Lista Fechada e Financiamento Público Funcionam?

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Lista Fechada e Financiamento Público Funcionam?
Internacional
Lista fechada e
financiamento público
funcionam?
A disputa política pelo sistema eleitoral existe em todo o mundo e mesmo
nas mais antigas democracias há o debate, assim como no Brasil, para modificar
a forma de financiar a política e escolher os candidatos Marcus Ianoni
E
ntre as propostas de mudança que mais têm se
destacado no debate da
reforma política está a
adoção da lista fechada e
do financiamento público exclusivo
de campanhas eleitorais. Mas lista
fechada e financiamento público funcionam em outros países? Por que se
recomenda adotá-los no Brasil?
Os sistemas eleitorais existentes no
mundo agrupam-se em quatro grandes famílias: majoritários (em inglês,
plurality), mistos, representação proporcional e outros.
A Tabela 1, com a distribuição dos
sistemas eleitorais nos legislativos nacionais, atesta que a representação
proporcional por lista (RPL) é o mais
frequente, presente em 70 países. Além
disso, predomina na África, nas Américas, no Leste Europeu, na Europa
Ocidental e no Oriente Médio. Neste
último, junto com o voto em bloco
(VB). Ela só não prevalece na Ásia e
na Oceania. A Tabela 2 mostra que a
modalidade de RPL mais presente é a
lista fechada (39), seguida pela lista flexível (18), depois pela lista aberta (12)
e lista livre (1)1. A fechada é um gênero
de voto não preferencial, enquanto as
demais o propiciam.
O artigo 45 da Constituição de
1988 diz: “A Câmara dos Deputados
compõe-se de representantes do povo,
eleitos, pelo sistema proporcional, em
cada Estado (...)”. O PT e várias outras
forças políticas e sociais defendem
a manutenção do sistema proporcional, mas trocando a lista aberta
pela lista fechada. As críticas à lista
aberta destacam, entre outros aspectos, que as campanhas eleitorais
centram-se nos candidatos, resultando não só em competição entre
candidatos de partidos diferentes,
mas do mesmo partido, em alto custo
financeiro das campanhas e fragmentação partidária.2 A lista aberta
induz a que a relação entre representantes e representados acentue a
reputação pessoal, e não a reputação
partidária. Essa relação, entre outros
danos, enseja uma aliança entre tele21
visão e partidos, que tem alavancado
nomes, nas listas de candidatos, sem
vínculos com a atividade políticopartidária, mas com popularidade
na mídia. O personalismo prejudica
o fortalecimento dos partidos.
E, onde vigora, como funciona a
lista fechada? Portugal e Espanha, ao
se democratizarem nos anos 1970,
após décadas de autoritarismo, adotaram a lista fechada e ainda hoje a
mantêm. Segundo Linz e Montero,
esse sistema eleitoral é um dos pilares institucionais da estabilidade
da democracia espanhola e de seu
sistema partidário. De modo similar,
na avaliação de Jalali, em Portugal o
presidencialismo e a RPL contribuí­
ram para a consolidação da democracia. Mas há críticos da lista fechada nesses dois países, como há, aqui,
defensores da lista aberta e elites que
prefeririam um sistema majoritário.
Em muitos países discutem-se mudanças no sistema eleitoral.
Certos críticos dizem que a lista
fechada vai oligarquizar os partiTeoria e Debate 91 H março/abril 2011
Tabela 1: Distribuição dos sistemas eleitorais nas legislaturas nacionais nas regiões do mundo
Pluralidade/
Majoritário
VD
VB
VBP
VA
SSV
Representação RPL
proporcional
VUT
Misto
RPP
Parallel
Outros
VUNT
CBM
VL
Total
África
Américas
Ásia
Leste Europeu
15
1
3
0
8
16
0
1
4
0
0
0
48
17
3
0
0
3
19
0
3
0
0
0
0
45
5
2
1
0
6
3
0
0
8
1
0
0
26
0
0
0
0
1
13
0
2
7
0
0
0
23
Europa
Ocidental
1
3
0
0
1
15
2
2
1
0
0
1
26
Oceania
Oriente Médio
Total
7
2
0
3
1
0
0
1
1
2
1
0
18
2
4
0
0
2
4
0
0
0
1
0
0
13
47
15
4
3
22
70
2
9
21
4
1
1
199
VD = Voto distrital (maioria simples); VB = Voto em bloco; VBP = Voto em bloco partidário; VA = Voto alternativo; SSV = sistema de segunda votação; RPL = representação proporcional
de lista; VUT= voto único transferível; RPP = representação proporcional personalizada (em geral, distrital misto); Parallel = paralelo; VUNT = voto único não transferível;
CBM = contagem de borda modificada; VL = voto limitado.
Fonte: Electoral System Design: The New International IDEA Handbook (2005)
dos. Ora, há tendências oligárquicas
atualmente, com a lista aberta. Ademais, a fechada pode ser regulamentada com normas que combatam
essas tendências (Cintra e Amorim,
2008). Outra resposta progressiva
à crítica de que pode oligarquizar
os partidos talvez seja avançar na
democracia partidária com a introdução de eleições primárias, semifechadas, abertas ou semiabertas,
envolvendo filiados e não filiados.
Há uma disputa política pelo
sistema eleitoral. A democracia, na
Atenas Clássica, foi uma invenção,
e nem todos os gregos a apoiaram. A
representação proporcional foi uma
invenção democrática dos anos 1860.
Se crermos que a democracia deve,
quando preciso, continuar se reinventando, e se notarmos que o Brasil
saiu da ditadura mantendo a lista
aberta, que vigora desde 1945, por
que não mudá-la, não para imitar
ibéricos ou outros, mas para enfrentar problemas que o voto preferencial tem trazido ao nosso sistema
político? Superando a lista aberta,
atenderemos ao anseio de muitos
atores sociais e políticos que, há
Teoria e Debate 91 H março/abril 2011
anos, debatem e se mobilizam em
prol da (re)invenção brasileira dos
partidos e das eleições, com medidas
como a lista fechada e o financiamento público exclusivo de campanhas eleitorais (Fipece).3
Entro, então, no tema do financiamento político, entendido como
o financiamento das atividades partidárias nos períodos eleitorais e não
eleitorais. Este também tem sido debatido, no mundo todo, e está associado a
grandes problemas na prática política.
A estruturação da atividade política
contemporânea, sobretudo nas democracias de massa, depende das organizações partidárias. Não há partido sem
financiamento político para garantir
sua estrutura administrativa e a participação nas eleições. Além disso, por
o dinheiro ser um recurso de poder
com efetiva capacidade de desequilibrar, seu uso na atividade partidária
e eleitoral é objeto de regulamentação
em todos os países. Por mais que haja
amplo direito de voto, a participação
do poder econômico no financiamento
político impacta negativamente no
princípio “uma pessoa, um voto”, ou
seja, implica eleições injustas.
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A terceira coluna da Tabela 2 mostra que 58 (82%) dos 70 países que adotam RPL possuem normas de financiamento político público. A pesquisa
dessas informações, publicada em
2003, revela que esse modelo, entre 111
países, é adotado por 65 (59%). É muito
presente no mundo todo, embora, em
geral, combinado com o privado.
Os EUA, porém, estranhamente
não estão incluídos na lista do financiamento público, entre os 111 países
pesquisados em Idea (2003). Apesar de
as campanhas lá serem caríssimas e a
maior parte do financiamento ser privada, há política de financiamento público
para candidaturas presidenciais, nas
1. O formato concreto da RPL de cada país
envolve outras normas, como o número
de distritos e sua magnitude, a cláusula
de exclusão para obtenção de cadeiras, o
método de distribuição das cadeiras e a estrutura do voto. Na lista flexível, o partido
ordena a lista, mas o eleitor pode alterar
esse ordenamento. Na lista livre, o eleitor
pode votar em candidatos de duas ou mais
listas partidárias.
2. Diversidades regionais, federalismo e grau
de pluralismo também esclarecem a fragmentação partidária.
3. Não há como não dizer que a RPL favorece
a participação das mulheres na política.
eleições primárias e gerais.4 Mas, em
relação aos EUA, merece ser destacado
que em vários estados e cidades, desde os anos 1990, surgiram expressivos
movimentos populares, como o clean
elections (eleições limpas), que conseguiram introduzir o Fipece por iniciativa popular de lei. A adesão é facultativa,
mas, a cada eleição, aumenta o número
de candidatos que aderem ao Fipece
(ver Quadro 1). Para se qualificar para
sua adoção, o candidato deve coletar
certo número de pequenas contribui-
ções. A lei do Fipece no Arizona, por
exemplo, requer que o candidato que
queira aderir ao programa cumpra certas exigências, como a comprovação de
que arrecadou US$ 5 de 220 doadores.
Essa comprovação é um documento
básico para o candidato ser aceito como
recebedor do fundo público criado para
viabilizar o programa de Fipece. Tal
exigência é uma espécie de símbolo de
que o candidato tem enraizamento de
base e, ao mesmo tempo, serve para
compor uma parte dos recursos do
fundo público. Além disso, ele precisa
concordar voluntariamente com limites
de gastos, não receber nenhuma contribuição de campanha de doadores privados nem contribuir do próprio bolso6.
O objetivo não é principalmente
“limpar” a corrupção nas eleições,
mas sim estimular mais candidatos
a concorrer eleitoralmente, sobretudo
os sem recursos, para ampliar o leque
de escolha dos eleitores e a representatividade das eleições; melhorar a
confiança dos cidadãos no governo e a
Tabela 2: Representação proporcional de lista em legislaturas nacionais e financiamento político em 70 países5
País
1. África do Sul
2. Angola
3. Antilhas Holandesas*
4. Argélia
5. Argentina
6. Aruba
7. Áustria
8. Bélgica
9. Benin
10.Bósnia e Herzegovina
11.Brasil
12.Bulgária
13.Burkina Faso
14.Burundi
15.Cabo Verde
16.Camboja
17.Chile
18.Chipre Grega
19.Chipre Turca
20.Colômbia
21.Costa Rica
22.Croácia
23.Dinamarca
24.El Salvador
25.Equador
26.Eslováquia
27.Eslovênia
28.Espanha
29.Estônia
30.Finlândia
31.Grécia
32.Guatemala
33.Guiana
34.Guiné-Bissau
35.Guiné-Equatorial
Representação
proporcional
de lista
LF
LF
LFLEX
LF
LF
LA
1ª LFLEX/2ª LF
LFLEX
LF
LA
LA
LF
LF
LF
LF
LF
LA
LFLEX
LFLEX
LF
LF
LF
LFLEX
LF
LA
LFLEX
LFLEX
LF
LFLEX
LA
LFLEX
LF
LF
LF
LF
Fundo público
direto para partidos
e/ou campanhas
S
S
Ind
S
S
Ind
S
S
S
S
S
S
S
S
S
N
N
S
S
S
S
S
S
S
S
S
S
S
S
S
S
S
N
N
S
País
36.Holanda
37.Honduras
38.Indonésia
39.Iraque
40.Islândia
41.Israel
42.Letônia
43.Liechtenstein
44.Luxemburgo
45.Macedônia
46.Marrocos
47.Moçambique
48.Moldávia
49.Namíbia
50.Nicarágua
51.Níger
52.Noruega
53.Panamá
54.Paraguai
55.Peru
56.Polônia
57.Portugal
58.República Dominicana
59.República Tcheca
60.Romênia
61.Ruanda
62.São Marino
63.São Tomé e Príncipe
64.Serra Leoa
65.Siri Lanka
66.Suécia
67.Suíça
68.Suriname
69.Turquia
70.Uruguai
Representação
proporcional
de lista
LFLEX
LF
LA
LF
LFLEX
LF
LFLEX
LA
LFLEX
LF
LF
LF
LF
LF
LF
LF
LFLEX
LA
LF
LFLEX
LA
LF
LA
LFLEX
LF**
LF
LF
LF
LF
LA
LFLEX
Lista livre
LF
LF
LF
Fundo público
direto para partidos
e/ou campanhas
S
S
S
S
S
S
N
S
S
S
S
S
N
S
S
S
S
S
S
N
S
S
S
S
S
Ind
S
S
N
S
S
S
N
S
S
LF = lista fechada; LFLEX = lista flexível; LA = lista aberta; S = sim; N = não; Ind = indisponível.
Fontes: Idea 2005 (de lá para cá, houve mudanças); www.electionguide.org; www.ipu.org; africanelections.tripod.com; aceproject.org; www.nsd.uib.no; www.liechtenstein.li; www.
observatorioelectoral.es .
* Antilhas Holandesas não são mais um país autônomo. ** Em 2008, a Romênia adotou um sistema misto.
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Teoria e Debate 91 H março/abril 2011
Quadro 1 – “Eleições limpas” nos estados do Maine e do Arizona (EUA)
História
Mecanismo
de criação
Objetivos
Alguns
resultados
Maine
Arizona
1995: cidadãos e sociedade civil
organizada unem-se para aprovar
o primeiro programa nacional de
financiamento público. Centenas de
voluntários coletam assinaturas e
aprovam essa iniciativa popular de lei
Maine Clean Election Act (MCEA – 1996)
Cidadãos se organizam para aprovar
financiamento público por iniciativa
popular
Romper os laços entre interesses
milionários e líderes eleitos.
Eleições de 2000: metade dos senadores
do legislativo estadual e 30% dos
deputados estaduais elegem-se
pelo MCEA.
Arizona Citizens Clean Elections Act
(ACCE – 1998)
Ampliar a chance de os cidadãos
concorrerem às eleições; permitir que
candidatos abdiquem do financiamento
dos lobistas; restaurar a participação e a
confiança dos cidadãos no sistema político.
Eleições de 2000: 26% dos candidatos
que aderem ao ACCE alcançam 18%
dos cargos legislativos.
Eleições de 2002: os respectivos números
Eleições de 2002: esses números sobem, citados sobem para 49% e 36%.
respectivamente, para 77% e 55%.
Eleições de 2008: 57% das vagas para
senado estadual e 77% para deputado
Hoje, mais de 80% de todos os
estadual são preenchidas pelos que
legisladores estaduais foram eleitos por
aderem ao ACCE.
essa via.
Fontes: www.mainecleanelections.org; www.azcleanelections.gov; GAO (2003).
10.Jornal O Globo, 4 de março de 2004.
qualidade da democracia, e não meramente responder aos caixas dois etc.
O Quadro 1 tem informações de
duas importantes séries de clean elections, nos estados do Maine e do Arizona; ambos já passaram por seis eleições
bianuais (2000 a 2010).8 Ademais, esses
movimentos estaduais vêm alcançando
o nível federal. Entre outras ações, têm
coletado assinaturas para uma petição
dirigida ao Congresso dos EUA para
que seja aprovado o Fair Elections Now
Act (Lei das Eleições Justas Já). O projeto
dessa lei já foi introduzido no Senado e
na Câmara dos Representantes, e a sociedade civil está se organizando para
reforçar o movimento fair elections.9
O Fipece pode funcionar, sim, inclusive no Brasil, sobretudo se vinculado à lista fechada. O clean elections
e o fair elections, obviamente, enfrentam oposição de poderosos lobbies nos
EUA e de intelectuais que não os veem
com simpatia, tal como ocorre aqui.
Mas há, também, nos EUA e no Brasil, muitos intelectuais favoráveis ao
Teoria e Debate 91 H março/abril 2011
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legitimidade deste, reduzindo a influência dos grupos de interesse (lobbies);
frear o aumento do custo das campanhas; e motivar a participação política
dos eleitores7. Aqui, críticos do Fipece
alegam que essa medida seria inútil
para combater crimes financeiros
eleitorais. Mas os objetivos políticos
do Fipece no Brasil são muito semelhantes ao do clean elections – visam à
4. Consultar www.fec.gov/pages/brochures/
pubfund.shtml.
5. Além das fontes mencionadas, recorri às
leis eleitorais de vários países. Uma ou outra
imprecisão ainda pode haver. A fonte básica
é o Institute for Democracy and Electoral
Assistance (Idea). Priorizei informar o sistema eleitoral predominante, com base nos
dados de 2005.
6. Consultar www.commoncause.org/site/
pp.asp?c=dkLNK1MQIwG&b=4773825.
7. Consultar GAO (2003).
8. O do Maine está em www.mainecleanelections.org ; o do Arizona, em www.azcleanelections.gov .
9. O site do movimento está em fairelectionsnow.org.
Referências
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y Sistema Político en Centroamérica, Panamá y República Dominicana. República
Dominicana, Publicaciones JCE.
CINTRA, O.C. e AMORIM, M.C. de M.
(2008). “Listas preordenadas e financiamento público: prós e contras”. Revista Liberdade
e Cidadania – nº 1.
GAO (2003). “Campaign finance reform
– early experiences of two states that offer
full public funding for political candidates.”
United States General Accounting Office.
Disponível em www.gao.gov/new.items/
d03453.pdf.
INTERNATIONAL IDEA (2003). Funding
of Political Parties and Elections Campaigns
– Handbook Series. International Institute
for Democracy and Electoral Assistance,
Stockholm, Sweden. Disponível em www.
idea.int/.
INTERNATIONAL IDEA (2005). Electoral System Design: The New International
IDEA Handbook. International Institute
for Democracy and Electoral Assistance,
Stockholm, Sweden. Disponível em www.
idea.int/.
JALALI, C. (2002). “Researching electoral behavior in Portugal: history and prospects.” Disponível em www.ics.ul.pt/ceapp/
english/conferences/fulbright/11CJalali.pdf.
LINZ, J.J. e MONTERO, J.R. (1999). “The
party system of Spain: old cleavages and new
challenges.” Estudio/Working Paper, 138.
Disponível em www.march.es/ceacs/publicaciones/working/archivos/1999_138.pdf.
NICOLAU, J. (2006). “O sistema eleitoral
de lista aberta no Brasil”. Dados, vol. 49, nº
4, Rio de Janeiro.
Fipece, como o especialista brasileiro
Jairo Nicolau, que diz: “(...) o financiamento público, acompanhado por
rigoroso sistema de fiscalização e de
severas punições, é a melhor opção
que temos para sair do péssimo sistema de financiamento em vigor no
país. Os benefícios para a democracia
brasileira compensam em muito as
possíveis imperfeições. Até mesmo
a pior delas, a continuidade residual
do caixa dois”.10 Enfim, democracia
se inventa na disputa democrática. ✪
Marcus Ianoni é professor do Departamento
de Ciência Política da Universidade Federal
Fluminense