Revista 16.2016

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Revista 16.2016
REVISTA REDAÇÃO
PROFESSOR: Lucas Rocha
DISCIPLINA: Redação
16
DATA: 01/05/2016
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Estratégias dos movimentos e projeto de emancipação (GUSTAVE MASSIAH)
Um projeto alternativo não cai do céu. Não basta querê-lo, mesmo que a urgência justifique a precipitação. Um
projeto se inscreve no tempo histórico, que combina o longo prazo e as rupturas, entre a maturação demorada das
ideias e a aceleração dos períodos revolucionários
ATRAVESSAMOS um período de grandes atribulações e profundas incertezas. Vivemos provavelmente uma época de
transição, em que as tendências antigas vão desaparecendo e as novas estão se formando. A citação de Antonio Gramsci é
de grande atualidade: “O velho mundo agoniza; o novo mundo tarda a nascer, e, nesse claro-escuro, irrompem os
monstros”. Cumpre, ao mesmo tempo, lutar contra os monstros e construir um mundo novo. Não há fatalidade no êxito
nem no fracasso.
A situação mundial parece desesperadora
De 2008 a 2015, começou uma nova sequência na longa história da situação mundial. A partir de 2011, movimentos de
massa quase insurrecionais deram testemunho da exasperação dos povos. Essas revoltas constituem uma resposta à crise
estrutural oficialmente admitida em 2008. Elas confirmam o esgotamento da fase de globalização capitalista. As
desigualdades sociais, o desemprego e a precarização derrubaram o consumo popular e provocaram uma crise de
“superprodução”. O recurso ao superendividamento encontrou seus limites; pela extensão dos mercados financeiros de
derivativos, ele contaminou todas as bolsas de valores. A explosão dos subprimesassinalou a passagem da dívida das
famílias para a das empresas bancárias. O salvamento dos bancos pelo Estado inaugurou a crise das dívidas públicas. A
redução dos déficits pelos planos de austeridade deveria permitir uma saída da crise, preservando os lucros e mantendo a
preeminência do mercado mundial dos capitais/privilégios dos acionistas.
A partir de 2013, a situação parece ter ressurgido. As políticas dominantes de austeridade e ajuste estrutural se
reafirmaram. A arrogância neoliberal retomou a dianteira. A desestabilização, as guerras, as repressões violentas e a
instrumentalização do terrorismo agora se impõem em todas as regiões. Correntes ideológicas reacionárias e populismos de
extrema direita mostram-se cada vez mais ativos. Assumem formas específicas, como o neoconservadorismo libertário nos
Estados Unidos, as extremas direitas e as múltiplas formas de nacional-socialismo na Europa, o extremismo jihadista
armado, as ditaduras e as monarquias do petróleo, o hinduísmo exacerbado etc. Mas, nesse meio-tempo, nada mudou.
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As grandes contradições continuam de pé
A situação não se reduz ao fortalecimento das posições direitistas: é assinalada também pela permanência das
contradições. Aquilo que convencionamos chamar de “crise” se aprofundou. A dimensão financeira, mais visível, é uma
consequência que se traduz nas crises abertas alimentares, energéticas, climáticas, monetárias etc. A crise estrutural articula
cinco contradições de peso:1 econômicas e sociais, com as desigualdades sociais e as discriminações; ecológicas, por causa
dos perigos que rondam o ecossistema planetário; geopolíticas, em razão do fim da hegemonia dos Estados Unidos, da crise
japonesa e europeia, e do advento de novas potências; ideológicas, em virtude do questionamento da democracia, sem falar
dos arroubos xenofóbicos e racistas; políticas, graças à fusão do político e do financeiro, que nutre a desconfiança em
relação ao político e abole sua autonomia.
Na construção do futuro, três concepções se defrontam: o reforço do neoliberalismo pela financeirização da natureza; a
reformulação do capitalismo, o Green New Deal, fundado sobre a regulamentação pública e a modernização social; e uma
ruptura que aponta para uma transição ecológica, social e democrática. A primeira concepção é a da financeirização da
natureza. Segundo esse ponto de vista, a saída da crise passa pela busca do “mercado ilimitado”, necessário ao
crescimento. Ela fundamenta a ampliação do mercado mundial, chamado “mercado verde”, na financeirização da natureza,
na mercantilização do biológico e na generalização das privatizações. Propõe mercantilizar e privatizar os serviços fornecidos
pelo meio ambiente e confiá-los às grandes transnacionais. Trata-se então de restringir as referências aos direitos
fundamentais, que poderiam fragilizar a preeminência dos mercados, e de subordinar o direito internacional à lei dos
negócios.
A segunda concepção é a do Green New Deal, defendida por eminentes economistas do establishment,como Joseph
Stiglitz, Paul Krugman, Thomas Piketty e Amartya Sen, muitas vezes qualificados de neokeynesianos. Ela parte da “economia
verde”, que convém dominar. Propõe-se um remanejamento profundo do capitalismo por meio de uma regulamentação
pública e da redistribuição de renda. Essa concepção ainda não faz muito barulho atualmente porque pressupõe um embate
com a lógica dominante, a do mercado mundial dos capitais: este repele as referências keynesianas e ainda não está pronto
para aceitar que uma inflaçãozinha qualquer desvalorize os lucros. Vale lembrar que o New Deal,adotado em 1933, só foi
aplicado com sucesso em 1945, após a Segunda Guerra Mundial.
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A terceira concepção é a dos movimentos sociais e cidadãos, explicitada no processo dos fóruns sociais mundiais. Eles
preconizam uma ruptura, a da transição social, ecológica e democrática. Esses movimentos arvoram ideias novas, novas
maneiras de produzir e de consumir. Citemos algumas: os bens comuns e as formas outras de propriedade, a luta contra o
patriarcado, o controle das finanças, o fim do sistema de dívidas, a vida boa e a prosperidade sem crescimento, as
mudanças de empresas para outros países, a justiça climática, a recusa do extrativismo, a reinvenção da democracia, as
responsabilidades coletivas e diferenciadas, os serviços públicos alicerçados nos direitos e na gratuidade. O que se pretende
é basear a organização das sociedades e do mundo no acesso aos direitos para todos e na igualdade dos direitos.
A estratégia dos movimentos define as alianças diante desses futuros possíveis. Urge reunir todos os que repelem a
primeira concepção, a da financeirização da natureza – tanto mais que a imposição do sistema dominante, malgrado o
esgotamento do neoliberalismo, traz o risco de um neoconservadorismo de guerra. Com o tempo, e se o perigo do
neoconservadorismo de guerra puder ser evitado, o confronto positivo oporá os defensores do Green New Deal aos da
superação do capitalismo. As alianças concretas dependerão da situação dos países e das grandes regiões.
A hegemonia cultural neoliberal foi imposta
Em inúmeras sociedades e em algumas – mas não todas – regiões do mundo, as ideias direitistas, conservadoras e
reacionárias avançam a passo de carga. Em cada sociedade se encontram as ideias dominantes mundiais, a realidade da
economia e da política mundiais e a narrativa do mundo, disseminada por uma ação esmagadora de todos os meios de
comunicação como a narrativa do único mundo possível.
Essa arrancada da direita e da extrema direita resulta de uma ofensiva dirigida sistematicamente em várias direções.
Começou por um ataque ideológico que vem sendo desferido com persistência há quarenta anos e preparou a virada
neoliberal. Essa batalha pela hegemonia cultural incidiu primeiramente sobre três questões: contra os direitos e
particularmente contra a igualdade, as desigualdades se justificam porque são naturais; contra a solidariedade, o racismo e
a xenofobia se impõem; contra a insegurança, a ideologia securitária seria a única resposta possível. A segunda ofensiva é
militar e policial; assumiu a forma de desestabilização dos territórios recalcitrantes, de multiplicação das guerras, de
instrumentalização do terrorismo. A terceira ofensiva se voltou contra o trabalho, questionando a segurança no emprego e
insuflando a precarização generalizada pela subordinação da ciência e da tecnologia, sobretudo do mundo digital, à lógica
da financeirização. A quarta ofensiva foi empreendida contra o Estado social, valendo-se da financeirização, da
mercantilização e da privatização; revestiu a forma de corrupção generalizada das classes políticas. A quinta ofensiva, na
esteira da queda do Muro de Berlim, em 1989, concentrou-se na tentativa desqualificar os projetos progressistas, socialistas
e comunistas.
As contratendências continuam vivas
A ofensiva da oligarquia dominante marcou pontos, mas não venceu o jogo. As ideias que preceituam a emancipação
ainda são fortes, e já surgiram até novas contratendências. Os movimentos iniciados em 2011 em Túnis continuam
vigorosos e se renovam. As palavras de ordem soam claras: recusa da miséria social e das desigualdades, respeito às
liberdades, dignidade, repúdio às formas de dominação, vínculo entre urgência ecológica e urgência social. De um
movimento a outro há um esforço para se afinar no sentido de denunciar a corrupção, reivindicar uma “democracia real”,
enfatizar as exigências ecológicas, impedir a grilagem de terras e o controle das matérias-primas. Em muitos desses
movimentos, a esquerda clássica cedeu terreno, e correntes de direita conseguiram, às vezes, monopolizar a contestação da
ordem dominante.
A violência da ofensiva neoliberal e reacionária mostra a amplitude das resistências. Ouve-se falar de vez em quando
em direitização das sociedades. Entretanto, é bom não confundir a ascensão de ideias de extrema direita com a direitização
das sociedades. Estas resistem e permanecem profundamente contraditórias. As ideias progressistas permanecem vivas e
são levadas adiante pelas lutas dos movimentos. Podemos até concluir que a violência das correntes reacionárias e
conservadoras provém do fato de elas sentirem que as sociedades lhes escapam. Um exemplo: a revolução mais ampla,
mais profunda no momento é a dos direitos das mulheres, que abala relações milenares. Perceber que essa parte essencial
das sociedades lhes escapa enfurece-as, traduzindo-se por uma violência inimaginável dos Estados e setores retrógrados.
Todas as ideias novas são vividas como agressões contra o mundo antigo; na esteira dos direitos das mulheres vêm o
aprofundamento da igualdade, a liberdade de circulação, as identidades múltiplas, a ecologia, a natureza...
Vemos isso também na emergência de pensamentos radicais que rompem o compromisso da esquerda social liberal e
retomam seu direito de cidadania. Pensemos na campanha recente de Bernie Sanders, que acossa Hillary Clinton nas
primárias do Partido Democrata norte-americano. Ele se apresenta abertamente como socialista, mira as transnacionais e
recusa o financiamento que possa vir delas. A mesma coisa aconteceu com Jeremy Corbyn, do Partido Trabalhista britânico.
De novo, convém observar o fortalecimento de organizações políticas ligadas aos novos movimentos, dos quais, em parte,
surgiram. Exemplos: o Podemos, na Espanha, e o Partido das Pessoas Comuns, o Aam Admi, em Nova Déli. Eles ainda não
são, plenamente, formas novas de organização política, mas assumem que os partidos devem colaborar na reinvenção do
universo político.
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Novas formas de engajamento esboçam futuros
O elemento mais determinante é a emergência de novas formas de engajamento das novas gerações. 2 A mudança da
relação entre o individual e o coletivo está no cerne desse engajamento. Uma nova geração se impõe no espaço público por
meio de movimentos que constituíram os fóruns sociais mundiais, renovando-se desde 2011: a derrubada de ditaduras, os
indignados, os occupy, os estudantes de Québec, os taksimsetc.
Não se trata tanto da juventude definida como faixa etária, mas de uma geração cultural que se inscreve numa
situação e a transforma. Essa geração está mais diretamente inserida no espaço do mundo. Ela coloca em evidência as
transformações sociais profundas associadas à escolarização das sociedades, que se traduz, de um lado, pelo êxodo de
cérebros e, de outro, pelos desempregados com diploma. As migrações religam essa geração ao mundo e às suas
contradições em termos de consumo, culturas, valores. Reduzem o isolamento e o confinamento dos jovens.
A nova geração constrói, graças às suas exigências e criatividade, uma nova cultura política. Ela enriquece a maneira
de conectar os determinantes das estruturações sociais: as classes e as camadas da sociedade, as religiões, as referências
nacionais e culturais, os pertencimentos de gênero e idade, as migrações e as diásporas, os territórios. Experimenta novas
formas de organização por meio do domínio das redes digitais e sociais, afirmando a auto-organização e a horizontalidade.
Procura redefinir, nas mais diversas situações, formas de autonomia entre os movimentos e as instâncias políticas. Busca
maneiras de vincular o individual ao coletivo. Talvez nesse nível é que as várias redes sociais fomentem culturas novas, à
semelhança dos softwareslivres, capazes de conduzir coletivamente lutas ofensivas ao mesmo tempo que salvaguardam
ciosamente a independência das individualidades. A reapropriação do espaço público é uma reivindicação de soberania
popular. Os lugares renovam as ágoras. Ocupa-se, muda-se – mas não pelo voto, sempre importante e, contudo, quase
nunca suficiente. Não se trata de alteração na relação com o político, e sim de um processo pelo qual o político se redefine.
A escolha que foi enfatizada é a dos movimentos sociais e cidadãos. Com ela, torna-se possível concretizar as
diferentes noções em discussão: as associações, as sociedades civis, a afirmação do não lucrativo e do não governamental,
a economia social, solidária e participativa. Os movimentos introduzem a ideia de uma evolução dinâmica, de uma ação
política e de uma continuidade histórica. Cada movimento combina afirmação programática, bases sociais e ações in loco,
mobilização e lutas, elaboração e propostas. A adesão a um movimento associa práticas e teorias, redefinindo o coletivo. As
relações entre os movimentos são fundadas na igualdade e no respeito à diversidade.
Em todo engajamento existe a busca de superação – superação de si próprio e do mundo. O engajamento conduz
naturalmente a uma reflexão sobre a radicalidade. Certos movimentos trazem formas novas de radicalidade, no nível dos
temas que enfatizam, das palavras de ordem, das formas de luta, de sua comunicação. Por exemplo, no novo período
podemos citar os indignados, os occupy, os movimentos pelo clima, os movimentos contra o gás de xisto, os destruidores de
plantas geneticamente modificadas, os inimigos dos bancos, as ZADs (zonas a defender), a grilagem de terras, o
extrativismo etc. Certos movimentos estabelecem um liame entre as novas formas de radicalidade e os movimentos que
compõem os fóruns sociais. Por exemplo, a Via Campesina, No Vox, Migreurop, os Fóruns contra os Grandes Trabalhos
Inúteis Impostos, as ações contra o urbanismo dos grandes eventos etc.
Todos esses movimentos têm em comum, em sua concepção de radicalidade, o recurso a formas de desobediência
individual e coletiva, assim como métodos baseados na não violência ativa. Uma das figuras do engajamento radical, que
estabelecem novas relações entre o individual e o coletivo, são os lançadores de alertas. Por exemplo, Edward Snowden,
que em sua situação se engaja radicalmente em uma perspectiva coletiva. O coletivo se nutre do engajamento individual.
Uma ação estratégica ancorada num projeto de emancipação
Uma pergunta é inevitável: que fazer? E a resposta implica adotar uma ação estratégica, na qual convém articular o
curto e o longo prazo. Convém ainda responder às urgências e inscrever a resposta à urgência numa perspectiva de longo
prazo.
É urgente resistir. Resistir aos valores deletérios, à xenofobia, às discriminações e aos racismos; resistir à degradação
social e às desigualdades; resistir à guerra, aos terrorismos e à instrumentalização dos terrorismos; resistir ao desastre
ecológico. Mas resistir não basta. Perspectivas de longo prazo são necessárias e implicam rupturas, e primeiro uma ruptura
com um mundo inaceitável. Uma tomada de consciência se impõe; um projeto é indispensável: um projeto de sociedade,
um projeto de emancipação. Mesmo para resistir, um projeto alternativo e idôneo se faz necessário.
Um projeto de emancipação não pode ser elaborado em gabinete. Tem de ser preparado por movimentos que o
defendam. Resulta de uma maturação de ideias e de uma elaboração longa, que dá ensejo a novos valores. Um projeto
social alternativo resulta de diversos imperativos dialeticamente associados. Propomos considerar quatro: um programa de
medidas que definam políticas alternativas; uma dinâmica social avalizada por movimentos sociais e cidadãos que sejam sua
base social e determinem suas alianças; um engajamento numa batalha ideológica de longo prazo e capaz de encampar
imediatamente valores fundamentais de uma nova hegemonia cultural; e uma reflexão sobre as lições históricas de projetos
alternativos.
Paradoxalmente, o programa alternativo está muito bem definido. Ele comporta uma série de medidas consideradas
indispensáveis e amadurecidas em fóruns sociais mundiais. O controle da finança e a socialização dos bancos, a taxação das
transações financeiras, o questionamento dos desvios do livre-comércio e do dumping social, fiscal, ambiental e monetário,
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a supressão dos paraísos fiscais e jurídicos etc.: essas medidas são largamente aceitas, mas se chocam com o veto dos
dirigentes do capital financeiro e de seus cúmplices políticos. Esse programa sugere em seguida uma ação de longo prazo, a
da transição ecológica, social, democrática e geopolítica. Apoia-se em conceitos novos (o bem comum, o bem viver, a
prosperidade sem crescimento, a justiça climática, a relocalização, a democratização radical da democracia...). Defender
esse programa, detalhá-lo e partilhá-lo não é suficiente – mas é necessário.
No entanto, esse programa não parece viável nem à sociedade como um todo nem àqueles que deveriam difundi-lo. A
questão essencial é a da dinâmica social capaz de apurá-lo e promovê-lo. A base social desse projeto compõe-se dos
movimentos que adotam uma orientação estratégica, a dos direitos para todos e da igualdade dos direitos. Portanto, o
alicerce social do projeto se constrói também a partir do próprio projeto. Ele reagrupa os movimentos ou, dentro de cada
um destes, todos que partilham as orientações estratégicas. A base mais ampla é hoje formada pela convergência de todos
os movimentos que constituem o processo dos fóruns sociais mundiais, abertos a todos os novos movimentos.3 Estes
partilham uma nova cultura política, novas formas de engajamento, a exigência de uma nova relação com a política. A
questão das alianças se coloca nas diferentes situações e períodos. São alianças sociais com os precarizados e os
proletarizados, alianças ideológicas visando às liberdades, alianças políticas com, por exemplo, os neokeynesianos.
Como se detectam as evidências que tornam possíveis e necessárias as mudanças? A emergência de novos valores se
inscreve no longo prazo. Mas há períodos de ruptura em que as velas se rasgam. A batalha pela hegemonia cultural se trava
no âmbito da cultura, da arte, dos meios de comunicação. Ela mobiliza práticas alternativas e trabalho intelectual. Ao
mesmo tempo, as novas ideias, os novos valores brotam das lutas e das resistências. Nessa batalha, a questão da igualdade
e do repúdio às discriminações, combinada com a conquista de liberdades, é crucial.
Um projeto alternativo não cai do céu. Não basta querê-lo, mesmo que a urgência justifique a precipitação. Um projeto
se inscreve no tempo histórico, que combina o longo prazo e as rupturas, entre a maturação demorada das ideias e a
aceleração dos períodos revolucionários. A Revolução de 1789 foi precedida pelas Luzes; as revoluções das nacionalidades
europeias de 1848 surgiram na esteira dos movimentos pela autodeterminação dos povos; o Manifesto Comunista apareceu
depois da emergência do proletariado e das lutas contra a exploração; as independências, depois das lutas pela
descolonização; a igualdade de gêneros, depois da igualdade de direitos.
Nem sempre é fácil examinar, com o devido distanciamento, a situação do neoliberalismo – abalado, mas ainda
dominante. O longo prazo dos movimentos propicia o necessário distanciamento. O movimento operário se constituiu em
meados do século XIX. Conheceu um período de progresso de 1905 a 1970. Apesar das guerras e dos fascismos, ele
realizou revoluções na Rússia, na China e em vários países; graças à sua aliança com os movimentos de libertação nacional,
ele quase encurralou as potências coloniais e imperialistas; impôs obrigações sociais e um welfare state nos países do centro
capitalista. Em 1970, inaugurou-se um período de quarenta anos de derrotas e retrocessos do movimento social nos países
descolonizados, nos países que enfrentaram revoluções e nos países industrializados. As agitações e a crise poderiam
caracterizar o fim desse longo período de involução, sem que possamos definir exatamente o que irá acontecer. O futuro
está em aberto. Haverá outras batalhas.4 Haverá possível e provavelmente outras derrotas. Mas, com base nas lições
aprendidas com elas, teremos também resistências, avanços e vitórias.
1 Gustave Massiah, em colaboração com Elise Massiah, Strategy for the Alternative Globalisation [Estratégia para a
globalização alternativa], prefácio de Immanuel Wallerstein, Black Rose Books, Montreal/Nova York/Londres,
2011.
2 Gustave Massiah, Six pistes pour les nouvelles formes d’engagement à la solidarité internationale [Seis pistas
para as novas formas de engajamento na solidariedade internacional], Ipam, jul. 2015. Disponível em: .
3 Gustave Massiah, Le Forum Social Mondial de Tunis en 2015, Éléments de Bilan [O Fórum Social Mundial de Túnis
em 2015, elementos para um balanço], WSF, abr. 2015.
4 Gustave Massiah, La bataille de Grèce, un épisode d’une guerre mondiale prolongée [A batalha da Grécia, episódio
de uma guerra mundial prolongada], Attac, ago. 2015.
GUSTAVE MASSIAH é membro do conselho internacional do Fórum Social Mundial e do Centro de Pesquisa e de Informação para
o Desenvolvimento (Crid/França). Jornal LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL, Maio de 2016.
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Renato Janine Ribeiro: Alfabetização, bom uso dos recursos e maior
acordo entre União, estados e municípios são questões centrais da
educação (RUBEM BARROS)
Ex-ministro indica formação de diretores escolares como forma de melhorar problemas de gestão
Renato Janine: vivência no MEC deu real dimensão do problema da alfabetização
ACLAMADO pela grande maioria do meio educacional quando de sua indicação para o Ministério da Educação, Renato
Janine Ribeiro, professor de ética e filosofia política da Universidade de São Paulo, ficou apenas seis meses no cargo. Sua
saída serviu a uma acomodação política, com a volta de Aloizio Mercadante ao MEC.
Com grande produção acadêmica e uma passagem bem-sucedida como diretor de Avaliação da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Janine volta a olhar a educação brasileira do ponto de vista do
intelectual que identifica questões sistêmicas. Agora, porém, com o olhar de quem já teve as rédeas das políticas - mais ou
menos - em mãos.
Ao assumir o MEC, o senhor disse que precisaria fazer um mergulho nas questões da Educação Básica. O que
mais chamou sua atenção?
Não tinha noção da gravidade do problema da alfabetização, o pior nó que temos hoje na educação brasileira. Dos alunos
que terminam o 3º ano do fundamental, 22% não sabem ler, 35% não sabem escrever e 57% não sabem bem matemática.
Nesses 57%, há níveis diferentes – aqueles que não sabem nada e os que fazem uma conta de somar e diminuir, mas não
sabem multiplicar ou dividir. O fato é que 3/5 da população de 8 anos, depois de três anos de ensino, não tem o domínio
pleno dos instrumentos necessários para continuar estudando, estão mais ou menos condenados a ter uma vida de
segunda. Há uma chance de essas pessoas melhorarem, mas ela já diminuiu muito. O grande problema para melhorar a
educação no Brasil é a dificuldade de os atores, os players, se entenderem e se acertarem. Esse é o ponto crucial. É preciso
que haja um acordo maior entre União, estados e municípios, até porque a responsabilidade constitucional pelo ensino
básico não é da União. Mas, sem ela, a coisa não funciona. É ela que pode colocar um dinheiro adicional e, sobretudo, dar a
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expertise que municípios pequenos não têm como ter. Serra da Saudade, em Minas Gerais, tem 800 habitantes. Como
poderia montar seu plano de carreira, o currículo escolar, fazer seleção de professores? Esse acordo entre União, estados e
municípios, embora ainda não esteja detalhado, não é tão problemático – a boa notícia é que está sendo criado o sistema
nacional de educação.
O que foi mais problemático?
Lidar com os sindicatos, em especial com o do ensino superior público. Há uma grande dificuldade de conseguir unir as
forças que deveriam se unir. No caso do ensino básico também há greves muito prolongadas. Uma greve de 90 dias como
tivemos em São Paulo traz um custo gigantesco para os alunos. Não quero entrar nisso, pois acho que há culpa grande do
governo estadual, tanto em São Paulo como no Paraná, por terem criado situações muito ruins para o trabalho, não estou
culpando os professores. Mas é uma situação insustentável. No ensino, greve deveria ser um recurso de último caso. Nas
universidades públicas, greve virou parte do calendário. O ponto que quis frisar desde começo foi que temos de melhorar o
uso de recursos, pois há usos errados. Dou dois exemplos: ar-condicionado e luz acesa em salas desocupadas. Isso é praxe.
Há um descompromisso com o dinheiro público. Outro caso é a duplicação desnecessária de atividades. Mandei revisar o
EAD nas universidades federais, pois há duplicação de cursos. Há um número grande de cursos de pedagogia a distância
sendo ministrados quando bastava que houvesse um, e que fosse o melhor.
O que o senhor identifica em termos de processos mal desenhados que leva a esse desperdício de recursos?
No Brasil, de modo geral, como quem ordena a despesa não é quem paga, existe um descompromisso. Isso até mesmo no
nível doméstico. Na esfera pública, é muito pior. Tivemos esses dias em São Paulo algo escandaloso. Foi reduzida em uma
hora a duração do tempo integral em 118 escolas estaduais e muitos pais não foram avisados. Escolas que deveriam abrir
às 7h, abriram às 7h30; pais foram buscar os filhos às 16h, tinham de tirar às 15h30 e não foram avisados. Esse tipo de
descaso com a função pública é muito forte. Tem custos de dinheiro, no caso do orçamento, e humanos no caso de
desrespeito às famílias. Talvez isso também se prenda a problemas de gestão. Há muita dificuldade de gestão no setor
público. Você tem de formar o diretor de escola. E há uma oposição grande de setores que, com pretextos ideológicos,
dizem que isso significa privatização da escola. O MEC oferece grande número de recursos às escolas, mas o diretor tem de
saber pedir, aplicar e prestar contas. Se não souber, ou deixa de pedir algo de que precisa, ou pede e não executa, ou
executa e depois não faz prestação de contas adequada. Isso quando não há corrupção.
O que fazer para criar referenciais para os diretores?
Mandei preparar um curso a distância de formação de diretores. A ideia é, num primeiro momento, ensinar o diretor a lidar
com toda a documentação. Mas o foco principal é que sejam capazes de examinar os dados estatísticos das avaliações que
o Inep faz. Todos os anos há uma publicação de um anuário, um documento notável, com dados de cada estado, que
podem ser desagregados por município ou escola, mostrando a evolução. Você pode pegar o aluno do 5º ano de uma escola
tal, sala tal, em 2009, e pegar no 9º ano em 2013 na mesma sala e ver se melhorou ou piorou em português e matemática.
Com isso, posso saber o que ajudou a piorar ou melhorar. O diretor tem de ser capaz de examinar esses dados, ver as salas
que melhoraram com um professor ou pioraram com outros. Não é uma questão de punir o professor, mas de acompanhar
cada caso. É o minimum minimorum que o diretor tem de saber. Também tem de conhecer as medicinas apropriadas. Há
um grande rol de boas práticas, nem todas convergentes, há pessoas que acham o livro didático mais importante, outras
preferem os sistemas educativos, e há uma disputa política aí, mas o diretor deve estar a par do que melhora os resultados.
Há pontos que são consensuais: se você tiver estabilidade dos professores nas escolas, se não tiver turn over muito rápido,
melhor; se tiver dedicação integral, também, e por aí vai. Alguns aspectos são incontestes, outros mais discutíveis, como o
método a ser usado para a alfabetização, ou o livro didático e os sistemas. O professor tem de saber os prós e contras dos
dois. A formação do diretor tem de começar por aí. A questão é até onde você faz a formação do professor. Numa fase de
recursos escassos, o que determinei, que continua sendo preparado, é uma formação on-line. Mas também deverá haver
um momento em que haja uma formação presencial.
Desde 2007, o projeto do Exame Nacional de Ingresso na Carreira Docente patina. Por quê?
É uma situação delicada, pois é preciso articular muitos atores. Permitiria economia substancial para estados e municípios e
também a portabilidade do ingresso. Quer dizer, você prestou um concurso nacional, ele foi utilizado para você ingressar em
São Bernardo do Campo, mas se você decidir mudar para Olinda, poderia portar o seu ingresso. A ideia de um exame
nacional é de que seja um dos insumos que a prefeitura ou o estado possa utilizar, mas não o único. Essa prova avaliaria
basicamente o conhecimento e a didática do candidato. Se o município quiser considerar se ele tem mestrado e atribuir um
peso a isso, pode fazê-lo. Isso não estaria na prova. Além do exame, pode haver uma espécie de planilha que indique cada
instrumento a mais a ser considerado – o mestrado, anos de serviço, outras coisas que atestem a qualidade do professor –
a União poderia fazer um aplicativo que permitisse que cada sistema pontuasse como quisesse. Ainda na minha gestão,
começou a ser feito um aplicativo que permitirá ver os planos de carreira de cada estado e município, porque o piso nacional
trouxe questões sérias. Como, por exemplo, estados em que se ingressa com salário alto e depois há pouca promoção
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salarial. E outros em que há uma boca de jacaré: muito pouco no ingresso e depois sobe muito. A aprovação da lei do piso
trouxe problemas nesses casos, porque você teve de reduzir a boca. Há estados em que a pessoa ingressa com um salário,
mas no momento mesmo em que entra recebe adicionais que contam para a aposentadoria, fora do salário. Há no Brasil
historicamente uma desarticulação muito grande no sistema, que tem de ser negociada. Qualquer mudança pode implicar
vantagens maiores para um ou outro grupo. Por exemplo, se você está num estado em que o que é chamado de salário é
mais baixo, com adicionais, o movimento sindical vai querer aumentar o salário mantendo todo o resto. Então terá uma
vantagem comparativa em relação ao resto do Brasil e vai onerar aquele estado de uma maneira que não corresponde ao
espírito da lei.
Ou seja, alguém terá de abrir mão de alguma coisa...
Ou abrir mão de algo que nem tem, mas que almeja.
Isso gera imobilismo?
Gera travas. Vamos pegar o caso das universidades federais. Tiveram aumentos salariais significativos. O governo Lula criou
um monte de universidades. Muitos professores e funcionários não trabalhariam em universidade pública com o salário que
ganham se não tivesse havido a expansão do sistema. No início do governo Dilma, o maior aumento que ela deu foi para as
federais, 45% escalonados, superior ao dos outros setores. No ano passado, todos tiveram aumento de 5%, contra uma
inflação de 6% de 2014 para 2015, ou seja, uma diferença pequena. Aí você tem uma greve de 4 meses. Isso não é justo. E
todos sabem que o Brasil está numa crise substancial, não há recursos. A questão de greve é delicada, pois elas são
injustas: no ensino básico, machucam seriamente crianças e famílias pobres, mas os professores precisam ganhar mais; no
caso do sistema universitário federal, o dano é menor, porque você não está lidando com crianças, mas a greve é injusta
porque os salários das federais são bons. Aqui na USP, onde sou professor, muitos docentes têm alunos que, quando
defendem o doutorado, vão para as federais ganhar melhor do que aqueles que orientaram suas teses. A pessoa está
começando a carreira com salário superior ao do seu orientador. O que mostra que o salário das federais não é ruim.
Como fugir ao círculo vicioso da desvalorização docente, cuja carreira atrai os piores alunos, que vão formar
os novos estudantes e assim por diante?
A medida mais urgente é rever os currículos dos cursos de formação de professores da educação básica. Vejo três
prioridades: primeiro, a formação de professor alfabetizador, que ficou em segundo plano desde o fim do normal, sem
formação adequada; segundo, as didáticas específicas: temos de ter professores de história que saibam ensinar história e
um professor de matemática que saiba ensinar matemática. Terceiro, é preciso formar educadores para a educação infantil,
não só pela obrigatoriedade da pré-escola, mas porque temos de melhorar fortemente a creche e universalizá-la, pois é aí
que as sinapses decisivas se formam. Temos de um lado escolas com bons métodos pedagógicos, que ensinam brincando e
transmitem valores importantes, como o respeito ao outro, a igualdade, o não preconceito; de outro, crianças que o máximo
que conseguem é alguém que as olhe. Se você é mais pobre, talvez o máximo que consiga é pagar para uma adolescente
da vizinhança para olhar seu filho e outras crianças para que não se machuquem e comam na hora certa, mas sem nenhum
aprendizado.
Não falta uma ação conjunta com outras áreas, que contemple questões como saneamento básico, por
exemplo?
Propus isso à [ministra do Desenvolvimento Social] Tereza Campello. Houve uma ideia de juntar esforços do MEC, do MDS,
da Saúde – e eu pensava no ministério [agora secretaria da Micro e Pequena Empresa] do [Guilherme] Afif também – para
pegar os municípios com pior IDH e ter ações nesses vários pontos, que certamente estão combinados. Os municípios de
pior IDH performam mal na educação, na saúde, no desenvolvimento social. O ministério do Afif ajudaria as pessoas a
produzirem mais renda, não diretamente pelo emprego, mas pelo empreendedorismo. Um dos caminhos para o Brasil é
esse. Desse ponto de vista, a extinção do ministério dele é uma pena. Apesar de a ação ter sido mantida no nível de
secretaria, o Afif tem um conhecimento dessa área que é gigantesco. Em dois anos, conseguiu criar ou formalizar cinco
milhões de Micro Empreendedores Individuais, que pagam R$ 42 por mês e, com isso, ganharam direito a aposentadoria.
Quando há essa formalização é possível expandir seu rendimento.
O MEC de alguma forma atua nessa área?
Tem uma ação chamada Certificação de Saberes. Se você é pescador e analfabeto, o MEC faz um acordo com a Secretaria
da Pesca e monta um curso de cerca de 160 horas, para esses pescadores. Mas eles só farão as horas de que realmente
necessitarem, pois pescam muito melhor do que quem vem de fora. Mas podem aprender como comercializar, como
garantir que o produto não estrague, português e matemática (para além das 160 horas). Com isso, recebem um certificado
de pescador. Nossa meta era de que virassem MEIs. Ou seja, pescadores que estavam em condição desvalida passaram a
ser capacitados para vender peixe para o mercado, tudo formalizado. São medidas em que a educação pode interferir
também. Há várias formas de juntar esforços de diferentes áreas, com bons resultados.
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9
As universidades públicas não poderiam ter um papel de maior relevância na formação docente?
Em primeiro lugar, é preciso dar um foco maior no aprendizado, formar professores que saibam alfabetizar, que tenham
didáticas específicas, o que supõe várias disciplinas diferentes, formar para a educação infantil. As universidades públicas
têm obrigação moral de fazer isso. É questão ética para elas e para os institutos federais de ciência e tecnologia serem
solidários com a educação básica. Mas há um problema adicional: de modo geral, quem vai lecionar na rede pública é
egresso de instituição privada. O que fizemos? Mudamos os critérios do Fies, para priorizar três áreas: professorado,
engenharia e saúde. A ideia é que se financie o setor privado, com prioridade para os cursos nota 5, ou seja, fazer do Fies
um instrumento de melhora nessa questão. Resta um problema crucial: como o salário na rede pública não é alto, os
melhores não vão para lá. Há um esforço de várias prefeituras para que os professores da rede possam fazer mestrado e
doutorado, com o risco de que, obtendo esses títulos, procurem um lugar que pague melhor. Isso bate em outra questão
séria, que é o risco de apagão do professorado. Com o volume de aposentadorias e o caráter pouco atrativo do ensino
básico, há essa dificuldade. O Plano Nacional de Educação percebeu isso bem, na Meta 17, que manda equiparar, até 2020,
o salário do professor da rede pública ao de pessoas de mesma escolaridade de outras áreas.
Qual a sua visão sobre o PNE? O Plano não é muito dependente da Meta 20, do financiamento?
O PNE tem um grande problema, que é o financiamento. O Brasil coloca 6% do PIB na educação, como a Alemanha e a
OCDE em geral, com uma educação muito melhor que a nossa. Mas o PIB per capita da Alemanha é cinco vezes o nosso. Se
quiséssemos equiparar os 6% deles, teríamos de colocar 30%, o que é fora de questão. Quase todo o PNE é correto, não há
muito a contestar. O problema é fazer isso na prática e o fato de que veio junto com a convicção de que basta colocar
dinheiro, que isso resolve. A questão da qualidade ficou muito em segundo plano.
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Algumas metas não são ambiciosas demais, como a de atender 50% de 0 a 3 anos apenas com recursos do
Estado? A Itália atende em torno de 40%, com contribuição das famílias.
Aí entra uma ideologia que diz ser de esquerda – mas se fosse estaria preocupada com o aprendizado dos alunos -, mais
atenta aos meios do que aos fins, sem aceitar avaliação, a responsabilização do professor. Isso atrapalha muito. O Brasil
não vai conseguir fazer o PNE. Isso é óbvio. Já temos dois anos perdidos. Pouco depois que o PNE foi votado, começou essa
grande crise econômica. Estamos com queda no PIB, especialmente do PIB per capita. Quando a economia começar a
melhorar, teremos de recompor o que foi perdido. Não está assegurado que terminaremos esse mandato com PIB per capita
igual ao do começo. Hoje não dá prever. É preciso mais dinheiro para a educação. Mas você só vai convencer a sociedade
de que é preciso tributar mais se você mostrar serviço. E isso está faltando. Nosso desempenho não é dos melhores. A
Capes criou o PIBID, que é muito bom. Mas apenas 20% dos que saem do PIBID vão para a rede pública. Estão sendo
formados profissionais bons, que estão entrando em concursos na Petrobras e no Banco do Brasil. Mas o PIBID não é para
isso. Temos problemas de articulação das ações que poderiam ser mais bem amarradas. Dei o exemplo de as universidades
federais ministrarem vários cursos da mesma disciplina a distância. Também é preciso ter uma responsabilização maior de
todo o sistema federal de ensino. Dou um exemplo: dei posse a um reitor de um instituto federal de ciência e tecnologia,
ensino técnico que tem de desenvolver a região. Ele tomou posse dizendo que suas metas eram inclusão social e valorização
do servidor. Respondi que o instituto não foi feito para isso, para o umbigo dos servidores, nem mesmo para inclusão social.
Ela é um meio importante, mas o principal que o instituto deve fazer é ver a economia da região e ver o que pode ser
desenvolvido, o que pode ser feito para melhorar a mão de obra local. Esse é papel dele. A inclusão é fundamental para ter
bons servidores, mas não se pode confundir o meio com o fim. Estamos numa situação em que essa prestação de contas à
sociedade, mostrando o que estamos fazendo de bom que justifique um aporte maior de dinheiro, é um problema. Não digo
que estamos trabalhando mal, vejo muita gente trabalhando com afinco, mas para aumentar a tributação é preciso mostrar
bem mais do que isso. É preciso eliminar todos os focos de desperdício e usar muito a avaliação para melhorar. Nesse
ponto, infelizmente, os movimentos sindicais são muito reticentes.
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Não há exagero no uso das avaliações de larga escala ao atrelar-se todo o processo educacional a elas,
retirando espaço do professor?
Penso que ainda não. Avaliação não é tudo. Quando alguém me pergunta “onde vou colocar meu filho?”, falo “olhe o Ideb,
o Enem, mas aí vá à escola”. Não adianta pegar o melhor Enem da cidade de São Paulo e dizer quero porque quero colocar
o meu filho nessa escola, pois você pode não gostar, os valores podem não ser os mais adequados, a escola pode frisar
muito só os pontos avaliados. O mundo existe muito além da avaliação. Algo muito importante é a formação da pessoa, que
não se reduz a saber matemática e português. Não temos condições também – e nem sei se seria desejável – de fazer uma
avaliação de todas as matérias com a profundidade que se faz de português e matemática. É difícil avaliar artes, e talvez
muito menos útil avaliar o ensino de artes do que essas duas grandes linguagens. Agora, enquanto o básico não estiver
garantido, não dá para abrir mão da avaliação. Por exemplo, a alfabetização no Ceará: eles chegaram a fazer o material
didático. A União, quando fez o Pnaic, inspirado no Ceará, tirou de cena os governos de estado e quis lidar direto com as
escolas e com as universidades. As universidades não ajudaram, a saída dos estados prejudicou o processo e a União não
fez o seu próprio material didático. A ideia era de uma independência maior do professor, enquanto a ideia do Ceará era de
um monitoramento o tempo todo. Havia um acompanhamento frequente da alfabetização e, quando havia problemas, um
professor responsável pela classe ia visitar a família e saber o que estava acontecendo. Neste momento, essas coisas são
cruciais. Quando você tiver professores bem capacitados, será diferente. Dou outro exemplo: a defesa dos sistemas alega
que eles aceleram o aprendizado. Mas o sistema é eficaz quando você tem um professor despreparado, ou mal preparado.
Quando há um professor bem preparado, é claro que é preferível que ele prepare a aula. Isso bate num círculo vicioso que
estamos vivendo. De um lado, há gente dizendo que pondo mais dinheiro e aumentando os salários resolve; de outro, há
quem defenda que há muitas maneiras de melhorar a educação sem passar pelo aumento do salário do professor. As duas
visões são incompletas. Tudo o que há na internet – Khan Academy etc. – ajuda, mas não prescinde do professor. A escola
é socialização, e por isso precisa ter contato com gente de carne e osso. É a maneira pela qual a criança vai saindo do pai e
da mãe, vai criando relações de afeto, amor e ódio com professores e professoras, até encontrar o caminho dela. E isso não
se substitui com técnica.
Até que ponto a avaliação sobre o resultado final é mais eficaz do que a avaliação sobre os diversos insumos
do processo, como infraestrutura, professores etc.?
O essencial é o resultado. Quando fui diretor da Capes, a avaliação da pós-graduação considerava muito os insumos e muito
pouco o resultado. Fomos enfatizando cada vez mais o resultado, vendo se os programas de pós-graduação estão formando
bem os mestres e doutores. As teses e dissertações que defendem são boas? Esses alunos publicam? Isso é mais
importante do que saber quantos professores fizeram pós-doutorado. E isso levou a outra reflexão, que não cheguei a
adotar na Capes, que é ver o resultado em relação aos insumos disponíveis. No caso da Capes, era quase contraditório.
Contava na avaliação se você havia obtido recurso de Capes, CNPq, Fapesp, isso era positivo. Só que fora de São Paulo há
agências de fomento muito mais pobres. E se todos os recursos não repercutem no resultado, eles estão sendo mal usados.
Uma das questões discutidas foi se não seria o caso de fazer uma equação insumos/resultados para ver se quem tem mais
insumos está realmente utilizando isso na meta da pós-graduação, que é fazer pesquisa e formar gente. No caso da
educação básica é óbvio que você tem de ver todos os insumos. Se você tem uma escola que não tem banheiro, acesso à
internet, cujo fornecimento de luz é precário, é óbvio que não se pode cobrar dela o mesmo resultado. Com a avaliação,
você tem o resultado, aí vê o que gerou o resultado. A avaliação não visa simplesmente dar nota ou salário para o
professor, visa saber qual é o problema. Ver se tem problemas de estrutura física, de coordenação, de formação do
professor, é isso que ela vai averiguar.
E quem deve se apropriar da avaliação?
Se o diretor for bem formado, ele já percebe isso. Mas é preciso uma instância externa que faça isso, procurando ver quais
são os problemas e tomando atitudes. Senão, facilmente você acoberta os problemas. Não se trata de fazer uma
intervenção federal na escola, como foi cogitado pelo [ex-ministro] Mangabeira Unger. Trata-se de fazer as escolas
melhorarem. Para isso, é preciso juntar esforços. Alguns institutos privados fizeram estudos muito bons sobre isso. E esses
institutos têm visões muito diferentes. O Cenpec e o Instituto Ayrton Senna veem as coisas de maneiras diferentes. Há
muito conhecimento já existente no Brasil, que acaba tendo pouca aplicação para resolver o problema.
Como o senhor vê o lugar da escola hoje?
Vejo três questões que se colocam para a escola. Você tem de garantir a universalização, então precisa que todos os alunos
estejam na escola com a idade adequada. Nesse indicador, melhoramos muito nos governos Lula e Dilma. O segundo ponto
é melhorar a qualidade. Os indicadores ano a ano mostram que não houve uma piora do ensino nas escolas no Brasil,
apesar da expansão. Mas a melhora não foi grande. Agora que o fundamental está quase todo universalizado, dá para
investir bastante na melhora. E o terceiro ponto, que é o que mais responde à pergunta, está relacionado à criatividade.
Você não pode manter o mesmo modelo de escola. Quando a gente pensa em universalização e melhora de qualidade, está
pensando em ampliar e melhorar a escola como ela existe. Não pode ser. Tem de modificar muito. Por isso criei um
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programa no MEC para identificar as escolas inovadoras. Foram criados grupos de trabalho, dirigidos pela Helena Singer, e o
objetivo era ver quais são as escolas no Brasil que têm um trabalho criativo, inovador, que pensam a escolarização de outro
jeito. Isso é decisivo. Há um papel da escola que permanece o mesmo e tem valor: o de tirar a criança do mundo da família
e de colocá-la na sociedade. Desde o começo, a escola exerceu esse papel. De forma melhor ou pior conforme a época.
Hoje, temos de levar muito em conta elementos de formação da pessoa, em termos psicológicos e éticos, que antes não
eram considerados. Um exemplo: a escolaridade obrigatória termina no ensino médio. É preciso que a pessoa tenha aí um
conhecimento completo sobre certas coisas. E onde não existe esse conhecimento completo? Sobre o funcionamento da
sociedade e sobre a psique. Temos três anos de filosofia e de sociologia, mas precisaríamos ensinar como é a sociedade
moderna, atual, estratificada em classes, seus conflitos. Segundo ponto: teríamos de entender o que é a economia atual,
basicamente capitalista, mas também com espaços de cooperativismo e de solidariedade. Se você não souber isso, se forma
aos 17 anos e não sabe o básico. Terceiro ponto: como funciona a democracia – grega, moderna, direta, representativa,
parlamentarismo, presidencialismo, voto distrital, voto proporcional – as pessoas têm de ter uma formação sobre isso, não
ideológica. E também seria bom ter psicologia, uma formação para a vida. O máximo que ingressou nesses anos foi a ética,
mas de maneira insuficiente.
E às vezes confundida com regras...
Ah, sim, confundem com disciplina. Em vez de gerar um sujeito autônomo, que tome decisões, às vezes difíceis, e arque
com elas, vem regras. E o pior é que quando há uma contestação às regras tradicionais, ela se dá em nome de novas
regras. Hoje, uma parte dessa querela gigantesca em que o país está metido, que inclui questões como feminismo, aborto
etc., é que há escassas discussões que deem às pessoas o espaço para elas escolherem seus caminhos.
RUBEM BARROS é jornalista e escreve para esta publicação. Revista EDUCAÇÃO, Maio de 2016.
Tupi or not to be (ELIANE BRUM)
Em nome de Deus e do New York Times, a disputa do impeachment e dos Brasis
O 17 de abril de 2016 tornou explícito que esta não é apenas uma crise política e uma crise econômica. Mas
também uma crise de identidade, de ética e de estética. Os holofotes lançados sobre a Câmara dos Deputados, em
transmissão ao vivo pela TV, iluminaram o horror. E iluminaram o horror mesmo para aqueles que torciam pela aprovação
da abertura do processo de impeachment de Dilma Rousseff. No dia seguinte, algo também revelador aconteceu: a disputa
foi levada ao território “estrangeiro”. Não uma disputa qualquer, mas a disputa sobre como nomear o acontecido. Vale a
pena seguir essa pista.
A imprensa internacional aponta para o Brasil e diz, com variações, que o espetáculo é ridículo, o que aconteceu foi um
circo. A presidente Dilma Rousseff e o PT vão disputar lá fora o nome da coisa: é um golpe – ou um “coup”. O presidente da
Câmara,Eduardo Cunha (PMDB), despacha dois enviados especiais para garantir outra narrativa: o impeachment é legítimo,
as instituições brasileiras funcionam, tudo está dentro das normas. Vozes se erguem para acusar Dilma Rousseff de expor o
Brasil no “exterior”, prejudicando a imagem do país, reduzindo-o a uma “republiqueta de bananas”. Na ONU, Dilma recua da
palavra “golpe” e escolhe, para oficialmente representá-la, outra palavra, uma que não constitui quebra: “retrocesso”. Não é
ali que se dá a disputa. A guerra está no território dos narradores. E os narradores contemporâneos encontram-se em
grande parte (ainda) na imprensa.
A disputa do impeachment aprofundou o que já havia sido exposto nas manifestações de 2013: a crise da imprensa
brasileira não é apenas de modelo de negócios, mas de credibilidade. Como acontece com os partidos políticos, a da
imprensa é também uma crise de representação, já que parcelas significativas da população não se reconhecem na
cobertura. Neste sentido, o olhar do outro, aqui representado pela imprensa internacional, devolve algo sem o qual não se
faz jornalismo que mereça este nome: devolve o espanto, lugar de partida de quem deseja decifrar o mundo que vê.
E, a partir do espanto, busca compreender como uma presidente democraticamente eleita por 54 milhões de votos,
sem crime de responsabilidade comprovado, tem a abertura de seu processo de impeachment comandado por um réu do
Supremo Tribunal Federal, numa Câmara em que parte dos deputados é investigada por crimes que vão de corrupção ao
uso de trabalho escravo, num espetáculo que desvela pelo grotesco as fraturas históricas do país.
A narrativa construída por uma parte da imprensa brasileira sobre o momento mais complexo da história recente do
país, a forma como essa parcela da mídia ocupa seu papel como protagonista, assim como as consequências dessa atuação,
merecem toda atenção. Possivelmente muitos livros serão escritos sobre esse tema, as perguntas recém começaram a ser
feitas. Nesse artigo, porém, quero seguir uma outra pista, que considero fascinante demais para ser perdida. Também não
se trata aqui de analisar o que a imprensa de outros países disse de fato – e que está longe de ser homogêneo como se
quer vender. Não se trata aqui “deles”, mas de “nós”.
A pista que investigo aqui parte da interrogação sobre o que significa levar a disputa narrativa ao território simbólico do
grande outro, “o estrangeiro”. E não qualquer estrangeiro, mas o que fala principalmente inglês, depois alemão e francês e
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espanhol (da Espanha, não da América Latina). E o que significa dar a essa entidade, chamada “imprensa estrangeira”, a
palavra para nomear o que aconteceu – e acontece – no Brasil.
O que é o horror, este que nos persegue desde o domingo 17 de abril? O horror é a impossibilidade da palavra. O
horror é também uma infância que nunca acaba. É tudo menos banal que num dos momentos mais ricos de sentidos da
história recente faltem palavras para narrar o Brasil. Em parte porque elas foram barradas pelos muros de um lado e outro,
interditando o diálogo. E palavras que não atravessam produzem silenciamento. Em parte porque as palavras foram
distorcidas, violadas e esvaziadas. E isso produz apagamento.
Mas há mais do que isso. É tudo menos banal que as palavras que faltam sejam procuradas em outro lugar. Porque, se
não conseguimos construir uma narrativa em nome próprio, como constituir um país? Este é o abismo, como sabiam os
modernistas de 22. Ou este ainda é o abismo. Que ainda o seja vai demandar que nos lancemos na tarefa imperativa de
encontrar as palavras que agora faltam. Ou de inventá-las. Não na língua de Camões, mas “nas línguas que roçam a de
Camões”, como cantou Caetano Veloso. Que em vez disso nos lancemos em busca de que o outro nos nomeie, de que o
outro diga o nome da coisa que se passa aqui, é bem revelador. Agora menos a Europa e mais os Estados Unidos, agora
menos Paris e mais Nova York, agora menos Le Mondee mais New York Times. Como se diante da cena ainda por decifrar
não fôssemos capazes de falar em nome próprio.
E aqui, sempre vale a pena sublinhar, não se trata de nenhuma invocação de nacionalismos ou de purismos aos moldes
Aldo Rebelo. É bem o contrário disso. O outro, seja ele quem ou o quê for, pode e deve falar sobre nós. É importante que
fale. Mas a interrogação aqui é outra: é por que delegamos a ele a palavra que não somos capazes de encontrar – ou de
criar. E que diz respeito ao próprio jogo de identidade/desidentidade essencial à construção de uma pessoa – e também de
um país. E como isso está na própria raiz da crise. O Brasil, este que nasce pela invasão dos europeus e promove primeiro o
genocídio indígena, depois o dos negros escravizados – ambos ainda em curso, vale dizer –, nasce com a carta do português
Pero Vaz de Caminha. Parte da nossa trajetória é narrada pelo olhar de viajantes notáveis, como o francês Auguste de
Saint-Hilaire. O que se diz do Brasil, e que portanto o constitui como narrativa, é dito em língua estrangeira, como todo país
que nasce da usurpação do corpo de um outro.
O Brasil, estrangeiro a si mesmo, já que o que aqui existia em 1500 não era Brasil, é constituído pelo conflito, pela
dominação e pelo extermínio expressado também na construção da língua. A língua portuguesa, ainda que tenha se imposto
junto com seus falantes, foi tomada ela mesma pelos invadidos e pelos escravizados. Ou pelas línguas indígenas primeiro,
pelas africanas depois. Não fosse essa contra-invasão pela palavra, a resistência dos invadidos e dos escravos, não seria
possível existir um país em nome próprio. Persiste e resiste nas curvas do corpo da língua portuguesa a vida dos mortos.
Essa construção é um campo de conflitos permanente. Basta lembrar as batalhas ocorridas nos últimos anos entre a tal
norma culta do português e as variações do português brasileiro, consideradas pelas elites como indesejáveis e menores –
“erradas”. Basta escutar as línguas criadas nas periferias urbanas e na floresta amazônica, as línguas vivas que disputam o
nome próprio do Brasil. Que no momento em que se disputa a narrativa sobre a coisa que aqui acontece, ou sobre o nome
da coisa que aqui acontece, ela seja levada à língua do “estrangeiro”, talvez seja “a nossa mais completa tradução”.
Há muitas razões e significados. Mas talvez exista também uma nostalgia do colonizador. Uma demanda de
paternidade. Ou de autoridade. Digam vocês, os que sabem, o que acontece aqui. Deem-nos um nome. Nossas elites, como
se sabe, são jecas. Primeiro cortejavam a França, agora é tudo em inglês. Americano, de preferência. Os Estados Unidos
como a colônia que conseguiu virar metrópole e, por fim, a grande potência mundial. Que uma parcela da imprensa e das
elites seja agora achincalhada em inglês é uma ironia das mais interessantes. Com a ascensão de Lula ao poder, o primeiro
presidente que não pertencia às elites, a expectativa de alguns, entre os quais me incluo, era a da fundação de uma nova
ideia de país. Dito de outra forma, que o Brasil fosse menos um imitador e mais um criador. E isso também na economia.
Eduardo Viveiros de Castro coloca bem essa perspectiva numa entrevista dada aoOutras Palavras, em 2012, quando já
se sabia que essa possibilidade tinha sido perdida, pelo menos no governo Lula: “Penso, de qualquer forma, que se deve
insistir na ideia de que o Brasil tem – ou, a essa altura, teria – as condições ecológicas, geográficas, culturais de desenvolver
um novo estilo de civilização, um que não seja uma cópia empobrecida do modelo americano e norte-europeu. Poderíamos
começar a experimentar, timidamente que fosse, algum tipo de alternativa aos paradigmas tecno-econômicos desenvolvidos
na Europa moderna. Mas imagino que, se algum país vai acabar fazendo isso no mundo, será a China. Verdade que os
chineses têm 5.000 anos de história cultural praticamente contínua, e o que nós temos a oferecer são apenas 500 anos de
dominação europeia e uma triste história de etnocídio, deliberado ou não. Mesmo assim, é indesculpável a falta de
inventividade da sociedade brasileira, pelo menos das suas elites políticas e intelectuais, que perderam várias ocasiões de se
inspirarem nas soluções socioculturais que os povos brasileiros historicamente ofereceram, e de assim articular as condições
de uma civilização brasileira minimamente diferente dos comerciais de TV”.
Lula, como bem sabemos, adotou um modelo de desenvolvimento que ignorava o maior desafio desse momento
histórico, a mudança climática. E Dilma Rousseff mostrou-se uma governante com pensamento cimentado no século 20, às
vezes no 19. Mas é na produção simbólica que fica claro como ainda se tratava de “vencer” no campo do outro. Ou de ser
reconhecido “pelos grandes” – ou “pelos adultos”.
Lula termina seu segundo mandato festejado na Europa e nos Estados Unidos como aquele que incluiu dezenas de
milhões de brasileiros no mundo do consumo. A “invenção” do Brasil era deveras interessante: tirar pessoas da pobreza sem
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mexer na renda dos mais ricos. Com esse milagre made in Brazil, Lula só poderia ser “o cara de Obama”. “This is my man,
right there. I love this guy”, disse o presidente americano em 2009. “The most popular politician on Earth”.
O que ficou encoberto no meio da festa é que a “mágica” obedecia a uma receita velha: exportação de matériasprimas, como o Brasil fazia desde os primórdios. Também esquecia-se de dizer que essa “criação” era feita na base da
destruição do meio ambiente, como sempre foi desde 1500. A novidade não era tão nova assim. E tão logo o encanto se
desfez, os mais ricos, em cuja renda os governos do PT não tocaram, se O destinatário da produção de símbolos revela-se
na escolha dos acontecimentos que deveriam mostrar, de forma definitiva, que o eterno país do futuro finalmente havia
chegado a um presente glorioso. Dois eventos internacionais, dois eventos para o mundo ver: a Copa do Mundo de 2014 e a
Olimpíada de 2016.
Há um sujeito confuso nessa narrativa. Um sujeito sujeitado. Quando se joga no campo do outro, segundo os termos
do outro, se perde por 7X1. A Olimpíada é assombrada por um mosquito, vilão arcaico que denuncia velhas mazelas como a
falta de saneamento básico. E a nova ciclovia do Rio desaba matando duas pessoas no mesmo dia em que a tocha olímpica
é acesa na Grécia. A construção, tanto a simbólica quanto a concreta, não para em pé. Lost in translation. Será sempre lost
in translation enquanto não se encontrar o nome próprio. Enquanto o Brasil não falar em nome próprio. Enquanto o Brasil
seguir insistindo em ser descoberto quando o que precisa é se inventar. Essa realidade é o cenário da extraordinária peça de
Felipe Hirsch e Os Ultralíricos, A Tragédia Latino-Americana, em que os blocos são construídos para em seguida desabarem
e serem rearranjados para logo depois virarem ruínas e tudo então ser mais uma vez reconstruído para desabar de novo e
de novo e de novo.
Sobre esses blocos em permanente construção e dissolução, Pero Vaz de Caminha recita sua carta, agora narrada em
inventiva prosa pelo escritor Reinaldo Moraes. Para parodiar o português, o brasileiro invade a língua do invasor. “Antão
dizia eu que antes de alguém ter tempo de dizer chupa! já saltávamos aos cangotes daquelas fêmeas naturaes, feitos javalis
resfolegantes de animalesco e represado d’sejo, e elas viram o que era bom pa tosse, pá. E às vezes que por qualquer razão
já não queriam mais ter seus urifícios frequentados brutalmente pela nossa nobre gente, dávamos-lhes uns cascudos, mor
d’elas calarem as matracas, e nelas mandávamos grosso fumo, pá, refodidas vezes, e era pimba na pombinha e peroba na
peladinha! Aquilo era um vidão, pá”.
Criar o que pode ser chamado de um “em nome próprio” foi o desafio dos principais movimentos culturais do século
20, dos modernistas de 22 ao Cinema Novo e à Tropicália. Não por coincidência, processos interrompidos por ditaduras. Em
2013, o novo voltou a ocupar as ruas com enorme potência, para ser reprimido pelas bombas de gás da Polícia Militar e pela
violência da palavra “vândalos”, usada pela imprensa conservadora para silenciar o que não queria escutar ou o que não era
capaz de interpretar. É de 2013 que ainda se trata hoje, e se tratará por muito tempo. Do que já não pode ser contido, do
que reivindica novas palavras para poder ser dito. Não mais como discurso, como nos movimentos da modernidade, mas
como fragmentos, ou como discurso contra discurso, em nossa principal irrupção estética de pós-modernidade.
O Brasil não é pátria nem mátria, mas fátria, como cantou Caetano. Para encontrar as palavras com que construiremos
a narrativa do hoje é preciso olhar para Oswald de Andrade, para Villa-Lobos, para Glauber Rocha, para Zé Celso Martinez
Corrêa, para Davi Kopenawa e Ailton Krenak, para Mano Brown e Emicida, para Eliakin Rufino, para Sérgio Vaz, para Laerte,
para Mundano. Para tantos. Para o perspectivismo ameríndio de Eduardo Viveiros de Castro. Para a literatura de Carolina
Maria de Jesus. Para a Comissão da Verdade. A dos crimes da ditadura. E a dos crimes da democracia.
Para o funk das que não são recatadas e que comandam seus próprios lares. Para as famílias que têm dois homens e
nenhuma mulher e as que têm uma mulher e outra mulher, para as que tem três padrastos e nenhuma madrasta, para as
de uma mulher só. E para as mulheres que antes foram homens. Para os deuses que se recusam a ser vítimas de
estelionato no microfone do parlamento. Para refundar o Brasil é preciso perceber que as periferias são o centro. Que nossa
capital simbólica não é São Paulo, mas Altamira.
Inevitável lembrar de Terra em transe (1967), filme de Glauber Rocha. Diz o jornalista, depois de descobrir que as
palavras são inúteis: – Não é possível esta festa de bandeiras, com guerra e Cristo na mesma posição. Não é possível a
potência da fé, não é possível a ingenuidade da fé. (...) Não assumimos a nossa violência, não assumimos nossas ideias, o
ódio dos bárbaros adormecidos que somos. Não assumimos nosso passado. (...) Não é possível acreditar que tudo isso é
verdade.... Até quando suportaremos, até quando além da fé e da esperança suportaremos... Diz o político que se
corrompeu:
– Aprenderão! Aprenderão! Nominarei essa terra. Botarei essas histéricas tradições em ordem. Pela força. Pelo amor da
força. Pela harmonia universal dos infernos chegaremos a uma civilização! O que fazer diante do horror? Retomar a palavra,
a que atravessa os muros. Enfrentar o desafio de construir uma narrativa, necessariamente polifônica, sobre o momento,
em todos os espaços. Não desviando das contradições, para evitar que elas manchem a limpidez do discurso. Ao contrário.
Abraçando-as, porque elas criam o discurso. O nome da coisa é a palavra que precisamos encontrar para inventar o Brasil.
ELIANE BRUM é jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É
autora de um romance – “Uma Duas” – e de três livros de reportagem: “Coluna Prestes – O Avesso da Lenda”, “A Vida Que
Ninguém Vê” (Prêmio Jabuti 2007). Site: desacontecimentos.com. Site do Jornal EL PAÍS (http://brasil.elpais.com), Maio
de 2016.
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Shakespeare, o polimórfico (LAWRENCE FLORES)
Autor de Hamlet reflete o interesse do público pela história da Inglaterra e mostra uma visão renovada da política
NO FINAL do século 16, Londres tinha já um número notável de teatros populares, casas de espetáculo que podiam
abrigar o público necessário para sustentar a dispendiosa empreitada teatral. O teatro era um fato empresarial, comercial.
Foi nesse mundo que Shakespeare teve a oportunidade de escrever as suas comédias, tragédias e crônicas de reis. É
impossível pensá-lo em outro lugar: Londres era um centro de publicações e teatros, e sobretudo, de novas traduções e
discussões. Nesse empreendimento ele era ator, autor e sócio, tanto no grupo dos Lord Chamberlain’s Men como mais tarde
noKing’s Men, companhias que, apesar de trazerem o nome de um patrono nobre ou monárquico, haviam conquistado
considerável autonomia.
Era um teatro mais livre do que outras manifestações teatrais no continente e na própria Inglaterra. O teatro de
Shakespeare refletia essa liberdade que vinha de um crescimento menos tutelado. Não seguia os preceitos teatrais
neoclássicos que mais tarde definiriam, na França, novas regras que acorrentariam o teatro francês por duzentos anos.
Quando, séculos mais tarde, Stendhal fez sua diatribe contra os classicistas em defesa dos românticos, ele lembrou as peças
de Shakespeare como exemplo maior de arte romântica. Ele sabia que esse teatro era indiferente à noção clássica de decoro
e decência, a própria verossimilhança não parecia ser ali um princípio importante, e a temporalidade era complexa. Havia o
grotesco, o popular, o aristocrático, a variedade infinita, a linguagem polimórfica incontrolável, o comovente seguido do
espúrio. Seus reis, diversos dos modelos clássicos, apareciam ora em situações baixas, numa tasca frequentada pela ralé,
ora nos grandes palácios.
Era também um teatro violento no estilo senequiano em voga no final do século 16. Mesmo no auge de sua carreira,
Shakespeare vai mostrar, em Rei Lear, um Gloucester sofrendo em pleno palco uma violência inominável… Tito Andrônico,
peça brutal até para os padrões atuais, mostra a jovem Lavínia sofrendo estupro e mutilação. Shakespeare tinha uma
argúcia a mais e um fino conhecimento da mente humana: vislumbrava com mestria as distinções de caráter, de situação e
registro pessoal. Usava o retórico, o realismo, o demoníaco, o perverso, o comovente com imensa desenvoltura.
Desenvolveu, além disso, um estilo que dava voz aos seus personagens que deixavam de ser apenas máquinas retóricas
como tantos outros de Christopher Marlowe e Thomas Kyd. Quem hoje lê Otelo nota como um personagem pode passar da
linguagem “pública”, marcada pela grandeza retórica, para uma fala carregada de clichês. Otelo incorpora, contaminado
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pela difamação, a linguagem do vilão da história, o malévolo Iago. Dos períodos musicais do início da peça, ele passa para
uma linguagem sexualizada, misógina, pesada de termos chulos. As transformações dentro do drama não ocorrem mais na
ação, mas são metamorfoses internas dos personagens. As falas de Ricardo II, como rei decadente, estão próximas do
cômico patético, assim como muitas das iterações grotescas de Lear – ainda que, no início da peça, ele fale a língua
salomônica e jurídica dos reis.
Era também um mestre em criar contextos que envolvem as ações e as atrelam a situações fatídicas. Até aqueles
personagens cujos traços se aproximam de um tipo, como Iago, agem em um mundo bem-estruturado. Iago é um alferes,
um posto inferior que o transforma num underdog do regime de Veneza. Essa posição, que ele ressente e detesta, já é por
si só motivo para a sua ação. Tirado de tipos medievais, Shakespeare lhe deu um contexto, o de Veneza, que o autor
apresenta de modo nada abstrato: é uma república, com seus estamentos, liderada pela Signoria cujas ações legislativas
Shakespeare, um leitor atento, foi procurar no Commonwealth of Venice do Cardeal Contarini. Em Rei Lear, sem dúvida o
mundo da corte parece retroceder a um tempo lendário, mas o dramaturgo se preocupou em mostrar ali uma cultura da
punição e da vingança que era bem conhecida dos elisabetanos e jacobinos. Os estudos comparativos sobre as fontes das
peças de Shakespeare mostram como ele transformava a história-fonte em histórias ricas de contexto.
Shakespeare foi chamado por Harold Bloom de inventor do humano, o que significa que foi o inventor de algum tipo de
interioridade. Seu drama foi impactado por um interesse da época pela mente humana, suas paixões. Ele era tanto um leitor
dos tratados contemporâneos sobre a melancolia como, indiretamente, das reflexões de Montaigne. As divagações nos
solilóquios de Hamlet (e de Brutus em Júlio César) já estavam nosEnsaios de Cornwallis (inspirados em Montaigne), onde
são óbvios alguns traços estilísticos desse novo homem dividido, suspenso na existência. Shakespeare usava
primorosamente o verso e a prosa, assim como a prosa poética e o verso prosaico, mas de um modo contrastivo. Seus
versos, aliás, não eram exatamente os modelares pentâmetros iâmbicos de outros autores. Situações altaneiras, oficiais,
respeitáveis, filosóficas, entre outras, vinham em verso. A prosa era reservada às situações “baixas” (de modo geral). A
variedade de Shakespeare é ainda hoje insuperável. Afora isso, ele era um mestre da alusão e da sugestão psicológica.
Quando Laertes dá conselhos a Ofélia, ele é inicialmente brusco, torna-se suave, depois hipócrita e secretamente ciumento,
tudo em alguns cinquenta versos. Quando Hamlet confessa que está “melancólico” a esses dois panacas que são
Rosencrantz e Guildenstern, sua confissão já é uma manipulação retórica de seus sentimentos, e esses seus antigos amigos
não deixam de notar que nem tudo aquilo que é confessado deve ser creditado. Mesmo efeito para os espectadores e
leitores.
subterrâneos que carregam uma segunda narrativa simbólica das paixões submersas dos personagens. Freud o flagrou
e, n’A interpretação dos sonhos, afirmava que Hamlet era um segundo exemplo marcante para sua teoria do complexo de
Édipo. O que Freud estava vendo era o imaginário das fantasias maternas onipresentes após 1600 nas peças que, mais
tarde, Janet Adelman viria a estudar em Shakespeare. Pensem em Lear que vê suas filhas como mães e que sofre de
“hysterica passio” (e de uma gravidez imaginária); em Hamlet, pedindo a sua mãe para evitar o leito contaminado e
incestuoso e mandando Ofélia para um “convento”; em Ricardo III, que descreve sua deformidade corporal como se
originada na compressão uterina e criminosa de sua mãe; em Otelo e sua fantasia “oriental” com o lenço da mãe, cuja
posse garantia também a estabilidade do jovem guerreiro. Há situações semelhantes em Coriolano e Macbeth. Esses traços
que estão enrodilhados na linguagem da peça eram fios originários da mentalidade misógina que eclodiu no período em
combinação com o privilégio dado pela Reforma às narrativas bíblicas de origem.
Ao lado de Maquiavel, Boudin e outros teóricos renascentistas do poder, Shakespeare ocupa um lugar também
excepcional – é possível imaginá-lo se reportando já às discussões parlamentares sobre a natureza dos reis, no período da
Guerra Civil. Nas peças dedicadas exclusivamente à história dos reis ingleses, é flagrante o senso histórico do Bardo. Ele
refletia, de um lado, o interesse do público pela “história” da Inglaterra (questões de patriotismo) e, por outro lado, já
comportava, em seus conflitos, uma visão renovada da política. Isso se revelava, por exemplo, na distinção que sugeria
entre um antigo mundo e um novo mundo, o velho mundo da autoridade patriarcal monárquica, com seus cavaleiros e
heróis, em aberrante contraste com o mundo contemporâneo, mais plástico e polimórfico, mais dividido em seus deveres,
menos apto à obediência. Aquele era um mundo não raro ideal, para os personagens; já o novo mundo era uma incógnita
difícil de ler com os instrumentos conceituais do tempo. Talbot, em Henrique VI, parte 1, é a encarnação da antiga cepa, da
velha cavalaria, fiel à realeza e ao velho mundo – o mundo da honra e do valor. Em Hamlet, dois cosmos simbólicos são
bem evidentes: o do velho rei, admirável espectro, vestido com sua armadura bélica, emblema das antigas formas de
justiça, da reparação pela vendeta; e o mundo de Elsinor, já dominado pelo espírito cortesão, pela prudência política, pela
conspiração e linguagem tortuosa. Ali até mesmo o jovem Hamlet se vê enredado em suas especulações. Os velhos valores
da honra, da cavalaria, da vingança honrosa não raro são objeto do escárnio de alguns personagens.
Embora Shakespeare tivesse tanta agudeza política, ele rejeitou as ficções políticas abstratas do período, entre elas a
divindade dos reis, mas também o que vinha da longa tradição profética ou utópica. A primeira aparece em Hamlet, onde
Cláudio recorre à abstração de sua indestrutibilidade carismática como rei, ou ainda em Troilo e Créssida, no célebre
discurso de Ulisses, sobre a ordem hierárquica do mundo. Em Ricardo II ele mostra, com pathos ímpar, como um rei perece
ao se abrigar estupidamente nas ficções de sua divindade, as quais, na política açodada das insurreições, nada podem.
Ricardo II de fato cai porque acha que sua convicção basta para sustentá-lo no trono. Na mesma peça, o conspirador
Bolingbroke é uma figura ambígua: talvez um usurpador, mas mais provavelmente a encarnação de uma nova ordem. Numa
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das passagens mais anfibológicas de sua obra, Bolingbroke cuidadosamente encena o rito simbólico que ele deve trilhar
para destronar Ricardo II, uma performance necessária para não ferir as expectativas justas dos outros envolvidos na
rebelião. E toda a sua aproximação ao vencido, suas manifestações de apreço e submissão, que ele dá a ver aos colegas
aristocratas, não é mais do que um artifício para esconjurar as reações monárquico-religiosas entre os homens do reino. É
grande o seu ardil, e nesse sentido Bolingbroke é de fato uma espécie de encarnação do ardil da razão ou da história que
faz um rei por puro ardil. A queda dos reis é um tema contínuo nas peças de Shakespeare, e é conhecida a história de que
após encenar Ricardo II às vésperas da conspiração de Essex contra a rainha da Inglaterra, membros da trupe de
Shakespeare foram questionados sobre seu possível envolvimento na conspirata.
Shakespeare era um explorador cético. Num mundo de reis tudorianos absolutos, com centralização legal e religiosa
nunca antes vista, pensava em repúblicas ou estados de governança mista como Veneza. Em Júlio César, as complexas
conspirações do velho mundo traziam o retrato de uma república em crise, um senado tal como Shakespeare desconheceu
na sua Inglaterra – mas que em breve os londrinos conheceriam. EmOtelo, Shakespeare não apresenta o Doge como um
Duque todo-poderoso. Apresenta-o modesto, em uma consulta prudente com seu senado, de igual para igual. A Dinamarca
de Hamlet não é a replicação da monarquia dinástica e hereditária inglesa, mas aristocrática e eletiva, precipitando todo o
imbróglio familiar da peça.
A mesma qualidade que o tornava um observador das complexidades políticas convertia-o em um radiografista dos
homens, das circunstâncias da história, das fatalidades e sobretudo do “homem humano”, sem idealizações. Shakespeare
via o político jamais com os olhos idealizantes das crenças ou das utopias. Certamente seria irônico com Raphael, o narrador
da história da Ilha de Utopia, de Thomas More. Por outro lado, embora não fosse um “maquiavélico” – Shakespeare nunca
abdica de inspirar a piedade diante da injustiça – pelo menos em política possuía desse florentino o olhar cético e
escrutinador. Sim, politicamente, estava mais próximo de Maquiavel do que de More, mas não porque acreditava que os fins
justificassem os meios, e sim por saber que o homem estava sozinho no cosmo, vivendo uma guerra contínua e devastadora
no seio da ilusão de suas certezas frágeis.
LAWRENCE FLORES é professor adjunto da Universidade Federal de Santa Maria e tradutor de Hamlet (Penguin), de William
Shakesespeare. Revista CULT, Maio de 2016.
Freud estará morto?
(LUIZ FELIPE PONDÉ)
NO FUTURO, sexo será coisa de pobre. Diz, de repente, meu amigo esquisito, que anda meio deprimido com o Brasil
"inteligente", que insiste em amar o populismo brega do PT. Mas, voltemos à hipótese acima. Por que no futuro sexo será
coisa de pobre?
Vamos desenvolver essa intuição desesperadora. Simples: porque os mais ricos e instruídos farão sexo sustentável
consigo mesmos. O acúmulo de riqueza está deixando a moçadinha mais instruída brocha. A vida sexual nessa camada
social será uma grande punheta. Faça um teste: entre os mais jovens, só os pobres ainda acreditam na "diferença sexual".
Dito de forma direta: só os mais pobres acreditam que existam homens e mulheres entre nós.
E qual a razão "filosófica" pra isso? Simples, de novo. A histeria (aquela que deixava as mulheres do tempo de Freud
paralisadas diante do gozo) hoje se fez laço político utópico. A utopia política é histérica porque toda utopia é histérica.
Limpinha, perfeita, imaculada, paralisada diante da realidade suja. A histeria teme o gozo porque tem horror ao sexo, sujo
em sua natureza íntima. E os inteligentinhos (histéricos de carteirinha) determinaram que o sexo é político.
Para gozar, temos que ser sujos e injustos. Imagine uma histérica de hoje, toda limpinha, fazendo um boquete num
cara? A exigência será que o esperma seja orgânico e igual para todos. Os heterossexuais serão visto andando em bandos
na periferia, mergulhados em sua ignorância, acreditando na fábula da "diferença entre os sexos". Os mais ricos terão
aderido ao movimento "transnada". Mesmo os gays já serão um fenômeno de classe C. O chique mesmo será visto nas ruas
da zona oeste, passeando com seu golden retriever: o "transnada". Figura eclética, criada pela sociologia "progressista".
Nosso "transnada" frequentará consultórios de psicanalistas e se cortará diante de sua analista, procurando sentir
alguma coisa, já que a sociologia de gênero terá provado que seu "corpo é uma representação social". Como sentir alguma
coisa se seu corpo é uma representação social? Como um fantasma, nosso "transnada" vagará pelo mundo das
representações sociais. Detalhe: a cegueira contemporânea é não perceber que a agressão ao desejo agora não vem do
"cristianismo", mas do sexo como representação social. É a utopia do sexo correto que aniquilará o desejo pelo corpo.
Acreditar que o corpo seja uma representação social é como crer em almas penadas: uma vez tendo caído na rede, você
fica bobo e o próximo passo será a crença em duendes.
Aprofundemos um pouco mais. Como pensar em sexo sem pensar na pulsão de morte? Conceito problemático para um
mundo rico que localizou o mal na opressão social. Só o capital carrega a "letra escarlate" da pulsão de morte. E sem pulsão
de morte, o sujeito está morto. Por isso, só os mais pobres farão sexo. Porque estes ainda gozarão com o "mal" em si
mesmos. Sem pulsão de morte não há sexo nem gozo. Vou contar um fato que presenciei recentemente, que parece não ter
nada a ver com isso, mas que tem tudo a ver.
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Estava eu observando um grupo de monitores conversando com um grupo de crianças de uns quatro ou cinco anos,
num ambiente de classe A em São Paulo. Um dos meninos chuta uma árvore. Parece irritado. O monitor, carregado daquela
bondade perigosa e adocicada, diz para ele em forma de repreensão, mas fingindo ser uma forma de amor ao portador:
"Joãozinho!" (vamos chama-lo de Joãozinho para prestar uma homenagem a esse personagem já perdido no tempo,
um tempo sem a melação de hoje em dia). "Você não lembra do desenho que acabamos de ver?". Joãozinho para,
assustado. "Você não lembra que o desenho mostra que se maltratarmos a natureza isso fará mal para nós mesmos?"
Joãozinho permanecia imóvel diante de "tanto amor à natureza".
Os idiotas do bem esqueceram do ensinamento do grande Nelson Rodrigues, nosso maior especialista em sexo, desejo
e pulsão de morte: "Só os neuróticos verão a Deus". No futuro, só os sujos terão corpo. Só os pobres de espírito farão sexo.
Só os injustos gozarão. Freud estará de fato morto.
LUIZ FELIPE PONDÉ é filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel
Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de
vários títulos, entre eles, 'Contra um mundo melhor' (Ed. LeYa). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2016.
Brasília: utopia ou segregação à brasileira? (FREDERICO DE HOLANDA)
Confira a seguir segundo artigo da série especial “O direito à cidade em tempos de crise”, uma parceria entre o Le
Monde Diplomatique Brasil e o INCT Observatório das Metrópoles
DIZEM que a “utopia” de Brasília se desvaneceu no tempo: a cidade passou a ter a cara do resto do país. Meia
verdade: apesar do óbvio parentesco com outras urbes brasileiras, Brasília apresenta fortes peculiaridades – para o bem e
para o mal – mormente quanto à segregação socioespacial. (Brasília é o município, cujas fronteiras coincidem com as do
Distrito Federal; Plano Piloto é o projeto de Lucio Costa – o “avião”, com suas “asas”, e o entorno imediato.)
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O espraiamento coloca Brasília como a mais dispersa capital
O direito à cidade em tempos de crise
brasileira e a segunda mais dispersa do mundo (perde para
Mumbai,
Índia),
segundo,
p.ex.,
estudos
comparativos A série “O direito à cidade em tempos de crise” é uma
internacionais levados a efeito por Bertaud & Malpezzi (1999) e parceria do Le Monde Diplomatique Brasil com o INCT
complementados pela Rede Observatório das Metrópoles. Os custos (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia)
socioeconômicos da dispersão são óbvios. Cabe frisar, Observatório das Metrópoles. A série tem como
particularmente, as altas tarifas dos transportes coletivos e sua objetivo suscitar a reflexão e monitorar os avanços e
baixa eficiência (a pior entre as capitais brasileiras), assim como as conquistas na afirmação do direito à cidade no Brasil,
imensas distâncias percorridas entre casa e trabalho.
denunciar retrocessos e apontar tendências para o
Brasília tem uma distância média per capita ao centro próxima futuro das cidades brasileiras.
à de Los Angeles (EUA), com um sexto da população desta; ou
A cidade transformou-se, em pleno século XXI, no
quase três vezes à de Curitiba, com população similar à sua. A palco principal das lutas políticas e sociais. A
oferta de um sistema de generosas vias expressas não resolve o reprodução da vida, individual e coletiva, biológica e
problema: as grandes distâncias e a forte polaridade exercida pelo social, depende cada vez mais da qualidade do meio
centro fazem com que o tempo de deslocamento médio entre casa urbano construído que se expressa na forma social
e trabalho seja similar, p.ex., ao de Fortaleza, de população similar, que chamamos de cidade, mas que também se
mas de uma malha muito mais compacta. Na forma de um polvo, o expressa na sociedade urbana global.
sistema viário prioriza a ligação entre centro e núcleos distantes, e
Ao mesmo tempo, a atual crise do capitalismo
praticamente ignora a relação entre estes últimos; encontra-se tornou a cidade uma nova fronteira de escoamento do
altamente congestionado nas horas de pico e espantosamente capital sobre acumulado e financeirizado. Estes dois
ocioso entre elas.
movimentos tornaram a cidade palco e objeto das
Claro, o espraiamento não atinge a todos por igual. Famílias de lutas contemporâneas de classes, opondo a razão da
poder aquisitivo na base da pirâmide social localizam-se, em média, reprodução da vida à razão da reprodução do capital.
a 26,6km do centro do Plano Piloto; as do topo da pirâmide social Esta contradição global está também cada vez mais
localizam-se, em média, a 5,1km do mesmo ponto. A apartação presente no Brasil.
social não podia ser mais evidente ¹.
Com efeito, ingressamos na sociedade urbana
A apartação em Brasília não surge no tempo, nasce com ela, e com legado de cidades historicamente precárias, nas
de forma extrema. A proposta de Lucio Costa continha inicialmente quais estão presente dois projetos antagônicos em
apenas dois tipos edilícios residenciais: 1) apartamentos em blocos disputa. De um lado, o representado pelos ideais,
de seis pavimentos sobre pilotis e 2) “casas individuais”, em princípios e mecanismos da reforma urbana que
terrenos generosos, explicitamente para os mais ricos, próximas à obteve alguns avanços na afirmação do direito à
orla do lago. Quanto aos apartamentos, o arquiteto escreveu que a cidade, no período 2003-2013. De outro lado, o
“gradação social” se daria por meio de localização das quadras, projeto representado pela ideologia neoliberal que, em
tamanho dos apartamentos e nível de acabamento, sem “afetar o nome do empreendedorismo urbano, tem incentivado
conforto social a que todos têm direito” (Costa, 1995: 293; citações a adoção de políticas urbanas habilitadoras das forças
a seguir são da mesma obra).
mercantilizadoras do solo urbano, da moradia,
No projeto, Lucio Costa admitiu que tudo é “claramente privatização dos serviços coletivos, entre outros.
limitado pelo padrão comum da receita única” (meu grifo, idem, p.
Mas qual desses projeto irá predominar diante do
327). Nisso, ele estabelece um parentesco com as “cidades mineiras atual quadro de crise político-econômica de longa
antigas”, onde a “receita básica de moradia era uma só: casas duração no país? Se caso a saída para a crise for
geminadas, mesmo tipo de telhado, de janelas, de portas – as conservadora e ultra liberal, isso representará um
variações decorriam da topografia, de sutilezas de proporções, dos provável retrocesso das conquistas do direito à cidade
detalhes, do acabamento, da cor nas esquadrias”.
no Brasil. E é esse um dos principais campos em
Contudo, para além de outros atributos que distinguiam os disputa.
espaços de morar dos senhores de minas e dos escravos, há
diferença clara entre as cidades mineiras de seus afetos e as cidades brasileiras de hoje ou dos anos 1950: nestas, a
variedade edilícia doméstica é muito maior, nos tipos de edifícios e no processo de produção dos domicílios. Quanto aos
tipos: apartamentos de luxo e nem tanto, em edificações exclusivamente residenciais ou mistas, e, nestas, com comércio e
serviços no térreo ou compartindo pavimentos superiores com os domicílios; loteamentos unifamiliares de vários padrões;
condomínios fechados de casas, de apartamentos, ou de ambos, monofuncionais ou não; mansões isoladas em grandes
terrenos etc. Quanto ao processo de produção: dentro da normativa ou fora dela, do mercado imobiliário, dos programas de
habitação financiados pelo Estado, da autoconstrução etc.
A distância entre isso e a “receita única” é enorme. Os modernos acreditavam ter descoberto a fórmula ideal, baseada
em necessidades universais de um ser humano genérico – inexistente. Quando milhares de trabalhadores não tiveram
acesso à “receita”, Lucio Costa voltou a defendê-la: as críticas deveriam ser destinadas “ao próprio país e não ao urbanista”
(idem, p. 319). Todavia, a “cidade real” se impôs. Mas foi forçada a fazê-lo fora e longe da “receita”. Trabalhadores
migrantes localizaram-se em inúmeras “invasões”, jargão local para assentamentos informais, alguns muito próximos ao
Plano Piloto. O governo reagiu e, em ondas sucessivas, providenciou sua transferência para mais além, dando origem aos
núcleos satélites. Seguiu recomendação expressa de Lucio Costa: “sempre insisti junto aos responsáveis pelo
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desenvolvimento de Brasília no sentido de evitar-se por todos os meios o deprimente espraiamento ‘suburbano’ do chamado
Plano Piloto” (idem, p. 332); era preciso delimitar “definitivamente o cinturão urbano edificado no encontro com as áreas
externas contíguas destinadas não a loteamentos mas tão só à cultura hortogranjeira devidamente planejada” (idem). Não
era suficiente manter a “receita” intocada internamente: era preciso isolá-la daqueles que nela não cabiam, mediante um
anel de características rurais ao redor do Plano Piloto.
Os primeiros núcleos periféricos são anteriores ao concurso público de projetos para a Capital, lançado em 1956 e
julgado em 1957. Dois núcleos preexistentes foram incorporados ao território do novo município de Brasília: Planaltina, dos
anos 1850, e Brazlândia, dos anos 1930. Mas já em 1956 as obras iniciais atraíram os primeiros migrantes: o começo da
construção do Palácio da Alvorada e da barragem para formar o lado Paranoá antecederam o concurso. Taguatinga, de
1958, visou desocupar sítios de assentamentos informais autoproduzidos pelos trabalhadores. Seguiram-se outros núcleos
(são bairros, não “cidades”, como reza o discurso oficial), sempre na periferia longínqua, para transferir assentamentos
informais ou para remanejar moradores de “fundos de lote” nos núcleos anteriormente implantados e excessivamente
adensados.
O espraiamento da cidade, comandado pelo Estado, não do mercado, resultou num de seus atributos mais
problemáticos: a urbe dicotomizada entre a cidade-mãe (o Plano) – bem equipada em infraestrutura urbana, empregos,
educação, saúde, lazer, cultura etc. – e uma imensa periferia, até hoje precariamente servida. Em 2011, o Plano Piloto
abriga 47,72% dos empregos totais da cidade, mas só 8,21% de sua população; 419.880 trabalhadores são “exportados”
diariamente para trabalhar no Plano pelas dez regiões administrativas de Brasília que mais o fazem (CODEPLAN, 2012;
Miragaya, 2013). Some-se a isso as viagens para os demais fins e temos uma estimativa de um movimento pendular médio
diário de quase 1.000.000 de pessoas entre a periferia e o núcleo central, para todos os fins e em todos os modos de
locomoção. Em outras palavras, a Região Administrativa de Brasília quase sextuplica sua população nos dias de semana² .
Dois mitos – entre tantos – desmoronam em Brasília: 1) o do Estado “acima” das classes sociais, como se ele não
servisse aos interesses hegemônicos e, 2) seu correlato: a falácia de que um estoque de terras públicas seria um
instrumento para a promoção de políticas urbanísticas visando ao benefício das maiorias. As terras públicas, fruto das
desapropriações quando da fundação da Capital, são administradas pela Terracap, empresa estatal do Governo do Distrito
Federal, que age, entretanto, como qualquer especulador fundiário. Esse é o Estado que temos, não o Estado que
queremos.
Decerto, o espraiamento em outras cidades brasileiras também contou, direta ou indiretamente, com a mão do Estado.
Mas o parcelamento de áreas longínquas pelo mercado, sua ocupação, e a seguinte pressão para que o poder público
implante ou melhore a infraestrutura de acesso, com a consequente valorização (e a apropriação privada dela), é fenômeno
recente em Brasília. Também em Brasília forças não hegemônicas entram em cena contra esse segregador quadro
socioespacial. Comparece o “homem ordinário” de Michel de Certeau (2000), a tentar reinventar a cidade. Surgem “fissuras”
na ordem dominante, na escala do todo urbano – a municipalidade – e na de suas partes, p.ex., no Plano Piloto (Castelo,
2008). Na escala do todo, às forças centrífugas que desde sempre presidiram a organização “explodida” do território,
passam a se contrapor forças centrípetas, originando ocupações urbanas mais próximas ao core metropolitano – o Plano
Piloto. Irregularmente, lotes de antigas chácaras, que visavam impedir o “espraiamento suburbano” indesejado, são
desmembrados em lotes urbanos; o próprio Lucio Costa (em 1987) assina estudos recomendando a ocupação de áreas
contíguas ao Plano, levando aos “subúrbios” que antes condenava.
Por outro lado, nas fronteiras municipais ou além delas, somos frequentemente surpreendidos com novos condomínios
(p.ex. Alphaville) ou “cidades” propostas a dezenas de quilômetros de distância, desconectadas dos principais eixos de
crescimento urbano, e que retomam as velhas tendências centrífugas. Agora o Estado não mais comanda a organização
territorial, como o fazia na origem. Ele vem a reboque: seja nos processos de regularização dos desmembramentos
realizados por milhares de sujeitos sociais, à sua revelia, em lotes antes rurais e hoje urbanos de fato; seja normatizando o
desejo (ou a ação) de grandes especuladores fundiários e imobiliários, ou de puros e simples grileiros de terras. O governo
local corre contra o tempo para impedir que Brasília chegue ao padrão de irregularidade ou informalidade ou ilegalidade de
70% a 80% do estoque habitacional construído das cidades brasileiras...
Na escala intraurbana, as fissuras se multiplicam, configurando batalhas diuturnas pelo direito à cidade por parte de
grande número de atores desprivilegiados. Foco particularmente o Plano Piloto, onde os conflitos se dão com maior força; e,
neste, menos as transformações físicas e mais as lutas por apropriação dos espaços públicos e por transformações de uso
presentes na normativa. Os tempos de renovação do casco físico da cidade, implicando a mudança da paisagem
arquitetônica e social (de mais pobres para mais ricos), tão presente em outras cidades brasileiras – Salvador, Rio de Janeiro
etc. – ainda não chegou por aqui. Vejamos exemplos.
O combate à apropriação popular dos espaços públicos é quase uma obsessão para os dirigentes locais – e para a
imprensa, que lhes dá respaldo entusiasmado. Centros das cidades brasileiras (e de tantas partes do mundo) são
apropriados por comerciantes informais. Em muitos casos, há negociações entre as partes envolvidas – comerciantes
formais, governo, ambulantes – para que se chegue a uma solução de consenso. Não em Brasília. Até 2009, havia grande
número de camelôs na área central. Foram removidos para uma área a 6km do centro, à margem de uma rodovia e... em
meio ao nada.
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Evidentemente não podia funcionar – e não funcionou. Mas a manchete no dia seguinte à remoção, num dos jornais de
maior circulação da cidade, foi: “a ordem, a organização e a beleza venceram”. Para quem? Edifícios têm seu uso
transformado no tempo, mormente quando o uso prescrito é contraditório com a localização. Foi assim com uma avenida de
alta centralidade (Av. W-3 Sul) no Plano Piloto. Num dos lados, a normativa previa apenas residências unifamiliares. Ficou
como tal durante décadas. Mas eis que as antigas casas começaram a abrigar serviços populares: pousadas, sedes de
sindicatos, cartomantes, cursinhos etc. A reação não se fez esperar. Como sói acontecer em outras cidades brasileiras, os
serviços foram criminalizados (p. ex., mascarariam prostituição e comércio de drogas). A discussão teve seu ápice nas
audiências públicas que informariam o Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília. De um lado, colocaram-se
as classes médias-altas da vizinhança; do outro, a associação que reunia representantes dos serviços populares. O resultado
foi uma lamentável derrota para os últimos, declarados “ilegais”. Mas continuam lá, e, a não ser por eventual forte
repressão, continuarão – legitimamente – por muito tempo.
Acima estão duas batalhas perdidas. Fechemos com um toque otimista. Algumas preciosas lições urbanísticas da
história surgem de circunstâncias imprevistas. É o caso da Vila Planalto, em Brasília, a 1.500m da Praça dos Três Poderes.
Tem origem em um acampamento de empreiteiras dos anos 1950, edificado para abrigar donos, gerentes, arquitetos,
engenheiros, técnicos, operários (desde sempre, também teve funcionários do alto escalão local e federal entre os
moradores). É lugar de grande variedade de lotes, casas, quarteirões e espaços públicos. Apesar da privilegiada localização,
apresenta um perfil de faixas de renda parecido com o de Brasília como um todo; no aspecto, é quase um microcosmo da
cidade. Na Vila, em 2010, havia menos ricos (Vila = 2,5%, Brasília = 5,1%), mais estratos médios (Vila = 49,6%, Brasília =
45,0%), ligeiramente menos pobres (Vila = 47,9%, Brasília = 49,9%).
As melhores casas permitem adaptações que correspondem aos altos poderes aquisitivos. Contudo, são minoria. A
maior parte da arquitetura não agrada aos privilegiados. Mais de quatro décadas depois de inaugurada a cidade, forças de
mercado foram incapazes de expulsar moradores mais pobres, pelo contrário: trabalhadores continuam a adquirir
residências (ou a alugar parte delas) e a se mudar para o local e, pelo censo de 2010, a Vila é mais popular, não menos, do
que era pelo censo de 2000. A Vila é o contraponto utópico ao mito de igualdade expresso por Lucio Costa para as
superquadras. Sua grande diversidade espacial implica grande diversidade social. O lugar é uma fascinante fissura urbana,
na contramão dos bairros homogêneos, pobres ou ricos, o padrão em Brasília e em outras cidades brasileiras – os primeiros
em periferias longínquas (ou enclaves centrais em condições precárias – morros, mangues etc.), os segundos em posições
privilegiadas. Brasília, e as cidades brasileiras, têm potencial, mesmo em áreas centrais, para absorver novas “vilas
planalto”. Mas isso depende de uma luta contínua pelo direito à cidade. Que dá frutos – a história o demonstra.
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Bibliografia
BERTAUD, Alain. The costs of utopia. 2001. Disponível em: http://alain-bertaud.com/. Acesso em: 1 jul. 2007.
BERTAUD, Alain; MALPEZZI, Stephen. The spatial distribution of population in 35 world cities: the role of markets, planning, and
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CASTELO, Luís Filipe Montenegro. Fissuras urbanas. 2008, 134p. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Programa de Pósgraduação em Arquitetura e Urbanismo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de Brasília, Brasília, 2008.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. As artes de fazer. 5. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2000.
CODEPLAN. Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios - Distrito Federal - PDAD/DF 2011. 2012. Disponível
em:http://www.codeplan.df.gov.br/images/CODEPLAN/PDF/Pesquisas%20Socioecon%C3%B4micas/PDAD/2012/PDAD-DF-2011091112.pdf. Acesso 1 set. 2013.
COSTA, Lucio. Lucio Costa: registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995.
MIRAGAYA, Júlio. Perfil da distribuição dos postos de trabalho no distrito federal: concentração no plano piloto e déficits nas cidadesdormitório. Brasília: CODEPLAN, 2013.
OCARANZA PACHECO, Matías Enrique. 2015. Os limites da gentrificação na Vila Planalto . 2015. 218p. Dissertação (Mestrado em
Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de Brasília, Brasília, 2015.
SERRA, M. V.; DOWALL, David E.; MOTTA, Diana; DONOVAN, Michael. Urban Land Markets and Urban Land Development: An Examination
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em: http://www.escholarship.org/uc/item/88548197. Acesso em: 13 fev. 2013.
ZECHIN, Patrick Di Almeida Vieira. Sobre a dimensão espacial da desigualdade social urbana. Um estudo sobre cinco cidades brasileiras .
2014. 378p. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de Brasília, Brasília,
2014.
Notas de rodapé
[1] Gratidão a Patrick Zechin pelos dados obtidos a partir de sua tese de doutorado, Sobre a dimensão espacial da desigualdade social
urbana. Um estudo sobre cinco cidades brasileiras. O cálculo utilizou as distâncias dos centroides dos setores censitários (censo de 2010)
para o centro do Plano Piloto, em torno ao qual está a grande maioria dos empregos da metrópole (mais sobre isso, abaixo).
[2] Extrapolação nossa a partir de pesquisa de origem e destino da CODEPLAN, de 2000, e de Pesquisa Distrital de Amostragem por
Domicílio, também da CODEPLAN, de 2011. A Região Administrativa de Brasília compreende o Plano Piloto propriamente dito – as “asas”
do “avião” – mais algumas áreas vizinhas: Vila Planalto, Vila Telebrasília, Setor Militar Urbano, Bairro Noroeste e, no momento das
pesquisas referidas, o Bairro Sudoeste e as Áreas Octogonais (hoje novas regiões administrativas). Nova pesquisa de origem e destino está
sendo realizada. Decerto, há um contrafluxo Plano Piloto – núcleos satélites, mas, até o momento, ele é muito pequeno. Gratidão a Andréa
Moura pelos dados.
FREDRICO DE HOLLANDA é Professor titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília. Foto: Elza
Fiuza/Agência Brasil - Imagem: Exposição Hiperfoto Brasília - artista: Jean François. Jornal LE MONDE DIPLOMATIQUE
BRASIL, Maio de 2016.
Não precisamos doutrinar filhos e alunos para assumirem nossa
posição (ROSELY SAYÃO)
DESDE que a imprensa passou a publicar toda a crise política de nosso país e que as primeiras manifestações
populares relacionadas a essa crise ganharam os espaços públicos reais e virtuais, e, portanto, visibilidade, os educadores –
familiares e escolares– ficaram em apuros. Como ensinar ao filho que é importante que ele seja honesto, quando ele ouve
ou lê, todo santo dia, relatos de acusação ou de suspeita de desonestidade de políticos, empresários, funcionários de
empresas etc.?
Como passar ao filho a importância do respeito ao outro, quando ele testemunha, pela imprensa e pela internet, o
desrespeito que temos tido com as opiniões diferentes das nossas? Está difícil, bem difícil, mas é bom saber que, mesmo
sendo uma tarefa árdua, é possível educar bem os mais novos, mesmo nesse contexto tão adverso. E exemplifico com o
relato que uma mãe me encaminhou da conversa dela com o filho, de pouco mais de dez anos.
Ela contou que o menino disse a ela que roubar até que poderia ser bom, já que quem rouba fica rico. Ela assustou-se
com a observação -na verdade, desesperou-se-, já que se empenha de corpo e alma na formação ética e moral dos filhos.
Mas conseguiu se sair muito bem! Essa mãe disse ao garoto que ser rico não é a coisa que ela considera importante na vida
dos filhos, nem ter sucesso ou fama. Lembrou a ele que ela fazia de tudo para que os filhos aprendessem a ser pessoas que
jamais prejudicariam outras, e que soubessem o valor da honestidade, do respeito e da generosidade.
Ao final da conversa, ela ficou emocionada ao ouvir o filho dizer que era por isso que ele a amava tanto. Eu também
me emocionei ao ler a mensagem. Vivemos em uma sociedade individualista já faz tempo. Isso significa, muitas vezes,
ensinar aos mais novos que seus pares são, em muitas situações, uma ameaça, um perigo. Há escolas que, em datas
próximas a vestibulares, Enem e outros exames, passam aos alunos a ideia de que eles terão de "derrubar" um determinado
número de colegas para ter o seu lugar garantido. Não há nada de bom nesse ensinamento.
"Mas não é essa a realidade em que vivemos?", você pode me perguntar, caro leitor. Sim, é. Mas podemos escolher
fazer parte dela ou sermos críticos em relação a diversas facetas dessa sociedade, considerando que nossos filhos poderão
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ajudar a transformar o contexto cultural, quando se tornarem adultos. Foi na década de 1960 que muitos jovens aderiram à
contracultura, um movimento que contestava e reagia aos valores dominantes da época. Mas hoje fazemos de tudo para
que nossos filhos aceitem passivamente os valores que nossa sociedade prioriza. Não é à toa que a frase que eles mais
usam para convencer os pais quando querem que eles permitam algo é "Todo mundo tem, faz, vai etc.". Eles já sentiram
que os pais valorizam a cultura dominante, não é?
Não precisamos nem devemos doutrinar filhos e alunos para que assumam a nossa posição! Precisamos e devemos
formá-los cidadãos conscientes, livres, críticos pelo conhecimento, para que, quando chegarem à maturidade, façam suas
escolhas criticamente formados. Educar para que os mais novos se tornem pessoas e cidadãos de bem pode estar difícil,
mas não é uma missão impossível se priorizarmos os ensinamentos das grandes virtudes, da moral e da ética.
ROSELY SAYÃO é psicóloga, consultora em educação e articulista do programa “Seus Filhos” da Rádio BandNews FM, fala sobre
as principais dificuldades vividas pela família e pela escola no ato de educar e dialoga sobre o dia-a-dia dessa relação. Jornal
FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2016.
Quem tem medo de eleições?
(RANDOLFE RODRIGUES)
ALÉM das superficialidades e dos escândalos que apontam soluções simples para problemas complexos, a verdadeira
crise que o Brasil experimenta é a de representação. O governo não governa, o Parlamento não legisla nem fiscaliza e o
povo não é chamado a decidir.
Do ponto de vista econômico, os anos de bonança, animados pela alta das commodities, deram lugar à carestia
desenfreada, com profunda recessão e quebradeira de empresas - só no varejo, em 2015, quase 100 mil empreendimentos
fecharam -, acarretando o desemprego em massa. A opção neoliberal do segundo governo Dilma a afastou de sua
plataforma eleitoral, agravou os gargalos na infraestrutura do país, enfraqueceu a competitividade e acentuou o atraso
tecnológico, com graves reflexos na produtividade. A economia parou.
No plano institucional, o eclipse total do diálogo levou a presidente da República e o presidente da Câmara dos
Deputados, Eduardo Cunha, a atuarem não como chefes de poderes independentes, mas como comandantes de tropas
inimigas. Enquanto Dilma se mostrava incapaz de reagrupar a base e dialogar com o Congresso, Cunha passava a trabalhar
para restringir a mobilidade do governo, usando para isso manobras regimentais sucessivas. Asfixiado, o Palácio do Planalto
capitulou, demonstrando que aquilo que parecia o ocaso de um governo era, de fato, o réquiem do presidencialismo de
coalizão.
No plano político, os escândalos de corrupção envolvendo a maioria dos partidos e líderes da situação e oposição
descredenciaram o maniqueísmo e, com ele, uma saída a frio para a crise. O impasse não será resolvido se ignorarmos o
desejo de participação da ampla maioria da população. O dique está prestes a ser rompido. O que vem das ruas é a rejeição
de um modelo. Pesquisa Datafolha divulgada no dia 9 mostrou que 61% da população quer afastar Dilma da Presidência. A
destituição de Michel Temer é desejada por 58%. A rejeição ao vice-presidente consegue a proeza de unir os movimentos
favoráveis e contrários ao impeachment.
A revista "The Economist" de 21 de abril, dia de Tiradentes, diz que o Brasil sofreu "grande traição", tanto pela
presidente Dilma quanto pela classe política. A reportagem fez lembrar a célebre frase de Leonel Brizola: "A política ama a
traição e abomina o traidor". Reconhecendo a fragilidade do governo e a iminência do impeachment, a revista britânica
afiança que Temer "dificilmente será percebido como alguém com legitimidade para governar o país".
O eco das ruas que atravessou o Atlântico anima juristas e políticos de diferentes vertentes. Durante palestra, o exministro do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa defendeu a consulta popular. "Organizem eleições, deixem que o
povo resolva", conclamou. Com Dilma e Temer sem o apoio das ruas e Cunha, o terceiro na ordem de sucessão, prestes a
experimentar o frio do cárcere, fica claro que um problema excepcional exige uma solução excepcional, proporcional à
gravidade do momento: novas eleições.
Em resposta ao impasse político, um grupo de senadores apontou para o futuro e assinou a PEC (Proposta de Emenda
à Constituição) 20/16, que prevê excepcionalmente uma eleição presidencial simultânea às eleições municipais de outubro.
O voto direto como forma de superar a crise já ganhou as manchetes internacionais, o parecer de juristas renomados e a
opinião majoritária das ruas. O que falta, então, para o eleitor ser chamado a decidir quem deve governar a nação?
As eleições diretas estão para a democracia como a água benta está para o rito católico: purifica a matéria, espanta o
mal e potencializa os efeitos positivos da oração. Só os agentes das sombras podem temer a luz das urnas.
RANDOLFE RODRIGUES, historiador e senador, é líder da Rede Sustentabilidade no Senado. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO,
Maio de 2016.
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Ideologia dominante
(CONTARDO CALLIGARIS)
EM TESE, o PSDB é um partido de ideias, relativamente coeso, laico, progressista e social-democrata. Mas a coisa
deve ser mais complicada. Enfim, isso eu aprendi numa pequena polêmica com o deputado Rogério Marinho (PSDB-RN). A
polêmica, além de me instruir sobre a diversidade do partido ao qual ele pertence, serve-me de ocasião para expor algumas
ideias básicas sobre o que significa, para mim, criticar a ideologia dominante.
Primeiro, para a gente se entender: chamo de ideologia dominante o conjunto de ideias, valores e crenças que, num
dado momento histórico, prevalecem e, com isso, administram a vida concreta de uma comunidade. Isso, claro, de uma
maneira que não é maciça e sempre é uma zona de conflitos (salutares).
Numa visão marxista um pouco ingênua e datada, a ideologia dominante seria o instrumento de poder de uma classe.
Hoje, parece prudente pensar que as ideologias sequer precisam servir interesses econômicos, elas são poderes autônomos.
Os intelectuais que defendem a ideologia dominante não precisam pensar muito. Basta-lhes propagar os valores que já são
administrados pela maioria dos aparelhos ideológicos (a mídia, a escola, a igreja, a padaria, os partidos"¦).
Entre esses valores, na ideologia ainda dominante hoje, destacam-se a família como comunidade supremamente
importante, a religião, um pouco de consumismo (ninguém é de ferro) e, enfim, a repressão de orientações, fantasias e
desejos sexuais que se afastem da norma estatística aparente: transem só a dois, só com seu casal, e mesmo assim nem
muito, porque São Paulo não gosta (São Paulo, entende-se, o apóstolo, não a cidade –porque a cidade gosta).
O deputado Marinho acha que eu sou um intelectual orgânico do outro lado, do lado do proletariado, ou seja, do diabo.
Se ele tivesse me dito isso uns 50 anos atrás, eu me sentiria orgulhoso e ficaria tão alegre que poderia lhe dar um beijo
(não se preocupe, deputado, só na bochecha). De fato, esta foi uma questão dificílima para os militantes de esquerda dos
anos 1960:
1) As produções artísticas da suposta "cultura proletária" não eram melhores do que os gostos artísticos de Hitler ou
Mussolini: um realismo simplório;
2) A grande cultura do século 19 e 20, a dita "cultura burguesa", era para nós um patrimônio irrenunciável;
3) Qual cultura queríamos, então, para nosso futuro? Dizíamos que a própria cultura burguesa seria transformada
numa sociedade livre (sem classes, imaginávamos). É claro que não fazia sentido, mas era bonito.
Hoje, encontrei um jeito de entender qual é a cultura que eu gostaria que fosse hegemônica e pela qual estou disposto
a lutar. Não me pergunto se Thomas Mann é burguês, e Zola, proletário (isso sempre me pareceu ridículo). O que faz a
diferença entre a cultura que defendo e a que não quero é o tipo de hegemonia. Explico. Uma cultura sempre acaba gerindo
vidas concretas. Mas, atenção:
Existe um tipo de cultura hegemônica pelo qual todos devem se comportar segundo o figurino. Esse tipo de cultura, em
geral, apresenta suas ideias e valores como se não pertencessem à história, mas fossem verdades eternas, conformes a
uma pretensa "natureza". Esse tipo de cultura é perigosa porque, em regra, seus exponentes perseguem nos outros os
desejos que eles mal conseguem reprimir neles mesmos. A repressão é severa e impiedosa porque seu alvo verdadeiro é o
próprio inquisidor, que gostaria de se reprimir a qualquer custo. A cultura pela qual eu luto tenta propor a menor gestão das
vidas possível. Ela é inspirada por um grande valor (o maior talvez) da cultura burguesa (desde os libertinos do século 17
até hoje): a ideia de que, na vida privada, cada um pode encontrar os prazeres de sua vida livremente – óbvio, com o
consentimento dos que o acompanham.
Em suma, a diferença entre a cultura da qual gosta o deputado Marinho e a que eu prefiro é a seguinte. Para o
deputado Marinho, não se conformar aos valores de sua cultura significa praticar, suponho, "a adoração do ídolo" e a
destruição moral do povo brasileiro. Enquanto, na hegemonia da cultura que defendo, ninguém forçaria o deputado Marinho
a correr com os lobos e as lobas, transar com travestis ou casar com transexual – de fato, ninguém sequer o criticaria por
ele ser monógamo, abstinente ou bem casado e religioso.
CONTARDO CALLIGARIS é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School de NY
e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade e as
aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2016.
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