Untitled - EDUCAÇÃO E PESQUISA – Revista da Faculdade de
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Untitled - EDUCAÇÃO E PESQUISA – Revista da Faculdade de
Educação e Pesquisa Revista da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo Education and Research Journal of the School of Education, University of São Paulo Universidade de São Paulo / University of São Paulo Reitor/Rector: Marco Antonio Zago Vice-Reitor/Vice-Rector: Vahan Agopyan Faculdade de Educação / School of Education Diretora/Dean: Lisete Regina Gomes Arelaro Vice-Diretora/Vice-Dean: Marilia Pontes Sposito Editoras / Editors Denise Trento Rebello de Souza - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil Teresa Cristina Rego - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil Editores Assistentes / Assistant Editors Cláudia Pereira Vianna - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil Émerson de Pietri - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil Maria Ângela Borges Salvadori - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil Maria Letícia Barros Pedroso Nascimento - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil Marília Pinto Carvalho - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil Rosângela Gavioli Prieto - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil Vinicio de Macedo Santos - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil Gerente Editorial / Editorial Manager Wilson Roberto Gambeta Secretaria de Edições / Editions Office Anna Cecília de Paula Cruz José Aguinaldo da Silva Conselho Editorial / Editorial Board António Nóvoa Maria Isabel da Cunha Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal UniSinos, Rio Grande do Sul, São Leopoldo, RS, Brasil Belmira A. de Barros O. Bueno Maria Machado Malta Campos Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, SP, Brasil Carlos Roberto Jamil Cury Marie-Christine Josso Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil Université de Genève, Genève, Suíça Elsie Rockwell Marília Fonseca Instituto Politécnico Nacional, Zacatenco, Distrito Federal, México Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil Frederick Erickson Martin Carnoy University of California, Berkeley, California, EUA Stanford University, Stanford, EUA Gilles Brougère Nelly Stromquist Université Paris-Nord, Villeteneuse, Paris, França University of Southern California, Los Angeles, CA, EUA Josep Maria Puig Rovira Olgária Matos Universidad de Barcelona, Barcelona, Espanha Universidade de São Paulo, São Paulo, SP,Brasil Jürgen Schriewer Silvina Gvirtz Humboldt Universiät, Berlin, Alemanha Universidad Nacional de Buenos Aires, Argentina Lucia Emília Nuevo Barreto Bruno Yves de La Taille Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil Luciano Mendes de Faria Filho Zaia Brandão Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, RJ, Brasil Luiz Antônio Cunha Zeila de Brito Fabri Demartini Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil Magda Becker Soares Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil Revista financiada com recursos de Educação e Pesquisa revista da Educação e Pesquisa faculdade São Paulo v. 40 de educação n. 1 286 p. da usp jan./mar. 2014 ISSN 1517-9702 Educação e Pesquisa, v. 40, n. 1, 286 p., jan./mar. 2014. EDUCAÇÃO E PESQUISA publica artigos inéditos na área de educação, em especial resultados de pesquisa de caráter teórico ou empírico, bem como revisões da literatura de pesquisa educacional. Educação e Pesquisa. São Paulo, FE/USP, 1975. Trimestral Publicação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo Continuação da Revista da Faculdade de Educação da USP ISSN 1517-9702 1. Educação. Indexada em / Indexed in: AERA SIG - Communication of Research (EUA, www.aera-cr.asu.edu) BBE - Bibliografia Brasileira de Educação (Brasil, INEP) CLASE - Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales y Humanidades (México, UNAM) DOAJ - Directory of Open Access Journals (Suécia) EDUBASE (Brasil, FE/Unicamp) ERA - Educational Research Abstracts (Inglaterra, www.tandf.co.uk/era/) IRESIE - Indice de Revistas de Educación Superior y Investigación Educativa (México, UNAM) LATINDEX - Sistema Regional de Información en Línea para Revistas Científicas de América Latina, en Caribe, Espanã y Portugal (México) PSICODOC - Colegio Oficial de Psicólogos de Madrid (Espanha) SCIELO - Scientific Electronic Library Oline (Brazil) SCIMAGO - SCImago Journal and Country Rank (Elsevier) SCOPUS - Scopus citation database of peer-reviewed literature. SIBI- Portal de Revistas da USP (www.revistas.usp.br) SOCIOLOGICAL ABSTRACTS (EUA, www.csa.com/factsheets/supplements/sociossl.php) Versões on-line / Online versions: http://www.educacaoepesquisa.fe.usp.br http://dialnet.unirioja.es http://www.redalyc.com http://www.scimagojr.com http://www.scielo.org http://www.scopus.com Copidesque e revisão / Copy desk and proofreading: Elisa Vieira e Emari de Jesus Editoração eletrônica / Desktop publishing: Anna Cecília de Paula Cruz Versão para o inglês / English version: Ana Paula C. Renesto e Luiz Ramires Neto Projeto gráfico e ilustrações / Graphic design and illustrations: Daniel Bueno e Fernando de Almeida E-mail: [email protected] Solicita-se permuta / Exchange is requested Tiragem: 800 exemplares Sumário 07 Editorial Artigos 13 Os gestores educacionais e a recepção dos sistemas externos de avaliação no cotidiano escolar Rodrigo Rosistolato; Guilherme Viana 29 Avaliação e classificação de instituições de ensino médio: um estudo exploratório André Luís Policani Freitas; Vinicius Barcelos da Silva 49 Desempenho escolar: análise comparativa em função do sexo e percepção dos estudantes Andréia Osti; Selma de Cássia Martinelli 61 Percurso da avaliação da educação superior nos governos Lula Gladys Beatriz Barreyro; José Carlos Rothen 77 Modelagem do crescimento da aprendizagem nos anos iniciais com dados longitudinais da pesquisa GERES Nigel Brooke; Neimar da Silva Fernandes; Isabela Pagani Heringer de Miranda; Tufi Machado Soares 95 Processos de significação na elaboração de conhecimentos de alunos com necessidades educacionais especiais Maria Inês Bacellar Monteiro; Ana Paula de Freitas 109 Dicionarização da língua brasileira de sinais: estudo comparativo iconográfico e lexical Cássia Geciauskas Sofiato; Lucia Helena Reily 127 Indicadores de estresse e coping no contexto da educação inclusiva Kelly Ambrosio Silveira; Sônia R. Fiorim Enumo; Renata N. Pozzatto; Kely M. Pereira de Paula 143 Interações comunicativas entre uma professora e um aluno com autismo na escola comum: uma proposta de intervenção Rosana Carvalho Gomes; Débora R. P. Nunes 163 Conceitos matemáticos iniciais e linguagem: um estudo comparativo entre crianças surdas e ouvintes Heloiza H. Barbosa 181 Nos interstícios da cidadania: a inevitabilidade e urgência da dimensão da virtude cívica na educação Eduardo Nuno Fonseca 197 Expresiones de lo sensible: lecturas en clave pedagógica Luz Elena Gallo Cadavid 215 Educação sobre drogas: uma proposta orientada pela redução de danos 231 O imperativo do afeto na educação infantil: a ordem do discurso de pedagogas em formação Mariana Adade; Simone Monteiro Rodrigo Saballa de Carvalho Entrevista 247 Formação de professores e saberes docentes: trajetória e preocupações de uma pesquisadora da docência – uma entrevista com Ruth Mercado Entrevistadoras: Denise Trento Rebello de Souza; Marli Lúcia Tonatto Zibetti 269 Instruções aos colaboradores 283 Leia também Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, 286 p., jan./mar. 2014. Contents 07 Editorial Articles 13 29 Educational managers and the reception of external assessment systems in school daily life Rodrigo Rosistolato; Guilherme Viana Evaluation and ranking of secondary schools: an exploratory study André Luís Policani Freitas; Vinicius Barcelos da Silva 49 Academic achievement: comparative analysis by gender and student perception Andréia Osti; Selma de Cássia Martinelli 61 The course of higher education evaluation in Lula governments 77 Modeling of the growth of learning in the early years with longitudinal data of GERES research Gladys Beatriz Barreyro; José Carlos Rothen Nigel Brooke; Neimar da Silva Fernandes; Isabela Pagani Heringer de Miranda; Tufi Machado Soares 95 Signification processes in the elaboration of knowledge by pupils with special education needs Maria Inês Bacellar Monteiro; Ana Paula de Freitas 109 Brazilian sign language dictionaries: comparative iconographical and lexical study Cássia Geciauskas Sofiato; Lucia Helena Reily 127 Indicators of stress and coping in the context of inclusive education 143 Communicative interactions between a teacher and a student with autism in regular schools: an intervention proposal Kelly Ambrosio Silveira; Sônia R. Fiorim Enumo; Renata N. Pozzatto; Kely M. Pereira de Paula Rosana Carvalho Gomes; Débora R. P. Nunes 163 Early mathematical concepts and language: a comparative study between deaf and hearing children Heloiza H. Barbosa 181 In the interstices of citizenship: the inevitable, urgent character of the dimension of civic virtue in education Eduardo Nuno Fonseca 197 Expressions of the sensible: readings in a pedagogical key 215 Education about drugs: a proposal oriented by damage reduction Luz Elena Gallo Cadavid Mariana Adade; Simone Monteiro 231 The imperative of affect in early childhood education: the order of discourse of undergraduate education students Rodrigo Saballa de Carvalho Interview 247 Teacher education and teachers knowledges: trajectory and concerns of a researcher in teaching - an interview with Ruth Mercado Interviewers: Denise Trento Rebello de Souza; Marli Lúcia Tonatto Zibetti 269 Instructions to authors 283 See also Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, 286 p., jan./mar. 2014. Editorial É com satisfação que apresentamos o primeiro número de 2014 de Educação e Pesquisa. Nele o leitor encontrará um conjunto de textos que expressam a vitalidade das pesquisas e a densidade das discussões teóricas que vêm sendo realizadas no âmbito da educação. Embora diferentes, os artigos reunidos neste número apresentam duas características comuns: além de terem sido selecionados a partir de um rigoroso processo de avaliação às cegas, por pares – como é de se esperar em qualquer periódico científico –, todos demonstram, de um modo ou de outro, uma preocupação legítima com temas fronteiriços ou com problemas contemporâneos ainda mal compreendidos. Assim, apesar da amplitude de assuntos que aborda, o conjunto aqui apresentado oferece ao leitor um panorama sobre alguns dos principais interesses que hoje mobilizam a comunidade acadêmica ligada ao campo da educação e que merecem ser mais bem investigados. A análise dos textos reunidos permite reagrupá-los em subconjuntos, conforme descrito a seguir. De início, cinco artigos abordam, sob diferentes ângulos, o complexo e controverso tema da avaliação. O primeiro, intitulado Os gestores educacionais e a recepção dos sistemas externos de avaliação no cotidiano escolar, de autoria de Rodrigo Rosistolato e Guilherme Velozzo Viana, discute alguns dos desafios presentes na incorporação das avaliações externas à cultura das escolas. O segundo, Avaliação e classificação de instituições de ensino médio: um estudo exploratório, escrito por André Luís Policani Freitas e Vinicius Barcelos da Silva, trata da avaliação de uma instituição de ensino médio segundo a percepção de docentes e discentes. Já os dados apresentados no terceiro artigo, Desempenho escolar: análise comparativa em função do sexo e percepção dos estudantes, de Andreia Osti e Selma de Cassia Martinelli, permitem discutir e avaliar as relações e os vínculos estabelecidos entre alunos e professores, as influências das vivências e experiências no momento da aprendizagem e o modo como estas afetam o interesse e a motivação dos estudantes. O quarto artigo, intitulado Percurso da avaliação da educação superior nos governos Lula, de Gladys Beatriz Barreyro e José Carlos Rothen, analisa a política de avaliação da educação superior desenvolvida durante os governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010). Trata-se de uma pesquisa documental que utiliza a legislação e documentos oficiais do período como principais fontes de informação. O quinto e último artigo desse subgrupo, Modelagem do crescimento da aprendizagem nos anos iniciais com dados longitudinais da pesquisa GERES, de Neimar da Silva Fernandes, Nigel Pelham Brooke, Isabela Pagani Heringer e Tufi Machado Soares, compara duas abordagens de valor agregado para dados oriundos do survey educacional de recorte longitudinal chamado GERES (Estudo Longitudinal da Geração Escolar - 2005), que acompanhou uma coorte de alunos de mais de 300 escolas públicas e privadas ao longo dos primeiros quatro anos do ensino fundamental. Ambas as abordagens utilizam modelos lineares hierárquicos, permitindo o agrupamento natural dos dados educacionais provenientes dos três níveis: aluno, turma e escola. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, jan./mar. 2014. 7 O segundo subconjunto também é composto de cinco textos, os quais tratam de um assunto de extrema importância no cenário atual: a deficiência e a inclusão. O primeiro desses artigos intitula-se Processos de significação na elaboração de conhecimentos de alunos com necessidades educacionais especiais e é de autoria de Ana Paula de Freitas e Maria Inês Bacellar Monteiro. Baseado na perspectiva históricocultural, o texto aborda a temática da educação inclusiva a partir do interesse em práticas educacionais orientadas por relações de ensino significativas. A língua brasileira de sinais (Libras) utilizada pela comunidade surda no Brasil – língua de modalidade espaço-visual cuja representação gráfica comumente se dá por meio de imagens em dicionários impressos e em meio digital – é o tema do segundo artigo: Dicionarização da língua brasileira de sinais: estudo comparativo iconográfico e lexical, de autoria de Cássia Geciauskas Sofiato e Lucia Helena Reily. Com base em dicionários de Libras, as autoras analisam a constituição histórica do gênero no Brasil a partir da identificação de características e fragilidades em relação à iconografia e à lexicografia de tais obras, fatores que podem interferir no ensino e no aprendizado dos sinais nos cursos de graduação. O artigo seguinte: Indicadores de estresse e coping no contexto da educação inclusiva, de Kelly Ambrosio Silveira, Sônia Regina Enumo, Renata Pozzatto e Kely M. Pereira de Paula, apresenta resultados de uma investigação sobre o stress docente provocado pela sobrecarga de serviço e pela percepção de pouca preocupação governamental em fornecer subsídios para o trabalho. O texto Interações comunicativas entre uma professora e um aluno com autismo na escola comum: uma proposta de intervenção, de Rosana Carvalho Gomes e Debora R. P. Nunes, expõe os resultados de uma pesquisa que oferece elementos novos capazes de incrementar o debate sobre aspectos polêmicos que envolvem o processo de inclusão de educandos com autismo nas salas de aula comuns. O artigo Conceitos matemáticos iniciais e linguagem: um estudo comparativo entre crianças surdas e ouvintes, de Heloiza Barbosa, traz indicadores bastante interessantes de que a surdez não é causa de baixo rendimento escolar na área da matemática. A autora conclui que parece ser necessário pensar em formas de intervenção pedagógica que possam garantir uma aprendizagem de sucesso em matemática tanto para as crianças surdas, quanto para as crianças ouvintes que frequentam as escolas públicas brasileiras. No terceiro bloco reunimos quatro artigos que atestam a riqueza e a diversidade de temas que vêm sendo estudados. O primeiro deles intitula-se Nos interstícios da cidadania: a inevitabilidade e urgência da dimensão da virtude cívica na educação e é de autoria do português Eduardo Nuno Fonseca, que aborda duas questões: a problematização da conceitualização da cidadania e as implicações para qualquer projeto educativo que reconheça a importância da educação para a cidadania em contexto escolar. Em seguida, o texto Expresiones de lo sensible: lecturas en clave pedagógica, escrito pela colombiana Luz Elena Gallo, apresenta reflexões sobre o sensível – desde o corpo e sua relação com a educação – a partir de perspectiva filosófica, pedagógica e experiencial, tendo como referência o pensamento de Friedrich Nietzsche e de Gilles Deleuze, bem como a reflexão pedagógica de Jorge Larrosa e Fernando Bárcena. O artigo Educação sobre drogas: uma proposta orientada pela redução de danos, 8 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, jan./mar. 2014. de Mariana Adade e Simone Monteiro, pretende fornecer subsídios para o desenvolvimento de ações educativas sobre drogas entre jovens, pais e educadores. Por fim, o último artigo do número explora um tema relacionado ao universo da infância e da educação infantil e intitula-se O imperativo do afeto na educação infantil: a ordem do discurso de pedagogias em formação. Nele, o autor Rodrigo Saballa de Carvalho apresenta resultados de uma pesquisa que teve como foco de análise a problematização dos discursos sobre afeto docente presentes em relatórios de um estágio realizado em turmas de educação infantil por 30 acadêmicas de pedagogia em fase de conclusão do curso. O objetivo do artigo é problematizar como os discursos sobre afeto se constituem enquanto imperativos que inventam e regulam os modos de exercício docente. O referencial no qual se fundamentou a pesquisa foi o dos estudos culturais e das análises desenvolvidas por Michel Foucault. A última seção apresenta uma entrevista bastante interessante realizada em 2013 pelas professoras Denise Trento Rebello de Souza e Marli Lúcia Tonatto Zibetti com a professora mexicana Ruth Mercado Maldonado, que é pesquisadora do Departamento de Investigaciones Educativas do Centro de Investigación y de Estudios Avanzados del Instituto Politécnico Nacional (DIE-CINVESTAV). Nesse departamento, internacionalmente reconhecido pela grande qualidade e pela influência na pesquisa educacional da América Latina, particularmente devido às instigantes contribuições no campo da etnografia educacional, Ruth desenvolve investigações há mais de 25 anos, sempre relacionadas a duas linhas de investigação: aos estudos socioculturais sobre a docência cotidiana; às políticas e aos processos de formação inicial e continuada de docentes. No rico encontro, a professora teceu reflexões muito pertinentes sobre suas investigações e sobre questões relacionadas à educação básica, à formação de professores, ao desenvolvimento curricular e à elaboração de materiais pedagógicos. A entrevistada também abordou diversos temas atuais e polêmicos relativos ao campo da formação inicial e continuada de professores, como o processo de universitarização e as implicações dele decorrentes (tais como a relação entre formação teórica e formação prática; o papel dos formadores; as relações entre cultura universitária e cultura escolar) e o controverso tema do mestrado profissional. Por fim, apresentou suas interessantes ideias sobre a produção escrita para professores e sobre as propostas de escrita utilizadas nos processos formativos. Aproveito este editorial para informar aos leitores que nosso querido parceiro de trabalho Wilson Gambeta, a partir deste número, deixará de integrar a equipe de Educação e Pesquisa. Nos últimos anos, graças à sua seriedade e à grande experiência no campo editorial, Wilson desenvolveu um primoroso trabalho conosco, ajudando nossa revista a alcançar outro patamar de profissionalismo e eficiência. Entendemos que sua missão no periódico foi cumprida a contento. A partir de agora, sua participação será pontual, já que ele atuará como consultor sempre que precisarmos de suas valiosas contribuições. Em nome da Comissão Editorial, gostaria de registrar nossos agradecimentos. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, jan./mar. 2014. 9 Esta é a primeira edição do ano e sabemos que há muito trabalho pela frente. Mais uma vez, a revista demandará de todos nós (autores, editores, avaliadores ad hoc, revisores, tradutores, secretários etc.) grande dispêndio de tempo, energia e dedicação. Mais do que isso: é preciso ter paciência, jogo de cintura e diplomacia para vencer os inúmeros obstáculos que se apresentam a cada instante na publicação de um periódico com este perfil e com o nível de exigência editorial que temos. Mas também sabemos, de antemão, que o esforço sempre vale a pena. E, por essa razão, já estamos funcionando com muito ânimo e disposição. Começamos mais um ano com a certeza de que o serviço prestado por Educação e Pesquisa para a comunidade acadêmica é nobre e valioso. Enfim, esperamos que a leitura dos artigos reunidos neste número possa demonstrar o vigor dessas contribuições. Boa leitura! Teresa Cristina Rego 10 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, jan./mar. 2014. Artigos / Articles Os gestores educacionais e a recepção dos sistemas externos de avaliação no cotidiano escolarI Rodrigo RosistolatoII Guilherme VianaII Resumo Este artigo discute alguns dos desafios presentes na incorporação das avaliações externas à cultura das escolas. Parte-se da observação de que tais avaliações foram concebidas com base em um modelo de escola que pressupõe a homogeneização da distribuição do saber escolar e, por conseguinte, a possibilidade de avaliar o produto final do processo: a aprendizagem em termos coletivos. Nenhuma delas tem o aluno como unidade de análise, pois todas privilegiam a escola e as redes de ensino a fim de mapear os processos de distribuição do saber. Elas não são, no entanto, consenso no campo educacional, e as abordagens críticas a respeito delas indicam a redução da autonomia dos professores e a construção de modelos de ensino padronizados como resultados perversos. O projeto que deu origem a este artigo teve como objetivo analisar a visão de gestores da educação básica do Rio de Janeiro sobre esse debate. Para tanto, em uma abordagem etnográfica, realizamos entrevistas em profundidade com seis gestores que trabalham na zona oeste da cidade. É possível dizer que eles leram, interpretaram e reinterpretaram os resultados obtidos por suas escolas tendo por base suas visões sobre seu próprio trabalho, a instituição, os estudantes e as políticas educacionais. As críticas dos entrevistados seguem uma lógica que coloca em xeque o modelo republicano de escola e suas possibilidades no Rio de Janeiro. Ao longo do texto, demonstraremos a construção dessas narrativas com foco nas convergências e divergências existentes entre as falas dos gestores e os discursos que configuram o embate público relacionado às avaliações externas de aprendizagem. Palavras-chave I- A pesquisa que deu origem a este artigo recebeu financiamento da CAPES e do INEP (Observatório da Educação), além do Programa de Apoio a Docente Recém Doutor Antonio Luis Vianna (UFRJ). II- Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Contatos: [email protected]; [email protected] Avaliação — Sistemas educacionais — Escola republicana — Desempenho escolar. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 13-28, jan./mar. 2014. 13 Educational managers and the reception of external assessment systems in school daily life I Rodrigo RosistolatoII Guilherme VianaII Abstract This article discusses some of the challenges present in the incorporation of external assessments to school culture. We start from the observation that such assessments were conceived on the basis of a model of school that presupposes the homogenization of the distribution of school knowledge and, consequently, the possibility of assessing the final product of the process: the learning in collective terms. None of them has the pupil as its unit of analysis, since they all privilege the school and school systems in order to map out the processes of the distribution of knowledge. They are not, however, consensual in the educational field, and the critical approaches towards them indicate the reduction in teachers’ autonomy and the construction of standardized teaching models as adverse results. The project that originated this article had as its objective to analyze the views of managers of basic education in Rio de Janeiro about such debate. To that end, in an ethnographic approach, we conducted deep interviews with six managers that work in the west side of the city. It was possible to observe that they read, interpreted, and reinterpreted the results obtained by their schools based on their views about their own work, about the institution, about the students and the educational policies. The criticisms of the interviewees followed a logic that puts in check the Republican model of school and its possibilities in Rio de Janeiro. In the text we demonstrate the construction of these narratives focusing on the convergences and divergences existing between the speeches of managers and discourses that configure the public debate related to external learning assessments. Keywords I- The research that originated this article was financed by CAPES and by INEP (Observatório da Educação), and also by the Antonio Luis Vianna Program of Support to Newly Graduated Teachers (UFRJ). II- Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brazil. Contacts: [email protected]; [email protected] 14 Assessment — Educational systems — Republican school — School performance. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 13-28, jan./mar. 2014. O debate público sobre as avaliações externas de aprendizagem nos sistemas educacionais agrega discursos acadêmicos, estatais e sindicais. No Rio de Janeiro, a principal oposição está localizada entre o Estado e os sindicatos. Enquanto o Estado apresenta as avaliações externas e as políticas de responsabilização a elas associadas como mecanismos efetivos para equalização das oportunidades educacionais e melhoria de sistemas e redes de ensino, os sindicatos criticam a possibilidade de padronização do ensino e a desvalorização do trabalho docente. Os embates políticos relacionados com as avaliações externas são intensos e tendem a recrudescer a apresentação pública de discursos institucionalizados que, por definição, reduzem a diversidade de opiniões presentes nas instituições e entre seus agentes. Nesse campo de forças políticas, o Estado defende radicalmente as avaliações externas, ao passo que os sindicatos tendem a negá-las por princípio. Tais posicionamentos, de certa forma, minam o debate técnico e também as discussões sobre as potencialidades e os problemas presentes na construção e na implementação de políticas de avaliação educacional no Brasil e no Rio de Janeiro. Neste artigo, pretendemos deslocar o debate para o cotidiano escolar. Trata-se de uma mudança de foco. O objetivo é privilegiar o olhar dos profissionais que estão diretamente envolvidos com o gerenciamento cotidiano de políticas educacionais: os gestores da educação básica que atuam em unidades escolares. Partimos do pressuposto de que a função pública exercida pelos gestores não permite que eles ignorem as políticas educacionais implementadas em suas escolas. Eles precisam realizar uma leitura das demandas trazidas e, simultaneamente, oferecer uma resposta aos professores, aos pais e à administração central. Nesse processo, ocorrem interpretações e reinterpretações que podem ou não dialogar com os embates políticos relacionados às avaliações externas. A proposta é analisar as narrativas sobre o sentido das avaliações externas e as interpretações relacionadas às causas do desempenho apresentado pelas escolas. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 13-28, jan./mar. 2014. Durante o trabalho de campo, percebemos que as críticas dos gestores eram construídas com base em uma lógica que coloca em xeque o modelo republicano de escola1 e suas possibilidades no Rio de Janeiro. Há um conjunto de argumentos que valoriza as particularidades das escolas e dos alunos, em oposição à perspectiva universalista que fundamenta os sistemas nacionais de avaliação. Demonstraremos a construção dessas narrativas com foco nas convergências e divergências existentes entre as falas dos gestores e os discursos que configuram o embate público relacionado às avaliações externas de aprendizagem. Metodologia O artigo está organizado com base em seis entrevistas em profundidade realizadas com gestores da educação básica que trabalham na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. A concentração das análises na zona oeste se deve à quantidade reduzida de estudos sobre essa região da cidade e, principalmente, à identificação de uma oposição orientadora das narrativas dos gestores. Eles comparam os estudantes da zona oeste aos da zona sul e entendem que tais diferenças são determinantes das desigualdades de desempenho entre as escolas. Também utilizaremos os dados resultantes do acompanhamento do debate sobre as avaliações externas presente na mídia, o que inclui jornais, revistas e programas televisivos. O acompanhamento tem por objetivo comparar o discurso presente na mídia sindical àquele veiculado por jornais e revistas sem vinculação sindical.2 Durante o trabalho de campo, percebemos aproximações e distanciamentos entre o discurso dos gestores e os argumentos apresentados, especificamente, pela mídia sindical. 1- Para o debate sobre o modelo republicano e a noção de saberes públicos, ver o trabalho de Forquin (2000). Para a crítica à proposta de Forquin (2000), ver os trabalhos de Candau (2000) e Silva (2000). 2 - Em 2011 mapeamos 100 reportagens relacionadas às avaliações externas de aprendizagem, incluindo ambas as mídias, sindical e não-sindical. 15 É importante frisar que as entrevistas em profundidade foram realizadas em associação à abordagem etnográfica. Trata-se de uma proposta que conjuga a principal metodologia da antropologia – etnografia – às entrevistas em profundidade, utilizadas por outras ciências que propõem abordagens qualitativas. O objetivo é relacionar as informações oferecidas pelo entrevistado àquelas mapeadas a partir da observação do contexto em que a escola está inserida. Privilegia-se a observação do entorno das escolas e a descrição das dependências, incluindo os espaços em que as entrevistas em profundidade foram realizadas. Não é possível dizer que estamos fazendo uma etnografia das escolas, porque a permanência é delimitada pelas entrevistas, assim como a observação do entorno. Uma etnografia demanda tempo para imersão no cotidiano da escola. A descrição etnográfica, mesmo realizada em curtos espaços de tempo, oferece uma perspectiva complementar àquela produzida com as entrevistas em profundidade. Permite, inclusive, que os momentos anteriores e posteriores à entrevista gravada sejam registrados. No decorrer do texto, apresentaremos algumas observações que foram possíveis graças à conjugação dessas metodologias. Sistemas de avaliação As propostas públicas de avaliação da educação no Brasil emergiram na década de 1990 (BONAMINO; COSCARELLI; FRANCO, 2002). Essas iniciativas conduziram progressivamente à criação do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB), cujo processo de institucionalização foi descrito por Bonamino e Franco (1999). Naquele momento, os autores indicavam que a avaliação da educação brasileira era um projeto que tendia à consolidação, pois expressava demandas do Estado, de gestores educacionais e de setores da sociedade que se propunham a refletir sobre educação no Brasil. 16 A implantação do sistema nacional de avaliação proporcionou debates intensos no campo educacional e nas pesquisas em educação. Há trabalhos que analisam o processo de institucionalização e os significados associados aos sistemas de avaliação (BONAMINO; FRANCO, 1999; FRANCO; BONAMINO, 2001); as concepções de aluno letrado subjacentes ao SAEB (BONAMINO; COSCARELLI; FRANCO, 2002); os possíveis impactos das políticas de avaliação no currículo escolar (SOUSA, 2003); a aprendizagem e os desafios trazidos pelo SAEB (COELHO, 2008); as interfaces dos sistemas de avaliação com o currículo da/ na escola (BONAMINO; SOUSA, 2012); entre outras questões. Tais pesquisas dialogam e acabam por negar análises maniqueístas que indicam exclusivamente questões positivas ou negativas relacionadas aos sistemas de avaliação da educação básica. Nesse sentido, é necessário destacar que até mesmo o processo de produção do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), fruto do SAEB, já foi analisado e criticado por Soares (2011). Os dados do SAEB também têm sido utilizados por pesquisadores para discutir questões relacionadas à avaliação educacional. Há trabalhos sobre a qualidade da educação fundamental, com ênfase na relação entre o desempenho escolar e a mudança na composição dos alunos (ALVES, 2007); sobre os fatores associados ao desempenho escolar (ANDRADE; LAROS, 2007); sobre a transmissão intergeracional de desigualdade e qualidade educacional (GONÇALVES; FRANÇA, 2008); sobre as influências das mudanças de condição socioeconômica no desempenho dos estudantes (RODRIGUES; RIOS-NETO; PINTO, 2011). Também há pesquisas que propõem a reconsideração de fatores intra-escolares (FRANCO et al., 2007), a reflexão sobre a educação no Brasil (KLEIN, 2006) e a análise sobre origem social e riscos de repetência (ALVES; ORTIGÃO; FRANCO, 2007). O debate relacionado ao SAEB, portanto, tem proporcionado, entre outras questões, Rodrigo ROSISTOLATO; Guilherme VIANA. Os gestores educacionais e a recepção dos sistemas externos de avaliação... reflexões consistentes sobre a estrutura das oportunidades educacionais no Brasil. Também há investigações sobre os processos de segmentação e estratificação presentes nos sistemas educacionais que foram refinadas com a utilização dos dados disponibilizados pelo SAEB e pelos sistemas municipais de educação. Pesquisas com foco nos quase-mercados educacionais (COSTA; KOSLINSKI, 2009; COSTA; KOSLINSKI, 2011), nas motivações de escolha e estratégias de acesso às escolas públicas (ROSISTOLATO; PIRES DO PRADO, 2012; COSTA; PIRES DO PRADO; ROSISTOLATO, 2012), bem como na transição entre os segmentos do ensino fundamental (BRUEL; BARTHOLO, 2011) têm utilizado os dados fornecidos pelo SAEB para propor problemas de investigação, aprofundar análises, testar hipóteses e ampliar o escopo das abordagens que têm os sistemas educacionais como objeto de análise. Os sistemas de avaliação trazem novas perspectivas para a pesquisa educacional, da mesma forma que promovem mudanças, consensos e conflitos no campo educacional. Eles foram concebidos com base em um modelo de escola que pressupõe a homogeneização da distribuição do saber escolar e, como consequência, a possibilidade de avaliar o produto final do processo: a aprendizagem em termos coletivos. As avaliações externas privilegiam a escola e as redes de ensino para o mapeamento dos processos de distribuição do saber. A ideia é produzir índices que permitam gerir os sistemas de ensino e equacionar os processos de aprendizagem, consolidando o modelo republicano de escola. Há, portanto, uma pressuposição presente na construção dos sistemas de avaliação. Qual seja: a de que os sistemas podem e devem ser avaliados como sistemas. Ao mesmo tempo, pesquisas no campo da gestão educacional3 indicam que professores e gestores tendem a pensar as escolas presentes em um sistema educacional como unidades singulares, quase autônomas e dependentes das motivações dos 3 - Ver os trabalhos de Pires do Prado (2009); Paes de Carvalho e Canedo (2008). Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 13-28, jan./mar. 2014. profissionais que nelas atuam profissionalmente. Assim, a consolidação daquilo que tem sido chamado de cultura da avaliação depende diretamente de mudanças de perspectiva sobre a escola e sobre o que ela deve oferecer aos alunos. Desses diálogos emergem concepções de escola, sistema educacional, estudante, formação escolar, trabalho docente e avaliação educacional. Tais concepções são veiculadas por agentes sociais que podem ser classificados como portadores de ideais relacionados à educação e à sociedade brasileira. Daí a importância de analisar o olhar dos profissionais que estão diretamente envolvidos com o gerenciamento cotidiano de políticas educacionais. A pesquisa de campo identificou, no discurso dos gestores, um conjunto de argumentos que valoriza as particularidades das escolas e dos alunos em oposição à perspectiva universalista que fundamenta os sistemas nacionais de avaliação. Os gestores leram, interpretaram e reinterpretaram os resultados obtidos por suas escolas tendo por base suas visões sobre seu próprio trabalho, a escola, os estudantes e as políticas educacionais. Os gestores: análise socioprofissional Todos os entrevistados receberam nomes fictícios. Apresentaremos cada gestor enfatizando as escolhas profissionais, a experiência e as visões sobre o trabalho docente, além dos dados das escolas dirigidas por eles. É importante frisar que Joaquim e Alice trabalham na mesma escola, o que também ocorre com Joana e Irene. De início, a proposta era entrevistar apenas os diretores. Porém, no dia em que ocorreria a entrevista de Joaquim, ele não estava presente e Alice, diretora adjunta, ficou interessada em ser entrevistada. Com Joana e Irene foi diferente. Irene estava presente durante a entrevista de Joana. Quando Joana precisou sair por alguns instantes, Irene, diretora adjunta, pediu que o gravador fosse desligado e falou sobre questões relacionadas ao IDEB da escola e das escolas em geral. Perguntamos se ela concederia uma entrevista em outro momento e ela concordou. Ao analisar as 17 entrevistas percebemos que, embora trabalhem nas mesmas escolas, Joana e Irene, assim como Joaquim e Alice, têm visões diferentes sobre a escola e as avaliações externas de aprendizagem. Joaquim – 61 anos, casado, pai de três filhos, natural do Rio de Janeiro, residente em Campo Grande, renda familiar mensal superior a 12 salários mínimos,4 formado em matemática, com três especializações em matemática e um mestrado em ciências ambientais. Tem 30 anos de experiência no ensino fundamental e 28 anos no ensino médio. Trabalha em uma escola municipal que, de acordo com o site do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), obteve média de 3,3 em 2009; o gestor, porém, declarou que o IDEB era de 4,5. Alice – 52 anos, casada, mãe de um filho, natural do Rio de Janeiro, residente em Bento Ribeiro, renda familiar mensal superior a 8 salários mínimos. É professora formada pelo curso normal e agora está cursando pedagogia. Tem 34 anos de experiência no ensino fundamental. Trabalha em uma escola municipal, cujo IDEB não informou. De acordo com o site do INEP, a escola obteve média 3,3 em 2009. Joana – 61 anos, casada, mãe de um filho, naturalizada brasileira, residente em Campo Grande, renda mensal familiar não informada, graduada em letras e em pedagogia. Tem 40 anos de experiência com o ensino fundamental e com o ensino médio. Trabalha em uma escola estadual com ensino fundamental, cujo IDEB não soube informar. De acordo com o site do INEP, o IDEB da escola em 2009 foi 3,9. Irene – 41 anos, casada, mãe de dois filhos, natural do Rio de Janeiro, residente em Realengo, renda mensal superior a 12 salários mínimos, formada em pedagogia, pós-graduada em gestão escolar e em psicopedagogia. Tem 15 anos de experiência no ensino fundamental. Trabalha em uma escola estadual com ensino fundamental, cujo IDEB não informou. Conforme o site do INEP, a escola obteve média 3,9 em 2009. 4 - Todas as informações sobre a renda familiar têm como referência o salário mínimo de janeiro/2012. 18 Geovana – 57 anos, divorciada, mãe de dois filhos, natural do Rio de Janeiro, residente em Campo Grande, renda familiar não informada, graduada em língua portuguesa e em pedagogia, com duas especializações em educação. Tem 42 anos de experiência nos ensinos fundamental e médio. Trabalha em uma escola estadual com ensino fundamental, cujo IDEB não soube informar. De acordo com o site do INEP, o IDEB da escola em 2009 foi 3,1. Arnaldo – 58 anos, solteiro, sem filhos, natural do Rio de Janeiro, morador de Campo Grande, renda mensal superior a 8 salários mínimos, formado em geografia e pedagogia, com mestrado em geografia. Tem 36 anos de experiência no ensino fundamental e 28 anos no ensino médio. Trabalha em uma escola estadual com ensino fundamental, cujo IDEB em 2009 foi 3,4. Visões sobre as avaliações externas e os resultados alcançados pelas escolas O objetivo das entrevistas era mapear o conhecimento e as opiniões dos gestores sobre os sistemas externos de avaliação, além das visões sobre os resultados de suas escolas. Todos foram convidados, inicialmente, a apresentar suas visões sobre as avaliações externas com foco no conhecimento técnico sobre os sistemas nacionais de avaliação. Na sequência, solicitávamos que informassem suas opiniões sobre as iniciativas governamentais para avaliação da aprendizagem. As questões foram formuladas em momentos diferentes para que pudéssemos separar as opiniões e o conhecimento técnico relacionado às avaliações externas. Essa estratégia foi utilizada porque a bibliografia e a pesquisa empírica realizada em jornais e revistas de grande circulação indicavam a ausência de consenso sobre os sistemas de avaliação. O debate público sobre as avaliações externas de aprendizagem agrega discursos que as deslegitimam, em oposição direta àqueles que as apresentam como o melhor caminho para a gestão educacional. De Rodrigo ROSISTOLATO; Guilherme VIANA. Os gestores educacionais e a recepção dos sistemas externos de avaliação... um lado, a proposta é abandonar as avaliações em prol da valorização do trabalho docente,5 ideia veiculada, principalmente, pelo discurso sindical. Em oposição, surge a intenção de consolidar os sistemas estaduais e municipais de avaliação para que os resultados sejam mais fidedignos e possam orientar a formulação de políticas públicas no campo educacional. Essa lógica orienta o discurso estatal, bem como as políticas educacionais mais recentes.6 A oposição entre os discursos sindical e governamental deve ser considerada, no plano analítico, em termos típico-ideais. Entre a total negação e a total aceitação, há um conjunto de configurações possíveis, cada uma delas mais próxima de um dos lados desse gradiente de classificações. No debate público, no entanto, as oposições tendem a recrudescer-se e agregar pessoas e discursos institucionais na disputa por definições sobre a escola, o ensino, os sistemas de avaliação, a carreira docente e os propósitos da educação pública universal. Os gestores entrevistados conhecem os sistemas externos de avaliação. Todos afirmaram que a implantação das avaliações modificou seu cotidiano profissional, produzindo novas demandas para eles próprios e para os professores. Suas falas revelam interpretações e reinterpretações presentes nos processos de recepção dos sistemas de avaliação em suas escolas. Todos indicam que não têm como deixar de trabalhar com os dados, porque a posição de gestor pressupõe o diálogo com a gestão central, tanto no caso da rede estadual, quanto no caso da rede municipal. Por isso, precisaram analisar as propostas públicas de avaliação educacional, desenvolver uma reflexão sobre seu sentido e suas finalidades, e trabalhar com a implementação dos sistemas em suas escolas, dialogando com os discursos sindical e governamental. É possível dizer que, para os gestores, a possibilidade de aderir integralmente ao discurso sindical ou ao 5 - As matérias jornalísticas contrárias às avaliações externas opõem avaliação e valorização do trabalho docente. Não há expectativas de que as avaliações possam contribuir para a valorização dos profissionais da educação. 6- No caso do governo do Estado, o Sistema de Avaliação da Educação do Estado do Rio de Janeiro (SAERJ); no âmbito municipal, a Prova Rio. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 13-28, jan./mar. 2014. discurso governamental não se apresenta, pois suas funções estão diretamente relacionadas à promoção do diálogo entre as políticas educacionais e o cotidiano escolar. Nesse sentido, eles podem ser classificados como mediadores. Gilberto Velho (2010) indica que a mediação deve ser analisada como um fenômeno fundamental no estabelecimento de pontes entre diferentes e também como espaço de reinvenção de códigos, redes de significados e de relações sociais, contribuindo para a expansão e o desenvolvimento de novas formas de ver e conceber o mundo social. De acordo com ele, há vários tipos de mediadores, sendo que agentes ativos em movimentos sociais, intelectuais, cientistas, autores e artistas são pessoas que podem utilizar suas pesquisas e reflexões para contribuir com a ampliação dos modos de comunicação e diálogo. A mediação não ocorre exclusivamente em espaços de consenso. Ela é parte integrante de espaços de conflito. No caso específico dos gestores escolares, considerando-se a oposição entre as narrativas sindicais e as governamentais, esses profissionais exercem um tipo de mediação ativa, pois dialogam diariamente com os agentes envolvidos nas disputas que compõem tal arena de debates. Durante as entrevistas, os gestores realizam um tipo de socioanálise7 de sua posição no debate. Enfatizam ter algum grau de empatia com o discurso docente, porque também são, ou foram, docentes de sala de aula, mas indicam que sua função não permite uma postura de negação radical das avaliações externas. Mesmo aqueles que não concordam com as avaliações precisam entendê-las, além de contribuir para a difusão do conhecimento técnico e a ampliação do diálogo no cotidiano de suas escolas, bem como nos espaços centrais de gestão. A análise de suas falas revela os interstícios, as contradições, os consensos, os conflitos que compõem os diálogos proporcionados pela inserção de avaliações externas no cotidiano escolar. 7- Para o debate sobre a socioanálise, ver trabalho de Sayad (1998). 19 Arnaldo associa as avaliações externas àquilo que considera como um movimento mundial na educação. Ele as aprova e as classifica como mudança de foco, pois entende que a avaliação deve ter como alvo a instituição, e não os estudantes. Diz que é normal imaginar que as instituições que destinam dinheiro para a educação, sejam elas estatais ou particulares, desejem avaliar o resultado de seus investimentos. Ele classifica o IDEB como um índice avançado, uma vez que leva o fluxo escolar em consideração. O entrevistado também indica que o IDEB de sua escola está baixo e culpa a evasão escolar. Ao mesmo tempo, aponta problemas relacionados aos professores. A evasão, especificamente, seria um problema causado pelos professores que não conseguem sustentar “um olhar diferenciado” perante os alunos. Arnaldo afirma que os professores, por sua vez, culpam os estudantes e dizem que o corpo discente “não quer nada”. Ele acredita que os resultados das avaliações podem contribuir para a reorganização de uma escola que não tenha sido bem avaliada, mas destaca, citando os sindicatos, resistências que contribuem para que os professores rejeitem as avaliações e não desejem nem mesmo conversar seriamente sobre elas. Arnaldo aponta os sindicatos de professores como a principal oposição às avaliações externas de aprendizagem. Ele nos mostrou um jornal sindical fixado no mural da escola e comentou que o material não incentivava a reflexão, porque trazia um tipo de negação que não dependia de debate. Também informou que, quando reúne o corpo docente para conversar sobre os resultados obtidos pela escola, recebe silêncio. Os professores não entram em conflito ou em oposição ao gestor, mas também não apresentam nenhum tipo de consenso sobre os resultados e/ou as metas estabelecidas. Essa reflexão sobre os sindicatos é convergente com o que encontramos durante o acompanhamento da mídia sindical. Em 2011 e 2012, analisamos debates sindicais sobre as avaliações e encontramos regularidades 20 nas narrativas relacionadas aos sistemas de avaliação. Eles são considerados um mal em si; uma política pública mal formulada e danosa aos sistemas educacionais. Há um slogan presente nessas narrativas que indica o centro de significados associados às avaliações. Trata-se da crítica baseada na ideia de que escola não é fábrica. Por isso, qualquer tentativa de debate sobre as metas estabelecidas é deslegitimada e classificada como danosa aos sistemas educacionais. Em 2012, o boletim informativo Conselho de Classe, veiculado pelo SEPE (Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro), apresenta uma matéria com o título: Redes estadual e municipais: mesma luta, mesmos objetivos. O texto critica as políticas educacionais presentes no Estado e nos municípios do Rio de Janeiro e argumenta que as tentativas de avaliação e estabelecimento de metas são orientadas por um modelo de racionalidade equivalente àquele presente em fábricas que produzem mercadorias. Há um conjunto de sentidos atribuídos às oposições fábrica versus escola e mercadoria versus estudantes. O principal é a negação da padronização nos processos educacionais e a ênfase na impossibilidade de avaliar o produto final da educação. A citação a seguir sintetiza os argumentos apresentados na matéria. Os governantes traçam metas como se as escolas fossem fábricas e os profissionais e alunos mercadorias, como se fosse possível padronizar o conhecimento e medir a qualidade da educação através de testes e estatísticas. E é por isso, que cada vez mais, os secretários de educação são economistas ou administradores como Wilson Risolia no Estado ou Cláudia Costin na capital [...]. Essa é a educação dos economistas/secretários: o que importa são os índices, não a realidade das salas de aula. (REDES, 2012) A oposição escola versus fábrica renova as narrativas contrárias às avaliações até Rodrigo ROSISTOLATO; Guilherme VIANA. Os gestores educacionais e a recepção dos sistemas externos de avaliação... mesmo em espaços que não estão diretamente relacionados à escola. O bloco carnavalesco organizado pelo SEPE em 2012 teve como tema Professores na folia - educação não é mercadoria.8 Tais slogans e as oposições por eles ativadas configuram um dos lados do gradiente de representações associadas às avaliações. O lado oposto aparece representado pelas Secretarias de Educação e seus respectivos gestores. O conjunto de críticas e até mesmo de negações radicais aos sistemas de avaliação também tem sido apresentado por pesquisadores reconhecidos nacional e internacionalmente. Os argumentos não são exatamente os mesmos, mas a crítica à padronização do ensino e aos mecanismos de avaliação indica convergências discursivas.9 Há, inclusive, a incorporação dos argumentos de pesquisadores no discurso sindical, mesmo que tais pesquisadores não estejam diretamente vinculados ao movimento sindical. O caso mais evidente é o incentivo à leitura do texto da pesquisadora Diane Ravitch (2011):10 o livro foi traduzido e pode ser adquirido no próprio SEPE. No campo acadêmico, entretanto, não há consenso sobre as avaliações externas. Da mesma forma que são veiculadas críticas em convergência com aquelas apresentadas pelos sindicatos, há analistas que apoiam as avaliações externas. Eles também tecem críticas, mas estas são orientadas para o refinamento dos sistemas de avaliação e utilização dos dados. Soares (2011) apresenta o processo de produção do IDEB e analisa suas falhas. O autor afirma que o uso equivocado dos indicadores produzidos pelas avaliações externas, principalmente quando utilizados como norteadores de políticas de responsabilização, pode, de certa forma, levar a fraudes e trazer consequências 8 - Disponível em: <http://www.seperj.org.br/ver_noticia.php?cod_ noticia=2797>. Acesso em: 8 mar. 2013. 9 - Ver, especificamente, o trabalho de Ravitch (2011). 10 - The Death and Life of the Great American School System: How Testing and Choice Are Undermining Education. Título em português: Vida e morte do grande sistema escolar americano: como os testes padronizados e o modelo de mercado ameaçam a educação. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 13-28, jan./mar. 2014. pedagógicas indesejáveis. Por isso, ele afirma que as questões técnicas e metodológicas presentes na construção do IDEB precisam ser apresentadas e discutidas publicamente. No caso específico do Rio de Janeiro, a Secretaria Estadual de Educação vem efetuando algumas tentativas de apresentação e debate sobre os indicadores educacionais produzidos. Tais espaços também são utilizados para refletir sobre as políticas de responsabilização. Além disso, as unidades escolares têm realizado reuniões de apresentação do SAERJ (Sistema de Avaliação da Educação do Estado do Rio de Janeiro) e da GIDE (Gestão Integrada das Escolas), siglas que representam o conjunto de políticas de avaliação e accountability propostas pelo governo estadual para renovação do sistema estadual de educação e cumprimento de metas estabelecidas para o sistema e para cada escola. Em 2011, cada unidade escolar recebeu a visita de um integrante do Grupo de Trabalho da Secretaria Estadual de Educação11 para apresentação e debate. Em 2012, as escolas receberam visitas de acompanhamento a fim de que apresentassem o que fizeram para alcançar as metas propostas. Nessas ocasiões, o corpo de gestão da escola apresentou as atividades realizadas e os IGT’s (sigla que define os integrantes do Grupo de Trabalho) comentaram as estratégias estabelecidas e os caminhos a seguir. Entre os gestores entrevistados, o trabalho cotidiano com as políticas de avaliação e accountability não é sinônimo de sua aceitação. A trajetória de Alice, por exemplo, foi diretamente afetada pela implementação das avaliações externas. Ela é professora PII12 no município do Rio de Janeiro e até 2010 atuava como docente nos primeiros anos do 11 - O Grupo de Trabalho foi criado pela Secretaria Estadual de Educação para orientar os gestores. Os integrantes também mantêm blogs informativos em que gestores, professores e público interessado podem ter acesso às atividades. Entre esses blogs, podemos citar: <http:// conhecendooorientadordegestao.blogspot.com/2011/08/gide-noticias. html> e <http://claudiaorientadora.blogspot.com/2011/07/gide.html>. 12 - Os professores PII são aqueles concursados para os anos iniciais do ensino fundamental. 21 ensino fundamental. A transição para a gestão ocorreu porque uma de suas alunas do 4º ano do ensino fundamental foi a primeira colocada na Prova Rio, tendo recebido nota máxima em matemática e em língua portuguesa. Assim, Alice, sua aluna e a diretora da escola foram entrevistadas e receberam destaque em diversas páginas na internet.13 O resultado positivo e a notoriedade obtida pelo sucesso na Prova Rio fizeram com que Alice fosse convidada pela CRE (Coordenadoria Regional de Educação) para assumir um cargo de gestão. Ela, no entanto, é absolutamente contrária às avaliações de aprendizagem e afirma que ninguém, além dos professores, deve medir o nível de aprendizado dos alunos, a não ser que esse instrumento de medida seja construído pela própria escola. O principal fundamento de seu argumento é que as diferenças regionais e sociais têm influência direta nos resultados apresentados pelos estudantes, o que, em sua visão, impede qualquer comparação entre as escolas. Como exemplo, Alice comenta que sua escola atual recebeu, recentemente, alunos de uma localidade reconhecida por seus altos índices de violência – uma favela da região. A professora não citou os índices de violência ou os dados que fundamentavam a comparação. Todavia, afirmou que os alunos pertencentes à região de favela estavam criando dificuldades para a escola e poderiam impedir o cumprimento das metas. Ela diz: Eles [os alunos antigos] até que estão indo bem. Porque a maioria não tem compromisso nenhum, né? Porque esse ano eles abriram mais turmas. A escola foi obrigada a receber um grupo de alunos vindos de outra comunidade,14 de outro lugar, então vieram muitas crianças despreparadas, porque as crias da escola você vê a diferença. Uma separação 13 - Para manter o anonimato da entrevistada, as páginas não serão citadas. 14 - As crianças foram transferidas por causa do fechamento de sua escola de origem. 22 incrível. A gente fez uma festa junina agora no meio do ano e você via na festa uma separação do grupo que já era da escola e um grupo que chegou esse ano. A escola recebeu um grupo de alunos problemáticos, de uma comunidade que é a [nome suprimido]. Aí tudo mudou. (grifo nosso) Quando questionada sobre as metas da escola, Alice respondeu que não sabia se conseguiria cumpri-las, pois os “alunos de fora” não tinham a base considerada necessária para o sucesso nas avaliações. Essa percepção é convergente com sua visão sobre a Prova Brasil. Ela não concorda com a avaliação nacional porque entende que todas as avaliações devem ser regionais. Também salienta que há muitas diferenças entre as crianças que são atendidas por um mesmo sistema educacional. Citando a própria experiência, afirma que as crianças que vivem na zona sul do Rio de Janeiro, por ela classificadas como “crianças que moram lá em baixo”, têm melhor nível socioeconômico do que as crianças da região em que sua escola está inserida. As crianças de sua região são, em seu entender, muito sofridas e, por isso, não deveriam ser avaliadas com os mesmos critérios utilizados para as “crianças que moram lá em baixo”. A fala de Alice é orientada por duas oposições. A primeira diferencia as crianças formadas pela escola e aquelas que chegaram recentemente por conta do fechamento de uma escola da favela. A segunda opõe as crianças de toda a região às que “moram lá em baixo” e que seriam, portanto, privilegiadas social e economicamente. A primeira oposição é equivalente àquela mapeada por Elias e Scotson (2000) em Winston Parva. Naquele contexto, moradores com indicadores objetivos – sexo, idade, cor da pele, renda, escolaridade – equivalentes identificavam-se com base em uma lógica que permitia que os mais antigos se pensassem de maneira coesa em oposição aos mais novos. Os mais novos eram vistos como mais sujos, mais pobres, mais feios e Rodrigo ROSISTOLATO; Guilherme VIANA. Os gestores educacionais e a recepção dos sistemas externos de avaliação... mais perigosos do que os mais antigos. Os mais antigos, inclusive, sentiam-se ameaçados com a presença dos mais novos. No caso específico da escola, a presença dos alunos mais novos ameaça, na visão da gestora, a manutenção dos índices educacionais e o cumprimento das metas. A segunda oposição apresentada por Alice indica que os estudantes com nível socioeconômico mais baixo deveriam ser avaliados de maneira diferente. Ela afirma que a Prova Brasil e a Prova Rio têm o objetivo de fazer com que todos os estudantes fiquem no mesmo nível. Para isso, é necessário obrigar o professor a trabalhar de maneira equivalente em todas as turmas. Porém, em sua visão, a realidade dos estudantes não é semelhante e isso impede que o trabalho dos professores seja igual para todos. Ela afirma que as avaliações externas engessaram os professores e que o ensino tende a piorar porque será reduzido ao cumprimento das metas. A narrativa apresentada por Alice guarda convergências com aquela realizada pelo movimento sindical. Ela entende que o professor deve ter autonomia para avaliar e realizar seu planejamento. Entretanto, seu foco é diferente porque, ao contrário do discurso sindical, ela não associa a qualidade da educação às condições materiais de existência dos professores. Sua crítica à proposta homogeneizadora contida nas avaliações externas é fundamentada por sua leitura sobre a composição social e econômica dos estudantes. A lógica de seu discurso articula reflexões sobre igualdade e diferença porque, em sua visão, se os estudantes são diferentes em todas as esferas da vida social, não podem ser iguais quando ocupam os espaços escolares. Há, nessa lógica, uma crítica ao modelo republicano de escola associada à crença em sua impossibilidade para o contexto socioeconômico da cidade do Rio de Janeiro. Tal lógica também aparece na fala de Joaquim. Ele é favorável às avaliações externas e entende que o estabelecimento de metas é importante, porque “tudo na vida tem que ter metas”. Em sua opinião, as avaliações são um Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 13-28, jan./mar. 2014. feedback necessário. Com relação ao desempenho de sua escola, ele citou os problemas vividos e os apresentou como justificativa para o baixo desempenho. Disse que recebia crianças de todos os tipos e fez uma comparação com a escola de seu filho. Meu filho não entende o que acontece aqui nesta escola e pergunta: “pai, porque a sua escola é assim e assim?”. E eu digo: “filho, a escola pública tem outra filosofia, diferente da sua escola”. Ele estuda no [colégio particular], mensalidade de 980 reais. Mas como ele é um excelente aluno, fez um bolsão e conseguiu 75% de desconto. Eu só pago lá no [colégio particular] 240 reais. E eu digo pra ele: “filho, se eu pegar os meus alunos do [colégio público] e botar lá no [colégio particular] e botar os do [colégio particular] aqui no [colégio público], lá vai virar [colégio público] e aqui vai virar [colégio particular]”. Então quem faz a diferença da escola é o aluno. Joaquim entende que a gênese dos problemas enfrentados por sua escola está na origem social do alunado. Ele chega a afirmar que recebe estudantes moradores de favelas que, em sua opinião, não pagam impostos, mas mesmo assim têm acesso à escola. Ao mesmo tempo recebe estudantes que são filhos de funcionários públicos que, em sua opinião, pagam todos os impostos. O entrevistado indica que o problema é que ele tem que atender a todos – os estudantes moradores de favelas e os que não residem em favelas – e precisa fazer isso no mesmo espaço. Essa visão, associada à sua percepção de que são os alunos que fazem a escola, sustenta a ideia de que a escola não tem como equilibrar as diferenças socioeconômicas e culturais existentes entre os estudantes. Há, portanto, uma crítica ao que ele classifica como “escola inclusiva” orientada pela crença de que as diferenças entre as pessoas – no caso, os estudantes – são determinantes dos fracassos 23 individuais e também do fracasso coletivo da escola. A solução implícita no discurso seria uma escola não inclusiva. Por outro lado, há gestores que deslocam a reflexão para o corpo docente. Geovana, por exemplo, é favorável às avaliações externas. Ela indica que algumas arestas precisam ser aparadas, mas não diz exatamente quais seriam. Afirma apenas que o governo deveria conhecer os parâmetros de cada escola para que as avaliações fossem mais consistentes. Sua visão positiva das avaliações está associada à cobrança ocasionada por elas. Em suas palavras: Olha, eu acho que a partir do momento em que você é mais cobrado, infelizmente é assim, você começa a produzir um pouco mais com boa ou má vontade. Então, a partir do momento em que você tem uma prova externa onde vai ser cobrado aquele conteúdo que tem que dar, você vai correr atrás porque senão você vai ficar como o alvo do fator negativo. Eu acho que dá uma mexida. Não sei se já mexeu muito, mas é motivo pra mexer sim. Quando fala sobre o desempenho de sua escola, Geovana desloca a reflexão do aluno para o professor. Ela afirma que os professores são conscientizados paulatinamente, com base em um trabalho da gestão. O trabalho contínuo faz com que os docentes entendam as vantagens do trabalho com os alunos. Sua narrativa apresenta expectativas positivas relacionadas aos estudantes e à capacidade de aprendizado. Segundo ela, os caminhos devem ser estabelecidos pelos profissionais da escola e o desempenho dos alunos aparece como resultado desse trabalho. Joana afirma que as avaliações, como estatísticas, são válidas. Porém, diz que as iniciativas governamentais para avaliação da aprendizagem dos alunos são “tudo política”. Ela culpa os professores pelos resultados das escolas porque, em sua opinião, quando eles não querem fazer nada, utilizam uma série 24 de estratégias para “engabelar os estudantes”. Sua fala também indica fatores positivos relacionados às avaliações. Ela afirma que, como ninguém deseja perder o emprego ou ganhar menos, os professores acabam tensionados porque as estatísticas assustam. Joana também entende que as avaliações deveriam se voltar para os professores antes dos alunos. Os concursos, segundo ela, são falhos e permitem que os professores passem. Com relação à principal causa do desempenho de sua escola, ela declara: Desinteresse mesmo. Os professores não têm tempo pra ficar trabalhando com os alunos isso, e os alunos não têm base pra essa prova que vem de fora. É muito difícil pra eles. A mesma prova que é dada aqui é dada no [outro colégio público] no primeiro turno. Isso não dá pra eles. Então essas escolas menores com alunos com menos embasamento, coitadas, ficam lá embaixo e vão ficar sempre. De início, Irene era contra as avaliações externas porque, segundo ela, não havia participação dos professores. Passou a ser favorável quando percebeu que tais avaliações poderiam contribuir para a universalização do ensino. Ela também indica que as avaliações externas ampliam o controle dos sistemas educacionais: Agora, eu acho que as avaliações externas são válidas, sim. A gente sabe que quando as coisas são feitas de uma forma muito fechada e não existe uma avaliação externa pra dar uma nota àquela escola, se torna um domínio muito perigoso porque... de repente a escola está fazendo só por sua conta e os professores também. Eu acho que a escola tem que universalizar mesmo, fazer isso que o Estado tá fazendo de universalizar o conhecimento. Irene foi a gestora mais favorável às avaliações externas e à universalização do Rodrigo ROSISTOLATO; Guilherme VIANA. Os gestores educacionais e a recepção dos sistemas externos de avaliação... conhecimento escolar. Ela afirmou que as avaliações externas e o currículo mínimo contribuem para a organização da distribuição dos saberes escolares. Disse que está surpresa com esse resultado, porque tem recebido estudantes transferidos que, em suas escolas de origem, estavam estudando os mesmo pontos presentes nas disciplinas de sua escola, o que não acontecia antes da implementação das avaliações externas e do currículo mínimo. Representações sobre nível socioeconômico, diferença e resultados escolares A reflexão sobre as relações entre nível socioeconômico e desempenho escolar está presente na sociologia da educação desde que ela se estabeleceu como área de estudos. O relatório Colemann e todas as reflexões posteriores a ele enfrentam a questão. Embora Colemann tenha afirmado que a escola não faz diferença, há estudos posteriores que indicam que a escola pode fazer diferença ao reduzir as distâncias culturais associadas às distâncias econômicas.15 Toda a reflexão acadêmica favorável às avaliações externas parte do pressuposto de que um sistema educacional bem avaliado pode formular estratégias mais coerentes para a redução dessas distâncias. A fala dos entrevistados, ao contrário, indica que as diferenças existem e que os diferentes deveriam ser tratados pela escola como diferentes. No campo acadêmico, existe consenso sobre a necessidade de se considerar o nível socioeconômico dos estudantes. Mas é necessário saber o significado de nível socioeconômico, o que implica refletir sobre a melhor maneira de medi-lo e incluí-lo na equação final que indicará o desempenho das escolas. Há classificações de senso comum que transformam pobreza, riqueza e nível socioeconômico em sinônimos. Assim, crianças mais pobres têm menor nível socioeconômico 15 - Ver os trabalhos de Franco e Bonamino (2001) e de Alves e Soares (2007). Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 13-28, jan./mar. 2014. do que crianças menos pobres. Essa informação faz sentido e alicerça debates cotidianos, mas, quando se considera uma avaliação nacional, a abordagem precisa ser metodologicamente justificada. No entanto, é possível dizer que as representações dos professores sobre os alunos criam expectativas com relação à capacidade de aprendizado dos discentes e não dependem do refinamento dos indicadores educacionais para que se imponham e criem certas profecias que acabam por se cumprir. É necessário destacar que, conforme afirma Soares (2011), a própria utilização do IDEB como índice norteador de políticas educacionais pode proporcionar o aumento dos processos de exclusão educacional, mesmo que o indicador tenha sido pensado para promover o efeito inverso. De acordo com o autor, como a concepção do IDEB considera apenas os alunos presentes no dia do teste, a escola pode, sem ferir a Lei, impedir que os alunos mais fracos façam a Prova Brasil. Também há problemas na utilização da média de desempenho dos alunos, pois esta é influenciada pelos valores extremos e pode fazer com que as escolas optem por investir mais nos alunos que já sabem mais. Assim, parece evidente que, caso as escolas queiram, poderão manipular o índice, utilizando como estratégia a exclusão dos alunos com maiores dificuldades de aprendizagem. Considerações finais O discurso dos gestores entrevistados indica que as avaliações externas de aprendizagem já estão inseridas no cotidiano escolar. Nenhum deles ignorou as avaliações e seus reflexos em suas atividades profissionais. Mesmo aqueles que as questionam necessitam mediar os diálogos entre as unidades escolares que administram e a gestão central, além de investir em reflexões junto ao corpo docente de suas escolas. Os entrevistados criticam as avaliações externas com foco dirigido para a universalidade das avaliações. Trata-se de uma reflexão 25 que envolve representações sobre nível socioeconômico, diferença e resultados escolares. Em síntese, as visões críticas relacionadas às possibilidades de os sistemas educacionais avaliarem a distribuição dos saberes públicos são fundamentadas pela crença na impossibilidade de a escola, como instituição, universalizar a distribuição desses saberes entre os estudantes que a procuram. O raciocínio segue uma lógica que associa diferenças econômicas e sociais à impossibilidade de aprendizado escolar. Talvez a superação dessa crença seja o principal desafio para que as avaliações externas de aprendizagem passem a ser vistas como instrumentos capazes de contribuir para a distribuição equitativa de saberes escolares no Brasil e no Rio de Janeiro e sejam incorporadas à cultura das escolas. Referências ALVES, Fátima. 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Guilherme Viana é pesquisador do Laboratório de Pesquisa em Oportunidades Educacionais (LaPOpE) e do Observatório Educação e Cidade. 28 Rodrigo ROSISTOLATO; Guilherme VIANA. Os gestores educacionais e a recepção dos sistemas externos de avaliação... Avaliação e classificação de instituições de ensino médio: um estudo exploratório André Luís Policani FreitasI Vinicius Barcelos da SilvaII Resumo Os números recentes da educação no Brasil revelam desempenhos ruins dos estudantes nos níveis de educação elementar e básica, que constituem o alicerce da educação superior. Esse cenário foi o principal motivador para o desenvolvimento da abordagem exploratória apresentada no presente artigo. Fundamentada em dimensões e critérios presentes em estudos científicos e no emprego de um método de apoio à decisão (ELECTRE TRI) e da análise dos Quartis, a abordagem proposta buscou avaliar e classificar a qualidade de uma Instituição de Ensino Médio (IEM), segundo a percepção do corpo docente e discente. Por meio de um estudo realizado em um campus de um Instituto Federal de Educação Tecnológica, o coeficiente alfa de Cronbach (1951) foi utilizado para medir a confiabilidade dos questionários, enquanto a análise dos Quartis foi utilizada para determinar os itens mais críticos. Os resultados indicam que os questionários são válidos e confiáveis. Déficit de aprendizado acumulado pelos alunos em níveis anteriores de ensino, o desinteresse na participação das aulas e no aprofundamento do conteúdo das disciplinas e a falta de estudos em casa são alguns itens mais críticos, segundo a percepção dos docentes. Por outro lado, a falta de clareza na explicação da disciplina, a falta de domínio da turma e a frequência de uso de laboratórios e recursos audiovisuais são alguns dos itens mais críticos, segundo a percepção dos discentes. Ao desenvolver essa abordagem exploratória para avalição e diagnóstico de IEM, espera-se contribuir com os gestores dessas instituições para que ações precisas com relação à melhoria da qualidade do ensino médio possam planejadas e executadas pelos órgãos oficiais. Palavras-chave IUniversidade Estadual do Norte Fluminense, Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil. Contato: [email protected]. II- Instituto Federal Fluminense, Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil. Contato: [email protected] Instituições de ensino médio — ELECTRE TRI — Classificação da qualidade — Qualidade em serviços. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 29-47, jan./mar. 2014. 29 Evaluation and ranking of secondary schools: an exploratory study André Luís Policani FreitasI Vinicius Barcelos da SilvaII Abstract The recent figures of education in Brazil reveal poor student performance in primary and secondary education, which are the foundation of higher education. This scenario was the main motivation for the development of the exploratory approach presented in this article. Based on dimensions and criteria present in scientific studies and on the use of a method of decision support (ELECTRE TRI) and Quartiles analysis, the proposed approach aimed to evaluate and rank the quality of an institution of secondary education, according to the perceptions of faculty and students. Through a study carried out in a campus of a Federal Institute of Technology Education, Cronbach’s alpha coefficient (1951) was used to measure the reliability of the questionnaires, and the Quartiles analysis was used to determine the most critical items. The results indicate that the questionnaires are valid and reliable. The learning deficit accumulated by students at previous levels of education, lack of interest in participating in classes and in deeply understanding the content of disciplines, as well as lack of homework completion are some critical items perceived by teachers. On the other hand, lack of clarity in the explanation of content of disciplines, lack of control of the class and the frequency of use of laboratories and audiovisual resources are some of the most critical items perceived by students. In developing this exploratory approach to the evaluation and diagnosis of secondary education institutes, we hope to contribute with the managers of such institutions so that precise actions to improve the quality of secondary education can be planned and carried out by official bodies. Keywords I- Universidade Estadual do Norte Fluminense, Campos dos Goytacazes, RJ, Brazil. Contact: [email protected]. II- Instituto Federal Fluminense, Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil. Contact: [email protected] 30 Secondary education institutions — ELECTRE TRI — Quality ranking — Quality services. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 29-47, jan./mar. 2014. Nas últimas décadas, o Brasil tem monitorado a qualidade da educação básica por meio de diversos sistemas de avaliação nacionais e internacionais, os quais têm constatado a baixa qualidade da educação básica oferecida pela rede pública de ensino, principalmente no ensino médio. Esses resultados geram diversos problemas para o país e ferem as finalidades do ensino médio estabelecidas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) (BRASIL, 1996). Apesar de, nos últimos anos, terem sido notados avanços com relação à melhora na qualidade da educação, esses são modestos e o desempenho apresentado pelos alunos brasileiros é inferior à média dos países desenvolvidos. Dentre outros aspectos, a qualidade insatisfatória da educação resulta na formação de profissionais menos capacitados e na maior dificuldade na continuidade dos estudos do aluno oriundo dessas instituições. Além disso, pode criar uma vulnerabilidade no país frente a outros países, dado o pressuposto de que ter uma força de trabalho especializada é crucial para aumentar sua competitividade na economia mundial. Com o objetivo de minimizar o problema de acesso ao ensino superior dos estudantes oriundos de escolas públicas, o governo federal e alguns governos estaduais têm adotado medidas, tais como a reserva de vagas em universidades públicas, a serem preenchidas através do sistema de cotas sociais e raciais, e a concessão de bolsas de estudo para alunos matriculados em instituições de ensino superior privadas. Motivo de discussões entre educadores e pesquisadores de diversas áreas de conhecimento, a análise da viabilidade e da efetividade das políticas de concessão de bolsas e do emprego de cotas sociais e raciais não está no contexto do presente artigo. Porém, é de senso comum que a adoção dessas medidas, por si só, não resolverá o problema de baixa qualidade da educação básica brasileira. Mais ainda, é perceptível que ingressantes no ensino superior por meio dessas políticas trazem consigo fragilidades e deficiências não sanadas durante o ensino básico. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 29-47, jan./mar. 2014. Nesse contexto, a Constituição federal brasileira (1988) estabelece diversos princípios da educação, dentre os quais se destaca a garantia do padrão de qualidade no ensino. Entretanto, esse documento não define exatamente qual seria esse padrão de qualidade, cabendo aos órgãos responsáveis pela educação nacional a sua definição e aperfeiçoamento. Segundo Freitas, Rodrigues e Costa (2009), é essencial a existência de um sistema de avaliação capaz de garantir que a qualidade da educação fornecida pelas instituições de ensino atenda aos padrões recomendados. Em especial, é preciso que haja um sistema de avaliação que possa detectar o nível de qualidade das Instituições de Ensino Médio (IEM), identificando problemas e fragilidades a serem sanadas com vistas à melhoria contínua do ensino. Nesse sentido, a avaliação institucional é um importante instrumento na busca de informações no que se refere à qualidade dos serviços prestados por uma instituição de ensino (FREITAS; FONTAN, 2008). De acordo com Valério (2004), ela permite descobrir, no processo educacional, as falhas existentes desde o planejamento dos conteúdos didáticos até o relacionamento professor-aluno sendo, portanto, uma importante ferramenta de gestão. O interesse das Instituições de Ensino Superior (IES) em melhorar o nível de qualidade da educação, aumentando consequentemente seu desempenho/conceito perante o Ministério da Educação e Cultura (MEC), motivou o desenvolvimento de vários estudos associados à avaliação e classificação da qualidade dos serviços prestados por essas instituições. Parte significativa das investigações realizadas retrata abordagens fundamentadas no emprego de métodos de apoio multicritério à decisão e técnicas correlatas. Alguns desses estudos podem ser encontrados em Embiruçu, Fontes e Kalid (2012); Freitas, Rodrigues e Costa (2009); Neves e Costa (2006); Freitas e Rodrigues (2006); e Lins, Almeida e Bartholo Junior (2004). Entretanto, existe uma carência de estudos similares tendo como foco principal a avaliação 31 e classificação da qualidade do ensino nas IEM. Desejando contribuir para o preenchimento dessa lacuna, este artigo apresenta uma abordagem metodológica para autoavaliação das IEM que avalie sua realidade, seguindo os princípios da qualidade e utilizando técnicas estatísticas e métodos de apoio à tomada de decisão. Essa abordagem visa a captar dados e informações, além de classificar a qualidade do ensino médio sob a percepção do corpo docente e discente da instituição. Considerando que em grande parte das escolas públicas brasileiras os recursos são escassos para solucionar problemas de grande magnitude, a abordagem tem como objetivo contribuir para a melhoria da qualidade da educação, auxiliando gestores na busca de soluções para os problemas detectados, identificando os mais críticos e, por conseguinte, permitindo às IEM priorizar ações e o uso de recursos. O artigo está organizado da seguinte forma. Primeiramente, apresentam-se os principais sistemas de avaliação e evidenciam-se problemas existentes na educação básica no Brasil; na sequência, descreve-se a abordagem proposta para autoavaliação de IEM; em seguida apresenta-se um estudo exploratório e destacam-se os principais resultados, por fim, são colocadas as considerações finais. Sistemas de avaliação e a educação básica brasileira Ao longo do século XX, diversos sistemas de avaliação e coleta de dados foram desenvolvidos visando a mensurar a qualidade dos serviços prestados pelas instituições de ensino. Atualmente, a educação básica brasileira possui, em âmbito nacional: um sistema de levantamento de dados estatísticos educacionais, o Censo Escolar; dois sistemas de avaliação, o Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) e o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM); além de um indicador da qualidade da educação nacional, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB). Todos são gerenciados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), uma autarquia federal vinculada ao MEC. O Censo Escolar consiste em um levantamento anual de dados estatísticos da educação básica. Sua função é coletar dados dos estabelecimentos de ensino, número de matrículas, docentes, abandono e rendimento escolar de todas as escolas públicas e privadas do país. Esse instrumento exibe o panorama nacional da educação, auxiliando os governos municipal, estadual e federal no desenvolvimento de políticas públicas e execução de programas na área da educação. O fornecimento de dados é obrigatório, inclusive para as instituições privadas. Segundo dados do censo escolar 2009, havia 8.337.160 alunos matriculados no ensino médio, sendo que 88,33% desses estavam matriculados em instituições públicas, como mostra a tabela 1. Um dado importante a ser considerado pelos estudos científicos e políticas educacionais é que 9 em cada 10 estudantes dessa modalidade estão na rede pública de ensino. Tabela 1 – Dados gerais sobre o ensino médio em 2009 Ensino médio Brasil Quantidade de alunos matriculados Rede de ensino Federal Estadual Municipal Privada 8.337.160 90.353 7.163.020 110.780 973.007 Taxa de matrículas / rede de ensino 100,00% 1,08% 85,92% 1,33% 11,67% Taxa de aprovação 75,90% 85,10% 73,50% 79,10% 93,3% Taxa de reprovação 12,60% 12,60% 13,50% 10,00% 6,2% Taxa de abandono 11,50% 2,30% 13,00% 10,90% 0,5% Fonte: Censo escolar 2009 (BRASIL, 2010). 32 André Luís Policani FREITAS; Vinicius Barcelos da SILVA. Avaliação e classificação de instituições de ensino... Os dados referentes ao rendimento escolar, que indica o grau de eficácia do ensino médio, mostram que, em 2009, 75,9% dos alunos foram aprovados, enquanto que 12,6% foram reprovados e 11,5% abandonaram a escola. Essas altas taxas de reprovação e abandono são alguns dos principais problemas dessa modalidade de ensino, conforme afirma Klein (2006). Enquanto as regiões Norte e Nordeste apresentam os maiores percentuais de abandono escolar (16,4%), as regiões Sul e Sudeste são as que mais reprovam (14,1% e 14,8%, respectivamente). O SAEB, criado em 1990, é composto por dois processos de avaliação: a Avaliação Nacional da Educação Básica (ANEB) e a Avaliação Nacional de Rendimento Escolar (ANRESC). Ambas são bianuais e compostas por provas de língua portuguesa e de matemática, além de incluir a aplicação de questionários. A ANEB avalia alunos da 4ª e 8ª série do ensino fundamental e do 3º ano do ensino médio das escolas públicas e privadas do país, localizadas nas zonas rural e urbana de todos os estados. Por outro lado, a ANRESC possui caráter universal, abrangendo todas as escolas urbanas com mais de 30 alunos matriculados nas 4ª e 8ª série do Ensino Fundamental, porém não avalia o ensino médio. Dados do SAEB (2009) mostram que alunos do 3º ano do ensino médio obtiveram notas 268,8 e 274,7 nas avaliações de língua portuguesa e matemática, respectivamente (BRASIL, 2011). Essas notas indicam que tais alunos demonstram ter conhecimentos compatíveis aos alunos da 8ª série do ensino fundamental (alunos do 3º ano do ensino médio deveriam apresentar notas entre 325 e 500). Apenas 11% dos alunos apresentaram conhecimentos adequados à sua série na disciplina matemática. Em língua portuguesa essa taxa foi maior (28,9%), mas ainda é considerada ruim. Criado em 1998, o ENEM é anual e consiste na aplicação de prova de múltipla escolha que avalia conhecimentos básicos do ensino médio, além de redação. Podem participar do exame alunos que estão Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 29-47, jan./mar. 2014. concluindo ou que já concluíram essa modalidade de ensino em anos anteriores. O exame é obrigatório aos candidatos que desejam participar do Programa Universidade para Todos (PROUNI), que fornece de bolsas de estudo parciais ou integrais para que os alunos possam estudar em IES privadas. Atualmente, diversas IES têm utilizado o resultado do ENEM de forma parcial ou integral no processo de vestibular. No ENEM 2009, participaram cerca de 2.500.000 candidatos, sendo que os mil piores resultados foram obtidos por alunos oriundos da rede pública de ensino (97,8% desses das redes estaduais). O IDEB consiste em um indicador que reúne dois conceitos da qualidade do ensino básico: fluxo escolar, usando dados sobre aprovação escolar obtido através do Censo Escolar; e a média de desempenho nas avaliações em larga escala, obtida através do SAEB. Esse índice, que utiliza uma escala de zero a dez, é comparável nacionalmente e expressa em valores os resultados mais importantes da educação: aprendizagem e fluxo (BRASIL, 2011). Dessa forma, é possível comparar a qualidade da educação oferecida à sociedade entre as cinco regiões e entre os estados, a fim de direcionar políticas públicas para melhorar a qualidade da educação básica dos estados com menores índices. Os resultados do IDEB 2009 mostram a fragilidade do ensino médio público no Brasil. Nessa modalidade, a rede pública de ensino obteve índice de 3,4 pontos, diferentemente da rede privada, com índice de 5,6 pontos. Esse índice é muito preocupante, pois, conforme supracitado, 9 em cada 10 estudantes do ensino médio estão na rede pública de ensino. Observando as metas do IDEB para o ano de 2021, pode-se notar que as metas da rede pública são menores que o atual índice obtido pela rede privada de ensino. Esse fato revela o enorme gap existente entre essas redes, tendendo a continuar alto por um longo tempo. Trata-se de um dos grandes desafios do Brasil na melhoria da qualidade da educação, como se observa nas metas do IDEB para o ano de 2021 na tabela 2, a seguir. 33 Tabela 2 – Resultados do IDEB do ensino médio em 2007 e 2009 Redes de ensino IDEB Observado Metas 2007 2009 2009 2021 TOTAL 3,5 3,6 3,5 5,2 Pública 3,2 3,4 3,2 4,9 Privada 5,6 5,6 5,6 7,0 Fonte: Brasil (2011) O Brasil também participa do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA), realizado trienalmente nos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e em países convidados. O programa consiste em uma avaliação de leitura, matemática e ciências, sendo aplicado a estudantes na faixa dos 15 anos de idade. No Brasil, os alunos dessa faixa etária estão iniciando o ensino médio. De acordo com o PISA de 2009, a educação brasileira ocupa a 53a posição, dentre os 65 países avaliados. Enquanto que as médias das notas dos países desenvolvidos pertencentes à OECD estão próximas dos 500 pontos, o Brasil registra médias de 386 pontos em matemática, 405 em ciências e 412 em leitura (OECD, 2010). Mais da metade dos estudantes brasileiros tiveram desempenho inferior ao nível 2 da escala do PISA em matemática e ciências – escala essa que possui seis níveis – enquanto que na média dos países pertencentes a OECD apenas 20% dos estudantes não alcançaram esse nível. Esses dados revelam que os alunos que estão iniciando o ensino médio já demonstram um déficit de aprendizado acumulado ao longo do ensino fundamental. Os resultados supracitados do SAEB, ENEM e IDEB também revelam que o ensino médio brasileiro não tem conseguido reverter esse déficit. Em especial, analisando os dados no período de 2000 a 2009, Kuenzer (2010) inferiu que essa década foi perdida para o ensino Médio, pois os problemas continuam os mesmos. Os indicadores de acesso, permanência e sucesso dos alunos não apresentaram mudanças significativas, mostrando 34 que as ações propostas no Plano Nacional de Educação de 2000-2010 não foram eficazes para esse nível de ensino. Muitos pesquisadores apontam a evasão e, principalmente, o alto índice de repetência escolar como causas para a baixa qualidade da educação básica no país. O próprio governo admite que os altos índices de evasão e repetência escolar são consequências da má qualidade do ensino, provocada pelo baixo gasto público, professores mal remunerados e sem preparação adequada e escolas mal equipadas (BRASIL, 2003). O repetente tende a abandonar a escola quando chega à maioridade, não concluindo as séries da educação básica, aumentando, assim, os indicadores de evasão escolar. Nesse contexto, Klein (2006) afirma que o acesso à escola está universalizado, mas a conclusão dos ensinos fundamental e médio está longe de ser universalizada. Ao analisar dados do PNAD e do SAEB sobre fluxo escolar e qualidade de ensino, o autor afirma que a evasão escolar acontece em decorrência da repetência, pois os alunos que não avançam nas séries acabam expulsos da escola. Outros fatores que também influenciam no baixo rendimento dos alunos consistem nas condições socioeconômicas e culturais da família do estudante. Barros et al. (2001) constataram que a escolaridade dos pais, em particular a da mãe, tem um peso importante no desempenho educacional dos jovens estudados. Um ano adicional de escolaridade dos pais leva a um acréscimo de cerca de 0,3 ano de estudo para seus filhos. Ney, Totti e Reid (2010) realizaram uma análise a partir dos microdados da edição do ENEM 2005 e também concluíram que as condições socioeconômicas das famílias exercem forte influência sobre a qualidade da educação básica. Os pesquisadores alertaram sobre a necessidade da elaboração de políticas públicas voltadas à melhoria da qualidade do ensino público municipal e estadual, a fim de reduzir as desigualdades de oportunidades na fase de preparação para o mercado de trabalho, além de conduzir mais pessoas ao ensino superior. André Luís Policani FREITAS; Vinicius Barcelos da SILVA. Avaliação e classificação de instituições de ensino... Por outro lado, Silva (2010) questiona a utilização dos dados produzidos pelo SAEB e IDEB pelas redes de ensino. Ela afirma que a análise superficial dos resultados, observando apenas um índice/nota, tem levado as redes de ensino a adotarem políticas educacionais que transferem a responsabilidade do resultado positivo ou negativo para as escolas, professores e alunos. Essa postura desencadeia premiações diante dos resultados obtidos nos exames padronizados. Segundo a autora, as escolas podem adotar estratégias visando a aumentar suas notas nesses exames, reduzindo os currículos – a fim de contemplar apenas os tópicos abrangidos pelas avaliações – ou evitando a reprovação dos estudantes, mesmo que esses não atinjam o nível necessário para sua aprovação. Todas essas medidas buscam melhorar o indicador de fluxo escolar, com o intuito de, assim, receberem a premiação oferecida pela rede de ensino. Kuenzer (2010) afirma que é fundamental a realização de um amplo diagnóstico que permita identificar necessidades específicas de cada realidade escolar, contemplando a diversidade sociocultural, o corpo docente, a estrutura física etc. Ela afirma que o resultado desse diagnóstico possibilitará estabelecer prioridades e metas a serem cumpridas. Mediante a todos os problemas supracitados, a abordagem proposta neste artigo busca contribuir com a melhoria da qualidade da educação nas IEM, caracterizando-se como uma ferramenta de gestão para diagnosticar a realidade da IEM, fornecendo informações que auxiliem o gestor na correção, no redirecionamento e na implementação de ações necessárias à solução dos problemas detectados na autoavaliação. A abordagem metodológica proposta A abordagem proposta originou-se de estudos realizados por Silva e Freitas (2011a, b) e caracteriza-se por ser de natureza exploratória tendo como método a pesquisa qualitativa, cujo objetivo é prover percepções e compreensões a Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 29-47, jan./mar. 2014. respeito de um problema. O caráter exploratório advém do fato de que os estudos direcionados à autoavaliação em IEM ainda são muito incipientes no país. Além disso, há a impossibilidade de se transpor pesquisas realizadas no exterior devido à diferença entre as realidades existentes. Para melhor compreensão, apresentam-se as etapas que compuseram essa abordagem. Etapa 1 – Modelagem do problema Foram definidos os elementos que compõem a modelagem do problema, assim como os pontos primordiais para a realização da pesquisa: • Objetivo da autoavaliação: Consiste na identificação de problemas e fragilidades no ensino médio das instituições, avaliando apenas essa modalidade de ensino, mesmo que a instituição ofereça o ensino fundamental ou profissional técnico de nível médio. A autoavaliação propõe consultar indivíduos que participam do processo educacional, captando suas percepções acerca da qualidade do ensino oferecido pela IEM. • Avaliadores: A IEM será avaliada pelo corpo docente e discente. Deverá ser definida a quantidade de julgamentos a coletar, ou seja, se todos os alunos e professores serão avaliadores (toda a população) ou se será realizado algum procedimento de amostragem. • Dimensões e itens: A definição das dimensões e itens foi fundamentada após análise de vários estudos realizados na educação básica e na superior, a saber: a) O resumo técnico executivo da Pesquisa Nacional Qualidade da Educação (BRASIL, 2005): o estudo consultou pais dos alunos da educação básica matriculados na rede pública de ensino e foi estruturado em função de três dimensões: escola, diretor e professor. Relacionados à escola, foram abordados itens referentes à localização, espaço para lazer, salas de aula, conservação do prédio e instalações, higiene dos banheiros e cozinha, biblioteca, laboratórios de informática, quadras de esportes, merenda escolar, livros didáticos, segurança, 35 bebedouros, entre outros. Quanto ao diretor, foram considerados itens sobre frequência, capacidade para resolver problemas, respeito a opinião externas, relacionamento, educação e atenção à comunidade. Sobre o professor, foram abordados temas como sua frequência, capacitação, comprometimento, paciência, simpatia, atenção, educação, autoridade em sala de aula, competência, dedicação, capacidade de motivar os alunos e suas formas de avaliação; b) SINAES: No âmbito da educação superior, o SINAES estabelece que a autoavaliação institucional atenda as 10 dimensões estabelecidas no art. 3 da Lei n. 10861/04: missão e o Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI); política de ensino, pesquisa e extensão, incluindo procedimentos para estímulo à produção acadêmica, bolsas de pesquisa e de monitoria; a responsabilidade social da instituição; comunicação com a sociedade; corpo docente e técnicos administrativos, e as políticas envolvidas; infraestrutura física; planejamento e avaliação; política de atendimento ao aluno; e sustentabilidade financeira; c) Estudos científicos: Rodrigues (2005) e Freitas e Fontan (2008) consideraram quatro dimensões em uma IES: corpo docente, corpo discente, organização administrativa e instalações físicas. Eberle; Milan e Lazzari (2010) identificaram seis dimensões da qualidade em IES: professores/ ensino, estrutura/imagem, planejamento e desenvolvimento do curso, atendimento, ambiente de ensino e relação custos versus benefícios. Considerando os estudos supracitados, propõe-se que as IEM sejam avaliadas à luz de quatro dimensões: organização administrativa, instalações físicas, corpo docente e corpo discente. Cada dimensão é composta por critérios de avaliação adequados aos avaliadores, sendo que cada critério é composto por um conjunto de itens de avaliação. Os elementos da autoavaliação das IEM relacionam-se conforme figura 1. Figura 1 – Relacionamento entre os elementos do processo de autoavaliação das IEM Organização administrativa Corpo docente Corpo discente Instalações físicas Percepção do corpo docente Percepção do corpo discente Fonte: Adaptado de Rodrigues (2005). A dimensão corpo docente avaliará: (i) as instalações físicas, constituídas pelas instalações gerais, biblioteca, laboratórios, instalações especiais e equipamentos; (ii) a organização administrativa, constituída pela secretaria acadêmica e coordenação do curso; (iii) o corpo discente; e (iv) o corpo docente, em forma de uma autoavaliação. Por outro lado, o corpo discente avaliará: (i) as instalações 36 físicas; (ii) a organização administrativa; (iii) o corpo docente, avaliando o conteúdo das disciplinas, provas/testes e materiais didáticos, além do desempenho do professor; e (iv) o corpo discente, em forma de uma autoavaliação. • Instrumentos de coleta de dados: Foram elaborados oito modelos de questionários padronizados para coletar dados e informações André Luís Policani FREITAS; Vinicius Barcelos da SILVA. Avaliação e classificação de instituições de ensino... junto aos avaliadores (os itens são apresentados nos quadros 1 a 4). • Modelo de avaliação conceitual: O modelo fundamenta-se no conceito do modelo SERVPERF não ponderado (CRONIN; TAYLOR, 1992), que utiliza a percepção do avaliador acerca do desempenho do serviço como forma de avaliar a qualidade do serviço. Quadro 1 - Questionários 1 e 2 do modelo proposto Questionário 1: Avaliação da Dimensão Corpo Discente sob a percepção dos discentes Questionário 2: Avaliação da Dimensão Corpo Discente sob a percepção dos doscentes (autoavaliação) I01: Domínio do conteúdo da disciplina. I02: Clareza na explicação do conteúdo da disciplina. I03: Domínio da turma por parde do professor. I04: Aproveitamento do tempo determinado para a aula. I05: Disponibilidade do professor para esclarecimento de dúvidas. I06: Frenquência de uso do laboratório da disciplina. I07: Frequência no uso do laboratório de informática para aulas práticas dos temas da disciplina. I08: Cumprimento do conteúdo proposto para a disciplina. I09: Uso de televisão, aparelho de DVD, computador, retroprojetor, data show pelo professor. I10: Relação dos exemplos e exercícios apresentados pelo professor com as situações cotidianas. I11: Uso de questões de vestibular e de concursos públicos em sala de aula. I12: Adequação dos trabalhos propostos pelo professor ao conteúdo da disciplina. I13: Adequação do material didático disponibilizado pelo professor ao conteúdo da disciplina. I14: Estímulo por parte do professor pelo pensamento crítico dos alunos. I15: Organização e planejamento das aulas. I16: Disponibilização e correção da lista de exercícios. I17: Educação do professor na comunicação com o aluno. I18: Relacionamento do professor com os alunos. I19: Receptividade do professor às críticas, sugestões e divergências de opiniões. I20: Adequação das avaliações ao conteúdo ministrado em sala de aula. I21: Cumprimento do prazo para correção de avaliações. I22: Coerência na correção das avaliações. I23: Critérios utilizados pelo professor para avaliar os alunos. I24: Pontualidade do professor. I25: Frequência do professor. I26: Postura e imagem do professor. I27: Em geral, como você avalia o desempenho do professor? Fonte: Elaboração dos autores do artigo. Quadro 2 - Questionários 3 e 4 do modelo proposto Questionário 3: Avaliação da Dimensão Organização Administrativa sob a percepção dos discentes Questionário 4: Avaliação da Dimensão Organização Administrativa sob a percepção dos doscentes I01: Horário de atendimento do registro acadêmico. I02: Atendimento prestado pelos funcionários da escola. I03: Horário de atendimento na diretoria/coordenação do ensino médio. I04: Relacionamento do diretor/coordenador do ensino médio com os alunos e professores. I05: Disponibilidade do diretor/coordenador do ensino médio no atendimento ao aluno e aos professores. I06: Eficiência do diretor/coordenador para solução de problemas e melhoria do curso. I07: Eficiência da diretoria/coordenação do ensino médio na resolução de problemas de alunos com comportamento inadequado. I08: Divulgação de informações para os alunos e professores. I09: Oferta de aulas de reforço a alunos com baixo rendimento escolar. I10: Resultado das aulas de reforço aos alunos com baixo rendimento escolar. I11: Oferta de cursos de extensão aos alunos e à comunidade. I12: Quantidade de alunos por turma. I13: Tempo de preparo de documentos pelo registro acadêmico.* I14: Acesso às notas das disciplinas.* I15: Relacionamento entre professores.** I16: Eficiência da diretoria/coordenação do ensino médio na resolução de problemas de alunos que apresentam baixo rendimento escolar. ** I17: Prazo estabelecido para o professor enviar os diários e as notas dos alunos.** I18: Acessibilidade aos diários escolares.** I19: Acessibilidade às ementas das disciplinas.** I20: Adequação das ementas das disciplinas.** I21: Horário de atendimento da reprodução gráfica.** I22: Processo de envio de materiais a serem impressos pela reprodução gráfica.** I23: Tempo médio de entrega de impressões de apostilas e provas, por parte da reprodução gráfica.** I24: Em geral, como você avalia a organização administrativa desta instituição de ensino? * Itens exclusivos do questionário 3, segundo a percepção dos discentes ** Itens exclusivos do questionário 4, segundo a percepção dos docentes Fonte: Elaboração dos autores do artigo. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 29-47, jan./mar. 2014. 37 Quadro 3 - Questionários 5 e 6 do modelo proposto Questionário 5: Avaliação da Dimensão Corpo Discente sob a percepção dos discentes (autoavaliação) Questionário 6: Avaliação da Dimensão Corpo Discente sob a percepção dos doscentes I01: Frequência dos alunos nas aulas. I02: Pontualidade dos alunos nas aulas. I03: Interesse dos alunos no conteúdo das aulas. I04: Comportamento dos alunos em sala de aula. I05: Disposição dos alunos para resolver exercícios em sala de aula. I06: Participação dos alunos na aula. I07: Interesse dos alunos no aprofundamento do conteúdo das disciplinas. I08: Interesse dos alunos em participar de aulas práticas, trabalhos e projetos extra classe. I09: Estudo em casa pelos alunos. I10: Cumprimento de prazos na entrega de trabalhos e atividades extra classe. I11: Resolução de atividades enviadas para casa. I12: Desempenho dos alunos nas atividades em sala. I13: Desempenho dos alunos em trabalhos escolares. I14: Desempenho dos alunos nas avaliações. I15: Comportamento dos alunos durante as avaliações. I16: Relacionamento dos alunos com o professor. I17: Educação dos alunos com o professor. I18: Receptividade dos alunos a críticas, sugestões e divergências de opiniões. I19: Postura e imagem dos alunos. I20: Nível de conhecimento dos alunos, adquiridos em níveis anteriores de ensino. I21: Relacionamento entre os alunos. I22: Em geral, como avalia o desempenho dos alunos? Fonte: Elaboração dos autores do artigo. Quadro 4 - Questionários 7 e 8 do modelo proposto Questionário 7: Avaliação da Dimensão Instalações Físicas segundo a percepção dos discentes Questionário 8: Avaliação da Dimensão Instalações Físicas segundo a percepção dos doscentes I01: Estado de conservação dos prédios e salas. I02: Iluminação das salas de aula. I03: Climatização das salas de aula. I04: Limpeza das salas de aula. I05: Tamanho do quadro da sala de aula. I06: Acessibilidade às dependências da instituição aos portadores de necessidades especiais. I07: Estado de conservação dos laboratórios de informática. I08: Estado de conservação dos laboratórios da escola. I09: Estado de conservação dos equipamentos existentes nos laboratórios da escola. I10: Quantidade de equipamentos existentes nos laboratórios da escola. I11: Funcionamento dos equipamentos existentes nos laboratórios da escola. I12: Modernidade dos equipamentos existentes nos laboratórios da escola. I13: Estado de conservação da biblioteca. I14: Adequação da mobília (mesas e cadeiras) existentes na biblioteca para estudo individual ou em grupo. I15: Espaço disponibilizado para estudo na biblioteca. I16: Horário de funcionamento da biblioteca. I17: Estado de conservação dos livros da biblioteca. I18: Processo de empréstimos de livros da biblioteca. I19: Atualidade do acervo de livros da biblioteca. I20: Quantidade de livros utilizados em seu curso existentes na biblioteca. I21: Quantidade de livros paradidáticos (romances, contos, leituras em geral) existentes na biblioteca. I22: Quantidade de acervo digital (livros digitais, filmes e documentários em DVD) existente na biblioteca. I23: Atendimento dos funcionários da biblioteca. I24: Acesso a recursos computacionais (computadores com internet, impressoras, scanners). I29: Oferta de reprodução xerográfica dentro da escola. I30: Estado de conservação do refeitório. I31: Iluminação do refeitório. I32: Limpeza do refeitório. I33: Climatização do refeitório. I34: Qualidade nutricional do lanche/refeição escolar. I35: Diversificação do lanche/refeição escolar. I36: Estado de conservação dos banheiros. I37: Limpeza dos banheiros. I38: Espaço disponibilizado aos alunos para estudo. I39: Adequação do auditório/sala de conferência para realização de eventos. I40: Estado de conservação da quadra de esportes. I41: Estrutura da quadra de esportes para a prática de vários esportes. I42: Iluminação da quadra de esportes. I43: Adequação dos vestiários para troca de roupa e banho após a prática de esportes. I44: Adequação dos recursos esportivos (bolas, coletes, redes) para a prática de vários esportes. I45: Quantidade de recursos esportivos disponíveis. I46: Estado de conservação dos recursos esportivos. I47: Estado de conservação das carteiras escolares.* I48: Conforto das carteiras escolares.* I49: Formato das carteiras escolares.* I50: Adequação dos materiais disponibilizados pela instituição para uso em sala de aula (pilotos, giz, réguas, mapas).** I51: Estado de conservação dos recursos áudiovisuais (DVD, televisão, computador, retroprojetor).** I52: Quantidade de recursos áudiovisuais.** I53: Modernidade dos recursos áudiovisuais.** I54: Espaço disponibilizado para reuniões, conselhos de classe, I25: Modernidade dos recursos computacionais. elaboração e correção de provas.** I26: Quantidade de computadores disponibilizados aos alunos e professores. I55: Em geral, como você avalia as instalações físicas desta instituição I27: Funcionamento dos recursos computacionais. de ensino?.** I : Desempenho da internet. 28 * Itens exclusivos do questionário 7, segundo a percepção dos discentes ** Itens exclusivos do questionário 8, segundo a percepção dos docentes Fonte: Elaboração dos autores do artigo. 38 André Luís Policani FREITAS; Vinicius Barcelos da SILVA. Avaliação e classificação de instituições de ensino... Etapa 2 – Execução Os procedimentos definidos na etapa anterior foram colocados em prática, coletando dados e percepções dos docentes e discentes por meio dos questionários elaborados. Etapa 3 – Análise Técnicas estatísticas e métodos fundamentados no Apoio Multicritério à Decisão (AMD) podem ser utilizados para a análise dos dados obtidos, verificando também a confiabilidade e validade dos mesmos. Busca-se identificar quais são as dimensões, setores, serviços ou profissionais que obtiveram menor desempenho segundo a percepção dos avaliadores. Recomenda-se a verificação da coerência dos julgamentos. Sugere-se o emprego do coeficiente alfa de Cronbach (1951) para avaliar a consistência interna dos questionários. Esse coeficiente é calculado através da variância dos itens e dos totais do teste por avaliador, em que quanto mais esse coeficiente se aproxima de 1, maior a confiabilidade do instrumento. Em geral, o valor de alfa não deve ser menor que 0,75, porém valores acima de 0,60 já indicam consistência do instrumento (FREITAS; RODRIGUES, 2005). Os dados poderão ser utilizados para classificar a qualidade da IEM, segundo a percepção dos avaliadores em categorias preestabelecidas, tais como ocorre nas IES, onde são atribuídos conceitos pelo MEC. Métodos multicritérios de classificação podem ser utilizados para esse propósito, com destaque para o método ELECTRE TRI (YU,1992), o qual tem sido utilizado em diversos trabalhos relacionados à classificação da qualidade do serviço oferecido por instituições de ensino (MIRANDA; ALMEIDA, 2003; RIBEIRO; COSTA, 2005; RODRIGUES, 2005). A descrição e o entendimento do algoritmo de classificação do ELECTRE TRI exigem um esforço cognitivo adicional, principalmente pelo fato de que esse método está fundamentado em conceitos recentes da lógica nebulosa (fuzzy logic). Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 29-47, jan./mar. 2014. Apesar disso, o entendimento e a modelagem pelo ELECTRE TRI dispensam a descrição pormenorizada do algoritmo de classificação (COSTA; FREITAS, 2005). A fim de priorizar ações que buscam sanar problemas de maior magnitude, sugere-se o emprego de um procedimento de priorização dos itens. Por exemplo, os itens que apresentaram os menores valores de desempenho seriam considerados como de prioridade crítica, ou seja, são itens que necessitam de ações corretivas/ preventivas urgentes. A análise dos Quartis (FREITAS, MANHÃES; COZENDEY, 2006) pode ser utilizada para esse fim. Etapa 4 – Planejamento Ao associar o resultado do modelo de autoavaliação proposto aos resultados das avaliações realizadas pelo MEC, a IEM poderá implementar ações visando a melhorias e eliminação/redução dos problemas identificados e, após uma análise dos resultados, padronizar e divulgar para a comunidade e outras instituições as ações que contribuíram para a melhoria da qualidade do ensino. Algumas ações podem ser definidas pela própria IEM, outras deverão ser repassadas para os órgãos oficiais da rede de ensino. A análise de Pareto e a técnica do 5W1H podem ser utilizadas. Um estudo exploratório O estudo foi realizado em um campus vinculado a um Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, localizado no estado do Rio de Janeiro. Em 2010, o campus possuía cerca de 350 alunos matriculados no ensino médio, os quais eram divididos em 11 turmas e 20 professores das grandes áreas de conhecimento dessa modalidade. Das onze turmas, quatro foram selecionadas para participar do estudo, denotadas por T= {TA, TB, TC, TD}. Cada turma possuía entre vinte e trinta alunos, denotados por TX = {TX1, …, TXn}, onde X representa a turma (X = A, B, C ou D) e n, os alunos da turma 39 X. Participaram do estudo cerca de cem alunos. Cada turma avaliou um professor de uma determinada disciplina. Dos vinte professores atuantes no ensino médio, quatro foram selecionados, sendo denotados por D = {D1, D2, D3, D4}. Neste estudo, foram consideradas duas dimensões: corpo docente e corpo discente, de modo que cada um deles avaliou o outro e fez uma autoavaliação. Para captação dos julgamentos, foi empregada uma escala contínua representada por meio de uma reta cujos valores possíveis variam de zero a cem pontos. Cada respondente deveria marcar com um X um valor representativo da sua percepção acerca do desempenho da IEM em relação a cada item/ critério (figura 2). Cada item possui, além da escala para captar o desempenho, uma opção denominada não se aplica. Os avaliadores foram orientados a marcar essa opção quando não tinham condições de avaliar aquele item, seja por falta de experiência ou por acreditar que a dimensão não tinha como ser avaliada. Além disso, considerou-se que os avaliadores não estariam capacitados a estabelecer o grau de importância de cada item e, por outro lado, em uma primeira análise, todos os itens teriam igual importância. Figura 2 – Escala de julgamento de valor Péssimo Excelente 0 10 20 40 30 50 60 70 80 90 100 Fonte: Elaboração dos autores do artigo. Para emprego do algoritmo do método ELECTRE TRI, foram definidas cinco categorias, denominadas por C = {C1, C2, C3, C4, C5} e suas respectivas fronteiras, em que cada categoria representa respectivamente os conceitos A, B, C, D e E (figura 3). Foram definidos os limites de preferência (pi) e indiferença (qi) para cada item i. Segundo Costa et al. (2007), não existe um consenso na literatura para a determinação desses limites quando se considera avaliação conjunta de múltiplos avaliadores, pois os métodos da família ELECTRE são decisões que envolvem uma única unidade de decisão. Foram definidos os limites pi = qi = 6 para todos os itens. O limite de veto não foi utilizado, pois a variabilidade de nenhum item seria capaz de inviabilizar a classificação a uma categoria em detrimento à outra. Utilizou-se o plano de corte padrão ( = 0,76). Segundo Neves e Costa (2006), esse valor tem sido frequentemente adotado, porém, não se encontra na literatura uma discussão aprofundada acerca dessa escolha. De maneira sucinta, considerando categorias de classificação pré-definidas delimitadas por fronteiras e dado que uma IEM é avaliada segundo n itens (critérios) denotados por I = {I1, I2, …, In}, a problemática consiste em determinar a categoria à qual a qualidade do ensino da IEM será atribuída. A figura 3 ilustra essa problemática, considerando cinco categorias de classificação, em que cada categoria representa respectivamente os conceitos A, B, C, D e E. Figura 3 – Categorias e limites do ELECTRE TRI usados no estudo de caso l1 Categoria C1 – Conceito A Categoria C2 – Conceito B Categoria C3 – Conceito C Categoria C4 – Conceito D Categoria C5 – Conceito E l2 ln L1=90 L2=70 L3=50 L4=30 Fonte: Adaptado de Costa et al. (2007) 40 André Luís Policani FREITAS; Vinicius Barcelos da SILVA. Avaliação e classificação de instituições de ensino... Por duas semanas, discentes e docentes foram convidados a preencher questionários impressos. A fim de obter avaliações mais realistas e sinceras, a identificação dos avaliadores foi opcional. Os valores dos itens deixados em branco ou nos quais ocorreu a marcação da opção não se aplica foram substituídos pela média aritmética dos valores dos julgamentos do item em questão, procedimento incorporado pelos pacotes estatísticos profissionais. Conforme tabelas 3, 4 e 5, todos os questionários que avaliaram as dimensões corpo docente e corpo discente apresentaram alta confiabilidade interna ( ≥ 0,75). Dado que o último item dos questionários solicita a atribuição de uma nota geral para o objeto avaliado, os dados remanescentes foram empregados em uma análise de regressão linear para verificar a co- erência das avaliações, usando como variáveis a média aritmética das notas dos itens I1 até In-1 e a nota do item In (n é o total de itens). Supõese que uma avaliação está coerente quando a nota geral atribuída à dimensão está próxima da média das notas. A tabela 3 mostra que todas as avaliações da dimensão corpo docente apresentaram coeficientes de correlação significativos. As avaliações feitas por alguns alunos não foram incluídas, pois não responderam o último item ou marcaram a opção não se aplica (avaliadores identificados com um asterisco). Porém, na autoavaliação do corpo discente (tabela 4), apenas a autoavaliação realizada pelos alunos da TA apresentou coeficiente de correlação significativo. A turma TC que apresentou coeficiente de correlação muito baixo. Tabela 3 – Coeficientes de correlação para avaliações da dimensão docente, sob a percepção dos discentes Docente avaliado Análise de regressão linear simples Alunos excluídos Coef. de correlação (r) Turma avaliadora Alunos avaliadores Alfa de Cronbach D1 TA 22 0,90 TA15* 0,83 D2 TB 25 0,90 TB01* e TB03* 0,79 D3 TC 25 0,94 TC17* 0,87 D4 TD 30 0,95 TD26* 0,84 Fonte: Dados da pesquisa Tabela 4 – Coeficientes de correlação para avaliações da dimensão discente, sob a percepção dos discentes Turma avaliada Alunos avaliadores (autoavaliação) Alfa de Cronbach TA 22 0,90 Análise de regressão linear simples Alunos excluídos Coef. de correlação (r) Nenhum 0,80 TB 25 0,85 TB13* 0,59 TC 25 0,78 TC14* e TC15* 0,17 TD 30 0,91 TD11* e TD27* 0,46 Fonte: Dados da pesquisa A tabela 5 mostra que os coeficientes de correlação das dimensões corpo docente e corpo discente, segundo a percepção do corpo docente, foram altos e significativos. Tabela 5 – Coeficientes de correlação para avaliações das dimensões, sob a óptica dos docentes Dimensão avaliada Alfa de Cronbach Coeficiente de correlação (r) Corpo docente (autoavaliação) 0,91 0,82 Corpo discente 0,95 0,86 Fonte: Dados da pesquisa Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 29-47, jan./mar. 2014. 41 O método ELECTRE TRI foi utilizado para classificar a IEM à luz das duas dimensões em uma das categorias preestabelecidas, segundo a percepção docente e discente. O desempenho da IEM em cada item foi obtido através do cálculo da média aritmética das notas atribuídas pelos avaliadores. Conforme a Tabela 6, segundo a percepção dos alunos, três professores foram classificados com o conceito C e outro foi classificado com o conceito B. Porém, segundo suas autoavaliações, três docentes se classificaram com o conceito B, enquanto um se classificou com o conceito A. Nota-se que houve uma superestimação dos docentes em suas autoavaliações, de modo que apenas um se autoclassificou na mesma categoria dada pelos alunos. Agrupando as médias obtidas pelos quatro docentes segundo a percepção dos alunos, e calculando uma nova média aritmética, pode-se obter a média geral dos docentes e a respectiva classificação: conceito C. Entretanto, em todas as análises, o conceito atribuído à dimensão foi o mesmo nas classificações otimista e pessimista. Tabela 6 – Resultados obtidos pelo método ELECTRE TRI, na dimensão corpo docente Docente avaliado Avaliadores Classificação otimista Classificação pessimista D1 Discentes da TA C C D1 Autoavaliação B B D2 Discentes da TB C C D2 Autoavaliação B B D3 Discentes da TC C C D3 Autoavaliação A A D4 Discentes da TD B B D4 Autoavaliação B B D1, D2, D3 e D4 Discentes (TA, TB, TC e TD) C C Fonte: Dados da pesquisa Conforme a tabela 7, todas as turmas foram classificadas com o conceito B pelos alunos (autoavaliação) e pelos professores, com exceção na classificação pessimista da turma TB segundo a percepção dos docentes D1 e D2, na qual essa turma foi classificada com conceito C. Tabela 7 – Resultados obtidos pelo método ELECTRE TRI, na dimensão corpo discente Turma avaliada Avaliadores Classificação otimista Classificação pessimista TA Discentes da TA (autoavaliação) B B TA Docentes D1 e D2 B B TB Discentes da TB (autoavaliação) B B TB Docentes D1 e D2 B C TC Discentes da TC (autoavaliação) B B TC Docentes D3 e D4 B B TD Discentes da TD (autoavaliação) B B TD Docentes D3 e D4 B B TA, TB, TC e TD Docentes D1, D2, D3 e D4 B B Fonte: Dados da pesquisa 42 André Luís Policani FREITAS; Vinicius Barcelos da SILVA. Avaliação e classificação de instituições de ensino... A Análise dos Quartis (FREITAS; MANHÃES; COZENDEY, 2006) foi utilizada para identificar os itens de maior prioridade para intervenção, de acordo com o desempenho obtido junto aos avaliadores. Por exemplo, de acordo com a análise da dimensão corpo docente (figura 4), I2, I3, I6, I7 e I9 foram considerados itens de prioridade crítica nas análises de quase todos os docentes, pois os valores são menores que o va- lor do primeiro Quartil. Percentual considerável dos discentes não informou o desempenho nos itens I6, I7 e I9 (52%, 62% e 30% respectivamente), deixando-os em branco ou marcando não se aplica. Todos os docentes marcaram não se aplica para os itens I6 e I7. Chama-se a atenção para os itens I2 (clareza na explicação do conteúdo da disciplina) e I3 (domínio da turma por parte do professor). Figura 4 – Análise dos Quartis, na dimensão corpo docente, segundo percepção dos discentes Prioridade Baixa Docente D1 D2 Prioridade Moderada 3º Quartil = 70,69 I25 I17 I24 I18 I8 I5 I26 I15 2º Quartil = 60,92 I23 I13 I19 I25 I26 I22 I1 I24 I3 I18 I14 I10 I4 3º Quartil = 73,52 D3 D4 D1, D2, D3 e D4 I25 I24 I1 I13 I8 I22 I20 I26 I24 I26 I21 I22 I18 I1 I24 I26 I1 I17 I22 I18 I23 I19 I13 I4 I11 I14 I21 I17 I19 I5 I12 I4 I5 I13 I4 I20 I23 I13 I5 I8 I4 I19 I12 I20 I2 I3 I6 I7 I9 I12 I20 I16 I2 I8 I11 I15 I6 I7 1º Quartil = 49,99 I3 I15 I10 I11 I14 I19 I18 I2 I21 I9 I6 I7 I3 I2 I9 I6 I7 I3 I9 I2 1º Quartil = 72,30 I12 I8 I10 I16 I15 I11 I14 1º Quartil = 59,52 2º Quartil = 64,61 I23 I5 I10 I16 1º Quartil = 48,55 2º Quartil = 77,47 3º Quartil = 70,58 I25 I21 I16 I17 I23 I17 I22 I12 2º Quartil = 60,78 3º Quartil = 84,78 I25 I1 Prioridade Crítica 1º Quartil = 45,32 2º Quartil = 60,22 3º Quartil = 68,95 I9 Prioridade Alta I20 I10 I16 I14 I15 I21 I11 I6 I7 Fonte: Dados da pesquisa Figura 5 – Análise dos Quartis, na dimensão corpo discente, segundo percepção dos docentes Prioridade Baixa Turma TA TB TC TD TA, TB, TC e TD Prioridade Moderada 2º Quartil = 77,50 3º Quartil = 85,00 I16 I17 I2 I11 I16 I17 I21 I2 I21 I17 I18 I1 I12 I13 I21 I10 I10 I4 I18 I19 I3 I11 I1 I2 I15 3º Quartil = 90,00 I17 I18 I21 I16 I5 I8 I12 I17 I21 I2 I1 I18 I19 I8 I11 I4 I5 I18 I3 I20 I12 I19 I12 I13 I13 I1 I2 I4 I19 I12 I13 I15 I20 I4 I5 I6 I9 I7 I15 I14 I3 I9 I5 I6 I7 I14 I7 I20 I9 I9 I10 I14 I20 I6 I20 I9 I7 1º Quartil = 80,00 I3 I4 I8 1º Quartil = 62,00 I6 I10 I8 1º Quartil = 84,50 I6 I11 I13 I15 I7 1º Quartil = 73,75 2º Quartil = 79,25 I11 Prioridade Crítica 1º Quartil = 75,00 I14 2º Quartil = 89,00 3º Quartil = 86,00 I16 I15 2º Quartil = 85,00 3º Quartil = 90,00 I16 I19 2º Quartil = 70,00 3º Quartil = 80,00 I1 Prioridade Alta I8 I10 I3 I5 I14 Fonte: Dados da pesquisa Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 29-47, jan./mar. 2014. 43 A análise do corpo discente segundo a percepção docente (figura 5) revela que os itens I7 (interesse dos alunos no aprofundamento do conteúdo das disciplinas) e I9 (estudo em casa) foram considerados críticos em quase todas as turmas. A participação dos alunos nas aulas (I6) e o nível de conhecimento dos alunos adquiridos em níveis anteriores de ensino (I20) também foram considerados críticos. A pouca participação e interesse nas aulas, agravado pelo fato de os alunos não possuírem um conhecimento base bem consolidado e pelo fato de não estudarem em casa podem ser prováveis causas de desempenhos insatisfatórios dos discentes nas avaliações, provas e testes. Esse aspecto foi mensurado pelo item I14, sendo classificado nas turmas como prioridade alta ou crítica. Considerações finais A avaliação das instituições de ensino tem sido objeto de interesse de pesquisadores de diversas áreas do conhecimento (educação, pedagogia, ciências matemáticas, engenharias, dentre outras) e também de organismos oficiais do Ministério da Educação e Cultura. O aumento expressivo de cursos superiores e IES no início da década de 1990 foi um dos principais motivadores para esse interesse e, consequentemente, para os inúmeros estudos desenvolvidos até o presente momento. Este artigo apresentou uma abordagem exploratória que buscou avaliar e classificar a qualidade de uma Instituição de Ensino Médio e identificar os itens mais críticos, segundo a percepção docente e discente. Apesar do caráter exploratório e de abrangência limitada em termos da quantidade de alunos e docentes da instituição de ensino avaliada, o presente estudo foi capaz de apresentar resultados relevantes para serem analisados, brevemente sintetizados a seguir. Os discentes foram mais bem avaliados que os docentes, obtendo conceito B, tanto sob a percepção dos docentes quanto em suas autoavaliações. Não houve superestimação na 44 autoavaliação dos alunos, o que demonstra certa coerência nas avaliações. Por outro lado, três dos quatro docentes avaliados foram classificados com o conceito C, sendo que suas autoavaliações estavam superestimadas. Esse fato revela que os alunos estão com uma percepção da qualidade de serviço prestado pelo professor inferior ao que eles acreditam que estão oferecendo. O docente mais bem avaliado pelos discentes obteve conceito B e foi o único coerente em sua autoavaliação, atribuindo-se na mesma categoria designada pelos alunos. Dentre os itens críticos relacionados aos docentes estão: falta de clareza na explicação da disciplina e a falta de domínio da turma. Também não foram bem avaliados pelos alunos a frequência de uso de laboratório e recursos audiovisuais pelo professor. Essas avaliações negativas podem ser justificadas pelo fato de que em 2010 apenas um laboratório de ciências naturais estava disponível na instituição, não existia laboratório de línguas estrangeiras que pudesse auxiliar os trabalhos dos professores de língua portuguesa e língua estrangeira, e os dois laboratórios de informática estavam em situação precária. As salas não possuíam recursos audiovisuais e a instituição só tinha quatro projetores para atender a demanda de todos os cursos. Várias obras estavam em andamento, como a construção de laboratórios e salas de aula equipadas com recursos audiovisuais. Os docentes apontaram como itens críticos das turmas o déficit de aprendizado acumulado pelos alunos em níveis anteriores de ensino, que, somados com o desinteresse na participação das aulas e no aprofundamento do conteúdo das disciplinas e na falta de estudos em casa, geravam baixo desempenho nas avaliações. Ao agregar o resultado gerado pela abordagem proposta aos resultados das avaliações externas realizadas pelo MEC, esperase que a IEM possa executar ações de melhoria André Luís Policani FREITAS; Vinicius Barcelos da SILVA. Avaliação e classificação de instituições de ensino... e, após a análise dos resultados, padronizar e divulgar as ações que contribuíram para a melhoria da educação. Dessa forma, o principal benefício da abordagem proposta consiste no diagnóstico de não-conformidades que não são detectadas pelos sistemas de avaliação oficiais. Mais ainda, espera-se a abordagem permita que a equipe gestora: (i) direcione recursos para solucionar problemas mais graves; (ii) consiga recursos extras das Secretarias de Educação para solucionar problemas de grande magnitude ou (iii) alerte os órgãos oficiais para a necessidade de ações para sanar deficiências de grande magnitude existentes. Referências BARROS, Ricardo Paes de et al. Determinantes do desempenho educacional no Brasil. 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Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 29-47, jan./mar. 2014. 45 FREITAS, André Luís Policani; RODRIGUES, Sidilene Gonçalves. A avaliação da confiabilidade de questionários: uma análise utilizando o coeficiente alfa de Cronbach. SIMPÓSIO DE ENGENHARIA DE PRODUÇÃO - SIMPEP, 12, 2005, Bauru, Anais do XII SIMPEP, Bauru, SP, 2005. ______. Using the ELECTRE TRI method for sorting the performance of universities. CONGRESO LATINO-IBEROAMERICANO DE INVESTIGACIÓN OPERATIVA, 13, 2006, Montevideo, Uruguay, Anais..., 2006, p. 1-7. ______; FONTAN, Emanuella Aparecida. Um procedimento para a estruturação do processo de auto-avaliação de cursos universitários. Sistemas & Gestão, v.3, p.147-162, 2008. ______; MANHÃES, Nilo Roberto Correa; COZENDEY, Manaara Iack. Emprego do SERVQUAL na avaliação da qualidade de serviços de tecnologia da informação: uma análise experimental. In: ENCONTRO NACIONAL DE ENGENHARIA DE PRODUÇÃO- ENEGEP, 26, Fortaleza, 2006. Anais... 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Vinicius Barcelos da Silva é mestre em Engenharia de Produção pela Universidade Estadual do Norte Fluminense – UENF, especialista em produção e sistemas pelo Instituto Federal Fluminense – IFF e graduado em análise e desenvolvimento de software, pelo mesmo instituto. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 29-47, jan./mar. 2014. 47 Desempenho escolar: análise comparativa em função do sexo e percepção dos estudantes Andréia OstiI Selma de Cássia MartinelliII Resumo O presente artigo investigou o desempenho escolar em função do sexo e a percepção de alunos em relação às expectativas de seu professor. Participaram da pesquisa 120 alunos do 5º ano do ensino fundamental de escolas públicas municipais da região metropolitana de Campinas, dos quais 60 alunos têm desempenho escolar satisfatório e 60 têm desempenho insatisfatório. Foi utilizada uma escala de percepção de alunos acerca das expectativas dos professores; já para medir o desempenho escolar foi considerado o conceito atribuído pelo professor ao aluno. Os resultados revelaram diferenças significativas entre meninos e meninas do grupo de alunos com desempenho insatisfatório, pois a maioria (83,3%) era do sexo masculino. Por outro lado, não se verificaram diferenças estatisticamente significantes quando comparados meninos e meninas do grupo com desempenho escolar satisfatório, embora a média de desempenho escolar das meninas tenha sido maior. Em relação à percepção de seus professores, foram observadas diferenças nos dois grupos. Alunos com desempenho satisfatório se percebem mais elogiados e são escolhidos como ajudantes na sala de aula, enquanto alunos com desempenho insatisfatório acreditam receber mais críticas de seus professores e são vistos como mais indisciplinados. Os dados permitem discutir as relações vinculares entre alunos e professores, as influências das vivências e experiências no momento da aprendizagem e como essas influenciam o interesse e a motivação dos estudantes. Palavras-chave Relações interpessoais — Percepção de alunos — Desempenho escolar. I- Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, SP, Brasil. Contato: [email protected]; II- Universidade Estadual de Campinas, SP, Brasil. Contato: [email protected] Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 49-59, jan./mar. 2014. 49 Academic achievement: comparative analysis by gender and student perception Andréia OstiI Selma de Cássia MartinelliII Abstract This paper discusses the results of an investigation of academic achievement by gender and student perception of the expectations of their teachers. 120 students from the 5th year of primary education municipal public schools in the metropolitan region of Campinas city participated in the research: 60 of the students have satisfactory academic performance and the other 60 have unsatisfactory performance. We used a scale of student perception of teacher expectations and, to measure academic performance, we considered the grade teachers assigned to students. Research results revealed significant differences between boys and girls in the group of students with unsatisfactory performance, because most of them (83.3%) were male. On the other hand, there were no statistically significant differences between boys and girls in the group with satisfactory academic performance, although girls’ average academic performance was higher. Regarding the perception of their teachers, we observed differences in both groups. Students with satisfactory performance have the perception that they are more praised and more often chosen to assist the teacher in the classroom while underperforming students believe they receive more criticism from their teachers and are seen as more unruly. The data allow discussing student-teacher bond, the influence of experience at the time of learning and how it influences the interest and motivation of students. Keywords Interpersonal Relations — Perception of students — Academic achievement. I- Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, SP, Brazil. Contact: [email protected]; II- Universidade Estadual de Campinas, SP, Brazil. Contact: [email protected] 50 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 49-59, jan./mar. 2014. A escola, seja no passado ou no momento atual, teve de enfrentar problemas com a evasão do aluno do sistema de ensino regular e com as altas taxas de reprovação. De fato, sempre foi muito difícil identificar com precisão o motivo que levava os alunos ao abandono da escola. A tentativa de abordar e enfrentar essas questões resultou em uma ampla literatura, que teve seu foco de atenção marcado na década de 80 no Brasil. Na tentativa de buscar soluções a esses problemas e assumindo que grande parte deles poderia ser decorrente das condições sociais a que grande parte da população estava submetida, uma série de medidas governamentais foi tomada com o intuito de mudar essa realidade. A obrigatoriedade de permanência dos estudantes por no mínimo oito anos na escola e a criação de ciclos – por exemplo, o ciclo básico, que estipulava que o processo de alfabetização deveria ter uma duração mínima de dois anos e somente após esse período o aluno poderia ficar retido – foram apenas algumas dessas tentativas. Posteriormente, novas medidas foram criadas com a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº. 9.394 – BRASIL, 1996), que instituiu ciclos mais longos de ensino, formalizando dois ciclos para o ensino fundamental, referentes ao ensino básico (1ª a 4ª série) e ao segundo ciclo (5ª a 8ª série). Dessas mudanças, originou-se, no estado de São Paulo e em alguns outros estados do país, o regime de progressão continuada, que estabeleceu possíveis reprovações apenas ao final de cada ciclo e não mais ao final de um ano, como ocorria antes. De forma geral, essas mudanças no sistema educacional brasileiro buscavam a melhoria do ensino, o combate à evasão e ao fracasso escolar. Todos esses caminhos foram, de alguma forma, gerando outro cenário na educação. Atualmente, a evasão e a repetência escolar não são os problemas centrais, mas a defasagem e o baixo aproveitamento escolar por parte dos alunos, muitas vezes identificados como dificuldades de aprendizagem. Os dados do Censo Escolar de 2010 apontam que Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 49-59, jan./mar. 2014. o índice de defasagem escolar no ensino fundamental chegou a 23,6%, o que representa aproximadamente cerca de sete milhões de estudantes com defasagem escolar no país, ou seja, com idade incompatível com a série. De acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), o rendimento dos estudantes é composto por quatro taxas: aprovação, reprovação, abandono e taxa de não resposta (matrícula sem informação suficiente para que o INEP possa categorizá-la). Ainda que em 2011 esse índice tenha sido reduzido, para cerca de 13%, esses números ainda são preocupantes. Pode-se inferir que os índices apresentados evidenciam a insuficiência do trabalho realizado pela escola e reafirmam a necessidade de maior atenção à qualidade do ensino e da aprendizagem. Com relação ao baixo aproveitamento escolar dos estudantes, os índices oficiais também revelam preocupação, uma vez que o nível de desempenho alcançado pelos estudantes brasileiros está aquém do observado em alunos de países desenvolvidos ou em desenvolvimento. Segundo dados do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA), divulgados em 2006, o Brasil estava na 49º posição na prova de leitura e 54º na avaliação de matemática. Na última edição do exame, em 2009, o Brasil ficou em 53º lugar. Gomes e Boruchovitch (2009), ao traçar um panorama geral da proficiência em leitura de alunos brasileiros, afirmam que o desempenho dos mesmos no ensino fundamental e médio tem se revelado muito aquém dos objetivos visados pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Pode-se considerar, pelos dados apresentados, e até mesmo pelo relato de professores e pais de estudantes, que a problemática da aprendizagem escolar se constitui um dos maiores desafios da contemporaneidade, conduzindo-nos à reflexão a respeito da temática das dificuldades e/ou do baixo desempenho escolar dos estudantes. Os problemas das pessoas que têm enfrentado dificuldades durante o processo de 51 aprendizagem podem estar associados a vários fatores. Lozano e Rioboo (1998) apontam para três: o contexto familiar e social, a personalidade do sujeito e as instituições educativas, incluindo suas áreas metodológicas e de organização. Somam-se a isso as considerações de Dolle e Bellano (2002), para quem as dificuldades de aprendizagem são decorrentes da interação entre a qualidade da instrução e as características emocionais e motivacionais dos alunos. Muitos outros estudiosos têm procurado investigar os fatores associados ao baixo desempenho ou às dificuldades de aprendizagem dos estudantes. Esses estudos têm se centrado em diferentes aspectos e alguns deles apontam para as consequências emocionais vivenciadas pelos estudantes, como coloca Smith (2001), autor que alerta para o fato de os problemas de autoestima serem tanto causa como efeito das dificuldades, inclusive mais efeito que causa. Rutter et al. (2008) enfatizaram a consequência emocional gerada pelo fracasso da criança em responder as demandas escolares e afirmam que, nessas situações, a criança deixa de confiar em si mesma e em suas possibilidades de sucesso, resistindo à aprendizagem e, muitas vezes, deixando de tentar realizar uma atividade por medo do fracasso. Para Castro (2004), a base de todo processo de aprendizagem está na relação professor-aluno, a qual deve ser constituída como relação de troca de conteúdos, de conhecimentos e de afeto. Afirma ainda que essa relação nem sempre é igualitária, pois alguém detém mais conhecimento que outros. Assim, dependendo da maneira como o adulto se coloca nessa situação, ele pode auxiliar ou prejudicar o processo de aprendizagem. Tomando como linha norteadora os aspectos apontados anteriormente, pode-se dizer que um elemento importante a se considerar no contexto escolar diz respeito à relação professor-aluno, uma vez que todo processo de aprendizagem perpassa pelas relações estabelecidas entre os envolvidos. Embora na escola muitas outras relações se estabeleçam, 52 considera-se aquela que envolve o professor e o aluno é uma das principais, uma vez que o professor é a figura central, dentro desse contexto, e responsável por formalizar as interações do aluno com o conhecimento. O estudo dessa relação ganha força com a adoção do enfoque cognitivo. Como afirmam Abreu et al. (1983, p. 146): [...] da perspectiva relacional do comportamento que o concebe como uma estrutura ou sistema de interações recíprocas, organismo-meio, sujeito-situação·ou Eumundo, sendo que cada um dos pólos não tem existência ou realidade psicológica sem o outro. (grifos dos autores) Com essa perspectiva, muda-se a maneira de compreender o processo de aprendizagem. Segundo Coll e Solé (1996), talvez a mudança mais significativa tenha sido o deslocamento do olhar para o comportamento do professor e a metodologia utilizada para o interesse pelos mecanismos que influenciam a aprendizagem, dentre eles, a relação professor-aluno. Nesse sentido, considera-se que, ao pensar a aprendizagem, não basta apenas analisar os problemas escolares, focando no conteúdo e/ou na metodologia adotada pelo professor. É preciso verificar também a relação entre professor e aluno. A maneira como o docente percebe o estudante pode levar a antipatias e simpatias que poderão facilitar ou dificultar o relacionamento e o vínculo em sala, afetando o desempenho do aluno e a maneira como o professor lida com ele. Segundo Osti e Brenelli (2012), no decorrer do processo educativo, os alunos vão construindo percepções sobre si e podem aprender a se comportar em função das expectativas do professor em relação às respostas cognitivas e aos tipos de conduta por ele aceitas, segundo sua tolerância ou severidade. A literatura tem apontado que as interações pessoais são também constituídas por percepções e expectativas de uma pessoa Andréia OSTI; Selma de Cássia MARTINELLI. Desempenho escolar: análise comparativa em função do sexo e... em relação à outra e que a expectativa de uma pessoa sobre o comportamento de outra pode, involuntariamente, tornar real a predição. As expectativas em relação ao outro influenciam na maneira como interagimos, respondemos a esse outro, bem como o que esperamos dele (ROSENTHAL; JACOBSON, 1968). Sabe-se também que grande parte das expectativas é gerada no contexto das próprias interações e sofrem a influência de inúmeros fatores, entre eles os nossos valores, as crenças que fomos construindo sobre as coisas, entre outros. Um dos elementos que influenciam nossos sistemas de crenças e expectativas é o sexo dos participantes. As pesquisas de Rutter et al. (1979, 2008) evidenciam que há diferenças nas percepções dos alunos sobre a expectativa de seus professores. Afirmam que o desempenho do aluno melhora quando o professor se mostra mais disponível e pronto para atender seus problemas. Mostram ainda como a avaliação que o professor faz do aluno influencia o comportamento deste. Destacam que os alunos procediam e alcançavam um desempenho melhor quando os professores enfatizavam seu sucesso e potencial em comparação a quando esses focalizavam seus fracassos e pontos vulneráveis. Também preocupadas com essa problemática, Schiavoni e Martinelli (2005) investigaram se crianças com diferentes níveis de dificuldades na escrita tinham percepções distintas a respeito das expectativas de seus professores sobre elas. Uma amostra de 138 crianças, com idades entre 9 e 10 anos de idade, foram selecionadas para participar da pesquisa. A escrita dos estudantes foi avaliada por meio de uma escala padronizada que detecta as dificuldades linguísticas mais comuns de crianças das séries iniciais do ensino fundamental. Também foi investigada a percepção dos estudantes sobre as expectativas de seus professores a seu respeito por meio de uma escala likert. As médias de percepção foram menores para os níveis mais altos de dificuldades na escrita e maiores para os grupos que apresentaram menos dificuldades de Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 49-59, jan./mar. 2014. aprendizagem na escrita. Esse resultado indica que quanto maior o nível de dificuldade de aprendizagem dos participantes, menos positiva se mostrou a percepção que eles têm sobre as expectativas dos professores a seu respeito. Martinelli e Schiavoni (2009), em um estudo posterior, também se propuseram a investigar se haveria relações entre a maneira com que os estudantes percebem as expectativas de seus professores a seu respeito e a aceitação dos mesmos pelos amigos da sala de aula. Foram selecionados 130 alunos do ensino fundamental, de ambos os sexos, entre 9 e 10 anos de idade, de duas escolas públicas do interior do estado de São Paulo. Para avaliar o status sociométrico, foi solicitado aos participantes que indicassem três nomes de colegas da classe com quem gostariam e não gostariam de estudar e brincar. Os resultados mostraram que os alunos que revelaram acreditar que seu professor tinha uma percepção positiva a respeito deles também foram mais escolhidos pelos amigos tanto para estudar quanto para brincar e, por outro lado, os participantes que achavam que seus professores os viam de forma menos positiva também foram menos escolhidos por seus pares para as situações de estudo e brincadeiras. No que se refere ao gênero, Gregoriadis e Tsigilis (2008) apontaram que os professores demonstram mais apoio e menos desaprovação às meninas, sendo que essas recebem mais elogios e carinhos do que os meninos. Outros estudos (CARVALHO, 2004, 2005; CASTRO, 2004; HENRIQUES, 2002; REZENDE, 2008) também apontaram para o fato de que os meninos apresentam maiores dificuldades em permanecer na escola ao longo dos anos escolares, recebem conceitos de avaliação inferiores, são mais indicados para reforço escolar, têm maiores índices de reprovação e estão mais presentes nos grupos considerados como tendo dificuldade de aprendizagem. A escola, além de ser um ambiente dinâmico e diversificado e promotor de conhecimentos, também se constitui como local de socialização entre os indivíduos. Nesse contexto, 53 as relações vivenciadas no ambiente da sala de aula e as percepções dos estudantes e professores podem contribuir para a construção e reprodução de estereótipos e discriminações, além de serem geradoras de expectativas. Todas as formas de interação entre alunos e professores formam uma história constituinte de sua relação com o saber. No decorrer do processo educativo, as percepções desses sujeitos são construídas em um meio permeado tanto pelo cognitivo quanto pelo afetivo. O aprender deve ser pensado como uma responsabilidade compartilhada, sendo afetado tanto por fatores intrínsecos quanto extrínsecos. Nesse sentido, o processo de ensino e aprendizagem envolve professores e alunos, em um movimento em que as reflexões e percepções pessoais e interpessoais são primordiais, porque o sujeito para aprender precisa interagir com o outro. Adotando essa perspectiva de análise, o presente estudo se propôs a investigar se existiriam diferenças entre os estudantes com desempenho escolar satisfatório e insuficiente no que se refere à percepção dos mesmos sobre as expectativas do professor a respeito desses alunos. Buscou-se também explorar as diferenças entre os sexos no que diz respeito à percepção do aluno quanto às expectativas de seu professor. Método Os participantes deste estudo foram 120 alunos, da rede pública municipal da região metropolitana de Campinas, sendo 51 (42,5%) do sexo feminino e 69 (57,5%) do masculino, com idades entre 10 e 14 anos. Todos os estudantes cursavam, no momento da coleta de dados, o 5º ano do Ensino Fundamental. Dos 120 estudantes, 51,7% tinham dez anos, o que correspondia à idade e série adequadas ao ano escolar cursado e os demais (48,3%) tinham idades entre 11 e 14 anos, o que indicava defasagem com a série cursada. A metade da amostra, 60 estudantes, foi classificada como tendo adequado desempenho escolar e a outra metade tinha um desempenho insatisfatório. 54 Para avaliar a percepção do aluno, foi utilizada a escala de percepção de alunos sobre as expectativas dos professores (MARTINELLI; SCHIAVONI; BARTHOLOMEU, 2009). Essa escala contém 17 itens distribuídos em dois fatores, explicando 38% da variância. O fator 1, com nove itens, refere-se à percepção negativa das expectativas do professor por parte da criança e explicou 28,53% da variância. Nessa dimensão, os itens sugerem percepções dos alunos de que o professor avaliaria os mesmos como mentirosos, culpados por brigas, desatentos, mal educados, pouco caprichosos e pouco estudiosos. Por sua vez, o fator 2, com oito itens, relaciona-se à percepção positiva por parte da criança das expectativas do professor e foi responsável por 9,51% da variância total. Esse tipo de percepção indicaria que o aluno percebe que o professor gosta dele, o elogia pelos deveres feitos, preocupa-se com ele e, ao mesmo tempo, acredita que os alunos são obedientes, fazem os deveres e são bem comportados. Nos coeficientes alfa de Cronbach, os valores foram 0,77 para o fator percepção positiva e 0,77 para percepção negativa das expectativas do professor. As opções de respostas para os itens da escala são: sempre, às vezes ou nunca. Para as questões positivas do instrumento, são atribuídas a pontuação 2 para a resposta sempre, 1 para às vezes e 0 para nunca. Às questões negativas foram atribuídos valores inversos: 0 para a resposta sempre, 1 para às vezes e 2 para nunca, o que revela uma pontuação bruta para cada sujeito, sendo que a escala pode variar de 0 a 34 pontos, de modo a indicar que quanto maior a pontuação obtida, mais positiva é a percepção do sujeito. Para medir o desempenho escolar, foi considerado o conceito atribuído ao aluno pelo professor. Convém esclarecer que nas escolas em que essa pesquisa foi realizada, as notas são definidas por conceitos. Assim, alunos com adequado desempenho acadêmico têm Andréia OSTI; Selma de Cássia MARTINELLI. Desempenho escolar: análise comparativa em função do sexo e... o conceito PS (plenamente satisfatório), MS (muito satisfatório) ou S (satisfatório), enquanto os alunos com baixo desempenho recebem NS (não satisfatório). O critério para selecionar os alunos que participaram desta pesquisa consistiu em ter conceitos PS, MS e NS. Para compor o grupo com desempenho insatisfatório, o aluno deveria ter o conceito NS e ser indicado por seu professor como sendo uma criança que apresenta dificuldade para aprender. Para compor o grupo com desempenho satisfatório, foram considerados apenas os estudantes que tiveram os conceitos PS e MS. Inicialmente foi contatada a Secretaria de Educação do Município e solicitada permissão para a realização desta pesquisa nas escolas da rede. Devidamente autorizada, a pesquisadora agendou dia e horário com as escolas para apresentar a pesquisa à equipe gestora e professores. Após esse procedimento, foi feito contato com a família dos estudantes, entregues os termos de consentimento livre e esclarecido aos pais ou responsáveis e, mediante a aceitação em participar da pesquisa, foram agendados os dias e os horários para a aplicação do instrumento de acordo com o definido na Resolução 196/96. Somente integraram a pesquisa as crianças cujos pais autorizaram a participação. Nesse documento, constavam informações acerca do instrumento aplicado, bem como dos objetivos da pesquisa. Após obter o consentimento dos responsáveis, o instrumento foi aplicado individualmente na própria escola. Análises descritivas do desempenho escolar em função do sexo Resultados Fonte: Dados da pesquisa. Optou-se, neste estudo, pelo uso da metodologia quantitativa em decorrência dos objetivos propostos e do número de participantes da pesquisa. Os dados descritivos da amostra foram obtidos por meio do programa estatístico SPSS. As diferenças entre grupos foram analisadas por meio da prova estatística não paramétrica U de Mann-Whitney. A tabela 2 indica que existem algumas diferenças entre os alunos desse grupo com relação ao desempenho escolar. Os alunos do grupo com desempenho insatisfatório são, na maioria, meninos (83,3%) e têm um desempenho mais baixo que as meninas. Ainda se pode verificar que a diferença observada entre esses estudantes foi estatisticamente significante. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 49-59, jan./mar. 2014. As análises a seguir se detiveram a avaliar as diferenças, no interior de cada grupo, analisadas em função do sexo. Grupo com desempenho satisfatório Tabela 1– Comparação entre as médias por ranking em relação ao sexo Sexo N Média Feminino 41 31,50 Masculino 19 28,34 U z p 348,50 -0,654 0,513 Fonte: Dados da pesquisa. Os dados da tabela 1 revelam que das 60 crianças do grupo com desempenho satisfatório 31,7% são meninos e 68,3% meninas. Ainda se pode verificar que a média de desempenho escolar das meninas foi mais elevada que a dos meninos, embora as diferenças verificadas não tenham sido estatisticamente significantes. Grupo com desempenho insatisfatório Tabela 2 – Comparação entre as médias por ranking em relação ao sexo Sexo N Média Feminino 10 46,80 Masculino 50 27,24 U z p 87,00 -3,243 0,001 55 Análise comparativa dos grupos em relação à percepção de expectativas do professor Os resultados comparativos entre os grupos com desempenho satisfatório e baixo desempenho revelaram que eles responderam diferentemente a escala de percepção de expectativas do professor e que essas diferenças foram estatisticamente significantes, como se pode observar na tabela 3. Tabela 3 – Comparação entre as médias por ranking entre alunos com alto e baixo desempenho Desempenho N Média Desempenho Satisfatório 60 89,47 Desempenho Insatisfatório 60 31,53 U z p 62,00 -9,132 < 0,001 Fonte: Dados da pesquisa. Os alunos com desempenho satisfatório revelam ser mais elogiados por seus professores e escolhidos como ajudantes na sala de aula. Acreditam que são percebidos como bons alunos, bem comportados, obedientes. Também afirmam que o professor presta atenção neles quando solicitam ajuda, gostam do que fazem e se preocupam com eles. Por outro lado, alunos com desempenho insatisfatório afirmam que recebem críticas de seus professores, os quais reclamam da falta de capricho em suas tarefas e não prestam atenção quando solicitam ajuda. Sempre que há uma briga na classe são apontados como culpados e declaram que o professor fica sempre zangado com esse grupo. Também acreditam que são vistos por seus professores como bagunceiros, mentirosos, aqueles que não prestam atenção na aula, os que estudam pouco e que tudo que fazem está errado. Discussão Dados estatísticos divulgados por Bloom, Cohen e Freeman (2009) no Sumary Health Statistics for U.S Children revelaram que 8% dos estudantes americanos, na faixa etária 56 de 3 a 17 anos, apresentavam dificuldades de aprendizagem, sendo que 11% eram meninos e 6% meninas. Uma revisão de estudos conduzida por Liederman, Kantrowitz e Flannery (2005), em que eram investigadas as dificuldades de leitura, também revelou haver um predomínio de meninos em relação às meninas com dificuldades. Assim, pode-se afirmar que são os meninos, de maneira geral, a encabeçarem as estatísticas por apresentarem maiores índices de reprovação, evasão e dificuldades. Os dados encontrados no presente estudo também apontam para essa mesma direção, uma vez que os meninos apresentaram menor desempenho durante o ano escolar, em comparação com as meninas de mesma idade e série cursada. Esse resultado está em consonância também com outros trabalhos. Conforme apontado por Rezende (2008), os meninos (sobretudo os pardos e negros) apresentam uma situação escolar bastante desvantajosa em comparação com as meninas (brancas e negras) e meninos brancos. O primeiro grupo apresenta maiores índices de reprovação, evasão, recebem conceitos de avaliação inferiores e são mais indicados para reforço escolar. Ao investigar os processos que têm conduzido um maior número de meninos do que meninas a obter conceitos negativos e a ser indicado para atividades de recuperação, Carvalho (2005) observou que as diferenças de desempenho entre os sexos parecem ser mais significativas, com os meninos predominando largamente entre os indicados para reforço, em todos os grupos de raça e faixas de renda. Outros estudos (CASTRO, 2004; GREGORIADIS; TSIGILIS, 2008; HENRIQUES, 2002; LINDGARD; DOUGLAS, 1999) também afirmam que frequentemente há maior presença dos meninos nas atividades de reforço escolar e atendimento especial do que meninas. Nas pesquisas de Osti (2010) e Osti e Brenelli (2012), realizadas com alunos de escolas públicas da região metropolitana de Campinas, as autoras destacam que os alunos considerados com dificuldades foram em sua maioria meninos (85%). Andréia OSTI; Selma de Cássia MARTINELLI. Desempenho escolar: análise comparativa em função do sexo e... Apesar dessa indicação, é importante pontuar que ainda são poucos os estudos que avaliam as diferenças entre os sexos. Dentre esses, nem sempre são concordantes entre si e nem tampouco são suficientes para interpretar essas diferenças. Conforme apontado por Liederman; Kantrowitz e Flannery (2005), é necessário que outros estudos sejam conduzidos a fim de comparar o desempenho de meninas e meninos. Os autores enfatizam que esses estudos deveriam ser conduzidos utilizando outras formas de medição e definição da habilidade ou do constructo a ser avaliado, comparando o desempenho de meninos e meninas em relação ao seu próprio grupo e não intergrupos e relatando as diferenças e a variabilidade das relações obtidas entre os grupos. Por outro lado, e já há bastante tempo, os estudos voltados para a análise do desempenho escolar dos estudantes têm apontado para o fato de que o sucesso escolar implica uma reunião de fatores que incluem a boa relação do aluno com seu professor, sua autoestima, participação da família e a adaptação escolar, dentre muitas outras condições. Portanto, não se pode apontar o aluno como o único responsável por seu sucesso ou fracasso na aprendizagem, pois são vários os fatores que contribuem para uma experiência bem sucedida de aprendizagem. Da mesma maneira, não se pode responsabilizar somente o professor pelo sucesso de um percurso, uma vez que o desempenho de suas funções também sofre a influência não só das circunstâncias imediatas, mas também da existência de um macro contexto que pode se revelar muito complexo. A análise detalhada e concomitante desses aspectos é de difícil operacionalização quando se trata de investigar esses fenômenos em uma situação de contexto natural, como o que está presente no dia a dia do funcionamento escolar, onde geralmente as pesquisas são realizadas. Apesar dessas dificuldades, a vivência escolar sempre revela dados da realidade bastante importantes e que se constituem em campo fértil e rico de informações sobre a vida e a aprendizagem dos estudantes. Assim, a maioria Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 49-59, jan./mar. 2014. dos estudos tem optado por fazer recortes dessa realidade, a fim de analisar e conhecer os aspectos que, ao estarem presentes nesse contexto, podem interferir de forma positiva ou negativa sobre a aprendizagem e o desenvolvimento afetivo, cognitivo e social dos estudantes. Conforme pontuam Rutter et al. (2008), as expectativas dos professores têm sido objeto de investigação há várias décadas, por se considerar que elas influenciam o progresso acadêmico dos alunos. Os autores destacam que os alunos não apenas percebem quais são as expectativas que seus professores fazem de sua competência acadêmica e de seu comportamento como acabam por corresponder a elas. Exemplificam relatando estudos em que os alunos obtiveram mais sucesso acadêmico quando os professores expressavam expectativas de que as crianças se sairiam bem nos exames. Essa colocação pode ser mais bem exemplificada a partir dos dados revelados por este estudo, que mostraram haver diferenças entre os grupos de estudantes com relação à percepção de seus professores. Alunos com desempenho satisfatório revelam ser mais elogiados por seus professores e escolhidos como ajudantes na sala de aula. Por outro lado, alunos com desempenho insatisfatório afirmaram receber mais críticas de seus professores e também acreditam ser percebidos como bagunceiros e mentirosos. Como os dados do presente estudo revelam as percepções dos estudantes, não se pode afirmar serem essas condições verdadeiras ou não. No entanto, apesar dessa limitação, também é importante frisar que somos constantemente influenciados por nossas percepções e em função delas agimos e reagimos diante das situações. Nesse sentido, pode-se dizer que as percepções dos alunos a respeito da maneira como pensam e sentem as relações com seus professores têm influência sobre seu desempenho. Se o aluno percebe ou sente em seu professor o descrédito em sua capacidade, possivelmente terá menos vontade de participar da aula e poderá, em alguns casos, assumir para si a falta de condições para aprender. Essas 57 condições são ainda mais fortes em crianças que estão no início do processo de escolarização, uma vez que, nesse momento, é o professor quem assume importância fundamental, por ser a figura adulta e externa à família com a qual as crianças passam a se identificar. Assumindo essa perspectiva, é possível afirmar que os alunos podem ser influenciados pelo modo como são tratados por seus professores. Dessa forma, os estudantes, ao vivenciarem relações positivas, tendem a se sentir mais confortáveis e seguros. Por outro lado, quando vivenciam relações negativas, podem desenvolver atitudes de rejeição em relação à escola, desvalorização pessoal e baixo rendimento. Além disso, Rutter et al. (2008) afirmam que o comportamento do estudante é melhor quando os professores fazem uso de elogios, assim como enfatizam o bom comportamento. Os alunos tendem a aprender melhor quando ensinados em um clima de confiança. Também ressaltam que as repreensões e castigos podem provocar e perpetuar a indisciplina e aumentar a probabilidade da criança demonstrar comportamento agressivo. Dessa maneira, os dados do presente estudo, associados aos demais que têm se detido sobre a análise das relações entre professores e alunos, nos levam a refletir a respeito do quanto as relações vinculares entre alunos e professores são importantes durante todo o processo escolar e além dele. Isso porque as relações com o conhecimento sofrem influências de vivências e experiências com a aprendizagem, as quais podem tanto favorecer quanto inibir o interesse, a criatividade, a motivação, entre outros aspectos necessários ao ato de conhecer. Referências ABREU, Manuel Viegas et al. 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Desempenho escolar: análise comparativa em função do sexo e... GREGORIADIS, Athanasios; TSIGILIS, Nikolaos. Applicability of the student teacher relationship scale (STRS) in the Greek education setting. Journal of Psychoeducational Assessment, Sage Publications, v. 26, n. 2, p. 108-122, 2008. HENRIQUES, Ricardo. Raça e gênero nos sistemas de ensino: os limites das políticas universalistas em educação. Brasília, UNESCO, 2002. LIEDERMAN, Jacqueline; KANTROWITZ, Lore; FLANNERY, Kathleen. Male vulnerability to reading disability is not likely to be a myth: a call for new data. Journal of Learning Disabilities, v. 38, n. 2, p. 109-129, 2005. LINDGAR, Bob; DOUGLAS, Peter. Men engagin feminisms: pro-feminsm, backlashes and schooling. Buckinghan: Opens University Press, 1999. LOZANO, A. Barca; RIOBOO, A. Porto. Dificultades de aprendizaje: categorias y clasificación, factores, evaluacíon y proceso de intervencíon psicopedagógica. In: SANTIUSTE, Víctor Bermejo; BÉLTRAN, Jesús. 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Psychology of education: major themes. London: TJ International, 2001. Recebido em: 11.08.2012 Aprovado em: 26.02.2013 Andréia Osti é doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Professora do Departamento de Educação do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista – UNESP. Selma de Cássia Martinelli é professora livre docente pela Universidade Estadual de Campinas. Professora do Departamento de Psicologia Educacional da Faculdade de Educação da UNICAMP e Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Psicopedagogia. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 49-59, jan./mar. 2014. 59 Percurso da avaliação da educação superior nos Governos LulaI Gladys Beatriz BarreyroII José Carlos RothenIII Resumo O texto analisa a política de avaliação da educação superior desenvolvida durante os governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010). Trata-se de uma pesquisa documental que utiliza a legislação e documentos oficiais do período como principal fonte de informação. O ponto de partida foi mostrar que o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES) implicou uma mudança na lógica da avaliação imperante. Para tanto, recupera-se o percurso da criação do SINAES, sua implantação e seus desdobramentos, distinguindo-se quatro fases: a) a proposta de uma nova política; b) a criação de legislação para alavancá-la; c) a implantação da lei; e d) a volta à lógica da política anterior (Provão), com a inclusão de índices. Conclui-se que o SINAES tentou empreender uma mudança na lógica de avaliação instituída desde o Provão, acrescentando três eixos na avaliação do sistema: a) a avaliação institucional com autoavaliação, em que se recupera o paradigma da avaliação formativa, b) a avaliação de cursos; e c) a avaliação dos estudantes, eliminando o Provão, mas criando uma prova em larga escala com outras características – o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (ENADE). Contudo, em sua implantação, o SINAES sofreu profundas transformações a partir da criação do Conceito Preliminar de Cursos (CPC) e do Índice Geral de Cursos (IGC), que foram incorporados ao final do segundo Governo Lula. Os resultados do ENADE são seu componente de maior peso, mostrando que a lógica de regular o sistema pelos resultados de uma prova continua em vigor. I- Este texto, produto de pesquisa apoiada pela FAPESP, amplia e reelabora questões apresentadas no 25º Simpósio Brasileiro e 2º Congresso Ibero-Americano de Política e Administração da Educação: Políticas Públicas e Gestão da Educação: construção histórica, debates contemporâneos e perspectivas futuras, realizado em São Paulo, nos dias 26-30 de abril de 2011. II- Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Contatos: [email protected] III-Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, Brasil. Contato: [email protected] Palavras-chave Avaliação da educação superior — Governo Lula — Política de educação superior — SINAES. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 61-76, jan./mar. 2014. 61 The course of higher education evaluation in Lula governmentsI Gladys Beatriz BarreyroII José Carlos RothenIII Abstract I- This text, a product of research supported by FAPESP, extends and elaborates on issues presented at 25º Simpósio Brasileiro e 2º Congresso IberoAmericano de Política e Administração da Educação: Políticas Públicas e Gestão da Educação: construção histórica, debates contemporâneos e perspectivas futuras (25th Brazilian Symposium and 2nd Ibero-American Congress of Educational Policy and Administration: Public Policy and Management of Education – historic construction, contemporary debates and future prospects), held in São Paulo from 26 to 30 April 2011. II- Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brazil. Contact: [email protected] III-Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, Brazil. Contact: [email protected] 62 This article analyzes the policy of higher education evaluation developed during the governments of Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010). This is a documentary research which uses legislation and official documents of the period as its main sources of information. We began by showing that Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES – National System of Higher Education Evaluation) brought about a change in the prevailing logic of evaluation. To do so, we recovered the course of the creation of SINAES , its implementation and consequences, distinguishing four phases: a) the proposal of a new policy, b) the creation of legislation to promote it, c) the implementation of the law and d) the return to the logic of the previous policy (Provão), with the inclusion of indexes. We have concluded that SINAES attempted to undertake a change in the evaluation logic established since Provão, adding three axes to the evaluation of the system: a) the institutional assessment with self-evaluation, which recovers the paradigm of formative assessment, b) the evaluation of courses and c) the evaluation of students, eliminating Provão but creating a large-scale test with other characteristics – Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (ENADE – National Examination of Student Performance). However, during its implementation, SINAES underwent major changes due to the creation of Conceito Preliminar de Cursos (CPC - Preliminary Concept of Courses) and Índice Geral de Cursos (IGC – General Index of Courses), which were added at the end of the second Lula government. The results of ENADE are the components with the largest weight in SINAES, showing that the logic of regulating the system by the results of a test is still in force. Keywords Higher education evaluation — Lula government — Higher education policy — SINAES. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 61-76, jan./mar. 2014. Em meados da década de 1990, houve no Brasil uma reforma do Estado condizente com as concepções hegemônicas que, desde os anos 1980, tinham aparecido no mundo desenvolvido anglo-saxão como alternativa ao Estado de bem-estar social em crise. Em tais concepções “a defesa da livre economia de tradição liberal [coexistia] com a autoridade do Estado, de tradição conservadora” (AFONSO, 2005, p. 113). Essa reforma do Estado propunha, entre outras coisas, a descentralização da execução de políticas e a diminuição da oferta direta pelo Estado de atividades que pudessem ser realizadas pelo setor privado. No setor educativo, a perda de poder estatal foi compensada com a criação do chamado Estado avaliador (NEAVE, 1988), isto é, a implantação de estratégias de avaliação centralizadas que assumiram, na maioria dos países, a forma de exames nacionais para verificação de desempenho. No Brasil, no que concerne à educação superior – caracterizada pela estagnação do sistema, pela demanda reprimida e pelo baixo acesso da população a esse nível de ensino –, houve uma ampliação no número de vagas graças à expansão do setor privado, o que se deveu a mudanças na legislação que incentivaram sua participação. O crescimento de instituições privadas foi exponencial desde 1996, e o Exame Nacional de Cursos (ENC-Provão) foi idealizado como mecanismo de regulação estatal da educação superior pela via do mercado.1 A implantação do Provão esvaziou o Programa de Avaliação Institucional das Universidades Brasileiras (PAIUB), criado em 1993 pelo Ministério da Educação, mas gestado pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES) após embates e experiências de avaliação – algumas traumáticas – durante a década de 1980 (PARU,2 Comissão de Notáveis, GERES3 e Lista dos improdutivos da USP4). O PAIUB e o Provão, nos anos de 1990, representaram dois paradigmas diferentes de avaliação: formativa e somativa. A primeira é aquela que é realizada ao longo do processo, com a participação dos atores, e que, de acordo com a concepção do PAIUB, deveria considerar toda a instituição, com a possibilidade de alcançar status emancipatório (DIAS SOBRINHO, 2000; SAUL, 1994). Já a avaliação somativa, que verifica os resultados alcançados ao final do processo (na concepção do Provão, aplicando um exame final aos alunos formandos), apresenta um viés regulatório devido à utilização dada aos seus resultados. Se, por um lado, o Provão encontrou grande receptividade na imprensa nos momentos em que os resultados eram divulgados, pois a maioria das matérias apontava que esse exame seria um bom diagnóstico da educação superior, por outro, houve forte resistência do movimento estudantil e de acadêmicos vinculados às experiências anteriores de avaliação da educação superior, o que gerou algumas alterações pontuais, como a não inserção do resultado do exame no histórico escolar dos alunos e a previsão de avaliações in loco. Em 2002, durante o programa de governo do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva (Lula), intitulado Uma escola do tamanho do Brasil (COLIGAÇAO LULA PRESIDENTE, 2002), foram sinalizadas como metas algumas mudanças na avaliação, em sintonia com os princípios do PAIUB. Este texto tem a finalidade de estudar, nos Governos Lula, o percurso da avaliação da educação superior como política pública, tendo por objetivo compreender seu significado. Para isso, são sintetizados resultados de pesquisa documental (legislação e documentos oficiais) e bibliográfica (trabalhos acadêmicos publicados 1- Para maior detalhamento acerca desse processo, consultar: SILVA JÚNIOR; SGUISSARDI, 2001; CATANI; OLIVEIRA, 2000; CUNHA, 2003; DIAS SOBRINHO; RISTOFF, 2002; TRINDADE, 1999. 2- Programa de Avaliação da Reforma Universitária 3- Grupo Executivo da Reforma do Ensino Superior 4- Lista de docentes da USP sem publicações entre 1985 e 1986, publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, em 1988. Introdução Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 61-76, jan./mar. 2014. 63 sobre o período). Inicialmente, apresentaremos as características das políticas de educação superior nos referidos governos para, na sequência, estudar as políticas de avaliação. A educação superior nos Governos Lula Durante os dois governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006 e 2007-2010), o Ministério da Educação (MEC) foi ocupado por três ministros, a saber, Cristovam Buarque, Tarso Genro e Fernando Haddad, diferentemente dos Governos FHC, em que Paulo Renato Souza permaneceu no cargo durante os oito anos. Tal característica influenciou o rumo das políticas de educação superior, que não foi uniforme durante os dois Governos Lula. Além disso, cabe ressaltar o apelo à consulta pública das propostas e/ou minutas de leis como uma prática recorrente ao longo das três gestões ministeriais, contrastando com a falta de diálogo entre o Ministério e a academia durante o governo anterior (BARREYRO, 2010). Ainda, verificou-se a prevalência de um grupo ligado à Associação Nacional de Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES) nos cargos relacionados à educação superior. Passaram pela direção da Secretaria da Educação Superior (SESu): José Roberto Antunes dos Santos, Nelson Maculan e Ronaldo Mota – todos professores de instituições federais de educação superior (IFES). Em setembro de 2008, Mota foi substituido por Maria Paula Dallari, assessora jurídica do MEC, anteriormente professora da Universidade Católica de Santos e advogada da Universidade de São Paulo, rompendo, assim, a continuidade de professores das IFES. Outro órgão que apresentou bastante rotatividade foi o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (Inep): Otaviano Helene (USP), Raimundo Luiz Araújo (exSecretário de Educação de Belém, PA, 19972002), Eliezer Pacheco (UNIJUI), Reynaldo Fernandes (USP) e José Joaquim Soares Neto 64 (UnB). Na diretoria responsável pela avaliação da educação superior, ocuparam o cargo: Raimundo Luiz Araújo, Dilvo Ristoff (UFSC), Iguatemy M. de Lucena Martins (UFPB) e Claudia Maffini Griboski (UnB).5 A gestão de Buarque no campo da educação superior foi marcada pela discussão dos rumos da avaliação paralelamente à aprovação da lei de inovação que facilita a utilização dos recursos – físicos, materiais e humanos – das universidades pelas empresas, assim como a transferência de tecnologia daquelas para estas. (SGUISSARDI, 2006, p. 1042) Durante as gestões de Genro e Haddad, as políticas de educação superior desenvolvidas enfatizaram, principalmente, o acesso a esse nível de educação, sobretudo pela ampliação da rede federal de ensino e pela oferta de bolsas em instituições privadas; paralelamente, foram estimuladas políticas de ação afirmativa nas instituições federais. A ampliação da rede federal de ensino aconteceu tanto pela via da criação de novas IFES — com a organização acadêmica de universidades ou de Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnológica (IFs) —, quanto pela expansão dos campi das universidades existentes e pela implantação do Programa de Reestruturação das Universidades Federais (REUNI), visando ao aumento das vagas em IFES. Também, foram criados cursos à distância pela Universidade Aberta do Brasil (UAB).6 A ampliação do setor privado de educação superior, que se iniciou no Governo FHC, teve continuidade. Se naquela gestão a ampliação havia se dado pela flexibilização normativa para 5- Inicialmente, a Diretoria de Estatísticas e Avaliação da Educação Superior era responsável pela avaliação; a partir de sua divisão em duas pelo Decreto nº 6.317/2007 (BRASIL, 2007b), a responsabilidade passou para a Diretoria de Avaliação da Educação Superior (DAES). 6- A Universidade Aberta do Brasil é um sistema composto por universidades públicas, financiado com recursos do MEC e que oferece cursos superiores à distância para público em geral. Os professores atuantes na educação básica têm prioridade, assim outros profissionais de educação básica (CAPES, s.d.). Gladys Beatriz BARREYRO; José Carlos ROTHEN. Percurso da avaliação da educação superior nos Governos Lula a abertura de novos cursos e IES, no Governo Lula, a expansão foi decorrente de uma política social: o Programa Universidade para Todos (Prouni), no qual instituições privadas, com ou sem fins lucrativos, oferecem bolsas de estudo totais ou parciais a alunos de baixa renda, em troca de isenções fiscais.7 Houve também a tentativa de criação de uma lei de educação superior (Reforma Universitária). A partir da elaboração de um projeto de lei submetido à Consulta Pública e após várias mudanças importantes na minuta original, uma nova proposta foi enviada ao Congresso. Polêmico, tal projeto recebeu centenas de emendas e não foi tratado no plenário, tendo sua discussão finalizada ao ser apensado ao projeto de lei no 4.212/2004, que tramitava na Câmera dos Deputados desde 2004. A avaliação da educação superior nos Governos Lula A avaliação da educação superior durante os Governos Lula teve um percurso conturbado, no qual distinguimos quatro fases: a) a proposta de uma nova política; b) a criação de legislação para alavancá-la; c) a implantação da lei; e d) a volta à lógica da política anterior (Provão). Da proposta Em 2003 foi criada a Comissão Especial de Avaliação (CEA), com o objetivo de elaborar uma proposta de avaliação da educação superior em vista das críticas feitas no programa de governo de Lula ao modelo adotado pelo governo anterior. A Comissão foi composta, principalmente, por acadêmicos ligados às instituições públicas e, particularmente, ao PAIUB. Durante a realização dos trabalhos da Comissão, ocorreram debates na imprensa sobre a validade ou não do Exame Nacional de Cursos, o Provão. O Ministro Buarque, engrossando o coro de membros do governo anterior, defendeu 7- Sobre o PROUNI, ver CARVALHO, 2011, entre outros. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 61-76, jan./mar. 2014. a realização do exame e, ainda, relativizou na imprensa o trabalho da Comissão ao ressaltar sua convicção de que a nova proposta consistiria em um aperfeiçoamento do Provão, e não em sua total substituição. A Comissão apresentou ao Ministro Buarque, em setembro de 2003, a proposta do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES) (BRASIL, 2004b). A proposta, inspirada nos princípios emancipatórios do PAIUB, estava baseada na centralidade da avaliação institucional, processo que se iniciaria com a autoavaliação. Sem ignorar o apelo que a sociedade brasileira tem por exames em larga escala, mas diminuindo a ênfase dada no Governo FHC, a proposta incluía uma prova que deveria ser aplicada a uma amostra dos alunos ingressantes e concluintes por áreas de conhecimento, sendo realizada apenas uma vez a cada três anos. Dessa forma, diferentemente do Provão, os alunos seriam avaliados por grandes áreas de conhecimento, e não mais por cursos (ROTHEN; BARREYRO, 2011). Após embates nos bastidores do MEC, o Ministro Buarque propôs, num documento substitutivo ao da Comissão, a criação de um Índice de Desenvolvimento do Ensino Superior (IDES), com o objetivo de aferir a qualidade do ensino, da aprendizagem, da infraestrutura e da responsabilidade social das instituições de educação superior (BRASIL, 2003a). Finalmente, em dezembro de 2003, foi editada a Medida Provisória no 147/2003, instituindo o Sistema Nacional de Avaliação e Progresso do Ensino Superior (SINAPES). O SINAPES, segundo a redação do documento, tinha a finalidade de avaliar a capacidade institucional, o processo de ensino e produção do conhecimento, o processo de aprendizagem e a responsabilidade social das instituições de ensino superior avaliadas. (BRASIL, 2003b) Ele previa a criação de duas agências: a Comissão Nacional de Orientação da Avaliação 65 (CONAV) e a Comissão Nacional de Avaliação e Progresso do Ensino Superior (CONAPES), com funções, respectivamente, executivas e de consulta. Além disso, propunha o estabelecimento de Comissões Próprias de Avaliação (CPAs) em cada IES, deixando para regulamentação pelo MEC a definição dos procedimentos de avaliação do Sistema. Não havia qualquer menção a uma prova; inclusive, a medida provisória revogava os artigos da Lei no 9131/1995, que fundamentaram a existência do Provão. Tal período, que aqui denominamos Da proposta, iniciou-se com uma postura democrática, trazendo à discussão a questão da avaliação por meio de consultas públicas e debates na imprensa. A medida provisória que instituiu o SINAPES não respeitou o processo de debate, chegando a ponto de ignorar a proposta apresentada pelo próprio Ministério. Da legislação Com a reforma ministerial de 2004, Cristovam Buarque foi substituído por Tarso Genro. Logo a seguir, no Congresso Nacional, foi votado o projeto de conversão da medida provisória em lei, que recuperou algumas das propostas da CEA e foi promulgado como Lei no 10.861/2004 (BRASIL, 2004e). Dessa forma, instituiu-se o SINAES, coordenado e supervisionado por um órgão colegiado especialmente criado para esse fim, a Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior (CONAES). Houve, assim, dois SINAES: o da proposta da Comissão Especial de Avaliação e o estabelecido em lei. O segundo recuperou apenas parcialmente os princípios emancipatórios da primeira proposta, conciliando-o com a visão regulatória proveniente da época do Provão. No período da implantação, foi permanente a tensão entre essas duas visões. O SINAES da Lei n° 10.861/2004 estabeleceu: a avaliação institucional, composta por autoavaliação e avaliação externa; a avaliação de cursos, consistindo das visitas in loco de avaliadores externos; e a avaliação dos 66 estudantes, pelo Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (ENADE) (BRASIL, 2004e). Para o desenvolvimento da autoavaliação, a lei estabeleceu a criação de Comissões Próprias de Avaliação (CPAs) em cada IES, as quais teriam atuação autônoma na instituição visando coordenar o processo. Da implantação Alguns membros da CEA posteriormente ocuparam cargos-chave na implantação do SINAES, tais como Hélgio Trindade e José Dias Sobrinho, professores de instituições públicas de educação superior que foram membros da CONAES. No Inep, que concentrava as atividades de execução das avaliações no novo sistema, Dilvo Ristoff, como já dito, assumiu a Diretoria de Estatísticas e Avaliação da Educação Superior, diretamente encarregada da implantação do SINAES. Nesse período foram desenvolvidas ações de orientação dos processos de autoavaliação institucional. Inicialmente, a CONAES divulgou as Diretrizes para a Avaliação das Instituições de Educação Superior (BRASIL, 2004d) e o Roteiro de Autoavaliação Institucional (BRASIL, 2004c), os quais apresentaram uma concepção de avaliação institucional formativa, apelando para a participação da comunidade no processo de autoavaliação. Foi estabelecido, também, um calendário com datas para cada etapa (BRASIL, 2005b). Começaria assim o ciclo avaliativo, composto pela autoavaliação institucional da qual derivaria um relatório elaborado por cada Comissão Própria de Avaliação (CPA); depois haveria a avaliação institucional externa, por meio da visita de avaliadores institucionais. Após esse ciclo teria início o processo de regulação. Além disso, foram realizados quatro seminários de divulgação do SINAES em diversas regiões e se acompanhou o processo de criação das CPAs, solicitando seu cadastro no Inep. Assim, no final do ano de 2004, haviam sido cadastradas 1.831 Comissões no Inep (ALMEIDA JÚNIOR, 2005). Essas ações mostraram a Gladys Beatriz BARREYRO; José Carlos ROTHEN. Percurso da avaliação da educação superior nos Governos Lula valorização da autoavaliação institucional como processo prévio à avaliação institucional externa. A implantação do SINAES nas instituições e o resultado do trabalho das CPAs podem ser avaliados pela leitura de alguns estudos de caso apresentados em artigos, teses e dissertações. Em um trabalho que analisa os artigos sobre o SINAES publicados na Revista Avaliação (ROTHEN; BARREYRO, 2010), mostra-se que a maioria desses textos é resultado de pesquisas realizadas na instituição em que os autores desempenham suas funções, muitas vezes como membros de CPAs. Os estudos evidenciam processos institucionais com ênfases variadas. Alguns casos demonstram que a autoavaliação prevista no SINAES consistiu em uma continuação de experiências já iniciadas pelas instituições (CARBONARI, 2006); outros indicam uma continuidade de algo iniciado com o PAIUB (BOTH, 2005). Vários trabalhos assinalam o problema da falta de participação da comunidade acadêmica nas diversas fases da autoavaliação (ANDRIOLA; SOUZA, 2010), inclusive quando ela é on-line (POLIDORI; FONSECA; LARROSI, 2007). Alguns artigos discutem o trabalho realizado pelas CPAs e assinalam que elas elaboram o projeto de autoavaliação utilizando dados qualitativos, quantitativos e, em certos casos, documentos da instituição (AUGUSTO; BALZAN, 2007). Pesquisa realizada com 899 CPAs de instituições com até 500 alunos (que são 50% das IES do país) mostra que as CPAs foram efetivamente constituídas, mas que apenas cumpriam burocraticamente a legislação, produzindo relatórios para o Inep conforme as orientações do SINAES. Esses relatórios eram descritivos, incorporando documentos e informações, mas não conseguiam realizar análises críticas da instituição. Em IES maiores e que já desenvolviam atividades de autoavaliação institucional anteriormente, a autora verificou processos de ampliação da participação (LEITE, 2008). Em publicação do Inep (2011) foram analisados 172 relatórios de autoavaliação, produzidos por CPAs de diferentes tipos de Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 61-76, jan./mar. 2014. instituições, entre 2004 e 2008: apenas 12,2% consideraram, nesse processo de autoavaliação, todas as dimensões propostas pelo SINAES; mais de 50% somente apresentavam gráficos e tabelas, sem a devida análise e interpretação ou mesmo sem informações; 61% afirmavam terem feito sugestões de melhorias à instituição e não apenas escrito um relatório de autoavaliação; 25,5% mencionavam que haviam se efetivado as mudanças sugeridas, enquanto 74,5% dos relatórios assinalam não ter evidências dessas mudanças. Ainda, as universidades têm sido as que apresentaram relatórios mais completos, seguidas dos centros universitários e das faculdades, sendo que as universidades públicas levaram uma leve vantagem (BRASIL, 2011b). Em síntese, os estudos mencionados evidenciam que as CPAs foram implantadas nas instituições de ensino superior e que os processos de autoavaliação produziram relatórios com graus diversos de aprofundamento. Na grande maioria das CPAs, o trabalho consistiu em apenas elaborar um documento para ser enviado ao Inep. Quanto à avaliação externa, a CONAES emitiu um Instrumento de Avaliação Externa de Instituições em que privilegiou os efeitos regulatórios da avaliação (BRASIL, 2005a). Também divulgou nesse documento um calendário que indicava, a partir de agosto de 2005, os prazos para recredenciamento de instituições segundo a organização acadêmica de cada uma (BRASIL, 2005b). O calendário não foi cumprido pelo próprio Ministério e as visitas in loco para recredenciamento só começaram em 2009, após novo calendário divulgado em 2008. Nesse intervalo, em 2006, houve a criação de um banco de avaliadores (BASIS) para o recrutamento de professores que fariam as avaliações externas de instituições e cursos. Os interessados que cumprissem os requisitos estabelecidos poderiam se inscrever on-line. Foram também organizados e ministrados cursos de capacitação para essas pessoas. Tal processo, aberto à comunidade, é entendido por Peixoto (2011) como um dos motivos do atraso na realização das avaliações externas. 67 O Instrumento de Avaliação Institucional Externa foi revogado e substituído em outubro de 2008. Posteriormente teve uma nova revisão, em setembro de 2010, embora tenha recebido críticas pela não definição de “condições mínimas de qualidade” em que percebe-se e se ratifica a subjetividade do processo no uso excessivo de advérbios e adjetivos, fragilizando, consideravelmente, a composição final do conceito do processo avaliativo. (POLIDORI et al., 2011, p. 272) No que diz respeito à avaliação dos estudantes, o ENADE, uma prova em larga escala, teve sua primeira ocorrência em 2004. Nas primeiras edições, a avaliação foi aplicada aos alunos concluintes, tal como no Provão, mas inovava ao ser também aplicada aos alunos ingressantes. Outra diferença consistia em seu caráter amostral e não mais censitário. A aplicação da mesma prova aos concluintes e aos ingressantes visava medir o valor agregado que o curso/instituição fornecia ao aluno. O ENADE divide-se em duas partes: 10 questões de formação geral e 30 de conhecimento específico. Diferentemente do Provão, a quantidade de suas questões segue um padrão único para todas as áreas. Seus resultados são sistematizados no Conceito ENADE, o qual é organizado em uma escala de cinco níveis. Em 2005, criou-se o Indicador de Diferença entre os Desempenhos Observado e Esperado (IDD); com esse indicador, busca-se verificar quanto conhecimento a instituição forneceu aos seus alunos (valor agregado), tentando, dessa forma, superar o argumento – mormente defendido pelo setor privado da educação superior, desde o Provão – de que algumas instituições têm bom desempenho na prova por receberem bons alunos. Com esse indicador, cursos nos quais o desempenho dos ingressantes é próximo ao dos concluintes tem uma má avaliação, ao passo que são bem-avaliados aqueles em que o desempenho dos concluintes é superior ao dos ingressantes (ROTHEN; BARREYRO; 2011). 68 Embora o ENADE continuasse tendo destaque no sistema de avaliação e apresentando resultados simplificados que permitiam um ranque, a divulgação de seus resultados não teve tanto impacto nesses anos quanto teve o Provão, devido à perda de centralidade da avaliação entre as políticas ministeriais. Durante o primeiro Governo Lula, na avaliação da educação superior, viuse agravado o represamento de processos de credenciamento de instituições e reconhecimento de cursos. Isso foi causado por duas razões: a) o questionamento das taxas pagas pelas IES para a realização desses processos pelo Inep; e b) o veto do Tribunal de Contas da União ao pagamento de pro labore aos professores de instituições públicas com dedicação exclusiva que faziam visitas de avaliação in loco. Tais questões exigiram medidas legais para serem resolvidas e para que o processo tivesse continuidade. Além disso, o ciclo do SINAES teve morosidade, o que levou à edição de diversas portarias para reconhecimento provisório dos cursos, devido à necessidade de emissão de diplomas aos formados (ROTHEN; BARREYRO, 2011). Ao final do primeiro Governo Lula, em 2006, houve a edição de um decreto chamado de Decreto Ponte,8 em que foram definidos os procedimentos de supervisão, regulação e avaliação da educação superior, bem como as atribuições entre diversos órgãos governamentais. Na prática, porém, a Avaliação, ao invés de “referencial básico” aos processos regulatórios, vem se tornando “determinante” aos mesmos, criando equivalência entre avaliação e regulação, ou entre avaliação e controle, sem que as autoridades recorram a outros meios de convencimento, ou fomentem o “processo regular de avaliação”, recomendado pela LDB. (FERNANDES, 2010, p. 59) 8- Decreto no 5.773/2006 (BRASIL, 2006). Gladys Beatriz BARREYRO; José Carlos ROTHEN. Percurso da avaliação da educação superior nos Governos Lula Do retorno No segundo Governo Lula, apesar da permanência do Ministro Haddad, a avaliação da educação sofreu significativas mudanças, principalmente com o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE). Um dos pontos principais desse plano foi o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB),9 que relaciona o desempenho dos estudantes em exames padronizados (Prova Brasil/ SAEB) e a taxa média de aprovação. Por meio do IDEB pretende-se monitorar o desenvolvimento da educação e adotar uma visão gerencial, predefinindo metas para serem atingidas (ROTHEN, BARREYRO, 2011). Quanto à avaliação da educação superior, apareceram mudanças significativas em relação ao período 2003-2006. Uma delas foi o desenvolvimento da função de fiscalização exercida pelo MEC. O mencionado Decreto Ponte foi um marco, por ter explicitado as funções de avaliação e de regulação e por ter definido a de supervisão do sistema, o que enfatizou a fiscalização. O exercício da função de supervisão do sistema centrou-se na utilização dos resultados do ENADE como balizadores para a realização de visitas in loco por especialistas. Para tanto, em dezembro de 2007 foi editada a Portaria Normativa no 40 em que se anunciou a atribuição de um conceito preliminar que seria aplicado para a renovação de reconhecimento de cursos (BRASIL, 2007a). Na prática, esse foi o primeiro anúncio do que aconteceria em 2008: a criação do Conceito Preliminar de Cursos (ROTHEN; BARREYRO, 2011). O conceito preliminar previsto na Portaria seria composto pelos resultados do ENADE, por dados do Censo da Educação Superior e por outros dados de cadastros do MEC. Segundo a Portaria (art. 35°, §1°), caso o conceito preliminar fosse satisfatório, a avaliação in loco poderia ser evitada. Contudo, na lei do SINAES, a avaliação de cursos in loco é obrigatória: 9- O IDEB foi instituído pelo Decreto no 6.094/2007 (BRASIL, 2007c). Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 61-76, jan./mar. 2014. [...] a avaliação dos cursos de graduação utilizará procedimentos e instrumentos diversificados, dentre os quais obrigatoriamente as visitas por comissões de especialistas das respectivas áreas de conhecimento. (BRASIL, 2004e, art. 4°, § 1°, grifo nosso) Assim, a lei do SINAES sancionada no primeiro Governo Lula foi desrespeitada por ato normativo de menor hierarquia jurídica: uma portaria. Em 2008, na área de Direito, 60 cursos que obtiveram nota 1 ou 2 foram visitados, 23 assinaram protocolos de saneamento de deficiências (PORTAL MEC, 2007) e, como consequência do processo de supervisão, foram cortadas 24.380 das 45.042 vagas oferecidas pelos cursos supervisionados (PORTAL MEC, 2008b). Concomitantemente, novos requisitos para a abertura de cursos de Direito foram criados, assim como um novo instrumento específico para esses cursos, iniciando-se um processo de diferenciação dos instrumentos de avaliação externa de cursos. Também foram aplicados procedimentos de supervisão a 17 cursos de Medicina que passaram por visitas in loco, assinatura de termo de saneamento de deficiências e medidas cautelares, chegando, no final do processo, à suspensão de vestibulares e/ou ao corte do número de vagas oferecidas (PORTAL MEC, 2008a; PINHO, 2008). Em 2009, 60 cursos de Pedagogia passaram por processos de supervisão que incluíram visitas in loco por comissão de especialistas instituída para esse fim e assinatura de termo de saneamento de deficiências. Após o término do processo, sete cursos foram fechados (BRASIL, 2009a). Até setembro de 2009, 123 IES (universidades e centros universitários) haviam sido supervisionadas devido ao não cumprimento do mínimo de professores titulados e/ou do vínculo empregatício de seus docentes, sendo necessário, nesses casos, um termo de saneamento de deficiências e medidas cautelares para suspensão de criação de cursos e vagas (BRASIL, 2009b). 69 Esses processos de supervisão levaram ao fechamento de cursos e instituições em 2010, bem como à criação de normas mais rígidas para a expansão de instituições, segundo os resultados obtidos. No apagar das luzes do Governo Lula, em outubro de 2010, o Conselho Nacional de Educação emitiu a Resolução n° 3/2010, que estabeleceu normas e procedimentos para credenciamento e recredenciamento de universidades (BRASIL, 2010a). Essa determinação incorporou mais requisitos aos já estabelecidos pela legislação anterior (LDB e Decreto Ponte), incluindo a necessidade de que o credenciamento de universidades derive de centros universitários com 9 anos de existência ou, em casos justificados, de faculdades com 12 anos de existência. Os resultados de avaliações são alguns desses requisitos, como a necessidade de a instituição ter obtido conceito igual ou superior a 4, tanto no conceito institucional quanto no Índice Geral de Cursos. Ainda, as instituições devem ter 60% de seus cursos reconhecidos ou em processo de reconhecimento, e oferecer regulamente quatro cursos de mestrado e dois de doutorado. Também é considerada a atuação da instituição quanto à resolução de problemas apontados pela CPA da instituição e são levados em conta processos de supervisão, que não poderão incluir mais de 20% de seus cursos. Para o recredenciamento de universidades, elas deverão ter obtido conceito igual ou superior a 3 no IGC (BRASIL, 2010a). Além de estabelecer critérios mais exigentes, a norma incluiu os resultados das avaliações como requisitos para credenciamento e recredenciamento de IES. A despeito das ações regulatórias anteriormente descritas, que pela primeira vez na avaliação da educação superior chegaram a ter consequências como o fechamento de instituições ou o corte de vagas, o tom do segundo Governo Lula no que diz respeito à avaliação foi a retomada da tendência quantitativista e o retorno dos ranques, como será mostrado a seguir. 70 Em agosto de 200810 foi criado o Conceito Preliminar de Cursos (CPC), composto pelos resultados do ENADE e por insumos “com influência na qualidade dos cursos”, tais como qualificação docente, regime de trabalho, planejamento do ensino e infraestrutura (BRASIL, 2008c). Algumas dessas informações são obtidas junto ao cadastro de docentes do INEP e outras extraídas das respostas dos alunos ao questionário socioeconômico do ENADE. Diferentemente da prática estabelecida pelo MEC quanto a outras políticas (SINAES, PROUNI, Reforma Universitária), que foram divulgadas previamente e dispostas para consulta pública, a instituição do CPC foi realizada por portaria, como se fosse apenas uma questão operacional decorrente da implementação do SINAES, e não uma mudança central que retoma velhas concepções e discussões sobre os modelos de avaliação da educação superior no país. A emergência dos índices surpreendeu a gregos e troianos, gerando inúmeras críticas, seja por questionamentos técnicos na construção do indicador,11 seja pela descaracterização do SINAES.12 Poucas vozes defenderam a nova proposta.13 O Conceito mudou a implementação do SINAES, limitando as visitas in loco aos cursos que obtiveram um conceito preliminar menor que 3,14 o que gerou a diminuição de 3.000 visitas previstas por ano para 1.800. Tal motivo, embora louvável no ponto de vista administrativo, não o é para o objetivo de melhoria de qualidade, pois, ao se aligeirar os processos de avaliação de cursos, perdeu-se o caráter formativo da avaliação. Parece que apenas interessa fazer uma operação limpa lixo, como disse Eunice Durham (2008) a respeito ��- Portaria Normativa no 4/2008 (BRASIL, 2008a). 11- Ver CASTRO, 2008; SCHWARTZMAN, 2008; BARREYRO, 2008; ROTHEN; BARREYRO, 2009. ��� - Ver DIAS SOBRINHO, 2008; LEITE, 2008; GIOLO, 2008; LIMANA, 2008; BARREYRO, 2008, POLIDORI, 2009. ��- Ver VERHINE, 2008; BITTENCOURT; CASARTELLI; RODRIGUES, 2009. ��- Os processos de renovação de reconhecimento dos cursos que obtivessem conceito 5 seriam renovados por Portaria; os que obtivessem 4 ou 3 poderiam pedir avaliação in loco para mudar seu conceito (Portaria Normativa n° 4/2008; Art. 2º,§ 3° e §4°). Gladys Beatriz BARREYRO; José Carlos ROTHEN. Percurso da avaliação da educação superior nos Governos Lula do Provão, ou seja, focalizar naquilo que está muito ruim, o que é importante, mas não constitui um processo de melhoria de qualidade, afinal, dispensando-se visitas para os cursos que apresentam a nota mínima aceitável (3) e também para os bons e excelentes (4 e 5), sinaliza-se conformidade e acomodação. A criação do Índice Geral de Cursos (IGC), em setembro de 2008,15 consolidou a influência na educação superior da tendência internacional de uso de indicadores. O novo índice foi composto pelas médias ponderadas dos CPCs e das notas dos programas de pósgraduação das IES avaliados pela CAPES. Alguns dos questionamentos ao IGC aconteceram pelo fato de os CPCs utilizarem resultados do ENADE que não permitiam comparação entre cursos de áreas diversas (e nem do mesmo curso em diferentes anos16) e pelo fato de a avaliação de insumos estar fundamentada na opinião do corpo discente. Além disso, pressupõe-se que uma instituição é a somatória de seus cursos. O Índice tem sido divulgado pelo MEC na forma de ranque de instituições, tendo sido em 2008 a única vez em que isso foi feito por um órgão governamental. Antes – no Governo FHC – e depois, o mesmo foi feito pela mídia, e não pelo MEC. O CPC sofreu mudanças em 2009, atendendo algumas das críticas realizadas. Os resultados do ENADE perderam peso, assim como a opinião dos estudantes; por sua vez, aumentou-se o peso da titulação de doutores. Ainda, em 2009, o Ministério deixou de fazer ranques, voltando à prática de apenas oferecer os dados para que eles fossem informados à imprensa e aos departamentos de marketing das IES. Contudo, a mudança mais importante foi que o ENADE deixou de ser amostral para ser censitário, tal como era o Provão. Essa mudança foi explicada devido a uma diferença de concepção entre a proposta da CEA e a ��- Portaria Normativa no 12/2008 (BRASIL, 2008b). ��� - A prova do ENADE não permite comparações, diferentemente da prova do ENEM, que se utiliza da Teoria de Resposta ao Item e permite comparações entre provas de diferentes anos. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 61-76, jan./mar. 2014. subjacente aos atuais índices. A utilização de uma amostra, conforme proposto pela CEA em 2004, não é problemática, pois se compreendia que a prova seria apenas um instrumento para diagnóstico do estado da educação superior. Porém, no momento em que o ENADE foi caracterizado como um instrumento para classificação e regulação, as instituições sentiram que a adoção de amostras podia alterar o posicionamento institucional no ranque, ou seja: as amostras permitem certa confiabilidade para conhecer a realidade da educação superior, enquanto o ranque pode gerar desconfianças. Ao final do Governo Lula, novas mudanças continuaram a transformação: em dezembro de 2010, houve a republicação da Portaria n° 40 que havia sido editada em 2007, incluindo novidades nos processos de avaliação. No que diz respeito ao ENADE, tal republicação estabeleceu que a prova teria duas partes, “uma prova geral de conhecimentos e uma prova específica de cada área”, diferentemente do estabelecido pelo SINAES, que determinava que o ENADE17 teria uma prova de formação geral e uma prova de conteúdos programáticos previstos nas diretrizes curriculares de cada curso. Vale ressaltar que a prova de formação geral, que pretendia aferir “as competências para compreender temas exteriores ao âmbito específico de sua profissão, ligados à realidade brasileira e mundial e a outras áreas do conhecimento” (BRASIL, 2004e), na redação da lei do SINAES passou para “uma prova geral de conhecimentos” (ou seria uma prova de conhecimentos gerais?). Note-se ainda que “os conteúdos programáticos [...] do curso de graduação” do SINAES foram transformados em “uma prova específica de cada área” (ou seria uma prova específica de cada curso?). A Portaria n° 40, versão 2010, trouxe ainda a novidade de que os estudantes ��� - “O ENADE aferirá o desempenho dos estudantes em relação aos conteúdos programáticos previstos nas diretrizes curriculares do respectivo curso de graduação, suas habilidades para o ajustamento às exigências decorrentes da evolução do conhecimento, e suas competências para compreender temas exteriores ao âmbito específico de sua profissão, ligados à realidade brasileira e mundial e a outras áreas do conhecimento” (BRASIL, 2004e). 71 ingressantes não mais fariam a prova específica, mas apenas a prova geral, a qual, a partir desse momento, passaria a ser realizada “com base na matriz de referência do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM)”. Ou seja, das “competências para compreender temas exteriores ao âmbito específico de sua profissão, ligados à realidade brasileira e mundial e a outras áreas do conhecimento”, passa-se a considerar as competências adquiridas no ensino médio. O ENADE postulado pelo SINAES não cogitava auferir os conhecimentos obtidos no ensino médio, mas sim o valor agregado do curso. Outra inovação da Portaria: os ingressantes que tiverem realizado o ENEM não precisarão fazer a prova geral do ENADE. Ora, o ENEM e o ENADE são provas diferentes, com objetivos diferentes. O ENEM é uma prova realizada seguindo a Teoria de Resposta ao Item e o ENADE não, ou seja, os resultados do primeiro podem ser comparados de um ano para outro, enquanto o mesmo não pode ser feito com o segundo. Dessa forma, seria criada uma diferença, no interior do ENADE, entre resultados comparáveis e não comparáveis. Em síntese, do ENADE inicial fica apenas a prova de conhecimentos específicos (denominada prova específica na Portaria), pois a prova geral será um ENEM-ADE, (ENADE com a matriz do ENEM). No entanto, como prova de conhecimentos específicos já era o ENC-Provão, percebe-se também nessa nova mudança o retorno do Provão: uma prova de conhecimentos específicos aplicada a todos os alunos concluintes dos cursos avaliados.18 Quadro 1 – Transformações ENC-Provão/ENADE: vigência de conceitos e índices Características Prova/Ano ENC-Provão 1996 a 2003 Ingressantes Concluintes X Amostral Censitária ENADE 2004 a 2007 ENADE 2008 e 2009 ENADE 2010 x x X x x X X x x X X CPC/IGC CPC/IGC X Índices CPC/IGC ENADE a partir de Portaria no 40/2007 (rep. 2010) Fonte: Elaboração própria. Considerações finais Nos Governos Lula, as políticas de avaliação deixaram de ter a centralidade que tinham no Governo FHC, em que seus resultados embasavam a expansão do ensino pela via do setor privado. Os Governos Lula continuaram com a ampliação do acesso, mas priorizaram sua democratização, isto é, a inclusão de setores de menor renda, pardos e negros, indígenas e alunos de escolas públicas. Em que pese a ampliação das matrículas em instituições federais (universidades, institutos de tecnologia e UAB), o predomínio das matrículas no setor privado se manteve (75%). Houve a tentativa de criar um sistema de avaliação que resgatasse os princípios do 72 PAIUB, especialmente no primeiro Governo Lula, em que, como foi dito, o setor de professores ligados à ANDIFES e/ou ao PAIUB ocupou cargos na Secretaria de Educação Superior, no Inep e na CONAES, e pôde criar e começar a implantar o SINAES. No segundo Governo Lula, durante a gestão de Haddad, os professores das IFES foram perdendo influência na educação superior. No meio do segundo governo, foram criados índices para a educação básica e para a educação superior, seguindo a tendência internacional de 18- Em 2011, o Enade seguiu algumas das mudanças postuladas na Portaria no 40/2007, republicada em 2010. Por norma específica (Portaria no 8, de 15 de abril de 2011, art. 5º, § 6º), os estudantes ingressantes foram dispensados da prova. A prova geral continuou sendo denominada Formação Geral. Gladys Beatriz BARREYRO; José Carlos ROTHEN. Percurso da avaliação da educação superior nos Governos Lula governar por indicadores. Mas, enquanto na educação básica o IDEB é utilizado para monitorar o desenvolvimento da educação e para definir regiões que receberão apoio do Ministério da Educação, na educação superior os índices são utilizados para regular o sistema. Na prática, apesar de as instituições federais estarem submetidas a esse sistema de regulação, ele exerce pouca influência, pois o desempenho dos alunos costuma ser maior que o mínimo exigido. Já para as IES privadas, resultados menores aos exigidos significam não apenas monitoramento via visitas de especialistas e eventuais compromissos de melhoria, mas também impedimentos para participação no Programa Universidade para Todos (PROUNI) e em solicitação de créditos junto ao BNDES. Ainda, os resultados acabam se tornando um selo de qualidade e são utilizados para marketing institucional. No final do governo Lula, os resultados aferidos pelos índices foram incorporados nas normativas de credenciamento e recredenciamento de IES e, especialmente, das universidades. Em conclusão, embora em 2003, com a proposta da Comissão Especial de Avaliação – o SINAES e seus instrumentos de avaliação institucional e autoavaliação –, ensaiasse-se uma mudança radical nas práticas de avaliação da educação superior, no sentido de não deixar apenas o mercado regular o sistema, exercendo o próprio Ministério ações de supervisão, a partir de 2008 foi se recuperando com mais vigor a lógica do Governo FHC de ter um exame de larga escala como referência para a regulação do sistema. Referências AFONSO, Almerindo. Avaliação educacional: regulação e emancipação. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2005. ALMEIDA JUNIOR. Vicente de Paula. O processo de implementação das Comissões Próprias de Avaliação (CPAs): ações desenvolvidas e perfil dos coordenadores. In: RISTOFF, Dilvo; ALMEIDA JUNIOR, Vicente de Paula (Orgs.). Avaliação participativa: perspectivas e debates. Brasília: Inep, 2005. ANDRIOLA, Wagner Bandeira; SOUZA, Laura Alves. 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Atua no Programa de Pós-Graduação em Educação e no Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da USP. É também líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas, História e Avaliação da Educação Superior (GEPPAHES). José Carlos Rothen é professor do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), onde atua no curso de Pedagogia e no Programa de Pós-Graduação em Educação. Edita o site <www.rothen.pro.br> e é líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas, História e Avaliação da Educação Superior (GEPPAHES) 76 Gladys Beatriz BARREYRO; José Carlos ROTHEN. Percurso da avaliação da educação superior nos Governos Lula Modelagem do crescimento da aprendizagem nos anos iniciais com dados longitudinais da pesquisa GERESI Nigel BrookeII Neimar da Silva FernandesIII Isabela Pagani Heringer de MirandaIII Tufi Machado SoaresIII Resumo Este artigo compara duas abordagens de valor agregado para dados oriundos do survey educacional de recorte longitudinal, chamado GERES – Estudo Longitudinal da Geração Escolar 2005, que acompanhou uma coorte de alunos de mais de 300 escolas públicas e privadas ao longo dos primeiros quatro anos do Ensino Fundamental. Ambas as abordagens utilizam modelos lineares hierárquicos, permitindo o agrupamento natural dos dados educacionais provenientes dos três níveis: aluno, turma e escola. Na primeira abordagem de valor agregado, constroem-se modelos cuja variável dependente é a proficiência do aluno em cada ano avaliado. Com um modelo distinto para cada ano é possível detectar fatores do aluno, da turma e da escola associados ao desempenho dos alunos. A segunda abordagem cria modelos para mostrar o efeito das covariáveis de aluno, turma e escola nas curvas de evolução da proficiência ao longo do período do estudo. Quando comparados os dois tipos de modelos de valor agregado, o primeiro foi o mais eficiente em diagnosticar os efeitos do ambiente e da prática pedagógica do professor, mas somente em determinados anos. Já o segundo tipo de modelo foi capaz de identificar curvas de evolução de proficiência de formatos distintos de acordo com determinadas características das escolas e dos alunos, mas foi menos sensível na identificação de variáveis associadas ao processo de formação de grupos e à prática pedagógica do professor. Os dois tipos de modelos de valor agregado oferecem indicações de processos de aprendizagem diferenciados para as disciplinas Língua Portuguesa e Matemática que mereceriam estudos adicionais. I- Os autores agradecem ao Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação, CAEd/UFJF e ao Programa Observatório da Educação – CAPES/INEP II- Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. Contato: [email protected] III-Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil. Contato: [email protected]; [email protected]; [email protected]; Palavras-chave Estudo longitudinal — Avaliação educacional — Valor agregado — GERES — Modelos lineares hierárquicos. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 77-94, jan./mar. 2014. 77 Modeling of the growth of learning in the early years with longitudinal data of GERES researchI Nigel BrookeII Neimar da Silva FernandesIII Isabela Pagani Heringer de MirandaIII Tufi Machado SoaresIII Abstract This article compares two value-added approaches to data from the longitudinal education survey called Estudo Longitudinal da Geração Escolar 2005 (GERES – Longitudinal Study of 2005 School Generation), which followed a cohort of students from more than 300 public and private schools over the first four years of primary education. Both approaches use hierarchical linear models, allowing the natural grouping of educational data from three levels: student, class and school. The first value-added approach builds models whose dependent variable is the student proficiency in each year evaluated. With a separate model for each year, it is possible to detect factors of the student, class and school associated with student performance. The second approach creates models to show the effect of the covariates of student, class and school on progress curves of proficiency throughout the study period. When comparing the two types of value-added models, the first one was the most efficient in diagnosing the effects of the environment and the teacher’s pedagogical practice, but only in certain grades. The second type of model was able to identify progress curves of proficiency of different formats according to certain characteristics of schools and students, but was less sensitive to identify variables associated with the group formation process and the teacher’s pedagogical practice. The two types of value-added models offer indications of differentiated learning processes for the disciplines of Portuguese and Mathematics, which deserve further study. I- The authors thank Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação (CAEd/ UFJF – Center for Public Policy and Evaluation of Education, CAEd / UFJF) and Programa Observatório da Educação (Observatory of Education Program)– CAPES/INEP II- Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brazil. Contact: [email protected] III-Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brazil. Contacts: [email protected]; [email protected]; [email protected]; 78 Keywords Longitudinal study — Educational assessment — Value added — GERES — Hierarchical linear models. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 77-94, jan./mar. 2014. Introdução A partir de estudos que correlacionam o desempenho dos alunos com aspectos materiais e organizacionais da escola e com características técnicas e humanas da equipe escolar, esperamse conclusões acerca das razões que levam algumas escolas a resultados melhores e, como corolário, diferentes opções para a melhoria na qualidade do ensino. É com este propósito em mente que, ao mesmo tempo em que se fazem testes para medir o desempenho aos alunos, aplicam-se questionários aos professores e gestores para caracterizar o ambiente em que a aprendizagem se desenvolve. Tanto a Prova Brasil quanto todos os sistemas estaduais de avaliação que seguem o modelo pioneiro do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) implantaram esse mesmo padrão de avaliação transversal para a coleta simultânea de informações a respeito do desempenho dos alunos e das condições da escola (BONAMINO, 2002). O problema desse modelo reside no fato da aprendizagem ser um processo cumulativo, construído ao longo da trajetória educacional do aluno, e fruto de diversas influências, entre as quais todos os professores do aluno desde seu primeiro ano escolar. Ou seja, enquanto os testes que medem o desempenho do aluno estão sondando um agregado de aprendizagem de muitos anos, as informações coletadas sobre as condições escolares são específicas do ano da coleta de dados. Essa falta de sintonia fragiliza as análises e dificulta a formulação de políticas de qualidade e equidade mais sólidas (FRANCO, 2001). Pela falta de conexão com as origens da aprendizagem, provocada pelas incertezas sobre o ponto de partida dos alunos e das contribuições específicas do ambiente de aprendizagem, os pesquisadores só se permitem falar de “fatores associados” e, raramente, comprometem-se a indicar causas e efeitos. Diversos autores mostram as dificuldades da utilização de dados transversais para investigar a relação entre fatores escolares e desempenho acadêmico. Além do problema em Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 77-94, jan./mar. 2014. atribuir causalidade (RAUDENBUSH; FOTIU; CHEONG, 1998), a literatura enfatiza a ausência de medidas anteriores do desempenho dos alunos para calcular o ganho atribuível aos fatores escolares (GOLDSTEIN, 1995) e a impossibilidade de fazer inferências confiáveis sobre a eficácia das escolas com base em uma única medida do desempenho (GOLDSTEIN et al. 2000). Essas dificuldades levam vários autores a especificar certos requisitos mínimos para o estudo dos fatores escolares, entre os quais se destaca a necessidade da coleta repetida de dados em um desenho de pesquisa longitudinal. Com medidas de aprendizagem aplicadas em momentos ou anos distintos é possível controlar as variáveis relativas à influência dos antecedentes socioeconômicos e educacionais dos alunos, de modo a extrair conclusões sobre os processos internos das escolas e sobre a qualidade do ensino oferecido. Assim, pode-se trabalhar não com o nível absoluto de proficiência alcançado pelo aluno, mas com a medida de seu avanço ou da aprendizagem nova adquirida em cada período e, a partir dela, calcular a contribuição da escola ou do próprio professor. Foi com base nesse raciocínio que foi realizada a pesquisa GERES – Estudo Longitudinal da Geração Escolar 2005, cuja metodologia e resultados preliminares já foram relatados em outras publicações (FRANCO; ALVES; BROOKE, 2008; BROOKE; BONAMINO, 2011). Desenhada para produzir informação a respeito das trajetórias de aprendizagem em Língua Portuguesa e Matemática de uma coorte de alunos desde o princípio da então 1ª série até o final da 4ª série, a pesquisa acompanhou mais de 20.000 alunos de escolas públicas e privadas em cinco cidades do Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste. Sendo a primeira investigação longitudinal a ser completada com sucesso no Brasil, a pesquisa GERES permite refletir a respeito dos fatores intra e extraescolares que incidem no processo de aprendizagem com base não somente no nível de desempenho alcançado pelos alunos ao final dos anos iniciais, mas também nos ganhos de 79 aprendizagem diferenciados ano a ano ao longo de um período de quatro anos. A pesquisa GERES A pesquisa GERES adotou um desenho longitudinal de painel: o mesmo conjunto de escolas e estudantes foi observado ao longo de quatro anos. A amostra foi composta por alunos de 303 escolas dos municípios de Belo Horizonte (MG), Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA), Campo Grande (MS) e Campinas (SP) que, no início de 2005, estavam matriculados na 1ª série do ensino fundamental (ou seu equivalente, quando a organização do ensino era em ciclos, ou na 2ª série se os alunos não tiveram nenhuma experiência prévia de alfabetização). A primeira aplicação (onda) de medidas de aprendizagem foi realizada em março desse mesmo ano, para gerar uma linha de base para os alunos, já a segunda, ocorreu em novembro. As seguintes ondas de aplicação de instrumentos aconteceram ao final dos anos de 2006, 2007 e 2008, viabilizando o acompanhamento da amostra ao longo de quatro anos letivos. O estudo buscou fazer a distinção entre “valor agregado pela escola” e o efeito da “seleção” devido à eventual reprovação de alunos de desempenho menor. Em termos práticos, isso significou que aqueles que não foram aprovados continuaram sendo observados pela pesquisa desde que permanecessem retidos na mesma escola ou se transferissem para outra escola da amostra. Cada uma das cidades foi considerada como um estrato e, dentro de cada cidade, foi selecionada uma amostra probabilística complexa de escolas, turmas e alunos a partir do cadastro do Censo Escolar de 2003, excluídas as escolas que não possuíam 10 alunos ou mais matriculados na 1ª série do ensino fundamental. Testes adequados aos anos iniciais do ensino fundamental foram elaborados por especialistas de três das seis universidades participantes da pesquisa (Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeira – PUC-Rio e Universidade Federal 80 de Juiz de Fora), com base em matrizes de habilidades de Leitura e Matemática. As outras universidades participantes foram Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul e Universidade Federal da Bahia – UFBA. As questões foram previamente testadas em escolas públicas e privadas das cidades de Juiz de Fora e Rio de Janeiro. Em cada onda, todos os alunos presentes foram submetidos a testes de Leitura e de Matemática, elaborados em duas versões: uma mais fácil e outra mais difícil. As diferentes versões possuíam, no entanto, itens comuns, de modo a viabilizar escores equalizados a partir da Teoria de Resposta ao Item (TRI). Além dos testes, foram aplicados questionários contextuais aos diretores, professores e famílias, para levantar informações a respeito da escola e sua organização, da prática pedagógica dos professores e o nível socioeconômico dos alunos. Essas informações fazem parte da análise dos fatores relevantes na explicação das diferenças nos ganhos de aprendizagem entre alunos e escolas. Em consonância com as matrizes de Leitura e Matemática foram desenvolvidas duas escalas para descrever o desempenho dos alunos em termos das habilidades em fase de consolidação e as habilidades já consolidadas. Essas escalas foram indispensáveis para a comunicação dos resultados às escolas e para a interpretação pedagógica do desempenho das turmas. Os cálculos das proficiências em todas as ondas foram feitos pela mesma equipe, a partir de uma mesma metodologia, o que garante a confiabilidade dos resultados cognitivos obtidos. Modelagem do crescimento da aprendizagem na pesquisa GERES O presente trabalho tem como objetivo a observação de associações entre diversos fatores contextuais em diferentes níveis – alunos, turmas e escolas – e ganhos de proficiência dos alunos GERES em Matemática e Língua Portuguesa mensurados a partir de testes aplicados aos mesmos alunos em ondas sucessivas de testagem, Nigel BROOKE; Neimar da S. FERNANDES; Isabela P. H. de MIRANDA; Tufi M. SOARES. Modelagem do crescimento... segundo o modelo longitudinal já descrito. Isso possibilitou controlar a proficiência final pela inicial, além da realização de análises os diversos padrões de evolução do aprendizado ao longo do tempo de acordo com variáveis, tais como a rede de ensino (público e privado), grupo de cor e nível socioeconômico. O presente artigo inicia-se com uma descrição dos modelos lineares hierárquicos utilizados nas análises aqui realizadas, acompanhada de uma breve explicação sobre a lógica que justifica a sua utilização. A seguir, discorre a respeito da análise dos modelos agregados onda a onda e das covariáveis neles utilizados. Essas covariáveis são, então, introduzidas nos modelos onda a onda, tanto no caso da disciplina de Matemática quanto de Língua Portuguesa. Após uma análise desses resultados, são introduzidos os modelos de evolução. Também se apresentam os detalhes da construção da base para a análise multinível, seguidos dos resultados obtidos com os modelos nulos. Finalmente, são apresentadas as conclusões do trabalho e uma discussão acerca dos principais pontos levantados no estudo. O projeto GERES mede a proficiência dos alunos, a nossa variável dependente, em Língua Portuguesa e Matemática através de escalas próprias. No caso da Língua Portuguesa, a amplitude da escala, em termos dos resultados alcançados pelos alunos, vai do mínimo de 48 pontos na primeira onda ao máximo de 223 na quinta onda. A escala de Matemática, por sua vez, vai do mínimo de 20 pontos ao máximo de 397. A média e os desvios padrão para cada onda também são apresentados na Tabela 1: Tabela 1− Média e desvio padrão das proficiências em Língua Portuguesa e Matemática por onda na pesquisa GERES Disciplina Língua Portuguesa Matemática Onda Média Desvio Padrão Mínimo Máximo 1ª 2ª 3ª 4ª 5ª 1ª 2ª 3ª 4ª 5ª 108,42 127,16 143,25 157,23 169,05 109,14 138,22 161,01 202,06 246,84 26,28 22,91 27,54 27,06 25,37 28,82 32,22 57,39 63,24 66,87 47,80 68,63 85,68 87,78 89,45 19,52 54,73 39,10 45,49 57,20 159,90 183,93 214,52 214,24 222,96 173,05 217,11 290,35 356,03 396,55 Fonte: dados da pesquisa. Foram usadas como variáveis de alunos as seguintes categorias: gênero; cor/raça; defasagem idade/série e a condição socioeconômica NSE, medida a partir de um questionário de posse de bens análogo aos aplicados pelo IBGE. Para maiores detalhes da construção dessa medida ver Brooke e Bonamino (2011). As variáveis do professor foram construídas utilizando-se as respostas dadas aos questionários aplicados aos docentes, utilizando-se uma metodologia descrita em Brooke e Bonamino (2011). Essas variáveis serão apresentadas a seguir: a) Percepção do professor sobre os obstáculos que impedem o melhoramento da Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 77-94, jan./mar. 2014. escola – refere-se ao quanto os professores percebem os obstáculos que venham a impedir a melhora da escola, tais como depredações das dependências das escolas, bem como o consumo e tráfico de drogas, furto de equipamentos didáticos e/ou pedagógicos, violência e intimidação aos professores, funcionários e alunos. b) Frequência de uso de certos recursos pedagógicos disponíveis na escola –corresponde a alguns dos recursos pedagógicos usados como mapas geográficos e materiais concretos de matemática (material dourado, tangram, etc). c) Percepção do professor sobre a frequência de interrupção da aula – sinaliza o nível das interrupções da aula. Caso seja em 81 maior nível, há um maior grau de interrupção das aulas por indisciplina e impontualidade dos alunos, barulho e anúncios de direção. d) Frequência com que o professor realiza determinadas práticas nas suas aulas de Língua Portuguesa – está associada às práticas positivas de leitura em aulas de Língua Portuguesa adotadas pelos professores, tais como leitura silenciosa ou em voz alta, por professores e/ ou alunos, de histórias ou do livro didático. Também incluímos a produção de textos, bem como cópias de textos e ditados. e) Frequência com que o professor realiza determinadas práticas nas suas aulas de Matemática – mede o uso pelos professores de práticas positivas de diferentes níveis de complexidade, desde a aplicação direta de conceitos até a representação de situações em linguagem matemática. Inclui a prática da matemática ligada ao cotidiano, bem como situações de problemas ligados a jogos e quebracabeça, o compartilhamento com os colegas das estratégias para solução de problemas e a prática de exercícios visando à memorização e ao aumento da velocidade de cálculo. f) Frequência de leitura do professor – abrange a prática dos professores de leitura de textos, livros e também revistas especializadas da área de educação e literatura em geral. g) Frequência de participação em atividades culturais – refere-se à participação dos alunos em atividades culturais, como visitas a livrarias e museus, bem como a frequência a espetáculos de teatro, música e dança. h) Frequência com que o professor realiza procedimentos pedagógicos promotores de motivação intrínseca – está associada ao uso de procedimentos pedagógicos que promovem a motivação intrínseca dos alunos. Esses procedimentos procuram valorizar a autoestima mediante a adoção de atividades práticas ou experiências que despertem a curiosidade, estimulem a socialização e tragam novidades. i) Frequência com que o professor realiza procedimentos pedagógicas promotores de motivação extrínseca com regulação introjetada 82 – é a frequência com que os docentes aplicam procedimentos pedagógicos que promovam a motivação extrínseca, com regulação interna, como a valorização do desempenho do aluno perante a turma, escola e família. j) Frequência com que o professor realiza procedimentos pedagógicos promotores de motivação extrínseca com regulação externa – refere-se à frequência com que os professores aplicam procedimentos pedagógicos que promovam a motivação extrínseca, com regulação externa, tais como argumentos de ascensão social ou sucesso financeiro, bem como prêmios por trabalhos de aula ou de casa e resultados de provas, a fim de estimular o estudo. Na presente pesquisa é possível, em cada onda, localizar o aluno em sua turma. Utilizando os questionários aplicados aos professores, é possível associar o professor à sua turma em cada onda. Com essa estrutura também é possível calcular o percentual de meninos na turma, a média do NSE da turma, a média da defasagem idade/série da turma, dentre outras variáveis. Também a cada turma são atribuídas as características de seus professores. Essas variáveis compõem o nível de turma. As variáveis no nível da escola são obtidas pelo cálculo de médias e de percentuais de características específicas de seus alunos. Dessa forma, obtêm-se variáveis tais como o “Percentual de Meninos na Escola”, a “Defasagem Média da Escola”, entre outras. Também variáveis do nível do professor podem ser alocadas no nível de escola pelo cálculo de médias e percentuais como, por exemplo, a “Prática de Leitura na Escola”. As variáveis utilizadas podem ser classificadas em quatro categorias: 1) dicotômicas; 2) percentuais; 3) padronizadas; e 4) não padronizadas. As variáveis dicotômicas assumem o valor 1 quando o elemento pertence à categoria indicada, por exemplo, o gênero masculino. Assume o valor 1 quando se trata de um aluno e 0 quando de uma aluna. Nos modelos, o valor dos coeficientes corresponde à perda/ganho em pontos das escalas GERES de Língua Portuguesa e Matemática caso o aluno pertença àquela categoria. Nigel BROOKE; Neimar da S. FERNANDES; Isabela P. H. de MIRANDA; Tufi M. SOARES. Modelagem do crescimento... Variáveis em percentuais assumem valores entre 0 e 1. Quando igual a 1, representa 100% do total. Nos modelos, o coeficiente indica a perda/ ganho caso assuma valor 1. Caso assuma valor 0,5 (50%) na unidade analisada a perda/ganho seria a metade desse coeficiente, e assim por diante. Variáveis padronizadas são as contínuas que podem, a princípio, assumir qualquer valor, mas sempre possuem média igual a 0 e desvio padrão igual a 1. Exemplos são a variável NSE e todas as variáveis oriundas do questionário do professor. Isso significa que nas tabelas o número de pontos corresponde à perda/ganho a cada desvio padrão. Variáveis não padronizadas são as contínuas utilizadas nos modelos de forma direta, ou seja, sem nenhuma transformação, como a defasagem idade/série e a proficiência prévia. A interpretação de seus coeficientes no modelo se dá de forma direta. No Quadro 1 são apresentadas todas as variáveis preditoras estudadas para permitir visualizar sua forma de mensuração bem como o nível de análise em que a variável se encontra. Ou seja, a variável média do NSE no nível de turma refere-se à média do NSE da turma. Quadro1 − Variáveis incluídas nos modelos, por nível e tipo de medida Nível Variáveis Escola Turma Aluno Proficiência prévia Gênero masculino NSE Cor preta* Defasagem idade/série Média das proficiências prévias Média do NSE Percentual de gênero masculino Percentual de cor/raça “preta”* Média da defasagem idade/série Frequência de uso de recursos pedagógicos disponíveis Percepção do professor sobre os obstáculos que impedem o melhoramento da escola Percepção do professor sobre a frequência de interrupção da aula Frequência com que o professor realiza determinadas práticas nas suas aulas de Língua Portuguesa Frequência com que o professor realiza determinadas práticas nas suas aulas de Matemática Frequência de leitura do professor Frequência de participação em atividades culturais Frequência com que o professor realiza procedimentos pedagógicos promotores de motivação intrínseca Frequência com que o professor realiza procedimentos pedagógicos promotores de motivação extrínseca com regulação introjetada Frequência com que o professor realiza procedimentos pedagógicos promotores de motivação extrínseca com regulação externa Média das proficiências prévias Média do NSE Percentual do gênero masculino Percentual de cor/raça “preta”* Média da defasagem idade/série Rede privada Média da frequência de uso de recursos pedagógicos disponíveis Média da percepção do professor sobre a frequência de interrupção da aula Média da frequência com que o professor realiza determinadas práticas nas suas aulas de Língua Portuguesa Média da frequência com que o professor realiza determinadas práticas nas suas aulas de Matemática Média da frequência de leitura do professor Média da frequência de participação em atividades culturais Média da frequência com que o professor realiza procedimentos pedagógicos promotores de motivação intrínseca Média da frequência com que o professor realiza procedimentos pedagógicos promotores de motivação extrínseca com regulação introjetada Média da frequência com que o professor realiza procedimentos pedagógicos promotores de motivação extrínseca com regulação externa Fonte: elaboração dos autores * Resposta à opção c da seguinte pergunta: Como você se considera? a) Branco(a); b) Pardo(a); c) Preto(a); d) Amarelo(a); e) Indígena. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 77-94, jan./mar. 2014. Tipo de Medidas Não Padronizada Dicotômica Padronizada Dicotômica Não padronizada Não padronizada Padronizada Percentual Percentual Não Padronizada Padronizada Padronizada Padronizada Padronizada Padronizada Padronizada Padronizada Padronizada Padronizada Padronizada Não padronizada Padronizada Percentual Percentual Nãoadronizada Dicotômica Padronizada Padronizada Padronizada Padronizada Padronizada Padronizada Padronizada Padronizada Padronizada 83 Descrição dos modelos de valor agregado Com a finalidade de identificar os fatores que influenciam a aprendizagem ano a ano e os padrões de crescimento ao longo dos anos, dois tipos de modelos são construídos, assim denominados: modelo de valor agregado (Valueadded model) onda a onda e modelo de evolução. Modelos de três níveis para valor agregado têm a intenção de aferir quanta proficiência se agregou em ondas sucessivas de testagem. Para isso, os modelos onda a onda obrigatoriamente possuem a proficiência prévia do aluno, que é a proficiência aferida na entrada do ciclo considerado. Esses modelos contemplam variáveis com a intenção de explicar o ganho de proficiência do aluno. Na elaboração desses modelos procurase identificar como as práticas pedagógicas de cada professor, bem como o clima escolar e políticas de alocação e formação de turmas na escola, entre outras variáveis do contexto escolar e as características pessoais dos alunos, influenciam a proficiência discente. Assim, é possível explicar as diferenças de proficiência entre alunos, turmas e escolas. O segundo tipo de modelo mostra o efeito produzido pelas variáveis na curva de evolução da proficiência. A estrutura do modelo é de três níveis, na qual o primeiro nível corresponde ao desempenho em cada tempo; o segundo, às características dos alunos; e o terceiro, às características da escola. Assim, dadas as covariáveis, é possível determinar em cada onda, para cada aluno, em cada escola, qual era a proficiência esperada. elementos amostrais. Em geral, os três primeiros pressupostos são razoavelmente verificados nos dados educacionais ou contornados a partir da utilização de grandes amostras. Por outro lado, a independência dos elementos amostrais não é razoável em dados de pesquisas educacionais, uma vez que a população de alunos está organizada em turmas e estas em escolas. Logo, a estrutura dos dados na população é naturalmente hierárquica. Neste caso, torna-se pouco razoável admitir a independência para as observações individuais como, por exemplo, os alunos, já que estaria sendo desprezado o efeito de agregação: alunos de uma mesma turma tendem a apresentar características mais semelhantes do que alunos de turmas diferentes, mesmo que difiram entre si quanto a vários aspectos individuais. Nos modelos hierárquicos de três níveis é levada em consideração a estrutura de agrupamento dos dados, admitindo que cada turma e escola, por exemplo, tenham um modelo de regressão particular. Nesses modelos a influência que cada variável exerce sobre a proficiência do aluno pode depender da agregação das unidades amostrais, além de também eventualmente vir a depender de variáveis encontradas em níveis de agregação superiores como, por exemplo, as variáveis de escola. Respeitando a estrutura hierárquica presente no modelo, a expressão matemática utilizada contém os índices i, j e k que são os indexadores do 1° ao 3° nível respectivamente, exemplo, w e z que representam as variáveis do 1° ao 3° nível analogamente. O modelo hierárquico então terá a seguinte expressão geral, segundo Bryk & Raudenbush (1992): Modelos hierárquicos Fórmula 1 − Equações do modelo hierárquico Os modelos de regressão linear múltipla tradicionais, utilizados para a explicação de uma variável dependente com base num conjunto de variáveis independentes, baseiam-se em quatro pressupostos básicos para as características dos dados: linearidade, normalidade, homocedasticidade e independência entre os 84 Nigel BROOKE; Neimar da S. FERNANDES; Isabela P. H. de MIRANDA; Tufi M. SOARES. Modelagem do crescimento... A variável dependente Yijk representa a proficiência em Língua Portuguesa ou em Matemática do i-ésimo aluno pertencente a j-ésima turma da k-ésima escola nas ondas 2 até 5 dependendo do modelo considerado. O termo Xfijk representa a covariável f de primeiro nível (aluno), tais como o gênero masculino” e a defasagem idade/série, do i-ésimo aluno. A s-ésima covariável de segundo nível (turma), como por exemplo, percentual de gênero masculino na turma e defasagem média da turma, é representada pelo termo Wsjk . O termo Ztk representa as variáveis do terceiro nível, como percentual de gênero masculino na escola e defasagem média da escola. Os coeficientes πƒjk, βƒsk e γƒst representam os efeitos das covariáveis Xfijk, Wsjk e Ztk respectivamente, sobre a proficiência do aluno em Língua Portuguesa ou Matemática em cada uma das ondas. Já os termos Uƒjk e rƒsk medem a incerteza associada aos coeficienes πƒjk e βƒsk em seus respectivos níveis de agrupamento, turmas (2° nível) ou escolas (3° nível). Finalmente, o termo eijk representa a incerteza de todos os efeitos associados na proficiência de cada aluno. Construção dos modelos multiníveis O processo básico mais utilizado na construção de um modelo hierárquico é o bottom-up, isto é, parte-se de um modelo nulo no qual somente se ajustam constantes relativas a cada nível representado, utilizado como ponto de partida para a inclusão das demais variáveis sempre mantendo suas constantes iniciais e incluindo-se as variáveis segundo uma heurística definida pelo especialista que, neste estudo, se baseia na verificação da significância dos coeficientes (parâmetros fixos e aleatórios) para cada modelo. De modo geral, a construção dos modelos aqui apresentados seguiu esses passos. Inicialmente, analisou-se o modelo nulo com o objetivo de avaliar a proporção da variância devida a cada nível hierárquico. Em seguida, introduziram-se as principais variáveis do Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 77-94, jan./mar. 2014. nível de aluno para produzir um modelo que convencionalmente é chamado de básico ou de referência. Em uma segunda etapa, sempre seguindo a mesma heurística, foram introduzidas as variáveis de nível de professor, turma e, finalmente, variáveis de nível de escola. Dessa forma, pode-se analisar a evolução da explicação alcançada após a introdução de cada variável, sempre testando inicialmente os efeitos aditivos, seguidos pelas interações entre as variáveis de diferentes níveis. Interpretação dos modelos multiníveis Para interpretar os modelos multiníveis é fundamental conhecer os elementos estimados por esses modelos, dentre os quais se destacam o intercepto, os coeficientes fixos e os coeficientes randômicos. O intercepto é um termo constante que, apesar de não possuir interpretação direta na maior parte dos modelos aqui construídos, é muito importante para o ajuste da equação de cada modelo, portanto, jamais deve ser suprimido. Os coeficientes fixos medem o efeito de cada variável e não mudam em cada unidade de análise. Caso o coeficiente apresente efeito randômico significante, ele passa a variar nos diferentes níveis de agregação como, por exemplo, diferentes turmas podem apresentar diferentes coeficientes caso este coeficiente apresente efeito randômico no nível de turma, o mesmo pode acontecer no nível de escola; a média deste coeficiente é apresentada na tabela juntamente com os desvios padrões nos níveis nos quais ele apresente significância. O termo e apresentado ao final da tabela representa a incerteza média esperada, quanto menor for essa incerteza em relação ao desvio padrão original, maior o poder explicativo do modelo. Modelos onda a onda Foram construídos cinco modelos segundo essa linha, iniciando com o modelo da onda 2 predita pela onda 1, até a onda 5 predita pela 85 onda 4. Um modelo adicional também construído foi o da onda 5 predita pela onda 1, que permitiu a modelagem do valor agregado durante o ciclo total do GERES. Resultado dos modelos nulos dos modelos onda a onda A decomposição da variância nos três níveis – aluno, turma e escola – é representada na tabela 2. No primeiro nível (aluno), a diferença na variabilidade observada entre Língua Portuguesa e Matemática é maior no modelo da onda 2. Ambas vão aumentando até que praticamente se igualam no modelo da onda 5 predita pela onda 1. No segundo nível (nível de turma e professor) ambas as variabilidades aumentam: a diferença entre elas é pequena na onda 2 e mais expressiva e em favor de Língua Portuguesa no modelo da onda 5 predita pela onda 1. O terceiro nível apresenta um comportamento diferente: as variabilidades diminuem, a de Língua Portuguesa inicialmente é maior, mas logo se torna menor. Os resultados permitem afirmar que as diferenças entre os alunos são sempre as mais importantes fontes de variabilidade, sendo responsáveis por entre 46% e 59% de toda a variação nos resultados. Mesmo assim, tanto as características das turmas e do professor quanto outros aspectos do contexto escolar também são muito relevantes na explicação da variância nos resultados dos alunos. Com o passar do tempo, a importância da escola diminui enquanto aumenta a relevância das diferenças entre os alunos. Tabela 2 − Partição da variabilidade explicada por diferentes níveis ao longo das ondas (%) Onda 2 3 4 5* 5 Proficiência predita LP MT LP MT LP MT LP MT LP MT Aluno 45,8 51,3 52,6 51,3 53,5 50,5 58,6 58,6 57,9 58,1 Turma 22,6 22,8 23,5 23,8 28,0 28,2 27,8 25,1 27,5 24,6 Escola 31,5 25,9 23,9 24,9 18,6 21,3 13,9 16,3 14,6 17,3 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 * Considerando os dados do modelo da onda 5, predita pela onda 1. Fonte: elaboração dos autores Resultado dos modelos onda a onda Os modelos de valor agregado onda a onda estão apresentados na tabela 3. Associação das variáveis do aluno com o desempenho No nível do aluno, tanto em Língua Portuguesa quanto em Matemática, as variáveis que mais se associam a ganhos maiores de proficiência onda a onda são a proficiência prévia e o NSE. Quanto maior a proficiência prévia do aluno e maior seu NSE, maior seu ganho de pontos nas escalas GERES de uma onda para outra. Por exemplo, os alunos tendem 86 a apresentar uma vantagem de 1,1 pontos na escala de proficiência de Língua Portuguesa no modelo para a 2ª onda, e 1,11 pontos em Matemática. No modelo da 5ª onda predita pela 1ª, os ganhos associados a cada desvio padrão do NSE são de 1,85 pontos em Língua Portuguesa e 4,84 pontos em Matemática. Esses resultados confirmam estudos anteriores que mostram também uma associação estreita entre o NSE da família e o ponto de partida inicial do aluno. Por outro lado, a relação significativa mais negativa entre gênero masculino e o avanço em Língua Portuguesa nos cinco modelos mostra que os meninos estão em desvantagem na aprendizagem da leitura quando comparados Nigel BROOKE; Neimar da S. FERNANDES; Isabela P. H. de MIRANDA; Tufi M. SOARES. Modelagem do crescimento... Tabela 3 − Coeficientes do modelo de valor agregado onda a onda* Nível 2 Coeficientes LP 3 MT LP MT Ondas 4 LP MT 5 LP 5** MT Turma*** (variável, intercepto) Escola (variável, intercepto, intercepto) NSE médio da escola Percentual de pretos na escola Média de prática de leitura na escola -22,6 0,64 -2,89 Média da frequência de uso de recursos pedagógicos disponíveis na escola 0,66 Média de prática de aula de LP na Escola 0,77 0,15 0,28 0,08 0,15 Média do NSE 2,63 2,79 1,41 6,76 -11,9 Percentual de pretos 0,30 0,41 -2,45 0,34 1,55 3,21 -1,19 -5,92 0,32 0,32 -11,9 -7,35 Defasagem média da turma -19,95 -12,7 -12,7 -1,17 Frequência de uso de recursos pedagógicos disponíveis na Turma -1,11 1,62 Intercepto 55,34 48,28 29,18 -1,6 25,79 31,56 9,44 33,59 96,20 149,26 Rand de Turma 4,92 8,79 4,21 26,72 4,38 27,89 4,36 11,56 6,81 18,79 Rand de escola 1,59 3,32 2,18 5,31 1,95 6,04 1,55 6,32 3,52 9,24 Intercepto 0,51 0,60 0,82 1,04 0,66 0,67 0,62 0,72 0,36 0,89 Gênero masculino Intercepto -1,98 Intercepto 1,10 Rand de turma 2,24 Intercepto -1,00 Intercepto Aluno 15,45 1,93 Média de interrupção da aula na turma Proficiência prévia NSE Cor preta -3,09 1,11 1,68 -2,37 3,80 -2,65 -2,21 -4,19 -2,93 11,9 -2,53 -4,73 0,78 2,04 1,07 2,82 1,85 4,84 -1,27 -2,90 -2,7 -5,34 -4,24 -5,72 -11,7 -3,31 -6,22 -18,3 -47,34 15,6 34,7 14,5 36,5 17,7 44,57 0,20 Defasagem idade/ Intercepto série e 3,66 1,33 Média de proficiência prévia Percentual de gênero masculino MT -36,4 0,82 Média de interrupção da aula na escola LP 18,7 14,5 30,0 Fonte: dados da pesquisa. * Todos os coeficientes apresentados apresentaram significância ao nível de p<0,05; ** Tendo como proficiência prévia a proficiência na onda 1; *** Nenhum coeficiente do nível de turma apresentou efeito aleatório significante. com as meninas. A desvantagem em Língua Portuguesa dos alunos aumenta da 2ª para a 5ª onda, de -1,98 para -4,73 pontos, em relação à 1ª onda, mostrando que o déficit é progressivo e possivelmente cumulativo. Por outro lado, os resultados mostram que a aprendizagem de Matemática não é influenciada de forma Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 77-94, jan./mar. 2014. significativa pelo gênero dos alunos em nenhum dos modelos. Os alunos que se autodenominaram pretos e aqueles defasados possuem coeficientes negativos de regressão associados a essas variáveis, nos modelos de ambas as disciplinas. Isso significa que tanto em Matemática quanto 87 em Língua Portuguesa, o grupo de alunos de cor preta está em desvantagem em relação aos outros grupos e, onda a onda, agrega menos pontos na escala de proficiência. O efeito negativo da experiência da defasagem, significante em Língua Portuguesa, no modelo para as ondas 3, 4, 5 e especialmente na onda 5, predita pela onda 1, reflete o efeito cumulativo dos atrasos dos alunos. O mesmo ocorre em Matemática no modelo para as ondas 4, 5 e no modelo da onda 5 predita pela onda 1. Mesmo nos anos iniciais do ensino fundamental os atrasos já se mostram um impedimento à aprendizagem. Apesar do número de pontos de desvantagem dos alunos autoclassificados como pretos ser maior em Matemática que em Língua Portuguesa, não se deve concluir que o efeito da cor seja maior nessa disciplina. Deve-se lembrar que as duas escalas são diferentes e que a escala de Matemática tem o dobro da abrangência da escala de Língua Portuguesa, em termos de pontos. No entanto, o efeito da defasagem idade/série em Matemática no modelo da onda 5 predita pela onda 1, de -47,34 pontos extrapola a diferença esperada e pode indicar a existência de um impacto diferencial por disciplina. Haverá necessidade de estudar esse fenômeno com outros dados para confirmar a possibilidade de processos diferenciados de aprendizagem. Associação das variáveis de turma com o desempenho dos alunos Alunos pertencentes a turmas com uma maior média das proficiências prévias tendem a apresentar uma maior proficiência em Língua Portuguesa, em todas as ondas, bem como no modelo da onda 5 predita pela onda 1. Em Matemática, o mesmo se passa nas cinco ondas, embora o efeito não seja significante no modelo da onda 5 predita pela onda 1. Nos modelos construídos para as ondas 2 e 3 foi significante a variável NSE médio da turma. Tal fato indica que os alunos pertencentes a turmas com um maior NSE médio tendem a apresentar uma maior proficiência em Língua 88 Portuguesa, mostrando a influência dos pares sobre a evolução da aprendizagem individual. No caso de Matemática, essa variável foi significante nos modelos das ondas 2, 3 e 4. Na onda 3, a variável percentual de pretos foi significante tanto para Língua Portuguesa quanto para Matemática. A defasagem média na turma é significante em Matemática na onda 3, enquanto em Língua Portuguesa essa variável não tem significância em nenhuma onda. Diferentemente da mesma variável em nível de aluno, a variável percentual de gênero masculino na turma foi significante em Matemática nas ondas 2 e 3, e no modelo da onda 5 predita pela onda 1. Já em Língua Portuguesa essa variável não é significante em nenhuma onda. Com esses resultados, observa-se a inversão das relações observadas em nível de aluno. A frequência de uso de recursos pedagógicos disponíveis na turma é significante no modelo da onda 5 em Matemática. Já em Língua Portuguesa essa variável não é significante em nenhuma onda. Na onda 5 e no modelo da onda 5 predita pela onda 1, a variável média de interrupção da aula foi significante, indicando que alunos pertencentes a turmas com maiores valores de média de interrupção da aula tendem a apresentar uma menor proficiência em Língua Portuguesa. Já em Matemática essa variável não é significante em nenhuma onda. Alunos que estão alocados em turmas com maiores níveis de NSE tendem a apresentar um aumento de 2,63 pontos em Língua Portuguesa para cada desvio padrão a mais do que a média, e 2,79 em Matemática nos modelos da onda 2. Ou seja, pelo menos nos primeiros anos, o efeito do NSE da turma é maior do que o NSE do indivíduo. O efeito do NSE da turma é especialmente marcado na 3ª onda, quando sobe para 6,76 pontos em Matemática. Associação das variáveis da escola com o desempenho dos alunos Tanto em Língua Portuguesa quanto em Matemática, alunos pertencentes a escolas Nigel BROOKE; Neimar da S. FERNANDES; Isabela P. H. de MIRANDA; Tufi M. SOARES. Modelagem do crescimento... com maiores níveis de percentual de pretos e média de interrupção da aula na escola tendem a apresentar uma menor proficiência. No caso da variável percentual de pretos, isso acontece na onda 4 e, no caso da variável média de interrupção da aula na escola, isso acontece nas ondas 4, 5 e no modelo da onda 5 predita pela onda 1, em Matemática. O mesmo ocorre com o modelo da onda 5 predita pela onda 1 em Língua Portuguesa. Novamente, em ambos os modelos, os alunos pertencentes a escolas com maiores níveis de média da prática de leitura na escola, NSE e média de prática de aula na escola tendem a apresentar uma maior proficiência. No caso da primeira variável, isso acontece em Língua Portuguesa na onda 2 e no modelo da onda 5 predita pela onda 1, e, em Matemática é significante apenas no modelo da onda 5 predita pela onda 1. Na segunda variável, isso acontece no modelo da onda 5 predita pela onda 1, em ambos os modelos e na terceira variável é observado em Língua Portuguesa na onda 3 e no modelo da onda 5 predita pela onda 1. Por fim, em Matemática, tal efeito é significativo apenas no modelo da onda 5 predita pela onda 1. Algumas variáveis apresentam significância apenas no modelo de Língua Portuguesa mostrando, assim, que alunos pertencentes a escolas com um maior percentual de frequência de uso de recursos pedagógicos disponíveis na escola, maiores níveis de média de prática de aula de Língua Portuguesa na escola e uma maior média de prática de leitura na escola tendem a apresentar uma maior proficiência em Língua Portuguesa. No caso da primeira variável isso acontece na onda 3; na segunda variável, nas ondas 3 e 5; e na terceira variável, nas ondas 2, 4 e no modelo da onda 5 predita pela onda 1. Esses resultados indicam que as variáveis empregadas para captar diferenças entre os métodos de ensino dos professores demonstram efetivamente que diferentes abordagens para o ensino de português produzem resultados diferentes, com vantagens para aqueles alunos cujos professores usam recursos pedagógicos, dão Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 77-94, jan./mar. 2014. ênfase ao ensino de Língua Portuguesa e que fazem mais uso da leitura na sala de aula. Modelos de evolução Os modelos aqui empregados podem ser representados pela seguinte equação. Fórmula 2 – Equação do modelo hierárquico longitudinal Esse modelo permite analisar a evolução da proficiência do aluno segundo as ondas do GERES. Sua formulação é análoga ao modelo anteriormente apresentado, porém seus níveis agora considerados são o tempo (t, 1° nível), aluno (i, 2° nível) e escola (j, 3° nível). Na equação apresentada é ilustrado apenas o primeiro nível, o nível do tempo, a especificação dos demais níveis é semelhante àquela presente na fórmula 1. Esta abordagem tem a vantagem de mostrar não somente o efeito produzido por uma covariável de aluno ou escola no patamar de proficiência (por meio do coeficiente π0ij), mas também o seu efeito na curva de evolução da proficiência (por meio dos coeficientes π1ij e π2ij). Nos modelos de evolução, o tempo, representado por t foi codificado segundo a sequência de inteiros de 0 a 4 (representando as ondas de 1 a 5). Resultado dos modelos nulos de evolução Pela decomposição da variância nos três níveis (tempo, aluno e escola) temos a tabela 4: Tabela 4 − Decomposição da variância por nível e disciplina (%) Proficiência LP MT Tempo Aluno Escola Total 67,0 12,9 20,1 100,0 74,1 8,9 17,0 100,0 Fonte: dados da pesquisa. 89 alunos que as variáveis em nível de escola e de aluno, e seu efeito em Matemática é maior que em Língua Portuguesa. A razão pela aparente dependência maior da aprendizagem de Matemática ao fator tempo será discutida posteriormente. A variabilidade no primeiro nível (tempo) é maior que nos demais níveis e corresponde a 67% na proficiência de Língua Portuguesa e a cerca de 74% na de Matemática. No segundo nível (aluno), a variabilidade na proficiência decai de 12,9% em Língua Portuguesa para 8,9% em Matemática. O mesmo ocorre no terceiro nível (escola), porém, neste nível, a variabilidade é ainda menor, correspondendo a cerca de 20,1% de Língua Portuguesa e 17,0% em Matemática. Em resumo, a variável tempo explica mais da variação na proficiência dos Resultado dos modelos de evolução O modelo de evolução para a proficiência em Língua Portuguesa e Matemática nas cinco ondas está apresentado na Tabela 5: Tabela 5 − Modelo de valor agregado para a proficiência em Língua Portuguesa e Matemática nas 5 ondas e covariáveis* Variáveis Tempo Aluno Língua Portuguesa Escola Coeficiente Efeito Randômico Intercepto Matemática Coeficiente 14,77 Intercepto 7,16 110,19 112,24 8,04 10,05 Média dos obstáculos na escola -1,76 -2,04 Rede privada 3,6 Intercepto -2,75 Média do NSE da escola ** Cor preta 11,42 9,39 Intercepto NSE Efeito Randômico -4,45 1,87 Gênero masculino Intercepto 3,33 Intercepto -3,16 t 3,30 4,21 Intercepto 14,54 8,15 Intercepto 20,71 8,12 18,45 Rede privada 11,87 Média de interrupção na escola -1,15 *** NSE Intercepto 0,15 2,30 Cor preta Intercepto -1,89 -3,89 Gênero masculino Intercepto -1,75 t2 Intercepto Intercepto 0,63 2,36 1,13 1,62 -1,26 3,58 Rede privada -1,46 Gênero masculino Cor preta 0,18 Intercepto 0,17 Intercepto 0,2 e 10,41 21,31 Fonte: dados da pesquisa. * Todos os coeficientes são significantes ao nível de p<0,05; ** Se refere à Média da Percepção do Professor sobre os Obstáculos que Impedem o Melhoramento da Escola; ***Se refere à Média da Percepção do Professor sobre a Frequência de Interrupção da Aula na Escola. 90 Nigel BROOKE; Neimar da S. FERNANDES; Isabela P. H. de MIRANDA; Tufi M. SOARES. Modelagem do crescimento... Nos modelos de evolução construídos, identificaram-se quatro principais padrões de evolução, os quais, embora sejam ascendentes, diferem-se quanto à sua respectiva forma. A seguir são mostradas quatro figuras exemplificando os padrões identificados. Na Figura 2, apresenta-se um exemplo do padrão 2 − Curvas com taxa de crescimento decrescente que se distanciam entre si com o passar do tempo, divergentes. Figura 3 − Evolução da proficiência em Matemática pelo NSE da escola 250 150 NSE Esc. Baixo NSE Esc. Alto 100 Rede privada Rede pública 4 5 5 Ondas Fonte: dados da pesquisa. Na Figura 1, apresenta-se um exemplo do padrão 1 − Curvas paralelas com taxas de crescimento decrescentes, e os outros casos semelhantes serão apresentados e discutidos a seguir. 140 160 Figura 2 − Evolução da proficiência em Língua Portuguesa pela cor/raça Fonte: dados da pesquisa. Na Figura 3, apresenta-se um exemplo do padrão 3 − Curvas paralelas com taxa de crescimento crescentes. Figura 4 − Evolução da proficiência em Matemática segundo a rede da Escola 250 4 3 Ondas 200 3 2 150 2 1 Proficiência média em Matemática 1 Rede privada Rede pública 1 120 Proficiência média em Língua Portuguesa 200 Proficiência média em Matemática 180 160 140 120 Proficiência média em Língua Portuguesa Figura 1 − Evolução da proficiência em Língua Portuguesa segundo a rede da escola 2 3 4 5 Ondas Fonte: dados da pesquisa. Preto Não Preto 1 2 3 4 Ondas Fonte: dados da pesquisa. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 77-94, jan./mar. 2014. 5 Na Figura 4, apresenta-se um exemplo do padrão 4 − Curvas com taxa de crescimento 91 crescente que se distanciam com o passar do tempo, divergentes. Tanto em Língua Portuguesa quanto em Matemática a evolução da proficiência evidenciada pelos modelos ocorre de forma ascendente, porém, em Língua Portuguesa, as taxas de crescimento decaem, enquanto que, em Matemática, elas aumentam. A influência exercida pelas diferentes variáveis estudadas e incluídas nos modelos sempre se encaixou em um dos padrões acima especificados, percebendo-se variações apenas quanto à magnitude de seu efeito. Os padrões 1 (Figura 1) e 2 (Figura 2) foram encontrados em Língua Portuguesa, e os padrões 3 (Figura 3) e 4 (Figura 4), em Matemática. A influência das variáveis NSE do Aluno, NSE médio da escola, rede privada e obstáculos na escola em Língua Portuguesa apresentam o primeiro padrão de crescimento, evidenciando que esses grupos se diferem apenas no patamar de crescimento. Já a influência das variáveis gênero masculino e cor preta faz com que esses grupos se difiram no patamar e na taxa de crescimento, correspondendo ao segundo padrão de crescimento, padrão no qual os alunos do gênero masculino e os que se denominam pretos, além de apresentarem inicialmente uma proficiência menor, tendem a ampliar essa diferença ao longo das ondas. Em Matemática, a influência das variáveis NSE médio da escola e obstáculos na escola se encaixaram no terceiro padrão de crescimento, evidenciando que os valores assumidos por tais variáveis apenas afetam o patamar de crescimento, não provocando diferenças nas taxas de crescimento, que se mantêm constantes ao longo de todas as ondas. Já a influência das variáveis NSE, cor preta, rede privada e média da interrupção da aula na escola apresentam o quarto padrão de crescimento, ou seja, as diferenças entre os grupos que apresentam diferentes valores dessas variáveis tendem a se ampliar apesar do aumento das taxas de crescimento ao longo das ondas ocorrer em todos os casos. 92 Discussão dos resultados Na análise descritiva dos resultados dos modelos de ganho agregado onda a onda identificaram-se semelhanças na evolução da aprendizagem de Língua Portuguesa e Matemática. Ambas as disciplinas são igualmente influenciadas pela cor, pelo NSE e pela proficiência prévia dos alunos. Nesses casos, os resultados coincidentes das duas disciplinas parecem oferecer certa confirmação da correção dos métodos e dos efeitos observados. Ao mesmo tempo, chama atenção a indicação de diferenças entre a Língua Portuguesa e a Matemática na forma em que as duas matérias são influenciadas por outras variáveis em estudo. No caso do gênero do aluno, por exemplo, observa-se o fenômeno da desvantagem do gênero masculino na aprendizagem da leitura. Descrita por outros pesquisadores, essa desvantagem pode significar diferenças cognitivas entre os gêneros. Menos previsível é a aparente diferença entre Língua Portuguesa e Matemática no que diz respeito ao efeito da experiência da defasagem idade/série, sugerindo que o atraso na Matemática seja mais difícil de superar que o na Língua Portuguesa. Diferenças nos efeitos das variáveis de turma e de escola nas duas disciplinas também merecem atenção. Em nível de turma, existe uma associação negativa entre o gênero masculino e a aprendizagem de Matemática em três dos modelos estudados, sugerindo um efeito dos pares na aprendizagem desta matéria. Em nível da escola, a média de interrupção da aula mostra uma associação negativa com a aprendizagem de Matemática em três dos modelos estudados, enquanto a aprendizagem de Língua Portuguesa está associada negativamente a essa variável somente na 5ª onda predita pela 1ª. Ou seja, as interrupções fazem mal em ambos os casos, mas têm efeitos negativos maiores e mais significativos no caso da aprendizagem de Matemática. Os resultados da pesquisa GERES parecem oferecer indícios de diferenças entre as disciplinas na maneira que são aprendidas e Nigel BROOKE; Neimar da S. FERNANDES; Isabela P. H. de MIRANDA; Tufi M. SOARES. Modelagem do crescimento... nos fatores que influenciam essa aprendizagem. O primeiro indício dessas diferenças foi o aumento significativo no desvio padrão da proficiência em Matemática em comparação com o de Língua Portuguesa. Entre as cinco ondas o desvio padrão em Língua Portuguesa se manteve bastante estável, variando entre 26,28 na 1ª onda e 25,37 na 5ª. Em Matemática, por outro lado, o desvio padrão aumentou 132% ao longo da pesquisa, crescendo de um patamar parecido com o de Língua Português na 1ª onda, de 28,82 para 66,87 na 5ª onda. Esse crescimento significa, no mínimo, uma aprendizagem progressivamente mais difícil para uma proporção significativa de alunos. Os resultados dos modelos de evolução da aprendizagem mostram, em primeiro lugar, que a aquisição da Matemática começa mais devagar e depois acelera, enquanto a aprendizagem de Língua Portuguesa tem trajetória que sinaliza um processo de desaceleração a partir da 3ª onda. Independente das variáveis em estudo, a curva da Matemática é uma curva em aceleração enquanto a curva de Língua Portuguesa tem o formato diferente por ser uma curva em desaceleração. A diferença entre esses padrões pode confirmar uma importante e conhecida diferença entre as disciplinas no que diz respeito ao lugar da aprendizagem inicial. No caso da Língua Portuguesa, trata-se de uma disciplina ou área de conhecimento que já está em desenvolvimento antes da criança ser submetida ao processo formal de alfabetização, pelo uso da língua na convivência diária com a família. A Matemática, por outro lado, é um campo de conhecimento que não necessariamente recebe estímulos antes da criança entrar para a escola, o que torna essa uma disciplina mais nitidamente escolar. À luz dessa diferença, espera-se um desenvolvimento mais rápido da Matemática após um período inicial de familiarização. Em segundo lugar, a variável que informa a rede da escola se relaciona de forma diferente com a aprendizagem de Matemática e Língua Portuguesa. No caso da Matemática, abre-se uma diferença no nível e ritmo de Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 77-94, jan./mar. 2014. aprendizagem entre as redes pública e privada, que só aumenta ao longo dos primeiros anos. Em Língua Portuguesa, por outro lado, a diferença que existe entre as redes desde o princípio do 2º ano se mantém ao longo do período sem alteração. Essa diferença poderia estar relacionada a diferenças no nível socioeconômico ou cor dos alunos, mas ao estudar essas relações, encontram-se curvas cujos padrões são parecidos. Por esse motivo, parece razoável supor que a diferença na aprendizagem de Matemática, entre escolas privadas e públicas, diz respeito a diferenças nos processos de ensino. A descoberta das origens das diferenças fica além do escopo deste trabalho. No entanto, a análise dos modelos de valor agregado e de evolução não só confirma estas diferenças como começa a apontar componentes desta. Conclusão As pesquisas educacionais feitas anteriormente só dispunham de um único resultado, não permitindo cálculos de ganhos agregados. As inferências eram feitas contextualizando a proficiência pelo NSE do aluno e de suas unidades de grupamento como turmas e escolas. Com esses trabalhos era possível elencar fatores associados ao desempenho, ainda que houvesse um controle estatístico mais rigoroso, mas não era possível incorporar a informação acerca da ordem dos eventos, de forma a mapear causas e efeitos. Utilizando-se um desenho de pesquisa longitudinal também é possível remover, em parte, o background dos alunos e acompanhar os efeitos das variáveis, identificando se seus efeitos atuam não somente nos patamares do desempenho, como também em seu ritmo de crescimento. Nessas mesmas pesquisas podíamos mensurar as diferenças e a influência dos diversos valores das variáveis no desempenho do aluno, como por exemplo, entre as redes de ensino pública e privada, ou entre os gêneros; porém, não ficava claro se essas diferenças se 93 ampliavam ou reduziam ao longo do tempo. Desta forma não era possível contextualizar o papel da escola na tentativa de neutralizar, ou até mesmo de acentuar, tais processos. Observou-se o aumento nas diferenças de proficiências de grupos de alunos pretos versus não pretos, escola pública versus escola privada em Língua Portuguesa, gênero masculino versus feminino em Matemática, ao longo dos anos escolares. Por outro lado, outras diferenças para outros grupos, caracterizados por outras variáveis, como o NSE, se mantêm ao longo das etapas escolares. Assim sendo, esses resultados trazem um alerta para os sistemas educacionais, pois a escola está longe de produzir a equidade desejada pela sociedade brasileira. A pesquisa GERES apresenta um passo à frente e pode-se afirmar que constitui um estágio intermediário na pesquisa educacional brasileira. Seus resultados vão além das pesquisas transversais observacionais que constituíam quase a totalidade de pesquisas educacionais em grandes amostras no Brasil e prepara terreno para as pesquisas de natureza longitudinal e experimental, embasando as primeiras hipóteses a serem testadas nestas. Referências BONAMINO, Alicia C. Tempos de avaliação educacional: o SAEB, seus agentes, referências e tendências. Rio de Janeiro: Quartet, 2002. BROOKE, Nigel; BONAMINO, Alicia. (Org.). Geres 2005: razões e resultados de uma pesquisa longitudinal sobre a eficácia escolar. Rio de Janeiro, WalPrint, 2011. BRYK, Anthony; RAUDENBUSH, Stephen. Hierarchical linear models: applications and data analysis methods. Newbury Park: Sage, 1992. FRANCO, Creso; ALVES, Fátima; BROOKE, Nigel. Estudo longitudinal sobre qualidade e equidade no ensino fundamental brasileiro (GERES 2005). Revista Ensaio, Rio de Janeiro, n. 61, out/dez 2008. ______. O SAEB — Sistema de Avaliação da Educação Básica: potencialidades, problemas e desafios. Revista Brasileira de Educação, ANPEd, n. 17, p. 127-133, maio/jun/jul/ago 2001. GOLDSTEIN, Harvey. Hierarchical Data Modeling in the Social Sciences. Journal of Educational and Behavioral Statistics. v. 20, n. 2, p. 201-204, 1995. ______ et al. 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Neimar da Silva Fernandes é auxiliar de pesquisa do centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação– CAEd – da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG). Isabela Pagani Heringer de Miranda é aluna da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG). Tufi Machado Soares é professor Associado do Departamento de Estatística e do Programa de Doutorado e Mestrado em Educação, Coordenador de Pesquisa do Caed – Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação, Universidade Federal de Juiz de Fora (MG). Possui doutorado em Teoria Matemática de Controle e Estatística pela PUC - Rio e pós-doutorado em estatística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. 94 Nigel BROOKE; Neimar da S. FERNANDES; Isabela P. H. de MIRANDA; Tufi M. SOARES. Modelagem do crescimento... Processos de significação na elaboração de conhecimentos de alunos com necessidades educacionais especiaisI Maria Inês Bacellar MonteiroII Ana Paula de FreitasIII Resumo Este estudo aborda a temática da educação inclusiva, com interesse nas práticas educacionais orientadas por relações de ensino significativas. Temos como objetivo refletir sobre o papel de educadores e pares diante das possibilidades de desenvolvimento e aprendizagem de alunos com necessidades educacionais especiais. Partimos do pressuposto de que o sujeito interativo elabora conhecimentos sobre objetos em processos necessariamente mediados pelo outro e constituídos pela linguagem, pelo funcionamento dialógico. Assumimos os princípios metodológicos da pesquisa histórico-cultural e utilizamos como forma de análise o que se denomina análise microgenética. Utilizamos um banco de dados composto por filmagens de práticas pedagógicas de uma sala de aula e gravações de reuniões periódicas ocorridas entre uma das pesquisadoras e a professora de um aluno do 1º ano do ensino fundamental, com 8 anos de idade e atraso no desenvolvimento global. Os resultados mostram que houve participação do outro nas atividades propostas, configurando relações intersubjetivas nem sempre harmoniosas e diferentes formas de envolvimento entre a professora e o aluno na dinâmica dialógica. As ações da professora ganham um lugar importante ao reconhecermos a relevância de sua participação no processo de elaboração do conhecimento escolar. Destacamos o papel que o outro representa no processo de ensino e aprendizagem e explicitamos modos de ação que podem contribuir, no âmbito educacional, para tornar o processo de ensino significativo também para os alunos com necessidades educacionais especiais. Palavras-chave Teoria histórico-cultural – Educação inclusiva – Processos de significação – Conhecimento escolar. I- Agradecemos à Fapesp e ao PROESP (Capes) os auxílios recebidos. II- Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba, SP, Brasil. Contato: [email protected] III-Centro Universitário Moura Lacerda, Campinas, SP, Brasil. Contato: [email protected] Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 95-107, jan./mar. 2014. 95 Signification processes in the elaboration of knowledge by pupils with special education needsI Maria Inês Bacellar MonteiroII Ana Paula de FreitasIII Abstract This study deals with the theme of inclusive education, and focuses on the educational practices oriented by significant teaching relations. We have as an objective to reflect upon the role of educators and peers in the face of the possibilities of development and learning of pupils with special education needs. We assume that the interactive subject elaborates knowledge about objects in processes that are necessarily mediated by the other and constituted by the language, by the dialogical functioning. We adopt the methodological principles of historic-cultural research, and we use as a form of analysis what is denominated micro-genetic analysis. We make use of a database composed of video recordings of pedagogical practices in a classroom and recordings of periodical meetings between one of the researchers and the teacher of an eight-year-old pupil of the first year of primary education who had global development delay. The results show that there was participation of the other in the activities proposed, configuring intersubjective relations which were not always harmonious, and different forms of connection between the teacher and pupil in the dialogical dynamics. The actions of the teacher acquired an important aspect when we recognize the relevance of her participation in the process of elaboration of school knowledge. We emphasize the role that the other takes in the teaching and learning process, and we clarify modes of action that can contribute, within the educational sphere, to make the teaching process significant also to pupils with special education needs. Keywords Historic-cultural theory – Inclusive education – Processes of signification – School knowledge. I- The authors wish to acknowledge the support of Fapesp and PROESP (Capes). II- Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba, SP, Brazil. Contact: [email protected] III-Centro Universitário Moura Lacerda, Campinas, SP, Brazil. Contact: [email protected] 96 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 95-107, jan./mar. 2014. A temática da educação inclusiva tem sido amplamente discutida por educadores e pesquisadores, sobretudo a partir de 1996, com a priorização dada ao ensino de alunos com necessidades educacionais especiais na rede regular de ensino (BRASIL, 1996). Entre debates, embates e avanços, é fato que, na educação inclusiva que está em curso, ainda existem muitos desafios a serem vencidos. Como afirma Beyer (2003), há um sentimento de incompletude das redes de ensino – particularmente das escolas e dos professores – ao tentarem fazer cumprir a legislação educacional vigente. Em nossos trabalhos e pesquisas sobre a temática, temos constatado esse sentimento de incompletude a partir de profundas inquietações sobre o fazer cotidiano relatadas a nós pelas professoras com quem trabalhamos. Tomamos como exemplo a fala de uma professora regente de uma classe do 1º ano de ensino fundamental que possui, entre seus alunos, um com necessidades educacionais especiais. Durante um dos encontros realizados com ela, no qual tínhamos o objetivo de refletir sobre as condições de ensino na sala de aula e pensar em indícios das possibilidades de desenvolvimento do referido aluno, a professora nos disse: alternativos e recursos especiais1 adequados para auxiliá-lo na aprendizagem da leitura e da escrita. Seus dizeres trazem indícios de que ela percebe seu aluno como alguém com vontade para aprender; revelam ainda que ela tem consciência de que a família espera da escola – e particularmente da professora – a realização de um trabalho efetivo que permita ao aluno o acesso ao conhecimento escolar. A partir das inquietações explicitadas por essa docente, temos o objetivo de refletir sobre o papel dos educadores e seus pares diante das possibilidades de desenvolvimento e aprendizagem de alunos com necessidades educacionais especiais que estão inseridos na rede regular de ensino. Pretendemos contribuir para uma discussão sobre práticas educativas que sejam orientadas por relações de ensino significativas. Nos dizeres de Smolka (2010, p. 128), ao comparar o ato de ensinar à análise realizada por Vigotski sobre a transformação do movimento de pegar do bebê em gesto de apontar: [...] ensinar seria, assim, um trabalho com signos, um trabalho de significação por excelência, que implica incansáveis gestos indicativos nas orientações dos olhares, nas configurações dos objetos, nas formas de referir, de conceituar. A gente já está em agosto, a maioria dos alunos já está alfabética, já tem alguns lendo... Aí eu me preocupo, assim, [com] o que eu posso fazer mais pra ele, porque ele tá... Eu percebo que ele tem vontade de aprender, mas eu não sei o que posso fazer... Eu tenho receio que [...] a família... O que o pai e a mãe [...] querem [...]? Que ensine a ler e a escrever, aí a gente falou, né? Pra ficar mais um ano comigo, eu percebo que isso é importante pra ele, porque ele se sente tranquilo, se sente seguro, mas, assim, eu falo, será que eu vou conseguir fazer isso? Orientamo-nos pela perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano, sobretudo pela tese de Vigotski sobre a gênese social das funções mentais superiores, ou seja, aquelas tipicamente humanas, bem como pelas ideias do autor sobre a relação entre desenvolvimento e aprendizagem. Em seu manuscrito sobre a psicologia concreta do homem, Vigotski (2000) esclarece sua lei geral do desenvolvimento humano ao apontar sua natureza histórica e social. Ele apresenta sua posição diante do A fala da professora, a nosso ver, revela que ela se sente despreparada para lidar com esse aluno, sobretudo em relação aos caminhos 1- Ao utilizarmos as expressões caminhos alternativos e recursos especiais, remetemo-nos aos estudos de Vigotski (1997) sobre a deficiência e os indivíduos com deficiência. Tais noções serão problematizadas no decorrer deste texto. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 95-107, jan./mar. 2014. 97 desenvolvimento argumentando que “qualquer função psicológica superior foi externa – significa que ela foi social antes de se tornar função, ela foi uma relação social entre duas pessoas” (VIGOTSKI, 2000, p. 24). Para o autor, o desenvolvimento cultural da criança pode ser compreendido em dois planos: primeiro, em um plano social, entre as pessoas; em seguida, “dentro da criança” (p. 26). Nessa afirmação está implícito o conceito de internalização. Pino (2000) busca problematizar o sentido do social e do cultural na obra de Vigotski e salienta que a mediação do outro é condição para o desenvolvimento. Ele afirma que, “segundo Vigotski, o desenvolvimento cultural passa por três estágios ou momentos [...]: o desenvolvimento em si, para os outros e para si” (PINO, 2000, p. 65). O primeiro momento constitui-se pela realidade natural ou biológica da criança. Num segundo momento, essa realidade natural – ou seja, o que está dado – adquire significação para os outros. E o terceiro momento é aquele em que a significação que os outros atribuem ao dado natural tornase significativa para si, isto é, para o indivíduo singular. O exemplo mais característico desse processo nos textos de Vigotski (1987, 1991a, 2000) refere-se ao gesto de apontar. Segundo Smolka (2000), o processo de formação do funcionamento mental dá-se à medida que os sujeitos são afetados por signos e sentidos produzidos nas relações com os outros. As ações humanas adquirem múltiplos significados e sentidos, tornando-se práticas significativas, a depender das posições e dos modos de participação dos sujeitos nas interações. A autora procura problematizar a dinâmica da significação como produção humana de signos e sentidos e discute as consequências dessa dinâmica para as relações de ensino. Para ela, os esforços de Vigotski (1987, 2000) ao propor a emergência da dimensão semiótica – isto é, a produção de signos, o princípio da significação – como chave para se compreender a conversão das relações sociais em função mental trazem implicações radicais 98 para o que se denomina relações de ensino. Nesse sentido, Smolka (2000) compreende o ato de ensinar como um trabalho com signos, um trabalho de significação por excelência, que implica incansáveis gestos indicativos nas orientações dos olhares, nas configurações dos objetos, nas formas de referir e de conceituar. A teoria histórico-cultural traz contribuições importantes sobre a relação entre desenvolvimento e aprendizagem. Vigotski (1987, 1991a) esclarece que o desenvolvimento é suscitado e impulsionado pela aprendizagem, sendo que esta depende de condições de desenvolvimento. Para uma melhor compreensão de tal relação, o autor propõe o conceito de zona de desenvolvimento proximal, cuja principal ideia refere-se à relação existente entre desenvolvimento e aprendizagem e à ação colaborativa de outra pessoa. Segundo ele, a aprendizagem, ao ser realizada em uma ação colaborativa, seja do adulto ou entre pares, cria possibilidades de desenvolvimento. No que concerne ao conceito de zona de desenvolvimento proximal, Freitas (2001, p. 27-28) afirma: O desenvolvimento proximal, visto como desenvolvimento emergente, supõe a participação do outro no processo de aprendizado dos indivíduos, corresponde ao espaço onde ocorrem os processos de elaboração compartilhada. Sendo assim, fica reiterada a tese de que o desenvolvimento psicológico depende das condições sociais em que é produzido. No âmbito educacional, o referido conceito tem sido amplamente utilizado e alguns autores buscam elaborar diretrizes para as práticas educativas (MORTIMER; CARVALHO, 1996 apud FREITAS, 2001; COLAÇO et al., 2007; FERREIRA, 2008). Ancorada nas teses centrais de Vigotski, Góes (1997) apresenta contribuições fundamentais sobre a participação do outro e o papel da linguagem na elaboração do conhecimento. Ela se apoia na concepção de um sujeito interativo Maria Inês Bacellar MONTEIRO; Ana Paula de FREITAS. Processos de significação na elaboração de conhecimentos... que elabora conhecimentos sobre objetos, em processos necessariamente mediados pelo outro e constituídos pela linguagem, pelo funcionamento dialógico. A autora salienta que, no âmbito educacional, as relações intersubjetivas são muitas vezes consideradas de maneira prescritiva e o outro é visto como aquele que sempre ajuda, partilha, guia, cria suportes, estabelece pontes. Porém, o desenvolvimento parece acontecer tanto em acordo quanto em desacordo com as características uniformes, esperadas ou idealizadas das relações entre sujeitos, isto é, ainda que as relações intersubjetivas não sejam harmoniosas. O outro tem um papel contraditório e o jogo dialógico que constitui a relação entre sujeitos não tende a apenas uma direção; abrange circunscrição, expansão, dispersão e estabilização de significados e envolve o deslocamento forçado de certas operações de conhecimento. Consideramos que ainda é preciso refletir mais profundamente sobre o que se espera dos educadores e alunos em relação a essa ação colaborativa. O que vem a ser agir colaborativamente? A ideia de ação colaborativa atrelada ao conceito de significação remete-nos à procura da compreensão sobre as relações que se estabelecem em sala de aula, que permitem a elaboração de novos sentidos pelo grupo de alunos e pelo professor. Baseamo-nos na visão de que a elaboração de conhecimentos dá-se na interação entre sujeitos, em processos mediados pelo outro e pela linguagem. Partimos da ideia de que o conceito de zona de desenvolvimento proximal mostra-se relevante para a discussão, desde que seja considerado parte inseparável do desenvolvimento como processo dialético, fundamentado nas dimensões cultural e semiótica do funcionamento humano. Caminhos metodológicos Neste estudo, assumimos os princípios metodológicos da pesquisa histórico-cultural, tal como proposto por Vigotski (1991a, 1991b). O autor baseia-se na abordagem materialista Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 95-107, jan./mar. 2014. dialética da análise da história humana e aponta uma nova descrição metodológica, focalizando: (1) uma análise do processo em oposição a uma análise do objeto; (2) uma análise que revela as relações dinâmicas ou causais, reais, em oposição à enumeração das características externas de um processo, isto é, uma análise explicativa e não descritiva; e (3) uma análise do desenvolvimento que reconstrói todos os pontos e faz retornar à origem o desenvolvimento de uma determinada estrutura. (VIGOTSKI, 1991a, p. 74) Como forma de análise, utilizamos o que se denomina análise microgenética. Góes (2000) a define como uma forma de construção de dados que requer a atenção aos detalhes e o recorte de episódios interativos, sendo o exame orientado para o funcionamento dos sujeitos focais, as relações intersubjetivas e as condições sociais da situação, o que resulta num relato minucioso dos acontecimentos. Apoiados na perspectiva e nas formas de análise expressas aqui, analisamos dois episódios extraídos do banco de dados das pesquisadoras referente a um estudo maior realizado em uma escola municipal de ensino fundamental de uma cidade do interior do Estado de São Paulo. O referido banco de dados é composto por filmagens de situações de uma sala de aula de 1o ano do ensino fundamental com 23 alunos e gravações de reuniões periódicas entre uma das pesquisadoras e Lourdes,2 a professora do aluno focalizado no estudo. As filmagens foram feitas entre novembro de 2009 a novembro de 2010, considerando-se o período letivo; as reuniões com a professora ocorreram durante o ano de 2010. Realizamos a tarefa de transcrição minuciosa dos dados das filmagens e gravações, procurando revelar indícios das relações intersubjetivas e das condições de produção dos acontecimentos em curso. 2 - Todos os nomes utilizados são fictícios para preservar a identidade dos sujeitos. 99 O aluno é Gil, 8 anos, que na época da pesquisa de campo frequentava o 1o ano do ensino fundamental. Gil nasceu prematuro, pesando 1,1 kg e medindo 30 cm. Segundo relato de sua mãe, ele não apresentou dificuldades motoras: aos 7 meses, já ficava sentado e engatinhava; com 1 ano e 3 meses já andava. Em relação ao desenvolvimento da linguagem oral, a mãe relatou que Gil demorou para falar e as primeiras palavras surgiram quando ele tinha 4 anos. Até então, usava gestos indicativos e balbucios. Segundo o diagnóstico neurológico, Gil apresenta uma má formação do desenvolvimento cortical com agnosia verbal auditiva e apraxia fonoarticulatória.3 Em relação à sua história escolar, em 2008, aos 6 anos de idade, Gil ingressou no 1º ano do ensino fundamental. Em 2009 e 2010, permaneceu no 1º ano e com a mesma professora. Em 2011, passou para o 2º ano. Lourdes, a professora, possui formação em Magistério e cursa Pedagogia em uma universidade privada. É professora da rede escolar municipal desde 2001. Resultados e discussões Com o intuito de refletir sobre as relações que se estabelecem no espaço escolar e que permitem a elaboração de novos sentidos pelo grupo de alunos e pela professora, apresentamos aqui dois episódios. O primeiro refere-se a uma situação ocorrida em sala de aula e o segundo, a um dos encontros realizados entre uma das pesquisadoras e a professora. Optamos pela transcrição em ortografia regular das falas dos envolvidos. Os gestos e as ações dos participantes estão descritos entre colchetes. Episódio 1 Situação: As carteiras estão dispostas em semicírculo. Todos copiam o cabeçalho 3 - A agnosia verbal auditiva refere-se a uma falha no reconhecimento de estímulos linguísticos sem que a audição esteja prejudicada. A apraxia fonoarticulatória é uma desordem na programação motora da fala (MURDOCH, 1997). 100 e a rotina do dia escritos na lousa pela professora. No cabeçalho constam as seguintes informações: nome da cidade; data, com dia, mês e ano; nome da escola; nome da professora e nome do ajudante do dia. Na rotina constam as atividades que serão realizadas ao longo do dia. Gil está sentado entre dois alunos, uma menina e um menino – Jane e Caio –; como os demais colegas, também copia o cabeçalho. A professora está em pé e caminha pela sala, olhando para os cadernos de cada aluno. O caderno de Gil está aberto e ele está escrevendo na página da esquerda, mas, como escreve em letras de forma muito grandes, às vezes ultrapassa para a folha da direita. Isso já ocorreu em outros momentos e a professora já chamou sua atenção para o fato. Quando ela se aproxima, ele começa a apagar a página da direita. 1. Professora: Aqui, ó, aqui tá certinho, aqui... não precisa apagar, faz a letra “i”. O que você escreveu aqui? [Vai apontando com o dedo indicador para cada linha que Gil havia copiado.] 2. Gil: [Não responde.] 3. Professora: Olha lá! [Aponta a lousa.] Esse tá certo. [Indica algo no caderno.] 4. Caio: Aqui. [Indica algo no caderno de Gil.] 5. Professora: É, ele já vai corrigir. [Dirige-se ao aluno Caio e continua a caminhar pela sala.] 6. Gil: [Continua a apagar.] [...] 7. Professora: Só pra quem terminou, viu, Jane. Eu vou passar de novo olhando os cadernos. [Pede para Jane distribuir a atividade do dia para os alunos que já haviam terminado a cópia.] 8. Jane: [Distribui a atividade.] 9. Professora: E você, Gil, cadê o seu? Você já terminou? 10. Gil: [Olha para o caderno e vira a página, voltando para a página correspondente à cópia do dia.] 11. Professora: Terminou? Maria Inês Bacellar MONTEIRO; Ana Paula de FREITAS. Processos de significação na elaboração de conhecimentos... 12. Gil: [Aceno positivo com a cabeça.] 13. Professora: Aqui tá certo, ó. [Apontando algo no caderno dele.] 14. Gil: [Olha para o que a professora está apontando.] 15. Professora: O que você fez aqui? 16. Gil: [Pega a borracha e começa a apagar.] 17. Professora: Re-crei-o [fala de modo silabado]. Faltou uma letra “r” no meio. [Aponta no caderno.] 18. Gil: [Olha para a professora e para o caderno.] 19. Professora: Faz o “r”. [Pega a borracha e apaga algo.] 20. Gil: [Escreve.] 21. Professora: Foi o 3, o 4! [Indicando no caderno de Gil os itens da rotina que ele já havia copiado.] Vê se você consegue escrever. [Apaga o que Gil havia escrito à frente do número quatro e indica o lugar na folha onde deve ser escrito. Observa o caderno e vê que há várias palavras escritas na página da direita; apaga tudo o que está fora da ordem.] Agora é no outro lado, o 4 está aqui, mas tá inteiro aqui, olha lá pra lousa. 22. Gil: [Permanece com o caderno aberto sobre a carteira, observa o movimento da sala por uns instantes e volta a escrever.] 23. Pesquisadora: Acabou? Deixa eu ver. 24. Gil: [Não responde e volta a folhear o caderno. Fecha o caderno e o guarda sob a carteira. Levanta-se, vai até a frente da sala, próximo da professora.] 25. Professora: Que foi, Gil? [Pega sua mão e o conduz à carteira.] Pega o caderno. 26. Gil: [Senta-se novamente, pega seu caderno e o coloca sobre a carteira.] 27. Professora: Só vai ganhar depois que terminar, tá bom? [Referindo-se à folha com a atividade do dia.] 28. seu caderno, procurando a página correta. Abre em uma página.] 29. Professora: É esse o de hoje? [Aponta no caderno de Gil.] Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 95-107, jan./mar. 2014. 30. Gil: [Fica olhando para o que está escrito no caderno.] 31. Professora: É, Gil? [Afasta-se da carteira de Gil e vai até a lousa.] 32. Gil: [Olha para a professora, olha para o caderno, olha para a lousa, vira a página.] 33. Professora: [Aproxima-se novamente e aponta para a página do caderno de Gil.] Ó! [Indica com o dedo algo escrito no caderno.] Tá igual? 34. Gil: [Aceno positivo com a cabeça.] 35. Professora: Tem o “l”? [Vai para a lousa e começa a apontar letra por letra da palavra “linguagem”.] 36. Gil: [Aceno positivo com a cabeça, sem olhar para o caderno.] 37. Professora: Tem o “i”? 38. Gil: [Aceno positivo com a cabeça, sem olhar para o caderno.] 39. Professora: Olha no seu caderno! 40. Gil: [Olha para o caderno.] 41. Professora: Tem o “n”? 42. Gil: [Aceno positivo.] 43. Professora: Tem? E o “u”? 44. Gil: [Aceno positivo.] 45. Professora: Tem o “a”? 46. Gil: [Aceno positivo.] 47. Professora: Tem? [Aproxima-se de Gil e aponta em seu caderno o que Gil havia escrito.] 48. Gil: [Pega a borracha e apaga algo.] 49. Professora: Depois do “u”... O que é que tem lá depois do “u”? Olha lá. [Aponta para a lousa.] 50. Gil: [Olha para a lousa.] 51. Alguns alunos: “A”! 52. Gil: “A”. [Volta a apagar e escreve “a”.] 53. Professora: E depois do “a”? O que vem lá, Gil? 54. Gil: [Apaga novamente algo em seu caderno e escreve outra letra.] 55. Alunos: “G” 56. Professora: O Gil! 57. Professora: E depois do “g”? 58. Gil: [Apaga algo e escreve.] 101 59. Professora: E depois do “g”? 60. Alunos: “E”! 61. Gil: [Apaga algo e completa a palavra “linguagem”. Olha para a lousa.] 62. Professora: Já acabou, Gil. Não tem mais nada nesta linha. Você apagou aquilo que você fez a mais? 63. Gil: [Aceno positivo.] 64. Professora: Apagou todas? 65. Caio: [Aproxima-se e indica no caderno de Gil onde ele deve apagar.] 66. Professora: Mostra pra ele, tá bom? 67. Gil: [Apaga onde o aluno Caio indica.] 68. Caio: [Pega a borracha e apaga o que Gil havia feito a mais na página da direita.] 69. Pesquisadora: Gil, você não vai fazer o 5, ó? Você fez até o 4, faltam o 5 e o 6. [Apontando na lousa o que falta ser feito.] 70. Caio: [Pega o lápis e escreve o número 5 no caderno de Gil.] 71. Pesquisadora: Seu amigo marcou pra você, agora você copia o número 5 da lousa. 72. Gil: [Começa a escrever.] 73. Caio: [Continua a indicar a linha para Gil.] 74. Gil: [Olha na lousa e copia.] 75. Pesquisadora: Isso! 76. Caio: [Pega a borracha e apaga algo que Gil havia escrito errado. Aponta para Gil a linha de baixo.] 77. Gil: [Copia a última linha da rotina.] 78. Pesquisadora: Ele te ajudou? 79. Professora: [Aproxima-se de Gil, fecha o caderno para ele e lhe entrega a folha de atividade, mas neste instante toca o sinal para o recreio.] Gil permanece na cópia do cabeçalho durante todo o primeiro período da aula e não realiza a atividade de linguagem. A professora revela sua preocupação em ajudá-lo a copiar o cabeçalho e a rotina (atividade que havia sido proposta para a classe toda). Durante o episódio, várias vezes a observamos realizar diferentes gestos e ações com o intuito de auxiliá-lo: aproxima-se da carteira de Gil, mostrando o que ele deve escrever; segura em sua mão e o ajuda 102 a grafar a letra desejada; confere com Gil o que ele produziu; apaga ou o orienta a apagar o que escreveu a mais; indica as letras das palavras para o aluno. Os colegas também colaboram para que Gil conclua a tarefa e apropriam-se dos mesmos modos de atuação da professora: indicam, corrigem, apagam, soletram as letras, escrevem por ele. Gil realiza diferentes ações e gestos durante a atividade: olha para a lousa, escreve, apaga o que escreve, pede ajuda para a professora. Não se pode negar que há uma preocupação orientada para que Gil aprenda. Todos querem isso. Embora demore para fazer a cópia, ele a termina com o auxílio da professora e dos colegas. Para refletir sobre essa situação, retomamos as proposições de Vigotski (1987, 2000) acerca da natureza social do desenvolvimento psicológico, quando argumenta que toda função psicológica superior foi antes uma relação social entre duas pessoas. A essa ideia está atrelado o conceito de internalização. Como explicou Pino (2000), Vigotski refere-se a três momentos significativos: o desenvolvimento em si, para os outros e para si. São várias as enunciações de Lourdes na tentativa de organizar as ações de Gil. Por meio de gestos e palavras, ela indica o que deve ser feito e chama a atenção do aluno ora para a lousa, ora para o caderno, com o intuito de que ele realize a cópia. Além disso, aproxima-se da carteira de Gil, toca nele, aprova aquilo que ele escreve corretamente e o questiona sobre o que deve ser reformulado. Gil apropria-se de ações e gestos significativos realizados pela professora e pelos colegas, fazendo ele mesmo tais gestos e ações – apontar, olhar, apagar, escrever, nomear. Assim, em um primeiro momento, temos suas ações significadas pela professora e por seus pares; mas, à medida que essas ações se tornam significativas, convertem-se em ações para si. As interações sociais vividas nesse espaço escolar podem ser compreendidas como um trabalho de significação que implica incansáveis gestos indicativos – gestos de ensinar, conforme aponta Smolka (2010). Maria Inês Bacellar MONTEIRO; Ana Paula de FREITAS. Processos de significação na elaboração de conhecimentos... Examinando o episódio, podemos afirmar que durante todo o tempo houve participação do outro para a realização da tarefa proposta; todavia, conforme aponta Góes (1997), as relações intersubjetivas nem sempre são harmoniosas e, na dinâmica dialógica, os envolvidos participam de diferentes formas. Quando a professora aproxima-se da lousa e aponta letra por letra da palavra linguagem, notamos movimentos de resistência, insistência e persistência de Gil, dos colegas e da própria professora, movimentos estes que culminam na escrita da palavra. Na análise da dinâmica interativa, consideramos que foram criadas possibilidades de caminhos diferenciados para a participação de Gil na atividade proposta. Esse movimento conjunto da professora e dos colegas envolve Gil numa rede de significações própria das relações de ensino de nossas escolas. Entretanto, ao analisarmos o episódio a seguir, constatamos que a professora revela, na conversa com a pesquisadora, a dúvida sobre o efeito de suas ações e a incerteza sobre a aprendizagem de Gil. Vemos aí estampada sua angústia. Episódio 2 Situação: Durante um dos encontros, a pesquisadora mostra para a professora um trecho de uma filmagem na qual ela contava a história de Chapeuzinho Vermelho para toda a classe. Na ocasião filmada, Gil mostra-se especialmente participativo e envolvido com a atividade. Após assistirem ao vídeo, elas conversam sobre o aluno e sobre os momentos em que ele participa ou não das atividades propostas. 1. Professora: Eu, assim, por exemplo, nessa [referindo-se à filmagem assistida] dá pra perceber que ele entende, ele fala, ele compreende o que está acontecendo. Só que tem momentos na sala em que eu falo com ele e ele não se manifesta, sabe? Às vezes, quando eu faço alguma pergunta, ele faz assim: “deixa eu ver” [coloca a mão no queixo, como se estivesse pensando], “deixa eu ver”... Se deixar, ele vai ficar 10, Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 95-107, jan./mar. 2014. 20 minutos assim. Então, eu já experimentei falar “pessoal, vamos ouvir o que ele tem pra falar”. Então agora é o momento dele, então eu fiquei, né? Talvez ele precise de mais um tempo pra expor a ideia dele, mas não, eu fiquei 5 minutos assim; ele: “deixa eu ver”... Aí ele começa a rir, aí ele abaixa a cabeça, então ele não fala. Eu tenho que fazer assim, por exemplo, se é uma votação pra um animal que eles querem saber sobre o animal, que eu trago um texto científico, aí eu falo “qual que você quer, Gil?” Aí ele fica “deixa eu ver” e nada... Dá risada, olha o colega, dá risada de novo... Aí eu falo assim: “Olha, a gente tem esses daqui”. Aí eu dou as opções pra ele: “cachorro, gato, borboleta, vagalume, qual que você quer?”. Aí ele fica “hum, hum” [gesto de pensar], aí demora mais, aí eu falo, “é cachorro?”. Aí ele fala “não”. “É gato?”. “Não”. Aí quando chega no que ele quer, ele faz assim (professora faz gesto afirmativo). Então eu não sei se ele tem vergonha de falar, se ele tem dificuldade para falar. É isso que eu queria entender. Por que ele não fala? Então eu tenho que dar as opções, eu tenho que ficar, sabe, tentando de alguma maneira descobrir a opinião dele, a ideia dele. 2. Pesquisadora: Então, eu entendo isso. Lógico que o que a gente quer é que a criança fale, que a criança participe... 3. Professora: Eu gostaria que ele falasse! 4. Pesquisadora: E aí eu acho que tem uma questão que eu já falei antes: ele é uma criança que precisa mesmo do outro. 5. Professora: Dessas opções. 6. Pesquisadora: Ele precisa de formas pra ajudar ele, parece que ainda ele sozinho, pra autonomia, ele não fala, “eu quero estudar a borboleta”. Mas se você vai dando as opções, ele chega lá, ele tem a opinião dele, mas ele precisa do outro. 7. Professora: Aí eu tenho dúvida, será que eu estou fazendo certo isso? Eu dando as opções, ou será que eu tenho que forçar ele a falar? Então, essa é a minha situação. 103 8. Pesquisadora: Mas se a gente pensar, por exemplo, de coisas... Você é quem tem a história dele. Como você me falou do cabeçalho... Agora ele voltou [referindo-se à volta das férias], ele não está mais assim. Ele já está copiando. Então já houve situações em que você precisou muito dessa intervenção, de dar essas pistas, de mostrar, ensinar. Ele precisa de quem o ensine. E que agora ele já se vira... 9. Professora: Então é bom o que eu faço? 10. Pesquisadora: Eu acho que é esse o caminho. [...] 11. Pesquisadora: Eu penso assim, o espaço da sala de aula é um espaço muito rico e muitas coisas vão ocorrendo ao mesmo tempo. Se a gente pensar nessa questão da inclusão, ele é mais um aluno que está lá, faz parte daquela sala de aula, não é um aluno que você vai trabalhar com ele isoladamente; e se a atividade é essa, de escolher os animais, então é isso. Qual é o jeito de fazer? Então, são esses caminhos que é preciso descobrir mesmo. Como ele vai fazer? Como ele vai descobrir? Essas atividades que envolvem a linguagem, a oralidade, são muito importantes! [...] 12. Professora: Agora, por exemplo, quando ele precisa de alguma coisa, ele fala assim: “Pessoal...”. Aí todo mundo: “O que, Gil? Fale, Gil”. Aí ele tem que mostrar, tem que apontar. Ele já consegue chamar os colegas. É uma coisa que ele não fazia no ano passado. Ele não chamava o pessoal. Quando ele quer uma borracha, uma coisa, aí todo mundo vira pra ele: “O que você quer?”. Aí ele faz assim: o que ele quer, ele aponta, mostra. 13. Pesquisadora: Isso é importante, como ele usa, é a possibilidade de linguagem dele, e que isso seja significado. E aí pra gente poder pensar, o que é importante? A interação, essa relação dialógica, essa troca entre todos da sala de aula, professores e alunos, que ela possa acontecer e cada um vai participar disso com os recursos que tem. [...] 104 14. Pesquisadora: O que mudou nele, nessa questão da escrita? O que ele não sabia antes, que ele já sabe, desde quando você o conheceu? 15. Professora: Ele já tá... Quando eu o conheci ele usava letras aleatoriamente... Ele usava letras pra desenhar... Ele não sabia o que era aquilo... Ele repetia as atividades de leitura... 16. Pesquisadora: Ele até sabia nomear as letras? 17. Professora: É, mas ele não via função. Eu percebia isso, é uma coisa assim, o “a”, o “b”... Acho que foi uma coisa tão repetitiva pra ele no 1º ano que ele conseguiu, isso ele apropriou. Aí o que eu tive dificuldade, ele ainda não usava o caderno, mesmo com aquela folha, com a linha mais grossa, então, era uma atividade diferente pra ele... É... Que mais? Eu senti que comigo ele conseguiu se expressar de outras formas, primeiramente, desenhava lindamente, atividade de música, nossa, se saía muito bem, eu sempre elogiando. Então, ele conseguiu superar até os outros em outras áreas. Então, desenho, ele adora desenhar, ele se sente mais tranquilo, os amigos dele falam: “Nossa, Gil, que lindo, deixa eu ver”. Ele adora esse momento do desenho, ele adora o momento de música, ele tem uma noção de ritmo, que é... nossa... sabe, é mil! Aí eu percebi que nesses momentos e na relação comigo também, de fazer carinho, de ficar perto, de querer estar junto e eu com ele e isso aflora também comigo, aí a preocupação qual foi? E escrever, como nós vamos fazer? [...] Daí comigo agora ele consegue entender que as letras existem pra gente se expressar, ele sabe isso hoje, que o alfabeto é usado pra quê? Não é pra desenhar o alfabeto, porque ele desenhava o alfabeto antes. Pra que que existe o alfabeto? Hoje ele tem essa noção. Ele usa o alfabeto pra escrever, pra colocar o que eu penso, falar do que eu quero escrever, uma frase, né? Maria Inês Bacellar MONTEIRO; Ana Paula de FREITAS. Processos de significação na elaboração de conhecimentos... No início do episódio, nota-se que a professora revela acreditar na capacidade de seu aluno. Ela quer auxiliá-lo a encontrar um modo de se comunicar na sala de aula e, para isso, vale-se de algumas estratégias: dá tempo para ele pensar, dá opções para ele escolher o que quer dizer. Todavia, ela tem dúvidas em relação ao seu modo de atuação e questiona: “Será que eu estou fazendo certo isso?”. A pesquisadora ressalta a importância da participação do outro quando Gil ainda não consegue realizar a tarefa sozinho e faz indagações para a professora que podem ajudá-la a avaliar aquilo que já mudou em Gil, o que ele já aprendeu e o que ainda é difícil para ele. Ela também reflete sobre os caminhos alternativos de aprendizagem e indica que as ações realizadas pela professora podem ter ajudado na participação de Gil nas atividades e em suas conquistas. O questionamento da pesquisadora sobre o desenvolvimento de Gil – “o que mudou nele [...] o que ele não sabia antes, que ele já sabe [...]?”– auxiliou Lourdes a refletir sobre o processo de desenvolvimento de seu aluno e a constatar que há conceitos escolares que Gil já conhece – ou seja, que já estão consolidados – e momentos em que ele ainda precisa do outro para elaborar seus conhecimentos. Diz ela: “ele usava letras aleatoriamente [...] pra desenhar [...] ele não via função [...] isso ele apropriou [...] hoje ele tem essa noção, ele usa o alfabeto pra escrever”. Chamamos a atenção para a semelhança entre as ações da pesquisadora nesse episódio e as ações da professora no episódio anterior. A pesquisadora relaciona-se com a professora da mesma forma como esta se relaciona com Gil: apontando, questionando, chamando a atenção para o que é relevante. Conforme já apontamos nas análises sobre o episódio 1, notamos que durante as relações entre Gil, a professora e seus colegas há momentos mais harmoniosos e situações mais conflitivas, que não permitem afirmar se houve ou não desenvolvimento em Gil. No episódio 2, pelos dizeres da professora Lourdes, constatamos que ela age buscando garantir Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 95-107, jan./mar. 2014. a Gil o acesso ao conhecimento escolar. Retomamos aqui a noção de desenvolvimento proximal (VIGOTSKI, 1991a), que, vista de maneira prospectiva, supõe a participação do outro no processo de aprendizagem, em situações de elaboração partilhada. Atrelamos a essa ideia as considerações pertinentes de Góes (1997) sobre o papel contraditório do outro no processo de elaboração do conhecimento. As ações da professora de Gil ganham um lugar importante se reconhecermos a relevância de sua participação no processo de elaboração do conhecimento escolar. É ela quem dá o tom, quem mostra para Gil, por meio de suas falas, ações e posturas, que é importante copiar o cabeçalho, reconhecer as letras, escrever. A professora escolheu um caminho para seguir: ficar perto, apontar, olhar, nomear, mostrar, escrever, esperar por Gil. Outros caminhos e/ou recursos poderiam ser utilizados, melhores ou piores, mais fáceis ou mais difíceis. O importante é garantir a qualidade de vivência do aluno com necessidades educacionais especiais, considerando sempre que, acima do caminho que se escolha ou do recurso especial que se utilize, a linguagem, os signos e os sentidos estão partilhados e elaborados nos diversos contextos. Considerações finais Pensamos que ainda é preciso refletir mais profundamente sobre o que se espera dos educadores e alunos em relação a essa ação colaborativa. O que vem a ser agir colaborativamente? A ideia de ação colaborativa atrelada ao conceito de significação nos remete à procura da compreensão sobre as relações que se estabelecem em sala de aula, que permitem a elaboração de novos sentidos pelo grupo de alunos e pelo professor. É possível afirmar que há uma ação colaborativa ocorrendo na sala de aula e que há interesse e preocupação da professora nesse sentido. Mas como essas ações se atrelam ao processo de significação? Quais são as possibilidades de elaboração de novos sentidos? O 105 estudo aqui apresentado mostrou que as possibilidades de ação residem nos processos interativos e nas significações produzidas na dinâmica escolar. Envolvem uma inter-relação de professores e alunos que buscam a constituição dos múltiplos sentidos partilhados no contexto escolar. Problematizar a possibilidade de elaboração de novos sentidos, a nosso ver, torna-se central para a compreensão dos caminhos alternativos de aprendizagem e dos recursos especiais referidos por Vigotski (1997) em suas proposições sobre as possibilidades de aprendizagem de pessoas com deficiência. Para o autor, a superação das dificuldades encontra-se nas relações sociais e nas mediações proporcionadas pelo outro, por signos e instrumentos, ou seja, pela mediação social-semiótica. Ressaltamos aqui que a professora, ao refletir junto com a pesquisadora sobre suas próprias ações, consegue compreender sua participação no processo de significação e desenvolvimento de seu aluno. Assim, destacamos o importante papel que o outro tem no processo de ensino e aprendizagem. Vigotski afirma que as leis gerais de desenvolvimento são iguais para todas as crianças, ou seja, a criança aprende na relação social com o outro. No caso das crianças com deficiência, isso não será diferente. Explicitar modos de ação que permitam criar formas culturais singulares pode contribuir, no âmbito educacional, para tornar o processo de ensino significativo também para os alunos com necessidades educacionais especiais. Referências BEYER, Hugo Otto. A educação inclusiva: incompletudes escolares e perspectivas de ação. Revista Cadernos de Educação Especial, Santa Maria, n. 22, p. 1-9, 2003. Disponível em: <http://coralx.ufsm.br/revce/ceesp/2003/02/r3.htm>. Acesso em: 22 mar. 2012. BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, n. 248, seção 1, p. 27.833, 23 dez. 1996. 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Recebido em: 11.06.2012 Aprovado em: 14.11.2012 Maria Inês Bacellar Monteiro é doutora em Psicologia e docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de Piracicaba. Ana Paula de Freitas é doutora em Educação e docente do Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro Universitário Moura Lacerda. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 95-107, jan./mar. 2014. 107 Dicionarização da língua brasileira de sinais: estudo comparativo iconográfico e lexical Cássia Geciauskas SofiatoI Lucia Helena ReilyII Resumo A língua brasileira de sinais (Libras) utilizada pela comunidade surda no Brasil é uma língua de modalidade espaço-visual cuja representação gráfica comumente se dá por meio de imagens em dicionários impressos e em meio digital. No Brasil, o primeiro dicionário de língua de sinais de que se tem notícia é a Iconographia dos signaes dos surdos-mudos, que data de 1875. A partir da elaboração dessa obra, outras surgiram e foram se constituindo como materiais de referência para o ensino e o aprendizado da língua em questão. O presente trabalho objetiva, com base em dicionários de Libras que servem de referência, analisar e discutir a constituição histórica do gênero no Brasil a partir da identificação de características e fragilidades em relação à iconografia e à lexicografia de tais obras, fatores que podem interferir no ensino e no aprendizado dos sinais nos cursos de graduação. Do ponto de vista da abordagem do problema, esse estudo é qualitativo e caracteriza-se como documental. Foram selecionados cinco dicionários de Libras, pautando-se no critério da indicação bibliográfica em disciplinas de Libras em cursos de graduação. As categorias estabelecidas para a análise priorizaram a questão da representação das imagens (a iconografia) e os aspectos lexicais que as compõem. Por meio do estudo, observouse que as obras analisadas apresentavam características bastante semelhantes em relação à apresentação, à constituição das imagens e aos aspectos lexicais, desafiando os profissionais que trabalham com esse gênero de ilustração. Palavras-chave Língua brasileira de sinais — Surdez — Dicionários. I- Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Contato: [email protected] II- Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil. Contato: [email protected] Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 109-126, jan./mar. 2014. 109 Brazilian sign language dictionaries: comparative iconographical and lexical study Cássia Geciauskas SofiatoI Lucia Helena ReilyII Abstract Brazilian sign language as used by the deaf community in Brazil is a visual spatial modality language; graphic representations of this language usually consist of images in printed and digital dictionaries. In Brazil, the first known sign language dictionary is the Iconographia dos Signaes dos surdos-mudos printed in 1875. After this work, other dictionaries followed and they became part of the reference materials used for teaching sign language. Based on the Libras dictionaries that serve as references, the present study aims to analyze and discuss the historical constitution of this publication genre in Brazil. Characteristics and weaknesses related to the iconography and lexicography of these publications are identified as aspects that may interfere with learning signs in undergraduate courses. Regarding how we have approached the theme, this is a qualitative study, supported by documentary methodology. Five Libras dictionaries were selected, based on the criteria that these publications have been selected as bibliographic references in Libras courses at the undergraduate level. The categories for analysis mainly focus on issues related to the representation of the images (iconography) and to the lexical aspects that make up the signs. We were able to see that the selected works present similar characteristics, regarding their presentation, the constitution of the images and lexical aspects that make up the signs, but the dictionaries challenge professionals that work with this genre of illustration, because reading the images is not always easy to accomplish. Keywords Brazilian sign language — Deafness — Dictionaries. I- Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Contact: [email protected] II- Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil. Contact: [email protected] 110 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 109-126, jan./mar. 2014. A consulta a dicionários dos mais variados tipos, quando necessária, é uma prática corrente dos usuários de uma língua, assim como das pessoas interessadas em algum assunto específico. Em relação aos dicionários de línguas, estes têm se constituído na cultura ocidental, de acordo com Bagno (2011, p. 119), como “um dos principais instrumentos de descrição, prescrição, codificação e legitimação do modelo idealizado de uma língua correta”. Da mesma forma que as línguas orais, as línguas de sinais, línguas de modalidade espaço-visual utilizadas pelas comunidades surdas no mundo todo, foram demandando registros ao longo da história, quer para seu ensino, quer para difusão entre surdos e ouvintes interessados. O sentido atribuído por Bagno (2011) pode ser observado também nos dicionários de línguas de sinais, apesar das peculiaridades estruturais que apresentam. Cada vez mais, e principalmente após a homologação da Lei nº 10.436 em 2002, que reconhece a língua brasileira de sinais (Libras) como língua da comunidade surda do Brasil, a publicação de dicionários tem sido promovida no país. Historicamente, o primeiro dicionário de língua de sinais que surgiu no Brasil foi a Iconographia dos signaes dos surdos-mudos, de autoria de Flausino da Gama, em 1875. O autor era surdo e estudante do Imperial Instituto dos Surdos-Mudos, localizado na cidade do Rio de Janeiro. A obra foi produzida por meio de litografia, técnica de gravura muito utilizada no Brasil no século XIX. Trazia como conteúdo 382 verbetes ilustrados, classificados por meio de indexação semântica, e estampas que apresentavam uma descrição verbal correspondente aos verbetes listados, com o intuito de auxiliar o leitor/aprendiz na realização dos sinais propostos. De acordo com Leite (apud GAMA, 1875, p. 2), Flausino, ao visualizar a obra de um surdo francês chamado Pierre Pélissier, que fora professor no Instituto de Paris, “manifestou o interesse de reproduzir as estampas para os falantes conversarem com os surdos-mudos”. A obra de Pierre Pélissier Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 109-126, jan./mar. 2014. foi determinante e funcionou como referência para a elaboração do dicionário de Flausino. Em estudo recente (SOFIATO, 2011), verificouse que a obra de Flausino é uma cópia direta do original de Pélissier, trazendo o mesmo léxico, traduzido da língua francesa para a língua portuguesa. À época, tal dicionário foi produzido com o auxílio de influentes litógrafos, entre eles Eduard Rensburg, e com a cessão da Typographia Universal dos irmãos Eduard e Heinrich Laemmert para a realização das litogravuras. Após a elaboração do dicionário de Flausino, outros surgiram ao longo da história da educação dos surdos no Brasil. Entretanto, observa-se um longo período de tempo entre a primeira publicação e as demais que foram ganhando visibilidade, o que se deve, provavelmente, à inibição no uso de sinalização na educação de surdos após o Congresso de Milão, em 1880. Felipe (2000) refere que em 1969 foi publicado outro material sobre Libras, o dicionário intitulado Linguagem das mãos, de Eugênio Oates. Tal material, assim como o de Flausino da Gama, sofreu influência de outra língua de sinais – nesse caso, a americana –, embora tenha sido elaborado no Brasil por meio de uma pesquisa realizada pelo autor. Esses dois livros foram, durante décadas, o material didático utilizado pelos instrutores surdos para ensinarem sua língua e, talvez por essas obras trazerem uma seleção de fotografias ou desenhos de sinais da LIBRAS com explicações, a metodologia que vem sendo utilizada para ensinar esta língua tem sido somente a apresentação de sinais e tradução dos mesmos. (FELIPE, 2000, p. 1) Na atualidade existem diversos dicionários impressos de Libras distribuídos pelo território nacional, elaborados basicamente por meio do uso de imagens. Nosso interesse no gênero de dicionários de sinais surgiu quando verificamos as dificuldades de interpretação das imagens de dicionários de Libras por 111 parte de alunos dos cursos de pedagogia e Fonoaudiologia em disciplina de Libras. A princípio, imaginávamos que a produção manual de sinais a partir das imagens seria fácil, mas vimos que pessoas com pouco contato com surdos revelaram dificuldades em entender as imagens e, consequentemente, em realizar a configuração manual e os movimentos previstos nos sinais. Por se tratar do ensino de uma língua, a adoção de dicionários na referida disciplina é uma prática comum que tem por finalidade oferecer um material de apoio ao professor e um material de consulta ao aluno. Após a obrigatoriedade do oferecimento da disciplina de Libras nos cursos de formação de professores e de fonoaudiologia por meio do Decreto-Lei nº 5.626 de 2005, a busca por boas referências bibliográficas tem sido uma constante e, ao mesmo tempo, algo desafiador, tendo em vista a variedade de obras presentes no mercado nacional e a forma de constituição de algumas delas. Para ouvintes que se utilizam dos dicionários de línguas de sinais, os verbetes podem servir como suporte de memória, principalmente quando o professor fluente em Libras, seja ele surdo ou ouvinte, apresenta sinais novos em contexto de conversação. Os alunos podem praticar os sinais aprendidos e explorar o léxico novo. Entretanto, é importante lembrar que os dicionários contêm palavras isoladas e não combinadas em construções frasais específicas da língua. A tentativa de formar frases semelhantes ao português com sinais de Libras gera equívocos gramaticais, pois Libras e português são línguas de estruturas diferentes. Já no caso dos surdos, que podem estar mais familiarizados com a interpretação de sinais desenhados, os dicionários podem funcionar para a aprendizagem de sinais novos ou para tirar dúvidas, mas, ainda assim, a consulta a um usuário com maior domínio pode se fazer necessária para se confirmar a correta realização dos movimentos ou o significado dos verbetes escritos em português. Mesmo na 112 era da imagem digital, os dicionários de Libras impressos ainda são bastante consultados, com edições novas mais atualizadas e completas em construção a cada ano, o que demonstra a pertinência de analisá-los. O presente trabalho objetiva, com base em dicionários de Libras que servem de referência, analisar e discutir a constituição histórica do gênero no Brasil a partir da identificação de características e fragilidades em relação à iconografia e à lexicografia de tais obras, fatores que podem interferir no ensino e no aprendizado dos sinais nos cursos de graduação. Para Turazzi (2009, p. 50), iconografia: compreende tanto a(s) arte(s) e a técnica de representação através da imagem, quanto a própria documentação (um conjunto de imagens) resultantes dessa atividade. No presente estudo, faremos uso desse termo para designar as representações visuais encontradas nos dicionários de Libras. Já o termo lexicografia aqui empregado se refere, de acordo com Borba (2003, p. 15), [...] à técnica de montagem de dicionários, que se ocupa de critérios para a seleção de nomenclaturas ou conjuntos de entradas, de sistemas definitórios, de estruturas de verbetes, de critérios para remissões, para registro de variantes, etc. Não será realizada uma comparação de itens lexicais entre os dicionários, nem uma análise da pertinência das escolhas; o léxico é indicado para situar a natureza de cada obra. Método Ghedin e Franco (2008, p. 26) pontuam que o método, numa perspectiva filosóficoepistemológica, “propõe os fundamentos para o exercício de uma investigação”. Do ponto de vista da abordagem do problema, este estudo é qualitativo e caracteriza-se como documental, Cássia Geciauskas SOFIATO; Lucia Helena REILY. Dicionarização da língua brasileira de sinais: estudo comparativo... sendo o documento aqui entendido em seu sentido mais amplo (KOSSOY, 2012), transmitido em forma de texto e também de imagem. A fim de selecionar as obras para a análise, foram levantados com quatro docentes de três universidades (uma pública e duas privadas da cidade de Campinas) os dicionários de referência utilizados nos últimos cinco anos na disciplina de Libras nos cursos de pedagogia e de fonoaudiologia. Com base nas indicações dos docentes, selecionaram-se as seguintes obras: Linguagem das mãos (1969); Livro ilustrado de língua brasileira de sinais: desvendando a comunicação usada pelas pessoas com surdez (2009); Comunicando com as mãos (1987); e Dicionário enciclopédico ilustrado trilíngue: língua de sinais brasileira (2001). A obra Iconographia dos signaes dos surdos-mudos (1875) foi incluída como um parâmetro histórico para verificarmos uma possível constituição de tradição iconográfica, já que 10% dos verbetes nela presentes ainda compõem o léxico da Libras (SOFIATO, 2011). Alguns docentes mencionaram que, a partir da publicação do Dicionário enciclopédico ilustrado trilíngue, dicionários como Linguagem de sinais, publicado pela Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, deixaram de ser utilizados como recurso didático. Outra obra não analisada foi o Dicionário língua de sinais: a imagem do pensamento, devido ao fato de apresentar outra lógica de indexação, qual seja: por configuração de mão, destoando marcadamente dos dicionários selecionados. Para nortear as análises, foram estabelecidos os seguintes eixos: a) Informações gerais: ano de publicação, autor/ilustrador/fotógrafo, local de publicação, quantidade de sinais apresentados, forma de indexação, léxico, textos introdutórios e textos complementares. b) Tratamento dado à informação visual: sistema de representação, características da figura-referência (gênero, aspecto e destaque às expressões faciais) e uso de recursos gráficos. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 109-126, jan./mar. 2014. Com base nos dados apresentados, partiuse para as análises em busca de um entendimento do processo de constituição de uma iconografia para a língua de sinais brasileira por meio dos trabalhos produzidos após a primeira obra no país, em 1875, e de seu impacto no processo de ensino e aprendizagem da Libras. A partir do delineamento de categorias formadas por núcleos de sentido, a intenção foi estabelecer as relações entre os dados apresentados e os referenciais teóricos estabelecidos para a pesquisa. Andrade (1999, p. 136) refere que [...] os dados não apresentam importância em si mesmos; a relevância está no fato de, através dos dados, chegar-se às conclusões, procedendo-se a avaliações e generalizações; inferências de relações causais que conduzem a interpretação. Dados coletados nas obras Obra 1: Iconographia dos signaes dos surdos-mudos • Ano de publicação: 1875 • Autor e ilustrador: Flausino José da Costa Gama • Local de publicação: Rio de Janeiro (Tipographia Universal de E. & H. Laemmert) • Quantidade de sinais apresentados: 382 • Forma de indexação: Semântica • Léxico: Alfabeto manual dos surdos-mudos (datilologia), alimentos e objetos de mesa, bebidas e objetos de mesa, objetos para escrever, objetos de aula, individualidade e profissões, animais, pássaros, peixes e insetos, adjetivos, pronomes e os três tempos absolutos do indicativo, verbos, advérbios, preposições e conjunções, interjeições e interrogações. • Textos introdutórios: A obra de Flausino da Gama apresenta um breve prefácio com os objetivos pelos quais foi elaborada. O prefácio foi escrito por Tobias Leite, diretor do Instituto Imperial dos Surdos-Mudos na época em que Flausino da Gama foi aluno. • Textos complementares: A obra de Flausino da Gama, após a apresentação de cada estampa, 113 contém uma página com explicações sobre a forma de realização dos sinais apresentados. Essas explicações são numeradas de acordo com os respectivos sinais, descrevendo-os e auxiliando o leitor no entendimento e na produção manual dos mesmos. • Sistema de representação: Desenho linear em litografia (ocasionalmente de corpo inteiro, de acordo com a especificidade do sinal, e destacando algumas partes do corpo, tais como: cabeça, tronco, mãos, dedos). Apresenta a representação pictórica da forma de realização do sinal. • Características da figura-referência: Gênero: Masculino. Não há presença de figura feminina na obra. Aspecto: Não há um padrão. A figura-referência se apresenta jovial em determinados sinais e mais velha em outros. Em alguns, ainda, apresenta traços de uma criança. Destaque às expressões faciais: Há uma tentativa de representar expressividade nos rostos correspondendo ao significado do sinal. Uso de recursos gráficos: Utiliza setas, pontilhados, zigue-zagues, linhas retas e linhas curvas. Figura 1 – Algum • Quantidade de sinais apresentados: 1.258 • Forma de indexação: Semântica • Léxico: Alfabeto manual, verbos, substantivos, cores, homem e família, alimentos e bebidas, animais, o mundo e a natureza, religião, o tempo, regiões do mundo (alguns países, nacionalidade), estados brasileiros (territórios federais e capitais), vestuário e acessórios, esportes e jogos recreativos, antônimos, e números. • Textos introdutórios: A obra de Eugênio Oates apresenta um prefácio com algumas orientações para o leitor. A apresentação foi escrita pelo Padre Vicente de Paula P. Burnier. • Textos complementares: Após a apresentação de cada verbete, o material de Oates inclui uma legenda que tem por finalidade explicar a forma de realização do sinal. • Sistema de representação: Por meio da fotografia, apresenta a representação da forma do sinal (composição quirêmica) e dá destaque a algumas partes do corpo – tais como cabeça, tronco, mãos e dedos – quando estas são relevantes para a produção do sinal em questão. • Características da figura-referência: Gênero: Masculino. Não há presença de figura feminina na obra. Aspecto: Há um padrão. A figura-referência é a mesma para todos os sinais. Um senhor de meia-idade vestido com um terno preto. Destaque às expressões faciais: Não há tentativa aparente de representar expressividade no rosto correspondendo ao significado do sinal. Uso de recursos gráficos: Utiliza setas, pontilhados, zigue-zagues, linhas retas e linhas curvas. Figura 2 – Cochilar Fonte: Gama ( 875). Obra 2: Linguagem das mãos • Ano de publicação: 1969 • Autor: Eugênio Oates • Fotógrafo: Esdras Batista • Local de publicação: Aparecida do Norte (SP) 114 Fonte: Oates (1969) Cássia Geciauskas SOFIATO; Lucia Helena REILY. Dicionarização da língua brasileira de sinais: estudo comparativo... Obra 3: Livro ilustrado de língua brasileira de sinais: desvendando a comunicação usada pelas pessoas com surdez (volume 1) • Ano de publicação: 2009 • Autor e ilustrador: Márcia Honora e Mary Lopes Esteves Frizanco. Revisão especializada: Flaviana Borges de Silveira Saruta (surda) • Local de publicação: São Paulo • Quantidade de sinais apresentados: 1.247 • Forma de indexação: Semântica • Léxico: Alfabeto manual, números, calendário, identidade, pessoas/família, documentos, pronomes, lugares, natureza, cores, escola, casa, alimentos, bebidas, vestuário/objetos pessoais, profissões, animais, corpo humano, higiene, saúde, meios de transporte, meios de comunicação, lazer/esportes, instrumentos musicais, verbos, negativos, adjetivos/advérbios, localidades, países/continentes. • Textos introdutórios: Essa obra apresenta vários textos introdutórios. Inicia-se com uma apresentação que aborda os conteúdos contidos na obra. A seguir, há um texto que apresenta o conceito de surdez e, sumariamente, as abordagens educacionais da surdez (Oralismo, Comunicação Total e Bilinguismo); outro texto destaca a história da educação dos surdos no mundo com base nos períodos históricos (Antiguidade, Idade Moderna e Idade Contemporânea, especificamente o século XX). Finaliza esse tópico com a educação de surdos no Brasil. Por fim, apresenta as Leis em vigência no Brasil relacionadas à surdez (com ênfase no Decreto-Lei nº 5.626 de 22 de dezembro de 2005) e encerra com a conceituação de língua de sinais e língua brasileira de sinais. • Textos complementares: Após a apresentação de cada verbete, há a descrição da forma de realização de cada sinal, tomando-se como base os parâmetros que constituem as línguas de sinais, a saber: configuração de mãos, ponto de articulação, movimento e orientação. • Sistema de representação: Desenho linear. Apresenta a representação pictórica da forma do sinal (composição quirêmica) e, ao lado, Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 109-126, jan./mar. 2014. a representação pictórica do significado do sinal (desenho naturalista). É feito destaque a algumas partes do corpo da figura-referência, tais como cabeça, tronco, mãos e dedos. • Características da figura-referência: Gênero: Masculino e feminino, mas há predominância da figura masculina. Aspecto: Observamos que há um padrão. A figura-referência apresenta-se jovial em alguns sinais e mais velha em outros (homens e mulheres). Destaque às expressões faciais: Há uma ênfase maior na expressão facial das figuras-referência cujo sinal necessita mais da expressão facial. Uso de recursos gráficos: Utiliza setas, pontilhados, zigue-zagues, linhas retas e linhas curvas. Figura 3 – Bebidas Fonte: Honora; Frizanco (2009) Obra 4: Comunicando com as mãos • Ano de publicação: 1987 • Autor e ilustrador: Não há menção de autor. A ilustradora é Judy Ensminger. • Local de publicação: Piracicaba (SP) • Quantidade de sinais apresentados: 574 • Forma de indexação: Há evidências de indexação semântica, mas a obra não possui subdivisões. • Léxico: Alfabeto manual, números, família, objetos de casa, bebidas, frutas, alimentos, verbos, 115 natureza, adjetivos, meios de transporte, animais, cores, pronomes pessoais, pronomes possessivos, profissões, locais, substantivos comuns, pronomes interrogativos, calendário e religião. • Textos introdutórios: O material apresenta um prefácio que faz comentários sobre a surdez e dá algumas orientações sobre a aprendizagem da criança surda; também contém um texto denominado Instruções, que tem por finalidade orientar os pais de crianças surdas, escrito por John E. Peterson. • Textos complementares: Não apresenta. • Sistema de representação: Desenho linear. Apresenta a representação pictórica referente ao significado do sinal e também a representação pictórica da forma do sinal (composição quirêmica). O ilustrador destaca algumas partes do corpo – tais como cabeça, tronco, mãos e dedos – quando estas são relevantes para a produção do sinal. • Características da figura-referência: Gênero: Em muitos sinais, o gênero é indefinido, pois o rosto da figura-referência não aparece de forma completa. Em outros, parece ser masculino. Aspecto: Nesse material, segue-se um padrão. Algumas vezes a figura-referência aparece com o rosto completo e outras vezes não, havendo uma ênfase maior a outras partes do corpo. Destaque às expressões faciais: Não há uma preocupação com esse aspecto, pois a figura-referência aparece muitas vezes sem o rosto e sem a cabeça. Uso de recursos gráficos: Utiliza setas, pontilhados, zigue-zagues, linhas retas e linhas curvas. Figura 4 – Avisar Fonte: Esminger (1987) 116 Obra 5: Dicionário enciclopédico ilustrado trilíngue: língua de sinais brasileira (volumes I e II) • Ano de publicação: 2001 • Autores: Fernando César Capovilla e Walkíria Duarte Raphael • Ilustradora: Silvana Marques • Local de publicação: São Paulo • Quantidade de sinais apresentados: 9.500 • Forma de indexação: A indexação é realizada por ordem alfabética. • Léxico: Alfabeto manual, numerais, verbos, adjetivos, substantivos (comuns, abstratos e concretos), advérbios, pronomes (pessoais, possessivos e interrogativos). • Textos introdutórios: Destacam-se como elementos pré-textuais: o sumário, os agradecimentos, a dedicatória, a apresentação feita por Oliver Sacks, a apresentação realizada pelo presidente da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Antônio Campos de Abreu) e por seu coordenador nacional de cursos de Libras (Eduardo Sabanovaite). Além disso, consta uma apresentação feita por Valerie Sutton. Em seguida, há o resumo, o abstract e um prefácio escrito pelos autores, que contempla os aspectos da obra em questão; na sequência, a apresentação do léxico do dicionário (volume I: A-L; volume II: M-Z). • Textos complementares: Ao final da obra, os autores apresentam Capítulos de indexação, em que constam o Thesaurus: English-Portuguese (dicionário de inglês-português) e um índice semântico dos sinais de Libras; em seguida, Capítulos de educação em surdez e Capítulos de tecnologia em surdez. • Sistema de representação: Desenho linear. Apresenta a representação pictórica do significado do sinal e a representação pictórica da forma do sinal (composição quirêmica). Além disso, inclui a escrita visual direta da forma do sinal (sistema Sign Writing). • Características da figura-referência: Gênero: Masculino. Aspecto: A figura-referência é sempre a mesma. Cássia Geciauskas SOFIATO; Lucia Helena REILY. Dicionarização da língua brasileira de sinais: estudo comparativo... Figura 5 – Presunto Fonte: Capovilla; Raphael (2001). Destaque às expressões faciais: Há uma tentativa de evidenciar a expressão facial que acompanha alguns sinais. Uso de recursos gráficos: Faz uso de setas, pontilhados, zigue-zagues, linhas retas, linhas curvas e outros símbolos gráficos próprios do Sign Writing. Análise e discussão Autoria das obras e ilustrações Nessa categoria, destaca-se a menção feita aos ilustradores ou fotógrafos responsáveis pelas obras analisadas, tendo em vista que os dicionários de Libras se diferenciam dos dicionários de línguas orais por serem quase em sua totalidade ilustrados. Quando uma obra sobre a língua de sinais vai ser elaborada, uma das prioridades a ser pensada pelo autor é a escolha de um profissional competente que realize a ilustração do material, respeitando todas as características intrínsecas a essa língua espaço-visual. A escolha precisa ser criteriosa, pois, além da liberdade poética conferida a cada um durante a preparação de uma obra, tem-se, nesse caso, que levar em consideração a função do trabalho, o desenho de uma informação estabelecida por uma convenção. Ao nos depararmos com tal necessidade, percebemos que não se trata de uma tarefa simples, como alguns autores parecem acreditar. Quando nos referimos às imagens que têm por finalidade a instrução, ou seja, a explicação para o uso dirigido de algo, notamos Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 109-126, jan./mar. 2014. a necessidade de uma reprodução que seja o mais real possível, de forma a facilitar a leitura e a apreensão da mensagem. Nesse sentido, a imagem instrucional e a imagem publicitária têm algo em comum: uma certeza intencional; portanto, elas devem ser essencialmente comunicativas e destinadas à leitura pública (JOLY, 1996). Por meio do inventário realizado, pudemos ver que, em algumas obras, o nome do ilustrador aparece, mas nem sempre em posição de destaque; entretanto, a presença de um ilustrador é condição sine qua non para a elaboração de uma obra dessa natureza. Sem a participação do referido profissional não é possível fazer esse tipo de trabalho. Na obra de Gama (1875), quem assume a autoria e a ilustração é o surdo Flausino da Gama. Nas obras de Oates (1969), Honora e Frizanco (2009) e Capovilla e Raphael (2001), a autoria é assumida por pessoas ouvintes; entretanto, na obra de Oates (1969), temos a menção ao nome do fotógrafo responsável pelas imagens no interior da obra. Na obra de Honora e Frizanco (2009), o nome do ilustrador é citado, porém não na capa, onde há menção ao nome de uma revisora especializada, identificada como surda. A obra de Esminger (1987) não apresenta o nome do autor, somente o do ilustrador do material. No dicionário de Capovilla e Raphael (2001), os nomes dos autores estão presentes na capa e o da ilustradora encontra-se no interior da obra. Além disso, há menção a nomes de surdos que participaram da elaboração do material. 117 Pelo que pudemos observar, nem sempre o nome do ilustrador do material aparece na capa juntamente com o do autor. Entretanto, também verificamos que há a participação de surdos em três das obras analisadas: em uma, na qualidade de autor e ilustrador; nas outras, como participantes da elaboração das obras. Em se tratando de obras de línguas de sinais, a presença de surdos na condição de revisores ou autores parece ser interessante em razão de pelo menos dois aspectos: primeiro, porque a língua de sinais é considerada língua natural da pessoa surda; segundo, como consequência do primeiro, por poderem avaliar com maior legitimidade alguns níveis linguísticos que compõem tal língua, como o fonológico. O nível fonológico da Libras compreende os seguintes parâmetros, de acordo com Fernandes (2003): configuração das mãos (forma que a mão assume ao realizar o sinal); localização do sinal; movimento das mãos e orientação da(s) palma(s) da(s) mão(s). Ao ser representado pictoricamente, esse parâmetro precisa ser o mais preciso possível para garantir a boa compreensão do sinal. Dessa forma, presume-se que um nativo na língua tenha melhores condições de fazê-lo do que um ouvinte que aprende Libras. Capovilla e Raphael (2001, p. 30), ao se referirem à elaboração de um dicionário de língua de sinais, destacam que não são os ouvintes [...] os conquistadores que dominam e desvendam os mistérios do sinal dos surdos; mas são eles, os Surdos, que [...] nos concedem a revelação dos segredos mais íntimos do seu Sinal. Dessa forma, reiteramos que a participação do surdo é fundamental. Todavia, com base nas obras analisadas, percebemos que nem sempre isso acontece. Apresentação do alfabeto manual (datilologia) Durante a análise, observou-se que o primeiro conteúdo apresentado nos dicionários 118 selecionados é o alfabeto manual ou datilologia. Quando se adota um dicionário como apoio para o trabalho pedagógico, o alfabeto manual constitui-se como uma espécie de introito para os estudos sobre a língua de sinais, pois é o primeiro conteúdo a ser apresentado. Gesser (2009) define o alfabeto manual como um código que representa as letras alfabéticas. Geralmente tal alfabeto é utilizado para soletração de nomes próprios de pessoas, lugares e também para os casos em que ocorre a falta de determinado sinal. Na língua brasileira de sinais, existem 27 formatos de mãos (considerando-se o ç) que compõem o alfabeto manual, cada um representando uma letra do alfabeto da língua portuguesa. O uso da soletração supõe o letramento, pois, se o soletrador não for alfabetizado, não conseguirá entender o significado de tal código e fazer uso do mesmo. Das cinco obras estudadas, quatro apresentam o alfabeto manual representado por meio de desenho linear de contorno; apenas na obra de Oates (1969) o alfabeto foi fotografado. Verifica-se nas representações, tanto nas desenhadas quanto nas fotografadas, que cada ilustrador ou fotógrafo faz uma escolha em relação à posição das mãos ao representá-las. Constatamos que a representação correta das configurações de mãos constitui-se um problema, pois há várias maneiras de representar uma mesma configuração, isto é, a posição de determinada mão não é a mesma, dependendo do ilustrador, de sua posição diante do sinal e do material gráfico escolhido para o desenho. Alguns optam por desenhar ou fotografar a mão vista conforme a posição que ela assume ao ser sinalizada; outros já preferem desenhá-la sob outro ângulo de visão que facilite o aprendizado do sinal. Por vezes, essas escolhas constituem um impasse para o aprendiz de Libras se não houver a presença de um mediador que possa esclarecer qual é a posição correta para a produção manual do sinal. Esse aspecto denota que a representação das configurações de mãos correspondentes ao alfabeto manual não é fácil de ser produzida, necessitando-se de um ilustrador qualificado que seja capaz de expressar Cássia Geciauskas SOFIATO; Lucia Helena REILY. Dicionarização da língua brasileira de sinais: estudo comparativo... os detalhes que compõem as mãos de acordo com a convenção estabelecida para esse alfabeto específico. A fim de exemplificar tal ocorrência, mencionamos a dificuldade de representação da posição de dedos para algumas letras do alfabeto manual. Há ilustradores que desenham determinadas letras com os dedos mais abertos, enquanto outros representam as mesmas letras com os dedos mais fechados ou em posições diferentes (palma da mão para frente ou de perfil). Isso ocorre principalmente na representação das letras F, H, Q, e T. Como resultado, o leitor não sabe ao certo qual é a maneira correta de realizar tais sinais. Sem a presença de um mediador fluente em Libras, fica difícil a interpretação correta das imagens produzidas. to semântico. Cada grupo semântico escolhido pelo autor do dicionário é apresentado por meio de verbetes, que não apresentam acepções, usos, derivações e classificação gramatical, como ocorre comumente nos dicionários de línguas orais. Somente no dicionário de Capovilla e Raphael (2001) a indexação obedece ao critério de ordem alfabética e, nesse caso, tem-se a apresentação da acepção de cada verbete. Além disso, nessa mesma obra, o verbete é também apresentado em inglês. Introduz-se ainda o Sign Writing, que é um sistema de escrita visual direta utilizado para ler e escrever os sinais de Libras. Os referidos autores propõem uma nomenclatura específica para a descrição das diferentes formas de apresentação dos sinais: Forma de indexação e composição dos verbetes 1. A representação pictórica do significado, que retrata aquilo a que o sinal se refere; 2. A Representação pictórica da forma do sinal, que retrata a composição quirêmica dos sinais [...]; 6. A descrição da forma do sinal, que descreve, de modo detalhado e sistemático, a articulação das mãos e dos braços, a orientação das palmas, o tipo, a direção, a freqüência e a amplitude do movimento envolvido, e a expressão facial associada. (CAPOVILLA; RAPHAEL, 2001, p. 40) Buscato, Garcia e Pelachin (1998) acreditam que é comum as pessoas pensarem num dicionário como uma lista de palavras e suas acepções. Entretanto, a partir de informações sobre como um dicionário se organiza, os autores mostram que é possível consultá-lo de forma mais eficaz. A rigor, nos dicionários de língua portuguesa, a indexação é feita por ordem alfabética. A indexação das obras de Gama (1875), Oates (1969), Honora e Frizanco (2009) e Esminger (1987) obedece a outro critério. Por meio do estudo, percebe-se que o critério para a indexação das obras citadas é o agrupamen- Para a compreensão da forma de indexação de cada dicionário analisado, apresenta-se o quadro a seguir: Quadro 1 – Indexação Características Verbete em português Verbete em inglês Representação pictórica do sinal Representação pictórica da forma do sinal Descrição da forma do sinal Obra 1 X - - X X Obra 2 X - - X X Obra 3 X - X X X Obra 4 X - X X - Obra 5 X X X X X Fonte: GAMA (1875); OATES (1969); HONORA; FRIZANCO (2009); ENSMINGER (1987); CAPOVILLA; RAPHAEL (2001). Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 109-126, jan./mar. 2014. 119 Nota-se que a obra de Capovilla e Raphael (2001) contempla todos os aspectos listados e objetiva apresentar a Libras de forma bastante variada. A obra de Honora e Frizanco (2009) segue a mesma tendência, porém de forma mais simplificada se a compararmos com a obra anterior. Constata-se que todas as obras estudadas apresentam a representação pictórica da forma do sinal. Tal fato é, de certa forma, esperado em se tratando de uma língua de modalidade espaço-visual. A obra de Gama (1875) não apresenta a representação pictórica do significado do sinal. Ao que parece, essa forma de representação, numa tentativa de tornar o significado do sinal mais claro para o leitor não letrado, aparece nos dicionários mais tardiamente. Entretanto, isso não significa que a forma de representação do significado do sinal, realizada por meio de desenhos, consiga expressar exatamente aquilo a que se refere o sinal. No exemplo que se segue (figura 6), podemos verificar a dificuldade de entender o sentido que a imagem traz segundo a forma apresentada pelo ilustrador. Haveria múltiplas maneiras de interpretar as imagens do urso diante de um menino com braços erguidos. Figura 6 – Menino diante de urso. Fonte: Esminger (1987) Vejamos agora, por meio do emprego da hibridização dos recursos, como interpretamos o sentido: Figura 7 – Coragem Fonte: (ESMINGER, 1987) Nesse caso, a hibridização tenta facilitar a compreensão, representando a ideia abstrata da coragem por meio de um contexto narrativo em que uma criança enfrenta com coragem um animal muito maior do que ela. As obras analisadas, em sua maioria, também apresentam a descrição da forma do sinal. Esse aspecto aparece para complementar a informação, auxiliando o leitor em seus 120 esforços de interpretar as instruções contidas nas imagens de cada verbete. A associação da imagem ao texto explicando a forma de realização do sinal é vista como uma espécie de solução interpretativa nesse tipo de material por parte de quem o organiza. O leitor que teve acesso à linguagem escrita pode se beneficiar com tal recurso, contudo não terá a mesma possibilidade o leitor não alfabetizado. Cássia Geciauskas SOFIATO; Lucia Helena REILY. Dicionarização da língua brasileira de sinais: estudo comparativo... De qualquer forma, percebemos que a hibridização de recursos visuais e textuais se faz presente em todas as obras analisadas. A constituição das imagens e o uso de recursos gráficos específicos As imagens das obras de Gama (1875), Honora e Frizanco (2009), Esminger (1987) e Capovilla e Raphael (2001) constituem-se por desenhos lineares. A obra de Oates (1969, p. 27) é a única que apresenta imagens fotografadas. Segundo Reily (2004), a imagem visual “é um veículo sígnico e dessa forma, como instrumento, a mesma pode veicular conhecimento de alta ou baixa qualidade”. Ressaltamos o papel do ilustrador de dicionários ou manuais de língua de sinais, material cuja característica é instrucional. É de sua responsabilidade promover e facilitar o aprendizado por meio da elaboração de figuras instrucionais. A rigor, os dicionários contemplados neste estudo elegem uma figura-referência, que é uma espécie de modelo para a demonstração da forma de realização dos sinais que compõem a obra. Essas figuras-referência, em sua maioria, são do sexo masculino. Somente na obra de Honora e Frizanco (2009) há também a figura feminina, que aparece alternada com a masculina. Observa-se nas obras analisadas o uso abundante de recursos gráficos. Isso se justifica, no caso da Libras, pelo fato de que quase todos os sinais são compostos por movimentos iniciais ou contínuos. A representação gráfica do movimento é um grande desafio para os ilustradores e fotógrafos dos materiais em questão. Gombrich (1999) já dizia que essa tarefa é dificultada porque o desenhista necessita transformar os fluxos de movimentos presentes numa sequência de posições fixas. Quando o material é produzido por meio da fotografia, existe a dificuldade de se captar o movimento realizado pelas mãos e de se demonstrar o efeito de sua continuidade nas imagens, pois estas ficam congeladas. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 109-126, jan./mar. 2014. Passar do plano tridimensional para o plano bidimensional exige o uso de técnicas próprias da área do desenho e da fotografia. Nesse caso, as soluções encontradas pelos ilustradores ou fotógrafos de materiais de Libras estão relacionadas ao uso de recursos gráficos que, acoplados à imagem, teriam a finalidade de elucidar a direção e a qualidade do movimento. Assim, setas são incluídas em muitas ilustrações e também fazem o papel de vetores, com a função de indicar a direção que se deve obedecer para se realizar corretamente o sinal. Existem também outros recursos que são incorporados à imagem com a finalidade de demonstrar a movimentação, tais como curvinhas, zigue-zagues, círculos e desenhos de trajetória de movimento com o uso de pontilhados. Por vezes, o recurso do pontilhado pretende demonstrar qual é o ponto inicial do movimento a ser realizado para a produção do sinal e assim sucessivamente, numa sequência de imagens. O uso desses recursos gráficos não garante a eficácia durante a tentativa de interpretação e realização dos sinais manuais por parte do aprendiz em Libras, pois, no caso dos sinais, o repertório do leitor em relação à leitura dos códigos visuais, assim como sua interpretação individual, conta muito no momento de realização de um sinal a partir de um modelo gráfico. Outro parâmetro que foi incorporado à língua brasileira de sinais é a expressão facial (movimentos de cabeça, olhos, boca, sobrancelha etc.), segundo Gesser (2009). A expressão facial e também a corporal são elementos gramaticais que compõem a estrutura dessa língua e que podem funcionar como elementos lexicais, modificando o significado do sinal de acordo com a necessidade. Nas obras de Gama (1875), Honora e Frizanco (2009), Esminger (1987) e Capovilla e Raphael (2001), a figura-referência, por meio do uso da expressão facial, tenta enfatizar o significado correspondente a cada sinal apresentado. Entretanto, na obra de Oates (1969), percebe-se que a figura-referência não esboça as expressões faciais que acompanham 121 os sinais, o que dificulta a interpretação e a tentativa de realização do sinal por parte de um aprendiz. Ao que parece, alguns ilustradores ou fotógrafos contratados para a elaboração de obras sobre língua de sinais desconhecem a importância da expressão facial e corporal durante a utilização da língua. Esse aspecto é muito relevante e está presente em qualquer situação comunicativa. Podemos dizer que quando os usuários da língua de sinais, o surdo ou o ouvinte, estão se comunicando, a compreensão da mensagem também depende da composição cênica presente. As mãos sinalizam e o corpo, por intermédio da expressão corporal e facial, confirma o sentido atribuído ao sinal efetuado. Assim sendo, salientamos a necessidade de o ilustrador ou fotógrafo conhecer os parâmetros que compõem a língua em questão para que possa representá-la de forma adequada. Inserção de textos introdutórios e outros nos dicionários de Libras As obras analisadas contêm, na maioria das vezes, textos introdutórios que versam sobre assuntos relacionados à surdez, mas a natureza desses textos varia de acordo com a obra. Nas obras de Gama (1875), Oates (1969) e Esminger (1987), existem prefácios que têm por finalidade apresentá-las e dar pistas para facilitar a comunicação entre surdos e ouvintes, pais ouvintes e filhos surdos. Também incluem termos que não são mais utilizados na área da surdez, tais como mímica, surdo-mudo, pessoas infelizes, gestos, linguagem mímica, entre outros. Isso até se justifica se levarmos em consideração a época em que foram criadas. Por meio de muitos estudos e investimento de pesquisadores na área da surdez, hoje se considera que esses são termos inapropriados para a área, ainda que utilizados no senso comum. Com base em Gesser (2009, p. 21), quando as pessoas fazem uso de termos como esses, está implícito um preconceito associado à 122 [...] ideia que muitos ouvintes têm sobre os surdos: uma visão embasada na anormalidade, segundo a qual o máximo que o surdo consegue expressar é a forma pantomímica indecifrável e somente compreensível entre eles. Não à toa, as nomeações pejorativas anormal, deficiente, débil mental, mudo, surdo-mudo, mudinho têm sido equivocadamente atribuídas a esses indivíduos. As obras de Honora e Frizanco (2009) e Capovilla e Raphael (2001) apresentam um diferencial nesse sentido. Os textos de apresentação, além de trazerem a terminologia correta para se referirem aos surdos e a aspectos que concernem à sua língua, examinam variados assuntos. Na obra de Honora e Frizanco (2009), existe uma menção à história da educação dos surdos em nível mundial e nacional; as autoras apresentam abordagens educacionais existentes na área da surdez e descrevem algumas políticas públicas relevantes na área. Ao final, oferecem uma relação de sites, filmes e livros que tratam da questão da surdez. A obra de Capovilla e Raphael (2001), além do prefácio e das apresentações feitas por profissionais da área, tem dois capítulos com a finalidade de auxiliar o uso do dicionário. Ao final, inclui capítulos sobre educação em surdez e tecnologia em surdez. É interessante observar que todas as obras analisadas contêm textos introdutórios e que tal aspecto se perpetuou e foi se aprimorando se levarmos em consideração a primeira obra produzida no Brasil. Surge, então, o questionamento: por que as obras destinadas ao ensino da Libras apresentam esses textos e qual seria a finalidade deles? Ao que parece, além da pretensa intenção de ensinar a língua brasileira de sinais, os autores assumem que existe a necessidade de instruir o leitor a respeito da história da educação de surdos e das características da língua considerada alvo, o que sugere que a função dos dicionários está ligada à intenção de ensinar e divulgar a Libras. Cássia Geciauskas SOFIATO; Lucia Helena REILY. Dicionarização da língua brasileira de sinais: estudo comparativo... Ainda com relação aos textos introdutórios, gostaríamos de fazer um paralelo com outro gênero de material instrucional. Tomemos como base alguns livros destinados à prática do origami, técnica japonesa que, segundo Jackson e A’Court (1996), consiste na arte de dobrar papel. Muitos trazem instruções que explicam como dobrar o papel das mais variadas formas. Jackson e A’Court (1996) explicam os diversos símbolos utilizados nessa técnica e acrescentam que eles podem ser encontrados na maioria dos livros de origami, não importando a língua em que estejam escritos. Tal padronização pretende tornar universais os procedimentos para a realização da técnica para que os entusiastas de todo o mundo possam fazer dobraduras, usando qualquer livro com seus mais variados modelos e sequências. Como pudemos ver, toda a exploração dos procedimentos para o uso do material ocorre antes de o leitor manusear a obra e tem por finalidade oferecer a maior autonomia possível a qualquer pessoa que queira fazer uma dobradura, tarefa nem sempre muito fácil, a depender da escolha do objeto ou tema. Em relação à língua brasileira de sinais, percebemos que a inclusão de legendas para interpretação de marcas gráficas – como pontilhados e flechas – e de marcas onduladas não é valorizada, excetuando-se a obra de Capovilla e Raphael (2001), que apresenta o sistema Sign Writing. Não encontramos um glossário com explicações referentes ao significado dos recursos gráficos e ao seu uso nas obras em questão, como acontece nas obras destinadas ao ensino do origami, que também são produzidas por meio de imagens. Percebemos uma defasagem na apresentação ou introdução dos materiais da língua brasileira de sinais, pois não há uma padronização de indicadores gráficos que poderiam auxiliar na interpretação da intensidade de movimentos dos sinais e nas posições iniciais e finais durante sua realização. A partir da análise dos trabalhos desenvolvidos ao longo do tempo, percebe-se Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 109-126, jan./mar. 2014. que existe a tendência de deixar os dicionários de Libras cada vez mais completos, com a inserção de textos como os descritos anteriormente. Por se tratar de materiais com objetivos instrucionais e pelo fato de a Libras ser uma língua que se apresenta em forma de outra modalidade se comparada às línguas orais, a inserção desses textos tem uma finalidade didática aparente: instruir o leitor a respeito das peculiaridades linguísticas e da complexidade da língua em questão para além de um mero léxico. Capovilla e Raphael (2001, p. 31) pontuam que “dicionaristas têm uma nobre e espinhosa tarefa”. Em se tratando de Libras, o desafio aumenta devido à forma de constituição dessa língua e aos aspectos já apresentados. Considerações finais A adoção de dicionários de Libras ocorre com a finalidade didática em cursos de formação de professores e de fonoaudiologia, em que pesem as dificuldades que possam surgir apresentadas ao longo deste estudo em relação à leitura e à produção dos sinais por parte dos aprendizes de tal língua. Apesar de já contarmos com outras formas de apresentação de dicionários, tais como os virtuais, parece que a preferência ainda recai sobre os impressos pelo fato de serem mais fáceis para consultar e transportar. O uso de tais obras justifica-se por serem um apoio para a construção de uma nova rede de conhecimentos linguísticos, como afirma Coroa (2011), embora, no caso da Libras, apresentem apenas o léxico em forma de representação pictórica na maioria dos casos observados. Neste estudo, buscou-se demonstrar a constituição histórica do gênero e revelar quais são as fragilidades e os desafios que se colocam para os aprendizes de Libras no que se refere ao aprendizado dos sinais apresentados nos dicionários e, por outro lado, demonstrar as soluções encontradas e as não encontradas por autores e ilustradores para darem conta da imagem instrucional relacionada à língua de sinais. As questões explicitadas ao longo do 123 trabalho podem servir de parâmetros para a escolha e a avaliação dos melhores dicionários de referência para interessados em geral e para cursos de graduação que tenham a disciplina de Libras. Reitera-se, a partir dos resultados do estudo, que a elaboração de dicionários para democratizar o acesso das pessoas ao léxico da Libras é algo desafiador, dada a complexidade do gênero, conforme lembram Capovilla e Raphael (2001, p. 31): Transmitir e compreender, com precisão, o significado e o uso lingüístico de milhares de sinais são realizações complexas que demandam muitas aproximações e abordagens, tentativas e quase acertos, edições e reedições em busca da correção, precisão e completude. A elaboração de dicionários de línguas de sinais é um problema que vem sendo enfrentado desde as primeiras formas de representação dessa língua e, portanto, trata-se de um desafio histórico. Tal desafio evidencia-se quando os aprendizes de Libras tentam fazer os sinais de forma autônoma, sem sucesso. Observa-se que, sem a presença de um mediador, a leitura da imagem e a produção dos sinais podem ficar muitas vezes comprometidas. O estudo indica que se configurou ao longo da história uma tradição iconográfica para o design de dicionários da língua brasileira de sinais independentemente das diferenças nos estilos dos ilustradores, observando-se características do dicionário de Gama (1875) 124 que perduram em novos dicionários de Libras. Evidenciam-se, nesse sentido, além da figurareferência sempre presente, a apresentação inicial do alfabeto manual, as semelhanças em relação aos critérios de indexação, a inserção de textos introdutórios, o uso da representação pictórica do significado do sinal, da representação gráfica da forma de realização do sinal e a inserção de recursos gráficos com a finalidade de mostrar o parâmetro movimento nos sinais. Os fatores que interferem diretamente na iconografia da língua de sinais merecem atenção especial por parte dos envolvidos com a questão da representação pictórica ou fotográfica na elaboração de dicionários, pois se acredita que cada vez mais o uso de tais obras será implementado nos cursos de graduação, dada a obrigatoriedade da disciplina de Libras, e nas escolas que possuem alunos surdos, principalmente as de educação bilíngue, nas quais a língua brasileira de sinais e a língua portuguesa são consideradas línguas de instrução. Tendo em vista todas as discussões que envolvem a área da surdez e que primam por uma melhor qualidade de ensino, acredita-se que o investimento na elaboração de bons dicionários, considerando-se suas limitações, pode contribuir significativamente para o aprendizado da Libras por parte dos futuros educadores e profissionais da saúde. Esperamos que essa discussão sirva de motivação para futuros investimentos na dicionarização da Libras aos artistas que se aventuram nessa delicada tarefa e que isso se reverta em benefícios para quem deseja ensinar e aprender a língua. Cássia Geciauskas SOFIATO; Lucia Helena REILY. Dicionarização da língua brasileira de sinais: estudo comparativo... Referências ANDRADE, Maria M. de. Introdução à metodologia do trabalho científico. 4. ed. São Paulo: Atlas, 1999. BAGNO, Marcos. Dicionários, variação linguística e ensino. In: CARVALHO, Orlene L. de Sabóia; BAGNO, Marcos. Dicionários escolares: políticas, formas e usos. São Paulo: Parábola, 2011. BORBA, F. da Silva. Organização de dicionários: uma introdução à lexicografia. São Paulo: UNESP, 2003. BRASIL. Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 25 abr. 2002. ______. Decreto-lei nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, e o artigo 18 da Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Diário Oficial da União, Brasília, 23 dez. 2005. BUSCATO, Lenira; GARCIA, Márcia; PELACHIN, Márcia. Como usar um dicionário. São Paulo: Ática, 1998. CAPOVILLA, Fernando César; RAPHAEL, Walkiria Duarte. Dicionário enciclopédico trilíngue: língua de sinais brasileira. São Paulo: EDUSP, 2001. 2v. COROA, Maria L. Para que serve um dicionário? In: CARVALHO, Orlene L. de Sabóia; BAGNO, Marcos. Dicionários escolares: políticas, formas e usos. São Paulo: Parábola, 2011. ENSMINGER, Judy. Comunicando com as mãos. Piracicaba: Shekinah, 1987. FELIPE, Tania. A. De Flausino ao grupo de pesquisa da FENEIS – RJ. In: SEMINÁRIO NACIONAL DO INES, 5., Rio de Janeiro, 2000. Anais... Rio de Janeiro: INES, 2000, p. 87- 89. FERNANDES, Eulália. Linguagem e surdez. Porto Alegre: Artmed, 2003. GAMA, Flausino José da C. Iconographia dos signaes dos surdos-mudos. 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Lucia Helena Reily é doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (USP) e docente da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). 126 Cássia Geciauskas SOFIATO; Lucia Helena REILY. Dicionarização da língua brasileira de sinais: estudo comparativo... Indicadores de estresse e coping no contexto da educação inclusivaI Kelly Ambrosio SilveiraII Sônia Regina Fiorim EnumoIII Renata Nascimento PozzattoIV Kely Maria Pereira de PaulaIV Resumo I- Agradecemos o apoio financeiro do CNPq/MCTI, por meio de bolsa de Iniciação Científica- Proc. n. 508906/2010-5, bolsa de doutorado, bolsa de produtividade em pesquisa, em nível 1B, e auxílio à pesquisa Proc. n. 481483-2009-8. II- Universidade Federal do Espírito Santo,Vitória, ES, Brasil. Contato: [email protected] III- Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, SP; Brasil. Contato: [email protected]; IV- Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil. Contatos: renatapozzatto@ gmail.com [email protected] A escola tem sido o principal meio de educação para alunos com necessidades educativas especiais (NEE), graças às políticas inclusivas. Mas as dificuldades vivenciadas na implementação de tais políticas podem contribuir para o desenvolvimento de estresse entre docentes. Tendo isso em vista, no presente artigo procurou-se identificar os estressores e os níveis de estresse docente e analisar variáveis sóciodemográficas, pessoais, do trabalho e dos alunos, de acordo com a presença de estresse. Dezenove professoras de classes de 1º, 2º e 3º ano do Ensino Fundamental de escolas públicas da cidade de Vitória/ES, regentes de classes com alunos com NEE, responderam ao Inventário de Sintomas de Stress para adultos de Lipp, a um questionário com variáveis de interesse e a seis escalas de estressores e de enfrentamento (coping), especialmente traduzidas e adaptadas para o presente estudo. A grande quantidade de alunos e seus problemas comportamentais foram os estressores mais frequentes. Especificamente com relação à educação inclusiva, destacaram-se a sobrecarga de serviço e a percepção de pouca preocupação governamental em fornecer subsídios para o trabalho. Todavia, cabe ressaltar que a inclusão de alunos com NEE foi um fator menos citado, podendo não ser a variável central para o estresse, uma vez que os docentes com estresse apontaram mais frequentemente a seguinte causa: a percepção de incompreensão pública frente ao trabalho docente. A partir dessa constatação, sugerem-se intervenções para a promoção do bem-estar entre os professores. Palavras-chave Estresse — Enfrentamento — Professores — Educação inclusiva. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 127-142, jan./mar. 2014. 127 Indicators of stress and coping in the context of inclusive educationI Kelly Ambrosio SilveiraII Sônia Regina Fiorim EnumoIII Renata Nascimento PozzattoIV Kely Maria Pereira de PaulaIV Abstract I- We acknowledge the financial support of CNPq/MCTI, by means of scientific initiation fellowship number 508906/2010-5, a doctoral fellowship, a research productivity fellowship level 1B, and research support number 481483-2009-8. II- Universidade Federal do Espírito Santo,Vitória, ES, Brasil. Contact: [email protected] III-Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, SP; Brasil. Contact: [email protected]; IV- Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil. Contacts: renatapozzatto@ gmail.com; [email protected] 128 Thanks to inclusive policies, school has been the main means of education for pupils with special educational needs (SEN). But the difficulties experienced in the implementation of such policies may contribute to the development of stress among teachers. Keeping this in view, this study has sought to identify stressors and levels of teacher stress and examine sociodemographic, personal, work and student variables, according to the presence of stress. Nineteen teachers of classes of 1st, 2nd and 3rd grades of primary education in public schools in Vitória city, Espírito Santo state, Brazil, working with classes with students with SEN, responded to Lipp’s Inventory of Stress Symptoms for Adults, a questionnaire with variables of interest and six scales of stressors and coping, translated and adapted especially for this study. The large number of students and their behavioral problems were the most frequent stressors. With regard to inclusive education, the main results were work overload and the perception that the government is little concerned with providing support for work. However, it is noteworthy that the inclusion of pupils with SEN was a less cited factor and may not, thus, be the central variable for stress. Actually, teachers with stress identified more often the following cause: the perception of the public misunderstanding of the teaching work. Based on this finding, we suggest interventions to promote well-being among teachers. Keywords Stress — Coping — Teachers — Inclusive education. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 127-142, jan./mar. 2014. Introdução As políticas nacionais de atendimento educacional especial têm afirmado a escola como o principal agente para os processos de ensino e aprendizagem dos alunos com necessidades educativas especiais - NEE (BRASIL, 2008a, 2008b). Essas políticas propõem a reformulação do ensino, com a recepção de alunos com condições diferenciadas de desenvolvimento e a oferta de recursos físicos, didáticos e interacionais adaptados às NEE, tendo como foco o trabalho com a diversidade (MANTOAN, 2003). Desde a Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994), a definição do conceito de NEE tornou-se mais abrangente, passando a contemplar alunos cujas necessidades envolvam deficiências ou dificuldades de aprendizagem, com a manifestação de desvantagem ou sobredotação, problemas de conduta ou de ordem emocional, além de situação de risco psicossocial ou pertencimento a minorias. Com isso, em seus princípios, a educação inclusiva passou a contemplar a diversidade entre os alunos e a adequar meios e recursos para os processos educacionais. O professor, nesse contexto, é tradicionalmente reconhecido como facilitador dos processos de aprendizagem, mediando as experiências escolares (RODRIGUEZ; BELLANCA, 2007). Entretanto, parece haver descontentamento com relação à maneira como o processo de inclusão está sendo implantado, por ser muitas vezes dissociado de investimentos em adaptações físicas das escolas, na aquisição de materiais específicos às necessidades dos alunos e na formação dos profissionais. Em consequência, o ensino de alunos com diferentes níveis de desenvolvimento na sala de aula regular pode ser um fator estressor para o trabalho docente. O estresse, entendido como o resultado de respostas fisiológicas e psicológicas a eventos internos e externos (COMPAS, 2006), tem suscitado o desenvolvimento de pesquisas na área docente (GOULART JÚNIOR; LIPP, 2008; MARTINS, 2005; POCINHO; CAPELO, Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 127-142, jan./mar. 2014. 2009). Contudo, muitas pesquisas das últimas décadas ainda têm considerado os professores como avaliadores das condições de estresse de alunos e familiares, ao invés de tomá-los como sujeitos de pesquisa sobre as suas condições laborais estressoras (WITTER, 2003). Além disso, o estresse tem sido causa recorrente de afastamentos do trabalho (GASPARINI; BARRETO; ASSUNÇÃO, 2005), o que abre a possibilidade de novos focos de análise, como os estressores do contexto escolar inclusivo e as estratégias de enfrentamento (EE) utilizadas pelos professores. É o que investigaremos no presente trabalho. Definições de estresse e de estratégias de enfrentamento e suas aplicações no contexto escolar O estresse pode ser entendido como um conjunto de reações psicológicas e/ou físicas produzidas no confronto com uma situação desafiadora ao sujeito. Apresenta-se em quatro estágios gradativos, que variam do estado de alerta até o de exaustão, esta considerada a fase patológica, com importante desequilíbrio interior, depressão e produtividade nula (LIPP, 2002). O estresse pode ser também caracterizado por uma experiência emocional negativa que, no caso do professor, pode ser acionada pela percepção de que sua situação de trabalho constitui uma ameaça à sua autoestima e ao seu bem-estar (KYRIACOU; SUTCLIFFE, 1978), a depender da interação entre as características individuais e a percepção das exigências presentes. Considerando a experiência de estresse, sabe-se que, caso seja cumulativo, ele pode gerar mais consequências adversas do que eventos isolados. Além disso, a restrição de escolhas, o pouco controle e a grande responsabilidade, presentes também no trabalho docente, podem ser estressores significativos (ALDWIN, 2007). Já o estresse em sua vertente ocupacional é entendido como o resultado da interação entre condições laborais e individuais, de modo que 129 as exigências criadas ultrapassam a capacidade de lidar com elas (GOMES; PEREIRA, 2008). Porém, nem sempre a experiência de estresse é, em si, danosa. Na perspectiva de Pocinho e Capelo (2009), se uma situação profissional encarada como exigente for bem sucedida, o estresse possibilita a adaptação e a confiança. Ao contrário, pode haver aumento do estresse, ligado à percepção de dificuldade na adaptação às exigências. Em casos extremos de estresse em professores, pode ocorrer ainda a Síndrome de Burnout (BENEVIDES-PEREIRA et al., 2003), um tipo de estresse ocupacional que tende a acometer profissionais envolvidos em atividades de cuidado e atenção direta e altamente emocional (MASLACH; JACKSON, 1981). É resultado de uma experiência subjetiva que altera hábitos, satisfação, autocontrole, concentração na sala de aula e que acentua reações emocionais a acontecimentos cotidianos (RITA; PATRÃO; SAMPAIO, 2010) e pode prejudicar os processos interativos (BENEVIDES-PEREIRA et al., 2008). Nesse contexto, considerando que as pessoas têm um papel ativo no processo de enfrentamento a situações adversas, como se lida com o estresse é mais importante que a simples exposição a ele (ALDWIN, 2007). O conceito de coping ou estratégias de enfrentamento (EE) inclui respostas voluntárias ao estresse, a partir de esforços conscientes para a regulação da emoção, cognição, comportamento e ambiente (COMPAS, 2006). As EE do estresse, mesmo sendo consideradas adaptativas, podem transformar uma condição em um fator de risco ou conferir proteção (SKINNER et al., 2003). Sousa et al. (2009) complementam esse tema em revisão sobre estresse ocupacional, burnout e coping, na qual apresentaram o coping como variável mediadora entre a avaliação dos estressores e as respostas de estresse (explica como essas respostas ocorrem) e como variável moderadora entre o estresse ocupacional e o burnout (aumenta a força do estresse). Considera-se também que o bem-estar no trabalho pode ser sustentado nos sentimentos 130 de otimismo e autoeficácia, mobilizadores da crença de controle e modificação do ambiente (BANDURA, 1997). A autoeficácia aumenta no professor a percepção de possibilidade de mudança no comportamento do aluno e em seu próprio comportamento (ALMOG; SHECHTMAN, 2007) e exerce um papel importante no modo de cada pessoa enfrentar os desafios que a ela se apresentem (POCINHO; CAPELO, 2009). A literatura internacional a respeito do estresse e EE tem apontado para a existência de diferentes estressores do ambiente escolar. Entre os principais, destacam-se: lidar com a classe e manter a disciplina, aplicar as tarefas, organizar grupos de trabalho, ajudar crianças com problemas comportamentais e preparar recursos para lições (RIEG; PAQUETTE; CHEN, 2007), lidar com incidentes envolvendo comportamento desafiador (KELLY et al., 2007) e indisciplina (LHOSPITAL; GREGORY, 2009), vivenciar a falta de suporte diante de problemas comportamentais dos alunos (ZURLO; PÉS; COOPER, 2007), suportar o excesso de trabalho e a falta de tempo (ANTONIOU; POLYCHRONI; KOTRONI, 2009; BETORET; ARTIGA, 2010), articular-se com relação às diferenças de desenvolvimento e motivação dos alunos e às políticas educacionais (POCINHO; CAPELO, 2009), e lidar com a pressão exercida pelos pais (STOEBER; RENNERT, 2008). No Brasil, os estressores mais comumente encontrados são o desinteresse da família em acompanhar a trajetória educacional dos filhos, a infraestrutura inadequada da escola, os problemas de indisciplina e o desnível entre os alunos, a grande demanda e desvalorização profissional e a falta de trabalho em equipe (RODRIGUES et al., 2005). Considerando tais fatores e a própria necessidade de efetivação das políticas inclusivas no Brasil, acredita-se que as atuais adequações ao modelo inclusivo de ensino também possam ser um desafio. Constata-se, na literatura, a falta de preparo (GUARINELLO et al., 2006), devido a falhas na formação acadêmica (VALLE; Kelly A. SILVEIRA; Sônia Regina F. ENUMO; Renata N. POZZATTO; Kely M. P. de PAULA. Indicadores de estresse e... GUEDES, 2003) e profissional (FONTES, 2009; NAUJORKS, 2002) dos professores. Dificuldades na articulação de programas e de políticas (FERREIRA, 2007) e na orientação oferecida por outros profissionais (MAIA-PINTO; FLEITH, 2002; SILVEIRA; NEVES, 2006) também são apontadas como falhas na implementação de programas de inclusão. A dissociação entre o trabalho prescrito e o trabalho real em educação inclusiva pode levar à angústia (DUEK; NAUJORKS, 2008), ao desconforto acerca do processo educacional (MONTEIRO; MANZINI, 2008; RIOS; NOVAES, 2009), à sobrecarga e a sintomas de ansiedade e depressão (LIMA et al., 2003). A falta de apoio e de conhecimento sobre como lidar nesse contexto também tem colocado o docente no papel de professor-cuidador (MELO; FERREIRA, 2009). Trata-se de uma postura tipicamente assistencialista, que isola o aluno e não motiva seu crescimento (ALBUQUERQUE, 2008; SODRÉ; PLETSCH; BRAUN, 2003). A esse respeito, Naujorks (2002) aponta que, mesmo com formação adequada, pode haver dificuldades no trabalho com os alunos devido a experiências internas, decorrentes de crenças e valores pessoais, os quais, estando em conflito com a realidade que se apresenta, podem acentuar o estresse. O presente estudo, assim, enfatizou a avaliação do estresse, das características sociodemográficas, pessoais, do trabalho e dos alunos, a fim de fornecer dados que subsidiem intervenções de caráter preventivo (MURTA; LAROS; TRÓCCOLI, 2005) ou interventivo (LAUGAA; RASCLE; BRUCHON-SCHWEITZER, 2008) como possibilidade de prevenção ao aumento dos sintomas de estresse e burnout em professores. Objetivos Este trabalho pretendeu, de modo geral, avaliar os níveis de estresse e os estressores percebidos frente ao trabalho, em consideração a fatores específicos à educação inclusiva e a outros fatores estressores gerais para a atividade Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 127-142, jan./mar. 2014. docente em professores do Ensino Fundamental da rede pública do município de Vitória (ES), que atuam em classes com a inclusão de pelo menos um aluno com alguma necessidade educativa especial. Os objetivos específicos desta pesquisa foram: a) avaliar a presença de estresse nesses professores; b) identificar os principais estressores percebidos por esses professores, considerando aqueles que se apresentam como gerais e específicos ao contexto de educação inclusiva; c) identificar variáveis sóciodemográficas, pessoais e do trabalho desses professores e de seus alunos, associadas a altos níveis de estresse. Método Para atender aos objetivos propostos, a pesquisa contou com delineamento descritivo para identificar os estressores e os níveis de estresse. Também realizou a análise de um grupo estático, para casos de altos e baixos níveis de estresse (KANTOWITZ; ROEDIGER; ELMES, 2006; SELLTIZ; WRIGHTSMAN; COOK, 1981). Participantes e local de coleta Participaram 19 professoras de 1º (8), 2º (6) e 3º ano (5) do Ensino Fundamental, que tinham alunos com algum tipo de necessidade educativa especial (NEE) em suas salas de aula, situadas em quatro escolas públicas municipais de Vitória. Tais escolas estão localizadas em bairros de classe média do município com indices de qualidade urbana semelhantes. O critério utilizado para a coleta foi abranger professores de uma mesma região do município para garantir maior consistência nos dados quanto à presença dos estressores ambientais percebidos. As participantes foram contatadas durante o expediente nas escolas. A coleta de dados foi realizada nas dependências das escolas, em horários pertinentes à rotina de trabalho dos professores, com anuência dos 131 diretores e pedagogos, de modo a não causar danos à rotina escolar ou à saúde das participantes. Instrumentos e materiais 1) Questionário de caracterização dos participantes, com os seguintes itens: idade, sexo e modalidade de ensino em que atua, tempo de serviço e quantidade de alunos em sala, incluindo a quantidade de alunos com alguma necessidade educativa especial percebida. Tal instrumento foi desenvolvido para a presente pesquisa; 2) Escala de Estressores do Contexto Escolar: conta com 20 itens acerca de estressores gerais ligados ao trabalho docente, pontuados de 1 a 5 quanto ao grau de estresse percebido para cada item. Esse instrumento é parte do Questionnaire Taiwanese Primary School Teachers’ Stress and Coping Strategies (KYRIACOU; CHIEN, 2004). Os itens foram traduzidos e adaptados transculturalmente seguindo as orientações da literatura da área (KLEIN; PUTNAN; LINHARES, 2009). 3) Inventário de Indicadores de Stress ligados ao Trabalho no Ensino Inclusivo (NAUJORKS, 2002, em adaptação do Stress Faculty Index de GMELCH; LOVRICH; WILKE, 1984, para professores da Educação Inclusiva (EI) no país): contém 25 itens que representam problemas e insatisfações ligados ao exercício da docência no contexto inclusivo. Os itens são pontuados caso o participante concorde em referir-se à sua percepção atual sobre o trabalho; 4) Escala de Vulnerabilidade ao Estresse no Trabalho - EVENT (SISTO et al., 2007): a partir de 40 itens, avalia o quanto as circunstâncias do cotidiano do trabalho influenciam a conduta da pessoa, a ponto de caracterizar certa fragilidade para o desenvolvimento de estresse laboral. Avalia a vulnerabilidade ao estresse a partir de três fatores: fator 1 - clima e funcionamento organizacional; fator 2 - pressão no trabalho; e fator 3 - infraestrutura e rotina; 5) Inventário de Sintomas de Stress para Adultos de Lipp – ISSL (LIPP, 2000): identifica a presença de sintomas de estresse, os tipos 132 de sintomas existentes, sejam eles físicos ou psicológicos, a presença e a fase do estresse que se manifesta – Alerta, Resistência, Quase exaustão ou Exaustão, a partir de 37 itens de natureza somática e 19 de natureza psicológica. A escala é dividida em três partes, referentes aos sintomas físicos e psíquicos sentidos nas últimas 24 horas, na última semana e no último mês; 6) Escala de Coping para Professores: com 25 itens sobre comportamentos de coping ou enfrentamento. É parte do Questionnaire Taiwanese Primary School Teachers’ Stress and Coping Strategies (KYRIACOU; CHIEN, 2004). Esse instrumento também foi traduzido e adaptado transculturalmente. Durante o preenchimento, o participante é requisitado a apontar a frequência para a eficácia percebida de cada comportamento na redução do estresse e a frequência com que manifesta cada comportamento listado, a partir de escala que varia de 1 a 5; 7) Escala de Satisfação do Professor: conta com 5 itens pontuados de 1 a 5 acerca do grau de concordância quanto aos itens ligados a indicadores de satisfação no trabalho docente. Os itens foram adaptados a partir da Teacher Satisfaction Scale (HO; AU, 2006); 8) Escala de Autoeficácia do Professor no desenvolvimento de atividades: apresenta 4 itens adaptados da Norwegian Teacher Self-Efficacy Scale (SKAALVIC; SKAALVIC, 2010). Os itens referem-se a indicadores de eficácia percebida pelo participante no desenvolvimento de atividades do trabalho, especialmente referentes à adaptação de instrução às necessidades individuais dos alunos. Ressalta-se que o uso dos instrumentos descritos deu-se em consequência à inexistência de um instrumento específico que pudesse fornecer as informações necessárias, tendo em vista os objetivos aqui propostos. Como a literatura também ainda não sugere de forma consistente uma bateria de instrumentos avaliativos para a coleta de dados pessoais e laborais ligados a estressores e ao estresse, foi montada a presente lista de instrumentos, especialmente Kelly A. SILVEIRA; Sônia Regina F. ENUMO; Renata N. POZZATTO; Kely M. P. de PAULA. Indicadores de estresse e... formulada para o desenvolvimento desta pesquisa. Ao todo, foram coletadas as variáveis: a) sociodemográficas: idade, sexo, estado civil, número de filhos, estresse familiar percebido e total de horas diárias de lazer; b) do trabalho: série escolar em que atua, anos de experiência em salas regulares inclusivas, anos na instituição, anos de serviço, horas diárias de planejamento em casa, tipo de vínculo e número de turnos em que trabalha; c) dos alunos: quantidade de alunos em sala, quantidade de alunos com NEE em sala, quantidade de crianças com laudo médico, quantidade de crianças que frequentam sala de atendimento educacional especializado, presença de estagiário em sala; e d) pessoais: satisfação com o trabalho, autoeficácia percebida no trabalho, percepção de estressores, comportamentos de enfrentamento ao estresse, percepção de itens ligados à vulnerabilidade ao estresse no trabalho, fatores estressores ligados à Educação Inclusiva e sintomatologia do estresse. Para a análise dos dados, foi utilizado o software SPSS - Statistical Package for the Social Sciences®, na versão 18. Procedimento Antes de a coleta ser iniciada, foram mantidos os procedimentos para a tradução e adaptação transcultural de instrumentos ainda não adaptados ou comercializados, de modo a preservar a semântica e o escopo teórico subjacente aos mesmos (KLEIN; PUTNAN; LINHARES, 2009). Após aprovação da pesquisa junto ao Comitê de Ética em Pesquisas da UFES (n. 264-11), foi estabelecido contato com a Secretaria Municipal de Educação, a fim de se obter anuência para inserção nas escolas e para o processo de coleta de dados. Em seguida, as instituições escolares da região foram contatadas. Após o consentimento para a participação da coleta, foram oferecidos os protocolos e as instruções diretamente pelos pesquisadores. Ao final da coleta, foi realizada devolutiva a cada participante. A pesquisa não implicou Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 127-142, jan./mar. 2014. riscos à saúde das participantes, nem custos ou exposição das mesmas. Todas assinaram o Termo de Consentimento para a Pesquisa. A coleta foi realizada durante os períodos de intervalo, com o objetivo de não trazer prejuízo ao andamento das atividades programadas. Resultados As 19 professoras que participaram da coleta tinham, em média, 44,1 anos (DP= 7,1), sendo a maioria casada (52,6%). Lecionavam no 1º ano (36,8%), 2º ano (26,3%) e 3º ano (15,8%) como regentes de classe e 10,3% delas tinham disciplinas nessas séries escolares. A maioria trabalhava em dois turnos (73,7%) e em duas escolas (57,9%), com uma média de 22,3 anos de serviço (DP= 7,3), sendo a maior parte delas (78,9%) efetiva em pelo menos um turno. Estavam trabalhando na instituição há 7,3 anos (DP= 7,9) e a experiência em classes com a inclusão de alunos com NEE era de 13,5 anos (DP= 8,1). Apenas 26,3% tinham estagiário na sala de aula. Havia, em média, 1,78 alunos com NEE por professora (DP= 0,98). As NEE apontadas pelas participantes foram: deficiência mental (10), TDAH (8), deficiência visual (5), altas habilidades (3), dislexia (3), deficiência física (2), deficiência múltipla (1), transtorno global do desenvolvimento (1) e deficiência auditiva (1). Um total de 10 professoras (52,63%) apresentou estresse. Dessas, quase a totalidade (nove) encontrava-se na fase de resistência e uma estava na fase de quase exaustão. A sintomatologia foi tanto física quanto psicológica, porém, houve predomínio de sintomas físicos (70%). Estressores percebidos acerca do trabalho docente Foram destacados os 25% dos itens mais e menos pontuados da lista de estressores. Os mais pontuados, em ordem decrescente das médias obtidas, foram: grande quantidade de alunos na sala; problemas comportamentais 133 dos alunos; atitude pública de incompreensão sobre a carga de trabalho do professor; falta de motivação dos alunos; e falta de recursos suficientes para o ensino. Os itens menos pontuados, em ordem decrescente das médias obtidas, foram: competição entre colegas de trabalho; dificuldade para auxiliar alunos em atividades extras; envolvimento em atividades para formação continuada; problemas para auxiliar os alunos no desenvolvimento de tarefas escolares; e estranhamento ao ser observado por colegas, estagiários, supervisores ou pais (Tabela1). Verificou-se que a permanência de crianças com NEE em sala de aula, em si, não foi um fator de estresse pontuado com alta frequência entre as participantes. Contudo, fatores indiretamente ligados à sobrecarga e às atividades escolares no contexto inclusivo foram largamente apontados, tais como a falta de recursos para o ensino e a grande quantidade de alunos por sala de aula. Tabela 1 – Estressores apontados pelas professoras de classes inclusivas (N = 19) Estressores M* DP* Grande quantidade de alunos na sala 4,10 1,24 Problemas comportamentais dos alunos 3,94 1,31 Atitude pública de incompreensão sobre a carga de trabalho do professor 3,84 1,01 Falta de motivação dos alunos 3,84 1,34 Falta de recursos suficientes para o ensino 3,52 1,38 Atitudes pobres dos alunos frente às tarefas 3,47 1,17 Poucos recursos para trabalho 3,26 1,69 Estilo de gerenciamento dos superiores 3,10 1,14 Comunicação com pais 3,00 1,45 Mudanças constantes nas políticas educacionais 2,89 1,32 Excesso de conteúdo a ser lecionado 2,78 1,13 Trabalhar com conteúdos não ligados à expectativa, preparo, habilidade 2,73 1,32 Pouco tempo de intervalo 2,72 1,01 Trabalho administrativo adicional 2,57 1,07 Alunos com necessidades educativas especiais na sala 2,52 1,17 Competição entre colegas de trabalho 2,47 1,21 Auxiliar alunos em atividades extras 2,36 1,42 Envolvimento em atividades para formação continuada 2,15 1,16 Auxiliar no desenvolvimento de diversas tarefas extras da escola 2,10 1,32 Ser observado por colegas, estagiários, supervisores ou pais 1,73 0,93 Fonte: dados da pesquisa * M = Média; DP = Desvio padrão 134 Kelly A. SILVEIRA; Sônia Regina F. ENUMO; Renata N. POZZATTO; Kely M. P. de PAULA. Indicadores de estresse e... Estressores percebidos acerca do trabalho no contexto da educação inclusiva Características sociodemográficas, pessoais e do trabalho dos professores e de seus alunos, de acordo com a presença de estresse Considerando a Educação Inclusiva, o estressor mais frequente a partir do Inventário de Indicadores de Estresse ligados ao Trabalho no Ensino Inclusivo (NAUJORKS, 2002) foi a sobrecarga de serviço, seguida da percepção de pouca preocupação em fornecer aos professores subsídios necessários ao trabalho junto à diversidade. Os estressores frequentes em mais de 50% da amostra encontram-se na Tabela 2. Tabela 2 – Indicadores mais frequentes de estresse ligados ao trabalho no ensino inclusivo (N = 19) Indicadores % “Há uma sobrecarga de serviço docente que impede o aperfeiçoamento, principalmente em relação a esta proposta.” 63 “Sinto que não existe uma preocupação efetiva em fornecer subsídios aos professores para trabalhar com a diversidade.” 63 “Sinto que esta proposta tem um conteúdo muito mais político do que pedagógico.” 63 “Meu salário não é adequado para cobrir minhas necessidades pessoais e familiares.” 53 Fonte: dados da pesquisa Para a análise das variáveis sociodemográficas e pessoais, dos alunos e do trabalho, de acordo com a presença de estresse, realizou-se um teste de diferença entre grupos para amostras não paramétricas (Mann Whitney-U), considerando duas condições: com estresse versus sem estresse. Não houve diferença significativa para a quantidade de alunos com NEE para os grupos de participantes com e sem estresse (Tabela 3). Também não houve diferenças para as variáveis sociodemográficas, do trabalho e dos alunos, no que tange à presença ou não de estresse. Foram observadas diferenças em variáveis pessoais ligadas à percepção de alguns estressores, à satisfação com o trabalho e a algumas EE (Tabela 3). Entre as professoras com estresse, houve maior pontuação para os escores totais, especialmente para os estressores ligados à grande quantidade de alunos na classe, à Tabela 3 – Diferenças significativas na percepção de estressores entre professoras de classes inclusivas com e sem estresse Condições de stress Sem estresse Estresse Variáveis analisadas Rank M* Rank M* *p-valor Estressor - Grande quantidade de alunos na classe (f ) 6,67 3,33 13,00 4,80 0,00 Estressor - Atitude pública de incompreensão sobre carga de trabalho (f ) 6,22 3,11 13,40 4,50 0,00 Estressor - Ser observado por colegas, estagiários, supervisores ou pais (f ) 7,17 1,22 12,55 2,20 0,02 Estressor (escore médio) 6,94 2,55 12,90 3,32 0,02 Estressor Educação Inclusiva (soma) 7,33 5,22 12,40 8,70 0,04 Vulnerabilidade estresse, fator infraestrutura/rotina (f ) 6,19 5,00 10,81 9,37 0,05 Coping percebido- Assegurar-se de que entende o conteúdo (f ) 12,83 4,77 7,45 3,90 0,02 Coping percebido- Tentar conhecer mais os alunos em suas especificidades, como indivíduos (f) 12,56 4,55 7,70 3,80 0,04 Coping manifesto- Assegurar-se de que entende o conteúdo (f ) 12,83 4,66 7,45 3,80 0,02 Coping manifesto- Enxergar o lado cômico da situação (f ) 12,83 4,22 7,45 3,10 0,02 Coping manifesto- Ter uma vida pessoal saudável (f ) 12,61 3,66 7,65 2,70 0,04 Coping manifesto- Ficar só (f ) 13,72 3,11 6,65 1,50 0,00 Satisfação no trabalho (escore médio) 12,83 3,73 7,45 3,00 0,03 *p = significância da diferença entre grupos. Valores ≤ 0,05 são considerados significativos pelo teste de Mann Whitnney-U. M = Média. (f )= frequência. Fonte: dados da pesquisa Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 127-142, jan./mar. 2014. 135 atitude pública de incompreensão sobre a carga de trabalho e ao fato de ser observado por colegas, estagiários e supervisores ou pelos pais dos alunos. Além disso, houve maior frequência de estressores ligados à Educação Inclusiva e maior média para o fator de vulnerabilidade para o estresse ligado à infraestrutura e à rotina. Com isso, é possível que professores com estresse possam experimentar maior percepção de sobrecarga de trabalho proveniente das interrelações entre as atividades realizadas e a oferta de materiais e recursos para o desenvolvimento do trabalho. Professoras sem estresse, por outro lado, apresentaram maior sensação de satisfação com o trabalho. Apresentaram também uma percepção mais aguçada a respeito da efetividade dos comportamentos de enfrentamento do estresse, ligados a manter-se seguro sobre o conteúdo a ser ensinado e a tentar conhecer os alunos em suas especificidades. Esse grupo demonstrou ainda maior percepção de efetividade dos comportamentos ligados ao planejamento, à busca de informações e à reestruturação cognitiva frente aos desafios, para a redução do estresse. Assegurar-se de que entende o conteúdo, ficar só, ter uma vida saudável e enxergar o lado cômico da situação foram comportamentos mais praticados entre aqueles sem estresse, em comparação ao grupo com estresse. Esses comportamentos também são ligados à busca de informações, à reestruturação cognitiva frente aos desafios e à busca de relaxamento. Discussão O presente trabalho pretendeu avaliar os níveis de estresse e os estressores percebidos em professoras do Ensino Fundamental da rede pública do município de Vitória/ES que atuam em salas com a inclusão de pelo menos um aluno com alguma NEE. Foram levadas em consideção variáveis pessoais, do trabalho e dos alunos. Uma parcela significativa da amostra apresentou quadro de estresse¸ confirmando 136 os dados da literatura que afirmam a docência como categoria vulnerável a tal condição (GOULART JÚNIOR; LIPP, 2008; MARTINS, 2005; POCINHO; CAPELO, 2009). O nível de estresse presente em nove das 10 professoras com estresse foi o de resistência, caracterizado por uma tentativa automática de lidar com as situações de estresse para manter a saúde (LIPP, 2000), fase também recorrente entre os docentes (MARTINS, 2007). Os sintomas apresentados foram, em sua maioria, físicos. Assim como em outras regiões ou redes de ensino, a maioria trabalhava em dois turnos e em duas escolas. Considerando toda a amostra, pouco mais de um quarto contava com estagiário em sala de aula, apesar de, em média, haver quase dois alunos com alguma NEE por professora. Os estressores apontados com maior frequência, considerando toda a amostra, incluíam a grande quantidade de alunos na sala e os seus problemas comportamentais, a atitude pública de incompreensão sobre o trabalho do professor, a falta de motivação dos alunos e a falta de recursos suficientes para o ensino. Pesquisas nacionais (FERREIRA, 2007; RODRIGUES et al., 2005) e internacionais (POCINHO; CAPELO, 2009; RIEG; PAQUETTE; CHEN, 2007; ZURLO; PÉS; COOPER, 2007) confirmam a presença de tais estressores. A permanência de crianças com NEE, em si, não foi um fator de estresse pontuado com alta frequência entre as professoras, podendo não ser uma variável determinante para o estresse. Possivelmente, a presença de tais alunos não seja um fator de maior desafio ou ameaça ao bem-estar no trabalho, em comparação à percepção significativa de outros problemas, como a falta de materiais e recursos, além da pouca valorização do trabalho realizado. Esses fatores, em consequência, podem interpor-se à experiência do trabalho educacional com enfoque inclusivo. Assim, o que mais parece afligir esses docentes é a falta de preocupação das políticas educacionais ou da sua efetivação no que tange ao fornecimento Kelly A. SILVEIRA; Sônia Regina F. ENUMO; Renata N. POZZATTO; Kely M. P. de PAULA. Indicadores de estresse e... de subsídios para o trabalho com a diversidade de alunos, assim como apontado por Ferreira (2007), Maia-Pinto e Fleith (2002) e Silveira e Neves (2006). Talvez, por causa disso, entre as professoras com estresse tenha havido maior frequência para fatores ligados à Educação Inclusiva, como a baixa percepção de efetividade das políticas educacionais e a percepção de pouco comprometimento com a proposta, entre outros. Os resultados apontaram alguns fatores que poderiam influenciar no contexto da sala inclusiva, tais como a quantidade de alunos em sala e a falta de recursos. Os fatores de vulnerabilidade ao estresse ligados à infraestrutura e à rotina, que constam na Escala de Vulnerabilidade ao Estresse no Trabalho (EVENT), foram mais presentes entre aquelas professoras com estresse e complementam o quadro observado a partir dos outros instrumentos de coleta de dados. Ser observado por colegas, estagiários, supervisores ou pais de alunos foi o fator menos pontuado como estressor pelas professoras. Porém, esse fator foi indicado com maior frequência por aqueles que apresentaram estresse, assim com a percepção da incompreensão pública de seu trabalho. Tendo em vista esses resultados, é possível que o professor com maiores níveis de estresse possa sentir-se mais afligido pela observação de terceiros quando o trabalho não é desempenhado nas condições ideais, ou quando seu trabalho não é tão eficaz como gostaria que fosse. Nesse caso, o raciocínio inverso também poderia ser aplicado, ou seja, aqueles professores que experimentam maior descontentamento em relação à efetivação das políticas públicas voltadas ao ensino em salas inclusivas, as quais deveriam abarcar a diversidade de características e de necessidades educativas dos alunos, poderiam sentir maior constrangimento diante da inadequação da prática realizada, ou da contradição manifesta diariamente entre o processo educacional idealizado e aquele vislumbrado de modo deficiente. Tensões cotidianas poderiam, Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 127-142, jan./mar. 2014. assim, levar a sinais mais expressivos de estresse (RITA; PATRÃO; SAMPAIO, 2010). Na tentativa de compreender as diferenças nos níveis de estresse e na percepção de estressores no modelo inclusivo, de acordo com variáveis pessoais e do trabalho, serão apresentados a seguir os dados obtidos sobre as estratégias de enfrentamento apontadas pelos professores. Assegurar-se de que entende o conteúdo a ser ensinado e tentar conhecer mais os alunos em suas especificidades foram comportamentos avaliados pelos professores sem estresse como mais eficazes no enfrentamento das dificuldades que podem surgir em sala, em comparação àqueles com nível significativo de estresse. Os professores sem estresse apresentaram também uma maior sensação de satisfação com o trabalho, o que também pode ser um fator de proteção (CARLOTTO, 2002). Sabe-se que as EE utilizadas para lidar com as situações estressantes, tanto na escola quanto em sua vida pessoal, além de modular as reações de estresse, podem influenciar a forma como os professores lidarão com os alunos em sala e na administração dos recursos didáticos (ANTONIOU; POLYCHRONI; KOTRONI, 2009; CARMONA et al., 2008). Deve-se considerar também que as EE podem sofrer influências de inúmeras outras variáveis, como o tempo de serviço, local e condições de trabalho, gênero, condições sociodemográficas (idade, estado civil e número de filhos), além da autoeficácia, entre outras variáveis (GOMES; PEREIRA, 2008; POCINHO; CAPELO, 2009). Nem todos esses modelos foram testados na presente pesquisa, de modo que estudos futuros poderão complementar a compreensão do processo de enfrentamento ao contexto da Educação Inclusiva e seus possíveis impactos, considerando as variáveis sugeridas. Os dados obtidos deflagram análises complexas acerca da experiência em salas inclusivas e do seu enfrentamento, análises essas que não deverão se encerrar nesta discussão, pois a experiência do ensino inclusivo parece ser subjacente ao processo de desenvolvimento do trabalho dos professores e merece maior 137 atenção entre os pesquisadores. Contudo, mesmo considerando as limitações presentes no método empregado no presente artigo, tais como o número reduzido de participantes e as consequentes técnicas de análise de dados, que se tornam mais imprecisas, é possível fazer alguns questionamentos. Considerando as diferenças obtidas entre os grupos com e sem estresse, é possível que, entre aqueles professores com menos estresse, haja maior adaptação às características do trabalho, tendo em vista a maior expressividade nas respostas ligadas às estratégias de enfrentamento. Diante disso, é possível indagar: aqueles professores sem níveis significativos de estresse teriam desenvolvido estratégias adaptativas às características da educação real, repleta de desafios, de diversidade e de diferenças individuais? Entende-se por educação real aquela que ultrapassa as barreiras da idealização construída durante o processo formativo, que instrumentaliza o profissional diante da falta de recursos, de materiais, de maior conhecimento e que o motiva na busca de estratégias voltadas à sua superação e ao desenvolvimento de comportamentos favorecedores do trabalho com crianças reais, em salas reais. Talvez manter o foco nos problemas do cotidiano percebidos ao longo do exercício das atribuições laborais que, por vezes, ocorrem em condições diferentes daquelas idealizadas, possa acentuar as tensões e a experiência de estresse. Com isso, ressalta-se a incompreensão pública frente à carga de trabalho do professor encontrada nos resultados, percebida de modo expressivo entre as participantes. Com a maior compreensão de seu trabalho educativo e inclusivo pela comunidade, a partir do envolvimento mais efetivo dos alunos e dos pais na vida escolar de seus filhos e de uma política de valorização do trabalho, é possível que haja impacto na satisfação e na percepção de eficácia nas atividades realizadas, com reforçamento de comportamentos adaptativos ao bem-estar e ao processo de ensino-aprendizagem. 138 Cabe também ressaltar as condições que comprometem essa percepção pelo professor, como a sensação de ser incompreendido, a pouca colaboração com o trabalho docente e a falta de envolvimento em sala de aula. Trata-se de aspectos que podem colaborar para o aumento do risco de estresse, uma vez que o professor pode sentir que necessita exercitar trabalho de grande responsabilidade sem dispor de autonomia suficiente para a produção de resultados acadêmicos e comportamentais nos alunos (ALDWIN, 2007). É possível que a persistência de estressores que coloquem em risco a percepção de autonomia e responsabilidade possa levar a atitudes de esquiva frente ao trabalho, a fim de se buscar a restauração do self e o equilíbrio. Tal postura, todavia, pode comprometer os relacionamentos estabelecidos em sala de aula com os alunos. É inegável que, para evitar o estresse e seus danos recorrentes, não seja necessária apenas uma mudança de atitude do professor frente à educação inclusiva, modalidade que intensifica a diversidade na escola, com desafios e limitações que requerem constantes tentativas de adaptação. Obviamente, o investimento em recursos e em formação deve acompanhar de forma imprescindível esta proposta. Cabe lembrar, então, que o desenvolvimento das atribuições laborais do professor, acima de tudo, necessita ser subsidiado por políticas de incentivo salarial, material e formativo, direcionadas tanto ao profissional quanto ao contexto escolar e que favoreçam os processos de saúde e a qualidade das experiências de aprendizagem criadas. Há a necessidade de uma investigação mais ampla acerca da utilização das EE e seu impacto na redução do estresse, tendo em vista os diferentes estressores que atuam no contexto escolar. Na amostra avaliada, houve mais comportamentos ligados ao planejamento, busca de informações ou reestruturação cognitiva diante de desafios entre as professoras sem estresse. É possível, com isso, que a manifestação desses comportamentos possa favorecer a autoeficácia percebida e ter efeito protetor contra o estresse docente. Kelly A. SILVEIRA; Sônia Regina F. ENUMO; Renata N. POZZATTO; Kely M. P. de PAULA. Indicadores de estresse e... Pode-se pensar também que a percepção de autoeficácia no trabalho, em si, apesar de poder ocasionar um maior esforço para mudança das condições estressoras, na medida em que se acredita ser capaz de fazê-lo (ALMOG; SHECHTMAN, 2007), pode não ser capaz de proteger o profissional do estresse, caso a presença e a percepção dos estressores seja m intensas, de modo a comprometer a relação entre a autonomia e as responsabilidades ligadas ao trabalho (ALDWIN, 2007). Desse modo, se acompanhado de investimentos materiais, formativos e em recursos humanos, o sentimento de autoeficácia pode contribuir para o bem-estar do professor e sua satisfação. Isso torna o ambiente de trabalho mais saudável, também para os alunos, na medida em que possibilita exercer a crença de controle e de modificação do ambiente (BANDURA, 1997) favorecendo a manifestação de EE mais adaptativas (POCINHO; CAPELO, 2009). É necessário destacar que, embora pequena, a amostra por nós analisada foi significativa para a região onde a pesquisa foi realizada, de modo que novas investigações com amostras maiores e mais abrangentes podem vir a complementar os dados encontrados. Seria também interessante acompanhar o cotidiano dos profissionais, suas per- cepções sobre o trabalho em salas inclusivas e o relacionamento manifesto com os alunos ao longo do ano, para melhor observar os efeitos longitudinais da docência no contexto inclusivo sobre as percepções construídas, com comportamentos exibidos e os níveis de estresse apresentados. Os resultados obtidos ajudam a confirmar a presença do estresse entre as professoras, além de destacar os principais estressores percebidos no desenvolvimento do trabalho. Destacam a presença de fatores estressantes complementares à educação inclusiva que podem ampliar a experiência de estresse, apesar da presença, em si, de alunos com NEE não ter sido apontada como fator significativo de estresse. Portanto, são interessantes intervenções preventivas voltadas ao desenvolvimento de treino para a manifestação assertiva das competências pessoais adquiridas durante a formação acadêmica, profissional ou pessoal, considerando a realidade do trabalho e seus desafios. Nesse sentido, é útil a organização de intervenções que construam, junto com os docentes, formas que facilitem a administração de situações estressoras a partir de treinamento em recursos de coping mais adequados ao contexto escolar. Referências ALBUQUERQUE, Ednea Rodrigues. Decifra-me ou te devoro: os alunos com necessidade educacionais especiais nas representações sociais de seus professores. In: ALMEIDA, Maria Amelia; MENDES, Enicéia Gonçalves; HAYSHI, Maria Cristina Piumbato Innocentini. 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Kely Maria Pereira de Paula é psicóloga e professora do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo, doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo. 142 Kelly A. SILVEIRA; Sônia Regina F. ENUMO; Renata N. POZZATTO; Kely M. P. de PAULA. Indicadores de estresse e... Interações comunicativas entre uma professora e um aluno com autismo na escola comum: uma proposta de intervençãoI Rosana Carvalho GomesII Débora R. P. NunesII Resumo Os aspectos polêmicos que envolvem o processo de inclusão de educandos com autismo nas salas de aula comuns têm suscitado debates amplos nas últimas décadas. Um dos principais desafios apontados por professores para realizar esse tipo de inclusão são os prejuízos na comunicação, tipicamente evidenciados por alunos com esse diagnóstico. Desse modo, torna-se imperativo o desenvolvimento de programas de intervenção focados no desenvolvimento das habilidades comunicativas desses alunos. Tendo isso em vista, o objetivo do presente estudo foi avaliar os efeitos de um programa de intervenção nas interações comunicativas, no contexto da sala de aula comum, entre um aluno não falante de 10 anos, com diagnóstico de autismo, e sua professora. Os dados foram coletados em uma escola de Ensino Fundamental, localizada na cidade de Natal (RN). No programa de intervenção, a professora foi capacitada a empregar estratégias do ensino naturalístico e recursos da comunicação alternativa ampliada para aumentar a frequência de interações com o aluno durante três rotinas da sala de aula. Com base em um delineamento de pesquisa quase experimental do tipo A-B (linha de base e tratamento) foram identificadas mudanças qualitativas e quantitativas nas interações professoraaluno, logo após a implementação do programa de intervenção. Limitações do estudo são apresentadas e discutidas a partir dos dados observacionais e registros das interações entre a díade. Palavras-chave Educação inclusiva — Autismo — Comunicação alternativa e ampliada. I- Dissertação de Mestrado financiada pela CAPES. II- Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil. Contatos: [email protected]; [email protected] Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 143-161, jan./mar. 2014. 143 Communicative interactions between a teacher and a student with autism in regular schools: an intervention proposal I Rosana Carvalho GomesII Débora R. P. NunesII Abstract The controversial aspects involving the process of inclusion of students with autism in public school classrooms have sparked extensive debate in recent decades. One of the main challenges faced by teachers to perform this type of inclusion are impairments in communication, typically evidenced by students with this diagnosis. Thus, it becomes imperative to develop intervention programs focused on the development of the communicative skills of these students. Keeping this in view, the aim of this study was to evaluate the effects of a program of intervention on the communicative interactions, in the context of common classrooms, between a non-speaking student aged 10 years, diagnosed with autism, and his teacher. Data were collected in a primary education school located in Natal city, Rio Grande do Norte state. In the intervention program, the teacher was trained to employ naturalistic teaching strategies and resources of extended alternative communication to increase the frequency of interactions with the student during three routines of the classroom. Based on a quasi-experimental research design of AB type (baseline and treatment), we identified qualitative and quantitative changes in teacher-student interactions shortly after the implementation of the intervention program. Limitations of the study are presented and discussed on the basis of observational data and records of the interactions between the dyad. Keywords Inclusive education — Autism — Extended and alternative communication. I- Master’s thesis funded by CAPES. II- Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brazil. Contact: [email protected]; [email protected] 144 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 143-161, jan./mar. 2014. Introdução O autismo é um transtorno do desenvolvimento neurobiológico, definido por critérios essencialmente clínicos. Passível de ser detectado antes dos 36 meses de vida, o autismo é o mais prevalente e conhecido dentre os Transtornos Globais do Desenvolvimento (TGD), acometendo homens em proporção quatro vezes superior às mulheres. Para que se tenha uma dimensão do contingente populacional de que estamos tratando, ressaltamos que pesquisas epidemiológicas internacionais indicam que os TGD afetam um em cada 160 indivíduos (ELSABBAGH, 2012). No Brasil, os valores são ainda maiores: um estudo conduzido por Paula et al. (2011) sugere que o autismo e suas variações afetam um em cada 350 brasileiros. No que se segue, passamos a descrever algumas das características típicas de pessoas diagnosticadas com autismo, consideradas por nós como relevantes para o presente estudo. Quanto ao comportamento, à interação social e à comunicação de pessoas diagnosticadas como autistas, percebem-se prejuízos qualitativos e quantitativos bastante marcados (APA, 2002). Nos casos de comportamentos atípicos, por exemplo, pode haver adesão aparentemente inflexível a rotinas desadaptativas, rituais não funcionais, padrões restritos de interesses, além de maneirismos motores estereotipados e repetitivos. Os prejuízos qualitativos nas interações sociais são evidentes nos comportamentos não verbais, tais como dificuldades em manter o contato visual ou a presença de expressões faciais e posturas corporais atípicas durante interação interpessoal. Cabe, ainda, ressaltar aspectos como o fracasso em desenvolver relacionamento com pares, a falta de reciprocidade emocional e a ausência de tentativas em compartilhar prazer, interesses ou realizações com o outro (APA, 2002). As alterações da linguagem podem variar de acordo com o grau de severidade do quadro clínico. Para que se tenha uma ideia, aproximadamente 30% dos autistas são Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 143-161, jan./mar. 2014. desprovidos da linguagem verbal (KLIN, 2006). Outros, apesar de desenvolverem a linguagem, não apresentam intenção comunicativa ou exibem atipicidades, como ecolalia, inversão pronominal e dificuldades na prosódia (MACEDO; ORSATI, 2011). Adicionalmente, o sistema de comunicação gestual, tanto em indivíduos vocais quanto não vocais, pode ser deficitário (APA, 2002). Além disso, o cometimento na compreensão da linguagem falada é outra característica comum dessa população (MACEDO; ORSATI, 2011; HALL, 2012). A tríade sintomatológica que caracteriza o perfil da pessoa com autismo não pode ser ignorada no contexto da escola. As especificidades da síndrome podem interferir no aprendizado e na inclusão social desses indivíduos em ambientes educacionais (HALL, 2012; NUNES, 2012). A proximidade física com os colegas, a dificuldade em apreender regras sociais, a falta de compreensão de instruções verbais ou a incapacidade em utilizar a linguagem falada podem representar desafios para essa população. Vale ressaltar, ainda, que estudos nacionais e internacionais revelam que os professores se sentem despreparados para lidar com a sintomatologia autista no contexto da sala de aula comum, conforme já estudado em diversas ocasiões (MCGREGOR; CAMPBELL, 2001; ROBERTSON; CHAMBERLAIN; KASARI, 2003; ALVES, 2005; MARTINS, 2007; SERRA, 2008). Ao serem interrogados, esses docentes indicam que um dos principais desafios é educar alunos que apresentam limitada competência comunicativa (MCGREGOR; CAMPBELL, 2001). Os prejuízos comunicativos tipicamente observados nessa população podem ser minimizados pelo uso da Comunicação Alternativa e Ampliada (CAA) (NUNES, 2008; WENDT, 2009; MACEDO; ORSATI, 2011). A comunicação alternativa é aquela em que os recursos substituem a fala, e a ampliada é aquela em que esses recursos suplementam a fala. Estudos sobre CAA no Brasil têm crescido nas últimas décadas (CUNHA, 1997; ARAUJO; 145 NUNES, 2003; DELIBERATO, 2009; SCHIRMER; NUNES et al., 2009; PAULA; ENUMO, 2007; WALTER; ALMEIDA, 2010). Trata-se de uma área da prática clínica e educacional que objetiva compensar, temporária ou permanentemente, os prejuízos na comunicação expressiva e receptiva. Ela envolve o uso de gestos manuais, expressões faciais e corporais, símbolos gráficos (fotografias, gravuras, desenhos, linguagem alfabética, objetos reais e miniaturas), voz digitalizada ou sintetizada, dentre outros meios que podem ser usados para efetuar a comunicação face a face de pessoas que apresentam limitações no uso e/ou na compreensão da linguagem oral. A metodologia de intervenção utilizada para capacitar populações com prejuízos na linguagem a utilizar os recursos da CAA é o Ensino Naturalístico (EN), o qual se tem destacado em muitas das pesquisas realizadas na área (LAMONICA, 1993; NUNES, 2000; PAULA; NUNES, 2003; ARAUJO; NUNES, 2003; NUNES et al., 2009). O EN é um modelo geral de intervenção em linguagem, que inclui diversos programas de tratamento (CUNHA, 1997). De acordo com Nunes (1992), os seguintes elementos são considerados comuns a esses programas: a) o uso de reforçadores indicados pelo aprendiz; b) o interesse da criança, considerado como fio condutor no processo de aprendizagem; c) as contingências do meio natural utilizadas para o aumento na frequência de emissões de respostas desejadas; d) a ênfase dada à competência comunicativa do educando em vez da linguagem per se; e e) o ensino realizado durante atividades cotidianas em contextos e ambientes naturais. Dentre as estratégias de ensino derivadas da abordagem naturalística, destacam-se: o arranjo ambiental, o modelo dirigido à criança, o mando e a espera. Esses procedimentos, que serão posteriormente definidos no presente artigo, permitem à criança aumentar a frequência de interação com pessoas e objetos do seu meio (CUNHA, 1997). 146 Com relação à eficácia desse tipo de abordagem, ressaltamos que, em uma avaliação de programas de intervenção dirigidos para populações com autismo, o uso das Estratégias Naturalísticas de Ensino (ENE) foi categorizado como uma prática cientificamente válida1 (NATIONAL AUTISM CENTER, 2013). No contexto educacional, no entanto, o número de estudos que avaliam a eficácia das ENE no ensino da CAA para populações com autismo é limitado (NUNES et al., 2009). A pesquisa realizada por Nunes et al. (2009) investigou o trabalho de uma professora que recebeu capacitação para utilizar as ENE para ensinar uma menina autista, de 6 anos, a usar os recursos da CAA em um ambiente de sala de aula especial. Os resultados do estudo evidenciaram que a professora, após o programa de treinamento, passou a se comunicar em vários contextos de interação com a criança. Houve generalizações das práticas aprendidas para outro contexto e aumento na frequência de turnos comunicativos da criança. Tendo em vista a relevância desse tipo de investigação, o presente artigo tem como propósito a ampliação dos estudos nesse campo, focando o uso dos recursos da CAA por aluno com autismo, no contexto da escola comum. Assim, visamos a avaliar os efeitos do emprego de um programa de capacitação do professor para a utilização dos recursos da CAA com um aluno com autismo, por meio de ENE. Metodologia da pesquisa O presente estudo foi conduzido com Luan, um aluno com diagnóstico de autismo, e Sônia, sua professora. Na ocasião em que realizamos a pesquisa, o menino havia completado 10 anos e estava matriculado no 3o ano de uma escola comum do Ensino Fundamental. Aos 3 anos, recebera diagnóstico de autismo, por um neuropediatra. Adicionalmente, por meio do 1- Práticas cientificamente válidas são descritas como métodos e técnicas que tenham produzido resultados positivos quando testados experimentalmente (SIMPSON, 2005). Rosana Carvalho GOMES; Débora R. P. NUNES. Interações comunicativas entre uma professora e um aluno... instrumento Childhood Autism Rating Scale – CARS2 (PEREIRA et al., 2008), aplicado pelas autoras no início da pesquisa, obtiveram como resultado a constatação de que o grau de autismo de Luan foi considerado severo (52 pontos). No que se refere ao comportamento, suas verbalizações eram limitadas e desprovidas de intenção comunicativa. A ausência de fala funcional não era compensada pelo uso de gestos ou outras formas não verbais de comunicação. O aluno demonstrava, ainda, dificuldade em interagir com seus pares, limitada compreensão da fala e exibição de estereotipias motoras e inflexibilidade comportamental. Sônia, 41 anos, trabalhava há 14 como professora. Sua formação profissional era de nível médio, no curso de magistério. Embora tivesse experiência como docente em outros estabelecimentos de ensino, não havia trabalhado com crianças com necessidades educacionais especiais, até o momento da pesquisa. O estudo foi conduzido em uma sala de aula comum de 3o ano de uma escola da rede privada de ensino. A instituição, localizada em um bairro de classe média da cidade de Natal (RN), atendia aproximadamente a 120 alunos da Educação Infantil ao Ensino Fundamental. Foram utilizados alimentos, jogos, atividades pedagógicas e pictogramas contendo fotografias ou símbolos PCS3 dos objetos ou atividades realizadas durante as rotinas escolares. Uma câmera filmadora portátil, uma câmera fotográfica digital e um laptop foram os equipamentos usados. Para registrar as interações entre professora e aluno, optou-se pelo uso de dois roteiros de entrevista individual e um diário de campo, no qual foram registradas as impressões e anotações da pesquisadora (1a autora). 2- CARS - entrevista estruturada, traduzida e validada no Brasil por Pereira e colaboradores (2008), que avalia o comportamento em 14 habilidades tipicamente afetadas pelo autismo. A pontuação varia de 15 a 60, sendo 30 o ponto de corte para o autismo (PEREIRA et al., 2008). A escala auxilia no diagnóstico diferencial e na classificação do grau de severidade da síndrome, como leve, moderada ou severa. A aplicação pode ser feita por profissionais de qualquer área com experiência em autismo. 3- Símbolo PCS – Picture Communication Symbols. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 143-161, jan./mar. 2014. O presente estudo caracteriza-se como uma pesquisa quase experimental, com um delineamento do tipo A-B (KENNEDY, 2005). As respostas comunicativas da díade professoraaluno constituíram as variáveis investigadas. Essas variáveis foram, inicialmente, categorizadas em tipos de turno, conforme indicado no Quadro 1 abaixo: Quadro 1 – Tipos de turnos Turno Definição Resposta Enunciados verbais/vocais, gestuais (gestos, língua de sinais e expressões faciais) ou pictográficos emitidos pelo aluno/professora após pergunta/solicitação do parceiro. Iniciativa Enunciados verbais/vocais, gestuais (gestos, língua de sinais e expressões faciais) ou pictográficos emitidos pelo aluno/professora sem ocorrência de solicitação de resposta do parceiro. Fonte: Elaboração das autoras do artigo. Os turnos (iniciativa e resposta) foram, posteriormente, categorizados em cinco modalidades, conforme indicado no Quadro 2, abaixo: Quadro 2 – Modalidade de turnos Modalidade Definição Gestual Olhar, expressão facial, contato corporal e ação gestual (convencional; simbólica e de contenção) emitidos pelo aluno ou professora durante um turno (iniciativa ou resposta). Verbal/vocal Pictográfica Gestual e pictográfico Verbal/vocal e pictográfico Verbalizações, sons guturais, gemidos, murmúrios, balbucios ou vocábulos não inteligíveis emitidos pelo aluno ou professora durante um turno (iniciativa ou resposta). Uso de pictograma (fichas com fotos da rotina e objetos do aluno dispostas na mesa, ou em uma pasta de comunicação) pelo aluno ou professora durante um turno (iniciativa ou resposta). Uso simultâneo de duas modalidades: gráfico (pictogramas) e gestual (gestos manuais/ corporais e expressões faciais) pelo aluno ou professora durante um turno (iniciativa ou resposta). Uso simultâneo de duas modalidades: verbal (fala inteligível)/vocal (vocábulos não inteligíveis) e gráfico (pictogramas) pelo aluno ou professora durante um turno (iniciativa ou resposta). Fonte: Elaboração das autoras do artigo. 147 Como se trata de um estudo no qual as autoras participaram ativamente das interações entre Luan e Sônia, cabe apontar para o fato de que a primeira autora, com formação em pedagogia, atuou como agente de capacitação. Ela exercia, há dez anos, a função de pedagoga, tendo trabalhado durante cinco anos com crianças com deficiência em escola comum no estado do Piauí. No presente manuscrito, essa será identificada como pesquisadora. O projeto foi inicialmente submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Parecer no 038/2010; CAAE no 0212.0 051.000-09). A formalização do consentimento se deu por meio de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), assinado pela mãe do aluno e pela professora. Após a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética e a assinatura do TCLE, o estudo foi operacionalizado em seis etapas distintas: entrevistas/observações, treinamento dos assistentes de pesquisa, identificação das rotinas-alvo, linha de base, capacitação e intervenção. Cada uma delas foi descrita abaixo: Etapa 1: entrevistas/observações. A pesquisadora realizou uma entrevista com a mãe e outra com a professora de Luan, na casa e na escola do aluno, respectivamente. Os encontros, com duração aproximada de 60 minutos, foram estruturados considerandose um roteiro de entrevista previamente elaborado pelas autoras. Com o propósito de complementar os dados das entrevistas, assim como identificar as habilidades comunicativas do aluno no contexto escolar, a pesquisadora realizou quatro sessões de observação de Luan, com duração média de 60 minutos, no ambiente escolar. Os dados foram devidamente registrados em um diário de campo. 148 Etapa 2: treinamento dos assistentes de pesquisa. Duas alunas graduandas do curso de pedagogia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte foram treinadas no sentido de categorizarem as variáveis previamente definidas. Ambas foram bolsistas, durante três anos, em um projeto de pesquisa envolvendo o uso da comunicação alternativa para alunos com autismo. A capacitação dessas duas bolsistas foi implementada pelas autoras e envolveu procedimentos como discussões, análise de vídeos e leituras. Após a familiarização com os procedimentos empregados, as assistentes classificaram as sessões de linha de base e intervenção. Ao término das videogravações, realizadas pela pesquisadora, as sessões eram então entregues às alunas. Cada assistente ficou responsável pela categorização de 50% das sessões. Com o propósito de verificar o grau de fidedignidade das categorias de respostas analisadas no presente estudo, a pesquisadora, atuando como segunda avaliadora, randomicamente avaliou 50% do total das sessões analisadas pelas duas assistentes. Vale ressaltar que as assistentes de pesquisa atuaram como primeiras avaliadoras. O cálculo de concordância foi obtido por meio do índice de concordância descrito por Fagundes (1985). Esse índice variou entre 73 e 100%, indicando boa fidedignidade. Etapa 3: Identificação das rotinas alvo. A partir dos registros de observações e entrevistas foram selecionadas, junto com a professora, três rotinas durante as quais ocorreriam as intervenções: no decorrer do lanche, em atividades pedagógicas e na entrada da escola. Essas rotinas foram escolhidas porque aconteciam diariamente e pelo fato de a professora expressar dificuldade em se comunicar com o aluno durante as referidas atividades. No presente artigo, serão Rosana Carvalho GOMES; Débora R. P. NUNES. Interações comunicativas entre uma professora e um aluno... apresentados os resultados das duas primeiras rotinas: lanche e atividade pedagógica. Etapa 4: Linha de base. Nessa fase, a professora foi instruída a interagir livremente com o aluno nas três rotinas selecionadas. As sessões foram videografadas, e a frequência de turnos e a modalidade de respostas utilizadas pela díade foram mensuradas. Houve também avaliação a respeito do fato de a professora utilizar ou não, de forma espontânea, as ENE. Os critérios foram definidos no Quadro 3, abaixo:4 Quadro 3 – Estratégias naturalísticas de ensino utilizadas no estudo Estratégias Definição Consiste na organização do ambiente com pictogramas acessíveis ao aluno e objetos de Arranjo ambiental seu interesse dispostos em seu campo visual, mas fora de seu alcance. A professora tece comentários, formula perguntas e faz solicitações utilizando, Mando com CAA simultaneamente, a linguagem oral e o sistema pictográfico de comunicação. dos gráficos, a estabilidade na frequência de turnos da professora na rotina do lanche. Foram realizados, na escola, três encontros de capacitação com a professora. Nesses episódios, Sônia compartilhou com a pesquisadora seu planejamento bimestral, no qual estavam descritos os conteúdos acadêmicos. Em seguida, foram apresentados segmentos de sessões de linha de base à professora. A partir do material videografado, a professora e a pesquisadora elencaram fatores que pareciam prejudicar a interação da díade, assim como aspectos positivos do comportamento de Luan e da própria docente. A partir dessas discussões, foram descritos os conceitos de Comunicação Alternativa e Ampliada e apresentadas as quatro ENE, previamente definidas neste manuscrito. Com o auxílio da pesquisadora, foram confeccionados pictogramas5 a serem empregados durante as três rotinas e reelaboradas as atividades acadêmicas apresentadas no planejamento de Sônia. Etapa 6: intervenção Essa etapa teve início quando foi evidenciada, por meio de inspeção visual Ao término da capacitação, Sônia foi instruída a utilizar as estratégias aprendidas nas rotinas em que recebeu o treinamento. Ela não recebia instruções da pesquisadora durante esses episódios, mas, nos encontros subsequentes, a pesquisadora fornecia dicas pontuais sobre as interações previamente realizadas. As rotinas foram videografadas, e, posteriormente, analisados: a frequência de turnos, a modalidade de respostas da díade e os tipos de ENE empregados pela professora. Dois roteiros de entrevista foram elaborados pelas autoras. No instrumento utilizado com a mãe constavam itens sobre o desenvolvimento do aluno, seu histórico social e escolar, assim como suas rotinas em casa. Com a professora, o roteiro incluía perguntas sobre o comportamento de Luan em sala de aula e os tipos de atividades realizadas com o aluno. As entrevistas foram gravadas e transcritas pela pesquisadora. 4- Essas estratégias foram adaptadas de estudos realizados previamente por Oliveira (2002), Souza (2000), Nunes (2000; 2005) e Danelon (2009). 5- Fotos da rotina de Luan na sala de aula (lavar as mãos, lancheira, biscoito, batata, água). Modelo A professora oferece ajuda física com o objetivo de guiar o aluno para fixar a atenção no que está fazendo. Esse procedimento é acompanhado por comentários, perguntas ou solicitações verbais. Espera A professora aguarda, de forma silenciosa, a iniciativa de interação do aluno. Fonte: Elaboração das autoras do artigo. A análise dessas estratégias foi realizada da seguinte maneira: a pesquisadora assistia às sessões videografadas, as quais haviam sido codificadas, e transcrevia os episódios em que as ENE eram utilizadas por Sônia. Etapa 5: capacitação Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 143-161, jan./mar. 2014. 149 As sessões de linha de base e intervenção foram videografadas pela pesquisadora. O tempo de duração das interações variava de cinco a dez minutos, aproximadamente. Para fins de análise e controle da variável tempo, apenas os primeiros cinco minutos de interação foram considerados nas avaliações. A análise dos dados ocorreu em duas etapas. Inicialmente, as variáveis turno e modalidade de respostas foram codificadas pelas assistentes de pesquisa e pela pesquisadora. A frequência dessas variáveis foi disposta em gráficos. Posteriormente, a pesquisadora revisou as sessões codificadas e transcreveu os episódios em que as ENE foram empregadas pela professora. Tratando-se de uma pesquisa quase experimental (A-B), a análise ocorreu por meio de inspeção visual dos dados plotados graficamente. Dessa forma, as variáveis (turno e modalidade de respostas) foram categorizadas e, posteriormente, suas frequências disponibilizadas em gráficos. O critério para finalizar a fase de linha de base e iniciar a capacitação foi a estabilidade observada na frequência de turnos da professora em uma das rotinas selecionadas, conforme exposto anteriormente. Em seguida, as mesmas sessões foram analisadas pela pesquisadora, que transcreveu os episódios em que as ENE foram empregadas nas fases de linha de base e de intervenção. As informações dos gráficos e as transcrições da pesquisadora foram complementadas com os dados das entrevistas e do diário de campo. Resultados O objetivo geral do presente estudo foi avaliar os efeitos de um programa de intervenção nas interações comunicativas entre um aluno com diagnóstico de autismo e sua professora, no contexto da sala de aula comum. A partir desse objetivo, três questões norteadoras da pesquisa foram elaboradas: 1. Quais os efeitos do programa de capacitação no uso de estratégias de ensino empregadas pela professora? 150 2. Quais os efeitos do programa de capacitação nos turnos (iniciativas e respostas) da professora e do aluno? 3. Quais os efeitos do programa de capacitação nas modalidades dos turnos da díade? As respostas foram extraídas dos diários de campo e da análise das sessões videografadas, no decorrer dos cinco meses de estudo. No total, foram realizadas 22 sessões (11 de linha de base e 11 de intervenção), em cada rotina. Quanto aos efeitos do programa de capacitação no uso das estratégias de ensino empregadas pela professora, destacou-se o fato de que antes da intervenção foram detectadas situações nas quais as ENE poderiam ter sido empregadas no momento do lanche, o que não ocorreu. Esse fato foi particularmente evidenciado na sessão três, linha de base, descrita a seguir: Neste dia há dois cartões sobre a mesa de Luan, o da água e o da atividade pedagógica. Outros cartões de alimentos (batata e biscoito) e atividades rotineiras (lavar as mãos) estão na mesa da professora, fora do campo visual do aluno. A professora se aproxima de Luan e diz: “Lanchar, vambora!” Ela o conduz pela mão até o banheiro e fornece ajuda física para que ele lave as mãos. Eles voltam para a sala de aula. Luan senta em sua carteira e a professora caminha até a prateleira. Ela pega a lancheira de Luan, abre e leva até ele. Ele olha para a lancheira. Ela pergunta: “Você quer batatinha ou biscoito?”. Ele pega o pacote de batatas. Ela toma o pacote das mãos de Luan, abre e devolve a ele. (GOMES, cd 1, 2010) Na sessão explicitada acima, alguns dos pictogramas que Luan poderia ter utilizado durante a interação estavam fora de seu campo visual. O emprego de estratégias como o mando com CAA, a espera e o arranjo ambiental pela professora seria apropriado no contexto descrito. Sendo assim, ela poderia ter Rosana Carvalho GOMES; Débora R. P. NUNES. Interações comunicativas entre uma professora e um aluno... sinalizado a rotina de lavar as mãos e lanchar utilizando os pictogramas que estavam em sua mesa (mando com CAA). Da mesma forma, poderia ter mostrado ao aluno os pictogramas da batata e do biscoito, incitando-o a indicar o que gostaria de lanchar. Em seguida, em vez de abrir o pacote de batatas para ele, poderia ter utilizado o procedimento de espera para estimular a iniciativa de interação do aluno. O saco de batatas poderia ter permanecido com a professora e oferecidas poucas batatas, por vez, a ele. Isso caracterizaria o procedimento de arranjo ambiental, que poderia favorecer o aumento na frequência de iniciativas de interação do aluno. O relato da sessão cinco (linha de base) evidencia a carência de uso das ENE durante as rotinas pedagógicas. Nessa sessão, a turma está realizando uma atividade de matemática enquanto Luan senta no fundo da sala manipulando, de forma estereotipada, um pincel. Na mesa de Luan há seis pictogramas, duas cédulas de 2 e 5 reais e duas cópias pequenas das mesmas notas. A proposta da atividade é para que Luan coloque as cópias das cédulas sobre as notas originais. A professora se aproxima de Luan e retira o pincel de sua mão, dizendo: “Tá bom, você já brincou demais!”. Ela puxa o menino para cima, pelas mãos. Ele resiste, contraindo o corpo para o chão. Ela diz: “Venha!”. Ele levanta e senta na carteira. Ela mostra: “Olha Luan, 2 reais! Coloca aqui, ó!”. Ela aponta para a nota original, solicitando que ele coloque a cópia sobre ela. (GOMES, cd 1, 2010) A falta de responsividade de Luan pode ter sido em função da dificuldade de compreender a fala da professora. Assim, a professora poderia ter utilizado os pictogramas das atividades enquanto dava comandos verbais ao aluno (mando com CAA). Cabe enfatizar que o uso de duas modalidades de expressão (verbal e pictográfica) pode favorecer a compreensão Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 143-161, jan./mar. 2014. de alguns alunos com diagnóstico de autismo (HEFLIN; ALAIMO, 2007). Apesar de ter acesso aos pictogramas na interação descrita, Luan não os utilizou como alternativa de expressão. Podemos atribuir esse comportamento à falta de instruções explícitas de como utilizá-los. Isso porque estudos anteriores apontam que a mera exposição da pessoa com autismo aos recursos da CAA pode ser pouco eficaz para o desenvolvimento de novas formas de expressão (NUNES et al., 2009). Após o programa de capacitação, foram identificados episódios em que as estratégias de ensino foram adequadamente utilizadas. O relato da sessão 16 (intervenção) abaixo, indicou o uso apropriado do arranjo ambiental durante a atividade de lanche: Luan está sentado no chão no canto da sala. Na carteira dele, localizada ao lado da professora, há oito cartões de CAA, incluindo o pictograma da lancheira e do copo. A lancheira e o copo encontram-se na prateleira, no canto da sala, à vista dele, mas fora de seu alcance. (GOMES, cd 2, 2010) No exemplo acima, observa-se o uso de arranjo ambiental, uma vez que a professora colocou os objetos à vista do aluno, mas longe de seu alcance. Essa organização do ambiente físico pode instigar, conforme evidenciado na literatura, iniciativas de interação social (NUNES, 1992). No caso de Luan, poderia estimulá-lo a utilizar os pictogramas para solicitar sua lancheira, que estava inacessível. Na atividade pedagógica da sessão 16, descrita a seguir, o aluno tinha à sua frente várias gravuras de animais separados por quantidade e colocados em sequência de ordem numérica. A proposta da atividade era que Luan colocasse duas fichas ao lado de cada gravura. A professora aponta para a gravura e diz: “Olhe uma vaquinha Luan! Coloca aqui Luan, o número 1 de uma vaquinha!”. Ela permanece em silêncio, observando o 151 menino por alguns segundos. Ele pega a figura da vaca. Ela verbaliza: “A vaquinha não Luan, o numeral 1. Vá Luan, uma vaquinha, o número 1!”. Luan posiciona a mão sobre o numeral 1 e olha para a professora. Ela aponta para a gravura da vaca e, em seguida, para o numeral. Ela diz: “Agora uma bolinha, pega Luan!”. Ele pega a ficha com as bolinhas e põe ao lado da figura da vaca. Ela verbaliza e aponta para as fichas: “Olha Luan, que lindo! Uma vaquinha, o numeral 1 e uma bolinha! Muito bem Luan! [...]”. (GOMES, 2010, cd 2) No episódio acima descrito, a professora realizou a tarefa com Luan utilizando as gravuras da atividade e a linguagem verbal, de forma simultânea. Sempre que o aluno desviava o olhar ou resistia em pegar os materiais, ela chamava a sua atenção, pegava sua mão e colocava em cima da gravura, reiniciando a ação com comando de voz e indicação das fichas. O pareamento de estímulos verbais e visuais empregado por Sônia pode ter favorecido a compreensão do aluno, mantendo-o atento à tarefa. O procedimento de espera ocorreu quando a professora pediu para Luan pegar as gravuras e colocar nos lugares apontados por ela. Nesses episódios, era dado um tempo de aproximadamente dez segundos para ele dar a resposta. Quando não havia resposta, a professora repetia a ação, provendo dicas verbais ou ajudando-o fisicamente no prosseguimento da atividade. Apresentados alguns dos principais procedimentos verificados na interação entre Luan e Sônia, no que se segue apresentam-se os efeitos do programa de capacitação nos turnos da díade nas rotinas investigadas, por meio do gráfico 1, a qual indica a frequência de turnos da díade nas sessões de lanche. Gráfico 1 - Lanche: frequência de turnos da professora e do aluno Linha de base 30 Intervenção 25 Frequência 20 15 10 5 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 Turno da professora Turnos do aluno Fonte: dados da pesquisa. 152 Rosana Carvalho GOMES; Débora R. P. NUNES. Interações comunicativas entre uma professora e um aluno... O Gráfico 1 sugere relativa estabilidade e baixa frequência de turnos comunicativos da professora e do aluno nas sessões de linha de base. Esse fenômeno pode ser justificado pelo distanciamento físico da díade professora-aluno. No momento do lanche, Sônia tipicamente entregava os alimentos a Luan e retornava à sua mesa. Ele, por sua vez, permanecia em seu assento, até consumir a merenda. A interação de Sônia com Luan limitava-se a comandos verbais, solicitando sua permanência na carteira até finalizar o lanche. Ele, por vezes, vocalizava e dirigia o olhar para a professora, mas, em geral, suas iniciativas de interação não eram percebidas por ela. O aumento na frequência de ocorrência de turnos da díade na fase intervenção pode ser observado no gráfico 1. Essa tendência ascendente pode ter sido ocasionada pelas estratégias implementadas pela professora após o programa de capacitação. A proximidade física estabelecida com o aluno, que começou a sentarse ao seu lado, parece ter também favorecido o aumento na frequência das interações. O gráfico 2 indica a frequência de turnos da díade nas rotinas da atividade pedagógica. Gráfico 2 - Atividade pedagógica: frequência de turnos da professora e do aluno Linha de base 30 Intervenção 25 Frequência 20 15 10 5 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 Turno da professora Turnos do aluno Fonte: dados da pesquisa A maior frequência de interação da díade ocorreu durante as atividades pedagógicas. Esse padrão de respostas pode ser justificado pelo fato de ser o único momento em que a professora se sentava por mais tempo para interagir, individualmente, com o aluno. Apesar da elevada frequência, a qualidade da interação durante a fase de linha de base nem sempre era positiva. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 143-161, jan./mar. 2014. Luan mostrava-se pouco responsivo às tarefas propostas pela professora antes da intervenção. Essa baixa responsividade se manifestava por comportamentos como: reduzida frequência em dirigir o olhar para a atividade, lassidão das mãos no momento de segurar os lápis, estereotipias motoras e tentativas de levantar-se da carteira. Nessas 153 ocasiões, a professora ficava em pé, na frente dele, fazendo contenção física e empregando elogios para mantê-lo na tarefa. O comportamento de desinteresse de Luan pode ser atribuído à falta de compreensão ou motivação para realizar as atividades. De fato, dados observacionais revelaram que, muitas vezes, as tarefas propostas antes da intervenção pareciam inapropriadas para ele. Foram identificados poucos momentos em que Sônia individualizou a atividade pedagógica, considerando as necessidades educacionais específicas de Luan. Conforme aludem Oliveira e Machado (2007), a falta de adaptação curricular pode determinar a menor participação acadêmica do educando com necessidades educacionais especiais na sala de aula comum. Nesse contexto, as estereotipias motoras e outras condutas desadaptativas observadas durante essas atividades possivelmente refletem o não envolvimento de Luan com as tarefas. De maneira geral, após a implementação do programa de capacitação, as atividades propostas passaram a ser mais bem adaptadas e realizadas, em grande parte, com o apoio de pictogramas. Conforme sugerido na literatura, o uso de recursos visuais pode facilitar a compreensão de educandos com autismo (WENDT, 2009). Esse parece ter sido o caso de Luan. Como possível consequência da introdução dos recursos de CAA, foi observada melhora qualitativa nas interações estabelecidas pela díade. Sônia passou a interagir com Luan não apenas para redirecioná-lo para a tarefa, mas também para tecer comentário e fazer solicitações durante as atividades. O aumento na frequência de turnos da professora foi acompanhado pelo aumento na frequência de turnos do aluno, tanto na rotina do lanche quanto durante as atividades pedagógicas. Na medida em que a professora diminuía a frequência de turnos, o aluno comportava-se de forma semelhante. Conforme argumenta Carvalho (1986, 2003, p. 90), “o comportamento do aluno influencia o comportamento do professor e vice-versa”. Para tratar a respeito dos efeitos do programa de capacitação nas modalidades de respostas empregadas pela díade, apresentamos a tabela 1. Ela indica o somatório da frequência dos turnos gestuais, verbais/vocais, pictográficos, verbais/vocais/gestuais e verbais/ vocais/pictográficos empregados pela díade durante todas as sessões de linha de base e intervenção na hora do lanche. Tabela 1 – Somatório das frequências de modalidades de turnos empregados pela díade nas rotinas de lanche Professora Aluno Linha de base Intervenção Linha de base Intervenção Gestual 10 13 23 57 Verbal/vocal 25 69 16 32 Pictográfico 6 2 12 29 Verbal/vocal/ Gestual 20 33 1 5 Verbal/vocal/Pictográfico 12 66 0 9 Total 73 183 52 132 Fonte: Dados da pesquisa. De modo geral, esses dados refletem um aumento na frequência de turnos empregados pela díade, nas diferentes modalidades, na rotina de lanche, após o programa de capacitação. A única exceção é uma ligeira 154 queda na frequência de turnos pictográficos pela professora. Os gráficos 3 e 4 indicam a porcentagem de cada modalidade de turno empregada nas sessões de linha de base e intervenção na hora do lanche. Rosana Carvalho GOMES; Débora R. P. NUNES. Interações comunicativas entre uma professora e um aluno... Gráfico 3 – Porcentagem das modalidades de turnos empregados pela professora na hora do lanche Linha de base Intervenção 38% 38% 34% 27% 18% 16% 14% 8% 7% 1% Gestual Pictográfico Verbal Verb/gestual Verb/picto Fonte: Dados da pesquisa. Gráfico 4 - Porcentagem das modalidades de turnos empregados pelo aluno na hora do lanche Linha de base 44% Intervenção 43% 31% 24% 23% 22% 2% Gestual Verbal Pictográfico 4% Verb/gestual 7% 0% Verb/picto Fonte: Dados da pesquisa. O gráfico 3 revela que a professora, tipicamente, interagia com Luan por meio de verbalizações acompanhadas ou não por gestos, antes da intervenção. Após a capacitação, foi observado aumento expressivo no emprego dos pictogramas associados à verbalização/ vocalizações e diminuição de turnos gestuais. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 143-161, jan./mar. 2014. Esses dados sugerem que Sônia substituiu os gestos pelo uso dos cartões de comunicação, como ilustra o trecho a seguir: Luan está no canto da sala com um jogo de memória do “Menino Maluquinho” nas maõs. A professora pega o cartão de 155 o aumento de turnos verbais/vocais associados ao uso de pictogramas. A partir desses dados é possível conjecturar que Luan passou a explorar outras modalidades de expressão, como o uso de pictogramas, após o programa de intervenção. A Tabela 2, abaixo, indica o somatório da frequência dos turnos gestuais, verbais, pictográficos, verbais/gestuais e verbais/ pictográficos empregados pela díade durante todas as sessões de linha de base e intervenção na rotina de atividades pedagógicas. “lavar as mãos” que está sobre a sua mesa. Ela caminha até o menino e aponta para o cartão, enquanto diz: “Vamos lavar as mãos para depois lanchar, vamos Luan?” (GOMES, cd 2, 2010) Em relação a Luan, é observada a preferência pelas modalidades gestuais e verbais/vocais, antes da intervenção, conforme revela o gráfico 4. Essa tendência é mantida após a capacitação. Vale ressaltar, no entanto, Tabela 2 – Somatório das frequências de modalidades de turnos empregados pela díade nas rotinas de atividades pedagógicas Professora Aluno Linha de base Intervenção Linha de base Intervenção Gestual 12 10 73 56 Verbal/vocal 37 38 16 22 Pictográfico 9 0 39 40 Verbal/vocal / Gestual 65 69 16 12 Verbal/vocal /Pictográfico 92 110 2 1 Total 215 227 146 131 Fonte: dados da pesquisa. Assim como na rotina de lanche, a professora evidenciou aumento da frequência de turnos após a intervenção. Foi observada, também, uma diminuição no uso de pictogramas de forma isolada e um aumento na modalidade verbal, associada ou não ao uso dos cartões de comunicação por Sônia. Luan, por sua vez, diminuiu a frequência de turnos, após a implementação do programa. De forma específica, vocalizou mais e empregou menos gestos associados ou não a vocalizações. As outras modalidades de expressão não apresentaram alterações expressivas. Os gráficos 5 e 6, que se seguem, indicam a porcentagem de cada modalidade de turno empregada nas sessões de linha de base e intervenção nas atividades pedagógicas. De forma geral, o programa de intervenção parece ter produzido poucas alterações no que concerne às modalidades de comunicação 156 empregadas pela professora durante as rotinas pedagógicas. Sônia priorizou, antes e após a intervenção, o uso de verbalizações associadas a pictogramas e gestos. Em seguida, focalizou expressões verbais isoladas. Por fim, ela utilizou, de forma mais tímida, gestos e pictogramas para se comunicar com Luan antes e depois da intervenção. Vale ressaltar, no entanto, que, assim como na rotina de lanche, houve aumento no emprego das verbalizações associadas ao uso de pictogramas e diminuição na porcentagem geral de gestos. Após o programa de intervenção, Luan apresentou leve crescimento no uso de formas pictográficas e verbais/vocais de expressão. Foram detectados a diminuição no emprego de gestos e gestos associados a verbalizações/vocalizações. A utilização de formas verbais de expressão associada ao uso da comunicação alternativa manteve-se estável nas duas fases do estudo. Rosana Carvalho GOMES; Débora R. P. NUNES. Interações comunicativas entre uma professora e um aluno... Gráfico 5 - Porcentagem das modalidades de turnos empregados pela professora na atividade pedagógica Linha de base Intervenção 48% 43% 30% 30% 17% 17% 6% 4% Gestual 4% 0% Pictográfico Verbal Verb/gestual Verb/picto Fonte: dados da pesquisa. Gráfico 6 - Porcentagem das modalidades de turnos empregados pelo aluno na atividade pedagógica Linha de base Intervenção 50% 43% 31% 27% 17% 11% 11% 9% 1% Gestual Verbal Pictográfico Verb/gestual 1% Verb/picto Fonte: dados da pesquisa. Discussão O objetivo do presente estudo foi avaliar os efeitos de um programa de intervenção psicopedagógica nas interações comunicativas entre um aluno não falante, na faixa etária de 10 anos, com diagnóstico de autismo, e sua professora, no contexto da sala de aula comum. De forma específica, a investigação Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 143-161, jan./mar. 2014. buscou identificar os efeitos do programa: a) no uso das ENE empregadas pela professora; b) nos turnos da díade; e c) nas modalidades de respostas da díade. O estudo foi delineado como uma pesquisa quase experimental do tipo A-B, tendo como cenário duas rotinas escolares: a hora do lanche e as atividades acadêmicas. Os resultados indicaram momentos de baixa frequência de interação social entre 157 Sônia e Luan no início da pesquisa. O uso de verbalizações como modalidade de expressão era predominante no repertório da professora, e o uso de gestos, no repertório de Luan. Como forma de aumentar a frequência de interações na díade, objeto do presente estudo, um programa de capacitação foi proposto à professora. Esta, ao rever sua prática nas sessões videografadas, expôs suas angústias e sinalizou as dificuldades de interagir com o aluno. Em seguida, em colaboração com a pesquisadora, identificou estratégias que poderiam favorecer essa interação. Nesse contexto, a pesquisadora apresentou as ENE e os recursos da CAA como forma de incitar a comunicação. O caráter individualizado do programa parece ter sido de fundamental importância para a adesão da professora à proposta de intervenção. Após a capacitação, Sônia aumentou a frequência de turnos comunicativos e o uso de pictogramas associados a enunciados verbais, e demonstrou adequado emprego das ENE nas duas rotinas investigadas. A ampliação na frequência de turnos do aluno foi observada nas rotinas de lanche, mas não durante as atividades pedagógicas. O uso dos recursos de CAA por Luan ganhou notoriedade nas sessões de lanche, após o programa de capacitação. A utilização de gestos, no entanto, permaneceu sendo a principal forma de expressão de Luan, nas duas rotinas investigadas. Considerações finais A literatura científica revela resultados promissores sobre o uso dos recursos da CAA e de Estratégias Naturalísticas de Ensino 158 no desenvolvimento das habilidades de comunicação de indivíduos desprovidos de fala articulada, como os autistas. A transposição dessas práticas da teoria para a sala de aula pode ser viabilizada pela participação ativa do professor, como agente de intervenção, em programas instrucionais como o apresentado no presente manuscrito. Limitações metodológicas são evidenciadas no presente estudo. Como em qualquer pacote de intervenções, em que múltiplas estratégias são ensinadas, é difícil estabelecer o nível apropriado de cada variável independente para otimizar respostas (TANNOCK; GIROLAMETTO, 1992). Ou seja, caso Sônia tivesse empregado as ENE ou os recursos da CAA com uma frequência distinta, haveria diferença na frequência de turnos e modalidades de expressões de Luan? Qual estratégia foi mais efetiva? Outros estudos podem enfocar a avaliação de cada estratégia, de forma isolada. Foram observados perfis distintos de comunicação da professora nas duas rotinas investigadas, antes e após a intervenção. Enquanto Sônia priorizou a modalidade verbal nas rotinas do lanche, a utilização de verbalizações associadas ao uso dos pictogramas foi mais frequente durante as atividades pedagógicas, nas duas fases do estudo. Esse fenômeno pode evidenciar uma diferença estrutural nas rotinas investigadas. Em outras palavras, a atividade em si pode favorecer o uso de diferentes formas de expressão. Nesse sentido, é preciso que futuras pesquisas atentem para rotinas estruturalmente similares, quando delineamentos experimentais do tipo linha de base são empregados. Rosana Carvalho GOMES; Débora R. P. NUNES. Interações comunicativas entre uma professora e um aluno... Referências ALVES, Márcia Doralina. 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Débora R. P. Nunes é docente dos Programas de Graduação e Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte; doutora em Educação Especial pela Florida State University; Mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro; psicóloga pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Conceitos matemáticos iniciais e linguagem: um estudo comparativo entre crianças surdas e ouvintesI Heloiza H. BarbosaII Resumo Pesquisas têm demonstrado que as crianças que se desenvolvem tipicamente constroem conceitos matemáticos desde muito cedo. Esse processo de desenvolvimento cognitivo parece estar intimamente conectado com o desenvolvimento da linguagem verbal. O que acontece com o desenvolvimento matemático de crianças que possuem uma forma diferente de linguagem, como a língua de sinais utilizada pelos surdos? Essa pergunta, além de demais indagações sobre o baixo desempenho em matemática de alunos surdos documentado por outros estudos, orientou o desenvolvimento da pesquisa aqui apresentada. Para responder a tais questionamentos, foram realizados testes experimentais com crianças surdas (grupo 1), crianças ouvintes mais jovens da escola pública (grupo 2), crianças ouvintes mais velhas da escola pública (grupo 3) e crianças da escola privada (grupo 4). Os resultados evidenciaram uma clara distinção entre habilidades cognitivas matemáticas mais dependentes e menos dependentes do estímulo linguístico, notificando que crianças surdas têm o mesmo desempenho ou, em alguns casos, até mesmo um desempenho superior do que crianças ouvintes em habilidades menos dependentes do estímulo linguístico. Contudo, tanto as crianças surdas quando as crianças ouvintes mais jovens da escola pública demonstraram um desempenho significativamente baixo em relação às crianças ouvintes mais velhas da escola pública e às crianças da escola privada. Tal resultado indica que a surdez não é causa de baixo rendimento escolar na área da matemática. Assim, parece ser necessário pensar em formas de intervenção pedagógica que possam garantir uma aprendizagem de sucesso em matemática tanto para as crianças surdas, quanto para as crianças ouvintes que frequentam as escolas públicas brasileiras. Palavras-chave Educação matemática — Surdez — Cognição — Contagem. I- Estudo realizado com apoio do CNPq. II- Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil. Contato: [email protected] Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 163-179, jan./mar. 2014. 163 Early mathematical concepts and language: a comparative study between deaf and hearing childrenI Heloiza H. BarbosaII Abstract Research has shown that children who develop typically build mathematical concepts very early. This process of cognitive development seems to be closely connected with the development of verbal language. What happens to the mathematical development of children who have a different form of language such as the sign language used by deaf people? This question, and other questions about deaf students’ low performance in mathematics documented by other studies guided the development of the study presented here. To answer these questions, experimental tests were carried out with deaf children (group 1), younger hearing children from public schools (group 2), older hearing children from public schools (group 3) and children from private schools (group 4). The results evidenced a clear distinction between mathematical cognitive skills more dependent and less dependent on linguistic stimuli, notifying that deaf children have the same performance, or in some cases even higher performance than hearing children in skills less dependent on linguistic stimuli. However, both deaf children and younger hearing children from public schools had a significantly lower performance in comparison to older hearing children from public schools and children from private schools. This result indicates that deafness is not a cause of poor academic performance in mathematics. Thus, it seems necessary to think of forms of pedagogical intervention which can ensure the successful learning of mathematics for both deaf children and hearing children who attend public schools in Brazil. Keywords Mathematics education — Deafness — Cognition — Counting I- Study supported by CNPq. II- Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brazil. Contact: [email protected] 164 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 163-179, jan./mar. 2014. Problema de pesquisa Ao longo dos anos, as pesquisas produzidas com foco no desenvolvimento de ideias matemáticas mudaram, de forma fundamental, nosso entendimento sobre o pensamento quantitativo e matemático das crianças (para uma revisão detalhada, ver BARBOSA, 2008). Piaget e Szeminska (1952), pioneiramente, promovem uma mudança paradigmática por volta da década de 1950 ao estudarem o pensamento matemático em crianças antes de seu ingresso na escola formal. Piaget, assim como tantos outros pesquisadores que o sucederam, argumentou que a cognição matemática – construção de conceitos matemáticos – não acontece somente quando as crianças já conseguem operar com símbolos abstratos típicos de uma aprendizagem formal, mas que, contrariamente, o pensamento matemático das crianças iniciase antes da educação formal, e é inicialmente caracterizado por representações mentais que exigem a presença concreta de entidades e as transformações sofridas por essas entidades. Ou seja, a sugestão apresentada é de que a cognição matemática é, a princípio, informal, pois opera com objetos cognitivos não simbólico-formais e necessita das experiências com o mundo físico. Outros estudos sugerem que tais conceitos matemáticos iniciais, de natureza informal, parecem ser importantes para o posterior desenvolvimento de habilidades e entendimentos mais complexos presentes nas séries mais avançadas do sistema educacional (BAROODY, 2000; BAROODY, 2003; MIX; HUTTENLOCHER; LEVINE, 2002; NUNES; BRYANT, 1996). Portanto, é importante investigar a trajetória do desenvolvimento cognitivo a partir dos conhecimentos informais que se refinam pelas experiências sociais, culturais e de escolarização, levando à construção de conceitos e procedimentos matemáticos formais. Em relação aos conhecimentos matemáticos iniciais, ou seja, aqueles presentes durante o período da educação infantil – no qual não há Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 163-179, jan./mar. 2014. um ensino formalizado de matemática –, estudos feitos com crianças ouvintes dessa faixa etária têm mostrado que antes do início da escolarização formal crianças desenvolvem conceitos quantitativo-numéricos tanto de base não-verbal/não-simbólica, quanto de base verbal/simbólica, os quais posteriormente serão envolvidos nos atos de contar e calcular. Por exemplo, os vários estudos desenvolvidos por Kelly Mix (MIX, 1999; MIX; HUTTENLOCHER; LEVINE, 2002) sobre o desenvolvimento do entendimento de equivalência quantitativa demonstraram que, inicialmente, antes mesmo de entrarem na escola e de aprenderem a enumerar, crianças por volta de 3 anos de idade desenvolvem conceitos de representação de equivalência quantitativa de forma não-simbólica. A equivalência quantitativa é importante no entendimento do valor cardinal de número, pois, ao julgar que dois conjuntos – um com três carrinhos e outro com três maçãs – são numericamente equivalentes, as crianças estão abstraindo a informação numérica e ignorando a informação perceptiva. Mix, então, por meio de seus experimentos, mostrou que, no início, a criança faz julgamento de equivalência baseado em dados perceptivos de similaridade, i.e., quanto maior a similaridade, maior a facilidade de perceber equivalência – duas bolinhas pretas e duas ameixas pretas. Somente mais tarde, por volta dos 4 e 5 anos de idade, as crianças começam a usar tanto as informações perceptivas quanto as informações de cardinalidade para guiar seus julgamentos de equivalência. Afora esses estudos sobre o desenvolvimento de julgar conjuntos quantitativos equivalentes, há inúmeras pesquisas que mostram que as crianças estão desenvolvendo, informalmente e de forma gradual, diversas habilidades e ideias matemáticas, tais como os procedimentos envolvidos no ato de contar e a função desse ato (BRIARS; SIEGLER, 1984; FUSON, 1988; FUSON; RICHARDS; BRIARS, 1982; FUSON; SECADA; HALL, 1983; FUSON, 2000; GELMAN; GALLISTEL, 1978; GALLISTEL; GELMAN, 165 1990; SHIPLEY; SHEPPERSON, 1990; SIEGLER; ROBINSON, 1982; WYNN, 1990, 1992), as ideias de quantificação, os conceitos de aritmética e as lógicas aditivas e multiplicativas (BAROODY, 1992, 2000, 2003; BISANZ; LEFEVRE, 1992; MIX; HUTTENLOCHER; LEVINE, 2002; NUNES; BRYANT, 1996; PIAGET; SZEMINSKA, 1952). Além disso, elas estão construindo conceitos sobre as relações ordinais dos números e as funções nominativas dos mesmos (WIESE, 2003). Como se pode ver, há uma vasta complexidade de conhecimentos matemáticos que são desenvolvidos durante o período da educação infantil e que foram registrados por um imenso volume de publicações. Essas pesquisas investigaram habilidades quantitativo-numéricas em crianças ouvintes, que é a população mais representada nos centros de educação infantil. Entretanto, há grupos minoritários de crianças com perfis linguísticos e cognitivos distintos, os quais não estão representados em estudos sobre o desenvolvimento de conceitos matemáticos. Esse é o caso, por exemplo, das crianças surdas que não processam o estímulo auditivo e produzem e compreendem linguagem na modalidade visual-espacial (língua de sinais). Até o momento, não existem estudos sobre o desenvolvimento de conceitos e procedimentos matemáticos feitos com crianças surdas brasileiras em idade pré-escolar. Então, parece necessário investigar a trajetória de desenvolvimento das ideias matemáticas na criança surda de tal faixa etária, pois há uma grande lacuna nessa área. O presente estudo, portanto, vem remediar essa lacuna por meio de uma investigação experimental comparativa, a qual será detalhada mais adiante. Seu foco investigativo é investigar os conhecimentos e procedimentos matemáticos que as crianças ouvintes e surdas possuem, informalmente, nos anos compreendidos pela educação infantil. Este estudo também se justifica pelos dados advindos de pesquisas acadêmicas feitas em outros países que apontam para uma tendência de fracasso escolar pela criança 166 surda na área da matemática nas séries mais avançadas do ensino fundamental. Os dados em questão são relativos aos vários estudos e levantamentos estatísticos de desempenho escolar com o uso de testes padronizados (KLUWIN; MOORES, 1989; NOGUEIRA; ZANQUETTA, 2008; NUNES; MORENO, 1998; WOOD; WOOD; HOWART, 1983; TRAXLER, 2000), que demonstraram que crianças surdas apresentam um desempenho em matemática inferior ou abaixo da média em comparação às crianças ouvintes de mesma série e idade. Por exemplo, Traxler (2000), ao analisar o desempenho de alunos surdos nos EUA na nova edição do teste padronizado Stanford Achievement Test (SAT 9th edition) – o qual foi administrado de acordo com o nível de cada aluno, depois de uma triagem para detectar o nível adequado –, constatou um desempenho muito abaixo da média nos subtestes de Procedimentos Matemáticos e de Solução de Problemas Matemáticos. Os níveis de desempenho dos alunos surdos indicaram um atraso de dois anos na idade de 8 anos (com um desempenho equivalente à 1ª série). Esse atraso aumenta de três a quatro anos na idade de 11 anos (com um desempenho equivalente à 3ª série), e de seis a oito anos na idade compreendida entre 17 e 18 anos (com um desempenho equivalente à 5ª série). Ainda, outros estudos têm mostrado que as dificuldades em matemática continuam até a universidade para os alunos surdos, principalmente no que se refere à solução de problemas matemáticos. Por exemplo, Kelly et al. (2003) detectaram atraso na habilidade de estudantes universitário surdos de resolverem problemas aritméticos que envolvem comparação. Em outro estudo recente sobre a representação visual de problemas matemáticos, os resultados de Blatto-Vallee et al. (2007) mostraram que alunos do ensino médio e universitários surdos utilizam muito pouco a representação visual, se comparados a alunos do ensino médio e universitários ouvintes. Quando utilizam a representação visual, os Heloiza H. BARBOSA. Conceitos matemáticos iniciais e linguagem: um estudo comparativo entre crianças surdas e... alunos surdos criam representações dos aspectos pictóricos e icônicos, os quais são, todavia, irrelevantes para a solução do problema. Outro estudo conduzido por Ansell e Pagliaro (2006) demonstrou que crianças surdas de 5 a 9 anos apresentam dificuldades em resolver problemas matemáticos que são apresentados em contexto de estórias nas quais eles precisam calcular diferenças, mesmo quando tais problemas são apresentados em língua de sinais. Se essas dificuldades com a matemática acontecem e parecem perpassar a escolarização da criança surda, então é necessário investigar se os problemas com o conhecimento matemático já estão presentes antes da escolarização formal, ou seja, na educação infantil. Será que durante o período de educação infantil as crianças surdas desenvolvem informalmente procedimentos e conceitos matemáticos seguindo uma temporalidade aproximada à criança ouvinte, ou há atrasos temporais que podem influenciar negativamente o desenvolvimento posterior? A grande escassez de estudos sobre o desenvolvimento de conceitos e procedimentos matemáticos feitos com crianças surdas em idade pré-escolar deixa em aberto essa e muitas outras questões. Por exemplo, as questões envolvidas na aquisição do procedimento de contagem, cujo desenvolvimento se inicia informalmente por volta de 2 anos em crianças ouvintes. Os poucos estudos existentes com esse foco sugerem que as crianças surdas têm dificuldades em aprender a sequência numérica utilizada durante a contagem (LEYBAERT; VAN CUTSEM; 2002; NUNES, 2004; ZARFARTY; NUNES, BRYANT, 2004). Tais estudos indicam que talvez a dificuldade de aquisição da sequência numérica possa causar problemas no desenvolvimento de futuras habilidades matemáticas que são importantes nas séries mais avançadas. Não há, porém, nenhuma evidência conclusiva para dizer se a dificuldade em adquirir a sequência numérica acontece devido a problemas de processamento cognitivo (HITCH; ARNOLD; PHILIPS, 1983), ou devido ao pouco acesso às experiências sociais e culturais Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 163-179, jan./mar. 2014. envolvendo contagem em casa e na escola (NUNES, 2004). Há ainda outras questões relacionadas ao conhecimento quantitativo-numérico das crianças surdas que também precisam ser investigadas. Por exemplo, sabemos que é comum às crianças ouvintes cometerem alguns erros de coordenação de correspondência um-pra-um (recitar o numeral e apontar ao mesmo tempo) durante a aquisição do procedimento de contagem. Entretanto, nada sabemos sobre os erros de contagem das crianças surdas. Parece importante que professores conheçam quais são os tipos de erros de contagem mais frequentes em crianças surdas que usam a língua de sinais para sua comunicação, pois assim tais profissionais estarão mais preparados para organizar um programa de apoio e intervenção que auxilie essas crianças a superarem tais dificuldades comuns. Precisamos também saber de que forma o conhecimento da sequência numérica influencia o desempenho da criança surda em testes numéricos. Além disso, é necessário ter mais informação sobre a relação entre língua de sinais e conhecimentos numéricos em crianças surdas. Em relação a esse último ponto, pesquisadores têm se ocupado em investigar como a língua produzida e compreendida na modalidade visual-espacial (i.e., a língua de sinais) pode contribuir para o desenvolvimento cognitivo do indivíduo surdo, considerando os aspectos cognitivos que são mais dependentes ou menos dependentes do estímulo linguístico. Em funções cognitivas menos dependentes do estímulo linguístico, crianças surdas e ouvintes parecem ter um desenvolvimento similar. Essa hipótese tem sido reiterada por vários estudos na área que demonstraram que as crianças surdas apresentam um tempo e uma trajetória de desenvolvimento similares ou até mesmo superiores aos das crianças ouvintes em funções cognitivas não-linguísticas, tais como: reconhecimento facial, construções com blocos lógicos, percepção de movimentos, memória espacial e localização espacial (BEVALIER et al., 2006; BLATTO-VALLEE et 167 al., 2007). Mesmo que a emergência dessas funções não dependa do estímulo linguístico, esses pesquisadores explicam que a superioridade no desenvolvimento de tais funções cognitivas em crianças surdas foi atribuída ao uso da língua de sinais, que, por suas características visual-espaciais, pode contribuir positivamente para o desenvolvimento das habilidades de manipulação da informação visual e espacialmente apresentada (BULL; BLATTOVALLEE; FABICH, 2006; BLATTO-VALLEE et al., 2007). Nesse caso, veem-se argumentos evidenciando a possibilidade de uma estreita relação entre língua e processos cognitivos. Mas há vários fatores que complexificam a relação entre língua e processos cognitivos no caso de crianças surdas. Dentre esses fatores, pode-se destacar a heterogeneidade de perfis do indivíduo surdo (BARBOSA, 2009). Por exemplo, há indivíduos surdos que nasceram dentro de uma família de surdos e que, consequentemente, têm amigos e uma comunidade surda em volta. Esse contexto familiar e social garante a exposição do indivíduo, desde seu nascimento, a um código linguístico que é usado pelos membros de sua família e de sua comunidade. Especialistas têm argumentado que o fato de o indivíduo ser exposto desde o nascimento a um estímulo linguístico tem efeitos marcadamente positivos em seu desenvolvimento (QUADROS, 1997; MAYBERRY, 2002). Por outro lado, há indivíduos surdos que não têm acesso a estímulos linguísticos durante os primeiros anos de vida, por motivos tanto sociais, culturais e familiares, quanto econômicos. Esse segundo grupo representa a maioria da população surda brasileira (QUADROS, 1997). Como agravante adicional, a população surda que tem acesso tardio à língua de sinais também tem acesso tardio a uma educação apropriada, podendo apresentar diferentes perfis de desenvolvimento. Assim, crianças surdas que não são expostas a estímulos linguísticos e não recebem educação apropriada em idade apropriada podem não demonstrar a similaridade e/ou superioridade no desenvolvimento de determinadas funções cognitivas documentadas em estudos já mencionados. 168 Em síntese, foi o registro de poucos estudos feitos no Brasil sobre o desenvolvimento matemático de crianças surdas da educação infantil, assim como questões levantadas por pesquisas recentes, que provocaram a realização desta pesquisa. O presente estudo não tem o propósito de responder a todas as questões aqui levantadas, tampouco de esgotá-las, mas sim a intenção de despertar o interesse em promover bons níveis de rendimento escolar na área da matemática para todas as crianças. Metodologia Metodologia experimental O presente estudo teve o objetivo de investigar o desempenho das crianças surdas e ouvintes de idade entre 5 e 6 anos (educação infantil) por meio de tarefas experimentais que compreendam vários aspectos cognitivos ligados à conceituação quantitativo-numérica. Entre esses aspectos estão: a) representação mental de quantidade; b) memorização e reprodução de uma sequência ordenada; c) uso espontâneo de numeral em narrativa; d) conhecimento da sequência numérica; e) contagem; f) entendimento de cardinalidade; g) aritmética; e h) conhecimento da linha numérica. A metodologia empregada foi baseada em entrevistas clínicas experimentais com o uso de tarefas especialmente formuladas para a investigação de habilidades e procedimentos matemáticos iniciais em questão neste estudo. Teve-se a preocupação de desenvolver e previamente testar tarefas experimentais que pudessem ser usadas tanto com crianças ouvintes quanto com crianças surdas, de modo a não prejudicar as bases comparativas. Ou seja, na tradução das tarefas para a língua de sinais, houve grande zelo em não fornecer informações numéricas pela gestualidade, evitando-se, assim, a possível facilitação na apresentação das tarefas. Neste artigo, os resultados das tarefas experimentais mencionadas embasarão as discussões sobre aspectos gerais comparativos, Heloiza H. BARBOSA. Conceitos matemáticos iniciais e linguagem: um estudo comparativo entre crianças surdas e... tais como o desempenho dos diversos grupos estudados em habilidades mais e menos dependentes do estímulo linguístico e a caracterização dos erros de contagem observados. Manteve-se a hipótese de que os aspectos quantitativo-numéricos que não são dependentes do estímulo linguístico poderão, então, apresentar igual desenvolvimento entre os diversos grupos de crianças participantes. Em estudos comparativos, buscase a construção de bases aproximadamente equânimes de comparação entre grupos. Neste estudo, em particular, por envolver crianças com diferentes perfis de desenvolvimento – como é o caso da intrínseca heterogeneidade das crianças surdas e das crianças ouvintes –, é muito complexa a tarefa de criar os grupos para o controle de importantes variáveis, tais como idade, escolarização, habilidades cognitivas e linguísticas. Optou-se por parear os grupos de crianças surdas e ouvintes tendo como base a idade e a escolarização. Tal opção pode ter trazido alguns prejuízos para a pesquisa, os quais serão apontados ainda neste artigo. Participantes Como já dito, parear crianças surdas com crianças ouvintes em estudos experimentais é sempre problemático, devido à grande diversidade de perfis cognitivos existentes entre as crianças. Por essa razão, o pareamento pela idade cronológica pareceu apropriado. Mesmo essa opção, porém, apresentava problemas devido à disparidade encontrada entre as crianças surdas em relação a suas idades, suas séries e o tempo frequentando a escola. Ou seja, as crianças surdas de 6 anos que participaram do estudo estavam iniciando seu segundo ano ainda na escola infantil. Nos centros infantis públicos, não havia mais crianças de 6 anos, pois elas já haviam ingressado no ensino formal. Entretanto, como a pesquisa aconteceu no ano de transição do ensino de nove anos, houve um centro de educação infantil público que reteve crianças com 6 anos de idade. Aproveitando-se dessa oportunidade, a pesquisa optou por testar tanto um grupo de crianças um ano mais novas do que as crianças surdas, quanto um grupo da mesma idade. Outra variável que pareceu importante para a investigação é relativa ao tipo de escolarização, ou seja, pública ou privada. Isso porque pesquisas no Brasil têm apontado para a disparidade de rendimento acadêmico entre diferentes classes sociais que frequentam diferentes sistemas de ensino (PINTO; GARCIA; LETICHEVSKY, 2006) Dessa forma, quarenta e três (N=43) crianças da educação infantil participaram do estudo, sendo divididas em quatro grupos: • grupo 1: onze (N=11) crianças surdas (surdez profunda), com média de 6 anos de idade; • grupo 2: onze (N=11) crianças ouvintes da escola pública, com média de 5 anos de idade; • grupo 3: dez (N=10) crianças ouvintes da escola privada, com média de 5 anos de idade; • grupo 4: onze (N=11) crianças ouvintes da escola pública, com média de 6 anos de idade. Como se pode perceber, a composição dos grupos de crianças ouvintes serviu de controle para as variáveis de idade (um ano mais novo ou da mesma idade) e tipo escolarização (escola pública e privada). Para melhor visualização da idade dos grupos, ver tabela 1. Tabela 1 – Quadro de participantes e médias de idades em meses Grupos Grupo 1: criança surda; 6 anos de idade escola pública Grupo 2: criança ouvinte; 5 anos de idade escola pública Grupo 3: criança ouvinte; 5 anos de idade escola privada Grupo 4: criança ouvinte; 6 anos de idade escola pública N Mínimo Máximo Média Desvio padrão 11 61.00 90.00 73.54 8.58 11 59.00 68.00 63.09 3.33 10 61.00 71.00 66.40 4.11 11 69.00 80.00 73.72 3.03 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 163-179, jan./mar. 2014. 169 Para que as crianças participassem voluntariamente do estudo, seus pais e/ou responsáveis assinaram um termo de consentimento. Aqueles que trouxeram seus filhos para serem avaliados no laboratório da universidade foram monetariamente recompensados pelas despesas com transportes. Todas as crianças surdas participantes frequentavam escolas públicas de educação infantil e eram instruídas em Libras. Um conhecimento de no mínimo um ano em Libras foi estabelecido como critério para participação no estudo. Nenhum dos participantes, surdos ou ouvintes, recebia instruções formais de matemática na escola, mas apenas praticava a contagem em suas brincadeiras. Procedimentos Cada criança participou, individualmente, de duas sessões de aproximadamente 40 minutos cada, realizadas com um intervalo de uma semana. Uma estudante surda da pósgraduação que usa a Libras como sua língua nativa foi treinada nas tarefas experimentais do estudo e conduziu em Libras as sessões com as crianças surdas. A principal investigadora conduziu as sessões com as crianças ouvintes. Todas as sessões foram filmadas para assegurar maior acuidade da coleta e da análise dos dados. Conforme mostra a tabela 2, 14 tarefas experimentais compuseram o estudo: 1) pareamento quantitativo não-verbal; 2) reprodução de ordem sequencial visível; 3) reprodução de ordem sequencial invisível; 4) descrição de estímulo visual; 5) recitação da sequência numérica até o maior número que souber; 6) contar objetos soltos; 7) contar conjuntos; 8) contar ações; 9) e 10) cardinalidade com objetos homogêneos e heterogêneos; 11) equivalência da transformação numérica; 12) adição; 13) subtração; e 14) conhecimento da linha numérica. As tarefas de 1 a 5 constituíram a primeira parte do estudo, na qual o conhecimento quantitativo não-simbólico e o conhecimento da sequência numérica foram investigados. As tarefas de 6 a 13 constituíram a segunda parte do estudo, que se deteve no conhecimento numérico que apresenta uma grande demanda linguística dos participantes. Tabela 2 – Jogos utilizados no projeto de pesquisa Habilidades Jogos 1- Produção não-verbal das seguintes quantidades: (1, 2) 3, 4, 6, 8 items “Olhe o que eu vou fazer.”; “Faça o seu igual ao meu.”; “O seu está igual ao meu?”; “O que você pode fazer para o seu ficar igual ao meu?” Sessão 1: Representação mental de quantidade Sessão 2: Contagem Cardinalidade Operações aritméticas Linha numérica 170 2- Reprodução das quantidades seguindo uma lembrança seriada: (2) 3, 4, 6 items (dinosauro, banana, caminhão, uva, avião, sapo, coelho, barco, laranja, ovelha, carro, botão, urso, etc...). Fazer seis conjuntos (três para a criança e três para o pesquisador) com o número exato de peças, mas só dar as peças das crianças quando estas forem reproduzir o conjunto mostrado. Não haverá comparação nesta atividade 3- Reprodução não visível das quantidades seguindo uma lembrança seriada: (2) 3, 4, 6 itens. 4- O que você vê? O pesquisador apresenta à criança uma carta de cada vez contendo adesivos de objetos, e pergunta: O que você vê? As cartas têm dois sets com duas condições diferentes. No primeiro, há seis cartas apresentadas em forma de organização padrão (OP), que lembra a organização presente no dado, e mais seis cartas na organização aleatória (AO). O objetivo desta tarefa experimental é investigar o uso de vocabulário contendo numeral em narrativa e se esse uso pode ser mais estimulado em formato OP ou OA. 5- Conte até o maior número que você souber. Os dados da contagem serviram para criar grupos de conhecimento da sequência numérica: grupo básico, com contagem de 01 a 10; grupo intermediário, de 11 a 59; e grupo avançado, de 60 a 100. Esses níveis de contagem foram correlacionados com outras habilidades numéricas nas análises quantitativas. 6- Conte os objetos: 3, 6, 10, 15 itens. Quantos objetos você contou? 7- Conte estas figuras: 6, 10, 15, 30, arrumados em uma linha horizontal. Quantas figuras você contou? 8- Esse boneco vai dar uns pulos. Observe. Quantos pulos ele deu? Contando ações: 3, 4, 6, 10 pulos. 9- Dá-me X. Com cubos de uma só cor. 10- Dá-me X. Com ursos coloridos: (1, 2) 3, 4, 6 e 10. 11- Onde tem mais (ou menos)? Tarefa com as bolinhas de gude adaptada do CMA. 12- Adição com objetos, mas com o resultado não-visível: 3+1; 4+2; 7+3; 1+3. 13- Subtração com objetos, mas com o resultado não-visível: 3-2; 4-1; 7-3; 10-1. 14- Qual número vem depois do X? (3, 7); Qual numero vem antes do X? (4, 6). Heloiza H. BARBOSA. Conceitos matemáticos iniciais e linguagem: um estudo comparativo entre crianças surdas e... As crianças surdas também foram testadas em seu conhecimento de Libras para assim correlacioná-lo com o conhecimento matemático. Análise dos dados Inicialmente, participaram deste projeto 14 crianças surdas. Três delas, porém, foram eliminadas e o restante compôs um grupo de 11 crianças surdas. As causas da eliminação foram: uma criança tinha audição residual e era oralizada (uso de língua oral na comunicação); duas outras não tinham ainda, aos 6 anos de idade, nenhum entendimento de Libras e, por isso, apresentaram uma comunicação muito deficitária. Nos grupos das crianças ouvintes não houve qualquer tipo de exclusão do estudo. Análises qualitativas e quantitativas foram conduzidas. O desempenho das crianças nos testes foi computado em dois níveis: (1) pontos para acertos e (2) codificação das respostas para análise qualitativa. A pontuação quantitativa foi usada em análises comparativa de variáveis por meio do teste ANOVA, considerando-se os quatro grupos como variáveis independentes e os desempenhos nos testes como variáveis dependentes. Resultados Nas tarefas experimentais que focam na representação quantitativa de base não-linguística, não houve diferenças estatísticas entre os grupos de crianças surdas e ouvintes em Produção Não-Verbal de Quantidades – 3, 4, 6 & 8, F(3, 39) = 1.81, p = .161; Reprodução de Ordem Seriada Visível – 3, 4, & 6, F(3, 39) = .617, p = .608; e Reprodução de Ordem Seriada Invisível – 2, 3, & 4, F(3, 39) = 1.59, p = .205. A tabela 3 mostra as médias e o desvio padrão dos grupos nesses aspectos. Isso significa que as crianças surdas e ouvintes apresentam o mesmo nível de representação numérica quando o estímulo é de natureza não-linguística. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 163-179, jan./mar. 2014. Tal como esperado, não há diferenças entre crianças surdas e ouvintes no que se refere às habilidades quantitativas não-simbólicas. Assim, no que se refere às capacidades de julgar quantidades como equivalentes ou de representar mentalmente e reproduzir determinados conjuntos utilizando informações perceptivas, não há diferenças entre crianças surdas e ouvintes da educação infantil. No entanto, como se pode ver na tabela 3, houve diferença entre os grupos no tempo levado para reproduzir uma sequência, sendo que as crianças surdas não cometeram nenhum erro, mas levaram mais tempo para reproduzir a sequência. Isso significa dizer que, durante a educação infantil, as crianças surdas e ouvintes demonstraram as mesmas capacidades quantitativas não-simbólicas. Portanto, esse resultado exclui a possibilidade de que a criança surda seja cognitivamente deficiente na formação de seus conceitos quantitativos não-simbólicos. Contudo, quando o conhecimento quantitativo-numérico de base simbólica foi avaliado, ou seja, quando o uso da representação numérica simbólica foi medido em tarefas de contagem, aritmética e linha numérica, houve uma significativa mudança. As crianças surdas tiveram um desempenho bem abaixo da média e estatisticamente diferente de alguns grupos de crianças ouvintes, mas não de todos, como é o caso das crianças de 5 anos da escola pública. É um dado importante de ser ressaltado que as crianças ouvintes de cinco anos de idade da escola pública tiveram um desempenho nos testes numérico tão inferior quanto as crianças surdas. Tais dados, então, apontam para um desempenho desigual de ambos os grupos em comparação com as crianças de 5 anos da escola privada e com as crianças de 6 anos da escola pública. As implicações desse resultado serão discutidas mais adiante. Os dados das tarefas de contagem (contar objetos, figuras e ações) foram unificados para a criação da categoria Contagem, a qual aparece no gráfico 1. O teste ANOVA revelou diferença 171 Tabela 3 – Resultados do teste ANOVA Tarefas experimentais Média F Sig. Produção não-verbal de quantidade 1.95 1.81 .161 Julgamento correto de equivalência 2.19 1.55 .215 Número de vezes em que empregou ação de consertar conjunto .46 1.52 .222 Reprodução de ordem seriada visível total .43 .617 .608 292.80 5.11 .004 1.55 1.59 .205 Tempo médio de ordem seriada invisível 133.57 4.43 .009 Número de vezes em que utilizou numeral (linguagem espontânea / org. padrão) 24.15 5.25 .004 Número de vezes em que utilizou numeral (linguagem espontânea / org. aleatória) 283.98 10.0 .000 Total: contar objetos soltos 10.76 9.83 .000 Total: contar figuras 12.71 10.2 .000 Total de pontos: adição (máx. 4) 7.21 6.02 .002 Total de pontos: subtração (máx. 4) 4.97 3.41 .027 Tempo médio de ordem seriada visível Reprodução de ordem seriada invisível total entre os quatro grupos de participantes, F(3, 39) = 12.05, p<.001. O perfil das diferenças é o mesmo visto anteriormente. Ou seja, as crianças surdas não diferem das crianças ouvintes de 5 anos da escola pública, pois ambos os grupos apresentam desempenho significativamente inferior em relação aos demais grupos. Todos os participantes tiveram mais dificuldades na contagem de figuras do que na contagem de objetos. Isso talvez se justifique pela grande demanda depositada na coordenação entre o apontar e o contar quando há conjuntos fixos alinhados horizontalmente. Em uma análise ainda inicial dos dados dos erros de contagem, foi possível perceber que a criança surda comete mais erros relacionados à sequência numérica. Além disso, as crianças surdas têm um limite menor para contagem do que as crianças ouvintes. Ou seja, no presente estudo, observou-se que a grande maioria das crianças surdas de 6 anos sabe contar até o 172 numeral 10 fazendo um pareamento um-praum, isto é, a criança inicia a contagem com a mão fechada e vai abrindo os dedos da mão, um de cada vez, à medida que conta. Se o conjunto a ser contado tem valores maiores do que o expresso pelo numeral 10 (limite de dedos na mão), como aconteceu em uma das tarefas experimentais na qual havia um quadro com 30 figuras para serem contadas, a criança surda que só sabe contar até 10, ao chegar nesse limite, para e diz acabou ou reconta três vezes até 10, sem juntar o resultado no final da contagem para informar a cardinalidade do conjunto. Essa estratégia de contagem é icônica e não-simbólica. Nenhum erro de emprego dos procedimentos de contagem foi observado nas crianças de 5 anos da escola privada, tampouco nas crianças de 6 anos da escola pública. Mas as crianças ouvintes de 5 anos da escola pública cometeram erros em todas as modalidades Heloiza H. BARBOSA. Conceitos matemáticos iniciais e linguagem: um estudo comparativo entre crianças surdas e... Gráfico 1 – Média de contagem entre os grupos 12.00 11.00 Mean of contagem score 10.00 9.00 8.00 7.00 6.00 5.00 4.00 3.00 2.00 1.00 0.00 criança surda criança ouvinte, 5 anos, escola pública criança ouvinte escola privada criança ouvinte, 6 anos, escola pública Grupos de crianças estudados Fonte: dados da pesquisa. de contagem e em todos os conjuntos. Seus erros, porém, estão mais relacionados à coordenação entre contar e apontar, bem como à cardinalidade, ou seja, era comum a criança ouvinte contar um conjunto e informar uma cardinalidade diferente da qual foi verbalmente contada. Esse tipo de erro de cardinalidade não foi cometido por nenhuma criança surda. Em geral, os resultados de contagem sugerem que tanto as crianças surdas quanto as crianças ouvintes de 5 anos da escola pública parecem ter dificuldades em empregar os procedimentos de contagem. Tais dificuldades podem influenciar de forma negativa a aprendizagem da matemática, caso não sejam trabalhadas na escola (BAROODY, 2000; FUSON, 2000). Ao analisarmos a correlação entre o conhecimento linguístico das crianças surdas referente à língua de sinais e sua habilidade de contagem, pudemos perceber que há uma influência direta da habilidade linguística na habilidade de contagem. Os testes estatísticos revelaram uma correlação positiva na qual as Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 163-179, jan./mar. 2014. crianças que têm mais conhecimento de Libras, no grupo de crianças surdas, são as que têm um melhor desempenho em contagem F(1,9) = 7.73, p =.021, rs (9) = .68, p = .021. O coeficiente de correlação r² indica que o conhecimento de Libras explica 40% da variação da pontuação em contagem. Além da contagem, outras habilidades quantitativo-numéricas das crianças surdas apresentam-se em uma forte correlação com o conhecimento que essas crianças têm da língua de sinais. Ou seja, as crianças que têm mais tempo de exposição à Libras e maior grau de fluência são as que apresentam um desempenho mais elevado nos testes de aritmética e cardinalidade. Isso parece demonstrar uma relação entre linguagem e formação de conceitos. A mesma correlação foi encontrada entre as crianças ouvintes. Por exemplo, as crianças com menor vocabulário numérico documentado pela tarefa do uso do numeral na narrativa foram crianças mais novas de 5 anos do centro de educação infantil público, e elas foram as crianças com mais baixo desempenho nos demais 173 testes. Já as crianças mais novas de 5 anos do centro de educação infantil privado apresentaram um grande vocabulário numérico e tiveram um desempenho bastante superior em todas as tarefas em comparação aos demais grupos. Nas tarefas aritméticas da adição, houve diferença significativa entre os grupos, F(3, 39) = 6.03, p = .002. O teste estatístico post-hoc Tukey HSD detectou que as crianças surdas e as crianças ouvintes de 5 anos da escola pública tiveram um desempenho similarmente mais baixo do que as crianças dos demais grupos. Esses dois grupos tiveram um desempenho inferior em relação às crianças ouvintes de 5 anos da escola privada (p = .004, d = 1.62 para a criança surda e p = .029, d = .52 para a criança ouvinte de 5 anos), e as crianças mais velhas de 6 anos da escola pública (p = .028, d = 1.33). Nas tarefas aritméticas de subtração, houve diferença significativa entre os grupos, F(3, 39) = 3.41, p =.027. Mas, interessantemente, na subtração não houve diferença entre o desempenho das crianças surdas e o dos demais grupos. Em geral, as crianças surdas acharam mais fácil a subtração do que a adição. A diferença ficou entre as crianças ouvintes de 5 anos da escola pública e as crianças mais velhas de seis 6 da escola pública (p = .036, d = 1.36). Em resumo, esses resultados sugerem que as crianças surdas e as crianças ouvintes da educação infantil têm as mesmas habilidades de representação numérica e quantitativa de base não-simbólica, mas diferem nas habilidades que requerem um conhecimento numéricoquantitativo de base simbólica. Para melhor visualização desses resultados, veja o gráfico 2. Gráfico 2 – Média de contagem, aritmética e vocabulário para numerais entre os grupos Contagem-Score Aritmetica-Score Uso do numeral 14.00 12.00 Mean 10.00 8.00 6.00 4.00 2.00 0.00 criança surda criança ouvinte, 5 anos, escola pública criança ouvinte escola privada criança ouvinte, 6 anos, escola pública Grupos de crianças estudados Fonte: dados da pesquisa. Considerações finais O presente estudo revelou que não existem diferenças nas representações mentais quantitativas não-simbólicas das crianças 174 surdas e ouvintes. Isto é, quando não é exigido o uso da contagem verbal ou outro conhecimento de ordem simbólica formal, tanto as crianças surdas quanto as crianças ouvintes apresentam as mesmas habilidades de representação da Heloiza H. BARBOSA. Conceitos matemáticos iniciais e linguagem: um estudo comparativo entre crianças surdas e... informação quantitativa. Quanto às habilidades quantitativas simbólicas, o perfil se apresenta de forma mais complexa. As crianças surdas, no geral, tiveram um desempenho inferior em relação às crianças ouvintes com um ano a menos de idade (5 anos) da escola infantil privada, assim como também, em relação à criança da mesma idade (6 anos) da escola pública. Mas o desempenho das crianças surdas foi equivalente ao das crianças de 5 anos da escola pública. Esses dados são surpreendentes, pois têm implicações muito importantes para o ensino da matemática na educação infantil e para o desenvolvimento do pensamento matemático nas crianças. Uma das implicações que podem ser extraídas é de que a surdez não é causa de baixo rendimento em matemática (NUNES, 2004), pois crianças ouvintes também demonstraram baixo rendimento nas tarefas apresentadas. Nesse caso, os resultados reiteram a hipótese de Nunes (2004) de que a surdez pode colocar a criança em risco de ter uma difícil aprendizagem em matemática. É de extrema importância notar, porém, que os dados deste estudo mostraram que tal risco também é experienciado pelas crianças de 5 anos das classes populares que frequentam os centros públicos de educação infantil, conforme mostra o gráfico 2. Então, o quê há de comum entre as crianças surdas e ouvintes de 5 anos da escola pública que participaram da pesquisa? Evidenciou-se uma falta de vocabulário para expressar informações numéricas e matemáticas tanto nas crianças surdas quanto nas crianças ouvintes de 5 anos das classes populares. Como não foi objetivo deste estudo investigar as causas de um vocabulário matemático reduzido, limitaremos nossa análise do dado, que destaca dois importantes fatores a serem considerados. Um deles é a estreita relação entre pensamento matemático e linguagem; o outro é o caráter sóciocultural da linguagem. Ambos também já foram evidenciados por outros estudos similares, por exemplo, as pesquisas feitas com o grupo indígena Pirahã da Amazônia. Os Pirahãs são Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 163-179, jan./mar. 2014. índios da Amazônia que não possuem, em seu vocabulário, nenhuma forma de expressar quantidades de modo preciso, nem mesmo a quantidade um, mas que demonstram serem capazes de representar equivalência numérica quando os conjuntos estão fisicamente presentes de forma não-simbólica, sem uma demanda de memória (GORDON, 2004; FRANK et al., 2008). A conclusão apresentada por esses estudos sugere que é necessário ter vocabulário numérico para lembrar quantidades maiores de forma exata, mesmo que o conceito da quantidade exata não seja criado pela linguagem. O vocabulário numérico, de acordo com tal argumento, funciona como um instrumento cognitivo que ajuda o sujeito a controlar a informação cardinal de conjuntos com grande quantidade de itens. Dessa forma, podemos perceber a estreita ligação entre linguagem e conceitos matemáticos. Parece que o argumento explica os resultados deste estudo com as crianças surdas e ouvintes de 5 anos das classes populares. Isto é, a falta de vocabulário numérico pode ter prejudicado o desempenho dessas crianças em tarefas que demandam memória da informação cardinal do número. Portanto, parece importante investir em um programa de ensino que desenvolva vocabulário para expressar ideias matemáticas. Tal vocabulário inclui tanto a sequência numérica, quanto o léxico para expressar ordem (primeiro, segundo, terceiro etc.), valor (mais que ou menos que; maior que ou menor que), equivalência (igual a) e outras relações matemáticas. É importante ressaltar que os dados evidenciaram que, mesmo que as crianças ouvintes da escola pública apresentem dificuldades em matemática, elas parecem superá-las com mais tempo de escolarização, uma vez que as crianças mais velhas da escola pública, com 6 anos, apresentaram um bom desempenho. Entretanto, o desempenho das crianças mais velhas da escola pública parece estar um ano abaixo do que o das crianças da escola privada. Esse quadro é extremamente preocupante, pois mostra que há diferentes 175 experiências de escolarização no Brasil de acordo com a classe social. Assim, para diminuir o desnível de rendimento escolar na área da matemática entre crianças surdas e ouvintes e entre crianças de classes sociais diferentes, são necessários programas educacionais na educação infantil e nas séries iniciais que garantam condições de desenvolvimento para o conhecimento informal quantitativo numérico dessas crianças. Enormes esforços e investimentos precisam ser alocados para melhorar a educação matemática recebida por crianças surdas e ouvintes oriundas de classes sociais menos favorecidas, a fim de atender aos centros públicos de educação infantil. O baixo desempenho dos dois grupos mostra a necessidade de uma ação imediata do governo para melhorar a aprendizagem e o desempenho dessas crianças, que estão em grande risco de fracasso escolar. Os dados deste estudo sugerem, por exemplo, que as crianças surdas e ouvintes se beneficiariam de um programa de ensino de matemática que faça uso de materiais concretos e visuais, os quais devem ser conectados e ancorados em suas fortes habilidades quantitativas de base não-simbólica. As crianças surdas 176 também se beneficiariam de uma educação que fosse ministrada em sua língua nativa, a Libras. Além disso, ambos os grupos se beneficiariam de um programa com ênfase na aquisição do léxico quantitativo-numérico, haja vista a correlação aqui documentada entre língua e formação de conceitos. Se as crianças não têm o léxico para expressar ideias matemáticas, seu desenvolvimento nessa área pode ficar comprometido. Portanto, é essencial que às crianças seja ensinado, de forma significativa, o vocabulário numérico-quantitativo-matemático. O presente estudo forneceu algumas informações importantes sobre áreas cognitivas em que as crianças podem estar em maior risco de apresentar uma difícil aprendizagem em matemática. No entanto, mais pesquisas na área da cognição matemática em crianças surdas e ouvintes são absolutamente necessárias para a elucidação de processos que podem ser prejudicados pela falta de acesso a um modelo linguístico. Também será importante, em estudos futuros, criar metodologias e testes que possibilitem o pareamento e o controle pela variação linguística, pois só assim podemos ter mais segurança nos resultados apresentados de estudos comparativos feitos com indivíduos surdos. Heloiza H. BARBOSA. Conceitos matemáticos iniciais e linguagem: um estudo comparativo entre crianças surdas e... Referências ANSELL, Ellen; PAGLIARO, Claudia M. The relative difficulty of signed arithmetic story problems for primary level deaf and hard-ofhearing students. 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Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 163-179, jan./mar. 2014. 179 Nos interstícios da cidadania: a inevitabilidade e urgência da dimensão da virtude cívica na educaçãoI Eduardo Nuno FonsecaII Resumo I- Este artigo faz parte de uma seção de um capítulo da tese de doutoramento em Educação intitulada A Educação para a cidadania no sistema de ensino básico português no âmbito da formação do carácter: análise e propostas – dois estudos de caso, submetida ao Instituto de Educação da Universidade de Lisboa no final de 2012, a qual foi apoiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) (SFRH/BD/45232/2008). Um merecido reconhecimento à supervisora desse trabalho acadêmico, a professora doutora Maria Odete Valente, a qual marcou indelevelmente, desde a década de oitenta do século XX, o contexto educativo português na área da formação pessoal e social e da cidadania. II- Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal. Contato: [email protected] Este artigo tem dois objetivos centrais. O primeiro é problematizar a conceptualização da cidadania, de acordo com sua acepção moral e o segundo é equacionar as respectivas implicações para qualquer projeto educativo que reconheça a importância da educação para a cidadania em contexto escolar. Assim, primeiramente serão feitas algumas considerações a respeito da dimensão poliédrica do conceito de cidadania. Especificamente, salientaremos que a cidadania participativa, além de requerer conhecimentos e competências, abrange igualmente o domínio de recursos pessoais e extrapessoais, bem como as disposições conducentes à ação. Ademais, existe um vínculo entre a constituição moral de cada cidadão, a democracia e a vivência democrática. Finalmente, abordaremos a cidadania democrática, a qual envolve a capacidade da pessoa de se mover além dos seus próprios interesses individuais, para que possa comprometer-se com o bem da comunidade onde se encontra inserida. A cidadania, nessa perspectiva, origina uma latente tensão que necessita ser prudentemente dirimida. O processo educativo, portanto, desenvolve-se na fronteira escorregadia entre a doutrinação e o respeito pela livre escolha individual, devendo existir uma fidelidade intransigente à bússola balizadora dos direitos humanos (UNESCO, 2006), os quais privilegiam a defesa da dignidade das pessoas, o direito ao desenvolvimento da personalidade e o combate a todas as formas de discriminação (ROLDÃO, 1992; SANTOS, 2011). Palavras-chave Democracia — Cidadania — Educação — Caráter. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 181-196, jan./mar. 2014. 181 In the interstices of citizenship: the inevitable, urgent character of the dimension of civic virtue in education I Eduardo Nuno FonsecaII Abstract This article has two central points. The first is to problematize the conceptualization of citizenship according to its moral meaning; the second is to evaluate its respective implications for any educational projects that recognize the relevance of education for citizenship in the school context. Therefore, a few considerations will initially be made regarding the polyhedral dimension of the concept of citizenship. We will particularly emphasize that, besides requiring knowledge and competences, participatory citizenship also covers the domains of personal and extra personal resources, as well as the dispositions leading to action. Moreover, there is a bond between each citizen’s moral constitution, democracy itself, and the experiencing of democracy. Finally, we will approach democratic citizenship, which involves one’s capacity to move beyond one’s own individual interests in order to be committed to the good of the community. In this perspective, citizenship raises a latent tension that must be wisely settled. The educational process therefore occurs in the slippery border between indoctrination and the respect for free individual choice, thus calling for strict faithfulness to the guiding compass of human rights (UNESCO, 2006), which favors defending people’s dignity, the right to the development of personality, and the fighting of all forms of discrimination (ROLDÃO, 1992; SANTOS, 2011). I- This article is part of a chapter of the Education doctorate thesis A Educação para a cidadania no sistema de ensino básico português no âmbito da formação do caráter: análises e propostas – dois estudos de caso, submitted to Instituto de Educação da Universidade de Lisboa in late 2012; the thesis was supported by Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) (SFRH/BD/45232/2008). We wish to thank this work’s supervisor, Maria Odete Valente, Ph.D., who since the 1980’s has indelibly marked the Portuguese education context in the area of personal and social Keywords Democracy — Citizenship — Education — Character. education and citizenship. II- Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal. Contact: [email protected] 182 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 181-196, jan./mar. 2014. Introdução Este artigo busca equacionar e problematizar a conceptualização da cidadania, na perspectiva de sua acepção moral e as respectivas implicações para qualquer projeto educativo que reconheça a importância da educação para a cidadania em contexto escolar. A cidadania é uma noção antiga que encontramos tanto na polis grega como na civitas romana, onde os então considerados cidadãos participavam no governo da cidade. Hoje, a amplitude, o horizonte, a responsabilidade e o desafio de ser um cidadão do século XXI cresceram exponencialmente, adquirindo um cunho universal nunca antes ocorrido na história da humanidade. A cidadania tem se projetado fora do âmbito nacional, chegando a ter um alcance global, configurador de uma supercidadania globalizada que, de modo concentrado, abrange gradativamente as esferas local, regional, nacional e supranacional. Como afirma Freire-Ribeiro (2010, p. 67), “mais do que ser cidadão nacional impera ser cidadão do mundo”, ou, como Reis-Monteiro (2003) nos lembra, no contexto do império romano podia-se dizer com orgulho civis romanus sum! (sou cidadão romano), mas, atualmente, cada ser humano deve poder dizer: civis humanus sum! (sou cidadão humano!). Trata-se, desse modo, de uma responsabilidade substancial do sistema educativo, no contributo concedido ao desenvolvimento e à formação das novas gerações. Conceptualização e problematização da cidadania No que se refere à conceituação da cidadania, essa tem vindo a registar, ao longo do tempo, limites cada vez mais amplos. Desde a ênfase à pertença exclusiva e exclusivista a uma cidade (cidadania clássica), passando pela conquista de direitos vários, derivados principalmente da matriz axiológica da Revolução Francesa (cidadania moderna), até a uma dimensão denominada socioliberal na qual Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 181-196, jan./mar. 2014. cada indivíduo desfruta plena e soberanamente de um conjunto de direitos (FREIRE-RIBEIRO, 2010). O conceito de cidadania é devedor, historicamente, a diversas tradições de pensamento político. A tradição liberal enfatiza os direitos civis e políticos, expressos nas liberdades individuais (de pensamento, de expressão, de participação e de associação). Por seu turno, o comunitarismo sublinha a pertença a uma comunidade, realçando desse modo os direitos sociais e culturais. Finalmente, a cidadania apresenta-se para a tradição democrática como participação ativa dos cidadãos na sociedade (AFONSO, 2010). Com esse pano de fundo, que tem caracterizado a essência conceitual da cidadania, manifesta de vários prismas, mas que salientam a natureza simultaneamente individual/gregária do ser humano, da inerência de ser portador de direitos/deveres, e de poder ser um agente participativo na comunidade que faz parte, faz sentido colocar a seguinte indagação: em que medida será possível dissociar a cidadania das dimensões morais? Se a cidadania requerer pelo menos certa forma de caráter, designando-se virtude cívica ou carácter cívico ou democrático, então a educação para a cidadania deverá incorporar as concepções relevantes do caráter e as práticas da educação do caráter (ALTHOF; BERKOWITZ, 2006, p. 511). Mas quais são os argumentos aduzidos para que se incorpore a vertente da moral na essência da cidadania? A resposta terá implicações evidentes no que diz respeito à educação para a cidadania. Alguns autores têm sustentado que a verdadeira cidadania democrática necessariamente compreende o desenvolvimento moral e, desse modo, requer educação moral, sendo um aspecto incontornável da cidadania. O corolário argumentativo resulta na afirmação de que a educação para a cidadania é invariavelmente normativa e abrange assim as dimensões morais inerentes à membrazia cívica (CARR, 2006; HOGE, apud ALTHOF; BERKOWITZ, 2006). Veremos, em seguida, que são de ordem diversa. 183 Iremos então expor aqueles aspectos que se nos afiguram como os mais relevantes. A dimensão poliédrica do conceito de cidadania Segundo Althof e Berkowitz (2006) e Audigier (2000, apud FREIRE-RIBEIRO, 2010), na linha daquilo que a Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI pronunciou sobre a conceptualização da educação (totalidade do ser e não reducionismo), hoje é consensual, nomeadamente na investigação acadêmica recente e na tomada de posição de reconhecidas instituições, conceber um cidadão competente, envolvido e efetivo, como alguém detentor de determinados traços que são necessários para uma participação plena nos planos político, econômico, social e cultural. No relatório produzido pela referida comissão, a educação engloba quatro pilares, que enaltecem a totalidade do ser e contrapõem qualquer reducionismo. Dois desses pilares estão intimamente relacionados com a formação pessoal e social e nos ajudam a focalizar e a não negligenciar determinadas dimensões humanas, a saber: aprender a viver juntos e aprender a ser. Nessa perspectiva, a compreensão do outro, a capacidade de iniciar projetos comuns, gerir e dirimir potenciais conflitos, além de viver autônoma e responsavelmente são consideradas metas educativas para o ser humano ao longo da formação em que se desenvolve holisticamente como pessoa em uma dialética constante e que representa uma simbiose entre espírito e corpo, inteligência e sensibilidade, sentido estético, responsabilidade pessoal e espiritualidade (UNESCO, 1996). Tal cidadania necessita assim de um conjunto de competências (cognitivas, processuais, éticas e de ação) que abranjam, de forma equilibrada, criativa e contextualizada, quatro domínios: 1) conhecimento político e cívico: conceitos como o de democracia, a compreensão da estrutura e dos mecanismos do processo legislativo, direitos e deveres dos cidadãos, os problemas e assuntos políticos 184 contemporâneos; 2) habilidades intelectuais: capacidade de compreender, analisar e verificar a fidedignidade da informação acerca do governo e políticas públicas sobre determinadas matérias; 3) competências sociais e de participação: capacidade de pensar, argumentar e expressar as suas opiniões nas discussões políticas; habilidades na resolução de conflitos; saber como influenciar as políticas e decisões através da petição e do lobbying, construir coligações e cooperar com organizações parceiras; e 4) possuir certos valores, atitudes e disposições with a motivational power: interesse em assuntos políticos e sociais; sentido de responsabilidade, tolerância e reconhecimento dos seus erros; apreciação dos valores nos quais as sociedades democráticas são fundadas como a democracia, a justiça social e os direitos humanos. Nessa última vertente, os direitos humanos, que compõem o eixo da adesão aos valores da democracia, sublinham na sua filosofia conceitual a dignidade de todo o ser humano, o respeito, a liberdade, a solidariedade, a tolerância, a compreensão ou a coragem cívica. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), coloca a cidadania como “ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações”. O mesmo documento pretende que todos os cidadãos: [...] se esforcem, pelo ensino e pela educação, por desenvolver o respeito desses direitos e liberdades e por promover, por medidas progressivas de ordem nacional e internacional, o seu reconhecimento e a sua aplicação universais. (UNESCO, 2006) Assim, tais expressões, as quais a educação para a cidadania deve também entroncar-se, não se apelam unicamente in extremis como direitos que têm de ser observados nas instâncias superiores, mas reclamamse na sua expressão humana, nos patamares concretos do quotidiano. Não são, portanto, categorias abstratas, distantes, mas realidades operativas que reconfiguram os relacionamentos Eduardo Nuno FONSECA. Nos interstícios da cidadania: a inevitabilidade e urgência da dimensão da virtude cívica... interpessoais. Essa reconfiguração introduz pontos de referência que delimitam o espaço onde é legítimo coexistir a pluralidade e a expressão heterogênea da conduta, bem como de posicionamentos humanos, fazendo, inclusive, com que a tolerância seja ela própria uma virtude balizada por outros critérios normativos (ALTHOF; BERKOWITZ, 2006; AUDIGIER, 2000, apud FIGUEIREDO, 2005, p. 35; LEGRAND, 1991 apud FONSECA, 2001, p. 53). Recentemente, no contexto português, o conceito de cidadania foi também conceitualizado remetendo para três dimensões: (i) cidadania enquanto princípio de legitimidade política; (ii) cidadania como construção identitária; e (iii) cidadania como conjunto de valores (SANTOS, 2011). A cidadania é então perspectivada de forma a também incluir os valores, atitudes e comportamentos expectáveis do bom cidadão e da própria sociedade (SANTOS, 2011, p. 5). Somos assim concordantes com vários autores (AFONSO, 2010; CAETANO, 2010; MENEZES, 2005; PEREIRA, 2007; RODRIGUES, 2008; ROLDÃO, 1992, 1999) que têm chamado a atenção para que a cidadania não seja concebida de forma minimalista. Para alguém ser um bom cidadão, a provisão de capacidades cognitivas e de informação, sendo claramente uma condição necessária, não se constituiu como uma condição suficiente. Esses autores sublinham a necessidade premente, em um contexto democrático, de funcionamento das instituições políticas democráticas, de cidadania participativa, de ser contemplada a “interiorização de valores associados à liberdade individual e ao respeito pelos outros”, o desenvolvimento de “atitudes que traduzam um comportamento social esclarecido e interveniente” (ROLDÃO, 1992, p. 105), de atender as “disposições para agir” (MENEZES, 2005, p. 18), as quais envolvem “competências de natureza ética, cognitiva e afectiva” (AFONSO, 2010, p. 128). Heater (1999, p. 336) sintetiza assim as diversas valências que uma pessoa deve incorporar para que, de fato, seja considerada um cidadão pleno: Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 181-196, jan./mar. 2014. a citizen is a person furnished with knowledge of public affairs, instilled with attitudes of civic virtue, and equipped with skills to participate in the political arena. Essa segmentação ajuda-nos a compreender a riqueza e o carácter multifacetado e holístico do conceito de cidadania, nomeadamente o interrelacionamento e o peso idêntico da importância do conhecimento cívico, das competências e das disposições (virtudes), refletindo desse modo aquilo que o Character education partnership designou como carácter cívico (ALTHOF; BERKOWITZ, 2006). Assim, o carácter cívico resulta da interação das três componentes da cidadania: 1) literacia (englobando o conhecimento político e cívico e as habilidades intelectuais), participação e moralidade: se alguma não for contemplada, a cidadania torna-se, respectivamente, uma cidadania alienada (não detém conhecimentos que permitam uma tangibilidade ao nível da esfera de uma participação esclarecida e produtiva); 2) cidadania de bancada: por muito conhecimento e património cívico e moral, não entra no jogo real da vida social, perdendo aquilo que Aristóteles (1998) considerava a qualidade verdadeiramente característica do cidadão – a participação no exercício do poder público na sua pátria; e 3) cidadania niilista: pode inclusive ter todas as outras dimensões altamente desenvolvidas, mas carece de um núcleo axiológico que possibilite uma intervenção, além de esclarecida e efetiva, moralmente dirigida (ver figura 1). Não queremos incorrer no perigo de descurar a riqueza do conteúdo e das questões que envolvem a concretização da educação para a cidadania. Somos concordantes com Menezes (2005, p. 18), quando defende que a cidadania participativa, além de requerer conhecimentos e competências, abrange igualmente o domínio de recursos pessoais e extrapessoais, bem como as disposições conducentes à ação. Rejeitamos, desse modo, uma concepção minimalista da educação para a cidadania, reduzindo-a somente 185 Figura 1 – A cidadania coartada em função das suas três dimensões principais Cidadania Niilista Cidadania Alienada Cidadania de Bancada Fonte: dados da pesquisa. à provisão de informação e ao desenvolvimento de competências, sem levar em consideração, com a mesma seriedade e preocupação, o eixo da moralidade. A expressão educação para a cidadania contém, assim, um reconhecimento implícito da tensão entre formação ética e formação cívica, na medida em que os comportamentos cívicos implicam a interiorização de valores morais e a manifestação em atos responsáveis (PEREIRA, 2007, p. 71). Desde o Pacto internacional sobre os direitos econômicos, sociais e culturais (UNESCO, 1966, artigo 13), passando pelo aclamado relatório produzido pela Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI (UNESCO, 1996), chegando até o projeto europeu Educação para a cidadania democrática e para os direitos humanos, iniciado em 1997, a ênfase tem recaído na responsabilidade de formar as novas gerações, no sentido de existirem condições para uma convivência harmoniosa conjunta (independentemente de qualquer critério étnico, social ou religioso) e para uma intervenção útil na sociedade. Aliás, esse último projeto tem vindo a construir um quadro conceitual, expresso em 186 convenções, declarações, recomendações políticas, trabalhos de investigação teórica e aplicada, no campo da democracia, dos direitos humanos, da cidadania, da pedagogia e da formação de professores. Nessas áreas, a cidadania é entendida como pró-ativa, ética, responsável, descolando-se assim do já mencionado paradigma minimalista (SALEMA, 2010). A educação para a cidadania democrática, tal como afirma Kerr (2004), tem como coluna vertebral um núcleo essencial de sensibilidades morais, que possibilita a construção (ação, preservação e valorização) do respeito, da confiança, da tolerância e da autoestima. O conhecimento e as competências por si só não se constituem como fatores suficientes para conduzir à prática de uma cidadania responsável e ativa. É necessário o desejo e a vontade de participar positivamente na sociedade dessa forma (SALEMA, 2005). Cidadania e democracia Existe um vínculo entre a constituição moral de cada cidadão, a democracia e a Eduardo Nuno FONSECA. Nos interstícios da cidadania: a inevitabilidade e urgência da dimensão da virtude cívica... vivência democrática. Essa preocupação relacionada com a moralidade dos indivíduos foi manifesta nos primeiros filósofos educacionais, tais como Sócrates, Platão e Aristóteles, e em pessoas como Baron Charles e Montesquieu, que advogaram, no século XVIII, a favor da necessidade absoluta de zelar pela virtude das pessoas para que o sistema político proposto, a República, pudesse subsistir. O carácter cívico ou a virtude cívica surgem, segundo alguns pensadores, como um vetor preponderante na composição de uma cidadania harmoniosa e consistente. Por isso mesmo é aduzido que o carácter não se concretiza em um vácuo social, mas cristaliza-se na própria textura social, refletindo-se na conduta regular e quotidiana dos membros de uma sociedade (JOHNSON; JOHNSON, 2006). Torna-se, assim, fundamental que a educação para a cidadania supere a ideia de um civismo exterior ao sujeito e desligado do sentimento de integração na comunidade. Sem o componente ética, a integração social e política resultaria em mera adaptação às tendências dominantes (PEREIRA, 2007, p. 71). Em última análise, uma democracia que não assente na realidade dos seus membros serem self-governing não é democrática de todo. Uma sociedade democrática, em que a ordem e a coesão social são legitimamente almejadas, não pode descurar a predisposição individual dos seus membros. Nata e Menezes (2010, p. 3397) enfatizam essa condição ao nível transpessoal em sociedades heterogêneas, quando sustentam: A qualidade das nossas democracias depende quer do sistema político em si, quer das ‘virtudes’ dos seus cidadãos. Entre outras, a democracia necessita de cidadãos que participem na vida política e cívica, e que, simultaneamente, tolerem e aceitem a participação e identidade de outros, particularmente quando estes outros pensam de forma distinta da sua e são diferentes de si. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 181-196, jan./mar. 2014. O filósofo educacional John Covaleskie (1999) argumenta ainda que sem essa condição de os cidadãos se apropriarem de um conjunto de disposições morais, a alternativa em zelar pela manutenção da ordem social seria um sistema que colocaria em causa a própria democracia. O pensamento do autor é expresso da seguinte maneira: In a democratic society, character does matter. For democracy to work, the citizens must have a settled predisposition to do the right thing far more often than not. For social order to obtain, either this must be true or the citizenry must be subject to such pervasive surveillance and regulation that their behavior is controlled despite the lack of this predisposition. No society in which supervision is the means of social control can lay legitimate claim to be democratic. Democracy requires citizens who are, literally, self-governing. Therefore, character formation — the fostering of virtue — is the critical role of education in any society, but perhaps never more than in a society that would be democratic. (COVALESKIE, 1999, p. 181) Apesar das divergências em torno do conceito da cidadania, tem-se chegado atualmente a um consenso com relação à convicção de que a estabilidade das democracias e o desenvolvimento das sociedades inspiradas e baseadas nos direitos humanos não somente dependem da organização do estado, mas, também, da virtude individual dos seus cidadãos e das suas atitudes de diálogo, de respeito, de participação e de responsabilidade (GONZÁLEZ apud VALENZUELA, 2011, p. 44). Por isso, parafraseando Barber (apud PACHECO, 2000, p. 108), o termo escola pública não concebe apenas a definição dos destinatários por excelência da instituição educativa, o público, mas encerra uma notoriedade da escola, arraigada na compreensão do que é ser público e em uma identidade cívica nacional e comum. 187 A escola é, em sintonia com a metáfora comeniana, uma oficina de cidadania e constituiu nada mais, nada menos, que o alicerce do sistema democrático, especialmente em um contexto em que o seu protagonismo se acentua como agente de socialização (precocidade na entrada no sistema educativo, jornada diária escolar ampliada e, finalmente, no alargamento da escolaridade obrigatória – em Portugal existe a massificação do pré-escolar, estabeleceu-se a denominada escola a tempo inteiro e a escolaridade obrigatória foi recentemente alargada para os 18 anos de idade). Ademais, a conjuntura contemporânea, marcada pela perda das tradicionais instituições de socialização e pela desorientação e insegurança dos interventores educativos – derivada da pluralidade axiológica e dos corolários do pensamento pós-moderno (incerteza, efemeridade e relativismo) –, também salienta essa necessidade (CAMPOS, 2004; ESTRELA; CAETANO, 2010, p. 10). Na senda do pensamento de Montesquieu, outros vultos como Benjanim Franklin e Alexis de Tocqueville, já no século XIX, também se pronunciaram, mostrando a necessidade de se atentar à moralidade, pois era fator determinante para a liberdade e a consecução da obtenção de prosperidade a nível nacional (BROGAN; BROGAN, 1999; MCDONNEL apud RYAN; BOHLIN, 1999). Na mesma linha de argumentação, são denunciadas as repercussões nefastas de não considerar a formação moral como elemento decisivo. Isso, não somente como realização da natureza humana, mas nas decorrentes implicações para o futuro individual e coletivo de uma nação. Note-se que, considerando a esfera social decorrente, já foi observado que 19 de 21 civilizações notáveis ruíram, não por terem sido conquistadas por outros povos mas pelo declínio moral que se foi instalando no próprio seio da civilização (JOHNSON; JOHNSON, 2008; LICKONA, 2004; RYAN; LICKONA, 1987). A esse respeito é invocada, recorrentemente, a célebre expressão do filósofo pré-socrático Heráclito, carácter é destino (BERKOWITZ; 188 BIER, 2005; JOHNSON; JOHNSON, 2008; RYAN, 1986, 1999; RYAN; BOHLIN, 1999; SCHAPS et al., 2001). Isso porque viver em conjunto suscita inúmeros desafios que cada pessoa tem de lidar e ultrapassar da melhor forma possível, consubstanciando, desse modo, uma moralidade pública. Assim, a polis grega cultivou conscientemente hábitos particulares entre os seus cidadãos, virtudes percepcionadas pelos gregos como necessárias para a vida na cidade, para se ter uma vida civilizada (RYAN; BOHLIN, 1999). Para Althof e Berkowitz (2006) e Johnson e Johnson (2008) a resolução de conflitos e saber lidar com a diferenciação de uma forma justa, quer em uma perspectiva intergrupal quer em uma óptica interpessoal, são outros aspectos do exercício da cidadania. Na verdade, esses eixos foram recentemente reconhecidos pelo Citizenship education policy study project, cujo alvo foi identificar as exigências que a cidadania contemporânea iria requerer no século XXI. As características fundamentais que um cidadão deveria ter, a bem da própria estabilidade da sociedade global, passariam incontornavelmente por assumir responsabilidade pelas suas funções e compreender, aceitar e tolerar as diferenças culturais, resolver um conflito de uma forma não violenta e respeitadora dos direitos humanos (NARVAEZ, 2001, p. 4-5). Vemos, assim, a necessidade de contemplar os valores da responsabilidade, da tolerância e do respeito pelos outros como acervo imprescindível à formação de uma cidadania tal que satisfaça os exigentes desafios locais, nacionais e à escala global que a contemporaneidade encerra para a humanidade. Viver juntos de forma pacífica, portanto, implica a existência de conjunto básico de valores universais, uma ética comum da humanidade em torno dos direitos do ser humano e da democracia. Exige, ainda, que os membros da comunidade reconheçam e compartilhem entre si a alma da sua identidade coletiva, a qual constitui o centro de gravidade da importante educação para a cidadania (REIS-MONTEIRO, 2003). Eduardo Nuno FONSECA. Nos interstícios da cidadania: a inevitabilidade e urgência da dimensão da virtude cívica... Além disso, é indeclinável a existência de um núcleo axiológico no qual alguns princípios universais mínimos subjazem à generalidade das matrizes culturais e religiosas, de modo a assegurar a liberdade responsável do ser humano e a proporcionar um verdadeiro diálogo intercultural (ARAÚJO, 2005; CARNEIRO, 1999). Assim, é necessário um chão comum de cidadania, em um solo de areias movediças, que evite um marasmo e niilismo ético confrangedor e uma anomia crescente. Cidadania e participação social Como último ponto, a cidadania democrática envolve a capacidade da pessoa de se mover além dos seus próprios interesses individuais, para que possa comprometer-se com o bem comum da comunidade onde ela está inserida (ALTHOF; BERKOWITZ, 2006, p. 500-501). Nessa concepção, o compromisso e a ação no domínio cívico e político não podem estar dissociados do fato de as pessoas se preocuparem com os assuntos e valorizarem a sua ação, na medida em que reconhecem que o seu contributo nessa esfera é válido e consequente (COLBY, 2002). Althof e Berkowitz (2006, p. 512) reconhecem que, ao incorporar no conceito de cidadania um envolvimento pró-social no seio de um sistema político democrático, tal envolvimento depende em larga escala do carácter de cada cidadão. Em outras palavras, a cidadania ativa que se almeja no projeto educacional é deveras exigente, especialmente numa sociedade onde proliferam um individualismo sedento de gratificação imediata e um consumismo frenético, minando, dessa forma, o exercício da solidariedade, da empatia e da compaixão. Abdicar dessa enorme pressão social, e abnegadamente dar um contributo tangível aos outros, constitui sobremaneira um desafio nos dias de hoje. Existe uma larga e importante classe de obrigações morais e sociais que não é redutível à categoria dos deveres, os quais poderão estar explicitados ou mesmo consignados. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 181-196, jan./mar. 2014. Uma cidadania democrática liberal responsável não pode ser somente um assunto teórico de direitos e obrigações concebidos abstratamente (CARR, 2006). Johnson e Johnson (2008) mencionam que a virtude cívica existe quando o espírito e a letra das obrigações públicas são satisfeitos. Subsequentemente, não se pode deixar de privilegiar o desenvolvimento de uma constituição moral sólida e enformada por distintas qualidades humanas. Essa dimensão deve ser firmemente fixada em disposições éticas, qualidades de carácter como a honestidade, justiça, temperança, coragem e compaixão (CARR, 2006. p. 451). Temos ainda, além do cunho pró-social da cidadania, a necessidade dessa se configurar como uma cidadania efetiva que valoriza a individualidade e a inerente realização pessoal de cada pessoa. Em uma perspectiva mais pessoal, os cidadãos efetivos deverão ser capazes de ordenar a sua conduta e perseguir os seus vários projetos à luz de uma concepção pessoal de bem que seja fortemente desejada ou daquilo que é considerado humanamente digno de obtenção. A cidadania, assim construída, é um também um assunto de formação ou cultivo de valores significantes e virtudes (CARR, 2006, p. 444). Por isso, Reis-Monteiro (2003) sustenta que a educação para a cidadania está sempre associada, formalmente ou não, à educação moral, pois, como Aristóteles (1994) já tinha sublinhado, a singularidade dos seres humanos em relação aos animais, evidencia-se pela sua capacidade única de ter a percepção do bem e da justiça, do mal e da injustiça. Cidadania e a atmosfera cívica nos estabelecimentos educativos Finalmente, a atmosfera moral e cívica da escola sempre foi uma faceta importante na educação, por isso a novidade no contexto português, hoje, prende-se com o grau de regularidade e intensidade existentes, bem como com a gradual deterioração (CARVALHO, 2000; RANGEL, 2006). Desde a década de 80 do século 189 XX, essa deteriorização tem sido estudada com maior amplitude em Portugal, sendo que os analistas têm chamado a atenção desse quadro inquietante, composto por elementos que vão desde as injúrias, a linguagem inapropriada, a alienação, o consumo de drogas e o bullying (JUSTINO, 2005; MARQUES, 1998; WONG, 2011). Se é sensato não defender uma perspetiva de educação e uma estratégia ao nível da formação pessoal e social dos alunos, com base exclusiva nos sinais atuais que a sociedade manifesta, seria igualmente ilegítimo não levar em consideração essas interpelações que, de fato, acentuam a necessidade de intervenção e nos ajudam a compreender facetas marcantes do próprio contexto educativo e dos seus interventores mais diretos, alunos e respectivas famílias. Reconhecemos que um ambiente não harmonioso dentro de um estabelecimento melindra a natureza e as finalidades do ato educativo, prejudica as aprendizagens, a estabilidade emocional e profissional dos seus docentes, mas também a atmosfera geral, eixo igualmente relevante na promoção de uma formação moral e cívica adequada. Quer partamos de uma base pré-teórica, quer estejamos apenas sensíveis ao senso comum, é difícil aceitar que crianças e jovens possam adquirir e vivenciar a sabedoria prática e a justiça, na ausência de algum grau de controle sobre as suas inclinações e desejos (o aumento da obesidade, a gravidez na adolescência, as doenças transmitidas sexualmente, abuso de droga e de álcool, violência nas suas múltiplas expressões são corolários da negligência, da temperança e do domínio-próprio na vida das pessoas) (CARR, 2006). Claro que existem outros fatores que concorrem para isso, a saber: parentalidade irresponsável, exploração comercial da violência, cultura sexual, acesso facilitado à pornografia, álcool e drogas, exemplos raros ou mesmo inexistentes daqueles que são considerados pelas gerações mais novas modelos a imitar (CARR, 2006, p. 452). Se os alunos não aprendem disciplina-própria e respeito pelos outros, continuarão a 190 explorar-se sexualmente, não sendo condição suficiente o número de sessões de aconselhamento clínico ou o acesso aos contraceptivos. Se não tiverem hábitos de coragem e de justiça, não acabarão os fenômenos de extorsão, bullying e violência (KIDDER, 1991; KILPATRICK, 1992; LICKONA, 1993, 2004; RYAN; BOHLIN, 1999). Um regime democrático precisa vitalmente de intervenção no nível educativo, não somente devido aos problemas já mencionados de violência social e escolar, mas também pelo recrudescimento da intolerância e da xenofobia, pelo declínio dos valores e da autoridade tradicionais, pela descrença no primado do direito e pelos novos problemas éticos emergentes do progresso científicotecnológico, designadamente no campo das ciências da vida (REIS-MONTEIRO, 2003). Claro que a falta de consenso não está no diagnóstico em relação à gravidade social e cultural, notória nas sociedades desenvolvidas, mas em relação ao que deve ser feito, nomeadamente através da instituição social escola (CARR, 2006). No âmbito das estratégias relacionadas ao desenvolvimento pessoal e social, pensamos que existe legitimidade de considerar a premissa de que a patologia moral nas instituições escolares radica também na ausência de um bom caráter. Sustenta-se, desse modo, que as abordagens relacionadas com a formação do carácter lidam com a raiz do problema, constituindo-se como a melhor ação a empreender para inverter a situação. Isso porque tais abordagens enfatizam a dimensão emocional e a dimensão de ação. Ora, Marques (1999) refere que no contexto português público, a atmosfera cívica escolar nas últimas três décadas (ambiente, práticas e condutas) tem sido negativamente afetada, devido à desvalorização das vertentes afectivas e comportamentais no empreendimento educativo da formação pessoal e social nas escolas. Conclusão Para finalizar, reiteramos que o conceito da cidadania, na perspectiva de suas múltiplas Eduardo Nuno FONSECA. Nos interstícios da cidadania: a inevitabilidade e urgência da dimensão da virtude cívica... facetas e nas suas implicações, requer que a dimensão moral esteja presente, particularmente no seio de uma democracia, pois essa terá implicações na harmonia social e na consecução da própria prosperidade de uma sociedade. A moralidade pública é um alvo que faz depender a coesão e a qualidade de relacionamento entre as pessoas e os grupos diversos que compõem o tecido social. Na complexa matriz social, surgem inevitavelmente diferendos que urgem ultrapassar de forma justa, ordeira e sensata. Ora, a inexistência de um carácter cívico condicionam sobremaneira esse desígnio. Para subsistir, a democracia necessita, mais do que qualquer outro sistema político, da motivação para ser virtuoso, da partilha de valores e objetivos similares. As pessoas têm de estar conscientes que fazem parte de um grupo humano mais alargado, preocupando-se com a sociedade como um todo e tendo vínculos morais com a comunidade (JOHNSON; JOHNSON, 2008, p. 224). Outro aspecto importante foi destacar a exigência que a expressão cidadania ativa e efetiva encerra e requer em termos da necessidade de existir como condição prévia à formação de valores operativos, sob pena de ser somente um simulacro. Em suma, o cultivo de virtudes não pode deixar de estar presente em todo e qualquer desenvolvimento pessoal de uma digna cidadania responsável e interventiva. Assim, não nos parece exagero afirmar que a educação para a cidadania realmente carece de um fundamento baseado em uma educação do caráter, como se de uma pré-condição se tratasse – “a precondition of good citizenry is a virtuously ordered character” (CARR, 2006, p. 453). Esse foi também o entendimento da sociedade inglesa que determinou que a educação para a cidadania se tornasse uma disciplina obrigatória, na qual sobressai claramente o conceito de educação com caráter (ARTHUR, 2003a, 2003b, 2003c, 2005; KERR, 2003; KIWANI, 2005). À luz da argumentação feita, a educação para a cidadania não se deve confinar à Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 181-196, jan./mar. 2014. transmissão e promoção de noções ou reflexões sobre valores. É simultaneamente curial a criação de hábitos e atitudes através de experiências, em um processo de aquisição e interiorização de valores, quadro configurador de uma formação de carácter que se liberta de um paradigma exclusivamente cognitivo da moralidade (CUNHA, 1996; FONSECA, 2007). Reconhecemos desde já, todavia, que esse posicionamento a que chegamos é polêmico, apesar de não colocarmos em nenhum momento em causa as demais componentes (participação, literacia política etc.). Mas, somente o fato de assinalar a componente virtuosa, como âmago de se ser cidadão, despoleta invariavelmente questões ideológicas e políticas, enquadrando-se naquilo que Pacheco (2000, p. 110-111) menciona como a “linguagem política do carácter”. Essa linguagem é utilizada, segundo a sua argumentação, por movimentos políticos conservadores, cuja matriz realça uma cidadania associada a projetos de moralidade, os quais concebem a escola e os demais espaços socializadores (família e comunidade) como contextos privilegiados para doutrinar valores tradicionais. Ora, aqui está, julgamos nós, a ponderação do caráter doutrinador da potencial dependência de uma agenda ideológica e em última análise da formação de cidadãos impossibilitados de exercer a sua autodeterminação ética. No entanto, somos concordantes com a recente postura lúcida e preventiva de Caetano (2010), em relação à possibilidade de se ter uma abordagem diretiva, com segurança e autoridade, mas sem qualquer traço manipulatório. Não obstante, admitimos as dificuldades e tensões inerentemente envolvidas, substancialmente derivadas da complexidade da compatibilidade entre, seguindo as palavras de Savater (2006, p. 165), um ensino empenhado no máximo de persuasão didática e o desenvolvimento do espírito crítico da autonomia dos alunos. Vários investigadores contemporâneos (PEREIRA, 2007; ROLDÃO, 1992, 1999; SANTOS, 2011) referem que a educação no âmbito da 191 escola – ao promover a formação pessoal, social e moral do indivíduo, alicerçada em quadros de referência consistentes, que chama a si princípios inerentes a toda a dignidade da pessoa humana, os quais são acolhidos nas constituições dos estados democráticos – traduz uma tensão e um problema sério. Roldão (1992, p. 106) especifica de forma interessante essa latente tensão, mencionando que esse processo educativo “se desenvolve na fronteira escorregadia entre a doutrinação e o respeito pela livre escolha individual”, devendo existir uma fidelidade intransigente à bússola balizadora dos direitos humanos (UNESCO, 1996), os quais privilegiam a defesa da dignidade das pessoas, o direito ao desenvolvimento da personalidade e o combate a todas as formas de discriminação (SANTOS, 2011). A meta consagrada em 1986, na Lei de Bases do Sistema Educativo em Portugal, regista dois binómios que poderiam ser considerados como portadores de uma antinomia interna (liberdade/responsabilidade e autonomia/solidariedade). No entanto, acompanhamos essa composição e cremos que a concepção realizada capta com lucidez a possibilidade da conjugação dessas dimensões. Apesar da liberdade e da autonomia serem consideradas, não raramente, baluartes de uma educação emancipadora e não heterônoma, não implicam inevitavelmente a rejeição de valores objetivos, os quais são normativos e norteadores de condutas balizadas e dirigidas – como a responsabilidade e a solidariedade. Portanto, sustentamos que uma cidadania ativa, responsável, livre, autônoma e solidária, não pode surgir dissociada da reflexão e desenvolvimento de referências e critérios pessoais normativos de conduta. Aliás, esses são vetores presentes na matriz conceitual ainda vigente do texto fundador de 1986, cujo teor lançou as bases para o surgimento da educação para a cidadania no ensino básico público em 2001, que se mantém até aos dias de hoje como preocupação premente na escola portuguesa. Terminamos esta reflexão a respeito dos interstícios da cidadania com uma implicação 192 geral que julgamos relevante, e, por último, com o pensamento atual do pedagogo Paulo Freire. A implicação deriva do fato de que, ao assumir-se com frontalidade, a inevitabilidade e urgência da dimensão da virtude cívica na educação, as questões relacionadas com o acesso à profissão docente, à formação inicial, contínua e de especialidade deverão ser devidamente equacionadas. À luz desse enquadramento, em Portugal, a Recomendação do Fórum de Educação para a Cidadania – no âmbito da qualificação dos recursos humanos, a formação inicial e contínua de professores foi considerada crucial para o empreendimento educativo, em todas as situações vividas nos estabelecimentos de ensino (FCG, 2008), nomeadamente em relação à educação para a cidadania. A resposta à questão de como capacitar, habilitar e motivar os educadores para a formação positiva do caráter das gerações mais novas em contexto escolar tem de ser consubstanciada com seriedade e retirando igualmente as devidas consequências. Como Narvaez e Lapsley (2008) corretamente sustentam, não se trata de discutir se os professores devem ou não ensinar valores, mas como é que os docentes são equipados (e nós também diríamos selecionados) para exercerem, da melhor maneira possível, a sua ação nesse processo complexo e exigente, repleto de desafios interpessoais e questões moralmente desafiadoras e dilemáticas. Nesse sentido, Patrício (1995, 1997) tem sublinhado essa necessidade de competência antropológica, cuja essência radica na construção do humano no homem. Ser um funcionário do humano e não meramente um funcionário público (ou como apontaria Baptista (2005), um mero funcionário-especialista-ensinante) requer, na formação de professores, dimensões que abranjam conjuntamente, no âmbito dos valores, a reflexão e a ordem praxeológica. Para finalizar este artigo, trazemos as palavras do autor da Pedagogia da autonomia, o qual concebeu pertinentemente a educação de forma holística e integral. Nessa perspectiva, o autor salienta a singular natureza ontológica Eduardo Nuno FONSECA. Nos interstícios da cidadania: a inevitabilidade e urgência da dimensão da virtude cívica... e antropológica do ser humano e destaca que a cidadania deriva do processo educativo, o qual é substantivamente formador. A educação progressista e emancipatória não despreza a dimensão da virtude cívica, nem a liberdade e autonomia individual se confundem com a licenciosidade e com a pedagogia orientada exclusivamente pela ciência e pela técnica. Mulheres e homens, seres histórico-sociais, nos tornamos capazes de comparar, de valorar, de intervir, de escolher, de decidir, de romper, por tudo isso, nos fizemos seres éticos. Só somos porque estamos sendo. Estar sendo é a condição, entre nós, para ser. Não é possível pensar os seres humanos longe, sequer, da ética, quanto mais fora dela. Estar longe ou pior, fora da ética, entre nós, mulheres e homens, é uma transgressão. É por isso que transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu carácter formador. Se se respeita a natureza do ser humano, o ensino dos conteúdos não pode dar-se alheio à formação moral do educando. Educar é substantivamente formar (FREIRE, 1996, p. 18-19). Referências AFONSO, Maria Rosa. A educação para a cidadania na escola. In: ______; ESTRELA, Maria Teresa (Coords.). Formação éticodeontológica de professores. Textos de apoio, 2010, p. 127-131. ALTHOF, Wolfgang; BERKOWITZ, Marvin. Moral education and character education: their relationship and roles in citizenship education. Journal of Moral Education, v. 35, n. 4, p. 495-518, 2006. ARAÚJO, Luís. Ética: uma Introdução. Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2005. (Estudos Gerais, série universitária). ARISTÓTELES. Ética a Nicómaco. Lisboa: Quetzal, 2004.Tradução e apresentação de António Caeiro. ______. Política. Lisboa: Vega, 1998. 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En esta investigación se piensa lo sensible en relación con la educación a partir de una ruta filosófica, pedagógica y experiencial, por ello, el estudio de lo sensible se enmarca en el pensamiento filosófico de Federico Nietzsche y Gilles Deleuze, y la educación en la reflexión pedagógica de Jorge Larrosa y Fernando Bárcena. Con el análisis teórico documental que se realiza no se trata de reproducir conceptos ni ideas, sino de analizar aquellas situaciones en que la sensibilidad despliega otras maneras de pensar la educación porque la preocupación por las condiciones de sensibilidad pasa también por la necesidad de ver la estrecha relación que guarda el cuerpo y la Educación. Así, en este texto se exponen algunas prácticas corporales en clave pedagógica para hacer ver las potencias que se ejercen sobre el cuerpo. De conformidad con la dimensión simbólica del cuerpo, las prácticas corporales son, ante todo, simbologías corporales, son modos de decir del cuerpo que nos orientan para pensar una educación de lo sensible. Esta ruta experiencial del danzar, jugar y caminar permite abordar el análisis de la educación y del cuerpo desde experiencias que, quizás, están desposeídas de significado educativo, este modo de preocuparnos por lo pedagógico es una posibilidad para pensar una educación de lo sensible desde el cuerpo. Palabras clave Educación de lo sensible — Educación corporal — Aprendizaje a través de la experiencia — Prácticas corporales estéticas. I- Universidad de Antioquia, Medellín, Colombia. Contato: [email protected] Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 197-214, jan./mar. 2014. 197 Expressions of the sensible: readings in a pedagogical key Luz Elena GalloI Abstract This article results from a hermeneutic study about the education of the body with the object of analyzing the conditions of sensibility under a pedagogical perspective seen as a part of the study of Physical Education. In such investigation we think about the sensible in respect to education from a philosophical, pedagogical, and experiential approach; the study of the sensible is thereby grounded in the philosophical thinking of Friedrich Nietzsche and Gilles Deleuze, and the pedagogical reflection on education is based on the ideas of Jorge Larrosa and Fernando Bárcena. The theoretical documental analysis carried out here is not aimed at reproducing concepts or ideas, but at analyzing those situations in which sensibility gives rise to other forms of thinking about education, since the concern with the conditions of sensibility also includes the need to see the close relationship that the body has with Education. Thus, some physical practices are explained in this text under a pedagogical perspective in order to show the influences exerted upon the body. Following the symbolic dimension of the body, physical practices are, above all, physical symbologies; they are ways of speaking about the body that guide us in thinking about an education of the sensible. This experiential approach to dancing, playing and walking allows us to deal with the analysis of education and of the body on the basis of experiences which are, perhaps, divested of their educative meaning; this manner of looking into the pedagogical is a possibility to think about an education of the sensible based on the body. Keywords Education of the sensible — Physical education — Learning through experience — Aesthetic physical practices. I- Universidad de Antioquia, Medellín, Colombia. Contact: [email protected] 198 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 197-214, jan./mar. 2014. Una mirada de lo sensible en relación con la educación No aprendemos nada con quien nos dice; “haz como yo”. Nuestros únicos maestros son aquellos que nos dicen “hazlo conmigo”, y que en vez de proponernos gestos para reproducir, saben emitir signos desplegables en lo heterogéneo. Gilles Deleuze En primer lugar, lo sensible, como concepto estético, tiene que ver con aquello que (nos) pasa por el cuerpo, ese poder de afectar y ser afectado. Ocuparnos de las cosas que (nos) pasan es darles importancia a las circunstancias de las cosas, ¿por qué?, ¿en qué casos?, ¿dónde?, ¿cuándo?, ¿cómo? ¿En qué casos la práctica corporal es una expresión de lo sensible? Tal vez, cuando pensamos que aprender también tiene que ver con lo que puede un cuerpo. Si el cuerpo está compuesto de zonas de intensidad, de fuerzas, de relaciones que le dan vida, es capaz de actualizar sus potencias. Cuando Spinoza nos dice que no sabemos lo que puede un cuerpo, nos provoca a pensar el cuerpo en la educación porque quizás, no nos han enseñado a hacer experiencia con lo que puede el cuerpo y pensar en términos de potencia implica pensar corporalmente. Pensar el cuerpo en la educación implica redefinirlo en virtud de los poderes y fuerzas que lo atraviesan. Así lo que constituye el ser de lo sensible es la diferencia de la intensidad y la diferencia es lo realmente implicante, envolvente y lo que “conmueve el alma, lo que la deja perpleja, es decir, la fuerza a plantearse un problema” (DELEUZE, 2009, p. 216). La intensidad estará determinada por lo desigual, la disparidad, lo múltiple, lo diverso. Si lo sensible tiene que ver con las intensidades ¿cómo hacer que en una práctica corporal importen las sensibilidades diferenciales? Ahora bien, estamos poniendo aquí lo sensible al lado de la educación. ¿En qué casos podemos decir que hay un saber en la educación de lo sensible? Para dar cuenta de ello necesitamos acompañarnos de una idea de educación, aquélla que nos pone en el lugar Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 197-214, jan./mar. 2014. del acontecimiento. Un acontecimiento en el contexto educativo es una irrupción, es cuando algo nos da qué pensar, es lo que rompe con la continuidad del tiempo; podemos decir que un acontecimiento hace experiencia en nosotros cuando hace algo en nosotros y no (nos) deja intactos, así la educación es experiencia del aprendizaje de lo nuevo (BÁRCENA, 2002; FARINA, 2005; BÁRCENA; LARROSA; MÈLICH, 2006; LARROSA, 2006; GALLO, 2011; 2012). El saber de lo sensible nos pone en un plano distinto de las teorías cuyo saber está fundado en leyes, en la medición, la prueba, la abstracción de uno mismo, la objetividad, la distinción, la claridad, la norma y al estar guiado por el imperativo de la razón estrechan la intuición, la imaginación y el cuerpo. Podemos decir que una educación de lo sensible se pone en el lugar de lo heterogéneo, de la pluralidad, acoge la incertidumbre, la diversidad y es una forma de producción — poiesis, acto de creación —, siendo estas un modo de conocer. Hoy sabemos que hay una nueva modalidad de la experiencia educativa que intenta poner el acento en el cuerpo y, en sus variaciones sensibles, rescata la imaginación, la contemplación, la atención, el sentimiento, la percepción, el asombro; así como los principios de introspección, delicadeza, inexactitud, fineza y variabilidad. Sabemos que la Educación separa lo sensible y el pensamiento, que le otorga mayor relevancia a lo intelectivo que a lo sensible, privilegia más los aspectos intelectuales y morales en detrimento de la corporalidad, hay una discordia entre sensibilidad y pensamiento. ¿La Educación se preocupa por lo que puede el cuerpo?, por ejemplo ¿lo que expresa el cuerpo como potencia y ver lo que no está visible, escuchar lo que no es audible, tocar lo que está intacto y por el gusto de las palabras? Aunque vemos, escuchamos, tocamos y nos gustan demasiadas cosas, tal vez, necesitamos aprender a ver lo que vemos para mirar cuidadosamente, ¿será mirar acoger lo que se ve tal y como es sin modificaciones? O ¿estamos ante la necesidad de una ética de la 199 mirada? (BÁRCENA, 2004). El que se dispone a aprender se torna un aprendiz del mirar, es un espectador entrometido, anhela la luz, es un lector erotizado por saber, es aquél a quien le interesan las cosas. Tal vez, necesitamos aprender a escuchar lo que oímos para escuchar atenta y delicadamente. de proceder que nota determinadas texturas, pasar por la afección, el acercamiento, la aproximación, la receptividad. “La experiencia del tacto hacia el otro – como toda experiencia táctil – es siempre, experiencia de uno mismo” (BÁRCENA; MÈLICH, 2000, p. 181). Gustar por cierto, La voz, esa cara sensible de la lengua, esa que hace que la lengua no sea solamente inteligible, que no esté toda ella del lado del significado, que no sea solamente un instrumento eficaz y transparente de comunicación, que no sea sólo una voz mecánica, sin nadie dentro, que dice cosas (…) la voz sería entonces algo así como el sabor y la resonancia de la lengua. (LARROSA, 2008, p. 2) Un amigo me decía hace tiempo que un aula universitaria es un lugar donde algunas palabras, o algunas ideas, pasan de los papeles arrugados del profesor a los papeles nuevecitos de los alumnos, sin haber pasado ni por el corazón, ni por la cabeza, ni por el cuerpo, ni por el alma, ni del profesor ni de los alumnos. Yo no diría que eso es vomitar. Pero sí que me parece que ahí no se puede aprender de oído porque nadie habla y nadie escucha. (p. 3) [...] no supone apenas una relación estricta de mero afecto o musicalidad con las palabras; tiene mucho más que ver con la afección, la conmoción, la perplejidad, el asombro. (SKLIAR, 2011, p. 9) Todo aprender tiene que ver con un encuentro, se aprende entre dos, se aprende al escuchar cuidadosamente, se aprende al mirar cuidadosamente, sin embargo, el verdadero aprendizaje no brota de lo que ya se sabe, sino de lo que está por saber, probablemente se trata de un asunto de atención. Si el maestro no propone modelos porque no le interesa moldear al otro, su posibilidad es emitir signos, signos que den qué pensar y sentir. Si estamos ante una idea de aprendizaje como relación, aprender también tiene que ver con el tacto, con hacer un con-tacto. El tacto es un término que se relaciona con aquello que está intacto. ¿Qué puede ser enseñar con tacto educativo? Tal vez, tocar en un sentido sensible y estético, un modo 200 Cuando enseñamos con gusto se resaltan las palabras que nos gustan y hacemos resonancia con las palabras porque nos tocan y nos conectan con la vida y nos producen vitalidad. Sugerimos para una educación de lo sensible acompañarnos de lo que hay en las palabras, en vez, de lo que es la palabra. Si preguntamos ¿qué hay en la palabra cuerpo? el concepto se agranda, se refuerza o se desarticula siguiendo las líneas o estratos de variaciones que él coordina, ramifica y ordena, el concepto ordena o conecta con otros rasgos que lo componen. Lo que hay en la palabra es lo que está entre, lo que hay en medio de ella, entre ella o en el intersticio, así la palabra cuerpo adquiere movimiento, velocidad, variación y dirección. Ahora bien, si preguntamos ¿qué es la palabra cuerpo? El concepto se cristaliza, se determina su identidad, su esencia y se inmoviliza, y generalmente alude a conceptos vacíos. Amigo mío, a propósito de las palabras. No sé de palabras que puedan perdernos: ¿qué es una palabra para poder destruir un sentimiento? No le adjudico una fuerza así. Para mí todas las palabras son minúsculas. Y la inmensidad de mis palabras no es sino una tenue sombra de la inmensidad de mis sentimientos. (TSVIETÁIEVA, 2008, p. 219) Algunas expresiones de lo sensible en clave pedagógica pasan por aprender a mirar, Luz Elena GALLO. Expresiones de lo sensible: lecturas en clave pedagógica escuchar, tocar, gustar, pensar, sentir, imaginar, crear, desear. Son esas expresiones variaciones de lo sensible que, al tratar de entenderlas desde el cuerpo, nos ponen en contacto con una variedad de posibilidades. El aprender, como nos dice Deleuze en Diferencia y Repetición, no se realiza en la reproducción de lo mismo, sino como encuentro con el otro, con lo otro. No se aprende de una práctica corporal imitando, haciendo lo mismo, sino arriesgándonos hacia nuevos gestos, expresiones, orientaciones, posiciones. No se aprende tras imitar una acción motriz que ya se hizo, y cuya representación hemos grabado con el fin de hacer una imitación exacta o una copia del movimiento. Tal vez, se aprende acompañando el gesto de lo que se viene haciendo o lo que pueda hacer el cuerpo en el mismo instante que hace un movimiento. Aprender desde una práctica corporal requiere decisión, prestar atención a lo relevante, propiciar la re-creación, atender a una especie de poética de la creatividad, según la cual los planos no son dados, antes bien, se crean otro planos de sentido; esto sólo cobra sentido con cierta idea de la Educación que abandona las pretensiones de control, de la técnica, de la modelación y se guía por el interés de la relación del sujeto con el mundo, con cierta invitación al encargo de sí, a no conservarnos idénticos porque si nos pensamos como una identidad fija e inmutable, no podríamos decir que gracias a la educación nos agrietamos, nos fracturamos, perdemos la rigidez del yo y nos hacemos de otras maneras porque quien aprende tiene una historia, una biografía en la que no se queda fijado, se puede invitar a que el otro aprenda y es aquí donde el tacto educativo tiene una influencia sutil en el otro. Aprender haciéndose sensible a los signos del cuerpo pone en juego los conceptos, las percepciones, los afectos las sensaciones. Los conceptos como “nuevas maneras de pensar”, los perceptos como “nuevas maneras de ver y oír” y los afectos como “nuevas maneras de experimentar” (DELEUZE, 1996, p. 260). Aquí Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 197-214, jan./mar. 2014. nos encontramos con una forma de incitar un acontecimiento sensible, un cuerpo es afectado por lo que le pasa, cuando lo que le pasa, le irrumpe, lo desestabiliza, le crea nudos, focos, le afecta sus puntos sensibles. Lo que (nos) pasa produce efectos sobre el modo como nos vemos y entendemos, produce efectos sobre nosotros mismos, así podemos crear nuevos modos de ser, nuevas maneras de pensar, de ver, de escuchar y nuevas maneras de experimentar. Por ejemplo, mediante una práctica corporal se desacomoda, se desestabiliza el cuerpo, se mueven las formas de referencia y se varían las formas de la experiencia que pasan por el cuerpo. El valor de aprender reside en el acontecer de una experiencia, en el hecho de ser un acontecimiento, algo que no (nos) confirma lo que ya sabíamos. Así, aprender no es acumulación, y el aprendizaje de una práctica corporal no se resuelve en la mera repetición ni en confirmarnos en lo mismo. La experiencia no se tiene, se hace, (nos) pasa en el cuerpo, en una práctica corporal el aprendizaje pasa por una experiencia que se sitúa en el propio cuerpo, en ese poder expresivo y revelador de la acción. Nos referimos al aprendizaje como algo que nos ocurre como seres humanos y que, en parte, puede cambiarnos. Aprender es un acontecimiento, una experiencia singular. Bárcena y Mèlich (2000, p. 162) nos dicen que […] no hay aprendizaje sin experiencia. No hay genuino aprendizaje si eludimos someternos al rigor del acontecer de una experiencia que, en buena parte, escapa a nuestro control. Cada situación educativa, potencialmente pedagógica, contiene una trama que, al descifrarla, nos permite hacer estallar su significado educativo. Ahora bien, hay un riesgo en el aprendizaje, en una práctica corporal, puede que nada nos ocurra, que nada cambie. Con Deleuze, el cuerpo conserva sus órganos pero estos son desorganizados por las fuerzas que los atraviesan, interrumpiendo 201 así el proceso de disposición de los órganos como organismo. “El cuerpo está más vivo mientras más afectado está por las fuerzas que lo desorganizan como organismo” (BEAULIEU, 2012, p. 48). ¿Por qué dejar que el cuerpo sea desorganizado por estas fuerzas? Porque libera el cuerpo de sus funciones orgánicas, lo pone en situación de expresión, lo vuelve sensible a esas fuerzas, lo hace experimentar en un estado de extrañeza, lo desestabiliza. Por ello Deleuze admira a los personajes de Beckett obstinados en agotar las posibilidades ligadas a las actitudes corporales; su admiración por Kafka y la nomenclatura de las posturas de su cabeza que propone en su obra: cabeza inclinada o levantada, cabeza que rebasa los límites. Deleuze en La imagen-tiempo reanuda su estudio del cuerpo a través de los cineastas del cuerpo donde expone que el cine tiene el poder de mostrar el efecto de las fuerzas vitales sobre el cuerpo. ¿Qué interesa? Poner en imágenes las posibilidades del cuerpo, mostrar las fuerzas que impulsan al cuerpo a rebasar sus capacidades, la adopción de posturas, la alteración de los gestos, la acción de un cuerpo sobre otro, el acto creador, las composiciones entre cuerpos con efectos sonoros y visuales. En síntesis, Deleuze renueva enérgicamente el vínculo con Spinoza: aquello de lo que un cuerpo es capaz, es de hacerse en un devenir perpetuo e intensivo que pueda sorprenderlo a sí mismo. (BEAULIEU, 2012, p. 56) Todo aquello de lo que es capaz el cuerpo como potencia no puede estar determinado, la potencia ha de entenderse como esa fuerza que nos empuja hacia algo, ese deseo que está determinado por afecciones. Desde esta perspectiva, el deseo se corresponde con una capacidad de ser afectado de múltiples maneras con vistas a acrecentar la potencia de obrar del cuerpo. Nos dice Spinoza que el cuerpo puede ser afectado de muchas maneras, por las que su potencia de obrar aumenta o disminuye. 202 Ahora bien, pretendemos recuperar las fuerzas que afectan al cuerpo a través de unas prácticas corporales. Una práctica corporal se constituye en una variación intensiva del cuerpo respecto de sí mismo. Quien experimenta es el cuerpo, es el cuerpo en que se vuelve plenamente expresivo y sintiente. Una práctica corporal es una forma de lo sensible relacionada con la sensación porque es una modalidad de la experiencia: a la vez devengo en la sensación y algo ocurre por la sensación. Formas de expresión de lo sensible Como formas de expresión de lo sensible están las prácticas corporales que podemos entender como esas acciones o fuerzas que actúan sobre el cuerpo, por ejemplo cuando bailamos, jugamos o caminamos se hacen visibles fuerzas de presión, de dilatación, de contracción, de estiramiento, de placidez, de angustia, de placer, etc. ¿De qué cuerpo estamos hablando? De un cuerpo intenso, intensivo que tiene niveles y umbrales de variación, allí donde el cuerpo se escapa, pero, escapándose, descubre la materialidad que lo compone, en pocas palabras cuando la música levanta su sistema sonoro y su órgano polivalente, el oído, se dirige a cualquier cosa menos a la realidad material del cuerpo. Es cierto que la música atraviesa profundamente nuestro cuerpo, y nos pone un oído en el vientre, en los pulmones, etc… pero arrastra justamente nuestro cuerpo, y los cuerpos, a otro elemento. (DELEUZE, 2009, p. 60) Richard Sennett (2009) en El artesano presenta dos argumentos: en primer lugar, que todas las habilidades, incluso las más abstractas, empiezan como prácticas corporales; en segundo lugar, que la comprensión técnica se desarrolla a través del poder de la imaginación. El primer argumento se centra en el conocimiento que se obtiene en la mano a Luz Elena GALLO. Expresiones de lo sensible: lecturas en clave pedagógica través del tacto y el movimiento. El argumento acerca de la imaginación comienza con la exploración del lenguaje que intenta dirigir y orientar la habilidad corporal. Este lenguaje alcanza su máxima funcionalidad cuando muestra de modo imaginativo cómo hacer algo. Podríamos decir que las prácticas corporales se corresponden con un performance corporal1, potencia de creación, flujo de relaciones que nos exponen a procesos de (trans) formación. El performance es característico de prácticas corporales artísticas como el teatro, la danza y la música. Antonin Artaud, en la primera mitad del siglo XX, realzó las propiedades performativas del teatro y exigía que fuera un performance de rituales que tenían como fin el ataque emocional y sensual de los espectadores y actores. En el campo musical, John Cage redujo la importancia de los directores y compositores a un mínimo, de manera que deja [...] la composición meramente a quienes la ponían en escena, y dejando a los espectadores la tarea de entender la (falta de) unidad entre las piezas. (MACKELDEY, 2010, p. 101) Si aceptamos el reto de superar el dominio de lo técnico en una práctica corporal, podemos decir que son expresiones de lo sensible, más aún, significa estrechar los lazos entre un saber educativo y un saber poético. Mediante una práctica corporal podemos crear novedades en educación, la dimensión poética es un mundo simbólico que nos puede hacer estallar nuevos significados y abrir nuevas maneras de decirle algo a la educación. Sabemos que la educación contemporánea siente un enorme temor a todo lenguaje no cognitivo, los saberes que emergen desde el cuerpo parecieran ir en contra de lo intelectivo y, por ello, son catalogados como menos importantes. La pedagogía ha dejado 1- Performance se refiere a cualquier clase de movimiento corporal. El performance aparece como el acto en el que los performers – actores, bailadores, músicos – realizan, actualizan, representan, presentan, exhiben, ejecutan (Gumbrecht, 2006). Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 197-214, jan./mar. 2014. de lado los lenguajes poéticos: el cuerpo, la literatura, la poesía y, paradójicamente, las formas de expresión artístico-corporales son las que muestran que las cosas pueden ser de otras maneras, le apuestan a la diferencia, a las utopías, rompen las formas periódicas, es posible decirle otra vez a la Educación que las expresiones de lo sensible necesitan ocupar un lugar. Veamos unos ejemplos, hay prácticas corporales en la que se repite un gesto, otras que tienen variaciones de velocidad, también hay gestos bruscos que carecen de gracia porque cada uno de ellos se bastan a sí mismos, hay otros que son suaves y tienen gracia por su fluidez, facilidad. Hay prácticas somáticas que reúnen métodos orientados hacia el aprendizaje de la conciencia del cuerpo desde la experiencia personal, hay movimientos cuya danza revela, repite, repiensa y reinventa formas, incluso se dice que cuando una persona desarrolla una habilidad, lo que repite cambia de contenido. Nos dice Sennett (2009, p. 54) que: […] el desarrollo de la habilidad depende de cómo se organice la repetición. Por eso en la música, como en los deportes, la duración de una sesión de práctica debe juzgarse con cuidado: la cantidad de veces que se repite una pieza depende del tiempo durante el cual se pueda mantener la atención en una fase dada del aprendizaje. A medida que la habilidad mejora, crece la capacidad para aumentar la cantidad de repeticiones. Es lo que en música se conoce como regla de Isaac Stern: este gran violinista declaró que cuanto mejor es la técnica, más tiempo puede uno ensayar sin aburrirse. Hay momentos de hallazgos repentinos que desbloquean una práctica que estaba atascada, pero esos momentos están integrados en la rutina. Paul Valéry, tan admirador de la Argentinita2, que de alguna manera le 2 - Conferencia realizada por Paul Valéry en la Universidad des Annales el 5 de marzo de 1936 con el título de Filosofía de la danza. 203 dedicaría su “Filosofía de la danza3”, nos muestra que el cuerpo en movimiento puede generar una potencia de alteración porque algo puede ocurrir. Estar en movimiento significa estar fuera de las cosas, fuera de los marcos habituales donde las cosas se distribuyen con mayor o menor estabilidad en el espacio. (DIDI-HUBERMAN, 2008, p. 28) ¿En qué sentido decimos que una práctica corporal puede generar experiencia educativa? En que algo (nos) pasa, (nos) conmueve, algo (nos) ocurre en términos de intensidad y resonancia, y se constituye en un acontecimiento en la medida que genera sentido porque le otorgamos valor a las cosas que (nos) pasan o aquello que sentimos cuando bailamos, danzamos, caminamos, nadamos, jugamos. Desde la idea de educación como experiencia podemos decir que es un sentimiento experimentado, pensamiento en conmoción. Una práctica corporal que deja de lado la geometría del cuerpo en movimiento es capaz de invertir o cambiar la dirección del gesto, esquivar contactos, salirse de un esquema motriz, o dicho de otro modo, es capaz de crear una estética nueva, hacer del movimiento una intensidad de la experiencia, una intensidad incluso en la repetición. Las actitudes, gestos y movimientos del cuerpo humano son risibles en la exacta medida en que ese cuerpo nos hace pensar en una simple mecánica. O peor, en una mecánica sujeta a averías o a sobresaltos imprevistos. Lo cual suscita gestos quebrados y no fluidos, dificultades ostensibles, irregularidades rítmicas, movimientos imprevisibles. Suscita la imagen del cuerpo venciendo el alma, incluso la de una persona dándonos la impresión de cosa. (DIDI-HUBERMAN, 2008, p. 95-96) 3- Conferencia publicada en: VALÉRY, Paul. Teoría poética y estética. Madrid: Visor, 1998, p.173-189. 204 Por medio de una práctica corporal podemos saber de la experiencia y, por tanto, del cuerpo. Si el ser humano se produce a sí mismo, esto significa que a partir de las formas de expresión del cuerpo se hacen visibles formas de la experiencia de la persona que lo transportan a otro marco de reflexión y de sensibilidad. Digamos que se acogen las variaciones de velocidad del cuerpo para abrir la percepción de la experiencia corporal. Con ello exponemos una idea pedagógica de la formación destacando que esa persona se hace en el cuerpo. Así, las prácticas corporales como formas de expresión de lo sensible se convierten en espacios de experimentación y aquel gesto aprendido de la danza pone en relación la percepción, el cuerpo y el saber. El bailarín no tiene el oído en las orejas. Sus músculos oyen el sentir del mundo mediante melodías que hacen contraer y distender sus articulaciones mediantes gestos. Todo su cuerpo está atento a desplegarse del melos para articularlo en ritmos que hablan otro lenguaje. (DE SANTIAGO, 2004, p. 517) Nos dice Nietzsche (2009, p. 314) en La otra canción del baile: A mi pie furioso de bailar, lanzaste una mirada, una balanceante mirada que reía, preguntaba, derretía: Sólo dos veces agitase tus castañuelas con pequeñas manos – entonces se balanceó ya mi pie con furia de bailar. Mis talones se irguieron, los dedos de mis pies escuchaban para comprenderte. Lleva, en efecto, quien baila sus oídos ¡en los dedos de los pies! Cuando establecemos relación entre las prácticas corporales y lo sensible, queremos orientarnos hacia una configuración estética de la existencia: ¿por qué baila Zaratustra? En primer lugar, para protegerse del espíritu de la Luz Elena GALLO. Expresiones de lo sensible: lecturas en clave pedagógica pesadez, y, en segundo lugar, porque quiere enseñar cómo se vuelve uno ligero; la danza transforma y metamorfosea al bailarín, haciendo que la pesadez se convierta en ligereza. Wagner, por ejemplo, es un músico que no sabe danzar, sólo sabe nadar; hay lugares donde se danza poco porque las personas están poseídas del espíritu de la pesadez. Ahora la esencia de la naturaleza debe expresarse simbólicamente; es necesario un nuevo mundo de símbolos, de momento todo el simbolismo corporal completo, no sólo el simbolismo de la boca, del rostro, de la palabra, sino el gesto íntegro del baile que mueve rítmicamente todos los miembros. (NIETZSCHE, 1998, p. 70) Para explicarnos la danza, se coloca Paul Valéry frente a la bailarina no como bailarín sino como espectador que observa y recoge impresiones e intuiciones, para, después, expresarlas por medio del lenguaje y dárnoslas a conocer. Pero moldea esta vez el lenguaje no en forma de poema, sino que, acostumbrado al pensar filosófico, escribe un ensayo. Y así disminuye la distancia entre sus pies y su cabeza para hacer cumplir a la danza las características del ensayo mismo ya que para Valéry la danza es la vida misma. Antes de que la Sra. Argentina les atrape, les capture en la esfera de la vida lúcida y apasionada que ve a formar su arte; antes de que muestre y demuestre en lo que puede convertirse un arte de origen popular creación de la sensibilidad de una raza ardiente, cuando se ampara de él la inteligencia, lo penetra y lo convierte en un medio soberano de expresión y de la invención, tendrán que resignarse a escuchar algunas propuestas que, ante ustedes, va a aventurar sobre la Danza un hombre que no danza. Esperarán el momento de la maravilla, y se dirán que no estoy menos impaciente que ustedes por dejarme arrebatar. (VÁLERY, 1998, p. 173) Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 197-214, jan./mar. 2014. Nos dice el autor que la danza no se limita a ser un ejercicio, un entrenamiento, un arte ornamental o un juego de la sociedad; es una cosa seria, aquí el cuerpo experimenta, se traslada a un espacio-tiempo que no es exactamente el mismo que el de la vida práctica. En ocasiones, algunos de los movimientos procuran un placer que alcanza una especie de embriaguez. Cuando leemos algunas prácticas corporales en clave pedagógica queremos hacer ver las potencias que se ejercen sobre el cuerpo como una forma de experimentación. Gracias a que el cuerpo en movimiento nos permite hacer experiencia, los movimientos corporales permiten hacer lecturas simbólicas del cuerpo, así nos acercamos a las expresiones de lo sensible a través de unos ejemplos: bailar, jugar y caminar que, entre otros, se convierten en la posibilidad para hacer resonancia con el despliegue de potencias que tiene el cuerpo. El arte de bailar Aprendí a caminar, luego me permití correr. Aprendí a volar, luego no he tenido necesidad alguna que me impulse a cambiar de lugar. Ahora soy ligera, ahora vuelo, ahora un dios danza en mí. Así hablaba Zaratustra… Nietzsche Nietzsche se sirvió de la manifestación artística de la danza, la música, el canto y la poesía como recursos estéticos para expresar la estética dionisíaca como expresiones de la vida misma. Aunque la danza o el baile requieren cierto dominio técnico, también se realizan de manera libre, con diferentes formas de expresión de la corporalidad; en ella los movimientos y los gestos forman una expresión mucho mayor que la suma de sus partes. Aunque para algunos esta práctica corporal se ve limitada por las posturas y movimientos del cuerpo, otros parecieran que tienen su genio en los pies; sin embargo, lo que nos importa destacar es el sentido formativo de la danza, su valor transformativo. La danza forma parte de la estética dionisíaca y es el cuerpo el que se eleva con 205 la danza a un lugar privilegiado. La danza, en ocasiones, estimula, libera las tensiones de lo real, abre pasiones, recrea la imagen de hombre por medio de la expresión de sus gestos y movimientos; es un lenguaje en el que se unen la melodía, el tono, el ritmo y la armonía, transforma la pesadez en ligereza, se fundamenta en la alegría, brota de ella, […] la bella apariencia de sus gestos, que desvelan lo profundo. Y, en lo profundo, el dios Dionisio se mueve como un dios danzarín, un artista que manifiesta su fuerza y poder creativo, que es el de trasgredir, trascender y transformar. (DE SANTIAGO, 2004, p. 510) Cuando decimos que el cuerpo se eleva a un lugar privilegiado, estamos diciendo que el hombre que danza experimenta algo que Plessner (1960) denomina principio excéntrico o estar fuera de sí4�. La excentricidad hace que el hombre experimente, por un lado, que tiene cuerpo y, por otro, que es cuerpo. Estar fuera de sí no significa dejar el mundo; el hombre dionisíaco es ese hombre en devenir que es capaz de transportarse y elevarse por encima de sí mismo: “ahora soy ligero, ahora vuelo, ahora me veo a mí mismo por debajo de mí” (NIETZSCHE, 2009, p. 75). En el estado dionisíaco primordial, todo ritmo continúa hablando a nuestros músculos, imprimiendo al cuerpo un movimiento que, por su repetición, hace salir el alma de ella misma. Es al ritmo al que debe obedecer el verso de tocar el corazón del hombre. (DE SANTIAGO, 2004, p. 514) penetra en el cuerpo, provocando un estado de exaltación; la danza le devuelve a la música su dimensión corporal, la danza como lenguaje poético otorga una simbología corporal; la danza es una forma de experimentar los modos de decir del cuerpo. Aquel que no danza no siente los ritmos acompasados de su cuerpo. Ahora bien, recordemos que, desde el punto de vista de algunas tradiciones, el alma miraba con desprecio al cuerpo, pero ahora “el cuerpo es la gran razón, es una pluralidad dotada de un único sentido, una guerra y una paz, un rebaño y un pastor” (NIETZSCHE, 2009, p. 64); el cuerpo es plural, pluralidad de expresiones que vemos por medio de la danza, pues el bailarín no permanece pesadamente en un sitio, gira, se desplaza, cambia de direcciones y de ritmos, “baila sobre los pies del azar” (NIETZSCHE, 2009, p. 240). También Nietzsche espera que las palabras se muevan como en una danza, que los conceptos bailen, que haya en ellos movimiento, desplazamiento y que provoquen nuevas figuras. Dionisio es el dios que danza bajo las palabras, por lo que habrá entonces que poner a danzar a las palabras y a las frases. Hablar del pensamiento como danza implica asumir lo provisional, lo inesperado, lo inestable y el riesgo; la danza representa un equilibrio mudable que se crea constantemente en la misma práctica corporal en sus gestos, sus figuras, sus ritmos, ¿podemos llegar al pensamiento bailando? Recordemos a Nietzsche en La Gaya Ciencia: Para los griegos, la danza pone el alma en movimiento y para redescubrir la vida es necesario el cuerpo; es la danza la que se […] no somos de esos que sólo llegan a tener ideas entre libros, por impulso de libros; estamos acostumbrados a pensar al aire libre, andando, saltando, subiendo, bailando, y donde más nos gusta hacerlo es en montañas solitarias o justo al lado del mar, allí donde incluso los caminos se hacen reflexivos. (2002a, p. 387) 4- Para Plessner (1960) esta posición excéntrica o estar “fuera de sí”, le da al ser humano la posibilidad de verse desde fuera y reflexionar sobre sí mismo. Que el ser humano sea excéntrico o sea capaz de estar “fuera de sí” es un fundamento antropológico-pedagógico que implica progresividad, dinamismo, apertura, moralidad. La danza como práctica corporal, leída en clave pedagógica, nos pone la mirada en una escena móvil, con posibilidades cambiantes, 206 Luz Elena GALLO. Expresiones de lo sensible: lecturas en clave pedagógica con multiplicidad de puntos de vista, de perspectivas y de horizontes: ¿acaso el mundo de las perspectivas no es consecuencia de un pensamiento bailarín? Virtuoso el bailarín que abre significados a perspectivas nuevas a partir de su devenir azaroso, aquel que despliega su pensamiento en-movimiento, aquel cuyo modo de pensar es la movilidad, aquel que en su fugacidad puede captar el nacimiento del pensamiento. En términos pedagógicos, Zaratustra también nos enseña con el lenguaje de la danza, nos pone ante una forma de lenguaje corporal donde algo (nos) pasa es en el cuerpo: él es fuente de movimiento, ahora bien, con la danza no se trata de un problema de lugar ni de dirección ni de técnica, sino más bien del acontecimiento. Cuando esa música ha actuado sobre mí ya no respiro con facilidad; enseguida mi pie se enfada con ella se rebela, tiene necesidad de cadencia, una necesidad de danza y de marcha, lo que reclamo de la música es ante todo el éxtasis que procura la buena marcha, el paso, el salto, la danza y yo me pregunto desde entonces: ¿qué es lo que quiere realmente de la música todo mi cuerpo? Creo que su alivio. (NIETZSCHE, 2002a, p. 391) El juego como dimensión estética Aunque la danza y la risa se encuentran en Nietzsche estrechamente relacionadas, no hay risa ni danza sin la dimensión del juego. El juego desestabiliza, quiebra la unidad en multiplicidad, abre distintas perspectivas y favorece una diversidad de miradas e interpretaciones. El juego apela a la dimensión creadora y lúdica de la existencia humana. Una de las raíces fundamentales de la idea de juego la encontramos en la referencia que hace la estructura griega del agon. Aunque el impulso agonal es competencia y rivalidad, […] el motivo del agon adquiere una mayor relevancia cuando Nietzsche lo relaciona con lo puramente ético o con un principio Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 197-214, jan./mar. 2014. estético, ¡qué problema se abre entre nosotros cuando investigamos la relación entre el agonismo y la concepción de la obra de arte!, pues toda fuerza creativa se despliega y se manifiesta luchando. (DE SANTIAGO, 2004, p. 554-555) El juego es siempre una lucha por algo, es contienda, incertidumbre, es una puesta a prueba de destrezas y habilidades, es inclemente; aunque desde Heráclito el juego no tiene un por qué, no tiene finalidad alguna, particularmente en el agon los juegos significan, exigen un por qué “precisamente porque el juego se guía también por el principio de razón suficiente que hay en cada movimiento” (HOLZAPFEL, 2003, p. 74). Incluso esto hace que autores como Thierry Lenain, Eugen Fink, Frederick Johannes Buytendijk, Johan Huizinga y Roger Caillois desarrollen la idea de razón lúdica, en la que, paradójicamente, el juego es algo que no se deja guiar por una finalidad o por una meta, y a la vez, es el escenario mismo del crear; dicho de otro modo, la finalidad que tiene el juego descansa únicamente en él mismo. Por ejemplo, el niño convierte el juego en el modelo esencial de la actividad creadora y en el acontecer del juego representa su verdadera esencia. Al margen del por qué, el niño crea sus propios personajes, que constituyen su mundo; pareciera que el niño tiene un poder ilimitado de fantasía para crear. Lo importante es el juego en su acontecer mismo, lo significante es ese algo que está en juego, esas fuerzas de lucha, contienda, el impulso agonal, esa fuerza creativa que se despliega y se manifiesta. Jugar, nos dice Skliar (2011, p. 217), […] siempre habrá que pronunciarla en infinitivo. Búsqueda de lo que vendrá. Sentido que ya se encontrará. Utilidad nula o desierta o ignorada o no pretendida. Tiempo en el cual los objetos no son los objetos, las palabras no son las palabras, la voz no es la voz y el tiempo no es el tiempo. Parecida a la libertad de espíritu y de pensamiento. 207 En esta misma idea nos dice Brougère (1998) que el juego es la expresión libre de una subjetividad y es productor de múltiples interacciones. Nos importa el juego como práctica corporal no solamente por su actitud desinteresada, también porque jugar significa inventar, transformar, transformarse, crear y crearse. Dioniso es un Deus ludens, es el dios que juega con sus máscaras, allí donde el rostro deviene, donde el yo se disloca, se metamorfosea. El juego es un estado de riesgo. El juego es para el hombre un acontecer y, a la vez, es una forma de expresión simbólica del acontecer de la vida; quizás, lo que importa del juego no es su carácter de distracción sino que en el jugar se da una especie de seriedad. Más allá de que el niño construya castillos de arena y luego los destruya, lo que importa del juego es su dimensión creadora, esa expresión creativa de la vida. Una vez más Zaratrustra, de la misma manera que había increpado a los hombres superiores porque no sabían danzar y no sabían reír, vuelve a su pedagógica cantinela: los hombres superiores también saben jugar. Para poder superarse a sí mismo y poder crear por encima de sí mismo, hay que aprender a jugar, a saber jugar. (DE SANTIAGO, 2004, p. 573) Podemos revestir al juego de una dimensión estética al establecer un paralelismo entre el juego de niño y el artista, de la misma manera que juega el niño, juega el artista creador, tanto en el niño como en el artista hay un deseo de crear. El niño se cansa de jugar, tira el juguete, lo recoge y vuelve a jugar, ese impulso del niño y el deseo son propios del artista. Es un pensamiento creativo y por ende sensitivo. Una forma de experimentar un pensamiento-artista es generar nuevas maneras estéticas y éticas de vivir, inventar posibilidades de vida, modos de existencia. Recordemos que el juego tiene dos cualidades: la inocencia y la 208 seriedad. Inocencia es apertura, olvido, nuevo comienzo, suspende el porqué, afirma el azar; detrás del juego y de su aparente arbitrariedad e indiferencia existe, por lo tanto, la seriedad, esta seriedad lúdica hace que el niño, por momentos, se convierta en hombre o en padre, crea un orden propio, el juego es un acontecer. Por eso, la seriedad del juego consiste en que los que participan se entregan a él, es el juego el que se juega o se desarrolla. Así el juego nos impulsa a crear. Y así Zaratrustra, irá asociando al niño con la capacidad de crear y con la inocencia infantil. ¿Dónde hay inocencia? Allí donde hay voluntad de engendrar algo. El eterno niño. Creemos que los cuentos y los juegos son cosas de la infancia: ¡qué miopes somos! ¡Como si nosotros pudiésemos vivir en cualquier edad de la vida sin cuentos ni juegos! Es cierto que damos otros nombres a todo esto y que lo consideramos de otro modo, pero es precisamente la prueba de que es la misma cosa, pues también el niño siente el juego como su trabajo y el cuento como su verdad. (NIETZSCHE, 2002b, p. 129) Elogio del caminar ¿De dónde vienen las delicias tan intensas que procuran la marcha y la carrera? Caminar, en el sentido de dar pasos, de estar en marcha, evoca una imagen que hace posible pensar el caminar como una práctica de lo sensible donde se exploran nuevas maneras de ver y se abren horizontes. Recurrir al bosque, a las rutas o a los senderos, no nos exime de nuestra responsabilidad, cada vez mayor, con los desórdenes del mundo, pero nos permite recobrar el aliento, aguzar los sentidos, renovar la curiosidad. El caminar es a menudo un rodeo para reencontrarse con uno mismo. (LE BRETON, 2011, p. 15) Luz Elena GALLO. Expresiones de lo sensible: lecturas en clave pedagógica La práctica corporal del caminar está relacionada con mirar, con abrir los ojos, con estar atentos, con generar una nueva mirada, lo cual no es sinónimo de adquirir una perspectiva o una visión determinadas, sino que equivale a desplazar nuestra mirada; “abrir los ojos es mirar lo que es evidente cuando estamos atentos o expuestos” (MASSCHELEIN, 2006, p. 299). En perspectiva pedagógica, es algo así como dislocar la propia mirada para ver de un modo diferente; vemos lo visible: terrenos, curvas, lejanías, y no nos quedamos sólo en ese transcurrir pasivo; caminar puede permitirnos una experiencia para abrirnos paso en el camino. Masschelein (2006, p. 297) nos dice que […] caminar no es que nos ofrezca una perspectiva mejor ni una comprensión más cierta y completa, ni nos permite superar los límites de nuestra perspectiva, caminar nos permite una mirada más allá de cualquier perspectiva, una visión o una mirada que nos transforma, como es experiencia, también nos conduce. La mirada que tenemos cuando caminamos por un sendero será siempre diferente porque corresponde a otro punto de vista, a otra perspectiva; ejemplo de ello es que vemos distinto un sendero o una calle caminando que si lo recorremos en automóvil o en avión: no solo cambian las perspectivas de arriba-abajo, sino que vemos de un modo distinto; son diferentes modos de vincularnos al mundo, con lo presente y con lo que está presente. Nos indica Benjamín: aquel que vuela, solo ve, pero el que camina conoce el poder que conduce, es decir, experimenta cómo ese algo se presenta a sí mismo, se vuelve evidente y dirige nuestra alma, nos atraviesa. El camino no puede tocar a quien lo sobrevuela, mejor dicho, no puede atravesarlo ni determinar su ruta. ¿Quién no se ha sorprendido alguna vez al salir del metro al aire libre y verse caminando, arriba, a plena luz del sol? Y, Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 197-214, jan./mar. 2014. sin embargo, el sol brillaba con la misma claridad unos minutos antes, cuando él bajó. Así de rápido ha olvidado qué tiempo hacía en el mundo de arriba. Y éste, a su vez, lo olvidará con igual rapidez. Pues, ¿quién puede decir de su existencia algo más que esto: que ha pasado por la vida de dos o tres personas con la misma dulzura y proximidad con que va cambiando el tiempo? (BENJAMÍN, 1987, p. 92) Caminar es exponerse, estar fuera de lugar. Esta práctica corporal nos puede volver atentos, dislocar la mirada, ofrecer una mirada nueva frente a aquello que estábamos habituados a ver porque no nos conduce a un lugar determinado de antemano sino que nos lleva sin destino u orientación alguna, desplazando entonces la mirada que teníamos; es, entonces, una actitud para con el presente. Caminar es también aumentar la distancia crítica, lo que no significa lograr una metapunto de vista, sino más bien una distancia que permite que la propia alma se disuelva desde dentro. (MASSCHELEIN, 2006, p. 300) El espacio, originariamente, se presenta como campo o medio donde el ser humano ejerce su actividad. El espacio se ofrece a la persona como un quehacer. Nuestra relación con él no es un mero estar o encontrarse, sino un habitar, lo cual significa estar en un espacio teniéndolo, apropiándose de las posibilidades que descubrimos en él para configurarnos. En síntesis, estoy en el mundo; mi instalación en él va cambiando, mi estar en el mundo tiene estructura biográfica, y es mi cuerpo el que hace posible que experimentemos. Así un viaje, por ejemplo, deja impresas en mí marcas, huellas, señales, impresiones, imágenes. Todo aquello que me ha afectado queda inscrito en mi cuerpo. Podríamos decir que caminar es una expresión de la corporalidad que nos ayuda a pensar de otra manera la perspectiva pedagógica de la motricidad, en tanto no se inscribe en 209 ningún horizonte, no ofrece tradiciones ni representaciones, no busca de antemano algo ni conduce hacia alguna perspectiva; brinda, simplemente, trayectos, insinúa líneas que atrapan, movilizan y hacen desviar la mirada; la línea no pretende mostrar ninguna escena ni representación, ayuda a pensar el movimiento corporal como apertura y posibilidad de una transformación. Para Masschelein (2006, p.308) “caminar a lo largo de esa línea es caminar sin programa, sin objetivo, pero sí con una carga, con un encargo: ¿qué hay ahí para ver, para oír, para pensar?” Esta perspectiva pedagógica, esta práctica corporal opta por la posición de vulnerabilidad, incomodidad, inseguridad y riesgo. Como el sujeto de esa caminata es el sujeto de la experiencia, […] importa poco no saber orientarse en una ciudad. Perderse, en cambio, en una ciudad como quien se pierde en el bosque, requiere aprendizaje. Los rótulos de las calles deben entonces hablar al que a errando como el crujir de las ramas secas, y las callejuelas de los barrios céntricos reflejarle las horas del día tan claramente como las hondonadas del monte. Este arte lo aprendí tarde. (BENJAMÍN, 1990, p. 15) Le Breton (2011), nos recuerda que algunos autores confiesan sus deudas con ciertas caminatas. Por ejemplo, Rousseau dice que el andar tiene algo que anima y aviva sus ideas, es preciso que su cuerpo esté en movimiento para que se mueva su espíritu. Kierkegaard en 1847 le escribe a Jette y le dice que ha tenido sus pensamientos más fecundos mientras caminaba, y que jamás se he encontrado con un pensamiento tan pesado que el caminar no pudiera ahuyentar. Podemos decir que al caminar aprendemos del sentido de la experiencia de un cuerpo que se produce como experiencia de sentido a través de lo sensible, de un saber que se ejercita en el cuerpo, del sentido perceptivo del cuerpo. De hecho, 210 la percepción tiene que ver con el aprendizaje y está en relación con el conocimiento y en el nivel de la sensibilidad; este modo de ser sensible que acontece en una práctica corporal nos pone en un lugar, en la valoración de lo sensible. La percepción, atendiendo a lo que hemos dicho respecto a las prácticas corporales, nos puede provocar una experiencia perceptiva; de hecho, sentidos y percepción, constituyen experiencia de potencias e imponencias del cuerpo que acercan el sentir y el pensar. No olvidemos que la percepción es también equívoca, falible, frágil y cambiante. En el sentido más abierto de la expresión caminar nos vemos en la necesidad de pensar en el viaje a la formación. Algo así como un pasaje que se expresa en una búsqueda, en un trayecto, en un lugar, en un paisaje desconocido. Y es que aprender es como viajar, es una salida cuyo resultado es imprevisible. La salida de nuestro mundo personal hacia un nuevo espacio nos despierta a nuevas vivencias de tiempo y espacio, bien decía Rilke que el espacio más propio del hombre no es el civil ni el urbano, sino el del peregrino, un espacio por el que la persona transita atravesando sucesivas heterogeneidades. Recordemos el mito de Ulises, el prototipo del viajero que vuelve a casa porque tiene una importancia radical. Ya no se ve en primer plano el regreso a Itaca, o por lo menos se matiza. Como dice Cavafis (1999), cuando se sale para Itaca, se ha de rogar que el camino sea largo, lleno de aventuras y de conocimiento, y si al llegar encuentras Itaca vacía, no pienses que todo ha sido un engaño, Itaca te ha dado experiencia: rico en saber y vida, como has vuelto. Clarice Lispector (2005, p. 497) también nos recrea esta idea en el cuento La Fuga: Empezó a quedar oscuro y ella tuvo miedo, la lluvia caía sin tregua y las aceras brillaban húmedas a la luz de las lámparas (…) estaba cansada. Pensaba siempre: ¿pero qué va a suceder ahora si permaneciera caminando? No era la solución ¿volver a casa? No. Temía que alguna fuerza la empujara hacia Luz Elena GALLO. Expresiones de lo sensible: lecturas en clave pedagógica el punto de partida. Atontada como estaba, cerró los ojos e imaginó un gran torbellino (...) esperó un momento en el que nadie pasaba para decir con todas las fuerzas: tú no regresarás. Se apaciguó. Ahora que había decidido irse todo renacía (...) ahora la lluvia ha parado. Sólo hace frío pero está muy agradable. No volveré a casa. Ah, sí, eso es infinitamente consolador ¿él quedará sorprendido? Sí, doce años pesan como kilos de plomo. Los días se derriten, se funden y forman un solo bloque, una gran ancla. Y la persona está perdida. Su mirada adquiere una forma de pozo hondo (...) sus gestos se tornan blancos y ella tan sólo tiene un miedo en la vida: que algo venga a transformarla. Encontramos en Nietzsche (2002a, p.60) en el aforismo 52 de la Gaya ciencia algo que dice del caminar: “No escribo sólo con la mano: el pie siempre quiere escribir también. Firme, libre y valiente corre ya por el campo, ya por el papel”. En el texto Así habló Zaratustra nos dice Nietzsche (2009, p. 223): Yo soy un caminante y un escalador de montañas, decía a su corazón, no me gustan las llanuras, y parece que no puedo estarme sentado tranquilo largo tiempo. Y sea cual sea mi destino, sean cuales sean las vivencias que aún haya yo de experimentar, siempre habrá en ello un caminar y un escalar montañas: en última instancia uno no tiene vivencias más que de sí mismo. También podemos ver en las Aventuras de Alicia en el país de las maravillas de Lewis Carroll (2010), una suerte de desplazamientos que Deleuze plantea como una lógica del sentido, donde los acontecimientos toman un papel protagónico. Alicia crece (se hace mayor de lo que era) y disminuye de tamaño, de allí el trastocamiento del crecer y el empequeñecer. Sabemos que en la aventura Alicia experimenta sentimientos de tristeza, cólera, curiosidad, sorpresa, soledad, Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 197-214, jan./mar. 2014. indignación, asombro, perplejidad y son precisamente estas singularidades a lo que se refiere el acontecimiento. ¿Quién eres tú? – dijo la Oruga. Alicia contestó con cierto recelo: Yo… yo casi no lo sé, señor, en este momento…por lo menos sé quién era cuando me levanté esta mañana, pero me parece que debo haber cambiado varias veces desde entonces. ¿Qué quieres decir con eso? – Digo severamente la Oruga – ¡Explícate! Temo señor que no puedo explicarme porque yo no soy la misma, como usted ve. No veo – digo la Oruga. Temo que no puedo explicarlo más claramente – replicó muy cortésmente Alicia – porque, para empezar, yo misma no lo entiendo y ser de tantos tamaños en un solo día es muy desconcertante. (CARROLL, 2010, p. 55) En Alicia vemos un conocimiento sensitivo y, por lo tanto, absolutamente corporal (ARCOS-PALMA, 2011) el cual genera una nueva manera de conocerse y de habitar poéticamente el mundo. Las sensaciones de Alicia son esas fuerzas que actúan en su cuerpo, así un acontecimiento se efectúa en el cuerpo, hace experiencia en nosotros al punto que cuando las cosas (nos) pasan ya no nos referimos del mismo modo a nosotros mismos, con Alicia aprendemos la posibilidad de anudar lo sensible a lo pensable. Alicia, aumenta y disminuye de tamaño, y esto pareciera no tener sentido, pero es precisamente ahí donde surge el sentido, pues el pensamiento está instalado en la profundidad de lo sensible, en el cuerpo. Consideración final: las prácticas corporales como despliegue de potencias Las prácticas corporales permiten hacer una experiencia de potenciación. En el movimiento corporal hay un lenguaje que 211 simboliza, expresa y significa; las prácticas corporales nos enseñan a pensar con el cuerpo. Así, danzar, jugar y caminar nos ofrecen una manera de pensar el cuerpo de la experiencia. Nos recuerda Serres (2011, p. 137) que Marcel Proust se entregaba al éxtasis de la memoria de las calles de topografía desigual como el montañista aprende con el ejercicio, en una larga preparación, la fiesta del ascenso. De distinto modo, Proust o el montañista son hombres de coraje porque han alcanzado la flexibilidad; los cobardes huyen de la experiencia y de la expresión. Las prácticas corporales ponen el cuerpo en un juego de potencia, hacen real la experiencia, exploran las potencias del cuerpo. Cuando Spinoza dice en un escolio que lo asombroso es el cuerpo, que aún no sabemos lo que puede un cuerpo, nos indica Deleuze que quiere eliminar la pseudo-superioridad del alma sobre el cuerpo, el alma y el cuerpo expresan una misma y única cosa porque un atributo del cuerpo es también un sentido del alma (DELEUZE, 2008). Lo que puede un cuerpo en tanto poder de afectar y ser afectado nos estimula a pensar en términos del devenir, como aquello que nunca está fijo, sino siempre en movimiento como puro acontecer que está abierto a algo nuevo. En todo acontecimiento algo nos pasa e incluso constituye una experiencia cuando llegamos a darnos cuenta o sentimos que algo nos (trans)forma. “Un acontecimiento hace experiencia en nosotros cuando algo nos pasa y 212 no nos deja igual que antes” (BÁRCENA,2004, p.86). Sin embargo, el acontecimiento tiene un carácter de imprevisible, no se puede prever, no se puede planear y no es prometeico, más bien, aprendemos después de que (nos) pasan las cosas, cuando algo nos impacta, conmueve, cuando somos afectados, cuando algo nos concierne, cuando algo nos da a pensar, cuando tenemos una determinada experiencia. Las expresiones de lo sensible leídas en clave pedagógica nos ponen ante la necesidad de estrechar los lazos entre el saber educativo y el saber poético. Nos ha dicho Octavio Paz (1994, p. 81) que “(…) lo poético es la otra voz. Su voz es otra porque es la voz de las pasiones y las visiones”. Expresiones de lo sensible como el arte, la música, la literatura, el cine, la poesía, la danza, el caminar y el juego, en tanto expresan grados de intensidad, resultan centrales para seguir pensando esas condiciones de sensibilidad como ámbito de estudio de la educación corporal. A su vez, es una forma de pensar la educación desde el cuerpo porque no se trata de hacer de lo sensible un apéndice de la educación sino de pensar y sortear la experiencia de lo sensible desde el cuerpo. Sabemos que el cuerpo en la educación es todavía un territorio por descubrir, por mucho que se oculte su lugar en el campo pedagógico, aún hay mucho por revelar. El cuerpo es también un lenguaje poético que proponemos sea raíz de significación e inteligibilidad para la educación, así las expresiones aquí expuestas se convierten, quizás, en una superficie para pensar lo sensible en clave pedagógica. Luz Elena GALLO. Expresiones de lo sensible: lecturas en clave pedagógica Referencias ARCOS-PALMA. Ricardo. Foucault Deleuze: pensar lo sensible. Trabajo presentado en el I Congreso Colombiano de Filosofía. Universidad Nacional de Colombia, Bogotá, 2011. BÁRCENA, Fernando. El delirio de las palabras. Barcelona: Herder, 2004. ______. Fernando. Educación y experiencia en el aprendizaje de lo nuevo. Revista Española de Pedagogía, Madrid, 60, n. 223, p. 501-520, 2002. ______. El delirio de las palabras. Barcelona: Herder, 2004. BÁRCENA, Fernando; MÈLICH, Joan-Carles. La educación como acontecimiento ético: natalidad, narración y hospitalidad. Barcelona: Paidós, 2000. BÁRCENA, Fernando; LARROSA, Jorge; MÈLICH, Joan-Carles. 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Expresiones de lo sensible: lecturas en clave pedagógica Educação sobre drogas: uma proposta orientada pela redução de danos Mariana AdadeI Simone MonteiroI Resumo Diante do fracasso das políticas centradas na condenação do uso de drogas, este trabalho visa contribuir para o desenvolvimento de uma proposta educativa informada pela contextualização dos aspectos socioculturais, econômicos e políticos desse fenômeno e pelo conceito de redução de danos (RD). Para tanto, por meio de entrevistas, investiga as visões sobre drogas e temas afins de 40 escolares dos ensinos fundamental e médio, das redes pública e privada do Estado do Rio de Janeiro. Ademais, revisa o conteúdo de um jogo educativo sobre o uso indevido de drogas denominado Jogo da Onda, com base na análise documental do material. As entrevistas revelaram que a maioria dos estudantes tem uma concepção negativa das drogas ilícitas, minimiza os riscos do consumo das drogas lícitas e não considera as singularidades dos elementos envolvidos no consumo (sujeito, tipo de droga e contexto de uso). Tais achados, somados à revisão bibliográfica, orientaram a atualização do conteúdo do Jogo da Onda e a proposição de novas temáticas a serem incorporadas na nova edição do material. Em face das lacunas na formação dos educadores em relação ao tema das drogas, da escassez de recursos educativos participativos e do interesse dos estudantes em dialogar sobre o assunto, este estudo pretende fornecer subsídios para o desenvolvimento de ações educativas sobre drogas entre jovens, pais e educadores. Palavras-chave Educação — Drogas e juventude — Redução de danos — Jogos educativos. I- Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Contatos: [email protected]; [email protected] Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 215-230, jan./mar. 2014. 215 Education about drugs: a proposal oriented by damage reduction Mariana AdadeI Simone MonteiroI Abstract In view of the failure of policies centered on the condemnation of drug abuse, this work aims at contributing to the development of an educative proposal informed by the contextualization of socio-cultural, economic and political aspects of this phenomenon, and by the concept of damage reduction (DR). For that, making use of interviews, the work investigates the views about drugs and related issues expressed by 40 students from both public and private primary and secondary education schools in the State of Rio de Janeiro. Furthermore, it reviews the contents of an educative game about the inadequate use of drugs called Jogo da Onda (Wave Game) based on the documental analysis of the material. The interviews revealed that most students have a negative view of illegal drugs, minimize the risks of consuming them, and do not consider the singularities of the elements involved in the consumption (subject, type of drug, and context of use). These findings, added to the bibliographic review, guided the update of the content of the Jogo da Onda, and the proposition of new themes to be incorporated in a new edition of the material. In view of the gaps in the formation of educators regarding the theme of drugs, the lack of participative educative resources, and the interest of students in talking about this subject, this study attempts to give elements for the development of educative actions about drugs among youngsters, parents and educators. Keywords Education — Drugs and youth — Damage reduction — Educative games. I- Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ, Brazil. Contacts: [email protected]; [email protected] 216 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 215-230, jan./mar. 2014. As limitações e o insucesso das abordagens proibicionistas voltadas para o controle e a prevenção do uso indevido de drogas têm sido atestados por diversos estudos e pelo crescimento regular do uso de drogas entre jovens nas ultimas décadas, particularmente do álcool (BASTOS et al., 2008; GALDURÓZ et al., 2010). Tais evidências têm motivado a revisão de políticas públicas descontínuas e descontextualizadas, historicamente orientadas por perspectivas teórico-metodológicas de caráter repressivo e informativo, visando unicamente ao não consumo de drogas. Nesse enfoque, a droga é definida como um mal que precisa ser exterminado e as pessoas são consideradas indefesas e passivas diante das substâncias ilícitas, necessitando de proteção e orientação de autoridades médicas e jurídicas (BUCHER, 2007; CANOLETTI; SOARES, 2005). Em contraposição a essa visão, há novas formas de compreender e intervir no controle e na prevenção do uso indevido de drogas, como a abordagem de redução de danos (RD) (SOARES; JACOBI, 2000; CARLINI-COTRIM, 1992). Segundo a definição da OMS, a RD é uma estratégia de auxílio ao usuário na redução do consumo de drogas que pode contribuir para uma possível interrupção do seu uso (WHO, s.d.). Com base em revisão da literatura, Santos, Soares e Campos (2010, 2012) constataram que existem variações conceituais sobre a RD, decorrentes da apropriação da abordagem por diferentes campos disciplinares e contextos, sendo recomendada a definição do embasamento teórico e metodológico do termo nos trabalhos que partem dessa perspectiva. Na presente pesquisa, adota-se uma visão ampliada, global e crítica sobre a realidade social na compreensão do fenômeno das drogas. Assim, a concepção de RD utilizada centra-se em um conjunto de saberes e práticas acerca do uso de drogas fundamentados no conhecimento amplo da realidade histórica e sociocultural. Dentre eles, destaca-se a evidência de que a produção, o comércio e o consumo de drogas são práticas que sempre estiveram presentes na história da humanidade, ganhando significados e funções de acordo com o momento Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 215-230, jan./mar. 2014. social, político e econômico de cada sociedade. Considerando a inevitabilidade do uso de drogas, as ações de RD objetivam minimizar os prejuízos individuais e sociais associados a essa prática a partir do respeito às diversas singularidades e do resgate do direito individual de escolha e de acesso aos serviços de saúde (SANTOS; SOARES; CAMPOS, 2010). No campo da educação sobre drogas, Acserald (2005) faz uma aproximação da abordagem da RD com a perspectiva de educação para autonomia definida por Freire (2008), que afirma que o processo de aprendizagem deve ser permeado por um conhecimento crítico da realidade. Ou seja, aprender transcende o armazenamento de saberes, sendo resultado de uma constante reflexão sobre a realidade global. De acordo com essa perspectiva, o educador e o educando são sujeitos ativos do processo de construção de conhecimento, aprendendo mutuamente por meio de sucessivas aproximações e reflexões sobre determinado assunto. A aprendizagem é facilitada pelo educador por meio de técnicas reflexivas e participativas que visam ao estímulo do raciocínio crítico diante de temas específicos contemplados com base na inserção na realidade social. O processo de aprendizagem global, crítico e emancipatório torna-se possível a partir do reconhecimento do educando como um ser histórico, distante de uma perspectiva determinista e naturalizada não só do seu papel enquanto sujeito social, mas de todos os elementos que compõem seu cenário de vida. Educar é aprender a ser cidadão tanto de direitos quanto de deveres, é estar habilitado para transformar sua realidade levando em consideração não só os interesses individuais, mas também os interesses coletivos (FREIRE, 2008). Com base na revisão da literatura internacional na área de educação sobre drogas, Paglia e Room (1998) constataram a carência de estudos sobre práticas de RD. Todavia, as experiências existentes foram avaliadas positivamente. Os autores salientaram que os 217 benefícios das estratégias educativas não podem ser relacionados apenas à diminuição ou não do consumo de drogas. A proposta da RD centra-se em um trabalho processual de conscientização e emancipação do sujeito enquanto cidadão; daí a importância de ações contínuas e do envolvimento dos jovens no processo de criação e implementação das atividades educativas (FEFFERMANN; FIGUEIREDO, 2006; SOARES; JACOBI, 2000). As evidências do fracasso das políticas de guerra às drogas, somadas às novas perspectivas sobre o tema, como a RD, têm potencializado a mobilização e a articulação de profissionais de diversas áreas do conhecimento e promovido a ampliação da discussão sobre as diretrizes legais e as ações de controle do uso indevido de drogas entre diferentes esferas da sociedade (ACSERALD, 2005; BUCHER; OLIVEIRA, 1994; SOARES, 1997). Para ilustrar, cabe citar a criação da Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia (CBDD), formada por atores de diferentes setores da sociedade que se propõem a pensar a política de drogas e intermediar a comunicação entre especialistas, o governo e a opinião pública. Outros exemplos são: o projeto Lei de drogas: é preciso mudar!, capitaneado por uma organização não governamental que visa transformar a atual legislação, e as manifestações populares que reivindicam o direito de cultivo e consumo da maconha, realizadas em vários estados do Brasil. O tabaco, por sua vez, tem sido alvo de campanhas da mídia que evidenciam os malefícios do consumo continuado e abusivo e de intervenções legislativas referentes à restrição à divulgação de propagandas nos veículos de comunicação e à proibição do consumo em espaços de sociabilidade (NOTO et al., 2003). Na educação escolar está prevista a inclusão da temática das drogas nos currículos da educação infantil e dos ensinos fundamental e médio, uma vez que ela faz parte do cotidiano juvenil. Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), tal tema deve ser abordado transversalmente aos conteúdos programáticos 218 tradicionais, a partir de estratégias definidas pelas escolas (ARAÚJO, 2001; FEFFERMANN; FIGUEIREDO, 2006). No âmbito da legislação brasileira, embora a Lei nº 9.394/96 não apresente um item sobre drogas, a Lei nº 11.343/2006 regulamenta a formação continuada de professores na área de prevenção ao uso indevido de drogas e recomenda a implantação de projetos pedagógicos no ensino público e privado (BIZZOTTO; RODRIGUES, 2007). Assim, reafirma-se legalmente a responsabilidade da escola e do professor na formação social e intelectual dos sujeitos, incluindo uma formação educacional a respeito das drogas. Embora o contexto formal de ensino seja reconhecido como um local privilegiado para as ações educativas sobre drogas, os estudos sinalizam um descompasso entre as diretrizes acadêmicas e o despreparo (teórico e afetivo) do educador para assumir essa tarefa, o que se expressa nas omissões e/ou negações para abordar o assunto. Ou seja, os educadores recebem a demanda para incluir o tema nas atividades curriculares, mas não são fornecidos subsídios para tal implementação. A literatura constata que a resistência dos educadores em desenvolver tal conteúdo no contexto escolar está vinculada à falta de formação apropriada e às ideias preconcebidas acerca das relações entre droga, violência e criminalidade (CARLINIMARLATT, 2001; MARTINI; FUREGATO, 2008; MOREIRA; SILVEIRA; ANDREOLI, 2006; SOARES; JACOBI, 2000). No que se refere às iniciativas na área de ensino de ciências associadas à temática, as publicações encontradas foram predominantemente resumos estendidos e relatos de experiências em sala de aula apresentados em eventos da área. Parte dos trabalhos privilegiou a discussão sobre a formação do professor, sugerindo que esta seja orientada para a integração curricular em prol da superação das disciplinas ministradas de forma compartimentada (BOFF et al., 2009). Nesse sentido, Cavalcante et al. (2005) investigaram as representações sociais sobre drogas de um grupo de professores da rede pública de um município na Bahia. Entre Mariana ADADE; Simone MONTEIRO. Educação sobre drogas: uma proposta orientada pela redução de danos. os entrevistados prevaleceram representações negativas acerca das substâncias e dos usuários. Os autores reforçam a importância da formação inicial e continuada sobre o tema, tendo por base o manejo das representações dos educadores e uma visão ampliada do fenômeno das drogas. Vale ressaltar que tem havido iniciativas nas áreas da saúde, da educação e da justiça visando à capacitação de professores para o manejo do tema, como o Curso de Prevenção do Uso de Drogas para Educadores de Escolas Públicas, organizado pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), em parceria com a Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação (MEC). O curso faz parte do Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas desde 2004 e a próxima edição será ministrada em oito meses, a partir de agosto de 2012.1 Em suma, existem desafios na prevenção do uso indevido de drogas que implicam o envolvimento de vários setores e atores sociais dos campos da saúde, da educação e da justiça. Integra esse esforço o desenvolvimento de abordagens educativas capazes de contemplar aspectos caros da interação, como o contexto sociocultural e econômico e a dimensão simbólica das populações que são alvo das ações (ACSERALD, 2005; SOARES, 1997). Com o propósito de contribuir para o incremento de práticas educativas sobre drogas afinadas com a RD, o presente trabalho objetiva investigar as visões de escolares das redes pública e privada do Estado do Rio de Janeiro sobre esse fenômeno, bem como revisar o conteúdo de um jogo educativo sobre o uso indevido de drogas, denominado Jogo da Onda (REBELLO; MONTEIRO, 1998), com base na análise documental do material. Desenvolvido por pesquisadoras do Laboratório de Educação em Ambiente e Saúde (LEAS) do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), esse jogo foi adotado por programas de educação em saúde da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro e da Secretaria 1- Informações disponíveis em: <www.brasil.gov.br/enfrentandoocrack/ plano-integrado>. Acesso em: 31 mar. 2013. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 215-230, jan./mar. 2014. Municipal de Educação de São Paulo, dentre outras ações nos âmbitos público, privado e da sociedade civil (MONTEIRO; REBELLO, 2005). Desde 2008 o jogo está esgotado e existe uma demanda contínua pelo material, atestada por contatos dirigidos ao LEAS/IOC por parte de instituições e profissionais da área da educação e da saúde, das redes pública e privada de diferentes regiões do Brasil (ver quadro 1). A opção pela atualização do conteúdo do Jogo da Onda resultou da revisão de estudos sobre educação e drogas no contexto nacional. A partir dos artigos sobre o desenvolvimento e a avaliação do jogo, foi possível conhecer o referencial teórico utilizado pelas autoras — o qual é relacionado à RD e à educação para autonomia, em contraposição às abordagens informativas e/ou prescritivas sobre drogas — e as funções do material, quais sejam: estimular a troca de saberes, o diálogo, o compartilhamento de experiências e a reflexão sobre os temas abordados, contribuindo para um processo de aprendizagem prazeroso e interativo. O desenho do estudo resulta de uma dissertação de mestrado (ADADE, 2012) e fundamenta-se no pressuposto de que as práticas educativas sobre drogas precisam ser embasadas pelo conhecimento da realidade dos sujeitos e orientadas por abordagens pedagógicas participativas e dialógicas. Conhecer a realidade é uma tarefa ampla e complexa, pois significa investigar as condições materiais de existência (perfil socioeconômico) e os aspectos culturais e simbólicos que permeiam e constituem os sujeitos da ação educativa e suas experiências e visões acerca do tema tratado (CANOLETTI; SOARES, 2005; CARLINI-COTRIM, 1992; FEFFERMANN; FIGUEIREDO, 2006; SOARES, 1997, 2007; SOARES; JACOBI, 2000). As abordagens educativas dialógicas e participativas compreendem o processo de aprendizagem como um diálogo de saberes entre educador e educando, e a realidade como um todo complexo e multideterminado em que os acontecimentos não são naturalizados. Esse enfoque busca facilitar o reconhecimento da 219 intencionalidade das ações sociais e de diferenças socioculturais a partir da problematização do tema abordado de modo a propiciar um olhar crítico acerca da realidade (ACSERALD, 2005; MONTEIRO; REBELLO, 2005). Percurso metodológico As representações sociais são aqui concebidas como imagens, concepções e ideias sobre a realidade compartilhada por determinado grupo, demonstrando a visão consensual nele presente. As representações e práticas sociais se manifestam por meio de sentimentos, discursos, pensamentos e ações expressas, especialmente, pela linguagem (JODELET, 2001). Para investigar as representações e práticas sociais dos estudantes sobre drogas e temas afins, foram utilizadas estratégias metodológicas de caráter qualitativo, como entrevistas individuais e observações de campo. A abordagem qualitativa se caracteriza pela compreensão da realidade como uma construção social e dialética, uma vez que todo e qualquer fato concreto está intrinsecamente relacionado a uma forma simbólica, constituída no e constituinte do campo social. Para conhecer e compreender o caráter subjetivo e interpretativo de aspectos da vida social, faz-se necessário contemplar as interações sociais (que são atravessadas por esses sentidos e significados), integrando-as com a análise dos contextos social, cultural e material que servem de contorno para os sujeitos da pesquisa (BECKER, 1994; MINAYO, 2006, 2010). Caracterização do universo do estudo Os dados sobre o consumo de drogas entre estudantes do Estado do Rio de Janeiro são encontrados no trabalho de Galduróz et al. (2004). No entanto, não há um detalhamento dos achados no que se refere a regiões e bairros específicos. Tendo em vista essa lacuna e o caráter qualitativo deste estudo, a seleção das unidades de ensino foi orientada por contatos junto às Secretarias Estadual e Municipal de Educação 220 do Rio de Janeiro, pela disponibilidade da direção da escola e dos alunos em participar do projeto e pela localização geográfica da escola. A pesquisa foi realizada na unidade de ensino indicada pela Secretaria Estadual de Educação, que justificou a indicação esclarecendo que tal instituição enfrentava muitos problemas com drogas em razão de sua localização. No caso da escola indicada pela Secretaria Municipal, a despeito do atendimento de todos os requisitos solicitados, a direção da unidade não autorizou a realização da pesquisa. A solução se deu por meio de um contato pessoal com a diretora de outra escola municipal. Quanto à seleção da unidade privada, foram contatadas escolas geograficamente próximas das unidades públicas de ensino. Das cinco escolas, apenas duas responderam, não autorizando o desenvolvimento do estudo devido às implicações da abordagem do tema drogas para os familiares dos alunos e à falta de compatibilidade da agenda escolar para realização das entrevistas. Novamente a solução se deu a partir de contatos pessoais. A literatura aponta para a dificuldade de inserção dessa temática no contexto escolar (CARLINI, 2005). É ilustrativo que o CEBRID (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas), responsável pela realização de levantamentos sobre o consumo de drogas entre estudantes de todas as capitais brasileiras desde o ano de 1997, somente em sua sexta edição apresenta dados do universo particular. Participaram do estudo alunos de três escolas: uma estadual, localizada na Tijuca (bairro da zona norte do município do Rio de Janeiro); uma municipal, em Duque de Caxias (município contíguo ao município do Rio de Janeiro); e uma particular, em Teresópolis (Região Serrana do Estado). As três regiões apresentam perfil socioeconômico diversificado, mas têm em comum a presença de tráfico de drogas no entorno dos estabelecimentos de ensino. O universo da pesquisa compreendeu 40 estudantes, de 11 a 19 anos, sendo 20 do sexo feminino (metade da escola pública e metade da Mariana ADADE; Simone MONTEIRO. Educação sobre drogas: uma proposta orientada pela redução de danos. escola privada) e 20 do sexo masculino (metade da escola pública e metade da escola privada). No total, foram: da rede privada, 10 estudantes do ensino médio e 10 do ensino fundamental; da rede pública, 20 estudantes distribuídos do mesmo modo. A seleção dos sujeitos se deu a partir da divulgação da pesquisa nas salas de aula das três escolas. Apresentou-se o Jogo da Onda e expôsse o objetivo de atualizá-lo. Em cada sala de aula visitada foi deixada uma folha a ser preenchida com nome e contato dos alunos que gostariam de participar da entrevista. Esclareceu-se que a seleção seria feita a partir do sorteio dos interessados, que a participação era voluntária, que os dados eram sigilosos e que os pais e/ou responsáveis precisariam autorizar. Estratégias metodológicas A definição das estratégias foi norteada pelo percurso metodológico que originou o Jogo da Onda, caracterizado pela investigação do conhecimento, das representações e das práticas sobre drogas por parte de estudantes, bem como pela revisão da bibliografia e de propostas educativas relativas ao tema (MONTEIRO; REBELLO, 2005). Na primeira etapa foram realizadas 40 entrevistas semiestruturadas e observações de campo referentes às interações ocorridas nos contextos investigados, considerando-se os aspectos sociais, culturais e materiais. O roteiro da entrevista incluiu: perfil socioeconômico; trajetória escolar; visões, conceitos e experiência sobre drogas; relação entre drogas e mídia; motivações e prazeres; drogas e legislação; pressão social; dificuldades na vida cotidiana; visão acerca do usuário de drogas; relações entre sexualidade, Aids e drogas; relações interpessoais; e tipo de educação sobre drogas recebida. Todas as entrevistas aconteceram nas dependências das escolas, em um único contato individual durante o horário de aula. A assinatura do termo de consentimento concedeu a autorização dos Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 215-230, jan./mar. 2014. responsáveis dos estudantes para a participação no estudo e a gravação das entrevistas. Os relatos foram transcritos e lidos de forma exaustiva, visando à organização e à codificação do conteúdo segundo os eixos temáticos do roteiro da entrevista e das questões do estudo, bem como à identificação do significado das narrativas (BECKER, 1994). O processo de interpretação das informações buscou articular as categorias identificadas nas entrevistas com as informações das observações de campo, os objetivos do estudo e a revisão da literatura do campo das ciências sociais e da educação sobre drogas (ACSERALD, 2005; BUCHER, 1992, 2007; BUCHER; OLIVEIRA, 1994; MACRAE, 1997, 1999; SOARES 1997, 2007; VELHO, 1999; ZALUAR, 1999. A segunda etapa, referente à revisão e à atualização do conteúdo do jogo, orientouse pela metodologia de criação do material (MONTEIRO; REBELLO, 2005). Para tanto, foram realizadas: 1) análise das publicações sobre o processo de avaliação e repercussão do Jogo da Onda em contextos de ensino (REBELLO; MONTEIRO; VARGAS, 2001; MONTEIRO; VARGAS; REBELLO, 2003) e dos relatórios sobre as etapas de desenvolvimento e avaliação das cartas do material, disponíveis no LEAS/ Fiocruz; 2) revisão bibliográfica sobre o cenário contemporâneo relacionado ao consumo de drogas, centrada em informações, pesquisas científicas sobre o tema, políticas públicas na área da saúde e da educação e legislação;2 3) revisão do conteúdo das 145 cartas da primeira edição do Jogo da Onda a partir dos achados da literatura e das entrevistas com os jovens. Tal análise visou identificar a atualidade e a defasagem do conteúdo das cartas do jogo educativo. 2- O processo de levantamento bibliográfico se deu no portal de periódicos Scielo e nas bases de dados Lilacs e Scopus, a partir dos seguintes descritores: uso indevido de drogas e adolescência (ou juventude), educação ou prevenção e RD e outras possíveis combinações. Foram incluídos na revisão artigos, teses e livros que abordassem o tema, bem como contatos com profissionais da área em busca de sugestões e indicações bibliográficas. 221 Resultados e discussão Os estudantes das escolas públicas referiram, com maior frequência, que residiam com uma família ampliada, constituída pelo agrupamento de diferentes parentes (avô, tia e prima; tios, irmãos e mãe). O número de pessoas residentes nas casas foi maior, variando de 3 a 11. Nesses contextos, a responsabilidade pela educação dos jovens é mais descentralizada, ficando a cargo de todos os adultos; alguns estudantes ajudavam financeiramente e nas atividades domésticas. Na unidade privada foram mais comuns as famílias nucleares, compostas somente por pais e filhos(as). Dentre os 40 entrevistados, a maioria possui computador em casa (92,5%), tem acesso à internet (82%) e participa de redes de relacionamentos virtuais (97,5%). Em relação ao perfil socioeconômico dos entrevistados oriundos de unidades de ensino públicas e privada, foram observadas diferenças relativas à constituição familiar, à inserção profissional dos pais, à possibilidade de acesso a práticas de consumo e a oportunidades de lazer e aprendizagem. Todavia, foram identificadas aproximações relacionadas aos parâmetros e às referências identitárias compartilhadas por uma geração, como o acesso à internet e a valorização de bens de consumo. A maior parte dos alunos (85%) possui representações negativas acerca do consumo de drogas. Segundo os jovens, o uso de drogas, principalmente de drogas ilícitas, é sempre uma experiência abusiva e maléfica, sendo o usuário o único responsável por essa interação. Tal visão individualizada e descontextualizada do fenômeno converge com a racionalidade técnico-científica, pautada no discurso de guerra às drogas historicamente difundido em diversos fóruns, inclusive nas escolas (BUCHER; OLIVEIRA, 1994; CARLINI-COTRIM, 1992). A concepção de prevenção primária do uso de drogas tem como a priori apenas os aspectos danosos da droga (ilícita) e a orientação de que o consumo de qualquer 222 droga deve ser evitado. Esses pressupostos se distanciam da realidade experimentada pelos jovens, dado que as drogas estão presentes em diversos contextos e figuram como instrumento de socialização. O não reconhecimento de aspectos contextuais, como a pressão social e o acesso facilitado às drogas, torna os jovens mais vulneráveis ao uso indevido, uma vez que não legitima as possíveis influências presentes em seus espaços de circulação. Ademais, contribui para a manutenção do estereótipo do usuário de drogas como o fracassado e o desviante, facilitando a construção de posturas discriminatórias e dificultando a percepção da condição de usuário de drogas. Conceber todas as dimensões existentes no ato de consumir drogas implica constatar que as alterações ocasionadas transcendem o espectro de puramente fisiológico e envolvem aspectos subjetivos e construções sociais acerca de determinada substância. Os efeitos de uma droga dependem da complexa interação do sujeito (sua fisiologia integrada à sua dimensão subjetiva e simbólica) com a substância específica (suas propriedades químicas e seus significados sociais) em dado contexto, levando-se em consideração toda sorte de fatores aí presentes (BECKER, 2008). Pouco mais da metade dos entrevistados (52,5%) conseguiu diferenciar, de forma breve e superficial, as drogas lícitas das drogas ilícitas. Para muitos, essa diferenciação é orientada pela ideia de que as drogas lícitas causam menos prejuízos e por isso são permitidas. A dificuldade em justificar as origens de tal classificação não se restringe ao universo desta pesquisa, mas resulta do discurso proibicionista que oculta os diversos fatores que rivalizam na complexa interação sujeito-droga e justifica a proibição de determinadas substâncias a partir de critérios farmacológicos. Ou seja, focaliza somente as substâncias e não a rede de elementos que estão presentes nessa interação e que influenciam as motivações sociais, políticas e, especialmente, econômicas da classificação das drogas (ESCOHATADO, 2004; MACRAE, 1997). Noto et al. (2003) afirmam que os psicoativos, apesar de similares em várias características Mariana ADADE; Simone MONTEIRO. Educação sobre drogas: uma proposta orientada pela redução de danos. farmacológicas, são classificados, legalizados e divulgados de modo diferenciado, o que pode gerar, por sua vez, ideias e práticas incoerentes que precisam ser alvo das ações educativas. As motivações do uso de drogas ilícitas são associadas às ideias de doença, descontrole, infelicidade, criminalidade, fraqueza e loucura, coerentes com o discurso reducionista que encerra o sujeito em sua condição de usuário, adoecido e/ou criminoso. Segundo Rodrigues (s.d.), a diferenciação entre o usuário e o traficante, já presente na legislação da década de 1970 e reeditada na Lei nº 11.343/06, reforça uma possível troca de estereótipos atrelados à pessoa que consome drogas. O lugar de doente do usuário de drogas ilícitas se materializa quando este é penalizado a partir do encaminhamento ao tratamento específico na área. Significados e representações existem e são construídos socialmente ao longo do tempo, estando, a cada momento, atrelados a valores, crenças, interesses e motivações de diversas ordens. A percepção dos estudantes acerca dos usuários de drogas, além de se configurar como um obstáculo para o reconhecimento de um uso abusivo, sinaliza a importância de o tema ser incluído nas práticas educativas visando também amenizar a difusão de estereótipos e, consequentemente, de posturas discriminatórias ante os sujeitos que consomem drogas ilícitas. Ainda no que se refere aos fatores desencadeadores da experiência inicial com as drogas, a maioria dos entrevistados privilegiou elementos relacionados ao entorno social. Os jovens reconhecem somente a presença de elementos da dimensão microssocial, como as mediações sociais (entre amigos, familiares e outros) e características pessoais, como baixa autoestima, personalidade fraca, Maria vai com as outras etc. A valorização de aspectos relacionados ao contexto mais próximo, além de responsabilizar – e muitas vezes culpabilizar – o individuo pela escolha de consumir drogas, desconsidera toda a gama de elementos de ordem macrossocial presentes. Dentre tais elementos, podemos citar o incentivo ao consumo de Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 215-230, jan./mar. 2014. diversos bens (como as substâncias psicoativas), as diferentes condições socioeconômicas dos grupos populacionais e os elementos que influenciam diretamente na construção de hábitos e atitudes (como no caso de opções de lazer, de diversão, nas formas de lidar com os problemas etc.) (ALMEIDA; EUGÊNIO, 2007; SOARES, 2007). Conclui-se que os entrevistados têm informação sobre várias drogas, mas não consideram os diferentes tipos de consumo. No caso das substâncias ilícitas, a experimentação é associada à dependência, sendo escassos os relatos sobre o uso recreativo ou ocasional de drogas. A forte introjeção de que a atitude correta é não ter o primeiro envolvimento com qualquer tipo de droga contrasta com a realidade vivenciada – que inclui o consumo de álcool – e com os efeitos danosos do álcool entre jovens (BASTOS et al., 2008; GALDURÓZ et al., 2010). Tal fato ganha relevância na medida em que grande parte dos entrevistados não identifica o álcool como droga; mesmo aqueles que o definiram como droga e que afirmaram consumilo, ao longo da entrevista responderam que não usavam drogas. O não conhecimento dos tipos e das possíveis implicações das diferentes formas de consumo dificulta o reconhecimento dos usos devido e indevido (SILVEIRA FILHO, 2007). Em relação às experiências pessoais com drogas ilícitas, apenas uma estudante da escola privada relatou ter usado maconha e ecstasy, pontualmente. Outra disse ainda não ter experimentado o ecstasy, mas compartilhou a curiosidade de experimentar. As observações de campo e os depoimentos indicaram maior espaço para o diálogo na escola privada. Apesar de a maioria desses alunos não participar de ações educativas sobre drogas, eles mencionaram atividades sobre o tema no contexto escolar, principalmente nas aulas do professor de biologia, com quem demonstraram nutrir uma relação de proximidade e admiração. Tais aspectos possivelmente influenciaram a forma como os conteúdos foram tratados, no sentido de haver um espaço para a exposição 223 de perguntas, dúvidas e trocas. Por outro lado, os estudantes das unidades públicas relataram atividades educativas sobre drogas em contextos não escolares, predominantemente no formato de palestras, e consideraram a experiência negativa, sobretudo pela ausência de interatividade. De acordo com eles, as palestras e exposições em sala de aula privilegiam um caráter informativo e relatos de pessoas que tiveram experiências com drogas. A atenção a esse último formato de atividade é necessária para profissionais que trabalham na área de educação sobre drogas, uma vez que tais relatos podem vir a reproduzir uma visão alarmista e reduzida acerca do fenômeno. Ao se contemplar somente a dimensão (e a responsabilização) individual, os aspectos contextuais são omitidos pelo realce dado aos prejuízos da interação. O foco nos danos tem a intenção de garantir que as pessoas rejeitem qualquer tipo de consumo (de drogas ilícitas) a partir da mobilização do medo. Ou seja, usa-se o recurso do amedrontamento, ofuscando a consciência crítica para questionar o relato apresentado e seus elementos constituintes (FERREIRA et al., 2010; MONTEIRO; REBELLO, 2005). Embora a polícia tenha como função assegurar a proteção dos sujeitos e a manutenção da ordem pública, a maioria dos estudantes desacredita nas atividades policiais, caracterizadas como ações predominantemente repressivas e punitivas. No caso do consumo de substâncias ilícitas, os jovens afirmam que a questão deve ser tratada pela saúde pública e não pela justiça. Tal visão nos remete para a atual discussão sobre os limites da autorização para que os policiais façam a distinção entre usuário e traficante, o que está previsto na lei de drogas (Lei nº 11.343/06) e vem ocasionando uma explosão carcerária de usuários presos como traficantes no país (ABRAMOVAY, 2012). Sobre a relação entre drogas e Aids, mais da metade dos entrevistados afirmou desconhecer as possíveis implicações dessa articulação. Apenas um aluno da rede privada associou o compartilhamento de drogas 224 injetáveis à infecção do vírus HIV, conhecimento, segundo ele, adquirido em aula de biologia. Outros afirmaram que o uso de drogas pode alterar a consciência e facilitar a prática do sexo sem preservativo ou uma postura promíscua. A relação entre sexo, Aids e drogas remeteu os estudantes à noção de falta de controle, expressa por comportamentos arriscados na busca pelo prazer, mas distanciado da realidade deles, a despeito de haver consumo, principalmente de álcool, no grupo (JEOLÁS; PAULILO, 1999). Os entrevistados afirmaram conversar com os pais e/ou familiares sobre relacionamentos amorosos e sexo (70%) e sobre drogas (62,5%). A maioria gosta e tem interesse em dialogar sobre drogas, mas as conversas são predominantemente pautadas por orientações para o não uso, como ilustra a fala de um aluno: “quando eles já dizem o que é pra fazer, a gente não tem muita escolha, né?”. Outro ponto destacado refere-se ao fato de, muitas vezes, os pais e/ou responsáveis desconhecerem o que deve ser dito (“não sabem o que dizer”), por constrangimento (“eu acho que eles sentem vergonha”) ou “falta de conhecimento”. Ou seja, os entrevistados ressaltaram a importância do diálogo em casa, destacando o papel da família na constituição do sujeito, mas apontaram a carência de informações e a falta de preparo dos pais para abordar o assunto. Esses dados reiteram a importância de se fornecerem subsídios educativos capazes de fomentar o conhecimento e o diálogo sobre drogas entre jovens, pais e educadores, tendo por base as demandas, as curiosidades e os interesses dos jovens, tal como proposto pelo Jogo da Onda. Cabe destacar que mais da metade dos entrevistados afirmou ter algum familiar que usa drogas lícitas (álcool e tabaco) e um terço mencionou o uso de drogas ilícitas (maconha, ecstasy, cocaína) entre familiares. Nenhum deles informou o uso de psicofármacos ou de drogas ilícitas pelos pais na ocasião. No entanto, dois estudantes da rede pública relataram que seus pais foram usuários de drogas ilícitas e se envolveram com o tráfico de drogas. Existem vários fatores interdependentes Mariana ADADE; Simone MONTEIRO. Educação sobre drogas: uma proposta orientada pela redução de danos. relativos às motivações para o consumo (in) devido de drogas; ter um familiar usuário não é determinante para o uso ou abuso de drogas, mas as relações familiares pautadas por um vínculo afetivo e por uma interação saudável colaboram para o desenvolvimento de potencialidades do sujeito e para a redução do uso indevido de drogas (SCHENKER; MINAYO, 2005). Dessa forma, as propostas educativas a esse respeito devem integrar os diversos atores e as instituições que participam da formação dos jovens, como a escola e a família (MOREIRA; SILVEIRA; ANDREOLI, 2006). Os relatos dos alunos confirmam os achados da literatura sobre educação e drogas relativos aos seguintes aspectos: falta de propostas educativas continuadas, predomínio da concepção de responsabilização individual, ênfase na repressão do consumo de determinadas drogas e manutenção de visões empobrecidas que desconsideram fatores comumente experimentados pelos sujeitos, como a pressão social, a curiosidade e a sensação de bem-estar, entre outros (ACSERALD, 2005; SOARES et al., 2011). O interesse pelo tema e a menção positiva da experiência da entrevista sinalizam que os estudantes valorizam práticas baseadas em trocas relacionais viabilizadas pelo diálogo, pelo respeito e pela confiança, elementos facilitadores da livre expressão de dúvidas e experiências. Faz-se necessário investir no conteúdo e, especialmente, no formato dos dispositivos de educação sobre drogas capazes de criar práticas que priorizem a construção de espaços para que os jovens falem de sentimentos, vivências e dúvidas, estabelecendo um diálogo com seus pares, pais e educadores. Nessa direção, as ações educativas devem contemplar os pais e/ou responsáveis pelos jovens, visando orientálos sobre o manejo do tema e trabalhando suas crenças a esse respeito (SCHENKER; MINAYO, 2005; SOARES, 1997). O interesse dos jovens por atividades dinâmicas e criativas que privilegiem a troca Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 215-230, jan./mar. 2014. relacional e estimulem a criatividade reitera a importância da revisão e da atualização do conteúdo do Jogo da Onda para uma futura reedição, tal como descrito a seguir. Jogo da Onda: mesmo formato, novos conteúdos Os achados das entrevistas e da revisão da literatura evidenciaram que o conteúdo da maioria das cartas do Jogo da Onda continua atual. Conforme assinalado, muitos jovens não consideraram o álcool e o tabaco como drogas e demonstraram dificuldade em diferenciar as substâncias lícitas e ilícitas. De igual modo, o uso indevido de medicamentos não é associado ao consumo de drogas, embora a OMS (Organização Mundial da Saúde) aponte para as consequências da superprescrição, da automedicação e do abuso de ansiolíticos em diferentes países, incluindo o Brasil (ORLANDI; NOTO, 2005). Em suma, embora os estudantes tenham informações sobre os diferentes tipos de droga, prevalecem respostas equivocadas sobre seus efeitos. Desse modo, é importante manter e ampliar as cartas centradas nos prejuízos do consumo de drogas lícitas, na diferenciação entre as substâncias (a partir do status de legalidade e ilegalidade) e na divulgação da definição das substâncias no que se refere aos efeitos, além de inserir uma breve contextualização da droga. Outro ponto bastante presente nos relatos diz respeito à influência dos pares como uma das motivações centrais para o consumo de drogas, aspecto que tem sido assinalado pela literatura (ACSERALD, 2005; ALMEIDA; EUGÊNIO, 2007). No entanto, a maioria dos estudantes não falou de si diretamente. A pesquisa que deu origem à primeira edição do Jogo da Onda igualmente identificou a tendência dos jovens de não abordar o tema a partir de suas próprias experiências. Os estudantes reconheciam a existência da pressão social, mas não se sentiam atravessados por ela (REBELO; MONTEIRO; VARGAS, 2001). Demais estudos assinalam que o discurso dos jovens tende a focalizar a experiência de 225 terceiros; os relatos de experiências pessoais sobre o consumo de drogas (em geral, ilícitas) são mais escassos, possivelmente em razão de ser algo ilegal, sujeito a sanções. Poucos mencionaram o prazer e a busca por sensações de bem-estar. O conteúdo das cartas originais que abordam esses temas está atualizado. Coerente com a fundamentação teórica do material educativo, que combina a perspectiva da educação para autonomia com a RD, o desenvolvimento do conteúdo do jogo não só abordou e incorporou temas que surgiram de demandas dos jovens, como adotou uma dinâmica que facilita a participação dos jogadores. Ainda nessa direção, as autoras optaram por privilegiar, no conteúdo das cartas, situações envolvendo terceiros que discutissem diferentes aspectos do consumo de drogas e temas afins (MONTEIRO; VARGAS; REBELLO, 2003; SCHENKER; MINAYO, 2005; SOARES, 2007). Os relatos apontam para o desconhecimento dos alunos acerca de algumas transformações no cenário do consumo e comércio de drogas, como as mudanças legislativas, que têm sido divulgadas pela imprensa. Tais dados reforçam a contribuição do Jogo da Onda na divulgação e na discussão de informações atuais sobre o tema. Nesse sentido, sugere-se a inclusão de novas cartas relativas às legislações mais recentes, bem como às implicações de situações de discriminação dos usuários perante as associações entre uso de drogas, criminalidade, descontrole e adoecimento. Propõe-se, ainda, a incorporação de cartas sobre as repercussões das novas formas de sociabilidade contemporânea, como as redes digitais, e das diversas formas de consumo (materiais e simbólicas) e suas implicações para o fenômeno das drogas – nesse contexto, vistas como mercadorias de consumo que mobilizam interesses, movimentações econômicas etc. Objetiva-se também inserir cartas sobre estratégias de RD, como informações sobre os possíveis riscos de associação de uma substância com outras drogas, devido às interações tóxicas. Como desdobramento do estudo, os novos conteúdos propostos passarão pelo 226 mesmo processo de testagem que caracterizou a construção e a avaliação da primeira edição do Jogo da Onda, configurada pela realização de grupos focais com estudantes e observações do uso. Após esse processo, objetiva-se encaminhar uma segunda e nova edição do jogo. Considerações finais As reflexões apresentadas indicam que o consumo de drogas se conecta a aspectos históricos, socioculturais, econômicos, políticos e individuais. O manejo do tema no contexto educacional depende, entre vários fatores, de processos formativos e da disponibilidade do educador. Isso significa dizer que o desenvolvimento de ações educativas deve privilegiar a capacitação continuada de educadores e a oferta de recursos/estratégias educativas, contemplando, tal como propõe a abordagem de RD, o conhecimento, as crenças e os sentimentos que o tema mobiliza, bem como a contextualização do fenômeno a partir de uma perspectiva educativa dialógica e participativa. Conforme assinalado por Soares (2007), é preciso reconhecer as dificuldades de se assumir uma perspectiva sobre drogas orientada pela RD, que, apesar de solidamente fundamentada, ainda é emergente e alvo de críticas combativas. A busca pela construção de argumentos se faz necessária para a sustentação de um posicionamento claro e seguro diante de questionamentos e censuras. Tratar o tema amplamente, valorizando todas as suas dimensões, implica enfrentar as críticas de diferentes atores sociais e fornecer esclarecimentos e informações coerentes e sérias, as quais nem sempre são divulgadas, embora atualmente estejam mais acessíveis (CANOLETTI; SOARES, 2005). Este trabalho teve o propósito de contribuir para o desenvolvimento e o aprimoramento de práticas educativas sobre drogas e fomentar reflexões sobre as relações entre a abordagem da redução de danos e a perspectiva da educação para a autonomia. Em Mariana ADADE; Simone MONTEIRO. Educação sobre drogas: uma proposta orientada pela redução de danos. um sentido mais global, o trabalho integra um movimento – já instaurado e que gradualmente vem se solidificando – de difusão de discursos contra-hegemônicos, procurando divulgar novos conhecimentos contextualizados sobre o tema do consumo de drogas e seus desdobramentos. Assim, ao materializar tal perspectiva em um jogo educativo, o desenvolvimento desta pesquisa demonstra o comprometimento em afinar a teoria à prática. Quadro 1 – Jogo da Onda O Jogo da Onda contém: 1 tabuleiro; 1 dado; 4 pinos; 1 encarte com dicas de atividades e sugestões bibliográficas; 4 baralhos. O baralho laranja descreve o conceito e os efeitos de drogas lícitas e ilícitas; o baralho vermelho contém perguntas e respostas sobre aspectos jurídicos, conceito e classificação das drogas e as consequências do uso abusivo; nos baralhos verde e azul são apresentadas situações do cotidiano associadas ao consumo de drogas, como relacionamento familiar, políticas educativas, conflitos pessoais, pressão social do grupo, entre outros; o baralho verde difere do baralho azul por conter mensagens sobre o tema abordado na carta. Recomendado para maiores de 12 anos, o jogo foi projetado para ser jogado em dupla em contextos do ensino formal e informal, podendo ser adaptado para diferentes realidades (REBELLO; MONTEIRO; VARGAS, 2001). Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 215-230, jan./mar. 2014. 227 Referências ABRAMOVAY, Pedro. Usuário pobre está sendo tratado como traficante: depoimento. [23 jul. 2012]. Entrevistador: Felipe Prestes. Porto Alegre: Sul21, 2012. 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Recebido em: 08.10.2012 Aprovado em: 12.12.2012 Mariana Adade é psicóloga, gestalt-terapeuta, especialista em Assistência a Usuários de Álcool e outras Drogas pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ) e mestra em Ciências pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC/FIOCRUZ). Simone Monteiro é pesquisadora do Instituto Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), onde chefia o Laboratório de Educação em Ambiente e Saúde (LEAS), bolsista de produtividade em pesquisa nível 2 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e doutora em Saúde Pública (ENSP/FIOCRUZ), com pós-doutorado na Columbia University. 230 Mariana ADADE; Simone MONTEIRO. Educação sobre drogas: uma proposta orientada pela redução de danos. O imperativo do afeto na educação infantil: a ordem do discurso de pedagogas em formação Rodrigo Saballa de CarvalhoI Resumo Este artigo apresenta resultados de uma pesquisa que teve como foco de análise a problematização dos discursos sobre afeto docente presentes em relatórios de um estágio realizado em turmas de Educação Infantil por 30 acadêmicas de pedagogia em fase de conclusão do curso. O objetivo do artigo é problematizar como os discursos sobre afeto se constituem enquanto imperativos que inventam e regulam os modos de exercício docente. O campo de estudos no qual se fundamentou a pesquisa foi o dos estudos culturais e dos estudos desenvolvidos por Michel Foucault. A metodologia consistiu na análise do discurso foucaultiana, por meio da qual foram destacadas as regularidades e inflexões presentes nos relatórios. Estes foram escritos a partir de elementos recordatórios, como fotos, planejamentos e demais registros das acadêmicas. A análise evidenciou a assunção da afetividade como um imperativo profissional associado a um processo de generificação da docência. A partir da pesquisa, concluiu-se que os significados do afeto no exercício da docência só existem como resultados inacabados de processos que tratam de nomeá-lo e conformá-lo. Por essa razão, se for assumida a perspectiva de que os discursos que tomam o afeto como imperativo docente presentes nos relatórios analisados são produzidos pelas práticas sociais, pelas relações de poder e pelo tipo de lógica disciplinar que os operacionaliza, é possível desnaturalizá-los e reinventá-los, experimentando outros modos de agir e de pensar o exercício da docência na Educação Infantil. Palavras-chave Educação Infantil — Afetos docentes — Discurso — Pedagogia. I- Universidade Federal da Fronteira Sul, Erechim, RS, Brasil. Contato: [email protected] Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 231-246, jan./mar. 2014. 231 The imperative of affect in early childhood education: the order of discourse of undergraduate education students Rodrigo Saballa de CarvalhoI Abstract This article presents the results of a study that focused on the problematization of the discourses on teacher affect present in reports of an internship in early childhood education classes of 30 Education students nearing graduation. The aim of this paper is to discuss how discourses on affect become imperatives that invent and regulate the ways of teaching. The research was based on cultural studies and the studies developed by Michel Foucault. Its methodology consisted of Foucauldian discourse analysis, through which regularities and inflections found in the reports were highlighted. These reports were written using memory aids such as photos, plans, and other records of the students. The analysis evidenced the assumption of affection as a professional imperative associated with a process of gendering of teaching. From the research, it was concluded that the meanings of affect in the teaching profession only exist as unfinished results of processes that deal with naming it and shaping it. For this reason, if one assumes the perspective that the discourses that take affect as a teacher imperative, as the ones present in the reports analyzed, are produced by social practices, by the relations of power and type of disciplinary logic that operationalizes such discourses, it is possible to denaturalize them and reinvent them, experimenting with other ways of acting and thinking of teaching in early childhood education. Keyword Early Childhood Education — Teacher affect — Discourse — Pedagogy. I- Universidade Federal da Fronteira Sul, Erechim, RS, Brasil. Contact: [email protected] 232 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 231-246, jan./mar. 2014. Considerações iniciais Contemporaneamente, é possível observar que os discursos sobre a importância do afeto no processo educativo e da responsabilidade docente pela promoção de vínculos cada vez mais estreitos e duradouros com as crianças se proliferam nas searas educativas, conforme destaca Alves (2006). A questão afetiva e a linguagem sentimental, de acordo com Illouz (2011), ocupam um espaço singular e vêm adquirindo cada vez mais centralidade na descrição do cotidiano escolar. A afetividade do professor é muitas vezes entendida como o único atributo necessário para o exercício da docência. Vivencia-se uma espécie de inflação retórica de discursos sobre o afeto docente pelas crianças como estratégia infalível para a identificação e a resolução dos problemas em sala de aula. A proliferação dos discursos afetivos, conforme aborda Abramowski (2010), iniciou-se a partir da circulação e da legitimação científica dos estudos advindos das pedagogias psicológicas; da comprovação, pelos especialistas em educação, da suposta falta de afeto das famílias em relação às crianças; dos estereótipos emocionais que constituem a definição e a normatização do perfil esperado de uma boa professora de Educação Infantil; e do crescente processo de afetivização da cena contemporânea, por meio da circulação, cada vez maior, de reality shows, livros de autoajuda, programas de entrevistas, entre outras pedagogias culturais que operam na subjetivação docente. Desse modo, o presente artigo apresenta resultados de uma pesquisa que teve como foco a problematização dos discursos presentes em relatórios de práticas de estágio realizadas em turmas de Educação Infantil por acadêmicas de pedagogia em fase de conclusão do curso. O campo de estudos no qual se fundamentaram as análises desenvolvidas foi o dos estudos culturais e dos estudos desenvolvidos por Michel Foucault. A metodologia utilizada consistiu na análise do discurso de inspiração foucaultiana, por meio da qual foram destacadas as Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 231-246, jan./mar. 2014. regularidades e inflexões presentes nos discursos que constavam nos relatórios de estágio (referentes ao ano de 2011) das 30 participantes da pesquisa. Os relatórios tinham em média 60 páginas e apresentavam a seguinte estrutura: a) descrição da instituição; b) apresentação do projeto de intervenção; c) planejamentos semanais; d) relatos reflexivos escritos a partir das práticas desenvolvidas em sala de aula. O foco de análise foi somente os relatos reflexivos, escritos pelas acadêmicas com base em elementos recordatórios, como fotos, anotações e planejamentos. Com a análise dos dados, foi possível notar a presença do imperativo do afeto nos discursos de todos os relatos, configurando determinadas funções enunciativas e produzindo regimes de verdade sobre a docência. Tendo em vista visibilizar os discursos das acadêmicas sobre a importância do afeto e evidenciar que eles se valem de um vocabulário comum e de certas formas de argumentar, foram selecionadas para análise citações literais de trechos dos relatos reflexivos. Tais citações foram escolhidas pelo fato de apresentarem recorrentemente discursos relacionados ao afeto no exercício da prática docente. Após a seleção, os discursos foram organizados em unidades analíticas: afetos docentes, afetos considerados politicamente incorretos, mandatos pedagógicos afetivos e generificação dos afetos. No intuito de manter o anonimato das participantes, estas foram nomeadas pela letra A (acadêmica), seguida pela numeração correspondente de 01 a 30, ao final de cada citação. Sobre a instituição em que foi realizada a pesquisa, por solicitação, seu nome será mantido em sigilo. A partir da exposição da metodologia, cabe reiterar que, nos discursos analisados, evidenciou-se a assunção da afetividade como um imperativo profissional associado a uma generificação da docência. Na contramão de tais discursos, entendendo gênero, segundo Scott (1995), Nicholson (2000) e Meyer (2003), como uma construção social culturalmente contingente e não como uma mera concretização de distinção biológica prévia, é possível dizer que as práticas 233 sociais são constituídas e constituintes de gênero. Por essa razão, os significados do afeto no exercício da docência só existem como resultados inacabados de processos que tratam de nomeá-lo e conformá-lo. Desse modo, reconhecer-se como mulher e professora de Educação Infantil é decorrência de inúmeros processos educativos. O intuito do artigo é, assim, problematizar como os discursos sobre afeto presentes nos relatórios se constituem enquanto imperativos que inventam e regulam os modos de exercício profissional das futuras pedagogas. Nessa perspectiva, o imperativo do afeto pode ser descrito como o conjunto de discursos circulantes no meio social que operam na formação de uma profissional que entende o afeto (de modo naturalizado) como condição exclusiva para o exercício da docência com crianças, deixando em segundo plano (ou até mesmo desconsiderando) a formação acadêmica específica para a atuação em sala de aula e os conhecimentos decorrentes de pesquisas produzidas na área. Esse imperativo está implicado no ordenamento da sala de aula e na autorregulação do trabalho docente, funcionando dentro de um sistema de produção e regulação de enunciados que define seu estatuto de verdade. O processo de afetivização da docência também se relaciona com os estereótipos emocionais definidores das características de uma boa professora de crianças. Conforme Abramowski (2010, p. 21), esses estereótipos prescrevem que “uma boa professora deve ter vocação pela sua tarefa e ser afetiva, meiga, simpática, carinhosa, compreensiva com as crianças”. Tais enunciados evidenciam a importância concedida ao componente afetivo como condição imprescindível para o exercício da docência. A partir dessa lógica, o afeto pelas crianças é entendido de modo naturalizado, sendo suprimido seu caráter histórico e cultural. É como se o afeto pelas crianças fosse o único motivo para a escolha profissional, desconsiderando-se completamente o interesse acadêmico na área. 234 Alves (2006), em pesquisa realizada com pedagogas atuantes na Educação Infantil sobre o perfil profissional do educador da infância, destacou que as entrevistadas argumentavam que o trabalho que desenvolviam em sala de aula requeria prioritariamente amor às crianças e à profissão. O afeto era entendido como meio desencadeador de outras atitudes profissionais, como abertura a mudanças, compromisso, dedicação e responsabilidade. Em relação aos indicadores que, hipoteticamente, caracterizariam uma boa professora, as docentes elencaram simpatia, carinho, paciência, criatividade, tranquilidade, delicadeza, sutileza e capacidade de acolhimento às crianças, atribuindo, novamente, centralidade ao afeto no exercício qualificado da docência com crianças. Com base na exposição, cabe esclarecer os demais conceitos que serão utilizados como ferramentas analíticas. Entendendo a partir de Foucault (1995, 2007) a centralidade da linguagem e da cultura na constituição dos sujeitos, podese dizer que os relatórios que compõem o corpus analítico da pesquisa serão examinados como discursos que procuram instituir e fixar determinados modos de exercício da docência na Educação Infantil. O discurso, em uma perspectiva foucaultiana, é considerado como mais do que uma simples representação, porque a linguagem é entendida como subsidiadora das categorias pelas quais os indivíduos nomeiam e agem no mundo, sendo, portanto, produtora de sentidos e significados que não preexistem às práticas discursivas. O discurso é concebido como uma prática (ou, ainda, um conjunto de práticas) que define e produz os objetos dos quais trata. Os relatórios dos estágios são vistos, nesse âmbito, como discursos que assumem forma, ordem e coerência por meio de uma linguagem comum, que opera sempre de modo microfísico, sutil, retórico e persuasivo, atualizando-se por meio de um sistema de remissões. Isso quer dizer que tais discursos são decorrentes de múltiplas combinações, interdições e atravessamentos de outros ditos, que os inscrevem em determinada ordem. Rodrigo Saballa de CARVALHO. O imperativo do afeto na educação infantil: a ordem do discurso de pedagogas... Os significados a respeito do afeto no exercício da docência presentes nos escritos analisados não existem independentemente da ordem discursiva em que se encontram inscritos. Os registros evidenciam a presença de múltiplas vozes. Em todos os discursos enunciados nos relatórios, existem outras vozes a quem as acadêmicas se dirigem, outras vozes a quem se referem, outras vozes que falam em seus escritos. Em relação à consideração exposta, Arfuch (2010, p. 184) a ratifica, declarando que sempre há outras vozes que habitam os discursos – “a da tradição, da cultura, do senso comum: valorações, crenças, verdades aceitas que são assumidas como próprias, nas quais se imprime o selo afetivo”. Reiterando o argumento apresentado, Foucault (1995, p. 8-9) afirma que a produção dos discursos: “ é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório” e afastar sua pesada e terrível materialidade. A partir de sua circulação, os discursos promovem e instituem sentidos no social que incidem diretamente no processo de constituição dos indivíduos enquanto docentes e em suas concepções sobre a profissão. Nesse âmbito, as acadêmicas posicionam-se e são posicionadas no interior de certas regras, por meio das quais podem vir a conduzir os outros e a si mesmas, partindo do que estabelecem como sendo o exercício adequado da docência e o perfil da boa professora de Educação Infantil. Ao definirem o imperativo do afeto como o modo correto de ser e de agir com as crianças, as acadêmicas determinam um campo possível para suas ações e formas de ser enquanto professoras. No intuito de visibilizar as estratégias discursivas presentes nos relatórios, na próxima seção serão apresentadas as análises referentes à temática dos afetos docentes. Afetos docentes É importante esclarecer que as discussões a serem expostas não tratam da oposição Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 231-246, jan./mar. 2014. entre ser ou não um professor afetivo com as crianças, mas focalizam a primazia dos discursos sobre a afetividade no exercício da docência na Educação Infantil. Os discursos sobre afeto docente enunciados na pesquisa se relacionam com uma ampla rede discursiva histórica e cultural que posiciona as acadêmicas dentro de um regime de verdade em que ser afetiva é condição para o alcance do reconhecimento e da realização profissional. Esse regime de verdade institui o imperativo do afeto como condição exclusiva para o exercício profissional, operacionalizando um processo de subjetivação da acadêmica. Por meio de um autoexame contínuo, a acadêmica é produzida (e se produz), transformando suas maneiras de ser e de agir em relação ao trabalho e a si própria com vistas a tornar-se afetiva, como pode ser notado no excerto do relatório apresentado a seguir. Durante minha prática de estágio na Educação Infantil, tive ainda mais certeza de que precisamos amar nossas crianças para ensinar, respeitando suas especificidades. A aprendizagem é uma consequência do carinho que demonstramos por elas. Através da convivência, acabamos gostando até das crianças mais terríveis, pois temos que aprender a lidar com todas sem exceção. Não é tarefa fácil, mas quem disse que é fácil ser professora? É uma diversidade enorme dentro da sala de aula e por isso é importante sabermos lidar de modo afetivo com todas as crianças para que todas possam aprender. (Transcrição de excerto de relatório de estágio A16). Pelo exposto, é possível observar o modo como a acadêmica regula seu próprio discurso a partir da rede de práticas na qual se encontra inscrita, como jovem, branca, mulher, trabalhadora etc. Lidar com todas as crianças é um aprendizado e se constitui um desafio para quem assume a docência – pois quem disse que é fácil ser professora? É preciso aprender a lidar com a diversidade de crianças para que todas possam aprender. 235 Ratificando a análise desenvolvida, é importante destacar o dito por Foucault (2005, p. 35), que afirma: é “sempre possível dizer o verdadeiro no espaço de uma exterioridade selvagem, mas o indivíduo não se encontra no verdadeiro senão obedecendo as regras de uma polícia discursiva” reativada sempre em cada um dos discursos enunciados pelos indivíduos. Eis o imperativo do afeto fazendo-se presente nas considerações. Na contramão dos discursos pedagógicos de ordem moral que definem o afeto como algo natural, o estabelecimento de vínculos afetivos com as crianças é uma prática desenvolvida no interior da cultura (via escolarização, formação docente, exercício profissional, pedagogias culturais que instituem e fazem circular discursos generificados sobre a docência, a aprendizagem, o trabalho pedagógico etc.) e, portanto, contingente e sujeito a múltiplas significações pelos indivíduos. Isso quer dizer que não se nega a importância do afeto nos processos de ensino e de aprendizagem, mas apenas se problematiza a naturalidade dos modos como os vínculos estabelecidos entre docentes e crianças na Educação Infantil têm sido enunciados de forma naturalizada no meio social como atributos da ordem do coração. Abramowski (2010, p. 33) destaca que “os afetos que os indivíduos sentem não ocorrem de modo natural, não brotam de dentro para fora, não nascem do coração e muito menos das entranhas” dos professores. Os afetos, em todas as suas variantes, não são puros, naturais, espontâneos, instintivos, universais, eternos, nem imutáveis. Portanto, pode-se depreender que eles são históricos, cambiantes, construídos e aprendidos diariamente nas relações estabelecidas pela professora no contexto da sala de aula, ao educar, cuidar e brincar com as crianças, respeitando-as como sujeitos de direitos e produtoras de culturas infantis. Assumindo essa contingência dos afetos docentes, é oportuno explorar a origem etimológica da palavra afeto. Etimologicamente, 236 tal vocábulo origina-se de afecção, que tem o sentido de ser afetado, sofrer uma ação, ser influenciado ou modificado por uma ação. Nessa perspectiva, os afetos podem ser conceituados como as formas pelas quais os professores sentem, percebem, agem e expressam seus sentimentos em relação às crianças e ao trabalho que desenvolvem. Por essa razão, o conceito de afetos docentes, segundo Abramowski (2010), contempla uma variedade de sentimentos vivenciados pelo professor em seu fazer profissional. Nessas experiências, estão incluídos tanto os sentimentos de amor, carinho, atenção e dedicação, como os de cansaço, angústia, aflição e raiva. Os afetos docentes não se restringem somente ao amor – palavra enunciada repetidamente na pesquisa. Os afetos incluem também os sentimentos considerados politicamente incorretos, que geralmente são interditados na ordem do discurso docente, conforme afirma a referida autora. Nesse sentido, ser um professor que realiza a mediação da aprendizagem dos alunos a partir do estabelecimento de vínculos afetivos é muitas vezes considerado – no meio educacional – o único indicador de qualidade do ofício profissional. Irritação, decepção, cansaço, falta de paciência, tristeza, mau humor, entre outros sentimentos, são vistos como déficit de competência emocional e profissional do professor, que sozinho deve procurar a solução para o problema. É possível perceber uma regulação marcante dos discursos dos docentes em relação ao que sentem por seus alunos e sua profissão, já que eles se encontram no âmbito da ordem do discurso afetivo. Com base nessa linha argumentativa, serão apresentados e discutidos, na próxima seção, os afetos considerados politicamente incorretos1 e seus efeitos no processo de subjetivação docente. 1- Expressão utilizada por Abramowski (2010) quando se refere, em sua pesquisa, aos sentimentos geralmente interditados nos discursos dos professores (cansaço, angústia, insatisfação etc.) em relação ao trabalho docente com as crianças. Rodrigo Saballa de CARVALHO. O imperativo do afeto na educação infantil: a ordem do discurso de pedagogas... Afetos considerados politicamente incorretos O professor é um indivíduo deste mundo e, como tal, encontra-se suscetível aos sentimentos de irritação, angústia, desespero, insatisfação, cansaço, entre outras tantas sensações que poderiam ser elencadas. Ele aprende a controlar o livre fluir de seus próprios sentimentos e estados de ânimo a partir de um longo processo de disciplinamento e correlato aprendizado de autogoverno, que se inicia na família e se estende pela escolarização e pelo convívio social nas demais instituições. Esse autogoverno é de suma importância para que ele possa lidar cotidianamente com as crianças, já que o trabalho na Educação Infantil, além de pedagógico, é também relacional. O que faz com que o professor se controle é o fato de que ele, conforme afirma Abramowski (2010, p. 63), “não tem via livre para sentir qualquer coisa”. Ao entrevistar professores argentinos que atuavam na escolarização inicial, a autora percebeu que eles apresentavam dificuldade para expressar os sentimentos politicamente incorretos que sentiam em relação aos alunos e à profissão. Ao tratarem de tais sentimentos, os respondentes da pesquisa enfatizavam que, mesmo não gostando de determinadas crianças ou de situações ocorridas na escola, tinham a obrigação de controlar as palavras, dominar os instintos e metabolizar a raiva, pois os maus sentimentos não deveriam ser expressos nem em reuniões com a equipe gestora das instituições. Embora, nas entrevistas com os professores, esses sentimentos sejam muitas vezes regulados, controlados e até mesmo excluídos dos discursos por não condizerem com as expectativas sociais que historicamente se têm em relação ao professor da Educação Infantil, é consenso que eles existem. Porém, é preciso que esses sentimentos sejam enunciados e discutidos no âmbito da formação acadêmica e também no espaço de atuação profissional. Mediante um processo de reflexão com os pares, o profissional Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 231-246, jan./mar. 2014. terá a possibilidade de evidenciar os fatores atuantes no processo de constituição de seu desgaste, buscando auxílio para a resolução dos problemas apresentados e para a construção de estratégias com vistas à qualificação das relações estabelecidas com as crianças. Corroborando esse argumento, é relevante apresentar o excerto de um relatório em que a acadêmica enfatiza: [...] aprendi a lidar com as minhas emoções, pois, muitas vezes, perdi o controle e, dessa forma, acabei errando com as crianças. Uma professora de Educação Infantil jamais deve perder a calma e a paciência. (Transcrição de excerto de relatório de estágio A24) É possível perceber a regulação do discurso sobre o afeto por meio de técnicas de conhecimento e controle de si que influenciam diretamente o modo como a acadêmica enuncia o que sente. Por outro lado, ao entrar na ordem do discurso que sustenta o imperativo do afeto, ela acaba muitas vezes desenvolvendo os sentimentos de culpa e má consciência, por nem sempre conseguir atender de forma solitária a todas as demandas afetivas contemporaneamente apresentadas pelas instituições escolares. Pode-se dizer que esses sentimentos passam a perturbar, atormentar e angustiar a futura professora, tornando-a presa aos seus próprios pensamentos: Por mais que eu tente, nem sempre consigo atender às demandas afetivas de todas as crianças, pois existem muitas demandas. Fico angustiada, pois sei que a base de tudo é o carinho. (Transcrição de excerto de relatório de estágio A28) Segundo Foucault (2003), essas relações de poder, produtoras da culpa e da má consciência, não definem o que é a estagiária em sua interioridade, mas procuram normalizá-la, no sentido de que ela assuma, cada vez mais, o repertório de características que historicamente 237 foi definido como parte de sua profissão. No limite, trata-se de relações de poder que circulam microfisicamente via uma rede de discursos variados por todo o tecido social, produzindo, assim, a figura da docente afetiva. Prosseguindo a discussão, na próxima seção serão discutidos os mandatos afetivos e o processo de subjetivação docente por eles operado. Mandatos pedagógicos afetivos Apesar de ter observado durante meu estágio na Educação Infantil professores que não preparam aulas, não pesquisam e nem demonstram um mínimo de amor por seus alunos, acredito que a educação pode melhorar muito. É preciso ser um professor afetivo e dedicado para que realmente a mudança ocorra em sala de aula. (Transcrição de excerto de relatório de estágio A28) Percebi durante a minha prática em sala de aula com as crianças da Educação Infantil o quanto minhas atitudes marcam meus alunos. Procuro ser cuidadosa em tudo que falo e afetuosa em todas as minhas ações em sala de aula. (Transcrição de excerto de relatório de estágio A12) Como consequência dos excertos apresentados, o professor se tornou merecedor de toda uma ortopedia discursiva que o incita a enunciar repetidamente a importância do afeto em sua profissão. Assim, estabelecem-se, de forma vertiginosa, publicações, palestras, entrevistas, vídeos e cursos de formação continuada que prescrevem procedimentos eficazes para o professor de Educação Infantil atingir sucesso no ensino a partir da criação e da manutenção de laços afetivos com as crianças. Trata-se de um investimento estratégico que inclui o docente em processos correlatos de autoavaliação e autorreconhecimento, capturando-o e moldando-o de modo que ele se reconheça e seja reconhecido como 238 um profissional afetivo, que, por ter amor à profissão, não precisa reivindicar melhores condições de trabalho e remuneração financeira. Esse argumento é ratificado pelos estudos de Abramowski (2010, p. 166), que afirma que os professores, tanto na formação inicial quanto no decorrer de suas práticas, “são subsidiados por discursos que ensinam a ser afetivo”, pois se aprende a gostar dos alunos por meio de um longo processo. A ordem do discurso afetivo docente não tem como função apenas disciplinar, normalizar e interditar, mas também tem o propósito de intensificar a relação que o professor estabelece consigo no intuito de promover transformações em sua subjetividade. Por essa razão, é importante destacar a afirmação de Garcia (2002, p. 31) de que o modo como o professor se vê e se pensa, “bem como procura moldar sua conduta, é produto de práticas sociais particulares”. A subjetividade do professor é objeto de poder, é produto de maquinações, de saberes e técnicas que o incluem ativamente em um campo de visibilidade, atribuindo-lhe certo padrão de comportamento. O professor afetivo é produzido por determinadas práticas que o incitam a se reconhecer, a falar sobre si mesmo e a se tomar sob sua própria responsabilidade em um processo de autoavaliação permanente. A subjetividade decorrente desse processo pode ser considerada antes uma norma do que um dado natural. Isso ocorre porque a docência na Educação Infantil se torna alvo de uma rede de discursos que explicam, detalham, objetivam, tornam visíveis e passíveis de enunciação determinadas formas de se experienciar o afeto pelas crianças. Como pode ser percebido, opera-se uma condução do comportamento docente que não se caracteriza pela imposição, pela repressão ou pela ação de uma autoridade externa, mas, sutilmente, pelo modo como a acadêmica procura direcionar suas ações, tomando como referência a rede de discursos na qual se encontra inscrita. Gostei muito da prática realizada na Educação Infantil, pois me propiciou vivenciar a rotina de uma sala de aula e Rodrigo Saballa de CARVALHO. O imperativo do afeto na educação infantil: a ordem do discurso de pedagogas... percebi que tenho paciência e carinho para lidar com as crianças. Soube me portar com certa desenvoltura e intimidade com os alunos, soube respeitar as especificidades de cada aluno. Acho que tenho condições de ser uma boa professora. (Transcrição de excerto de relatório de estágio A14) Em relação a esse excerto, é importante destacar duas considerações analíticas. A primeira diz respeito ao acento eminentemente moral e prescritivo nele presente. A acadêmica precisa dizer a verdade acerca de si própria, confessar-se, examinar-se e reconhecer-se como uma professora afetiva. Ela precisa se afirmar enquanto profissional por meio do testemunho público de suas próprias ações. Para tanto, necessita definir indicadores avaliativos que sejam devidamente reconhecidos no âmbito educacional, indicadores relacionados ao campo afetivo, como paciência, carinho, desenvoltura, intimidade e respeito aos alunos, os quais possibilitam validar sua própria atuação docente e ratificar o sucesso das propostas desenvolvidas em sala de aula. Além da definição de indicadores, ela precisa estabelecer certa hierarquia entre eles. Paciência e carinho assumem o primeiro plano, compondo, com os demais aspectos citados, um vocabulário. Esse processo de escrutínio do eu não é algo natural, mas um empreendimento produtivo no qual concorrem diferentes práticas sociais que tornam a docente (auto)governável e cada vez mais identificada com o imperativo do afeto. Quanto à segunda consideração analítica, observa-se o evidente atravessamento operado pelos estudos da psicologia no discurso em questão quando a acadêmica afirma que, em sua prática, soube respeitar as especificidades de cada um de seus alunos. Destaca-se, assim, conforme os estudos de Burman (1998), a relevância concedida ao relacional como traço emergente das teorizações psicológicas. É evidente a importância das questões relacionais no que diz respeito ao processo de ensino e aprendizagem; porém, muitas vezes, com base em Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 231-246, jan./mar. 2014. leituras superficiais dos estudos decorrentes da psicologia, as acadêmicas acabam esquecendo a intencionalidade pedagógica de suas práticas. Por essa razão, é importante que o afeto seja pensado no contexto do trabalho pedagógico, articulado com as relações de cuidado, educação e ludicidade que são estabelecidas com as crianças no espaço institucional. Análises sobre práticas pedagógicas desenvolvidas por Bujes (2009) e Walkerdine (1998) acentuam o quanto professores e acadêmicos, a partir de entendimentos equivocados, têm percebido a pedagogia como uma psicologia aplicada. A psicologia, nesse caso, torna-se o centro de produção de verdade sobre o aluno e a docência. Isso não significa que a psicologia sirva a propósitos de manipulação dos professores e nem que esse campo possua um discurso considerado homogêneo. O que se tem evidenciado é o modo equivocado como, muitas vezes, as teorizações de tal campo são apropriadas pelas acadêmicas, partindo da enunciação de jargões que, em muitos casos, não se relacionam com o trabalho pedagógico efetivo em sala de aula. Ainda a esse respeito, destaca-se a seguinte transcrição de outro excerto: Tentei ser lúdica, teórica e afetiva ao mesmo tempo. Gostei do desafio e me diverti muito mais do que as crianças enquanto aprendi e descobri como ser professora de Educação Infantil. Vi na sala de aula uma troca muito grande de amizade e carinho. (Transcrição de excerto de relatório de estágio A20) Como consequência das considerações e dos posicionamentos expressos nos relatórios apresentados, é importante acompanhar Abramowski (2010) quando argumenta que, anteriormente, apelava-se para a autoridade do professor; hoje, insiste-se cada vez mais em conhecer profundamente o aluno e em gerar vínculos afetivos estreitos e duradouros com ele, deixando em segundo plano a relação afetiva estabelecida no contexto de ensino. Pode-se dizer que é na produção da subjetividade 239 docente que o governamento se operacionaliza, já que a autoridade pedagógica passa a ser fundamentada em leituras (muitas vezes) superficiais da psicologia enquanto campo do saber. Referido de outro modo, mais do que a aplicação dos saberes da psicologia, a formação docente torna-se o lugar de difusão desse saber, de forma fragmentada e frequentemente sem articulação com o trabalho desenvolvido. Corroborando os argumentos, a seguir será apresentada uma sequência de excertos do material produzido em que as acadêmicas evidenciam a satisfação que sentem em terem seu trabalho recompensado pelo afeto demonstrado pelas crianças com as quais atuam. um colchão, abriu o sorriso mais encantador que já vi e simplesmente disse: “Oi!”. Nesse momento, percebi que, mesmo que não fosse bem aceita pela equipe de educadoras, eu consegui conquistar instantaneamente o carinho de uma menina, que, após sorrir, se levantou, correu até mim e me abraçou. Logo em seguida, os bebês foram acordando pouco a pouco, pegando seus sapatinhos e trazendo para que eu os colocasse. A cada vez que terminava de calçá-los, cada um me agradecia com os melhores presentes: um sorriso encantador, um abraço apertado ou um beijinho. (Transcrição de excerto de relatório de estágio A26) Semana de observação da prática de Educação Infantil. Sexta-feira – último dia de observação em uma turma de 5 anos de idade. Turma com 22 alunos. Um aluno tem diagnóstico médico de problemas neurológicos. Percebo que ele precisa de ajuda. Pego uma cadeira e sento ao seu lado. Passo a tarde inteira auxiliando-o e, diferentemente dos outros dias, ele consegue realizar pela primeira vez todas as atividades. No final da aula, ele me desenha em seu caderno. Saio muito feliz e com muita vontade de voltar, pois percebi que estabeleci um laço afetivo com a criança. (Transcrição de excerto de relatório de estágio A05) Como tenho um jeito meio moleca de ser, acho que isso faz com que as crianças criem vínculos afetivos comigo mais rapidamente. Já fui bruxa, gato, coelho, noiva de festa junina – e adoro isso, poder ser diferentes pessoas e ver a alegria estampada em cada rostinho. (Transcrição de excerto de relatório de estágio A01) Entrei na sala do berçário no horário de descanso, quando estavam todos com seus bicos e cheirinhos, dormindo. Comecei a conversar com as educadoras sobre a rotina, para poder me situar quanto aos horários das crianças. Enquanto a conversa transcorria, uma das educadoras precisou ausentar-se da sala para ir ao banheiro. Ficamos eu e outra estagiária cobrindo as crianças que haviam chutado seus cobertores durante o sono. Ao terminarmos isso, sentamos em um sofá para retomarmos a conversa, quando uma menina acordou. A menina sentou-se em 240 Como docente em formação, posso sentir, a partir das práticas realizadas, o carinho e a admiração por parte das crianças. Como é recompensador saber que elas procuram o meu abraço, minha atenção e que sou amada por elas. Sinto-me realizada em receber o amor das crianças. (Transcrição de excerto de relatório de estágio A17) Na verdade, ser professora é algo que ainda não sei expressar em palavras, é algo que sinto, penso, desejo quando estou frente aos bebês do meu estágio, estejam eles sorrindo, chorando, dormindo ou comendo. É algo que acontece e só depois é que consigo, talvez, pensar sobre. O que sei é que fico muito contente quando percebo que os bebês retribuem através do afeto todo o empenho e dedicação que tenho com eles durante as horas que passamos juntos. (Transcrição de excerto de relatório de estágio A21) Rodrigo Saballa de CARVALHO. O imperativo do afeto na educação infantil: a ordem do discurso de pedagogas... A leitura possibilita enfatizar que, no entendimento das acadêmicas, o envolvimento afetivo com as crianças, além de influenciar diretamente o processo de ensino e aprendizagem, também é motivo de satisfação para elas. Em tal situação, a professora que não estabelece vínculos afetivos (entendidos, nesse caso, como beijos, abraços e afagos) com as crianças não é reconhecida como uma profissional qualificada. Percebe-se, então, a eficácia da rede de discursos que sustenta o imperativo do afeto, operando na mobilização da subjetividade das professoras em formação. Em outras palavras, os discursos que sustentam e incitam a produção da professora afetiva, ao descrevê-la e reconhecê-la somente por esse valor, buscam modos de condução desta. Tomando como referência as discussões desenvolvidas, é possível observar um produtivo processo de subjetivação, no qual o docente, ao ser constituído como objeto do discurso afetivo relacionado ao ensino, passa a ser caracterizado, classificado e identificado a partir de um sistema de normas sociais moralizantes que procuram enquadrá-lo dentro de uma média ou como um desvio a ser devidamente corrigido. A esse respeito, conforme declara Badinter (1985, p. 15-16), deve-se sempre lembrar que o afeto “no reino humano não é apenas uma norma – pois nele intervêm numerosos fatores [discursos de diferentes ordens]”. O afeto, segundo a referida autora, é apenas um sentimento humano, incerto, frágil, imperfeito e constituído no âmbito da cultura e das relações estabelecidas entre os indivíduos, não estando inscrito em suas naturezas. É um sentimento que pode existir ou não, aparecer e desaparecer, pois não é inerente à docência na Educação Infantil, mas adicional a ela por ser uma profissão relacional. Portanto, o processo de subjetivação do docente afetivo é efeito de uma produtiva rede de discursos que, ao descreverem, analisarem e narrarem o professor enquanto objeto de saber, subjetivam-no. Prosseguindo com essa discussão, na próxima seção será abordado o processo de generificação dos afetos. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 231-246, jan./mar. 2014. A generificação dos afetos Lembro-me bem: “se não se comportar vai para a creche”; “coitada, não tem onde deixar os filhos e teve que colocar na creche” – falas de minha avó materna. Uma bagagem que carreguei, uma verdade desconfiada. Será que é tão ruim assim? Questionava-me. Na primeira experiência como estagiária de Pedagogia, a coordenadora me perguntou: “Tu já és mãe?”; “Sim.”; “Ótimo, pois preciso para o estágio no berçário de alguém com experiência. As outras acadêmicas que vieram não eram mães. Somente uma mãe é capaz de cuidar bem de uma criança, pois entende realmente as suas necessidades de carinho, alimentação e higiene”. Chego na sala e observo: quatro bebês nos berços, três nos carrinhos. Pensei: “Como minha avó falou!”. (Transcrição de excerto de relatório de estágio A30) Badinter (1985, p. 9) afirma que a maternidade ainda hoje é um tema sagrado e que, por essa razão, “continua sendo difícil questionar o amor materno, já que a mãe permanece em nossas representações – identificada a Maria, símbolo do indefectível amor oblativo”. Tomando como referência essas observações, é possível pensar nas relações que ainda são estabelecidas entre maternagem e docência na Educação Infantil, assim como nos efeitos desse processo na invenção, na circulação e na manutenção de mandatos pedagógicos afetivos. Ser mãe foi o único critério utilizado para a aceitação da estagiária em uma turma de berçário, conforme consta no excerto. É consenso que o trabalho com as crianças que se encontram na Educação Infantil (e também com as demais) envolve afeto, cuidado e educação (quanto aos aspectos relacionais de escuta, diálogo, atenção, respeito e acolhida); todavia, ser mãe não pode ser considerado critério indefectível para a definição da turma de uma estagiária, já que a maternagem, aliada ao 241 propósito educativo, pode ser realizada independentemente de o profissional ser homem ou mulher, ter ou não filhos. O que é necessário é que essa pessoa esteja disposta a atender às demandas referentes à faixa etária das crianças com quem atua, tendo conhecimento teórico e empatia com o trabalho que realiza. A diferença fundamental é que a maternagem exercida por um profissional de Educação Infantil deve estar associada a um projeto educativo que lhe possibilite refletir sobre as práticas por ele exercidas, tendo em vista a produção de sua própria docência – sem se rotular com etiquetas de feminilidade, afetuosidade, calma, paciência, subserviência, entre outros tantos vocábulos usados de modo excessivo nos discursos escolares. O campo da docência com crianças pequenas é profundamente atravessado pela generificação dos afetos e muitas vezes assumido pelas próprias professoras como um trabalho exclusivamente feminino. Conforme refere Carvalho (1999, p. 215), no momento em que “um homem ou uma mulher decidem ser professores, devem lidar de alguma forma com o fato de que a docência junto a crianças foi historicamente associada a um modelo de feminilidade”, devido ao seu caráter relacional e por evocar as relações de cuidado no interior da família. Tais discussões têm a intenção de destacar que a vinculação entre maternagem e docência, por seu caráter cultural e simbólico, vem historicamente produzindo uma concepção naturalizada da relação entre mulher e afetividade que incide diretamente no modo como o docente se reconhece (e é reconhecido) e se posiciona (e é posicionado) como profissional que ensina crianças na escola. É possível dizer que, na Educação Infantil, existe o estabelecimento de uma notável relação entre maternagem e docência. Especificamente no que concerne ao trabalho nesse nível de ensino, a relação entre maternagem e docência é ainda mais visível, devido ao grande número de mulheres atuando como professoras, funcionárias e gestoras das instituições, ao predomínio de modos femininos 242 de relacionamento entre elas e às práticas de cuidado realizadas cotidianamente, utilizando objetos relacionados ao contexto doméstico, que ajudam a confirmar a existência de um espaço no qual estão presentes ações socialmente reconhecidas como femininas e domésticas. A imagem modelar da professora naturalmente afetiva e materna ainda se encontra fortemente marcada pelo mito da maternidade – da mulher como sendo instintivamente carinhosa, paciente, dedicada, perspicaz, dinâmica e educadora nata –, cujo papel é associado diretamente ao trabalho doméstico de organização do lar, cuidado e educação das crianças pequenas. Em suma, conforme Arce (2001, p. 182), nota-se que essa situação vem se repetindo historicamente, porque, “a todo o momento, tem-se reforçado a imagem da professora de crianças como sendo uma educadora nata, passiva, paciente, amorosa, dedicada” e guiada, exclusivamente, pela ordem do coração, em detrimento de sua formação profissional. Ratificando tais colocações, a seguir serão apresentados excertos de relatórios analisados nos quais as acadêmicas se identificam e se descrevem enquanto signatárias do imperativo materno-afetivo. Eu sou uma professora paciente, amorosa, carinhosa, respeitosa, sempre pronta a parar tudo e escutar a fala de todos os meus alunos. Professora que encanta, que conta histórias, que faz caretas, que brinca. Professora que erra, mas assume seus erros e que, errando, também aprende. (Transcrição de excerto de relatório de estágio A02) Disposta, interessada, afetuosa, paciente, engajada, respeitosa, sonhadora, realista, ouvinte, falante, observadora, participante e atenta – assim me vejo como professora. (Transcrição de excerto de relatório de estágio A11) Pelas práticas que realizei em sala de aula, me vejo como uma professora que transmite afeto e emoção em todos os Rodrigo Saballa de CARVALHO. O imperativo do afeto na educação infantil: a ordem do discurso de pedagogas... seus atos, respeitando a singularidade dos sentimentos demonstrados pelas crianças na sala de aula. (Transcrição de excerto de relatório de estágio A25) Nos momentos em que estive até então atuando na Educação Infantil, sempre procurei ser afetuosa e conhecedora dos anseios e das necessidades das crianças. A partir do afeto e do conhecimento das necessidades delas, passei a atuar de forma coerente e respeitosa, buscando a valorização das contribuições de tudo que minha turma trazia para a sala de aula. (Transcrição de excerto de relatório de estágio A18) Relacionar a teoria com uma prática sempre é a minha meta; porém, valorizo muito as questões afetivas em sala de aula, principalmente na Educação Infantil. (Transcrição de excerto de relatório de estágio A03) Enquanto mudo diariamente, as crianças são as minhas principais interlocutoras, pois, com sensibilidade e flexibilidade, elas me possibilitam criar novas estratégias. Sou uma professora atenta, paciente e muito carinhosa com as crianças, pois o amor vem sempre em primeiro lugar na Educação Infantil. (Transcrição de excerto de relatório de estágio A23) A leitura possibilita destacar a presença de uma regularidade discursiva em que é evidente uma listagem de características materno-afetivas com as quais se identificam e se descrevem as acadêmicas enquanto futuras professoras. Ao se descreverem como professoras afetivas, as acadêmicas estão falando com base em um regime de verdade imerso em regras de formações discursivas historicamente construídas. Não são indivíduos autônomos que se descrevem como afetivos, mas indivíduos que assumem determinada posição na ordem do discurso e, nessa ordem, submetem-se a certas regras. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 231-246, jan./mar. 2014. Por sua vez, a tônica das regras decorrentes dos discursos em questão é a de que, para ensinar, é preciso conhecer e amar os alunos, respeitando as necessidades de todos. Abramowski (2010, p. 158) afirma que “os discursos da psicologia ditam aos que querem ser bons professores que eles devem estabelecer vínculos próximos e íntimos com seus alunos”, conhecendo-os como pessoas individuais, pois uma boa pedagogia será necessariamente relacional. Na medida em que, cotidianamente, tais discursos se tornam visíveis e enunciáveis, as características elencadas pelas acadêmicas passam a constituir-se em práticas bastante concretas, que operam efetivamente em sua normalização. As características da professora afetiva que foram apresentadas nos discursos como supostamente naturais, constitutivas e intrínsecas ao fazer profissional das acadêmicas são efeitos de aparatos discursivos e linguísticos que assim as constituíram. A acadêmica, futura professora afetiva, longe de se configurar como uma essência universal e atemporal, é aquilo que foi (e é) feito dela, já que sua descrição naturalizada coloca em segundo plano seu processo de fabricação. Em outras palavras, reconhecer-se e descrever-se como uma profissional afetiva implica cuidar do próprio eu, ajustar-se ao exterior, oferecer-se como um repertório de verdades que, ao serem aprendidas e progressivamente operacionalizadas, inventam uma professora com certo modo de ser e certa maneira visível de agir com as crianças que se encontram sob sua responsabilidade. Segundo essa lógica, tomando como referência os discursos analisados, depreende-se que o docente afetivo se reconhece e se descreve a partir de um vocabulário comum, marcado pelo afeto (no sentido de carinho) que sente em relação aos alunos. O vocabulário com o qual as acadêmicas se descrevem faz parte do processo de sua subjetivação e incide no que elas são e no que podem se tornar enquanto profissionais que exercem a docência com crianças. Por outro lado, é preciso esclarecer que esse processo, por ser microfísico, não ocorre com todas as acadêmicas do mesmo modo, pois é organizado 243 com base em práticas sociais constituídas em relações de desigualdade, de poder e de controle, sempre passíveis de resistência. Os discursos que referendam e prescrevem a formação da professora afetiva decorrentes dos estudos da psicologia das relações humanas e de suas adaptações por meio de livros de autoajuda para docentes, conforme aponta Burman (1998), têm encontrado cada vez mais repercussão e adesão de acadêmicos e professores que estão atuando nas escolas. Como pôde ser observado no decorrer das análises, os discursos afetivos são constituídos por um regime de verdade no qual se intensifica o argumento de que, para ensinar, é preciso amar os alunos e que, para amálos, é necessário desenvolver determinadas competências vinculadas diretamente ao campo emocional. Referendando tais assertivas, Abramowski (2010, p. 158) afirma que os professores por ela entrevistados destacaram “que atualmente um bom professor deve ter conhecimentos de psicologia, deve ser um profissional flexível, comunicativo, paciente, ouvinte, respeitoso, empático e tolerante com todos os seus alunos”. Em outras palavras, um bom profissional deve possuir competência emocional. Segundo Illouz (2011), a competência emocional, atualmente, é considerada moeda imprescindível para atuar nas instituições. A partir do desmantelamento das antigas regras institucionais, os profissionais devem apelar ao afeto para construírem vínculos que antes já vinham estruturados. Tomando como referência as observações da autora, o imperativo do afeto tem se transmutado contemporaneamente em competência emocional, que o trabalhador deve desenvolver por meio da condução de si mesmo a fim de ser considerado um indivíduo supostamente eficaz, produtivo e bem-sucedido. Considerações finais A rede de discursos que opera na produção da professora afetiva constitui um conjunto de práticas que indica as formas a partir das 244 quais as acadêmicas devem direcionar e moldar a conduta de si e dos outros, conforme pode ser acompanhado no excerto a seguir: Serei uma professora que abrirá muitas portas para que as crianças conheçam e descubram o mundo. Serei uma líder que compreenderá as crianças, que saberá ouvir e falar, que conhecerá seus alunos. Serei como a pastora de um rebanho de ovelhas, não para prendê-las ou limitálas, mas para orientá-las para que saiam, um dia, mundo afora e descubram seus próprios caminhos. Serei uma professora que saberá cuidar de forma afetiva e estimulante. Enfim, serei educadora e mestra. Terei mais que um emprego. Terei uma profissão que gratifica, apaixona, enlouquece, cansa, ensina, envolve e acima de tudo realiza. (Transcrição de excerto de relatório de estágio A14) Líder, pastora, educadora e mestra – enfim, uma professora modelar constituída pelos discursos afetivos. É preciso esclarecer, a partir de Foucault (2003), que não existe algo (ou alguém) que seja responsável pela produção e circulação dos discursos afetivos (ou de quaisquer outros), senão os próprios indivíduos, por meio dos ideais que elegem como verdades. Por essa razão, é profícuo que, desde a formação acadêmica, o imperativo do afeto possa ser desnaturalizado e que as futuras professoras percebam que os discursos afetivos por elas tomados como verdades indeléveis ao fazer docente não passam de construções datadas, de invenções, sendo passíveis de problematização. Por isso, é importante que as acadêmicas compreendam a possibilidade de problematização dos discursos que as constituem como profissionais que têm somente o afeto como recurso para o exercício docente, passando a identificar a rede discursiva (composta por configurações institucionais, relações de poder e lógicas disciplinares) propulsora do imperativo do afeto. Rodrigo Saballa de CARVALHO. O imperativo do afeto na educação infantil: a ordem do discurso de pedagogas... Obviamente que as provocações propostas não são simples. Por outro lado, se for assumida a perspectiva de que os discursos presentes nos relatórios analisados são produzidos a partir de uma rede discursiva, é possível desnaturalizá-los, repensá-los, reinventá-los, experimentando outras posições de sujeito, outros modos de agir e de pensar enquanto docente na Educação Infantil. Talvez assim se possa, como sugere Abramowski (2010, p. 168): sacudir os estereótipos emocionais, revisar os discursos que formam as maneiras docentes de amar, retirar os afetos da zona escondida e estritamente singular, para situá-los em um plano coletivo, social, cultural e histórico. Enfim, será possível perceber a docência na Educação Infantil para além da ordem dos discursos que prescrevem o imperativo do afeto. Referências ABRAMOWSKI, Ana. Maneras de querer: los afectos docentes en las relaciones pedagógicas. Buenos Aires: Paidós, 2010. ALVES, Nancy Nonato de Lima. “Amor à profissão, dedicação e o resto se aprende”: significados da docência em Educação Infantil na ambiguidade entre a vocação e a profissionalização. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 29., 2006, Caxambu. Anais eletrônicos... Rio de Janeiro: ANPEd, 2006. CD–ROM. ARCE, Alessandra. Documentação oficial e o mito da educadora nata na Educação Infantil. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 2, n. 113, p. 167-184, jul./dez. 2001. 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Formação de professores e saberes docentes: trajetória e preocupações de uma pesquisadora da docência – uma entrevista com Ruth Mercado Denise Trento Rebello de SouzaI Marli Lúcia Tonatto ZibettiII Resumo A entrevista concedida pela pesquisadora mexicana Ruth Mercado Maldonado em outubro de 2013 traz importantes contribuições para o campo educacional ao tratar de temas contemporâneos a partir da experiência profissional de uma investigadora de renome internacional. Docente e pesquisadora do Departamiento de Investigaciones Educativas del Centro de Investigación y de Estudios Avanzados del Instituto Politécnico Nacional (DIE-CINVESTAV), a Dra. Ruth Mercado mantém contato com pesquisadores brasileiros desde a década de 1980, debatendo temas envolvendo a etnografia e a formação de professores. A abordagem etnográfica, calcada na articulação entre trabalho empírico e conceitual, possibilita que a autora, a partir do pensamento de Agnes Heller, Mikhail Bakhtin e Lev Vigotsky, dentre outros, produza uma construção teórica própria acerca dos saberes docentes. Sua trajetória revela as concepções de uma pesquisadora que busca compreender a perspectiva do outro, distanciando-se dos olhares avaliativos e prescritivos comuns ao campo pedagógico. Na entrevista, a autora aborda, de modo instigante, questões atuais e relativas ao campo da formação inicial e continuada de professores: o processo de universitarização e suas implicações, o papel dos formadores, as relações entre cultura universitária e cultura escolar. Suas reflexões sobre a história da profissão docente no México e da criação de programas de mestrado profissional em diferentes países oferecem contribuições importantes para a comunidade educacional da América Latina. A leitura da entrevista envolve, assim, um convite à reflexão sobre os desafios que a universidade e seus profissionais enfrentam na construção de propostas de formação docente adequadas às necessidades, demandas e características próprias daqueles que atuam na educação básica. Palavras-chave I- Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Contato: [email protected] II- Universidade Federal de Rondônia, Porto Velho, RO, Brasil. Contato: [email protected] Etnografia — Formação docente — Saberes docentes — Universitarização — DIE-CINVESTAV. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 247-267, jan./mar. 2014. 247 Teacher education and teachers knowledges: trajectory and concerns of a researcher in teaching - an interview with Ruth Mercado Denise Trento Rebello de SouzaI Marli Lúcia Tonatto ZibettiII Abstract The text derives from an interview with Mexican researcher Ruth Mercado Maldonado conducted in October 2013, and brings significant contributions to the educational field by dealing with contemporary themes in the light of the professional experience of an internationally renowned scholar. A professor and researcher at the Departamento de Investigaciones Educativas del Centro de Investigación y de Estudios Avanzados del Instituto Politécnico Nacional (DIE-CINVESTAV), Dr Ruth Mercado has been in contact with Brazilian researchers since the 1980s, discussing with them themes involving ethnography and teacher education. The ethnographic approach, based on the articulation between empirical and conceptual works, allows her, drawing from the thinking of Agnes Heller, Mikhail Bakhtin, and Lev Vygotsky, among others, to produce her own theoretical construct about teachers knowledges, seen by her as part of a historical process, thereby revealing the conceptions of a researcher that seeks to understand the perspective of the other, and to distance herself from judgmental and prescriptive outlooks so common in the pedagogical field. In this interview Dr Ruth Mercado stimulates us to reflect about current issues in the field of initial and continued teacher education: the universitization process and its implications, the role of instructors, the relations between university culture and school culture. Her reflections about the history of the teaching profession in Mexico and of the creation of professional master programs in different countries offer important contributions to the educational community in Latin America. The reading of this interview amounts therefore to an invitation to the reflection about the challenges that the university and its professionals face in the construction of teacher education proposals that are adequate to the needs, demands and characteristics specific to those that work in basic education. I- Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brazil. Contact: [email protected] II- Universidade Federal de Rondônia, Porto Velho, RO, Brazil. Contact: [email protected] 248 Keywords Ethnography — Teacher education — Teachers knowledges — Universitization — DIE/CINVESTAV. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 247-267, jan./mar. 2014. Apresentação A Profa. Ruth Mercado Maldonado é pesquisadora do Departamiento de Investigaciones Educativas do Centro de Investigación y de Estudios Avanzados del Instituto Politécnico Nacional (DIE-CINVESTAV). Nesse departamento, internacionalmente reconhecido pela alta qualidade e pela grande influência na Fonte: Arquivos da autora. pesquisa educacional da América Latina, ela desenvolve investigações há mais de 25 anos. Também orienta projetos em nível de mestrado e doutorado sobre a docência e o ensino, principalmente em duas linhas de investigação: a) estudos socioculturais sobre a docência cotidiana; b) políticas e processos de formação inicial e continuada de docentes. Profissional envolvida com a educação básica e a formação de professores no México, ela participa tanto de processos de investigação, quanto do desenvolvimento curricular e da produção de materiais pedagógicos. Dentre suas atuações, destaca-se a coordenação, em conjunto com a Profa. Eva Taboada, de projeto para avaliação de desempenho e desenvolvimento docente dos cursos comunitários do CONAFE (Consejo Nacional de Fomento Educativo). Sua expertise lhe rendeu ainda um convite para colaborar como consultora junto à UNESCO. O nome de Ruth Mercado está vinculado ao DIE e à sua perspectiva de conceber e realizar a etnografia educacional.1 A abordagem etnográfica desenvolvida pelos pesquisadores desse singular departamento do CINVESTAV desperta interesse da comunidade brasileira já nos anos 1980, quando a pesquisa sobre a escola passa por momentos descritos por um segmento da comunidade acadêmica 1 - Ver ROCKWELL, 2009. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 247-267, jan./mar. 2014. latino-americana como sendo de crise teóricometodológica.2 Nos anos subsequentes, iniciase um intercâmbio profícuo entre pesquisadoras do DIE e universidades brasileiras – entre elas, a Universidade de São Paulo.3 Durante esse período, a Profa. Ruth Mercado esteve no Brasil a convite da Faculdade de Educação e do Instituto de Psicologia em duas ocasiões, em 1990 e em 2010. Em sua última estada, ela ministrou cursos e desenvolveu trabalhos junto a quatro universidades brasileiras, em diferentes regiões do país.4 Em 2013, ela volta ao Brasil na condição de professora visitante da Universidade Federal de Santa Catarina.5 É nessa ocasião que nos recebe em Florianópolis para uma entrevista que se estende por quase quatro horas. Ali partilha conosco um pouco de sua trajetória e dos conhecimentos desenvolvidos como pesquisadora do ensino para quem a docência assume lugar central. Essa marca em seu modo de relacionarse com a pesquisa e o ensino tem forte relação com sua história de formação e atuação profissional. Como ela mesma relata durante a entrevista, existiram momentos-chave. Um deles relaciona-se a um grande projeto de investigação etnográfica realizado na década de 1980, por cinco anos, junto a escolas mexicanas, denominado O contexto social e institucional da escola básica (ROCKWELL, 1980). Tal projeto deu origem aos seus trabalhos de mestrado e doutorado, o que também ocorreu com várias de suas colegas do DIE. Partícipe de uma das formas por ela consideradas como das mais potentes de fazer etnografia educacional – aquela em que grupos de investigadores partilham todo o processo –, 2- Ver PATTO, 1990; AZANHA, 1990/1991; ROCKWELL, 1987; EZPELETA; ROCKWELL, 1986; SOUZA, 2006; BUENO, 2007; BUENO; SOUZA, 2011. 3- Em 1990, no âmbito de um dos primeiros programas de cooperação internacional (USP-BIRD) mais recentes, docentes da Faculdade de Educação da USP realizaram estágio junto ao DIE-CINVESTAV, dando início ao intercâmbio entre as duas instituições. 4- A Profa. Ruth Mercado esteve no país a convite do LIEPPE (Laboratório Interinstitucional de Estudos e Pesquisas em Psicologia Escolar), do Instituto de Psicologia, e da Faculdade de Educação, com recursos do CNPq. 5- Agradecemos à Profa. Dra. Luciane Maria Schlindwein o empenho em trazer a Profa. Ruth Mercado ao Brasil para mais esse período de intercâmbio profissional. 249 Ruth Mercado desponta como pesquisadora no campo da formação de professores, contribuindo para a construção do conceito de saberes docentes (MERCADO, 2002), a partir de sua participação nesse longo projeto de investigação que, entre outros materiais empíricos, resultou em rico arquivo de observações de sala de aula. É justamente a abordagem etnográfica, calcada na articulação entre trabalho empírico e conceitual, que possibilita a essa autora uma construção teórica própria acerca dos saberes docentes e que a distingue de outros pesquisadores da área. Apoiando-se no pensamento de Agnes Heller, Mikhail Bakhtin e Lev Vigotsky, entre outros, ela concebe a construção dos saberes docentes como parte de um processo histórico. Em minha visão, as decisões dos professores e suas estratégias de sobrevivência são parte dos saberes docentes, e a construção destes não implica apenas processos cognitivos ou ações individuais, mas faz parte do processo histórico local da relação cotidiana entre professores e crianças. Nessa história, os professores constroem um conhecimento particular sobre o ensino que articula abordagens provenientes de distintos momentos históricos e espaços sociais. Nesse processo, os professores também elaboram conhecimentos sobre seus alunos, reelaboram suas crenças pedagógicas e suas avaliações acerca dos conteúdos e das formas de ensinar, entre outras coisas. (MERCADO, 2002, p. 19, tradução nossa) Para a compreensão desse processo de constituição dos saberes, Ruth fundamenta-se no conceito de vida cotidiana, conforme concebido por Agnes Heller (1987): momento do movimento social em que ocorrem as apropriações dos saberes sociais presentes na vida diária. De Bakhtin (1997), a autora se vale do conceito de dialogia, o qual pressupõe o papel do outro na constituição do sentido dos discursos, pois entende que as palavras 250 enunciadas trazem em si a perspectiva de outras vozes. Nessa direção, a entrevistada defende que é no trabalho cotidiano dos professores que ocorre o processo coletivo de apropriação de saberes, tendo este processo várias dimensões: a história social da docência, a história pessoal de cada professor, o diálogo entre os docentes, destes com seus alunos e com outros sujeitos com os quais convivem. Em tal perspectiva, os saberes docentes são considerados pela autora como “pluriculturais, históricos e socialmente construídos” (MERCADO, 2002, p. 36). Em Vigotsky (1977, 1979), Ruth Mercado encontra apoio teórico para fundamentar as relações entre pensamento, linguagem e mundo social. Assim, o conceito de saberes docentes por ela proposto revela as concepções de uma pesquisadora que busca compreender, por meio dessa abordagem com viés antropológico, a perspectiva do outro, distanciando-se dos olhares avaliativos e prescritivos comuns no campo pedagógico. Seu conhecimento acumulado ao longo dos anos em que coordenou e participou de numerosos projetos de pesquisa sobre a formação docente no México, bem como de outros em que contribuiu para o desenvolvimento de materiais destinados a escolas primárias, secundárias, normais e pós-graduações, qualifica a interlocução dessa pesquisadora. Na entrevista, Ruth aborda de modo instigante diversas questões bastante atuais e recorrentes relativas ao campo da formação inicial e continuada de professores: o processo de universitarização e as implicações daí decorrentes, tais como as relações entre formação teórica e formação prática; o papel dos formadores; as relações entre cultura universitária e cultura escolar. Ela também relata elementos importantes da história da profissão docente no México no caminho de sua profissionalização. Ainda nesse âmbito, a entrevistada nos convida a refletir sobre os desafios que a universidade e nós, acadêmicos, teremos que enfrentar na construção de Denise Trento Rebello de SOUZA; Marli Lúcia Tonatto ZIBETTI. Formação de professores e saberes docentes:... propostas de desenvolvimento profissional docente adequadas às necessidades, demandas e características desse segmento da comunidade educacional – professores da escola básica – que, apesar de alvo de nossa atenção há tempos, ainda permanece em parte desconhecido. Sobre o mestrado profissional, a autora destaca sua importância no campo da formação dos professores da educação básica, bem como a necessidade de construção de um projeto específico com foco na formação dos profissionais do ensino que se diferencie dos mestrados acadêmicos, estes últimos voltados para a formação de pesquisadores. A escrita nos processos formativos também é tema abordado pela entrevistada, num diálogo em que fica evidente o olhar sensível, próprio dos pesquisadores que dedicaram anos observando e acompanhando atentamente o cotidiano escolar e as transformações da profissão docente. Assim ela vai apresentando suas ideias sobre a produção escrita para professores e sobre as propostas de escrita utilizadas nos processos formativos. Confiamos que a publicação desta entrevista poderá fomentar debates, sempre bem-vindos, especialmente porque o país passa por modificações substanciais nas políticas de formação de professores, com a implementação de vários programas de formação inicial e continuada que indicam, inclusive, a constituição de novos modelos de formação docente (BUENO; SOUZA, 2012). Referências AZANHA, José Mário Pires. A cultura escolar brasileira: um programa de pesquisas. Revista da USP, São Paulo, n. 8, p. 65-9, 1990/1991. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BUENO, Belmira Oliveira. Entre a antropologia e a história: uma perspectiva para a etnografia educacional. Perspectiva, Florianópolis, v. 25, n. 2, p. 471-501, jul./dez. 2007. BUENO, Belmira Oliveira; SOUZA, Denise Trento R. de. 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É sempre um prazer poder compartilhar ideias com você, Ruth.6 Gostaríamos que começasse comentando sobre sua trajetória profissional e seu encontro com as questões e os temas a que tem se dedicado ao longo de sua vida profissional: a pesquisa em sala de aula, os saberes docentes e a perspectiva etnográfica como abordagem para entender os processos e as práticas que constituem a escola. É uma longa história, muito longa mesmo. Porque já faz algum tempo que eu passei por esses inícios. Acredito que não seja possível contar toda a história dessa trajetória, mas alguns momentos-chave que determinaram, talvez, esse caminho. Olhando para trás, escutando sua pergunta, acho que sempre estive muito próxima dessa inquietação de saber o que se passava na escola. Inicialmente estudei para ser professora de ensino básico. O pouco tempo em que, por questões pessoais, trabalhei como professora nesse nível de ensino permitiu-me identificar certas questões que me preocupavam, como as crianças que não conseguiam avançar na escola. Foi por pouco tempo, um ano e meio talvez. Eu era muito jovem e me perguntava sobre o que a escola poderia fazer a esse respeito. Talvez eu não me perguntasse com essas palavras, porque pensar na escola como instituição ou abstração não era ainda uma construção. Fiquei com essas perguntas e me envolvi com o campo da educação, apesar de não ter sido minha iniciativa o ingresso na carreira docente. Essa foi uma decisão tomada pelo meu pai. Sua mãe tinha sido professora entre o final do século XIX e o começo do século XX, quando estudar para ser professora era algo raro e chegava-se a ser professor por meio da prática. Minha avó estudou em uma das primeiras Escolas Normais do México, e eu não sabia disso naquela época. 6- O trabalho de transcrição e tradução da entrevista foi realizado por Edilson da Silva Cruz e Camila de Lima Gervaz. 252 Como primeira filha, meu pai decidiu que eu seria professora. Mas eu não queria isso e fui para a Escola Normal sem o mínimo desejo de ser professora. Queria ser médica. Pensei: faço esse curso e depois estudo o que quero. Quando terminei meus estudos e me tornei professora, interessei-me pelas crianças que ficavam para trás, que a escola não conseguia manter. Decidi estudar educação especial, que nesse tempo apenas começava a ser entendida como um campo próprio da educação. Permaneci por pouco tempo nessa área, pois eu continuava me fazendo uma série de perguntas às quais não conseguia responder. Também por razões pessoais fui trabalhar em um Estado próximo à Cidade do México, como consultora junto a um departamento de planejamento educacional, que era o que tínhamos de mais moderno. Nesse departamento, as principais funções que desenvolvi foram de assessoria e formação de professores da educação básica. Trabalhávamos diretamente na Secretaria Estadual de Educação, identificando problemas em todos os níveis escolares e elaborando programas e materiais para dar apoio aos professores. Estive muito próxima dos professores de diferentes regiões, desde áreas rurais, indígenas, até as cidades mais importantes do Estado do México. Aprendi muito com essa diversidade e, mais do que isso, essa foi minha escola. Estive, por vários anos, responsável pela educação especial do Estado, inclusive dirigindo uma escola especial por dois anos. Tínhamos professoras de educação especial, atendíamos surdos, crianças com déficit mental, tínhamos também crianças que eram consideradas “com problemas de aprendizado” – entre aspas, porque não sabíamos o que tinham, mas estavam fora da escola e precisavam de um atendimento especial. Essa foi outra grande escola para mim: trabalhar com pais de crianças especiais. Aprendi muito com as mães. A energia que elas têm, a força, a capacidade... Dessa experiência também ficou o aprendizado de um trabalho conjunto, em equipe, com professores especializados em linguagem e ensino de crianças com déficit, Denise Trento Rebello de SOUZA; Marli Lúcia Tonatto ZIBETTI. Formação de professores e saberes docentes:... médicos, psicólogos e enfermeiros. Foi necessário criar estratégias para atender as necessidades dessas crianças. Consegui também trabalhar com professoras de educação básica – e isso nos anos 1970, ou seja, quando não existiam ainda esses planos de inclusão. E consegui também atuar com professoras de ensino fundamental, não por meio de uma política imposta a elas, mas com visitas às escolas, perguntando quais poderiam aproximar o aluno surdo de um grupo regular. E houve professoras que aceitavam, faziam seu programa e combinavam um tempo conosco depois de sua aula regular. De onde vieram essas ideias de um tempo na escola regular e um tempo na escola especial? Já havia algumas ideias no campo da educação especial, mas não havia programas, nem políticas educativas definidas como tais. Eu sabia porque havia estudado, e as professoras de educação especial sabiam que isso podia ampliar as possibilidades educacionais das crianças. Mas o sistema de educação pública não se interessava por isso e quando eu perguntava o que poderiam fazer para levar adiante essas ideias, via-me sozinha. Em síntese, essas experiências me levaram a questionar sobre o que é possível fazer em meio ao abandono das autoridades educativas. Decidi que deveria estudar mais. Os casos que chegavam até nós como problemas de aprendizagem não eram de fato problemas de aprendizagem. Eram problemas decorrentes da pobreza e do abandono social em que as famílias se encontravam. Então, minhas perguntas começaram a se tornar mais elaboradas e mais amplas. E onde você procurou responder a essas perguntas? Nessa época, conheci o Departamiento de Investigaciones Educativas (DIE). Cada vez tenho mais certeza de que tomamos algumas decisões em razão de circunstâncias de vida, mas nem tudo é planejado em nossa trajetória Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 247-267, jan./mar. 2014. profissional. Há alguns momentos-chave que se apresentam em sua vida e que conduzem a um caminho que talvez você não estivesse procurando. E foram muitas as coincidências. Depois que deixei a direção da escola especial, continuei no departamento de planejamento e comecei a trabalhar junto às salas de aula, com a ideia de saber mais de onde vem a possibilidade de um professor se abrir a experiências difíceis e desafiadoras, como aceitar um aluno surdo em sua classe. Tal interesse me levou a elaborar um projeto que se propunha, além de assessorar, conhecer mais sobre esses professores. Isso porque eu me perguntava: como vamos assessorar os professores se nunca estivemos com eles? Então comecei a ir às salas de aula, ainda de uma maneira improvisada, pois eu não tinha a menor ideia do que fazer com aquilo. E aí vocês começaram a ir às escolas observar as professoras... Vocês, não. Apenas eu fazia isso, porque meus colegas de departamento estavam fazendo mestrado ou algo assim. Meus colegas não tinham essas preocupações, tinham outras, mais relacionadas à psicologia, como elaborar instrumentos para a ficha biopsicossocial. Também comecei fazendo isso e depois parei. Esse foi outro projeto. Minhas colegas perguntavam: “Para que vamos até as escolas? Por que vamos falar com os professores se nós já sabemos o que os professores falam?”. “Não acho que sabemos” – eu dizia. Fui sozinha e decidi, naquele momento, que iria estudar. Eu tinha colegas que estavam fazendo mestrado no DIE e, a partir das conversas com eles, pensei que gostaria de estudar em um lugar assim. Isso se tornou possível quando alguns professores do departamento convidaramme para trabalhar lá pela minha experiência em educação, o que coincidiu com minha mudança de residência, por motivos pessoais, para a Cidade do México. Iniciei meu trabalho no DIE como assistente no momento em que elaboravam um manual para cursos comunitários, e foi nesse projeto que entrei. Tratava-se de um projeto 253 do CONAFE (Consejo Nacional de Fomento Educativo) de cursos comunitários que também incluía a elaboração de material pedagógico para jovens do ensino básico e crianças de escolas rurais, o que me interessava, pois envolvia as escolas e os professores. Depois disso, decidi fazer o mestrado. Então você começou o mestrado no próprio DIE? Sim. Fiz o mestrado e comecei um trabalho de pesquisa, propriamente dito, com minha colega Elsie Rockwell e depois com Justa Ezpeleta. Naquela época, quase ninguém tinha doutorado no DIE. As professoras tinham mestrado e muitos dos projetos que mais tarde se consolidaram como diferenciais do departamento ainda não haviam começado ou estavam apenas começando. E quem eram seus parceiros nesses anos iniciais do DIE? Éramos todos muito jovens. Meus colegas dessa época, os que estavam na turma do mestrado, eram universitários que haviam acabado de se formar. Eles não tinham muita experiência na área, enquanto eu vinha de um trabalho muito inserido na vivência educacional, já que, antes de ir para o DIE, eu tive uma experiência de trabalho junto aos pais, às famílias. Então o tema com que você se envolve com o tempo — os saberes docentes e a pesquisa na sala de aula — tem como origem sua própria inserção no campo da educação, certo? Claro! Tem essa origem, mas há um pressuposto de que nós nos interessamos pela sala de aula, pelos professores, pelo cotidiano docente, porque somos professores de formação. Contudo, acho que meu envolvimento tem a ver com a minha inserção na educação básica, não somente como professora, mas como alguém que teve a possibilidade de ter acesso a diferentes níveis e estratos da educação básica. 254 E quais foram as situações que a levaram ao encontro com a pesquisa, mais especificamente na perspectiva da etnografia? Não sei bem. Começou com Elsie Rockwell e outras colegas, como Grecia Gálvez e, em seguida, Ruth Paradise, ainda nos anos 1970. Logo que entrei no DIE, fiz com Elsie um estudo exploratório que deu lugar ao projeto denominado La práctica docente y su contexto institucional y social, que posteriormente desenvolvemos sob a coordenação por Elsie (ROCKWELL, 1980). Mais adiante tivemos a participação de Justa e a equipe se ampliou com o ingresso de outras pessoas. No título, não constava a expressão escolas rurais; havia subjacente ao projeto uma discussão sobre isso, se eram escolas rurais ou não, se iríamos utilizar essa categoria oficial e se isso era importante. Vimos que nem sempre se tratava de escolas rurais, mas sim de escolas de transição. Enquanto estávamos no local, observávamos que a escola mais rural estava sempre mudando, transformando-se em outra coisa, porque as comunidades iam se urbanizando e algumas ficavam no meio entre o rural e o urbano. Desse projeto saíram vários mestrados – inclusive o meu –, que depois deram lugar a pesquisas de doutorado. A descrição desse processo está em nosso livro La escuela, lugar del trabajo docente. (ROCKWELL; MERCADO, 1999) Nesse projeto já havia a discussão sobre os saberes? Não, esse tema decorre do meu doutorado. Meu mestrado abordou os processos de negociação sobre a gratuidade da escola. O primeiro aspecto que nós encontramos ao chegar nas escolas era sua parte física, constantemente mudando, de um mês para o outro. Sempre estavam construindo algo – uma parte do muro, um portão, uma sala de aula nova –, arrumando os banheiros que não funcionavam etc. E essa pesquisa sobre a negociação durou aproximadamente cinco anos. Fiquei com muito Denise Trento Rebello de SOUZA; Marli Lúcia Tonatto ZIBETTI. Formação de professores e saberes docentes:... material de sala de aula, e como minha pesquisa de mestrado já estava avançada noutra direção, eu o conservei. Era um material muito rico, em que desde a época do mestrado eu havia identificado coisas relativas ao ensino que me interessavam. Essas análises não me levaram diretamente ao conceito de saberes docentes, mas sim ao doutorado. Notei indícios de coisas que os professores faziam e que o senso comum dizia que eles não faziam. Quando comecei o doutorado, não falava ainda em saberes docentes, mas, depois que terminamos o projeto etnográfico, Elsie e eu publicamos esse livro que acabo de citar e que ficou muito conhecido. Nele, que foi editado pela primeira vez em 1986, incluímos em coautoria o capítulo La práctica docente y la formación de maestros, em que anunciávamos o tema dos saberes docentes (ROCKWELL; MERCADO, 1999). Essa questão da abordagem etnográfica nasce com mais força, então, nesse projeto maior que dá origem ao seu mestrado. Foi no bojo desses projetos que a perspectiva etnográfica ganhou corpo e se sistematizou no âmbito do DIE? Sim. Fomos uma equipe que conseguiu trabalhar muito coletivamente, e acho que a possibilidade de construir etnograficamente, nesse momento da história do departamento, permitiu tal coletividade. Éramos um grupo de cinco ou seis pessoas, e essa coletividade num trabalho etnográfico potencializa a força da etnografia, porque conseguimos partilhar entre nós todos os materiais, as leituras, as discussões e também as inquietações que o campo nos provocava. Há, por exemplo, toda a parte ética. Eu fiquei morando na casa de pessoas próximas às escolas e compartilhávamos a experiência entre a equipe: podíamos fazer debates e saber como cada um se sentia, assim como hoje fazemos com nossos orientandos. Acho que essa é uma boa forma de fazer etnografia. Acho que é a melhor. Quando encerramos esse projeto, eu me envolvi com o ensino que posteriormente associei à formação de professores, pois, nas descobertas sobre os saberes Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 247-267, jan./mar. 2014. docentes, encontrei forçosamente essa relação com a formação: à medida que se constroem saberes docentes no ensino, está se formando profissionalmente também. Hoje em dia, levando em consideração o tempo encurtado para o desenvolvimento da pósgraduação, você tem encontrado dificuldades na orientação de pesquisas etnográficas? É possível ainda manter essa perspectiva? É possível, mas cada vez menos. É preciso encontrar estudantes que tenham certas características e condições de vida. Por exemplo, meus alunos que são solteiros têm mais tempo, mais independência. Outra coisa: há certas características de personalidade e de formação que permitem um contato mais rápido com outras pessoas. E isso não se sabe de antemão quando se aceita um estudante. Mas eu insisto que não é preciso ser etnográfico em todos os aspectos, e sim ter a possibilidade de um olhar etnográfico. O olhar etnográfico é essa possibilidade de não julgar, não avaliar. No fim das contas, essa é a parte mais difícil, pois o modelo que predomina na perspectiva mais pedagógica atua como se mantivesse os olhos vendados e não fosse além de uma preocupação mais normativa. Se você consegue sair isso e elaborar uma pesquisa com uma perspectiva etnográfica, com rigor conceitual e empírico, o trabalho é feito. A cada dia isso se torna mais difícil, eu concordo, e não só para os estudantes, mas para os pesquisadores também. Gostaríamos que você comentasse sobre um movimento que tem acontecido aqui no Brasil a partir da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996, que prescreveu a formação em nível superior a todos os professores do país, estipulando um prazo de dez anos para isso. Tal processo tem sido conhecido como universitarização e consiste na elevação da formação do professor para o nível superior. Sabemos que no México essa exigência já ocorre há mais tempo. 255 Sim, eu acho que em muitos países esses movimentos estão presentes na formação dos profissionais da educação. Sempre houve a necessidade de atualizar, de profissionalizar, porque a profissão docente começou, no México e em outros países, com pessoas que não eram qualificadas em nível superior. No México, foi uma profissionalização que começou muito cedo na história da educação, desde quando se tem formação inicial em nível médio. Não era uma formação universitária, mas já era profissional, pois eram as Escolas Normais que formavam os professores desde o século XIX. Lá iniciaram essa formação sistematizada com currículo,7 com validação oficial de nível médio-superior. Depois houve a necessidade de universitarizar. Muitos professores exerceram a profissão sem terem cursado a Escola Normal. As Normais existiam antes da Revolução Mexicana, mas com ela houve a necessidade do Estado de promover a educação e certas ideias sobre o mexicano, o nacional, além de universalizar os conteúdos da educação e levar às comunidades a palavra escrita e a leitura. Foram inúmeros os professores que exerceram a docência sem terem estudado nas Escolas Normais. Criouse então um sistema de atualização para professores, que se profissionalizavam durante os feriados, as férias e os finais de semana em um grande instituto, o Instituto Federal de Capacitação do Magistério. Esse instituto teve muito peso na formação de professores e veio a constituir uma tradição de formação docente muito forte no México. Depois da Revolução, houve também um movimento, originado na Secretaria da Educação Pública, que levava às escolas contribuições para os professores que não tinham formação. Eram as chamadas missões culturais, ocorridas nos anos 1930 e 1940. Eram grupos que iam às escolas com pessoal especializado em diferentes áreas, tais como a pedagogia, a didática, o cultivo das hortas escolares e o trabalho com as comunidades, não somente com as crianças 7- Os termos plano de estudo e currículo são usados como sinônimos. 256 na escola, mas também com os jovens e com os adultos. Essas missões constituíram o que poderíamos definir como as primeiras formas de atualização ou capacitação de professores, mas levadas às escolas, por todo o país. Isso durou muito tempo, e inclusive me parece que algumas ainda funcionam em alguns estados. Havia a possibilidade, que nesse momento coincidia com uma disposição política, de se estar bem próximo às escolas e apoiar o trabalho que ali se realizava. Esse foi então outro ramo que me parece ter auxiliado na construção do patrimônio histórico-cultural da formação dos professores no México. Depois, esse instituto ao qual me referi, que profissionalizava em aulas normais, nas férias e nos feriados, cresceu muito, pois havia muitos professores nessa situação. Ele atuou por várias gerações e as Normais continuaram crescendo. Chegou um momento em que as Normais já formavam os novos professores e não havia mais a necessidade de profissionalizar, embora ainda houvesse uma grande quantidade de professores sem formação em nível superior. Por isso, algum tempo depois se constituiu a Universidade Pedagógica, que representava a aspiração de grandes setores do magistério de ter um espaço universitário próprio de profissionalização. Esse era também um projeto do sindicato de professores, que historicamente tem, no México, vínculos fortes com o Estado, sendo um dos sindicatos em que o Estado se apoiava para promover e introduzir suas políticas educativas em todo o país. Assim, a Universidade Pedagógica Nacional foi um projeto em que convergiram diferentes interesses. Há uma sede central na Cidade do México, além de unidades em diferentes estados do país. Depois, entre os anos 1980 e 1990, com a federalização que se denominou descentralização educativa, o Estado mexicano delegou aos estados a responsabilidade pelas instituições; agora, são os estados que fazem a gestão da educação nos diferentes níveis e propõem programas, mas com recursos do governo central. As Universidades Pedagógicas ficam, assim, a cargo dos estados e já não Denise Trento Rebello de SOUZA; Marli Lúcia Tonatto ZIBETTI. Formação de professores e saberes docentes:... mais do governo central, embora a unidade central da Universidade Pedagógica continue estabelecendo as normas acadêmicas, ou pelo menos as mais fundamentais. Esse processo de descentralização, muito estudado no México, não foi homogêneo, nem sequer semelhante entre os estados. Em 1984, houve uma reforma nas Normais, que passaram a ser instituições de ensino superior, embora não tenham se transformado em universidades. As Normais Superiores são as que formam os professores de ensino médio – ou de secundária, como chamamos no México. Esses professores são aqueles especializados em disciplinas, como biologia e matemática. No México, as Escolas Normais oferecem licenciaturas em educação primária, educação pré-escolar, educação especial, educação física e outras áreas. As Normais Superiores são responsáveis pelas licenciaturas para os professores da escola secundária (ensino médio) nas diversas disciplinas. Todas têm o nível de educação superior e aqueles que nelas ingressam passam por um bachilerato, que, para nós, é a educação média superior, depois da secundária. Quanto tempo leva essa formação? Acredito que são dois ou três anos de preparatória e depois quatro ou cinco de nível superior; no caso da formação de professores, são quatro anos. Os que concluem as Escolas Normais recebem o título de professor licenciado em pré-escolar, educação primária ou educação especial, entre outras, conforme expliquei. Hoje, a maioria dos professores tem o nível superior, pois a Universidade Pedagógica profissionalizou nesse nível todos os que já atuavam, enquanto os novos professores ingressavam nas Escolas Normais. E isso aconteceu em que época? Anos 1980? Sim, porque em 1984 a Normal se transformou, passando sua formação para quatro anos. Por algum tempo, a formação Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 247-267, jan./mar. 2014. de professores era feita apenas pelas escolas públicas e ninguém mais podia fazê-lo, pois se tratava de uma profissão de Estado. Há um historiador muito bom no México que se dedicou à história da educação (ARNAUT, 1996). Esse autor, ao descrever os processos de mudança na formação de professores, analisa o modo como, em algum momento, dentro da política educativa e de governo, as universidades obtiveram sua autonomia. No debate travado entre as comunidades universitárias e o Estado mexicano, as universidades conseguiram autonomia, o que foi questionado por alguns governantes, já que as Normais não eram autônomas. Arnaut escreve que as universidades podiam ser autônomas, mas a formação de professores não, pois nas mãos destes está a educação pública, que é de responsabilidade estatal. Por esse motivo a formação dos professores não poderia ser autônoma, devendo estar ao encargo do Estado. Tal ideia diz muito sobre como era importante, naquela época, conservar o caráter público e estatal da educação. Hoje existem Normais privadas, mas isso começou há pouco tempo e agora essa modalidade de formação está aberta ao mercado. Ela é um mercado, como vocês dizem.8 Temos muitos professores egressos das Normais particulares, as quais, supõem-se, devem ater-se aos planos de estudo oficiais. Retomando um pouco a história, a ampliação da Universidade Pedagógica nos anos 1980 garantiu acesso ao ensino superior à maioria dos professores em exercício. Depois dos anos 1990, ela começou a ser reduzida e sua função passou a ser, principalmente, a de oferecer pós-graduação. Abriram-se alternativas de formação de professores não apenas no ensino fundamental, básico e pré-escolar, mas também em questões interculturais, relacionadas à tecnologia e a outros temas emergentes. A interculturalidade passou a ser um tema, muito embora a questão da educação indígena seja algo presente há bastante tempo no México. 8- A entrevistada refere-se a uma pesquisa desenvolvida no âmbito de um Projeto Temático da FAPESP (SOUZA; SARTI, 2008). 257 Então, o que a Universidade Pedagógica fez foi dar abertura à formação de professores em diversas áreas que foram emergindo, inclusive em temas que parecem não ter relação direta com a educação. Os cursos de pós-graduação são uma questão à parte. Essa é uma discussão que agora se tem também no Brasil: a do mestrado profissional. Sim. Afinal, que alternativas tinham os professores de cursar a pós-graduação? Foram criadas pós-graduações mais acessíveis, mais flexíveis, pois os cursos de mais exigentes não tinham a possibilidade de receber os professores. Mas imaginamos que no México também seja como aqui. A pós-graduação é um programa que, a princípio, visa à formação do pesquisador e do docente no ensino superior, o que não é o caso dos professores da escola básica. Alguns argumentam que a pós-graduação poderia ser mais adequada às necessidades do professor que não tem o objetivo de ser pesquisador ou professor do ensino superior, mas sim busca um processo de formação, de desenvolvimento profissional. Claro, de desenvolvimento profissional dentro do seu campo de trabalho, que é o ensino. Muitos dizem: “quero continuar estudando, mas quero ser professor, e não pesquisador”. Porém, não há essa possibilidade, já que todos os cursos de pós-graduação visam à pesquisa. Quem desenha os cursos de pós-graduação quer formar pesquisadores. Eu assessorei um plano de estudos para um mestrado voltado à profissionalização, junto a uma Escola Normal, mas acabaram fazendo algo voltado para a pesquisa. Pergunto a eles: “Por que tanta ênfase na pesquisa? Por que não um maior conhecimento, um aprofundamento de tudo o que nós já sabemos sobre a docência e o ensino?”. Eles me escutam, pois eu os estou assessorando, mas a tendência é focar na pesquisa-intervenção, na pesquisa etnográfica, e os professores se sentem 258 obrigados a fazer isso. Então, esses são planos de estudo que não são academicamente muito fortes, porque se vai trabalhar com professores que não têm tempo para estudar, apenas nos finais de semana. São planos de estudo aprovados pelo governo do Estado, que pensa: “Tudo bem, vamos ter um curso de pós-graduação”. Aprovar cursos é bom para o governo do Estado, mas, academicamente, não há especialistas que avaliem anteriormente esses programas de pós-graduação quanto à sua qualidade. Em sua opinião, as dificuldades em se construir um currículo de pós-graduação voltado à docência, ao aperfeiçoamento da docência, decorrem do quê? Nós, na universidade, temos esse saber já construído? Creio que isso decorre de múltiplos fatores. Há uma tensão na academia que se relaciona aos cursos de pós-graduação. As pós-graduações têm maior história nas áreas das ciências duras, que formam os cientistas. Na área da educação, o que se fez foi imitar esse paradigma de formação em pós-graduação, que deve sim, obviamente, formar cientistas e estudiosos da educação, mas que, nesse caso, por ser uma profissão que demanda atualização, como todas, não termina com a formação inicial. Só que outros profissionais têm espaços para continuar se formando academicamente, sem necessariamente se transformarem em cientistas. Na área da profissão docente, há no mínimo dois pressupostos: um deles é de que os cursos de pós-graduação são para formar cientistas, pesquisadores; o outro é o de que aquele que realiza a docência não precisa saber tanto, pois já sabe o que tinha que saber. Trata-se de uma construção social de uma visão sobre o ensino e sobre a docência como algo não tão difícil: “Por que você entraria em um curso de pós-graduação para saber mais da docência? Você já estudou pedagogia, você estudou sociologia da educação!”. Teria isso a ver com a ideia de que se aprende pela experiência, de que essa aproximação Denise Trento Rebello de SOUZA; Marli Lúcia Tonatto ZIBETTI. Formação de professores e saberes docentes:... com a experiência forma e de que não é preciso saber muito? Pode ser, não sei... Afinal, menosprezase muito essa formação prática. Eu acredito que tem mais a ver com uma ideia da docência como algo simples. Ou seja, um médico precisa continuar se atualizando porque a medicina é associada a conhecimentos muito complexos e em constante desenvolvimento; um engenheiro civil precisa continuar sabendo sobre a produção dos novos materiais, de novos desenhos. Todas essas profissões são tidas como complexas para justificar que sejam criados cursos de pósgraduação que não estejam voltados para a produção científica. Os médicos, por exemplo, vão a congressos e não têm que ser cientistas. São profissionais. Profissionais da medicina que não necessariamente fazem pesquisa. São profissionais que têm desafios de resolução cotidiana. Mas o que o profissional da educação, da docência, tem que saber mais? Será que se produzem novos conhecimentos sobre a docência? Essas concepções me parecem muito complicadas, pois são construções históricas e quase não nos é possível imaginar um curso de pós-graduação em educação que tenha conteúdos, produtos de pesquisas, mas que permita ao profissional da docência saber mais sobre a própria docência. Acredito que essa é uma das razões. A outra, à qual você se referiu, é que nós não sabemos bem como fazer. Nós pretendemos conduzir o professor por determinado caminho, definindo conteúdos que ele deve aprender, pois achamos que esses são os mais importantes. E não há um consenso acadêmico quanto ao que seria a formação de um bom professor. Alguns argumentam que é necessário mais didática; outros, maior densidade teórica. Para mim, há outras coisas importantes na formação do professor, como a produção de conhecimento sobre a escola cotidiana, sobre o ensino cotidiano, sobre a Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 247-267, jan./mar. 2014. conformação histórica da profissão docente. Há várias coisas que podem ajudar o professor a simplesmente saber mais, a ampliar seu conhecimento sobre a docência, sobre a escola e os processos de escolarização. Muita coisa está sendo produzida o tempo todo na pesquisa, mas embora isso circule entre nós, não sabemos como traduzir aos professores. Pretendemos levar as teorias e os produtos da pesquisa tal qual eles são elaborados na academia. Depois dizemos: “Não compreendem, não leem!”. Sua fala se aproxima do que afirma AnneMarie Chartier (2007) sobre como os textos e os discursos circulam de modo diverso na academia e na escola. Totalmente. Inclusive escrevi um livro em coautoria com uma colega que foi publicado recentemente: Saber enseñar, un trabajo de maestros (MERCADO; LUNA, 2013). Foi um trabalho árduo, pois não se trata de uma produção para a academia; vem daí, mas tem outra linguagem, outra forma de falar com o professor. Esse é um tema sobre o qual gostaríamos de conversar. Como escrever para os professores? Digo a vocês que isso é um ofício que precisamos aprender, que não nos é dado pela pesquisa. Não se aprende a escrever para o professor por ser pesquisador. Acredito que é justamente o contrário: por sermos pesquisadores, desenvolvemos características que podem nos afastar da possibilidade de escrever para o professor. A pesquisa alimenta, dá a possibilidade escrever algo, mas não nos forma para fazê-lo. Há inúmeros exemplos. O DIE nasceu produzindo livros de texto para a escola. O diretor, um biólogo, não era a pessoa mais indicada para fazê-lo, pois sabia sobre biologia, mas não sobre como falar com o professor. Não o sabia pois nunca esteve na escola, nunca foi falar com os alunos. Seu pensamento não foi formado para saber o que é ser um professor, o que é essa profissão, qual 259 é sua condição de trabalho. Então ele fala da perspectiva da biologia, apenas. A inovação no DIE foi que antropólogos, biólogos, físicos e, enfim, especialistas em disciplinas específicas tinham, de alguma maneira, proximidade com a escola e com os professores, ou algum interesse. Tinham uma postura avaliativa, mas também uma abertura intelectual que fez com que eles construíssem seus textos e os levassem às escolas, perguntando depois para o professor: “O que você achou?”. Daí começou o que denominamos etnografia, pois vinha de pesquisadores que se interessavam por saber o que pensavam os professores. O DIE nasceu com esta raiz: a partir dos livros nas escolas e do interesse por saber o que acontecia. Era um departamento que fazia livros, e não uma instituição de pesquisa, mas estavam ali pessoas que se interessavam em pesquisar. O departamento nasceu dessa forma e nós acumulamos muita experiência em elaborar materiais para professores e, posteriormente, para os cursos comunitários. Nessa experiência, aprendemos que os especialistas nas disciplinas não conseguiam elaborar livros de textos que os professores compreendessem e que dessem sentido ao seu trabalho, ou que os ajudassem a dar sentido. Então, os físicos, os biólogos e todos os demais, sempre que produziam seus livros sozinhos, não conseguiam fazer com que estes correspondessem ao que queriam transmitir. Escrever para os professores tem vários níveis; um deles é relacionado ao trabalho dos especialistas de cada disciplina, mas é preciso que haja também alguém da pesquisa educativa. Que conheça a escola... Que conheça a escola e que saiba escrever para os professores. Outra forma é a escrita que vocês estão pensando: para a formação dos professores, em si; para que o professor leia e estude, de forma coletiva. Essa é um pouco a função do livro que vocês escreveram. 260 Sim. Esse livro teve, no fundo, a mesma dificuldade: como escrever para um professor? De que modo escrever sem pretender dizer como fazer; sem pretender dizer ao outro “você não sabe, eu sei”? Não se trata de um manual. O manual é algo que diz como se deve fazer. É claro que a editora quer que nós façamos um manual, ou algo mais próximo de um manual. Os editores dizem: “Está boa a ideia de vocês de não fazer um manual assim, estrito; mas não vai ter algo de didática, para que o professor se forme, para ensinar-lhe algo?”. Então nós temos que negociar, sobretudo eu. No meu caso, o livro não é nem de espanhol, nem de matemática, nem de ensino de nenhuma área; é do ensino, e por isso tem esse título. Eu tive que brigar pelo título com a editora, porque eles queriam – e conseguiram – acrescentar um subtítulo – propostas, sugestões, não lembro ao certo. Mas fiz questão de manter a expressão um trabalho de professor. Essa expressão parte da orientação de que o professor sabe ensinar, mas que nós podemos contribuir com algo, o que pode vir, inclusive, de outros professores. Para desenvolver esse tipo de escrita, foi necessário retomar o conhecimento que tínhamos sobre a escola e os professores – não apenas do contato com eles, mas também de leituras e pesquisa sobre eles –, considerar o que eles sabem (como imagino ser esse professor, como sujeito histórico coletivo) e entrelaçar tudo isso na escrita. Acho que é o que permite que você se aproxime de uma linguagem acessível, próxima, com sentido para o professor. Mas isso só saberei depois, quando o livro estiver na escola e eu conseguir falar com eles. Penso que esse é o desafio de uma escrita para professores, porque há essas vozes – seguindo Bakhtin (1989), o dialogismo –: a voz do professor, a do pesquisador, a do formador. Quando se concebe o professor como sujeito histórico, diverso, você consegue falar com ele não como alguém inferior ou superior, mas como alguém que decide o que faz. Você diz algo, mas sem um caráter prescritivo. No livro, mostro vídeos com cenas de sala de aula Denise Trento Rebello de SOUZA; Marli Lúcia Tonatto ZIBETTI. Formação de professores e saberes docentes:... que foram bastante editadas. Os professores, quando olham a atuação de outros colegas, tendem a avaliá-los: “Ele não fez isso, ele não sabe!”. Então, tive que editar muito e fazer comentários, em várias passagens, lembrando sempre que se trata de um material que não se pretende ser um modelo, mas apenas provocar uma reflexão. Comecei dizendo que essa é uma dívida que o pesquisador tem com o professor: não basta escrever artigos em periódicos. Pensamos que é a mesma coisa, mas você leva o artigo e o professor não vai ler. Eu costumava deixar artigos nas escolas, e até levei minha própria tese de doutorado; depois voltei para ver o que eles tinham achado e eles não haviam lido: era chato! Alguns podem se interessar, mas eles estão muito ocupados, e é preciso que haja um espaço de formação, com outro tipo de trabalho. Esse livro é uma derivação do meu livro sobre saberes (MERCADO, 2002), mas não está escrito da mesma forma. Aproveitando que estamos falando sobre escrita, sobre como escrever para professores, este é um tema que o qual temos nos ocupado mais recentemente: a investigação dos processos de escrita, em várias modalidades, utilizados nos programas especiais de formação de professores. Há, por exemplo, os memoriais que convidam os professores a retomarem sua própria história a partir de um tipo de escrita autobiográfica. Na França, os IUFMs (Institutos Universitários de Formação de Professores) têm uma prática de escrita de memoriais de formação que difere da escrita autobiográfica que temos no PEC. Há vários tipos de escritas: a escrita de trabalhos monográficos, a escrita de registro das vivências do estágio. Gostaríamos que você falasse um pouco tanto da escrita para o professor, quanto da escrita do próprio professor. Eu tive experiência com vários processos relativos a essas diferentes modalidades de escrita usadas em vários países, e acho que depositamos muitas expectativas em cada tipo de escrita. Por que pedimos aos professores que Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 247-267, jan./mar. 2014. escrevam? – eu me pergunto. Porque temos hipóteses a respeito de que essa escrita pode ser algo bom, por algum motivo. Eu não tenho respostas. Pode ser que para alguns professores seja bom. Eu gostaria de saber o que pensam quando escrevem, o que a escrita lhes agrega ou acrescenta. Quando uma pessoa escreve sua autobiografia ou relatos autobiográficos, está cumprindo diferentes funções para ela mesma: pode ser que haja um alívio emocional com benefícios terapêuticos. Por exemplo, durante uma crise, escrever sobre o que está acontecendo pode ter efeitos psicoterapêuticos para alguém, ainda que não sejam explícitos; para outra pessoa, isso pode não ocorrer. Temos a hipótese de que essa escrita pode servir para a autoformação, mas eu gostaria de saber se ela realmente tem alguma função formativa para os professores. Eu acho que é bom escrever. Existem professores que, pelo seu próprio trabalho, gostam muito de escrever, mas produzem escritos que não conhecemos, que não são públicos. Tais escritos são os que eu gostaria de conhecer, mais do que os textos que nós promovemos como formadores. Essa escrita, porém, é quase inacessível; só em um trabalho etnográfico muito fino se consegue ter acesso a ela. Retomando a pergunta: será que podemos ter algum acesso a coisas como os saberes docentes por meio dos escritos? Duvido muito, pelo menos em minha concepção de saberes: saberes como postos em práticas, como ações, como ações com sentido, como construções de conhecimentos docentes – e não quaisquer saberes (MERCADO, 2002). Certamente existem saberes num escrito, mas não sei se esses são os saberes docentes de que estou falando. Há uma reflexão sobre os saberes que, como seres humanos, construímos para viver no mundo. Mas não se pode falar de saberes docentes. Penso que a escrita dos professores pode ser muito valiosa para a formação. Há autores e trabalhos que se valem de narrativas de professores em que podem estar envolvidas muitas áreas, desde a história, a micro-história, a autobiografia e 261 essa dimensão mais psicológica ou afetivoemocional, bem como a literatura. Penso que tais narrativas de professores podem servir a muitos propósitos, mas não sei se servem para a formação ou para a autoformação. De alguma forma há certo modismo na utilização de escritas de cunho autobiográfico em processos de formação. Sim, há. É como se essa abordagem fosse uma mina de ouro, a chave de enigmas sobre a formação. Há expectativas excessivas acerca disso. Não duvido que a escrita aporte elementos para diversos tipos de análises. Acho que ela pode ser um campo muito fértil, muito produtivo de conhecimento sobre nós, e não só sobre os professores. Por que os médicos não escrevem? Penso que deviam escrever. De alguma maneira, isso tem a ver com o fato de nós, professores tanto do ensino superior quanto da educação básica, lidarmos com a escrita em nossa prática; o médico não lida com a escrita. Na etnografia e em todos esses estudos que você tem feito sobre a docência, sobre a prática dos professores, você se deparou com professores que fazem registros próprios? Temos grande dificuldade em conceber o que realmente escrevem os professores e o que leem. Essa é uma dificuldade epistemológica nossa, porque não concebemos como eles aprendem coisas e desenvolvem seu próprio conhecimento diferentemente de nós – ou dos médicos, por exemplo, que pegam um livro na estante no momento da consulta para explicar um diagnóstico. Há aí uma relação ativa com os livros, porque no momento em que o médico mostra o livro, ele não precisaria fazê-lo, ou seja, não se trata de um instrumento para curar o paciente. A escrita e a leitura, para o médico, são construções próprias que ele usa em certas circunstâncias, e que não são comuns, não consistem em um instrumento, mas são outra coisa. Essa escrita dos professores que ficou 262 pouco acessível a nós – porque, volto a dizer, é uma prática privada – é muito frequente. Os indícios que tenho em meu trabalho são estes: “Ah! Eu tenho um livro de poesia, eu faço poesia”. Vários professores fazem poesia, mas é muito difícil que mostrem. E eles também produzem outros escritos, como memórias, mas não no formato acadêmico de memórias. Certa vez, quando eu visitava uma Normal rural do México – que foi muito combativa, de esquerda e radical, tendo à época 60 ou 70 por cento de indígenas –, um professor me entregou um texto impresso de aproximadamente 60 páginas, na intenção de que eu lesse e depois comentasse. Eu não sabia o que ele queria que eu fizesse ou que finalidade tinha aquela escrita. Era como uma memória dessa Normal, famosa no México por sua combatividade. Eles estavam sofrendo repressão pelo governo e aquele professor era parte dessa escola. Então eu lhe perguntei: “Professor, isto é um livro? O que espera que eu faça?”. “Faça o que você quiser”, ele me respondeu. Não entendi nada. Então levei o impresso para minha casa para ler e depois dar um retorno. O texto continha sua história, a história da escola e do movimento social contra o Estado, que sempre buscou subjugá-la, sem sucesso. Parecia um livro escrito ao longo de anos, mas ele não queria que ninguém soubesse: “É só para você”. O que quero ressaltar é que essa escrita que o professor faz durante toda sua vida é pode ser de muitos tipos. Acho que a maioria trata de memória de coisas que se passaram em suas vidas de professores. Desses escritos, destaco duas coisas: quase todos os professores que conheci, que são muitos, escrevem, mas suas escritas são totalmente privadas. Acho que eles conseguem, sim, escrever em um espaço de formação em que se consiga construir uma relação, um espaço de confiança. Mas de seus escritos originais, feitos por sua própria iniciativa, poucos vêm à luz. Uma hipótese que me ocorre é que os professores têm, mais do que outros profissionais, grande necessidade de expressar o que se passa em suas histórias. Como Denise Trento Rebello de SOUZA; Marli Lúcia Tonatto ZIBETTI. Formação de professores e saberes docentes:... a docência é um trabalho tão desvalorizado socialmente, seus escritos ficam privados. Parece que não têm valor para ninguém, porque é uma profissão muito criticada atualmente no México e foi assim por anos: “Os professores não fazem, os professores não pensam, os professores não ensinam, estão na rua”. Eu entendo que, antes, no México, quando a profissão docente era mais valorizada, eles mostravam mais. Lembro que, quando eu era jovem, havia professores que liam seus poemas em algumas ocasiões, principalmente nos círculos de estudo, que eram muito tradicionais. Depois isso desapareceu e toda a escrita se tornou privada. Se o espaço de formação consegue constituir-se num lugar onde os professores podem expressar tudo o que eles fazem, acho que isso seria saudável. Nós também gostaríamos de conversar com você sobre esse movimento de aproximação entre a formação de professores e a escola de educação básica. Essas discussões estão relacionadas à histórica crítica feita à formação mais teórica e pouco prática dos professores. Voltarei depois ao tema da prática, da formação prática. Antes gostaria de retomar as mudanças ocorridas recentemente no México. Em setembro de 2012, introduziu-se uma nova reforma, uma mudança no currículo. Houve muita insistência por parte do Estado e dos grupos acadêmico-políticos, que desenharam a reforma para que a formação fosse ampliada para cinco anos. De fato, eles já tinham o plano de cinco anos no currículo, mas houve muita discussão, resistência e oposição, ainda que essa não tenha sido uma discussão muito aberta. É o que digo no artigo publicado na revista da ABRAPEE (MALDONADO, 2010). Não foi uma discussão pública, mas os grupos que participaram conseguiram que a formação ficasse com quatro anos. A discussão não dizia respeito apenas à duração, mas também questionava se a formação do professor devia continuar nas Normais ou passar às universidades, debate este sempre presente. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 247-267, jan./mar. 2014. Dizia-se: “As Normais são coisas do passado, agora é preciso universitarizar”. Mas as Normais continuaram e não se conseguiu passar essa formação para a universidade. Então, minha opinião é a de que, em muitos países nos quais se fez a mudança das Normais para a Universidade, os problemas-chave da formação não foram resolvidos. Um deles é a relação entre formação teórica e prática. Em toda revisão de literatura que se faça em qualquer país, está presente a discussão sobre a melhor proporção de prática e de teoria, sobre qual porção do currículo a prática deve ocupar e sobre qual será a relação entre essas duas dimensões. E esse debate continua. Ainda que a formação esteja na universidade, muitos investigadores estadunidenses se interessaram em estudar o que chamamos de distância entre a formação universitária e a prática na escola básica, tratando de encurtar essa distância de mil maneiras, desde a investigação-ação, em que os professores universitários que fazem pesquisa vão à escola básica e fazem intervenção e pesquisa participante, supondo incorporar os professores da escola básica na pesquisa. Assim, nessa colaboração, já se resolveria a falta de proximidade entre professores universitários e a escola básica. Mas há muitos estudos que analisam e contam que não foi possível, por esses meios, estabelecer uma maior relação para a formação de professores. Mas existia uma relação formal entre as Normais e as escolas? Existiam figuras docentes nesses dois espaços, nas Normais e nas escolas? Havia professores de técnica de ensino na Normal que acompanhavam um pouco, mas não havia uma regulamentação para tal acompanhamento. Esse professor de técnica avaliava o estudante que desenvolvia as propostas que ele havia ensinado, as quais se concentravam, principalmente, na elaboração de material didático. Produziam-se muitos materiais didáticos e essa era a parte 263 fundamental da formação para o ensino. Então, o professor da escola básica simplesmente tinha que aceitar que esse estudante fosse um dia da semana dar uma aula. Mas também as Normais tinham uma escola anexa, as “Escolas de Aplicação”, que eram locais para os estudantes praticarem, observarem. Eram escolas tão especiais, tão observadas, tão próximas às Normais, que alguns de seus professores acabaram constituindo o pessoal docente das Normais. Muitos professores das Normais, ainda nos anos 1960, haviam sido professores de educação básica e tinham experiência no ensino daquilo que hoje ensinavam aos seus alunos. Isso desapareceu no Plano de 1984, que foi muito centrado na teoria e demandou profissionais como sociólogos, historiadores e psicólogos. Havia estágio, sim, em que os professores iam até a escola com os estudantes, numa matéria que se chamava Laboratório de Docência. Na escola Normal, no Plano de 1984, essa prática era usada a título de análise numa perspectiva de formação de professores investigadores, embora não explicitamente. As matérias ministradas eram etnografia e investigação qualitativa, e todas as abordagens de pesquisa tinham que ser ensinadas. Foi quando comecei a trabalhar com as Normais, porque elas precisavam de pesquisadores que ensinassem seus professores a pesquisar. Aí desenvolvi mais intensamente meu trabalho sobre formação de professores. Eu falava para eles: “os professores não têm que saber etnografia”. “Mas no currículo diz que temos que ensinar os alunos a observar os professores”, respondiam eles. Publiquei alguns trabalhos afirmando que assim não estávamos formando docentes, nem pesquisadores (MERCADO, 1994). Foram anos e anos de trabalhos e seminários com professores de Normais que realizavam seus estudos etnográficos com todos os preconceitos a respeito dos professores de educação básica: “Eles não sabem disso, não sabem daquilo”, diziam. Os estudantes iam para as escolas com um olhar avaliativo, e eu usava diversos materiais para trabalhar com 264 os professores, explicando o que era e o que não era etnografia. Foram muitas discussões procurando deixar claro que formar professores e formar etnógrafos são tarefas diferentes. E isso tudo me levou no caminho dos estudos sobre a formação inicial. Os estudantes iam para a escola básica e diziam aos professores: “Eu sou pesquisador, venho aqui fazer etnografia, venho observar”. Era como dizer “Vocês não são licenciados”, pois isso foi justamente quando os professores ficaram desprofissionalizados. “Nós somos licenciados e vocês não são. Vamos analisar o que vocês fazem.” Era tudo tão avaliativo, que as escolas básicas começaram a fechar as portas para a prática. Foi um grande conflito entre a formação nas Normais e a escola básica. No Plano de 1997, foram feitas várias alterações a partir dessa experiência com a finalidade de fortalecer a prática. Desde o primeiro semestre os estudantes iam à escola – não para ensinar, só para conhecer. No sétimo e oitavo semestres, que eram os períodos finais, eles ficavam o ano todo em uma turma. Assim, esse eixo de aproximação à prática era feito ao longo do curso, até que, ao final, os estudantes permaneciam durante todo o ano na escola básica. Ao mesmo tempo, iam à Normal e aos seminários. A mudança que ocorreu na formação durante esse Plano não era só em relação ao tempo passado na escola, mas à ideia de analisar na condição de aprendizes da docência, e não como pesquisadores. A dissertação de Nancy Hilario (2011), que orientei, analisa melhor esses processos. E nesse Plano surge a figura do tutor dentro da escola básica? Sim. O currículo previa um tutor na escola básica e um assessor na Escola Normal, formando um triângulo com o aluno. Isso foi no Plano de 1997? De 1997 a 2012. Em setembro de 2012, o governo de direita que assumiu o poder Denise Trento Rebello de SOUZA; Marli Lúcia Tonatto ZIBETTI. Formação de professores e saberes docentes:... desde 2006 introduziu mudanças alinhadas ao neoliberalismo na educação. O interesse era mudar todos os currículos desde a escola básica, organizando-os por competências. Então, as Normais não só assumiram as competências, como eliminaram boa parte da prática. Ou seja, o que se fazia era semelhante à residência, porque eles ficavam na escola com o professor titular. Nesse modelo, eu entendia que era necessário definir melhor a figura do tutor, pois ele é um profissional que tem um trabalho como professor e também uma responsabilidade na formação dos estudantes da Normal, observando-os e apoiando-os, mas que não recebe um pagamento por esse trabalho. Foi estabelecido um perfil para tal profissional: ser um bom professor, ser bemvisto pela escola. O assessor tampouco recebe um pagamento extra e tem mais trabalho, porque dá aulas e acompanha os estudantes. Cada um tem cerca de oito estudantes para acompanhar nos estágios, devendo ir às escolas e participar da elaboração, pelos estudantes, de seu trabalho de conclusão de curso. Assim, esses dois professores têm responsabilidades agregadas ao seu trabalho cotidiano. Nas investigações que realizei e orientei, fizemos etnografia com estudantes das escolas Normais, com tutores e com assessoras, e encontramos coisas maravilhosas, coisas que contradizem e questionam as afirmações dicotômicas de que as práticas de estágio ou são tudo ou não são nada. Encontramos vários processos formativos nos quais ocorrem situações em que os estudantes vão transformando suas ideias acerca do que é a escola, do que é o ensino. Assim que chegavam à escola, diziam: “Os professores não têm relações harmônicas, não se comunicam tanto. Deveriam fazer tudo como um coletivo”. Há aí uma visão idealizada, uma visão romântica de como deveria ser a escola, com todos de acordo, todos caminhando juntos. Não existe isso em nenhum lugar. No início, quando entravam nas salas de aula para apoiar o tutor, falavam assim: “O professor é muito autoritário; eu não vou fazer assim, eu não vou gritar”. Depois Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 247-267, jan./mar. 2014. eles descrevem, não somente nas entrevistas, mas também nos encontros que os professores organizam, como eles próprios agiam da mesma maneira: “Ah! Quando comecei a dar aula, os meninos não me davam atenção e eu gritava. Depois fiquei doente e a professora me dizia: ‘Você não tem que gritar, porque você vai adoecer’”. Assim, os relatos dos estudantes mudavam bastante e eles iam aprendendo, inclusive com aqueles professores que se valiam da ajuda dos estagiários para fazer outras coisas. Isso era muito negativo, mas entre o negativo e o não negativo, vai havendo um processo de mudança. Não que todos vão ficar felizes com o que acontece, mas mudam e esses são processos formativos. No Chile e no México, os pesquisadores falavam: “Como os estudantes vão lidar com um professor ruim neste estágio, nesta residência? Eles vão ensinar coisas ruins!”. Claro! Assim é a vida! Mas não vão ficar só com coisas ruins, afinal, entre os médicos com quem os estudantes vão fazer residência, há médicos ruins e outros que não são ruins, e eles têm que aprender. Não estou justificando a existência de professores ruins, mas essa diversidade é o que compõe a escola. “Então não deveríamos escolher, selecionar os melhores para serem tutores?” – perguntavam os professores chilenos e mexicanos. Ou então: “Como podemos saber quais são os melhores? Vamos fazer um concurso? E como se isso dará?”. Há muitas questões envolvidas e penso que deveríamos abordá-las nos seminários da universidade, junto com os estudantes. Então agora não existe mais essa figura do tutor na escola? Existe, mas agora só durante um semestre. Isso muda toda a ideia de acompanhar um ano escolar de uma mesma turma de meninos, cujos processos você conhece. Seriam necessárias avaliações com estudos de meio. Se não se fazem estudos, como é possível aperfeiçoar? Há agora uma confusão, uma rejeição, pois a essa reforma se agregou a reforma trabalhista para 265 todos os professores, que precisam ser avaliados por competências. Há uma rejeição forte pelos professores, e eu acredito que existem argumentos pedagógicos, acadêmicos e de todo tipo contra a introdução da reforma. Há muitas coisas que podiam se resolver sem uma reforma total. Afinal, são 15 anos em que coisas aconteceram, mas apagaram tudo. A reforma apagou tudo. Referências ARNAUT, Alberto. Historia de una profesión: los maestros de educación primaria en México, 1887-1994. México: Centro de Investigación y Docencia Económicas, 1996. BAKHTIN, Mikhail. Teoria y estética de la novela. Madrid: Taurus, 1989. CHARTIER, Anne Marie. A ação docente: entre saberes práticos e saberes teóricos. In. ______. Práticas de leitura e escrita: história e atualidade. Belo Horizonte: Ceale/Autêntica, 2007. p. 185-207. HILARIO, Nancy C. Procesos formativos en las prácticas de preservicio de estudiantes de magisterio: entre la normal y la primaria. Tesis (Maestra en Ciencias con la Especialidad en Investigaciones Educativas) – Centro de Investigación y de Estudios Avanzados Del Instituto Politécnico Nacional, México, 2011. MALDONADO, Ruth Mercado. Un debate actual sobre la formación inicial de docentes en México. Revista Psicologia Escolar e Educacional, v.14, n. 1, p. 149-157, jan./jun. 2010. MERCADO, Ruth. Formar para la docencia: reto de la educación normal. México: Universidad Futura; Universidad Autónoma Metropolitana, 1994. ______. Los saberes docentes como construcción social: la enseñanza centrada en los niños. México: Fondo de Cultura Económica, 2002. MERCADO, Ruth; LUNA, Maria Eugenia. Saber enseñar, un trabajo de maestros. México: Editorial SM; CINVESTAV, 2013. ROCKWELL, Elsie (Coord.). La práctica docente y su contexto institucional y social. México: DIE-CINVESTAV, 1980. (mimeo) ROCKWELL, Elsie; MERCADO, Ruth. La práctica docente y la formación de maestros. In: ______. La escuela, lugar del trabajo docente. 3. ed. México: DIE-CINVESTAV-IPN, 1999. Descripciones y debates [1986] SOUZA, Denise Trento R. de; SARTI, Flavia M. Programas especiais e o mercado da formação docente: dispositivos, produtos e práticas de consumo. Projeto de pesquisa, FAPESP, 2008. Principais trabalhos da autora Livros: MERCADO, Ruth. La educación primaria gratuita, una lucha popular cotidiana. 2. ed. México: Departamento de Investigaciones Educativas del Centro de Investigación y de Estudios Avanzados del IPN, 1985. (Cuadernos de Investigación Educativa, n. 17.) ______. Formar para la docencia: reto de la educación normal. México: Universidad Futura; Universidad Autónoma Metropolitana, 1994. ______. El trabajo docente en el medio rural. México: DIE-CINVESTAV IPN, 1999. 266 Denise Trento Rebello de SOUZA; Marli Lúcia Tonatto ZIBETTI. Formação de professores e saberes docentes:... MERCADO, Ruth. La implantación del plan 1997 de la licenciatura en educación primaria. México: Subsecretaría de Educación Básica y Normal, Dirección General de Investigación Educativa, 2000. ______. Los saberes docentes como construcción social: la enseñanza centrada en los niños. México: Fondo de Cultura Económica, 2002. Livros em parceria: MERCADO, Ruth; LUNA, Maria Eugenia. Saber enseñar, un trabajo de maestros. México: Editorial SM e CINVESTAV, 2013. ROCKWELL, Elsie; MERCADO, Ruth. Dialogar y descubrir: la experiencia de ser instructor. México: Consejo Nacional de Fomento Educativo: DIE-CINVESTAV-IPN, 1990. ______. La escuela, lugar del trabajo docente. 3. ed. México: DIE-CINVESTAV-IPN, 1999. Descripciones y debates. Capítulos de livros: MERCADO, Ruth. La construcción de la documentación etnográfica. In: ROCKWELL, Elsie; EZPELETA, Justa (Coords.). La práctica docente y su contexto institucional y social. México: Informe Final, 1987. v. 3, p. 140- 159. Artigos: MALDONADO, Ruth Mercado. Un debate actual sobre la formación inicial de docentes en México. Revista Psicologia Escolar e Educacional, v.14, n. 1, p. 149-157, jan./jun. 2010. MERCADO, Ruth. Los saberes docentes en el trabajo cotidiano de los maestros. Infancia y Aprendizaje, México, n. 55, p. 59-72, 1991. ______. La evaluación de profesores de educación básica en México: la carrera magisterial. Avance y Perspectiva, v. 24, n. 1, p. 57-68, 2005. RODRÍGUEZ, Pedro Antronio E.; MALDONADO, Ruth Mercado. Procesos de negociación de significado en una escuela normal mexicana. Psicologia e Sociedade, v. 20, n. 3, p. 391-401, 2008. TAVERA, Epifanio; MALDONADO, Ruth Mercado. La mediación social en la apropiación de una nueva propuesta para la alfabetización inicial. Educação e Pesquisa, v. 35, n. 2, p. 331-350, maio/ago. 2009. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 247-267, jan./mar. 2014. 267 Instruções aos colaboradores Educação e Pesquisa publica somente artigos inéditos na área de Educação e não aceita trabalhos encaminhados simultaneamente para livros ou outros periódicos do país ou do exterior. Os trabalhos deverão ser enviados por meio da página da revista no Sistema SciELO de Publicação (http://www.scielo.org/php/index.php). O prazo para resposta (aceitação ou recusa) varia conforme a complexidade das avaliações e de eventuais modificações sugeridas e realizadas. As datas de recebimento e aprovação de cada colaboração serão informadas no texto publicado. Cabe à Comissão Editorial definir, a cada número da revista, os critérios para reunir os artigos já aprovados. Diretrizes para a submissão de artigos No ato da submissão de um artigo, a identificação do(s) autor(es) e a filiação institucional serão preenchidas em espaços próprios do Sistema SciELO e não devem constar do corpo do texto, o qual será enviado para avaliação cega dos pares. Tampouco se aceitam quaisquer outras referências que permitam ao avaliador inferir indiretamente a autoria do trabalho. As informações autorais serão registradas à parte, como metadados, e acessadas apenas pelos editores. Na redação do artigo, devem ser observadas as seguintes orientações: • O texto pode ser apresentado em português, espanhol ou inglês, devendo ser digitado em processador de texto Word for Windows, fonte Times New Roman, tamanho 12 e espaçamento 1,5. Todas as páginas do original devem estar numeradas sequencialmente. O texto deve contar, ainda, com o mínimo de 35.000 e o máximo de 50.000 caracteres, considerados os espaços e excluído o resumo. • O título do artigo deve ter no máximo 15 palavras. • O resumo deve conter entre 200 e 250 palavras e explicitar, em caráter informativo e sem enumeração de tópicos, os seguintes itens: tema geral e problema da pesquisa; objetivos e/ou hipóteses; metodologia utilizada; principais resultados e conclusões. Recomenda-se o uso de parágrafo único, voz ativa e na terceira pessoa do singular, frases concisas e afirmativas. Devem-se evitar: neologismos, citações bibliográficas, símbolos e contrações que não sejam de uso corrente, bem como fórmulas, equações, diagramas etc. que não sejam absolutamente necessários. A revista não solicita versão do resumo em inglês na entrega dos originais, sendo o abstract por ela encomendado a um tradutor após a aprovação do artigo. • As palavras-chave devem ser de 3 a 5. • Os agradecimentos (opcionais) devem ser citados junto ao título, mas em nota de rodapé e sem quaisquer referências, diretas ou indiretas, à autoria. • Tabelas, quadros, gráficos e figuras (fotos, desenhos e mapas) devem estar numerados em algarismos arábicos conforme a sequência em que aparecem, sempre referidos no corpo do texto e encabeçados por seu respectivo título. Imediatamente abaixo das figuras devem 269 constar suas respectivas legendas textuais. Os mapas devem conter escalas e legendas gráficas. • As imagens devem figurar em preto e branco, estar digitalizadas eletronicamente em formato JPG com resolução a partir de 300 dpi e ser apresentadas em dimensões que permitam sua ampliação ou redução sem que a legibilidade seja prejudicada. Todas as imagens devem ser enviadas separadamente, em seus arquivos originais. O nome da cada arquivo deve corresponder ao nome da imagem (por exemplo: Gráfico 1). • Notas de rodapé de caráter explicativo devem ser evitadas, sendo utilizadas apenas quando estritamente necessárias para a compreensão do texto e tendo a extensão máxima de três linhas. As notas devem estar numeradas em algarismos arábicos conforme a sequência em que aparecem no texto. • Citações no corpo do texto devem obedecer aos seguintes critérios: a) citações textuais de até três linhas devem ser incorporadas ao parágrafo, transcritas entre aspas e acompanhadas pelas seguintes informações entre parênteses: sobrenome do autor da citação, ano da publicação e número de páginas; b) citações textuais de mais de três linhas devem estar em parágrafo isolado, com recuo de 4 cm na margem esquerda, tamanho 11 e sem aspas; c) caso não haja citação textual, mas apenas referência ao autor, o sobrenome deste deve ser indicado entre parênteses, em caixa alta, junto com o ano da publicação referida. • As referências devem obedecer à norma técnica NBR6023, de 30/08/2002, da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Apenas as obras citadas ao longo do texto devem figurar na bibliografia, a qual deve constar, sob o título de Referências, ao final do artigo e em página separada. Métodos de estatísticas Quando utilizados, os métodos estatísticos precisam ser descritos com o pormenor necessário para permitir o acesso aos dados originais e a verificação dos resultados apresentados por um leitor versado no assunto; ao mesmo tempo, deve-se evitar linguagem excessivamente técnica e apresentálos com suficiente clareza de modo a favorecer a compreensão de um leitor não especializado. Tal solicitação aos autores requer providências como: procurar, sempre que possível, quantificar os resultados e apresentá-los com os correspondentes indicadores de erro de medição ou de incerteza (por exemplo, intervalos de confiança); evitar basear-se apenas em testes de inferência estatística, que não veiculam informação quantitativa relevante; discutir a elegibilidade das unidades de experimentação; fornecer informação pormenorizada sobre a aleatorização e sobre as observações; discutir a razoabilidade dos resultados e relatar possíveis limitações do método utilizado; especificar os programas informáticos utilizados; restringir quadros e figuras à quantidade necessária para explicitar a fundamentação do artigo e sua solidez; evitar quadros com muitos tópicos e duplicação de dados; definir termos estatísticos, abreviaturas e símbolos utilizados no artigo. 270 Processo de avaliação pelos pares Os artigos recebidos para eventual publicação em Educação e Pesquisa serão previamente avaliados pela Comissão Editorial. Aqueles que estiverem fora dos critérios editoriais da revista serão devolvidos e os demais encaminhados para a análise de pareceristas, sendo no máximo um deles membro da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, à qual esta publicação está subordinada. Os avaliadores consultados terão, no mínimo, o título de doutor e pertencerão a instituições científicas diversas. Os nomes dos autores, dos pareceristas e das instituições a que pertencem permanecerão em sigilo durante todo o processo. A revista publica anualmente os nomes de seu corpo de pareceristas ad hoc. Os aspectos que orientam a avaliação dos originais encaminhados aos pares para análise são: conteúdo teórico e empírico, domínio da literatura científica, atualidade do tema, contribuição para a área de conhecimento específica, originalidade da abordagem, estrutura do texto e qualidade da redação. Os avaliadores poderão recomendar a aceitação integral do texto, indicar recusa ou, ainda, sugerir modificações para nova avaliação. A Comissão Editorial poderá submeter as sugestões de reformulações ao autor e o artigo, já reformulado, retornará aos mesmos avaliadores para um parecer final. Autoria Entende-se como autor todo aquele que tenha efetivamente participado da concepção do estudo, do desenvolvimento da parte experimental, da análise e interpretação dos dados e da redação final. Recomenda-se não ultrapassar o número total de quatro autores. Caso a quantidade de autores seja maior do que essa, deve-se informar ao editor responsável o grau de participação de cada um. Em caso de dúvida sobre a compatibilidade entre o número de autores e os resultados apresentados, a Comissão Editorial reserva-se o direito de questionar as participações e de recusar a submissão se assim julgar pertinente. Ao submeter um artigo para publicação em Educação e Pesquisa, o autor concorda com os seguintes termos: 1. O autor mantém os direitos sobre o artigo, mas sua publicação na revista implica, automaticamente, a cessão integral e exclusiva dos direitos autorais para a primeira edição, sem pagamento. 2. As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, as opiniões da revista. 3. Após a primeira publicação, o autor tem autorização para assumir contratos adicionais, independentes da revista, para a divulgação do trabalho por outros meios (ex.: publicar em repositório institucional ou como capítulo de livro), desde que feita a citação completa da mesma autoria e da publicação original. 4. O autor de um artigo já publicado tem permissão e é estimulado a distribuir seu trabalho on-line, sempre com as devidas citações da primeira edição. 271 Conflitos de interesse e ética de pesquisa Caso a pesquisa desenvolvida ou a publicação do artigo possam gerar dúvidas quanto a potenciais conflitos de interesse, o autor deve declarar em nota final que não foram omitidas quaisquer ligações a órgãos de financiamento, bem como a instituições comerciais ou políticas. Do mesmo modo, deve-se mencionar a instituição à qual o autor eventualmente esteja vinculado, ou que tenha colaborado na execução do estudo, evidenciando não haver quaisquer conflitos de interesse com o resultado ora apresentado. É também necessário informar que as entrevistas e experimentações envolvendo seres humanos obedeceram aos procedimentos éticos estabelecidos para a pesquisa científica. Os nomes e endereços informados à revista serão utilizados exclusivamente para os serviços prestados por esta publicação, não sendo disponibilizados para outras finalidades ou a terceiros. Correspondência: Faculdade de Educação - USP Educação e Pesquisa Av. da Universidade, 308 - 2º andar - Biblioteca 05508-040 - São Paulo/SP Tel./Fax: (11) 3091-3520 E-mail: [email protected] 272 Instructions to authors Educação e Pesquisa publishes only previously unpublished articles in the field of education and does not consider manuscripts concurrently submitted for publication in books or other periodicals in Brazil or abroad. Manuscripts must be submitted via the journal’s page in SciELO publishing system (http://www.scielo.org/php/index.php). The time frame necessary for submissions to complete the review process – and be selected or rejected – varies according to the complexity of the reviews and possible changes suggested and implemented. The dates of receipt and approval of each article are stated in the published text. For each of the journal’s issues, the Editorial Board establishes the criteria of organization of the articles approved. Guidelines for manuscript submission Upon submission of an article, authorship and the author’s institutional affiliations must be filled out in proper spaces in SciELO System and should not be mentioned in the text, which will be submitted to blind peer review. Any references that enable reviewers to infer indirectly the authorship of the work are not accepted either. Authorship information is recorded separately, as metadata, and it is accessed only by the editors. When preparing the manuscript, the following guidelines should be followed: • The manuscript can be submitted in Portuguese, Spanish or English. It should be typed in Word for Windows, Times New Roman font, 12-point font size, 1.5 line spacing. All the manuscript pages should be numbered sequentially. The body of the manuscript should have a minimum length of 35,000 and a maximum length of 50,000 characters, including spaces and not including the abstract. • The title of the manuscript should have 15 words or fewer. • The abstract should contain between 200 and 250 words and describe, in an informative manner and without listing topics, the following items: general theme and research problem; objectives and/or hypotheses; methodology; main results and conclusions. It is recommended that the abstract should be written as a single paragraph, in the active voice, in the third person of the singular, in concise and affirmative sentences. The following items should be avoided: neologisms, bibliographical citations, symbols and abbreviations except those in common use, as well as formulae, equations, diagrams etc., unless absolutely necessary. The journal does not require an English version of the abstract along with the original text; if an article is accepted for publication the journal will provide an English version of its abstract. • The article should have 3 to 5 keywords. • Possible acknowledgements should be cited with the title, but in a footnote, and without any direct or indirect reference to the authorship. • Tables, charts, graphs, and figures (photos, drawings and maps) should be numbered with Arabic numerals in the order in which they appear in the text and should include appropriate headers. Legends should appear right below each figure. Maps should contain graph scales and legends. 273 • Images must be grayscale, be scanned electronically in JPG format with 300 dpi or higher resolution and have dimensions that allow reducing or enlarging them without impairing their readability. All images must be submitted as separate files and named according to their references in the text (e.g., Graph 1). • Explanatory footnotes should be avoided and used only when strictly necessary for understanding the text. Their maximum length should be three lines. Notes should be numbered in Arabic numerals according to the order in which they appear in the text. • Citations in the text should meet the following criteria: a) quotations of up to three lines should be run in – integrated into the text in the same font size as the text - enclosed in quotation marks and be followed by the following information in parentheses: last name of the author of the quote, the year of publication and page numbers; b) quotations longer than three lines should be set off as block quotations – that is, in a new paragraph with a hanging indent of 4 cm on the left, 11 point font, without quotation marks; c) if there is no quotation, but just a reference to some work, the author’s last name should be cited in parentheses in capital letters along with the year of publication. • References must conform strictly with the technical standard NBR6023 of August 30, 2002 of the Brazilian Association of Technical Standards (ABNT). Only works cited in the text should be included in the reference list, under the heading References, at the end of the article and on a separate page. Statistical methods When employed, statistical methods must be described in sufficient detail to allow a competent reader access to the original data and verification of the results presented, whilst avoiding excessively technical language and presenting results with enough clarity so as to facilitate their understanding by a non-specialized reader. This guidance to authors requires steps such as: seeking, as much as possible, to quantify the results and present them with corresponding indicators of measurement error or uncertainty (for example, confidence intervals); avoiding relying solely on statistical inference tests that convey no relevant quantitative information; discussing the eligibility of the experimentation units; supplying detailed information about randomization and about the observations; discussing the reasonableness of the results, as well as the possible limitations of the method used; specifying the software employed; restricting tables and graphics to the amount necessary to explain the foundations of the article and their robustness; avoiding tables with too many topics and duplication of data; defining statistical terms, abbreviations and symbols used in the article. 274 Peer review process The articles received for their eventual publication in Educação e Pesquisa will be previously read by the Editorial Board. The articles that do not meet the editorial requirements shall be returned, and the rest of them will be forwarded to three evaluators for their analysis. At the most, one of the evaluators will be a member of the School of Educaton of the Universidade de São Paulo, to which the journal is subordinated. All evaluators have at least a doctor’s degree and belong to various scientific institutions. The names of the authors, the evaluators and the institutions they belong to will remain undisclosed throughout the entire process. The journal publishes annually the names of its body of evaluators ad hoc. The aspects that guide the evaluation of the articles are: theoretical and empirical content, author’s knowledge of scientific literature, current relevance of the topic, contribution to the specific area of knowedge, originality of the approach, text structure and writing style. The evaluators may recommend the integral acceptance of the text or its rejection, or they may suggest modifications for a new evaluation. The Editorial Board may submit such suggestions to the author of the article, and after the changes have been included, the Board will send the article again to the evaluators for a final evaluation Authorship Author is understood here as anyone who has effectively taken part in the conception of the study, in the development of the experimental sections, in the analysis and interpretation of data and in the final writing. It is recommended that the total number of authors should not be greater than four. If the number of authors is larger than that, the editor in charge must be informed of the degree of participation of each author. In the case of doubt about the compatibility between the number of authors and the results presented, the Editorial Board has the right to question the participation of authors and to refuse submission at its discretion. By submitting an article for publication in Educação e Pesquisa the author agrees to the following terms: 1. The author holds the article copyrights, but its publication in the journal automatically implies the author’s agreement to release its complete copyright to the journal’s first issue, without financial compensation. 2. The ideas and opinions expressed in the article are the author’s exclusive responsibility and they do not necessarily reflect the opinions of the journal. 3. After the article’s first publication, the author is authorized to assume additional contracts, independent from the journal, to publish or present the work through other means (e.g. in an institutional repository or as a book chapter), as long as a complete quote of the authorship and of the original publication are provided. 4. The author of an article published in the journal has the right to, and is encouraged to, distribute the work on-line, always quoting its first publication in the journal. 275 Conflicts of interest and research ethics When the research developed or the publication of the article may raise doubts about potential conflicts of interest, the author should declare in an endnote that no links to funding agencies or to commercial or political institutions have been omitted. Similarly, the institution to which the author is associated, or that has collaborated in the conducting of the study, should also be mentioned to guarantee that there are no conflicts of interest with the results being presented. It is also necessary to inform that the interviews and experiments involving human beings have followed the ethical procedures established for scientific research. The names and email addresses entered in this journal site will be used exclusively for the stated purposes of this journal and will not be made available for any other purpose or to any other party. Contact: Faculdade de Educação - USP Educação e Pesquisa Av. da Universidade, 308 - 2º andar - Biblioteca 05508-040 - São Paulo/SP Tel./Fax: (11) 3091-3520 E-mail: [email protected] 276 Instrucciones a los autores Educação e Pesquisa publica solamente artículos inéditos en el área de Educación y no acepta trabajos que hayan sido enviados simultáneamente a libros u otros periódicos nacionales o extranjeros. Los trabajos se deben enviar a través de la página de la revista en el Sistema SciELO de Publicação (http://www.scielo.org/php/index.php). El plazo para respuesta (aceptación o rechazo) varía según la complejidad de las evaluaciones y posibles alteraciones sugeridas y realizadas. Las fechas de recibimiento y aprobación de cada colaboración se informarán en el texto publicado. Le corresponde al Comité Editorial definir, en cada número de la revista, los criterios para reunir los artículos ya aprobados. Directrices para la presentación de trabajos Al proponer un artículo, la identificación del (de los) autor(es) y la pertenencia institucional se deben rellenar en los espacios propios del Sistema SciELO y no deben figurar en el cuerpo del texto, que se enviará para evaluación. No se aceptará ninguna referencia que le permita al lector crítico inferir indirectamente la autoría del trabajo. Las informaciones autorales se registran a parte y solamente los editores tienen acceso a ellas. De esa forma, el Comité Editorial garantiza el anonimato de autores y evaluadores. Al redactar el artículo, se deben considerar las siguientes orientaciones: • El texto se puede presentar en portugués, español o inglés, se debe digitar en procesador de texto Word for Windows, en Times New Roman 12 pto, espacio 1,5. Todas las páginas del original se deben numerar secuencialmente. El texto debe tener como mínimo 35.000 caracteres y como máximo 50.000, considerando espacios y excluyendo el resumen. • El título del artículo debe tener como máximo 15 palabras. • El resumen debe contener entre 200 y 250 palabras y explicitar, con carácter informativo y sin enumeración de tópicos, los siguientes ítems: tema general y problema de la investigación; objetivos y/o hipótesis; metodología empleada; principales resultados y conclusiones. Se recomienda el uso de un único párrafo, voz activa y tercera persona del singular, frases concisas y afirmativas. Se deben evitar: neologismos, citaciones bibliográficas, símbolos y contracciones que no sean de uso corriente, así como fórmulas, ecuaciones, diagramas, etc. que no sean absolutamente necesarios. La revista no solicita la versión en inglés en la entrega de los originales, sino que le encarga el abstract a un traductor una vez aprobado el artículo. • Se deben incluir de 3 a 5 palabras clave. • Los agradecimientos (opcionales) se deben mencionar junto al título, pero en nota de pie de página y sin ninguna referencia, directa o indirecta, a la autoría. • Tablas, cuadros, gráficos y figuras (fotos, dibujos y mapas) deben estar numerados con números arábigos según la secuencia en que aparezcan, siempre referidos en el cuerpo del 277 texto y encabezados por su respectivo título. Inmediatamente debajo de las figuras deben constar sus respectivos subtítulos. Los mapas deben presentar escalas y subtítulos gráficos. • Las imágenes deben figurar en blanco y negro y deben estar digitalizadas electrónicamente en formato JPG con resolución a partir de 300 ppp. Deben presentarse en dimensiones que permitan ampliarlas o reducirlas sin perjudicar su legibilidad. Todas las imágenes deben enviarse separadamente, en sus archivos originales. El nombre de cada archivo debe corresponder al nombre de la imagen (por ejemplo: Gráfico 1). • Notas de pie de página de carácter explicativo se deben evitar. Pueden utilizarse únicamente cuando sean imprescindibles para la comprensión del texto y deben tener la extensión máxima de tres líneas. Las notas deben estar numeradas con números arábigos según la secuencia en que aparezcan en el texto. • Las citas en el cuerpo del texto deben obedecer a los siguientes criterios: a) Citas textuales que tengan hasta tres líneas se deben incorporar al párrafo, transcritas entre comillas y acompañadas de las siguientes informaciones entre paréntesis: apellido del autor de la cita, año de publicación y número de página; b) Citas textuales que tengan más de tres líneas deben estar en párrafo aislado, con margen izquierdo de 4 cm, letra tamaño 11 y sin comillas; c) Si no hay cita textual sino cita bibliográfica, el apellido del autor tiene que estar indicado entre paréntesis, con letras mayúsculas, junto al año de la publicación mencionada. • Las referencias deben obedecer a la norma técnica NBR6023, de 30/08/2002, de la Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Solamente las obras mencionadas a lo largo del texto deben figurar en la bibliografía, que debe constar con el título de Referencias, al final del texto y en página separada. Métodos y estadísticas Cuando utilizados, los métodos estadísticos se tienen que describir con el detalle necesario para permitir el acceso a los datos originales y la comprobación de los resltados presentados por un lector versado en el asunto; por otro lado, se debe evitar un lenguaje excesivamente técnico y presentarlo con suficiente claridad de modo a favorecer la comprensión de un lector no especializado. Tal solicitud a los autores requiere providencias tales como: buscar, siempre que posible, cuantificar los resultados y presentarlos con los correspondientes indicadores de error de medición o de incertidumbre (por ejemplo, intervalos de confianza); evitar basarse solamente en tests de inferencia estadística, que no vehiculan información cuantitativa relevante; discutir la elegibilidad de las unidades de experimentación; proveer información pormenorizada sobre lo aleatorio y sobre las observaciones; discutir la razonabilidad de los resultados y dar a conocer posibles limitaciones del método utilizado; especificar los programas informáticos empleados; restringir cuadros y figuras a la cantidad necesaria para explicitar la fundamentación del artículo y su solidez; evitar cuadros con demasiados tópicos y duplicación de datos; definir términos estadísticos, abreviaturas y símbolos utilizados en el artículo. 278 Proceso de revisión por pares Los artículos enviados para eventual publicación en la Educação e Pesquisa serán previamente evaluados por el Comité Editorial. Los que no estén de acuerdo con los criterios editoriales de la revista se devolverá a sus autores y los demás enviados para análisis de tres evaluadores, como máximo uno de ellos será miembro de la Facultad de Educación de la Universidad de São Paulo, a la que la revista está subordinada. Los evaluadores consultados pertenecen a instituciones científicas diversas y tendrán, como mínimo, el título de doctor. Los nombres de los autores, de los evaluadores y de las instituciones a que pertenecen permanecen anónimos durante todo el proceso. La revista publica a cada año los nombres de sus evaluadores ad hoc. Los aspectos que orientan la evaluación de los originales enviados a los pares para el análisis son: contenido teórico y empírico, dominio de la literatura científica, actualidad del tema, contribución para el área de conocimiento específica, originalidad del abordaje, estructura del texto y calidad de redacción. Los evaluadores podrán recomendar la aceptación del texto en su íntegra, o su rechazo, o aun sugerir modificaciones para nueva evaluación. El Comité Editorial podrá someter las sugerencias de reformulación al autor y el artículo, ya reformulado, retornará a los mismos evaluadores para una evaluación final. Autoría Se entiende por autor todo el que haya participado efectivamente de la concepción del estudio, del desarrollo de la parte experimental, del análisis e interpretación de datos y de la redacción final. Se recomienda no exceder el número total de cuatro autores. En el caso de que la cantidad de autores exceda ese número, se debe informar al editor responsable el grado de participación de cada uno. Si hay alguna duda sobre la compatibilidad entre el número de autores y los resultados presentados, el Comité Editorial se reserva el derecho de cuestionar las participaciones y de rechazar la sumisión del artículo si lo juzga pertinente. Al someter un artículo para publicación en Educação e Pesquisa el autor está de acuerdo con los siguientes términos: 1. El autor mantiene los derechos sobre el artículo, pero su publicación en la revista implica, automáticamente, la cesión total y exclusiva de los derechos de autor para la primera edición, sin pago. 2. Las ideas y opiniones expresadas en el artículo son de exclusiva responsabilidad del autor y no reflejan necesariamente las opiniones de la revista. 3. Después de la primera publicación, el autor tiene autorización para asumir contratos adicionales, independientes de la Revista, para la divulgación del trabajo por otros medios (ex.: publicar en repositorio institucional o como capítulo de libro), desde que hecha la cita completa de la misma autoría y de la publicación original. 4. El autor de un artículo ya publicado tiene permiso y es estimulado a distribuir su trabajo online, siempre con las debidas citas de la primera edición. 279 Conflictos de interés y ética de investigación En el caso de que la investigación desarrollada o la publicación del artículo puedan generar dudas en cuanto a potenciales conflictos de interés, el autor debe declarar en nota final que no se han omitido cualesquiera relaciones con órganos de financiamiento ni tampoco con instituciones comerciales o políticas. De la misma manera, se debe mencionar la institución a la que el autor esté vinculado, o que haya colaborado en la ejecución del estudio, evidenciando que no hay cualquier tipo de conflictos de interés con el resultado que se presenta. También es necesario informar que las entrevistas y experimentos que impliquen a seres humanos obedezcan a los procedimientos éticos establecidos para la investigación científica. Los nombres y las direcciones informados en esta revista serán utilizados exclusivamente para los servicios dados por la publicación, no estarán disponibles a otros propósitos o a terceros. Correspondencia: Faculdade de Educação - USP Educação e Pesquisa Av. da Universidade, 308 - 2º andar - Biblioteca 05508-040 - São Paulo/SP Tel/Fax: (11) 3091-3520 E-mail: [email protected] 280 Leia também / See also Educação e Pesquisa revista da faculdade de educação da usp Sumários Educação e Pesquisa v. 39, n. 4, out./dez. 2013 Educação e Pesquisa v. 39, n. 3, jul./set. 2013 Artigos Artigos URZÊDA-FREITAS, Marco Túlio de. Do pensamento abissal à ecologia de saberes na escola: reflexões sobre uma experiência de colaboração, p. 843-858. SOUZA, Ana Paula Gestoso de; OLIVEIRA, Rosa Maria Moraes Anunciato de. Aprendizagem da docência em grupo colaborativo: histórias infantis e matemática, p. 859-874. OLIVEIRA, Adolfo Samuel de; BUENO, Belmira Oliveira. Formação às avessas: problematizando a simetria invertida na educação continuada de professores, p. 875-890. GUZMÁN-VALENZUELA, Carolina; BARNETT, Ronald. O desenvolvimento da autocompreensão em posturas pedagógicas: explicitando o implícito entre os novos docentes. p. 891-906. RABELO, Amanda Oliveira. Professores discriminados: um estudo sobre os docentes do sexo masculino nas séries do ensino fundamental, p. 907-926. CHAGURI; Jonathas de Paula; JUNG , Neiva Maria. Letramento no ensino fundamental de nove anos no Brasil: ações legais e pedagógicas previstas nos documentos oficiais, p. 927-942. ROCHA, Eloísa Acires Candal; BUSS-SIMÃO, Márcia. Infância e educação: novos estudos e velhos dilemas da pesquisa educacional, p. 943-954. OLIVEIRA, Carolina Bessa Ferreira de. A educação escolar nas prisões: uma análise a partir das representações dos presos da penitenciária de Uberlândia (MG), p. 955-968. PADOVANI, Andréa Sandoval; RISTUM, Marilena. 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FORMAS DE PAGAMENTO Em cheque: Nominal à FACULDADE DE EDUCAÇÃO DA USP Depósito em Conta ou transferência em Conta: Banco: BANCO DO BRASIL Nº do Banco: 001 Agência: 7009-2 Conta:13-0210-8 Nome/Instituição: _________________________________________________ Endereço: ______________________________________________________ CNPJ: _________________________________________________________ CEP: __________ Cidade: __________________ Estado: _____ País: ________ E-mail: ________________________________ Tel.: ( ) _________________ Contato: _______________________________ Data: _____/ _____/ _____ Estou enviando: [ ] comprovante de depósito bancário [ ] cheque nominal à Faculdade de Educação da USP, do banco____________, nº do cheque: _____________________ valor: R$ _________________. Referente a: [ ] assinatura de Educação e Pesquisa (especificar quantidades de assinaturas: ____) [ ] números avulsos: __________________________________________. 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