem em quem há a razão das coisas da ação; mas a
prudência imperfeita se dá nalguns animais brutos nos quais há certos
instintos particulares para certas obras parecidas com as obras da prudência. Portanto, a felicidade perfeita não pode consistir essencialmente na consideração das ciências especulativas. Para se ver isso de modo
evidente deve-se advertir que a consideração da ciência especulativa
não se estende além da virtude dos princípios daquela ciência, pois nos
princípios da ciência está contida virtualmente toda ciência. Mas os
primeiros princípios das ciências especulativas são hauridos pelos sentidos; como deixa evidente o Filósofo no começo da Metaf. e no final
de Post. Sendo assim, toda consideração das ciências especulativas não
pode se estender além donde pode conduzir o conhecimento das coisas sensíveis. A felicidade última do homem, que é a sua perfeição
última, portanto, não pode consistir no conhecimento das coisas sensíveis. Não se pode perfazer, pois, qualquer coisa a partir de algo inferior a não ser que no inferior haja alguma participação do superior. É
manifesto que a forma da pedra ou de qualquer outra coisa sensível é
inferior ao homem. Desse modo, o intelecto não se perfaz pela forma
da pedra, enquanto tal forma, mas enquanto nela participa algo semelhante àquilo que está acima do intelecto humano, a saber, o lúmen
inteligível ou algo assim. Tudo que é por outro se reduz ao que é por
si. Por isso, é necessário que a perfeição última do homem se constitua
pelo conhecimento de alguma coisa que está acima do intelecto humano. Foi demonstrado, porém, que não se pode chegar ao conheci-
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O QUE É FELICIDADE
mento das substâncias separadas, que estão acima do intelecto humano, através das coisas sensíveis. Resta então que a felicidade última do
homem não pode se constituir na consideração das ciências
especulativas. – Mas, como nas formas sensíveis participa alguma semelhança das substâncias superiores, assim a consideração das ciências
especulativas se constitui numa certa participação da felicidade verdadeira e perfeita.
Ao primeiro ponto, portanto, deve-se dizer que, no livro da Ética,
o Filósofo fala da felicidade imperfeita, que pode ser alcançada nesta
vida, como se disse acima.
Ao segundo ponto, deve-se dizer que, por natureza, deseja-se não
somente a felicidade perfeita, mas também qualquer semelhança com
ou participação nela.
Ao terceiro ponto, deve-se dizer que, pela consideração das ciências especulativas, nosso intelecto é levado de algum modo ao ato mas
não ao ato último e completo.
ARTIGO VII – SE A FELICIDADE CONSISTE NO CONHECIMENTO DAS SUBSTÂNCIAS SEPARADAS, A SABER, OS
ANJOS
Em relação ao artigo 7, procede-se do seguinte modo: Parece que
a felicidade do homem consiste no conhecimento das substâncias separadas, a saber, os anjos.
1. Afirma, pois, Gregório, nalguma de suas homilias: “Para nada serve
assistir as festas dos homens se não contiverem as festas dos anjos”; e com
isso designa a felicidade definitiva. Mas podemos participar das festas dos
anjos através de sua contemplação. Parece, portanto, que a felicidade última do homem consista na contemplação dos anjos.
2. Ademais, a perfeição última de qualquer coisa é que se una com
seu princípio, visto que também o círculo é chamado de figura perfei-
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TOMÁS DE AQUINO
ta porque seu princípio e fim são idênticos. Mas o princípio do conhecimento humano se dá através dos próprios anjos, através dos quais os
homens são iluminados, como afirma Dionísio no capítulo IV do De
Cael. Hier. Portanto, a perfeição do intelecto humano está na contemplação dos anjos.
3. Ademais, qualquer criatura é perfeita quando está unida à natureza superior, assim como a perfeição última do corpo está na união
com a natureza espiritual. Mas na ordem da natureza, acima do intelecto humano estão os anjos. Portanto, a perfeição última do intelecto
humano é que esteja unido pela contemplação aos mesmos anjos.
Contra isso, porém, temos o que diz Jeremias 9,24: “Quem se
gloria glorie-se nisso, em saber e conhecer a mim”. Portanto, a última
gloria ou felicidade do homem em nada mais consiste que no conhecimento de Deus.
Respondo, dizendo que a felicidade perfeita do homem, como se
disse, não consiste no fato de a perfeição do intelecto estar na participação de algo, mas no fato de ser tal por essência. É manifesto portanto que algo é perfeição de alguma potência na medida em que a ele
pertence a razão do próprio objeto daquela potência. Mas o objeto
próprio do intelecto é o verdadeiro. Quem portanto possui uma verdade participada, aquilo que ele contempla não constitui o intelecto
perfeito com a perfeição última. E uma vez que, como se diz na
Metafísica II, a disposição das coisas é a mesma no ser e na verdade, o
que quer que seja ente por participação, é verdadeiro por participação.
Os anjos portanto possuem um ser participado: uma vez que é somente em Deus que seu ser é sua essência, como ficou demonstrado
na primeira parte. Resta assim que apenas Deus é verdade por essência,
e que sua contemplação torna feliz perfeitamente. – Mas nada proíbe
que se aprecie alguma felicidade imperfeita na contemplação dos anjos; e inclusive mais elevada que a consideração das ciências especulativas.
Em relação ao primeiro ponto, deve-se dizer que assistiremos às
festas dos anjos não só contemplando os anjos mas contemplando
Deus, junto com eles.
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O QUE É FELICIDADE
Em relação ao segundo, deve-se dizer que, de acordo com aqueles
que supõem que as almas humanas teriam sido criadas pelos anjos,
parece ser conveniente e satisfatório que a felicidade do homem consista na contemplação dos anjos, como que numa ligação com seu
princípio. Mas isso é um erro, como se mostrou na primeira parte.
Uma vez que a última perfeição do intelecto humano se dá pela união
com Deus, que é princípio da criação da alma e de sua iluminação.
Mas o anjo ilumina como um servo, como se obteve na primeira parte. Sendo assim, ajuda o homem com seu ministério para que alcance
a felicidade, e não é pois objeto da felicidade humana.
Em relação ao terceiro, deve-se dizer que para a natureza superior
seja alcançada pela natureza inferior requerem-se duas coisas. Uma,
segundo o grau de potência participante: e assim a perfeição última do
homem estaria no fato de o homem alcançar contemplando como os
anjos atingem sendo contemplados. Outra, como o objeto é atingido
pela potência, e esta é a perfeição última de qualquer potência para que
alcance aquilo em que se encontra plenamente a razão de seu objeto.
ARTIGO VIII – SE A FELICIDADE DO HOMEM ESTÁ NA
VISÃO DA ESSÊNCIA DIVINA
Quanto ao oitavo, procede-se assim: parece que a felicidade do
homem não está na visão da própria essência divina.
No capítulo I da De Myst. Theol., Dionísio afirma que, através
daquilo que é o intelecto supremo, o homem se une a Deus como a
algo totalmente ignorado. Mas aquilo que se vê por essência não é
totalmente ignorado. Portanto, a última perfeição do intelecto, ou
felicidade, não consiste em que Deus seja visto por essência.
Ademais, a perfeição de naturezas mais elevadas é mais elevada.
Mas a perfeição própria do intelecto divino é que veja sua essência.
Portanto, a perfeição última do intelecto humano não alcança isso,
mas é inferior a tal.
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 1, p. 119-137, jan./jun. 2010
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TOMÁS DE AQUINO
Contra isso, porém, temos o que afirma Jo 3,2: “Quando vier,
seremos semelhantes a ele, e o veremos como ele mesmo é”.
Respondo dizendo que a felicidade última e perfeita não pode ser
a não ser na visão da essência divina. Para vermos isso é necessário
considerar duas coisas. Em primeiro lugar, que o homem não é perfeitamente feliz enquanto ainda tiver algo que deseja e queira. Em segundo lugar, que se aprecia a perfeição de qualquer potência segundo a
razão de seu objeto. “Mas o objeto do intelecto é aquilo que algo é (quod
quid est), ou seja, a essência da coisa, como diz o De an. III. Desse modo,
a perfeição do intelecto progride na medida em que conhece a essência de
alguma coisa. Portanto, se o intelecto de alguém conhece a essência de
algum efeito, pela qual não se pode conhecer a essência da causa, a fim de
que se saiba o que é a causa, não se diz que o intelecto teria atingido a causa
de forma absoluta, muito embora, pelo efeito, se possa conhecer se a causa
é. Assim, conhecendo o efeito, e sabendo que possui uma causa, resta
naturalmente o desejo do homem de saber da causa, o que é. E esse
desejo é de admiração e causa de inquirições, como se diz no começo
da Metafísica. Como quando alguém, conhecendo o eclipse solar, considera que procede de alguma causa, da qual se admira, não sabendo o
que seja, e admirando inquire. E não aquiesce nessa inquirição até alcançar conhecer a essência da causa.
Portanto, se, conhecendo a essência de algum efeito criado, o intelecto humano não conhece de Deus a não ser se é ou não, sua perfeição
ainda não consegue alcançar a causa primeira de modo absoluto, mas
ainda lhe resta o desejo natural de inquirir pela causa. Sendo assim,
ainda não é perfeitamente feliz. Para a felicidade perfeita, portanto,
requer-se que o intelecto atinja a própria essência da causa primeira. E
assim teria sua perfeição pela união com Deus, como o único objeto
em que consiste a felicidade do homem, como se disse acima.
Sobre o primeiro ponto, portanto, deve-se dizer que Dionísio falou do conhecimento daqueles que estão a caminho, que tendem à
felicidade.
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Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 1, p. 119-137, jan./jun. 2010
O QUE É FELICIDADE
Sobre o segundo, diga-se que, como se disse acima, pode-se conceber o fim de dois modos. De um modo, quanto à própria coisa que
se deseja; e nesse modo o fim da natureza superior, da natureza inferior
e até de todas as coisas é idêntico, como se disse acima. De outro,
quanto à consecução dessa coisa; e assim é diferente o fim da natureza
superior e da inferior, segundo é diversa seu comportamento
(habitudinem) para com tal coisa. Assim, pois, a felicidade de Deus é
mais elevada nos que compreendem sua essência pelo intelecto, do
que nos homens ou anjos que vêem e não compreendem.
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 1, p. 119-137, jan./jun. 2010
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O REPOUSO DE DEUS
O REPOUSO DE DEUS
Mestre Eckhart *
Assim, pois, foram acabados os céus e a terra. E abaixo:
Descansou no sétimo dia de toda obra que realizara.
[142] Repara: A respeito do descanso de Deus, conforme se diz
que Deus descansou de suas obras, muitos santos e exegetas escreveram diversas e variadas coisas. Sem querer julgar a respeito da verdade
dessas interpretações, deve-se notar aqui quatro pontos.
Primeiro. Como Deus, e ele somente, descansa, e só em si mesmo; e novamente ele e somente ele dá descanso e faz descansar tudo
que está abaixo dele, e tudo descansa nele e apenas nele.
Em segundo lugar é de se notar o que significa a autoridade que
diz: de toda sua obra que realizara.
Terceiro, deve-se responder a algumas objeções que parecem se
contrapor ao que se disse aqui.
Quarto. A respeito daquilo que aqui se disse que Deus descansou,
são feitas algumas exposições literais, breves e fáceis.
[143] Ao primeiro desses quatro pontos, proponho a cada uma
das partes um único argumento silogístico. O ser é o único que repousa em si mesmo e dá descanso a si mesmo, e novamente o mesmo ser
e só ele dá descanso e faz descansar em si mesmo e só nele todas as
coisas que estão abaixo dele. Ora, Deus, e somente ele, é o próprio ser.
Assim portanto Deus descansa em si mesmo e faz todas as coisas descansarem nele.
* Extraído de Magistri Echardi. Prologi in opus tripartitum... Intr. e edit. por Konrad
Weiss, 1964. Trad. de Fr. Orlando Bernardi.
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 1, p. 139-156, jan./jun. 2010
139
MESTRE ECKHART
A menor fica clara a partir da Obra das proposições e do Prólogo
geral.
A maior explica-se assim: o ser, como o primeiro e por conseguinte imóvel, descansa, posto que antes de todo móvel há o imóvel. E
novamente, o ser, ele mesmo, como o supremo e por conseguinte
perfeitíssimo, é imóvel e em repouso. A razão disso é que “o movimento é um ato do que é imperfeito”1. É claro portanto que o ser, ele
mesmo, está em repouso e descansa em si mesmo e não em outro, seja
porque nele estão todas as coisas, seja porque fora de seu ser absolutamente nada existe. Por isso mesmo, o próprio ser repousa apenas em si
mesmo, e novamente só ele repousa em si mesmo. Isso fica evidente a
partir do que se disse antes, a saber, que nenhuma outra coisa é o primeiro nem o mais perfeito.
[144] Ademais, todas as coisas apetecem, buscam e desejam2 o
próprio ser, enquanto é o bem, ou melhor, a razão de ser do bem; e
por conseguinte todas as coisas inquietas em si mesmas nele encontram repouso. O desejo e o apetite são portanto movimentos, e quando alcançam o que desejam3, nele repousam. Portanto, tudo que está
abaixo do ser é sem dúvida inquieto em si, e repousa no próprio ser.
Quanto a isso, então, evidencia-se maiormente que o ser, e somente
ele mesmo, repousa em si e somente em si mesmo, e que tudo que
está abaixo dele nele repousa.
1. ARISTÓTELES, De anima III c. 7 a 6 (G c. 7 431 a 6.
2. AVICENA, Met. VIII c. 6 (99vb 65-100ra 10): “Ter necessidade de ser é, de per si,
bondade pura; e tudo que existe deseja plenamente a bondade. Mas aquilo que toda a coisa
deseja é o ser, e a perfeição do ser, enquanto é ser. ... Por isso, o que verdadeiramente é
desejado é o ser e, por essa razão, o ser é a bondade pura e a perfeição pura. E a bondade
plena é aquilo que toda a coisa deseja conforme seu modo de ser, porque por ela se
aperfeiçoa seu ser. ... Portanto, o ser é a bondade e a perfeição do ser é a bondade do ser. O
ser, no entanto, ao qual não está ligada a privação, nem a privação da substância, nem a
privação de algo que seja da substância, mas sempre está em ato: esse mesmo é o bem puro”.
3. S. TOMÁS, Sent. III d. 26 q. 2 a. 3 q. 2: “o desejo comporta um movimento ainda
não havido naquele que é digno de ser amado. Por essa razão, o movimento do apetecer
começa no desejo e termina no amor completo”.
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O REPOUSO DE DEUS
[145] E ainda vemos manifestamente que toda operação na arte
ou na natureza descansa quando alcançou o ser de sua obra. Porquanto, o construtor da casa descansa uma vez tendo alcançado o ser da
casa. Assim que a casa passa a existir, portanto, também a casa passa a
ter ser; e assim também de outros. “Ao se alcançar o estado desejado”,
o movimento se aquieta, como diz o filósofo4. O ser de todas as coisas
e todo ser da arte e da natureza, enquanto ser, isto é, na razão o faz ser,
depende de Deus e dele somente. Assim, portanto, na medida em que
dá ser às coisas, Deus lhes dá repouso e as faz repousar. E por ora isso
basta quanto ao primeiro ponto.
[146] Mas a respeito do segundo ponto, a saber, que se diz Deus
descansou de toda obra que realizara, note-se em primeiro lugar que,
agindo, Deus descansa, por causa de seis razões.
Em primeiro porque assim como as criaturas têm seu ser, e este
seu ser ou o ser para elas consiste em receber ser, assim o ser de Deus é
doar ser, porque em geral para ele o ser é agir ou operar.
Em segundo lugar, descansa operando porque junto a ele e nele o
ser do operar e do que é operado são simultâneos e idênticos. Portanto, tudo que está em operação descansa quando já alcança o termo de
sua ação ou quando sua obra existe ou tem ser.
Terceiro. Descansa operando, porque opera pelo querer. Nada lhe
oferece resistência, e mais que isso, tudo que age e realiza recebe dele
todo seu ser e obedece ao seu gesto.
[147] Ademais, quarto: quanto mais primordial e superior for o
agente, tanto mais naturalmente, mais facilmente, mais doce e suavemente age, conforme foi exposto acima no A natureza do superior5.
Deus portanto é o primeiro e supremo agente. Com efeito, opera sem
esforço, repousando, com deleite e doçura e de modo suavíssimo, segundo a palavra: “dispôs suavemente todas as coisas” (Sb 8,1).
4. ARISTÓTELES, De gen. et corr. I c. 7 (A c. 7 324 b 17).
5. Esta obra não existe.
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MESTRE ECKHART
[148] E ainda, quinto, assim: operando, Deus repousa e dá repouso à sua obra. A razão disso está em que o ser, a natureza e o sumo bem
de toda criatura, assim como o que há de melhor, de mais doce e mais
repousante para ela, consiste em que Deus queira que ela seja e no
modo como Deus o quer, como se disse acima na obra do sexto dia. E
assim, então, tanto Deus operando, quanto a criatura sendo operada,
repousam naturalmente, e, a partir daí, o operar e o ser operado deleitam a ambos. Portanto, tudo que pertence à natureza da coisa é doce e
pleno de repouso.
[149] E ainda a sexta razão é que o próprio devir das coisas e seu
movimento são fixados pelo ser e no ser, que de Deus provém, e por
conseguinte nele repousa. O ser é o que há de mais desejável, aquiescendo, suavizando e fazendo todas as coisas repousar. Com isso concorda o que disse Agostinho no livro I das Confissões: “fizeste-nos, Senhor, para ti; e inquieto está nosso coração, até que repouse em ti”; e
Boécio, falando mais universalmente, diz assim: “permanecendo estável, permites que tudo se mova”6.
[150] A respeito do segundo ponto principal, note-se que se afirma: de toda obra que realizara. Cinco coisas devem ser vistas aqui.
Primeira, o sentido disso é que Deus fez e “operou” todas as obras
que são e se fazem “até agora”, conforme a palavra de João: “Tudo foi
feito por ele e sem ele nada foi feito” (Jo 5,17). “Operaste todas as
nossas obras, Senhor” (Is 26,12,13). “Nossas obras”: veja que, embora
sejam “nossas” e feitas por nós, todavia é Deus que tudo opera”7. –
“Dele, nele e por ele são todas as coisas” (Rm 11,36), isso quanto a três
tipos de causas8 – “Todas as nossas coisas”, disse, e não apenas as obras
da natureza, mas também as da arte e da vontade. Tampouco existe
qualquer dificuldade em se afirmar fizera [no passado]. Com efeito,
6. Consolação da filosofia, III m. IX CSEL LXVII, 63,19.
7. AGOSTINHO, De Gen. Contra Manich. I c. 43, PL 34, 194: “porque também ele
opera em nós esses bens, que manda que trabalhemos”.
8. Quer dizer, da causa eficiente, da formal e da final.
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O REPOUSO DE DEUS
todo passado e futuro são simultâneos, são nele mesmo e são presentes, tanto em seu devir quanto em seu operar, segundo a palavra de
João: “Meu Pai opera até hoje e eu também opero” (Jo 5,17).
[151] A respeito do segundo ponto principal, note-se que aqui
junto a nós, tanto na arte quanto na natureza, não cessamos nem cessam as obras (ab opere). E a razão é que as obras não são perfeitas nem
duram para sempre, mas, antes, são imperfeitas e passageiras. “Mas as
obras de Deus são perfeitas” (Dt 32,4), e assim duram para sempre,
segundo a palavra ““aprendi que todas as obras que Deus fez permanecem para sempre”.
A isso deve-se acrescentar que Deus conserva as coisas criadas no
ser por uma e a mesma operação simples, pela qual produziu-as no ser
no princípio9, de acordo com a palavra: “Deus fala uma vez só” (Jó
33,14). Mas a natureza e a arte conservam as coisas passageiras no ser
por uma outra operação diversa e reconduzem as decaídas para o ser. E
de novo: mesmo que todas as coisas da natureza e da arte se corrompam, o ente sempre permanece, mesmo que esse e aquele ente se corrompam. Por isso, a causa desse ou daquele ente não cessa nem repousa de sua obra. E essa é a razão por que se diz da obra e não “na obra”,
cuja causa já indicamos acima.
[152] Terceira: Deus descansou de toda sua obra, não apenas dessa
ou daquela, assim como o carpinteiro não descansa da obra, uma vez
feito o fundamento e a parede, mas uma vez feias todas as partes da
casa. As causas secundárias, que estão abaixo de Deus, portanto, descansam dessa ou daquele obra, mas Deus, como causa universal, descansa de todas. Pois o primeiro agente visa ao último fim de tudo, e o
fim lhe (co)responde.
[153] Quarta, se diz que Deus descansou não dessa ou daquela
obra, mas de todas, pois não provê o bem para um ou outro (ente),
9. Cf. acima n. 20; S. TOMÁS, S. theol. I q. 104 a. 1 ad 4: “a conservação das coisas por
Deus não se faz mediante alguma nova ação, mas mediante a continuação da ação pela
qual dá o ser, essa ação é, certamente, sem movimento e tempo”.
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MESTRE ECKHART
mas para a conveniência de todo o universo, como por exemplo, a
natureza do particular age visando o masculino, e não o feminino, mas
a natureza universal que provê para o universo todo visa também o
feminino. Muito embora o fogo queime a veste do pobre, continua
sendo bom para o universo. E os males são por Deus bem ordenados
para beleza e integridade do universo10, de tal modo que um mal ordena o outro mal. De acordo com isso, embora alguma coisa seja ruim
para tal indivíduo singular, mesmo assim será benéfica para o todo do
universo, [pois] Deus considera o melhor e a perfeição do universo em
detrimento da parte, como faz o médico ao amputar um membro.
[154] Quinta: Deus descansou de toda sua obra, quer dizer, para
que de ora em diante já não crie o universo, embora sempre opere e
coopere cotidianamente até agora nisso e naquilo11, segundo a palavra:
“Meu Pai trabalha até agora”. Assim também o construtor da casa,
uma vez tendo finalizado de fazer a casa toda, opera mesmo assim
emendando essa ou aquela parte da mesma casa.
[155] Saiba-se porém que as cinco razões precedentes procedem
concebendo a palavra toda [sua obra] de modo coletivo. Mas a sexta
10. Cf. acima n. 21; AGOSTINHO, Enchiridion c. 10ss. (PL 40, 236): “do mesmo
modo, todas as coisas são muito boas (Gn 1,31), porque a admirável beleza depende de
todas as coisas do universo. Nela também aquilo que se chama de mal, bem ordenado
e colocado em seu lugar, mais eminentemente recomenda as coisas boas, para que mais
agradem e sejam mais louváveis, quando comparadas com as más”. JOÃO SCOTTUS
De div. nat. III c. 20 (PL 122, 684B): “todas aquelas coisas que nas partes do universo
são julgadas más, desonestas, torpes, miseráveis e castigos por aqueles que não podem
considerar tudo em conjunto, na contemplação do universo como o todo da beleza de
alguma pintura não há castigos, nem coisas miseráveis, nem torpes, nem desonestas e
nem são más. O que, pois, se ordena para a administração da divina providência é bom,
belo e justo”.
11. PEDRO LOMBARDO, Sent. II d. 15 c. 7 n. 118: “Por isso, diz-se que Deus
descansou, porque terminou de criar o geral das criaturas, porque além delas não criou
novas. Por isso, no sétimo dia descansou, a fim de não criar nova criatura, cuja matéria
ou semelhança não tivesse precedido; contudo até agora trabalha...”. S. TOMÁS, S.
theol.I q. 69 a.2; q. 73 a. 1 ad 3; a. 2; q. 118 a. 3 ad 2: “à perfeição do universo, quanto
ao número dos indivíduos, sempre pode-se acrescentar algum, não porém, quanto ao
número das espécies”.
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O REPOUSO DE DEUS
razão que se segue agora concebe a palavra toda com um significado
divisível, no sentido de que Deus descansa em qualquer e em cada
uma das obras que ele realiza no universo, tanto na ínfima quanto na
maior, tanto em uma como em todas. A razão disso é que Deus faz
cada uma de suas obras com toda sua deidade e está todo nela, e novamente porque em Deus a ínfima obra é tão grande quanto e igual à
máxima obra. É por isso que os mestres dizem que as idéias das coisas
desiguais são iguais em Deus. E é isso que se diz no livro dos 24 filósofos: “Deus está inteiramente em qualquer das coisas que são suas”; e
novamente: “Deus é uma esfera infinita cujo centro está em todo lugar
e a circunferência em lugar algum”; e novamente: “Deus é uma esfera
na qual tantas são as circunferências quantos são os pontos”. Note
abaixo outras observações sobre isso: “aquele que menos preparou, nem
por isso recebeu menos” (Ex 6,18)12.
[156] A sétima e a oitava razões são de ordem espiritual.
Em primeiro lugar, concebendo a palavra toda (a obra) coletivamente, do ponto de vista espiritual, significa: Deus descansa não em
quem cumpre apenas um mandato ou faz uma obra boa apenas, mas
faz e cumpre todas. “Nem uma andorinha faz verão, nem um só dia”
bonito faz o verão, como diz o filósofo13. “Façamos tudo que o Senhor falou” (Ex 24,3). Tanto para os teólogos quanto para os filósofos, as virtudes estão todas conexas.
[157] A oitava razão, que é espiritual, concebe a palavra toda de
modo dividido, no sentido de que Deus repousa em qualquer obra
boa, embora mínima, como num copo de água fresca, supondo-se
que sejam Deus e o amor a ele que operam em nós a obra. De acordo
com Gregório14, Deus não olha o poder mas o amor. E Ambrósio, no
livro I do De officiis, diz: “Teu amor impõe nome ao teu agir”15.
12. In Exodum nn. 90-92.
13. ARISTÓTELES, Eth. Nic. I c. 7 (A c. 6 1098 a 18).
14. Hom. in Evang. I hom. 5 n. 2 (PL 76, 1093B).
15. De officiis ministrorum I c. 30 n. 147 (PL 16,66).
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MESTRE ECKHART
[158] Terceiro ponto principal, repare-se que é costume objetar ao
que se disse acima dizendo que o repouso é uma privação, e assim não
seria adequado que Deus descansasse.
Além disso, o livro da Sabedoria diz: A sabedoria é mais móvel
que todos os móveis” (Sb 7,24), portanto ela não repousa.
A respeito do primeiro, deve-se dizer que o repouso é certamente
privação, mas é privação da privação, a saber, do movimento, assim
como o um, que é conversível com o ente, é a privação da privação real
produzida pela multidão. Mas a privação da privação é uma afirmação
pura e perfeita, como a unidade, enquanto privação da multiplicidade,
significa a mais pura unidade de Deus. O repouso de Deus é
perfeitíssimo e o mais puro, enquanto privação de todo movimento.
[159] Ao segundo responde Tomás na Suma p.I q. 9 a. 1 ad 2.
Tu podes dizer igualmente: a sabedoria, que é Deus, diz-se ser mais
móvel que todos os móveis, isso significa seu repouso e sua verdadeira
imobilidade16. Nenhum móvel pode ser mais móvel do que todos os
móveis; pois então deveria ser mais móvel do que si próprio, o que é
impossível. Portanto, assim como a causa de qualquer fogo nunca é o
fogo, mas algo diverso do fogo, e a causa de todo corpo não é corpo,
mas algo incorpóreo, assim o que é mais móvel do que todos os móveis não é móvel, mas necessariamente algo imóvel.
[160] Ou então podes dizer que a sabedoria parece mais móvel do
que todos os móveis, porque Deus age e faz tudo que faz sem tempo,
de súbito, no instante. Mas naquelas coisas que agem pelas causas segundas, muitas vezes incide movimento e tempo. Deve-se notar então
que se dão movimento e por conseguinte também tempo e acompanham a operação do agente por causa da contrariedade e resistência do
paciente17. É por isso que a iluminação do que é diáfano e a própria
geração são súbitas, mesmo na natureza. Mas a Deus não há absolutamente nada de contrário, nada que lhe repugne e nada que lhe resista.
16. In Sap. n. 129: “Deus que move e é movimento sem movimento, é mais veloz que
qualquer móvel e movimento”.
17. S. TOMÁS, Sent. II d. 15 q. 3 a. 2: o movimento causa dificuldade em nossas ações,
como afirma o filósofo”.
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O REPOUSO DE DEUS
E ademais, os termos finais da ação de Deus na criatura são o ser e
o nada. Mas o ser não se submete ao tempo e o nada não lhe oferece
resistência. Mas o movimento e o tempo não atingem o próprio ser
das coisas, mesmo as móveis, enquanto é ente ou em consideração ao
ser. Mas nenhum dos agentes secundários tem como termos finais o
nada e o ser, e por causa disso, em suas operações, podem incidir resistência, movimento e tempo.
E ademais, os termos últimos de todo movimento estão necessariamente fora do movimento e do tempo. Mas os termos finais de
todas as criaturas são simplesmente o nada e o ser, os quais só Deus
atinge com sua operação imóvel, de maneira imóvel e por conseguinte
com força e de súbito, como diz o livro da Sabedoria: “Atinge de uma
extremidade à outra com força” (Sb 8,1). A extremidade “de onde” é o
nada, a extremidade “para onde” é o ser, as quais só Deus atinge, harmoniza, reconcilia e pacifica, como diz o salmo: “ele estabelece a paz
nos teus limites” (Sl 147,14). Isso quanto ao terceiro dentre os quatro
pontos mencionados.
[161] Resta, por quarto, tratarmos breve e literalmente das palavras anteriores que dizem: Deus descansou de toda obra.
Note-se portanto em primeira mão que quando entre nós um
homem se cala após muito falar, é costume dizermos que descansou
sua língua. Isso porque de qualquer obra produzida ou criada por Deus
se antepõe: “Deus disse” – “disse”, falei, “e foram feitas” (Sl 32,9; 148,)
– daí também que, depois de ter feito e dito todas as coisas, silenciou
a fala e aquietou-se de dizer. É isso o que se diz também: “Quando
chegaram os servos de Davi, disseram a Nabal tudo que deveriam dizer em nome de Davi e calaram-se”, isto é, “emudeceram”, segundo
um outro modo de ler proposto por Moisés Maimônides18.
18. MAIMÔNIDES, Guia dos perplexos I c. 66 (26v 41-45): “quando, porém, falando
cessou de falar, que se chama descansando, como se afirma: ‘os três amigos de Jó
cessaram’, quer dizer, ‘de lhe responder’ (32,1). Semelhantemente, também, ao cessar
de falar coloca-se a palavra descansar, como se diz: ‘disseram a Nabal todas essas palavras
em nome de Davi e se aquietaram’, isto é, cessaram de falar”.
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MESTRE ECKHART
[162] Em segundo lugar, pode-se dizer que Deus descansou no
sétimo dia, uma vez que então nada de novo criara, mas conservou,
aquietou ou estabeleceu o que criara, para que o que fora criado permanecesse em repouso no estado em que fora criado19, conforme a
palavra: “ tudo foi colocado sob teu dizer (dicio)” (Est 13,9). “Dizer
(dicio), de dizer (dicendo); “colocadas”, quer dizer, quietas e silenciadas,
pacificadas no ser recebido.
[163] Novamente em terceiro lugar, note-se que o agente na arte e
também na natureza não repousa nem deixa que o paciente repouse
até que assimile em si o passivo, segundo a intenção do agente e a
possibilidade do passivo. E uma vez feito e assimilado perfeitamente,
o quanto possível, então de imediato e em primeiro lugar repousa o
agente e depois deixa ou faz com que e permite que descanse o passivo.
Por exemplo: O artífice jamais descansa nem permite que as pedras e a
madeira descansem, talhando, polindo e transportando, até que recebam o ser da casa, segundo a intenção do artífice e a semelhança da
forma da casa que está na mente do artífice. E uma vez isso alcançado,
cessa todo movimento e descansa tanto o artífice quanto o material da
casa. Assim, portanto, foi criado o universo, que por si foi querido por
Deus correspondendo à imagem e semelhança da mente divina, conforme diz Boécio20: “tu derivas tudo do celeste exemplo”, “com a mente
reges o universo que formas à semelhança da imagem”; diz-se muito
acertadamente que Deus descansou de toda sua obra depois que “tudo”
que integra o universo estava produzido, e “e era muito bom”.
[164] Ainda em quarto lugar, vamos expor isso de modo literal:
Deus descansou de toda (obra). Com efeito, o ser, e só ele, descansa,
19. MAIMÔNIDES, l.c.: “os sábios, porém, e os expositores colocaram como se fosse
descanso ao dizer: no sétimo dia fez aquietar o mundo, isto é, terminou a criação naquele
dia e este é o sentido: como era o sétimo dia manteve a criação das coisas. Foi dito,
contudo, que em qualquer dos seis dias as coisas novas eram renovadas, aquelas que
sobressaiam pela força dessa natureza que se encontra somente na universalidade da
criação. No sétimo dia, porém, manteve a universalidade e a fez permanecer assim como
está”.
20. Consolação da filosofia, III m. IX, CSEL LXVII 63,19.
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O REPOUSO DE DEUS
está em repouso, imóvel, imutável e invariável21. Por isso, a “forma”,
uma vez que é o ser, “consiste numa essência simples e invariável”.
Todas as coisas que estão abaixo e além do ser são inquietas, tem fome
e sede de ser. Mas Deus é o próprio ser; dele, por ele e nele reside todo
ser da natureza e da arte. Por isso, Boécio diz muito bem de Deus:
“permanecendo estável, concedes a todas as coisas se moverem”22. Pois
o ser repousa estável a partir de si mesmo, por si mesmo e em si mesmo, dá movimento e faz “tudo se mover” em sua direção e por causa
dele mesmo, pelo desejo, apetite e de certo modo pela sede do próprio
ser. Mas em si mesmo ele dá repouso e faz tudo repousar e não mais se
mover em sua direção.
[165] De acordo com isso, duas coisas precisam ser notadas. Primeira: que o próprio ser repousa de tal modo e está em si mesmo tão
quieto e silente que aquieta em si qualquer coisa e a faz permanecer
imóvel. Pois se de algum modo uma coisa pode ser variável, será na
perspectiva do próprio ser que ela não tem. A casa, enquanto é um
ente ou tem ser, não pode devir casa, nem pode o branco tornar-se
branco, mas só pode tornar-se não casa ou não branco e assim por
diante.
Segunda: Deve-se notar que é a partir disso que se deve compreender a interpretação comum, pela qual se diz que Deus, e apenas ele,
descansa porque faz todas as coisas descansar, visto que ele é o ser e
causa universal de todo ser.
[166] O quinto se expõe assim: Deus descansa em toda ou da
totalidade de sua obra, porque não se confunde com as obras criadas,
como diz o De causis. A razão é que ele está tão presente nas coisas
singulares que está totalmente fora. É por isso que dizemos que não se
move a alma pelo fato de mover a mão, porque está inteiramente
presente na mão de modo que está inteiramente fora dela.
21. GILBERTO PORRETANUS, Liber de sex principiis c. 1 n.1.
22. Consolação da filosofia, III m. IX, CSEL LXVII 63,19.
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Sexto assim: Deus e só ele repousa na obra ou operando, porque
nele o operar é o ser. Daí que assim como descansa e está em repouso,
está em silêncio em si mesmo, em seu ser, assim também descansa na
obra e operando, e isso é característico dele.
[167] Sétimo assim: Tudo que é criado obedece como déspota a
Deus, não tendo nenhuma inclinação ou direito de opor-se23. Mas as
obras e o que é operado já não obedecem às causas segundas de modo
despótico, como escravas, mas politicamente, como tendo a partir de
si mesmas inclinação para a oposição. E por causa disso não obedecem
àquelas a não ser através do movimento pelo qual são movidos em si
mesmos os próprios moventes ou operantes, como acontece nos entes
corpóreos24, ou pelo menos pelo movimento da obra, como acontece
nos motores celestes, como diz a palavra: “Sob o qual se curvam aqueles que portam a orbe” (Jó 9,13). Mas os motores dos orbes celestes
curvam-se para, se desviam e se afastam do primeiro, na medida em
que não tem operação a não ser movendo. Com um movimento que
não os toca e que só move as coisas operadas fora deles mesmos.
[168] Oitavo, assim: O princípio de tudo que é produzido na
natureza é o intelecto, que é mais elevado que a natureza e tudo que é
criado; e este é Deus, de quem Anaxágoras falou com propriedade
dizendo literalmente que é “separado”, “não-misturado”, “nada tem
em comum com nada”25, a fim de tudo discernir26. Mas a propriedade
23. Cf. n. 146; S. TOMÁS, S. theol. II II q. 104 a. 4: “assim como todas as coisas
naturais, por necessidade natural, se submetem à divina moção, da mesma forma
também todas as vontades, por alguma necessidade de justiça, devem obedecer ao
divino império”.
24. Cf. ARISTÓTELES, Phys. III c. 1 (G c. 1 201 a 24): “o que se move fisicamente
é móvel; pois desse modo tudo move, quando também ele se move”. S. TOMÁS, i. h.
1. lect. 2 n. 6 106 a: “em todos esses (quer dizer, os corpos naturais) algo age e sofre ao
mesmo tempo, move e é movido”.
25. ARISTÓTELES, Phys. VIII c. 5 (H c. 5 256 b 24).
26. Cf. ARISTÓTELES, De an. III c. 4: “Por isso, porque tudo compreende, é necessário
que seja não misturado, como afirma Anaxágoras, para que mande, isso, porém, significa,
para que conheça”; S. TOMÁS, i. h. l. lect. 7, XXIV, 157 b: “A respeito desse intelecto (quer
dizer, do divino), Anaxágoras afirma que é não misturado, para que mande”.
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O REPOUSO DE DEUS
do intelecto é que ao trabalhar não opera mas repousa. E é isso que nos
quis ensinar o que se disse nas palavras precedentes que Deus descansou de toda sua obra, a saber, que Deus é intelecto puro, cujo ser total
é o próprio inteligir.
[169] Nono, assim: por sua propriedade, o amor não conhece
labor, e a bem dizer é princípio e fim de toda pena e paixão, como
disse o filósofo27. E na primeira carta de João se diz que “não há temor
na caridade”, porque o temor comporta penúrias. Com efeito, o amor
concerne a um bem presente já possuído, no qual naturalmente repousa. Dizendo portanto que Deus descansa na criação das coisas nos
ensinou que Deus criou o universo por amor e por conseguinte de
plena vontade. Daí que Hilário, no livro De synodis28, diz: “A vontade
de Deus concede a substância a todas as criaturas, mas deu a natureza
ao filho pela natividade perfeita. Com efeito, tudo foi feito tal qual
Deus quis que fosse. Mas o filho nascido de Deus também subsiste tal
qual Deus”. E Agostinho no livro primeiro de A doutrina cristã29 diz
que “nós somos porque Deus é bom” e novamente que Deus usa de
nós por causa de sua bondade e para nosso proveito. Assim, portanto,
dizendo que Deus descansa na produção das coisas nos ensina quatro
coisas: que Deus criou tudo por vontade livre e não por necessidade;
que Deus criou por amor; criou por sua bondade, não para seu mas
para o nosso proveito.
[170] Ainda, décimo: Porque o bem e o fim são idênticos, isso
nos ensina que Deus é de tal modo o princípio das coisas, que é também o fim de tudo, e a partir disso, exige para si o amor e a vontade
livre de tudo que criou, enquanto é o bem e o fim de cada uma. A
partir daí fica evidente a décima razão por que Deus e só ele descansa
na sua obra. Ele portanto é de tal modo o princípio de todas as operações nas criaturas que é também o seu fim (Cf. Ap 1,8; 22,13). No
27. ARISTÓTELES, Eth. Nic. VII c. 14 (H c. 15 1154 b 13).
28. C. 24 n. 58 (PL 10, 520).
29. I c. 32 n. 35 (PL 34,32).
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MESTRE ECKHART
princípio porém todas as coisas verdejam e florescem, mas no fim
repousam, como se pode constatar extensamente no comentário:
“Minhas flores são meus frutos” (Eclo 24,23)30.
Décimo primeiro: Todo agente repousa no ter operado, como se
disse acima. Mas em Deus operar é ter operado, visto que ele é fim e
princípio. Portanto Deus descansa propriamente no operar e operando, como se disse aqui.
[171] Décimo segundo, melhorando o argumento anterior: em
nós o operar está subordinado ao ter-sido-operado, mas em Deus ao
contrário o ter-sido-operado existe por causa do operar. O artífice portanto jamais faria a casa se o operar jamais chegasse a ser ter-sido-operado. Mas em Deus se dá o contrário: Deus jamais criaria o mundo se
ter-criado não fosse criar, nem teria gerado o filho se o ter-gerado não
fosse gerar.
A razão do que se disse acima é que ter-sido-gerado ou ter-sidocriado significam em si o pretérito. Em Deus porém não há nada de
pretérito, nada de futuro, mas tudo é presente, porque não são nem
pretérito nem futuro a não ser até o momento em que são reconduzidos
no presente. Aquilo pois que não é presente tampouco é ente. E é isso
que dizem Agostinho e Gregório, que o filho na divindade sempre
nasceu e sempre nasce.
[172] E depois, décimo terceiro: Toda e qualquer coisa deslocada
por outro para fora de seu lugar é inquieta, busca seu lugar e em seu
lugar repousa. Mas o céu não recebe seu lugar por outra coisa, mas
antes é o lugar que a tudo localiza. Ele se move em seu lugar, e seu
movimento é vida, e ser é para ele mover-se; de modo que, se não se
movesse, não seria céu. Dizer portanto que Deus descansa em toda sua
obra nos ensina duas coisas: primeira, que Deus é o lugar de tudo, fora
de quem todas as coisas são inquietas e somente nele tudo descansa,
conforme diz Agostinho no livro I das Confissões: “Nosso coração está
30. Cf. In Ecli. nn. 18-29.
152
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 1, p. 139-156, jan./jun. 2010
O REPOUSO DE DEUS
inquieto até que descanse em ti”. A segunda ensina que, visto que é o
lugar de todas as coisas, ele opera e move tudo em si mesmo, e o
operar – não o ter-sido-operado – é para ele o ser e o viver tanto para si
quanto para todas as coisas singulares, a saber, o universo.
[173] E depois, o décimo quarto: Ao dizer que Deus descansa, nos
ensina que só Deus é bom, como diz Lucas (18,19), e como diz Agostinho no livro VIII do Sobre a Trindade: Deus é bom, “é o bem de
todo bem”. Esse ou aquele bem jamais acrescenta algo de bondade ao
próprio bem, visto que dele recebe sua bondade, não lha retira nem
lha confere. De novo, Deus não poderia ser “o bem de todo bem”, se
não fosse o bem primário, supremo, mais pleno e mais puro. Mas esse
ou aquele bem distinto alcança a bondade que possui e recebe de modos distintos. É preciso portanto que aquele que é o bem de todos os
bens tenha em si indistintamente todos os modos e as diversas perspectivas das bondades distintas, e ter quiçá todo modo sem modo ou
melhor acima do modo31.
Ademais, mais uma interpretação literal para os rudes, quanto ao
que Deus disse ter descansado criando e operando, para que não se
creia que ele tenha operado com dificuldades, assim como na natureza
vemos que todo agente padece e “todo padecimento causa dano”.
[174] E ainda, como décimo quinto, diz-se que Deus descansou
em tudo que criou e de sua criação a fim de que aprendamos que Deus
é o ser puro, pleno e simples e é a fonte única de todo ser, seja na alma
ou fora dela, seja na arte ou na natureza. Por isso Agostinho, nas Confissões I, diz: “o ser e a vida não jorram em nós por nenhuma outra veia,
a não ser de Deus, em quem ser e viver não são duas coisas diferentes,
porque Deus é sumo ser e sumo viver”. Mas, como se expôs acima,
toda e qualquer coisa repousa no ser e por causa do ser repousa em
todas as outras coisas.
31. Cf. ECKHART, In Joh. n. 414: “pois o já citado ‘modo’ (Jo 5,17) não convém a
Deus nem a seu agir; com efeito, como ele é sem modo, quer dizer, infinito, da mesma
forma também age sem modo ... pois as coisas divinas como tais desconhecem modo”.
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 1, p. 139-156, jan./jun. 2010
153
MESTRE ECKHART
Quanto ao que se diz comumente, que Deus descansa em todas as
coisas porque faz tudo descansar, isso é como dizer que a casa é alegre
porque alegra todos, ou que a sociedade é alegre por trazer alegria; são
exemplos de pouco valor e imperfeitos. Mas essas palavras talvez devam
ser compreendidas assim: “aquilo que se deseja no ser, e o que toda e qualquer coisa deseja, é o ser e o ser perfeito, enquanto ser, como diz Avicena
no VIII livro da Metafísica, capítulo 6: Mas nada doa ser ou opera o
ser a não ser que opere e principie isso no poder de Deus, assim como
também se diz que o rei conquista verdadeiramente um castelo, mas o
conquista por meio da força do comandante do exército32.
[175] Ainda, em décimo sexto, Deus descansa operando e em toda
ação ou obra realizada, porque é natural e bom para cada coisa aquilo
que Deus nela opera e quer. Portanto, é enquanto isso é bom e natural
que há repouso e silêncio em toda obra de Deus. Mas ele, enquanto ser
puro, sempre opera ser, que é conversível com o bem. E esse, enquanto “pura bondade”, não pode operar o mal, mas sempre o bem, no
qual repousa tudo e ele mesmo repousa em si mesmo.
[176] E por último, note-se uma observação espiritual: quando se
diz que Deus descansa operando, deve-se notar que a obra divina está
em nós quando a própria operação é agradável nela mesma. Por causa
disso que o filósofo33 diz que o sinal de que se gerou um hábito é o
prazer no agir. Mas aquilo que se faz por alguma outra coisa externa é
servil e mercenário. É livre aquilo que é feito por si mesmo, o que
agrada em si e por causa de si: “Deus fez todas as coisas por causa de si
32. AGOSTINHO, De Gen. contra Manich. I c. 25 n. 43, PL 34, 194: “No sétimo dia
Deus descansou de todas as suas obras, porque também em nós operou esses bens, e ele
manda que ajamos; e diz-se corretamente que ele mesmo descansou, porque depois de
todas essas obras ele mesmo nos concede o repouso. Assim como, corretamente, se
afirma que o pai de família edifica a casa, quando não faz com seu trabalho, mas manda
aqueles que o servem, da mesma forma diz-se, com razão, que [Deus] descansa das
obras, quando, após a realização da obra, permitiu àqueles que mandava que tirem
férias e gozem de um alegre ócio”.
33. ARISTÓTELES, Eth. Nic. II c. 3. (B c. 2 1104 d 3-5).
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Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 1, p. 139-156, jan./jun. 2010
O REPOUSO DE DEUS
mesmo” (Pr 16,4)34. Mas o bem que não operamos por causa de si
mesmo, porque é bom, não é obra divina, nem Deus o opera em nós;
mas é essa outra coisa, fora, pelo que operamos que opera em nós. Por
causa disso, Mateus diz de modo significativo: “Bem-aventurados os
que têm fome e sede de justiça” (Mt 5,6). Pois é justa a obra que tem
fome, sede, que deseja e quer a justiça, ela mesma e nada além. E
abaixo segue: “Bem-aventurados os que sofrem perseguições por causa
da justiça” (Mt 5,10). “Os que sofrem”, disse, e não: “sofreram” ou
“irão sofrer”, significando que a justiça perfeita consiste na própria
operação ou sofrimento por causa da justiça. Mas para o justo, enquanto é tal, agir com justiça identifica-se com viver e ser.
E novamente ele diz “os que sofrem”, no presente, pois a justiça e sua
obra, enquanto são divinas, não passarão, segundo o que se diz no livro da
Sabedoria: “Os justos viverão para sempre”; e ainda: “A justiça é imortal”.
O livro I da Ética (a Nicômaco)35 refere-se a isso: “Vê-se haver claramente
uma diferença entre os fins. Uns residem nas operações, outros porém, são
por causa de certas obras distintas das atividades”.
A respeito das outras coisas ditas sobre o repouso de Deus, pode-se
explicitá-las espiritualmente com facilidade.
[177] Quando se diz que Deus descansou da obra, deve-se compreender em primeiro lugar que Deus se compraz, se satisfaz e repousa
nas obras interiores, mesmo se faltar a obra exterior e sua possibilidade, de acordo com o Salmo: “Toda sua glória de filha do rei vem do
interior”.
[178] Em segundo lugar note-se que a perfeição das virtudes e das
obras divinas consiste em que a operação se revista da idéia do ser e do
viver, conforme a palavra: “Esta é a vida eterna, que conheçam” (Jo
17,3). Agora então conhecer será viver, “e para os viventes o viver será
34. ARISTÓTELES, Met. I c. 2 (A c. 2 982 b 26): “o homem livre é aquele que é causa
de si mesmo e não de outrem”.
35. ARISTÓTELES, Eth. Nic. I c. 1 (A c. 1 1094 a 3-5).
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155
MESTRE ECKHART
o ser”36; “pela graça de Deus sou o que sou” (1Cor 15,10). Também
no livro De spiritu et anima37 se diz que as forças inferiores são convertidas e revestem-se da propriedade das superiores, e por conseguinte as
forças superiores revestem-se da propriedade da vida e do ser, que dizem respeito à própria essência ou substância.
E novamente em terceiro lugar: Deus descansou da obra, porque
não carece de nossos bens nem eles lhe acrescentam algo, mas a nós,
segundo o que diz o Salmo: “Minha oração se voltará para o meu
coração”.
[179] Mas que se diga que Deus não só descansou (quiescere) mas
repousou (requiescere), como se descasasse duplamente; e isso significa
por ora duas coisas; em primeiro lugar, estabilidade ou quietude plena,
segundo a palavra: “sou quem sou”, e outras coisas que na Escritura
aparecem freqüentemente duplicadas, como, por exemplo: “eu, eu
mesmo irei consolar-vos” (Is 51,12).
Segundo, significa que Deus mesmo repousa naqueles que nele
descansam, segundo o texto: “amo aqueles que me amam” (Pr 8,17).
Do que se disse acima, fica evidente que o homem conforme a Deus
ou deiforme encontra repouso em tudo; “Em todas as coisas procurei
repouso” (Eclo 24,11), tanto nas pequenas, quanto nas grandes, tanto
numa quanto em todas.
36. ARISTÓTELES, De anima II t. 37 (B c. 4 415 b 13).
37. ALCHERUS, c. 12 (PL 40, 788).
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Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 1, p. 139-156, jan./jun. 2010
POEMA(S) DA CABRA
POEMA(S) DA CABRA*
João Cabral de Melo Neto
[...] 4. Quem já encontrou uma cabra
que tivesse ritmos domésticos?
O grosso derrame do porco,
da vaca, do sono e de tédio?
Quem encontrou cabra que fosse
animal de sociedade?
Tal o cão, o gato, o cavalo,
diletos do homem e da arte?
A cabra guarda todo o arisco,
rebelde, do animal selvagem,
viva demais que é para ser
animal dos de luxo ou pajem.
Viva demais para não ser,
quando colaboracionista,
o reduzido irredutível,
o inconformado conformista.
5. A cabra é o melhor instrumento
de verrumar a terra magra.
Por dentro da serra e da seca
não chega onde chega a cabra.
* Texto extraído do livro João Cabral de Melo Neto – Obra completa. Rio de Janeiro:
Editora Nova Aguilar, 1994, p. 254. Disponível em: http://www.releituras.com/
joaocabral_poemacabra.asp.
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 1, p. 157-159, jan./jun. 2010
157
JOÃO CABRAL DE MELO NETO
Se a serra é terra, a cabra é pedra.
Se a serra é pedra, é pedernal.
Sua boca é sempre mais dura
que a serra, não importa qual.
A cabra tem o dente frio,
a insolência do que mastiga.
Por isso o homem vive da cabra
mas sempre a vê como inimiga.
Por isso quem vive da cabra
e não é capaz do seu braço
desconfia sempre da cabra:
diz que tem parte com o Diabo.
6. Não é pelo vício da pedra,
por preferir a pedra à folha.
É que a cabra é expulsa do verde,
trancada do lado de fora.
A cabra é trancada por dentro.
Condenada à caatinga seca.
Liberta, no vasto sem nada,
proibida, na verdura estreita.
Leva no pescoço uma canga
que a impede de furar as cercas.
Leva os muros do próprio cárcere:
prisioneira e carcereira.
Liberdade de fome e sede
da ambulante prisioneira.
Não é que ela busque o difícil:
é que a sabem capaz de pedra.
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Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 1, p. 157-159, jan./jun. 2010
POEMA(S) DA CABRA
7. A vida da cabra não deixa
lazer para ser fina ou lírica
(tal o urubu, que em doces linhas
voa à procura da carniça).
Vive a cabra contra a pendente,
sem os êxtases das decidas.
Viver para a cabra não é
re-ruminar-se introspectiva.
É, literalmente, cavar
a vida sob a superfície,
que a cabra, proibida de folhas,
tem de desentranhar raízes.
Eis porque é a cabra grosseira,
de mãos ásperas, realista.
Eis porque, mesmo ruminando,
não é jamais contemplativa.
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 1, p. 157-159, jan./jun. 2010
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COMENTÁRIOS
Depoimentos
O PRESENTE DA MORTE DO FREI HERMÓGENES
O PRESENTE DA MORTE DO FREI
HERMÓGENES
Marcia Sá Cavalcante Schuback *
Falar sobre Frei Hermógenes Harada é tão difícil como falar sobre
uma fonte. Sobre fontes não cabe falar, pois das fontes pode-se apenas
viver. Igualmente difícil seria falar sobre a memória de Frei Hermógenes,
ao menos quando se entende a memória como a lembrança de quem
partiu. Mas quem nasceu, viveu e morreu como fonte não parte. Quem
é assim está sempre chegando. Frei Hermógenes está sempre chegando. Não chegando de qualquer maneira, mas chegando como água de
fonte ou como o sol bem cedinho da manhã: sempre inesperadamente
novo a cada dia. Por isso não consigo falar de Frei Hermógenes no
passado. Só consigo falar no presente, até porque, do Frei Hermógenes,
só recebo presentes, até mesmo o presente da sua morte.
Antes de conhecer Frei Hermógenes, achava que um grande mestre do pensar deveria ter cara de oriental e ser bem velho. Depois de
conhecer Frei Hermógenes descobri que um grande mestre não quer
ser mestre de nenhum pensar e que, mesmo tendo cara de japonês, o
que se mostra é o coração de criança. Pois nunca encontrei um mestre,
e ainda por cima japonês, com tamanho coração de criança como Frei
Hermógenes. Na verdade, nunca conheci um mestre tão ancestral que
fosse tão contemporâneo, fazendo das coisas velhas, coisas novas, muito
novas. Com ele, a mais antiga sabedoria é simplicidade de criança.
Com ele, conhecimento é experiência, aprender vira “formação permanente” e agir não se separa de “bem-fazer”. Mas tudo isso sem nenhuma vontade ou intenção de ser isso ou aquilo, mestre ou frade,
*
Södertörns University College, Estocolmo, suécia.
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 1, p. 163-165, jan./jun. 2010
163
MARCIA SÁ CAVALCANTE SCHUBACK
filósofo ou teólogo, pensador ou místico, bom ou melhor do que os
outros. Desprender-se da vontade de ser para ser à vontade, talvez assim se possa resumir a formação permanente na experiência de bemfazer, que faz do coração de criança fonte e sol do aprendizado de viver.
Assim é que Frei Hermógenes está sempre chegando.
Com Frei Hermógenes aprendo tanto do tudo e do nada! Aprendo do tudo e do nada da filosofia e da espiritualidade, da poesia e da
pintura, das flores para o Ikebana e das posturas de Taichi, do dizer e
do calar, do pensar e do não-pensar. Mas em tudo isso e muito mais, o
presente mais precioso que estou sempre recebendo é como o tudo
mora no nada e o nada no tudo. Não se trata de uma fórmula retórica,
mas de uma experiência que se define precisamente no lugar-limite
que é o entre-ser de nossa própria existência. Lembro-me que uma
vez, colhendo lá em Rondinha as flores para fazer um ikebana, ele me
mostrou como a beleza dos arranjos florais japoneses estavam ancorados numa tremenda contradição. Afinal era retirando as flores de suas
raízes e de seu campo que elas se tornavam uma nova beleza, a beleza
do enigma de que vida é morte e morte é também vida, nada de tudo
e tudo no nada. Assim, ele mostra que na experiência mais sofrida da
“coisificação do homem”, da “instrumentalização do saber”, do “esvaziamento da espiritualidade”, ali mesmo no perigo máximo da existência, quando nada mais se tem a perder, cresce a boa sombra do
meio oculto na raiz de nossa existência. Que presente é perceber que
no cimento mais armado da existência cresce sempre-ainda e sem porquê um mato de vida!
Que presente descobrir que há uma vida para além da morte, uma
vida que não é nem lá nem acolá, nem antes nem depois, mas uma
vida além. Além não significa fora ou separado da vida e da morte.
Além significa, sobretudo, um adiante inapreensível. Não terá Kafka
razão ao se perguntar se ‘vida além da morte’ no fundo não está apenas
dizendo que o “inapreensível é inapreensível”? Afinal mais além e
inapreensível do que qualquer descrição de um mundo além desse
mundo é a nossa existência, humana demasiada humana, de sermos
164
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 1, p. 163-165, jan./jun. 2010
O PRESENTE DA MORTE DO FREI HERMÓGENES
um para além de nós mesmos. É a nossa existência finita e mortal, a
solidão do nosso próprio nascer e morrer que nos ultrapassa, que se
adianta a nós mesmos, sempre ainda e a cada vez. Vida além é esse
lugar sem lugar, esse tempo sem tempo da existência finita, a atopia
crônica de ser em si mesmo para além de si mesmo. Vida além é o
adiante da própria vida. Mas vida além é também a vida de quem fica
quando alguém se vai, a nossa vida incorporando a morte dos nossos
mortos. Depois da morte, os nossos mortos vivem em nós e nós vivemos neles. Achamos que eles partem para longe de nós, sem volta.
Mas os nossos mortos voltam sim. Não voltam para nós, mas para os
que chegam antes do tempo. Não choramos sempre os nossos mortos
porque eles, por mais idosos e envelhecidos, sempre partem cedo demais? É estranho mas sentimos os mortos numa misteriosa proximidade com o cedo demais. Com relação aos nossos mortos, somos nós
que chegamos tarde demais. Quando os mortos vivem em nós, eles
vivem como um antes do tempo dentro de nós. É mistério, mas os
nossos mortos, ou seja, esses que vivem em nós, encontram, nessa vida
além da morte, o não nascido de nós. Frei Hermógenes está sempre
chegando. Isso aparece tão claro no presente da sua morte. É que nela
transparece mais do que nunca como a sua morte vive dentro de nós,
despertando o não nascido de nós, todo o adiante da vida e do viver.
Uma vez escrevi a Frei Hermógenes dizendo como eu me sentia “nada
preparada” para ser mãe, filósofa, professora, emigrante, enfim, para
viver. Na sua resposta, ele escreveu: “desejo-lhe que o ‘nada preparada’
cresça sempre mais na graça da finitude do corpo-a-corpo do pensamento”. Assim, talvez se possa dizer que o presente da morte de Frei
Hermógenes é o desejo que o não nascido de cada um de nós cresça
sempre mais no corpo-a-corpo do ser-pensar.
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 1, p. 163-165, jan./jun. 2010
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COMBATI O BOM COMBATE
TON KALON AGÓNA ÉGÓNISMAI –
COMBATI O BOM COMBATE
Emmanuel Carneiro Leão *
Em homenagem a Hermógenes, ao combatente ontológico.
Nesta sentença de São Paulo, 2Tm 4,7, concentra-se toda a vida e
morte franciscana de frei Hermógenes Harada, OFM, 1928-2009.
Mais do que qualquer um de nós, seus amigos e irmãos, ele sabia e
sabe, com um sabor “só de experiência feito”, o mistério de vida desta
expressão grega.
Ao dizer combate e combater, agóna e égónismai nos remetem para
o élan vital, aquela força de gravidade da vida, sempre vigente no viver
deste ser vivo estranho, que é o homem. Pois o homem não vive primeiro e só depois, entre muitas outras atividades, chega a combater.
Não! Ser homem já é combater. Por isso é que o Coro de Antígona
vem cantando, desde sempre: polla ta deina, muitos são os seres estranhos, k’ouden deinoteron anthrópou pelei, “nada, porém, é mais estranho do que um ser humano”. O modo de viver do homem consiste
em escrever em seu comportamento o mistério de ser. O homem é o
escritor ontológico da vida. Sempre de novo, está inscrevendo, em
todo lugar e/ou deixar de fazer, os poderes de ser e não ser. É este o
sentido universal do princípio da Escola: operari sequitur esse, “agir
segue ser”, i.é, só se consegue viver e praticar as possibilidades que,
sendo, já se tem.
E kalos, o que torna bom o combate da vida na vida dos homens?
*
Prof. do Ifcs, UFRJ.
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 1, p. 167-168, jan./jun. 2010
167
EMMANUEL CARNEIRO LEÃO
Kalos vem de kallos, o étimo indoeuropeu se presume ser qal-mos,
“sadio”, “salutar”, “o que favorece a integridade”, por isso se costuma
dizer: bonum ex integra causa, “o bem é inteiriço, está na coisa toda”.
O bom combate é aquele que busca e promove a totalidade da vida e
não apenas uma parte. Pelo todo da vida o homem nunca deixa de
combater. Tanto o sucesso quanto o fracasso integram a vida humana
e por isso são ambos vitais. Santo Agostinho nos lembra: semper in via
sumus, nunquam in patria: sempre estranhos a caminho, nunca na pátria. O ser humano está sempre em vias de, nunca deixa de ser viandante, homo viator. Nietzsche diz que o amável no homem é ser ele
uma passagem e não um ponto final. Tal é o testemunho que nos dá
frei Hermógenes Harada, este combatente ontológico da vida em sua
morte, pois “é morrendo que se vive para a vida eterna”.
168
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 1, p. 167-168, jan./jun. 2010
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PÁGINA DE PEDIDOS E ASSINATURAS
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Parte II
ELABORAÇÃO DE PARADIGMAS ÉTICOS EM
PERSPECTIVA INTEGRADORA
INTRODUÇÃO
CONCEITOS E OPÇÕES DE BASE PARA UM
MODELO DE PROJETO ÉTICO
Como conceber e elaborar uma ética universal, verdadeiramente humana pelo seu conteúdo, operacional pelo seu modo de
encarar os problemas e as situações da vida real? Como evitar os famosos ismos, o relativismo, o rigorismo ou o fundamentalismo?
Como conciliar o amor e a busca da verdade com uma atitude acolhedora das livres opções em matéria religiosa, sabendo prezar o
enraizamento em uma tradição e uma dimensão leal e amplamente
ecumênica?
Desafios históricos e atuais
Uma reflexão hermenêutica sobre a história dos paradigmas e
noções de base, em que se apoiam as grandes tradições morais, se
mostra hoje do maior proveito. Começando pelo negativo, não é difícil constatar: com pesar ou ressentimento, multiplicam-se as denúncias. Dedo em riste, muita gente aponta para os tristes modelos
de uma prática moral e de um ensino ético que, mesmo se dando
por tradicionais em uma cultura ou religião, batizando-se cristãs,
por exemplo, carecem de coerência, acomodando-se a hábitos,
mentalidades e rotinas, resultando na desestima ou mesmo na
opressão das consciências.
Tal é a lição mais corrente que se depreende da história da moral. Desde sua elaboração nos tempos modernos até a época contemporânea, a moral privilegiou o estudo dos deveres e das obriga119
ções, bem como dos pecados correspondentes, em um contexto
grandemente autoritário e legalista.
Na cristandade, desde os fins da Idade Média, começou-se por
distinguir a moral e a espiritualidade. Esta última é reservada aos que
se consagram à busca da perfeição, especialmente os clérigos, os religiosos e religiosas. E a primeira será destinada aos “simples fiéis”,
de quem se exigia o mínimo para merecer o nome “fiel praticante”.
No fundo, trata-se de um produto histórico da hegemonia clerical e elitista na religião, de uma categoria de privilegiados que desconhece a grandeza da vocação universal dos homens e das mulheres à cultura e aos valores transcendentes.
Crítica e opção de paradigmas éticos
A Igreja deste último meio século vem retomando, em grande
parte, a verdadeira tradição cristã, levando em conta o ensino do
Concílio Vaticano II precisamente sobre a Igreja. Na Constituição
conciliar Lumen Gentium se insiste sobre a vocação de todos e de
todas à santidade1, donde resulta uma ética da plena realização do
ser humano, orientado e elevado pelo Cristo, e não apenas um código mínimo de preceitos e interditos morais. É essa moral fundada e
inspirada pelo Evangelho, visando a realização pessoal e social do
ser humano que é hoje o objeto de um grande empenho da Igreja,
em comunhão com uma boa parte da humanidade que aspira por
uma ética universal capaz de enfrentar as ameaças atuais da desumanização, da corrupção e da violência.
A ética autêntica e plenamente atual será uma ética animada
pelo amor do bem, do bem em si, do bem humano universal, não do
bem utilitário, consistindo em vantagens, interesses ou prazeres,
mesmo que esses sejam partilhados ou buscados por vastos grupos
ou amplas camadas da sociedade. Essa busca positiva e efetiva do
1. Cf. Vaticano II, constituição dogmática sobre a Igreja, Lumen Gentium, todo o
cap. 5.
120
bem humano é o que aqui se designa por uma ética dos valores e
das virtudes.
Essa ética deve enfrentar dois tipos de adversários, amplamente
difundidos e apoiados nas tendências dominantes na sociedade, sobretudo ocidental, laicizada, apoiada nos valores da liberdade e da
busca de autonomia na esfera da vida individual, familiar e social.
Seu primeiro adversário se caracteriza por um movimento difuso de relativismo, de pluralismo moral, fundado em uma atitude de
individualismo.
É uma espécie de vale tudo no jogo da concorrência e do egocentrismo, de apelo à experiência de contentamento e quase de um
endeusamento de si mesmo, de dar certo na vida e nos negócios.
Assim se justificam e se exaltam comportamentos de busca de felicidade no conforto e no prazer. Radicalizando o humanismo inaugurado na Renascença, está uma espécie de neo-humanismo do
erotismo, do ter, do aparecer e dominar sempre mais.
O segundo adversário é a resposta unilateral, quase sempre ressentida, à atitude precedente, recorrendo à imposição de normas,
mandamentos, interditos e mesmo de tabus, mediante o recurso à
força física ou à pressão moral.
É a grande ameaça da intolerância, do fundamentalismo político, moral e religioso, que pretende obstar ao relativismo e ao pluralismo. Assim, o que se pretende é pelas vias jurídicas e mesmo policiais, suprir a falta de uma ética autêntica, enraizada na convicção
da consciência e na livre opção dos valores e virtudes.
A grande urgência para a humanidade, o que se deseja e há de
buscar é um paradigma que seja integrador pelas suas qualidades,
tanto de atenção à experiência ética tão diversa nos quadros das religiões e da laicidade; quanto de empenho de definir os princípios e
critérios suscetíveis de fundar o diálogo e o intercâmbio de modelos práticos de ação dentro do mundo globalizado.
Semelhante paradigma aqui esboçado quer estar enraizado na
experiência cristã, exposta de maneira universalmente inteligível e
121
universalmente aberta à escuta, à aprendizagem recíproca. O que
comporta uma apreciação hermenêutica, eventualmente crítica e o
cuidado de estar em sintonia com os parceiros de preocupações e de
buscas, em um primeiro tempo, ao menos na colocação da problemática geral.
Sem jogar pedra em ninguém e em nenhum telhado, deixa-se
de lado uma moral do primado da imposição, da obrigação, do
mandamento, da culpabilização ou os seus modelos opostos de optar ou deixar levar pelos caminhos de facilidade. E se propõe apostar em uma ética da vida, do bem, do amor, cujas formas ou paradigmas operacionais vêm a ser os valores e as virtudes.
Os valores são as pontas avançadas do bem humano, suas formas concretas em um momento histórico, suas dimensões e seu elã,
fazendo-se aceitar e se tornando princípios e referências na bela
aventura que é esta ética da vida pessoal e social. As virtudes, na liberdade, na opção responsável, de maneira profunda e permanente,
interiorizam os valores e tornam o sujeito humano competente na
sabedoria de viver e conviver. É a sua função norteadora do comportamento ético que lhe confere uma analógica com a técnica industrial e administrativa, tão estimada porque dá competência para
a fabricação e a comercialização de utilidades.
Está aí, da maneira mais simples e sucinta, o itinerário dessa
caminhada rumo à ética universal para a humanidade.
122
CAP. 4
ÉTICA INTEGRADORA DOS VALORES
E DAS VIRTUDES
É urgente propor e elucidar esse paradigma ético dos valores e
das virtudes.
Ele visa orientar o muito que há por fazer, mediante a educação, a formação das consciências, das comunidades e da sociedade,
para que todos esses vastos domínios humanos possam se desfazer
da influência ou dos resquícios da moral da imposição, da lei, das
normas ou obrigações.
Está na hora de superar ou reparar os desvios que ocasionou e
ocasiona uma visão moral parcial e antagônica, culminando no relativismo e no pluralismo, ou na intolerância e no fundamentalismo.
Valores e virtudes, modelos vividos, elaborados em
paradigmas
Valores e virtudes são termos que designam excelência e perfeição, encerrando em si a capacidade de integrar e harmonizar os aspectos fundamentais, os objetivos, as motivações e orientações do
projeto ético. Com isso, não deixam de poder assumir em justo lugar os dados tidos como prioritários em outros modelos, tais como
as noções de dever, de mandamentos impostos por autoridades.
Permitem e até exigem a apreciação do conjunto de obrigações,
que por hábito ou na mentalidade comum, e não por convicção de
consciência, vigoram em uma coletividade e nela constituem uma
moral puramente social.
123
Os valores em conjunção e correlação com as virtudes dão todo
relevo à qualidade, à integralidade e à viabilidade ou praticabilidade do projeto ético. Enquanto visa essa perfeição tal paradigma tem
um caráter de novidade, não porque se apresente como uma invenção e criação original. Mas sim, porque surge e se afirma como propósito de levar em conta o progresso que a humanidade vem realizando em diferentes planos importantes da experiência moral.
A junção dos valores e virtudes, a compreensão da sua sinergia
oferece a expressão elaborada de um fenômeno geral hoje: a presença, o encontro e o reconhecimento recíproco de um conjunto de
movimentos de ética, sobretudo social. Eles tendem à universalidade, mobilizando e ativando uma consciência planetária, levando a
campanhas e a planos de ação na defesa da vida, de maneira globalizada e por uma inspiração de estima da dignidade da pessoa e do
bem comum universal.
Em sua emergência e em seu progresso, esse dinamismo ético,
fundado em convicções de consciência, da razão prática e em livres
opções e em um consenso de vontades responsáveis, sem o nomear
já utiliza o paradigma coerente e integrador da vigência normativa
dos valores e das virtudes1.
Quanto ao essencial, no Ocidente, esse projeto emergente remonta à aurora da modernidade e acompanha seu avanço que se
afirma no empenho seguido e por vezes militante de realçar a
emancipação dos indivíduos, grupos e camadas sociais, juntan1. Em termos técnicos de filosofia moral, se poderia denominar esse paradigma
como axionômico. A axiologia designa o estudo dos valores. Aqui, a reflexão ética insiste sobre a vigência normativa dos valores mediante as virtudes, os valores
designando a dimensão objetiva da ética, da qual as virtudes formam então a dimensão subjetiva correspondente. A pesquisa e a análise da axiologia e a proposição de uma axionomia têm sido realizadas com originalidade, em perspectiva
mais sociológica por Nildo Viana, especialmente em Os valores na sociedade
moderna. Brasília: Thesaurus, 2007. No livro organizado por Robert C. Neville
(A condição humana: um tema para as religiões comparadas. São Paulo: Paulus,
2005, cap. 8, p. 245-328) é sugestivo ler as concepções de valores em diferentes
culturas e religiões, chinesas, budistas, judaicas, cristãs etc.
124
do-lhe a respectiva independência dos diferentes setores da existência da civilização e da cultura. Esse ressurgimento não leva apenas à recusa da prepotência das autoridades, à rejeição do poder absoluto. Busca com certo afinco os caminhos da autonomia e da responsabilidade.
Assim, a reflexão ética é chamada a estar atenta aos aspectos
negativos, polarizados pela tendência a relegar a imposição e a dominação. Mas ela haverá de se empenhar mais ainda em acolher e
apreciar os aspectos positivos, voltados para a afirmação da liberdade, da subjetividade, da autonomia responsável e solidária e de
outros tantos valores éticos. Tanto mais que esses valores não se
transmitem em formulações teóricas, às quais o conjunto da opinião pública se mostra menos afeita. Mas vêm sim incorporados a
movimentos de ação, de reivindicação e militância, em cuja linguagem permanecem um tanto velados, sendo expressos antes em atitudes e gestos concretos.
Vê-se, portanto, que o paradigma que realça e conjuga os valores e as virtudes traduz a elaboração explícita de uma experiência
ética, em parte dispersa, não ou mal formulada, abrindo caminho
certo para a ação social e política, mas carecendo de formalização
doutrinária. Semelhante experiência ética, bastante ampla se não
universal na militância bioética e ecológica, por exemplo, é muito
significativa. Pois, suscita atitudes, tomadas de decisões e ações
mobilizadas, buscando enfrentar os desvios e opor-se ao caráter desumano que domina o conjunto ou a parte mais dinâmica da vida e
da estrutura da sociedade atual.
Há uma semelhança de forma dentro de uma total antinomia dos
adversários sociais. A semelhança está em que valores antagônicos
atuam forte e eficazmente na sociedade contemporânea, mas sem se
identificarem e nomearem em uma linguagem teórica. Uns tantos
valores parciais, vantagens e proveitos prestimosos em economia,
por exemplo, se universalizam, se ideologizam e se disfarçam. Visam defender interesses particulares e egoísmos individuais, sobretudo corporativos, que se impõem pela linguagem incorporada na
125
própria tecnologia moderna. Outros, verdadeiros valores humanos,
tais como a dignidade e a igualdade das pessoas, o bem comum visado na preservação do ambiente, aí estão presentes e atuantes, sem se
expressar e integrar em uma ética formalizada e global.
Bem se poderia falar de uma batalha axiológica ou axionômica,
importante, fundamental, crucial, fundamental. Mas que passa em
grande parte despercebida. O que talvez faça parte das características que a informação e a comunicação conferem à civilização contemporânea.
Em busca de humor, alguém diria: de cores, sabores e valores
não se discute.
Valores e virtudes vêm para corresponder à emergência, à novidade, mas encontram a dificuldade de terem sido reféns dos paradigmas e modelos que os desacreditaram.
Em síntese, bem se vê a exigência dessa parelha de noções visando a realidade e o ideal a prosseguir.
Com os valores e virtudes, paradigma enaltecedor da ética em
sua dimensão positiva e criativa, pedindo uma animação cultural e
espiritual e mesmo certo elã místico.
Emergência e visão integral e integradora dos valores2
Assim se manifestam e mesmo começam a se evidenciar as
qualidades de perfeição, integralidade, viabilidade do paradigma
formado pela bipolaridade valores e virtudes.
2. Como se ilustra na bibliografia, há várias teorias filosóficas de valores, em que
se destacam as filosofias dos valores éticos, cujos modelos modernos sintetizamos e utilizamos aqui, de maneira pessoal. Temos em conta muito especialmente
a conciliação crítica que faz Jacques Maritain da doutrina clássica, greco-romana,
especialmente aristotélica e tomista, sobre o bem humano em si (bonum honestum) e o valor ético. Cf. MARITAIN, J. A filosofia moral. Rio de Janeiro: Agir,
1973. Na bibliografia que encerra este nosso livro, encontram-se referências aos
diversos autores e correntes da reflexão ética sobre o tema.
126
Esse duplo polo dá todo realce ao projeto ético em seu duplo
aspecto subjetivo e objetivo.
Os valores como a verdade, a liberdade, o amor e a solidariedade, destacam de maneira objetiva formas do bem humano, da dignidade humana, propondo-as à opção e à prática na vida individual e
social. Assim, o uso da mídia deve ser inspirado e regulado pelos
valores de verdade, de liberdade, de solidariedade, de promoção do
bem geral, na informação e na comunicação.
No dia a dia de cada um, no jogo dos sentimentos e escolhas de
toda hora, os valores emergem como os pontos altos e norteadores
de nossos desejos e interesses. Aliás, na linguagem corrente se define, de modo geral, como valor o que tem interesse, o que é um
bem para alguém, despertando e motivando seus apetites, seu querer, suas decisões e ações. Sob o ângulo do dinamismo que comanda nosso dia a dia, o valor ajunta ao interesse o elemento de eficácia, de ser uma energia que move a agir ou a deixar de agir.
Mas, em sua dimensão ética, o valor emerge e se afirma como um
bem que merece o qualificativo de humano, porque é racionalmente
apreciado como digno da pessoa. Supera o aspecto de utilidade e de
simples prazer para o indivíduo. Pode e deve ser estimado como um
bem para todo ser humano. É um bem pessoal e tem a qualidade de um
bem geral, de realizar o bem comum ou para ele concorrer.
Há um lado subjetivo e um lado objetivo no valor.
Ele tem em si uma bondade, é o aspecto objetivo. Mas, essa
bondade interessa tal ou tal pessoa, é a dimensão subjetiva. Conforme as disposições individuais ou as preferências de um grupo e
mesmo de uma sociedade são tidos como valores bens puramente
utilitários, desejados em razão de interesses e vantagens particulares que lhes acarretam ou de prazeres que lhes causam. O utilitarismo é uma das grandes características de nossa civilização.
O verdadeiro valor ético é um bem verdadeira e universalmente
humano, um bem que o ser racional quer como realização de sua
dignidade, e é um bem para todo aquele que o considera e com ele
127
se identifica afetiva e efetivamente, fora e acima de qualquer interesse ou paixão. Assim, dizer a verdade, amar os filhos, o esposo, a
esposa, ajudar o necessitado. Dizer mentira, vingar-se, ter a ousadia de matar ou assaltar podem reluzir como um bem para quem
está apaixonado ou tem o espírito deformado por um hábito vicioso. Tal desvio chega a ser profundo. Assume uns ares tranquilos ou
ostensivos de sinceridade, de heroísmo sereno ou fanfarrão.
A ética tem a missão, a nobre e árdua missão, de mostrar os
bens verdadeiros e indicar os caminhos para que o ser humano esteja em condições de reconhecê-los e praticá-los.
Feixe de saberes, desejos e valores
A tarefa da educação e do testemunho dessa sabedoria ética
pede reflexão, especialmente porque outros tipos de saber entram
no jogo de uma concorrência desleal. Convém aprofundar essa reflexão partindo de certas evidências de base, um tanto veladas pela
cultura do imaginário e o espetáculo.
Pelo conhecimento o ser humano faz o universo das coisas e
das pessoas existir dentro de si com mais ou menos exatidão, intensidade e abrangência.
A objetividade absoluta, a coincidência total do objeto conhecido e do objeto em sua existência real, é um horizonte ideal a que
aspiram e tendem constantemente os amantes da Verdade. Na sua
riqueza e beleza ela se mostra esquiva e difícil. É sempre exigente,
suscita todo o labor da ciência, inspirando e reclamando pesquisas
em buscas do infinitamente grande e do infinitamente pequeno.
Desperta o esforço interdisciplinar, no empenho de recuperar a totalidade do real que a especialização, em um primeiro momento,
tende a fragmentar. E o mundo se torna todo esse jardim ou essa
floresta de conhecimentos, destinados a aguçar o desejo da sabedoria. Que a humanidade chegue a uma visão harmoniosa de tudo.
Que venha a emergir o sentido que a vida tem ou que exige que lhe
seja dado.
128
O próprio ser humano, ângulo infinitamente aberto e tendendo
para o saber é o elã primeiro, a dimensão profunda e dinâmica, mais
estimável e talvez menos notada da história da cultura, hoje estendida em nosso planeta e para além dele pelas redes da globalização.
Mas o ângulo do conhecimento não abre e prolonga seus braços
atraído e movido apenas pelo simples desejo do saber, pelo puro e
total amor à verdade. Sem dúvida, a curiosidade é o primeiro apetite despertando, atiçando, aguçando a atenção à novidade. E ela o
faz com tanto mais veemência quanto mais ela se depara com a surpresa apetitosa e pode misturar os interesses do saber com os interesses de proveito de quem a vê e escuta.
Essa dupla dimensão do interesse, a curiosidade e o proveito, é
da maior importância e tende a crescer e a avolumar com os progressos vertiginosos da comunicação e da economia no mundo
atual. O interesse é assim a condição do homem moderno envolvido e ativado pelo apetite de conhecer e de tirar vantagem do objeto
e do próprio fato de conhecer.
Essa amplidão e densidade de sentido que se manifestam no interesse pode ser um primeiro caminho para a abordagem do valor
na imensa riqueza e complexidade de seus significados, aliás bastante conexos. Em um primeiro momento se poderia dizer; tem valor para alguém aquilo que o interessa, tornando-se suscetível de
exercer uma influência no plano da decisão e da ação.
Desde Max Scheler, em 19163, a reflexão ética passou a reconhecer e a aprofundar a dimensão antropológica dos valores, dando
atenção aos elementos e às condições concretas de sua realização
3. Cf. SCHELER, M. (1874-1928). Formalismo na ética e a ética material dos
valores [original em alemão de 1916]. A ética material corresponde ao conteúdo
concreto, à densidade da experiência moral que funda os valores, no prolongamento ou na superação do “formalismo” kantiano. Algo de semelhante se verificava então com a compreensão original e realista que Rudolf Otto (1869-1937)
dava ao “sagrado”, à experiência “numinosa”, à religião entendida para além dos
“limites da razão”. Seu livro culturalmente revolucionário, O sagrado, é lançado
precisamente em 1917. Cf. bibliografia.
129
como experiência original, importante e mesmo determinante nas
atividades psicológicas e éticas do dia a dia. Os valores aí se manifestam e podem ser analisados como uma forma especial de percepção e de apreciação de coisas, eventos, influências e encontros
pessoais enquanto atingem o sujeito e são por ele ressentidos como
certa modalidade específica de bem ou de mal.
É o que se manifesta pela consideração da escala de valores comumente difundida e cuja análise pode ser proveitosa para melhor
discernimento desse tipo de experiência deveras relevante para
bem situar seu plano elevado de presença no cerne mesmo da vida e
da reflexão éticas.
Têm merecido e merecem atenção em sua distinção escalonada
e conexa os valores eróticos, estéticos, lúdicos, utilitários, éticos e
religiosos.
Essa diferenciação evoca as formas originais de experiência
características da complexidade e da unidade do ser humano, cujos
sentidos e cuja afetividade em contato com as coisas e no relacionamento interpessoal são suscetíveis de serem penetrados pela inteligência e impregnados de um cortejo de desejos e de opções de um
livre querer. Este pode assumir e orientar a sensibilidade, muito especialmente a sensualidade, ativar, atiçar, aguçar o gosto de ver,
ouvir e tocar. Com toda verdade, se pode falar e admirar um olhar
inteligente e o manejo inteligente de um bisturi ou de um teclado.
A experiência dos valores que antecede e deve fundar a elaboração de teorias axiológicas, se baseia nessa constante e sempre
maravilhosa capacidade do ser humano de conhecer, desejar e querer empenhando-se como um todo, como convergência ou confluência de um sujeito, que é corpo e alma. Ele atua e se desenvolve
qual sinergia de sentidos externos e internos, de uma mente que
universaliza e conecta todos esses dados vitais em sua influência
recíproca de causa e efeito. Assim, o princípio primordial do prazer, o jogo das pulsões, todo o dinamismo do gosto, da alegria de
viver, de conviver ou do desgosto, do mal estar, do estresse, nem
são puros estados de alma, nem simples afeições corporais. É o ser
130
humano feito uma orquestra viva, em que os instrumentos se interpenetram e interagem com sua sonoridade na sinfonia e na harmonia de todo o conjunto.
Assim, os valores são apreendidos por uma espécie de percepção intelectual, mas equipada de conhecimento e afetividade ao
mesmo tempo sensível e espiritual. Eles passam a exercer uma influência em um processo de decisão ou na marcha de uma ação ou
de um projeto mediante sua presença no conjunto do psiquismo,
atraindo para um bem sensível ou racional ou rejeitando o obstáculo a esse bem desejado.
O que se chama ou denuncia hoje como sendo a manipulação
exercida por uma parte, talvez a mais dinâmica da mídia, vem a ser
a apresentação calorosa, envolvente e sedutora de utilidades e prazeres, privilegiando os aspectos atraentes, sobretudo eróticos desses bens oferecidos, majorando-os para que determinem a escolha
do consumidor, sem que este se detenha em considerações racionais de outros valores, inclusive econômicos ou éticos. Que não tire
do novo carro os olhos enternecidos, e se ponha a ponderar seus
compromissos de justiça com seus outros devedores ou simplesmente de sua família.
Valores éticos fundadores
A elaboração do projeto ético, sobretudo de dimensão mundial,
não pode fazer a economia de uma reflexão sobre os valores em geral e sobre os valores éticos em sua especificidade.
Os valores humanos são, portanto, esse conjunto de bens, de
qualidades humanas que reconhecemos em nossa razão como exigência de nossa dignidade humana e como caminhos de nossa felicidade, de nossa plena e livre realização pessoal e social.
Assim, os objetivos humanos da economia, da política, da vida
familiar ou comunicação social se precisam e se tornam deveras
operacionais, concretizando-se em uma escala de valores éticos.
Estes virão iluminar e consolidar as convicções, tecer e reforçar o
131
consenso, favorecer o diálogo e o intercâmbio entre os membros da
vida social e, muito especialmente, entre os profissionais e usuários
dos diferentes sistemas sociais.
Para precisar ainda mais a reflexão, se podem definir os valores
simplesmente nestes termos: são os princípios normativos supremos, fontes de motivação e de legitimação das opções, ações e decisões, assumidas com reflexão e liberdade.
Emergem e comandam racionalmente o agir como ideais imperativos de caráter absoluto. Exprimem, antes de mais nada, as exigências da dignidade humana: “Agir como convém ao ser humano,
fazer o que é digno de um ser humano”. Esses valores correspondem à finalidade da sociedade e dos sistemas que a integram, na
medida em que visam ser humanos, realizar-se em harmonia com a
natureza inteligente e livre, com a autonomia de cada indivíduo e
de toda a humanidade na busca de seu destino.
Essa plena realização resplandece como o ideal traduzindo-se
para todo indivíduo e toda coletividade na busca da felicidade. A
primeira formulação dos direitos fundamentais se expressa globalmente como o direito universal à felicidade, prerrogativa de cada
um e de todos os concidadãos, acolhida e mesmo venerada com um
dom do Criador. Na verdade, no texto e mais ainda em seu contexto
e sua realização na história, a felicidade se mostra concretamente
como a oportunidade, a chance oferecida a todos de realizá-la pela
livre iniciativa de cada um. Essa convergência de responsabilidade
e de solidariedade resultará na prosperidade geral ou na felicidade
de todos.
Uma visão englobante da ética greco-romana passa pela Idade
Média e mesmo se enriquece nas elaborações de mestres como Tomás de Aquino e se desenvolve na modernidade. O tema da felicidade, encarado sob o ângulo social, é equiparado à noção mais objetiva e concreta do bem comum. A felicidade exprime a dimensão
subjetiva, a fascinação do desejo e a sua satisfação pela posse do
bem almejado, culminando na plena realização da alegria de amar e
de ser amado.
132
O bem comum designa, de forma objetiva, a soma de bens e de
qualidades humanas que a sociedade visa obter. Compreende a totalidade de bens materiais e culturais que se há de assegurar a todos,
aos indivíduos, aos grupos, às categorias sociais, em um quadro harmonioso de liberdades e de direitos. Essa ordem justa, solidária e pacífica terá que garantir a todos a chance de alcançar os bens e os direitos humanos correspondendo à disponibilidade de recursos, ao grau
de cultura e de aspirações do conjunto da coletividade.
A seguinte definição procura ser ao mesmo tempo mais exata e
mais operacional: o bem comum vem a ser a garantia efetiva de um
núcleo de direitos fundamentais, de bens materiais e culturais, dentro de um quadro jurídico e sociopolítico, que assegura a persistência e o alargamento constante desses direitos, proporcionando a subida gradativa dos menos favorecidos.
Só a conjunção desse “núcleo” já efetuado, de direitos e bens
fundamentais, mais as “regras do jogo” que permitam a marcha
rumo à universalização do bem-estar e da ascensão dos marginalizados, será capaz de fundar e consolidar um consenso social duradouro e dinâmico, ser um princípio permanente de segurança pública e de paz social.
A noção igualmente englobante, que corresponde ao bem comum como a legitimação de todo o projeto ético da sociedade, vem
a ser a dignidade plenamente reconhecida, acatada e promovida
dos membros que a compõem. A dignidade se ergue como ponto
mais alto a que se refere a consideração e a que tende a realização
da pessoa dento de uma sociedade que mereça o qualificativo ético
de humana.
A dignidade é a definição ética da pessoa
Só chega a se afirmar à consciência e a se tornar um princípio
normativo, quando o indivíduo, em seu meio familiar e social, se
eleva à altura de perceber o ser humano em sua singularidade e
grandeza próprias.
133
Na atual etapa da globalização, o que parece mais evidente, ou
pelo menos, o mais corrente, é ver o ser humano sob o ângulo do
“custo”, da produtividade, do seu “preço de manutenção” em comparação com sua rentabilidade. Ou um pouco mais acima desses
critérios puramente comerciais, é talvez mais comum a atitude de
um interesse mais fino pelo próprio eu ou pelo outro, levando à
apreciação dos homens e das mulheres, olhando o que e o quanto
valem na escala do prestígio, da forma ou do poder.
Ora, a dignidade exprime precisamente o que é inestimável. Ela
pertence a essa outra ordem de valores, constituída não pelo ter,
mas pelo ser, por aquilo que não tem preço.
Reconhecer em si e em todo ser humano, acima de toda utilidade,
um valor transcendente, uma finalidade em si, ver em cada um o sujeito inalienável e inviolável de direitos e deveres: tal é a referência primeira e o difícil começo de toda ética. Esta emerge assim, em sua
grandeza e em sua fragilidade, fundada na consciência e na razão, sem
que se possa impor por qualquer forma de pressão ou de violência.
Esse é um dos pontos nevrálgicos, dos mais vulneráveis nos
pés da humanidade em sua marcha rumo a uma ética mundial.
Ninguém ensina ninguém a ser ético, a galgar a montanha do
conhecimento de sua dignidade e da dignidade do outro. O que se
pode e se deve, como exigência, fonte primordial da felicidade, é
torcer, é empenhar-se ajudando todos os companheiros de caminhada a aprender a lição de base da cartilha humana, a grandeza e a
beleza sem par da dignidade de cada um.
Será imprescindível definir e propor à consciência dos cidadãos esses dados éticos de base. O essencial será criar um consenso
coletivo sobre os domínios de determinação e aplicação do bem comum e da dignidade.
Considerando a natureza humana e esse seu destino espiritual e
histórico, o Papa João XXIII procurou resumir os valores éticos
fundamentais nos quatro seguintes: a verdade, a liberdade, a justiça
e o amor (ou a solidariedade). Eles são destacados na encíclica Pa-
134
cem in Terris (11 de abril de 1963) como os verdadeiros caminhos e
as verdadeiras normas para orientar as pessoas e as sociedades em
busca da paz e da felicidade.
Tendo sem dúvida uma inspiração cristã, essa proposta parte da
consideração dos aspectos positivos, dos chamados “sinais dos
tempos” que o papa vê reluzir como indicadores da presença do Espírito na história e particularmente no mundo atual. Essa atitude original de João XXIII, que mereceu uma comemoração da ONU
por ocasião do decênio dessa encíclica, tem o maior interesse na
perspectiva de um diálogo intercultural e inter-religioso visando o
projeto de uma ética mundial.
A novidade da posição desse documento papal não se refere
apenas ao magistério tradicional da Igreja, em geral mais voltado à
condenação dos erros e desvios da sociedade moderna do que a
enaltecer suas contribuições positivas no plano da ética pessoal e
social. Sob o impulso de João XXIII, o Concílio Vaticano II, aludindo aos progressos da modernidade no que toca à vida e organização sociais, chega a declarar que a Igreja tem o que aprender do
mundo nesses domínios4.
Inscrevendo a ética pessoal e social no quadrado axiológico da
verdade, da liberdade, da justiça e da solidariedade, o papa indicava um caminho seguido pelo Concílio Vaticano II e pelas conferências gerais do episcopado latino-americano, em uma perspectiva
que fraterniza a Igreja Católica com os projetos do Conselho Mundial das Igrejas e com o Conselho Mundial das Religiões. Há mesmo uma coincidência substancial com os ideais da ONU, sobretudo
em sua carta magna dos Direitos Humanos Universais de 1948. A
atitude assumida pela Igreja Católica privilegia um modelo de
“ver, julgar e agir”, visando apreciar e modificar a sociedade no
sentido de ajudá-la a se humanizar promovendo as liberdades e os
direitos para todos.
4. Cf. CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Gaudium et Spes, 44.
135
Surgem assim modelos de ação, fundados em um consenso sobre valores humanos e, da parte das religiões, eles vêm animados
pela convicção de fé de que a promoção desses valores humanos no
mundo está em plena harmonia com a autêntica compreensão de
Deus como fonte do Amor Universal.
Na perspectiva desse diálogo já esboçado e desse encontro que
se vai pondo em marcha, parece oportuno retomar e desdobrar o
quadrilátero dos valores proposto por João XXIII.
O quadrado dos valores éticos
Após momentos fortes de experiência e de reflexão ampla e
aprofundada, sobretudo fenomenológica em torno da axiologia, a
ética se precisa e ganha hoje em determinação concreta. Ela terá
tudo a ganhar condensando e articulando seus esforços em torno do
conjunto desses quatro valores, tidos como necessários e suficientes para fundar o agir no plano pessoal e social: a verdade, a liberdade, a justiça e a solidariedade.
Na verdade, esses valores surgem e se desenvolvem, quais dimensões irredutíveis e conexas do projeto humano, quando ele se assume e se orienta em etapas sucessivas, de si progressivas, aclarando
e ativando uma marcha mais ou menos bem-sucedida, em busca de
sentido para sua existência e sua história. Juntam-se, assim, em um
mesmo destino aceito com consciência e responsabilidade, a procura
de felicidade e a qualidade ética do agir, do viver e do conviver.
A verdade emerge qual valor fundador da existência, da pessoa e
da sociedade. Na perspectiva ética, esta se constitui e se estrutura por
um consenso racional e livre, cujo objeto é o bem comum. É um projeto da maior relevância, sempre em marcha, mas está longe de ser
uma miragem, a simples projeção de uma construção imaginária.
Esse projeto emerge qual núcleo de direitos e deveres, de bens e de
serviços, reconhecidos e aceitos em sua realidade, apreciada em uma
primeira percepção, que se há aprimorar e aprofundar. Um dos grandes riscos ou ameaças para a sociedade vem precisamente das repre136
sentações infundadas, tecidas de ilusões, de desejos incontrolados,
de ideologias inverificáveis, que ameaçam tomar o lugar das verdades
de base, de uma ordem real de caráter político, jurídico e cultural.
Essa reflexão teórica manifesta toda a sua evidência e toda a
sua eficácia operacional, quando se confronta a noção da verdade
com o surgimento e a atual presença universal de um sistema, cuja
função específica é fazer circular a verdade em cada uma das coletividades e no conjunto do mundo globalizado.
Na incontornável consideração dos sistemas que constituem a
ossatura da sociedade moderna, não faltará ocasião de aprofundar a
compreensão desse sistema que é a mídia, cuja missão é manter na
sociedade o gosto e a oferta da informação, a mais exata possível
sobre os grandes problemas humanos. É claro, a mídia encontra,
em seu campo de ação, todo o domínio da imaginação, todo o dinamismo flutuante dos desejos individuais e coletivos, dos mitos e
das ideologias.
Mas ela se define não pela criatividade, mesmo artística, mas
pelo rigor, pela notícia, pela mensagem que leva ao conhecimento
do que se passa realmente, do que aconteceu ou está acontecendo.
Nesse ponto, o jornalismo tem afinidade com a história e com a
ciência, e não com o romance, a poesia, a literatura de ficção.
Embora essas formas culturais ocupem e devam ter uma larga parte
e um lugar de destaque no campo da comunicação social.
No decorrer da história, os profissionais da imprensa sempre
foram mais sensíveis ao valor da liberdade, fazendo-lhe confiança
como caminho e condição da boa qualidade da informação. Sem
dúvida, é necessário insistir sobre essa conexão da liberdade e da
informação. Mas, em sua definição mesma, em sua razão de ser e
na expectativa do público, a informação encerra uma exigência de
busca da verdade, a necessidade de uma tendência constante à objetividade dos fatos, das situações, dos contextos e das apreciações.
Tocamos a questão radical, crucial mesma da possibilidade de
se atingir a verdade ou a objetividade da informação. Ao informador se pede a lealdade. Mas não se poderia exigir a “objetividade”,
pois seria reclamar o impossível.
137
Essa objeção é da maior importância. Ela nos leva ao centro
mesmo da questão ética no tocante à verdade na comunicação social, na mídia e mesmo nas relações humanas mais simples. A notícia é uma informação que comporta interesse e que desde a sua entrada no circuito da comunicação está sujeita a interpretações que
tendem a encarecê-la e a valorizá-la, precisamente na linha dos interesses que encerra ou poderá encerrar para o público. Sem dúvida
a objetividade estrita e rigorosa se apresenta como um horizonte ao
qual tende a comunicação.
A objetividade não é impossível, mas extremamente difícil.
Ela pede inicialmente a atitude de sinceridade e de lealdade.
Mas desperta igualmente uma atenção e uma vigilância crítica em
face das fontes da informação. A notícia passa por uma série de codificações e de interpretações. A qualidade profissional e ética do
informador se pode resumir nesse axioma: ele verifica e ajuda a verificar. Ele examina suas fontes e colabora para que seu público
possa ter a ideia mais exata ou menos inexata do processo informativo, desde o “fato bruto” até a sua codificação definitiva.
A notícia é uma realidade viva e itinerante.
Não se transmite como a água ou o gás, passando por uma tubulação fixa e fechada. Ela caminha do jeito e no ritmo de uma caravana de contadores de histórias, tecendo uma série de interpretações,
que guardam uma primeira informação, a reforçam e encorpam, ou
tendem a atenuá-la, a extenuá-la, a esvaziar-lhe o sentido ou a importância. A objetividade da informação não é a permanência de um fardo carregado pelo caminhoneiro. Ela marcha crescendo, cresce marchando5, ganhando sentido e interesse, se afirmando mais e mais
como mensagem que destinatários apreciam, sendo retransmitida
com inevitáveis sobrecargas de significado e afetividade.
5. Da fama diz o Poeta “crescit eundo”, “cresce marchando”, vai se espalhando e
vai se avolumando e robustecendo (Cf. VIRGÍLIO. Eneida, IV, p. 175). A essa
lei histórica da fecundidade e do dinamismo do boato, da reputação ou da celebridade, a mídia dá um novo vigor e até uma dimensão mundial.
138
A verdade da comunicação terá que guardar sempre essa dupla
fidelidade: à realidade dos fatos, das situações, dos contextos, das
conjunturas, em conjunção e correlação com o interesse do público, suas modalidades e etapas sucessivas. O público será respeitado
pelo comunicador, quando este sabe e quer ajudar o seu apetite de
conhecer, dando-lhe os dados e instrumentos convenientes para
que possa averiguar fatos e mensagens e formar a sua opinião.
Mas a verdade da comunicação comporta exigências mais fundamentais. A mídia pode ceder à lei de facilidade. E procurar satisfazer e lisonjear apenas a curiosidade e o sensacionalismo. A busca da
verdade resulta da conjunção, da sinergia da novidade e do bem humano. Ela há de conjugar o interesse pelo que acontece de importante com os problemas e aspirações mais profundos da humanidade.
Toca-se aqui um dos pontos centrais quando se olha para o projeto de uma ética universal. Pois, ela se destina a um mundo globalizado pela tecnologia e especialmente pela rede cada vez mais
abrangente e envolvente da informação e da comunicação. A verdade é a luz que faz surgir os rostos das pessoas e dos povos, tais
quais eles são com suas qualidades, seus recursos, suas necessidades e deficiências. Que a humanidade comece por ter o gosto e a coragem de se ver com suas heranças culturais e com seu pluralismo
que é riqueza e fonte de riscos, aceitando-se tão diferenciada, tão
carente e sedenta de entendimento, de harmonia e de intercâmbio.
Esse amanhecer de uma ética da fraternidade universal terá
como sol a verdade penetrando todos os cantos e recantos da terra.
Primeiro, assumirá a forma de um amor que acorde e dinamize as
inteligências, incitando-as a ver os grandes problemas e desafios da
humanidade. A verdade é antes de tudo esse triunfo sobre a curiosidade banal que se interessa pelo mais fácil, o mais vistoso, mais
exótico, portanto se deixa levar pela corrente do mais superficial na
história dos eventos, das pessoas e dos povos.
Para firmar o primado da verdade, do amor, da busca e da difusão da informação a mais exata daquilo que há de essencial e de
mais importante para a humanidade é necessária e urgente uma re139
volução ética e cultural, vindo da sociedade, da opinião pública em
sintonia com os profissionais da informação e de todos quantos estão empenhados na educação, na formação dos cidadãos de cada
povo e do mundo.
Esta revolução pacífica pelo triunfo da verdade não seria o primeiro passo rumo a uma ética mundial que seja a alma, a qualidade
humana primordial da globalização?
A liberdade: valor-garantia da conquista dos demais
valores
A liberdade foi a grande bandeira e vai sendo a conquista progressiva da modernidade no que ela tem de caminhada ética, jurídica e política da humanidade. Na educação, na imprensa, no surto
das ciências e das técnicas, a liberdade estendeu seu par de asas
sempre ampliado, seus instrumentos e por vezes suas armas, buscando ocupar e animar o mundo moderno que se dilatava geográfica e demograficamente. A comunicação das pessoas, das coisas,
das mensagens abria os espaços para a emancipação radical da humanidade, que, no entanto cuidava apenas descobrir novas terras e
novas gentes, mas ia muitíssimo mais longe. Desfazia-se da dependência dos determinismos, da demissão diante das incertezas e dos
medos do desconhecido, reconhecia que o mundo é deveras um
cosmo e não um caos. Era o jeito moderno, um tanto pretensioso de
chegar à primeira mensagem bíblica: Não tenham medo, “ocupem
e subjuguem a terra”, que lhes parece selvagem e temível, “dominem o que vive nos ares e nos mares” e cuidem de ajardinar, que é a
sua missão de liberdade responsável (cf. Gn 1,26–2,4).
Hoje, pode-se reconhecer a globalização como a ponta extrema, como o feixe imenso de técnicas e as redes desmedidas da comunicação, prolongando esse projeto e essa marcha da liberdade da
humanidade responsável de si e do mundo. Para cada indivíduo,
para todo grupo, para toda sociedade, a liberdade é um dom e uma
conquista. Para todos e cada um, de início ela é, radical e germinal140
mente, a capacidade de se fazer livre. O ser humano surge como um
processo, assumindo sua própria lei na área da emancipação. Conta
com quem ajuda, esquiva ou neutraliza quem contraria a marcha liberadora, pretendendo precisamente conduzir essa marcha e se impor qual molde da tenra liberdade em formação.
O processo de emancipação, de se fazer como um ser livre, é
mais visível no individuo. Mas, ele é a carta magna presidindo o
surgimento e a evolução dos povos, que existem como povos na
medida em que realizam sua plena emancipação.
Tomando como referência o Ocidente e como ponto de partida
a Renascença, a história, em sua inspiração profunda, aparece qual
série de aventuras e desventuras da conquista da liberdade. Nem se
pense que se trata de uns contos edificantes de luta do bem contra o
mal. Havia e há ambiguidades da parte dos que se batiam pela liberdade e do lado do poder que se empertigava em defender seus castelos, contendo e simbolizando sua missão e seus privilégios.
Muitas vezes, as liberdades arrancadas aos de cima não passavam aos que labutavam ou vegetavam em baixo.
E os novos senhores que conquistaram a liberdade dos nobres e
aristocratas, se constituíam em nova classe dominante, do comércio,
da indústria, marginalizando, sujeitando e alienando mais ainda as
camadas inferiores de uma sociedade agora legalmente desigual.
Nessa situação ambivalente, uma forma de libertação chegava
a ocasionar outras formas de submissão senão de opressão. A liberdade de comércio levava à concentração de poderes econômicos,
aos oligopólios e aos monopólios, de que a imprensa era o mais cobiçado dos objetos. A história das façanhas e lutas pela liberdade,
vindo de mistura com as acomodações e as cumplicidades na manutenção de tristes modelos de servidão, de trabalho escravo ou de
exclusão do trabalho, se mostra muitíssimo ilustrativa da necessidade de definir qual seja o paradigma ético da liberdade que constitui o valor de base da existência individual e da ordem social.
Como todos os direitos fundamentais, a liberdade é indivisível.
141
Ela terá de se afirmar e desdobrar como a liberdade para todos,
ou ela resvalará em uma dominação camuflada, e se tornará mesmo
cínica naqueles que ocuparam os primeiros espaços disponíveis e
excluem os outros, em nome da liberdade.
Assim, no caso da mídia, a liberdade há de ser simultaneamente a liberdade do jornalista, da empresa e do público. O mesmo se
dá com os outros sistemas. Em todos os setores, em todas as instâncias e redes da economia, da política, da educação, do direito, a liberdade deve ser partilhada, compartilhada, no plano da decisão e
da execução.
No exemplo, sem dúvida, mais visível, cumpre reconhecer: a liberdade constante e duradoura da informação só será assegurada na
medida em que ela se apoiar na participação do público de maneira
pública e transparente. A comunicação social vive da transparência.
Toda influência ou pressão clandestina, direta ou indireta, seja de natureza econômica, seja de ordem política, destrói a liberdade.
A liberdade é um valor em si, pois se afirma e define como a
primeira qualidade do agir humano. É a prerrogativa e capacidade
de se possuir, de se dar, de se fazer e fazer as coisas, de tecer relações à luz e pela energia de um querer racional. Ela será igualmente
a fonte dos outros valores, porque os membros da sociedade e essa
própria sociedade sem a liberdade, especialmente sem a livre informação e a livre comunicação das ideias, não poderão exercer os outros direitos e praticar os diferentes deveres pessoais e sociais.
A liberdade assim definida como valor ético primordial emerge
como o triunfo constante desse querer racional sobre um querer caprichoso, sujeito a paixões ou pulsões, que fazem do indivíduo o
escravo de seu egocentrismo, em detrimento do amor racional e ordenado ao bem da pessoa e da sociedade.
A liberdade qual paradigma ético de ação, de relação, de autoconstrução da pessoa e da sociedade assume a forma da responsabilidade. Esta surge no plano do agir, como o apogeu e a plenitude da
liberdade. A responsabilidade é a afirmação, o triunfo da liberdade
que se qualifica e consolida. Tornando-se responsável, a liberdade
142
vence uma dupla forma de alienação, seja de coerção seja de permissividade.
Com efeito, na vida social, a liberdade continua sempre a se ver
ameaçada por diferentes tipos de coação, de violência, de pressões,
vindos dos mais fortes, ou por coibições e restrições impostas pela
penúria, pela falta de condições e meios para poder se afirmar e se
determinar por si mesma. Outros tipos de alienação decorrem da licença, da permissividade, da demissão, diante dos caprichos, do arbítrio e das paixões, da facilidade e do comodismo. Para cada indivíduo e para todo grupo, a responsabilidade se consegue ao preço
de um rude e belo combate. O que supõe saber detectar e enfrentar
os inimigos internos e externos da liberdade.
Essa atitude vitoriosa, que é a responsabilidade, resulta da conjunção constante da liberdade continuamente conquistada e da inteligência sempre em marcha. Ela se abre à análise da realidade,
buscando descobrir os espaços de liberdade de que se dispõe. Ela
ocupa e alarga esses espaços. Essa responsabilidade realista crê na
liberdade, parte da liberdade, consolida e amplia a liberdade. Ela é
o dinamismo da democracia.
No diálogo e nas várias formas de intercâmbio que encaminham a humanidade rumo a uma ética mundial, um lugar privilegiado está reservado à liberdade e à responsabilidade, que se hão de unir
e apoiar mutuamente. Pois, segundo os temperamentos e mais ainda
em consequência das heranças históricas, culturais e religiosas, há os
que têm medo ou alergia no que tange à liberdade, acolhendo de bom
grado pelo menos o discurso da responsabilidade, entendida como limitação da autonomia. Outra corrente guarda suas suspeitas diante
da linguagem da responsabilidade, temendo-a como ingerência eventual de poder externo, tendo em mente os paradigmas da responsabilidade jurídica, e até seus aspectos policiais.
Uma ética autêntica buscará integrar a liberdade em sua realização plena que é a responsabilidade, primordialmente em sua modalidade ética, sem menosprezar a responsabilidade se exercendo
no campo do direito e também da política.
143
A justiça valor constitutivo da retidão das pessoas e nas
estruturas
A reflexão ética abrirá um espaço próprio e amplo à justiça
como virtude6. Aqui se indica de forma sucinta o seu lugar no cortejo dos valores éticos.
Inicialmente marcada pelas lutas pela liberdade, a partir do século XIX, a história da Modernidade se caracteriza pelas reivindicações suscitadas em nome da justiça. Esse apelo à justiça, qual
corretivo aos desmandos da liberdade, nos conduz ao centro do
problema ético: a necessária conexão e confluência dos valores
fundamentais.
A justiça visa a plena e total retidão nas ações, nas relações sociais, tendo em conta os efeitos das ações, de seus efeitos ou de suas
omissões. Concretamente, em sua dimensão de valor presente à sociedade, a justiça visa a promoção de todos os direitos para todos, a
procura e a promoção do bem comum nas ações e relações interindividuais e na rede das relações e organizações da sociedade.
A justiça é o valor que realiza a sociedade em sua qualidade ética. Ela começa por acolher e promover a verdade do que é a sociedade ou do que deve ser em sua prerrogativa de construção humana
em vista do bem comum. A liberdade responsável tende a efetuar
esse ideal de ética social. Mas essa efetivação da sociedade em sua
retidão ética, aprimorando as pessoas e tecendo as relações e instituições no sentido de garantir todos os direitos para todos, tal é a
missão da justiça, que há de ser o valor sempre presente, marcando
a ação e a vida de todos os indivíduos e amoldando todas as estruturas e todo o funcionamento da sociedade.
A solidariedade, laço profundo do encontro mundial
Enquanto rede universal de comunicação, a globalização estende laços de compreensão ou de desconfiança entre as categorias
6. Cf. cap. 8.
144
sociais, entre as coletividades e entre os povos. A humanidade se
encontra tal qual ela é. A mundialização se efetua como o termo de
um processo histórico de aproximação, mas não deixa de ser surpreendente o resultado já alcançado e que se acumula e avoluma
em um ritmo sempre mais acelerado.
Há como um choque diante dessa descoberta não de um continente novo, mas dos continentes que se abrem, se revelam e confiam uns aos outros Há a imensa riqueza da cultura, com a evidente e
ostensiva prioridade da tecnologia, de cujos recursos vão todos aos
poucos usufruindo.
Para o projeto de uma ética mundial, o desafio agudo e incitante se condensa na grande interrogação. Esse primeiro encontro vem
motivado e animado mais por interesses de utilidade e de curiosidade, vai sendo viabilizado e prosseguido graças aos milagres da tecnologia. Como poderia levar à solidariedade profunda, a uma comunidade de nações que se estimam e ajudam, à consciência bem
informada e dinâmica de uma fraternidade planetária? Sem menosprezar os vínculos de uma concorrência leal nos intercâmbios econômicos, como estreitar e universalizar os laços de um entendimento cultural, artístico, esportivo e mesmo espiritual, tão grande
quanto o mundo e tão profundo quanto a compreensão que o ser humano vai tendo de si mesmo?
Na verdade, a comunicação, que deveria ser a expressão da solidariedade, surgiu e avança, ela se globaliza, marcada por uma ambivalência fundamental. Essa ambivalência tem uma dupla fonte:
• a primeira são os vínculos de dependência que ligam a comunicação aos outros sistemas sociais;
• a segunda deriva da natureza mesma da comunicação.
A mídia assume as qualidades e mais facilmente ainda os defeitos dos outros sistemas políticos, econômicos e culturais. Ela tenderá a reforçar, a ampliar e a enraizar as características desses sistemas. As desigualdades, as discriminações, as exclusões desses sistemas passarão normalmente para a mídia, que é por eles sustentada e animada. Normalmente ela será o circuito de comunicação da
145
classe dominante, que significa a classe dotada de poder e de dinamismo aquisitivos. Ela se identificará com os interesses, com as
formas de pensar, de agir, de sentir, com a mentalidade e a ideologia dessa classe que forma a rede dos consumidores e tem em geral
seus líderes nos próprios patrões da mídia.
Encarada em sua vinculação com os outros sistemas, a mídia
exigirá um esforço coletivo de verificação e de reorientação no sentido da solidariedade, tornando-se um projeto ético e político global. Este visa a implantação da solidariedade na mídia e, ao mesmo
tempo, no conjunto de toda a sociedade.
Mas, para além dos desvios históricos, em si e de si mesma a
comunicação é aberta à solidariedade. Na medida em que ela é um
circuito de informação, que obedece simplesmente ao desejo natural de conhecer, a mídia leva ao interesse pelas outras comunidades, pelos outros povos e continentes. Ela se presta ao trabalho ético, responsável e certamente difícil, de valorizar o outro, o diferente, sem cair na busca sistemática do exotismo, da representação
grotesca, caricatural dos outros povos, raças e culturas.
Na verdade, esse empenho universal por uma ética humana
pede a reflexão preliminar e constante sobre a coerência dos valores éticos, bem como dos sistemas sociais que eles são chamados a
animar e retificar.
Conexão e interação do quadrado dos valores
Tal é a verificação de base que dará eficácia à abordagem integradora voltada aos diferentes aspectos da mundialização dos setores e sistemas sociais. Ela há de ser também comparada com a necessidade de uma universalização correspondente no plano da ética, com suas felizes repercussões nos campos do direito, da política, da comunicação e da cultura.
A verdade, a liberdade, a justiça e a solidariedade constituem
valores dotados de conteúdo, de consistência e de autonomia. Pois
são qualidades éticas absolutamente indispensáveis para que a so146
ciedade vise e atinja os seus objetivos humanos de respeito e promoção da dignidade da pessoa e de realização do bem comum. Mas
a orientação a esse único e mesmo objetivo global manifesta a interdependência e a interação desses valores.
• cada um é um valor em si, uma qualidade humana irredutível
da comunicação e da vida social, a ser procurada pelo bem que
ela é;
• e os quatro são conexos e inseparáveis, um não se realiza plenamente sem o concurso dos outros três.
Essa constatação ética se mostra suscetível de uma ilustração
histórica. No início e em várias etapas da história da imprensa, da
economia, da política, se verifica a procura isolada da verdade ou
da liberdade; ou se buscam a verdade e a justiça, deixando na penumbra a liberdade; ou se insiste na função de solidariedade, de
busca da coesão social, com o descaso de outras funções ou com
uma menor atenção a uma ou ao conjunto delas.
O liberalismo exalta a liberdade como suficiente em si ou como
um dinamismo que acabará por fazer surgir os outros valores.
Dê-se a liberdade à mídia e com essa liberdade virá a plena realização de toda a ética. É a mesma confiança que anima os economistas
da milagrosa “mão invisível”, do “deixar fazer”, pois a concentração das riquezas levará a sua justa distribuição. Ao invés, os partidários da “ordem” pretendem conduzir a imprensa, a economia ou
a política, enquadrando-as numa linha de “ortodoxismo rígido”,
como se as tivessem introduzindo no reino da verdade.
É o que se viu em regimes conservadores do século XIX e ainda no século XX nos sistemas ditatoriais ou autoritários de direita
ou de esquerda. Nesses últimos modelos, a solidariedade, entendida como coesão e conformismo social, se juntava à “verdade”,
compreendida como ideologia unificadora ou modeladora da sociedade. E as duas se juntavam formando um forte laço, bom só
para prender ou enforcar o pobre povo.
Isolar os valores é distorcê-los e enlouquecê-los. Os quatro valores básicos de verdade, liberdade, justiça e solidariedade consti147
tuem um sistema, em que cada um é necessário, e todos se completam em uma verdadeira interdependência.
Que se pense em um mínimo de liberdade que um regime político permita. A dosagem restrita desse espaço outorgado a esse valor liberdade terá repercussão em todos os outros valores, cuja realização se tornará apenas parcialmente viável. Havendo menos verdade circulando na informação, se terá menos campo, menos facilidade para a promoção da justiça e da solidariedade.
Bem se vê, igualmente, que sem a verdade, não é possível qualquer liberdade, justiça e solidariedade. Que liberdade de voto pode
haver, se o eleitor não dispõe de nenhuma informação correta e precisa sobre o projeto de governo e as qualidades reais do candidato?
Se, com a profusão de financiamentos e publicidades, a mídia manipulou mensagens e imagens, talvez em um vistoso carnaval, em uma
série de shows de política-espetáculo, não circulou qualquer informação séria e racional. O eleitor não é cego. Mas dentro da noite escura da manipulação, todos os gatos e candidatos são pardos ou furta-cores.
Os valores se condicionam mutuamente, em seu crescimento
ou em seu declínio.
Ao falar de uma ética mundial integradora, o que primeiro se
visa é o despertar das consciências, levando a tomadas de posição
diante do caráter sistêmico da sociedade globalizada. Semelhante
visão da realidade permite e exige a compreensão da qualidade sistêmica dos valores que devem penetrar e animar todos os comportamentos e retificar todas as relações, organizações e estruturas da
sociedade tecnológica moderna.
Distinção e correlação dos valores humanos e evangélicos
João XXIII foi uma surpresa para a Igreja e para o mundo. Esse
papa introduziu uma compreensão nova da relação, diríamos da
correlação dos valores humanos e dos valores evangélicos, dentro
de uma distinção harmoniosa da fé e de uma ética universal essen148
cialmente racional em sua constituição e em seu conteúdo. Para os
cristãos e para os fiéis de outras confissões religiosas, desdobra-se
um campo e um modelo de reflexão de suma relevância para abordagem e mais ainda para promoção de uma ética mundial. Assim, o
que aqui se diz direta e concretamente da correlação dos valores
humanos e dos valores evangélicos, de maneira análoga e com as
devidas proporções se entende da relação mais ampla do humano e
do religioso em geral.
Para uma ética de inspiração cristã, o ser humano e todos os seres humanos se veem elevados pela mensagem, pelo exemplo e
pela própria pessoa de Cristo. Assim se distinguem os valores humanos e evangélicos; mas em um processo social em que eles se interpenetram e interagem. Pois o Evangelho exige que cada um se
realize em sua dignidade, em suas ações e suas relações de ser humano, à luz de sua razão, de sua consciência e no exercício de sua
liberdade. O cristão vê essa sua tarefa de cidadão iluminada pela
sua fé no Criador de todos e ele mesmo é assim impelido a colaborar com todos os mais cidadãos na construção e na manutenção de
uma sociedade justa, livre e solidária.
Os valores humanos são, portanto, critérios e caminhos para
que os fiéis se realizem como criaturas de Deus; ao passo que os valores evangélicos lhes são manifestados como perfeição mais excelente que convém aos filhos de Deus, unidos a Cristo e animados
por seu Espírito.
Na verdade, esses valores constituem a transfiguração dos valores humanos, que são levados à perfeição, porém mantidos com
maior exigência, pela aceitação e pela prática dos dons divinos correspondentes: a Verdade, a liberdade, a justiça e o amor.
A um olhar mais aprofundado e cuidadoso, se evidencia um duplo dado significativo. Primeiro, as mesmas grandes categorias que
para a reflexão ética exprimem os valores humanos fundamentais,
não apenas são assumidos e levados no plano religioso para manifestar às consciências dos fiéis ideais e imperativos em relação a
Deus. Mas igualmente entram no vocabulário religioso para designar os próprios atributos divinos.
149
No politeísmo antigo, como nos foi belamente transmitido pela
literatura clássica greco-romana, as divindades eram construídas a
partir das projeções dos comportamentos e sentimentos humanos,
ostentando uma sugestiva ambiguidade de paixões, de heroísmos,
de bravura, de façanhas de guerra e de proezas eróticas. Pois, todos
os deuses e todas as deusas aí surgem e refulgem descritos, desenhados e esculpidos maravilhosamente à imagem da humanidade
que os criou.
Ao contrário, no monoteísmo tal como se manifesta na revelação bíblica, o Deus Criador e Senhor da vida e da história, é o Deus
de santidade, é fonte e até certo ponto modelo, pelos seus atributos,
se dá e manifesta como fonte transcendente de normas do que deve
ser o humilde e bem ordenado comportamento de seus fiéis.
O ponto essencial e que se torna crucial no confronto das religiões com um projeto ético, sobretudo universal, é precisamente que
significado e que utilização se atribui à sacralização ou à divinização
dos valores humanos, contemplando-os em Deus ou integrando-os
às práticas da religião. Por essa sublimação ou transfiguração divina,
os valores humanos são confirmados, se tornam mais imperativos,
mais fecundos em modelos e normas de comportamento ético, honesto e correto para iluminar e orientar o dia a dia dos fiéis? Ou são
proclamados nas assembleias e nos templos em uma solenidade sagrada vazia de sentido e sem qualquer impacto na vida pessoal, familiar e social dos ouvintes dessa divina celebração?
Da simples evocação desses confrontos desponta uma série de
critérios para a apreciação, que compete em primeiro lugar às próprias religiões: que pertinência, que sentido têm os valores sacralizados e mesmo divinizados em confronto com os grandes problemas e os desafios imensos da humanidade, com a qualidade humana da sociedade que aí está entregue à responsabilidade dos cidadãos crentes ou sem fé?
O mapa esboçado desses valores humanos de verdade, liberdade, amor e justiça, assumidos e integrados à linguagem e à prática
das religiões poderia servir de referência ou de critérios para o al150
mejado confronto da atitude religiosa com o projeto de uma ética
universal.
O valor humano primordial da verdade tem uma função igualmente fundadora para a atitude ética que orienta a existência e a
ação. Ela é a disposição primeira para a acolhida da verdade revelada. Esta é oferecida como primeiro dom evangélico e a primeira
exigência de uma resposta que vem a ser a docilidade à Palavra, levando o ouvinte a se tornar discípulo de Cristo e a ele se conformar
pela docilidade ao Espírito de Verdade.
Essa docilidade consiste na junção do valor humano de sinceridade, do empenho em se conformar à verdade já conhecida e assim
se dispor a acolher toda a verdade, por mais exigente que seja, sobre si mesmo, sobre os outros, sobre a sociedade, sobre o destino
histórico e eterno do ser humano.
Com grande insistência, o Evangelho mostra essa vocação do ser
humano a se realizar pela busca da verdade consistindo em uma docilidade em todos os planos da comunicação na vida corrente e em
relação à verdade transcendente anunciada e personificada em Cristo. “Quem é da verdade escuta a minha voz”. O “ser da verdade” exprime a qualidade do ser humano em sua totalidade e em toda a sua
história, a junção profunda da verdade, valor humano e divino7.
Algo de semelhante se pode e se deve dizer do amor, em sua
dupla dimensão humana e divina, evangélica.
Em sua perfeição humana, o amor tende a ser um elã de total estima do outro, de doação gratuita e universal. O amor divino, anunciado e difundido pelo Evangelho; a caridade é o dom perfeito e
mais eminente, traduzindo o conhecimento e a acolhida do Amor
que é Deus, oferecendo-nos a capacidade e a exigência, o que na
linguagem bíblica se exprime como o mandamento de amar. Ele
comporta a perfeição de um amor gratuito, desinteressado, bem
como de um amor universal, à semelhança do Amor divino e por
graça desse mesmo Amor.
7. Tal é o conteúdo insistente dos caps. 5,6ss. do Evangelho de São João.
151
Essas qualidades divinas do amor assumem a condição humana
e os modelos que convêm a um valor ético levado ao ápice de sua
perfeição em meio às deficiências e aos limites da simples criatura.
Sua extensão toma um feitio concreto, pois compreende até o querer e o fazer bem aos inimigos e, na dispensação das coisas e dos
serviços, impele a dar, a dar de preferência aos mais necessitados.
É bem significativo que o Apóstolo Paulo após exaltar a sublimidade, a necessidade absoluta e a eternidade do amor divino que é
a caridade, passa a descrever a realidade deste que é o mais excelente dos carismas, apontando para toda uma série de comportamentos cotidianos, os mais singelos e humildes. O amor se torna visível e visível no dar, de tudo prover que seja exigido ou venha a
faltar para a felicidade na vida de cada dia (1Cor 13).
Esse amor divino é proclamado e exaltado como um laço de
perfeição, porque constitui a comunhão dos bens espirituais e temporais, das coisas do céu e da terra, inspirando sentimentos de uma
fraternidade na união com Deus e levando à atitude cotidiana de
partilha e serviço.
Ele reveste a característica do zelo, do empenho em buscar o
Reino de Deus, ou seja, da difusão efetiva e universal do amor em
sua sublimidade divina e em sua humilde condição humana.
O mesmo se explica em outro contexto, na comemoração e no
enaltecimento do “Amor que se difunde nos corações pelo dom do
Espírito” (Rm 5,5). Ele se mostra fecundo nas obras ou nos “frutos
do Espírito”. Esses “bens perfeitos” vêm manifestados em listas de
comportamentos generosos, nas quais a experiência cristã original
se exprime livremente em termos tomados de empréstimo à filosofia moral vulgarizada na época8. Torna-se aí bem visível a dupla
face humana e divina do valor abrangente do amor.
Essa mesma bipolaridade divina e humana se ostenta no valor
da justiça.
8. Cf., p. ex., Gl 5,22-24 e par.
152
O amor inclui e exige a prática da justiça, do reconhecimento
da dignidade e dos direitos do próximo, bem como o reconhecimento e a prática de todos os deveres na vida familiar e social. Mais
ainda, na medida do possível e segundo as condições de cada sociedade, a justiça cristã inspira formas de comunidades fraternas. Em
miniatura, ela realiza moldes de retidão e solidariedade em relações
interpessoais, prenunciando e já esboçando a busca de uma organização social que garanta todos os direitos para todos. É o que se vislumbra no retrato que o Apóstolo Paulo traça do fiel de Cristo assumindo o papel de cidadão no Império Romano9.
Olhando para a dupla dimensão desse valor primordial, pode-se destacar a liberdade do espírito humano, apregoada como decorrendo da docilidade ao Espírito divino. A liberdade evangélica
anuncia e oferece em uma primeira graça a liberdade espiritual, a
presença libertadora do Espírito em nosso espírito. Mas, com a
consciência da fraqueza, dos limites do ser finito em um mundo de
corrupção sedutora, essa libertação conduz o fiel de Cristo a discernir e detestar a força escravizadora dos instintos, das tendências ao
mal (chamadas a concupiscência, o desejo desregrado). Mais ainda, a liberdade do Espírito significa a capacidade de amar e praticar
o bem, de lutar para que o bem triunfe nos corações, nas comunidades e no mundo.
Assim, se desperta no culto cristão a gratidão pela energia santificadora e pacificadora do Espírito. Mas a ação de graças é fecunda. Ela incita a uma ação libertadora, mostrando que a escravidão
deve dar lugar a uma convivência fraterna e há de chegar a implantar no mundo uma sociedade justa e solidária, na medida mesma
em que se difunde a rede de comunidades que comemoram e celebram a obra libertadora de Cristo.
À luz de Pentecostes, a encarnação do Filho de Deus resplandece como um mistério de fé salvadora, mas igualmente se afirma
9. Cf. Rm 13,1-7.
153
como uma lei de encarnação do divino e do humano em toda parte,
propondo valores divinos em aliança com os valores humanos.
Em síntese, a evocação dos valores humanos em sintonia com
os valores evangélicos, e mais amplamente sua relação com as práticas e instituições de caráter religioso sugerem esta visão abrangente e sempre atual. As religiões são hoje chamadas, e mesmo intimadas a ser a força profética a serviço do anúncio e da implantação dos valores éticos em suas organizações e nos espaços sociais
de suas influências. É preciso ir mais longe. Mais do que todas as
outras instituições, as religiões hão de ser e brilhar quais espelhos
que, pelo exemplo e testemunho, refletem para o mundo o caminho
de ética autenticamente humana e universal.
Virtude, projeto de autenticidade e harmonia
As virtudes constituem o dinamismo próprio da ética. Por elas,
pelo aperfeiçoamento da razão e da liberdade que introduzem, a ética
não se afirma apenas como doutrina, mas se torna uma energia interior, como o elã da existência imantada pelo atrativo do bem.
Em um plano superior o sujeito ético terá então certa semelhança com o instinto, com o elã primordial nas origens e no íntimo dos
seres vivos, que por si mesmos tendem a se realizar e a crescer harmoniosamente. A analogia não de conceitos, mas de dois patamares da energia constitutiva da vida foi profunda e luminosamente
manifestada no conjunto das obras de Henri Bérgson.
Sua análise fenomenológica do ser, ou melhor, do vir a ser humano, culmina na sua grande obra as Duas fontes da moral e da religião10. Nela o filósofo mostra com rigor e beleza como a vida virtuosa, muito especialmente quando chegada ao ápice da mística, retoma
nas alturas e na perfeição espiritual aquela qualidade de espontaneidade, de posse de si, de duração interior e de evolução criadora que a
vida tem em si desde a forma elementar do instinto animal.
10. Cf. no cap. 14 o parágrafo “Convergência da sabedoria filosófica” e na bibliografia.
154
Com efeito, pela virtude, o sujeito ético é realçado em sua qualidade de princípio do agir, em sua natureza propriamente humana
de ser criativa de seu ser, de se fazer existir em uma essência de razão e liberdade. Pela orientação que ela se dá mediante a sua transformação interior da virtude, a pessoa tende a se identificar com o
bem, afirmando-se uma vocação ao bem.
A perfeição que brota dessa qualidade virtuosa realiza e revela
o ser humano como essencial e intimamente ético, contrariamente
a todo comportamento resultando de uma conformidade imposta
por uma lei externa. No sentido mais forte e completamente adequado, a virtude é a autenticidade humana na razão e na liberdade.
É a plena autonomia, o ser humano se tornando sua lei, não porque
a tenha criado, mas porque a faz sua, levando à perfeição uma capacidade, esta sim natural, passando da virtualidade recebida à virtude adquirida.
Esse processo de acolhida do bem, graças a uma afinidade com
ele, faz com que a virtude se manifeste qual harmonia e identidade
consigo mesma, mas conquistada em um triunfo progressivo. Há
uma feliz convergência interior do bem em si reconhecido e interiorizado como próprio bem da pessoa. Dessa livre opção resulta que a
transcendência do bem, longe de se impor como vinda de fora ou do
alto, se torne imanente ao sujeito virtuoso, que ela assume e eleva.
Assim, enquanto conquista, enquanto triunfo a virtude tem
algo de um esforço mobilizado, de uma luta. E mestres de tendências diferentes, como Erasmo e Inácio de Loyola, falarão do agir virtuoso como “combate espiritual”, como “agere contra”, como
“agir contra” uma inclinação natural, primitiva. Na verdade, no
cerne da experiência que a constitui e da noção que a define, a ética
supõe uma antropologia, uma visão complexa e dinâmica do ser
humano, que emerge como um feixe de desejos manifestando capacidades e tendências maleáveis.
Estas se mostram distintas e conexas, suscetíveis de progresso
e de harmonia. Aqui, se manifesta aquele elã, surgindo primeiro
como energia vital, prosseguindo depois como vital e afetiva, im155
pelindo ao desenvolvimento de cada uma das pulsões primitivas e
do seu conjunto. Essas começam, portanto, como feixes de promessas e potencialidades. Se a evolução é feliz e bem conduzida,
elas tenderão, em um processo normal, a se firmar e afirmar como
perfeições mais ou menos acabadas, que constituirão esta harmonia
que há de ser a pessoa. Na pessoa virtuosa, se realizará e resplandecerá a complexidade dinâmica e equilibrada, o princípio do prazer,
o gosto de viver desabrochando em entendimento e bem querer, em
reconhecimento do sentido da existência e em comunhão com os
outros e com o mundo.
Essa primeira compreensão da realidade das virtudes vai permitir discernir, no centro da história das religiões, das culturas, das
sociedades, um empenho, um cuidado pedagógico, ou, ao contrário, o descaso e o desencanto diante desse belo mas difícil processo
de aprimoramento humano. Hoje, o projeto de uma ética mundial
vai encontrando com novo interesse e até com entusiasmo o paradigma das virtudes, nele reconhecendo a vocação humana ao amor
do bem em si e do bem para cada um e para todos.
A humanidade se vê convidada, incitada mesmo a se encontrar
na fraternidade, no pico da montanha dos valores e das virtudes,
não a se enquadrar em alguma moral autoritária ou a se entreter em
simples camaradagem diletante na planície da mediocridade.
Definição necessária e fugidia
Em um primeiro momento, o acordo parece reinar ou se restabelecer sobre esses dados elementares: as virtudes designam as
qualidades das pessoas como sujeitos ou agentes éticos. Elas interiorizam o bem, o conjunto dos valores, fazendo-os amar e praticar
de forma permanente, como brotando da convicção e da livre opção da pessoa. Esta estará assim aprimorada e qualificada pela virtude para bem agir no plano ético, como a habilitação profissional
lhe dá uma competência no plano da técnica.
Pode ser instrutivo verificar que essa visão positiva é hoje em
grande parte um retorno ou um reencontro. Também é importante
156
ter em conta a fase crítica da derrocada geral das referências tradicionais. Assim, o existencialismo e o pós-existencialismo punham
em voga o “abaixo a virtude”, “a virtude é um truque” sem préstimo nem valor. Aliás, o mundo moderno não deixará de dar crédito
a Nicolau Maquiavel, quando aconselhava aos políticos, como menos difícil e mais proveitoso, parecer antes do que ser mesmo virtuoso11. Dada a multiplicação dos tartufos e certa voga da hipocrisia
correta e virtuosa, não faltaram as denúncias das patologias da virtude e os apelos às terapias das ciências humanas.
A reflexão ética pode hoje tirar o maior proveito das críticas
não apenas dos abusos, mas visões parciais e das práticas imperfeitas dos vários modelos históricos, culturais e religiosos em que a
virtude foi cultivada com mais ou menos acerto e clarividência.
A virtude é uma das noções éticas mais estudadas, mais exaltadas e mais criticadas12. A sua definição, traduzindo a visão adequada de sua função e a compreensão integral e bem ordenada de seus
elementos, parece sempre desejada e sempre fugidia. O apelo à virtude corresponde ao sentimento ou à percepção de uma carência, se
revelando quando o ser humano se encara como projeto em vias de
realização e se vê falho, incapaz e desordenado. Constata uma distância entre o conhecimento ideal que tem de si e a realidade de sua
vida real, em sua experiência interior e em seu relacionamento social. A virtude é então desejada para preencher esse vazio ou para
trazer a harmonia, para levar o ser humano à sua plena realização.
11. Nicolau Maquiavel (O príncipe, esp. cap. 15) é uma fonte preciosa para a
compreensão da visão moderna da política e do político, mas, sobretudo da “virtude”, da ética que prevalecerá desde a aurora do mundo moderno e parece muitíssimo presente na prática política contemporânea. Daí o interesse que se dá aqui
a sua atitude crítica em relação ao tema da virtude, por ele redefinida com muita
fineza e com certa atenção aos comportamentos dos “príncipes” de sua época.
12. Na bibliografia, na seção “Ética fundamental, virtudes, valores e direitos humanos”, sugerimos estudos sobre as oscilações de algumas correntes éticas em
torno da noção de virtude.
157
A etimologia do termo virtude na latinidade, em consonância
com o vocabulário grego dotado do mesmo significado e das mesmas conotações, aponta o sentido de força, de energia e de excelência. É curioso e, sobretudo instrutivo notar como Nicolau Maquiavel
destacou e isolou esse primeiro elemento semântico do termo virtú,
nele ressaltando o vigor, o valor de decisão e ação, qualidades típicas
do político, capazes de levá-lo a triunfar de tudo e de todos e a se afirmar e impor como o mais excelente entre rivais e competidores.
Há algo de genial nessa visão concentrada, unificada e exclusiva da virtude. Ela opera o discernimento do princípio inspirador da
modernidade enquanto esta privilegia o sujeito, como autonomia,
como senhor de si, chamado a senhorear, a saber e querer dominar,
prolongando na história humana a lei das selvas, a lei da luta pela
vida, o triunfo do mais forte, pela violência, pela astúcia, por uma
forma racional e operacional de concorrência.
O exemplo maquiavélico – o qualificativo nada tem aqui de pejorativo – ilustra o processo semântico, cultural e social de jogar
com o vocabulário da virtude. Convém pôr em relevo e se possível
em plena luz os elementos que estão em jogo na experiência moral
e na reflexão ética de base. É a consideração primeira e crucial para
o ser humano quando enfrenta sua condição de se ver responsável
de dar um sentido e um destino à existência.
Essa condição humana é inicialmente vivida e aparece sempre
bem simbolizada pelo confronto que se inaugura na infância, quando a criança se vê e é levada a se ver como um pequeno ser humano,
buscando um lugar entre os grandes, entre os adultos. E, quando o
menino e o adolescente contemplam seu universo imaginário e
ideal batido no confronto e na concorrência desleal da inexorável e
dura consistência das coisas e do mundo.
É esse desamparo total, apenas insinuado aqui, que constitui o
contexto de vida onde surgiu no passado e surge hoje a questão ética
da virtude. Onde e como encontrar a energia, a coragem de viver? E
mais, esse elã, essa força motivadora e impulsionadora nada tem da
segurança de um instinto determinado, mas cego, capaz de fazer
158
avançar o animal, embora seja desprovido de conhecimento do caminho e do termo da caminhada. Tanto mais que, para o homem, a
própria marcha, o desenrolar mesmo da existência multiplica as interrogações. Ele não vai em frente senão na medida em que encontra
o sentido de caminhar, o que vem a ser resposta da razão em sua função prática de motivar e legitimar a ação e de torná-la viável.
As grandes tradições éticas começam por tentar dar uma resposta a essa questão primeira e crucial. Dentre essas tradições religiosas ou laicas em suas inspirações convém ao menos evocar
aquelas que estão na base da civilização atual, muito especialmente
no Ocidente.
Os mestres, as escolas que os cercam ou os seguem na busca da
sabedoria, de um sentido da vida e da ação, começam por um olhar
interrogativo, por uma visão ao menos provisória da condição humana. Surge assim o “fenômeno humano”, um feixe de dados suscetíveis de ser observados, analisados e constituindo o grande enigma
que está na fonte ou na base da ética: quem é responsável? Quem é
responsável do existir, do que foi feito, do que está sendo feito e do
que será feito de cada um e do conjunto dos seres humanos?
Decifrar o enigma do ser humano de maneira concreta e operacional, capaz de indicar e justificar rumos para orientar a decisão e
a ação, tal é a missão que a sabedoria ética vem assumindo, sob formas elementares ou elaboradas de reflexão.
Essas últimas merecem hoje a atenção da humanidade que desperta diante da urgência de uma ética universal, cuja autenticidade
e viabilidade estão condicionadas à capacidade de uma prática hermenêutica abraçando as escolas éticas do passado em sintonia com
as questões humanas persistentes na atualidade.
Com efeito, as correntes éticas gregas e romanas, que se sentiam
continuadoras das sabedorias antigas, as mais mencionadas sendo as
egípcias, persistiram e persistem na problemática ética que está na
base da reflexão filosófica, das referências e das tradições culturais,
de maneira explícita, pelo menos na civilização ocidental.
159
Sem dúvida, as doutrinas e posições dos estoicos, talvez os
mais presentes e influentes, das escolas e dos discípulos de Epicuro, de Platão, de Aristóteles enfrentam os grandes problemas e as
grandes questões que cresceram com a ampliação e a globalização
do mundo, mas sem perderem sua consistência e suas características primeiras.
A noção de virtude está no centro dessas contribuições históricas e do interesse renovado que apresentam hoje especialmente
para o projeto de ética mundial que desponta em vários setores e em
quase todas as regiões do globo. Aliás, mais do que uma noção abstrata, trata-se de uma compreensão do que há de central na ética, ela
mesma entendida como caminho de realização do agir na perspectiva da condição e do destino humanos.
Na base está, portanto, uma antropologia, uma visão do ser humano, a qual busca ser integral em abrangê-lo em sua inteireza e
complexidade, sendo igualmente operacional para favorecer seu
pleno desenvolvimento. Visa, portanto, uma compreensão teórica,
mas essencialmente voltada para a prática, para o sentido a dar à
vida tal qual ela se apresenta no dia a dia, para cada homem e cada
mulher, no modelo de sociedade em que vivem.
Mas, o que é mesmo a virtude?
A definição da virtude tem algo de uma essência, de um perfume que se volatiliza e exala, de uma beleza ideal e fugidia. Ela está
em toda parte, mas não se detém em lugar nenhum na roda-viva da
experiência, no pensamento de cada um e mesmo na reflexão dos
mestres da inteligência, da ética e da espiritualidade.
O melhor caminho para chegar o mais perto possível de uma
noção exata e de uma compreensão praticável da virtude será detectar em um primeiro momento as feições de seu rosto tais como
têm sido visualizadas pelos diferentes mestres e correntes espirituais, para em seguida delinear a imagem a mais completa e harmoniosa desse modelo ideal e realizável de perfeição humana.
160
Não seria um privilégio de nosso tempo dispor das informações
e recursos suficientes para poder fazer a volta completa de uma
questão e ter dela a ideia senão a mais perfeita, pelo menos a menos
incompleta que nos seja possível? Essa condição da modernidade
globalizada é precisamente a oportunidade máxima de tender a
uma ética universal e planetária.
Em uma marcha, sem dúvida paciente e progressiva, damos
com o primeiro traço que se reconhece como típico da virtude. Ela
é a qualidade de lucidez e coragem do ser humano que se vê capaz
de se aprimorar. Ele se reconhece como inacabado, imperfeito, mas
suscetível de ir se fazendo, perfazendo, a golpes de opções livres e
acertadas. Por elas vai se mudando em melhor, interiorizando em
seu ser uns traços de bondade, contemplados e admirados em seu
ambiente cultural, mas apreciados e aprovados pela sua própria inteligência. Já na linguagem utilizada se delineia uma analogia com
a estética. Pela virtude, a pessoa se torna artista e matéria de sua
criação, de sua autocriação, dando-se uma nova forma de existir na
beleza do amor, e do bem.
A esse processo mais geral, nessa primeira visão ligeiramente
feminina da virtude, vem se inserir uma nota de militância, insinuada já na palavra virtude, como que viril atitude, uma pincelada do
machismo que se introduz em todos os cantos da civilização desde
os primeiros milênios da aventura humana. Mas a verdadeira característica da virtude assinalada e elaborada pelos mestres e a ser assumida pelos homens e mulheres é a sua qualidade de força, de um
empenho de superar obstáculos de fora e, sobretudo, de dentro desse projeto vivo de se realizar, que é a definição concreta da condição humana. Ainda aqui estética e ética fraternizam, professando
que o ideal de beleza exterior ou interior só se consegue desbastando o que possa desalinhar o corpo e o espírito, limpando manchas,
eliminando formas e fontes de desordens.
Esse aspecto dialético, de luta ferrenha e incansável contra o
que surge como o mal ou caminho para o mal, surge na experiência
de cada um e na reflexão ética de todos os mestres e escolas da sa161
bedoria humana. Toda dificuldade está em entender quais são os
inimigos do bem e da virtude, como deslindar a malícia deles, discernir se são mesmo adversários ou eventuais concorrentes que se
podem virar em parceiros. Ou quem sabe, lá está o valoroso e coitado Dom Quixote se batendo contra os moinhos imaginários em defesa de virtudes de pura fantasia.
Entendendo-se a virtude como o empenho racional e livre de
fazer e de se fazer segundo o bem, vê-se postar diante dela todo um
cortejo de adversários enquanto se opõem à razão, ao livre querer e
ao bem. Esses elementos ou forças que se contrapõem à virtude e
que ela deve enfrentar e superar vêm a ser o prazer, as paixões, os
bens materiais, o apego ao eu, ao amor próprio, levando em conta
as diferentes formas de desordens e perturbações que decorrem da
presença desses fatores.
Nessa procura de precisar a noção e o dinamismo próprio da
virtude diante desse campo adverso, será conveniente clarificar os
tipos da antítese, do combate que o virtuoso deve empreender.
Alguns desses mestres, dessas correntes ou tendências éticas, espirituais partem para a negação ou recusa totais. Outros optam pelo
equilíbrio, pela utilização moderada e bem medida do prazer, das
paixões, do apego a si mesmo ou aos bens materiais.
Assim, os estoicos se mostram partidários da oposição radical
entre as instâncias e tendências que constituem o dinamismo do ser
humano.
É uma questão de sim ou não. A virtude se define pela oposição
total e absoluta à paixão. Ela se afirma como a conformidade da razão à natureza, às leis e às finalidades da natureza tais como a razão
as decifra e interpreta. O virtuoso será, portanto, o sábio impassível
em plena conformidade racional com a natureza, esse imenso código
lógico e normativo que rege o cosmo e deve reger a humanidade.
O conjunto ou a grande maioria dos estoicos professa a necessidade de suprimir as paixões. Há, no entanto, os que aceitam ou se
resignam a tolerar as sensações ou reações agradáveis do prazer no
comer que alimenta a vida e no uso da sexualidade que a transmite.
162
A manutenção e a propagação da vida são bens e objetivos naturais, eticamente bons se forem marcados pela lei da razão. Portanto, o sábio virtuoso só aceitará o uso conjugal da sexualidade visando estritamente a fecundidade, que justifica o prazer sexual ou o
torna tolerável como mal necessário. Esse prazer tão intenso tem
qualquer coisa de uma astúcia da natureza visando o comum dos
mortais, pouco virtuoso, que sem ele se esquivaria ao dever primordial de procriar.
O estoicismo exerceu uma influência imensa senão universal
na moral sexual da cristandade ocidental, muito especialmente no
que toca à sexualidade. No que diz respeito à noção de virtude ele
terá seu impacto, sobretudo em certas correntes espirituais, cuja ascese será marcada pelo pessimismo diante do prazer e do uso das
coisas materiais13.
Uma outra visão da virtude parte de uma compreensão positiva
e integral do ser humano, da natureza humana e de todos os elementos que integram essa natureza, particularmente as paixões, o
prazer e muito especialmente o prazer sexual. A virtude será então
entendida como a qualidade habitual que aperfeiçoa a capacidade
racional e livre de agir do ser humano, na plena conformidade com
sua natureza, compreendida na complexidade total de seus elementos de razão, liberdade, do feixe integral de paixões e de capacidades de prazer.
Semelhante compreensão positiva e integral destacando o ser
humano, na complexidade e riqueza de suas potencialidades de agir
e progredir pela ação bem ordenada, e enaltecendo a virtude enquanto qualidade que aperfeiçoa a capacidade agir, dando-lhe mais
eficácia e autonomia é a grande contribuição de Aristóteles à ética e
13. Desde os tempos antigos se tem estabelecido a antologia dos diferentes textos
estóicos, mostrando com toda a evidência, a persistência do antagonismo irredutível das “paixões e das virtudes” em todas as correntes e em todas as etapas do
estoicismo desde a Grécia e a Roma da Antiguidade. Cf. na seção “Ética fundamental, virtudes, valores e direitos humanos” da bibliografia: MARÉCHAUX, P.
Passions et vertus.
163
à cultura em geral. O filósofo considera e analisa a tríplice dimensão da ação humana, distinguindo plano do fazer, de produzir algo
de externo ao agente humano, e do agir, no sentido estrito e profundo, do aperfeiçoamento que a ação traz ao sujeito que a efetua.
Dessa capacidade de atuar que compete ao ser humano surgem
os três grandes domínios:
1) Do trabalho produtivo que modifica as coisas e produz objetos de utilidade, a plena qualidade ou competência do homo faber sendo então a técnica.
2) Da estética, da criação da beleza, nas diversas formas da arte.
3) E finalmente do aprimoramento do próprio ser humano pela
virtude. É o domínio específico da ética. Ele tem algo de semelhante à técnica, à atividade produtiva, mas na forma eminente
de um sujeito que se constrói na liberdade e na autonomia; e encerra igualmente certa parecença com a arte, pois a ética visa
essa construção de si na liberdade, no amor e na conformidade
ao bem. É como uma autocriação do ser humano em moldes de
beleza interior.
A elaboração dessa doutrina possibilita a compreensão do caráter
progressivo da virtude, que será objeto de uma educação desde a primeira infância e se estendendo a todas as etapas da vida bem como na
atenção crítica e construtiva do ambiente cultural familiar e social em
que realizarão essa educação e esse desenvolvimento ético.
Essa visão integral da virtude e da ética em geral será transmitida por Aristóteles ao Ocidente cristão, sendo ampliada, aprofundada e reelaborada por Tomás de Aquino e assim incorporada na teologia cristã14.
14. A síntese de Tomás de Aquino se pode ler na Suma Teológica, I-IIae., q.
55-67. A doutrina aristotélica amplamente integrada pela teologia medieval se
encontra especialmente na Ética a Nicômaco, livro II, que Tomás de Aquino comenta ampla e profundamente, em seu quadro filosófico, antes de assumi-lo em
sua própria síntese teológica.
164
Hoje a verificação cuidadosa dessas oscilações na busca da definição e na compreensão vivida da virtude é da maior relevância
quando se trata de compreender o projeto de uma ética mundial,
das condições de sua autenticidade e viabilidade. Essa compreensão está a exigir o encontro e o diálogo dos diferentes parceiros culturais e religiosos, que se hão de empenhar em elucidar não apenas
questões menores, mas os grandes problemas como o consenso em
torno da própria compreensão da virtude, da natureza, da razão, das
paixões e do prazer.
A viabilidade desse progresso cultural e ético pode contar hoje
com as contribuições de uma antropologia mais rica e atenta às dimensões históricas, conscientes e inconscientes do ser humano,
que se manifestam no espelho pluridisciplinar do conjunto da moderna tecnociência. Essa visão mais ampla e profunda da humanidade, como capaz de se aprimorar pela competência da virtude superior à prodigiosa competência técnica de produzir utilidades, tem
ainda um outro grande aliado no encontro e no intercâmbio inter-religioso de experiências e doutrinas éticas e espirituais. Este
tem sido um dos pontos de partida e de marcha progressiva do atual
projeto de ética mundial.
Universo integrador das virtudes cardeais
O essencial dessa visão ética das virtudes está em lhes reconhecer um lugar e uma missão primordial, de elã propulsor, de orientação racional e plenamente autônoma se exercendo na história vivida de cada um e na história cultural da humanidade.
A ética dos valores e das virtudes que os interiorizam e fazem
viver corresponde a um modelo eminente de humanidade.
Com mais ou menos êxito, ele vai buscando um espaço de sobrevivência dentro do modelo mais facilmente viável do reino dos
interesses, das ambições, das pulsões e paixões, aceitos como lei
imanente e dominadora da vida. Nesse modelo da humanidade,
animada e movida pelo apetite de prazeres e utilidades, as leis e
165
normas familiares, sociais, morais e religiosas funcionam com freios, contramãos e contratempos.
O modelo de humanidade que se constrói pela livre aceitação e
livre consenso às virtudes e aos valores éticos encontra ou se dá
uma lei imanente, constituindo um universo de liberdade, de responsabilidade e de solidariedade. A ética não surge então com a escura ou cinzenta negação da vida.
A ética será uma proposta de vida em um universo de harmonia
e felicidades humanas, regulado por um universo de virtudes e valores, que não irrompem em tais momentos para romper ou estorvar o curso da vida, mas envolvem toda a vida com seus desejos,
amores, projetos e sonhos, como viáveis e realizáveis em uma república fraterna de cidadãos responsáveis e solidários.
A palavra república não foi digitada por acaso. Vem no bom
momento para indicar o projeto bem construído, talvez o mais belamente elaborado da sociedade de braços dados com a ética e mesmo que se deixa envolver e amoldar totalmente pelas virtudes e valores éticos. República é termo com que nas línguas latinas, já com
o patrocínio de Cícero, se traduziu o diálogo que Platão consagrou
à Política, à sabedoria da Cidade, da sociedade e do Estado e dos
Cidadãos, chamados à aprendizagem da Justiça, o molde ético a
que tudo e todos se devem livremente integrar15.
A justiça se mostra de fato energia e qualidade integradoras,
pois traz consigo os demais valores e virtudes pessoais e sociais. E
os confronta com a sociedade em seu todo e nas junturas de suas
partes, tudo sendo analisado e criticado de modo que uma harmonia se torne possível.
A escolha do diálogo, como gênero literário, vai muito bem no
propósito de tratar um tema complexo sob os diferentes aspectos da
realidade abordada ou de sua presença na cultura ou na mentalidade comum. A busca da definição, de uma noção adequada e con15. Na coleção Os Pensadores da Editora Nova Cultural encontra-se a República,
de Platão. Veja a apropriada tradução em língua portuguesa de República: 9. ed..
Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2007.
166
sensual da justiça, na boca dos diferentes interlocutores abre o caminho para a compreensão desse valor e dessa virtude-base. Mais
ainda, lança muita luz sobre o contexto intelectual e social que a
prática e a promoção da justiça têm sempre que enfrentar. Como
Jesus nos Evangelhos, o “Sócrates” de Platão sabe aliar maravilhosamente o despertar das consciências, o empenho de refletir sobre
as doutrinas com a realidade da vida, a situação em que se movem e
se debatem as pessoas, as categorias sociais ou as correntes de ideias
e o jogo dos preconceitos e ideologias.
A discussão inicial sobre a noção de justiça, dos modelos certos
ou errados de entendê-la, de praticá-la ou de a ela se opor, vai se
alargando naturalmente até abranger o cortejo das três outras virtudes de base: a prudência ou sabedoria prática, a temperança ou sobriedade no uso dos prazeres e da força, no empenho de superar o
medo e de garantir a segurança na sociedade. Essa ampliação na
consideração e análise dos dados éticos leva a um olhar extensivo a
todos os componentes da cidade e do confronto das funções de cada
camada social com as exigências das quatro virtudes cardeais.
Em Platão se encontra e se admira um modelo integral de reflexão
e de análise. Nesse vaivém, aparentemente ocasional, mas habilmente
construído, das intervenções das diversas personagens, resplandece
sempre a agilidade da atenção, indo do real ao ideal, e do ideal ao real.
É o próprio de uma ética autêntica.
A qualidade e o vigor da doutrina ganham com o confronto com
a realidade, toda a reflexão sendo sempre acompanhada e esclarecida por uma análise crítica da linguagem e mesmo das diferentes formas de pensar ou imaginar as questões de certa transcendência.
O universo dos valores e das virtudes, cuidadosamente analisados em sua função de fundar e garantir a qualidade ética e humana
dos comportamentos pessoais e da ordem social, vem confrontado
com o universo mental e social da religião, das artes, especialmente
da poesia. Assim se instaura um processo hermenêutico, comportando o que modernamente se chama a demitologização, a interpretação do recurso aos mitos e à linguagem simbólica em geral, no
campo da religião, das realidades e valores transcendentes.
167
Na sociedade em que Platão esboça o plano ideal, a verdade e a
beleza hão de estar presentes e circular em todas as camadas culturais e sociais. A ética e a arte se fraternizam na República, contanto
que a arte não venha a decair propondo ou insinuando falsidades
em suas representações imaginárias, especialmente nas mitologias
politeístas.
Dentro desse contexto e desse empenho de delinear uma sociedade toda ela marcada pela retidão, pela verdade e orientada para o
bem comum a assegurar a todos os cidadãos e a todas as categorias
sociais, emerge o paradigma ético das quatro virtudes fundadoras ou
cardeais. Elas já faziam parte das doutrinas éticas e sem dúvida da
educação moral na Grécia e sem dúvida já parcialmente em Roma.
No entanto, a originalidade, as qualidades doutrinais e pedagógicas de Platão fazem dele a referência exemplar pelo seu propósito
muito bem-sucedido, não apenas de elaborar um tratado, o que não
deixa de ter seu valor, mas de oferecer um modelo que se diria pluridimensional da integração da ética na sociedade, buscando ser
completo na exposição das virtudes e na visão da sociedade.
O quadrado das virtudes cardeais, em que se inscreve a vida da
sociedade e dos cidadãos, resplandece por um conjunto de qualidades absolutamente originais. Sobretudo, na exposição deveras magistral e mesmo genial de Platão, essas quatro virtudes traduzem o
empenho de realçar a totalidade da ética, considerada em seus elementos essenciais, seja quanto aos sujeitos que as exercem seja
quanto ao conteúdo ou ao campo que elas devem retificar e articular em vista de realizar o bem igualmente universal para a pessoa e
para a sociedade.
O paradigma ético essencial parte da interrogação sobre oaxioma comum pelo qual se define a justiça: “dar a cada um o que é
seu”. Para a pessoa e para a sociedade, reconhecer o “outro” emerge como a atitude primeira e radical que faz sair do egocentrismo,
superar a prepotência das ambições e interesses particulares, a lei
do mais forte e, sobretudo, a falsa legitimação dessa imposição dominadora por parte do poder.
168
No Diálogo, em sua linguagem e em sua tonalidade altamente
afirmativas, Trasímaco, com insistência em suas idas e vindas personifica a recusa da alteridade, da igualdade fundadora da justiça e
tenta constituir as relações interpessoais e a própria sociedade sobre outro princípio, cuja vantagem ou cuja experiência parecem
evidentes. A sociedade que aí está, a que existe, não comporta a
igualdade da justiça. É o ponto crucial de todo propósito ético e que
o projeto de uma ética universal leva ao extremo da exigência.
Em nossos dias, esse extremo de exigência tem que ser oposto a
todo arranjo e a toda acomodação utilitária, egocêntrica ou narcísica,
que concede algumas atenções ou benemerências em proveito do outro, para que Pilatos possa lavar as mãos diante da injustiça generalizada e instituída. A ética começa quando se reconhece no rosto do
outro a intimação incontornável, o imperativo inexorável que refulge e se faz aceitar qual esplendor da Face do Absoluto: “Sê responsável. Salva-te do egocentrismo. Assume o serviço e o cuidado do outro”.
Em Platão e em Levinas, é comovente escutar o oráculo do profeta emergindo da reflexão do filósofo.
Dessa intimação radical, nada menos se exige do que a reviravolta, a conversão do homem todo e a retidão de toda a sociedade.
Essa constatação, feita desde que se vai lendo o Diálogo, mostra a
universalidade do imperativo ético se afirmando à luz de uma razão
que não transige embora tenha consciência de que a verdade é inaceitável para o perverso e o corrupto.
Daí, a necessidade dessas duas virtudes, cujos nomes são hoje
tão inexpressivos, a temperança e a fortaleza, postulando que todos
os cidadãos tenham a qualidade humana de superar a servidão dos
instintos e de triunfar dos medos e covardias. Só assim serão capazes e dignos de reconhecer e praticar o ideal da retidão, da garantia
de todos os direitos para todos. A razão ética, acima da razão instrumental e da razão utilitária, será a sabedoria, a prudência ou a providência, virtude que tudo propõe e dispõe para que todos, todos os
indivíduos e todos os setores da sociedade reconheçam, acolham,
amem e pratiquem a justiça.
169
Esse paradigma ético universal pressupõe uma visão antropológica de base: o ser humano é por si e essencialmente uma vocação
ética. Platão especialmente e muito especialmente no diálogo de
sua plena maturidade, a República, projeta viva luz sobre essa vocação mostrando-a inscrita na dupla dimensão da natureza humana: ela se realiza na identidade, na autonomia da pessoa, em uma
condição de inter-relação entre pessoas e das pessoas em correlação com a sociedade. E em cada pessoa, que se afirma como uma
unidade, um todo, um microcosmo, a unidade também se realiza e
mesmo se constrói mediante a complexidade e a inter-relação de
faculdades. E cada uma delas vem dotada de certos aspectos de autonomia, mas de fato todas funcionam em condição de estrita interdependência e em um exercício de contínua e profunda influência
de umas sobre as outras.
Essa compreensão do quadrado das virtudes cardeais como a
manifestação do caráter ético da pessoa e da sociedade humanas foi
transmitida à cultura, particularmente ao pensamento do ocidente
cristão. Foi em grande parte transmitida por Cícero, em tratado homônimo A República. E se tornou o bem comum dos Santos Padres
da Igreja, tais como Santo Ambrósio, Santo Agostinho, São Gregório e se estendeu ao conjunto dos mestres da catequese e da teologia
medieval. Recebeu uma elaboração cuidadosa na síntese teológica
de Santo Tomás de Aquino. E a doutrina vem ao menos condensada
em toda expressão do ensino moral cristão e dos diferentes tratados
de ética. Mas a retomada da intuição e do diálogo vivo de Platão quase sempre perdeu em elã e assumiu perspectivas mais restritas16.
16. Bem se poderia dizer que a tradição ética ocidental, a começar pela ética cristã, realizará nos primeiros séculos de nossa era uma síntese da inspiração e dos
valores evangélicos com as doutrinas do platonismo, do estoicismo, mais tarde do
aristotelismo. E enfrentou as tentações do epicurismo, se opondo ou cedendo em
parte ao princípio do prazer, e do maniqueísmo condescendo com certo pessimismo, sobretudo na compreensão da moral sexual. Esses temas voltarão nos capítulos seguintes numa perspectiva crítica e construtiva, visando ir ao encontro do
projeto de uma ética mundial.
170
O empenho de integrar em sua universalidade e em seu entrelaçamento todo o conjunto das virtudes se fará em sínteses por vezes
grandiosas a partir de amplas listas, em geral subordinadas às quatro virtudes cardeais. A elaboração mais trabalhada no propósito de
ser completa e de estabelecer as afinidades formais entre as espécies e subespécies se encontra sem dúvida na segunda parte da Suma
teológica de Santo Tomás de Aquino. Mas escadas ou escalas de
virtudes se multiplicam nas obras de catequese. Elas são expostas
com mais ou menos beleza em paredes e afrescos de igrejas cristãs,
sobretudo as mais antigas do oriente cristão17.
Na perspectiva de uma reflexão sobre o projeto de ética mundial, é necessário guardar o empenho compreensivo, hermenêutico e
crítico realçar ao mesmo tempo a função indispensável das virtudes, em sua integralidade e em sua interação harmoniosas.
A virtude assumida em uma ética religiosa, especialmente
evangélica
Ainda na perspectiva de uma ética mundial, convém evocar o
longo trabalho de inculturação realizado pelo cristianismo ao integrar o paradigma das virtudes e as diferentes tradições éticas, especialmente greco-romanas, à mensagem de vida nova na santidade,
tal como a propõe o Evangelho.
As primeiras comunidades cristãs, na confiança de ter a Jesus
por Mestre e de ser dóceis ao seu Espírito, inauguram uma forma de
vida que faz a junção da mística e da ética. Com audácia e criatividade, sintonizam uma mística vivida no mundo e uma ética em parte elaborada em termos tomados à cultura greco-romana. Dão à
qualidade espiritual da pessoa o nome de “virtude”, termo que em
sua acepção ética até então estava ausente da Bíblia.
17. Uma exposição plena de inteligência e humor vem a ser o Tratado das virtudes, de Vladimir Jankelevitch. Como amostra da catequese católica a mais autorizada se pode ler no Catecismo da Igreja Católica, promulgado pelo Papa João
Paulo II , em 1993, Parte III, cap. 7.
171
Assim a vida dos cristãos e a ética evangélica que a orienta se
desdobram como um vasto quadro de virtudes, umas teologais e
outras morais.
As primeiras correspondem à vocação divina e propriamente
evangélica da vida do homem e da mulher, que procuram conformar-se a Cristo na fidelidade a seu Espírito; as outras orientam esses discípulos na busca da retidão, da bondade humana da vida cotidiana em sua dimensão pessoal e social.
No Novo Testamento, o vocábulo é empregado duas vezes, em
uma acepção ética muito ampla. Em 2Pd 1,5, “virtude” é justaposta à
“fé”, ao “conhecimento”, à “paciência”, à “piedade” e ao “amor fraterno”. É uma qualidade espiritual de caráter particular, não a noção
geral de “virtude”; parece indicar a atitude de “força” espiritual.
Em outro texto, uma só vez, na Bíblia, “virtude” apresenta o
sentido ético de virtude em geral, mas sem que se possa dar-lhe um
conteúdo preciso. Trata-se de Fl 4,8. O Apóstolo exorta os Filipenses a prosseguir “tudo o que é verdadeiro, nobre, justo, tudo o que é
virtude, tudo o que merece louvor...”
É a integração da acepção ética, tomada de empréstimo ao helenismo. Vê-se aqui apenas indicado o que a tradição cristã vai desenvolver e elaborar com grande esmero. O termo virtude será definido e escolhido como a noção chave de toda a ética. Toda a sua
perfeição ética será assumida, aprofundada e prolongada; porém,
sobretudo, ela será transfigurada. Pois designará uma perfeição humana, mas vinda de Deus, qual dom e participação da santidade divina, conduzindo a Deus e à manifestação de sua Glória, que inclui
a vida e exaltação do ser humano.
Na linha de nossa reflexão, a virtude se define como uma qualidade habitual que aperfeiçoa as capacidades naturais de agir, que o
ser humano recebe inicialmente como simples potencialidades. Pelas virtudes, ele poderá tender à plena realização de seu destino, à
sua felicidade no plano pessoal e social, temporal e eterno.
A graça é dada como princípio de vida divina, integrando o humano, valorizando o humano em uma transcendência para além de
172
qualquer evasão da realidade ou alienação histórica ou social. Para
o cristianismo tal é o sentido da Encarnação.
A atitude de intimidade com Deus, de conformidade a Deus, de
reconhecer e como que sentir Deus como a referência de nossa vida
e de nosso agir, essa atitude vivida e profunda é o que nos anuncia,
promete e exige o Evangelho. Ele exige como o mandamento novo
de Cristo e ele dá como a energia do Espírito mesmo que nos vem
da cruz e da páscoa do Cristo.
Essa realidade de dom, de intimidade, de busca de conformidade com Deus e de tudo orientar para Deus como nosso Fim e nossa
Felicidade, está aí o que a noção de virtude é chamada a exprimir.
Ela é a noção mais apropriada para realizá-lo, na medida em que ela
exprime qualidade do próprio ser humano, a identificação da liberdade com o bem. De maneira mais concreta e próxima da Bíblia, se
dirá que a virtude é bondade do coração que assume, eleva e orienta
toda a vida humana para a bondade no amor.
Vê-se assim o sentido novo e a nova realidade de que é revestida
a virtude, quando ela participa da novidade do Evangelho. Ela será um
princípio de vida e de santidade, uma fonte de merecimentos divinos,
porque ela é primeiro e antes de tudo um dom divino, uma energia divina. Tal é a expressão quase intraduzível de Fl 2,13, que resume um
ensino constante: “É Deus que age no íntimo de nós (= energõn),
produzindo em nós o querer e a energia para agir (= energein)”.
As virtudes evangélicas são, portanto, uma promoção do ser
humano, de sua capacidade de querer o bem e de o realizar efetivamente. Mas a contribuição específica da inspiração, da motivação
ou a animação que a adesão ao Evangelho acarreta no plano ético
será convidar o ser humano ao total desinteresse, na total humildade, na total referência a Deus, reconhecendo que só Ele é a Fonte de
todo o bem. Ele se comunica fazendo justos e santos, não na pretensão e na vaidade, mas na ação de graças. No louvor, o cristão com
São João da Cruz cantará a felicidade do Nada (por si mesmo) que
participa do Tudo (que se dá em plenitude). É o sentido profundo
173
das exclusões e inclusões: “Sem Mim, nada podeis fazer... Mas, se
permanecerdes em Mim, tudo vos será dado...”18.
Semelhante influxo evangélico vai no sentido de radicalizar o
que constitui a visão e a orientação primordiais da ética: esquivar a
busca de si, o utilitarismo e o erotismo mesmo disfarçados e buscar
o bem humano em si mesmo e em sua autenticidade.
Por outro lado, uma moral autoritária e legalista prioriza e mesmo cultiva o sentimento de culpabilidade, insistindo na condição
do homem decaído e nos limites de sua vida condenada à mediocridade. A ética autêntica, sobretudo de inspiração evangélica, priorizando o paradigma do bem, do amor, dos valores e das virtudes,
convida o ser humano a se reconhecer pecador chamado à conversão e à perfeição. Ele se vê então diante do sublime e difícil encontro da ética e da mística, que merece ser abordado como um itinerário sugestivo rumo a uma ética universal hoje.
18. Cf. Jo 15,5-7. Em todo este capítulo, toda a doutrina joanina e paulina da graça vão no mesmo sentido.
174
CAP. 5
ÉTICA UNIVERSAL E A TRANSCENDÊNCIA
INTEGRADORA DA MÍSTICA
Em uma primeira abordagem, não se corre o risco de pensar a
ética de abrangência mundial, em termos de um mínimo denominador comum? O ponto de partida seria então detectar e valorizar um
encontro ou umas tantas coincidências em alguns princípios gerais
ou em algumas formulações doutrinais de crenças e em umas tantas
práticas comuns.
Não se trata de relegar semelhantes atitudes, tanto mais que a ética
mundial deve ter um caráter crítico, mas profundamente integrador.
O caráter universal desse projeto quer dizer e quer realizar um
encontro de estima e de diálogo, envolvendo em sua totalidade as
diferentes formas de religiões, de tradições e de culturas. Todas serão valorizadas em sua contribuição humanizante e harmoniosa
como um todo, em que se priorize o que há de melhor, de mais profundo, à luz de uma apreciação dos valores e qualidades éticas.
Assim, a sabedoria levará a humanidade a privilegiar o lugar e
o papel da mística e dos místicos como a mais qualificada, eficaz e
segura contribuição para a marcha rumo a uma ética mundial.
Ao contrário, é mais que oportuno estar consciente dos limites
das iniciativas e empreendimentos comandados pelos poderosos
políticos e religiosos ou prestigiados pela sedução dos encontros
especulares de massas ou de ídolos populares.
O que há de mais profundo e autêntico na sabedoria e nas religiões dos povos há de ser colocado em sintonia com as grandes as175
pirações e com as grandes questões da humanidade. Não seria este
o mais acertado ponto de convergência e de um encontro, primordialmente nas alturas, a se estender mais e mais a todos quantos se
empenham na promoção de uma ética mundial?
No centro desse projeto ético universal se há de erguer, qual força atrativa, transformadora e elevadora da humanidade, a ética na
clareza convincente de seus valores e virtudes pessoais e sociais.
Mas ela terá tanto mais energia e exercerá influência tanto mais fecunda e duradoura quanto mais for inspirada pela mística, cujo elã
transcendente ajude a superar os inexoráveis limites de todo projeto
humano e a triunfar dos interesses particulares. Mais do que pela força dos adversários, as grandes causas fenecem e definham por falta
de mística. Morrem de inanição quando carecem dessa paixão espiritual que de dentro lhes venha insuflar a coragem e manter a difícil
perseverança. Pois, semelhantes empreendimentos de alto voo desafiam mesmo a lei da gravidade e da facilidade que se acomoda.
Oportuno encontro da ética e da mística
Testemunhada por grandes pensadores, vem emergindo e se
afirmando mais e mais a consciência do valor da mística, de sua
contribuição preciosa em todos os projetos políticos, sociais, culturais, e de sua presença indispensável para viabilizar as grandes viradas históricas da humanidade rumo aos supremos valores da justiça, da solidariedade e da paz.
A reflexão tranquila e metódica em proveito de uma ética mundial terá imenso proveito em sondar os caminhos da mística na vida
dos grandes líderes e como fator das mudanças qualitativas na sociedade. Essa abordagem da presença e da natureza mesma dessa
forma mais profunda e elevada da energia vital, atuando na existência de cada um e na história da cultura ou da religião, se desdobrará
em uma dupla dimensão distinta mas, que ganhará densidade em se
articular e apoiar mutuamente. A primeira dessas dimensões é profana, de índole psicológica, sociológica, visando esclarecer a con176
sistência antropológica da mística como fenômeno humano eminente. A outra dimensão será propriamente religiosa, será a tarefa
de uma análise teológica, o mais possível equipada de informações
e contribuições das ciências humanas.
A abordagem geral e profana da mística, entendida como o modelo mais denso e intenso de uma atitude humana que se empenha e
se dá totalmente a uma causa, que concentra todos os esforços, dá
sentido e unidade a uma vida. De maneira puramente formal, se poderia falar de certa mística pelo esporte, pela arte, pela estética, e por
que não pelas performances eróticas e sexuais. No extremo limite, a
mística chegaria a ser solicitada a qualificar até o maquiavelismo de
uns tantos políticos que se estressam e se matam pela ambição desmedida do poder a ter e manter para si e a passar para os seus.
Formal e essencialmente, a mística se afirma e se define como
total dom de si a uma causa, tida, ao menos na intencionalidade de
seu protagonista como supremo valor de sua vida. O fracasso dessa
causa é a morte daquele que tudo nela apostou. Nos anos em torno
de 1970, o malogro do comunismo levava ao suicídio em massa os
jovens militantes da Tchecoslováquia, na vida e na morte liderados
por João Pallach.
É picante salientar o aviso de Jesus, talvez com um sorriso levemente esboçado, advertindo seus discípulos que os “filhos das
trevas” se mostram mais diligentes e empenhados em seus projetos
mundanos, do que os “filhos da luz” na sua consagração ao Reino
de Deus.
É que para as coisas da terra como do céu, nada avança sem o
elã de uma mística, sem o empenho decidido, total, permanente, capaz de enfrentar adversários e adversidades e talvez o mais daninho
dos obstáculos, a morrinha, o desencanto do dia a dia sem gosto e
sem graça.
Não seria uma das faces mais tristes e cinzentas do estresse que
aflige a humanidade da era tecnológica, sem mística da terra nem
do céu?
177
A ética mundial começa por ser o apelo a uma e outra dessas
modalidades da mística, religiosa e profana, as quais estão longe de
se opor ou excluir1. As tonalidades e as condições desse apelo irão
se desdobrando no decorrer e, sobretudo, no termo do projeto de
entendimento e construção de uma ética universal.
De maneira exemplar, dada sua importância decisiva, a mística
religiosa ocupará um lugar central nesse projeto que envolve todo o
ser humano e todos os seres humanos.
O encontro da religião, da ética e da mística está e deve estar no
centro das preocupações da humanidade de hoje que se volta para a
busca de entendimento entre as pessoas e entre os povos. Pois, muitas das desavenças, das razões ou pretextos de guerras se ligam a
velhas heranças de conflitos religiosos. São tristes e detestáveis
resquícios de violência, de agressividade e de ambições genocidas,
ou do que se canta como as passadas glórias dos que se imortalizaram, “a fé e o império dilatando”. É o grandioso humanismo heroico, talvez menos presente às consciências, mas escondido, recalcado no inconsciente coletivo.
Por outro lado, convém sempre elaborar e aprofundar o que há
de específico em cada paradigma ético ou religioso e buscar manifestar a dimensão universal a que corresponda o que é particular e
ainda permanece isolado na prática e na linguagem das diferentes
tradições e culturas.
De modo geral, pode-se reconhecer que, no passado e na atualidade, as religiões monoteístas se mostram essencial e profundamente éticas, ligando estreitamente a justiça divina, a justiça que
torna o homem aceito a Deus, e a justiça nas relações humanas, o
1. Nessa perspectiva cf. meu livro Las Casas: espiritualidade contemplativa e militante. São Paulo: Paulinas, 2008. Na aurora do mundo moderno, Bartolomeu de
Las Casas foi um “empresário” competente, que se converteu e se tornou o grande defensor dos Índios. O “místico” da colonização se fez o grande “místico” da
evangelização e da promoção dos povos americanos. Não se desfez de sua capacidade empresarial, mas a integrou em um projeto mais amplo e elevado.
178
respeito à dignidade humana, muito especialmente à vida humana,
e a prática dos direitos para todos na vida familiar e social. De si,
pode e deve ser eticamente fecunda a referência à transcendência
divina, ao total senhorio de Deus, Princípio, e mesmo Criador de
todas as coisas, e Fim, destino último a ser livremente acolhido pela
criatura racional.
No entanto, alguns setores da modernidade, marcados por certo
ressentimento ostensivo ou recalcado contra a velha cristandade
(da santa inquisição!), estigmatizam o judeu-cristianismo e estigmatizariam o islamismo em país muçulmano, como fontes ou portadores de um moralismo estreito e autoritário para infelicidade da
modernidade em vias de emancipação. Sem dúvida moralismo autoritário é fenômeno ampla e tristemente difundido. As mentalidades, as modas e vogas modernas e pós-modernas nem sempre escapam a esse perigoso e contagioso vezo humano de se impor, esquivando o diálogo e desconhecendo as diferenças.
Na verdade, o que caracteriza essas religiões monoteístas no
que se opõem à idolatria e às superstições é a fé em Deus, como o
Infinito do Bem, do Amor, dos valores e virtudes. Os profetas, os
místicos, os guias espirituais encontram nessa fé a referência e o
apoio para criticar as falhas e os desvios éticos e espirituais. Buscam conduzir o povo a reconhecer os desmandos dos grandes e dos
pequenos, e se encaminhar ao conhecimento simultâneo da santidade de Deus e da vocação à santidade, mas precisamente pelas
vias da persuasão, da convicção, da livre escolha e mesmo do amor.
Sem negligenciar a oportunidade de desfazer preconceitos antigos e modernos, o empenho primordial na busca de uma ética
mundial autêntica e viável será o trabalho qualificado e seletivo de
discernir o que há de autêntico nas diferentes tradições religiosas e
culturais, bem como de ir ao encontro dos seus místicos, dos seus
profetas, portanto do que têm de melhor nas doutrinas, nas práticas
e dos seus pioneiros. Pois o encontro só será verdadeiramente ético
se for um encontro qualitativo, que não exclui a crítica do outro
como a de si mesmo, mas insiste antes de tudo sobre a acolhida re179
cíproca pelo reconhecimento do que em todos há de mais excelente
e promissor.
A mística na gênese da ética religiosa: as virtudes teologais
O que há de melhor, de mais excelente vem sintetizado em uma
formulação ética sob a designação de virtudes teologais, o que possibilita uma integração harmoniosa da busca da perfeição moral e
da tendência mística à transcendência, recorrendo ao quadro das
virtudes que humanizam e divinizam a criatura racional. Essa mensagem recebe uma elaboração mais cuidadosa na tradição católica,
ocupando um lugar central em sua teologia e em sua catequese.
Mas, na realidade, elas exprimem uma atitude primordial das religiões bíblicas, pois o sentido de Deus, da transcendência de seu ser
e de seus atributos tem o maior relevo nas práticas e nas doutrinas
do judaísmo, do cristianismo e do islamismo. O que resplandece
como a mais profunda afinidade dessas três religiões monoteístas.
Esse dado primordial e marcante da revelação bíblica e das religiões que a professam se mostra hoje em sintonia com as aspirações
e práticas contemplativas das grandes religiões orientais, que se divulgam no Ocidente, propagando oásis de paz e segurança para as
camadas sociais mais tocadas pelo desassossego e pelo estresse.
Em suas grandes linhas o atual contexto do mundo tecnológico
parece propício à acolhida da mensagem da contemplação mística
e das virtudes propriamente evangélicas, teologais ou divinas, que
constituíram o cerne da pregação dos profetas bíblicos e sobretudo
do Evangelho. Pois este se apresenta como a plenitude dessa mensagem bíblica anterior. Será portanto mais indicado partir dessa referência ao Evangelho, ponta avançada dessa tradição que o precede. Tanto mais que ele será fonte primeira do cristianismo e mesmo
parcialmente do islamismo.
Conforme o testemunho dos textos evangélicos, Jesus chamava
e formava discípulos. Mas dava grande ênfase a essa novidade surpreendente: o verdadeiro conhecimento de Deus, de seu Reino, de
180
seu plano de amor se passava no íntimo dos corações, em um encontro com Deus em uma docilidade à verdade divina. O Mestre, no entanto, qualificava essa pedagogia divina que ele inaugurava, atribuindo-a à plena realização do que haviam predito os profetas bíblicos.
É o que, de maneira enfática, o Evangelho de João coloca nos
lábios de Jesus: “Está escrito nos profetas: todos serão teodidatas”
(Jo 6,45). Jesus prega, mas proclama que o dom e a felicidade de
crer vem da ação interior do Pai. Pois esse “Pai que está nos céus”,
na sua grandeza que excede todo espaço e toda capacidade humana
de compreensão, é “nosso Pai”, porque está no íntimo de cada um,
aí produzindo o verdadeiro conhecimento da fé e estabelecendo “o
culto em espírito e verdade”.
É muito expressivo o cântico de ação de graças que Jesus eleva
ao Pai, ao contemplar a sua ação divina revelando aos “pequeninos” os mistérios do Reino que os sábios pretensiosos não chegam
a aceitar (cf. Mt 11,25-27; Lc 10,21-23). E se o Apóstolo Pedro e os
mais íntimos de Jesus o reconhecem como Filho de Deus, é que
eles recebem no seu íntimo a revelação do próprio Pai “que está nos
céus” (cf. Mt 16,17).
E os evangelhos se encerram com a promessa do Espírito que
será o mestre interior que dará aos apóstolos e à comunidade cristã
primitiva o sentido pleno, verdadeiro, divino da mensagem de Cristo e fará compreender a sua morte como começo e fonte de uma
nova vida a ser anunciada ao mundo. Tal será o essencial do ensino
do Apóstolo Paulo, sintetizado especialmente nas Cartas aos Gálatas, aos Coríntios e aos Romanos.
Assim, o Evangelho situa a revelação bem dentro da história,
propondo na pregação um apelo ao coração entendido como a
consciência, a inteligência humana que escuta a palavra, delibera e
decide livremente. Mas em última análise, em sua essência ele se
apresenta e se define por uma atitude mística fundadora. As palavras, os gestos, os prodígios operados por Jesus e pelos seus visam
colocar o homem na condição de acolher o próprio Deus, presença
e energia de amor transformadora da vida.
181
A Igreja Apostólica em sua plena maturidade, em benefício de
sua catequese, sintetiza em termos doutrinais essa mensagem que
recebera na primeira pregação do Evangelho. Neste, o ensino vinha
expresso em um vocabulário descritivo, tecido de narrações históricas, propondo modelos de comportamentos concretos. Para o
atual diálogo dos cristãos, na perspectiva de uma ética mundial, é
da maior importância a consideração da elaboração doutrinal realizada pela tradição apostólica primitiva e sempre presente no cristianismo em lugar de destaque.
No cerne dessa tradição de origem evangélica emerge a proposição das virtudes teologais, como a atitude típica da humanidade,
encontrando e dando um sentido à vida e a história, à luz da palavra
e da graça, do dom e dos dons do Espírito. Tal é o essencial dessa
linguagem densa e escolhida do cristianismo nascente que afirma
sua originalidade e afirmando sua convicção de assumir e levar à
plenitude as promessas bíblicas.
A exposição geral das virtudes teologais segundo a tradição e
na elaboração doutrinal católica segue aqui o paradigma de um diálogo inter-religioso que tende a destacar e confrontar o que há de
melhor e mais suscetível de aproximar as experiências e as doutrinas no campo ético, religioso e místico.
Sem dúvida, tem algo de paradoxal um paradigma ético que
junta o qualificativo teologal ao termo de virtude. O apelo ao adjetivo teologal, divino para designar as atitudes típicas e fundamentais da espiritualidade evangélica implica antes de tudo exorcizar o
que virtude possa ter de autossuficiência, de pretensão a valorizar o
ego individual ou coletivo.
Nada de menos ético e, sobretudo, de menos evangélico do que
alguém ou uma categoria religiosa se vangloriarem de perfeitos
praticantes da virtude. Esses tais “virtuosos”, os tartufos de Molière, correspondem aos condenáveis “justos”, estigmatizados em
máximas e discursos proferidos por Jesus ou por seus Apóstolos no
Novo Testamento. Jesus declara que nada tem a ver com semelhantes “justos”. Seus apelos e promessas visam os “pecadores”, discri182
minados por essas falsas elites. A alegria anunciada e suscitada no
Evangelho é para a gente humilde e verdadeira em se reconhecer
caídos e chamados à conversão. Com a audácia de quem sabe o que
diz, Jesus proclama que Deus se alegra e que seus anjos fazem festa
no céu quando um pecador se converte2.
A virtude teologal se enraíza primeiramente na coragem e na
humildade de se esvaziar de toda pretensão, de reconhecer que a
vida e o bem viver começam por ser uma atitude de gratuidade. É o
dom primeiro que, uma vez acolhido, é destinado a se tornar uma
doação generosa e valorizadora de si, e mais ainda do outro, do outro semelhante e do Outro transcendente. Por essa abertura radical
à alteridade, cada pessoa entra no reino da ética e se vê ligada por
laços de amor recíproco à fonte primeira e às correntes de bondade
que a precedem na existência e na história.
Está aí a dimensão ou a inspiração mística em que se integra e
se eleva o projeto ético. Ele se encontra assim dotado de uma transcendência infinita. O elã ético, que o Evangelho vem suscitar, em
sua originalidade, se afirma na modesta e firme aceitação da condição humana tal qual ela é.
A conversão consiste em acolher a relação do finito e do infinito.
A autenticidade ética descarta a pretensão de abarcar o infinito, colocando-se no lugar dele, em uma soberana egolatria que se vê e se impõe como dono do mundo. Uma venerável sabedoria propõe que a
partir da evidência da grandeza e dos limites do ser humano, ele esteja na disposição de reconhecer e acatar o infinito em sua transcendência incriada e em sua imanência na profundeza do ser criado.
Em sintonia com a inspiração dos profetas, Emmanuel Levi3
nas teceu em uma reflexão fenomenológica esse dado de base da
ética bíblica, oferecendo assim uma bela e profunda indicação inicial à mensagem desenvolvida no plano religioso em torno das vir2. É o tema do maravilhoso cap. 15 do Evangelho de São Lucas.
3. Entre as obras de Emmanuel Lévinas, cf. especialmente De Deus que vem à
ideia [original francês de 1986]. Petrópolis: Vozes, 2002.
183
tudes teologais, tais como são enaltecidas na pregação evangélica e
na mística que nela se inspira.
A mística, correlação íntima do finito e do infinito
A conjunção da ética e da mística corresponde à visão antropológica e teológica que estabelece a correlação do infinito e do finito
na existência, no íntimo da pessoa, e na história seja do indivíduo
seja da coletividade.
Semelhante integração da ética e mística, como normas imanentes da plena realização humana corresponde a uma outra integração, juntando os elementos de uma antropologia do sujeito humano em marcha. Ela mostra a condição do ser humano qual sujeito primeiro responsável do desenrolar de sua história. Portanto da
história entendida qual memória pessoal e coletiva do próprio desenvolvimento, do vir a ser propriamente humano, assumido e conduzido na autonomia, de maneira racional e livre. Prioriza-se a visão da história como experiência vivida, sendo fonte da história
narrativa do que emerge ou é tido como de maior interesse no decorrer dessa experiência da coletividade.
A questão primordial, essencial e portanto crucial no hoje da civilização tecnológica e no ontem do passado de que ela é a herdeira
consciente ou inconsciente, se condensa na interrogação: que sentido a humanidade dá hoje à existência e à história, enquanto tecido de
razão e liberdade? A questão do sentido está presente ou foi afogada
pelo volume e o peso de outros interesses, fundadores de uma moral
utilitária, servida por uma razão instrumental, por exemplo?
Na verdade, a acolhida do sentido humano, do feixe de valores
humanos, como norma constante da vida é o feliz resultado de uma
opção unificadora da existência, de uma decisão racional e autônoma, inaugurada pela educação, progredindo como luta interior,
dentro de um contexto cultural mais ou menos favorável ou adverso. A norma imanente, racionalmente reconhecida e livremente
aceita pelo sujeito humano para se empenhar na luta pela dignida184
de, pelos valores e pelos direitos, vem a ser a ética sempre em busca
de viabilidade, de elã criativo e militante.
A mística vem em auxílio desse projeto ético, dando-lhe as raízes mais profundas e a seiva constante para crescer e triunfar. A
mística é o amor do Bem, do Bem que se manifesta no feixe dos valores e direitos humanos universais e se torna uma energia, uma alquimia interior e constante tornando o ser humano uma força tranquila e imbatível de amar.
Nessa triste hipótese de uma ocultação ou recusa da ética do
sentido, a humanidade rejeita em sua fonte todo projeto de ética
pessoal e social, se imuniza contra a atração de toda mística, e sobretudo contra uma mística inspiradora de uma ética mundial.
Tal é o contexto cultural, tecido por essas questões básicas, culturais e existenciais, desafiantes na atualidade e ligadas a um passado da maior ambiguidade. Essa mentalidade difusa, mal ou não formulada, acena para a conveniência de se expor, ao menos de forma
condensada, a visão global das virtudes teologais, proposta pelas
religiões que se apoiam na revelação bíblica.
Esta se funda no reconhecimento de Deus Amor, buscando parceiros de amor.
Semelhante mensagem do bem, do amor divino e humano, será
delineada enquanto princípio do agir cristão, mas sem restrição
confessional, pois mostra sua relevância para o diálogo inter-religioso e para o projeto de uma ética universal.
Em síntese, a pregação cristã visa primordialmente ir ao encontro de quantos se colocam a questão primordial ou convidar a todos a
colocá-la: que sentido eu dou à minha vida, cedendo ou me opondo a
quem tenta me neutralizar ou manipular me impondo sua oferta?
O empenho dos mensageiros evangélicos é de fato “pregar a
conversão”, alçar a bandeira da revolução de Deus e da revirada
humana. Passou a hora do sono, a noite já vai indo. É preciso romper com a rotina, pensar, assumir a responsabilidade de sua vida,
buscar o caminho de ser feliz e fazer os outros felizes. A quem es-
185
cuta na inteligência do coração essa proclamação de que chegou a
nova era, o reino prometido na Bíblia e sonhado por todo homem e
toda mulher, a mensagem é desdobrada em seu conteúdo essencial:
Você precisa crer, esperar e amar. O que e a quem? Crer, esperar e
amar o Amor, que é Deus. E, envolvidos e levados por essa alquimia divina, passar a abraçar a todos na fé, na esperança e no amor.
Essas três atitudes ou orientações constantes e profundas são
chamadas a dar um sentido radicalmente humano à existência, consistindo em voltar toda essa existência para o Bem e o Amor infinitos.
Elas se destacam por umas tantas propriedades, aliás conexas,
às quais se dá um relevo especial4, pois indicam a excelência da aliança que estabelece entre o que há de mais profundo no ser humano
e o que se pode conceber como mais perfeito e amável em Deus e
seu plano de amor.
Primeiro, realizando-se como virtudes, como qualidades humanas, merecem no entanto o nome de virtudes teologais, são propriamente divinas.
Em seguida, sob o aspecto ético e místico, são absolutamente
fundamentais, correspondendo às aspirações humanas mais profundas em marcha para sua realização mais elevada e perfeita.
Finalmente, essas virtudes encaminhando ao encontro com
Deus, longe de substituir as virtudes morais, delas se distinguem,
mas elevando-as e orientando-as por uma motivação eminente tornando-as mais profunda e universalmente humanas.
Sua primeira prerrogativa é de serem tradicionalmente qualificadas conjuntamente virtudes propriamente divinas e profundamente humanas.
Elas têm Deus por objeto e termo imediato, e Deus igualmente
por origem ou fonte direta de uma aliança que eleva o próprio ser
humano.
Esse caráter divino é colocado pela mensagem bíblica no começo, na tendência e no ponto de chegada de uma aliança, sem no4. Cf., p. ex., no Catecismo da Igreja Católica, III parte, n. 1812-1829.
186
mear as virtudes teologais, mas pondo em relevo e descrevendo
com firmeza e clareza as indispensáveis atitudes do crer, esperar e
amar, desdobrando em uma pedagogia prática esse dado essencial,
explicitado na revelação e na experiência cristãs: Deus quis e quer
se dar e manifestar tal qual Ele é, em seu Ser e em Seu amor, na
Unidade e na Comunhão de verdade, de bondade e de felicidade
que o constituem e colocam acima de tudo o que é criatura. Só Deus
pode levar a Deus. E as virtudes teologais são o meio divino, a mediação eficaz e transparente que realiza o encontro com Deus.
Houve muita ambiguidade no passado e talvez mais ainda na
atualidade, em razão da manipulação comercial e política da religião. Daí a necessidade de uma grande insistência que há de apontar
para este ponto esclarecedor: há certos meios que são utilizados pela
revelação e pela práxis da Igreja, mas precisamente para abrir caminho à busca e ao encontro com Deus pela fé, esperança e caridade.
Nesse encontro está o essencial da religião, o culto perfeito, a
oferenda, a hóstia, o sacrifício a se consagrar no dom total do amor
ao Deus Amor. Assim, muita coisa houve, há e haverá, instituições,
instrumentos, pessoas ou práticas que formam o universo das religiões. Têm valor, são autênticos mas somente enquanto e na medida em que favorecem esse encontro direto e imediato com Deus.
Assim, nas igrejas estão a mensagem, os testemunhos, os sacramentos, a comunidade.
Todos esses meios são úteis e mesmo necessários mas insuficientes. São os amigos do Esposo ou da Esposa que preparam o encontro imediato do Amado e da Amada. No momento da comunhão de amor, só ele e ela se dão um ao outro. Os amigos se rejubilam, cantam e dançam. Mas lá fora (cf. Jo 3,29-30).
Por outro lado, quando se olha para a função que elas exercem,
essas virtudes se mostram absolutamente fundamentais.
A fé, a esperança e a caridade têm a prioridade e o primado absolutos, porque com elas e por elas, começa a vida nova do fiel e da
comunidade. E essa vida está sempre apoiada e sustentada pela presença e o influxo dessa energia divina.
187
As três atitudes fundadoras da comunhão com Deus respondem
à busca de sentido pleno para a vida e a condição humana sob todos
os aspectos.
Constituem a base inicial e permanente da existência cristã,
pessoal e comunitária e também a fonte de toda atividade, de toda
missão, de toda obra salvadora e santificadora da Igreja. É pela fé
na verdade divina, pela esperança na promessa divina, pela caridade na bondade divina, que se constitui o povo de Deus, o povo animado e amoldado por Deus que dá lhe sentido, rumo, alegria e força de viver.
Encontraremos essa doutrina, condensada em um ensinamento
fundamental e muito importante para a prática de toda a vida cristã:
coroando a fé e a esperança, a caridade é a alma de todas as virtudes, que ela penetra e anima, mas começa por valorizar e reforçar
no domínio próprio de cada uma delas.
A presença e a influência exercida por essas virtudes constituem a energia e força retificadora do Evangelho em cada momento
da história. Assim na aurora do mundo moderno é bem visível a referência de toda uma sociedade às tradições e às leis cristãs. Essa
cristandade se vê chamada a evangelizar os povos do Novo Mundo
recém-descobertos ou entrados em contato com as nações do Ocidente. Dispondo de recursos e meios econômicos e de apoio político essa cristandade pode fazer muito graças à dedicação dos seus
missionários. Eles, um Francisco Xavier, um Anchieta, um Las Casas eram homens animados e transbordantes de fé, de esperança e
de caridade. Essa inspiração e esse elã das virtudes divinas, da
união mística com o Deus de amor faltavam lastimavelmente aos
chefes e ao conjunto da cristandade conquistadora e colonizadora.
Impelida pela idolatria do ouro e pelas mil formas de ambições, a
colonização implantou desigualdades econômicas, e culturais, redes de corrupção e de arbitrariedade administrativa, sem falar da
escravidão plurissecular em nosso país.
Não se poderia dizer que a fraqueza da religião é buscar sua
força fora do que lhe é essencial e não se apoiar sobre a energia
todo poderosa da fé, da esperança e da caridade?
188
Guardando uma conexão vital entre si, em sua atividade e em
seu campo de ação, cada uma das três virtudes teologais tem seu
próprio significado e seu domínio específico de influência sobre os
aspectos primordiais da vida humana pessoal e social.
É importante abordar e mesmo penetrar esse conjunto de experiências espirituais que constituem o essencial da religião. A presença, a qualidade dessas forças espirituais são determinantes para
a verdadeira e autêntica influência das religiões na orientação ética
da sociedade, especialmente no que toca aos valores e virtudes que
possam viabilizar uma ética universal para o mundo globalizado.
A fé e a vocação humana à verdade
Na sua acepção plena, “crer” é um maravilhoso neologismo
cristão, criado pela Igreja, ainda em suas origens, guiada pelos
apóstolos, que prolongam e difundem a experiência priorizada e
inaugurada por Jesus Cristo. Designa primeiro uma nova forma de
pensar, introduzindo depois em uma nova forma de viver, de conviver, de agir diante de Deus e com Deus, bem como de encarar e modificar a realidade, a existência e a história.
Na experiência e na linguagem comum, crer é suscetível de um
significado vulgar e fraco ou de um sentido denso e forte.
Em sua acepção precária e pouco consistente, crer designa apenas uma atividade de conhecimento, hesitante ou duvidoso, em matéria tida como de somenos importância: “Creio que Felisberto é
casado”.
Em seu sentido pleno, crer implica uma convicção da inteligência e um certo compromisso no plano da vida e da ação: “Eu creio no
amor, creio na luta pela justiça”. Ou no negativo (dito ou vivido):
“Eu não creio em democracia, nem nesta história de direitos humanos”.
Em sua acepção densa e forte, crer vem a se afirmar assim
como um julgamento de valor em um campo importante da existência humana. Não é uma simples crença. Esta seria a aceitação de
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um fato como verdadeiro, na base do testemunho de alguém, sem
que se tenha uma prova certa do acontecimento.
A proliferação do fenômeno religioso hoje torna mais urgente e
decisiva a necessidade de bem distinguir a fé e a crença, com a afirmação do primado da fé. Esse discernimento se impõe no interior
da experiência religiosa e se deve afirmar no seu confronto com outras experiências humanas.
Em sua dinâmica própria, a fé acrescenta e prioriza no crer o sentido de movimento, de orientação livre e voluntária da pessoa que se
consagra à verdade, ao amor, à justiça, aos valores que não se veem,
que transcendem a verificação na linha dos sentidos ou dos fatos. Pode-se falar de crenças no plural. A fé é uma atitude singular. Visa o
sentido da vida. Seu ponto de partida é descartar o nivelamento da
existência e do destino do ser humano, colocando-o acima de todo
preço, de toda utilidade, de todo prazer. A fé tem sua fonte nessa percepção que Pascal atribui ao coração e que diríamos brotar da inteligência capaz da sabedoria, que discerne e escolhe os valores, a verdadeira razão de ser para a vida e para a história humanas.
A fé inclui, portanto, a crença, a confiança em um testemunho,
mas seu dinamismo próprio é a decisão de compromisso, de dom
de si à verdade e ao amor como valores absolutos, concretizando-se
no propósito de inscrever na vida e na história as promessas e exigências deste amor, que está no começo, no meio e no fim de tudo.
É verdade que esse processo da fé, proclamado em sua plenitude pelos profetas e místicos, pelos líderes e comunidades consagradas à justiça e à solidariedade, fica muitas vezes a meio caminho. A
mediocridade não seria a lei comum de todas as experiências humanas? Assim, numa simples projeção imaginária e afetiva, tanta
gente aceita a crença e acolhe a confiança no divino, no sagrado,
nos santos, à cata de curas e proveitos. Semelhante atitude dita religiosa pode ser uma evasão que ajuda a tornar vivível e tolerável o
que na realidade é acabrunhante senão intolerável. Mas não se
identifica com a fé, mesmo que a consideremos apenas como experiência humana autêntica.
190
Essa experiência resplandece naquele ou naquela que diz, ou
melhor cuja vida testemunha no dia a dia: creio que paga a pena lutar pela justiça, pelo amor, pela solidariedade, pela felicidade de todos. Ainda uma vez convém insistir: não é uma questão de discurso. Sem dúvida a fé se professa em palavras, mas antes de tudo, ela
é forma de pensar, de julgar, de viver, de se empenhar em resistir à
evasão e ao fatalismo, às crenças e ideologias alienantes. Se o homem e a mulher, habitados pelo amor à verdade e ao bem, se deparam com uma mensagem que supera os cálculos e limites da razão,
falando do Infinito da Verdade e do Amor, eles como que esfregam
os olhos e abrem o coração aos horizontes do que se anuncia como
a experiência de uma fé divina, para além de toda expectativa e até
de todo sonho.
A própria linguagem testemunha a originalidade do crer. No
grego (da Bíblia e da tradição judaico-cristã), o crer (pisteúo) e fé
(pístis) exprimem a mesma firmeza que se afirmava na bíblia hebraica, talvez com mais insistência no plano psíquico e espiritual: é
a solidez da convicção e da confiança. A esse sentido de base se
junta a conotação de fidelidade, de lealdade garantindo a palavra
ou o compromisso5.
5. Poderíamos dizer que a “fé”, o “crer” no hebraico, no árabe (nas línguas semitas) – a partir de um radical donde vem o nosso “Amém” – evocam a estabilidade,
a firmeza inabalável, a começar pelas realidades físicas mais duras e consistentes:
“Creio em Deus, a Rocha de minha vida”. Somos sustentados na fé e pela fé. Donde, na Bíblia, a imagem familiar, que tem aí sua base linguística: somos carregados, sustentados, amparados pelos braços de Deus, como a criança nos braços de
sua ama. Há uma ideia de “força” – física, psíquica, espiritual – na palavra “crer”,
que é elevada a ter um sentido divino, exprimindo o primeiro encontro da criatura
humana com o seu princípio que a sustém no ser, na vida, na busca de seu destino.
A atitude de fé na Bíblia assume a totalidade do ser humano, como projeto responsável de realização pessoal e comunitária, como vocação à Verdade, ao Bem,
à Comunhão, a partir da certeza da presença e da vitória futura desses valores e
dessas promessas. Uma luz brilha abrindo caminho seguro, mas dentro da noite.
A felicidade, a alegria prometidas e esperadas excedem a capacidade de conhecer
e até de sonhar, mas já estão antecipadas e garantidas na certeza da fé.
191
O latim e as línguas latinas introduzem no “crer” toda uma
gama de tonalidades e graus de certeza, que atingem o substantivo
“crença”, suscetível de plural: “as crenças”: ao passo que a “fé”
(que não comporta plural) guarda melhor o sentido absoluto e firme
do hebraico e do grego. Mas não tem o verbo correspondente, a não
ser “confiar” (confido), que empenha mais a afetividade sem explicitar o aspeto da convicção intelectual.
Os grandes mestres da tradição cristã, Agostinho, Tomás Aquino, Lutero, Calvino se compraziam em saborear e parafrasear a fórmula latina, datando a Igreja apostólica, a qual destaca a tríplice dimensão do “crer”: credere Deum, credere Deo, credere in Deum.
Transmitiram-nos o seguinte:
• “Credo Deum (esse)”: “Creio Deus (existir; creio que Deus
existe)”. Essa construção (colocando “Deus” no caso acusativo,
como objeto direto ou como sujeito do verbo no infinito) desdobra
o registro do ser, da Verdade qual reconhecimento do ser. Eu creio:
Deus é a Realidade suprema, a Verdade e a fonte de toda verdade.
• “Credo Deo”. Ao pé da letra: “Creio a Deus” (fazendo-lhe
confiança). O recurso ao caso dativo exprime a atitude de confiança pessoal. Creio: confiante, entrego-me a Deus, vendo nele o motivo e a razão de aceitar sua palavra, a revelação do que Ele é e do
que Ele faz para nossa salvação. Aqui a língua portuguesa, que
“com pouca corrupção” Camões “crê que é latina”, não guarda fidelidade à língua mãe. O jeito é explicar a fórmula latina, sem temer a redundância. O “Credo Deo” é fiar-se em Deus, reconhecer a
sua verdade e a sua veracidade, apoiar-se nele como fonte de luz e
acolher sua revelação, sua palavra viva manifestando-se na história
e no íntimo da inteligência. O Transcendente divino entra na história, vem ao encontro da transcendência de nosso ser e de nosso coração, dando-se e sendo acolhido como motivo de aceitar e viver
toda a mensagem do Credo.
• Credo in Deum. “Creio em Deus” (Bem e Fim para o qual
oriento meu ser e minha vida): A preposição in (em) com o acusa192
tivo é própria dos verbos de movimento. Aqui, o “movimento”
envolve e volve para Deus a totalidade do ser, da ação e do destino
humano. O Credo in Deum é a formulação abrangente que se
guarda no símbolo. Ela supõe e mesmo encerra as duas precedentes, dando ao crer um sentido informativo ou afirmativo, juntando-lhe a dimensão performativa de orientação afetiva e efetiva da
existência para Deus.
Essas fórmulas são ampla e profundamente comentadas pelos
Santos Padres, especialmente por Santo Agostinho, e pelos santos
doutores, particularmente por Santo Tomás6.
Prolongando e sintetizando essa tradição, eis como se poderia
desdobrar o ato ou a atitude de “crer”:
Creio, com uma convicção firme e inabalável, que Deus existe,
que Ele é o Ser, em um modo acima de toda realidade, de toda compreensão, qual luz que tudo ilumina e permanece sempre inacessível. Deus é a Verdade, contemplada na fé e fonte de todas as verdades que buscamos em todas as formas do saber.
Creio que Deus é verdadeiro e Sumo Bem, o princípio de toda
bondade e de toda felicidade, realizando na perfeição e unidade todos os valores pelos quais tendemos à justiça e à santidade; estamos
sempre na busca de Deus na medida que orientamos nossa vida na
prática do bem.
Cremos que Deus é o Amor Primeiro, sempre atuando em nossa vida e em nossa história; e crendo, para Ele nos norteamos e movemos, como o Bem e a Finalidade da existência, de nosso viver e
conviver.
6. Esse tema já encontra sua expressão clássica em Tomás de Aquino (Suma Teológica, II-IIae, q. 2, art. 2): Credere Deum, credere Deo, credere in Deum. Ele
vem sintetizado com a clareza desejável por LIBÂNIO, J.B. “Estrutura subjetiva
da fé, dimensão antropológica”. Eu creio, nós cremos – Tratado da fé. São Paulo:
Loyola, 2000, p. 151-154.
193
A fé, dom primeiro de Deus e “princípio, o fundamento e raiz
de nossa justificação”, como sintetiza o Concílio de Trento7, relembrando a mensagem evangélica, formulada pelo Apóstolo Paulo –
mensagem um tanto ofuscada então na cristandade, que a Reforma
Protestante viera sacudir.
A fé é antecipação da vida e da luz eterna, com as qualidades de
firmeza e de força transformadora – o que é o fruto da graça divina:
mas essa elevação divina, longe de diminuir ou atenuar, manifesta
a condição humana limitada em sua capacidade de conhecer e de
amar. A fé inaugura a mesma contemplação em que consiste a vida
eterna, porém dentro da noite, em que falta evidência para o olhar
da inteligência e plena firmeza no amor do Bem perfeito.
Daí as qualidades divinas e humanas, as propriedades paradoxais – porque simultaneamente informativas e performativas – da
linguagem e da atitude de crer. Crer é uma conjunção de conhecer e
amar, de certeza, de liberdade, de tolerância e diálogo. Essas propriedades da fé, assumidas simultânea e integralmente podem concorrer para um encontro de estima e diálogo, fraternizando as religiões nas alturas, no pleno reconhecimento do que têm de melhor e
do que as constitui em sua verdadeira identidade. Pois, nessa atitude eminente, a atitude teologal, mística de intimidade imediata e direta com Deus Amor, se concilia com a ética empenhada na busca e
promoção dos valores e direitos humanos
7. Iniciado em 1545, o Concílio de Trento elaborava em 1546 o célebre decreto
dogmático sobre a Justificação, declarando e explicando que a “Fé é o princípio,
o fundamento e a raiz da Justificação”. Esta não é causada pelas boas obras; mas,
pela ação da graça que suscita e eleva a liberdade humana, torna-se fonte de boas
obras. Desafiada pela Reforma Protestante, a Igreja Católica dava uma elaboração cuidadosa à doutrina contestada pelos reformadores. Hoje uma compreensão
ecumênica poderá reunir os cristãos no tocante a esse ponto essencial da Justificação pela Fé, que constitui: o núcleo da Carta aos Romanos. A tradução ecumênica da Sagrada Escritura com comentários de protestantes e católicos foi reconhecida possível, quando dois grandes exegetas de uma e outra confissão chegaram
ao acordo na tradução e explicação da grande epístola paulina.
194
Caminhos da inteligência, do amor e da liberdade
Com efeito, a fé se afirma qual energia íntima e fecunda, sinergia da inteligência e do amor. Todo o universo é uma imensa comunhão de energias; a harmonia e a vida surgindo da profundidade e
da eficácia dessa comunicação de energias. Essa maravilha se manifesta de maneira mais graciosa e rica no plano da vida, e mais ainda na vida do espírito. Nosso espírito é uma capacidade, um apelo,
uma exigência de se realizar na verdade, mas pelos caminhos da liberdade. Acolhe toda mensagem de verdade como uma energia que
penetra o íntimo e o faz florescer e frutificar em fontes de novas
energias. Estas hão de comunicar-se em um processo contínuo de
fecundidade da verdade indo ao encontro do espírito em seu apetite
de conhecer e amar.
Esse amor primordial, fundador e fecundante que constitui
como que o tecido profundo do espírito, é primeiramente o amor da
verdade, suscitando o amor do outro e já de mim mesmo, enquanto
companheiros e irmãos nesta comum vocação à verdade.
Hoje, o grande, senão o maior risco de nossa civilização, baseada em uma comunicação conduzida pelo princípio do prazer e do
interesse, vem a ser precisamente a banalização da inteligência pela
satisfação da curiosidade primária, superficial, e o ostracismo da
verdade, em razão do menosprezo da cultura, do cultivo do saber.
A fé nos salva, começando por semear e ativar em nós o amor
da verdade e o amor do ser humano como um ser da verdade e para
a verdade. Essa libertação que vem da fé foi sempre importantíssima em todas as épocas da história. Hoje, ela se torna urgente, urgentíssima para livrar a sociedade e a civilização da mais triste e
mais danosa das corrupções: a corrupção da inteligência.
Na fé, a certeza fraterniza com a tolerância e o diálogo, estabelecendo a comunhão de amor do finito e do infinito.
A graça que suscita e faz crescer a fé é um dom do Espírito, manifestado na mensagem evangélica como espírito de verdade, de liberdade e amor.
195
A fé se inaugura em nós pelo dom da verdade e pelo reconhecimento desse dom, vindo do Deus Amor, do Deus da bondade pura e
gratuita, que dá, que se dá a si mesmo, sem forçar ninguém a receber. Portanto sob a suave graça do Espírito, a fé será um desabrochar de verdade, de amor e liberdade.
A acolhida, a perseverança e o crescimento na fé exigem sempre
a conjunção ou a sinergia em nós desse tríplice dom que corresponde
à tríplice forma de nossa realização: a verdade, a liberdade e o amor.
Dom divino vindo ao encontro do mais profundo desejo
humano
A fé emerge em um primeiro desejo da verdade, que leva a aspirar e suspirar pela verdade, como o dom primeiro e a primeira necessidade espiritual, inclinando a acolhê-la como esse dom totalmente
gratuito mas que vem ao encontro de nosso ser mais profundo.
A mensagem inaugura um processo de verificação. Ela se verifica em nós, verificando-nos, começando por fazer-nos ser e agir
segundo a verdade. Assim, a certeza da fé pede a convergência de
nossas diferentes capacidades de conhecer, de nossas diferentes
formas de verificação das coisas, mas ela consiste propriamente na
verificação de nós mesmos, na afinidade, ao menos esboçada, do
que somos em nossa identidade, como sujeito de desejos e livre
projeto de conhecer, amar, de nos dar, de comunicar e de criar algo
de bom e de belo.
Pela fé, Deus realiza em nós sua verdade e nós nos realizamos
reconhecendo essa verdade em nós e nos reconhecendo nela. Há
uma interação, uma espécie de vaivém do conhecer ao viver, e do
viver ao conhecer.
Daí a insistência de Cristo no Evangelho: Quem é da verdade
vem a mim que sou a Verdade8. E a densa e sugestiva definição de
8. Cf. Jo 5,44; 8,47; 10,26-27; 14,6-7; 18,37.
196
Santo Tomás: A fé – que se exprime em cada artigo do Símbolo – é
a percepção inicial da verdade encaminhando-nos à Verdade Total. Tal é processo ético, espiritual, místico inaugurado pelo ato de
crer. É a marcha da inteligência, do querer e de todo o ser.
Desperta o gosto e a coragem de caminhar que não se desloca
no espaço, mas vai mudando por dentro o pensar, o sonhar, o querer, o viver e o conviver. Crer é abrir a porta à aventura do amor,
que só na resistência ou na inércia do desamor encontra barreiras à
sua força transformadora.
Verdade, liberdade e amor
É em nós mesmos e por nós mesmos, como um ser constituído
pela liberdade, que somos capazes de nos abrir à verdade. Chegamos à convicção, sendo convencidos pela Verdade (não por um
mensageiro dela). A vitória da Verdade em nós é a fé que brota qual
livre adesão do íntimo do nosso ser, que se vê em afinidade, em plena e profunda identificação com a Verdade. A fé nos revela a verdade de Deus, Sumo Bem e Perfeito Amor, e revela a verdade que
nos constitui em profundidade: nossa relação de dependência íntima e total com a fonte de nosso ser, despertando o anseio de conformidade com o Bem e o Amor.
Abrindo os espaços da generosidade e superando os limites do
egocentrismo, que impele à estreiteza de preconceitos, a fé tende a
confiar na verdade e a compreender o outro como capaz de diálogo,
embora possa estar marcado por outras experiências espirituais.
Vindo como um dom, que se oferece e acolhe na liberdade, a fé
gera uma certeza, transbordante de gratidão e de desejo de comungar com os outros na busca e na acolhida da verdade.
Somos desempossados da pretensão e da propensão que levaria
os “fiéis” a se considerarem superiores aos “infiéis”, dando-se ou –
pior ainda – impondo-se como donos da verdade. Quanto mais alguém se aproxima da verdade – pela sua inteligência, pelo seu co-
197
ração e todo o seu ser – mais estima terá por todos, reconhecidos e
amados quais candidatos e parceiros na busca da mesma verdade.
Assim, a tolerância – não em sua acepção pejorativa, de “aguentar” o outro, mas em seu sentido positivo de acolher o outro na sua
diferença – não é uma espécie de concessão ou da aceitação de mal
menor. Ela é a grande lei da humanidade como a imensa família de
Deus que marcha (pelo deserto e dentro da noite) à procura da verdade, da liberdade e do amor. Somos chamados a aprender uns com
os outros e uns dos outros, na medida em que comunicamos no melhor de nós mesmos, como fieis à busca da verdade e como já (ao
menos parcialmente) identificados com ela.
A fé, por sua natureza e seu dinamismo essencial, é fonte e exigência de diálogo ecumênico, inter-religioso e intercultural.
O diálogo é o grande caminho apontado e iluminado pela fé,
que inclina a estimar nos outros as suas experiências espirituais, ao
mesmo tempo que, neles como em nós mesmos, reconhecemos limites a ultrapassar e falhas a sanar com humildade e coragem.
Para melhor esclarecer a conexão profunda e vital entre a missão de acolher e anunciar a verdade e a prática do diálogo em suas
diferentes modalidades, é da maior conveniência concentrar a atenção sobre o dado de base: a fé consiste em crer no Amor universal.
O diálogo se torna possível, nasce e cresce a partir de um apego efetivo e partilhado a esse amor universal. Ele se enraíza em uma forma de viver a Verdade, visada em um elã de convicção e de doação
de si, que reconhece e professa a transcendência da Verdade acima
dos meios de professá-la. Pois a fé utiliza mediações culturais e religiosas para se exprimir, mediações válidas e necessárias na medida em que favorecem o elã vital da fé, mas permanecendo sempre
perfectíveis.
O diálogo visa aprimorar mais e mais a vida de fé nos diferentes parceiros, comunicar entre eles o que cada um tem de melhor. À
medida que todos sobem, todos convergem, tendendo a se encontrar no Alto da Verdade, do Amor e da Paz.
198
Transcendência da fé e audácia da razão
Fraternizando, nos limites da discrição e da modéstia, com
aqueles que mais se afoitaram a trilhar e explorar esses caminhos,
os santos místicos e doutores, não seria tentativa promissora evocar
o que há de mais profundo no projeto da fé, os laços que ela tece entre nós e Deus?
A fé vem realizar a vocação do ser humano à Transcendência
a partir do que ele tem e é de mas íntimo. Na atitude de crer, o ser
humano reconhece a sua verdade profunda, vendo-se finito chamado na totalidade e na profundidade de si mesmo ao encontro
com o Infinito.
Na sua imanência, na presença interior e plena a si mesmo, ele
se abre à comunhão com a fonte de seu ser, com a Transcendência
que se revela superando os anseios e limites de todo espírito criado
e agindo no centro dele. A criatura é elevada à criatividade, não
apenas no plano de uma ação produtiva e transformadora do mundo, mas em um processo de divinização, de participação à intimidade e à comunhão da Vida que é Deus.
A vida humana recebe um sentido divino, que a penetra e transfigura de maneira íntima e total. A fé não se realiza plenamente em
uma experiência parcial, empenhando apenas uma faculdade ou uma
função de conhecer, sentir, desejar ou alegrar-se. Ela assume, envolve e orienta todo o ser humano. É um elã de toda capacidade de conhecer e amar, a partir do que o Evangelho chama o coração ou o espírito, elevando e unificando todas as instâncias do conhecer e do
amar, ordenando-as à Transcendência do conhecer e do amar divinos.
Esse sentido divino penetrando, iluminando e transformando o
ser humano transbordará, dando sentido à vida, à morte, à ação, ao
outro, ao trabalho, ao sofrimento e à luta pela vida, pelo bem, pela
justiça, e até enaltecendo as coisas, a terra, a história, transfigurando tudo que toca o ser humano, sua atividade e seu destino.
Tal é o significado da linguagem concreta, de feitio narrativo,
da profissão de fé. Deus vem a nós e vamos a Deus por passadas de
amor (Santo Agostinho).
199
A gênese da fé, sua transmissão e sua acolhida, se apresentam
nos começos do cristianismo como um processo de iniciação. Essa
iniciação em seus modelos tradicionais comportava a atitude total de
consagração ao bem e de resistência ao pecado, aos desvios pessoais
e à corrupção na sociedade. Essa atitude era preparada e sustentada
pela oração, pelo jejum e pelos exorcismos, em uma conjunção de
esforços pessoais e comunitários. Bem se poderia sintetizar esse empenho total e harmonioso pela expressão tradicional: Eu renuncio ao
mal do ódio, da ambição e da corrupção; eu abraço o bem e o amor
na comunhão divina partilhada pela comunhão fraterna.
Não é difícil averiguar como se apresenta a iniciação hoje. Ela
corresponde ao rosto moderno do bem e do mal. Indaga com firmeza e clareza tudo aquilo a que é necessário renunciar, e o que é preciso abraçar dentro do nosso contexto cultural de agora. Como se
configuram em nossos dias os valores éticos e espirituais e os contravalores que avultam nos sistemas políticos, econômicos, culturais e comunicacionais, e destroem o ser humano em sua dignidade,
em seus direitos, em sua capacidade de transcendência e de compreensão mútua e solidária?
Já ficou insinuado mais de uma vez; pela fé o ser humano se
aceita como um ângulo aberto para o infinito. Em seu significado
profundo e abrangente essa analogia tenta dizer de maneira simples
a questão mais complexa e intrincada, pois é a questão mesma de
nossa realidade e de nosso destino humano.
“Que sentido você está dando e vai dar à sua vida?”
A questão do sentido é a questão da verdade do ser humano,
visto por dentro e em sua totalidade. Um bebê surge como feixe
gracioso e às vezes inquietante de curiosidades. É um pequeno explorador do mundo. Seu olhar e sua inteligência se vão abrindo em
um elã de conhecer coisas e pessoas. Cresce o interesse em decifrar
como se conectam as coisas para dar certo ou não, e como se relacionam as pessoas para se entenderem ou se desentenderem. Sem
acompanhar esse processo de desenvolvimento da inteligência,
destaquemos essa dupla forma de conhecimento: a compreensão
200
das pessoas, de si e dos outros, e o conhecimento manipulador dos
objetos, ou das pessoas como se fossem objetos, senão coisas vivas
e mais complicadas no meio das outras.
A questão da fé vai começar aqui bem no centro do ser humano
enquanto ele é capacidade e amor da verdade. A primeira atitude
que está na raiz da fé é o amor da verdade, ter o gosto e o empenho
de abrir-se ao conhecimento exato e crítico da realidade das coisas
e das pessoas.
Esse amor à verdade como princípio de toda a autenticidade de
nossa vida e primeiro encaminhamento à fé, em virtude de uma antecipação da verdade de Deus em nós, tal a lição primordial da revelação evangélica.
A afinidade íntima e profunda com a verdade é o que Jesus exige no primeiro de seu discurso no Evangelho de São João (Jo 5).
Ele quer esclarecer a razão por que os seus adversários não creem.
Eles “não podem crer” porque não “são da verdade”. O “ser da verdade” exprime uma afinidade com a verdade, uma identificação
com a verdade, uma forma de pensar e de viver, vazia de todo apego, de todo amor próprio e de toda ambição de coisas e de prestígio.
A verdade é sumamente desejável e terrivelmente exigente. A recusa da fé é explicada no Evangelho por essa incompatibilidade gerada pela ambição da “própria glória” que fecha a porta à luz de Deus.
O mesmo ensino está na base da compreensão que o Apóstolo
Paulo nos dá de nosso ser cristão. Assim, na Carta aos Efésios (Ef
4,15), o cristão se define em sua identidade profunda como aquele
que “vive a verdade no amor”; ou traduzindo de maneira mais literal: aquele em que a “verdade é ativa pelo amor”9. A verdade enca-
9. A Carta aos Efésios emprega no particípio presente o verbo formado da palavra
verdade: aletheuontes, para dizer “vivendo, agindo na verdade ou praticando a
verdade”. Esse verbo aletheuein é empregado por Aristóteles, na Ética a Nicômaco, para designar a dimensão ética da Verdade. Para o autor da Carta aos Efésios,
há uma conjunção íntima da verdade e do amor, é essa sinergia que define a vida
cristã em sua identidade profunda.
201
rada em sua totalidade e sua profundidade, qual valor primordial
que dá sentido à vida e a todos os campos de nossa existência e de
nosso agir, é caracterizada como a luz e a energia do amor, da tendência primeira ao bem, a qual nos confere a bondade e a justiça,
unindo-nos e conformando-nos à Fonte da Verdade e do Amor. É
sob essa luz que definimos e entendemos nossa fé como “crer no
Amor universal”.
De si, a fé estimula todas as modalidades do conhecer. Mas ela
se inscreve mesmo na busca do conhecimento que é compreensão
do sentido. Em prioridade, ela propõe um conhecimento de Deus,
mostrando seus atributos de verdade, bondade, justiça, liberdade e
amor como realizações infinitas dos valores éticos e espirituais que
dão sentido à existência e à história humanas. Assim, dando uma
dimensão teologal ao agir e ao destino do homem e da mulher, a fé
os impele a decifrar o sentido propriamente humano da vida, do viver e do conviver, a chegar a se entender e entender os outros, a
compreender as pessoas, como projetos de liberdade, de autonomia, de justiça e felicidade na busca do bem e na comunhão de uns
com os outros.
A busca de sentido para o viver e o conviver, quando dá certo,
leva a uma compreensão, que é reconciliação positiva e estimulante
consigo e com os outros. Esse acerto geral e profundo na forma
mais elevada do conhecer, que vem a ser a plena compreensão de si
e dos outros, constitui o germe da sabedoria.
É a ciência e a arte de viver como ser humano, guiado pela razão e pelo amor.
Relembrando o significado pleno e denso de crer, se poderá dizer: Crer, crer no amor universal, crer que no começo, no meio e no
fim de tudo está o Amor, é a sabedoria da fé, que dá sentido ao viver
e ao conviver, sem chegar a dar uma explicação (científica) das coisas, das conexões das coisas.
Essa sabedoria da fé não fraterniza nem entra em concorrência
com teorias ou hipóteses frias, de tipo científico, com que se busca
explicar a origem do universo, da vida e da inteligência. Semelhan202
tes teorias têm lá o seu valor, na medida em que ficarem no campo
estrito da verificação de fenômenos e de suas conexões. Mas são de
outra natureza. Podem oferecer certo proveito; quando não partem
para a ficção, ficam nos limites da reflexão racional, guardando o
sentido dos valores e dos direitos humanos universais, bem como
da dignidade da pessoa e da transcendência do seu destino.
A busca da sabedoria é uma forma eminente da razão
No ápice dessa busca de sabedoria, a fé se apresenta como superando as capacidades da criatura racional, sem fazer concorrência com o saber científico, pois ela é a aceitação inteligente e livre
do dom de um sentido divino para viver e agir. Esse sentido divino
inclui e supera toda sabedoria humana. Assim, a fé é dotada de uma
credibilidade racional para o ser humano quando ele reconhece e
cultiva em si um apelo à transcendência; e compara esse apelo, inscrito no seu ser, com a vocação de amor que se revela e se dá na história da salvação. O ser humano se vê então em seus limites, porém
marcado por uma relação íntima com o Infinito, que é o mistério de
Deus transcendente em seu ser e sobretudo em sua bondade.
Coragem de esperar dentro da noite
Hoje há muita coragem de empreender e apostar na técnica, na
competência, no aprimoramento das formas e energias do corpo.
Ajunte-se a esperança de jogar e apostar dessa vez na sorte. É a lógica da civilização da razão instrumental e da fé em que o acaso é
um bom caminho.
A mensagem evangélica insiste: a esperança é a coragem de esperar no amor dentro da noite. É o princípio do dinamismo, da tendência para Deus reconhecido na fé como Sumo Bem, como fiel às
suas promessas e todo poderoso em seu auxílio. A esperança não é
apenas uma convicção que se ajunta à certeza da fé. Ela é uma força
que robustece o desejo e o impele na busca da realização pessoal e
203
social do ser humano, na história e para além da história. Aposta
firmemente na felicidade, apostando em Deus, em suas promessas
e em sua graça.
A certeza da esperança tem um caráter não apenas de convicção intelectual mas também de dinamismo afetivo e prático. É uma
certeza fundada na verdade da fé assegurando que Deus promete o
Bem Divino, mas, a partir dessa certeza de fé e a ela se ajuntando há
a certeza enraizada na confiança (dimensão afetiva da certeza), e
levando à busca decidida e corajosa do Bem (dimensão prática da
certeza da esperança).
Outra insistência evangélica, na coerência profunda do verdadeiro sentido de Deus, a fé deve conduzir normalmente à esperança. Mas as duas atitudes do crer e do esperar não se incluem necessariamente, dada a incoerência do ser humano, que pode impedir
que a certeza da fé provoque o desejo afetivo e efetivo do Bem Divino. A vontade pode não estar suficientemente livre e purificada,
para que nela brote o apetite do Bem Divino, e, portanto, o dinamismo próprio da esperança.
No entanto, em si mesma a esperança é dotada de uma coerência perfeita. Ela tende a imprimir à capacidade humana de desejar e
sonhar uma profunda unidade e uma extraordinária riqueza. Pois
gera um elã para o Bem Divino prometido, o próprio Deus como felicidade do ser humano. E, com esse Bem Divino e em vista de sua
obtenção, mostra prometidos e assegurados todos os bens divinos,
graças, dons, ajudas, que traduzem a “conivência”, a “cumplicidade de Deus” com aqueles que o amam e que Ele ama (cf. Rm 8,28).
Deus é exaltado na revelação bíblica como amando seus fiéis
em seu povo e com o seu povo; deste recebem e a ele consagram os
dons que vêm primeiro de Deus. Esperar, portanto, de Deus: a felicidade pessoal leva por si mesmo a se solidarizar com o bem do
povo na perfeita comunhão que traduz a coerência do próprio plano
de Deus, que se revela sempre como o Amor Universal.
Assim a esperança impele à busca do Bem Divino definitivo e
perfeito que é a felicidade em Deus; dispondo e mobilizando cada
204
um e o conjunto do povo para esperar e buscar o êxito de seus projetos, dentro do grande projeto que é a Justiça do Reino (Mt 6,33),
almejar e promover toda forma de felicidade para todos. Desesperar desses projetos humanos é solapar a esperança divina, barrando
o seu dinamismo e quebrando sua coerência.
Há assim uma “ordem” que dá coerência e dinamismo à complexidade do objeto a que tende a esperança, à semelhança com o
que se dá com a fé e a caridade.
Essa “ordem” é descendente e ascendente.
O Deus da promessa vem a nós como Bem Divino que nos envolve com todo o cortejo de bens divinos e humanos; e nós voltamos a Ele em uma caminhada de esperança, que se desdobra em
uma série de atitudes, de projetos, de buscas de verdadeiros bens
para nós e os nossos irmãos. Encaminhamo-nos sempre, assim, ao
encontro do Bem Divino, Princípio, Fonte e Termo da promessa e
da esperança.
Esperança e egocentrismo espiritual
Desde Santo Agostinho, se debate esta questão: “Podemos esperar (a Vida Eterna) para os outros?”
A questão e a resposta podem ser sintomáticas de uma visão individualista da esperança, como de toda a vida cristã. O aspecto negativo da resposta visa destacar que a esperança supõe e exige que a
certeza não fique só numa “expectativa”, numa “espera,” mas que
há de chegar a uma “esperança” ativa, que tende ao Bem Divino,
que o busca por um empenho efetivo. E assim Agostinho e Tomás
ensinam: podemos e devemos desejar que nossos irmãos sejam salvos, mas não temos certeza (teologal) que estão na fidelidade à graça para obtê-lo.
Sem menosprezar essa resposta, é indispensável olhar para o
dinamismo e o objeto da esperança em sua integralidade.
Deus que me ama e me promete a felicidade eterna, é o Deus
Amor, Amor “apaixonado” pelo mundo: “Deus amou a tal ponto o
205
mundo que lhe deu seu Filho único” (Jo 3,16). A nossa vocação é
pessoal e solidária. Nós esperamos a felicidade que vem a ser: entrar no foco divino do amor universal. E sermos então elevados à
capacidade de amar, no Amor e com o Amor divino, a nossa imensa
família, que é a Família de Deus. A esperança teologal e a Comunhão dos Santos formam a dupla face de um mesmo dom do Amor
Divino que se dá e nos transforma em seres de felicidade e de dom.
A esperança não é o amor-desejo do Bem divino, como felicidade para mim? Não é então a projeção do egoísmo sob a forma religiosa, um egocentrismo levado ao infinito? Infelizmente, em certos
subprodutos da cristandade, encontramos uma resposta desastradamente afirmativa a essa questão fundamental. Houve e há quem faça
do céu uma evasão aceita para si e, mais ainda, pregada aos outros.
Leva, assim a uma atitude de inércia ou mesmo de dissimulação do
necessário dom de si em busca da felicidade dos outros.
Na verdade, a esperança evangélica é uma energia divina que
nos tira e liberta da busca egoísta da felicidade individualista. Ela
nos leva a apostar na felicidade que é o bem em si, antes de ser o
bem para mim. Ela busca a felicidade que é identificação com o
Amor perfeito e universal.
A verdade de meu ser de criatura é que estou inacabado, incompleto, desejo a felicidade como plena e necessária realização de meu
eu. Sou, assim, um ser que há de esperar, feito para esperar, tendo
sua verdade e sua bondade em desejar a felicidade. O amor-desejo é
um verdadeiro amor para a criatura. Mas, na esperança, a felicidade
prometida e buscada coincide com a santidade, com o Amor-domde-si. Eu me encontro no Outro que é Deus e nos outros em Deus.
Nele, nós nos perdemos e somos salvos. Ele nos atrai, nos purifica,
nos eleva, unindo e transfigurando o nosso amor-desejo no Amor desinteressado, no Amor dom de si e no Amor-comunhão, que Ele é.
A caridade e o amor humano universal
A caridade se dá e se revela como plenitude, como perfeição,
pois ela nos une a Deus-Amor pelo amor que ele nos comunica e em
206
Deus nos leva a amar o próximo, a entrar em comunhão filial
com Deus e em comunhão fraterna com todos os mais filhos de Deus.
Da confluência e da confrontação dos diferentes textos da mensagem bíblica, a tradição formulou uma definição ampla da caridade, que está na base da experiência e da catequese da Igreja.
A caridade se define como a virtude teologal que consiste no
amor perfeito e total, pelo qual amamos a Deus em si mesmo e por
si mesmo e amamos o próximo em Deus e por causa de Deus.
A caridade é divina, dom divino e virtude divina. Graça divina
que nos leva a amar, dom divino, que nos faz dar-nos, a exemplo de
Deus. Ela se define, portanto, como virtude teologal que retifica,
confirma, universaliza e diviniza nossa capacidade de amar. Ela
leva nosso ser de criatura a amar a Deus seu Criador. E mais ainda:
Ela é uma graça acima de nossas forças naturais, fazendo-nos amar
a Deus em si mesmo, como comunhão do amor trinitário. Ele a nós
se revela e dá como Bem e Amor Infinito em si mesmo, e como felicidade de cada um e de todos os seres humanos, chamados à comunhão dos santos, em torno da comunhão trinitária.
A perfeição teologal da caridade suscita um problema não apenas prático mas também doutrinal: Como o próximo, simples criatura, poderia ser objeto de uma virtude divina, que tem a Deus por
princípio, termo e objeto?
O próximo é verdadeiramente amado, estimado e querido em si
mesmo, mas enquanto participa do amor que vem de Deus. Não é
uma simples ocasião de se amar a Deus. Ele tem sua amabilidade
em si, que a caridade leva a descobrir e a reconhecer efetivamente.
Para compreender a verdade desse amor que é a caridade para
com o próximo, convém lembrar o princípio da participação. Pela
criação e pela graça, de maneira real embora limitada, Deus nos
torna participantes de sua perfeição, de sua amabilidade e de seu
amor divinos. A caridade nos faz imitar o amor criador e santificador de Deus. Ela nos leva a ver o próximo em Deus, como tendo recebido perfeições divinas e como chamado a receber mais ainda,
207
dessa fonte de bondade e de amor. Ela vê o próximo como ele é,
sem imaginações, disfarces nem fantasias. Com suas fraquezas,
suas falhas e também suas qualidades e promessas de realização.
Ela toma o partido de Deus. Que é o partido da verdade, da misericórdia, da procura do bem para a pessoa amada. Isso significa conhecê-la, cada vez mais e melhor em sua capacidade de bem e de
ser melhor. E se empenhar para cooperar com o Espírito de Amor,
no sentido da promoção e da perfeição da pessoa amada.
Daí o amor ao próximo ser uma aposta pelo bem e um esforço
para não sucumbir ao mal. Assim a caridade se torna fecunda em
perdão, em compreensão, em empenho de correção fraterna, de reconciliação e de paz, vencendo as forças do mal que impelem ao
conflito, à incompreensão e à malquerença.
Aprimorar a noção do amor
Três paradigmas bíblicos nos são dados, no Novo Testamento,
para definir a perfeição do amor, de que a caridade é a plena realização: intimidade filial, relação de amizade, e aliança conjugal.
Para definir a caridade, à sua maneira sucinta e rigorosa, Santo
Tomás recorre ao paradigma mais amplo, da amizade: “A caridade
é uma realização eminente da amizade, uma amizade divina”10.
Essa noção é elaborada graças ao recurso à ética de Aristóteles, a
qual é aproximada da experiência humana e dos dados bíblicos sobre
a amizade. A amizade é explicada como sendo um amor de benevolência, dotado de reciprocidade e fundado na comunhão de um mesmo bem. Essas propriedades da amizade humana são estilizadas e
transpostas para dar um conteúdo concreto à definição da caridade.
O ponto de partida dessa elaboração teológica é a busca de uma
noção perfeita do amor, o que significa: a compreensão lúcida e
10. Cf. AQUINO, T. Suma Teológica, II-IIae, 23, 1, vol. V. São Paulo: Loyola,
2004.
208
fundada de sua realidade, de seus elementos constitutivos e de suas
diferentes formas de realização.
Com esses dados elementares, podemos chegar a uma melhor
compreensão da definição da caridade como forma eminente de
amizade de Deus para conosco e de nós para com Deus e o próximo.
A amizade é entendida como a forma permanente e acabada do
amor de benevolência. A amizade designa a qualidade de continuidade desse amor de benevolência, mais as outras qualidades de reciprocidade e de comunhão.
Nesse amor, aquele que é amado é visado e estimado, como
pessoa, como sujeito, como fim em si mesmo. Quem ama não se
procura, não busca o seu bem. Quer o bem, a promoção, a felicidade do amado. Esse amor de benevolência, inteiramente puro e gratuito se encontra na caridade de Deus para conosco. Ele é participado na caridade das criaturas, que recebem a comunicação do Espírito de Amor. Mas nelas, o puro desinteresse é impossível. Elas são
feixes de necessidades, de virtualidades a desenvolver. Elas desejam justamente, segundo a verdade de seu ser, tudo quanto lhes falta para sua realização no plano da natureza e da graça.
Em todo ser humano, ao lado do amor de benevolência, há o
amor desejo, encerrando algo de interesse próprio11. Iluminado
pela fé, suscitado pela graça, motivado pelas promessas divinas,
esse amor desejo será a base, o elemento psicológico assumido e
sublimado pela virtude teologal da esperança. Ela será distinta da
caridade pelo seu objeto, pela sua estrutura, pela sua relação ao
amor desejo, retificado, confirmado, elevado em Cristo. Ela será
animada pela caridade. Assim, Deus é amado e desejado como nossa felicidade e nossa plena realização pessoal e comunitária. Tal é o
objeto e o dinamismo da esperança. Ele é amado, querido, buscado
como Bem Supremo, nele mesmo e por ele mesmo: esta é a realidade, a força do amor desinteressado que é a divina caridade.
11. Desse amor desejo, a venerável tradição latina, após Agostinho, fala como
amor de concupiscência, ao passo que a tradição grega o denomina Eros.
209
A caridade emerge e se define então como amor de benevolência recíproca.
O amigo é amigo do amigo. A amizade, por este caráter de afeição mútua, estabelece certa igualdade entre os parceiros do amor. Na
amizade, cada um faz a felicidade do outro. Essa é a dificuldade que
embaraça alguns teólogos, especialmente entre os protestantes, e os
impede de reconhecer na caridade uma amizade entre nós e Deus.
Ao contrário, os grandes místicos, como Santa Teresa, São
João da Cruz se comprazem em exaltar essa prerrogativa da caridade. Por ela, Deus nos dá a capacidade de corresponder ao seu Amor
que tem a iniciativa, que começa por criar em nós – pelo dom do
Espírito – a capacidade de amar a Deus de maneira divina, de entrar
na corrente de amor que é a Comunhão Trinitária. Nesse sentido,
pode-se falar de uma nova criação, de um novo nascimento de seres
divinizados para entrar na família de Deus. É o sentido da filiação
divina. E pode-se evocar a insistência da Sagrada Escritura mostrando que Deus estabelece aliança conosco, uma aliança que se
personaliza em um paradigma de união e relação conjugal. Tema
igualmente desenvolvido com preferência pela teologia mística.
Assim, a caridade se afirma igualmente e se define como comunhão no Bem Divino.
Tal é a propriedade que vem coroar a realidade e o dinamismo
da amizade: a comunhão. Ter e partilhar os mesmos bens e os mesmos interesses.
Quando há essa comunhão de bens, em um plano inferior, das
coisas materiais, sensíveis, mundanas, pode-se falar de certo tipo
inferior mas bem concreto de amizade. Mas a verdadeira amizade
humana se funda na comunhão dos valores humanos. E uma amizade total é uma comunhão de tudo o que é humano, de tudo quanto
integra a realização do ser humano ou para ela concorre. Assim, a
amizade matrimonial é uma comunhão nos bens divinos e humanos, que constitui a convivência espiritual e amorosa do casal12.
12. Cf. Vaticano II. Const. GS, II parte, cap., 1, n. 49.
210
A caridade é uma amizade que se funda na comunhão do próprio Bem Divino, de Deus mesmo, que se dá como fonte de santidade e de felicidade de todos os seus amigos. Essa comunhão funda a
comunhão dos santos, tendo como objeto a participação nesse bem
e na sua difusão, em uma mesma vocação e consagração ao Reino
de Deus. Assim a caridade estabelece uma comunhão de interesses,
de empenho, de dom de si, pelo reino de justiça e de paz, tanto mais
forte quanto essa caridade é real e ativa13.
“Ordem” divina e humana do amor
A caridade é a “ordem do amor”, na expressão graciosa do
Cântico dos Cânticos14.
Nessa visão da caridade, como amor universal e bem ordenado,
se realça a fecundidade e a coerência desse amor divino e humano.
Ele estabelece a intimidade de cada um com Deus e a comunhão
profunda e real entre todos, penetrando toda a existência e transformando o mundo e a história.
Para pôr em relevo essa unidade e universalidade, destacamos
as propriedades da caridade, embora elas sejam em si indissociáveis, surjam e cresçam juntas, sob o impulso da graça e pela livre acolhida dos corações e das comunidades, que a graça vem suscitar e
fazer desabrochar.
13. Uma graciosa e forte imagem da caridade é a esposa zelosa da glória do esposo, da promoção de seu reino e do cumprimento de sua vontade, tal qual esse
amor apaixonado e realista se manifesta na vida e nas palavras da grande Doutora
da Igreja, Santa Teresa de Ávila.
14. Assim se traduz “ordo amoris”; versão latina do texto grego do cântico (Ct
2,4). A “ordem do amor”, virtude fundamental e fonte das demais virtudes, tal é a
compreensão e a explicação transmitida por Orígenes em seu Comentário ao
Cântico dos Cânticos. Cf. na Coleção Sources Chrétienne, tomos I e II. Paris:
Cerf, 1991-1992.
211
Primeira propriedade deste “Amor bem ordenado”: é a universalidade e a unidade, que a caridade, amor divino participado, manifesta em seu duplo objeto: Deus e o próximo.
É a noção mais geral, da catequese cristã: caridade, amor total
de Deus nele mesmo e por causa dele mesmo, e verdadeiro amor do
próximo em Deus e por causa de Deus.
Trata-se de uma propriedade essencial, pois há um laço íntimo
entre essa dupla dimensão do amor-caridade. Uma não existe sem a
outra, ambas crescem juntas. É a grande insistência da Primeira Carta de João. Um mesmo Amor envolve: o Pai, o Cristo, os irmãos15.
Toda mística que pretende ir a Deus sem viver no amor verdadeiro e realista dos irmãos é uma ilusão.
Conduz a um grande desvio espiritual ou patológico. Ou ao risco de resvalar nos dois. Tal é o corolário exigente dessa visão primordial da caridade, que é no entanto de si uma mensagem e uma
experiência de suavidade.
Uma segunda propriedade dessa “ordem do amor” é a sua fecundidade: a caridade surge como a constelação das virtudes mais
elevadas.
Elas são como o desabrochar do próprio amor em suas formas e
atividades, visando Deus e o próximo, em uma afirmação e uma generosidade do perfeito bem-querer. É o universo do amor teologal,
que se desdobra em virtudes que são como dimensões da mesma
caridade. São explicitadas e manifestadas, sob noções diversas,
porque envolvem muitos campos. Mas traduzem a energia de um
mesmo amor divino, assumindo e transformando a realidade, a
vida, a convivência do ser humano.
Essa plêiade de virtudes, descritas com certa complacência pelos mestres da espiritualidade, manifesta a natureza e o dinamismo
do amor.
15. Cf. uma síntese dessa doutrina: 1Jo 4,5-16.
212
Ele tem uma atividade própria, a atividade íntima da vontade
que se identifica afetivamente com o bem amado. A essa atividade
interior e própria do amor se prende um feixe de virtudes ou de propriedades primordiais da caridade.
O amor é uma força que se difunde, uma energia suave e poderosa que se exerce sobre todas as faculdades e atividades humanas.
Dessa influência eficaz do Amor Divino decorre esse conjunto de
virtudes, que desdobram sua eficácia na existência pessoal, comunitária e social.
Amor gratuito, puro bem-querer, fecundo em bem-fazer
Assim, no Amor Divino que é a caridade, distinguimos o que
há de mais íntimo que é a Dileção mesma, o laço da própria afeição, prendendo e identificando as pessoas, queridas por elas mesmas e nelas mesmas. É a pura relação de amor, um no outro, um
para o outro, sem que mais nada nem ninguém intervenha. É a pura
complacência um no outro, em uma atividade simples e imediata
de gostar um do outro. A dileção divina é como o coração da caridade. É a fonte imediata da contemplação, “simples e puro olhar
amoroso, encantado pela beleza, pela verdade e pela bondade de
Deus”. Na linguagem de Santo Tomás de Aquino16.
Da “dileção” emana a alegria em Deus, no Bem Divino, nas
pessoas ligadas a Deus, a qual inspira o louvor e a ação de graças,
alma do culto divino e da virtude de religião. A alegria em Deus e
em seu amor será a fonte da contrição, esse pesar de haver ofendido
o Deus-Amor, detestação do pecado, enquanto oposição ao Amor
Divino ou recusa desse amor.
Outra dimensão da dileção divina ou seu efeito imediato é a
Paz no encontro amoroso com Deus e na certeza de amar e de ser
amado, apesar de todo o mal e de toda a fraqueza.
16. Cf. Suma Teológica, II-IIae, questões 144 e 148, onde essa doutrina, aqui evocada, é exposta amplamente.
213
É importante considerar a fecundidade da caridade; especialmente a beneficência não é a caridade, mas um de seus frutos, que
lhe faz concorrência na apreciação de muita gente. Pois, a caridade é
amor plenamente eficaz, é força interior que impele a agir e engendra
a capacidade de fazer o bem. A caridade inspira e anima a beneficência. Esta é a face visível da caridade, o seu lado mais ostensivo e de
fato para muitos a única forma que conhecem de caridade.
Esse dinamismo da caridade consiste em fazer por amor o bem
espiritual e corporal.
A energia da caridade impelindo ao bem espiritual é o zelo
apostólico, princípio de edificação (= construção) da vida e da comunidade cristãs. Ele é como a força íntima e eficaz da própria dileção divina, dela emanando em simbiose com a contemplação.
Diante do mal, a caridade move à compaixão e ao perdão, bem
como à correção fraterna. Ela se prolonga assim como imitação da
misericórdia divina e dinamismo da obra da Redenção.
Diante do mal e da miséria corporal, a beneficência que a caridade inspira e incita promove toda espécie de ajuda e socorro, a que
a tradição evangélica dá o nome de esmola. Esse nome desvalorizado hoje, formava no Antigo e no Novo Testamento, junto com a
oração e o jejum, as três obras principais da justiça ou da religião
verdadeira, vindo do amor e levando ao amor17.
A caridade, alma ou “forma” de todas as virtudes
Ela estimula o surgimento e o progresso de todas as virtudes,
humanas e evangélicas (na ordem da natureza e da graça), e acrescenta a elas a qualidade de “verdadeira e perfeita virtude”. A caridade lhes dá a orientação plena e desinteressada ao Bem Absoluto.
Essa propriedade da caridade manifesta sua universalidade,
sua presença ativa e ativante em toda a vida cristã, e ao mesmo
17. Cf. a bela seção do Sermão da Montanha, Mt 6.
214
tempo a valorização das outras virtudes. Mais profundamente, assim se evidencia a justa autonomia da ética, ao mesmo tempo que
sua teonomia.
Cada virtude tem seu campo próprio e sua própria regulação racional.
O influxo da caridade assegura, pois, a vitalidade e a autonomia das virtudes, bem como sua elevação ao plano propriamente
divino de busca do Reino de Deus e de marcha para a Vida Eterna.
A ação universal da caridade sobre o universo das virtudes se
realiza sempre como uma “ordem do amor”, como uma harmonia
interior que assume as virtudes mestras: a prudência e a justiça.
Como a prudência e a justiça, as outras virtudes têm sua “forma” específica; e são enriquecidas de uma nova “forma” pela caridade que as eleva e orienta para o Fim último, divino, sobrenatural.
Assim, a caridade é a inspiração e a motivação de todos os
mandamentos: é a “plenitude da Lei”.
A presença e o influxo da caridade penetram os mandamentos,
dando-lhes um novo feitio e um sentido novo à sua obrigação. Os
mandamentos brotam e são vistos como exigências do amor. Este
lhes confere uma nova motivação. “Se Me amais, guardareis os
Meus mandamentos” (Jo 14,15).
No Novo Testamento, fala-se de preferência dos “mandamentos”, e menos da Lei. Essa aparece ligada à instituição. O mandamento evoca a relação pessoal com Deus e retorna ao clima do paraíso. O mandamento é um dom que vem do amor e que se liga à
promessa. Observá-lo é seguir o caminho do amor e buscar a verdadeira felicidade. Essa visão afetuosa dos mandamentos prolonga a
contemplação amorosa dos salmistas que cantam a Lei (cf. Sl 119,
por exemplo). Assim se exprime a verdadeira piedade israelita, que
nem de longe se confunde com o legalismo farisaico, estigmatizado nos Evangelhos.
A “lei”, considerada como a totalidade dos mandamentos, será
assim transfigurada, entrando na “plenitude” que é a caridade.
215
Assim a “Nova Lei”, ou a forma de vida inspirada pelo Evangelho e animada pela caridade, consiste primordialmente no dom do
Espírito Santo, que difunde o amor nos corações e nas comunidades (Rm 5,5).
Merece especial atenção a afinidade da caridade e da prudência, que é o discernimento inspirado pelo amor e chamado a guiar
toda a vida em sua dimensão ética. Essa junção do amor e da inteligência como fonte da existência autêntica é uma das grandes insistências da Bíblia, especialmente do Novo Testamento18.
Dois dados se apresentam aqui como fundamentais:
O primeiro diz respeito à relação do amor e do conhecimento
que se encontram na base da vida cristã. O amor é um princípio de
orientação do conhecimento prático, que tem a missão de orientar a
ação e a vida cristãs. Essa orientação se faz por uma forma de conhecimento, que Santo Tomás denomina de “conhecimento por conaturalidade”. Em virtude da afinidade que o amor estabelece entre a pessoa e um domínio moral, a pessoa será inclinada a apreciar
esse domínio na linha do amor que a anima. A caridade, na medida
de sua intensidade, exerce uma influência orientadora sobre a consciência e sobre a prudência, virtude que guia a consciência e dirige
as decisões pessoais e sociais.
O segundo dado visa, de maneira mais precisa, as relações entre
a caridade e a prudência. Esta é a primeira virtude no plano moral,
como a caridade tem o primado entre as virtudes teologais. A prudência é o princípio de articulação e de conexão de toda a vida moral.
A caridade é a fonte de unidade e de coerência de toda a vida cristã.
Esta atividade unificadora e animadora da caridade se exerce primordialmente através de seu influxo sobre a capacidade de discernimento, que afasta da religião todo legalismo ou autoritarismo moral.
Pode-se dizer assim que há uma dupla conexão das virtudes; a
primeira em torno da prudência, no plano propriamente moral; e a
18. Cf., p. ex.: Fl 1,9; Cl 1,8-9; Ef 3,17-19; 4,15.
216
segunda no plano teologal, sob o influxo da caridade que confirma
toda a vida moral em sua ordem própria e a eleva na linha da divinização do ser humano no Cristo e no Espírito.
O que é mais decisivo como teste da verdade dessa mensagem
religiosa diante do mundo, especialmente hoje em sua etapa de globalização, vem a ser a afirmação da junção da caridade e da justiça
como forças transformadoras da sociedade.
A justiça visa o reconhecimento da dignidade da pessoa, a promoção do bem comum, o que se traduz no respeito e na garantia de
todos os direitos para todos. Ela tem, pois, sua perfeição e sua formalidade específicas. A caridade exige a prática da justiça com a
forma e o rigor que convêm a essa virtude. Mas a caridade lhe ajunta uma perfeição, elevando-a de dentro, “informando-a”, animando-a de nova motivação e de novo vigor.
O amor projeta uma nova luz sobre as pessoas e a sociedade, e
dá uma nova força interior aos valores e às normas da justiça.
A caridade confirma, reforça e torna mais exigente e urgente a
justiça na tarefa mais nobre e difícil dessa virtude: a instituição e a
manutenção da sociedade na prática do direito e da solidariedade19.
Integração da mística e da ética face ao desafio da
globalização
Nada de mais necessário e de mais atual do que a visão conjunta da transcendência e da fragilidade da condição humana.
É o sentido evangélico da divinização da existência humana no
Cristo. A vida e a ética cristãs só se entendem qual entrelaçamento
das virtudes teologais e das virtudes morais. As virtudes teologais
19. Tal foi a insistência exemplar da teologia elaborada a partir da América Latina e
para a América Latina, pelos primeiros missionários, especialmente por Frei Bartolomeu de Las Casas. A exigência primordial da caridade foi proclamada como a urgência de se criar uma forma autêntica de sociedade, baseada na liberdade; a justiça
e a solidariedade para todos, a começar pelos mais pobres e oprimidos.
217
penetram o domínio e a atividade das virtudes morais, nelas aguçando o sentido pleno do verdadeiro bem, insuflando-lhes força,
dando-lhes o amor desse bem, mostrando-o realizado e exemplar
em Deus.
Deus se oferece e é reconhecido como fundamento e fonte de
toda opção, de toda decisão, de toda ação e de todo projeto. Nele
resplandece o sentido do que se tem que fazer, enfrentar, sofrer,
mas também a garantia da felicidade, do encontro, da compreensão, da comunhão entre todos os seres humanos.
Mas sendo o princípio, o fim, a energia que sustenta e anima a
vida moral e todo o feixe das virtudes humanas, as virtudes teologais não as reduzem a simples meios. Elas têm uma bondade própria. Elas se fundam em verdadeiros valores e a eles são orientadas. A relação do bem moral que visam as virtudes humanas e o
bem divino a que tendem as virtudes teologais é a relação do fim último e dos fins intermediários.
Toda a reflexão ética se desdobrará no empenho de manifestar
e aprofundar essa correlação. Há uma bondade humana que constitui o objeto e motivo das virtudes morais. Assim, admiramos a excelência da virtude de justiça que nos propõe o respeito da dignidade da pessoa, os seus direitos, o valor da vida a reconhecer, a defender, a proteger. A luz divina que vem da fé, a energia divina que
brota da esperança, o amor divino que inspira a caridade trazem
como um suplemento de sentido, de coragem, de motivação para
confirmar e exaltar o domínio e a atividade da justiça.
Mas a orientação teologal que assume e eleva a prática da justiça começa por valorizar esse bem admirável que é o direito nas relações entre os homens, o direito que é objeto próprio e o campo
bem preciso da justiça. Na vida do cristão, a orientação teologal, a
mística que decorre da fé, da esperança e da caridade, não diminui
mas reforça a bondade do plano moral, do amor humano e de todas
as formas de relações e organizações harmoniosas entre as pessoas.
A evocação desses dados um tanto austeros da inspiração mística do cristianismo, da atitude de união imediata e direta com Deus
218
que se enraíza nas virtudes teologais, parece oportuna para indicar
o verdadeiro ponto de encontro das religiões e dos movimentos espirituais que hoje vislumbram a viabilidade de uma ética humana e
planetária. Muitos impérios, arvorando bandeiras religiosas, já tentaram em vão unificar os povos pela força da ortodoxia de uma
crença imposta pela força ou pela astúcia. Bem ao contrário, de si
mesma a mística pode levar fiéis e comunidades a colaborar, em
plena solidariedade, com o projeto de uma ética mundial, empenhando-se em promover, na realidade profunda do ser humano, a
busca e a atitude de um amor universal.
219
CAP. 6
A PRUDÊNCIA: SABEDORIA INTEGRADORA DO
DISCERNIMENTO ÉTICO, DAS TEORIAS E
PRÁTICAS DA DECISÃO, NA PERSPECTIVA DE UMA
ÉTICA MUNDIAL
A virtude, a qualidade ética, vulgarizada no mundo latino, por
influência dos estoicos, sob o nome de prudência, bem merece ser
chamada sabedoria e virtude-mestra da moral no campo pessoal e
social. Pois emerge qual confluência da razão e do querer, visando
orientar a consciência, o discernimento e todo o processo ético do
agir, do fazer e do comunicar.
Valorizando a justo título as teorias e práticas da decisão, a sociedade moderna e tecnológica tende a deixar na penumbra esse valor fundamental que é a sabedoria de viver e conviver, de se empenhar com inteligência na busca da justiça e da paz. Assim, com a globalização crescente, animada pelo elã de um utilitarismo individual e
coletivo, a humanidade corre o risco de mergulhar mais e mais no
caos do egocentrismo violento, agressivo, erótico e consumista.
Não seria a boa hora do despertar das consciências para a atitude lúcida e abrangente de priorizar essa sabedoria do discernimento ético, em sintonia com os atuais paradigmas e modelos da
decisão? Tal parece o caminho certo, sem dúvida longo e árduo,
para uma ética mundial integradora, que brilha ainda como um
projeto viável, como aquela esperança derradeira em que paga a
pena apostar.
220
Coragem e sabedoria de decidir
Em contraste com certo uso vulgarizado, a prudência resplandece no campo da ética, primeiro com o antigo e venerável prestígio de uma “virtude”. Termo este que também se há de resgatar e
realçar qual excelente qualidade de ser, de agir, de viver. A prudência é a maneira plenamente humana, plenamente racional e responsável de se orientar e de orientar outrem na vida.
É saber examinar, ponderar, discernir e decidir. E se realiza
plenamente, levando em frente as decisões amadurecidas, com lucidez, coragem, da forma e no ritmo que convém.
Longe de se parecer com a mesquinhez que se encolhe diante
do risco, a prudência é para a reflexão ética um rico feixe de qualidades, a sabedoria e a audácia inspiradas pelo amor desinteressado
do bem, juntando-se com a busca firme e serena da felicidade própria e do outro. Desdobra-se em uma dimensão humana que pode
desabrochar acertadamente no plano religioso.
Assim, para o cristão será virtude humana e evangélica. Emerge e cresce qual virtude do homem e da mulher que têm em Cristo
um mestre e modelo.
Por ela, todo o ser humano se vai realizando na perfeição da sua
natureza, da sua personalidade, do seu destino histórico, terrestre,
espiritual.
Por essa virtude total, assumida pela fé, o ser humano no Cristo
será iluminado pelo Evangelho, conduzido e elevado pela graça do
Espírito.
Uma vez que a lei, os códigos de preceitos e interditos são relativizados pela pregação de Cristo e dos apóstolos, o ensino ético do
Novo Testamento dá grande ênfase ao discernimento da prudência,
pela qual o ser humano se encaminha a partir de sua responsabilidade, racional e livre, para se realizar plenamente em uma virtude que
se aprimora na docilidade ao Espírito de sabedoria e de amor.
Assim, nesse plano religioso todo voltado para vida real, a prudência surge e se define como virtude humana e evangélica, orienta221
dora de todo o agir e de toda a existência, iluminando a caminhada
cotidiana, em sua dimensão pessoal, familiar, profissional e social.
Está aí uma primeira definição, visando exorcizar as falsas visões correntes, que reduzem a acepção da prudência, aproximando-a da timidez ou da precaução. Convém insistir. A prudência é
uma virtude. É um termo de perfeição. É uma qualidade habitual,
levando-nos a agir, movidos pelo amor do bem e empenhando-nos
com gosto e liberdade, com firmeza e lucidez na prática do dia a dia
simples e sem novidade ou no empenho de enfrentar e decifrar tarefas árduas e complexas.
Religiões simpáticas e atraentes como o budismo, de maneira
exemplar, enaltecem a inteligência, convidando à contemplação do
Ser profundo e incitam à compaixão que deslinda e supera os obstáculos interiores e exteriores à prática do bem. Nessas alturas, a sabedoria transcendente se junta ao cuidadoso discernimento espiritual nas lides cotidianas.
Para o cristão, a sabedoria emerge na força e na beleza de uma
virtude bem humana, ativada e exaltada pela doutrina e pela inspiração evangélicas. A graça vem ao encontro do empenho incansável de bem guiar a vida, cresce em uma docilidade constante ao Espírito que conforma o discípulo à sabedoria de Cristo. Leva-o, assim, a agir, sofrer e enfrentar o dia a dia, de maneira plenamente racional, como criatura de Deus, fraternizando com as lutas e labutas
da humanidade. A mesma energia do amor o impele a testemunhar
a qualidade evangélica de quem se crê filho de Deus, em busca de
seu reino de luz em meio às penumbras de incertezas que sempre
envolvem a sociedade e a história.
Discernimento ético no processo da história
O recurso à história não garante apenas uma ilustração deste
tema fundamental. Sem dúvida, enquanto série de eventos implicando decisões e responsabilidades, a história lança fortes luzes sobre a compreensão passada e atual da prudência, da sabedoria e da
222
arte de decidir, dos paradigmas teóricos e dos modelos práticos utilizados ontem e hoje.
Para ser autêntica e operacional, a ética vai mais longe e mais
fundo, sabendo partir sempre da compreensão do ser humano que
se realiza em seu próprio processo histórico, pessoal e social.
É indispensável ter em mente essa visão integral e integradora
da história.
O ser humano se faz no tempo, se desdobrando em etapas históricas, que se concatenam e se modificam na convergência dessa dupla corrente de fatores:
1) as influências vindas de fora, sob a forma de pressões, de seduções ou de convicções respeitosas da liberdade;
2) e as atitudes da própria pessoa, que assume o sentido e o
rumo de sua vida, ou, cedendo à omissão e à cumplicidade, se
deixa fazer de maneira predominante pelos outros.
A questão é tanto mais importante quanto os meios tecnológicos e comunicacionais são hoje sumamente eficazes na manipulação das mentalidades e dos comportamentos, ao mesmo tempo em
que avançam mais e mais na técnica de ocultar ou camuflar semelhante processo de manipulação.
Como reflexão e como vida, a ética se vê diante do duplo desafio.
O primeiro será o empenho de situar e analisar a teoria e a prática da decisão dentro da história dos acontecimentos, das instituições, do pensamento e das doutrinas.
O segundo ajuntará a necessidade de considerar e compreender
a dimensão histórica do próprio processo humano da decisão. Mesmo sucinta, é a pesquisa da maior relevância na abordagem de todos os capítulos da ética, especialmente na perspectiva da marcha
rumo a uma ética mundial, hoje, ao menos em seus elementos essenciais, almejada pela humanidade, tão rica embora tão incerta, na
diversidade das culturas, dos costumes e das religiões.
Será preciso, em nosso itinerário ético, conciliar os dois aspectos: situar e estudar os paradigmas e modelos de decisão, e apreciar
223
como vão sendo aceitos e praticados. Assim, a história dos eventos
culturais e éticos ajudará a compreender a realidade viva da prudência, da sabedoria e da arte de decidir, em sua dimensão ética,
bem como em suas múltiplas aplicações técnicas na administração,
na economia e em vários outros setores da civilização moderna.
Na aurora da Modernidade
O despertar da civilização moderna, naquela esplêndida primavera que se anuncia no Renascimento, coincide com a fé entusiasta
na “dignidade humana”, enaltecida e cantada em todos os tons, brotando da inteligência e prometendo mil maravilhas pela livre e fecunda emancipação da inteligência da criatura que se faz criadora.
A contemplação de Deus em que se compraziam os gênios e pioneiros da Idade Média parecia eclipsar-se cedendo espaço à contemplação científica e estética do mundo e do corpo.
Com certa ufania, a cultura e o humanismo renascentistas trazem consigo a exaltação dos valores da razão filosófica e científica,
da criatividade técnica e artística. A religião, desabrochando em
contemplação desinteressada e em dom gratuito de si não mais seduz as elites, as nobres famílias e os jovens pesquisadores ou descobridores do mundo, menos ainda os sedentos de aventuras e de
feitos gloriosos.
Mas, esse arrefecimento da pura contemplação e da total consagração contrasta com a bela sorte reservada à inteligência prática,
fabricadora de utensílios e criadora de obras de arte. Igualmente, o
discernimento, entendido como busca de critérios e modelos de decisão, desdobrando-se ainda no campo religioso, mais e mais, porém, no mundo leigo, está presente no alvorecer jubiloso do Renascimento, como fenômeno dotado de um futuro amplo e promissor.
Ele passou a mostrar-se mais visível, embora mais prosaico,
com a emergência da política em sua autonomia valorizada por
Maquiavel, com o surgimento e desenvolvimento das nações modernas, com o predomínio da economia como infraestrutura da so224
ciedade em geral, sem esquecer o desafio para a inteligência prática
e empreendedora, representada pela façanha surpreendente que é o
descobrimento do Novo Mundo.
Para ele vieram, como parceiros da mesma aventura, os conquistadores e os missionários, portadores da grande desafio lançado à cristandade: como evangelizar, anunciar e testemunhar o amor
desinteressado ao mesmo tempo que se coloniza, sujeitando a população e se apoderando das riquezas da terra. Esta era tida sem
dono, à disposição do primeiro europeu que aqui vem. A gente desse novo continente foi logo considerada ou desconsiderada como
desprovida de cultura, de civilização, de direito, de política e de fé.
Eram selvagens bons para servir os civilizados. Mais ainda,
eram os infiéis que seriam elevados à dignidade de servir os fiéis.
O grande desafio emergindo no coração da história se concentrava nesta questão imensa e crucial: que qualidade de discernimento poderia ter a Europa naquele momento em que o universo
começava a se encontrar, e o Velho Continente se pretendia a terra
de Deus e da cultura, mais simplesmente se dava como o centro do
mundo. Ora, quem assim se exalta, na realidade se achata na mais
triste e estéril mediocridade, na incapacidade de se afirmar e crescer reconhecendo o valor do novo, do outro, do diferente.
Precisamente era essa oportunidade desafiadora e estimulante
provocada pelo descobrimento do Novo Mundo. A mediocridade
pretensiosa da cristandade europeia, como toda mediocridade semeada pelos imperialismos dominadores pela violência ou pela sedução, era de pouco ou nenhum proveito, quando se buscava novo
suplemento de sabedoria e discernimento, quando as expansões
marítimas já abriam caminho à globalização.
Está aí esboçado o grande contexto mundial da falta ou do discreto surgimento do discernimento, da sabedoria e da arte de bem
decidir, qualidades indispensáveis para enfrentar os desafios colocados à marcha da humanidade.
A emergência e os avanços do discernimento e das teorias de
decisão andarão grandemente juntos. Pois respondem aos mesmos
225
intentos de emancipação, de alargar os espaços da liberdade e da
responsabilidade, nos domínios da política, do direito, ainda marcados pela prepotência da aristocracia. Muito embora houvesse diferenças radicais quando se abordava a análise da realidade social
e, sobretudo quando se explicitavam as visões doutrinais que iluminavam os pioneiros e as caravanas que os seguiam ostentando a
bandeira da igualdade para todos.
Do discernimento às teorias de decisão
Convém bem configurar e balizar o espaço percorrido pela prática ou pela ausência do discernimento. Essa história, especialmente como processo vivido, é do maior interesse para a reflexão voltada para busca de uma ética mundial integradora. Sua eficácia está
condicionada à qualidade da análise crítica dos caminhos já andados ou ao menos propostos pelos líderes e pelos movimentos de
vanguarda do pensamento, da cultura e da espiritualidade.
O período histórico significativo para o Ocidente, enquanto
pioneiro, mais ou menos feliz da civilização tecnológica, vem a ser
este meio milênio, da Renascença, marcando o despontar da Modernidade, chegando aos começos do terceiro milênio, que se anuncia com uns ares de nebulosa, carregada de medos e esperanças.
Convém retomar e aprofundar o ponto de partida e de referência que vai traçando a linha condutora para a procura de caminhos
espirituais, ditados pelo discernimento, e para a elaboração intelectual de teorias e práticas da decisão. É deveras do maior interesse a tendência geral, e mesmo o elã histórico rumo à liberdade,
à emancipação, à ruptura com toda dominação, imposta de qualquer forma, ao pensamento, à inteligência teórica ou prática, à escolha das normas e do estilo de viver. A rejeição do poder absoluto, de todo autoritarismo e de todo legalismo, de que Maio de
1968 estendeu em Paris o ritual espetacular e gritante, se impõe e
se desdobra como imenso programa difuso, social e cultural. Ele
atinge todos os setores, influencia e condiciona todos os proble226
mas da vida social hoje. Está, portanto, exigindo tomada de posição lúcida e corajosa, de quem não queira se deixar levar pela
maré das cumplicidades impensadas.
É claro que o vazio ético, jurídico, político criado pela queda
ou pelo desprestígio do poder absoluto, religioso ou civil, bem
como de toda forma de legalismo e autoritarismo, acaba sendo preenchido e compensado por certo equilíbrio social, de maneira racional com alguma dose de arbitrariedade irracional. Daí não vai
muito que a sociedade não descambe na ditadura dos caprichos, das
ambições, na tirania e na idolatria bem orquestradas do prazer, da
droga ou do dinheiro.
Mais ainda, do vazio, de certo desamparo causado pelo arrefecimento das normas tradicionais na família, na religião e na sociedade, resultam outros efeitos de índole mais cultural. Sucedem-se, com mais ou menos intensidade, vagas de aspirações, de
ideais, de utopias, inspirando novos modelos de arte. Explodem
ressentimentos, provocando projetos de reformas e revoluções,
seguidas de algum êxito ou por um tempo detidas graças ao reforço do poder e da repressão.
É desse clima de incandescência social, cultural e religiosa que
surgiam, de um lado, as buscas e as doutrinas do discernimento espiritual, da prudência ética; e, de outro lado, as teorias e as práticas
de decisão. Estas últimas vinham dar plena racionalidade e eficácia
aos sistemas modernos, que emergiam das nebulosas do liberalismo e do socialismo. O grande beneficiário desse afluxo de racionalidade e tecnologia era o sistema de maior influência, o sistema
econômico. Ele se afirma mesmo como a síntese dinâmica da liberdade, da racionalidade e da tecnologia a serviço do êxito, da prosperidade, da criação de riquezas, do conhecimento e do controle do
mercado finalmente mundializado.
Tal é o lugar próprio, a razão rigorosa de ser dos modelos de discernimento e das formas elaboradas de decisão. São dois modelos simultâneos embora diferentes em suas inspirações. Pois o primeiro é
de índole religiosa, enquanto o outro vem bem marcado por um cará227
ter de laicidade. Mas testemunham essa convicção geral: a responsabilidade racional diante da marcha do mundo se impõe a todos os setores da civilização como o mais urgente dos imperativos.
Abridores de caminhos
Pois, felizmente, surgiram grandes mestres do discernimento
ético e espiritual em sincronia com notáveis pensadores que perscrutaram as teorias e as práticas de decisão visando os vários campos do desenvolvimento humano, especialmente os domínios da
economia, da técnica e até certo ponto da política.
Há um marco inicial bem preciso neste processo histórico e que
se poderia ilustrar pondo lado a lado dois pioneiros: Las Casas
(1484-1566) e Maquiavel (1469-1527).
A data de 1515 permite esse sincronismo sugestivo. Nesse ano,
após muitos estudos da história dos impérios antigos e de muita
atenção à política e aos políticos de seu tempo, nesse ano de 1515,
Nicolau Maquiavel começa a fazer circular O príncipe. Passa à
mão dos poderosos ou dos sedentos do poder esse manual, onde
eles tinham compendiadas toda ciência, toda arte e toda a técnica
de assumir ou tomar, manter, perpetuar e transmitir o poder. Como
teoria geral da decisão, bem aplicada a um domínio específico e a
um objetivo bem determinado, O príncipe é deveras uma obra-prima, uma síntese magistral senão genial.
Com a obra de Maquiavel, rapidamente difundida, o Ocidente
dispunha do traçado e até mesmo dos andaimes sólidos e bem travados para construir com maestria e segurança o sistema político, o
novo feudo dos políticos, por eles bem gerido e desenvolvido, para
o exclusivo benefício deles e dos seus.
Temos aqui a nascente de um novo paradigma político, que tirava proveito das experiências das artes e artimanhas dos Césares
antigos e recentes. Sem ter talvez a plena consciência da contribuição imensa e decisiva desse paradigma renovador, o mundo acolhia
a recém-nascida política moderna, entendida na sua originalidade
228
como forma de pensamento e de organização que nela anunciava
um sistema embrionário e promissor.
Com os outros sistemas que irão surgindo e se entrosando, o
Ocidente se estrutura com todos os recursos da racionalidade e da
técnica formando aquele feixe de sistemas: da economia, da política, do direito, da cultura, da educação e da comunicação, os quais
se irão transmitindo ao resto do mundo. Bem se vê, doravante os
políticos saberão assumir um sistema destinado a assegurar o bem
público, mas dando-lhe como finalidade a boa gestão do poder em
proveito particular de sua classe de governantes e de assíduos lutadores pela posse, se possível, ininterrupta do governo.
Uns dois séculos depois já estará consolidado na prática e elaborado em doutrina o sistema econômico. Seus objetivos específicos não serão também o bem comum, mas a prosperidade e o crescimento da economia, tendo como norma imanente primordial o
benefício do capital investido. Os outros sistemas, como o da comunicação social, seguirão caminho semelhante. Vão se empenhar
em mobilizar o máximo de racionalidade, toda uma rigorosa teoria
da decisão, buscando orientar as empresas, os sistemas particulares
da sociedade e a sociedade como o grande sistema englobante, tendendo a fazer de toda essa imensa engrenagem social a obra acabada da razão, da ciência e da técnica.
Em si, o sistema nada tem de perverso ou de pejorativo. Sua
qualidade, sua eficácia técnica e racional, desponta como uma das
maiores e mais belas conquistas da Modernidade. Igualmente que o
sistema tenha seu objetivo próprio, bem especificado e determinado, de recompensar pelos seus resultados o capital financeiro, tecnológico investido, é um objetivo justo e, se bem orientado, redundará no bem de toda a sociedade. Mas todo o desafio ético que vai
tendo o seu lugar nas consciências e na reflexão de muitos empresários é que os sistemas e seus objetivos, seus resultados tenham
uma dimensão humana e social.
No entanto, antes de mais nada, sob condição de perderem a razão de ser e a legitimidade devem se organizar, funcionar, produzir
229
mercadorias e oferecer serviços, tendo em conta o bem geral, contribuindo para garantir o necessário e o conveniente para uma vida
digna de todos os membros da sociedade. Ora, toda essa complexa
e dinâmica máquina social acaba sendo primordialmente ordenada
a assegurar e a acrescer o bem particular de indivíduos, mas, sobretudo de grupos, empresas ou redes de empresas. O bem geral de
cada povo e de todos os povos não sendo visados e racionalmente
estudados e determinados como o foram e são os bens particulares
enquanto objetivos dos sistemas respectivos. Simplificando ao máximo a mais complexa das questões, pode-se dizer que aqui se situa
o embate ou o diálogo:
• da razão prática, instrumental, tecnológica, visando o bem
particular da produção;
• e da razão prática, ética, sabedoria universal, abrindo-se à
consideração e à promoção do bem humano, das condições e
qualidades de vida digna, enquanto possível, feliz para todos.
Em si, não há antagonismo, a técnica e a ética são irmãs gêmeas, filhas da autêntica cultura que tenha e lhes transmita a qualidade
humana, a competência para o rendimento do trabalho, e as virtudes e os valores que levam à plena realização do ser humano.
Nessa fraternidade, possível, mas dificilmente viável, da técnica e da ética dentro da civilização globalizada, se situa o empenho
de entrelaçar harmoniosamente as teorias e práticas modernas da
decisão, sobretudo empresarial. Elas hão de ir ao encontro do discernimento espiritual, da sabedoria prudencial, chamada aqui a indicar as qualidades e exigências humanas, éticas, que devem nortear todos os sistemas e setores da sociedade, bem como todas as atividades pessoais.
Convém retomar a entrada desse discernimento na aurora do
mundo moderno.
Em contraste com o manual da política moderna, com que Maquiavel respondia à demanda do mundo político que ele teve o dom
de decifrar em boa hora, nos prestigiosos inícios do século XVI,
também em 1515, vemos um jovem sacerdote sevilhano, Bartolo230
meu de Las Casas, o pioneiro do discernimento em meio ao cipoal
de problemas políticos e econômicos brotando da conquista da América pelos povos ibéricos.
À semelhança de Maquiavel, o saber do Padre Las Casas era tecido de experiência, era uma reflexão emergindo da ação, da observação do que havia de típico nos comportamentos, nas práticas de
governo, nas finanças públicas e privadas de seu tempo.
No verdor dos vinte anos, Las Casas tinha desembarcado na América (em 1502), bem disposto e aparelhado para ser um empresário modelo. Entendia mesmo de negócios, jogava com as vantagens
e prerrogativas clericais, apoiando-se em um razoável conhecimento do direito e da técnica de administração. E chegou a descobrir recursos e bons modelos para fazer prosperar duas fazendas,
utilizando e cultivando as terras férteis, explorando as minas de
metais preciosos, escravizando os índios como faziam os demais
conquistadores.
Mas deu uma virada na vida, descobrindo à luz da mensagem bíblica que não se pode amar a Deus e oprimir ou explorar os pobres. O
caso dele, o milagre de sua conversão, se resume nesta mudança de
vida e de rumo; da prática da decisão eficaz, que o fazia dar certo nos
negócios, tinha que passar a se consagrar ao pleno discernimento espiritual de como fazer com que a prosperidade esteja a serviço de
todo povo, que se liberte e se integre bem no sistema social.
Realizou assim em sua vida e seu ensino a ética integradora.
Sem relegar, ao contrário assumindo sua competência administrativa, sua capacidade de bem decidir como empresário, tornou-se
o grande mestre e modelo da sabedoria contemplativa e do discernimento prático, esse duplo facho de luz de que depende a verdadeira realização humana, especialmente no quadro e nas exigências
da globalização, inaugurada com o descobrimento da América.
Dois momentos ilustram essa missão pioneira de Bartolomeu
de Las Casas.
O primeiro é precisamente a conversão do empresário competente, tendo todos os segredos para bem prosperar, e que passa a
231
ser o homem de ação, com a mesma qualidade eficaz, mas com
todo o desinteresse, dando como objetivo de sua vida promover o
bem dos menos favorecidos e mesmo dos oprimidos pela sociedade colonizadora.
Pois, em 1515, um ano após sua conversão no seu famoso Pentecostes, quando era capelão das tropas invasoras de Cuba, Padre
Las Casas se dá inteiramente ao trabalho de elaborar todo um conjunto de projetos, comportando uma dimensão política, mesmo de
ordem internacional, mundial, não, porém, para o proveito do poder e dos poderosos, e sim a serviço do povo, do povo mais humilde
e explorado, a que davam o nome de “Índios da América”.
Esses projetos juntam o que chamaríamos as técnicas de decisão
e o discernimento de ética social. Pois são extremamente minuciosos, estabelecendo todos os pormenores das construções e das organizações, dando todas as indicações topográficas e fornecendo todos
os dados financeiros, traçando os planos dos recursos disponíveis e
das despesas necessárias. São bem destacadas as funções, os deveres, os direitos de todos os protagonistas e auxiliares dessas empresas de trabalho, verdadeiras comunidades, inaugurando um tipo de
autogestão, com igualdade proporcional de vantagens para índios e
espanhóis. Prevê-se uma tabela de salários justos, sem excluir as mulheres reconhecidas em seus direitos familiares e econômicos, o que
é uma bela novidade nesses projetos do missionário que sabe harmonizar a técnica administrativa e a ética profissional e social.
O bom êxito desses projetos de Las Casas teria, sem dúvida, imprimido novo rumo ao processo da colonização. Foi o que bem compreenderam os conquistadores que seguiam outros métodos bem diferentes. Conseguiram acabar com todos os projetos bem arquitetados por Las Casas. Pois açularam os próprios índios, levando-os a
tudo destruir e a matar bom número dos parceiros das comunidades
de trabalho que deveriam tomar o lugar das “encomiendas” em que
eram escravizados os primitivos habitantes da América.
Começa então o outro momento, uma nova conversão confirmando e adaptando a primeira opção fundamental de Las Casas.
232
Ele se faz frade dominicano e passa a apostar na força da palavra
para mudar as mentalidades e educar as consciências no sentido da
justiça e da solidariedade entre os povos. E se põe a viver, a pensar
e a elaborar um jeito “novo” de evangelizar e libertar o povo da América, redigindo um livro, cuja composição marcha com ele em
suas caminhadas no Novo e no Velho Mundo. Em oposição ao
modo violento, destrutivo e homicida dos conquistadores, ele propõe com todo rigor e lucidez: “O único modo de anunciar a religião
a todos os povos”. Nesta e em muitas de suas obras, o missionário
dominicano se empenha em converter a cristandade desprovida do
sentido do outro, mostrando que o Evangelho só é anunciado de
maneira evangélica se for acompanhado da mensagem e da prática
de uma solidariedade universal entre pessoas, entre povos, entre raças e culturas diferentes. O missionário dominicano, mais tarde
bispo de Chiapas, se revela então o mestre de uma humanidade que
se aceita e reconcilia na mútua estima e no reconhecimento dos
grandes valores éticos fundamentais.
Esse europeu, por amor se identificou com o povo do Novo
Mundo e se fez reconhecer e nomear oficialmente como “Defensor
dos Índios”. Por sua vida, sua luta e seus escritos merece uma atenção toda especial. Pois, sendo um humanista bem de seu tempo, tem
tudo de um homem moderno que hoje descobrisse o essencial de
uma ética mundial. Parece ter nascido, crescido e se preparado para
essa missão singular de cidadão universal, dotado de uma inteligência teórica e prática toda inspirada pelo amor e voltada para os problemas suscitados pelos primórdios da globalização que foram os
encontros dos povos e dos continentes pelos feitos das descobertas.
A sua originalidade se afirma com mais evidência precisamente na harmonia e coerência que soube dar a todo o universo da inteligência. Na sua prática e na sua doutrina, chega a sintetizar a contemplação divina, o discernimento ético e espiritual com os modelos de decisão nos vários campos da atividade profana, da política,
do direito, da economia e da administração. E realiza semelhante
proeza na complexidade da colonização vista do lado dos dois continentes, sob o ângulo da colônia e da metrópole.
233
A prática e a doutrina do discernimento se inscrevem nesse
contexto histórico. Mais ainda: elas se afirmam como tomada de
posição, inspirada por uma visão contemplativa do amor criador
em confronto com as destruições das terras e das gentes tidas e
amadas como criaturas do Artista divino. Tal é o essencial da doutrina, da espiritualidade e da militância de Las Casas na aurora do
mundo moderno e do Novo Mundo.
Jamais se insiste demais na singularidade de seu exemplo. Desde cedo, empresário audacioso e preparado, Las Casas estava bem
inteirado e se fez reconhecer por sua competência, seu conhecimento e sua prática da administração em seu tempo.
Mas o que distingue sua atitude prática e suas posições doutrinais é a motivação ética e a forte animação espiritual que assumia
e marcava tudo o que empreendia, não apenas com uma orientação de racionalidade administrativa, mas também, e sobretudo,
com a opção pelos valores humanos. Tinha, sempre, um empenho
de retidão, buscando com inteligência e habilidade implantar os
princípios, as normas e os modelos de justiça e solidariedade nas
redes da economia e da política, visando muito especialmente o
proveito dos índios explorados e prejudicados nestes setores importantes da colonização.
A síntese operada por Las Casas pode, portanto, ser uma referência oportuna e enriquecedora para homens e mulheres de ação,
mais ainda para os líderes de hoje, empenhados em enfrentar os
problemas e desafios da nova era tecnológica e globalizada.
O discernimento espiritual em busca de modelos culturais
É oportuno ampliar e aprofundar o olhar sobre esse dado histórico deveras esclarecedor. A Modernidade, como forma de pensar e
de sentir, começa por caracterizar-se por certa confiança na razão,
pela aspiração generalizada à emancipação, pela afirmação e estima da autonomia individual. Todas essas atitudes vêm acompanhadas e reforçadas pela crítica, pela desafeição e mesmo pela rejeição
234
mordaz ou desdenhosa das autoridades absolutas, doutrinárias ou
políticas, que, ao contrário, se apoiavam ou ainda se apoiam em
uma simples aceitação costumeira ou no apelo exclusivo a tradições históricas ou religiosas.
Sob diversas formas mais ou menos conscientes, a racionalidade crítica penetrava na política, na economia, bem como na reflexão filosófica e teológica. Mais do que relegar simplesmente a acomodação e a rotina, o que emerge e se afirma é o gosto de pensar, de
verificar os paradigmas do saber e os modelos das ações, dos comportamentos, das leis e tipos de governo.
Entre muitos outros encontros de personagens e de cenários, o
simples esboço de um sincronismo pode ilustrar bem essa nova situação das mentalidades e mesmo das culturas. Em torno do decênio de 1514-1525, pioneiros no mundo das ideias e na marcha dos
acontecimentos afiam suas armas, preparando ou lançando seus escritos, livros ou panfletos de contestação e de controvérsia. Que se
pense em Maquiavel, Erasmo, Lutero, Tomás More, Inácio de Loyola e em Las Casas, que oferece uma síntese densa e lúcida dos desafios lançados então à cristandade.
Na diversidade dos temperamentos e das formações intelectuais,
são precursores e mesmo iniciadores de uma verdadeira revolução
cultural. Esta será pouco percebida de início, mas abalará o Ocidente, dando o impulso para revoluções mais visíveis em suas explosões
violentas no plano político e militar, mais discretas e permanentes
em todos os domínios da economia, da civilização e da religião.
À semelhança e mesmo em aliança com os detentores do poder
absoluto de então, a Igreja oficial se mostra pouco ou nada sensível
a esses sinais prenunciadores de uma mudança radical na vida das
pessoas e das sociedades. Apoiadas em teólogos mais voltados
para a tradição a manter e consolidar do que empenhados em enfrentar os novos problemas e desafios, as autoridades eclesiásticas
insistem e persistem em reforçar a coerção pelas leis e a intensificar
a repressão dos dissidentes e a condenação dos pensadores que
contestam as posições tradicionais nos diferentes campos do saber.
235
Nesse contexto cultural, político e religioso, surgem, de maneira mais ou menos ostensiva, a prática e a doutrina do discernimento
entre os mestres e as escolas da espiritualidade, mas buscando com
certa habilidade abrir novos caminhos ou ocupar simplesmente os
espaços deixados livres pelas respectivas autoridades nos campos
da religião ou da política. Note-se que, em geral, no fim da Idade
Média e começo da Idade Moderna, por toda parte, prevalecem tipos de união da religião e do Estado, assumindo a forma precisa e
bem definida de “padroado” na Península Ibérica.
Ainda nesse plano de generalidade, pode-se caracterizar o papel desse discernimento por uma dupla função.
A primeira é precisamente a busca inteligente e jeitosa de manter ou ocupar e ampliar os espaços de liberdade, de autonomia e
responsabilidade dentro de sociedades, civis ou eclesiásticas, especialmente de comunidades religiosas. Pois todas elas, em geral,
continuam fazendo a opção mais ou menos rígida pela coerção ou
pela repressão, e mais certamente pela disciplina.
Desde a primeira etapa renascentista da Modernidade, com
menos dificuldade nas épocas seguintes, mestres de espiritualidade, no estilo de Frei Luís de Granada ou de São Francisco de Sales,
com bastante lucidez e uma coragem tranquila, iam tentando abrir
espaços de liberdade e amor dentro de instituições restritivas ou
acanhadas. No plano político, eles se comportavam como cidadãos
sedentos de liberdade, aspirando por um Estado de Direito. Mas
não dispõem de recursos nem mesmo para pensar em modelos
abertos a qualquer participação popular. Veem-se e se aceitam
constrangidos em seus países dominados por um poder absoluto e
em geral sacralizado por uma unção religiosa.
A busca de emancipação perdura no espaço da interioridade
das pessoas ou das comunidades espirituais.
A segunda função do discernimento é mais ampla e criativa.
O discernimento é chamado a abrir caminhos de responsabilidade, de justiça, de solidariedade em situações novas, em momentos de viradas históricas. Aí os desafios surgem e se multiplicam
236
apontando para a urgência de criar ou aprimorar formas de vida humana, favoráveis para todos, dentro de quadros inéditos, no seio de
sociedades em mudança ou em crise aguda, mais ou menos longa e
generalizada.
Prudência: “providência” responsável do agir humano
A consideração dessa sucinta visão histórica e dos desafios lançados pela humanidade globalizada em sua pluralidade e em sua
busca de entendimento entre todos os seres humanos, mostra a urgente necessidade atual de uma ética mundial, dotada de uma capacidade universal de decisão, responsável em relação aos problemas
do dia a dia de cada ser humano e dos imensos problemas vitais e
conexos da humanidade.
Bem no centro desse projeto, emerge a necessidade de uma clara
visão sintética das experiências e das reflexões sobre o discernimento, a técnica e a teoria de decidir. Pois, bem se vê, essa compreensão
global do ser humano como agente ou protagonista responsável do
agir e sua qualidade ética, face ao presente e ao futuro da humanidade, corresponde à questão da viabilidade mesma da ética mundial.
O ser humano terá a capacidade de assumir a responsabilidade
de seu destino de maneira universal e de se entender e empenhar
como verdadeiro gestionário do Planeta Terra?
Na verdade, a globalização enquanto encontro da humanidade
diante de todos os desafios da biotecnologia, da bioética, da ecologia atualizou e radicalizou uma venerável definição de ser humano
como “providência” responsável de si e do mundo. Semelhante
compreensão antropológica começa por impor a tarefa integradora
que consiste em assumir em toda lucidez e clareza as grandes linhas
da doutrina da razão prática, da sabedoria, do discernimento e da
prudência, examinando suas dimensões antropológicas, psicológicas e sociológicas, elucidando sua afinidade e suas diferenças com
as modernas teorias e práticas da decisão.
237
O ponto de partida e de referência mais seguro e promissor parece ser a consideração da prudência, a noção mais elaborada desse
universo da inteligência orientadora do agir e do fazer, procurando
entende-la sob o ângulo mais adequado e mais abrangente, tão universal quanto a ética planetária. Esta tem que ser mundial quanto
objeto, o conjunto dos problemas globalizados, e mundial quanto
ao sujeito, todo o gênero humano tomando consciência e tomando
as decisões sobre o que concerne à vida, às condições e exigências
da vida em todo o planeta.
O termo “prudência” foi introduzido por Cícero na ética latina
e é explicado como o equivalente de “providência”. Uma compreensão profunda e elegante nos é dada por Tomás de Aquino, em um
entrelaçamento da transcendência e da imanência no governo do
universo. A “Providência” divina governa todas as coisas com sabedoria e amor. O ser humano é por ela constituído qual “providência”, particular e participada dessa Providência infinita, guiando-se
por uma sabedoria, feita de razão e responsabilidade, em dependência dessa Fonte e desse Modelo divinos de Amor.
Essa profunda visão da prudência elaborada por Tomás de
Aquino1, em termos de providência total de que a humanidade se
vê investida resplandece hoje em toda a sua atualidade. Pois o ser
humano alarga cada vez mais o seu poder de agir sobre as coisas,
sobre a vida, sobre os começos e a orientação profunda da existência pessoal e coletiva. A ciência e a técnica, em um ritmo cumulativo e, portanto, sempre mais acelerado de crescimento, torna-se um
poder, um todo poder manipulador. Ergue-se como grande promessa para o bem da humanidade, mas igualmente como a maior das
ameaças até para a sobrevivência humana senão para o ambiente e
as condições da vida em geral.
Em toda a verdade, o ser humano está capacitado para ser a providência nesse vasto mundo que lhe foi confiado, qual jardim maravilhoso em si mesmo, manifestando-se mais e mais surpreenden1. Em sua Questão disputada sobre a verdade, q. 5, a. 5.
238
te na inteligência do cientista que não o criou, mas descobre os segredos de sua criatividade apenas hoje vislumbrada.
Mais saber, mais poder, portanto maior exigência de responsabilidade para toda a humanidade, especialmente para os detentores dos
recursos e das capacidades de investigar, de decifrar e de manipular
os mistérios da matéria e da energia, da vida, especialmente da vida
humana em sua gênese, em seu crescimento, em suas vicissitudes,
em sua força e em sua fragilidade. A solidariedade e a responsabilidade éticas aparecem hoje inscritas no íntimo e nas conexões das células. É a hora, é a aurora da humanidade que saiba guiar-se pela prudência, a virtude da inteligência do agir, da sabedoria que prevê e
provê, imitando a ciência e a bondade do Amor Criador.
Semelhante evocação da prudência-providência faz com que
essa visão, de certo mais clássica, se aproxime da noção de responsabilidade que cresceu na cultura moderna qual conjunção do saber
e do escolher o bem, apontando para as situações de riscos e perigos, para os grandes campos dos encontros e das relações humanas
que interpelam a consciência e pedem às pessoas e à sociedade uma
presença ou ação inteligente e eficaz.
A responsabilidade é uma noção complexa, porém precisa. Ela
põe em relevo o aspecto “liberdade”: é a liberdade adulta, madura,
plena, feita de informação racional, de reconhecimento do outro, de
deferência pelo bem comum, empenhada na busca da justiça e da
solidariedade.
É, portanto, outro termo muito expressivo hoje para evocar a
mensagem da prudência, que está no centro da ética clássica, elaborada pelos pensadores gregos e latinos, e assumida e reelaborada na
doutrina cristã. Ao passo que a responsabilidade, datando do século
XVIII, é uma noção englobante da ética moderna. É escolhida e utilizada com ênfase pelo Vaticano II, no seu empenho de libertar a
moral do seu enfeudamento no legalismo, no autoritarismo e na insistência prioritária sobre os preceitos, interditos e pecados.
Sem negligenciar esses enriquecimentos do pensamento e do
vocabulário éticos, o primeiro empenho que se impõe será aprofun239
dar essa compreensão da prudência. Será necessário partir da indispensável capacidade de intuição, de reflexão, de atenção à experiência, assumindo as informações vindas das diferentes formas da
tradição ética, laica e cristã.
Sobretudo para que o estudo da prudência seja verdadeiramente ético, é imprescindível a conjunção constante desses elementos
do conhecimento vivido e do conhecimento teórico.
Virtude integradora da totalidade humana,
simultaneamente intelectual e moral
De maneira sintética, evocamos as noções de base que nos permitem chegar a uma visão adequada da prudência, que introduza realmente no campo de uma reflexão abrangente. Ela deverá englobar
todas as instâncias subjetivas que levam o ser humano à decisão,
bem como terá que assumir em sua compreensão todos os domínios
que essa decisão deve orientar. E, muito especialmente, não lhe poderão faltar todas as qualidades de amor ao bem, de desprendimento
de si, necessárias para a boa qualidade ética da decisão tomada.
A compreensão dessa originalidade da prudência, virtude e valor que retificam e aprimoram todo o processo da decisão a partir da
razão prática, da razão impregnada e ativada pela livre opção do
bem põe em evidência a função primordial e integradora que ela é
chamada a exercer em uma ética mundial. Pois esta tende a ser universal abrangendo todo o domínio da responsabilidade e da ação
humanas, assim como se estende a todos os sujeitos, agentes ou
protagonistas, sobretudo aqueles de quem mais depende uma orientação política, jurídica, econômica e cultural visando a manutenção, a boa ordem do cosmos e o bem geral da humanidade.
Assim ganha uma atualidade surpreendente a doutrina que remonta já aos pensadores gregos Platão e Aristóteles, que apontavam a prudência como virtude especial e virtude universal, ao mesmo tempo.
240
Ela é virtude especial, pois tem sua atividade e seu campo próprios, pedindo uma qualificação intelectual, técnica e espiritual do
sujeito a quem incumbe tomar e executar uma decisão. A razão prática que a prudência vem aperfeiçoar tem primeiro a dimensão de
uma sabedoria espiritual, que vê as coisas, as situações e as pessoas
à luz do bem humano e dos valores de justiça, de solidariedade.
Mas também a dimensão instrumental, técnica do saber fazer, de
conduzir ao êxito no produzir objetos ou oferecer serviços. Ela dirige, ela leva a bem se informar, deliberar e decidir visando o bem de
quem se empenha na ação e de todos quantos são por ela atingidos
ou interessados.
Mas, de toda evidência, a prudência é igualmente virtude universal, pois seu objeto se estende a toda a vida humana individual e
social, que essa virtude esclarece e guia, exercendo assim um influxo geral e constante em todo o agir humano, especialmente nos momentos cruciais e na hora das grandes decisões ou opções fundamentais, para o bem da própria pessoa, da família, da empresa ou
da sociedade.
Ela brota do amor do bem e da retidão da vontade, o que faz
dela uma virtude moral. Mas ela se realiza propriamente como uma
atividade da inteligência prática, sendo assim, a justo título, uma
qualidade ou virtude intelectual.
Como virtude intelectual, ela é irmã da sabedoria e da ciência,
eminentes perfeições da inteligência teórica, bem como da técnica
e da arte, qualidades próprias, é claro, à inteligência prática.
A prudência é o centro de toda a vida moral, o princípio, a medida racional, e o princípio interior de articulação das virtudes.
Para satisfazer esse programa que, desde as doutrinas platônicas e estoicas, merece para ela a eminência de ser chamada a primeira das virtudes cardeais, à frente da justiça, da força e da temperança, a prudência tem que realizar a coerência e mesmo a sinergia
de todo o ser e de todas as capacidades humanas:
• de todo o conhecimento, da inteligência (teórica e prática),
dos sentidos internos e externos;
241
• da afetividade, racional (vontade) e sensível;
• da consciência e do inconsciente.
Só assim poderá ser a virtude da perfeita coerência, do domínio
de si e da consagração à ação, estabelecendo a unidade dinâmica do
presente, do passado e do futuro, convergindo sob o influxo do amor
do bem e da estima do outro, no ato do discernimento e da decisão.
Um dado importante é ter consciência de que se tem um inconsciente dinâmico, escondido em seus elementos de configuração, ativo qual energia de pulsões recalcadas. É difícil e imprescindível saber negociar com esse inconsciente, sobretudo ponderar
com coragem e fineza sua influência em momentos de decisão.
Pois essa influência enganosa se disfarça e se faz presente em razão
do medo de reconhecer a verdade quando ela contraria a imagem
narcísica que cada um tende a construir de si.
Ainda aqui, nesse ponto delicado do pleno amor à verdade no
seio do processo de decidir, há um feliz encontro dos dados modernos sobre o inconsciente dinâmico e o discernimento dos guias
espirituais que sempre aconselharam a atenção às “ilusões do
amor próprio”.
Portanto, o caráter ético, próprio da prudência, como virtude e
valor de sabedoria prática buscando e iluminando o sentido da vida
pessoal e social resplandece assim em sua originalidade. Mas esta
sua singularidade ética igualmente se evidencia quando se examina
sua diferença e sua afinidade com as modernas teorias da decisão.
Os progressos das teorias e práticas da decisão, em sintonia
com os estudos das normas e condições da concorrência, das leis e
dos modelos dos sistemas da economia e da comunicação, se manifestam como as pontas de lanças no avanço da civilização moderna
no que tem de mais típico e também de grandemente problemático.
As teorias que assumem os modelos do “jogo”, bem como de “multicritério”, sendo sem dúvida as mais difundidas, mostram um interesse especial para a reflexão ética; pois são paradigmas bem-sucedidos de elaboração e de aplicação da inteligência prática, com
242
todo o rigor lógico e mesmo matemático do raciocínio. A teoria do
jogo atiçando e orientando a pesquisa na análise das atitudes e intenções do parceiro ou do adversário, empenhando-se na adivinhação prospectiva de suas reações, presumidas racionais, é um excelente modelo pedagógico de formação dos tomadores e executantes
de decisões. O paradigma multicritério, abordando o processo de
decisão mediante a análise dos “critérios” ou das diferentes motivações dos que nela estão envolvidos constitui sem dúvida um instrumento valioso, para bem abordar e dirimir situações complexas
e ambíguas, para indivíduos, grupos e setores sociais.
A simples evocação desses dados permite apreciar a contribuição da maior importância dessas teorias e de suas práticas para o
aprimoramento racional e operacional em todas as organizações e
instâncias dos modernos sistemas de administração. Esses progressos, enquanto avanços e conquistas da inteligência prática têm o
seu merecido lugar em todas as instituições culturais e religiosas
para que estejam à altura de dialogar e manter intercâmbio com as
redes de administração e, sobretudo, da economia de maneira proveitosa para todos.
Semelhante proveito torna não apenas aconselhável, mas indispensável à junção harmoniosa da dupla dimensão da inteligência
prática: a técnica dessas teorias da decisão são o modelo típico e da
ética, cuja expressão correspondente vem a ser a virtude e o valor
da prudência. As teorias e, sobretudo, a prática da decisão que elas
orientam visam sem dúvida um bem humano, qualidade racional
da opção a tomar, acarretando outro bem igualmente humano que é
o aprimoramento da administração para vantagem da empresa em
questão e, em consequência, da sociedade em geral.
Mas, por elas mesmas, essas teorias não se interessam diretamente pela qualidade ética do sujeito que decide. Elas visam não à
justiça, mas à justeza técnica da decisão, construindo-se como um
jogo da razão, pela análise muitíssimo valiosa do que é racional, inclinando à escolha do que parecerá mais racional ao decididor.
Incontestável que haverá um imenso progresso no mundo a come243
çar pelo plano da maior influência social, a economia, se a dupla dimensão ética e técnica das decisões se generalizarem, se universalizarem. Será um grande passo dado no sentido de uma ética mundial, que só se poderá realizar na medida em que a globalização, com
a magia da industrialização em toda a sua técnica produtiva, leve
para toda parte a maravilha das virtudes e dos valores éticos. Só assim, o conforto universalmente partilhado tornará deveras sustentável a estima da vida, o reconhecimento da dignidade da pessoa e o
primado do bem geral sobre ambições e interesses particulares.
Muitas vezes, na teoria e na prática da decisão se faz apelo à estratégia, outra noção rica de sentido e de sugestão. Ela emerge e se
generaliza a partir da Segunda Guerra Mundial.
Ao contrário, compreensão integral da prudência é o resultado
de uma síntese cultural de várias contribuições e correntes histórico-doutrinais, levando à visão de uma confluência do conhecimento e da afetividade, da razão e da vontade, pressupondo e exigindo
de toda a afetividade sensível.
A função integradora, indispensável à ética que se pretende
universal e mundial hoje, exige que se englobem e se articulem a
visão clássica da prudência e as noções mais recentes, mais atuais
na linguagem, na mentalidade e no pensamento da Modernidade.
Sempre nessa perspectiva de integração, após a conexão estabelecida da prudência com a responsabilidade e a estratégia, parece
oportuna e fecunda a conjunção da mesma prudência com noções
mais veneráveis. Na tradição filosófica e religiosa, elas indicam os
diferentes aspectos ou as várias tendências que constituem o universo virtuoso da razão prática dirigindo o agir na sua complexidade, mostrando sua diversidade, mas não deixa de conotar, de maneira pelo menos implícita, sua unidade total.
A arte e a coragem de decidir e de decidir-se
Nada de mais necessário do que analisar a estrutura e o dinamismo da prudência em sua dimensão psicológica e ética, considerada e apreciada no sujeito que toma a decisão.
244
Poderíamos representar o processo da decisão prudencial sob a
figura familiar de um funil, em que se lançam vários componentes
de conhecimento e de afetividade, para que dele jorre esse ato simples em si, mas muito rico em sua estrutura e em seu dinamismo: a
última decisão que desencadeia a ação.
Santo Tomás insiste em chamar o ato da prudência: um ato de
“preceito” (= “praeceptum”), de “império” (= “imperium”), de ordem (= “ordinatio”)2.
Assim se manifesta a força e a eficácia da prudência. Sua principal atividade não é acautelar-se, evitar riscos e perigos. É enfrentar, é um ato em que entra a coragem para chegar a decidir, a fazer
valer a decisão, tem algo de comandar, de governar e afirmar lúcida
e eficazmente o poder. É uma virtude de senhor, de ser livre e empenhado na ação. O ser humano prudente é como um rei que manda
em seu reino interior.
Ser prudente é bem governar, bem governar-se e bem governar
aqueles e aquilo que depende de nós.
A decisão exige, portanto, uma preparação ampla e constante.
A preparação do ato prudencial de decisão se articula na tríplice atividade:
• informar-se e deliberar sobre o objeto da decisão, sobre sua
oportunidade, sobre todas as circunstâncias e consequências da
ação a empreender;
• julgar, pronunciando-se sobre a decisão a tomar, a recusar ou
a protelar.
A esses dois atos seguirá o ato da decisão.
A virtude de prudência exercerá uma influência sobre todo esse
processo, fazendo com que seja animado pelo amor à verdade e
pela busca do bem, de sorte que todas as atividades de conhecimento e de vontade sejam providas das qualidades de perfeita racionalidade e de inteira retidão.
2. Cf. Suma Teológica, II-IIae., q. 47, 8.
245
Essa compreensão do ato principal, das atividades auxiliares e
das espécies da prudência nos aproxima das modernas teorias e
práticas da decisão, bem como da ética da responsabilidade.
Seria oportuno aproximar a decisão prudencial e as modernas
teorias da “Decisão”.
Já foi evocado, o tema tem tido a maior penetração na cultura e
mundo secularizados.
A decisão estava no centro de uma estratégia militar, ela mesma em entrosamento com uma estratégia global: econômica, política, comunicacional e pedagógica. Os notáveis progressos realizados na teoria e na prática da decisão foram ampliados e intensificados nos domínios da economia. Eles são hoje integrados e sempre
mais desenvolvidos nos processos de marketing ou da mercadologia e nos diferentes aspectos e dinamismos dos sistemas que constituem o sistema social global.
Já, por sua etimologia, “decisão” se aproxima do “discernimento” e da “diákrisis”. O prefixo “de” (de decisão) é bem irmão do
“dis” e do “dia” dos dois vocábulos precedentes. Em latim “decidere” (decidir) é etimologicamente “cortar de”, “separar uma coisa de
outra”, é destrinçar. Assim, o projeto do homem ou da mulher de
ação suscita aqueles momentos cruciais, em que a sabedoria prudencial passa a intimar: No meio e do meio deste embrulho, você “decide”, você vai cortar bem e certo, desatar o nó com firmeza e fineza,
vai separar os bons elementos e os indesejáveis, ao fio da sua razão.
Hoje, bem sabemos que para o bom êxito nos negócios, há uma
ciência e uma técnica aprimoradas da decisão. É necessário e urgente que seja célere a marcha em busca da prática generalizada da
ética da decisão. É esta ética que integramos na doutrina e na prática da prudência, donde a decisão brota como a mais preciosa e difícil das atividades.
O universo virtuoso da decisão sábia e prudente
Para que a decisão prudencial seja virtuosa, é necessária, mas
não basta a vontade de ser prudente. A partir dessa vontade e por
246
ela sustentado, é indispensável todo um cortejo de qualidades, animando e orientando as diversas etapas desse percurso que leva à
decisão boa e ajustada à situação. É uma competência virtuosa envolvendo todo o agir moral, à semelhança da competência científica, técnica e profissional que garante o bom êxito de qualquer trabalho ou tarefa especialmente de caráter tecnológico.
Com Santo Tomás3, podemos considerar um duplo ponto de
vista:
1) de um lado, há os elementos que fazem parte do processo
que forma uma boa decisão.
2) as qualificações que asseguram o desenrolar e o bom êxito
da decisão prudencial.
Os elementos integrantes da decisão são necessários e intervêm
diretamente em uma decisão longa e difícil.
Entre esses elementos ou partes integrantes do processo prudencial de uma decisão, lembremos:
• uma boa informação sobre os dados do problema e uma boa
formação moral para saber apreciá-lo convenientemente;
• uma boa inteligência, à altura das dificuldades, uma capacidade de dominar racionalmente o assunto;
• uma experiência na matéria em questão, uma memória viva e
completa dos dados passados que são susceptíveis de ajudar a
apreciação da situação e a tomada da decisão;
• no caso de deficiência dos três itens anteriores, recorrer ao
conselho de alguém competente, ponderando as razões, indicações ou sugestões, guardando sempre sua própria responsabilidade de decidir;
• capacidade de prospectiva, de previsão do que se há empreender, das consequências futuras e do modo de enfrentá-las;
3. Cf. ibid., q. 49 e 51.
247
• fineza na apreciação das circunstâncias, sabendo-o optar pelo
que é mais oportuno, abster-se de agir ou protelar a ação, tendo
em conta o momento e as disposições próprias e as reações atuais
ou previsíveis de outros;
• atitude de cautela diante dos riscos e dificuldades; elemento
importante, mas não o principal e menos ainda a qualidade
constitutiva da prudência, como se costuma pensar e dizer,
mesmo nos dicionários.
Manifesta-se assim todo um conjunto de qualificações éticas que
são necessárias para assegurar a boa decisão da prudência. Elas dizem respeito à dupla etapa preparatória do ato mesmo de decisão: a
deliberação e a apreciação dos dados do problema a resolver. Essas
qualificações especiais se fazem necessárias, quando se trata de
questões e de circunstâncias particularmente difíceis e melindrosas.
Para ajudar e orientar a deliberação, nos casos embaraçosos,
faz-se mister uma disposição de informar-se e uma docilidade que
sabe buscar conselho junto de quem é competente ou especialmente sábio ou sensato.
Nos casos especialmente complexos e delicados, a apreciação
prudencial requer fineza de consciência e de julgamento, sobretudo
nos casos que não são previstos pela lei comum ou que escapam à
previsão do legislador. O que corresponde à virtude de epiqueia no
campo da justiça.
Podemos assim estabelecer certa tipologia da prudência, sabedoria universal4.
A prudência é a sabedoria prática, orientadora do agir. É a virtude do governo de si e dos outros. É a dimensão intelectual da responsabilidade pessoal, comunitária e social.
A prudência revestirá, portanto, as diferentes formas de governo ou de responsabilidade, que correspondem às missões gerais de
4. Cf. ibid., q. 50.
248
que cada ser humano é responsável e às funções especiais de cada
membro da vida social.
Em um quadro simples, se diferenciam e ao mesmo tempo são
chamadas a se completar uma prudência pessoal e uma prudência social; nesta se distinguem a prudência familiar, comunitária ou propriamente societária, tal como a qualidade bem informada, desinteressada e dedicada ao bem público típica ou desejável no cidadão.
Assim, nas diversas instâncias da educação, no plano familiar e
civil, será necessário que aprimore a formação da prudência dos
membros da comunidade ou da sociedade; e a prudência dos chefes,
dos líderes, dos particularmente responsáveis. Essas espécies de prudência designam qualidades indispensáveis para a decisão e a orientação dos grupos, comunidades e sociedades, portanto uma competência especializada a serviço de uma dedicação que convém a quem
está incumbido da responsabilidade particular na vida social.
Ao destacar essas simples evidências, apontando à luz do senso
comum a absoluta necessidade da prudência familiar, política, econômica, militar, comunicacional (na mídia) e educacional, constata-se um contraste que recobre a sociedade em geral. Em todos os
setores cada vez mais se afirma e se reconhece o caráter indispensável da competência e, portanto, da formação técnica e profissional.
Há uma habilitação que se impõe para entrar e avançar na carreira e
mesmo para não sobrar no campo do emprego e dos negócios. Mas
com a ditadura estabelecida do utilitarismo econômico e social, reina o descuido e o descaso naquilo que deveria ser a qualificação de
base, na missão de ser homem e de ser mulher, de se realizar e crescer no amor, de assumir, exercer as funções básicas de ser marido,
esposa, pai e mãe. Daí, o risco da catástrofe tranquila: o mundo
mais bem informado e mais sabido de toda a história se candidata
ao prêmio de ser o mais desumano e sem alma.
No entanto, o fato de dar com tais situações de penúria de amor
é um bom indício, é um dos sinais dos tempos assinalados com um
meio sorriso pelo Papa João XXIII. O despertar generalizado das
consciências que conduz à humanidade à questão fundamental e
249
crucial de uma ética comporta essa dupla dimensão, não de denúncia inconsiderada e desmedida, mas de serena aceitação dos erros e
limites que assinala a história deste grande adolescente que é o gênero humano.
Na verdade, a reflexão sempre se mostrou atenta a todo o amplo e cerrado feixe de obstáculos que se opõe ao conjunto e a cada
uma das etapas que forma o processo de uma boa decisão. Retomando essa análise desse universo da prudência tão complexo e tão
coerente, não é de surpreender que se constate um maior volume e
uma eficácia maior na arte de pensar e fazer o mal. Os próprios recursos da técnica, da organização sistêmica da sociedade vêm conferir maior volume, mais presteza, maior fecundidade a essa longa
lista das falhas, vícios e pecados que os antigos destacavam e catalogavam como os adversários da prudência. Em contraponto com
essa sabedoria, fonte de sentido e orientação para a vida, surge então todo um universo de atitudes e de omissões que entravam ou
distorcem esse processo prudencial que só pode ter pleno êxito com
a confluência de tantas qualidades ou virtudes, que reforçam e afinam a capacidade de pensar e decidir.
Com efeito, na prática da vida individual e social, esses obstáculos sempre foram camuflados; aliás, as faltas contra a prudência
não têm um objeto tão evidente e ostensivo como outros vícios
mais concretos e materiais. E muito especialmente na sociedade,
ou melhor, no Ocidente contemporâneo, contraste com as decisões
técnicas e utilitárias que merecem uma atenção proporcional ao interesse e ao proveito, as decisões sobre os valores humanos e o sentido da vida “se tomam num piscar de olhos”5.
5. Cf. LEGAULT, M.R. Think – Por que não tomar decisões num piscar de olhos.
Rio de Janeiro: Best Seller, 2008 [Trad. de Patrícia Lehmann – Original em inglês, 2006]. O tema do livro “não é hora de piscar, é hora de pensar, antes que seja
tarde”, é mais amplo do que nossa reflexão ética neste livro. Para ele, o mundo estaria carente de capacidade pensar simplesmente. Estaria submetido às torrentes
do imaginário e condicionado pela manipulação generalizada.
250
Em síntese sucinta, pode ser proveitoso delinear ao menos alguns desses pecados ou vícios que se opõem à prudência. Serão expostos em sua formulação clássica, acrescida das modalidades e
tendências modernas que atualizam suas capacidades de oposição
ostensiva ou disfarçada à sabedoria e ao discernimento ético.
De maneira mais ampla, é bem frequente a ausência da própria
prudência na sua totalidade, é a imprudência na sua generalidade, o
deixar levar-se pela corrente dos acontecimentos, das influências,
pressões e manipulações de toda parte. É o que faz do homem e da
mulher de jovens e crianças uma massa ou um rebanho tangido pela
mídia e por mil formas de diversão e entretenimento. É a atitude ou
a falta de atitude assinalada e estigmatizada pelo autor citado de
Pense! Se deveras se tem em conta o “penso, logo existo”, se chega
à curiosa conclusão: a época da superinformação e da supercomunicação corre o risco de aglomerar multidões de quem não existe
como gente e vegeta, na diversão ou no estresse, esbarrando uns
nos outros no claro escuro de uma imensa massa de solitários, de
mente apagada.
Ficaram destacadas umas tantas qualidades ou certos elementos que constituem o complexo e ágil universo da prudência. No dia
a dia, em momentos e situações importantes, no trânsito, por exemplo, ocorre a falta desastrosa, o descuido comprometedor dessas
atitudes de atenção aos problemas, de empenho em ponderar e
apreciar o que se passa, de atender aos deveres e valores que solicitam uma opção reta e bem informada.
Jamais se exagera a importância desse feixe constante de ameaças e danos jogado hoje nos lares ou nas praças pelas mil e uma falhas, volumosas ou miúdas, tais como a inconsideração, a precipitação, a negligência em horas de risco ou de atropelo, tanto mais que
são agravadas muitas vezes pela preocupação excessiva com coisas
menos importantes ou com o futuro ainda incerto e nebuloso.
Olhando as coisas com a sua surpreendente profundidade, Tomás de Aquino chega a dizer que na origem de todo pecado, de todo
malfeito, está a desatenção, a desatenção ao bem, à situação aqui e
251
agora, à conjunção desse bem com essa situação precisa e densa em
suas possibilidades, promessas e exigências. Semelhante desatenção no momento presente é, para esse mestre, a brecha pela qual o
pecado vai estragando a humanidade.
Os mestres do discernimento espiritual insistem mais ainda em
uns tantos viços e falhas que são “falsas prudências”, são como clonagens da virtude e do valor da prudência, guardam a sua estrutura
de guia da ação, constituem forças e apontam caminhos para agir,
para bem agir, mas buscando ou promovendo o mal.
Essa prudência, o avesso da virtude e do valor da prudência, é
formada de um feixe de perversões da inteligência, da capacidade
de ação e comunicação, do tipo da astúcia, da fraude, do dolo e todos os artifícios. Há uma grandeza, uma falsa grandeza nessas façanhas de ter e mostrar o máximo de inteligência, de vencer, de prosperar e dominar pela força mais tipicamente humana, pelo saber triunfando na rivalidade, na concorrência, deixando o outro para trás
ou lá embaixo.
É a grande tentação da humanidade, empolgada pela inteligência instrumental, pela razão elevada ao infinito da tecnologia e da
ambição de ter, de poder, de dominar e de aparecer sempre mais.
Enlouquece pela idolatria da falsa sabedoria, equipada por muita
ciência, pela capacidade de bem decidir em favor do mal, que é o
egocentrismo individual e corporativo.
Tal é a suprema ambiguidade habitando os corações e penetrando os sistemas da humanidade globalizada. Está na extrema carência
de uma ética mundial, dotada de estima pela ciência, pela técnica e
pela arte, inspirada e toda impregnada da sabedoria, a mais alta e
mais humilde, colocando a inteligência a serviço do outro e da sociedade, tendo o apreço à prosperidade ao conforto marchando de braços dados com o desinteresse, a gratuidade e o dom de si.
Prudência, ética e mística
A reflexão sobre a prudência se amplia e se eleva quando a confrontamos com os desafios cruciais e sem limites da globalização.
252
Vê-se a grande complexidade e a extrema dificuldade da prudência como virtude universal, desdobrando-se em um campo tão
importante e delicado. Ela é a sabedoria, estendendo-se a todos os
domínios da vida pessoal, familiar, profissional, comunitária e social. A sua prática perfeita é um horizonte sempre aberto e convidativo para a fragilidade humana.
Na perspectiva e na linguagem bíblicas, a prudência como sabedoria universal guiando à perfeição vem a ser a plena docilidade
ao Espírito de amor6.
Ao ser humano, ao homem e à mulher que renascem em Cristo,
pela graça da justificação, o Espírito Santo é dado como fonte de
sabedoria contemplativa e como fonte de sabedoria prática, de prudência e discernimento evangélicos.
Nessa perspectiva evangélica, a prudência está sob a orientação das virtudes teologais, especialmente a caridade, que “é alma
de todas as virtudes”; há uma conexão superior de todas as virtudes
na caridade.
Sob o influxo da trilogia teologal, a totalidade do ser humano se
unifica na busca da perfeita realização e na tendência para o Bem
Divino, Fonte Primeira de felicidade e de santidade.
Dentro da conexão geral das virtudes, destacam-se os laços de
afinidade da prudência e da justiça. Muito especialmente a prudência em sua dimensão social é a luz guiando a justiça social, mas
também dela dependendo, pois sem a retidão do querer e do agir,
não haverá claridade no olhar da inteligência e do coração para discernir e praticar.
Aprofundando a reflexão, os mestres da espiritualidade, como
Tomás de Aquino, radicalizam os caminhos da compreensão do ser
humano em sua relação viva com a verdade, o bem e o amor. Mesmo
que, para o bem da análise, ensinam eles, se distinguem as faculdades humanas, na realidade o conhecimento e a afetividade são cone-
6. Cf. Suma Teológica, II-IIae, q. 52.
253
xos. Há sempre uma interação profunda da inteligência e da vontade,
quando se trata da percepção e da apreciação concreta dos valores.
Com a pura inteligência abstrata pode-se elaborar com relativa
facilidade a noção de generosidade, de responsabilidade, de solidariedade. Mas, dentro da situação que se está vivendo, quando alguém tem que decidir, cortando na carne viva de seus interesses,
então ele terá que “pensar com a alma toda”, com o coração puro e
desinteressado, só assim terá o sentido desses valores.
O sentido se entende precisamente como sendo a percepção em
junção com a opção. Só fraternizando com o querer, o entender
atingirá a realidade do bem, dos valores, em sua consistência e com
suas exigências, sendo assim penetrado e transformado pelo bem
que conhece e para que melhor o conheça.
Daí a sentença de Santo Agostinho retomada e analisada por
Santo Tomás, a qual parece resplandecer em seu latim transparente: Prudentia est amor bene discernens, “a prudência é o amor sabendo bem discernir”7.
À luz dessa antropologia integradora e dessa espiritualidade
emergindo com um elã harmonioso e unificador para o bem, é que se
compreende a afinidade, a interação da mística e da ética, quando
esta se identifica com a paixão racional e livre pelos valores humanos em sua profundidade, em sua universalidade. É a lição que a humanidade recebe hoje das grandes religiões, especialmente do cristianismo, lá onde ele não perdeu o seu impacto espiritual devido à mediocridade daqueles que ousam, contudo, chamar-se seus fiéis.
Por efeito positivo da globalização, não teria chegado o momento de compreender o melhor das mensagens religiosas? Assim,
na visão evangélica, a docilidade à ação do Espírito e à sua luz é
anunciada como um dom8, uma graça especial e constante, uma
7. Ibid., II, q. 47, art. 1, objeção e resposta 1.
8. Na catequese cristã essa perfeita docilidade ao Espírito Santo é atribuída ao
dom de conselho.
254
energia e uma clarividência, que dispõe a assumir toda a perfeição
humana da prudência, purificando-a de toda pretensão, fazendo,
discernindo os meios humanos para os objetivos humanos, e os meios divinos para os objetivos divinos, na coerência de uma mesma
sabedoria, inspirada pelo Amor.
Semelhante visão religiosa deve preservar-se de toda estreiteza
confessional. A docilidade ao Espírito não dissocia o cristão da
marcha do mundo, não alheia dos problemas da humanidade. Ela se
manifesta muito particularmente na capacidade de compreender a
complexidade, a dimensão social, econômica, cultural ou política
dos desafios e crises em cada momento da história, levando à coragem e à lucidez para fraternizar com todos os membros da sociedade, no trabalho e mesmo na luta pacífica e democrática pela justiça
e pela paz.
Essa atitude integradora de uma sabedoria que perscruta os caminhos rumo a uma ética mundial encontra uma expressão significativa na sentença repetida do Concílio Vaticano II: “O Espírito
age na história”9.
Promessas e desafios da globalização contemporânea
A época contemporânea, com suas crises e incertezas dá a
maior atualidade ao itinerário do discernimento, das teorias e práticas de decisão; essa evolução dando-lhe uma virada significativa.
Pois assinala certo retorno espiritual, sem dúvida importante, embora difícil de abranger e entender em sua integralidade. Há algumas dezenas de anos, cujo número também não é fácil de bem precisar, vem-se afirmando um ressurgimento da meditação, da ora9. “O Espírito de Deus que, por uma providência admirável, conduz o curso dos
tempos e renova a face da terra, está presente a esta evolução da história” (Vaticano II. Constituição Gaudium et Spes, 26, § 4.). Cf. igualmente todo o § 38. Abordei o tema no livro coletivo Hegel et la théologie contemporaine – L’Aboslu dans
lhistoire. Paris: Delachaux et Niestlé/Neuchâtel, 1977, p. 54-73: “L’Esprit dans
l’histoire”.
255
ção, apoiado em todo um conjunto de técnicas e até de terapias,
apelando para a energia criativa, reconciliadora e pacificante da
contemplação.
Semelhante valorização da inteligência em sua dimensão contemplativa coincide em parte com a valorização da razão em sua
função de guiar e ordenar a ação e a vida social no sentido da liberdade, da justiça e da solidariedade. Assim, a civilização contemporânea se apresenta como um contexto cultural e espiritual em certa
afinidade com a mensagem primordial do Evangelho e das religiões mais sensíveis aos desafios da atual globalização. Para além
dos embates e debates inspirados pelas controvérsias e polêmicas
dos velhos tempos, desponta uma época de diálogo e entendimento, na qual se veem enraizados comportamentos e movimentos de
diálogo e intercâmbio visando uma ética mundial10.
Mais significativo e promissor ainda vem a ser o caráter abrangente, integrador desse encontro nas alturas. Pois, o retorno a um
tipo de contemplação no plano religioso, a busca de discernimento
ético ou espiritual coincidem com o surto e o desenvolvimento das
teorias e modelos aperfeiçoados da decisão, não propriamente no
plano ético ou espiritual, mas sim no domínio econômico e, mais
amplamente ainda, em todo o vasto campo da administração e do
empresariado11. De maneira original e autônoma, ou em certa sintonia com esse campo de pesquisas e de práticas da decisão, constitui-se e desenvolve-se o estudo mais abrangente da estratégia, a
partir do domínio militar, estendendo-se mais e mais a todos os sistemas e setores da cultura, da ação e da sociedade atual.
Essa atitude diante da realidade histórica se presta, hoje, a um
diálogo promissor. Pois o discernimento contemplativo e militante
de um mestre espiritual como Las Casas encontra certa correspon-
10. É o que abordaremos e analisaremos nos dois últimos capítulos deste livro.
11. Uma visão sintética, bem construída e documentada sobre o tema, temos em
GOMES, L.F.A.M. Teoria da Decisão. São Paulo: Thompson, 2007. Outras
obras são citadas na bibliografia.
256
dência leiga e profana nas citadas teorias e modelos de decisão, elemento fundamental no estudo e na marcha da administração das
empresas e de todo o sistema econômico. Mais nítido e firme é o
acordo das posições do missionário sempre encantado pela beleza
da criação e denodado lutador contra os estragos e a dilapidação
desses tesouros vivos da humanidade, quando o lemos, hoje, em
sintonia com a consciência ecológica da humanidade.
Em síntese: o interesse atual pela sabedoria contemplativa e a
busca de teorias ou modelos de decisão no campo dos negócios coincidem com o vazio deixado pelo arrefecimento do discernimento
espiritual, da prudência que corresponde à elaboração ética desse
discernimento.
A grande questão, sob a forma do supremo desafio, parece hoje
bem presente, sobretudo na perspectiva da urgência e da viabilidade de uma ética mundial.
É a preocupação com o essencial, o empenho racional e responsável de promover a qualidade humana na vida das pessoas, bem
como nas relações e organizações da sociedade contemporânea.
257
CAP. 7
CORPO, DESEJO E SEXO
Amor, domínio e dom de si, em meio ao
erotismo globalizado
Harmonia primordial: o prazer
“O epicurista Gassendi, gracejando, cumprimentava Descartes
com a saudação. ‘Ó Alma!’ E Descartes retrucava à altura: ‘Ó Carne!’ Mas, nem o espírito ama sozinho, nem o corpo: é o homem, a
pessoa, que ama como criatura unitária, de que fazem parte o corpo
e a alma. Somente quando ambos se fundem verdadeiramente
numa unidade, é que o homem se torna plenamente ele próprio. Só
deste modo é que o amor – o eros – pode amadurecer até à sua verdadeira grandeza.”
O Papa Bento XVI nos surpreende graciosamente com essa introdução bem humorada ao tema do amor1.
De certo modo, tudo na aventura humana parte dessa imensa e
calorosa região do psiquismo, formada por um feixe de experiências primordiais e constantes na vida de cada um. Reina soberano o
princípio do prazer, ativando a afetividade e todo o conjunto das
pulsões e paixões que ela encerra.
Para que seja viável em seu projeto de orientar toda a existência
pessoal e social, assumindo o modelo e o elã de uma solidariedade
mundial, a ética há de começar pelo empenho de cultivar, aperfei1. BENTO XVI. Encíclica Deus Caritas est [Deus é Caridade], 5. São Paulo: Loyola/Paulus, 2006.
258
çoar e harmonizar esse primeiro e incessante dinamismo da vida,
pedindo ser racional e gostosamente partilhado por todos.
Tal é a exigência, não apenas da ética e da religião, mas da civilização atual que faz do corpo, do desejo, do sexo um campo privilegiado de atenção, de culto intenso e fervoroso, chegando mesmo
a uma idolatria alienante, banal e comercializada nas redes da comunicação globalizada.
Projeto ético de felicidade no amor
Olhado em profundidade, à luz da razão e mais ainda da fé, o ser
humano, pela energia da sexualidade e da afetividade, surge como
um projeto de felicidade e de amor. Esse projeto pode e deve dar certo pela ética, assumida em seu sentido positivo e mediante um processo precoce, progressivo e constante de educação nos valores e nas
virtudes que hão de fazer da criança um verdadeiro ser humano.
Mas esse lindo projeto pode ser mal conduzido, e dar errado. E,
fracassando se tornará uma fonte terrível de desgosto e desgraça.
Cada criança que vem ao mundo, qual semente miudinha de esperanças infinitas, dá de oscilar, se vendo chamada à graça, que entre
sorrisos, lágrimas e trabalhos, pode fazê-la boa e feliz. Mas está
ameaçada pela desgraça de ser envolvida pela mesquinhez de um
ambiente familiar e social. Acabará então cedendo à sedução ou à
pressão que a levam à desordem ou ao retardo afetivos, destruindo
ou deixando destruir a harmonia de sua vida.
Na verdade, cada um de nós entra na vida como uma planta que
brota para crescer ou um delicado botão que é feito para desabrochar.
O pequenino ser humano conta primeiro e antes de tudo com a energia criadora que o constitui, penetra e envolve. Ele se afirma como
um elã. Uma força viva e autônoma, que emerge e se desenvolve. No
começo, não é mais do que um gracioso feixe de prazer, de apetite,
de satisfação, mas também de insatisfação e frustração, conforme se
realize encontrando na hora certa o prazer que lhe convém ou sendo
privado dele, num tipo de violência mais ou menos camuflada.
259
Desde que se começou a estudar os princípios da vida humana,
admite-se em geral que ela se manifesta como uma primeira força,
a libido, o instinto, o desejo. É uma espécie de energia global, que
se irá aos poucos diferenciando. Nota-se em seguida uma outra força, sob forma de lei, norma, autoridade, linguagem, a qual se contrapõe e se impõe à energia primordial e fundamental. Uma análise
mais profunda mostrará que a lei, a norma, a autoridade, a linguagem em si são instâncias exteriores. Mas elas só podem atingir o ser
humano, só serão recebidas pelo pequenino ser humano, em virtude de algo, de uma capacidade potencial que ele já tem. É esse algo
de humano, que faz sentir a lei, a autoridade como qualquer coisa
que lhe agrada, ou o machuca e fere, o coíbe ou estimula.
Esse algo de humano, esse sentir-se gente no mais profundo de
si mesmo, é a dignidade que emerge e se revela. Qual dinamismo
inconsciente, ela ajuda desde cedo o ser humano a se estruturar por
dentro, na autenticidade. Ou, sendo machucada, o leva, o inclina ou
o força a se encolher, a se esconder, a forjar, de si e para si um caramujo. Então este pobre homem, esta pobre mulher, ainda em germe
e agindo de forma inconsciente, começarão a ceder a um doloroso
mecanismo de defesa e de fechamento sobre si mesmo. Desditosos
projetos, falhados na linda e grandiosa vocação humana. Vegetarão
na angústia, na acomodação ou na dissimulação, sacudidos pelas
vagas de fáceis diversões ou de uma apagada tristeza. Sem se realizar na autêntica alegria do prazer e da dignidade.
No princípio do ser humano há a libido, e bem cedo vai despontando um sentido do que chamaríamos a dignidade humana. E a
partir da força da libido e das aspirações e exigências da dignidade,
a personalidade humana vai crescendo, vai se construindo com
mais ou menos acerto e felicidade.
Então, a família, a educação, a sociedade colaboram para o desabrochar harmonioso dessa pequena e suprema maravilha do universo, que se chama uma personalidade. O conhecimento vai se desenvolvendo, se distinguindo e concatenando na percepção ou formação
de objetos. Os prazeres e desejos vão sendo apreciados, vão se dife260
renciando. Surgem os prazeres do encontro, do relacionamento com
o outro. Ao prazer sentido só pela criança, acresce o prazer partilhado, o prazer de receber e dar prazer. Vai brotando uma capacidade de
escolher. Convenientemente ajudadas, se esboçam pequenas e frágeis formas de responsabilidade. São os caminhos propriamente humanos, aqueles que serão seguidos, se tudo vai bem.
Em nossa apreciação de adulto, diremos: a inteligência do pequenino se abre ao valor primordial da verdade, do conhecimento e
da aceitação: da realidade, das coisas, do outro, de si mesmo, da comunidade. Assim, se viabilizam os valores da responsabilidade e
da solidariedade.
Convém destacar especialmente o conhecer-se a si mesmo, o
decifrar a sua sexualidade, no que ela tem de natural, de dado recebido da hereditariedade, como riqueza complexa da espécie humana, como diferença do masculino e do feminino, e como entrosamento do masculino e do feminino. É o ponto que está em jogo
muito particularmente na forte emergência cultural e social da homossexualidade, na civilização ocidental moderna.
A responsabilidade solidária vem por último, mas é o primeiro
na escala ética. A responsabilidade há de presidir à construção lúcida e livre da personalidade. Responsabilidade decerto de quem fez
vir e prepara o desabrochar da personalidade nessa coisinha mimosa que é o bebê. Responsabilidade que essa graciosa cria humana
vai aprendendo a ativar e a manobrar, de maneira cada vez mais firme e acertada, crescendo em inteligência e em autonomia.
Vida: sexualidade e amor
Tal é a urgente e delicada junção a realizar em um processo feliz de personalização e de socialização.
Na plena maturidade do ser humano, nessa eclosão do que recebeu de herança biológica e cultural, mais o influxo positivo do
ambiente familiar, educacional e social, se essa bela aventura correu bem, dá-se a perfeita integração.
261
É a junção deste tríplice elã: da vida, do sexo e do amor.
A aceitação da vida, o gosto, a alegria de viver desabrochando na
felicidade de amar e ser amado. E a vida e o amor se encontram e expandem na sexualidade como fonte de identidade, de abertura ao outro, de dom de si ao outro na reciprocidade e na transmissão da vida,
na espontaneidade do desejo e na opção de um querer racional.
Essa compreensão plena, total, harmoniosa do sexo como gosto de viver e de transmitir a vida é o grande projeto, consciente ou
inconsciente, habitando o coração da humanidade, o objeto de suas
aspirações e de seus anseios. É como um feixe infinito de antenas
tentando captar o grande ideal humano – biológico, animal, racional, espiritual – acalentado ou machucado no decorrer da história
da moral, da cultura, da religião. As realizações no longo decorrer
dos séculos, dos milênios, vêm sendo mais ou menos felizes, harmonizando mais ou menos bem esses dados e energias vitais, por
vezes justapondo ou contrapondo os fragmentos do que deveria ser
a grande harmonia, o ser humano, o homem, a mulher, o casal, a família, a pessoa e a sociedade na uni-bio-diversidade em marcha
pela história.
O empenho ético de bem entender o enigma e o mistério do ser
humano, vida, sexo, amor, há de ser, portanto, inspirado por esse
objetivo de visar e alcançar uma informação completa e uma compreensão adequada dos dados de um problema extremamente complexo e chegar à compreensão integral dos princípios, normas e
modelos de realização humana, mediante a realização da sexualidade no amor e pelo amor. Essa tarefa se caracteriza como o amplo
e difícil estudo de uma dimensão ou região humana na perspectiva
da ética fundamental e de uma antropologia cultural, a mais abrangente possível.
Trata-se, portanto, de uma abordagem pluridisciplinar, que recorre às ciências humanas, à hermenêutica da história do saber sexual e à hermenêutica da mensagem bíblica, das diferentes tradições religiosas e sabedorias dos povos. Semelhante abrangência,
tornada viável e necessária pelo fato mesmo da globalização, nos
262
levaria a falar de um método transdisciplinar, porque o interesse de
conhecimento, que inspira e comanda o estudo é ético, é a busca de
um paradigma de ética humana da sexualidade e do amor.
Concretamente esse itinerário vai consistir em buscar compreender a realidade complexa e dinâmica da sexualidade desabrochando (ou não) no amor e compreender um paradigma ético que
conduz a esse desabrochamento, dentro do contexto histórico de da
história pessoal, comunitária e social de todos e de cada um. É indispensável conjugar história e historicidade: a história que conta e
evoca os acontecimentos e desenrolar dos costumes e instituições,
e a historicidade que aborda a vida por dentro, analisando e decifrando o ser humano se realizando e desdobrando no tempo vivido,
na “duração interna”.
O interesse propriamente ético nos conduz ao empenho de bem
descobrir e compreender a realidade humana da sexualidade como
princípio da identidade, do valor da pessoa e como capacidade de
diálogo, de comunhão profunda.
Na pedagogia da Bíblia, especialmente do Evangelho, encontra-se a fonte e a motivação de uma ética pessoal, familiar e social,
exaltando a aliança do casal como modelo acessível para a compreensão da aliança divina, da união divina e transcendente de Deus e
da humanidade. Semelhante itinerário começa por apontar e exigir
a compreensão íntegra e a promoção nem sempre fácil da sexualidade humana em sua dignidade, em sua natureza, em sua complexidade, em seu dinamismo e seu desenvolvimento enraizado em um
contesto histórico, a assumir e a superar.
A elaboração teórica e prática desse projeto ético surge qual
questão crucial para a pessoa, a sociedade e, ao que tudo indica, à
toda religião hoje, pelo menos no Ocidente. Há uma dificuldade simultânea de compreender tanto a ética quanto a sexualidade e o
amor, e mais ainda o entrosamento harmonioso desses elementos,
portadores de histórias e tradições diferentes senão disparatadas.
Paradoxalmente essa crise da moral sexual e do amor sucede a
uma fase aparentemente sem problemas, na qual a moral, no que
263
toca o sexto mandamento era ensinada com clareza e, sobretudo,
com muita segurança nas igrejas. E era acompanhada por certa moral social, bastante precisa em seus interditos, embora não fosse seguida. Aí persistia como referência, ao menos para reger o “segundo sexo”. Essa época de certezas caracteriza bem a cristandade, boa
parte do mundo moderno leigo, desvanecendo mais e mais até que
se eclipsa finalmente com a época pós-moderna.
Sem dúvida, a sexualidade, a realização plena, harmoniosa, fecunda, criativa da sexualidade nunca foi nem é nem será fácil para
ninguém em tempo algum. Mas imperava uma doutrina que afirmava, de forma taxativa: tal prática é intrinsecamente má, “não admite paridade de matéria”, é um pecado contra a natureza. Talvez
semelhante vocabulário seja antiquado. Mas a culpabilidade e os
temores que espalhou perduram em muitas consciências, mais ainda talvez nos inconscientes, mantendo angústias e ressentimentos.
Uma das causas das crises e muito particularmente dos impasses vem a ser a simplificação dos complexos problemas humanos,
as posições unilaterais, sobretudo quando são autoritárias, absolutas e intolerantes, seja na compreensão da sexualidade e do amor,
seja da moral ou da ética propostas em um momento histórico.
Se a história acumula erros e acertos, seria viável hoje uma
compreensão integral da ética e da ética da sexualidade e do amor?
Está aí a questão teórica e prática primordial, para o homem e a
mulher modernos, para a sociedade, a religião e a cultura.
Na verdade, a sexualidade é algo de natural e de cultural.
Tem sua consistência, tem suas leis internas de realização, pedindo a consideração cuidadosa dos elementos de corporeidade,
dos fatores que entram em sua constituição, em seu desenvolvimento, em seu exercício, levando ao seu êxito, a crises e até mesmo
ao fracasso. A sexualidade é um processo histórico, mais ainda está
envolvida, condicionada e mesmo determinada por todo um feixe
de processos históricos. Ela é um processo histórico em cada ser
humano. Esse processo histórico está submetido a um jogo de in-
264
fluências do processo histórico da família, da sociedade, da cultura,
da religião, da moral e das mentalidades coletivas.
A ética é, antes de tudo, a busca da verdade, da verdade do ser
humano cuja natureza é esse processo complexo e movediço, susceptível de ser bem ou mal compreendido na integralidade de seus
elementos e na evolução de sua realização em etapas sucessivas e
conexas.
A ética só é autêntica e ajuda a felicidade humana pessoal, familiar e social quando busca reconhecer que a sexualidade humana
é essa maravilhosa e difícil aventura.
Ela se empenha em guiar a sexualidade, respeitando-a em sua
natureza profunda e complexa, chamada a se realizar e a realizar o
ser humano todo inteiro, decifrando e promovendo todos os elementos e todas as etapas de seu desenvolvimento, à luz da estima
da vida, do prazer e do amor – feixe de valores a serem vividos,
afirmando a identidade e a comunhão das pessoas.
Sexo: identidade e historicidade da condição humana
Seria hoje viável uma compreensão integral e bem ordenada da
sexualidade na complexidade de seus elementos e na evolução histórica das etapas naturais e culturais de sua realização? Seria possível chegar a dominar todo esse universo de novos conhecimentos e
das novas imagens que povoam os campos imensos das mentalidades, das ideologias, e da publicidade hoje?
A cultura atual está longe de refletir um empenho de propor do
sexo uma visão completa e harmoniosa, menos ainda um paradigma ético unânime ou mesmo simplesmente coerente da sexualidade. Mas tem a vantagem de superar o velho medo, que silencia ou
desconversa, e de não se contentar com meias palavras. Daí, resulta
a sexualidade espetáculo, toda essa multiplicidade maravilhosa e
desconcertante de luzes e de cores, refletindo enfeitadas formas
eróticas nos flashes sem conta de um imenso espelho fragmentado.
265
É preciso constatar e ultrapassar a impressão global. Não se pode
simplesmente parar na denúncia ou no aplauso diante da evidência,
embora tenha algo de teatral. Aí está e se impõe o sexo sedutor a serviço do êxito, da aparência, do prestígio, da economia, portanto instrumento e objeto do comércio, do consumismo festivo e tumultuante. Mas, não há que se negar. Mais discreto senão marcado de alguma timidez, está presente o olhar positivo, admirativo diante de qualquer coisa que transcenda a banalidade cotidiana, extasiando-se diante da beleza, da dignidade do homem e da mulher, buscando entendimento e igualdade, valorizando a diferença e acolhendo a complementaridade no jogo difícil e exaltante da sexualidade.
Antes de evocar as grandes linhas de uma necessária releitura
histórica, que prepara a urgente e espinhosa análise da imagem da
sexualidade na cultura e na mentalidade atuais, parece oportuno insistir sobre o caráter de historicidade da sexualidade como de todos
os dados e aspectos essenciais da humanidade.
Vem sendo ampliada e aprofundada a sentença da grande escritora e filósofa, porta-voz do projeto global da emancipação feminina. Simone de Beauvoir no seu magistral e quase monumental Segundo sexo2, lançou o axioma que bem mereceu se tornar slogan,
encorajando o grande debate sobre o gênero: “On ne naît pas femme, on le devient”. Ao pé da letra, a máxima do mais belo francês
da autora diz: “a gente não nasce mulher, mas se torna uma mulher”. O gênero, expresso em sua forma teórica: ser homem ou ser mulher, comporta em sua realização histórica uma série de fatores
complexos, movediços, progressivos ou regressivos, potenciais
como dados da natureza e atualizados pelos processos culturais. “A
gente nasce”: aí vem o sujeito humano, recebendo da “natureza”,
uns tantos dados biofisiológicos da diferença sexual, já esboçados
no próprio embrião humano, e hoje diagnosticados precocemente
pelos exames pré-natais.
2. BEAUVOIR, S. Le deuxième sexe. Paris: Gallimard, 1949.
266
Mas semelhante herança genética vem acompanhada por um
feixe de virtualidades psíquicas ou psicossomáticas que só se tornarão efetivos, atualizados, mediante a interiorização de modelos
culturais. Esses modelos ou matrizes configuram, propõem e mesmo inculcam os modos de ser humano ao “infante”, à pequenina
criatura que não sabe falar, nem andar nem usar qualquer instrumento ou utensílio.
Com Simone de Beauvoir, se dirá: Essa criazinha humana não
“nasce mulher”, não nasce homem. O que significa que não vem
predeterminada pelas formas culturais de hetero ou homossexualidade, de bi ou pluri-sexualidade. Ela é, isto sim, profunda e totalmente maleável à influência formadora, exercida consciente ou inconscientemente pelo seu primeiro ambiente afetivo, pelos seus genitores culturais. Onde não há o determinismo natural, é preciso reconhecer o forte enraizamento cultural que dá a primeira orientação que constituirá a singularidade da pessoa em suas tendências e
opções sexuais, bem como em suas demais formas e instâncias de
vida relacional, familiar e social.
A um certo momento, com maior ou menor precocidade, a criança irá reagindo, tomando atitudes que começam a esboçar a
questão crucial, a indagação primeira sobre sua identidade, que
corresponde à sua entrada na responsabilidade ética:
– Que fazer com o que fizeram, estão fazendo ou pretendendo
fazer de mim?
Essa pergunta, em geral verbalmente não formulada, mas vivida com mais ou menos contentamento ou angústia pelo já agora sujeito humano, traduz concretamente a meia conclusão de um ciclo:
como se estruturaram as bases de sua sexualidade em sua personalidade? Como acolheu e entrosou em si o modelo cultural de ser homem, de ser mulher, proposto ou imposto pela família e pela sociedade que assiste ou invade a família?
Com que delicada harmonia ou com que feixe mal atado de
conflitos, esta criança, este jovem ou esta jovem vai enfrentar a
existência? Esse rebento humano aí vem reconciliado consigo e
267
com o outro, integrado na aceitação de seu sexo e na estima do outro, começando a diferenciar e a articular em si o outro sexo, as formas diferenciadas do amor?
A sociedade atual tem todos os recursos para aprofundar por
uma abordagem transdisciplinar a questão radical de Simone de
Beauvoir, a questão central da humanidade hoje, situando e analisando a sexualidade dentro e à luz da historicidade, do processo de
surgimento, de desenvolvimento do ser humano em sua dupla dimensão indissociável: a natureza, a herança genética, e a cultura,
todas essas redes imensas de influências, que hoje envolvem, seduzem, divertem ou asfixiam a infância e a adolescência. Essa cultura
oferece os mais ricos conhecimentos, técnicas e recursos, permitindo ir ao encontro de quem nasce, e mesmo de quem é concebido,
portador de um imenso cabedal de potencialidades e ajudá-lo a “se
tornar” mulher ou homem na plena identidade de cada um e na harmoniosa diferença dos gêneros.
“Coragem da verdade” na releitura da história da
sexualidade
Antes de confrontar essa visão da sexualidade em sua gênese e
sua complexidade com a rede de problemas éticos que desafiam a
humanidade, convém considerar como esse processo marcado pela
historicidade vem sendo vivido e interpretado na história elaborada
da sexualidade.
Não teria chegado o momento de uma dessas viradas qualitativas da cultura e da ética, confrontando os dados do saber científico,
técnico e com a sabedoria, com a reflexão ética que busca o sentido e
a felicidade nas experiências humanas de base, das quais a sexualidade é como o centro e a força motriz? Esse intento de uma releitura
honesta e crítica da história da sexualidade resplandece na “coragem
da verdade”, que animou o ensino universitário e as obras de Michel
Foucault. Em outro registro, esse estudo cuidadoso está bem em harmonia com a forte e lúcida contribuição de Simone de Beauvoir.
268
De maneira se não unânime pelo menos amplamente partilhada, até os tempos modernos predominou uma doutrina que se diria
clássica da sexualidade, compreendida e aceita como uma função
específica do ser humano, a serviço de sua capacidade e de seu dever de transmitir a vida. Essa finalidade imanente à constituição e
ao dinamismo da sexualidade traduziria a sua natureza e lhe indicaria um feixe de leis naturais como fundamento da ética sexual.
Correntes éticas como o estoicismo e o platonismo que exerceram maior influência na elaboração da moral nos primeiros séculos
do cristianismo, apontavam como o essencial, como a “natureza”
da sexualidade humana aquilo que ela tem de comum com a sexualidade dos animais mais desenvolvidos. Mas o sábio, o filósofo reconhece que pela razão deve dominar o prazer, mantendo nos justos limites de estimular e ajudar a realização da função procriadora.
A história da sexualidade no Ocidente, especialmente na cristandade, na prática do conjunto da população, sobretudo na orientação penitencial dos pastores da Igreja, se desdobrará como um
projeto moral de conter o prazer e de exercer a sexualidade dentro
da fidelidade conjugal, e na atenção a esses paradigmas da visão bíblica e a essas balizas da ética greco-romana.
Em ampla convergência com muitos outros estudos históricos
e teológicos, Michel Foucault com “sua coragem da verdade” vem
em boa hora para ajudar nesse processo de clarificação do modo
como tem sido vivida a sexualidade através dos séculos de religião
e de cultura, o que sem dúvida exerce uma influência densa e extensa sobre as conscientes e os inconscientes da humanidade atual.
Duplo aspecto no seu ponto de partida tornam as pesquisas e
reflexões desse mestre particularmente pertinentes. Primeiro, mantendo-se sempre atento às doutrinas, ele visa de maneira direta e
predominante as experiências, o conjunto de práticas e de instituições que traduzem as atitudes vividas e efetivas em relação à sexualidade. Por outro lado, a descrição e a análise desses comportamentos pessoais e sociais em torno da sexualidade seguem ou
acompanham a reflexão histórica cuidadosa sobre a história da lou269
cura, sobre as atitudes e instituições envolvendo os “alienados
mentais”, e sobre a punição e o sistema carcerário reservado aos
delinquentes.
Na verdade, o elemento comum à sexualidade, à loucura e à delinquência vem a ser o modo como essas situações ou dicções desafiantes são percebidas, tratadas e interpretadas pelas sociedades
através dos tempos. Foucault analisa um vasto e complexo material
sociológico, chegando a esclarecer grandemente a questão crucial:
como se tem tentado remediar as condições extremas de risco, de
tentação e de falha, a loucura, a delinquência e, mais importante
aqui, a sexualidade.
As pesquisas e reflexões de Foucault3, inspiradas pela “coragem da verdade” têm como feliz resultado chamar a atenção das
pessoas, dos intelectuais, da sociedade sobre esses processos de
tratar a verdade, mediante um discurso ideológico, fabricado de explicações, de racionalização de práticas inspiradas por sentimentos, medos ou ambições, que se guardam escondidos, reprimidos
ou recalcados. Toda uma herança cultural de meias verdades, talvez de maior porcentagem de mentira do que de verdade, vai sendo
transmitida por séculos e até milênios no bojo dos ensinos e, sobretudo, de mentalidades e práticas atingindo a esfera da política, do
direito e da religião.
Em abordagens e perspectivas mais amplas, o tema da compreensão cultural da sexualidade e do discurso que a veicula vem sendo
estudado pelos teólogos e sociólogos da religião. A articulação da
sexualidade com o pecado, com a culpabilização, com certa visão
antropológica das capacidades e fragilidades do ser humano tem
3. Desde 1976, Michel Foucault lançava a História da sexualidade [Histoire de la
sexualité. 3 vols. Paris: Gallimard, 1976-1984], traduzida em português pela Editora Graal, Rio de Janeiro, 1977-1985). A ética da sexualidade só se torna viável
se for precedida e preparada por uma ética da inteligência, pela “coragem da verdade”, por um estudo histórico e crítico, visando desmontar o mundo de imposições, de repressões, de hipocrisias e disfarces constituído pela prática e o ensino
da sexualidade, desde a Antiguidade, no Ocidente.
270
sido esclarecida pelas pesquisas vastas e aprofundadas sobre os tratados e práticas penitenciais, que deram sempre grande relevo à sexualidade na análise dos pecados e nas penitências correspondentes4. No que toca ainda a sexualidade, esta tem sido colocada em relação com o medo ou a angústia em valiosos estudos sobre esses temas na história das mentalidades, dos costumes e sentimentos5.
Assim, a questão se vem colocando com mais objetividade e justeza, mostrando em seus diferentes aspectos o quanto a sexualidade
se afirma como: o que há de mais profundo, mais típico da natureza
humana é a dimensão pessoal, relacional (interpessoal) e social.
No entanto, nessa reflexão aprimorada sobre a dimensão cultural e religiosa da sexualidade, e sua apreciação direta ou indiretamente ética, como sua exaltação como valor e sua culpabilização
como pecado ou fonte de pecado, parece emergir um importante fio
condutor. É que a sexualidade, suas modalidades, suas formas tradicionais ou modernas, alternativas, de realização vêm envolvidas
em uma corrente de tensões e mesmo de conflitos entre os dois polos, a busca, a luta pela emancipação e o recurso sistemático à repressão. Essa oposição dialética aparece em temas particulares já
abordados ainda neste capítulo como a homossexualidade. Aparecerá sempre nos capítulos aparentados como a família, a bioética
ou a ecologia.
O reconhecimento da presença ostensiva ou um tanto camuflada dessas posições conflituosas parece útil senão necessária na reflexão sobre sexualidade testemunhada na Bíblia e bem como na
4. Indicações documentárias e análises cuidadosas se encontram nas obras clássicas de VOGEL, C. O pecador e a penitência na Igreja Antiga (até o VI século). •
O pecador e a penitência na Idade Média. Original francês. Paris: Cerf, primeiras
edições respectivamente em 1966 e em 1969. Ainda em francês: GROUPE DE
LA BUISSIÈRE. Práticas da confissão dos Padres do Deserto até o Vaticano II.
Paris: Cerf, 1983.
5. Cf., entre outros, DELUMEAU, J. O pecado e o medo – A culpabilização no
Ocidente: séculos XIII-XVIII. 2 vols. Bauru: Edusc, 2003 [publicado originalmente em francês: Paris: Fayard, 1983].
271
vida e no ensino de comunidades de inspiração cristã e de outros
grupos religiosos similares.
As histórias em geral limitadas e fragmentárias em seu tecido
narrativo nos convidam e mesmo incitam a reconhecer a busca de
uma compreensão unificada, harmoniosa em um grande projeto humano universal e solidário. Ele visa realizar-se desdobrando e sintonizando os vários dados e energias da vida, da sexualidade, da razão
e da liberdade, donde resulta um avanço paciente dos diferentes
campos da moral, da cultura, da sabedoria filosófica ou religiosa.
Bíblia: sexo e amor
Assim, buscando um critério hermenêutico bem informado e
rigoroso, atento aos gêneros literários e à evolução histórica da Bíblia, convém colocar a questão delicada e decisiva em referência à
orientação de nossa reflexão aqui: que paradigmas éticos e culturais
propõe a Sagrada Escritura sobre a sexualidade? E como têm sido
lidos e acolhidos especialmente pela Igreja?
A primeira orientação que nos dá a Bíblia é que ela se dá como
uma história piedosa ou uma série de casos ou exemplos edificantes. Fala de Deus, do culto e da moral que ele exige, visando um
povo concreto e em contanto com sua vida real que é contada sem
cortes nem censuras. O ensino bíblico tem um caráter progressivo
quanto ao sentido que vai revelando de Deus e quanto à prática e à
doutrina moral que vai se aprimorando na transmissão dos valores
e do modo de comportar sempre mais autônomo à medida que se
torna dócil ao Espírito de Deus.
A Bíblia é um grande monumento ético por seu conteúdo, mas
tanto e mais ainda pela qualidade de sua pedagogia, que supera o
legalismo em um processo de educação popular animado e impulsionado pela meditação dos sábios e pela forte inspiração dos profetas. No centro dessa pedagogia divina, mas admiravelmente humana, emerge e cresce sempre o amor, o amor divino antes de tudo,
272
mas supondo e cultivando o amor humano e portanto a sexualidade, sempre presente e encarado da maneira mais positiva.
No chamado Antigo Testamento, que é deveras o testamento
fundamental e sempre atual, se propõem as bases de uma teologia
de uma visão cada vez mais pura e exigente de Deus e uma antropologia da dignidade da pessoa, a proeminência do casal no ápice de
toda a criação. Assim, a família fundada na aliança conjugal é a
unidade de base, realizando em seu cotidiano e em seu culto doméstico a síntese, a imagem condensada do povo, também ele estabelecido e mantido por uma aliança divina, que tem algo de conjugal, assumindo os caracteres de uma aliança política. O Decálogo é
a carta magna, a lei fundamental, constitucional da aliança, é um
código de ética mas é, sobretudo, oferecido e acolhido como um
dom gratuito, a bondade de Deus suscitando a justiça e solidariedade entre seus fiéis e em todo o seu povo. Vai sendo ampliado e pormenorizado em vários códigos que visam encarnar a essa lei de
base na vida, nos costumes e nas instituições do povo de Deus.
Antes de levantar problemas éticos particulares, convém suscitar e situar a questão radical e deveras crucial: qual o lugar e o sentido primeiro da sexualidade na bíblia. Se contrariamente a tantas religiões politeístas, a revelação bíblica insiste em colocar o ser divino absolutamente transcendente, fora e acima de toda sexualidade,
ela exalta ao contrário a sexualidade no centro da natureza e da condição humanas.
A humanidade completa não se realiza no indivíduo isolado.
Feixe vivo e ativo, interativo e relações, a pessoa, apresentada na
narração inicial como o homem no masculino, se vê radicalmente
infeliz na sua solidão, embora tenha o mundo inteiro colocado a
seus pés.
É com o encontro e a união do casal que a vida humana toma
sentido e explode em um poema de felicidade:
Esta, agora, sim,
É carne de minha carne
Osso de meus ossos
273
Merece o nome de humana,
pois do humano nasceu6.
Bem no centro e no ápice de toda a criação, o casal, o homem e
a mulher, são a única e eminente imagem de Deus, Senhor poderoso e amoroso, que dá a sua criatura privilegiada a livre e responsável capacidade de amar, de gerar e transmitir a vida na forma primitiva e primordial da aliança.
Nas narrações iniciais da Bíblia, escritos ou reescritos para
ilustrar e reforçar o tema da Aliança, surge o tema do amor, da vida
e da sexualidade, esses três dons divinos que constituem a criatura
humana saindo das mãos do Artista Divino para empreender a
grande caminhada de “povoar a terra” e de a governar como uma
providência, na dependência e no prolongamento da Providência
Soberana.
Aqui surge a questão de base: em si, anteriormente ao encontro
com outras correntes éticas e culturais e a todas as influências por
elas exercidas nos que se reclamam da palavra bíblica, qual é o genuíno e verdadeiro sentido que a Escritura atribui à sexualidade e
muito especialmente ao prazer sexual na vida da pessoa, do casal e
da sociedade?
O tema essencial da Bíblia é a felicidade pessoal, familiar e social mediante a fidelidade à aliança em sua dupla acepção distinta e
conexa à aliança religiosa e à aliança conjugal. A felicidade tem um
nítido conteúdo de prosperidade e prazer que manifestam seu sentido e sua função positivas no lar e na cidade, sendo exaltadas como
bênçãos do Deus do amor e da vida.
Nessa visão religiosa e antropológica harmoniosa surge uma
ética proposta pela Lei, meditada e sustentada pelos profetas, longe
de todo dualismo entre espiritualidade, menos ainda entre raciona6. Gn 2,23. A tradução procura reencontrar todas as conotações e insinuações do
original hebraico. Neste, “homem” e “mulher” vêm a ser o mesmo radical, dito no
masculino ou no feminino. É o que sugerimos pela fórmula um tanto pobre “humano/humana”.
274
lidade e prazer. Pois, preconiza uma alegria de viver que assume a
sexualidade como linguagem do amor e fonte prolongadora da vida
e da família felizes e abençoadas.
Sem dúvida, no ensino da religião, nos oráculos dos profetas,
na meditação dos sábios, emerge e se afirma com muita força, sobretudo nos momentos de crise, um antagonismo entre o amor fiel,
bem ordenado, e os apetites desordenados e destruidores do casal,
da família e da sociedade.
O ser humano é apontado e descrito com insistência como marcado pelo conflito, como “carne” e “espírito”, intimamente dilacerado pelos desejos da carne e pelos desejos do espírito. Mas trata-se
não de antagonismo de caráter ontológico ou antropológico. Não se
veja aí a oposição entre paixões e virtudes na perspectiva estoica ou
platônica, fundada na oposição corpo e espírito, de modo que a plena realização humana esteja na renúncia ao sensível ou mesmo ao
sensual, para se chegar à harmonia ou tranquilidade.
A inferioridade, a malícia da “carne”, do “apetite carnal” não
vem de sua constituição, de seu elemento material, mas de uma desordem – de caráter ético, espiritual – decorrendo de uma falta de
amor e de estima do outro, ao qual se prefere a satisfação egoísta.
No caso da sexualidade, ela será marcada e desviada pela infidelidade, pelo desejo de possuir e dominar, de buscar seu próprio prazer em quem pertence a outro. O desejo desordenado que receberá
o nome de “concupiscência” (termo latino correspondendo à “epitymia” em grego) é primordialmente a ambição, o querer para si o
que é do outro.
Em sua formulação, o que equivale ao 6º mandamento do Decálogo não visa “o não pecar contra a castidade”, mas falando diretamente ao homem no masculino, inclui a sua parceira sexual entre
os objetos a excluir da injustiça contra o próximo, ajuntando após o
“não matarás”, o “não cometerás adultério”. E estigmatizando as
ambições egocêntricas, se proclama de maneira global: “Não cobiçarás a mulher de teu próximo, nem sua casa, nem seus animais ou
seus servos”. A insistência bíblica é a fidelidade no amor. A formu275
lação eclesiástica tradicional visa manter a castidade, o equilíbrio
virtuoso, sem dúvida a serviço do amor, mas sem o visar em primeiro lugar.
A alteridade é mais explícita e primordial no preceito da Escritura. Nele sobressai a questão de justiça, não querer ou desejar possuir quem é de outro.
Bem se vê, não se trata de oposição, mas de prioridade. O Decálogo na Bíblia, após o mandamento do amor e do culto perfeitos a
Deus, encerra todo o conjunto de exigências de justiça, destacando
o respeito à vida, aos bens do outro, às pessoas a seu serviço, especialmente o bem por excelência que é sua consorte.
Assim, se entende o sentido próprio e a particular gravidade no
que se chamará a “concupiscência”, o desvio do coração, da capacidade de querer bem ou mal. A concupiscência não é visada diretamente como perturbação passional, como desordem nos sentimentos ou nos pensamento atingindo a pessoa. Esta se vê, é incitada a se ver pervertida pela concupiscência, precisamente porque a
concupiscência a impele a fazer o mal a outrem, a “cometer adultério no seu coração”. Ela é um falso amor ameaçando ou destruindo
o verdadeiro amor.
Sem dúvida, a sexualidade é um lugar e um instrumento privilegiado no qual se instala a concupiscência, a epitymia7, apetite desordenado e destruidor do verdadeiro amor. No entanto, a concupiscência mais apontada e denunciada na Bíblia é a ambição desregrada de querer, buscar e acumular sempre mais para si, recusando
partilhar os bens destinados a todos. É a famosa pleonexia, cobiçar
e concentrar para si sempre mais. A pleonexia, já denunciada por
7. No grego do Novo Testamento: epitymia (epi+tymia) é o “sobredesejo”, a “cupidez dominadora”. Ela fraterniza com a pleonexia (pleon+exia) “ter mais”, “ambição” ou “apetite de ter sempre mais”. O Apóstolo Paulo descreve com toda a
justeza o que seja a “concupiscência da carne” (epitymia tes sarkos) em oposição
aos desejos do Espírito em Gl 5,16-26. Sobre a pleonexia, adversária da igualdade promovida pela justiça, veja-se no capítulo seguinte todo um parágrafo com a
indicação das referências bíblicas.
276
Aristóteles como a grande adversária da justiça, é estigmatiza no
Novo Testamento como a “idolatria” por excelência.
Diríamos, atingindo a injustiça no domínio mais profundo no
bem mais precioso que é o amor que há de unir o casal, a concupiscência sexual tem uma gravidade especial, como forma qualificada
de injustiça.
Em uma perspectiva positiva, a sexualidade surge e é sempre
apresentada na pedagogia bíblica como domínio mais excelente e
mais delicado. Pois é a linguagem concreta do amor. Após todas as
vicissitudes históricas, os encontros e desencontros de civilizações,
os últimos profetas proclamam como a urgência das urgências a fidelidade do amor no casal e na aliança divina.
O amor é exaltado como reconhecimento do outro e de si de maneira positiva e criativa, como dom de si e aceitação e valorização do
outro, fonte de bondade e da felicidade, para a pessoa, o casal, a família, comunidade de base primordial para a religião e a sociedade.
O Povo de Deus aprende a dar prioridade ao amor ternura e
dom de si, assumindo o amor: prazer e partilha do prazer, ordenado
à plena fecundidade (transmissão da vida) a se realizar de maneira
amorosa e verdadeiramente humana.
E bem se pode dizer que o coração da Bíblia e da revelação divina é o Cântico dos Cânticos, o caloroso e delicado poema, erótico, profético e místico, proclamando, no maior encantamento, que
“o amor é mais forte do que a morte”8.
Ensino e diretivas da Igreja: ontem e hoje
A Igreja é e se dá como “Mãe e Mestra”, da qual se tem o direito de cobrar que fale uma linguagem de amor, suscitando a confian8. No centro de sua pedagogia ética e espiritual, a Escritura visa o triunfo do amor
no casal, homem e mulher. A essa luz se situam e esclarecem problemas particulares, tais como a amizade entre parceiros do mesmo sexo, o que se poderia denominar a homofilia de Davi e Jônatas, a que aludiremos no parágrafo sobre a homossexualidade.
277
ça e se preocupando mais em criar um clima de receptividade e de
diálogo, do que em condenar erros e mesmo em apenas propor uma
doutrina bem acabada em seus pormenores.
Espera-se que se empenhe em respeitar a diversidade de culturas e de linguagem, ao mesmo tempo em que o fenômeno da globalização corre o risco de impor atitudes de conformismo superficial.
Sobre a sexualidade, como em outros domínios, as posições da
Igreja comportam uma doutrina em geral abstrata, visando a expressão de uma verdade absoluta e imutável. Esta pressupõe ou
exige uma sábia e paciente pedagogia, um feixe de diretivas pastorais, que seriam inspiradas na misericórdia e que saberiam ir ao encontro dos casos concretos vividos pelo comum dos mortais. Mais
ainda, cabe-lhes entrar em diálogo com uma humanidade cultural e
religiosamente pluralista, sobretudo no capítulo da sexualidade.
Assim, como em todos os seus diferentes domínios, a moral se
afirma na linguagem do magistério eclesiástico como “o esplendor
da verdade,” como doutrina a ser exposta com o rigor, a nitidez e o
absoluto dos princípios, fundados na natureza humana e na revelação divinas, garantidos pela interpretação da autoridade indefectível da Igreja. No plano da aplicação prática e pastoral, o ideal é que
se chegue a uma formulação pedagógica, sempre fiel aos princípios,
porém mais compreensiva e mais dialogante.
A questão importante e mesmo crucial se precisa nestes termos: quais traços marcantes de compreensão da sexualidade e de
aplicação prática de uma ética sexual predominam no ensino e na
vida da Igreja, hoje em continuidade com a tradição de ontem? E a
interrogação conexa, de igual senão de maior relevância: qual é a
recepção dessa mensagem e das intervenções das autoridades eclesiásticas nos graves problemas e na marcha histórica da humanidade? O que vale dizer: quais são e como são vistas as prioridades e
opções da Igreja diante das correntes doutrinais, dos movimentos
de luta pelos valores e direitos humanos, ou face às concentrações
de poder, de desigualdade, de dominação no plano das nações e no
plano internacional?
278
O estudo dos dados históricos, atento à sua análise hermenêutica, é o primeiro caminho para se compreender a originalidade das
doutrinas e das posições da Igreja nas etapas diversas de sua história. O conhecimento do passado é um dos fatores relevantes para
que se tenha um claro entendimento das atitudes de hoje, dos empenhos renovadores do Vaticano II, da sua marcha e dos obstáculos e
inércias que encontra.
O fio condutor de nosso itinerário se poderia destacar nestes
termos sucintos e simplificados: como se procedeu, na cristandade,
à inculturação do paradigma bíblico da sexualidade? Como se forjou o paradigma eclesiástico da vida e das normas sexuais, em resposta às questões e dificuldades suscitadas pelos fiéis, bem como
em confronto com as doutrinas, os questionamentos e mesmo as
contradições vindo das várias correntes éticas ou das tendências e
dos costumes que vão surgindo no correr dos séculos?
Neste processo histórico, doutrinal, mas de máximo interesse
prático, destacamos as seguintes etapas, cuja escolha e formulação
sintetizadas se justificarão com a marcha mesma da reflexão. Como
evolui a moral sexual de Paulo a Agostinho, de Agostinho a Tomás
de Aquino? E, na Modernidade, como apreciar a moral da procriação
e do dever conjugal, seguida das inovações do Vaticano II, seu projeto de diálogo, com a acolhida e os obstáculos encontrados?
De Paulo a Agostinho
Simbolizamos no Apóstolo Paulo e no doutor e Santo Padre
Agostinho dois momentos típicos na evolução da consciência e da
vida cristãs e mesmo da moral ocidental, a partir do impulso criativo e renovador que vem a ser o Evangelho de Jesus Cristo. O ponto
de referência para apreciar todo esse longo processo progressivo
será o paradigma central, fundado na compreensão da sexualidade,
em sua função específica na existência do indivíduo e na vida social. Muito particularmente se pergunta: que estima merecem o
prazer sexual bem como a diferença dos gêneros masculino e feminino na linguagem, nos costumes e nas instituições.
279
Dois polos parecem se destacar e comandar todo o dinamismo
e toda a orientação desse desenvolvimento da moral sexual, desde
os primeiros séculos da difusão do cristianismo:
• A referência à Bíblia, concretamente o apelo ao Evangelho,
como expressão acabada e perfeita da revelação divina;
• E a utilização, a integração, mais ou menos consciente e explícita dos valores éticos da sociedade (judaica e greco-romana), aceitos em um processo de simbiose cultural, comportando
um grau maior ou menor de discernimento por parte da comunidade cristã e dos pastores ou guias espirituais.
Do encontro da mensagem do Evangelho, especialmente na
versão paulina, com os elementos éticos e culturais dos primeiros
três séculos, resulta primeiro a valorização do casal, da família que
ele constitui, levando à estima, e mesmo ao enaltecimento dos seus
corpos e da união conjugal que os une.
A mesma fé, a mesma atitude mística, que professa com todo
realismo a presença do Espírito Santo difundido nos corações e comunicado à comunidade, se aplica com este mesmo realismo à
união sexual dos cônjuges. A “profanação” desses corpos na infidelidade é estigmatizada qual ofensa direta a este Espírito que consagra as pessoas batizadas, na densidade de sua corporeidade.
Os textos das grandes cartas paulinas, aí pelos anos 55-58, uns
vinte e cinco anos após a morte de Jesus, marcam e orientam esse
processo de inculturação: cristãos vindos do mundo greco-romano,
informados das doutrinas éticas correntes então, buscam orientar
suas vidas, suas práticas sexuais em referência à mensagem evangélica que receberam do Apóstolo Paulo. Essas comunidades,
bem esclarecidas pelo apóstolo, retomam então a visão positiva e
básica da mensagem bíblica sobre o valor do sexo, do casal, da intimidade conjugal.
Note-se, no entanto, que nos mesmos textos e nesse mesmo
contexto de vida, o próprio Paulo propõe o conselho da abstinência
sexual. Em vista da oração, exalta a livre renúncia ao casamento
com o fito de maior liberdade para se dar à pregação do Evangelho.
280
Em seguida, nas comunidades que se desenvolvem e entram
em conflitos com o mundo pagão, o testemunho das jovens cristãs
fiéis à prática da castidade até à morte dá origem ao culto das “santas virgens” mártires. E uma doutrina da maior excelência da virgindade sobre o matrimônio vai se formando e afirmando na Igreja.
Esse movimento que privilegia a virgindade apela para as palavras
do próprio Jesus nos Evangelhos e para o ensino de Paulo, lendo-os
como conselhos ou caminhos de maior perfeição.
No entanto, o processo de inculturação vai em frente. O dado
cristão se encontra com as doutrinas e tendências do platonismo, e
mais ainda do estoicismo, comportando certo dualismo. A exaltação do espírito se traduz no desprezo da matéria, levando ao menosprezo pelo corpo e pelo prazer, sobretudo sexual. A expansão
da prática da virgindade para as mulheres e da vida monástica para
os homens, apelando sempre para a inspiração evangélica inicial é
fortemente influenciada por uma ascese que opõe o corpo ao espírito e abraça o jejum e a abstinência sexual como meios mais favoráveis à busca da perfeição.
Convém notar, nessa primeira fase da inculturação ética espiritual do cristianismo em contato com o pensamento e as práticas
greco-romanas, o que está bem no centro desse intercâmbio é a
questão da perfeição, da ascese que leva ao pleno domínio de si e à
intimidade com Deus. Por outro lado a oposição, o dualismo imensamente generalizado, sobretudo pelo estoicismo opunha as virtudes e as paixões, todas as paixões, pondo, sem dúvida, em certo relevo a sexualidade.
No entanto, inaugurava-se um processo que levará a uma mudança total na compreensão do ser humano, de toda vida moral e de
toda a elaboração ética. Pode-se considerar Santo Agostinho como
a figura simbólica dessa virada espiritual, ética e antropológica,
porque ele é seu termo, sua expressão clara e acabada. Ele se tornará a autoridade intelectual, o ponto de referência para as gerações
seguintes que prolongaram e ampliaram a mesma caminhada.
Em Santo Agostinho, especialmente em seus escritos antipelagianos da primeira metade do século V, encontra-se a forma consu281
mada dessa evolução doutrinal e prática culminando na desestima e
mesmo em certa condenação do prazer sexual. Sem dúvida, é preciso saber confrontar e articular os ensinamentos das múltiplas controvérsias em que Agostinho se vê envolvido.
Nos escritos antimaniqueístas ele toma a defesa do corpo e da
matéria assegurando que são bons, pois são criaturas do mesmo
Deus que é amor. Ao contrário, nos escritos contra os pelagianos
que exaltam o poder da natureza e da liberdade em detrimento da
graça, ele se empenha a fundo em proclamar a degradação, a fragilidade, a incapacidade da natureza sem a graça. A natureza e todas
as obras estão sujeitas à concupiscência, essa busca exagera de si e
do prazer, sendo especialmente estigmatizada na “concupiscência
da carne”, no apetite sexual desregrado pelo pecado original.
Aqui bate o ponto. Nas últimas controvérsias sobre o pecado original, os inteligentes e cultos adversários do grande doutor o encantoam com extrema argúcia. Celéstio, discípulo de Pelágio apoiando-se no dogma da criação e nas doutrinas de Aristóteles, especialmente sobre a natureza, lançam o supremo desafio: queridos e criados por Deus, o corpo, o sexo, o prazer são naturais, em si bons e suscetíveis de ser elevados ao plano da santidade quando assumidos na
vida cristã. E lança um slogan da maior clareza para todos: Quando
um casal cristão se une sexualmente no intuito de ter filhos, então ele
usa bem de uma coisa boa (bene bono utitur). Mediante o sexo, a
concupiscência ou prazer sexual, que é algo de bom, os cônjuges visam o bem que é a transmissão da vida. Agostinho entrou no jogo
com rara infelicidade. Retomou e revirou a frase, proclamando: neste caso, o casal cristão usa bem (para a procriação) uma coisa má (a
concupiscência, o prazer carnal): bene malo utitur9.
9. Todo o debate e todo o tema vêm ampla e profundamente desenvolvido por
Agostinho na sua obra de maturidade, pois é acabada em 421, dois anos antes da
sua morte: De Nuptiis et concupiscentiis (Núpcias e concupiscências). A doutrina
a que aludimos está bem condensada nas seguintes passagens: Livro I, XXIV. 25;
II, XIX, 34; II, XXI, 36.
282
Aceitando que o prazer sexual está em si desordenado em virtude do pecado original, declara ser necessária uma escusa, algo de
bom, a geração da prole, a fim de justificar o exercício da sexualidade.
Não se pense que se trata de textos ocasionais de uma discussão
marginal. Elaborados na mais viva das controvérsias sobre um
tema central do pecado, da graça, da salvação essas sentenças agostinianas foram acolhidas, seguidas e defendidas. Elas passarão aos
compêndios dogmáticos e às sumas teológicas, e se tornarão pontos de referência normativos para os mestres medievais como
Alberto Magno, Boaventura e Tomás de Aquino. Na suma das sentenças de Pedro Lombardo, essas máximas de Agostinho atravessarão os séculos sendo lidas, comentadas por Lutero ou Calvino até a
aurora do mundo moderno.
Em profundidade, houve uma simbiose cultural, espiritual e
mesmo doutrinal: o dualismo dos estoicos, exaltando a razão e renegando as paixões, se amalgamou com a visão negativa da concupiscência, entendida como o prazer sexual, sempre tido no caso
como desordenado. O resultado assumiu proporções que se diriam
diluvianas. A consciência e o inconsciente da cristandade e, em
grande parte, do mundo ocidental foram marcados pelo pessimismo culpabilizante em relação à sexualidade.
Não se jogue a primeira pedra nem mesmo pedra alguma em
Santo Agostinho. Ele foi um dos protagonistas e um porta-voz, sem
dúvida genial e muito repercutido, de um processo amplo e profundo, inaugurado antes dele e prosseguido depois. É um encontro
muito amplo e uma marcha bem comprida em que tanta gente se
empenhou, hesitou e tropeçou na procura do grande enigma, senão
do grande e maravilhoso mistério que é a sexualidade humana.
O importante é fazer a releitura hermenêutica dessas contaminações da mensagem ética em meio aos equívocos e às controvérsias de um passado que perdura em suas consequências no decorrer
dos séculos.
283
De Agostinho a Tomás de Aquino
Nesses dois nomes ilustres se pode simbolizar a importante alteração cultural por que passam a cristandade e mesmo o pensamento
do Ocidente especialmente no que toca à antropologia e à ética.
O que há de mais visível, especialmente para nosso propósito, é
a mudança de paradigmas, do platonismo e do estoicismo agostiniano ao aristotelismo tomista. Mais radicalmente, após as tentativas
um tanto dispersas da época patrística, nomeadamente de Agostinho, visando fazer a junção do cristianismo e da cultura, a universidade medieval, de que Tomás de Aquino é o representante mais
qualificado, vai se dar a tarefa de sintetizar a sabedoria cristã em
sumas bem construídas e, enquanto possível, completas, o que traduz o empenho de articular todos os saberes.
À luz desse projeto global, convém apreciar a visão antropológica, teológica e ética que Tomás de Aquino chegou a esboçar.
Pois, mais e melhor do que qualquer outro, esse mestre tenta conciliar em uma síntese coerente os dados presentes ao pensamento
cristão. Com muito engenho e arte, saberá aproximar as duas correntes: o augustinismo, que dominava o Ocidente cristão, e o aristotelismo que nele fazia sua entrada, trazido pelos comentadores
árabes e judeus.
A sexualidade bem parece o ponto típico e mesmo nevrálgico
nesse projeto de soldar a aliança de Agostinho e Aristóteles, o que
significava elaborar uma antropologia e uma ética, ao mesmo tempo filosóficas e teológicas. A dificuldade essencial é a compreensão do sentido e da qualidade moral do prazer, muito particularmente, é claro, do prazer sexual.
Tomás faz avançar a antropologia e a ética sexuais, articulando
os aspectos positivos dessas correntes, filosóficas e teológicas, sem
chegar, no entanto, a uma síntese definitiva de sua visão abrangente
no que concerne à sexualidade. Desde seus humildes começos
como “Bacharel sentenciário”, nas longas e caprichadas questões
284
de seu escrito sobre as sentenças de Pedro Lombardo, em todos os
comentários bíblicos ou aristotélicos, nas disputas, nos tratados e
nas sumas, desenvolve um belo trabalho de reflexão pessoal, de
confronto das doutrinas por vezes antagônicas. Deixava o exemplo
de como levar à frente o debate, ao mesmo tempo que elaborava o
que lhe era possível em torno dessa questão crucial para a cristandade e para toda a cultura.
Sobretudo na Suma Teológica, Tomás de Aquino consagra amplas questões recobrindo o tema geral da ética sexual começando por
acolher e prolongar Aristóteles mostrando, provando e ilustrando
com todos os recursos de sua pedagogia, todo o valor positivo das
paixões, que não se opõem às virtudes, como na perspectiva do estoicismo. Exaltava o prazer, que com as demais paixões, traduz o dinamismo vital do ser humano no plano bio-psicológico, aí constituindo
um campo de cultura, de capacidade e de exigência de virtudes.
O prazer ocupa então um lugar eminente entre as onze paixões
fundamentais pormenorizadas e acuradamente estudadas por Santo
Tomás10. Em si, todo o prazer é bom, é o pleno desabrochar do ser,
no plano da vida e da ação. Sem dificuldade, Tomás articula a bondade da natureza aristotélica e a eminência da criatura, obra do
Artista divino segundo a Escritura. Exorciza, portanto, a ideia de
que o prazer tenha algo de mau e que de si venha do pecado ou leve
a ele. Chega a compor uma tese para provar que no paraíso, antes
ou fora do influxo do pecado, o prazer sexual teria o máximo de intensidade, não deixando por isso de ser o mais santo e inocente11.
No entanto, com essa atitude positiva, que se diria quase otimista, Tomás de Aquino só fazia amontoar ou aguçar as dificuldades de conciliar os dados tradicionais e os aristotélicos em uma éti-
10. Cf. Suma Teológica, I-IIae., questões 22-48, amplo tratado sobre as paixões
no seu conjunto. As questões 31-34 são consagradas ao estudo do prazer em sua
bondade antropológica e sua referência a uma qualificação ética.
11. Ibid., I, q. 98, art. 2.
285
ca sexual coerente. O lugar teológico desse encontro dialético dos
temas da natureza, do pecado e da graça, da concupiscência e da
bondade ética vem a ser o matrimônio, ponto de passagem obrigatório para todos os homens e mulheres, na Igreja e na sociedade. Na
catequese e na elaboração teológica, então clássica de Pedro Lombardo, o matrimônio se reconhece e define como “instituição natural”, tendo a sua finalidade (natural) a procriação e a educação dos
filhos, e ao mesmo tempo – para os fiéis cristãos – como “sacramento” que eleva e santifica essa instituição, dela fazendo uma
fonte de graças.
Mas, essa compreensão abrangente e esse enaltecimento tranquilo do matrimônio não poderiam esconder o conflito crucial. Há
um feixe de noções mal definidas ou mal compreendidas, expressas em uma linguagem arcaica, que era alheia ao Evangelho como
permanece estranha à mentalidade e à cultura de hoje. Fala-se do
exercício da sexualidade, em termos de “dever conjugal” e nele se
põe em jogo uma natureza “ferida” pelo “pecado original” e uma
“concupiscência” (desejo e prazer sexuais) desordenada pelo mesmo pecado. Ela é tão radicalmente desordenada no que diz respeito
ao sexo que nem a graça de Cristo e a força do Espírito triunfam
completamente desse pendor ou desse instinto todo poderoso, que
na intensidade do prazer apaga o exercício da razão e a capacidade
de pensar ou fazer outra coisa mais sublime.
De fato, Tomás de Aquino não teve tempo ou clima propício
para elaborar uma ética sexual em conformidade ou no prolongamento dos princípios fundadores de sua própria síntese ética e teológica. Ele não chegou a aplicar ao prazer sexual a sua bela e bem
construída doutrina sobre os prazeres e sobre as paixões em geral.
Deixando inacabada a Suma Teológica, parando no meio de uma
límpida e forte doutrina sacramental, seu pensamento definitivo
não chegou a abordar, a aprofundar e sem dúvida renovar os grandes temas que desenvolvera sobre o matrimônio nos começos de
sua carreira de ensino.
286
Sua exposição sobre este sacramento vem inserida na sua obra
de juventude, o Escrito sobre as sentenças de Pedro Lombardo12.
Ora, Lombardo não apresenta mais do que um tecido mais ou menos bem ordenado da doutrina matrimonial e sexual de Agostinho,
a “autoridade” incontornável, a respeitar, suscetível de ser explicado, jamais recusado ou refutado. Tomás em suas questões retoca
apenas o essencial das teses propostas nesta espécie de manual
clássico, que é já em seu tempo o conteúdo dos quatro livros de Pedro Lombardo.
No entanto, as modificações introduzidas discretamente por
Santo Tomás são da maior importância. Com Santo Agostinho,
Lombardo afirmava que a atividade sexual comportava sempre
algo de desordenado, como expressão da concupiscência em sua
intensidade máxima que fugiria ao controle da razão. Para legitimar o exercício da sexualidade pelos cônjuges, ensinava-se ser necessário que ele fosse visado não como busca de prazer, mas como
meio de alcançar a finalidade, a boa finalidade natural e providencial, que vem a ser a procriação. Assim, o prazer sexual, mau, desordenado em si, era “escusado”, tornando-se legítimo enquanto e
só na medida em que orientado para os objetivos do matrimônio.
Tomás de Aquino recusa essa problemática da necessidade de “escusa” do prazer sexual mediante o recurso a uma finalidade extrínseca. Ele o declara legítimo, e mesmo o enaltece dentro do matrimônio como bom e “santo”.
No entanto, Tomás não foi até o fim na lógica de sua doutrina
própria, que na sua originalidade não dependia de Agostinho, mas
se inspirava nas fontes bíblicas sobre a grandeza e o lugar privilegiado do casal humano no plano divino, e se elaborava na perspectiva
12. Cf. AQUINO, T. Escrito sobre as sentenças, livro IV, distinções 26-42. Esse
longo tratado vem em anexo nas edições da Suma Teológica, sob o nome “Suplemento”, no qual o matrimônio é tratado no conjunto de oito questões: Suplemento, q. 41-48.
287
da antropologia e da ética de Aristóteles13, fundada na noção da natureza humana, e da bondade intrínseca de tudo o que decorre da
natureza como sejam as paixões, e especialmente o prazer.
Pois, este é como a epifania radiosa, a plena, a exultante manifestação da perfeição de uma atividade natural. Era de se esperar
que o mestre exaltasse o aspecto positivo da sexualidade, e assim,
na plena coerência de sua doutrina, declarasse bom o prazer, em especial o prazer sexual, e que a sexualidade bem pode e deve ser reconhecida como a linguagem concreta do amor. Assim, a normalidade, a realização adequada do jogo natural da sexualidade não há
de ser senão a harmonia, a feliz conjunção do amor recíproco e do
prazer partilhado.
Moral sexual da procriação e do dever conjugal
Que bom teria sido se os progressos acrescidos por Tomás à herança de Agostinho se tivessem transmitido e continuado a avançar
na marcha da moral sexual nos séculos seguintes. Bem sabemos, a
época moderna, desde o Renascimento, passou a exaltar o sexo e o
prazer, chegando a idolatrar o corpo, na força e no esplendor da juventude, comprazendo-se em juntar a exibição apolínea e a orgia
dionisíaca. Tanto mais que a civilização teve que compensar mais e
mais pelo erotismo os incontornáveis estresses ocasionados pela
economia tecnológica. Não seria o bom momento de uma ética
13. Temos uma indicação positiva e promissora no texto sobre a caridade que une
os esposos em um amor especial e qualificado, em certo ponto acima do amor que
liga os pais e os filhos. Tal é a doutrina já da maturidade de Santo Tomás de Aquino (Suma Teológica II-IIae., q. 26, art. 11). Aí o mestre se inspira no ensino do
Apóstolo Paulo na Carta aos Efésios (5,25-29) e na eminência do amor conjugal,
segundo Aristóteles, na Ética a Nicômaco, VIII, 12. Assim se poderia dizer que
há um progresso já anunciado e mesmo esboçado no Escrito sobre as sentenças,
confirmado na Suma e que se pode inferir como sendo o primado do amor e a valorização do prazer partilhado na intimidade conjugal. É o que afirmará o Concílio Vaticano II, como se verá adiante e no cap. 9.
288
mundial do amor, do conforto e do prazer partilhados? Não é o caminho seguido logo nem pela modernidade laica ou ainda marcada
pela religiosidade.
A ética sexual se vê envolvida no descrédito que caiu sobre a
moral em todas as suas formas. No campo religioso, prevalece o
quadro geral de uma moral penitencial, priorizando as normas estritas da obrigação e da culpabilidade. Elaboram-se e se colocam
nas mãos dos pastores, especialmente dos sacerdotes confessores,
códigos de pecados e de penitências, de medidas que se supõem ter
algo de punitivo, de terapêutico e de pedagógico.
Semelhante moral sexual autoritária, legalista, negativa contrastava de maneira forte e crescente com a tendência geral à emancipação, em uma sociedade que cultiva o divertimento e a festa até
mesmo como instrumentos de promoção econômica.
Assim, em meio a um mundo que acende todas as luzes do paganismo jubiloso, das elites aristocráticas da Grécia e de Roma, o
culto do corpo e do prazer, inaugurado no Renascimento explode,
se generaliza e em parte se democratiza. No contraponto, a moral
religiosa, no ensino das igrejas, assumia um rosto sombrio de culpabilização e repressão, merecendo a crítica indignada e irônica de
Nietzsche, ridicularizando a atitude de demissão e tristeza da gente
devota priorizando mandamentos e interditos.
Nem se perca tempo em intentar um processo contra essa moral
do legalismo, da culpabilidade, do desgosto e da tristeza de viver.
O amadurecimento das consciências e da reflexão ética, fundadas
em melhores informações históricas e científicas, permite e exige
um diagnóstico da falha fundamental dessa moral sexual dita tradicional, mas de fato conservadora e exacerbadora de elementos parciais e em si secundários do passado. As falhas e os desvios, já
comprometedores na herança moral antiga, se concentram em uma
visão da sexualidade e de uma ética da sexualidade que ignoram o
primado do amor, do qual o prazer partilhado é a linguagem concreta e primordial. Sem dúvida, a sexualidade humana está ligada à
função primordial da transmissão da vida humana. A insistência re289
petitiva da sexualidade humana transmissora da vida humana, a redundância do qualificativo humano aponta para a originalidade essencial: o modo humano de transmitir a vida é a união amorosa, de
que a fusão sexual é o momento culminante e expressivo.
Enaltecendo a procriação, como referência normativa exclusiva, e desvalorizando a “concupiscência”, como apetite, instinto,
prazer desordenados, a moral (dita) tradicional causou um mal
imenso, distorcendo e desviando de maneira radical as consciências. Sem dúvida, outros valores éticos e espirituais são lembrados e
incutidos ao lado da procriação que deve ser acompanhada da educação da “prole”, destacando-se a “fidelidade” ao parceiro único de
uma união estável e inquebrantável.
Ainda bem, não ficou isolada a doutrina fundamental de Agostinho que coloca a procriação como justificação do “bom uso” dessa
coisa “má”, desordenada que é o prazer sexual. Do mesmo santo
doutor sempre se propagou uma sentença exaltando como “bens do
matrimônio” a “fidelidade, a prole e o sacramento” (da união indissolúvel). Mas essa presença da fidelidade e da união indissolúvel, a
que se ajunta uma atitude de “mútua ajuda”, sendo qualidades preciosas, não suprem a falta, a omissão que compromete esse modelo ético e espiritual, a ausência do primado do amor, sem qualquer sombra
de desconfiança ou menosprezo para com o sexo e o prazer sexual.
Não seria fora de propósito ilustrar essas constatações, um tanto negativas, fazendo apelo a um texto gracioso do mais amável dos
doutores da Igreja, São Francisco de Sales, cuja figura e cujas atividades vêm todas envolvidas na maior simpatia. Ele tem o maior dos
merecimentos por ter garantido universalmente aos leigos e às leigas a vocação à perfeição cristã, rompendo com aquela triste discriminação dos que estabeleciam uma aristocracia espiritual na Igreja
de Deus. Esse grande mestre chega a dizer: quem exclui do caminho da santidade uma profissão, seja de açougueiro, de comerciante ou de policial, é, diz ele textualmente, um “herege”. Pois bem, na
sua famosa Introdução à vida devota (de 1609), no cap. 39 da III
Parte, o santo bispo da Genebra vai abordar o tema da “honestidade
do leito nupcial”.
290
Com aquela fineza de uma pena muito sutil, o grande escritor
pede que estejamos atentos ao que ele insinua sem o dizer, pois falar do prazer sexual requer a maior sobriedade. Parte do princípio
que tudo explica e ao qual volta constantemente: o prazer da comida só se justifica e só deve ser desejado e querido na medida, e só na
medida, em que o alimento sustenta e mantém a pessoa em vida.
Assim, o prazer do “leito nupcial” é um puro meio para a transmissão da vida. Dele se deve “usar” não “gozar”. Não se há concentrar
nele atenção nem antes, nem durante, nem depois. É como se alguém tivesse a inconveniência de estar a pensar em comida antes
ou depois da refeição e dar mostras de estar saboreando iguarias
mesmo quando sentado à mesa.
O grande doutor não deixa de insistir: “a união nupcial é tão santa, tão justa, tão recomendável, tão útil à república” (à sociedade).
Mas ele logo ajunta “no entanto, em certos casos é perigosa”, levando “a pecados veniais, pelos excessos de prazer” ou a “pecados mortais por desordens graves”. Bem se vê o quanto Francisco de Sales
permanece sempre fiel à doutrina augustinista da “concupiscência”,
concorrendo como todos os moralistas e espirituais do seu século e
dos seguintes para a influência negativa que ela exerce.
É curioso que no capítulo seguinte consagrado às viúvas, o santo doutor se sente bem mais a vontade, estendendo-se mais amplamente ao tema da castidade neste estado de viuvez, e aconselhando
às senhoras casadas a se consagrarem por voto à futura castidade de
viúva, antes mesmo da morte do marido, para assim já anteciparem
o mérito que terão de uma viuvez consagrada. Entre outros indícios, essa recomendação mostra como a perfeição da vida cristã é
compreendida dentro do modelo monástico e como o estado conjugal é ressentido como marcado por certa inferioridade.
O testemunho de Francisco de Sales nos mostra como ainda os
maiores entre os grandes mestres foram influenciados pela incompreensão do sentido positivo da sexualidade como instância e expressão concreta do amor humano.
291
É verdade que no século passado, especialmente a partir do
pontificado de Pio XI, com promoção do laicato, com o surgimento
de uma teologia e de uma espiritualidade dos valores profanos, das
realidades terrestres, iniciou-se uma superação dessa moral sexual
restritiva, do “dever conjugal”, justificado, legitimado e até mesmo
santificado, mas somente pela sua relação à “finalidade do matrimônio” a “procriação da prole”.
Foi, aliás, esse progresso da espiritualidade e da doutrina, especialmente entre os leigos, o que possibilitou e viabilizou a renovação radical proposta pelo II Concílio do Vaticano (1962-1965).
Vaticano II: diálogo, coragem e medo
Sob o ângulo ético, cultural e religioso esse concílio provocou
um encontro de tendências e um choque de posições sobre a condição humana, sobre problemas que vinham se arrastando por uma
falta de diálogo sério, honesto e corajoso da Igreja e mesmo das religiões, desprovidas de vontade ou de instrumentos para analisar a
marcha da civilização tecnológica, da mundialização da economia
e da comunicação e também do erotismo.
Recusando a atitude de ressentimento, de denúncia e condenação generalizadas dos erros e desvios do “mundo moderno” e seguindo a inspiração de João XXIII, o Vaticano II chegou a ser uma
revolução primeiramente evangélica, e depois se estendendo ao
campo da ética pessoal e social. Deu grande relevo à busca de um
novo paradigma de ética sexual, em uma atenção lúcida e crítica
aos dados e ao sentido da antiga tradição moral, elaborada com rigor senão com rijeza no domínio conjugal e familiar.
A publicação de diários e memórias de grandes protagonistas
desta assembleia conciliar e, sobretudo das dezenas de imensos volumes das Atas Sinodais, em que se encontram de maneira completa a relação dos eventos e das intervenções das sessões plenárias,
das comissões e subcomissões, permitem hoje uma visão completa
292
da realidade conciliar em todas as suas fases e sob todos os aspectos
significativos.
No que concerne à ética e muito especialmente à ética sexual,
os estudiosos dispõem de toda a documentação para bem apreciar a
preparação e a realização do concílio. A preparação dos temas a debater pelos bispos nas sessões conciliares, que foram quatro, de-se
no bom clima do outono romano dos anos 1962-1965. Essa preparação, a cargo de comissões sob a responsabilidade da Cúria Romana e especialmente do Santo Ofício, foi muito bem coordenada
chegando a elaboração de textos deveras aprimorados.
Dezenas de projetos, já redigidos no estilo de constituições, decretos e declarações que só requeriam discussões e eventuais retoques e acréscimos, prenunciando assim um rápido acabamento do
concílio. Obedecendo, embora, às ordens de João XXIII, que só falava do projeto conciliar em termos de renovação, as comissões orientadas pelo Santo Ofício e pelo prefeito, o Cardeal Ottaviani, se contentaram de retomar as diretivas dos papas anteriores, especialmente
Pio IX e Pio XII, produzindo documentos em linguagem escolástica
e de um conteúdo totalmente tradicional, empenhado em confirmar e
corroborar para exacerbar as condenações do “mundo moderno”. Os
textos eram, aliás, cuidadosamente finalizados por “anátemas”, bem
cinzelados na forma do Concílio de Trento (1545-1563).
Esses projetos pré-conciliares são da maior preciosidade, pois
pelo seu teor e sua tonalidade nos mostram da maneira mais autorizada as posições e opções da Cúria Romana. Sendo deixados de
lado, apesar de a secretaria do concílio os ter proposto à discussão
da assembleia desde a abertura de Vaticano II (em 11 de outubro de
1962), vê-se claramente o que os Padres Conciliares não aceitavam
como ponto de partida, apesar do custo financeiro e humano que representavam os tais ante-projetos.
Dois deles interessam diretamente para a nossa reflexão atual
sobre a ética sexual. O primeiro propõe nada mais nada menos do
que a elaboração de uma “Constituição dogmática sobre a ordem
moral cristã”, insistindo logo de saída sobre o “caráter objetivo
293
dessa ordem moral”, o principal empenho do texto estando em bem
condenar e exorcizar – com fortes e repetidos anátemas, o “relativismo ético”. O segundo anteprojeto visava promulgar uma “Constituição dogmática sobre a castidade, o matrimônio, a família e a
virgindade”. A ordem moral e a moral sexual seriam, portanto, enquadradas e reguladas respectivamente por duas constituições dogmáticas. Pois se vê o caráter absoluto, o empenho de fechar o caminho a toda discussão nesses domínios que se apresentavam como
feixes de desafios e interrogações para o pensamento moderno dentro e fora cristianismo.
Sem ceder a qualquer relativismo, orientado por grandes líderes espirituais e intelectuais, o Vaticano II renunciou a pronunciar
definições e, sobretudo condenações dogmáticas, para dar assim o
maior relevo ao caráter absoluto e inviolável da vitalidade e da liberdade da inteligência e reconhecendo no diálogo, segundo a expressão de Paulo VI a “forma mais eminente” de buscar e propor a
verdade que a Igreja há de seguir14.
No que toca à ética sexual, a melhor síntese se encontra na
constituição pastoral Gaudium et Spes, sobre a Igreja no mundo de
hoje, promulgada como coroamento do concílio, em 7 de dezembro
de 1965. Interessam-nos diretamente: a introdução, a I Parte e muito especialmente na 2a parte, o cap. 1º: “Promoção da dignidade do
matrimônio e da família”.
Uma antropologia à luz da criação e da cristologia, no contexto
do mundo moderno, se torna o fundamento de uma ética da dignidade e dos valores universais, tendo sua fonte no amor, se traduzindo em diferentes formas de solidariedade e na responsabilidade,
que se abre aos modelos éticos de autonomia bem como a uma noção abrangente e bem elaborada consciência. À luz e no quadro
14. Tal é a posição de Paulo VI na Encíclica Ecclesiam Suam, de 6 de agosto de
1964, deveras decisiva para unificar a maioria esmagadora do concílio em torno
dessa atitude de confiança na inteligência e no diálogo bem informado, livre e
responsável.
294
desses valores humanos, em plena sintonia com os valores evangélicos, o Vaticano II esboça uma visão positiva e original de uma ética da sexualidade, que emerge, no entanto, em continuidade com as
formulações e tradições de uma moral do matrimônio e da família.
A raiz dessa originalidade, diga-se dessa singularidade do Concílio Vaticano II está nesta opção corajosa e discreta: sem relegar a
posição tradicional da procriação, como finalidade da sexualidade,
ele afirma a prioridade do amor, que há de preceder e acompanhar
todo exercício da sexualidade e ser o princípio animador da própria
fecundidade.
Na etapa pós-conciliar, este paradigma do primado efetivo tem
encontrado dificuldades de se traduzir em modelos concretos de
compreensão e de realização. O tema será aprofundado no cap. 10
sobre a ética familiar.
Alguns problemas concretos e atuais, vistos quase sempre
como “casos de consciência” poderiam ilustrar os desafios lançados hoje ao verdadeiro paradigma de uma ética humana, apontando
também para as hesitações de uma moral insegura ou apoiada no
fundamentalismo e no legalismo autoritário.
Feixe significativo de quiproquós
Está aqui uma simples ilustração da herança e da situação da
ética sexual, especialmente de inspiração religiosa. Ela pede um
empenho lúcido e corajoso para que o diálogo abra caminho a uma
ética universal, capaz de enfrentar os graves problemas humanos
da sociedade tecnológica e globalizada.
Com seu cortejo de morte e de desespero, o flagelo da Aids deu
de assolar o nosso país e o mundo inteiro. Essa terrível enfermidade
escapa ainda ao pleno controle da ciência e da medicina. E está desafiando, mais que tudo, nessa hora, a reflexão ética e a solidariedade humana.
Estão condenadas, de antemão, as meias medidas e as meias
palavras. A quem não sabe ou não pode ajudar, pede-se que pelo
295
menos não atrapalhe. São necessárias, aqui e agora, atitudes corajosas, criadoras e urgentes.
A solidariedade universal tem que abrir ou prosseguir três frentes de combate e de ação, a breve, a médio e a longo prazo:
• ela há de ir ao encontro das angústias dos que choram ou se escondem, tudo fazendo para aliviar ou, ao menos, minorar seus
sofrimentos;
• terá que mobilizar e mesmo agilizar recursos e pesquisas para
sustar a marcha da morte e acabar de vez com a epidemia;
• haverá de pôr em prática, já e sem tardança, medidas imediatas e eficazes para impedir a disseminação da morte. Pois a epidemia tende a acelerar seu ritmo em um sistema cumulativo de
contágio e transmissão.
Uma medida, urgente e imprescindível, se propõe hoje no mundo inteiro. Ela não se dá nem se pode dar como modelo ideal de intimidade sexual. Mas obedece aos imperativos da solidariedade. E
leva em conta os dados e limites da ciência e da técnica. É o uso de
preservativos, a que o nosso povo, no seu humor matreiro e comedido, deu o nome de camisinhas.
No entanto, a difusão das camisinhas vem sendo barrada por
equívocos lamentáveis. Há quem nelas veja e condene um meio anticoncepcional. Ora, na utilização das camisinhas, não se visa nem
se busca um método contraceptivo. É evidente, não são empregadas para evitar filhos nas relações entre homossexuais. E, de modo
geral, nessa campanha, elas não são aconselhadas aos casais fiéis e
que estão em condições de procriar.
As camisinhas são recomendadas e devem ser recomendadas
àqueles e àquelas que vivem na prática da promiscuidade sexual.
São homens e mulheres que já deixaram de lado o empenho de ter
filhos, nesse tipo de relacionamento. Para eles, aliás, procurar a
procriação, dentro dessa forma e desse quadro de vida, seria uma
irresponsabilidade criminosa para com os filhos e para com a sociedade.
296
Nem se diga que preconizar as camisinhas significa aprovar os
abusos sexuais e o clima de hedonismo ou de orgias que tornam necessário o uso desses preservativos (ainda uma vez, não da fecundação, mas do contágio da doença). É preciso estigmatizar vícios e
desordens, que comprometem a dignidade do homem e da mulher.
Mais ainda, os governos e a sociedade em geral não podem dissimular sua omissão no plano social, na indispensável educação e
promoção das responsabilidades, limitando-se às campanhas simplistas, do tipo: Não descuidem das camisinhas.
Tal é a grande e louvável inspiração da Igreja, quando apela
para a necessidade de uma doutrina moral sexual, ampla e bem
adaptada à mentalidade e à cultura de hoje. No entanto, há de ficar
bem claro. É absolutamente necessário e urgente reconhecer e proclamar: quem não pode ou não quer evitar a multiplicidade de parceiros sexuais e, sobretudo, quem escolhe viver na promiscuidade e
na prática indiscriminada da sexualidade cometerá crime muito
maior não usando preservativos. Pois assim se multiplicam atentados contra a vida e se espalham germes de morte e de desespero.
Cumpre prolongar a tradição moral, especialmente cristã, sabendo aplicá-la com discernimento em novos contextos culturais.
Essa atitude de fidelidade lúcida e criativa está pedindo uma reviravolta completa de alguns setores, até agora pouco atentos à complexidade desse problema. Eles têm que se afrontar com a questão
crucial: condenar de maneira radical e absoluta o uso e a difusão
das camisinhas não seria tornar-se cúmplice do pecado de homicídio? Mais ainda. Quando a morte se alastra em contágio crescente e
irresistível, deixar-lhe os caminhos abertos não seria perpetrar ou
aceitar um crime contra a humanidade?
Bem se vê, os desafios apresentados por uma moral casuística e
legalista como casos de consciência isolados estão a exigir uma posição ética global, mobilizando as consciências individuais, a opinião pública em seu conjunto e toda a sociedade como capacidade
de enfrentar, discernir e tentar solucionar os grandes problemas humanos em um mundo globalizado.
297
Em registro diferente e em outras proporções se agita hoje uma
questão que vem atravessando os séculos: a homossexualidade. Na
perspectiva da busca de uma ética humana mundial, a difusão universal de uma questão visando a natureza, o sentido, as formas de
realização da sexualidade se revela da maior relevância. Toda arte
e toda sabedoria dessa ética humana mostrarão sua eficácia encontrando e mostrando os caminhos de bem equacionar e enfrentar esses graves problemas humanos.
Homossexualidade, homotropismo, homoerotismo,
homofilia
O recurso à língua grega não causa nenhum transtorno. É o
que diz uma faladora personagem de Molière, pretensiosa e sexualmente envolvente. Aqui então essa fila de longos termos gregos
só visa chamar a atenção sobre a imensa complexidade desse
grande fenômeno humano, cultural, ético e atual que vem a ser a
homossexualidade.
Os laços que unem a uma pessoa do mesmo sexo, como, aliás, às
de sexo diferente assumem diferentes níveis de profundidade e de
qualidade afetiva. A reflexão ética começa por esse difícil empenho
de evitar a abordagem passional ou, pior ainda, a banalização de tudo
o que diz respeito à identidade e à dignidade do ser humano.
Ora a ética sexual pode ter hoje a felicidade de se aproximar
com mais segurança dos enigmas e do mistério que constituem a
sexualidade qual eixo e elã da formação da personalidade de cada
homem, de cada mulher. E, em consequência de uma melhor compreensão desse processo primordial conjugando personalização e
socialização, emerge a esperança fundada de se criar uma sociedade de gente livre, responsável e solidária.
A história da civilização e da cultura foi sempre imensamente
marcada pela presença, pela representação das cenas, atividades e
problemas sexuais, pela linguagem, pela preocupação, pelas aspirações e dramas envolvendo as coisas e os sonhos do sexo. Mas se há
298
uma continuidade dessa presença da sexualidade na história dos povos e das culturas, verifica-se uma ruptura, que se pode bem exprimir pelo binômio: repressão-emancipação. Salvo os casos de guerras, de revoluções políticas, militares, não há cortes violentos no fio
da história. Nota-se mais uma evolução, balizada por crises e rupturas revolucionárias. Fases de gestação, de amadurecimento, de desenvolvimento gradual são seguidas, em geral, por viradas espetaculares ou pelo menos mais fáceis de se constatar. É o que se passa na
história da sexualidade. Sempre presente, mas grandemente escondida, porque reprimida e recalcada. Ou simplesmente dissimulada.
Durante séculos, nos estudos de humanidades, os jovens se encantaram com os amores trágicos da Rainha Dido e do herói Eneias. Mas
não admiravam ou não questionavam o capricho e o carinho com
que o poeta Virgílio descreve o casal de gays, Coridon e Alexis.
Há umas dezenas de anos, uma professora de filosofia e de psicanálise intrigava seus alunos e depois seus leitores, pois é uma escritora respeitável, insistindo sobre a importância decisiva de bem
colocar uma questão como esta: “Sou eu homossexual?”15 É bom e
difícil começo, pois é a questão radical e crucial do ser, envolvendo a
pessoa, precisamente como sujeito não de uma frase, mas como sujeito da plena responsabilidade de sua vida em si e em relação com os
outros. É um erro grave abordar a questão se deixando levar por interesse, paixão ou preconceito. E é um crime das maiores consequências brincar com o que há de mais sério e fazer da sexualidade uma
orgia mesmo que seja apadrinhada por um turismo rendoso.
A questão: “sou eu homossexual” surge como um apelo à responsabilidade. Há de ser enfrentada com tranquila serenidade. De
início, ela fraterniza com outras interrogações desse tipo: sou sujeito à depressão, a crises de agressividade, de angústia, de anorexia,
15. Trata-se de Eliane Amado Levy-Valensi, que escreveu uma obra sugestiva,
articulando as contribuições da filosofia, da psicanálise e da clínica sobre Le désarroi autour de l’énigme de l’homosexualité. O livro é um desses convites vindos de uma experiência pluridimensional e apontando uma abordagem integral e
pluridisciplinar, longa, árdua, mas promissora.
299
de bulimia? Ou simplesmente só me atraem parceiros sexuais muito mais jovens ou muito mais velhos do que eu, ou de tal cor, tipo
ou anatomia?
Com efeito, a ética é a arte de enfrentar humanamente os problemas humanos. Sem respostas preconcebidas ou pré-fabricadas.
Sem a pretensão de encaixar todos os casos pessoais dentro dos
quadros de princípios abstratos. Sem ceder à tendência de culpabilizar ou de inocentar, logo de entrada, indivíduos, grupos ou categorias sociais.
Na verdade, sobretudo quando se trata da própria identidade
pessoal, a influência da mentalidade geral, sempre importante em
todos os tempos, reveste hoje uma importância decisiva, tanto mais
forte quanto passa despercebida. Assim, a questão da homossexualidade, bem como as demais interrogações sobre o sexo, se colocam hoje em um contexto cultural, marcado por longa história de
repressão e de luta pela emancipação.
Semelhante contexto pode dispor a preconceitos, oscilando entre os extremos. Seja, de canonizar toda tendência homossexual
como forma natural de plena realização ética. Seja de estigmatizá-la como perversão ou vício contra a natureza.
O discernimento ético pede atitude de vigilância e de crítica.
Recusa toda enfeudação em grupos ou movimentos que tendem a
isolar dados e valores dessa questão complexa, o que expõe ou até
leva a sustentar posições parciais e finalmente a atitudes de intolerância na defesa de meias verdades.
Na realidade, as disposições, inclinações e tendências sexuais
que um indivíduo experimenta em cada momento ou fase de sua
existência são radicalmente dependentes de sua história pessoal,
desde sua concepção, através de sua infância, adolescência, idade
madura e avançada. Atribuir sem exame acurado, a origem e a qualificação dessas disposições, homossexuais, por exemplo, a um só
fator, seria uma falta de responsabilidade e a fonte de erros no que
há de mais decisivo para a orientação de toda a vida.
300
A sexualidade parte de dados genéticos, naturais. Em geral, são
bem determinados sob o ângulo anatômico, bio-fisiológico e hormonal, porém maleáveis em seu desenvolvimento psíquico e afetivo. Ela evolui e amadurece em cada homem e em cada mulher,
através de um processo complexo e sujeito ao jogo de muitas influências. A realização plenamente madura e animada por um amor
generoso e criativo é o fruto de um belo e difícil trabalho de conhecimento e domínio de si, de sua história íntima e relacional. Esse
processo de livre aceitação e de construção de si, culminará finalmente na capacidade de se dar e de acolher o outro, como semelhante e como diferente.
O amadurecimento e a plena realização da sexualidade e do
amor serão assim um processo que põe em jogo a confluência e a
coerência de múltiplos elementos:
• O prazer, assumido em suas formas progressivas de realização.
• O amor de si, superando a fixação no egocentrismo e na busca
de satisfações solitárias.
• A estima e capacidade de amizade do semelhante, das pessoas do mesmo sexo, a homofilia. Esta supõe ou exige a apreciação, e mesmo a harmoniosa integração em si, das qualidades
características do outro sexo (feminilidade, masculinidade,
anima, animus).
• A estima e a capacidade de amizade do diferente, das pessoas
do sexo oposto (heterofilia). O que exclui o misogenismo ou o
machismo entre os homens; e a androfobia, a “alergia” pelos
homens que caracterizaria um desvio feminino.
• A heterossexualidade, a capacidade e a qualificação afetiva e
efetiva para a plena realização do casal humano, o homem e a
mulher, em uma união sexual corporal, no prazer, na afetividade, na ternura, no dom de si, na disposição de uma fecundidade
responsável.
De toda a evidência, a plena realização sexual emerge como a
mais nobre, a mais alta, a mais difícil das tarefas humanas, o resul301
tado harmonioso de uma educação precoce e permanente, sempre a
refazer ou a completar. É o difícil e único caminho da felicidade,
sempre exposto à concorrência desleal dos caminhos da facilidade.
Convém olhar a realidade com toda a coragem, considerando os
modelos concretos, especialmente a homossexualidade em sua dimensão social, nos movimentos de reivindicação que ela suscita hoje.
Aliando-se a diferentes formas similares de realização da sexualidade, a homossexualidade surge hoje como objeto e, sobretudo, como força animadora de reivindicação organizada e militante.
Esta visa enfrentar e dobrar as opressões e as discriminações, de
que foram, são ou seriam vítimas os gays e as lésbicas: qual minoria, excluída do exercício e gozo de seus direitos, à semelhança e
em solidariedade com as minorias raciais, étnicas, religiosas, sexuais (as mulheres), e outras.
Para apreciar esses movimentos, como todos os movimentos
atuais de reivindicação e de luta, a autenticidade responsável e democrática se concretiza no recurso leal nem sempre fácil a critérios
e exigências de ética pessoal e social:
• Assim, cumpre respeitar e fazer respeitar todos os direitos e
apoiar oportunamente os movimentos que os reivindicam dentro da legalidade.
• A liberdade e a privacidade na prática da sexualidade são direitos a salvaguardar em benefício dos homossexuais como
para todos os cidadãos. Na realização de manifestações, a legitimidade ética e democrática dos direitos não autoriza os
exibicionismos, os aliciamentos e explorações de menores.
Esses e outros tipos de desordens e crimes são interditos a todos, sem que os homossexuais tenham vantagens ou desvantagens nesse capítulo.
A organização e a mobilização dos gays e lésbicas, como todas
as formas militantes de pressão ou de conquista da opinião pública
podem comportar benefícios como prejuízos e inconvenientes para
os interessados, para terceiros e para a sociedade. Os benefícios
302
são, evidentemente, a defesa eficaz dos direitos dos homossexuais,
a mútua ajuda especialmente na busca de uma ética que salvaguarde os valores e direitos humanos fundamentais, como convém em
qualquer prática da sexualidade. Os inconvenientes ou efeitos negativos decorrem das próprias condições da sexualidade humana,
marcada pela fragilidade e pedindo apoio social.
Muitos poderão ser aliciados e confirmados na homossexualidade, mais por pressão ou sedução do que por uma convicção fundada e um discernimento seguro de sua sexualidade. A atenção a
esses efeitos perniciosos incumbem antes de tudo aos próprios militantes desses movimentos. A intervenção da autoridade só se justifica diante da violação de direitos, da perturbação da ordem e de
atentados contra a moral pública.
A viabilidade de uma ética humana universal em seu conteúdo
e mundial em sua extensão depende da capacidade das pessoas, dos
grupos, de toda a sociedade de bem colocar e enfrentar esses problemas radicais sobre a identidade, a plena liberdade de opção, e
sobretudo da coragem de buscar aceitar a verdade do ser humano
que é e vai sendo cada um na sociedade.
A sexualidade, encarada como um feixe de alternativas, que
geram incertezas e angústias, ou com que se brinca, se diverte, se
faz comércio ou espetáculo nas avenidas ou na mídia, constitui
uma grande senão a maior interrogação para o futuro da civilização
e mesmo da humanidade.
A viabilidade de uma ética humana, mundial, está condicionada à lucidez e à coragem de enfrentar com lealdade, na educação e
na comunicação, em uma reflexão pluridimensional e pluridisciplinar os grandes e delicados domínios da sexualidade.
“A mulher é o futuro do homem”
Este belo e cadenciado verso de Aragon (la femme est l’avenir
de homme), meditado, sonhado, cantado, tornou-se um slogan traduzindo o sentido e o elã da primeira das lutas da humanidade,
303
quando começou a se penitenciar de seus erros, de seus egocentrismos mesquinhos e destruidores.
A emancipação da mulher não é apenas a tardia reparação de
tremenda e desastrosa injustiça para com a metade senão mais da
metade do gênero humano.
É o bom começo da salvação da humanidade, o despertar da aurora de sua verdade primeira e a entrada histórica da autenticidade
ética no íntimo das pessoas, das relações ou entidades familiares e
sociais.
Se uma ética mundial, especialmente no domínio primordial da
sexualidade, se mostra viável é que já se conta com essa dupla aquisição decisiva e que tem a chance de se ampliar e aprofundar mais e mais:
• A primeira é que em regiões humanas primordiais vão emergindo umas tantas verdades fundamentais e mesmo fundadoras para
a formação de pessoas, para a construção de famílias e sociedades. É
uma convergência da sabedoria, do ensino e do testemunho de líderes espirituais indo de encontro ao que resplandece como o melhor
dos conhecimentos científicos e práticos sobre o ser humano. Os valores humanos, os direitos humanos fundamentais, apesar da futilidade arrasadora de uma parte da mídia, e malgrado a constatação da
imensa dificuldade de torná-los viáveis, seja na prática das pessoas,
nas atitudes e nos costumes, seja sobretudo nas relações e nas estruturas, nos sistemas da sociedade tecnológica e industrial.
• Mas, precisamente o lado complementar dessa ascensão da
consciência que a humanidade vai alcançando dos valores pessoais
e sociais está nesta capacidade de detectar e de analisar os atrasos
de suas posições, de suas apreciações e atitudes éticas do passado.
Que se pense na triste herança da aceitação tranquila da escravidão,
da colonização, das guerras, dos genocídios e holocaustos, das discriminações de toda espécie.
Nesse contexto de despertar cultural, ético e espiritual, nessa
marcha rumo a uma ética mundial, é que ressoa a canção da esperança em aliança com o repúdio dos desmandos multimilenares: “A
mulher é o futuro do homem”.
304
Hoje, como que fachos de luz se lançam sobre esses milênios de
erros, de buscas, de progressos, e sobre os séculos mais próximos da
atualidade. Estudam-se as mil e uma formas de preconceitos, de um
machismo persistente no lar, na profissão, nas artes, na sociedade. E
se toma consciência igualmente de como os grandes talentos, e mesmo os gênios, mestres em tantos campos da maior importância, careceram do mínimo de lucidez para bem compreender a igualdade humana resplandecendo nas diferenças de gênero e se afirmando na
vida do casal qual princípio e fonte primeira da felicidade e do êxito
em todos os projetos e todas as aventuras da humanidade.
O que é de mais interesse para uma visão renovada e um paradigma integral de uma ética sexual não se encontra tanto na comemoração desses deslizes históricos, e sim na esperança que brota da
retificação dessa memória coletiva. O que mais vale e importa é o
processo atual de tomada de consciência do passado que a humanidade pode ter e já está alcançando, reconhecendo os grandes valores e os direitos fundamentais, tão negligenciados ou espezinhados,
mas hoje surgindo como os princípios fundadores de uma ética
mundial, capaz de exorcizar preconceitos e discriminações de toda
espécie, a começar pela reconciliação essencial e fundadora que se
funda na emancipação da mulher.
No que toca especialmente à religião, seu futuro depende de
sua fé fundamental, do seu olhar contemplativo sobre o rosto paterno e materno de Deus. As religiões cederam e muito à tentação de
projetar em Deus uma imagem masculina. Não se trata, numa compensação descabida de lançar sobre Deus uma imagem feminina,
mas de reconhecer em seu rosto amoroso os traços femininos e
masculinos, maternos e paternos. Não seria uma ventura e uma responsabilidade de nossa época (moderna ou pós-moderna, segundo
os gostos) de rever a leitura da história, das religiões e dos livros sagrados, em parceria com a ponderação crítica de todas as heranças
culturais, científicas, artísticas e éticas?
Não faltem audácia e lucidez nessa tranquila, pacífica e democrática revolução humana e total, que apesar das lentidões e atrasos, sempre vai chegando em boa hora.
305
Ética sexual, paradigma integral e abrangente
Na perspectiva e no quadro dessa revolução geral, que corresponde a uma evolução universal e cumulativa, levando à emergência de uma ética mundial, será viável e terá pleno sentido o projeto
de uma ética sexual? Esse projeto há de realizar um paradigma integral, envolvendo, retificando e elevando todo o ser humano em sua
dimensão pessoal e social, bem como em sua historicidade, atenta
às etapas de seu desenvolvimento afetivo, intelectual e cultural.
Sem dúvida, na Igreja e na civilização em geral, sente-se hoje
grande necessidade e se mostra certo empenho em elaborar e acreditar semelhante paradigma integral e abrangente de ética sexual.
Talvez se tenha maior dificuldade em perceber a exigência e a viabilidade de modelos em sintonia com a cultura e as mentalidades
atuais, suscetíveis, portanto, de ser bem aceitos especialmente pelas camadas mais dinâmicas da sociedade tecnológica, que a própria tendência econômica incita ao utilitarismo e ao erotismo, com
seus desvios e desmandos.
Convém ter em conta que para a mentalidade geral e mesmo no
ensino corrente prevalece o paradigma moral que confere a primazia ao dever, à lei, à autoridade e à ordem, esta sendo entendida
como conformidade à lei. É a noção moral mais espontânea e mais
generalizada hoje e na cultura geral pelo menos no Ocidente. O que
está longe de significar que seja aceita e seguida. Na medida em
que parece opor obrigação e desejo, é evidente que não conta com a
simpatia, especialmente da parte mais jovem e dinâmica da sociedade moderna.
Ela encontrou uma expressão filosófica coerente acessível em
Emanuel Kant. Partindo dessa prática e dessa compreensão da moral da obrigação, o filósofo elabora uma ética do imperativo categórico em que integra os valores da liberdade, da dignidade, da racionalidade e da solidariedade. O apelo a esse feixe coerente de valores é da maior sabedoria. Mas conectá-los à noção de dever,
como núcleo de base da experiência moral e como evidência pri-
306
meira da razão prática era canonizar um tipo de tradição comumente aceita, mas exigindo precisamente uma crítica racional.
Aliás, no domínio religioso, se passava algo de parecido, pois a
cristandade traduzia simplesmente em termos de mandamentos, de
obrigação divina rigorosa as leis divinas, propostas primeiro como
dons antes de serem exigências da aliança, dons exaltados pelos sábios profetas da Bíblia, como manifestações do Amor Divino pedindo a resposta de amor: “Amarás de todo o teu coração”.
Sobretudo em sua instância primeira, em sua função de reger e
orientar essa primeira região humana da sexualidade, de suas pulsões e desejos primordiais, a ética tem que saber juntar a tendência
humana primordial à felicidade com os imperativos de uma normatividade intelectual, fundada na convicção racional, mas já em sintonia com as aspirações do coração e as primeiras experiências do
prazer. Por isso, o paradigma ético autêntico há de reconhecer o
primado do bem, do amor do bem, que na sua universalidade se
abre ao amor do outro como de si mesmo, assumindo a liberdade
em suas primeiras formas de emergência infantil, orientando-a a se
afirmar na responsabilidade. Essa orientação do desejo e da liberdade em amor responsável de si mesmo e do outro é um processo
educativo para a autonomia pela autonomia. O que significa partir
de uma primeira espontaneidade infantil à afirmação crescente de
uma autonomia racional, de uma espontaneidade superior, propriamente humana.
Temos aqui o campo primeiro e privilegiado da ética autêntica
que se afirma como uma ética dos valores e das virtudes. Os valores, o reconhecimento do outro como sujeito humano a respeitar e a
promover, a vida e a felicidade a partilhar no dom recíproco e jogo
harmonioso do prazer, tais valores constituem a face objetiva do
bem humano, que é a dimensão comunicável da ética, e objeto de
uma educação para a liberdade, a autonomia e a responsabilidade.
A esse aspecto objetivo corresponde o lado subjetivo da ética, o desenvolvimento das virtudes, que interiorizam os valores, toda essa
rede de bens humanos que aprimoram a pessoa e a sociedade. A
307
primeira dessas virtudes será o amor humano, o amor que corresponde à orientação harmoniosa desse primeiro elã humano, que é a
sexualidade. O amor virá harmonizar o indivíduo, o pequenino ser
humano no seu primeiro desabrochar bio-psíquico pedindo socialização, e virá criar laços de compreensão, de aceitação, de integração no ambiente familiar, educacional e social.
Bem se vê que o paradigma de uma ética sexual integral e abrangente supõe uma compreensão do ser humano em sua complexidade
e em sua realização progressiva, em correlação com um processo
educativo atento a essa visão antropológica. Mais ainda, ele significa
e exige um paradigma ético de família, de educação, da integração à
sociedade moderna, levando em conta, entre outras, a influência universal e constante da grande escola que é hoje a mídia.
Em consequência, esse paradigma formulado em sua expressão geral de perfeição será como um ideal exigindo a formação de
modelos concretos, cuja validade e viabilidade dependerão da
apreciação dos contextos culturais e das condições criadas pelos
sistemas familiares, educativos e sociais.
Quando visamos, portanto, as condições de praticabilidade da
ética sexual e da pedagogia condizente com a elevação e as exigências de seus valores, podemos distinguir as qualidades de um paradigma ideal e as condições ou situações concretas de sua realização
na história e na prática do dia a dia:
• Paradigmas ideais. Eles resultam da consideração e da articulação de todos os valores do amor, do prazer, da fecundidade, da felicidade dos casais, das famílias, do bem e da educação. E muito especialmente, todo o jogo ético depende da condição de que estão
sendo bem compreendidos, definidos e se mostram possíveis e viáveis aqui e agora em sua integralidade, em sua hierarquia. No decorrer da história esse paradigma aponta para uma utopia mística,
espiritual, ética que atrai e seduz pela sua beleza e inspira caminhos
e modelos praticáveis dentro dos limites dos contextos culturais.
• Os modelos bons, em que se realizam os valores, sem a perfeição de sua integralidade e hierarquia, sem que nenhum seja, no en308
tanto desrespeitado. Que se pense em modelos históricos privilegiando a transmissão da vida, a procriação e a educação dos filhos,
sem pôr em relevo a igualdade dos parceiros na convivência sexual
e familiar, sem privilegiar o primado do amor, insistindo em reger a
intimidade dos esposos em termos de “deveres conjugais”. Por vezes se opõe simplesmente esse modelo a outros mais recentes que
valorizam mais o amor, o prazer e busca de emancipação. O discernimento se faz grandemente necessário, pois a opção preferencial
por uns tantos valores pode levar a olvidar a necessária presença de
outros, para que se vise e obtenha na medida do possível a integralidade e a harmonia da ética sexual.
• Modelos do mal menor. São modelos falhos, porque parciais
na escola dos valores ou na sua compreensão e na hierarquia. Privilegia-se, por exemplo, o amor, entendido apenas como partilha do
prazer “enquanto dura”, relativizando-se a importância dos filhos e
sua educação pelos pais no seio da família. Semelhantes modelos
parciais, sem dúvida frequentes, hão de ser pontos de partida dentro
da realidade para um progresso no sentido de uma ética sexual, que
pelo amor e os demais valores humanos da sexualidade vá abrindo
as portas para modelos mais adequados e felizes16.
Na perspectiva de uma ética mundial
Em síntese, para as consciências pessoais, para a Igreja, para
sociedade, para o conjunto da cultura, pedindo ser mais bem informada por um conhecimento científico, pluridisciplinar, a ética sexual surge hoje como um conjunto de certezas e um feixe enorme
de questões.
A primeira é uma certeza negativa no plano das consciências, a
qual nos interessa mais que tudo. Tem-se a prova provada de que
certo tipo de doutrina moral, tido como tradicional, transmitido
pela família e pela religião, não faz a felicidade de ninguém, se so16. É o que se verá ainda no cap. 9.
309
brevive é por imposição e na medida em que inculca ou encontra
ainda um espaço de medo e culpabilidade.
Essas formas de falsa culpabilização e agravação indevida da
visão religiosa do pecado são danosos resquícios de atrasos da
consciência moral. Hão de ser extirpados até com certa urgência,
exigindo, no entanto, uma pedagogia lúcida e paciente, pois não se
desfazem em um dia velhas muralhas seculares ou milenares fundadas e edificadas pela interiorização de aglomerados de preconceitos, interditos e tabus.
Ajunte-se que há experiências um tanto positivas, mas ambíguas, pois a ética aí permanece sujeita a influências restritivas de
pressões e interesses utilitários. Assim, em setores mais conservadores da sociedade, há quem se refugie na busca de uma moral tranquilizante, mas que está longe de chegar a ser pacificante, transformadora e criativa. Sob a rubrica de família tradicional, em toda a
sociedade persiste um mínimo de prática moral, também forçada,
pois é uma forma de conformismo social, na linha do utilitarismo
individual e coletivo. Mesmo para quem se coloca na simples perspectiva dos negócios há comportamentos que são chocantes, digamos obscenos. É a hora de criticar e superar as ambiguidades.
Na perspectiva e na esperança de uma ética mundial, se faz necessária uma grande coragem, exige-se muita lucidez dentro das religiões, especialmente no seio das confissões cristãs. Condenam-se
com razão os excessos do chamado relativismo moral. Com o mesmo rigor é preciso exorcizar os diferentes tipos de absolutismo, de
fundamentalismo, de legalismo autoritário, de tradicionalismos infundados.
Pois, a um olhar mais profundo, bem parece que o ser humano
persiste em se mostrar essencialmente ético. Em meio a situações
de incertezas e ambiguidades, estão presentes os princípios e valores humanos de autenticidade, de amor, de responsabilidade e respeito. Sobretudo para as jovens gerações, não se reconhecem aí
fundamentos ou promessas de uma ética sexual à altura de seus sonhos de felicidade?
310
CAP. 8
JUSTIÇA E SOLIDARIEDADE: VALORES
E VIRTUDES MODELADORES DA PESSOA E
DA SOCIEDADE
A justiça designa a virtude e o valor, de caráter humano, universal, realizando, em toda comunidade autêntica, a sintonia da ética e do direito. Ela é chamada a retificar e harmonizar toda a vida
pessoal em sua dimensão de relações com o outro e com a sociedade, constituindo-se em feixe de normas e de orientação solidária
para a própria sociedade. Faz ver e reconhecer a dignidade do outro, todos os valores e direitos que decorrem dessa dignidade; e
leva a buscar, em prioridade, o bem comum da sociedade, pelo qual
se tende à paz e à felicidade para todos.
Sem dúvida, em suas realizações históricas, a justiça, valor e
virtude, se diferencia nos vários modelos de comportamentos éticos e de normas jurídicas. No entanto, considerada em seu núcleo
como primeira aspiração e experiência moral e jurídica primordiais,
surge qual centro e inspiração primeira de todo projeto de uma ética
mundial.
No decorrer da história, a justiça quase sempre vem incorporada
com mais ou menos vigor e rigor às instituições e práticas religiosas.
Assim, na Bíblia, para a religião e o povo, a aliança é como que um
laço de justiça de qualidade divina e humana, pois liga o céu e a terra,
impondo-se aos indivíduos, às famílias e comunidades.
Dando-se como plena realização dessa aliança e prolongando
muito especialmente a mensagem dos profetas, o Evangelho anun311
cia e propõe o dom do amor perfeito e universal, a caridade, que
impele em primeiro lugar à prática da justiça, dom divino e virtude
humana primordial, estendendo-se a todos os planos da vida: nas
relações pessoais, familiares, profissionais e sociais.
O desafio de uma ética universal para o mundo globalizado se
afirma antes de tudo como a compreensão partilhada e a prática
efetiva da justiça estabelecendo e estreitando os laços de convivência das pessoas, consolidando as instituições e o bom funcionamento dos sistemas jurídicos, políticos, econômicos e culturais que
tecem o grande sistema da moderna sociedade tecnológica.
A justiça no quadro dos valores e das virtudes
A justiça se insere no quadro tradicional da ética como virtude
moral, cardeal, ao lado da prudência, da força e da temperança. E,
para a boa compreensão cristã, ela se vê especialmente assumida,
ativada e consolidada sob a orientação e animação das virtudes teologais: a fé, a esperança e a caridade. Essas energias místicas elevam sua vocação à transcendência divina.
No plano propriamente ético, tem uma afinidade com a prudência, virtude da reta decisão que a guia para que se afirme qual valor
e virtude de integração humana, o elo lúcido e benfazejo entre a
vida pessoal e a social.
Sem implicar rigor ou rijeza, para além das acomodações,
compromissos ou meias medidas, a justiça se apresenta inicialmente como prática e exigência de justeza, buscando tudo e só o
que convém às ações e relações entre seres humanos, que se reconhecem e aceitam em sua dignidade singular. Daí, a inteireza do
dinamismo que dela decorre e também que a torna possível. Para
que seja viável, para que possa instaurar a retidão em todas as
ações, omissões e relações das pessoas, mais ainda em toda a vida
e a ordem da sociedade, é necessária uma retidão geral, um triunfo
constante sobre as paixões, as ambições e os interesses nos indivíduos e nas coletividades.
312
Portanto, a justiça resplandece como a lei imanente de perfeição, de plena bondade se realizando no seu domínio próprio das
ações e relações humanas, exigindo como condição sine qua non
de sua presença transformadora o equilíbrio harmonioso, passional
e afetivo de todo o ser humano. Ela supõe ou exige que os interesses, ambições, paixões sejam moderados e regulados pelo conjunto
das outras virtudes morais. A justiça emerge assim como uma conquista, como um triunfo constante sobre todo apetite ou desejo que
torne o homem escravo das coisas e do seu egocentrismo.
Segundo a definição corrente, já vulgarizada entre os juristas
romanos, a justiça consiste “na vontade habitual e constante de dar
ou assegurar a cada um o que lhe pertence” (Unicuique suum). O
que significa: garantir todos os direitos para todos. Qualificada de
“vontade habitual e constante”, a justiça é definida e caracterizada
como virtude, como triunfo do bem humano interiorizado em uma
opção racional e livre, dotada de uma força espiritual. Assim, não
somente a justiça não significa a conformidade forçada à lei ou à
sociedade – o que é uma exigência mínima da ordem social – mas
ela é uma vontade, um verdadeiro querer, brotando da convicção,
superando os obstáculos internos e externos, tornando-a, portanto,
uma qualidade habitual, permanente e constante.
Na concepção jurídica (romana), a justiça está em correlação à
ordem social. Ubi societas, ibi jus: “Onde há sociedade, aí está ou
deve estar o direito”. Então “cada um”, sujeito e objeto do direito,
designa o membro da sociedade, o cidadão. Na visão ética, “cada
um” designa a pessoa, cada ser humano. O direito, objeto da justiça, decorrerá então da dignidade da pessoa; e a totalidade dos direitos, a assegurar a todos, forma o bem comum, que será o objetivo
primordial visado pela sociedade.
A justiça é dotada de um dinamismo constante, precisamente
porque ela acompanha o dinamismo que constitui, estrutura e faz
agir o ser humano. Ela cobre todo o campo das atividades e instituições sociais. Ela é sempre onipresente, polissêmica e polivalente. Sempre há de ser também cultivada como qualidade base. E
313
será reivindicada, podendo correr o risco de ser contestada e mesmo ocultada.
Uma das maiores fraquezas da sociedade moderna está no triste
fenômeno de a justiça militar pela injustiça, do direito oprimir ou
descurar, neste terrível paradoxo da perversão a mais radical das
instituições e dos sistemas jurídicos e políticos. Tal o grande desafio para a sociedade quando quer tomar o caminho da justiça rumo
a uma ética humana universal.
Eclosão da justiça no processo humano de personalização e
socialização
Olhando a questão de maneira mais radical, o ser humano, em
sua vida pessoal e social, se vê e se debate, natural e culturalmente,
em uma situação dialética de justiça e injustiça. Vai se realizando
como uma aventura mais ou menos transparente ou escondida, jogando com a inclinação, ao menos germinalmente “natural” à justiça, quando dá lugar à razão, ao sentido do outro, buscando igualdade e solidariedade.
Mas também, pode se deixar resvalar para a injustiça, a discriminação, o desconhecimento do outro em sua dignidade e seus direitos. E, aí, em fases de decadência, de egocentrismo concentrado,
tanta gente chega mesmo a descambar na construção ou na aceitação de uma sociedade segundo o modelo do utilitarismo individual
ou corporativo.
Assim, sob o ângulo ético, na história de cada pessoa, de cada
grupo, de cada povo e de cada civilização, observa-se a constante
oposição, mais ou menos ostensiva ou disfarçada:
• da justiça, que se afirma, mais visivelmente, qual exigência de
equidade, de igualdade razoável na partilha dos bens, das vantagens e cargos;
• da ambição desmedida, a desigualdade macia e maciçamente
imposta pelos costumes, pela mentalidade e pelos sistemas socioeconômicos e políticos.
314
Para bem analisar a justiça em suas formas concretas de realização, convém distinguir e analisar esses dois aspectos conexos
quais duas faces desse dinamismo virtuoso: a experiência e a elaboração da justiça.
Essa experiência se desdobra em diferentes etapas e aspectos
que geralmente assume e percorre toda atitude ética: o sentido, a
prática, o valor e a virtude.
A justiça vai do sentido à prática, no plano da experiência comum. Ela se eleva até a qualidade de virtude e de valor, na medida
em que se afirma e aperfeiçoa. É verdade que está sujeita a experiências negativas em um e outro campo da experiência: falta de
sentido da justiça engendrando prática da injustiça. De maneira semelhante, a injustiça pode se tornar um vício ou antivalor habitual e
constante na vida pessoal ou social.
Igualmente, a elaboração da justiça assume as modalidades
seja de um sistema, seja de uma doutrina, um e outra estando sujeitos às deformações da ideologia.
O sistema será mais teórico ou permanecerá mais prático. É o
que se manifesta especialmente no campo jurídico, onde se organiza o sistema judiciário, como quadro formador da sociedade. Bem
se vê o risco da ambiguidade, pois o sistema tende a satisfazer os
interesses dominantes que nem sempre coincidem com o bem geral
e com a garantia de todos os direitos para todos os indivíduos, todos
os setores e camadas da sociedade. Tal é talvez o maior desafio que
enfrenta a justiça que se queira colocar a serviço de uma ética universal em seu conteúdo e em seus destinatários ou protagonistas.
No domínio do pensamento, especialmente da reflexão ética, a
justiça se desenvolve sob a forma de doutrina, conjunto de princípios, normas e modelos de comportamento. É a instância cultural da
vida e da organização da sociedade, em si mais suscetível de maior
abertura crítica, embora permaneça sempre exposta à dominação
dos sistemas, sobretudo do sistema econômico. Pois, então, a sociedade se constitui na desigualdade e tende a mantê-la sob forma
315
de discriminações e exclusões, portanto de injustiça estabelecida
nas próprias instituições.
Em oposição ao sistema e à doutrina da justiça, vê-se surgir a
ideologia, a utilização visível ou camuflada da justiça para cobrir e
legitimar interesses particulares e desvios da coisa pública.
A busca da justiça tem sempre algo de uma luta pelos direitos.
Como o conjunto da ética social, a justiça emerge e avança à luz e
pela energia de uma ética da inteligência. Na realidade concreta de
toda coletividade, a compreensão integral e a elaboração rigorosa
da doutrina da justiça se afirmam quais projetos de rara dificuldade. As experiências e as intuições de base são universais, pedem,
no entanto, uma clarificação e uma justificação deveras laboriosas,
dado o quadro social de utilitarismo dominante e fecundo em mentalidades e ideologias sustentadoras da desigualdade e da concorrência desleal.
A promessa, a necessidade urgente da justiça sofre o retardo vindo de constantes distorções. Ajudado por uma parte positiva da comunicação globalizada, o povo vive das grandes intuições, buscando, esperando fidelidade ao sentido, à doutrina e ao sistema em que
se concretiza a justiça. O poder e os poderosos tendem a fazer da própria justiça o instrumento de seus interesses e de sua dominação.
Hoje mais do que em qualquer momento do passado, bem conhecer e fazer conhecer a justiça é a primeira tarefa de uma práxis e
de uma ética humana, que se universalize e se imponha em consenso comum para o bem da humanidade.
Do sentido à elaboração da justiça
A reflexão ética ganhará em fecundidade e em eficácia pedagógica, procurando desvendar e analisar inicialmente a primeira experiência da justiça, a mais universal e a mais simples. Ela acaba de
ser caracterizada como o “sentido” da justiça. A partir dessa primeira experiência, será possível alargar a observação e aprofundar
a reflexão, no plano da ética em geral e dos diversos campos em
316
que o direito se deve afirmar: os sistemas econômicos, políticos e
culturais, em sintonia e sob o influxo do próprio sistema da justiça,
o sistema jurídico.
Convém relembrar a acepção ética do termo “sentido”. Fala-se
em sentido ético da justiça como se destaca o sentido do ritmo, da
harmonia, da beleza no plano estético, ou se aponta para o sentido
da honra, da honestidade, do respeito, do dever, no campo da vida
moral. O sentido designa a primeira percepção de um valor que
funda um domínio do agir humano.
Essa percepção é inicialmente um conhecimento vivido, não
ainda elaborado em noção precisa. Assim, o sentido da dignidade,
da responsabilidade e da solidariedade emerge como o despertar da
consciência, enquanto apreciação prática da necessidade e dos caminhos do agir. Ele brota, se afirma na consciência de alguém que
ainda não pensa em termos de valores ou princípios éticos.
O sentido faz a conjunção de conhecimento e de afetividade,
reagindo espontaneamente diante de um objeto, de uma ação ou de
uma situação. É um julgamento de valor, revestindo as formas mais
simples e concretas. “Isso é inaceitável” “É admirável!” “É assim
que se deve sempre fazer!”
Toda a vida moral repousa sobre o sentido ético.
E toda a formação moral e espiritual tem no sentido ético o seu
ponto de partida e a sua fonte. Sem ele, a obrigação vira uma imposição. A fidelidade degenera em conformismo.
O supremo desafio lançado à sociedade de hoje, empolgada
pelo predomínio do utilitarismo individual e corporativo, está no
risco senão no fato de se volatilizar o sentido da justiça no cadinho
superaquecido da ambição e do interesse globalizados.
O sentido da justiça se constitui e se afirma primordialmente
como o “sentido do outro”. Na evolução, na marcha para a plena
humanização de cada indivíduo e de toda sociedade, emerge e há
de dominar a percepção, a aceitação do outro. O outro surge e há de
ser reconhecido não apenas na sua diferença do eu que o considera,
317
mas na sua originalidade singular, no seu valor incomparável de ser
humano. O “outro” passa a ser visto e acatado como “gente”.
O sentido ético da justiça terá, portanto, de assumir de início
uma espécie de militância contra os falsos pressupostos da mentalidade egocêntrica:
• o “outro” não é: uma “coisa”, a ser julgada útil ou inútil;
• não é uma imagem, uma forma, uma aparência, fonte de “prazer” ou desprazer;
• não é uma “mercadoria”, uma chance de lucro ou uma ameaça de
despesas, oferecendo ou exigindo um preço, mais ou menos alto.
• não é um agente ou uma “força de produção”, uma mão de
obra mais ou menos eficiente;
• não é um rival ou parceiro aproveitável (dentro dos bons projetos de negócio, de sucesso, de carreira).
Na sua verdade e densidade humanas, à luz do sentido ético da
justiça:
• o “outro” é: reconhecido e aceito como uma “pessoa”;
• como sujeito e projeto de plena realização humana, de bondade, de felicidade;
• de liberdade, de autonomia, de destino próprio;
• como identidade, formada de valores atuais e virtuais, a respeitar e a promover.
O sentido ético da justiça terá que triunfar de uma ambiguidade
inicial, dominante na família e na sociedade na medida em que elas
cedem ao egocentrismo econômico e cultural. Na vida real, o “outro” surge diante do “eu”, na melhor das hipóteses, como figura
ambivalente.
Ao nascer, o bebê humano vem como um feixe de pulsões, com
uma capacidade crescente de gozar e partilhar o prazer e de ir sendo
acolhido como “gente”, como aquilo que mais tarde saberá se chamar “pessoa”. Essa pequenina cria humana é a própria ambivalência à cata de carinho, de afeto, de atenção, de cuidado, e logo, de
318
consideração e respeito. Pode e deve ser ajudado a realizar esse
projeto de pessoa que ele é. E está ameaçado de ser eliminado como
pessoa por muita família que já se despersonalizou em certas formas modernas de coletividade que massificam e se massificam.
Para proteger a infância e a adolescência é bem possível que se
tenha de recorrer à justiça como sistema, hoje de reserva para quando falha a primeira instituição em que o amor faz brotar, de maneira
eminente, o sentido acolhedor da justiça.
O sentido da justiça virá instaurar a igualdade humana, fazendo
com que a pessoa acolha a pessoa, em sua dignidade, acima de toda
utilidade, reconhecendo, no entanto que o ser humano é um sujeito
de direitos e valores. Terá, sem dúvida, consciência de que a pessoa
é igualmente objeto apreciável segundo os critérios dos interesses,
das vantagens, da produtividade, comportando aspetos de mercadoria e de preço.
Mas a justiça há de fazer triunfar o critério da dignidade em si
mesma e na apreciação das demais qualidades acidentais da pessoa.
Desprezar ou menosprezar essas qualidades de beleza, eficácia, capacidade de trabalho, redundaria em desprezo da própria pessoa
que as possui. O sentido da justiça é o sentido do outro, reconhecido e aceito na verdade, na realidade de seu ser, na totalidade e na
hierarquia dos seus dotes pessoais.
Todos estes são apreciados em sua relação com a dignidade da
pessoa.
Por isso o sentido da justiça inaugura uma atitude ética que se
há de desenvolver e aprimorar a ponto de desabrochar na perfeição
de uma virtude e de prevalecer com um valor humano absoluto, que
guia e domina toda a existência, chegando a se afirmar como modeladora da família e da sociedade.
Justiça, elã universal e transformador
No empenho de compreender e elaborar a noção da justiça, verifica-se uma primeira lei ou tendência interna de sua presença,
319
qual energia transformadora da existência, visando aprimorar o
quadro do ambiente humano que ela ocupa. Seu domínio tem assim
um caráter universal, que decorre da exigência igualmente universal de humanizar, de reconhecer e de implantar a qualidade de dignidade humana a todos os campos de atividades, de comunicação e
de influência.
Pormenorizando e aprofundando a análise, se constata que esse
domínio da justiça se estende às ações e às relações, às situações e
às instituições, o que se traduz em um elã permanente de dar às pessoas a qualidade de uma virtude e à sociedade o valor de uma plena
humanização, na superação racional, livre e generosa da estreiteza
de todo egocentrismo individual ou social.
• As ações, domínio primordial e distintivo da justiça.
A ação designa a atualização e o empenho da liberdade, fonte e
determinação da responsabilidade, em relação ao resultado ou o
efeito produzido pelo agir. A ação visa o outro, assegurando ou violando o que lhe é devido, praticando, portanto, a justiça ou a injustiça. A ação é considerada aqui em sua dimensão transitiva, causadora de bem ou de mal a outrem. A ação puramente imanente, os pensamentos e os sentimentos, só entram no campo da justiça na medida em que se orientam para o bem o mal do outro. Constituem então
raízes de injustiça, tornando o ser humano “adúltero” ou “assassino” “em seu coração”. Mas a injustiça não foi efetivada, a conversão se passará no coração. Tal a diferença entre pensar ou falar mal
de alguém. O falar mal, a injúria, a ofensa, a calúnia, exigem uma
reparação real, pois são injustiças realmente cometidas. Concebida
no coração, a justiça ou a injustiça se realiza plenamente na ação.
Pela ação justa ou injusta, a pessoa é um princípio de bem ou de
mal para outra ou outras pessoas. Tal é a diferença profunda da justiça e das virtudes de domínio de si e sobre as “paixões”, as virtudes
cardeais de temperança e de força (ou fortaleza). Estas estabelecem
a harmonia, a paz interior, a plena posse de si, que possibilita a prática da justiça e do amor. São indispensáveis ao dinamismo da jus320
tiça, à possibilidade mesmo de sua realização. Porém não constituem o seu domínio próprio, definido como o campo das ações (de
caráter transitivo).
• Essas ações se estendem e se estabilizam, constituindo rede
de relações, de situações de instituições, estruturas ou sistemas.
Assim, o domínio da justiça compreende todo o campo da sociabilidade, desde as relações interpessoais até a constituição da sociedade. A justiça é princípio, a lei imanente da estruturação e do
funcionamento de cada unidade e de todo o corpo social; ela confere ao processo de socialização a sua qualidade propriamente humana, orientando-o e amoldando-o segundo critério do bem de cada
pessoa, do respeito e da promoção de todos os direitos para todos.
Perfeição da justiça, virtude e valor
A justiça é uma virtude, uma qualidade moral, uma perfeição a
que se chega a partir daquele primeiro dado que é o “sentido da justiça”: sentido do outro a reconhecer, aceitar, respeitar e promover.
Ela é igualmente um valor, uma inspiração, uma motivação,
um critério que preside à formação e ao desenvolvimento humano
da sociedade.
Como virtude, a justiça se define como a vontade firme, eficaz
e permanente de respeitar e promover o bem geral, a dignidade humana de cada pessoa, bem como o conjunto hierarquizado dos direitos dos indivíduos e dos grupos, nos diferentes domínios das
ações, relações, situações e instituições.
Como valor, a justiça se caracteriza como: a qualidade e o bem
humano eminentes que a sociedade há de reconhecer para ser plenamente humana, e não degenere em um simples aglomerado, unido
pelos interesses ou mantido pela pressão ou pela repressão do poder.
Como virtude e como valor, a justiça forma uma totalidade
complexa e coerente de elementos éticos, cuja harmonia, os interesses, instintos e paixões tendem a quebrar ou distorcer.
321
Virtude e valor, a justiça supõe e exige o acesso a um alto grau de
perfeição propriamente humano no plano do conhecimento, da afetividade, do querer e da sociabilidade. Sob o ângulo genético – ético,
sociológico e psicológico –, o sentido, os julgamentos e comportamentos de justiça surgem com a tomada de consciência do sujeito e
das relações intersubjetivas. A gênese da justiça coincide com a
constituição de um “Nós”, no qual o “Eu”, o “Tu”, o “Ele”, “Ela” são
reconhecidos e aceitos em sua originalidade e inter-relação. O que
supõe um processo bem-sucedido de personalização e socialização.
Esse processo implica o superamento do egocentrismo, no desenvolvimento tanto do indivíduo, quanto da família, dos grupos e
da sociedade.
Para bem determinar o campo integral e concreto da justiça,
bem como suas espécies, convém considerar suas propriedades.
A justiça se afirma e distingue por um feixe de propriedades ou
de qualidades que lhe manifestam a originalidade, assim como o
duplo caráter: de um valor universal destinado a penetrar e retificar
a sociedade em seu conjunto e em cada um de seus setores, e de virtude geral e especial, que qualifica e eleva a totalidade da pessoa:
• pois em sua universalidade abrange ou exige a retidão de todo
o agir humano;
• determinando de forma específica o conjunto dos direitos e
deveres nas ações, relações e organizações da vida social.
Essas propriedades da justiça, assinaladas em sua substância
pela sabedoria ética tradicional de Platão, Aristóteles, foram transmitidas à cristandade por Agostinho e Tomás Aquino, tornando-se
tema clássico, que hoje revela sua atualidade e igualmente a maior
dificuldade de realização na vida familiar e profissional, e mais
ainda nos diferentes sistemas sociais, especialmente no sistema
econômico.
Constituem uma meia dúzia de qualidades e exigências que se
atribuem à justiça, uma nota de perfeição que dela fazem o valor primordial para o aprimoramento da pessoa e da sociedade e a virtude
322
que supõe ou reclama a plena harmonia da pessoa para que seja a
protagonista de tal perfeição no agir. No entanto, no sentir comum e
muitos dos discursos sobre a justiça essas marcas de excelência são
distorcidas em formas de rigor, senão de rigidez e dureza, como outras tantas características da justiça. Em contraste com a delicadeza
do amor, da misericórdia, da generosidade, a justiça teria o rosto fechado e carrancudo do credor cobrando ou esganando o pobre devedor. Projeta-se sobre a mais nobre das virtudes a caricatura do carrasco punidor ou a triste figura fantasiada de um direito penal exacerbado. As meias verdades são as mais danosas mentiras, pois são as
mais capciosas e se tornam as mais generalizadas.
As exigências próprias à justiça não rompem sua afinidade com
a solidariedade e com a paz a que encaminham da maneira mais
acertada e eficaz.
• A justiça é essencialmente a virtude ou perfeição ética da
ação, à qual ela confere a retidão, não consistindo em estabelecer o
domínio e a harmonia das paixões, o que ela pressupõe e postula
para bem realizar seu objetivo próprio.
Sob o ângulo estritamente jurídico, não se pergunta quais as
disposições e que sentimentos animam interiormente o devedor
quando paga exatamente a dívida. O mesmo se diria no contexto de
uma moral da obrigação, a qual impõe mandamentos e intima interditos, dando-se por satisfeita vendo-se rigorosa e estritamente obedecida. Aqui vai a diferença de uma ética dos valores e das virtudes. O cumprimento exato da justiça, a retidão da ação brota da retidão da pessoa, de sua disposição de um livre e bem-querer. Por
isso, a justiça, amor do bem, vontade firme de fazer o bem é a fonte
da verdadeira solidariedade e da paz autêntica e duradoura. Semelhante perfeição da justiça, valor e virtude do bom relacionamento
e da boa organização da sociedade é o fundamento, a raiz verdadeira, profunda e estável de uma ética mundial hoje.
• A segunda propriedade da justiça está em que ela visa e realiza a eficácia na prática do bem, em relação ao outro. Ela reconhece
e cultua a alteridade, como medida de sua própria identidade como
323
pessoa que é um projeto responsável, cuja liberdade se afirma plenamente pela busca e realização do bem, visado e atingido em toda
a sua verdade e pureza no outro, no que lhe pertence ou é devido em
razão do que ele é, de sua dignidade e de tudo o que direta ou indiretamente se liga a essa dignidade.
Essa propriedade, essa qualidade e exigência que se atribui à
justiça, faz dela o grande corretivo permanente de todos os desvios
do egocentrismo que surge espontaneamente como afirmação da
identidade de um. Mais ainda, essa força retificadora e salvadora de
nossa autenticidade se torna mais necessária e urgente com o desenvolvimento de uma civilização que dá uma prioridade efetiva à
concorrência e ao reconhecimento do outro à luz da utilidade que
ele representa como parceiro no mundo da economia.
• A terceira característica da justiça é que se empenha em determinar e assegurar o que é devido ao outro como uma obrigação estrita, dando-lhe ou restituindo-lhe todo o seu direito e só o seu direito. A justiça não é um movimento de dó ou um sentimento de compaixão. O que constitui um campo de virtudes maravilhosas, mas
que se enraízam na atitude fundamental de reconhecer e tratar o outro na sua dignidade singular e estabelecer a sociedade nessa verdade primeira de uma solidariedade surgindo e se articulando a partir
da igualdade essencial de todos os seres humanos.
• Em estreita coerência com as qualidades precedentes, é a exigência do que se poderia dizer a “justeza” no plano ético: querer e
estabelecer em todo o rigor a medida exata do que é o direito devido na realidade das coisas, das ações e das relações interpessoais ou
sociais. É a plena verdade entendida como a objetividade, a apreciação vinda de uma inteligência que só busca o direito e da opção livre e decidida a executá-lo de forma estrita, rigorosa e total.
• Finalmente busca, a justiça, em sua qualidade de valor e virtude a perfeita retidão do agir em relação ao outro e para o bem comum; tem a característica mais geral que é manter ou promover
todo o direito, o direito pleno e perfeito, a igualdade nos intercâmbios entre os membros da sociedade assim como na organização e
no funcionamento do próprio sistema social.
324
Da forma mais sucinta aí fica sintetizada essa doutrina clássica
das propriedades ou características da justiça destacando-a como valor e virtude da ação, da alteridade, do dever estrito, da objetividade e
da igualdade. Essa simples evocação visa, antes de tudo, estabelecer
uma referência precisa para a apreciação da urgência e da viabilidade
dos direitos humanos que são hoje como o rosto da justiça, especialmente da justiça social, à procura de caminhos de realização no seio
da sociedade globalizada e dos sistemas que a constituem.
Espécies de justiça1
Esse paradigma da justiça e particularmente da igualdade que
ela visa estabelecer comporta diferentes modelos de compreensão
e de aplicação. Surge assim o universo da justiça com suas espécies
distintas e conexas entre si, pois forma uma espécie de rede da retidão ética, tecida pela multiplicidade de direitos a serem assegurados às pessoas e a se inscreverem nas próprias instituições e na realidade jurídico-política dos sistemas da sociedade.
A noção da justiça e as distinções de suas espécies se definem e
esclarecem pela consideração do todo e das partes, da sociedade
como totalidade formada de pessoas, que, no entanto não são simples partes, mas constituem, de maneira original, um todo em si.
Pois, têm sua autonomia, sua dignidade a respeitar e seu destino a
realizar na racionalidade e na liberdade que lhe são próprias.
Assim distinguem-se as várias modalidades ou espécies essencialmente diversas de justiça. Pois elas realizam a natureza e as
1. Uma das melhores exposições sobra a justiça e suas espécies nos é dada de maneira lapidar e luminosa por André Franco Montoro, na segunda parte de sua obra
magistral Introdução à Ciência do Direito, sob o título: “O direito como justo.
Axiologia jurídica”. O autor trata da justiça sob o aspecto objetivo e subjetivo, o
que corresponde na reflexão aqui desenvolvida à justiça como valor e como virtude. Cf. a obra citada, em Editora Revista dos Tribunais. 1ª edição de 1968. 27ª
edição, revista e atualizada, 2008, 686 p. Tema indicado, p. 157-288.
325
propriedades dessa virtude, seu objetivo de construir e manter o
universo do direito no seio da sociedade, mas assumindo formas
também em si essencialmente diferentes de definir o direito e a
igualdade dos direitos a garantir a todos.
Podemos esquematizar assim o campo concreto e os modelos
de diferenciação das espécies da justiça, mediante a consideração
das relações das partes em um todo, das partes entre si ou em sua referência ao todo, aqui ao todo que é a sociedade.
O primeiro campo, o mais amplo e significativo vem a ser o domínio das relações que as partes de um todo social mantêm entre si,
em toda sorte de intercâmbios e em todos os planos da vida humana, fazendo-se mutuamente o bem ou o mal. É o campo da justiça
comutativa. Aqui e nos domínios seguintes, quando se fala de “partes” do todo social entenda-se que se trata de partes individuais ou
coletivas.
O segundo domínio designa a imensa rede das relações do todo
com as partes, de qualquer tipo de sociedade com os elementos
(pessoas ou grupos de pessoas) que o compõem. É a esfera da justiça distributiva.
Finalmente, um terceiro domínio é tecido pelas relações das
partes para com o todo social, donde emerge o conjunto de responsabilidades e deveres dos elementos constitutivos de uma sociedade em relação à forma e ao funcionamento dessa sociedade. É a esfera ampla, difícil até mesmo de precisar, que a ética clássica nomeava como justiça geral, total ou legal, e que corresponde substancialmente à justiça social na formulação da ética moderna, desde a primeira metade do século XIX.
As duas primeiras são formas particulares e mesmo espécies de
justiça, no sentido estrito; têm campos específicos e formam a virtude própria, a virtude cardeal da justiça, ao lado da prudência, da
força e da temperança.
326
A justiça comutativa: estrito rigor do direito e dever de
restituição
O termo justiça “comutativa” parece ser uma inovação de Santo Tomás de Aquino, ao comentar e prolongar a ética de Aristóteles. O filósofo falava da justiça nas “comutações” ou intercâmbios
costumeiros entre pessoas, sobretudo nos negócios. O apelo a essa
modalidade mais frequente de ações e relações, do tipo de compra e
venda, tinha um caráter exemplar, e ocasiona mais de um equívoco.
Daí, de maneira corrente, mas inexata, define-se a justiça comutativa como a justiça entre indivíduos. Além deste campo mais
simples e cotidiano, a justiça comutativa é chamada a apreciar e
guiar todos os protagonistas e todos os tipos de ações e relações em
que surgem de modo absoluto direitos bem determinados a serem
garantidos ou a serem reparados se forem violados. Assim, essa espécie rigorosa e mais que valiosa espécie de justiça rege as relações
entre pessoas, famílias, grupos, sociedades, até entre as nações.
Foi o que ficou bem elucidado, sem chegar a ser praticado, no
contexto dos descobrimentos e da colonização da América e da
África. No que toca à América, merecem hoje a maior atenção as
atitudes e os estudos realizados pelos grandes mestres da Escola de
Salamanca como Francisco de Vitória e Domingos Soto e mais ainda Bartolomeu de Las Casas. Eles souberam prolongar e desenvolver as doutrinas de Aristóteles e mais ainda de Tomás de Aquino,
sobre os imperativos inexoráveis da justiça (comutativa). E passaram a aplicá-las na determinação do dever rigoroso e incontornável
de restituição dos bens roubados e de reparação dos danos causados
pelos povos colonizadores aos povos colonizados. Para Las Casas,
para o julgamento ético, no correr da história esses delitos não
caem em prescrição.
Portanto, o que distingue e define essencialmente a forma primeira e fundamental da virtude e do valor da justiça, a justiça comutativa vem a ser o caráter absoluto do direito e do sujeito desse
direito.
327
Ela determina o que e a quem é devido um direito estrito.
Daí a exigência rigorosa e imprescritível de restituição ou de
reparação que ela impõe a quem a viola. O dever da restituição ou
reparação se impõe a todo aquele ou aqueles que cometeram a injustiça ou detêm o bem alheio de modo indevido.
A justiça comutativa visa respeitar o direito estrito, aquilo que
é devido em razão do que a pessoa é em si mesma, do que ela fez,
do que mereceu em bem ou mal. Ao lado dessa dimensão propriamente pessoal, o conteúdo da justiça comutativa e do dever absoluto que impõe assume também um aspecto material, é um conjunto
de coisas, de dados reais, são os bens que pertencem ao injustiçado,
bens materiais, culturais ou espirituais, encarados no plano da vida
individual ou social. O que se diz da “pessoa” vale para grupos ou
sociedades de pessoas: famílias, empresas, escolas; sem excetuar
regiões, povos, nações, etnias, setores inteiros de uma sociedade,
visados e ofendidos em suas diferenças de classe, de sexo, raças,
religiões e culturas.
Em consequência, ao olhar para o violador da justiça e responsável por sua reparação, o dever de restituir pode ser isolado ou solidário, de forma simultânea ou sucessiva ou supletiva. O mandante
e/ou o executante do crime ou do dano; os ajudantes ou cúmplices,
por ação ou omissão, são total ou proporcionalmente responsáveis
pela restituição ou reparação, na medida (total ou parcial) em que
participaram do mal feito. Cinco caluniadores que juntos tivessem
prejudicado alguém devem – todos juntos e cada um de per si –
desmanchar ou tudo fazer para desmanchar o prejuízo causado.
A exigência radical e absoluta da justiça se afirma desde que alguém toma conhecimento de estar detendo o alheio mesmo sem
culpa sua. A detenção ou guarda injustas do alheio reclamam de
forma imperativa e imediata a restituição, sem prejuízo para o restituidor, se ele é inocente.
Por outro lado, é imprescindível ter sempre em vista a dimensão ética e não apenas jurídica da justiça comutativa. Ela se realiza
plenamente no plano da ação e da efetivação dos direitos, mas ela
328
começa por animar o querer e a intenção, sendo uma virtude praticada ou violada já no “coração”, no íntimo de quem pensa, deseja,
quer ou planeja o mal, ou mesmo se alegra com o mal feito a outrem
indevidamente. Assim, a difamação se torna efetiva e exige reparação, quando se exterioriza em palavras ou gestos, mas já é uma falta
interior contra a justiça em quem em pensamento tem uma estima
falsa e infundada do outro.
Esse tecido de bondade, ligando as pessoas pelo que têm e são
de mais íntimo e profundo constitui o consenso verdadeiramente
humano, capaz de dar ética à sociedade, especialmente à democracia que, para além das imposições e repressões mesmo legais, surge
qual uma forma eminente e livre de solidariedade.
A exigente e delicada justiça distributiva
A justiça distributiva considera a relação do todo, do conjunto
que é a própria comunidade dos bens e dos encargos a partilhar,
bem como do responsável ou dos responsáveis por essa partilha,
que terá uma característica de ser proporcional.
• Ela se realiza de maneira eminente na sociedade, mas também
tem seu campo nas diferentes formas de comunidade (empresa, escola, família). Suas qualidades e exigências são ainda maiores e
mais fortes na Igreja e nas comunidades eclesiais.
• De si, a justiça distributiva visa a estabelecer uma igualdade
proporcional de bens e encargos, levando em conta o que é devido
aos componentes de um todo social, evitando a discriminação das
pessoas ou grupos. Mas ela inclui frequentemente em si a justiça
comutativa, implicando o dever de restituição. Essa integração da
justiça comutativa na distributiva se realiza sempre que os bens a
distribuir são direitos estritos e determinados dos membros da coletividade aos quais se destinam. Assim, por dever de justiça distributiva, o chefe, o superior ou o responsável de uma nomeação para
um cargo falta à justiça distributiva preferindo os menos aptos (por
serem seus parentes, por exemplo). Mas se os preteridos têm esse
329
direito por concurso ou outro título legal, há falta também de justiça comutativa, há dano a reparar no campo ético e mesmo jurídico,
quando as leis em suas disposições cobrem de maneira adequada os
campos das exigências éticas.
Em uma consideração mais ampla, a saúde ou a autenticidade
de uma sociedade, mais ainda de uma democracia, dependem da
presença do sentido, da compreensão clara e objetiva da justiça distributiva e de sua influência eficaz e constante nas diferentes instâncias dos sistemas políticos, econômicos e culturais.
É da justiça distributiva que decorre a inspiração corretiva contra os excessos de uma justiça comutativa, que se faz guardiã patrimonial de riquezas, de latifúndios e privilégios, em detrimento da
dimensão social da propriedade e da indispensável democratização
da economia, da educação, da cultura e da comunicação.
Enquanto valor e virtude da partilha universal do direito, a justiça distributiva atua na abrangência ilimitada da justiça social.
Da justiça geral e distributiva à justiça social
A emergência da justiça “geral” é bem significativa, pois traduz fecundidade, a energia da justiça que visa bem determinar a noção e os modelos operacionais do direito, mas igualmente, por um
dinamismo imanente e constante, tende a se realizar na totalidade
diversa e complexa do corpo social. Na medida em que ela se faz
presente nas consciências e é realmente acolhida no consenso social, a justiça, valor e virtude da plena retidão ética, assume o caráter de universalidade, de energia total visando impregnar e transformar o conjunto da sociedade.
Ela visa manter ou promover no corpo social as condições de
viabilidade da justiça comutativa e distributiva; e, sobretudo – o
que é seu domínio específico – orientar e organizar a sociedade de
maneira a assegurar todos os direitos para todos, o que vem a ser a
expressão concreta e sempre atual do bem comum.
330
Uma passagem, um salto qualitativo marcou a consciência da
humanidade, no século XIX, quando a qualidade humana da sociedade passou a preocupar os líderes do mundo do trabalho, da cultura
e da religião. Foi o momento feliz em que o “social” surgiu como o
desafio, como portador do projeto de retificar e humanizar o mundo
da economia, da política, da cultura, da educação e da comunicação.
Em um empenho não apenas de simplificar o vocabulário, mas
de melhor atender à força evolutiva da ética como presença e energia impulsionadora da humanidade em marcha na corrente da história, integraremos a antiga e venerável justiça geral na moderna e
dinâmica justiça social.
No entanto, não se há de olvidar que a designação de justiça social surge no calor do capitalismo industrial, acrescentando determinações e todo um dinamismo renovador (da sociedade) que não
se encontrava explicitado na virtude geral, formulada em termos
mais gerais e atemporais. Ela era mais objeto de ensino, sendo por
vezes enaltecida nas cátedras universitárias, sem se arriscar a descer às ruas e se tornar a bandeira hasteada pelas mãos calejadas do
povo sofredor.
Ao concluir este eito de nossa reflexão, a justiça social aparecerá
como o dinamismo dos direitos humanos fundamentais, como a virtude e valor, sementes de uma ética mundial para o mundo globalizado.
O universo virtuoso das finezas e harmonias da justiça.
Um outro aspecto da fecundidade da justiça merece destaque.
Tanto mais que foi objeto mais da insistência da ética clássica do
que do pensamento moderno ou pós-moderno. Convém relevar
todo um com conjunto de virtudes que têm afinidade com a justiça,
mas não realizam as propriedades rigorosas que essa virtude fundamenta nem guardam o seu caráter estrito. Chegam a certo tipo de
perfeição superior, porém em um modelo de busca de fineza, de
harmonia nas relações, sem visar uma total igualdade, nem prescrever uma medida estrita no cumprimento dos deveres.
331
São virtudes modestas, diríamos humildes, pois partem do sentimento de superioridade ou reconhecem a transcendência que envolve os domínios ou os protagonistas das relações que elas visam
qualificar ou aperfeiçoar. Prolongam, pois, a justiça, mas sem pretender manter o rigor de seus imperativos éticos.
Elas são estudadas por Santo Tomás de maneira ampla e cuidadosa em suas noções, em seu conteúdo e sua conexão2. Aqui o mestre medieval segue e supera Aristóteles pelo esmero minucioso de
tudo definir, explicar, justificar e articular. Para evidenciar a unidade e a coerência desse universo virtuoso, são chamadas “anexas” à
justiça. São virtudes que merecem o nome de sociais, pois são qualidades éticas, chamadas a aprimorar as relações da vida em sociedade, tendo em conta as condições de desigualdade dos seres humanos na família e na sociedade, onde há laços de dependência, de
superioridade e inferioridade, ligando autoridades e súditos.
• Assim, são as virtudes de religião, de piedade (pátria ou familiar), de respeito, de obediência, de gratidão, de resistência (ao
mal, à injustiça, sobretudo socialmente imposta).
Essas virtudes sociais não realizam a noção plena de justiça,
não em razão de uma inferioridade, mas de uma certa superioridade
ou transcendência, exigindo mais do que o estrito direito, sem deixar de incluí-lo, sempre que ao objeto dessas virtudes venha anexo
um dever de justiça.
Ao invés, certas virtudes sociais excedem o campo da justiça,
dada a amplidão de um domínio e de um dever que não estão abrangidos no estrito direito das pessoas visadas.
Assim, a veracidade, a afabilidade, a liberalidade e a equidade são virtudes sociais em afinidade com a justiça, sem realizar a
noção estrita e da justiça. Não implicam, por exemplo, o dever da
restituição, a não ser que, por seus efeitos ou consequências, te-
2. Cf. Suma Teológica, II-II, q. 80-120.
332
nham atingido o campo da justiça. Tal seria o caso de uma mentira
(contra a veracidade) que tivesse comportando uma calúnia ou uma
injúria, o que deveras exigiria uma reparação.
• A justiça social. Igualdade e solidariedade na sociedade.
Definimos assim a teologia moral social ou a ética social cristã,
insistindo sobre sua originalidade específica, ao mesmo tempo que
temos consciência de que ela é uma parte da teologia em sua função
moral ou prática. A teologia moral em sua dimensão social é a elaboração rigorosa e operacional do saber ético, sob a inspiração e a
luz da Palavra divina, visando orientar o agir cristão – em comunhão com todos os membros da sociedade – em vista da plena realização humana e harmoniosa das pessoas e da mesma sociedade.
A ética social de inspiração cristã visa o estudo e a mobilização
oportuna e eficaz dos recursos da cultura e da técnica para promover
a retidão da justiça e os laços da solidariedade, nas pessoas, nas relações, nas instituições, dentro do contexto histórico em que se vive.
Essa realidade complexa será compreendida e vivida com mais
ou menos perfeição através da história. Notar-se-á particularmente
que a responsabilidade ética das pessoas, em relação à orientação e,
sobretudo à constituição da sociedade, será muitas vezes falha ou
ausente mesmo na cristandade.
Caridade, energia mística animadora da justiça
A falsa interpretação da perfeição da caridade levou e leva aos
grandes erros teóricos e práticos. A caridade tomaria o lugar da justiça, relegando-o ao plano leigo ou profano da organização da sociedade. A caridade seria chamada a instaurar a união imediata
com Deus e a reservar à plenitude escatológica a realização da
mensagem profética de justiça e de paz.
Por outro lado, o próprio Jesus não teria declarado que o seu reino “não é deste mundo?” E não teria assegurado “pobres sempre os
tereis entre vós?” E não se teria desinteressado da justiça, procla333
mando que não lhe compete julgar das contendas e processos de justiça?3 E o Apóstolo Paulo não propõe o ideal escatológico de “usar
deste mundo como não o usando verdadeiramente” (1Cor 2,29-31)?
Essas interpretações parciais senão tendenciosas de algumas
passagens, isoladas de seu contexto se tornaram lugares comuns
em alguns setores do judaísmo, e de sua compreensão do messianismo; foram orquestradas em certas correntes filosóficas dependentes de F. Hegel.
Elas não são apenas graves incompreensões da mensagem
evangélica. Na medida em que penetram as mentalidades, se tornam verdadeiras pragas, induzindo a privatização dos valores do
Evangelho, gerando ideologias conservadoras e o pietismo individualista, bem como a utilização do cristianismo pelos regimes exploradores e opressores do povo.
A compreensão integral da mensagem evangélica em sua totalidade, em seu contexto profético e na perfeição radical do amor
que inspira, se poderia condensar nas proposições seguintes:
• Jesus recusou toda vinculação de sua mensagem, de seu reino e de sua pessoa com qualquer projeto particular, de ordem política, sobretudo reivindicativo, ao mesmo tempo que proclamava
a exigência da justiça e da solidariedade universais; o que significa que seus discípulos terão que se empenhar concretamente, de
maneira responsável e com todo discernimento, em cada momento da história, segundo os imperativos, as possibilidades e os meios disponíveis em cada conjuntura, em cada período e em cada região em que viverem.
• O Evangelho, o reino, a comunidade da salvação não se podem identificar com nenhum sistema, regime ou projeto temporal,
social, econômico ou político. Mas exigem a busca de justiça e de
solidariedade em todos os sistemas, regimes ou projetos socioeconômicos, políticos e culturais.
3. Cf. Jo 18,36; 12,8; Lc 12,14.
334
• A universalidade do amor não é abstrata, porém concreta, isto
é, ela haverá de se traduzir em formas concretas, adaptadas e ajustadas aos tempos e lugares.
• As promessas escatológicas e a tendência para a sua plena
realização definitiva, longe de implicar uma alienação e um absenteísmo quanto às tarefas terrestres, exigem uma antecipação da justiça e da paz, como inauguração efetiva embora parcial e provisória
do reino.
“Cidadão do céu” e “cidadão da sociedade terrestre”
Quando as comunidades cristãs começam a se difundir e se
veem na situação de enfrentar os desafios do mundo greco-romano,
o Apóstolo Paulo, em sua visão pluricultural, sintetiza o modelo do
ser cristão no mundo. A partir e dentro da justificação divina, o
membro da comunidade eclesial, longe de se eximir ou alienar da cidade ou do Estado, é intimado a se empenhar em praticar a justiça
humana na sociedade: “Dai a cada um o que lhe é devido” (Rm 13,7).
A visão social do Novo Testamento não guarda mais as perspectivas teocráticas provisórias da Antiga Aliança. Indo bem na esteira do exemplo e do ensino de Jesus, a comunidade da salvação se
separa da sociedade civil.
O cristão viverá, assim, uma dupla forma de solidariedade: a
comunhão, a “koinonia” dos bens divinos (1Jo 1,3; Fl 3,20), e a associação política, feita de sinceridade, de lealdade, de serviço público (dito aqui “liturgia”), conjunto de comportamentos que se estendem à realidade concreta dos bens e das necessidades temporais,
dentro de uma partilha, que a todos aproveite.
Essa partilha de direitos, de bens e de encargos se deve realizar
com justiça, equidade e solidariedade, tanto na comunidade eclesial
como na sociedade civil.
O retrato exemplar da comunidade eclesial nos é dado em Atos
2,42- 47; 4,32-35; 5,12-16. “Um só corpo e uma só alma”, essa
igreja das origens “não tem necessitados em seu seio”. Essa consta335
tação bem parece evocar a condição do povo bíblico segundo o
ideal proposto pelo próprio Deus de Israel, para o “ano de remissão”: “Assim não haverá necessitados em teu meio” (Dt 15,4).
O Apóstolo Paulo enuncia o princípio de base: “Há de haver
comunhão no domínio espiritual e no material” (Gl 6,6; Rm 15,27).
Não resta dúvida, há de haver uma forma mais eminente de justiça e solidariedade dentro da Igreja, entre seus membros e nas relações entre estes e os pastores. Mas, longe de atenuar a necessidade
da justiça na sociedade civil, essa mensagem a torna mais urgente.
O cristão, em consciência e em virtude de sua adesão ao Evangelho
se vê intimado com mais insistência e por um título novo, por motivo de caridade, a praticar a justiça, a cumprir os deveres de cidadão
e a trabalhar pelo bem da coletividade e pela garantia e promoção
de todos os direitos para todos.
Tal é o significado profundo do retrato ideal do cidadão, esboçado pelo Apóstolo Paulo, após ter evocado as grandes exigências
da caridade evangélica. A imagem minuciosa e caprichada do “cidadão cristão”, em Rm 13, vem coroar o quadro geral dos comportamentos e relações da caridade, amplamente desenvolvido no cap.
12. O encadeamento do texto manifesta a ocorrência de uma ética
integradora da fé, da caridade e da justiça.
A caridade inclui a justiça como exigência primordial. Tal é o
ensino fundamental, constante e universal do Novo Testamento.
Ela é “plenitude” (pléroma), porque impele à prática perfeita da lei,
ao “amor do outro”, como princípio de retidão, de busca prioritária
do direito e do bem do outro.
Essa doutrina prolonga e leva às suas últimas consequências a
mensagem profética (evocada acima, no cap. 1). Ela é proposta
com força e nitidez em todas as correntes, tradições e etapas da
transmissão da mensagem do Novo Testamento.
Será do maior proveito seguir e analisar o ensinamento de base
que mantém uma plena coerência em juntar o sentido de Deus e o
sentido da justiça, em destacar a eminência da caridade que vem de
Deus e encaminha para Deus, mas precisa enquanto desperta e
336
guarda uma atitude de atenção, de cuidado, de serviço, de amparo a
todos os necessitados. Assim vem caracterizado o comportamento,
a doutrina, e muito especialmente a pedagogia ética do próprio Jesus que se mostra empenhado em libertar a religião de um confessionalismo estreito, de uma espécie de elitismo clerical, beneficiando fariseus e mestres da lei, para aprofundar e alargar a visão da fé e
do culto, no sentido do amor universal. Esse amor começa pelo respeito dos direitos e da extensão desses direitos às pessoas e camadas sociais discriminadas e excluídas.
Assim nos evangelhos sinóticos as sentenças lapidares, luminosas do Mestre Jesus retomam e põem em todo destaque os oráculos dos profetas bíblicos, marcando bem que a verdadeira religião,
a “única religião que Deus quer” tem como característica primeira
o amor, o cuidado e o serviço efetivo dos pobres, do “próximo”, entendido como o outro que aí está ao lado, necessitado, sofredor e
oprimido. Por essa antologia da “misericórdia”, da imitação do
Amor Divino criador e salvador, não viria o Evangelho ao encontro
do que há de mais excelente nas religiões e de mais central e urgente na aspiração planetária de uma ética mundial?4
Essa mensagem essencial, visando abrir caminho à autenticidade da religião e da ética, de início se concentra nas denúncias não
do judaísmo, mas dos abusos da Lei e dos Profetas. No prolongamento desses profetas, a pregação primeira de Jesus proclama a absoluta incompatibilidade entre o Reino de Deus e a injustiça, pormenorizando com vigor a radical oposição evangélica ao mau uso e
à concentração das riquezas e ao desprezo dos pobres, excluídos e
marginalizados:
4. Essa antologia sobre a inspiração e o princípio fundador da religião recolhe os
ensinamentos de Jesus nos evangelhos sinóticos, por exemplo, em Mt 22,34-40;
Mc 12,28-34; Lc 10,25-28; torna-se insistente, quase redundante na mensagem
de João: Jo 13,34-35; 15,12; 1Jo 3,23; e se concretiza no ensino de Paulo: Rm
13,8-10; 1Cor 13,1-13.
337
O esquecimento e, mais ainda, a recusa do primado da justiça e
da fraternidade são apontados e estigmatizados no Evangelho como grande e, mesmo, o primeiro obstáculo à entrada no reino, que é
a presença ativa e transformadora do amor de Deus no mundo e na
história5. Essas condenações inexoráveis visam as injustiças e mais
ainda as “falsas justiças”, que vem a ser a utilização ideológica da
religião em proveito da injustiça6:
É nesse sentido amplo e profundo que entendem as sentenças
que balizam as origens e a marcha do Evangelho e da Igreja Apostólica: “Ai de vós, ricos!” Tg 5,1-6; Lc 6,24-26. O meio vital cultural e espiritual dessas “maldições”7 nos ajudam a bem compreender
o sentido da religião, nomeadamente dos Evangelhos em sua relação, não com o problema da propriedade e dos proprietários considerados isoladamente, mas sim com a riqueza como força social,
como poder usurpando ou manipulando outros setores senão o conjunto da sociedade.
A “pleonexia”, a concentração da desigualdade, em
oposição à solidariedade universal
Tal é a formulação ética, sintetizada no NT e elaborada especialmente por São Paulo.
O que se opõe mais direta e frontalmente ao Evangelho é a cobiça, a ganância, o apetite de indivíduos e grupos de querer “sem5. Uma simples amostra de algumas passagens significativas: Lc 16,14-15; 19,31;
Mc 12,40, seguido da perícope Mc 12,41-44; a comparar com Lc 20,47; e Lc
21,1-4; Mt 23,23 (= Lc 11,42).
6. No contexto dessa condenação das “falsas justiças”, é muitíssimo significativo
que Jesus retome e atualize o clamor dos profetas iniciado por Oseias (Os 6,6), no
começo de sua pregação evangélica (em Mt 9,13; 12,7).
7. Tg 2,1-9; 1Cor 1,26s. A comparar com Is 5,8-25. Os cristãos “ricos” não podem dominar e impor sua marca na orientação da Igreja do Amor universal, a qual
afirma esta universalidade opondo-se à dominação dos poderosos e marcando sua
preferência pelos pobres, pelos necessitados e desamparados, dentro de um tipo
de sociedade da desigualdade e da exclusão.
338
pre mais para si”, em detrimento dos outros e do bem comum. Esse
vício tem um nome próprio, “pleonexia”, que tentamos traduzir
como: “ambição desmedida”, “querer ter e poder sempre mais”.
“Pleon” quer dizer “mais”. “Exia” significa a “posse”, a “apropriação das coisas”. Assim se caracterizam a mentalidade, a atitude, o
comportamento, as instituições e os sistemas visando buscar, de
maneira constante e de todo jeito, ter sempre mais.
Para o Novo Testamento, portanto, e especialmente para o
Apóstolo Paulo, está aí a oposição radical à justiça em sua acepção
geral como a falta de retidão em todo o ser humano e em seu sentido particular de virtude que assegura todos os direitos para todos.
Ela se condensa nessa “pleonexia” e na perversidade dos praticantes dela. Há todo um feixe de textos que apontam para esse vício capital, estigmatizando-o nessa sentença do maior rigor: “A pleonexia, essa cobiça de possuir sempre mais: é a própria idolatria”8.
Aqui se encontra a condenação antecipada, porém formal do
sistema concentrácionário que caracteriza a globalização econômica atual e o tipo de sociedade que a sustenta e é por ela sustentada.
Tal é a conclusão que se impõe:
• Um sistema socioeconômico e político de tendência concentracionária e levando a maioria do povo à exclusão, está impregnado dessa terrível “pleonexia”, a idolatria prática, pessoal e social,
que se opõe frontalmente ao Evangelho.
Significativa emergência histórica da “justiça social” como
valor ético e jurídico da Modernidade
De toda evidência, a compreensão da ética social, sobretudo
em sua acepção ampla, mundial, dependerá mais do que tudo da in8. A pleonexia é uma noção de base na Bíblia e na ética clássica que, no entanto,
não tem merecido a devida atenção, sendo ocultada na medida de sua presença no
processo de corrupção do mundo globalizado, pouco advertida e estudada. Eis os
textos em que a pleonexia vem estigmatizada: Lc 12,15; 1Cor 6,10; Cl 3,5; Ef
4,19; 5,3; 5,5.
339
teligência que se tem do “social”, e bem precisamente dos laços
que ligam a responsabilidade de cada pessoa ou coletividade a cada
uma das formas que reveste o “social”.
É um campo ético dotado de complexidade e coerência. As
múltiplas realizações e acepções do “social” se escalonam e se dispõem dentro da existência dos seres humanos e da história das sociedades. Elas guardam certa ordem e coerência em razão da referência ao duplo princípio de unidade: a própria pessoa e a sociedade. A
pessoa é toda ela e por si mesma ordenada a viver e agir em sociedade, embora tenha uma finalidade que transcende a sociedade.
Esta é composta de pessoas, que ela não absorve nem mesmo diminui, mas visa a promover e a desenvolver.
Pode-se falar de uma primeira instância do “social”, de maneira ampla, universal na abrangência de seu conteúdo. Toda vida humana tem uma primeira dimensão social, pelo fato de que o ser humano pertence à sociedade e à comunidade, vindo delas e a elas estando incorporados. Toda falta pessoal por mais íntima que seja,
atinge a dignidade e o bem da humanidade no próprio culpado, sem
falar das consequências e repercussões sobre os outros. Nesse primeiro sentido, toda ação e toda a ética têm uma dimensão social indissociavelmente ligada à dimensão pessoal.
Uma segunda instância se precisa e restringe, realizando-se nas
relações “curtas”. A expressão, cunhada por Paul Ricoeur9, designa
as relações interpessoais, diretas. Nessa acepção, a lei fundamental
do amor ao próximo faz com que toda a vida e toda a ética tenham
uma dimensão social, pois normalmente cada um está envolvido
em uma rede de relações com o outro.
No entanto, nesses dois sentidos anteriores, não se falará de ética social, pois não há distinção a fazer ou problemas específicos
que exijam uma atenção e uma análise, além do que pede a responsabilidade global de toda a vida moral. O dado deveras importante
9. Em seu livro História e verdade (Histoire et vérité, 1950).
340
a salientar é a consciência que cada ser humano há de ter e que é cobrada com mais insistência e rigor quando se trata do cristão. Ele
“não se pertence” (Rm 14,7-8; 1Cor 3,21-23). Em nenhum momento, ele vive só para si.
Quando alguém se valoriza, consigo e em si eleva o mundo.
Quando se avilta, consigo e em si ultraja a humanidade.
Um terceiro aspecto ou terceira instância do social vem a ser as
relações “longas”.
Ainda aqui a expressão é do filósofo citado. Trata-se das relações que se inscrevem nas mediações, mais ou menos densas ou estáveis, que formam o tecido da sociedade ou pelo menos do grupo.
São relações que têm certa consistência e pedem um cuidado especial, para serem retas e capazes de ajudar o próximo. Pois, do contrário, oferecem uma forma nova de atingi-lo ou ofendê-lo. Essas
ações se inscrevem nos sistemas sociais, adquirindo assim uma
maior eficácia na linha do bem ou do mal.
A quarta e última modalidade ou patamar do “social”, a mais típica, é constituída pelas organizações mesmas da sociedade, enquanto elas derivam ou dependem da livre responsabilidade das
pessoas, para começar a existir e para perdurarem quais formas sociais permanentes.
A modalidade mais importante dessa “instância” são as instituições duráveis, as estruturas constitutivas do tecido social. Voltaremos ao tema fundamental e delicado da responsabilidade envolvida na qualidade positiva e, sobretudo, negativa e prejudicial das
instituições e estruturas (cf. abaixo, cap. 9).
Nesse momento da reflexão, o que nos interessa imediatamente
é colher este resultado: a reflexão ética e a prática moral se dizem
sociais especialmente em relação com a terceira e mais ainda com
quarta das instâncias do “social”.
Esses domínios suscitam problemas específicos e exigem uma
formação particular das consciências, bem como uma reflexão ética profunda e difícil.
341
Essa quarta instância que atribuímos ao social se deve considerar como o resultado de uma emergência histórica da consciência
humana, da maior importância para a história da civilização, da
cultura, do direito e da ética.
O surgimento dos termos social e socialismo, na primeira metade do século XIX, vem coroar o aparecimento da linguagem dos
“direitos humanos”, do “liberal” e do “liberalismo”, já nos fins do
século XVIII. Pode-se datar o nascimento e a difusão do vocábulo
social do ano 1830, nos meios Saint-simonianos. Começa-se então
a falar de “questão social”, de “ações e relações sociais”, mais tarde
de “justiça social”; de “direitos sociais”, de “luta social” e até de
“cristãos sociais”, de “cristianismo, de catolicismo social”, em um
sentido novo, embora designasse uma qualidade ou exigência que
desde sempre se impunha a todos.
Mas semelhante responsabilidade pela qualidade humana da
sociedade, sobre os deveres desta em relação à vida digna a assegurar a seus membros permanecia oculta ou implícita mesmo nas
consciências dos grandes mestres e líderes espirituais. Agora, na
era industrial, o social emergia em sentido forte e preciso, se distinguia e opunha ao “político”, ao “econômico”, ao “jurídico” em proposições deste teor: “Não basta o progresso econômico, é preciso
atender ao bem social”. Hoje, se diz correntemente que o governo,
a sociedade, as empresas se deixam levar por um economismo financeiro e negligenciam o social.
Justiça social, cerne e elã de uma ética mundial10
A justiça, especialmente em sua abrangência universal de justiça social, em sua qualidade de valor modela a sociedade e enquanto
virtude é a lei imanente guiando a pessoa segundo o direito.
10. A emergência do qualificativo social, da justiça social, do direito social, no
primeiro quartel do século XIX e a Declaração Universal dos Direitos Humanos
pela ONU em 1948 podem ser consideradas como dois marcos, dois saltos qualitativos da consciência humana rumo ao despertar de uma ética mundial.
342
O social designa então um tipo de ação, de relação e de organização em referência ao (bom ou mau) funcionamento, à (boa ou
má) estruturação da sociedade, enquanto esta deve estar a serviço
do bem de todos os membros que a constituem. O “social” aponta
para a qualidade (humana) da sociedade. Não há um pleonasmo.
Há uma insistência sobre a verdadeira identidade da sociedade.
Esta pode se perverter e se tornar uma sociedade particularista, individualista, marcada pela discriminação e pela exclusão.
Era o grande risco senão a triste realidade inaugurada pelo capitalismo industrial no século XIX. Então surge o neologismo que exprime naquele momento a exigência radical e universal de todos os
tempos e para todos os regimes e todos os sistemas. Foi o momento
do parto grandioso, em que a consciência humana deu à luz a ética
social, entendida e saudada no seu sentido pleno, pois ela vem a ser a
alma racional, espiritual e propriamente humana da civilização.
Após a experiência mundial das supremas calamidades e da suprema indignidade das ditaduras, dos genocídios, dos holocaustos,
a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU em 1948
dava um conteúdo de justiça à consciência humana universal. Qual
bandeira da razão e da liberdade, da igualdade e da fraternidade, a
declaração hasteava o feixe, satisfatório então, mas sempre crescente dos direitos fundados e inspirados no reconhecimento da dignidade da pessoa e do primado do bem comum. Os direitos individuais reforçavam a defesa e a proteção do cidadão contra a prepotência do Estado e de outros poderes, sobretudo econômicos.
Mas a verdadeira inovação, mais urgente e mesmo decisiva
para que a justiça triunfe das tiranias ostensivas ou dissimuladas,
estava na proclamação dos direitos sociais, pela primeira vez pormenorizada para o mundo, e exigindo uma autêntica revolução cultural e democrática, que deve caracterizar a história da humanidade, como marcha para o absoluto do bem, da solidariedade da paz.
Na medida em que a Declaração Universal dos Direitos Humanos inaugurava essa revolução pacífica e democrática, ela mostrava os novos caminhos de uma ética mundial, de uma ética humana
343
universal, a grande promessa e a grande exigência para a vida digna
e feliz e mesmo para a sobrevivência da humanidade.
A justiça social, entendida em toda a sua abrangência fundadora da ética universal, se abre na amplidão e no dinamismo desses
vastos campos de ação, de relações, e mesmo de militância que
vêm a ser hoje: a família, a ecologia, a bioética, a sociedade na
complexidade de um sistema global que é um feixe de sistemas.
Tal é o itinerário que merece e reclama agora todo o empenho
dos líderes e dos movimentos, dos protagonistas e pioneiros de
uma ética mundial autêntica e operacional.
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