Untitled - EDUCAÇÃO E PESQUISA – Revista da Faculdade de

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Untitled - EDUCAÇÃO E PESQUISA – Revista da Faculdade de
Educação e Pesquisa
Revista da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
Education and Research
Journal of the School of Education, University of São Paulo
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Revista financiada com recursos de
Educação e Pesquisa
revista
da
Educação e Pesquisa faculdade
São Paulo v. 40
de
educação
n. 1
286 p.
da
usp
jan./mar. 2014
ISSN 1517-9702
Educação e Pesquisa, v. 40, n. 1, 286 p., jan./mar. 2014.
EDUCAÇÃO E PESQUISA publica artigos inéditos na área de educação, em especial resultados de
pesquisa de caráter teórico ou empírico, bem como revisões da literatura de pesquisa educacional.
Educação e Pesquisa. São Paulo, FE/USP, 1975.
Trimestral
Publicação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
Continuação da Revista da Faculdade de Educação da USP
ISSN 1517-9702
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Sumário
07
Editorial
Artigos
13
Os gestores educacionais e a recepção dos sistemas externos de avaliação no cotidiano escolar
Rodrigo Rosistolato; Guilherme Viana
29
Avaliação e classificação de instituições de ensino médio: um estudo exploratório
André Luís Policani Freitas; Vinicius Barcelos da Silva
49
Desempenho escolar: análise comparativa em função do sexo e percepção dos estudantes
Andréia Osti; Selma de Cássia Martinelli
61
Percurso da avaliação da educação superior nos governos Lula
Gladys Beatriz Barreyro; José Carlos Rothen
77
Modelagem do crescimento da aprendizagem nos anos iniciais com dados longitudinais da
pesquisa GERES
Nigel Brooke; Neimar da Silva Fernandes; Isabela Pagani Heringer de Miranda; Tufi Machado Soares
95
Processos de significação na elaboração de conhecimentos de alunos com necessidades
educacionais especiais
Maria Inês Bacellar Monteiro; Ana Paula de Freitas
109
Dicionarização da língua brasileira de sinais: estudo comparativo iconográfico e lexical
Cássia Geciauskas Sofiato; Lucia Helena Reily
127
Indicadores de estresse e coping no contexto da educação inclusiva
Kelly Ambrosio Silveira; Sônia R. Fiorim Enumo; Renata N. Pozzatto; Kely M. Pereira de Paula
143
Interações comunicativas entre uma professora e um aluno com autismo na escola comum:
uma proposta de intervenção
Rosana Carvalho Gomes; Débora R. P. Nunes
163
Conceitos matemáticos iniciais e linguagem: um estudo comparativo entre crianças surdas
e ouvintes
Heloiza H. Barbosa
181
Nos interstícios da cidadania: a inevitabilidade e urgência da dimensão da virtude cívica
na educação
Eduardo Nuno Fonseca
197
Expresiones de lo sensible: lecturas en clave pedagógica
Luz Elena Gallo Cadavid
215
Educação sobre drogas: uma proposta orientada pela redução de danos
231
O imperativo do afeto na educação infantil: a ordem do discurso de pedagogas em formação
Mariana Adade; Simone Monteiro
Rodrigo Saballa de Carvalho
Entrevista
247
Formação de professores e saberes docentes: trajetória e preocupações de uma pesquisadora
da docência – uma entrevista com Ruth Mercado
Entrevistadoras: Denise Trento Rebello de Souza; Marli Lúcia Tonatto Zibetti
269
Instruções aos colaboradores
283
Leia também
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, 286 p., jan./mar. 2014.
Contents
07
Editorial
Articles
13
29
Educational managers and the reception of external assessment systems in school daily life
Rodrigo Rosistolato; Guilherme Viana
Evaluation and ranking of secondary schools: an exploratory study
André Luís Policani Freitas; Vinicius Barcelos da Silva
49
Academic achievement: comparative analysis by gender and student perception
Andréia Osti; Selma de Cássia Martinelli
61
The course of higher education evaluation in Lula governments
77
Modeling of the growth of learning in the early years with longitudinal data of GERES research
Gladys Beatriz Barreyro; José Carlos Rothen
Nigel Brooke; Neimar da Silva Fernandes; Isabela Pagani Heringer de Miranda; Tufi Machado Soares
95
Signification processes in the elaboration of knowledge by pupils with special education needs
Maria Inês Bacellar Monteiro; Ana Paula de Freitas
109
Brazilian sign language dictionaries: comparative iconographical and lexical study
Cássia Geciauskas Sofiato; Lucia Helena Reily
127
Indicators of stress and coping in the context of inclusive education
143
Communicative interactions between a teacher and a student with autism in regular schools:
an intervention proposal
Kelly Ambrosio Silveira; Sônia R. Fiorim Enumo; Renata N. Pozzatto; Kely M. Pereira de Paula
Rosana Carvalho Gomes; Débora R. P. Nunes
163
Early mathematical concepts and language: a comparative study between deaf and hearing
children
Heloiza H. Barbosa
181
In the interstices of citizenship: the inevitable, urgent character of the dimension of civic
virtue in education
Eduardo Nuno Fonseca
197
Expressions of the sensible: readings in a pedagogical key
215
Education about drugs: a proposal oriented by damage reduction
Luz Elena Gallo Cadavid
Mariana Adade; Simone Monteiro
231
The imperative of affect in early childhood education: the order of discourse of undergraduate
education students
Rodrigo Saballa de Carvalho
Interview
247
Teacher education and teachers knowledges: trajectory and concerns of a researcher in
teaching - an interview with Ruth Mercado
Interviewers: Denise Trento Rebello de Souza; Marli Lúcia Tonatto Zibetti
269
Instructions to authors
283
See also
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, 286 p., jan./mar. 2014.
Editorial
É com satisfação que apresentamos o primeiro número de 2014 de Educação e Pesquisa. Nele o
leitor encontrará um conjunto de textos que expressam a vitalidade das pesquisas
e a densidade das discussões teóricas que vêm sendo realizadas no âmbito da
educação. Embora diferentes, os artigos reunidos neste número apresentam
duas características comuns: além de terem sido selecionados a partir de um
rigoroso processo de avaliação às cegas, por pares – como é de se esperar em
qualquer periódico científico –, todos demonstram, de um modo ou de outro, uma
preocupação legítima com temas fronteiriços ou com problemas contemporâneos
ainda mal compreendidos. Assim, apesar da amplitude de assuntos que aborda,
o conjunto aqui apresentado oferece ao leitor um panorama sobre alguns dos
principais interesses que hoje mobilizam a comunidade acadêmica ligada ao
campo da educação e que merecem ser mais bem investigados. A análise dos
textos reunidos permite reagrupá-los em subconjuntos, conforme descrito a seguir.
De início, cinco artigos abordam, sob diferentes ângulos, o complexo e controverso tema da
avaliação. O primeiro, intitulado Os gestores educacionais e a recepção dos
sistemas externos de avaliação no cotidiano escolar, de autoria de Rodrigo
Rosistolato e Guilherme Velozzo Viana, discute alguns dos desafios presentes na
incorporação das avaliações externas à cultura das escolas. O segundo, Avaliação
e classificação de instituições de ensino médio: um estudo exploratório, escrito por
André Luís Policani Freitas e Vinicius Barcelos da Silva, trata da avaliação de uma
instituição de ensino médio segundo a percepção de docentes e discentes. Já os
dados apresentados no terceiro artigo, Desempenho escolar: análise comparativa
em função do sexo e percepção dos estudantes, de Andreia Osti e Selma de Cassia
Martinelli, permitem discutir e avaliar as relações e os vínculos estabelecidos entre
alunos e professores, as influências das vivências e experiências no momento
da aprendizagem e o modo como estas afetam o interesse e a motivação dos
estudantes. O quarto artigo, intitulado Percurso da avaliação da educação superior
nos governos Lula, de Gladys Beatriz Barreyro e José Carlos Rothen, analisa a
política de avaliação da educação superior desenvolvida durante os governos de
Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010). Trata-se de uma pesquisa documental que
utiliza a legislação e documentos oficiais do período como principais fontes de
informação. O quinto e último artigo desse subgrupo, Modelagem do crescimento
da aprendizagem nos anos iniciais com dados longitudinais da pesquisa GERES,
de Neimar da Silva Fernandes, Nigel Pelham Brooke, Isabela Pagani Heringer e
Tufi Machado Soares, compara duas abordagens de valor agregado para dados
oriundos do survey educacional de recorte longitudinal chamado GERES (Estudo
Longitudinal da Geração Escolar - 2005), que acompanhou uma coorte de alunos
de mais de 300 escolas públicas e privadas ao longo dos primeiros quatro anos do
ensino fundamental. Ambas as abordagens utilizam modelos lineares hierárquicos,
permitindo o agrupamento natural dos dados educacionais provenientes dos três
níveis: aluno, turma e escola.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, jan./mar. 2014.
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O segundo subconjunto também é composto de cinco textos, os quais tratam de um assunto de
extrema importância no cenário atual: a deficiência e a inclusão. O primeiro desses
artigos intitula-se Processos de significação na elaboração de conhecimentos de
alunos com necessidades educacionais especiais e é de autoria de Ana Paula
de Freitas e Maria Inês Bacellar Monteiro. Baseado na perspectiva históricocultural, o texto aborda a temática da educação inclusiva a partir do interesse
em práticas educacionais orientadas por relações de ensino significativas. A
língua brasileira de sinais (Libras) utilizada pela comunidade surda no Brasil –
língua de modalidade espaço-visual cuja representação gráfica comumente se dá
por meio de imagens em dicionários impressos e em meio digital – é o tema do
segundo artigo: Dicionarização da língua brasileira de sinais: estudo comparativo
iconográfico e lexical, de autoria de Cássia Geciauskas Sofiato e Lucia Helena Reily.
Com base em dicionários de Libras, as autoras analisam a constituição histórica
do gênero no Brasil a partir da identificação de características e fragilidades em
relação à iconografia e à lexicografia de tais obras, fatores que podem interferir
no ensino e no aprendizado dos sinais nos cursos de graduação. O artigo seguinte:
Indicadores de estresse e coping no contexto da educação inclusiva, de Kelly
Ambrosio Silveira, Sônia Regina Enumo, Renata Pozzatto e Kely M. Pereira de
Paula, apresenta resultados de uma investigação sobre o stress docente provocado
pela sobrecarga de serviço e pela percepção de pouca preocupação governamental
em fornecer subsídios para o trabalho. O texto Interações comunicativas entre
uma professora e um aluno com autismo na escola comum: uma proposta de
intervenção, de Rosana Carvalho Gomes e Debora R. P. Nunes, expõe os resultados
de uma pesquisa que oferece elementos novos capazes de incrementar o debate
sobre aspectos polêmicos que envolvem o processo de inclusão de educandos
com autismo nas salas de aula comuns. O artigo Conceitos matemáticos iniciais
e linguagem: um estudo comparativo entre crianças surdas e ouvintes, de Heloiza
Barbosa, traz indicadores bastante interessantes de que a surdez não é causa de
baixo rendimento escolar na área da matemática. A autora conclui que parece ser
necessário pensar em formas de intervenção pedagógica que possam garantir uma
aprendizagem de sucesso em matemática tanto para as crianças surdas, quanto
para as crianças ouvintes que frequentam as escolas públicas brasileiras.
No terceiro bloco reunimos quatro artigos que atestam a riqueza e a diversidade de temas
que vêm sendo estudados. O primeiro deles intitula-se Nos interstícios da
cidadania: a inevitabilidade e urgência da dimensão da virtude cívica na
educação e é de autoria do português Eduardo Nuno Fonseca, que aborda duas
questões: a problematização da conceitualização da cidadania e as implicações
para qualquer projeto educativo que reconheça a importância da educação
para a cidadania em contexto escolar. Em seguida, o texto Expresiones de
lo sensible: lecturas en clave pedagógica, escrito pela colombiana Luz Elena
Gallo, apresenta reflexões sobre o sensível – desde o corpo e sua relação com a
educação – a partir de perspectiva filosófica, pedagógica e experiencial, tendo
como referência o pensamento de Friedrich Nietzsche e de Gilles Deleuze,
bem como a reflexão pedagógica de Jorge Larrosa e Fernando Bárcena. O
artigo Educação sobre drogas: uma proposta orientada pela redução de danos,
8
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, jan./mar. 2014.
de Mariana Adade e Simone Monteiro, pretende fornecer subsídios para o
desenvolvimento de ações educativas sobre drogas entre jovens, pais e
educadores. Por fim, o último artigo do número explora um tema relacionado
ao universo da infância e da educação infantil e intitula-se O imperativo do
afeto na educação infantil: a ordem do discurso de pedagogias em formação.
Nele, o autor Rodrigo Saballa de Carvalho apresenta resultados de uma
pesquisa que teve como foco de análise a problematização dos discursos sobre
afeto docente presentes em relatórios de um estágio realizado em turmas de
educação infantil por 30 acadêmicas de pedagogia em fase de conclusão do
curso. O objetivo do artigo é problematizar como os discursos sobre afeto
se constituem enquanto imperativos que inventam e regulam os modos de
exercício docente. O referencial no qual se fundamentou a pesquisa foi o dos
estudos culturais e das análises desenvolvidas por Michel Foucault.
A última seção apresenta uma entrevista bastante interessante realizada em 2013 pelas professoras
Denise Trento Rebello de Souza e Marli Lúcia Tonatto Zibetti com a professora
mexicana Ruth Mercado Maldonado, que é pesquisadora do Departamento de
Investigaciones Educativas do Centro de Investigación y de Estudios Avanzados
del Instituto Politécnico Nacional (DIE-CINVESTAV). Nesse departamento,
internacionalmente reconhecido pela grande qualidade e pela influência na
pesquisa educacional da América Latina, particularmente devido às instigantes
contribuições no campo da etnografia educacional, Ruth desenvolve investigações
há mais de 25 anos, sempre relacionadas a duas linhas de investigação: aos
estudos socioculturais sobre a docência cotidiana; às políticas e aos processos de
formação inicial e continuada de docentes.
No rico encontro, a professora teceu reflexões muito pertinentes sobre suas investigações e sobre questões
relacionadas à educação básica, à formação de professores, ao desenvolvimento
curricular e à elaboração de materiais pedagógicos. A entrevistada também
abordou diversos temas atuais e polêmicos relativos ao campo da formação inicial
e continuada de professores, como o processo de universitarização e as implicações
dele decorrentes (tais como a relação entre formação teórica e formação prática; o
papel dos formadores; as relações entre cultura universitária e cultura escolar) e o
controverso tema do mestrado profissional. Por fim, apresentou suas interessantes
ideias sobre a produção escrita para professores e sobre as propostas de escrita
utilizadas nos processos formativos.
Aproveito este editorial para informar aos leitores que nosso querido parceiro de trabalho Wilson
Gambeta, a partir deste número, deixará de integrar a equipe de Educação e
Pesquisa. Nos últimos anos, graças à sua seriedade e à grande experiência no
campo editorial, Wilson desenvolveu um primoroso trabalho conosco, ajudando
nossa revista a alcançar outro patamar de profissionalismo e eficiência.
Entendemos que sua missão no periódico foi cumprida a contento. A partir de
agora, sua participação será pontual, já que ele atuará como consultor sempre
que precisarmos de suas valiosas contribuições. Em nome da Comissão Editorial,
gostaria de registrar nossos agradecimentos.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, jan./mar. 2014.
9
Esta é a primeira edição do ano e sabemos que há muito trabalho pela frente. Mais uma vez, a
revista demandará de todos nós (autores, editores, avaliadores ad hoc, revisores,
tradutores, secretários etc.) grande dispêndio de tempo, energia e dedicação. Mais
do que isso: é preciso ter paciência, jogo de cintura e diplomacia para vencer
os inúmeros obstáculos que se apresentam a cada instante na publicação de um
periódico com este perfil e com o nível de exigência editorial que temos. Mas
também sabemos, de antemão, que o esforço sempre vale a pena. E, por essa
razão, já estamos funcionando com muito ânimo e disposição. Começamos mais
um ano com a certeza de que o serviço prestado por Educação e Pesquisa para a
comunidade acadêmica é nobre e valioso.
Enfim, esperamos que a leitura dos artigos reunidos neste número possa demonstrar o vigor dessas
contribuições. Boa leitura!
Teresa Cristina Rego
10
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, jan./mar. 2014.
Artigos / Articles
Os gestores educacionais e a recepção dos sistemas
externos de avaliação no cotidiano escolarI
Rodrigo RosistolatoII
Guilherme VianaII
Resumo
Este artigo discute alguns dos desafios presentes na incorporação
das avaliações externas à cultura das escolas. Parte-se da observação
de que tais avaliações foram concebidas com base em um modelo
de escola que pressupõe a homogeneização da distribuição do saber
escolar e, por conseguinte, a possibilidade de avaliar o produto
final do processo: a aprendizagem em termos coletivos. Nenhuma
delas tem o aluno como unidade de análise, pois todas privilegiam
a escola e as redes de ensino a fim de mapear os processos de
distribuição do saber. Elas não são, no entanto, consenso no
campo educacional, e as abordagens críticas a respeito delas
indicam a redução da autonomia dos professores e a construção
de modelos de ensino padronizados como resultados perversos. O
projeto que deu origem a este artigo teve como objetivo analisar
a visão de gestores da educação básica do Rio de Janeiro sobre
esse debate. Para tanto, em uma abordagem etnográfica, realizamos
entrevistas em profundidade com seis gestores que trabalham na
zona oeste da cidade. É possível dizer que eles leram, interpretaram
e reinterpretaram os resultados obtidos por suas escolas tendo
por base suas visões sobre seu próprio trabalho, a instituição, os
estudantes e as políticas educacionais. As críticas dos entrevistados
seguem uma lógica que coloca em xeque o modelo republicano
de escola e suas possibilidades no Rio de Janeiro. Ao longo do
texto, demonstraremos a construção dessas narrativas com foco nas
convergências e divergências existentes entre as falas dos gestores
e os discursos que configuram o embate público relacionado às
avaliações externas de aprendizagem.
Palavras-chave
I- A pesquisa que deu origem a este
artigo recebeu financiamento da CAPES e
do INEP (Observatório da Educação), além
do Programa de Apoio a Docente Recém
Doutor Antonio Luis Vianna (UFRJ).
II- Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Contatos: [email protected];
[email protected]
Avaliação — Sistemas educacionais — Escola republicana —
Desempenho escolar.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 13-28, jan./mar. 2014.
13
Educational managers and the reception of external
assessment systems in school daily life I
Rodrigo RosistolatoII
Guilherme VianaII
Abstract
This article discusses some of the challenges present in the
incorporation of external assessments to school culture. We start
from the observation that such assessments were conceived on the
basis of a model of school that presupposes the homogenization
of the distribution of school knowledge and, consequently, the
possibility of assessing the final product of the process: the learning
in collective terms. None of them has the pupil as its unit of
analysis, since they all privilege the school and school systems in
order to map out the processes of the distribution of knowledge.
They are not, however, consensual in the educational field, and the
critical approaches towards them indicate the reduction in teachers’
autonomy and the construction of standardized teaching models as
adverse results. The project that originated this article had as its
objective to analyze the views of managers of basic education in
Rio de Janeiro about such debate. To that end, in an ethnographic
approach, we conducted deep interviews with six managers that
work in the west side of the city. It was possible to observe that
they read, interpreted, and reinterpreted the results obtained by
their schools based on their views about their own work, about the
institution, about the students and the educational policies. The
criticisms of the interviewees followed a logic that puts in check the
Republican model of school and its possibilities in Rio de Janeiro. In
the text we demonstrate the construction of these narratives focusing
on the convergences and divergences existing between the speeches
of managers and discourses that configure the public debate related
to external learning assessments.
Keywords
I- The research that originated this article
was financed by CAPES and by INEP
(Observatório da Educação), and also by the
Antonio Luis Vianna Program of Support to
Newly Graduated Teachers (UFRJ).
II- Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, RJ, Brazil.
Contacts: [email protected];
[email protected]
14
Assessment — Educational systems — Republican school — School
performance.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 13-28, jan./mar. 2014.
O debate público sobre as avaliações
externas de aprendizagem nos sistemas
educacionais agrega discursos acadêmicos,
estatais e sindicais. No Rio de Janeiro, a
principal oposição está localizada entre o
Estado e os sindicatos. Enquanto o Estado
apresenta as avaliações externas e as políticas
de responsabilização a elas associadas como
mecanismos efetivos para equalização das
oportunidades educacionais e melhoria de
sistemas e redes de ensino, os sindicatos
criticam a possibilidade de padronização do
ensino e a desvalorização do trabalho docente.
Os embates políticos relacionados com
as avaliações externas são intensos e tendem a
recrudescer a apresentação pública de discursos
institucionalizados que, por definição, reduzem
a diversidade de opiniões presentes nas instituições e entre seus agentes. Nesse campo de forças políticas, o Estado defende radicalmente as
avaliações externas, ao passo que os sindicatos
tendem a negá-las por princípio. Tais posicionamentos, de certa forma, minam o debate técnico e também as discussões sobre as potencialidades e os problemas presentes na construção
e na implementação de políticas de avaliação
educacional no Brasil e no Rio de Janeiro.
Neste artigo, pretendemos deslocar o debate
para o cotidiano escolar. Trata-se de uma mudança de foco. O objetivo é privilegiar o olhar dos profissionais que estão diretamente envolvidos com
o gerenciamento cotidiano de políticas educacionais: os gestores da educação básica que atuam
em unidades escolares. Partimos do pressuposto de
que a função pública exercida pelos gestores não
permite que eles ignorem as políticas educacionais
implementadas em suas escolas. Eles precisam realizar uma leitura das demandas trazidas e, simultaneamente, oferecer uma resposta aos professores,
aos pais e à administração central. Nesse processo, ocorrem interpretações e reinterpretações que
podem ou não dialogar com os embates políticos
relacionados às avaliações externas. A proposta é
analisar as narrativas sobre o sentido das avaliações externas e as interpretações relacionadas às
causas do desempenho apresentado pelas escolas.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 13-28, jan./mar. 2014.
Durante o trabalho de campo, percebemos que as críticas dos gestores eram construídas com base em uma lógica que coloca em
xeque o modelo republicano de escola1 e suas
possibilidades no Rio de Janeiro. Há um conjunto de argumentos que valoriza as particularidades das escolas e dos alunos, em oposição à
perspectiva universalista que fundamenta os sistemas nacionais de avaliação. Demonstraremos
a construção dessas narrativas com foco nas
convergências e divergências existentes entre
as falas dos gestores e os discursos que configuram o embate público relacionado às avaliações
externas de aprendizagem.
Metodologia
O artigo está organizado com base em
seis entrevistas em profundidade realizadas
com gestores da educação básica que trabalham
na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. A
concentração das análises na zona oeste se
deve à quantidade reduzida de estudos sobre
essa região da cidade e, principalmente, à
identificação de uma oposição orientadora
das narrativas dos gestores. Eles comparam
os estudantes da zona oeste aos da zona sul e
entendem que tais diferenças são determinantes
das desigualdades de desempenho entre
as escolas. Também utilizaremos os dados
resultantes do acompanhamento do debate
sobre as avaliações externas presente na mídia,
o que inclui jornais, revistas e programas
televisivos. O acompanhamento tem por
objetivo comparar o discurso presente na
mídia sindical àquele veiculado por jornais e
revistas sem vinculação sindical.2 Durante o
trabalho de campo, percebemos aproximações
e distanciamentos entre o discurso dos gestores
e os argumentos apresentados, especificamente,
pela mídia sindical.
1- Para o debate sobre o modelo republicano e a noção de saberes
públicos, ver o trabalho de Forquin (2000). Para a crítica à proposta de
Forquin (2000), ver os trabalhos de Candau (2000) e Silva (2000).
2 - Em 2011 mapeamos 100 reportagens relacionadas às avaliações
externas de aprendizagem, incluindo ambas as mídias, sindical e
não-sindical.
15
É importante frisar que as entrevistas em
profundidade foram realizadas em associação
à abordagem etnográfica. Trata-se de uma
proposta que conjuga a principal metodologia
da antropologia – etnografia – às entrevistas
em profundidade, utilizadas por outras
ciências que propõem abordagens qualitativas.
O objetivo é relacionar as informações
oferecidas pelo entrevistado àquelas mapeadas
a partir da observação do contexto em que a
escola está inserida. Privilegia-se a observação
do entorno das escolas e a descrição das
dependências, incluindo os espaços em
que as entrevistas em profundidade foram
realizadas. Não é possível dizer que estamos
fazendo uma etnografia das escolas, porque
a permanência é delimitada pelas entrevistas,
assim como a observação do entorno. Uma
etnografia demanda tempo para imersão no
cotidiano da escola. A descrição etnográfica,
mesmo realizada em curtos espaços de tempo,
oferece uma perspectiva complementar
àquela produzida com as entrevistas em
profundidade. Permite, inclusive, que os
momentos anteriores e posteriores à entrevista
gravada sejam registrados. No decorrer do
texto, apresentaremos algumas observações
que foram possíveis graças à conjugação
dessas metodologias.
Sistemas de avaliação
As propostas públicas de avaliação
da educação no Brasil emergiram na
década de 1990 (BONAMINO; COSCARELLI;
FRANCO, 2002). Essas iniciativas conduziram
progressivamente à criação do Sistema Nacional
de Avaliação da Educação Básica (SAEB), cujo
processo de institucionalização foi descrito por
Bonamino e Franco (1999). Naquele momento,
os autores indicavam que a avaliação da
educação brasileira era um projeto que tendia
à consolidação, pois expressava demandas do
Estado, de gestores educacionais e de setores
da sociedade que se propunham a refletir sobre
educação no Brasil.
16
A implantação do sistema nacional de
avaliação proporcionou debates intensos no
campo educacional e nas pesquisas em educação.
Há trabalhos que analisam o processo de
institucionalização e os significados associados
aos sistemas de avaliação (BONAMINO;
FRANCO, 1999; FRANCO; BONAMINO, 2001);
as concepções de aluno letrado subjacentes ao
SAEB (BONAMINO; COSCARELLI; FRANCO,
2002); os possíveis impactos das políticas
de avaliação no currículo escolar (SOUSA,
2003); a aprendizagem e os desafios trazidos
pelo SAEB (COELHO, 2008); as interfaces dos
sistemas de avaliação com o currículo da/
na escola (BONAMINO; SOUSA, 2012); entre
outras questões. Tais pesquisas dialogam e
acabam por negar análises maniqueístas que
indicam exclusivamente questões positivas ou
negativas relacionadas aos sistemas de avaliação
da educação básica. Nesse sentido, é necessário
destacar que até mesmo o processo de produção
do Índice de Desenvolvimento da Educação
Básica (IDEB), fruto do SAEB, já foi analisado e
criticado por Soares (2011).
Os dados do SAEB também têm sido
utilizados por pesquisadores para discutir
questões relacionadas à avaliação educacional.
Há trabalhos sobre a qualidade da educação
fundamental, com ênfase na relação entre
o desempenho escolar e a mudança na
composição dos alunos (ALVES, 2007);
sobre os fatores associados ao desempenho
escolar (ANDRADE; LAROS, 2007); sobre a
transmissão intergeracional de desigualdade e
qualidade educacional (GONÇALVES; FRANÇA,
2008); sobre as influências das mudanças de
condição socioeconômica no desempenho dos
estudantes (RODRIGUES; RIOS-NETO; PINTO,
2011). Também há pesquisas que propõem
a reconsideração de fatores intra-escolares
(FRANCO et al., 2007), a reflexão sobre a
educação no Brasil (KLEIN, 2006) e a análise
sobre origem social e riscos de repetência
(ALVES; ORTIGÃO; FRANCO, 2007).
O debate relacionado ao SAEB, portanto,
tem proporcionado, entre outras questões,
Rodrigo ROSISTOLATO; Guilherme VIANA. Os gestores educacionais e a recepção dos sistemas externos de avaliação...
reflexões consistentes sobre a estrutura
das oportunidades educacionais no Brasil.
Também há investigações sobre os processos
de segmentação e estratificação presentes nos
sistemas educacionais que foram refinadas com
a utilização dos dados disponibilizados pelo
SAEB e pelos sistemas municipais de educação.
Pesquisas com foco nos quase-mercados
educacionais (COSTA; KOSLINSKI, 2009; COSTA;
KOSLINSKI, 2011), nas motivações de escolha
e estratégias de acesso às escolas públicas
(ROSISTOLATO; PIRES DO PRADO, 2012; COSTA;
PIRES DO PRADO; ROSISTOLATO, 2012), bem
como na transição entre os segmentos do ensino
fundamental (BRUEL; BARTHOLO, 2011) têm
utilizado os dados fornecidos pelo SAEB para
propor problemas de investigação, aprofundar
análises, testar hipóteses e ampliar o escopo das
abordagens que têm os sistemas educacionais
como objeto de análise.
Os sistemas de avaliação trazem novas
perspectivas para a pesquisa educacional, da
mesma forma que promovem mudanças, consensos e conflitos no campo educacional. Eles
foram concebidos com base em um modelo de
escola que pressupõe a homogeneização da distribuição do saber escolar e, como consequência, a possibilidade de avaliar o produto final do
processo: a aprendizagem em termos coletivos.
As avaliações externas privilegiam a escola e as
redes de ensino para o mapeamento dos processos de distribuição do saber. A ideia é produzir
índices que permitam gerir os sistemas de ensino e equacionar os processos de aprendizagem,
consolidando o modelo republicano de escola.
Há, portanto, uma pressuposição presente na construção dos sistemas de avaliação.
Qual seja: a de que os sistemas podem e devem
ser avaliados como sistemas. Ao mesmo tempo, pesquisas no campo da gestão educacional3 indicam que professores e gestores tendem
a pensar as escolas presentes em um sistema
educacional como unidades singulares, quase
autônomas e dependentes das motivações dos
3 - Ver os trabalhos de Pires do Prado (2009); Paes de Carvalho e
Canedo (2008).
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 13-28, jan./mar. 2014.
profissionais que nelas atuam profissionalmente. Assim, a consolidação daquilo que tem sido
chamado de cultura da avaliação depende diretamente de mudanças de perspectiva sobre a escola e sobre o que ela deve oferecer aos alunos.
Desses diálogos emergem concepções de escola,
sistema educacional, estudante, formação escolar, trabalho docente e avaliação educacional.
Tais concepções são veiculadas por
agentes sociais que podem ser classificados como
portadores de ideais relacionados à educação
e à sociedade brasileira. Daí a importância de
analisar o olhar dos profissionais que estão
diretamente envolvidos com o gerenciamento
cotidiano de políticas educacionais. A pesquisa
de campo identificou, no discurso dos gestores,
um conjunto de argumentos que valoriza
as particularidades das escolas e dos alunos
em oposição à perspectiva universalista que
fundamenta os sistemas nacionais de avaliação.
Os gestores leram, interpretaram e reinterpretaram
os resultados obtidos por suas escolas tendo por
base suas visões sobre seu próprio trabalho, a
escola, os estudantes e as políticas educacionais.
Os gestores: análise socioprofissional
Todos os entrevistados receberam nomes
fictícios. Apresentaremos cada gestor enfatizando
as escolhas profissionais, a experiência e as visões
sobre o trabalho docente, além dos dados das
escolas dirigidas por eles. É importante frisar que
Joaquim e Alice trabalham na mesma escola, o
que também ocorre com Joana e Irene. De início,
a proposta era entrevistar apenas os diretores.
Porém, no dia em que ocorreria a entrevista de
Joaquim, ele não estava presente e Alice, diretora
adjunta, ficou interessada em ser entrevistada.
Com Joana e Irene foi diferente. Irene estava
presente durante a entrevista de Joana. Quando
Joana precisou sair por alguns instantes, Irene,
diretora adjunta, pediu que o gravador fosse
desligado e falou sobre questões relacionadas
ao IDEB da escola e das escolas em geral.
Perguntamos se ela concederia uma entrevista em
outro momento e ela concordou. Ao analisar as
17
entrevistas percebemos que, embora trabalhem
nas mesmas escolas, Joana e Irene, assim como
Joaquim e Alice, têm visões diferentes sobre a
escola e as avaliações externas de aprendizagem.
Joaquim – 61 anos, casado, pai de três
filhos, natural do Rio de Janeiro, residente em
Campo Grande, renda familiar mensal superior a
12 salários mínimos,4 formado em matemática,
com três especializações em matemática e
um mestrado em ciências ambientais. Tem 30
anos de experiência no ensino fundamental e
28 anos no ensino médio. Trabalha em uma
escola municipal que, de acordo com o site do
INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira), obteve média de
3,3 em 2009; o gestor, porém, declarou que o
IDEB era de 4,5.
Alice – 52 anos, casada, mãe de um filho,
natural do Rio de Janeiro, residente em Bento
Ribeiro, renda familiar mensal superior a 8
salários mínimos. É professora formada pelo curso
normal e agora está cursando pedagogia. Tem
34 anos de experiência no ensino fundamental.
Trabalha em uma escola municipal, cujo IDEB
não informou. De acordo com o site do INEP, a
escola obteve média 3,3 em 2009.
Joana – 61 anos, casada, mãe de um filho,
naturalizada brasileira, residente em Campo
Grande, renda mensal familiar não informada,
graduada em letras e em pedagogia. Tem 40
anos de experiência com o ensino fundamental
e com o ensino médio. Trabalha em uma escola
estadual com ensino fundamental, cujo IDEB
não soube informar. De acordo com o site do
INEP, o IDEB da escola em 2009 foi 3,9.
Irene – 41 anos, casada, mãe de dois filhos,
natural do Rio de Janeiro, residente em Realengo,
renda mensal superior a 12 salários mínimos,
formada em pedagogia, pós-graduada em gestão
escolar e em psicopedagogia. Tem 15 anos de
experiência no ensino fundamental. Trabalha em
uma escola estadual com ensino fundamental,
cujo IDEB não informou. Conforme o site do
INEP, a escola obteve média 3,9 em 2009.
4 - Todas as informações sobre a renda familiar têm como referência o
salário mínimo de janeiro/2012.
18
Geovana – 57 anos, divorciada, mãe de
dois filhos, natural do Rio de Janeiro, residente
em Campo Grande, renda familiar não informada,
graduada em língua portuguesa e em pedagogia,
com duas especializações em educação. Tem 42
anos de experiência nos ensinos fundamental
e médio. Trabalha em uma escola estadual
com ensino fundamental, cujo IDEB não soube
informar. De acordo com o site do INEP, o IDEB
da escola em 2009 foi 3,1.
Arnaldo – 58 anos, solteiro, sem filhos,
natural do Rio de Janeiro, morador de Campo
Grande, renda mensal superior a 8 salários
mínimos, formado em geografia e pedagogia, com
mestrado em geografia. Tem 36 anos de experiência
no ensino fundamental e 28 anos no ensino médio.
Trabalha em uma escola estadual com ensino
fundamental, cujo IDEB em 2009 foi 3,4.
Visões sobre as avaliações
externas e os resultados
alcançados pelas escolas
O objetivo das entrevistas era mapear
o conhecimento e as opiniões dos gestores
sobre os sistemas externos de avaliação, além
das visões sobre os resultados de suas escolas.
Todos foram convidados, inicialmente, a
apresentar suas visões sobre as avaliações
externas com foco no conhecimento técnico
sobre os sistemas nacionais de avaliação. Na
sequência, solicitávamos que informassem suas
opiniões sobre as iniciativas governamentais
para avaliação da aprendizagem. As questões
foram formuladas em momentos diferentes
para que pudéssemos separar as opiniões e o
conhecimento técnico relacionado às avaliações
externas. Essa estratégia foi utilizada porque
a bibliografia e a pesquisa empírica realizada
em jornais e revistas de grande circulação
indicavam a ausência de consenso sobre os
sistemas de avaliação. O debate público sobre
as avaliações externas de aprendizagem agrega
discursos que as deslegitimam, em oposição
direta àqueles que as apresentam como o
melhor caminho para a gestão educacional. De
Rodrigo ROSISTOLATO; Guilherme VIANA. Os gestores educacionais e a recepção dos sistemas externos de avaliação...
um lado, a proposta é abandonar as avaliações
em prol da valorização do trabalho docente,5
ideia veiculada, principalmente, pelo discurso
sindical. Em oposição, surge a intenção de
consolidar os sistemas estaduais e municipais
de avaliação para que os resultados sejam mais
fidedignos e possam orientar a formulação de
políticas públicas no campo educacional. Essa
lógica orienta o discurso estatal, bem como as
políticas educacionais mais recentes.6
A oposição entre os discursos sindical e
governamental deve ser considerada, no plano
analítico, em termos típico-ideais. Entre a total
negação e a total aceitação, há um conjunto de
configurações possíveis, cada uma delas mais
próxima de um dos lados desse gradiente de
classificações. No debate público, no entanto,
as oposições tendem a recrudescer-se e agregar
pessoas e discursos institucionais na disputa por
definições sobre a escola, o ensino, os sistemas
de avaliação, a carreira docente e os propósitos
da educação pública universal.
Os gestores entrevistados conhecem os
sistemas externos de avaliação. Todos afirmaram
que a implantação das avaliações modificou
seu
cotidiano
profissional,
produzindo
novas demandas para eles próprios e para os
professores. Suas falas revelam interpretações
e reinterpretações presentes nos processos de
recepção dos sistemas de avaliação em suas
escolas. Todos indicam que não têm como deixar
de trabalhar com os dados, porque a posição de
gestor pressupõe o diálogo com a gestão central,
tanto no caso da rede estadual, quanto no caso
da rede municipal. Por isso, precisaram analisar
as propostas públicas de avaliação educacional,
desenvolver uma reflexão sobre seu sentido e suas
finalidades, e trabalhar com a implementação
dos sistemas em suas escolas, dialogando com
os discursos sindical e governamental. É possível
dizer que, para os gestores, a possibilidade de
aderir integralmente ao discurso sindical ou ao
5 - As matérias jornalísticas contrárias às avaliações externas opõem avaliação
e valorização do trabalho docente. Não há expectativas de que as avaliações
possam contribuir para a valorização dos profissionais da educação.
6- No caso do governo do Estado, o Sistema de Avaliação da Educação
do Estado do Rio de Janeiro (SAERJ); no âmbito municipal, a Prova Rio.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 13-28, jan./mar. 2014.
discurso governamental não se apresenta, pois
suas funções estão diretamente relacionadas
à promoção do diálogo entre as políticas
educacionais e o cotidiano escolar. Nesse sentido,
eles podem ser classificados como mediadores.
Gilberto Velho (2010) indica que
a mediação deve ser analisada como um
fenômeno fundamental no estabelecimento de
pontes entre diferentes e também como espaço
de reinvenção de códigos, redes de significados
e de relações sociais, contribuindo para a
expansão e o desenvolvimento de novas formas
de ver e conceber o mundo social. De acordo
com ele, há vários tipos de mediadores, sendo
que agentes ativos em movimentos sociais,
intelectuais, cientistas, autores e artistas são
pessoas que podem utilizar suas pesquisas e
reflexões para contribuir com a ampliação dos
modos de comunicação e diálogo. A mediação
não ocorre exclusivamente em espaços de
consenso. Ela é parte integrante de espaços
de conflito. No caso específico dos gestores
escolares, considerando-se a oposição entre as
narrativas sindicais e as governamentais, esses
profissionais exercem um tipo de mediação
ativa, pois dialogam diariamente com os
agentes envolvidos nas disputas que compõem
tal arena de debates.
Durante as entrevistas, os gestores realizam um tipo de socioanálise7 de sua posição no
debate. Enfatizam ter algum grau de empatia
com o discurso docente, porque também são, ou
foram, docentes de sala de aula, mas indicam
que sua função não permite uma postura de negação radical das avaliações externas. Mesmo
aqueles que não concordam com as avaliações
precisam entendê-las, além de contribuir para a
difusão do conhecimento técnico e a ampliação
do diálogo no cotidiano de suas escolas, bem
como nos espaços centrais de gestão. A análise
de suas falas revela os interstícios, as contradições, os consensos, os conflitos que compõem
os diálogos proporcionados pela inserção de
avaliações externas no cotidiano escolar.
7- Para o debate sobre a socioanálise, ver trabalho de Sayad (1998).
19
Arnaldo associa as avaliações externas
àquilo que considera como um movimento
mundial na educação. Ele as aprova e as
classifica como mudança de foco, pois entende
que a avaliação deve ter como alvo a instituição,
e não os estudantes. Diz que é normal imaginar
que as instituições que destinam dinheiro
para a educação, sejam elas estatais ou
particulares, desejem avaliar o resultado de
seus investimentos. Ele classifica o IDEB como
um índice avançado, uma vez que leva o fluxo
escolar em consideração. O entrevistado também
indica que o IDEB de sua escola está baixo
e culpa a evasão escolar. Ao mesmo tempo,
aponta problemas relacionados aos professores.
A evasão, especificamente, seria um problema
causado pelos professores que não conseguem
sustentar “um olhar diferenciado” perante os
alunos. Arnaldo afirma que os professores, por
sua vez, culpam os estudantes e dizem que o
corpo discente “não quer nada”. Ele acredita que
os resultados das avaliações podem contribuir
para a reorganização de uma escola que não
tenha sido bem avaliada, mas destaca, citando
os sindicatos, resistências que contribuem para
que os professores rejeitem as avaliações e não
desejem nem mesmo conversar seriamente
sobre elas.
Arnaldo aponta os sindicatos de professores como a principal oposição às avaliações
externas de aprendizagem. Ele nos mostrou
um jornal sindical fixado no mural da escola
e comentou que o material não incentivava a
reflexão, porque trazia um tipo de negação que
não dependia de debate. Também informou que,
quando reúne o corpo docente para conversar
sobre os resultados obtidos pela escola, recebe
silêncio. Os professores não entram em conflito ou em oposição ao gestor, mas também não
apresentam nenhum tipo de consenso sobre os
resultados e/ou as metas estabelecidas.
Essa reflexão sobre os sindicatos é
convergente com o que encontramos durante o
acompanhamento da mídia sindical. Em 2011
e 2012, analisamos debates sindicais sobre
as avaliações e encontramos regularidades
20
nas narrativas relacionadas aos sistemas de
avaliação. Eles são considerados um mal
em si; uma política pública mal formulada
e danosa aos sistemas educacionais. Há
um slogan presente nessas narrativas que
indica o centro de significados associados
às avaliações. Trata-se da crítica baseada na
ideia de que escola não é fábrica. Por isso,
qualquer tentativa de debate sobre as metas
estabelecidas é deslegitimada e classificada
como danosa aos sistemas educacionais.
Em 2012, o boletim informativo Conselho
de Classe, veiculado pelo SEPE (Sindicato
Estadual dos Profissionais de Educação do Rio
de Janeiro), apresenta uma matéria com o título:
Redes estadual e municipais: mesma luta, mesmos
objetivos. O texto critica as políticas educacionais
presentes no Estado e nos municípios do Rio de
Janeiro e argumenta que as tentativas de avaliação
e estabelecimento de metas são orientadas por
um modelo de racionalidade equivalente àquele
presente em fábricas que produzem mercadorias.
Há um conjunto de sentidos atribuídos às
oposições fábrica versus escola e mercadoria
versus estudantes. O principal é a negação da
padronização nos processos educacionais e a
ênfase na impossibilidade de avaliar o produto
final da educação. A citação a seguir sintetiza os
argumentos apresentados na matéria.
Os governantes traçam metas como se as
escolas fossem fábricas e os profissionais
e alunos mercadorias, como se fosse
possível padronizar o conhecimento e
medir a qualidade da educação através
de testes e estatísticas. E é por isso, que
cada vez mais, os secretários de educação
são economistas ou administradores como
Wilson Risolia no Estado ou Cláudia
Costin na capital [...]. Essa é a educação
dos economistas/secretários: o que
importa são os índices, não a realidade
das salas de aula. (REDES, 2012)
A oposição escola versus fábrica renova
as narrativas contrárias às avaliações até
Rodrigo ROSISTOLATO; Guilherme VIANA. Os gestores educacionais e a recepção dos sistemas externos de avaliação...
mesmo em espaços que não estão diretamente
relacionados à escola. O bloco carnavalesco
organizado pelo SEPE em 2012 teve como
tema Professores na folia - educação não
é mercadoria.8 Tais slogans e as oposições
por eles ativadas configuram um dos lados
do gradiente de representações associadas
às avaliações. O lado oposto aparece
representado pelas Secretarias de Educação e
seus respectivos gestores.
O conjunto de críticas e até mesmo de
negações radicais aos sistemas de avaliação
também tem sido apresentado por pesquisadores
reconhecidos nacional e internacionalmente. Os
argumentos não são exatamente os mesmos,
mas a crítica à padronização do ensino e aos
mecanismos de avaliação indica convergências
discursivas.9 Há, inclusive, a incorporação
dos argumentos de pesquisadores no discurso
sindical, mesmo que tais pesquisadores não
estejam diretamente vinculados ao movimento
sindical. O caso mais evidente é o incentivo
à leitura do texto da pesquisadora Diane
Ravitch (2011):10 o livro foi traduzido e pode ser
adquirido no próprio SEPE.
No campo acadêmico, entretanto, não
há consenso sobre as avaliações externas. Da
mesma forma que são veiculadas críticas em
convergência com aquelas apresentadas pelos
sindicatos, há analistas que apoiam as avaliações
externas. Eles também tecem críticas, mas estas
são orientadas para o refinamento dos sistemas
de avaliação e utilização dos dados. Soares
(2011) apresenta o processo de produção do
IDEB e analisa suas falhas. O autor afirma que
o uso equivocado dos indicadores produzidos
pelas avaliações externas, principalmente
quando utilizados como norteadores de
políticas de responsabilização, pode, de certa
forma, levar a fraudes e trazer consequências
8 - Disponível em: <http://www.seperj.org.br/ver_noticia.php?cod_
noticia=2797>. Acesso em: 8 mar. 2013.
9 - Ver, especificamente, o trabalho de Ravitch (2011).
10 - The Death and Life of the Great American School System: How
Testing and Choice Are Undermining Education. Título em português: Vida e
morte do grande sistema escolar americano: como os testes padronizados
e o modelo de mercado ameaçam a educação.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 13-28, jan./mar. 2014.
pedagógicas indesejáveis. Por isso, ele afirma
que as questões técnicas e metodológicas
presentes na construção do IDEB precisam ser
apresentadas e discutidas publicamente.
No caso específico do Rio de Janeiro, a
Secretaria Estadual de Educação vem efetuando
algumas tentativas de apresentação e debate
sobre os indicadores educacionais produzidos.
Tais espaços também são utilizados para refletir
sobre as políticas de responsabilização. Além
disso, as unidades escolares têm realizado
reuniões de apresentação do SAERJ (Sistema
de Avaliação da Educação do Estado do Rio
de Janeiro) e da GIDE (Gestão Integrada das
Escolas), siglas que representam o conjunto de
políticas de avaliação e accountability propostas
pelo governo estadual para renovação do
sistema estadual de educação e cumprimento
de metas estabelecidas para o sistema e para
cada escola. Em 2011, cada unidade escolar
recebeu a visita de um integrante do Grupo de
Trabalho da Secretaria Estadual de Educação11
para apresentação e debate. Em 2012, as escolas
receberam visitas de acompanhamento a fim de
que apresentassem o que fizeram para alcançar
as metas propostas. Nessas ocasiões, o corpo
de gestão da escola apresentou as atividades
realizadas e os IGT’s (sigla que define os
integrantes do Grupo de Trabalho) comentaram
as estratégias estabelecidas e os caminhos a
seguir.
Entre os gestores entrevistados, o
trabalho cotidiano com as políticas de avaliação
e accountability não é sinônimo de sua
aceitação. A trajetória de Alice, por exemplo,
foi diretamente afetada pela implementação
das avaliações externas. Ela é professora PII12
no município do Rio de Janeiro e até 2010
atuava como docente nos primeiros anos do
11 - O Grupo de Trabalho foi criado pela Secretaria Estadual de Educação
para orientar os gestores. Os integrantes também mantêm blogs
informativos em que gestores, professores e público interessado podem
ter acesso às atividades. Entre esses blogs, podemos citar: <http://
conhecendooorientadordegestao.blogspot.com/2011/08/gide-noticias.
html> e <http://claudiaorientadora.blogspot.com/2011/07/gide.html>.
12 - Os professores PII são aqueles concursados para os anos iniciais do
ensino fundamental.
21
ensino fundamental. A transição para a gestão
ocorreu porque uma de suas alunas do 4º ano
do ensino fundamental foi a primeira colocada
na Prova Rio, tendo recebido nota máxima
em matemática e em língua portuguesa.
Assim, Alice, sua aluna e a diretora da escola
foram entrevistadas e receberam destaque em
diversas páginas na internet.13
O resultado positivo e a notoriedade
obtida pelo sucesso na Prova Rio fizeram
com que Alice fosse convidada pela CRE
(Coordenadoria Regional de Educação) para
assumir um cargo de gestão. Ela, no entanto,
é absolutamente contrária às avaliações de
aprendizagem e afirma que ninguém, além dos
professores, deve medir o nível de aprendizado
dos alunos, a não ser que esse instrumento de
medida seja construído pela própria escola.
O principal fundamento de seu argumento
é que as diferenças regionais e sociais têm
influência direta nos resultados apresentados
pelos estudantes, o que, em sua visão, impede
qualquer comparação entre as escolas.
Como exemplo, Alice comenta que sua
escola atual recebeu, recentemente, alunos
de uma localidade reconhecida por seus altos
índices de violência – uma favela da região. A
professora não citou os índices de violência ou
os dados que fundamentavam a comparação.
Todavia, afirmou que os alunos pertencentes à
região de favela estavam criando dificuldades
para a escola e poderiam impedir o cumprimento
das metas. Ela diz:
Eles [os alunos antigos] até que estão
indo bem. Porque a maioria não tem
compromisso nenhum, né? Porque esse
ano eles abriram mais turmas. A escola
foi obrigada a receber um grupo de alunos
vindos de outra comunidade,14 de outro
lugar, então vieram muitas crianças
despreparadas, porque as crias da escola
você vê a diferença. Uma separação
13 - Para manter o anonimato da entrevistada, as páginas não serão citadas.
14 - As crianças foram transferidas por causa do fechamento de sua
escola de origem.
22
incrível. A gente fez uma festa junina
agora no meio do ano e você via na festa
uma separação do grupo que já era da
escola e um grupo que chegou esse ano.
A escola recebeu um grupo de alunos
problemáticos, de uma comunidade que
é a [nome suprimido]. Aí tudo mudou.
(grifo nosso)
Quando questionada sobre as metas
da escola, Alice respondeu que não sabia se
conseguiria cumpri-las, pois os “alunos de fora”
não tinham a base considerada necessária para
o sucesso nas avaliações. Essa percepção é
convergente com sua visão sobre a Prova Brasil.
Ela não concorda com a avaliação nacional
porque entende que todas as avaliações devem
ser regionais. Também salienta que há muitas
diferenças entre as crianças que são atendidas
por um mesmo sistema educacional. Citando a
própria experiência, afirma que as crianças que
vivem na zona sul do Rio de Janeiro, por ela
classificadas como “crianças que moram lá em
baixo”, têm melhor nível socioeconômico do
que as crianças da região em que sua escola está
inserida. As crianças de sua região são, em seu
entender, muito sofridas e, por isso, não deveriam
ser avaliadas com os mesmos critérios utilizados
para as “crianças que moram lá em baixo”.
A fala de Alice é orientada por duas
oposições. A primeira diferencia as crianças
formadas pela escola e aquelas que chegaram
recentemente por conta do fechamento de uma
escola da favela. A segunda opõe as crianças
de toda a região às que “moram lá em baixo”
e que seriam, portanto, privilegiadas social
e economicamente. A primeira oposição
é equivalente àquela mapeada por Elias e
Scotson (2000) em Winston Parva. Naquele
contexto, moradores com indicadores objetivos
– sexo, idade, cor da pele, renda, escolaridade
– equivalentes identificavam-se com base em
uma lógica que permitia que os mais antigos
se pensassem de maneira coesa em oposição
aos mais novos. Os mais novos eram vistos
como mais sujos, mais pobres, mais feios e
Rodrigo ROSISTOLATO; Guilherme VIANA. Os gestores educacionais e a recepção dos sistemas externos de avaliação...
mais perigosos do que os mais antigos. Os mais
antigos, inclusive, sentiam-se ameaçados com
a presença dos mais novos. No caso específico
da escola, a presença dos alunos mais novos
ameaça, na visão da gestora, a manutenção dos
índices educacionais e o cumprimento das metas.
A segunda oposição apresentada por
Alice indica que os estudantes com nível
socioeconômico mais baixo deveriam ser
avaliados de maneira diferente. Ela afirma que a
Prova Brasil e a Prova Rio têm o objetivo de fazer
com que todos os estudantes fiquem no mesmo
nível. Para isso, é necessário obrigar o professor
a trabalhar de maneira equivalente em todas
as turmas. Porém, em sua visão, a realidade dos
estudantes não é semelhante e isso impede que o
trabalho dos professores seja igual para todos. Ela
afirma que as avaliações externas engessaram os
professores e que o ensino tende a piorar porque
será reduzido ao cumprimento das metas.
A narrativa apresentada por Alice
guarda convergências com aquela realizada
pelo movimento sindical. Ela entende que o
professor deve ter autonomia para avaliar e
realizar seu planejamento. Entretanto, seu foco
é diferente porque, ao contrário do discurso
sindical, ela não associa a qualidade da
educação às condições materiais de existência
dos professores. Sua crítica à proposta
homogeneizadora contida nas avaliações
externas é fundamentada por sua leitura
sobre a composição social e econômica dos
estudantes. A lógica de seu discurso articula
reflexões sobre igualdade e diferença porque,
em sua visão, se os estudantes são diferentes
em todas as esferas da vida social, não
podem ser iguais quando ocupam os espaços
escolares. Há, nessa lógica, uma crítica ao
modelo republicano de escola associada à
crença em sua impossibilidade para o contexto
socioeconômico da cidade do Rio de Janeiro.
Tal lógica também aparece na fala de
Joaquim. Ele é favorável às avaliações externas
e entende que o estabelecimento de metas é
importante, porque “tudo na vida tem que ter
metas”. Em sua opinião, as avaliações são um
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 13-28, jan./mar. 2014.
feedback necessário. Com relação ao desempenho
de sua escola, ele citou os problemas vividos e
os apresentou como justificativa para o baixo
desempenho. Disse que recebia crianças de
todos os tipos e fez uma comparação com a
escola de seu filho.
Meu filho não entende o que acontece
aqui nesta escola e pergunta: “pai,
porque a sua escola é assim e assim?”.
E eu digo: “filho, a escola pública tem
outra filosofia, diferente da sua escola”.
Ele estuda no [colégio particular],
mensalidade de 980 reais. Mas como ele
é um excelente aluno, fez um bolsão e
conseguiu 75% de desconto. Eu só pago
lá no [colégio particular] 240 reais. E eu
digo pra ele: “filho, se eu pegar os meus
alunos do [colégio público] e botar lá no
[colégio particular] e botar os do [colégio
particular] aqui no [colégio público], lá
vai virar [colégio público] e aqui vai virar
[colégio particular]”. Então quem faz a
diferença da escola é o aluno.
Joaquim entende que a gênese dos
problemas enfrentados por sua escola está na
origem social do alunado. Ele chega a afirmar que
recebe estudantes moradores de favelas que, em
sua opinião, não pagam impostos, mas mesmo
assim têm acesso à escola. Ao mesmo tempo
recebe estudantes que são filhos de funcionários
públicos que, em sua opinião, pagam todos os
impostos. O entrevistado indica que o problema
é que ele tem que atender a todos – os estudantes
moradores de favelas e os que não residem em
favelas – e precisa fazer isso no mesmo espaço.
Essa visão, associada à sua percepção
de que são os alunos que fazem a escola,
sustenta a ideia de que a escola não tem como
equilibrar as diferenças socioeconômicas e
culturais existentes entre os estudantes. Há,
portanto, uma crítica ao que ele classifica como
“escola inclusiva” orientada pela crença de que
as diferenças entre as pessoas – no caso, os
estudantes – são determinantes dos fracassos
23
individuais e também do fracasso coletivo da
escola. A solução implícita no discurso seria uma
escola não inclusiva.
Por outro lado, há gestores que deslocam
a reflexão para o corpo docente. Geovana, por
exemplo, é favorável às avaliações externas.
Ela indica que algumas arestas precisam ser
aparadas, mas não diz exatamente quais
seriam. Afirma apenas que o governo deveria
conhecer os parâmetros de cada escola para
que as avaliações fossem mais consistentes. Sua
visão positiva das avaliações está associada à
cobrança ocasionada por elas. Em suas palavras:
Olha, eu acho que a partir do momento em
que você é mais cobrado, infelizmente é
assim, você começa a produzir um pouco
mais com boa ou má vontade. Então, a
partir do momento em que você tem uma
prova externa onde vai ser cobrado aquele
conteúdo que tem que dar, você vai correr
atrás porque senão você vai ficar como
o alvo do fator negativo. Eu acho que dá
uma mexida. Não sei se já mexeu muito,
mas é motivo pra mexer sim.
Quando fala sobre o desempenho de sua
escola, Geovana desloca a reflexão do aluno
para o professor. Ela afirma que os professores
são conscientizados paulatinamente, com
base em um trabalho da gestão. O trabalho
contínuo faz com que os docentes entendam
as vantagens do trabalho com os alunos. Sua
narrativa apresenta expectativas positivas
relacionadas aos estudantes e à capacidade de
aprendizado. Segundo ela, os caminhos devem
ser estabelecidos pelos profissionais da escola
e o desempenho dos alunos aparece como
resultado desse trabalho.
Joana afirma que as avaliações, como
estatísticas, são válidas. Porém, diz que as
iniciativas governamentais para avaliação da
aprendizagem dos alunos são “tudo política”.
Ela culpa os professores pelos resultados das
escolas porque, em sua opinião, quando eles
não querem fazer nada, utilizam uma série
24
de estratégias para “engabelar os estudantes”.
Sua fala também indica fatores positivos
relacionados às avaliações. Ela afirma que,
como ninguém deseja perder o emprego
ou ganhar menos, os professores acabam
tensionados porque as estatísticas assustam.
Joana também entende que as avaliações
deveriam se voltar para os professores antes dos
alunos. Os concursos, segundo ela, são falhos
e permitem que os professores passem. Com
relação à principal causa do desempenho de sua
escola, ela declara:
Desinteresse mesmo. Os professores não
têm tempo pra ficar trabalhando com os
alunos isso, e os alunos não têm base
pra essa prova que vem de fora. É muito
difícil pra eles. A mesma prova que é dada
aqui é dada no [outro colégio público] no
primeiro turno. Isso não dá pra eles. Então
essas escolas menores com alunos com
menos embasamento, coitadas, ficam lá
embaixo e vão ficar sempre.
De início, Irene era contra as avaliações
externas porque, segundo ela, não havia participação dos professores. Passou a ser favorável
quando percebeu que tais avaliações poderiam
contribuir para a universalização do ensino. Ela
também indica que as avaliações externas ampliam o controle dos sistemas educacionais:
Agora, eu acho que as avaliações externas
são válidas, sim. A gente sabe que quando
as coisas são feitas de uma forma muito
fechada e não existe uma avaliação
externa pra dar uma nota àquela escola, se
torna um domínio muito perigoso porque...
de repente a escola está fazendo só por
sua conta e os professores também. Eu
acho que a escola tem que universalizar
mesmo, fazer isso que o Estado tá fazendo
de universalizar o conhecimento.
Irene foi a gestora mais favorável às
avaliações externas e à universalização do
Rodrigo ROSISTOLATO; Guilherme VIANA. Os gestores educacionais e a recepção dos sistemas externos de avaliação...
conhecimento escolar. Ela afirmou que as
avaliações externas e o currículo mínimo
contribuem para a organização da distribuição
dos saberes escolares. Disse que está surpresa
com esse resultado, porque tem recebido
estudantes transferidos que, em suas escolas de
origem, estavam estudando os mesmo pontos
presentes nas disciplinas de sua escola, o que
não acontecia antes da implementação das
avaliações externas e do currículo mínimo.
Representações sobre nível
socioeconômico, diferença e
resultados escolares
A reflexão sobre as relações entre nível
socioeconômico e desempenho escolar está
presente na sociologia da educação desde que ela
se estabeleceu como área de estudos. O relatório
Colemann e todas as reflexões posteriores a ele
enfrentam a questão. Embora Colemann tenha
afirmado que a escola não faz diferença, há
estudos posteriores que indicam que a escola pode
fazer diferença ao reduzir as distâncias culturais
associadas às distâncias econômicas.15 Toda
a reflexão acadêmica favorável às avaliações
externas parte do pressuposto de que um sistema
educacional bem avaliado pode formular
estratégias mais coerentes para a redução
dessas distâncias. A fala dos entrevistados, ao
contrário, indica que as diferenças existem e que
os diferentes deveriam ser tratados pela escola
como diferentes.
No campo acadêmico, existe consenso
sobre a necessidade de se considerar o
nível socioeconômico dos estudantes. Mas
é necessário saber o significado de nível
socioeconômico, o que implica refletir sobre
a melhor maneira de medi-lo e incluí-lo na
equação final que indicará o desempenho das
escolas. Há classificações de senso comum
que transformam pobreza, riqueza e nível
socioeconômico em sinônimos. Assim, crianças
mais pobres têm menor nível socioeconômico
15 - Ver os trabalhos de Franco e Bonamino (2001) e de Alves e Soares (2007).
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 13-28, jan./mar. 2014.
do que crianças menos pobres. Essa informação
faz sentido e alicerça debates cotidianos, mas,
quando se considera uma avaliação nacional,
a abordagem precisa ser metodologicamente
justificada. No entanto, é possível dizer que as
representações dos professores sobre os alunos
criam expectativas com relação à capacidade de
aprendizado dos discentes e não dependem do
refinamento dos indicadores educacionais para
que se imponham e criem certas profecias que
acabam por se cumprir.
É necessário destacar que, conforme
afirma Soares (2011), a própria utilização do
IDEB como índice norteador de políticas educacionais pode proporcionar o aumento dos processos de exclusão educacional, mesmo que o
indicador tenha sido pensado para promover o
efeito inverso. De acordo com o autor, como a
concepção do IDEB considera apenas os alunos
presentes no dia do teste, a escola pode, sem
ferir a Lei, impedir que os alunos mais fracos
façam a Prova Brasil. Também há problemas
na utilização da média de desempenho dos alunos, pois esta é influenciada pelos valores extremos e pode fazer com que as escolas optem
por investir mais nos alunos que já sabem mais.
Assim, parece evidente que, caso as escolas
queiram, poderão manipular o índice, utilizando como estratégia a exclusão dos alunos com
maiores dificuldades de aprendizagem.
Considerações finais
O discurso dos gestores entrevistados
indica que as avaliações externas de
aprendizagem já estão inseridas no cotidiano
escolar. Nenhum deles ignorou as avaliações e
seus reflexos em suas atividades profissionais.
Mesmo aqueles que as questionam necessitam
mediar os diálogos entre as unidades escolares
que administram e a gestão central, além de
investir em reflexões junto ao corpo docente de
suas escolas.
Os entrevistados criticam as avaliações
externas com foco dirigido para a universalidade das avaliações. Trata-se de uma reflexão
25
que envolve representações sobre nível socioeconômico, diferença e resultados escolares. Em
síntese, as visões críticas relacionadas às possibilidades de os sistemas educacionais avaliarem a distribuição dos saberes públicos são
fundamentadas pela crença na impossibilidade
de a escola, como instituição, universalizar a
distribuição desses saberes entre os estudantes
que a procuram.
O raciocínio segue uma lógica que associa
diferenças econômicas e sociais à impossibilidade de aprendizado escolar. Talvez a superação
dessa crença seja o principal desafio para que
as avaliações externas de aprendizagem passem
a ser vistas como instrumentos capazes de contribuir para a distribuição equitativa de saberes
escolares no Brasil e no Rio de Janeiro e sejam
incorporadas à cultura das escolas.
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Recebido em: 24.07.2012
Aprovado em: 31.10.2012
Rodrigo Rocha Rosistolato é doutor em Ciências Humanas, professor do Departamento de Fundamentos da Educação da
Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do Laboratório de Pesquisa em
Oportunidades Educacionais (LaPOpE) e do Observatório Educação e Cidade.
Guilherme Viana é pesquisador do Laboratório de Pesquisa em Oportunidades Educacionais (LaPOpE) e do Observatório
Educação e Cidade.
28
Rodrigo ROSISTOLATO; Guilherme VIANA. Os gestores educacionais e a recepção dos sistemas externos de avaliação...
Avaliação e classificação de instituições de ensino
médio: um estudo exploratório
André Luís Policani FreitasI
Vinicius Barcelos da SilvaII
Resumo
Os números recentes da educação no Brasil revelam desempenhos
ruins dos estudantes nos níveis de educação elementar e básica,
que constituem o alicerce da educação superior. Esse cenário foi
o principal motivador para o desenvolvimento da abordagem
exploratória apresentada no presente artigo. Fundamentada
em dimensões e critérios presentes em estudos científicos e no
emprego de um método de apoio à decisão (ELECTRE TRI) e da
análise dos Quartis, a abordagem proposta buscou avaliar e
classificar a qualidade de uma Instituição de Ensino Médio (IEM),
segundo a percepção do corpo docente e discente. Por meio de
um estudo realizado em um campus de um Instituto Federal de
Educação Tecnológica, o coeficiente alfa de Cronbach (1951) foi
utilizado para medir a confiabilidade dos questionários, enquanto
a análise dos Quartis foi utilizada para determinar os itens mais
críticos. Os resultados indicam que os questionários são válidos
e confiáveis. Déficit de aprendizado acumulado pelos alunos
em níveis anteriores de ensino, o desinteresse na participação
das aulas e no aprofundamento do conteúdo das disciplinas e a
falta de estudos em casa são alguns itens mais críticos, segundo
a percepção dos docentes. Por outro lado, a falta de clareza na
explicação da disciplina, a falta de domínio da turma e a frequência
de uso de laboratórios e recursos audiovisuais são alguns dos itens
mais críticos, segundo a percepção dos discentes. Ao desenvolver
essa abordagem exploratória para avalição e diagnóstico de IEM,
espera-se contribuir com os gestores dessas instituições para que
ações precisas com relação à melhoria da qualidade do ensino
médio possam planejadas e executadas pelos órgãos oficiais.
Palavras-chave
IUniversidade Estadual do
Norte Fluminense, Campos dos
Goytacazes, RJ, Brasil.
Contato: [email protected].
II- Instituto Federal Fluminense,
Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil.
Contato: [email protected]
Instituições de ensino médio — ELECTRE TRI — Classificação da
qualidade — Qualidade em serviços.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 29-47, jan./mar. 2014.
29
Evaluation and ranking of secondary schools: an
exploratory study
André Luís Policani FreitasI
Vinicius Barcelos da SilvaII
Abstract
The recent figures of education in Brazil reveal poor student
performance in primary and secondary education, which are
the foundation of higher education. This scenario was the main
motivation for the development of the exploratory approach
presented in this article. Based on dimensions and criteria present
in scientific studies and on the use of a method of decision support
(ELECTRE TRI) and Quartiles analysis, the proposed approach
aimed to evaluate and rank the quality of an institution of
secondary education, according to the perceptions of faculty and
students. Through a study carried out in a campus of a Federal
Institute of Technology Education, Cronbach’s alpha coefficient
(1951) was used to measure the reliability of the questionnaires,
and the Quartiles analysis was used to determine the most critical
items. The results indicate that the questionnaires are valid and
reliable. The learning deficit accumulated by students at previous
levels of education, lack of interest in participating in classes and
in deeply understanding the content of disciplines, as well as lack of
homework completion are some critical items perceived by teachers.
On the other hand, lack of clarity in the explanation of content of
disciplines, lack of control of the class and the frequency of use of
laboratories and audiovisual resources are some of the most critical
items perceived by students. In developing this exploratory approach
to the evaluation and diagnosis of secondary education institutes,
we hope to contribute with the managers of such institutions so
that precise actions to improve the quality of secondary education
can be planned and carried out by official bodies.
Keywords
I- Universidade Estadual do Norte
Fluminense, Campos dos Goytacazes,
RJ, Brazil.
Contact: [email protected].
II- Instituto Federal Fluminense,
Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil.
Contact: [email protected]
30
Secondary education institutions — ELECTRE TRI — Quality ranking
— Quality services.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 29-47, jan./mar. 2014.
Nas últimas décadas, o Brasil tem monitorado a qualidade da educação básica por
meio de diversos sistemas de avaliação nacionais e internacionais, os quais têm constatado
a baixa qualidade da educação básica oferecida
pela rede pública de ensino, principalmente no
ensino médio. Esses resultados geram diversos
problemas para o país e ferem as finalidades do
ensino médio estabelecidas na Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional (LDB) (BRASIL,
1996). Apesar de, nos últimos anos, terem sido
notados avanços com relação à melhora na
qualidade da educação, esses são modestos e o
desempenho apresentado pelos alunos brasileiros é inferior à média dos países desenvolvidos.
Dentre outros aspectos, a qualidade insatisfatória da educação resulta na formação
de profissionais menos capacitados e na maior
dificuldade na continuidade dos estudos do aluno oriundo dessas instituições. Além disso, pode
criar uma vulnerabilidade no país frente a outros
países, dado o pressuposto de que ter uma força
de trabalho especializada é crucial para aumentar sua competitividade na economia mundial.
Com o objetivo de minimizar o problema de acesso ao ensino superior dos estudantes oriundos de escolas públicas, o governo
federal e alguns governos estaduais têm adotado medidas, tais como a reserva de vagas
em universidades públicas, a serem preenchidas através do sistema de cotas sociais e raciais, e a concessão de bolsas de estudo para
alunos matriculados em instituições de ensino
superior privadas. Motivo de discussões entre
educadores e pesquisadores de diversas áreas
de conhecimento, a análise da viabilidade e da
efetividade das políticas de concessão de bolsas e do emprego de cotas sociais e raciais não
está no contexto do presente artigo. Porém, é
de senso comum que a adoção dessas medidas,
por si só, não resolverá o problema de baixa
qualidade da educação básica brasileira. Mais
ainda, é perceptível que ingressantes no ensino superior por meio dessas políticas trazem
consigo fragilidades e deficiências não sanadas durante o ensino básico.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 29-47, jan./mar. 2014.
Nesse contexto, a Constituição federal
brasileira (1988) estabelece diversos princípios da educação, dentre os quais se destaca
a garantia do padrão de qualidade no ensino.
Entretanto, esse documento não define exatamente qual seria esse padrão de qualidade, cabendo aos órgãos responsáveis pela educação
nacional a sua definição e aperfeiçoamento.
Segundo Freitas, Rodrigues e Costa
(2009), é essencial a existência de um sistema
de avaliação capaz de garantir que a qualidade da educação fornecida pelas instituições de
ensino atenda aos padrões recomendados. Em
especial, é preciso que haja um sistema de avaliação que possa detectar o nível de qualidade
das Instituições de Ensino Médio (IEM), identificando problemas e fragilidades a serem sanadas com vistas à melhoria contínua do ensino.
Nesse sentido, a avaliação institucional é um importante instrumento na busca de
informações no que se refere à qualidade dos
serviços prestados por uma instituição de ensino (FREITAS; FONTAN, 2008). De acordo com
Valério (2004), ela permite descobrir, no processo educacional, as falhas existentes desde o
planejamento dos conteúdos didáticos até o relacionamento professor-aluno sendo, portanto,
uma importante ferramenta de gestão.
O interesse das Instituições de Ensino
Superior (IES) em melhorar o nível de qualidade
da educação, aumentando consequentemente
seu desempenho/conceito perante o Ministério
da Educação e Cultura (MEC), motivou o desenvolvimento de vários estudos associados
à avaliação e classificação da qualidade dos
serviços prestados por essas instituições. Parte
significativa das investigações realizadas retrata abordagens fundamentadas no emprego de
métodos de apoio multicritério à decisão e técnicas correlatas. Alguns desses estudos podem
ser encontrados em Embiruçu, Fontes e Kalid
(2012); Freitas, Rodrigues e Costa (2009); Neves
e Costa (2006); Freitas e Rodrigues (2006); e
Lins, Almeida e Bartholo Junior (2004).
Entretanto, existe uma carência de estudos
similares tendo como foco principal a avaliação
31
e classificação da qualidade do ensino nas IEM.
Desejando contribuir para o preenchimento dessa lacuna, este artigo apresenta uma abordagem
metodológica para autoavaliação das IEM que
avalie sua realidade, seguindo os princípios da
qualidade e utilizando técnicas estatísticas e métodos de apoio à tomada de decisão. Essa abordagem visa a captar dados e informações, além
de classificar a qualidade do ensino médio sob a
percepção do corpo docente e discente da instituição. Considerando que em grande parte das escolas públicas brasileiras os recursos são escassos
para solucionar problemas de grande magnitude,
a abordagem tem como objetivo contribuir para
a melhoria da qualidade da educação, auxiliando
gestores na busca de soluções para os problemas
detectados, identificando os mais críticos e, por
conseguinte, permitindo às IEM priorizar ações e
o uso de recursos.
O artigo está organizado da seguinte forma. Primeiramente, apresentam-se os principais
sistemas de avaliação e evidenciam-se problemas existentes na educação básica no Brasil; na
sequência, descreve-se a abordagem proposta
para autoavaliação de IEM; em seguida apresenta-se um estudo exploratório e destacam-se
os principais resultados, por fim, são colocadas
as considerações finais.
Sistemas de avaliação e a
educação básica brasileira
Ao longo do século XX, diversos
sistemas de avaliação e coleta de dados foram
desenvolvidos visando a mensurar a qualidade
dos serviços prestados pelas instituições de
ensino. Atualmente, a educação básica brasileira
possui, em âmbito nacional: um sistema de
levantamento de dados estatísticos educacionais,
o Censo Escolar; dois sistemas de avaliação, o
Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB)
e o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM);
além de um indicador da qualidade da educação
nacional, o Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica (IDEB). Todos são gerenciados
pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (INEP), uma
autarquia federal vinculada ao MEC.
O Censo Escolar consiste em um levantamento anual de dados estatísticos da educação
básica. Sua função é coletar dados dos estabelecimentos de ensino, número de matrículas, docentes, abandono e rendimento escolar de todas
as escolas públicas e privadas do país. Esse instrumento exibe o panorama nacional da educação, auxiliando os governos municipal, estadual e federal no desenvolvimento de políticas
públicas e execução de programas na área da
educação. O fornecimento de dados é obrigatório, inclusive para as instituições privadas.
Segundo dados do censo escolar 2009,
havia 8.337.160 alunos matriculados no ensino
médio, sendo que 88,33% desses estavam matriculados em instituições públicas, como mostra a
tabela 1. Um dado importante a ser considerado
pelos estudos científicos e políticas educacionais
é que 9 em cada 10 estudantes dessa modalidade
estão na rede pública de ensino.
Tabela 1 – Dados gerais sobre o ensino médio em 2009
Ensino médio
Brasil
Quantidade de alunos matriculados
Rede de ensino
Federal
Estadual
Municipal
Privada
8.337.160
90.353
7.163.020
110.780
973.007
Taxa de matrículas / rede de ensino
100,00%
1,08%
85,92%
1,33%
11,67%
Taxa de aprovação
75,90%
85,10%
73,50%
79,10%
93,3%
Taxa de reprovação
12,60%
12,60%
13,50%
10,00%
6,2%
Taxa de abandono
11,50%
2,30%
13,00%
10,90%
0,5%
Fonte: Censo escolar 2009 (BRASIL, 2010).
32
André Luís Policani FREITAS; Vinicius Barcelos da SILVA. Avaliação e classificação de instituições de ensino...
Os dados referentes ao rendimento escolar, que indica o grau de eficácia do ensino médio, mostram que, em 2009, 75,9% dos alunos
foram aprovados, enquanto que 12,6% foram reprovados e 11,5% abandonaram a escola. Essas
altas taxas de reprovação e abandono são alguns
dos principais problemas dessa modalidade de
ensino, conforme afirma Klein (2006). Enquanto
as regiões Norte e Nordeste apresentam os maiores percentuais de abandono escolar (16,4%), as
regiões Sul e Sudeste são as que mais reprovam
(14,1% e 14,8%, respectivamente).
O SAEB, criado em 1990, é composto
por dois processos de avaliação: a Avaliação
Nacional da Educação Básica (ANEB) e a
Avaliação Nacional de Rendimento Escolar
(ANRESC). Ambas são bianuais e compostas
por provas de língua portuguesa e de matemática, além de incluir a aplicação de questionários. A ANEB avalia alunos da 4ª e 8ª série
do ensino fundamental e do 3º ano do ensino
médio das escolas públicas e privadas do país,
localizadas nas zonas rural e urbana de todos
os estados. Por outro lado, a ANRESC possui
caráter universal, abrangendo todas as escolas
urbanas com mais de 30 alunos matriculados
nas 4ª e 8ª série do Ensino Fundamental, porém não avalia o ensino médio.
Dados do SAEB (2009) mostram que alunos do 3º ano do ensino médio obtiveram notas
268,8 e 274,7 nas avaliações de língua portuguesa e matemática, respectivamente (BRASIL,
2011). Essas notas indicam que tais alunos demonstram ter conhecimentos compatíveis aos
alunos da 8ª série do ensino fundamental (alunos do 3º ano do ensino médio deveriam apresentar notas entre 325 e 500). Apenas 11% dos
alunos apresentaram conhecimentos adequados
à sua série na disciplina matemática. Em língua
portuguesa essa taxa foi maior (28,9%), mas
ainda é considerada ruim.
Criado em 1998, o ENEM é anual e
consiste na aplicação de prova de múltipla
escolha que avalia conhecimentos básicos
do ensino médio, além de redação. Podem
participar do exame alunos que estão
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 29-47, jan./mar. 2014.
concluindo ou que já concluíram essa
modalidade de ensino em anos anteriores.
O exame é obrigatório aos candidatos que
desejam participar do Programa Universidade
para Todos (PROUNI), que fornece de bolsas de
estudo parciais ou integrais para que os alunos
possam estudar em IES privadas. Atualmente,
diversas IES têm utilizado o resultado do ENEM
de forma parcial ou integral no processo de
vestibular. No ENEM 2009, participaram cerca
de 2.500.000 candidatos, sendo que os mil
piores resultados foram obtidos por alunos
oriundos da rede pública de ensino (97,8%
desses das redes estaduais).
O IDEB consiste em um indicador que reúne dois conceitos da qualidade do ensino básico: fluxo escolar, usando dados sobre aprovação escolar obtido através do Censo Escolar; e a
média de desempenho nas avaliações em larga
escala, obtida através do SAEB. Esse índice, que
utiliza uma escala de zero a dez, é comparável
nacionalmente e expressa em valores os resultados mais importantes da educação: aprendizagem e fluxo (BRASIL, 2011). Dessa forma,
é possível comparar a qualidade da educação
oferecida à sociedade entre as cinco regiões e
entre os estados, a fim de direcionar políticas
públicas para melhorar a qualidade da educação básica dos estados com menores índices.
Os resultados do IDEB 2009 mostram a
fragilidade do ensino médio público no Brasil.
Nessa modalidade, a rede pública de ensino obteve índice de 3,4 pontos, diferentemente da rede
privada, com índice de 5,6 pontos. Esse índice é
muito preocupante, pois, conforme supracitado,
9 em cada 10 estudantes do ensino médio estão
na rede pública de ensino. Observando as metas
do IDEB para o ano de 2021, pode-se notar que
as metas da rede pública são menores que o atual
índice obtido pela rede privada de ensino. Esse
fato revela o enorme gap existente entre essas
redes, tendendo a continuar alto por um longo
tempo. Trata-se de um dos grandes desafios do
Brasil na melhoria da qualidade da educação,
como se observa nas metas do IDEB para o ano
de 2021 na tabela 2, a seguir.
33
Tabela 2 – Resultados do IDEB do ensino médio em 2007 e
2009
Redes de ensino
IDEB Observado
Metas
2007
2009
2009
2021
TOTAL
3,5
3,6
3,5
5,2
Pública
3,2
3,4
3,2
4,9
Privada
5,6
5,6
5,6
7,0
Fonte: Brasil (2011)
O Brasil também participa do Programa
Internacional de Avaliação de Alunos (PISA), realizado trienalmente nos países da Organização
para Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE) e em países convidados. O programa consiste em uma avaliação de leitura, matemática e
ciências, sendo aplicado a estudantes na faixa
dos 15 anos de idade. No Brasil, os alunos dessa
faixa etária estão iniciando o ensino médio.
De acordo com o PISA de 2009, a educação brasileira ocupa a 53a posição, dentre os 65
países avaliados. Enquanto que as médias das
notas dos países desenvolvidos pertencentes à
OECD estão próximas dos 500 pontos, o Brasil
registra médias de 386 pontos em matemática,
405 em ciências e 412 em leitura (OECD, 2010).
Mais da metade dos estudantes brasileiros tiveram desempenho inferior ao nível 2 da escala
do PISA em matemática e ciências – escala essa
que possui seis níveis – enquanto que na média dos países pertencentes a OECD apenas 20%
dos estudantes não alcançaram esse nível.
Esses dados revelam que os alunos que
estão iniciando o ensino médio já demonstram
um déficit de aprendizado acumulado ao longo
do ensino fundamental. Os resultados supracitados do SAEB, ENEM e IDEB também revelam
que o ensino médio brasileiro não tem conseguido reverter esse déficit. Em especial, analisando os dados no período de 2000 a 2009,
Kuenzer (2010) inferiu que essa década foi perdida para o ensino Médio, pois os problemas
continuam os mesmos. Os indicadores de acesso, permanência e sucesso dos alunos não apresentaram mudanças significativas, mostrando
34
que as ações propostas no Plano Nacional de
Educação de 2000-2010 não foram eficazes
para esse nível de ensino.
Muitos pesquisadores apontam a evasão
e, principalmente, o alto índice de repetência
escolar como causas para a baixa qualidade da
educação básica no país. O próprio governo admite que os altos índices de evasão e repetência
escolar são consequências da má qualidade do
ensino, provocada pelo baixo gasto público, professores mal remunerados e sem preparação adequada e escolas mal equipadas (BRASIL, 2003).
O repetente tende a abandonar a escola quando
chega à maioridade, não concluindo as séries da
educação básica, aumentando, assim, os indicadores de evasão escolar. Nesse contexto, Klein
(2006) afirma que o acesso à escola está universalizado, mas a conclusão dos ensinos fundamental e médio está longe de ser universalizada.
Ao analisar dados do PNAD e do SAEB sobre fluxo escolar e qualidade de ensino, o autor afirma
que a evasão escolar acontece em decorrência da
repetência, pois os alunos que não avançam nas
séries acabam expulsos da escola.
Outros fatores que também influenciam
no baixo rendimento dos alunos consistem
nas condições socioeconômicas e culturais
da família do estudante. Barros et al. (2001)
constataram que a escolaridade dos pais, em
particular a da mãe, tem um peso importante
no desempenho educacional dos jovens estudados. Um ano adicional de escolaridade dos
pais leva a um acréscimo de cerca de 0,3 ano
de estudo para seus filhos. Ney, Totti e Reid
(2010) realizaram uma análise a partir dos microdados da edição do ENEM 2005 e também
concluíram que as condições socioeconômicas
das famílias exercem forte influência sobre a
qualidade da educação básica. Os pesquisadores alertaram sobre a necessidade da elaboração de políticas públicas voltadas à melhoria
da qualidade do ensino público municipal e
estadual, a fim de reduzir as desigualdades de
oportunidades na fase de preparação para o
mercado de trabalho, além de conduzir mais
pessoas ao ensino superior.
André Luís Policani FREITAS; Vinicius Barcelos da SILVA. Avaliação e classificação de instituições de ensino...
Por outro lado, Silva (2010) questiona
a utilização dos dados produzidos pelo SAEB
e IDEB pelas redes de ensino. Ela afirma que a
análise superficial dos resultados, observando
apenas um índice/nota, tem levado as redes de
ensino a adotarem políticas educacionais que
transferem a responsabilidade do resultado positivo ou negativo para as escolas, professores
e alunos. Essa postura desencadeia premiações
diante dos resultados obtidos nos exames padronizados. Segundo a autora, as escolas podem
adotar estratégias visando a aumentar suas notas
nesses exames, reduzindo os currículos – a fim
de contemplar apenas os tópicos abrangidos pelas avaliações – ou evitando a reprovação dos
estudantes, mesmo que esses não atinjam o nível necessário para sua aprovação. Todas essas
medidas buscam melhorar o indicador de fluxo
escolar, com o intuito de, assim, receberem a
premiação oferecida pela rede de ensino.
Kuenzer (2010) afirma que é fundamental a realização de um amplo diagnóstico que
permita identificar necessidades específicas de
cada realidade escolar, contemplando a diversidade sociocultural, o corpo docente, a estrutura física etc. Ela afirma que o resultado desse
diagnóstico possibilitará estabelecer prioridades
e metas a serem cumpridas.
Mediante a todos os problemas supracitados, a abordagem proposta neste artigo busca
contribuir com a melhoria da qualidade da educação nas IEM, caracterizando-se como uma ferramenta de gestão para diagnosticar a realidade
da IEM, fornecendo informações que auxiliem
o gestor na correção, no redirecionamento e na
implementação de ações necessárias à solução
dos problemas detectados na autoavaliação.
A abordagem metodológica
proposta
A abordagem proposta originou-se de estudos realizados por Silva e Freitas (2011a, b) e
caracteriza-se por ser de natureza exploratória
tendo como método a pesquisa qualitativa, cujo
objetivo é prover percepções e compreensões a
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 29-47, jan./mar. 2014.
respeito de um problema. O caráter exploratório
advém do fato de que os estudos direcionados
à autoavaliação em IEM ainda são muito incipientes no país. Além disso, há a impossibilidade
de se transpor pesquisas realizadas no exterior
devido à diferença entre as realidades existentes.
Para melhor compreensão, apresentam-se as etapas que compuseram essa abordagem.
Etapa 1 – Modelagem do problema
Foram definidos os elementos que compõem a modelagem do problema, assim como os
pontos primordiais para a realização da pesquisa:
• Objetivo da autoavaliação: Consiste
na identificação de problemas e fragilidades no
ensino médio das instituições, avaliando apenas essa modalidade de ensino, mesmo que a
instituição ofereça o ensino fundamental ou
profissional técnico de nível médio. A autoavaliação propõe consultar indivíduos que participam do processo educacional, captando suas
percepções acerca da qualidade do ensino oferecido pela IEM.
• Avaliadores: A IEM será avaliada pelo
corpo docente e discente. Deverá ser definida a
quantidade de julgamentos a coletar, ou seja, se
todos os alunos e professores serão avaliadores
(toda a população) ou se será realizado algum
procedimento de amostragem.
• Dimensões e itens: A definição das dimensões e itens foi fundamentada após análise
de vários estudos realizados na educação básica
e na superior, a saber:
a) O resumo técnico executivo da
Pesquisa Nacional Qualidade da Educação
(BRASIL, 2005): o estudo consultou pais dos
alunos da educação básica matriculados na rede
pública de ensino e foi estruturado em função
de três dimensões: escola, diretor e professor.
Relacionados à escola, foram abordados itens
referentes à localização, espaço para lazer, salas
de aula, conservação do prédio e instalações,
higiene dos banheiros e cozinha, biblioteca, laboratórios de informática, quadras de esportes,
merenda escolar, livros didáticos, segurança,
35
bebedouros, entre outros. Quanto ao diretor,
foram considerados itens sobre frequência, capacidade para resolver problemas, respeito a
opinião externas, relacionamento, educação e
atenção à comunidade. Sobre o professor, foram
abordados temas como sua frequência, capacitação, comprometimento, paciência, simpatia,
atenção, educação, autoridade em sala de aula,
competência, dedicação, capacidade de motivar
os alunos e suas formas de avaliação;
b) SINAES: No âmbito da educação
superior, o SINAES estabelece que a
autoavaliação institucional atenda as 10
dimensões estabelecidas no art. 3 da Lei n.
10861/04: missão e o Plano de Desenvolvimento
Institucional (PDI); política de ensino, pesquisa e
extensão, incluindo procedimentos para estímulo
à produção acadêmica, bolsas de pesquisa e
de monitoria; a responsabilidade social da
instituição; comunicação com a sociedade; corpo
docente e técnicos administrativos, e as políticas
envolvidas; infraestrutura física; planejamento e
avaliação; política de atendimento ao aluno; e
sustentabilidade financeira;
c) Estudos científicos: Rodrigues (2005) e
Freitas e Fontan (2008) consideraram quatro dimensões em uma IES: corpo docente, corpo discente, organização administrativa e instalações físicas. Eberle; Milan e Lazzari (2010) identificaram
seis dimensões da qualidade em IES: professores/
ensino, estrutura/imagem, planejamento e desenvolvimento do curso, atendimento, ambiente de
ensino e relação custos versus benefícios.
Considerando os estudos supracitados,
propõe-se que as IEM sejam avaliadas à luz de
quatro dimensões: organização administrativa,
instalações físicas, corpo docente e corpo discente. Cada dimensão é composta por critérios
de avaliação adequados aos avaliadores, sendo
que cada critério é composto por um conjunto
de itens de avaliação. Os elementos da autoavaliação das IEM relacionam-se conforme figura 1.
Figura 1 – Relacionamento entre os elementos do processo de autoavaliação das IEM
Organização administrativa
Corpo docente
Corpo discente
Instalações físicas
Percepção do corpo docente
Percepção do corpo discente
Fonte: Adaptado de Rodrigues (2005).
A dimensão corpo docente avaliará:
(i) as instalações físicas, constituídas pelas
instalações gerais, biblioteca, laboratórios,
instalações especiais e equipamentos; (ii) a
organização administrativa, constituída pela
secretaria acadêmica e coordenação do curso;
(iii) o corpo discente; e (iv) o corpo docente, em
forma de uma autoavaliação. Por outro lado,
o corpo discente avaliará: (i) as instalações
36
físicas; (ii) a organização administrativa;
(iii) o corpo docente, avaliando o conteúdo
das disciplinas, provas/testes e materiais
didáticos, além do desempenho do professor;
e (iv) o corpo discente, em forma de uma
autoavaliação.
• Instrumentos de coleta de dados:
Foram elaborados oito modelos de questionários
padronizados para coletar dados e informações
André Luís Policani FREITAS; Vinicius Barcelos da SILVA. Avaliação e classificação de instituições de ensino...
junto aos avaliadores (os itens são apresentados
nos quadros 1 a 4).
• Modelo de avaliação conceitual: O
modelo fundamenta-se no conceito do modelo
SERVPERF não ponderado (CRONIN; TAYLOR,
1992), que utiliza a percepção do avaliador
acerca do desempenho do serviço como forma
de avaliar a qualidade do serviço.
Quadro 1 - Questionários 1 e 2 do modelo proposto
Questionário 1: Avaliação da Dimensão Corpo Discente sob a percepção dos discentes
Questionário 2: Avaliação da Dimensão Corpo Discente sob a percepção dos doscentes (autoavaliação)
I01: Domínio do conteúdo da disciplina.
I02: Clareza na explicação do conteúdo da disciplina.
I03: Domínio da turma por parde do professor.
I04: Aproveitamento do tempo determinado para a aula.
I05: Disponibilidade do professor para esclarecimento de dúvidas.
I06: Frenquência de uso do laboratório da disciplina.
I07: Frequência no uso do laboratório de informática para aulas práticas dos
temas da disciplina.
I08: Cumprimento do conteúdo proposto para a disciplina.
I09: Uso de televisão, aparelho de DVD, computador, retroprojetor, data show
pelo professor.
I10: Relação dos exemplos e exercícios apresentados pelo professor com as
situações cotidianas.
I11: Uso de questões de vestibular e de concursos públicos em sala de aula.
I12: Adequação dos trabalhos propostos pelo professor ao conteúdo da
disciplina.
I13: Adequação do material didático disponibilizado pelo professor ao
conteúdo da disciplina.
I14: Estímulo por parte do professor pelo pensamento crítico
dos alunos.
I15: Organização e planejamento das aulas.
I16: Disponibilização e correção da lista de exercícios.
I17: Educação do professor na comunicação com o aluno.
I18: Relacionamento do professor com os alunos.
I19: Receptividade do professor às críticas, sugestões e
divergências de opiniões.
I20: Adequação das avaliações ao conteúdo ministrado em sala
de aula.
I21: Cumprimento do prazo para correção de avaliações.
I22: Coerência na correção das avaliações.
I23: Critérios utilizados pelo professor para avaliar os alunos.
I24: Pontualidade do professor.
I25: Frequência do professor.
I26: Postura e imagem do professor.
I27: Em geral, como você avalia o desempenho do professor?
Fonte: Elaboração dos autores do artigo.
Quadro 2 - Questionários 3 e 4 do modelo proposto
Questionário 3: Avaliação da Dimensão Organização Administrativa sob a percepção dos discentes
Questionário 4: Avaliação da Dimensão Organização Administrativa sob a percepção dos doscentes
I01: Horário de atendimento do registro acadêmico.
I02: Atendimento prestado pelos funcionários da escola.
I03: Horário de atendimento na diretoria/coordenação do ensino
médio.
I04: Relacionamento do diretor/coordenador do ensino médio com os
alunos e professores.
I05: Disponibilidade do diretor/coordenador do ensino médio no
atendimento ao aluno e aos professores.
I06: Eficiência do diretor/coordenador para solução de problemas e
melhoria do curso.
I07: Eficiência da diretoria/coordenação do ensino médio na resolução
de problemas de alunos com comportamento inadequado.
I08: Divulgação de informações para os alunos e professores.
I09: Oferta de aulas de reforço a alunos com baixo rendimento escolar.
I10: Resultado das aulas de reforço aos alunos com baixo rendimento
escolar.
I11: Oferta de cursos de extensão aos alunos e à comunidade.
I12: Quantidade de alunos por turma.
I13: Tempo de preparo de documentos pelo registro acadêmico.*
I14: Acesso às notas das disciplinas.*
I15: Relacionamento entre professores.**
I16: Eficiência da diretoria/coordenação do ensino médio na resolução de
problemas de alunos que apresentam baixo rendimento escolar. **
I17: Prazo estabelecido para o professor enviar os diários e as notas dos alunos.**
I18: Acessibilidade aos diários escolares.**
I19: Acessibilidade às ementas das disciplinas.**
I20: Adequação das ementas das disciplinas.**
I21: Horário de atendimento da reprodução gráfica.**
I22: Processo de envio de materiais a serem impressos pela reprodução
gráfica.**
I23: Tempo médio de entrega de impressões de apostilas e provas, por
parte da reprodução gráfica.**
I24: Em geral, como você avalia a organização administrativa desta
instituição de ensino?
* Itens exclusivos do questionário 3, segundo a percepção dos discentes
** Itens exclusivos do questionário 4, segundo a percepção dos docentes
Fonte: Elaboração dos autores do artigo.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 29-47, jan./mar. 2014.
37
Quadro 3 - Questionários 5 e 6 do modelo proposto
Questionário 5: Avaliação da Dimensão Corpo Discente sob a percepção dos discentes (autoavaliação)
Questionário 6: Avaliação da Dimensão Corpo Discente sob a percepção dos doscentes
I01: Frequência dos alunos nas aulas.
I02: Pontualidade dos alunos nas aulas.
I03: Interesse dos alunos no conteúdo das aulas.
I04: Comportamento dos alunos em sala de aula.
I05: Disposição dos alunos para resolver exercícios em sala de aula.
I06: Participação dos alunos na aula.
I07: Interesse dos alunos no aprofundamento do conteúdo das
disciplinas.
I08: Interesse dos alunos em participar de aulas práticas, trabalhos e
projetos extra classe.
I09: Estudo em casa pelos alunos.
I10: Cumprimento de prazos na entrega de trabalhos e atividades
extra classe.
I11: Resolução de atividades enviadas para casa.
I12: Desempenho dos alunos nas atividades em sala.
I13: Desempenho dos alunos em trabalhos escolares.
I14: Desempenho dos alunos nas avaliações.
I15: Comportamento dos alunos durante as avaliações.
I16: Relacionamento dos alunos com o professor.
I17: Educação dos alunos com o professor.
I18: Receptividade dos alunos a críticas, sugestões e divergências de opiniões.
I19: Postura e imagem dos alunos.
I20: Nível de conhecimento dos alunos, adquiridos em níveis anteriores
de ensino.
I21: Relacionamento entre os alunos.
I22: Em geral, como avalia o desempenho dos alunos?
Fonte: Elaboração dos autores do artigo.
Quadro 4 - Questionários 7 e 8 do modelo proposto
Questionário 7: Avaliação da Dimensão Instalações Físicas segundo a percepção dos discentes
Questionário 8: Avaliação da Dimensão Instalações Físicas segundo a percepção dos doscentes
I01: Estado de conservação dos prédios e salas.
I02: Iluminação das salas de aula.
I03: Climatização das salas de aula.
I04: Limpeza das salas de aula.
I05: Tamanho do quadro da sala de aula.
I06: Acessibilidade às dependências da instituição aos portadores de
necessidades especiais.
I07: Estado de conservação dos laboratórios de informática.
I08: Estado de conservação dos laboratórios da escola.
I09: Estado de conservação dos equipamentos existentes nos laboratórios
da escola.
I10: Quantidade de equipamentos existentes nos laboratórios da escola.
I11: Funcionamento dos equipamentos existentes nos laboratórios da escola.
I12: Modernidade dos equipamentos existentes nos laboratórios da escola.
I13: Estado de conservação da biblioteca.
I14: Adequação da mobília (mesas e cadeiras) existentes na biblioteca para
estudo individual ou em grupo.
I15: Espaço disponibilizado para estudo na biblioteca.
I16: Horário de funcionamento da biblioteca.
I17: Estado de conservação dos livros da biblioteca.
I18: Processo de empréstimos de livros da biblioteca.
I19: Atualidade do acervo de livros da biblioteca.
I20: Quantidade de livros utilizados em seu curso existentes na biblioteca.
I21: Quantidade de livros paradidáticos (romances, contos, leituras em geral)
existentes na biblioteca.
I22: Quantidade de acervo digital (livros digitais, filmes e documentários em
DVD) existente na biblioteca.
I23: Atendimento dos funcionários da biblioteca.
I24: Acesso a recursos computacionais (computadores com internet,
impressoras, scanners).
I29: Oferta de reprodução xerográfica dentro da escola.
I30: Estado de conservação do refeitório.
I31: Iluminação do refeitório.
I32: Limpeza do refeitório.
I33: Climatização do refeitório.
I34: Qualidade nutricional do lanche/refeição escolar.
I35: Diversificação do lanche/refeição escolar.
I36: Estado de conservação dos banheiros.
I37: Limpeza dos banheiros.
I38: Espaço disponibilizado aos alunos para estudo.
I39: Adequação do auditório/sala de conferência para realização de eventos.
I40: Estado de conservação da quadra de esportes.
I41: Estrutura da quadra de esportes para a prática de vários esportes.
I42: Iluminação da quadra de esportes.
I43: Adequação dos vestiários para troca de roupa e banho após a prática
de esportes.
I44: Adequação dos recursos esportivos (bolas, coletes, redes) para a prática de
vários esportes.
I45: Quantidade de recursos esportivos disponíveis.
I46: Estado de conservação dos recursos esportivos.
I47: Estado de conservação das carteiras escolares.*
I48: Conforto das carteiras escolares.*
I49: Formato das carteiras escolares.*
I50: Adequação dos materiais disponibilizados pela instituição para uso em
sala de aula (pilotos, giz, réguas, mapas).**
I51: Estado de conservação dos recursos áudiovisuais (DVD, televisão,
computador, retroprojetor).**
I52: Quantidade de recursos áudiovisuais.**
I53: Modernidade dos recursos áudiovisuais.**
I54: Espaço disponibilizado para reuniões, conselhos de classe,
I25: Modernidade dos recursos computacionais.
elaboração e correção de provas.**
I26: Quantidade de computadores disponibilizados aos alunos e professores.
I55: Em geral, como você avalia as instalações físicas desta instituição
I27: Funcionamento dos recursos computacionais.
de ensino?.**
I : Desempenho da internet.
28
* Itens exclusivos do questionário 7, segundo a percepção dos discentes
** Itens exclusivos do questionário 8, segundo a percepção dos docentes
Fonte: Elaboração dos autores do artigo.
38
André Luís Policani FREITAS; Vinicius Barcelos da SILVA. Avaliação e classificação de instituições de ensino...
Etapa 2 – Execução
Os procedimentos definidos na etapa anterior foram colocados em prática, coletando
dados e percepções dos docentes e discentes por
meio dos questionários elaborados.
Etapa 3 – Análise
Técnicas estatísticas e métodos fundamentados no Apoio Multicritério à Decisão (AMD)
podem ser utilizados para a análise dos dados
obtidos, verificando também a confiabilidade e
validade dos mesmos. Busca-se identificar quais
são as dimensões, setores, serviços ou profissionais que obtiveram menor desempenho segundo
a percepção dos avaliadores. Recomenda-se a
verificação da coerência dos julgamentos.
Sugere-se o emprego do coeficiente alfa
de Cronbach (1951) para avaliar a consistência interna dos questionários. Esse coeficiente é
calculado através da variância dos itens e dos
totais do teste por avaliador, em que quanto
mais esse coeficiente se aproxima de 1, maior a
confiabilidade do instrumento. Em geral, o valor de alfa não deve ser menor que 0,75, porém
valores acima de 0,60 já indicam consistência
do instrumento (FREITAS; RODRIGUES, 2005).
Os dados poderão ser utilizados para
classificar a qualidade da IEM, segundo a
percepção dos avaliadores em categorias
preestabelecidas, tais como ocorre nas IES,
onde são atribuídos conceitos pelo MEC.
Métodos multicritérios de classificação podem
ser utilizados para esse propósito, com destaque
para o método ELECTRE TRI (YU,1992), o
qual tem sido utilizado em diversos trabalhos
relacionados à classificação da qualidade do
serviço oferecido por instituições de ensino
(MIRANDA; ALMEIDA, 2003; RIBEIRO;
COSTA, 2005; RODRIGUES, 2005). A descrição
e o entendimento do algoritmo de classificação
do ELECTRE TRI exigem um esforço cognitivo
adicional, principalmente pelo fato de que
esse método está fundamentado em conceitos
recentes da lógica nebulosa (fuzzy logic).
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 29-47, jan./mar. 2014.
Apesar disso, o entendimento e a modelagem
pelo ELECTRE TRI dispensam a descrição
pormenorizada do algoritmo de classificação
(COSTA; FREITAS, 2005).
A fim de priorizar ações que buscam
sanar problemas de maior magnitude, sugere-se
o emprego de um procedimento de priorização
dos itens. Por exemplo, os itens que apresentaram
os menores valores de desempenho seriam
considerados como de prioridade crítica, ou seja,
são itens que necessitam de ações corretivas/
preventivas urgentes. A análise dos Quartis
(FREITAS, MANHÃES; COZENDEY, 2006) pode
ser utilizada para esse fim.
Etapa 4 – Planejamento
Ao associar o resultado do modelo de
autoavaliação proposto aos resultados das
avaliações realizadas pelo MEC, a IEM poderá
implementar ações visando a melhorias e eliminação/redução dos problemas identificados
e, após uma análise dos resultados, padronizar
e divulgar para a comunidade e outras instituições as ações que contribuíram para a melhoria
da qualidade do ensino. Algumas ações podem
ser definidas pela própria IEM, outras deverão
ser repassadas para os órgãos oficiais da rede
de ensino. A análise de Pareto e a técnica do
5W1H podem ser utilizadas.
Um estudo exploratório
O estudo foi realizado em um campus
vinculado a um Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia, localizado no estado do
Rio de Janeiro. Em 2010, o campus possuía cerca de 350 alunos matriculados no ensino médio, os quais eram divididos em 11 turmas e 20
professores das grandes áreas de conhecimento dessa modalidade. Das onze turmas, quatro
foram selecionadas para participar do estudo,
denotadas por T= {TA, TB, TC, TD}. Cada turma
possuía entre vinte e trinta alunos, denotados
por TX = {TX1, …, TXn}, onde X representa a turma (X = A, B, C ou D) e n, os alunos da turma
39
X. Participaram do estudo cerca de cem alunos.
Cada turma avaliou um professor de uma determinada disciplina. Dos vinte professores atuantes no ensino médio, quatro foram selecionados, sendo denotados por D = {D1, D2, D3, D4}.
Neste estudo, foram consideradas duas
dimensões: corpo docente e corpo discente, de
modo que cada um deles avaliou o outro e fez
uma autoavaliação. Para captação dos julgamentos, foi empregada uma escala contínua representada por meio de uma reta cujos valores
possíveis variam de zero a cem pontos. Cada
respondente deveria marcar com um X um valor representativo da sua percepção acerca do
desempenho da IEM em relação a cada item/
critério (figura 2).
Cada item possui, além da escala para
captar o desempenho, uma opção denominada
não se aplica. Os avaliadores foram orientados
a marcar essa opção quando não tinham
condições de avaliar aquele item, seja por
falta de experiência ou por acreditar que a
dimensão não tinha como ser avaliada. Além
disso, considerou-se que os avaliadores não
estariam capacitados a estabelecer o grau de
importância de cada item e, por outro lado,
em uma primeira análise, todos os itens teriam
igual importância.
Figura 2 – Escala de julgamento de valor
Péssimo
Excelente
0
10
20
40
30
50
60
70
80
90
100
Fonte: Elaboração dos autores do artigo.
Para emprego do algoritmo do método
ELECTRE TRI, foram definidas cinco categorias,
denominadas por C = {C1, C2, C3, C4, C5} e suas
respectivas fronteiras, em que cada categoria
representa respectivamente os conceitos A, B,
C, D e E (figura 3). Foram definidos os limites
de preferência (pi) e indiferença (qi) para cada
item i. Segundo Costa et al. (2007), não existe
um consenso na literatura para a determinação
desses limites quando se considera avaliação
conjunta de múltiplos avaliadores, pois os
métodos da família ELECTRE são decisões
que envolvem uma única unidade de decisão.
Foram definidos os limites pi = qi = 6 para todos
os itens. O limite de veto não foi utilizado, pois
a variabilidade de nenhum item seria capaz
de inviabilizar a classificação a uma categoria
em detrimento à outra. Utilizou-se o plano
de corte padrão ( = 0,76). Segundo Neves e
Costa (2006), esse valor tem sido frequentemente
adotado, porém, não se encontra na literatura
uma discussão aprofundada acerca dessa escolha.
De maneira sucinta, considerando categorias de classificação pré-definidas delimitadas por fronteiras e dado que uma IEM é avaliada segundo n itens (critérios) denotados por I =
{I1, I2, …, In}, a problemática consiste em determinar a categoria à qual a qualidade do ensino
da IEM será atribuída. A figura 3 ilustra essa
problemática, considerando cinco categorias de
classificação, em que cada categoria representa
respectivamente os conceitos A, B, C, D e E.
Figura 3 – Categorias e limites do ELECTRE TRI usados no estudo de caso
l1
Categoria C1 – Conceito A
Categoria C2 – Conceito B
Categoria C3 – Conceito C
Categoria C4 – Conceito D
Categoria C5 – Conceito E
l2
ln
L1=90
L2=70
L3=50
L4=30
Fonte: Adaptado de Costa et al. (2007)
40
André Luís Policani FREITAS; Vinicius Barcelos da SILVA. Avaliação e classificação de instituições de ensino...
Por duas semanas, discentes e docentes
foram convidados a preencher questionários
impressos. A fim de obter avaliações mais realistas e sinceras, a identificação dos avaliadores
foi opcional. Os valores dos itens deixados em
branco ou nos quais ocorreu a marcação da opção não se aplica foram substituídos pela média
aritmética dos valores dos julgamentos do item
em questão, procedimento incorporado pelos
pacotes estatísticos profissionais.
Conforme tabelas 3, 4 e 5, todos os questionários que avaliaram as dimensões corpo docente e corpo discente apresentaram alta confiabilidade interna ( ≥ 0,75). Dado que o último
item dos questionários solicita a atribuição de
uma nota geral para o objeto avaliado, os dados remanescentes foram empregados em uma
análise de regressão linear para verificar a co-
erência das avaliações, usando como variáveis
a média aritmética das notas dos itens I1 até In-1
e a nota do item In (n é o total de itens). Supõese que uma avaliação está coerente quando a
nota geral atribuída à dimensão está próxima
da média das notas.
A tabela 3 mostra que todas as avaliações da dimensão corpo docente apresentaram
coeficientes de correlação significativos. As
avaliações feitas por alguns alunos não foram
incluídas, pois não responderam o último item
ou marcaram a opção não se aplica (avaliadores identificados com um asterisco). Porém, na
autoavaliação do corpo discente (tabela 4), apenas a autoavaliação realizada pelos alunos da
TA apresentou coeficiente de correlação significativo. A turma TC que apresentou coeficiente
de correlação muito baixo.
Tabela 3 – Coeficientes de correlação para avaliações da dimensão docente, sob a percepção dos discentes
Docente
avaliado
Análise de regressão linear simples
Alunos excluídos
Coef. de correlação (r)
Turma avaliadora Alunos avaliadores Alfa de Cronbach
D1
TA
22
0,90
TA15*
0,83
D2
TB
25
0,90
TB01* e TB03*
0,79
D3
TC
25
0,94
TC17*
0,87
D4
TD
30
0,95
TD26*
0,84
Fonte: Dados da pesquisa
Tabela 4 – Coeficientes de correlação para avaliações da dimensão discente, sob a percepção dos discentes
Turma
avaliada
Alunos avaliadores
(autoavaliação)
Alfa de Cronbach
TA
22
0,90
Análise de regressão linear simples
Alunos excluídos
Coef. de correlação (r)
Nenhum
0,80
TB
25
0,85
TB13*
0,59
TC
25
0,78
TC14* e TC15*
0,17
TD
30
0,91
TD11* e TD27*
0,46
Fonte: Dados da pesquisa
A tabela 5 mostra que os coeficientes
de correlação das dimensões corpo docente e
corpo discente, segundo a percepção do corpo
docente, foram altos e significativos.
Tabela 5 – Coeficientes de correlação para avaliações das dimensões, sob a óptica dos docentes
Dimensão avaliada
Alfa de Cronbach
Coeficiente de correlação (r)
Corpo docente (autoavaliação)
0,91
0,82
Corpo discente
0,95
0,86
Fonte: Dados da pesquisa
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 29-47, jan./mar. 2014.
41
O método ELECTRE TRI foi utilizado
para classificar a IEM à luz das duas dimensões
em uma das categorias preestabelecidas,
segundo a percepção docente e discente. O
desempenho da IEM em cada item foi obtido
através do cálculo da média aritmética das
notas atribuídas pelos avaliadores. Conforme a
Tabela 6, segundo a percepção dos alunos, três
professores foram classificados com o conceito
C e outro foi classificado com o conceito B.
Porém, segundo suas autoavaliações, três
docentes se classificaram com o conceito B,
enquanto um se classificou com o conceito A.
Nota-se que houve uma superestimação dos
docentes em suas autoavaliações, de modo
que apenas um se autoclassificou na mesma
categoria dada pelos alunos. Agrupando as
médias obtidas pelos quatro docentes segundo
a percepção dos alunos, e calculando uma
nova média aritmética, pode-se obter a média
geral dos docentes e a respectiva classificação:
conceito C. Entretanto, em todas as análises, o
conceito atribuído à dimensão foi o mesmo nas
classificações otimista e pessimista.
Tabela 6 – Resultados obtidos pelo método ELECTRE TRI, na dimensão corpo docente
Docente avaliado
Avaliadores
Classificação otimista
Classificação pessimista
D1
Discentes da TA
C
C
D1
Autoavaliação
B
B
D2
Discentes da TB
C
C
D2
Autoavaliação
B
B
D3
Discentes da TC
C
C
D3
Autoavaliação
A
A
D4
Discentes da TD
B
B
D4
Autoavaliação
B
B
D1, D2, D3 e D4
Discentes (TA, TB, TC e TD)
C
C
Fonte: Dados da pesquisa
Conforme a tabela 7, todas as turmas foram classificadas com o conceito B pelos alunos (autoavaliação) e pelos professores, com
exceção na classificação pessimista da turma TB
segundo a percepção dos docentes D1 e D2, na
qual essa turma foi classificada com conceito C.
Tabela 7 – Resultados obtidos pelo método ELECTRE TRI, na dimensão corpo discente
Turma avaliada
Avaliadores
Classificação otimista
Classificação pessimista
TA
Discentes da TA (autoavaliação)
B
B
TA
Docentes D1 e D2
B
B
TB
Discentes da TB (autoavaliação)
B
B
TB
Docentes D1 e D2
B
C
TC
Discentes da TC (autoavaliação)
B
B
TC
Docentes D3 e D4
B
B
TD
Discentes da TD (autoavaliação)
B
B
TD
Docentes D3 e D4
B
B
TA, TB, TC e TD
Docentes D1, D2, D3 e D4
B
B
Fonte: Dados da pesquisa
42
André Luís Policani FREITAS; Vinicius Barcelos da SILVA. Avaliação e classificação de instituições de ensino...
A Análise dos Quartis (FREITAS;
MANHÃES; COZENDEY, 2006) foi utilizada para
identificar os itens de maior prioridade para intervenção, de acordo com o desempenho obtido
junto aos avaliadores. Por exemplo, de acordo
com a análise da dimensão corpo docente (figura 4), I2, I3, I6, I7 e I9 foram considerados itens de
prioridade crítica nas análises de quase todos os
docentes, pois os valores são menores que o va-
lor do primeiro Quartil. Percentual considerável
dos discentes não informou o desempenho nos
itens I6, I7 e I9 (52%, 62% e 30% respectivamente), deixando-os em branco ou marcando não
se aplica. Todos os docentes marcaram não se
aplica para os itens I6 e I7. Chama-se a atenção
para os itens I2 (clareza na explicação do conteúdo da disciplina) e I3 (domínio da turma por
parte do professor).
Figura 4 – Análise dos Quartis, na dimensão corpo docente, segundo percepção dos discentes
Prioridade Baixa
Docente
D1
D2
Prioridade Moderada
3º Quartil = 70,69
I25
I17 I24
I18
I8
I5
I26
I15
2º Quartil = 60,92
I23 I13 I19
I25
I26 I22
I1
I24
I3
I18
I14 I10
I4
3º Quartil = 73,52
D3
D4
D1, D2,
D3 e D4
I25
I24
I1
I13
I8
I22 I20
I26
I24 I26
I21 I22
I18
I1
I24 I26
I1
I17
I22 I18
I23 I19
I13
I4
I11
I14 I21
I17 I19
I5
I12
I4
I5 I13
I4 I20
I23 I13
I5
I8
I4
I19 I12
I20
I2
I3
I6
I7 I9
I12
I20 I16
I2
I8 I11 I15 I6 I7
1º Quartil = 49,99
I3
I15
I10 I11
I14 I19
I18
I2 I21
I9 I6 I7
I3
I2
I9 I6 I7
I3
I9
I2
1º Quartil = 72,30
I12
I8
I10 I16
I15 I11
I14
1º Quartil = 59,52
2º Quartil = 64,61
I23 I5
I10 I16
1º Quartil = 48,55
2º Quartil = 77,47
3º Quartil = 70,58
I25
I21
I16 I17 I23
I17
I22 I12
2º Quartil = 60,78
3º Quartil = 84,78
I25
I1
Prioridade Crítica
1º Quartil = 45,32
2º Quartil = 60,22
3º Quartil = 68,95
I9
Prioridade Alta
I20 I10
I16 I14
I15 I21
I11
I6 I7
Fonte: Dados da pesquisa
Figura 5 – Análise dos Quartis, na dimensão corpo discente, segundo percepção dos docentes
Prioridade Baixa
Turma
TA
TB
TC
TD
TA, TB,
TC e TD
Prioridade Moderada
2º Quartil = 77,50
3º Quartil = 85,00
I16
I17
I2
I11
I16
I17
I21
I2
I21
I17
I18
I1
I12
I13
I21
I10
I10
I4
I18
I19
I3
I11
I1
I2
I15
3º Quartil = 90,00
I17
I18
I21
I16
I5
I8
I12
I17
I21
I2
I1
I18
I19
I8
I11
I4
I5
I18
I3
I20
I12
I19
I12
I13
I13
I1
I2
I4
I19
I12
I13
I15
I20
I4
I5
I6
I9
I7
I15
I14
I3
I9
I5
I6
I7
I14
I7
I20
I9
I9
I10
I14
I20
I6
I20
I9
I7
1º Quartil = 80,00
I3
I4
I8
1º Quartil = 62,00
I6
I10
I8
1º Quartil = 84,50
I6
I11
I13
I15
I7
1º Quartil = 73,75
2º Quartil = 79,25
I11
Prioridade Crítica
1º Quartil = 75,00
I14
2º Quartil = 89,00
3º Quartil = 86,00
I16
I15
2º Quartil = 85,00
3º Quartil = 90,00
I16
I19
2º Quartil = 70,00
3º Quartil = 80,00
I1
Prioridade Alta
I8
I10
I3
I5
I14
Fonte: Dados da pesquisa
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 29-47, jan./mar. 2014.
43
A análise do corpo discente segundo
a percepção docente (figura 5) revela que os
itens I7 (interesse dos alunos no aprofundamento do conteúdo das disciplinas) e I9 (estudo
em casa) foram considerados críticos em quase
todas as turmas. A participação dos alunos nas
aulas (I6) e o nível de conhecimento dos alunos
adquiridos em níveis anteriores de ensino (I20)
também foram considerados críticos. A pouca
participação e interesse nas aulas, agravado
pelo fato de os alunos não possuírem um conhecimento base bem consolidado e pelo fato
de não estudarem em casa podem ser prováveis causas de desempenhos insatisfatórios dos
discentes nas avaliações, provas e testes. Esse
aspecto foi mensurado pelo item I14, sendo
classificado nas turmas como prioridade alta
ou crítica.
Considerações finais
A avaliação das instituições de ensino
tem sido objeto de interesse de pesquisadores
de diversas áreas do conhecimento (educação,
pedagogia, ciências matemáticas, engenharias,
dentre outras) e também de organismos oficiais
do Ministério da Educação e Cultura. O aumento expressivo de cursos superiores e IES no início da década de 1990 foi um dos principais
motivadores para esse interesse e, consequentemente, para os inúmeros estudos desenvolvidos
até o presente momento.
Este artigo apresentou uma abordagem exploratória que buscou avaliar e classificar a qualidade de uma Instituição de Ensino Médio e identificar os itens mais críticos, segundo a percepção
docente e discente. Apesar do caráter exploratório
e de abrangência limitada em termos da quantidade de alunos e docentes da instituição de ensino
avaliada, o presente estudo foi capaz de apresentar resultados relevantes para serem analisados,
brevemente sintetizados a seguir.
Os discentes foram mais bem avaliados
que os docentes, obtendo conceito B, tanto
sob a percepção dos docentes quanto em suas
autoavaliações. Não houve superestimação na
44
autoavaliação dos alunos, o que demonstra
certa coerência nas avaliações. Por outro lado,
três dos quatro docentes avaliados foram
classificados com o conceito C, sendo que
suas autoavaliações estavam superestimadas.
Esse fato revela que os alunos estão com uma
percepção da qualidade de serviço prestado
pelo professor inferior ao que eles acreditam
que estão oferecendo. O docente mais bem
avaliado pelos discentes obteve conceito B e
foi o único coerente em sua autoavaliação,
atribuindo-se na mesma categoria designada
pelos alunos.
Dentre os itens críticos relacionados
aos docentes estão: falta de clareza na
explicação da disciplina e a falta de
domínio da turma. Também não foram bem
avaliados pelos alunos a frequência de uso
de laboratório e recursos audiovisuais pelo
professor. Essas avaliações negativas podem
ser justificadas pelo fato de que em 2010
apenas um laboratório de ciências naturais
estava disponível na instituição, não existia
laboratório de línguas estrangeiras que
pudesse auxiliar os trabalhos dos professores
de língua portuguesa e língua estrangeira, e
os dois laboratórios de informática estavam
em situação precária. As salas não possuíam
recursos audiovisuais e a instituição só tinha
quatro projetores para atender a demanda
de todos os cursos. Várias obras estavam
em andamento, como a construção de
laboratórios e salas de aula equipadas com
recursos audiovisuais.
Os docentes apontaram como itens
críticos das turmas o déficit de aprendizado
acumulado pelos alunos em níveis anteriores
de ensino, que, somados com o desinteresse na
participação das aulas e no aprofundamento
do conteúdo das disciplinas e na falta de
estudos em casa, geravam baixo desempenho
nas avaliações.
Ao agregar o resultado gerado pela
abordagem proposta aos resultados das
avaliações externas realizadas pelo MEC, esperase que a IEM possa executar ações de melhoria
André Luís Policani FREITAS; Vinicius Barcelos da SILVA. Avaliação e classificação de instituições de ensino...
e, após a análise dos resultados, padronizar
e divulgar as ações que contribuíram para a
melhoria da educação. Dessa forma, o principal
benefício da abordagem proposta consiste no
diagnóstico de não-conformidades que não são
detectadas pelos sistemas de avaliação oficiais.
Mais ainda, espera-se a abordagem permita
que a equipe gestora: (i) direcione recursos
para solucionar problemas mais graves; (ii)
consiga recursos extras das Secretarias de
Educação para solucionar problemas de grande
magnitude ou (iii) alerte os órgãos oficiais para
a necessidade de ações para sanar deficiências
de grande magnitude existentes.
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Paris–Dauphine, 1992.
Recebido em: 11.01.2013
Aprovado em: 26.03.2013
André Luís Policani Freitas é doutor e mestre em Ciências de Engenharia pela Universidade Estadual do Norte Fluminense
Darcy Ribeiro – UENF. Graduado em engenharia mecânica pela Universidade Federal Fluminense – UFF, é professor associado
do Laboratório de Engenharia de Produção (LEPROD/UENF).
Vinicius Barcelos da Silva é mestre em Engenharia de Produção pela Universidade Estadual do Norte Fluminense – UENF,
especialista em produção e sistemas pelo Instituto Federal Fluminense – IFF e graduado em análise e desenvolvimento de
software, pelo mesmo instituto.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 29-47, jan./mar. 2014.
47
Desempenho escolar: análise comparativa em função do
sexo e percepção dos estudantes
Andréia OstiI
Selma de Cássia MartinelliII
Resumo
O presente artigo investigou o desempenho escolar em função
do sexo e a percepção de alunos em relação às expectativas de
seu professor. Participaram da pesquisa 120 alunos do 5º ano do
ensino fundamental de escolas públicas municipais da região
metropolitana de Campinas, dos quais 60 alunos têm desempenho
escolar satisfatório e 60 têm desempenho insatisfatório. Foi utilizada
uma escala de percepção de alunos acerca das expectativas dos
professores; já para medir o desempenho escolar foi considerado o
conceito atribuído pelo professor ao aluno. Os resultados revelaram
diferenças significativas entre meninos e meninas do grupo de
alunos com desempenho insatisfatório, pois a maioria (83,3%) era
do sexo masculino. Por outro lado, não se verificaram diferenças
estatisticamente significantes quando comparados meninos e
meninas do grupo com desempenho escolar satisfatório, embora
a média de desempenho escolar das meninas tenha sido maior.
Em relação à percepção de seus professores, foram observadas
diferenças nos dois grupos. Alunos com desempenho satisfatório se
percebem mais elogiados e são escolhidos como ajudantes na sala
de aula, enquanto alunos com desempenho insatisfatório acreditam
receber mais críticas de seus professores e são vistos como mais
indisciplinados. Os dados permitem discutir as relações vinculares
entre alunos e professores, as influências das vivências e experiências
no momento da aprendizagem e como essas influenciam o interesse
e a motivação dos estudantes.
Palavras-chave
Relações interpessoais — Percepção de alunos — Desempenho
escolar.
I- Universidade Estadual Paulista, Rio
Claro, SP, Brasil.
Contato: [email protected];
II- Universidade Estadual de Campinas,
SP, Brasil.
Contato: [email protected]
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 49-59, jan./mar. 2014.
49
Academic achievement: comparative analysis by gender and
student perception
Andréia OstiI
Selma de Cássia MartinelliII
Abstract
This paper discusses the results of an investigation of academic
achievement by gender and student perception of the expectations
of their teachers. 120 students from the 5th year of primary
education municipal public schools in the metropolitan region of
Campinas city participated in the research: 60 of the students
have satisfactory academic performance and the other 60 have
unsatisfactory performance. We used a scale of student perception
of teacher expectations and, to measure academic performance, we
considered the grade teachers assigned to students. Research results
revealed significant differences between boys and girls in the group
of students with unsatisfactory performance, because most of them
(83.3%) were male. On the other hand, there were no statistically
significant differences between boys and girls in the group with
satisfactory academic performance, although girls’ average
academic performance was higher. Regarding the perception of their
teachers, we observed differences in both groups. Students with
satisfactory performance have the perception that they are more
praised and more often chosen to assist the teacher in the classroom
while underperforming students believe they receive more criticism
from their teachers and are seen as more unruly. The data allow
discussing student-teacher bond, the influence of experience at the
time of learning and how it influences the interest and motivation
of students.
Keywords
Interpersonal Relations — Perception of students — Academic
achievement.
I- Universidade Estadual Paulista, Rio
Claro, SP, Brazil.
Contact: [email protected];
II- Universidade Estadual de Campinas,
SP, Brazil.
Contact: [email protected]
50
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 49-59, jan./mar. 2014.
A escola, seja no passado ou no momento
atual, teve de enfrentar problemas com a evasão
do aluno do sistema de ensino regular e com as
altas taxas de reprovação. De fato, sempre foi
muito difícil identificar com precisão o motivo
que levava os alunos ao abandono da escola. A
tentativa de abordar e enfrentar essas questões resultou em uma ampla literatura, que teve seu foco
de atenção marcado na década de 80 no Brasil.
Na tentativa de buscar soluções a esses
problemas e assumindo que grande parte deles
poderia ser decorrente das condições sociais a
que grande parte da população estava submetida, uma série de medidas governamentais foi
tomada com o intuito de mudar essa realidade.
A obrigatoriedade de permanência dos estudantes por no mínimo oito anos na escola e a
criação de ciclos – por exemplo, o ciclo básico,
que estipulava que o processo de alfabetização
deveria ter uma duração mínima de dois anos
e somente após esse período o aluno poderia
ficar retido – foram apenas algumas dessas tentativas. Posteriormente, novas medidas foram
criadas com a nova Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (Lei nº. 9.394 – BRASIL, 1996), que
instituiu ciclos mais longos de ensino, formalizando dois ciclos para o ensino fundamental,
referentes ao ensino básico (1ª a 4ª série) e ao
segundo ciclo (5ª a 8ª série).
Dessas mudanças, originou-se, no estado de São Paulo e em alguns outros estados do
país, o regime de progressão continuada, que
estabeleceu possíveis reprovações apenas ao final de cada ciclo e não mais ao final de um
ano, como ocorria antes. De forma geral, essas mudanças no sistema educacional brasileiro
buscavam a melhoria do ensino, o combate à
evasão e ao fracasso escolar.
Todos esses caminhos foram, de alguma
forma, gerando outro cenário na educação.
Atualmente, a evasão e a repetência escolar não
são os problemas centrais, mas a defasagem
e o baixo aproveitamento escolar por parte
dos alunos, muitas vezes identificados como
dificuldades de aprendizagem. Os dados
do Censo Escolar de 2010 apontam que
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 49-59, jan./mar. 2014.
o índice de defasagem escolar no ensino
fundamental chegou a 23,6%, o que representa
aproximadamente cerca de sete milhões de
estudantes com defasagem escolar no país, ou
seja, com idade incompatível com a série.
De acordo com o Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), o rendimento dos estudantes é composto por quatro
taxas: aprovação, reprovação, abandono e taxa
de não resposta (matrícula sem informação suficiente para que o INEP possa categorizá-la).
Ainda que em 2011 esse índice tenha sido reduzido, para cerca de 13%, esses números ainda
são preocupantes. Pode-se inferir que os índices apresentados evidenciam a insuficiência do
trabalho realizado pela escola e reafirmam a
necessidade de maior atenção à qualidade do
ensino e da aprendizagem.
Com relação ao baixo aproveitamento
escolar dos estudantes, os índices oficiais
também revelam preocupação, uma vez
que o nível de desempenho alcançado pelos
estudantes brasileiros está aquém do observado
em alunos de países desenvolvidos ou em
desenvolvimento. Segundo dados do Programa
Internacional de Avaliação de Alunos (PISA),
divulgados em 2006, o Brasil estava na 49º
posição na prova de leitura e 54º na avaliação
de matemática. Na última edição do exame, em
2009, o Brasil ficou em 53º lugar.
Gomes e Boruchovitch (2009), ao traçar
um panorama geral da proficiência em leitura
de alunos brasileiros, afirmam que o desempenho dos mesmos no ensino fundamental e
médio tem se revelado muito aquém dos objetivos visados pelos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCNs). Pode-se considerar, pelos dados apresentados, e até mesmo pelo relato de
professores e pais de estudantes, que a problemática da aprendizagem escolar se constitui um
dos maiores desafios da contemporaneidade,
conduzindo-nos à reflexão a respeito da temática das dificuldades e/ou do baixo desempenho
escolar dos estudantes.
Os problemas das pessoas que têm enfrentado dificuldades durante o processo de
51
aprendizagem podem estar associados a vários
fatores. Lozano e Rioboo (1998) apontam para
três: o contexto familiar e social, a personalidade do sujeito e as instituições educativas,
incluindo suas áreas metodológicas e de organização. Somam-se a isso as considerações de
Dolle e Bellano (2002), para quem as dificuldades de aprendizagem são decorrentes da interação entre a qualidade da instrução e as características emocionais e motivacionais dos alunos.
Muitos outros estudiosos têm procurado
investigar os fatores associados ao baixo desempenho ou às dificuldades de aprendizagem
dos estudantes. Esses estudos têm se centrado
em diferentes aspectos e alguns deles apontam
para as consequências emocionais vivenciadas
pelos estudantes, como coloca Smith (2001),
autor que alerta para o fato de os problemas de
autoestima serem tanto causa como efeito das
dificuldades, inclusive mais efeito que causa.
Rutter et al. (2008) enfatizaram a consequência emocional gerada pelo fracasso da
criança em responder as demandas escolares e
afirmam que, nessas situações, a criança deixa
de confiar em si mesma e em suas possibilidades de sucesso, resistindo à aprendizagem e,
muitas vezes, deixando de tentar realizar uma
atividade por medo do fracasso.
Para Castro (2004), a base de todo processo de aprendizagem está na relação professor-aluno, a qual deve ser constituída como relação de troca de conteúdos, de conhecimentos
e de afeto. Afirma ainda que essa relação nem
sempre é igualitária, pois alguém detém mais
conhecimento que outros. Assim, dependendo
da maneira como o adulto se coloca nessa situação, ele pode auxiliar ou prejudicar o processo
de aprendizagem.
Tomando como linha norteadora os
aspectos apontados anteriormente, pode-se dizer
que um elemento importante a se considerar
no contexto escolar diz respeito à relação
professor-aluno, uma vez que todo processo
de aprendizagem perpassa pelas relações
estabelecidas entre os envolvidos. Embora na
escola muitas outras relações se estabeleçam,
52
considera-se aquela que envolve o professor
e o aluno é uma das principais, uma vez que
o professor é a figura central, dentro desse
contexto, e responsável por formalizar as
interações do aluno com o conhecimento. O
estudo dessa relação ganha força com a adoção
do enfoque cognitivo. Como afirmam Abreu et
al. (1983, p. 146):
[...] da perspectiva relacional do comportamento que o concebe como uma estrutura ou sistema de interações recíprocas,
organismo-meio, sujeito-situação·ou Eumundo, sendo que cada um dos pólos não
tem existência ou realidade psicológica
sem o outro. (grifos dos autores)
Com essa perspectiva, muda-se a maneira de compreender o processo de aprendizagem.
Segundo Coll e Solé (1996), talvez a mudança
mais significativa tenha sido o deslocamento
do olhar para o comportamento do professor e
a metodologia utilizada para o interesse pelos
mecanismos que influenciam a aprendizagem,
dentre eles, a relação professor-aluno.
Nesse sentido, considera-se que, ao pensar a aprendizagem, não basta apenas analisar
os problemas escolares, focando no conteúdo
e/ou na metodologia adotada pelo professor. É
preciso verificar também a relação entre professor e aluno. A maneira como o docente percebe
o estudante pode levar a antipatias e simpatias
que poderão facilitar ou dificultar o relacionamento e o vínculo em sala, afetando o desempenho do aluno e a maneira como o professor
lida com ele.
Segundo Osti e Brenelli (2012), no decorrer do processo educativo, os alunos vão construindo percepções sobre si e podem aprender
a se comportar em função das expectativas do
professor em relação às respostas cognitivas e
aos tipos de conduta por ele aceitas, segundo
sua tolerância ou severidade.
A literatura tem apontado que as
interações pessoais são também constituídas
por percepções e expectativas de uma pessoa
Andréia OSTI; Selma de Cássia MARTINELLI. Desempenho escolar: análise comparativa em função do sexo e...
em relação à outra e que a expectativa de uma
pessoa sobre o comportamento de outra pode,
involuntariamente, tornar real a predição. As
expectativas em relação ao outro influenciam
na maneira como interagimos, respondemos
a esse outro, bem como o que esperamos dele
(ROSENTHAL; JACOBSON, 1968). Sabe-se
também que grande parte das expectativas é
gerada no contexto das próprias interações e
sofrem a influência de inúmeros fatores, entre
eles os nossos valores, as crenças que fomos
construindo sobre as coisas, entre outros. Um dos
elementos que influenciam nossos sistemas de
crenças e expectativas é o sexo dos participantes.
As pesquisas de Rutter et al. (1979, 2008)
evidenciam que há diferenças nas percepções
dos alunos sobre a expectativa de seus professores. Afirmam que o desempenho do aluno
melhora quando o professor se mostra mais disponível e pronto para atender seus problemas.
Mostram ainda como a avaliação que o professor faz do aluno influencia o comportamento deste. Destacam que os alunos procediam e
alcançavam um desempenho melhor quando os
professores enfatizavam seu sucesso e potencial
em comparação a quando esses focalizavam
seus fracassos e pontos vulneráveis.
Também
preocupadas
com
essa
problemática, Schiavoni e Martinelli (2005)
investigaram se crianças com diferentes níveis
de dificuldades na escrita tinham percepções
distintas a respeito das expectativas de seus
professores sobre elas. Uma amostra de 138
crianças, com idades entre 9 e 10 anos de
idade, foram selecionadas para participar
da pesquisa. A escrita dos estudantes foi
avaliada por meio de uma escala padronizada
que detecta as dificuldades linguísticas mais
comuns de crianças das séries iniciais do
ensino fundamental. Também foi investigada a
percepção dos estudantes sobre as expectativas
de seus professores a seu respeito por meio
de uma escala likert. As médias de percepção
foram menores para os níveis mais altos de
dificuldades na escrita e maiores para os grupos
que apresentaram menos dificuldades de
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 49-59, jan./mar. 2014.
aprendizagem na escrita. Esse resultado indica
que quanto maior o nível de dificuldade de
aprendizagem dos participantes, menos positiva
se mostrou a percepção que eles têm sobre as
expectativas dos professores a seu respeito.
Martinelli e Schiavoni (2009), em um estudo posterior, também se propuseram a investigar se haveria relações entre a maneira com
que os estudantes percebem as expectativas de
seus professores a seu respeito e a aceitação dos
mesmos pelos amigos da sala de aula. Foram
selecionados 130 alunos do ensino fundamental, de ambos os sexos, entre 9 e 10 anos de
idade, de duas escolas públicas do interior do
estado de São Paulo.
Para avaliar o status sociométrico, foi
solicitado aos participantes que indicassem três
nomes de colegas da classe com quem gostariam e não gostariam de estudar e brincar. Os
resultados mostraram que os alunos que revelaram acreditar que seu professor tinha uma
percepção positiva a respeito deles também foram mais escolhidos pelos amigos tanto para
estudar quanto para brincar e, por outro lado,
os participantes que achavam que seus professores os viam de forma menos positiva também
foram menos escolhidos por seus pares para as
situações de estudo e brincadeiras.
No que se refere ao gênero, Gregoriadis
e Tsigilis (2008) apontaram que os professores
demonstram mais apoio e menos desaprovação
às meninas, sendo que essas recebem mais elogios e carinhos do que os meninos. Outros estudos (CARVALHO, 2004, 2005; CASTRO, 2004;
HENRIQUES, 2002; REZENDE, 2008) também
apontaram para o fato de que os meninos apresentam maiores dificuldades em permanecer na
escola ao longo dos anos escolares, recebem conceitos de avaliação inferiores, são mais indicados
para reforço escolar, têm maiores índices de reprovação e estão mais presentes nos grupos considerados como tendo dificuldade de aprendizagem.
A escola, além de ser um ambiente dinâmico e diversificado e promotor de conhecimentos, também se constitui como local de socialização entre os indivíduos. Nesse contexto,
53
as relações vivenciadas no ambiente da sala de
aula e as percepções dos estudantes e professores podem contribuir para a construção e reprodução de estereótipos e discriminações, além de
serem geradoras de expectativas.
Todas as formas de interação entre alunos
e professores formam uma história constituinte
de sua relação com o saber. No decorrer do processo educativo, as percepções desses sujeitos
são construídas em um meio permeado tanto
pelo cognitivo quanto pelo afetivo. O aprender
deve ser pensado como uma responsabilidade
compartilhada, sendo afetado tanto por fatores
intrínsecos quanto extrínsecos. Nesse sentido,
o processo de ensino e aprendizagem envolve
professores e alunos, em um movimento em
que as reflexões e percepções pessoais e interpessoais são primordiais, porque o sujeito para
aprender precisa interagir com o outro.
Adotando essa perspectiva de análise, o
presente estudo se propôs a investigar se existiriam diferenças entre os estudantes com desempenho escolar satisfatório e insuficiente no que
se refere à percepção dos mesmos sobre as expectativas do professor a respeito desses alunos.
Buscou-se também explorar as diferenças entre
os sexos no que diz respeito à percepção do aluno quanto às expectativas de seu professor.
Método
Os participantes deste estudo foram 120
alunos, da rede pública municipal da região metropolitana de Campinas, sendo 51 (42,5%) do
sexo feminino e 69 (57,5%) do masculino, com
idades entre 10 e 14 anos. Todos os estudantes
cursavam, no momento da coleta de dados, o 5º
ano do Ensino Fundamental. Dos 120 estudantes, 51,7% tinham dez anos, o que correspondia
à idade e série adequadas ao ano escolar cursado e os demais (48,3%) tinham idades entre
11 e 14 anos, o que indicava defasagem com a
série cursada. A metade da amostra, 60 estudantes, foi classificada como tendo adequado
desempenho escolar e a outra metade tinha um
desempenho insatisfatório.
54
Para avaliar a percepção do aluno, foi
utilizada a escala de percepção de alunos sobre
as expectativas dos professores (MARTINELLI;
SCHIAVONI; BARTHOLOMEU, 2009). Essa
escala contém 17 itens distribuídos em dois
fatores, explicando 38% da variância. O fator 1,
com nove itens, refere-se à percepção negativa
das expectativas do professor por parte da
criança e explicou 28,53% da variância. Nessa
dimensão, os itens sugerem percepções dos
alunos de que o professor avaliaria os mesmos
como mentirosos, culpados por brigas,
desatentos, mal educados, pouco caprichosos
e pouco estudiosos.
Por sua vez, o fator 2, com oito itens,
relaciona-se à percepção positiva por parte
da criança das expectativas do professor
e foi responsável por 9,51% da variância
total. Esse tipo de percepção indicaria que
o aluno percebe que o professor gosta dele,
o elogia pelos deveres feitos, preocupa-se
com ele e, ao mesmo tempo, acredita que os
alunos são obedientes, fazem os deveres e
são bem comportados. Nos coeficientes alfa
de Cronbach, os valores foram 0,77 para o
fator percepção positiva e 0,77 para percepção
negativa das expectativas do professor. As
opções de respostas para os itens da escala
são: sempre, às vezes ou nunca.
Para as questões positivas do instrumento, são atribuídas a pontuação 2 para
a resposta sempre, 1 para às vezes e 0 para
nunca. Às questões negativas foram atribuídos valores inversos: 0 para a resposta sempre, 1 para às vezes e 2 para nunca, o que
revela uma pontuação bruta para cada sujeito, sendo que a escala pode variar de 0 a 34
pontos, de modo a indicar que quanto maior
a pontuação obtida, mais positiva é a percepção do sujeito.
Para medir o desempenho escolar, foi
considerado o conceito atribuído ao aluno pelo
professor. Convém esclarecer que nas escolas
em que essa pesquisa foi realizada, as notas
são definidas por conceitos. Assim, alunos
com adequado desempenho acadêmico têm
Andréia OSTI; Selma de Cássia MARTINELLI. Desempenho escolar: análise comparativa em função do sexo e...
o conceito PS (plenamente satisfatório), MS
(muito satisfatório) ou S (satisfatório), enquanto
os alunos com baixo desempenho recebem NS
(não satisfatório). O critério para selecionar
os alunos que participaram desta pesquisa
consistiu em ter conceitos PS, MS e NS. Para
compor o grupo com desempenho insatisfatório,
o aluno deveria ter o conceito NS e ser indicado
por seu professor como sendo uma criança
que apresenta dificuldade para aprender. Para
compor o grupo com desempenho satisfatório,
foram considerados apenas os estudantes que
tiveram os conceitos PS e MS.
Inicialmente foi contatada a Secretaria
de Educação do Município e solicitada
permissão para a realização desta pesquisa
nas escolas da rede. Devidamente autorizada,
a pesquisadora agendou dia e horário com
as escolas para apresentar a pesquisa à
equipe gestora e professores. Após esse
procedimento, foi feito contato com a família
dos estudantes, entregues os termos de
consentimento livre e esclarecido aos pais
ou responsáveis e, mediante a aceitação em
participar da pesquisa, foram agendados
os dias e os horários para a aplicação do
instrumento de acordo com o definido na
Resolução 196/96. Somente integraram a
pesquisa as crianças cujos pais autorizaram
a participação. Nesse documento, constavam
informações acerca do instrumento aplicado,
bem como dos objetivos da pesquisa. Após
obter o consentimento dos responsáveis, o
instrumento foi aplicado individualmente na
própria escola.
Análises descritivas do desempenho escolar em
função do sexo
Resultados
Fonte: Dados da pesquisa.
Optou-se, neste estudo, pelo uso da metodologia quantitativa em decorrência dos objetivos propostos e do número de participantes
da pesquisa. Os dados descritivos da amostra
foram obtidos por meio do programa estatístico
SPSS. As diferenças entre grupos foram analisadas por meio da prova estatística não paramétrica U de Mann-Whitney.
A tabela 2 indica que existem algumas
diferenças entre os alunos desse grupo com
relação ao desempenho escolar. Os alunos do
grupo com desempenho insatisfatório são, na
maioria, meninos (83,3%) e têm um desempenho mais baixo que as meninas. Ainda se pode
verificar que a diferença observada entre esses
estudantes foi estatisticamente significante.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 49-59, jan./mar. 2014.
As análises a seguir se detiveram a avaliar as diferenças, no interior de cada grupo,
analisadas em função do sexo.
Grupo com desempenho satisfatório
Tabela 1– Comparação entre as médias por ranking em
relação ao sexo
Sexo
N
Média
Feminino
41
31,50
Masculino
19
28,34
U
z
p
348,50
-0,654
0,513
Fonte: Dados da pesquisa.
Os dados da tabela 1 revelam que das
60 crianças do grupo com desempenho satisfatório 31,7% são meninos e 68,3% meninas.
Ainda se pode verificar que a média de desempenho escolar das meninas foi mais elevada que a dos meninos, embora as diferenças
verificadas não tenham sido estatisticamente
significantes.
Grupo com desempenho insatisfatório
Tabela 2 – Comparação entre as médias por ranking em
relação ao sexo
Sexo
N
Média
Feminino
10
46,80
Masculino
50
27,24
U
z
p
87,00
-3,243
0,001
55
Análise comparativa dos grupos em relação à
percepção de expectativas do professor
Os resultados comparativos entre os
grupos com desempenho satisfatório e baixo
desempenho revelaram que eles responderam
diferentemente a escala de percepção de expectativas do professor e que essas diferenças
foram estatisticamente significantes, como se
pode observar na tabela 3.
Tabela 3 – Comparação entre as médias por ranking entre
alunos com alto e baixo desempenho
Desempenho
N
Média
Desempenho Satisfatório
60
89,47
Desempenho Insatisfatório 60
31,53
U
z
p
62,00 -9,132 < 0,001
Fonte: Dados da pesquisa.
Os alunos com desempenho satisfatório
revelam ser mais elogiados por seus professores
e escolhidos como ajudantes na sala de aula.
Acreditam que são percebidos como bons alunos, bem comportados, obedientes. Também
afirmam que o professor presta atenção neles
quando solicitam ajuda, gostam do que fazem e
se preocupam com eles.
Por outro lado, alunos com desempenho
insatisfatório afirmam que recebem críticas de
seus professores, os quais reclamam da falta de
capricho em suas tarefas e não prestam atenção
quando solicitam ajuda. Sempre que há uma
briga na classe são apontados como culpados
e declaram que o professor fica sempre zangado com esse grupo. Também acreditam que são
vistos por seus professores como bagunceiros,
mentirosos, aqueles que não prestam atenção
na aula, os que estudam pouco e que tudo que
fazem está errado.
Discussão
Dados estatísticos divulgados por
Bloom, Cohen e Freeman (2009) no Sumary
Health Statistics for U.S Children revelaram que
8% dos estudantes americanos, na faixa etária
56
de 3 a 17 anos, apresentavam dificuldades de
aprendizagem, sendo que 11% eram meninos e
6% meninas. Uma revisão de estudos conduzida
por Liederman, Kantrowitz e Flannery (2005),
em que eram investigadas as dificuldades de
leitura, também revelou haver um predomínio
de meninos em relação às meninas com
dificuldades. Assim, pode-se afirmar que são os
meninos, de maneira geral, a encabeçarem as
estatísticas por apresentarem maiores índices de
reprovação, evasão e dificuldades.
Os dados encontrados no presente estudo também apontam para essa mesma direção,
uma vez que os meninos apresentaram menor
desempenho durante o ano escolar, em comparação com as meninas de mesma idade e série
cursada. Esse resultado está em consonância
também com outros trabalhos.
Conforme apontado por Rezende (2008),
os meninos (sobretudo os pardos e negros) apresentam uma situação escolar bastante desvantajosa em comparação com as meninas (brancas
e negras) e meninos brancos. O primeiro grupo
apresenta maiores índices de reprovação, evasão, recebem conceitos de avaliação inferiores e
são mais indicados para reforço escolar.
Ao investigar os processos que têm
conduzido um maior número de meninos do
que meninas a obter conceitos negativos e a
ser indicado para atividades de recuperação,
Carvalho (2005) observou que as diferenças de
desempenho entre os sexos parecem ser mais
significativas, com os meninos predominando
largamente entre os indicados para reforço,
em todos os grupos de raça e faixas de renda.
Outros estudos (CASTRO, 2004; GREGORIADIS;
TSIGILIS, 2008; HENRIQUES, 2002; LINDGARD;
DOUGLAS, 1999) também afirmam que frequentemente há maior presença dos meninos
nas atividades de reforço escolar e atendimento
especial do que meninas. Nas pesquisas de Osti
(2010) e Osti e Brenelli (2012), realizadas com
alunos de escolas públicas da região metropolitana de Campinas, as autoras destacam que
os alunos considerados com dificuldades foram
em sua maioria meninos (85%).
Andréia OSTI; Selma de Cássia MARTINELLI. Desempenho escolar: análise comparativa em função do sexo e...
Apesar dessa indicação, é importante
pontuar que ainda são poucos os estudos que
avaliam as diferenças entre os sexos. Dentre
esses, nem sempre são concordantes entre si e
nem tampouco são suficientes para interpretar essas diferenças. Conforme apontado por
Liederman; Kantrowitz e Flannery (2005), é necessário que outros estudos sejam conduzidos
a fim de comparar o desempenho de meninas e
meninos. Os autores enfatizam que esses estudos deveriam ser conduzidos utilizando outras
formas de medição e definição da habilidade ou
do constructo a ser avaliado, comparando o desempenho de meninos e meninas em relação ao
seu próprio grupo e não intergrupos e relatando
as diferenças e a variabilidade das relações obtidas entre os grupos.
Por outro lado, e já há bastante tempo, os
estudos voltados para a análise do desempenho
escolar dos estudantes têm apontado para o fato
de que o sucesso escolar implica uma reunião
de fatores que incluem a boa relação do aluno
com seu professor, sua autoestima, participação
da família e a adaptação escolar, dentre muitas
outras condições. Portanto, não se pode apontar
o aluno como o único responsável por seu sucesso ou fracasso na aprendizagem, pois são vários
os fatores que contribuem para uma experiência bem sucedida de aprendizagem. Da mesma
maneira, não se pode responsabilizar somente o
professor pelo sucesso de um percurso, uma vez
que o desempenho de suas funções também sofre
a influência não só das circunstâncias imediatas,
mas também da existência de um macro contexto que pode se revelar muito complexo.
A análise detalhada e concomitante
desses aspectos é de difícil operacionalização
quando se trata de investigar esses fenômenos
em uma situação de contexto natural, como o
que está presente no dia a dia do funcionamento escolar, onde geralmente as pesquisas são realizadas. Apesar dessas dificuldades, a vivência
escolar sempre revela dados da realidade bastante importantes e que se constituem em campo fértil e rico de informações sobre a vida e a
aprendizagem dos estudantes. Assim, a maioria
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 49-59, jan./mar. 2014.
dos estudos tem optado por fazer recortes dessa
realidade, a fim de analisar e conhecer os aspectos que, ao estarem presentes nesse contexto, podem interferir de forma positiva ou negativa sobre a aprendizagem e o desenvolvimento
afetivo, cognitivo e social dos estudantes.
Conforme pontuam Rutter et al. (2008),
as expectativas dos professores têm sido objeto de investigação há várias décadas, por se
considerar que elas influenciam o progresso
acadêmico dos alunos. Os autores destacam
que os alunos não apenas percebem quais são
as expectativas que seus professores fazem de
sua competência acadêmica e de seu comportamento como acabam por corresponder a elas.
Exemplificam relatando estudos em que os alunos obtiveram mais sucesso acadêmico quando
os professores expressavam expectativas de que
as crianças se sairiam bem nos exames.
Essa colocação pode ser mais bem exemplificada a partir dos dados revelados por este
estudo, que mostraram haver diferenças entre os
grupos de estudantes com relação à percepção
de seus professores. Alunos com desempenho
satisfatório revelam ser mais elogiados por seus
professores e escolhidos como ajudantes na sala
de aula. Por outro lado, alunos com desempenho insatisfatório afirmaram receber mais críticas de seus professores e também acreditam
ser percebidos como bagunceiros e mentirosos.
Como os dados do presente estudo revelam as percepções dos estudantes, não se pode
afirmar serem essas condições verdadeiras ou
não. No entanto, apesar dessa limitação, também é importante frisar que somos constantemente influenciados por nossas percepções e em
função delas agimos e reagimos diante das situações. Nesse sentido, pode-se dizer que as percepções dos alunos a respeito da maneira como
pensam e sentem as relações com seus professores têm influência sobre seu desempenho.
Se o aluno percebe ou sente em seu
professor o descrédito em sua capacidade,
possivelmente terá menos vontade de participar
da aula e poderá, em alguns casos, assumir para
si a falta de condições para aprender. Essas
57
condições são ainda mais fortes em crianças que
estão no início do processo de escolarização,
uma vez que, nesse momento, é o professor
quem assume importância fundamental, por ser
a figura adulta e externa à família com a qual
as crianças passam a se identificar.
Assumindo essa perspectiva, é possível
afirmar que os alunos podem ser influenciados
pelo modo como são tratados por seus
professores. Dessa forma, os estudantes, ao
vivenciarem relações positivas, tendem a se
sentir mais confortáveis e seguros. Por outro
lado, quando vivenciam relações negativas,
podem desenvolver atitudes de rejeição em
relação à escola, desvalorização pessoal e
baixo rendimento. Além disso, Rutter et al.
(2008) afirmam que o comportamento do
estudante é melhor quando os professores
fazem uso de elogios, assim como enfatizam
o bom comportamento. Os alunos tendem a
aprender melhor quando ensinados em um
clima de confiança. Também ressaltam que
as repreensões e castigos podem provocar
e perpetuar a indisciplina e aumentar
a probabilidade da criança demonstrar
comportamento agressivo.
Dessa maneira, os dados do presente estudo, associados aos demais que têm se detido
sobre a análise das relações entre professores e
alunos, nos levam a refletir a respeito do quanto
as relações vinculares entre alunos e professores são importantes durante todo o processo escolar e além dele. Isso porque as relações com o
conhecimento sofrem influências de vivências e
experiências com a aprendizagem, as quais podem tanto favorecer quanto inibir o interesse, a
criatividade, a motivação, entre outros aspectos
necessários ao ato de conhecer.
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Recebido em: 11.08.2012
Aprovado em: 26.02.2013
Andréia Osti é doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Professora do Departamento de Educação do
Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista – UNESP.
Selma de Cássia Martinelli é professora livre docente pela Universidade Estadual de Campinas. Professora do Departamento
de Psicologia Educacional da Faculdade de Educação da UNICAMP e Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em
Psicopedagogia.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 49-59, jan./mar. 2014.
59
Percurso da avaliação da educação superior nos
Governos LulaI
Gladys Beatriz BarreyroII
José Carlos RothenIII
Resumo
O texto analisa a política de avaliação da educação superior
desenvolvida durante os governos de Luiz Inácio Lula da Silva
(2003-2010). Trata-se de uma pesquisa documental que utiliza a
legislação e documentos oficiais do período como principal fonte
de informação. O ponto de partida foi mostrar que o Sistema
Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES) implicou
uma mudança na lógica da avaliação imperante. Para tanto,
recupera-se o percurso da criação do SINAES, sua implantação e
seus desdobramentos, distinguindo-se quatro fases: a) a proposta
de uma nova política; b) a criação de legislação para alavancá-la;
c) a implantação da lei; e d) a volta à lógica da política anterior
(Provão), com a inclusão de índices. Conclui-se que o SINAES
tentou empreender uma mudança na lógica de avaliação instituída
desde o Provão, acrescentando três eixos na avaliação do sistema:
a) a avaliação institucional com autoavaliação, em que se recupera
o paradigma da avaliação formativa, b) a avaliação de cursos; e
c) a avaliação dos estudantes, eliminando o Provão, mas criando
uma prova em larga escala com outras características – o Exame
Nacional de Desempenho dos Estudantes (ENADE). Contudo, em sua
implantação, o SINAES sofreu profundas transformações a partir da
criação do Conceito Preliminar de Cursos (CPC) e do Índice Geral de
Cursos (IGC), que foram incorporados ao final do segundo Governo
Lula. Os resultados do ENADE são seu componente de maior peso,
mostrando que a lógica de regular o sistema pelos resultados de
uma prova continua em vigor.
I- Este texto, produto de pesquisa apoiada
pela FAPESP, amplia e reelabora questões
apresentadas no 25º Simpósio Brasileiro e
2º Congresso Ibero-Americano de Política
e Administração da Educação: Políticas
Públicas e Gestão da Educação: construção
histórica, debates contemporâneos e
perspectivas futuras, realizado em São
Paulo, nos dias 26-30 de abril de 2011.
II- Universidade de São Paulo, São Paulo,
SP, Brasil.
Contatos: [email protected]
III-Universidade Federal de São Carlos,
São Carlos, SP, Brasil.
Contato: [email protected]
Palavras-chave
Avaliação da educação superior — Governo Lula — Política de
educação superior — SINAES.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 61-76, jan./mar. 2014.
61
The course of higher education evaluation in Lula
governmentsI
Gladys Beatriz BarreyroII
José Carlos RothenIII
Abstract
I- This text, a product of research
supported by FAPESP, extends and
elaborates on issues presented at 25º
Simpósio Brasileiro e 2º Congresso IberoAmericano de Política e Administração da
Educação: Políticas Públicas e Gestão da
Educação: construção histórica, debates
contemporâneos e perspectivas futuras
(25th Brazilian Symposium and 2nd
Ibero-American Congress of Educational
Policy and Administration: Public Policy
and Management of Education – historic
construction, contemporary debates and
future prospects), held in São Paulo from 26
to 30 April 2011.
II- Universidade de São Paulo, São Paulo,
SP, Brazil.
Contact: [email protected]
III-Universidade Federal de São Carlos,
São Carlos, SP, Brazil.
Contact: [email protected]
62
This article analyzes the policy of higher education evaluation
developed during the governments of Luiz Inácio Lula da Silva
(2003-2010). This is a documentary research which uses
legislation and official documents of the period as its main sources
of information. We began by showing that Sistema Nacional de
Avaliação da Educação Superior (SINAES – National System of
Higher Education Evaluation) brought about a change in the
prevailing logic of evaluation. To do so, we recovered the course
of the creation of SINAES , its implementation and consequences,
distinguishing four phases: a) the proposal of a new policy, b) the
creation of legislation to promote it, c) the implementation of the
law and d) the return to the logic of the previous policy (Provão),
with the inclusion of indexes. We have concluded that SINAES
attempted to undertake a change in the evaluation logic established
since Provão, adding three axes to the evaluation of the system: a)
the institutional assessment with self-evaluation, which recovers
the paradigm of formative assessment, b) the evaluation of courses
and c) the evaluation of students, eliminating Provão but creating
a large-scale test with other characteristics – Exame Nacional de
Desempenho dos Estudantes (ENADE – National Examination of
Student Performance). However, during its implementation, SINAES
underwent major changes due to the creation of Conceito Preliminar
de Cursos (CPC - Preliminary Concept of Courses) and Índice Geral
de Cursos (IGC – General Index of Courses), which were added at the
end of the second Lula government. The results of ENADE are the
components with the largest weight in SINAES, showing that the
logic of regulating the system by the results of a test is still in force.
Keywords
Higher education evaluation — Lula government — Higher education
policy — SINAES.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 61-76, jan./mar. 2014.
Em meados da década de 1990, houve no
Brasil uma reforma do Estado condizente com
as concepções hegemônicas que, desde os anos
1980, tinham aparecido no mundo desenvolvido
anglo-saxão como alternativa ao Estado de
bem-estar social em crise. Em tais concepções
“a defesa da livre economia de tradição liberal
[coexistia] com a autoridade do Estado, de
tradição conservadora” (AFONSO, 2005, p. 113).
Essa reforma do Estado propunha, entre
outras coisas, a descentralização da execução
de políticas e a diminuição da oferta direta pelo
Estado de atividades que pudessem ser realizadas
pelo setor privado. No setor educativo, a perda
de poder estatal foi compensada com a criação
do chamado Estado avaliador (NEAVE, 1988),
isto é, a implantação de estratégias de avaliação
centralizadas que assumiram, na maioria dos
países, a forma de exames nacionais para
verificação de desempenho.
No Brasil, no que concerne à educação
superior – caracterizada pela estagnação
do sistema, pela demanda reprimida e pelo
baixo acesso da população a esse nível de
ensino –, houve uma ampliação no número
de vagas graças à expansão do setor privado,
o que se deveu a mudanças na legislação que
incentivaram sua participação. O crescimento de
instituições privadas foi exponencial desde 1996,
e o Exame Nacional de Cursos (ENC-Provão) foi
idealizado como mecanismo de regulação estatal
da educação superior pela via do mercado.1
A implantação do Provão esvaziou
o Programa de Avaliação Institucional das
Universidades Brasileiras (PAIUB), criado em
1993 pelo Ministério da Educação, mas gestado
pela Associação Nacional dos Dirigentes
das Instituições Federais de Ensino Superior
(ANDIFES) após embates e experiências de
avaliação – algumas traumáticas – durante a
década de 1980 (PARU,2 Comissão de Notáveis,
GERES3 e Lista dos improdutivos da USP4).
O PAIUB e o Provão, nos anos de 1990,
representaram dois paradigmas diferentes de
avaliação: formativa e somativa. A primeira é
aquela que é realizada ao longo do processo, com
a participação dos atores, e que, de acordo com
a concepção do PAIUB, deveria considerar toda
a instituição, com a possibilidade de alcançar
status emancipatório (DIAS SOBRINHO, 2000;
SAUL, 1994). Já a avaliação somativa, que
verifica os resultados alcançados ao final do
processo (na concepção do Provão, aplicando
um exame final aos alunos formandos),
apresenta um viés regulatório devido à
utilização dada aos seus resultados.
Se, por um lado, o Provão encontrou
grande receptividade na imprensa nos momentos
em que os resultados eram divulgados, pois a
maioria das matérias apontava que esse exame
seria um bom diagnóstico da educação superior,
por outro, houve forte resistência do movimento
estudantil e de acadêmicos vinculados às
experiências anteriores de avaliação da educação
superior, o que gerou algumas alterações
pontuais, como a não inserção do resultado
do exame no histórico escolar dos alunos e a
previsão de avaliações in loco.
Em 2002, durante o programa de
governo do então candidato Luiz Inácio Lula da
Silva (Lula), intitulado Uma escola do tamanho
do Brasil (COLIGAÇAO LULA PRESIDENTE,
2002), foram sinalizadas como metas algumas
mudanças na avaliação, em sintonia com os
princípios do PAIUB.
Este texto tem a finalidade de estudar,
nos Governos Lula, o percurso da avaliação da
educação superior como política pública, tendo
por objetivo compreender seu significado. Para
isso, são sintetizados resultados de pesquisa
documental (legislação e documentos oficiais) e
bibliográfica (trabalhos acadêmicos publicados
1- Para maior detalhamento acerca desse processo, consultar: SILVA
JÚNIOR; SGUISSARDI, 2001; CATANI; OLIVEIRA, 2000; CUNHA, 2003; DIAS
SOBRINHO; RISTOFF, 2002; TRINDADE, 1999.
2- Programa de Avaliação da Reforma Universitária
3- Grupo Executivo da Reforma do Ensino Superior
4- Lista de docentes da USP sem publicações entre 1985 e 1986,
publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, em 1988.
Introdução
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 61-76, jan./mar. 2014.
63
sobre o período). Inicialmente, apresentaremos
as características das políticas de educação
superior nos referidos governos para, na
sequência, estudar as políticas de avaliação.
A educação superior nos
Governos Lula
Durante os dois governos de Luiz Inácio
Lula da Silva (2003-2006 e 2007-2010), o
Ministério da Educação (MEC) foi ocupado por
três ministros, a saber, Cristovam Buarque, Tarso
Genro e Fernando Haddad, diferentemente dos
Governos FHC, em que Paulo Renato Souza
permaneceu no cargo durante os oito anos. Tal
característica influenciou o rumo das políticas
de educação superior, que não foi uniforme
durante os dois Governos Lula. Além disso,
cabe ressaltar o apelo à consulta pública das
propostas e/ou minutas de leis como uma
prática recorrente ao longo das três gestões
ministeriais, contrastando com a falta de
diálogo entre o Ministério e a academia durante
o governo anterior (BARREYRO, 2010).
Ainda, verificou-se a prevalência de
um grupo ligado à Associação Nacional de
Dirigentes das Instituições Federais de Ensino
Superior (ANDIFES) nos cargos relacionados
à educação superior. Passaram pela direção
da Secretaria da Educação Superior (SESu):
José Roberto Antunes dos Santos, Nelson
Maculan e Ronaldo Mota – todos professores de
instituições federais de educação superior (IFES).
Em setembro de 2008, Mota foi substituido
por Maria Paula Dallari, assessora jurídica do
MEC, anteriormente professora da Universidade
Católica de Santos e advogada da Universidade
de São Paulo, rompendo, assim, a continuidade
de professores das IFES.
Outro órgão que apresentou bastante
rotatividade foi o Instituto Nacional de Estudos
e Pesquisas Anísio Teixeira (Inep): Otaviano
Helene (USP), Raimundo Luiz Araújo (exSecretário de Educação de Belém, PA, 19972002), Eliezer Pacheco (UNIJUI), Reynaldo
Fernandes (USP) e José Joaquim Soares Neto
64
(UnB). Na diretoria responsável pela avaliação
da educação superior, ocuparam o cargo:
Raimundo Luiz Araújo, Dilvo Ristoff (UFSC),
Iguatemy M. de Lucena Martins (UFPB) e
Claudia Maffini Griboski (UnB).5
A gestão de Buarque no campo da
educação superior foi marcada pela discussão
dos rumos da avaliação paralelamente à
aprovação da lei de inovação que facilita
a utilização dos recursos – físicos,
materiais e humanos – das universidades
pelas empresas, assim como a transferência
de tecnologia daquelas para estas.
(SGUISSARDI, 2006, p. 1042)
Durante as gestões de Genro e Haddad,
as políticas de educação superior desenvolvidas
enfatizaram, principalmente, o acesso a esse
nível de educação, sobretudo pela ampliação da
rede federal de ensino e pela oferta de bolsas
em instituições privadas; paralelamente, foram
estimuladas políticas de ação afirmativa nas
instituições federais.
A ampliação da rede federal de ensino
aconteceu tanto pela via da criação de novas
IFES — com a organização acadêmica de
universidades ou de Institutos Federais de
Educação, Ciência e Tecnológica (IFs) —, quanto
pela expansão dos campi das universidades
existentes e pela implantação do Programa
de Reestruturação das Universidades Federais
(REUNI), visando ao aumento das vagas em
IFES. Também, foram criados cursos à distância
pela Universidade Aberta do Brasil (UAB).6
A ampliação do setor privado de educação
superior, que se iniciou no Governo FHC, teve
continuidade. Se naquela gestão a ampliação
havia se dado pela flexibilização normativa para
5- Inicialmente, a Diretoria de Estatísticas e Avaliação da Educação
Superior era responsável pela avaliação; a partir de sua divisão em duas
pelo Decreto nº 6.317/2007 (BRASIL, 2007b), a responsabilidade passou
para a Diretoria de Avaliação da Educação Superior (DAES).
6- A Universidade Aberta do Brasil é um sistema composto por
universidades públicas, financiado com recursos do MEC e que oferece
cursos superiores à distância para público em geral. Os professores
atuantes na educação básica têm prioridade, assim outros profissionais de
educação básica (CAPES, s.d.).
Gladys Beatriz BARREYRO; José Carlos ROTHEN. Percurso da avaliação da educação superior nos Governos Lula
a abertura de novos cursos e IES, no Governo
Lula, a expansão foi decorrente de uma política
social: o Programa Universidade para Todos
(Prouni), no qual instituições privadas, com ou
sem fins lucrativos, oferecem bolsas de estudo
totais ou parciais a alunos de baixa renda, em
troca de isenções fiscais.7
Houve também a tentativa de criação
de uma lei de educação superior (Reforma
Universitária). A partir da elaboração de um
projeto de lei submetido à Consulta Pública e
após várias mudanças importantes na minuta
original, uma nova proposta foi enviada ao
Congresso. Polêmico, tal projeto recebeu centenas
de emendas e não foi tratado no plenário, tendo
sua discussão finalizada ao ser apensado ao
projeto de lei no 4.212/2004, que tramitava na
Câmera dos Deputados desde 2004.
A avaliação da educação
superior nos Governos Lula
A avaliação da educação superior durante
os Governos Lula teve um percurso conturbado,
no qual distinguimos quatro fases: a) a proposta
de uma nova política; b) a criação de legislação
para alavancá-la; c) a implantação da lei; e d) a
volta à lógica da política anterior (Provão).
Da proposta
Em 2003 foi criada a Comissão Especial de
Avaliação (CEA), com o objetivo de elaborar uma
proposta de avaliação da educação superior em
vista das críticas feitas no programa de governo
de Lula ao modelo adotado pelo governo anterior.
A Comissão foi composta, principalmente, por
acadêmicos ligados às instituições públicas e,
particularmente, ao PAIUB.
Durante a realização dos trabalhos da
Comissão, ocorreram debates na imprensa sobre
a validade ou não do Exame Nacional de Cursos,
o Provão. O Ministro Buarque, engrossando o
coro de membros do governo anterior, defendeu
7- Sobre o PROUNI, ver CARVALHO, 2011, entre outros.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 61-76, jan./mar. 2014.
a realização do exame e, ainda, relativizou na
imprensa o trabalho da Comissão ao ressaltar
sua convicção de que a nova proposta
consistiria em um aperfeiçoamento do Provão,
e não em sua total substituição. A Comissão
apresentou ao Ministro Buarque, em setembro
de 2003, a proposta do Sistema Nacional de
Avaliação da Educação Superior (SINAES)
(BRASIL, 2004b). A proposta, inspirada
nos princípios emancipatórios do PAIUB,
estava baseada na centralidade da avaliação
institucional, processo que se iniciaria com
a autoavaliação. Sem ignorar o apelo que a
sociedade brasileira tem por exames em larga
escala, mas diminuindo a ênfase dada no
Governo FHC, a proposta incluía uma prova
que deveria ser aplicada a uma amostra dos
alunos ingressantes e concluintes por áreas de
conhecimento, sendo realizada apenas uma vez
a cada três anos. Dessa forma, diferentemente do
Provão, os alunos seriam avaliados por grandes
áreas de conhecimento, e não mais por cursos
(ROTHEN; BARREYRO, 2011).
Após embates nos bastidores do MEC,
o Ministro Buarque propôs, num documento
substitutivo ao da Comissão, a criação de um
Índice de Desenvolvimento do Ensino Superior
(IDES), com o objetivo de aferir a qualidade do
ensino, da aprendizagem, da infraestrutura e
da responsabilidade social das instituições de
educação superior (BRASIL, 2003a).
Finalmente, em dezembro de 2003,
foi editada a Medida Provisória no 147/2003,
instituindo o Sistema Nacional de Avaliação
e Progresso do Ensino Superior (SINAPES). O
SINAPES, segundo a redação do documento,
tinha a finalidade de
avaliar a capacidade institucional, o processo de ensino e produção do conhecimento,
o processo de aprendizagem e a responsabilidade social das instituições de ensino superior avaliadas. (BRASIL, 2003b)
Ele previa a criação de duas agências: a
Comissão Nacional de Orientação da Avaliação
65
(CONAV) e a Comissão Nacional de Avaliação
e Progresso do Ensino Superior (CONAPES),
com funções, respectivamente, executivas e de
consulta. Além disso, propunha o estabelecimento
de Comissões Próprias de Avaliação (CPAs) em
cada IES, deixando para regulamentação pelo
MEC a definição dos procedimentos de avaliação
do Sistema. Não havia qualquer menção a uma
prova; inclusive, a medida provisória revogava os
artigos da Lei no 9131/1995, que fundamentaram
a existência do Provão.
Tal período, que aqui denominamos
Da proposta, iniciou-se com uma postura
democrática, trazendo à discussão a questão
da avaliação por meio de consultas públicas e
debates na imprensa. A medida provisória que
instituiu o SINAPES não respeitou o processo de
debate, chegando a ponto de ignorar a proposta
apresentada pelo próprio Ministério.
Da legislação
Com a reforma ministerial de 2004,
Cristovam Buarque foi substituído por Tarso Genro.
Logo a seguir, no Congresso Nacional, foi votado
o projeto de conversão da medida provisória
em lei, que recuperou algumas das propostas da
CEA e foi promulgado como Lei no 10.861/2004
(BRASIL, 2004e). Dessa forma, instituiu-se o
SINAES, coordenado e supervisionado por um
órgão colegiado especialmente criado para
esse fim, a Comissão Nacional de Avaliação da
Educação Superior (CONAES).
Houve, assim, dois SINAES: o da
proposta da Comissão Especial de Avaliação e o
estabelecido em lei. O segundo recuperou apenas
parcialmente os princípios emancipatórios da
primeira proposta, conciliando-o com a visão
regulatória proveniente da época do Provão.
No período da implantação, foi permanente a
tensão entre essas duas visões.
O SINAES da Lei n° 10.861/2004
estabeleceu: a avaliação institucional, composta
por autoavaliação e avaliação externa; a
avaliação de cursos, consistindo das visitas in
loco de avaliadores externos; e a avaliação dos
66
estudantes, pelo Exame Nacional de Desempenho
dos Estudantes (ENADE) (BRASIL, 2004e). Para
o desenvolvimento da autoavaliação, a lei
estabeleceu a criação de Comissões Próprias de
Avaliação (CPAs) em cada IES, as quais teriam
atuação autônoma na instituição visando
coordenar o processo.
Da implantação
Alguns membros da CEA posteriormente
ocuparam cargos-chave na implantação do
SINAES, tais como Hélgio Trindade e José Dias
Sobrinho, professores de instituições públicas
de educação superior que foram membros
da CONAES. No Inep, que concentrava as
atividades de execução das avaliações no novo
sistema, Dilvo Ristoff, como já dito, assumiu
a Diretoria de Estatísticas e Avaliação da
Educação Superior, diretamente encarregada da
implantação do SINAES.
Nesse período foram desenvolvidas ações
de orientação dos processos de autoavaliação
institucional. Inicialmente, a CONAES divulgou
as Diretrizes para a Avaliação das Instituições
de Educação Superior (BRASIL, 2004d) e o
Roteiro de Autoavaliação Institucional (BRASIL,
2004c), os quais apresentaram uma concepção
de avaliação institucional formativa, apelando
para a participação da comunidade no processo
de autoavaliação. Foi estabelecido, também, um
calendário com datas para cada etapa (BRASIL,
2005b). Começaria assim o ciclo avaliativo,
composto pela autoavaliação institucional da
qual derivaria um relatório elaborado por cada
Comissão Própria de Avaliação (CPA); depois
haveria a avaliação institucional externa, por
meio da visita de avaliadores institucionais. Após
esse ciclo teria início o processo de regulação.
Além disso, foram realizados quatro
seminários de divulgação do SINAES em diversas
regiões e se acompanhou o processo de criação
das CPAs, solicitando seu cadastro no Inep.
Assim, no final do ano de 2004, haviam sido
cadastradas 1.831 Comissões no Inep (ALMEIDA
JÚNIOR, 2005). Essas ações mostraram a
Gladys Beatriz BARREYRO; José Carlos ROTHEN. Percurso da avaliação da educação superior nos Governos Lula
valorização da autoavaliação institucional como
processo prévio à avaliação institucional externa.
A implantação do SINAES nas instituições
e o resultado do trabalho das CPAs podem ser
avaliados pela leitura de alguns estudos de caso
apresentados em artigos, teses e dissertações. Em
um trabalho que analisa os artigos sobre o SINAES
publicados na Revista Avaliação (ROTHEN;
BARREYRO, 2010), mostra-se que a maioria desses
textos é resultado de pesquisas realizadas na
instituição em que os autores desempenham suas
funções, muitas vezes como membros de CPAs.
Os estudos evidenciam processos institucionais com ênfases variadas. Alguns casos demonstram que a autoavaliação prevista no SINAES consistiu em uma continuação
de experiências já iniciadas pelas instituições
(CARBONARI, 2006); outros indicam uma continuidade de algo iniciado com o PAIUB (BOTH,
2005). Vários trabalhos assinalam o problema da
falta de participação da comunidade acadêmica
nas diversas fases da autoavaliação (ANDRIOLA;
SOUZA, 2010), inclusive quando ela é on-line
(POLIDORI; FONSECA; LARROSI, 2007). Alguns
artigos discutem o trabalho realizado pelas CPAs
e assinalam que elas elaboram o projeto de autoavaliação utilizando dados qualitativos, quantitativos e, em certos casos, documentos da instituição (AUGUSTO; BALZAN, 2007).
Pesquisa realizada com 899 CPAs de
instituições com até 500 alunos (que são 50%
das IES do país) mostra que as CPAs foram
efetivamente constituídas, mas que apenas
cumpriam burocraticamente a legislação,
produzindo relatórios para o Inep conforme
as orientações do SINAES. Esses relatórios
eram descritivos, incorporando documentos
e informações, mas não conseguiam realizar
análises críticas da instituição. Em IES
maiores e que já desenvolviam atividades de
autoavaliação institucional anteriormente, a
autora verificou processos de ampliação da
participação (LEITE, 2008).
Em publicação do Inep (2011) foram
analisados 172 relatórios de autoavaliação,
produzidos por CPAs de diferentes tipos de
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 61-76, jan./mar. 2014.
instituições, entre 2004 e 2008: apenas 12,2%
consideraram, nesse processo de autoavaliação,
todas as dimensões propostas pelo SINAES;
mais de 50% somente apresentavam gráficos e
tabelas, sem a devida análise e interpretação ou
mesmo sem informações; 61% afirmavam terem
feito sugestões de melhorias à instituição e não
apenas escrito um relatório de autoavaliação;
25,5% mencionavam que haviam se efetivado
as mudanças sugeridas, enquanto 74,5% dos
relatórios assinalam não ter evidências dessas
mudanças. Ainda, as universidades têm sido as
que apresentaram relatórios mais completos,
seguidas dos centros universitários e das
faculdades, sendo que as universidades públicas
levaram uma leve vantagem (BRASIL, 2011b).
Em síntese, os estudos mencionados
evidenciam que as CPAs foram implantadas nas
instituições de ensino superior e que os processos
de autoavaliação produziram relatórios com graus
diversos de aprofundamento. Na grande maioria
das CPAs, o trabalho consistiu em apenas elaborar
um documento para ser enviado ao Inep.
Quanto à avaliação externa, a CONAES
emitiu um Instrumento de Avaliação Externa
de Instituições em que privilegiou os efeitos
regulatórios da avaliação (BRASIL, 2005a).
Também divulgou nesse documento um calendário
que indicava, a partir de agosto de 2005, os
prazos para recredenciamento de instituições
segundo a organização acadêmica de cada uma
(BRASIL, 2005b). O calendário não foi cumprido
pelo próprio Ministério e as visitas in loco para
recredenciamento só começaram em 2009, após
novo calendário divulgado em 2008.
Nesse intervalo, em 2006, houve a
criação de um banco de avaliadores (BASIS)
para o recrutamento de professores que fariam
as avaliações externas de instituições e cursos.
Os interessados que cumprissem os requisitos
estabelecidos poderiam se inscrever on-line.
Foram também organizados e ministrados
cursos de capacitação para essas pessoas. Tal
processo, aberto à comunidade, é entendido por
Peixoto (2011) como um dos motivos do atraso
na realização das avaliações externas.
67
O Instrumento de Avaliação Institucional
Externa foi revogado e substituído em outubro
de 2008. Posteriormente teve uma nova revisão,
em setembro de 2010, embora tenha recebido
críticas pela não definição de “condições
mínimas de qualidade” em que
percebe-se e se ratifica a subjetividade do
processo no uso excessivo de advérbios e
adjetivos, fragilizando, consideravelmente,
a composição final do conceito do processo
avaliativo. (POLIDORI et al., 2011, p. 272)
No que diz respeito à avaliação dos
estudantes, o ENADE, uma prova em larga
escala, teve sua primeira ocorrência em 2004.
Nas primeiras edições, a avaliação foi aplicada
aos alunos concluintes, tal como no Provão,
mas inovava ao ser também aplicada aos
alunos ingressantes. Outra diferença consistia
em seu caráter amostral e não mais censitário.
A aplicação da mesma prova aos concluintes e
aos ingressantes visava medir o valor agregado
que o curso/instituição fornecia ao aluno.
O ENADE divide-se em duas partes: 10
questões de formação geral e 30 de conhecimento
específico. Diferentemente do Provão, a
quantidade de suas questões segue um padrão
único para todas as áreas. Seus resultados são
sistematizados no Conceito ENADE, o qual é
organizado em uma escala de cinco níveis. Em
2005, criou-se o Indicador de Diferença entre
os Desempenhos Observado e Esperado (IDD);
com esse indicador, busca-se verificar quanto
conhecimento a instituição forneceu aos seus
alunos (valor agregado), tentando, dessa forma,
superar o argumento – mormente defendido
pelo setor privado da educação superior, desde
o Provão – de que algumas instituições têm
bom desempenho na prova por receberem bons
alunos. Com esse indicador, cursos nos quais
o desempenho dos ingressantes é próximo ao
dos concluintes tem uma má avaliação, ao
passo que são bem-avaliados aqueles em que o
desempenho dos concluintes é superior ao dos
ingressantes (ROTHEN; BARREYRO; 2011).
68
Embora o ENADE continuasse tendo
destaque no sistema de avaliação e apresentando
resultados simplificados que permitiam um
ranque, a divulgação de seus resultados não
teve tanto impacto nesses anos quanto teve
o Provão, devido à perda de centralidade da
avaliação entre as políticas ministeriais.
Durante o primeiro Governo Lula,
na avaliação da educação superior, viuse agravado o represamento de processos
de credenciamento de instituições e
reconhecimento de cursos. Isso foi causado
por duas razões: a) o questionamento das
taxas pagas pelas IES para a realização desses
processos pelo Inep; e b) o veto do Tribunal
de Contas da União ao pagamento de pro
labore aos professores de instituições públicas
com dedicação exclusiva que faziam visitas
de avaliação in loco. Tais questões exigiram
medidas legais para serem resolvidas e para
que o processo tivesse continuidade. Além
disso, o ciclo do SINAES teve morosidade, o
que levou à edição de diversas portarias para
reconhecimento provisório dos cursos, devido
à necessidade de emissão de diplomas aos
formados (ROTHEN; BARREYRO, 2011).
Ao final do primeiro Governo Lula,
em 2006, houve a edição de um decreto
chamado de Decreto Ponte,8 em que foram
definidos os procedimentos de supervisão,
regulação e avaliação da educação superior,
bem como as atribuições entre diversos órgãos
governamentais. Na prática, porém,
a Avaliação, ao invés de “referencial
básico” aos processos regulatórios, vem
se tornando “determinante” aos mesmos,
criando equivalência entre avaliação e
regulação, ou entre avaliação e controle,
sem que as autoridades recorram a outros
meios de convencimento, ou fomentem
o “processo regular de avaliação”,
recomendado pela LDB. (FERNANDES,
2010, p. 59)
8- Decreto no 5.773/2006 (BRASIL, 2006).
Gladys Beatriz BARREYRO; José Carlos ROTHEN. Percurso da avaliação da educação superior nos Governos Lula
Do retorno
No segundo Governo Lula, apesar da
permanência do Ministro Haddad, a avaliação
da educação sofreu significativas mudanças,
principalmente com o Plano de Desenvolvimento
da Educação (PDE). Um dos pontos principais desse
plano foi o Índice de Desenvolvimento da Educação
Básica (IDEB),9 que relaciona o desempenho dos
estudantes em exames padronizados (Prova Brasil/
SAEB) e a taxa média de aprovação. Por meio do
IDEB pretende-se monitorar o desenvolvimento
da educação e adotar uma visão gerencial,
predefinindo metas para serem atingidas (ROTHEN,
BARREYRO, 2011).
Quanto à avaliação da educação superior,
apareceram mudanças significativas em relação
ao período 2003-2006. Uma delas foi o desenvolvimento da função de fiscalização exercida pelo
MEC. O mencionado Decreto Ponte foi um marco,
por ter explicitado as funções de avaliação e de
regulação e por ter definido a de supervisão do
sistema, o que enfatizou a fiscalização.
O exercício da função de supervisão do
sistema centrou-se na utilização dos resultados
do ENADE como balizadores para a realização
de visitas in loco por especialistas. Para tanto,
em dezembro de 2007 foi editada a Portaria Normativa no 40 em que se anunciou a atribuição
de um conceito preliminar que seria aplicado
para a renovação de reconhecimento de cursos
(BRASIL, 2007a). Na prática, esse foi o primeiro
anúncio do que aconteceria em 2008: a criação
do Conceito Preliminar de Cursos (ROTHEN;
BARREYRO, 2011).
O conceito preliminar previsto na
Portaria seria composto pelos resultados do
ENADE, por dados do Censo da Educação
Superior e por outros dados de cadastros do
MEC. Segundo a Portaria (art. 35°, §1°), caso
o conceito preliminar fosse satisfatório, a
avaliação in loco poderia ser evitada. Contudo,
na lei do SINAES, a avaliação de cursos in loco
é obrigatória:
9- O IDEB foi instituído pelo Decreto no 6.094/2007 (BRASIL, 2007c).
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 61-76, jan./mar. 2014.
[...] a avaliação dos cursos de graduação utilizará procedimentos e instrumentos diversificados, dentre os quais obrigatoriamente
as visitas por comissões de especialistas das
respectivas áreas de conhecimento. (BRASIL,
2004e, art. 4°, § 1°, grifo nosso)
Assim, a lei do SINAES sancionada no
primeiro Governo Lula foi desrespeitada por
ato normativo de menor hierarquia jurídica:
uma portaria.
Em 2008, na área de Direito, 60 cursos
que obtiveram nota 1 ou 2 foram visitados,
23 assinaram protocolos de saneamento de
deficiências (PORTAL MEC, 2007) e, como
consequência do processo de supervisão, foram
cortadas 24.380 das 45.042 vagas oferecidas
pelos cursos supervisionados (PORTAL MEC,
2008b). Concomitantemente, novos requisitos
para a abertura de cursos de Direito foram
criados, assim como um novo instrumento
específico para esses cursos, iniciando-se um
processo de diferenciação dos instrumentos de
avaliação externa de cursos.
Também foram aplicados procedimentos
de supervisão a 17 cursos de Medicina que
passaram por visitas in loco, assinatura de
termo de saneamento de deficiências e medidas
cautelares, chegando, no final do processo,
à suspensão de vestibulares e/ou ao corte do
número de vagas oferecidas (PORTAL MEC,
2008a; PINHO, 2008).
Em 2009, 60 cursos de Pedagogia passaram
por processos de supervisão que incluíram visitas
in loco por comissão de especialistas instituída
para esse fim e assinatura de termo de saneamento de deficiências. Após o término do processo,
sete cursos foram fechados (BRASIL, 2009a).
Até setembro de 2009, 123 IES (universidades e centros universitários) haviam sido
supervisionadas devido ao não cumprimento do
mínimo de professores titulados e/ou do vínculo
empregatício de seus docentes, sendo necessário,
nesses casos, um termo de saneamento de deficiências e medidas cautelares para suspensão de
criação de cursos e vagas (BRASIL, 2009b).
69
Esses processos de supervisão levaram
ao fechamento de cursos e instituições em 2010,
bem como à criação de normas mais rígidas
para a expansão de instituições, segundo os
resultados obtidos.
No apagar das luzes do Governo Lula,
em outubro de 2010, o Conselho Nacional
de Educação emitiu a Resolução n° 3/2010,
que estabeleceu normas e procedimentos
para credenciamento e recredenciamento
de universidades (BRASIL, 2010a). Essa
determinação incorporou mais requisitos aos
já estabelecidos pela legislação anterior (LDB
e Decreto Ponte), incluindo a necessidade
de que o credenciamento de universidades
derive de centros universitários com 9 anos
de existência ou, em casos justificados, de
faculdades com 12 anos de existência. Os
resultados de avaliações são alguns desses
requisitos, como a necessidade de a instituição
ter obtido conceito igual ou superior a 4,
tanto no conceito institucional quanto no
Índice Geral de Cursos. Ainda, as instituições
devem ter 60% de seus cursos reconhecidos
ou em processo de reconhecimento, e oferecer
regulamente quatro cursos de mestrado e dois
de doutorado. Também é considerada a atuação
da instituição quanto à resolução de problemas
apontados pela CPA da instituição e são levados
em conta processos de supervisão, que não
poderão incluir mais de 20% de seus cursos.
Para o recredenciamento de universidades, elas
deverão ter obtido conceito igual ou superior a
3 no IGC (BRASIL, 2010a). Além de estabelecer
critérios mais exigentes, a norma incluiu os
resultados das avaliações como requisitos para
credenciamento e recredenciamento de IES.
A despeito das ações regulatórias
anteriormente descritas, que pela primeira vez
na avaliação da educação superior chegaram
a ter consequências como o fechamento de
instituições ou o corte de vagas, o tom do
segundo Governo Lula no que diz respeito
à avaliação foi a retomada da tendência
quantitativista e o retorno dos ranques, como
será mostrado a seguir.
70
Em agosto de 200810 foi criado o
Conceito Preliminar de Cursos (CPC), composto
pelos resultados do ENADE e por insumos
“com influência na qualidade dos cursos”, tais
como qualificação docente, regime de trabalho,
planejamento do ensino e infraestrutura
(BRASIL, 2008c). Algumas dessas informações
são obtidas junto ao cadastro de docentes do
INEP e outras extraídas das respostas dos alunos
ao questionário socioeconômico do ENADE.
Diferentemente da prática estabelecida
pelo MEC quanto a outras políticas (SINAES,
PROUNI, Reforma Universitária), que foram
divulgadas previamente e dispostas para
consulta pública, a instituição do CPC
foi realizada por portaria, como se fosse
apenas uma questão operacional decorrente
da implementação do SINAES, e não uma
mudança central que retoma velhas concepções
e discussões sobre os modelos de avaliação da
educação superior no país. A emergência dos
índices surpreendeu a gregos e troianos, gerando
inúmeras críticas, seja por questionamentos
técnicos na construção do indicador,11 seja pela
descaracterização do SINAES.12 Poucas vozes
defenderam a nova proposta.13
O Conceito mudou a implementação
do SINAES, limitando as visitas in loco aos
cursos que obtiveram um conceito preliminar
menor que 3,14 o que gerou a diminuição de
3.000 visitas previstas por ano para 1.800.
Tal motivo, embora louvável no ponto de
vista administrativo, não o é para o objetivo
de melhoria de qualidade, pois, ao se aligeirar
os processos de avaliação de cursos, perdeu-se
o caráter formativo da avaliação. Parece que
apenas interessa fazer uma operação limpa lixo,
como disse Eunice Durham (2008) a respeito
��- Portaria Normativa no 4/2008 (BRASIL, 2008a).
11- Ver CASTRO, 2008; SCHWARTZMAN, 2008; BARREYRO, 2008;
ROTHEN; BARREYRO, 2009.
���
- Ver DIAS SOBRINHO, 2008; LEITE, 2008; GIOLO, 2008; LIMANA,
2008; BARREYRO, 2008, POLIDORI, 2009.
��- Ver VERHINE, 2008; BITTENCOURT; CASARTELLI; RODRIGUES, 2009.
��- Os processos de renovação de reconhecimento dos cursos que
obtivessem conceito 5 seriam renovados por Portaria; os que obtivessem
4 ou 3 poderiam pedir avaliação in loco para mudar seu conceito (Portaria
Normativa n° 4/2008; Art. 2º,§ 3° e §4°).
Gladys Beatriz BARREYRO; José Carlos ROTHEN. Percurso da avaliação da educação superior nos Governos Lula
do Provão, ou seja, focalizar naquilo que está
muito ruim, o que é importante, mas não
constitui um processo de melhoria de qualidade,
afinal, dispensando-se visitas para os cursos
que apresentam a nota mínima aceitável (3)
e também para os bons e excelentes (4 e 5),
sinaliza-se conformidade e acomodação.
A criação do Índice Geral de Cursos
(IGC), em setembro de 2008,15 consolidou a
influência na educação superior da tendência
internacional de uso de indicadores. O novo
índice foi composto pelas médias ponderadas
dos CPCs e das notas dos programas de pósgraduação das IES avaliados pela CAPES. Alguns
dos questionamentos ao IGC aconteceram pelo
fato de os CPCs utilizarem resultados do ENADE
que não permitiam comparação entre cursos
de áreas diversas (e nem do mesmo curso em
diferentes anos16) e pelo fato de a avaliação
de insumos estar fundamentada na opinião do
corpo discente. Além disso, pressupõe-se que
uma instituição é a somatória de seus cursos.
O Índice tem sido divulgado pelo MEC
na forma de ranque de instituições, tendo sido
em 2008 a única vez em que isso foi feito por
um órgão governamental. Antes – no Governo
FHC – e depois, o mesmo foi feito pela mídia, e
não pelo MEC.
O CPC sofreu mudanças em 2009,
atendendo algumas das críticas realizadas. Os
resultados do ENADE perderam peso, assim
como a opinião dos estudantes; por sua vez,
aumentou-se o peso da titulação de doutores.
Ainda, em 2009, o Ministério deixou de fazer
ranques, voltando à prática de apenas oferecer
os dados para que eles fossem informados à
imprensa e aos departamentos de marketing
das IES. Contudo, a mudança mais importante
foi que o ENADE deixou de ser amostral para
ser censitário, tal como era o Provão. Essa
mudança foi explicada devido a uma diferença
de concepção entre a proposta da CEA e a
��- Portaria Normativa no 12/2008 (BRASIL, 2008b).
���
- A prova do ENADE não permite comparações, diferentemente da
prova do ENEM, que se utiliza da Teoria de Resposta ao Item e permite
comparações entre provas de diferentes anos.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 61-76, jan./mar. 2014.
subjacente aos atuais índices. A utilização de
uma amostra, conforme proposto pela CEA em
2004, não é problemática, pois se compreendia
que a prova seria apenas um instrumento para
diagnóstico do estado da educação superior.
Porém, no momento em que o ENADE foi
caracterizado como um instrumento para
classificação e regulação, as instituições
sentiram que a adoção de amostras podia alterar
o posicionamento institucional no ranque, ou
seja: as amostras permitem certa confiabilidade
para conhecer a realidade da educação superior,
enquanto o ranque pode gerar desconfianças.
Ao final do Governo Lula, novas
mudanças continuaram a transformação: em
dezembro de 2010, houve a republicação da
Portaria n° 40 que havia sido editada em 2007,
incluindo novidades nos processos de avaliação.
No que diz respeito ao ENADE, tal republicação
estabeleceu que a prova teria duas partes, “uma
prova geral de conhecimentos e uma prova
específica de cada área”, diferentemente do
estabelecido pelo SINAES, que determinava
que o ENADE17 teria uma prova de formação
geral e uma prova de conteúdos programáticos
previstos nas diretrizes curriculares de cada
curso. Vale ressaltar que a prova de formação
geral, que pretendia aferir “as competências
para compreender temas exteriores ao âmbito
específico de sua profissão, ligados à realidade
brasileira e mundial e a outras áreas do
conhecimento” (BRASIL, 2004e), na redação
da lei do SINAES passou para “uma prova
geral de conhecimentos” (ou seria uma prova
de conhecimentos gerais?). Note-se ainda que
“os conteúdos programáticos [...] do curso de
graduação” do SINAES foram transformados
em “uma prova específica de cada área” (ou
seria uma prova específica de cada curso?).
A Portaria n° 40, versão 2010, trouxe
ainda a novidade de que os estudantes
���
- “O ENADE aferirá o desempenho dos estudantes em relação aos
conteúdos programáticos previstos nas diretrizes curriculares do respectivo curso
de graduação, suas habilidades para o ajustamento às exigências decorrentes
da evolução do conhecimento, e suas competências para compreender temas
exteriores ao âmbito específico de sua profissão, ligados à realidade brasileira e
mundial e a outras áreas do conhecimento” (BRASIL, 2004e).
71
ingressantes não mais fariam a prova
específica, mas apenas a prova geral, a
qual, a partir desse momento, passaria a ser
realizada “com base na matriz de referência
do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM)”.
Ou seja, das “competências para compreender
temas exteriores ao âmbito específico de sua
profissão, ligados à realidade brasileira e
mundial e a outras áreas do conhecimento”,
passa-se a considerar as competências
adquiridas no ensino médio. O ENADE
postulado pelo SINAES não cogitava auferir os
conhecimentos obtidos no ensino médio, mas
sim o valor agregado do curso.
Outra inovação da Portaria: os
ingressantes que tiverem realizado o ENEM
não precisarão fazer a prova geral do ENADE.
Ora, o ENEM e o ENADE são provas diferentes,
com objetivos diferentes. O ENEM é uma prova
realizada seguindo a Teoria de Resposta ao
Item e o ENADE não, ou seja, os resultados do
primeiro podem ser comparados de um ano
para outro, enquanto o mesmo não pode ser
feito com o segundo. Dessa forma, seria criada
uma diferença, no interior do ENADE, entre
resultados comparáveis e não comparáveis.
Em síntese, do ENADE inicial fica
apenas a prova de conhecimentos específicos
(denominada prova específica na Portaria), pois
a prova geral será um ENEM-ADE, (ENADE
com a matriz do ENEM). No entanto, como
prova de conhecimentos específicos já era o
ENC-Provão, percebe-se também nessa nova
mudança o retorno do Provão: uma prova de
conhecimentos específicos aplicada a todos os
alunos concluintes dos cursos avaliados.18
Quadro 1 – Transformações ENC-Provão/ENADE: vigência de conceitos e índices
Características
Prova/Ano
ENC-Provão
1996 a 2003
Ingressantes
Concluintes
X
Amostral
Censitária
ENADE
2004 a 2007
ENADE
2008 e 2009
ENADE
2010
x
x
X
x
x
X
X
x
x
X
X
CPC/IGC
CPC/IGC
X
Índices
CPC/IGC
ENADE a partir de Portaria
no 40/2007 (rep. 2010)
Fonte: Elaboração própria.
Considerações finais
Nos Governos Lula, as políticas de
avaliação deixaram de ter a centralidade que
tinham no Governo FHC, em que seus resultados
embasavam a expansão do ensino pela via do
setor privado. Os Governos Lula continuaram
com a ampliação do acesso, mas priorizaram sua
democratização, isto é, a inclusão de setores de
menor renda, pardos e negros, indígenas e alunos
de escolas públicas. Em que pese a ampliação das
matrículas em instituições federais (universidades,
institutos de tecnologia e UAB), o predomínio das
matrículas no setor privado se manteve (75%).
Houve a tentativa de criar um sistema
de avaliação que resgatasse os princípios do
72
PAIUB, especialmente no primeiro Governo
Lula, em que, como foi dito, o setor de
professores ligados à ANDIFES e/ou ao PAIUB
ocupou cargos na Secretaria de Educação
Superior, no Inep e na CONAES, e pôde criar
e começar a implantar o SINAES. No segundo
Governo Lula, durante a gestão de Haddad, os
professores das IFES foram perdendo influência
na educação superior.
No meio do segundo governo, foram criados
índices para a educação básica e para a educação
superior, seguindo a tendência internacional de
18- Em 2011, o Enade seguiu algumas das mudanças postuladas na Portaria
no 40/2007, republicada em 2010. Por norma específica (Portaria no 8, de 15 de
abril de 2011, art. 5º, § 6º), os estudantes ingressantes foram dispensados da
prova. A prova geral continuou sendo denominada Formação Geral.
Gladys Beatriz BARREYRO; José Carlos ROTHEN. Percurso da avaliação da educação superior nos Governos Lula
governar por indicadores. Mas, enquanto na
educação básica o IDEB é utilizado para monitorar
o desenvolvimento da educação e para definir
regiões que receberão apoio do Ministério da
Educação, na educação superior os índices são
utilizados para regular o sistema. Na prática, apesar
de as instituições federais estarem submetidas a esse
sistema de regulação, ele exerce pouca influência,
pois o desempenho dos alunos costuma ser maior
que o mínimo exigido. Já para as IES privadas,
resultados menores aos exigidos significam não
apenas monitoramento via visitas de especialistas e
eventuais compromissos de melhoria, mas também
impedimentos para participação no Programa
Universidade para Todos (PROUNI) e em solicitação
de créditos junto ao BNDES. Ainda, os resultados
acabam se tornando um selo de qualidade e são
utilizados para marketing institucional. No final
do governo Lula, os resultados aferidos pelos
índices foram incorporados nas normativas de
credenciamento e recredenciamento de IES e,
especialmente, das universidades.
Em conclusão, embora em 2003, com a
proposta da Comissão Especial de Avaliação
– o SINAES e seus instrumentos de avaliação
institucional e autoavaliação –, ensaiasse-se
uma mudança radical nas práticas de avaliação
da educação superior, no sentido de não deixar
apenas o mercado regular o sistema, exercendo
o próprio Ministério ações de supervisão, a
partir de 2008 foi se recuperando com mais
vigor a lógica do Governo FHC de ter um
exame de larga escala como referência para a
regulação do sistema.
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Recebido em: 20.11.2012
Aprovado em: 27.06.2013
Gladys Beatriz Barreyro é doutora em Educação e professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade
de São Paulo (USP). Atua no Programa de Pós-Graduação em Educação e no Programa de Pós-Graduação em Integração
da América Latina da USP. É também líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas, História e Avaliação da Educação
Superior (GEPPAHES).
José Carlos Rothen é professor do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), onde atua
no curso de Pedagogia e no Programa de Pós-Graduação em Educação. Edita o site <www.rothen.pro.br> e é líder do Grupo
de Estudos e Pesquisas em Políticas, História e Avaliação da Educação Superior (GEPPAHES)
76
Gladys Beatriz BARREYRO; José Carlos ROTHEN. Percurso da avaliação da educação superior nos Governos Lula
Modelagem do crescimento da aprendizagem nos anos
iniciais com dados longitudinais da pesquisa GERESI
Nigel BrookeII
Neimar da Silva FernandesIII
Isabela Pagani Heringer de MirandaIII
Tufi Machado SoaresIII
Resumo
Este artigo compara duas abordagens de valor agregado para
dados oriundos do survey educacional de recorte longitudinal,
chamado GERES – Estudo Longitudinal da Geração Escolar 2005,
que acompanhou uma coorte de alunos de mais de 300 escolas
públicas e privadas ao longo dos primeiros quatro anos do Ensino
Fundamental. Ambas as abordagens utilizam modelos lineares
hierárquicos, permitindo o agrupamento natural dos dados
educacionais provenientes dos três níveis: aluno, turma e escola. Na
primeira abordagem de valor agregado, constroem-se modelos cuja
variável dependente é a proficiência do aluno em cada ano avaliado.
Com um modelo distinto para cada ano é possível detectar fatores
do aluno, da turma e da escola associados ao desempenho dos
alunos. A segunda abordagem cria modelos para mostrar o efeito
das covariáveis de aluno, turma e escola nas curvas de evolução da
proficiência ao longo do período do estudo. Quando comparados
os dois tipos de modelos de valor agregado, o primeiro foi o mais
eficiente em diagnosticar os efeitos do ambiente e da prática
pedagógica do professor, mas somente em determinados anos. Já o
segundo tipo de modelo foi capaz de identificar curvas de evolução
de proficiência de formatos distintos de acordo com determinadas
características das escolas e dos alunos, mas foi menos sensível
na identificação de variáveis associadas ao processo de formação
de grupos e à prática pedagógica do professor. Os dois tipos de
modelos de valor agregado oferecem indicações de processos de
aprendizagem diferenciados para as disciplinas Língua Portuguesa
e Matemática que mereceriam estudos adicionais.
I- Os autores agradecem ao Centro
de Políticas Públicas e Avaliação da
Educação, CAEd/UFJF e ao Programa
Observatório da Educação – CAPES/INEP
II- Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.
Contato: [email protected]
III-Universidade Federal de Juiz de Fora,
Juiz de Fora, MG, Brasil.
Contato: [email protected];
[email protected];
[email protected];
Palavras-chave
Estudo longitudinal — Avaliação educacional — Valor agregado —
GERES — Modelos lineares hierárquicos.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 77-94, jan./mar. 2014.
77
Modeling of the growth of learning in the early years
with longitudinal data of GERES researchI
Nigel BrookeII
Neimar da Silva FernandesIII
Isabela Pagani Heringer de MirandaIII
Tufi Machado SoaresIII
Abstract
This article compares two value-added approaches to data from
the longitudinal education survey called Estudo Longitudinal
da Geração Escolar 2005 (GERES – Longitudinal Study of 2005
School Generation), which followed a cohort of students from more
than 300 public and private schools over the first four years of
primary education. Both approaches use hierarchical linear models,
allowing the natural grouping of educational data from three levels:
student, class and school. The first value-added approach builds
models whose dependent variable is the student proficiency in
each year evaluated. With a separate model for each year, it is
possible to detect factors of the student, class and school associated
with student performance. The second approach creates models to
show the effect of the covariates of student, class and school on
progress curves of proficiency throughout the study period. When
comparing the two types of value-added models, the first one was
the most efficient in diagnosing the effects of the environment
and the teacher’s pedagogical practice, but only in certain grades.
The second type of model was able to identify progress curves of
proficiency of different formats according to certain characteristics
of schools and students, but was less sensitive to identify variables
associated with the group formation process and the teacher’s
pedagogical practice. The two types of value-added models offer
indications of differentiated learning processes for the disciplines of
Portuguese and Mathematics, which deserve further study.
I- The authors thank Centro de Políticas
Públicas e Avaliação da Educação (CAEd/
UFJF – Center for Public Policy and Evaluation
of Education, CAEd / UFJF) and Programa
Observatório da Educação (Observatory of
Education Program)– CAPES/INEP
II- Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte, MG, Brazil.
Contact: [email protected]
III-Universidade Federal de Juiz de Fora,
Juiz de Fora, MG, Brazil.
Contacts: [email protected];
[email protected];
[email protected];
78
Keywords
Longitudinal study — Educational assessment — Value added —
GERES — Hierarchical linear models.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 77-94, jan./mar. 2014.
Introdução
A partir de estudos que correlacionam o
desempenho dos alunos com aspectos materiais
e organizacionais da escola e com características
técnicas e humanas da equipe escolar, esperamse conclusões acerca das razões que levam
algumas escolas a resultados melhores e, como
corolário, diferentes opções para a melhoria na
qualidade do ensino. É com este propósito em
mente que, ao mesmo tempo em que se fazem
testes para medir o desempenho aos alunos,
aplicam-se questionários aos professores e
gestores para caracterizar o ambiente em que
a aprendizagem se desenvolve. Tanto a Prova
Brasil quanto todos os sistemas estaduais
de avaliação que seguem o modelo pioneiro
do Sistema de Avaliação da Educação Básica
(SAEB) implantaram esse mesmo padrão de
avaliação transversal para a coleta simultânea de
informações a respeito do desempenho dos alunos
e das condições da escola (BONAMINO, 2002).
O problema desse modelo reside no fato
da aprendizagem ser um processo cumulativo,
construído ao longo da trajetória educacional
do aluno, e fruto de diversas influências, entre
as quais todos os professores do aluno desde
seu primeiro ano escolar. Ou seja, enquanto
os testes que medem o desempenho do aluno
estão sondando um agregado de aprendizagem
de muitos anos, as informações coletadas
sobre as condições escolares são específicas do
ano da coleta de dados. Essa falta de sintonia
fragiliza as análises e dificulta a formulação de
políticas de qualidade e equidade mais sólidas
(FRANCO, 2001). Pela falta de conexão com
as origens da aprendizagem, provocada pelas
incertezas sobre o ponto de partida dos alunos
e das contribuições específicas do ambiente de
aprendizagem, os pesquisadores só se permitem
falar de “fatores associados” e, raramente,
comprometem-se a indicar causas e efeitos.
Diversos autores mostram as dificuldades
da utilização de dados transversais para
investigar a relação entre fatores escolares e
desempenho acadêmico. Além do problema em
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 77-94, jan./mar. 2014.
atribuir causalidade (RAUDENBUSH; FOTIU;
CHEONG, 1998), a literatura enfatiza a ausência
de medidas anteriores do desempenho dos alunos
para calcular o ganho atribuível aos fatores
escolares (GOLDSTEIN, 1995) e a impossibilidade
de fazer inferências confiáveis sobre a eficácia
das escolas com base em uma única medida do
desempenho (GOLDSTEIN et al. 2000). Essas
dificuldades levam vários autores a especificar
certos requisitos mínimos para o estudo dos
fatores escolares, entre os quais se destaca a
necessidade da coleta repetida de dados em um
desenho de pesquisa longitudinal. Com medidas
de aprendizagem aplicadas em momentos ou
anos distintos é possível controlar as variáveis
relativas à influência dos antecedentes
socioeconômicos e educacionais dos alunos, de
modo a extrair conclusões sobre os processos
internos das escolas e sobre a qualidade do
ensino oferecido. Assim, pode-se trabalhar não
com o nível absoluto de proficiência alcançado
pelo aluno, mas com a medida de seu avanço
ou da aprendizagem nova adquirida em cada
período e, a partir dela, calcular a contribuição
da escola ou do próprio professor.
Foi com base nesse raciocínio que
foi realizada a pesquisa GERES – Estudo
Longitudinal da Geração Escolar 2005, cuja
metodologia e resultados preliminares já foram
relatados em outras publicações (FRANCO;
ALVES; BROOKE, 2008; BROOKE; BONAMINO,
2011). Desenhada para produzir informação a
respeito das trajetórias de aprendizagem em
Língua Portuguesa e Matemática de uma coorte
de alunos desde o princípio da então 1ª série
até o final da 4ª série, a pesquisa acompanhou
mais de 20.000 alunos de escolas públicas
e privadas em cinco cidades do Nordeste,
Sudeste e Centro-Oeste. Sendo a primeira
investigação longitudinal a ser completada
com sucesso no Brasil, a pesquisa GERES
permite refletir a respeito dos fatores intra e
extraescolares que incidem no processo de
aprendizagem com base não somente no nível
de desempenho alcançado pelos alunos ao final
dos anos iniciais, mas também nos ganhos de
79
aprendizagem diferenciados ano a ano ao longo
de um período de quatro anos.
A pesquisa GERES
A pesquisa GERES adotou um desenho
longitudinal de painel: o mesmo conjunto de
escolas e estudantes foi observado ao longo
de quatro anos. A amostra foi composta por
alunos de 303 escolas dos municípios de Belo
Horizonte (MG), Rio de Janeiro (RJ), Salvador
(BA), Campo Grande (MS) e Campinas (SP) que,
no início de 2005, estavam matriculados na 1ª
série do ensino fundamental (ou seu equivalente,
quando a organização do ensino era em ciclos,
ou na 2ª série se os alunos não tiveram nenhuma
experiência prévia de alfabetização). A primeira
aplicação (onda) de medidas de aprendizagem foi
realizada em março desse mesmo ano, para gerar
uma linha de base para os alunos, já a segunda,
ocorreu em novembro. As seguintes ondas de
aplicação de instrumentos aconteceram ao final
dos anos de 2006, 2007 e 2008, viabilizando
o acompanhamento da amostra ao longo de
quatro anos letivos. O estudo buscou fazer a
distinção entre “valor agregado pela escola” e o
efeito da “seleção” devido à eventual reprovação
de alunos de desempenho menor. Em termos
práticos, isso significou que aqueles que não
foram aprovados continuaram sendo observados
pela pesquisa desde que permanecessem retidos
na mesma escola ou se transferissem para outra
escola da amostra.
Cada uma das cidades foi considerada
como um estrato e, dentro de cada cidade,
foi selecionada uma amostra probabilística
complexa de escolas, turmas e alunos a partir
do cadastro do Censo Escolar de 2003, excluídas
as escolas que não possuíam 10 alunos ou mais
matriculados na 1ª série do ensino fundamental.
Testes adequados aos anos iniciais do ensino
fundamental foram elaborados por especialistas
de três das seis universidades participantes da
pesquisa (Universidade Federal de Minas Gerais
– UFMG, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeira – PUC-Rio e Universidade Federal
80
de Juiz de Fora), com base em matrizes de
habilidades de Leitura e Matemática. As outras
universidades participantes foram Universidade
Estadual de Campinas – UNICAMP, Universidade
Estadual de Mato Grosso do Sul e Universidade
Federal da Bahia – UFBA.
As questões foram previamente testadas
em escolas públicas e privadas das cidades de
Juiz de Fora e Rio de Janeiro. Em cada onda,
todos os alunos presentes foram submetidos a
testes de Leitura e de Matemática, elaborados
em duas versões: uma mais fácil e outra
mais difícil. As diferentes versões possuíam,
no entanto, itens comuns, de modo a viabilizar
escores equalizados a partir da Teoria de Resposta
ao Item (TRI). Além dos testes, foram aplicados
questionários contextuais aos diretores, professores
e famílias, para levantar informações a respeito da
escola e sua organização, da prática pedagógica dos
professores e o nível socioeconômico dos alunos.
Essas informações fazem parte da análise dos
fatores relevantes na explicação das diferenças nos
ganhos de aprendizagem entre alunos e escolas.
Em consonância com as matrizes de
Leitura e Matemática foram desenvolvidas
duas escalas para descrever o desempenho dos
alunos em termos das habilidades em fase de
consolidação e as habilidades já consolidadas.
Essas escalas foram indispensáveis para a
comunicação dos resultados às escolas e para
a interpretação pedagógica do desempenho das
turmas. Os cálculos das proficiências em todas as
ondas foram feitos pela mesma equipe, a partir
de uma mesma metodologia, o que garante a
confiabilidade dos resultados cognitivos obtidos.
Modelagem do crescimento da
aprendizagem na pesquisa GERES
O presente trabalho tem como objetivo a
observação de associações entre diversos fatores
contextuais em diferentes níveis – alunos, turmas
e escolas – e ganhos de proficiência dos alunos
GERES em Matemática e Língua Portuguesa
mensurados a partir de testes aplicados aos
mesmos alunos em ondas sucessivas de testagem,
Nigel BROOKE; Neimar da S. FERNANDES; Isabela P. H. de MIRANDA; Tufi M. SOARES. Modelagem do crescimento...
segundo o modelo longitudinal já descrito. Isso
possibilitou controlar a proficiência final pela
inicial, além da realização de análises os diversos
padrões de evolução do aprendizado ao longo
do tempo de acordo com variáveis, tais como a
rede de ensino (público e privado), grupo de cor
e nível socioeconômico.
O presente artigo inicia-se com uma
descrição dos modelos lineares hierárquicos
utilizados nas análises aqui realizadas,
acompanhada de uma breve explicação sobre
a lógica que justifica a sua utilização. A seguir,
discorre a respeito da análise dos modelos
agregados onda a onda e das covariáveis
neles utilizados. Essas covariáveis são, então,
introduzidas nos modelos onda a onda, tanto
no caso da disciplina de Matemática quanto de
Língua Portuguesa. Após uma análise desses
resultados, são introduzidos os modelos de
evolução. Também se apresentam os detalhes
da construção da base para a análise multinível,
seguidos dos resultados obtidos com os
modelos nulos. Finalmente, são apresentadas as
conclusões do trabalho e uma discussão acerca
dos principais pontos levantados no estudo.
O projeto GERES mede a proficiência
dos alunos, a nossa variável dependente, em
Língua Portuguesa e Matemática através de
escalas próprias. No caso da Língua Portuguesa,
a amplitude da escala, em termos dos resultados
alcançados pelos alunos, vai do mínimo de 48
pontos na primeira onda ao máximo de 223 na
quinta onda. A escala de Matemática, por sua
vez, vai do mínimo de 20 pontos ao máximo
de 397. A média e os desvios padrão para cada
onda também são apresentados na Tabela 1:
Tabela 1− Média e desvio padrão das proficiências em Língua Portuguesa e Matemática por onda na pesquisa GERES
Disciplina
Língua Portuguesa
Matemática
Onda
Média
Desvio Padrão
Mínimo
Máximo
1ª
2ª
3ª
4ª
5ª
1ª
2ª
3ª
4ª
5ª
108,42
127,16
143,25
157,23
169,05
109,14
138,22
161,01
202,06
246,84
26,28
22,91
27,54
27,06
25,37
28,82
32,22
57,39
63,24
66,87
47,80
68,63
85,68
87,78
89,45
19,52
54,73
39,10
45,49
57,20
159,90
183,93
214,52
214,24
222,96
173,05
217,11
290,35
356,03
396,55
Fonte: dados da pesquisa.
Foram usadas como variáveis de alunos as
seguintes categorias: gênero; cor/raça; defasagem
idade/série e a condição socioeconômica NSE,
medida a partir de um questionário de posse
de bens análogo aos aplicados pelo IBGE. Para
maiores detalhes da construção dessa medida ver
Brooke e Bonamino (2011).
As variáveis do professor foram
construídas utilizando-se as respostas dadas
aos questionários aplicados aos docentes,
utilizando-se uma metodologia descrita em
Brooke e Bonamino (2011). Essas variáveis
serão apresentadas a seguir:
a) Percepção do professor sobre os
obstáculos que impedem o melhoramento da
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 77-94, jan./mar. 2014.
escola – refere-se ao quanto os professores
percebem os obstáculos que venham a impedir
a melhora da escola, tais como depredações das
dependências das escolas, bem como o consumo e
tráfico de drogas, furto de equipamentos didáticos
e/ou pedagógicos, violência e intimidação aos
professores, funcionários e alunos.
b) Frequência de uso de certos recursos
pedagógicos disponíveis na escola –corresponde
a alguns dos recursos pedagógicos usados como
mapas geográficos e materiais concretos de
matemática (material dourado, tangram, etc).
c) Percepção do professor sobre a
frequência de interrupção da aula – sinaliza
o nível das interrupções da aula. Caso seja em
81
maior nível, há um maior grau de interrupção
das aulas por indisciplina e impontualidade dos
alunos, barulho e anúncios de direção.
d) Frequência com que o professor realiza
determinadas práticas nas suas aulas de Língua
Portuguesa – está associada às práticas positivas
de leitura em aulas de Língua Portuguesa
adotadas pelos professores, tais como leitura
silenciosa ou em voz alta, por professores e/
ou alunos, de histórias ou do livro didático.
Também incluímos a produção de textos, bem
como cópias de textos e ditados.
e) Frequência com que o professor
realiza determinadas práticas nas suas aulas
de Matemática – mede o uso pelos professores
de práticas positivas de diferentes níveis de
complexidade, desde a aplicação direta de
conceitos até a representação de situações em
linguagem matemática. Inclui a prática da
matemática ligada ao cotidiano, bem como
situações de problemas ligados a jogos e quebracabeça, o compartilhamento com os colegas
das estratégias para solução de problemas e a
prática de exercícios visando à memorização e
ao aumento da velocidade de cálculo.
f) Frequência de leitura do professor –
abrange a prática dos professores de leitura de
textos, livros e também revistas especializadas
da área de educação e literatura em geral.
g) Frequência de participação em
atividades culturais – refere-se à participação
dos alunos em atividades culturais, como visitas
a livrarias e museus, bem como a frequência a
espetáculos de teatro, música e dança.
h) Frequência com que o professor
realiza procedimentos pedagógicos promotores
de motivação intrínseca – está associada ao uso
de procedimentos pedagógicos que promovem
a motivação intrínseca dos alunos. Esses
procedimentos procuram valorizar a autoestima
mediante a adoção de atividades práticas ou
experiências que despertem a curiosidade,
estimulem a socialização e tragam novidades.
i) Frequência com que o professor realiza
procedimentos pedagógicas promotores de
motivação extrínseca com regulação introjetada
82
– é a frequência com que os docentes aplicam
procedimentos pedagógicos que promovam a
motivação extrínseca, com regulação interna,
como a valorização do desempenho do aluno
perante a turma, escola e família.
j) Frequência com que o professor realiza
procedimentos pedagógicos promotores de
motivação extrínseca com regulação externa –
refere-se à frequência com que os professores
aplicam procedimentos pedagógicos que
promovam a motivação extrínseca, com regulação
externa, tais como argumentos de ascensão
social ou sucesso financeiro, bem como prêmios
por trabalhos de aula ou de casa e resultados de
provas, a fim de estimular o estudo.
Na presente pesquisa é possível, em cada
onda, localizar o aluno em sua turma. Utilizando
os questionários aplicados aos professores,
é possível associar o professor à sua turma
em cada onda. Com essa estrutura também é
possível calcular o percentual de meninos na
turma, a média do NSE da turma, a média da
defasagem idade/série da turma, dentre outras
variáveis. Também a cada turma são atribuídas
as características de seus professores. Essas
variáveis compõem o nível de turma.
As variáveis no nível da escola são obtidas
pelo cálculo de médias e de percentuais de
características específicas de seus alunos. Dessa
forma, obtêm-se variáveis tais como o “Percentual
de Meninos na Escola”, a “Defasagem Média da
Escola”, entre outras. Também variáveis do nível
do professor podem ser alocadas no nível de
escola pelo cálculo de médias e percentuais como,
por exemplo, a “Prática de Leitura na Escola”.
As variáveis utilizadas podem ser
classificadas em quatro categorias: 1) dicotômicas;
2) percentuais; 3) padronizadas; e 4) não
padronizadas. As variáveis dicotômicas assumem
o valor 1 quando o elemento pertence à categoria
indicada, por exemplo, o gênero masculino.
Assume o valor 1 quando se trata de um aluno
e 0 quando de uma aluna. Nos modelos, o valor
dos coeficientes corresponde à perda/ganho em
pontos das escalas GERES de Língua Portuguesa e
Matemática caso o aluno pertença àquela categoria.
Nigel BROOKE; Neimar da S. FERNANDES; Isabela P. H. de MIRANDA; Tufi M. SOARES. Modelagem do crescimento...
Variáveis em percentuais assumem valores
entre 0 e 1. Quando igual a 1, representa 100% do
total. Nos modelos, o coeficiente indica a perda/
ganho caso assuma valor 1. Caso assuma valor 0,5
(50%) na unidade analisada a perda/ganho seria a
metade desse coeficiente, e assim por diante.
Variáveis padronizadas são as contínuas que
podem, a princípio, assumir qualquer valor, mas
sempre possuem média igual a 0 e desvio padrão
igual a 1. Exemplos são a variável NSE e todas as
variáveis oriundas do questionário do professor.
Isso significa que nas tabelas o número de pontos
corresponde à perda/ganho a cada desvio padrão.
Variáveis não padronizadas são as
contínuas utilizadas nos modelos de forma
direta, ou seja, sem nenhuma transformação,
como a defasagem idade/série e a proficiência
prévia. A interpretação de seus coeficientes no
modelo se dá de forma direta.
No Quadro 1 são apresentadas todas as
variáveis preditoras estudadas para permitir
visualizar sua forma de mensuração bem
como o nível de análise em que a variável se
encontra. Ou seja, a variável média do NSE
no nível de turma refere-se à média do NSE
da turma.
Quadro1 − Variáveis incluídas nos modelos, por nível e tipo de medida
Nível
Variáveis
Escola
Turma
Aluno
Proficiência prévia
Gênero masculino
NSE
Cor preta*
Defasagem idade/série
Média das proficiências prévias
Média do NSE
Percentual de gênero masculino
Percentual de cor/raça “preta”*
Média da defasagem idade/série
Frequência de uso de recursos pedagógicos disponíveis
Percepção do professor sobre os obstáculos que impedem o melhoramento da escola
Percepção do professor sobre a frequência de interrupção da aula
Frequência com que o professor realiza determinadas práticas nas suas aulas de Língua Portuguesa
Frequência com que o professor realiza determinadas práticas nas suas aulas de Matemática
Frequência de leitura do professor
Frequência de participação em atividades culturais
Frequência com que o professor realiza procedimentos pedagógicos promotores de motivação intrínseca
Frequência com que o professor realiza procedimentos pedagógicos promotores de motivação extrínseca com regulação
introjetada
Frequência com que o professor realiza procedimentos pedagógicos promotores de motivação extrínseca com regulação
externa
Média das proficiências prévias
Média do NSE
Percentual do gênero masculino
Percentual de cor/raça “preta”*
Média da defasagem idade/série
Rede privada
Média da frequência de uso de recursos pedagógicos disponíveis
Média da percepção do professor sobre a frequência de interrupção da aula
Média da frequência com que o professor realiza determinadas práticas nas suas aulas de Língua Portuguesa
Média da frequência com que o professor realiza determinadas práticas nas suas aulas de Matemática
Média da frequência de leitura do professor
Média da frequência de participação em atividades culturais
Média da frequência com que o professor realiza procedimentos pedagógicos promotores de motivação intrínseca
Média da frequência com que o professor realiza procedimentos pedagógicos promotores de motivação extrínseca com
regulação introjetada
Média da frequência com que o professor realiza procedimentos pedagógicos promotores de motivação extrínseca com
regulação externa
Fonte: elaboração dos autores
* Resposta à opção c da seguinte pergunta: Como você se considera? a) Branco(a); b) Pardo(a); c) Preto(a); d) Amarelo(a); e) Indígena.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 77-94, jan./mar. 2014.
Tipo de Medidas
Não Padronizada
Dicotômica
Padronizada
Dicotômica
Não padronizada
Não padronizada
Padronizada
Percentual
Percentual
Não Padronizada
Padronizada
Padronizada
Padronizada
Padronizada
Padronizada
Padronizada
Padronizada
Padronizada
Padronizada
Padronizada
Não padronizada
Padronizada
Percentual
Percentual
Nãoadronizada
Dicotômica
Padronizada
Padronizada
Padronizada
Padronizada
Padronizada
Padronizada
Padronizada
Padronizada
Padronizada
83
Descrição dos modelos de valor agregado
Com a finalidade de identificar os fatores
que influenciam a aprendizagem ano a ano e
os padrões de crescimento ao longo dos anos,
dois tipos de modelos são construídos, assim
denominados: modelo de valor agregado (Valueadded model) onda a onda e modelo de evolução.
Modelos de três níveis para valor
agregado têm a intenção de aferir quanta
proficiência se agregou em ondas sucessivas
de testagem. Para isso, os modelos onda a
onda obrigatoriamente possuem a proficiência
prévia do aluno, que é a proficiência aferida
na entrada do ciclo considerado. Esses modelos
contemplam variáveis com a intenção de
explicar o ganho de proficiência do aluno.
Na elaboração desses modelos procurase identificar como as práticas pedagógicas
de cada professor, bem como o clima escolar
e políticas de alocação e formação de turmas
na escola, entre outras variáveis do contexto
escolar e as características pessoais dos alunos,
influenciam a proficiência discente. Assim, é
possível explicar as diferenças de proficiência
entre alunos, turmas e escolas.
O segundo tipo de modelo mostra o efeito
produzido pelas variáveis na curva de evolução
da proficiência. A estrutura do modelo é de três
níveis, na qual o primeiro nível corresponde
ao desempenho em cada tempo; o segundo,
às características dos alunos; e o terceiro,
às características da escola. Assim, dadas as
covariáveis, é possível determinar em cada
onda, para cada aluno, em cada escola, qual era
a proficiência esperada.
elementos amostrais. Em geral, os três primeiros pressupostos são razoavelmente verificados
nos dados educacionais ou contornados a partir da utilização de grandes amostras. Por outro
lado, a independência dos elementos amostrais
não é razoável em dados de pesquisas educacionais, uma vez que a população de alunos
está organizada em turmas e estas em escolas.
Logo, a estrutura dos dados na população é naturalmente hierárquica.
Neste caso, torna-se pouco razoável
admitir a independência para as observações
individuais como, por exemplo, os alunos, já que
estaria sendo desprezado o efeito de agregação:
alunos de uma mesma turma tendem a apresentar
características mais semelhantes do que alunos
de turmas diferentes, mesmo que difiram entre si
quanto a vários aspectos individuais.
Nos modelos hierárquicos de três níveis é
levada em consideração a estrutura de agrupamento dos dados, admitindo que cada turma e
escola, por exemplo, tenham um modelo de regressão particular. Nesses modelos a influência
que cada variável exerce sobre a proficiência do
aluno pode depender da agregação das unidades
amostrais, além de também eventualmente vir a
depender de variáveis encontradas em níveis de
agregação superiores como, por exemplo, as variáveis de escola.
Respeitando a estrutura hierárquica
presente no modelo, a expressão matemática
utilizada contém os índices i, j e k que são os
indexadores do 1° ao 3° nível respectivamente,
exemplo, w e z que representam as variáveis
do 1° ao 3° nível analogamente. O modelo
hierárquico então terá a seguinte expressão
geral, segundo Bryk & Raudenbush (1992):
Modelos hierárquicos
Fórmula 1 − Equações do modelo hierárquico
Os modelos de regressão linear múltipla
tradicionais, utilizados para a explicação de
uma variável dependente com base num conjunto de variáveis independentes, baseiam-se
em quatro pressupostos básicos para as características dos dados: linearidade, normalidade,
homocedasticidade e independência entre os
84
Nigel BROOKE; Neimar da S. FERNANDES; Isabela P. H. de MIRANDA; Tufi M. SOARES. Modelagem do crescimento...
A variável dependente Yijk representa
a proficiência em Língua Portuguesa ou em
Matemática do i-ésimo aluno pertencente a
j-ésima turma da k-ésima escola nas ondas 2
até 5 dependendo do modelo considerado. O
termo Xfijk representa a covariável f de primeiro
nível (aluno), tais como o gênero masculino” e
a defasagem idade/série, do i-ésimo aluno. A
s-ésima covariável de segundo nível (turma),
como por exemplo, percentual de gênero
masculino na turma e defasagem média da
turma, é representada pelo termo Wsjk . O termo
Ztk representa as variáveis do terceiro nível,
como percentual de gênero masculino na escola
e defasagem média da escola.
Os coeficientes πƒjk, βƒsk e γƒst representam
os efeitos das covariáveis Xfijk, Wsjk e Ztk
respectivamente, sobre a proficiência do aluno
em Língua Portuguesa ou Matemática em cada
uma das ondas. Já os termos Uƒjk e rƒsk medem a
incerteza associada aos coeficienes πƒjk e βƒsk em
seus respectivos níveis de agrupamento, turmas
(2° nível) ou escolas (3° nível). Finalmente, o
termo eijk representa a incerteza de todos os
efeitos associados na proficiência de cada aluno.
Construção dos modelos multiníveis
O processo básico mais utilizado na
construção de um modelo hierárquico é o
bottom-up, isto é, parte-se de um modelo nulo
no qual somente se ajustam constantes relativas
a cada nível representado, utilizado como ponto
de partida para a inclusão das demais variáveis
sempre mantendo suas constantes iniciais
e incluindo-se as variáveis segundo uma
heurística definida pelo especialista que, neste
estudo, se baseia na verificação da significância
dos coeficientes (parâmetros fixos e aleatórios)
para cada modelo.
De modo geral, a construção dos modelos aqui apresentados seguiu esses passos.
Inicialmente, analisou-se o modelo nulo com
o objetivo de avaliar a proporção da variância devida a cada nível hierárquico. Em seguida, introduziram-se as principais variáveis do
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 77-94, jan./mar. 2014.
nível de aluno para produzir um modelo que
convencionalmente é chamado de básico ou
de referência. Em uma segunda etapa, sempre
seguindo a mesma heurística, foram introduzidas as variáveis de nível de professor, turma e,
finalmente, variáveis de nível de escola. Dessa
forma, pode-se analisar a evolução da explicação alcançada após a introdução de cada variável, sempre testando inicialmente os efeitos
aditivos, seguidos pelas interações entre as variáveis de diferentes níveis.
Interpretação dos modelos multiníveis
Para interpretar os modelos multiníveis é
fundamental conhecer os elementos estimados
por esses modelos, dentre os quais se destacam
o intercepto, os coeficientes fixos e os coeficientes randômicos.
O intercepto é um termo constante que,
apesar de não possuir interpretação direta na
maior parte dos modelos aqui construídos, é muito importante para o ajuste da equação de cada
modelo, portanto, jamais deve ser suprimido. Os
coeficientes fixos medem o efeito de cada variável
e não mudam em cada unidade de análise.
Caso o coeficiente apresente efeito randômico significante, ele passa a variar nos diferentes níveis de agregação como, por exemplo,
diferentes turmas podem apresentar diferentes
coeficientes caso este coeficiente apresente
efeito randômico no nível de turma, o mesmo
pode acontecer no nível de escola; a média
deste coeficiente é apresentada na tabela juntamente com os desvios padrões nos níveis nos
quais ele apresente significância.
O termo e apresentado ao final da tabela
representa a incerteza média esperada, quanto menor for essa incerteza em relação ao desvio padrão
original, maior o poder explicativo do modelo.
Modelos onda a onda
Foram construídos cinco modelos segundo essa linha, iniciando com o modelo da onda
2 predita pela onda 1, até a onda 5 predita pela
85
onda 4. Um modelo adicional também construído foi o da onda 5 predita pela onda 1, que permitiu a modelagem do valor agregado durante
o ciclo total do GERES.
Resultado dos modelos nulos dos modelos
onda a onda
A decomposição da variância nos três
níveis – aluno, turma e escola – é representada
na tabela 2.
No primeiro nível (aluno), a diferença na variabilidade observada entre Língua
Portuguesa e Matemática é maior no modelo
da onda 2. Ambas vão aumentando até que
praticamente se igualam no modelo da onda 5
predita pela onda 1. No segundo nível (nível
de turma e professor) ambas as variabilidades
aumentam: a diferença entre elas é pequena na
onda 2 e mais expressiva e em favor de Língua
Portuguesa no modelo da onda 5 predita pela
onda 1. O terceiro nível apresenta um comportamento diferente: as variabilidades diminuem,
a de Língua Portuguesa inicialmente é maior,
mas logo se torna menor. Os resultados permitem afirmar que as diferenças entre os alunos
são sempre as mais importantes fontes de variabilidade, sendo responsáveis por entre 46% e
59% de toda a variação nos resultados. Mesmo
assim, tanto as características das turmas e do
professor quanto outros aspectos do contexto
escolar também são muito relevantes na explicação da variância nos resultados dos alunos.
Com o passar do tempo, a importância da escola diminui enquanto aumenta a relevância das
diferenças entre os alunos.
Tabela 2 − Partição da variabilidade explicada por diferentes níveis ao longo das ondas (%)
Onda
2
3
4
5*
5
Proficiência predita
LP
MT
LP
MT
LP
MT
LP
MT
LP
MT
Aluno
45,8
51,3
52,6
51,3
53,5
50,5
58,6
58,6
57,9
58,1
Turma
22,6
22,8
23,5
23,8
28,0
28,2
27,8
25,1
27,5
24,6
Escola
31,5
25,9
23,9
24,9
18,6
21,3
13,9
16,3
14,6
17,3
Total
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
* Considerando os dados do modelo da onda 5, predita pela onda 1.
Fonte: elaboração dos autores
Resultado dos modelos onda a onda
Os modelos de valor agregado onda a
onda estão apresentados na tabela 3.
Associação das variáveis do aluno com o desempenho
No nível do aluno, tanto em Língua
Portuguesa quanto em Matemática, as variáveis
que mais se associam a ganhos maiores de
proficiência onda a onda são a proficiência
prévia e o NSE. Quanto maior a proficiência
prévia do aluno e maior seu NSE, maior seu
ganho de pontos nas escalas GERES de uma
onda para outra. Por exemplo, os alunos tendem
86
a apresentar uma vantagem de 1,1 pontos na
escala de proficiência de Língua Portuguesa
no modelo para a 2ª onda, e 1,11 pontos em
Matemática. No modelo da 5ª onda predita pela
1ª, os ganhos associados a cada desvio padrão do
NSE são de 1,85 pontos em Língua Portuguesa
e 4,84 pontos em Matemática. Esses resultados
confirmam estudos anteriores que mostram
também uma associação estreita entre o NSE da
família e o ponto de partida inicial do aluno.
Por outro lado, a relação significativa
mais negativa entre gênero masculino e o
avanço em Língua Portuguesa nos cinco modelos
mostra que os meninos estão em desvantagem
na aprendizagem da leitura quando comparados
Nigel BROOKE; Neimar da S. FERNANDES; Isabela P. H. de MIRANDA; Tufi M. SOARES. Modelagem do crescimento...
Tabela 3 − Coeficientes do modelo de valor agregado onda a onda*
Nível
2
Coeficientes
LP
3
MT
LP
MT
Ondas
4
LP
MT
5
LP
5**
MT
Turma***
(variável, intercepto)
Escola (variável, intercepto,
intercepto)
NSE médio da escola
Percentual de pretos na escola
Média de prática de leitura na escola
-22,6
0,64
-2,89
Média da frequência de uso de recursos
pedagógicos disponíveis na escola
0,66
Média de prática de aula de LP na Escola
0,77
0,15
0,28
0,08
0,15
Média do NSE
2,63
2,79
1,41
6,76
-11,9
Percentual de pretos
0,30
0,41
-2,45
0,34
1,55
3,21
-1,19
-5,92
0,32
0,32
-11,9
-7,35
Defasagem média da turma
-19,95
-12,7
-12,7
-1,17
Frequência de uso de recursos
pedagógicos disponíveis na Turma
-1,11
1,62
Intercepto
55,34
48,28
29,18
-1,6
25,79
31,56
9,44
33,59
96,20 149,26
Rand de Turma
4,92
8,79
4,21
26,72
4,38
27,89
4,36
11,56
6,81
18,79
Rand de escola
1,59
3,32
2,18
5,31
1,95
6,04
1,55
6,32
3,52
9,24
Intercepto
0,51
0,60
0,82
1,04
0,66
0,67
0,62
0,72
0,36
0,89
Gênero masculino Intercepto
-1,98
Intercepto
1,10
Rand de turma
2,24
Intercepto
-1,00
Intercepto
Aluno
15,45
1,93
Média de interrupção da aula na turma
Proficiência
prévia
NSE
Cor preta
-3,09
1,11
1,68
-2,37
3,80
-2,65
-2,21
-4,19
-2,93
11,9
-2,53
-4,73
0,78
2,04
1,07
2,82
1,85
4,84
-1,27
-2,90
-2,7
-5,34
-4,24
-5,72
-11,7
-3,31
-6,22
-18,3
-47,34
15,6
34,7
14,5
36,5
17,7
44,57
0,20
Defasagem idade/
Intercepto
série
e
3,66
1,33
Média de proficiência prévia
Percentual de gênero masculino
MT
-36,4
0,82
Média de interrupção da aula na escola
LP
18,7
14,5
30,0
Fonte: dados da pesquisa.
* Todos os coeficientes apresentados apresentaram significância ao nível de p<0,05;
** Tendo como proficiência prévia a proficiência na onda 1;
*** Nenhum coeficiente do nível de turma apresentou efeito aleatório significante.
com as meninas. A desvantagem em Língua
Portuguesa dos alunos aumenta da 2ª para a 5ª
onda, de -1,98 para -4,73 pontos, em relação à
1ª onda, mostrando que o déficit é progressivo
e possivelmente cumulativo. Por outro lado,
os resultados mostram que a aprendizagem
de Matemática não é influenciada de forma
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 77-94, jan./mar. 2014.
significativa pelo gênero dos alunos em nenhum
dos modelos.
Os alunos que se autodenominaram
pretos e aqueles defasados possuem coeficientes
negativos de regressão associados a essas
variáveis, nos modelos de ambas as disciplinas.
Isso significa que tanto em Matemática quanto
87
em Língua Portuguesa, o grupo de alunos de cor
preta está em desvantagem em relação aos outros
grupos e, onda a onda, agrega menos pontos
na escala de proficiência. O efeito negativo
da experiência da defasagem, significante em
Língua Portuguesa, no modelo para as ondas
3, 4, 5 e especialmente na onda 5, predita pela
onda 1, reflete o efeito cumulativo dos atrasos
dos alunos. O mesmo ocorre em Matemática no
modelo para as ondas 4, 5 e no modelo da onda
5 predita pela onda 1. Mesmo nos anos iniciais
do ensino fundamental os atrasos já se mostram
um impedimento à aprendizagem.
Apesar do número de pontos de desvantagem dos alunos autoclassificados como pretos ser maior em Matemática que em Língua
Portuguesa, não se deve concluir que o efeito da
cor seja maior nessa disciplina. Deve-se lembrar
que as duas escalas são diferentes e que a escala de Matemática tem o dobro da abrangência
da escala de Língua Portuguesa, em termos de
pontos. No entanto, o efeito da defasagem idade/série em Matemática no modelo da onda 5
predita pela onda 1, de -47,34 pontos extrapola
a diferença esperada e pode indicar a existência de um impacto diferencial por disciplina.
Haverá necessidade de estudar esse fenômeno
com outros dados para confirmar a possibilidade de processos diferenciados de aprendizagem.
Associação das variáveis de turma com o
desempenho dos alunos
Alunos pertencentes a turmas com uma
maior média das proficiências prévias tendem a
apresentar uma maior proficiência em Língua
Portuguesa, em todas as ondas, bem como no
modelo da onda 5 predita pela onda 1. Em
Matemática, o mesmo se passa nas cinco ondas,
embora o efeito não seja significante no modelo
da onda 5 predita pela onda 1.
Nos modelos construídos para as ondas
2 e 3 foi significante a variável NSE médio da
turma. Tal fato indica que os alunos pertencentes
a turmas com um maior NSE médio tendem a
apresentar uma maior proficiência em Língua
88
Portuguesa, mostrando a influência dos pares
sobre a evolução da aprendizagem individual.
No caso de Matemática, essa variável foi
significante nos modelos das ondas 2, 3 e 4.
Na onda 3, a variável percentual de pretos
foi significante tanto para Língua Portuguesa
quanto para Matemática. A defasagem média na
turma é significante em Matemática na onda 3,
enquanto em Língua Portuguesa essa variável
não tem significância em nenhuma onda.
Diferentemente da mesma variável em nível de aluno, a variável percentual de gênero masculino na turma foi significante em Matemática
nas ondas 2 e 3, e no modelo da onda 5 predita
pela onda 1. Já em Língua Portuguesa essa variável não é significante em nenhuma onda. Com esses resultados, observa-se a inversão das relações
observadas em nível de aluno.
A frequência de uso de recursos pedagógicos disponíveis na turma é significante no
modelo da onda 5 em Matemática. Já em Língua
Portuguesa essa variável não é significante em
nenhuma onda.
Na onda 5 e no modelo da onda 5 predita
pela onda 1, a variável média de interrupção
da aula foi significante, indicando que alunos
pertencentes a turmas com maiores valores de
média de interrupção da aula tendem a apresentar
uma menor proficiência em Língua Portuguesa.
Já em Matemática essa variável não é significante
em nenhuma onda. Alunos que estão alocados
em turmas com maiores níveis de NSE tendem a
apresentar um aumento de 2,63 pontos em Língua
Portuguesa para cada desvio padrão a mais do
que a média, e 2,79 em Matemática nos modelos
da onda 2. Ou seja, pelo menos nos primeiros
anos, o efeito do NSE da turma é maior do que
o NSE do indivíduo. O efeito do NSE da turma é
especialmente marcado na 3ª onda, quando sobe
para 6,76 pontos em Matemática.
Associação das variáveis da escola com o
desempenho dos alunos
Tanto em Língua Portuguesa quanto
em Matemática, alunos pertencentes a escolas
Nigel BROOKE; Neimar da S. FERNANDES; Isabela P. H. de MIRANDA; Tufi M. SOARES. Modelagem do crescimento...
com maiores níveis de percentual de pretos e
média de interrupção da aula na escola tendem
a apresentar uma menor proficiência. No caso
da variável percentual de pretos, isso acontece
na onda 4 e, no caso da variável média de
interrupção da aula na escola, isso acontece
nas ondas 4, 5 e no modelo da onda 5 predita
pela onda 1, em Matemática. O mesmo ocorre
com o modelo da onda 5 predita pela onda 1
em Língua Portuguesa. Novamente, em ambos os
modelos, os alunos pertencentes a escolas com
maiores níveis de média da prática de leitura na
escola, NSE e média de prática de aula na escola
tendem a apresentar uma maior proficiência.
No caso da primeira variável, isso acontece em
Língua Portuguesa na onda 2 e no modelo da
onda 5 predita pela onda 1, e, em Matemática
é significante apenas no modelo da onda 5
predita pela onda 1. Na segunda variável, isso
acontece no modelo da onda 5 predita pela onda
1, em ambos os modelos e na terceira variável é
observado em Língua Portuguesa na onda 3 e no
modelo da onda 5 predita pela onda 1. Por fim,
em Matemática, tal efeito é significativo apenas
no modelo da onda 5 predita pela onda 1.
Algumas variáveis apresentam significância
apenas no modelo de Língua Portuguesa
mostrando, assim, que alunos pertencentes a
escolas com um maior percentual de frequência
de uso de recursos pedagógicos disponíveis na
escola, maiores níveis de média de prática de
aula de Língua Portuguesa na escola e uma
maior média de prática de leitura na escola
tendem a apresentar uma maior proficiência
em Língua Portuguesa. No caso da primeira
variável isso acontece na onda 3; na segunda
variável, nas ondas 3 e 5; e na terceira
variável, nas ondas 2, 4 e no modelo da
onda 5 predita pela onda 1. Esses resultados
indicam que as variáveis empregadas para
captar diferenças entre os métodos de ensino
dos professores demonstram efetivamente
que diferentes abordagens para o ensino de
português produzem resultados diferentes,
com vantagens para aqueles alunos cujos
professores usam recursos pedagógicos, dão
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 77-94, jan./mar. 2014.
ênfase ao ensino de Língua Portuguesa e que
fazem mais uso da leitura na sala de aula.
Modelos de evolução
Os modelos aqui empregados podem ser
representados pela seguinte equação.
Fórmula 2 – Equação do modelo hierárquico
longitudinal
Esse modelo permite analisar a evolução
da proficiência do aluno segundo as ondas do
GERES. Sua formulação é análoga ao modelo
anteriormente apresentado, porém seus níveis
agora considerados são o tempo (t, 1° nível),
aluno (i, 2° nível) e escola (j, 3° nível). Na
equação apresentada é ilustrado apenas o
primeiro nível, o nível do tempo, a especificação
dos demais níveis é semelhante àquela presente
na fórmula 1.
Esta abordagem tem a vantagem de
mostrar não somente o efeito produzido por
uma covariável de aluno ou escola no patamar
de proficiência (por meio do coeficiente π0ij), mas
também o seu efeito na curva de evolução da
proficiência (por meio dos coeficientes π1ij e π2ij).
Nos modelos de evolução, o tempo,
representado por t foi codificado segundo a
sequência de inteiros de 0 a 4 (representando as
ondas de 1 a 5).
Resultado dos modelos nulos de evolução
Pela decomposição da variância nos três
níveis (tempo, aluno e escola) temos a tabela 4:
Tabela 4 − Decomposição da variância por nível e disciplina (%)
Proficiência
LP
MT
Tempo
Aluno
Escola
Total
67,0
12,9
20,1
100,0
74,1
8,9
17,0
100,0
Fonte: dados da pesquisa.
89
alunos que as variáveis em nível de escola e
de aluno, e seu efeito em Matemática é maior
que em Língua Portuguesa. A razão pela
aparente dependência maior da aprendizagem
de Matemática ao fator tempo será discutida
posteriormente.
A variabilidade no primeiro nível (tempo)
é maior que nos demais níveis e corresponde a
67% na proficiência de Língua Portuguesa e a
cerca de 74% na de Matemática. No segundo
nível (aluno), a variabilidade na proficiência
decai de 12,9% em Língua Portuguesa para
8,9% em Matemática. O mesmo ocorre no
terceiro nível (escola), porém, neste nível, a
variabilidade é ainda menor, correspondendo a
cerca de 20,1% de Língua Portuguesa e 17,0%
em Matemática. Em resumo, a variável tempo
explica mais da variação na proficiência dos
Resultado dos modelos de evolução
O modelo de evolução para a proficiência
em Língua Portuguesa e Matemática nas cinco
ondas está apresentado na Tabela 5:
Tabela 5 − Modelo de valor agregado para a proficiência em Língua Portuguesa e Matemática nas 5 ondas e covariáveis*
Variáveis
Tempo
Aluno
Língua Portuguesa
Escola
Coeficiente
Efeito Randômico
Intercepto
Matemática
Coeficiente
14,77
Intercepto
7,16
110,19
112,24
8,04
10,05
Média dos obstáculos na escola
-1,76
-2,04
Rede privada
3,6
Intercepto
-2,75
Média do NSE da escola
**
Cor preta
11,42
9,39
Intercepto
NSE
Efeito Randômico
-4,45
1,87
Gênero masculino
Intercepto
3,33
Intercepto
-3,16
t
3,30
4,21
Intercepto
14,54
8,15
Intercepto
20,71
8,12
18,45
Rede privada
11,87
Média de interrupção na escola
-1,15
***
NSE
Intercepto
0,15
2,30
Cor preta
Intercepto
-1,89
-3,89
Gênero masculino
Intercepto
-1,75
t2
Intercepto
Intercepto
0,63
2,36
1,13
1,62
-1,26
3,58
Rede privada
-1,46
Gênero masculino
Cor preta
0,18
Intercepto
0,17
Intercepto
0,2
e
10,41
21,31
Fonte: dados da pesquisa.
* Todos os coeficientes são significantes ao nível de p<0,05;
** Se refere à Média da Percepção do Professor sobre os Obstáculos que Impedem o Melhoramento da Escola;
***Se refere à Média da Percepção do Professor sobre a Frequência de Interrupção da Aula na Escola.
90
Nigel BROOKE; Neimar da S. FERNANDES; Isabela P. H. de MIRANDA; Tufi M. SOARES. Modelagem do crescimento...
Nos modelos de evolução construídos,
identificaram-se quatro principais padrões de
evolução, os quais, embora sejam ascendentes,
diferem-se quanto à sua respectiva forma.
A seguir são mostradas quatro figuras
exemplificando os padrões identificados.
Na Figura 2, apresenta-se um exemplo
do padrão 2 − Curvas com taxa de crescimento
decrescente que se distanciam entre si com o
passar do tempo, divergentes.
Figura 3 − Evolução da proficiência em Matemática pelo NSE
da escola
250
150
NSE Esc. Baixo
NSE Esc. Alto
100
Rede privada
Rede pública
4
5
5
Ondas
Fonte: dados da pesquisa.
Na Figura 1, apresenta-se um exemplo
do padrão 1 − Curvas paralelas com taxas de
crescimento decrescentes, e os outros casos
semelhantes serão apresentados e discutidos
a seguir.
140
160
Figura 2 − Evolução da proficiência em Língua Portuguesa
pela cor/raça
Fonte: dados da pesquisa.
Na Figura 3, apresenta-se um exemplo
do padrão 3 − Curvas paralelas com taxa de
crescimento crescentes.
Figura 4 − Evolução da proficiência em Matemática segundo
a rede da Escola
250
4
3
Ondas
200
3
2
150
2
1
Proficiência média em Matemática
1
Rede privada
Rede pública
1
120
Proficiência média em Língua Portuguesa
200
Proficiência média em Matemática
180
160
140
120
Proficiência média em Língua Portuguesa
Figura 1 − Evolução da proficiência em Língua Portuguesa
segundo a rede da escola
2
3
4
5
Ondas
Fonte: dados da pesquisa.
Preto
Não Preto
1
2
3
4
Ondas
Fonte: dados da pesquisa.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 77-94, jan./mar. 2014.
5
Na Figura 4, apresenta-se um exemplo
do padrão 4 − Curvas com taxa de crescimento
91
crescente que se distanciam com o passar do
tempo, divergentes.
Tanto em Língua Portuguesa quanto
em Matemática a evolução da proficiência
evidenciada pelos modelos ocorre de forma
ascendente, porém, em Língua Portuguesa, as
taxas de crescimento decaem, enquanto que,
em Matemática, elas aumentam.
A influência exercida pelas diferentes
variáveis estudadas e incluídas nos modelos
sempre se encaixou em um dos padrões acima
especificados, percebendo-se variações apenas
quanto à magnitude de seu efeito. Os padrões 1
(Figura 1) e 2 (Figura 2) foram encontrados em
Língua Portuguesa, e os padrões 3 (Figura 3) e 4
(Figura 4), em Matemática.
A influência das variáveis NSE do Aluno,
NSE médio da escola, rede privada e obstáculos
na escola em Língua Portuguesa apresentam o
primeiro padrão de crescimento, evidenciando
que esses grupos se diferem apenas no patamar
de crescimento. Já a influência das variáveis
gênero masculino e cor preta faz com que
esses grupos se difiram no patamar e na taxa
de crescimento, correspondendo ao segundo
padrão de crescimento, padrão no qual os alunos
do gênero masculino e os que se denominam
pretos, além de apresentarem inicialmente uma
proficiência menor, tendem a ampliar essa
diferença ao longo das ondas.
Em Matemática, a influência das
variáveis NSE médio da escola e obstáculos
na escola se encaixaram no terceiro padrão
de crescimento, evidenciando que os valores
assumidos por tais variáveis apenas afetam
o patamar de crescimento, não provocando
diferenças nas taxas de crescimento, que
se mantêm constantes ao longo de todas as
ondas. Já a influência das variáveis NSE, cor
preta, rede privada e média da interrupção da
aula na escola apresentam o quarto padrão
de crescimento, ou seja, as diferenças entre
os grupos que apresentam diferentes valores
dessas variáveis tendem a se ampliar apesar do
aumento das taxas de crescimento ao longo das
ondas ocorrer em todos os casos.
92
Discussão dos resultados
Na análise descritiva dos resultados
dos modelos de ganho agregado onda a onda
identificaram-se semelhanças na evolução
da aprendizagem de Língua Portuguesa e
Matemática. Ambas as disciplinas são igualmente
influenciadas pela cor, pelo NSE e pela
proficiência prévia dos alunos. Nesses casos,
os resultados coincidentes das duas disciplinas
parecem oferecer certa confirmação da correção
dos métodos e dos efeitos observados. Ao mesmo
tempo, chama atenção a indicação de diferenças
entre a Língua Portuguesa e a Matemática na
forma em que as duas matérias são influenciadas
por outras variáveis em estudo. No caso do
gênero do aluno, por exemplo, observa-se o
fenômeno da desvantagem do gênero masculino
na aprendizagem da leitura. Descrita por outros
pesquisadores, essa desvantagem pode significar
diferenças cognitivas entre os gêneros. Menos
previsível é a aparente diferença entre Língua
Portuguesa e Matemática no que diz respeito ao
efeito da experiência da defasagem idade/série,
sugerindo que o atraso na Matemática seja mais
difícil de superar que o na Língua Portuguesa.
Diferenças nos efeitos das variáveis
de turma e de escola nas duas disciplinas
também merecem atenção. Em nível de turma,
existe uma associação negativa entre o gênero
masculino e a aprendizagem de Matemática
em três dos modelos estudados, sugerindo um
efeito dos pares na aprendizagem desta matéria.
Em nível da escola, a média de interrupção
da aula mostra uma associação negativa com
a aprendizagem de Matemática em três dos
modelos estudados, enquanto a aprendizagem
de Língua Portuguesa está associada
negativamente a essa variável somente na 5ª
onda predita pela 1ª. Ou seja, as interrupções
fazem mal em ambos os casos, mas têm efeitos
negativos maiores e mais significativos no
caso da aprendizagem de Matemática.
Os resultados da pesquisa GERES
parecem oferecer indícios de diferenças entre
as disciplinas na maneira que são aprendidas e
Nigel BROOKE; Neimar da S. FERNANDES; Isabela P. H. de MIRANDA; Tufi M. SOARES. Modelagem do crescimento...
nos fatores que influenciam essa aprendizagem.
O primeiro indício dessas diferenças foi o
aumento significativo no desvio padrão da
proficiência em Matemática em comparação
com o de Língua Portuguesa. Entre as cinco
ondas o desvio padrão em Língua Portuguesa
se manteve bastante estável, variando entre
26,28 na 1ª onda e 25,37 na 5ª. Em Matemática,
por outro lado, o desvio padrão aumentou
132% ao longo da pesquisa, crescendo de um
patamar parecido com o de Língua Português
na 1ª onda, de 28,82 para 66,87 na 5ª onda.
Esse crescimento significa, no mínimo, uma
aprendizagem progressivamente mais difícil
para uma proporção significativa de alunos.
Os resultados dos modelos de evolução da
aprendizagem mostram, em primeiro lugar, que
a aquisição da Matemática começa mais devagar
e depois acelera, enquanto a aprendizagem de
Língua Portuguesa tem trajetória que sinaliza
um processo de desaceleração a partir da 3ª
onda. Independente das variáveis em estudo, a
curva da Matemática é uma curva em aceleração
enquanto a curva de Língua Portuguesa tem
o formato diferente por ser uma curva em
desaceleração. A diferença entre esses padrões
pode confirmar uma importante e conhecida
diferença entre as disciplinas no que diz respeito
ao lugar da aprendizagem inicial. No caso da
Língua Portuguesa, trata-se de uma disciplina
ou área de conhecimento que já está em
desenvolvimento antes da criança ser submetida
ao processo formal de alfabetização, pelo uso
da língua na convivência diária com a família.
A Matemática, por outro lado, é um campo de
conhecimento que não necessariamente recebe
estímulos antes da criança entrar para a escola, o
que torna essa uma disciplina mais nitidamente
escolar. À luz dessa diferença, espera-se um
desenvolvimento mais rápido da Matemática
após um período inicial de familiarização.
Em segundo lugar, a variável que
informa a rede da escola se relaciona de forma
diferente com a aprendizagem de Matemática
e Língua Portuguesa. No caso da Matemática,
abre-se uma diferença no nível e ritmo de
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 77-94, jan./mar. 2014.
aprendizagem entre as redes pública e privada,
que só aumenta ao longo dos primeiros anos.
Em Língua Portuguesa, por outro lado, a
diferença que existe entre as redes desde o
princípio do 2º ano se mantém ao longo do
período sem alteração. Essa diferença poderia
estar relacionada a diferenças no nível
socioeconômico ou cor dos alunos, mas ao
estudar essas relações, encontram-se curvas
cujos padrões são parecidos. Por esse motivo,
parece razoável supor que a diferença na
aprendizagem de Matemática, entre escolas
privadas e públicas, diz respeito a diferenças
nos processos de ensino.
A descoberta das origens das diferenças
fica além do escopo deste trabalho. No entanto,
a análise dos modelos de valor agregado e de
evolução não só confirma estas diferenças
como começa a apontar componentes desta.
Conclusão
As pesquisas educacionais feitas anteriormente só dispunham de um único resultado, não permitindo cálculos de ganhos
agregados. As inferências eram feitas contextualizando a proficiência pelo NSE do aluno
e de suas unidades de grupamento como turmas e escolas. Com esses trabalhos era possível elencar fatores associados ao desempenho,
ainda que houvesse um controle estatístico
mais rigoroso, mas não era possível incorporar
a informação acerca da ordem dos eventos, de
forma a mapear causas e efeitos.
Utilizando-se um desenho de pesquisa
longitudinal também é possível remover, em parte,
o background dos alunos e acompanhar os efeitos
das variáveis, identificando se seus efeitos atuam
não somente nos patamares do desempenho,
como também em seu ritmo de crescimento.
Nessas mesmas pesquisas podíamos
mensurar as diferenças e a influência dos
diversos valores das variáveis no desempenho
do aluno, como por exemplo, entre as redes de
ensino pública e privada, ou entre os gêneros;
porém, não ficava claro se essas diferenças se
93
ampliavam ou reduziam ao longo do tempo.
Desta forma não era possível contextualizar
o papel da escola na tentativa de neutralizar,
ou até mesmo de acentuar, tais processos.
Observou-se o aumento nas diferenças de
proficiências de grupos de alunos pretos versus
não pretos, escola pública versus escola privada
em Língua Portuguesa, gênero masculino
versus feminino em Matemática, ao longo dos
anos escolares. Por outro lado, outras diferenças
para outros grupos, caracterizados por outras
variáveis, como o NSE, se mantêm ao longo das
etapas escolares. Assim sendo, esses resultados
trazem um alerta para os sistemas educacionais,
pois a escola está longe de produzir a equidade
desejada pela sociedade brasileira.
A pesquisa GERES apresenta um passo
à frente e pode-se afirmar que constitui um
estágio intermediário na pesquisa educacional
brasileira. Seus resultados vão além das
pesquisas transversais observacionais que
constituíam quase a totalidade de pesquisas
educacionais em grandes amostras no Brasil e
prepara terreno para as pesquisas de natureza
longitudinal e experimental, embasando as
primeiras hipóteses a serem testadas nestas.
Referências
BONAMINO, Alicia C. Tempos de avaliação educacional: o SAEB, seus agentes, referências e tendências. Rio de Janeiro: Quartet, 2002.
BROOKE, Nigel; BONAMINO, Alicia. (Org.). Geres 2005: razões e resultados de uma pesquisa longitudinal sobre a eficácia escolar.
Rio de Janeiro, WalPrint, 2011.
BRYK, Anthony; RAUDENBUSH, Stephen. Hierarchical linear models: applications and data analysis methods. Newbury Park:
Sage, 1992.
FRANCO, Creso; ALVES, Fátima; BROOKE, Nigel. Estudo longitudinal sobre qualidade e equidade no ensino fundamental brasileiro
(GERES 2005). Revista Ensaio, Rio de Janeiro, n. 61, out/dez 2008.
______. O SAEB — Sistema de Avaliação da Educação Básica: potencialidades, problemas e desafios. Revista Brasileira de
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GOLDSTEIN, Harvey. Hierarchical Data Modeling in the Social Sciences. Journal of Educational and Behavioral Statistics. v. 20,
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______ et al. The use of value added information in judging school performance. Perspectives on Education Policy. London:
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RAUDENBUSH, Stephen W.; FOTIU, Randall P.; & CHEONG, Yuk Fai. Inequality of access to educational resources: a national report
card for eighth grade math. Revista Educational Evaluation and Policy Analysis, v. 20, n. 4, p. 253-268, 1998.
Recebido em: 27.02.2013.
Aprovado em: 13.08.2013.
Nigel Brooke possui graduação em Psicologia Experimental - University of Reading (1969), mestrado em Psicologia
Ocupacional - Birkbeck College, University of London (1973) e doutorado em Estudos do Desenvolvimento - Institute of
Development Studies (1979). Foi assessor e depois representante da Fundação Ford no Brasil entre 1994 e 2003. Atualmente,
é Professor Convidado da FAE/UFMG e pesquisador do Grupo de Avaliação e Medidas Educacionais - GAME/UFMG.
Neimar da Silva Fernandes é auxiliar de pesquisa do centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação– CAEd – da
Universidade Federal de Juiz de Fora (MG).
Isabela Pagani Heringer de Miranda é aluna da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG).
Tufi Machado Soares é professor Associado do Departamento de Estatística e do Programa de Doutorado e Mestrado em
Educação, Coordenador de Pesquisa do Caed – Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação, Universidade Federal
de Juiz de Fora (MG). Possui doutorado em Teoria Matemática de Controle e Estatística pela PUC - Rio e pós-doutorado em
estatística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
94
Nigel BROOKE; Neimar da S. FERNANDES; Isabela P. H. de MIRANDA; Tufi M. SOARES. Modelagem do crescimento...
Processos de significação na elaboração de
conhecimentos de alunos com necessidades
educacionais especiaisI
Maria Inês Bacellar MonteiroII
Ana Paula de FreitasIII
Resumo
Este estudo aborda a temática da educação inclusiva, com interesse nas
práticas educacionais orientadas por relações de ensino significativas.
Temos como objetivo refletir sobre o papel de educadores e pares diante
das possibilidades de desenvolvimento e aprendizagem de alunos
com necessidades educacionais especiais. Partimos do pressuposto
de que o sujeito interativo elabora conhecimentos sobre objetos em
processos necessariamente mediados pelo outro e constituídos pela
linguagem, pelo funcionamento dialógico. Assumimos os princípios
metodológicos da pesquisa histórico-cultural e utilizamos como forma
de análise o que se denomina análise microgenética. Utilizamos um
banco de dados composto por filmagens de práticas pedagógicas de
uma sala de aula e gravações de reuniões periódicas ocorridas entre
uma das pesquisadoras e a professora de um aluno do 1º ano do ensino
fundamental, com 8 anos de idade e atraso no desenvolvimento
global. Os resultados mostram que houve participação do outro nas
atividades propostas, configurando relações intersubjetivas nem
sempre harmoniosas e diferentes formas de envolvimento entre a
professora e o aluno na dinâmica dialógica. As ações da professora
ganham um lugar importante ao reconhecermos a relevância de sua
participação no processo de elaboração do conhecimento escolar.
Destacamos o papel que o outro representa no processo de ensino e
aprendizagem e explicitamos modos de ação que podem contribuir,
no âmbito educacional, para tornar o processo de ensino significativo
também para os alunos com necessidades educacionais especiais.
Palavras-chave
Teoria histórico-cultural – Educação inclusiva – Processos de
significação – Conhecimento escolar.
I- Agradecemos à Fapesp e ao PROESP
(Capes) os auxílios recebidos.
II- Universidade Metodista de Piracicaba,
Piracicaba, SP, Brasil.
Contato: [email protected]
III-Centro Universitário Moura Lacerda,
Campinas, SP, Brasil.
Contato: [email protected]
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 95-107, jan./mar. 2014.
95
Signification processes in the elaboration of
knowledge by pupils with special education needsI
Maria Inês Bacellar MonteiroII
Ana Paula de FreitasIII
Abstract
This study deals with the theme of inclusive education, and focuses on
the educational practices oriented by significant teaching relations.
We have as an objective to reflect upon the role of educators and
peers in the face of the possibilities of development and learning of
pupils with special education needs. We assume that the interactive
subject elaborates knowledge about objects in processes that are
necessarily mediated by the other and constituted by the language,
by the dialogical functioning. We adopt the methodological
principles of historic-cultural research, and we use as a form of
analysis what is denominated micro-genetic analysis. We make use
of a database composed of video recordings of pedagogical practices
in a classroom and recordings of periodical meetings between one
of the researchers and the teacher of an eight-year-old pupil of the
first year of primary education who had global development delay.
The results show that there was participation of the other in the
activities proposed, configuring intersubjective relations which were
not always harmonious, and different forms of connection between
the teacher and pupil in the dialogical dynamics. The actions of
the teacher acquired an important aspect when we recognize the
relevance of her participation in the process of elaboration of
school knowledge. We emphasize the role that the other takes in the
teaching and learning process, and we clarify modes of action that
can contribute, within the educational sphere, to make the teaching
process significant also to pupils with special education needs.
Keywords
Historic-cultural theory – Inclusive education – Processes of
signification – School knowledge.
I- The authors wish to acknowledge the
support of Fapesp and PROESP (Capes).
II- Universidade Metodista de Piracicaba,
Piracicaba, SP, Brazil.
Contact: [email protected]
III-Centro Universitário Moura Lacerda,
Campinas, SP, Brazil.
Contact: [email protected]
96
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 95-107, jan./mar. 2014.
A temática da educação inclusiva tem
sido amplamente discutida por educadores e
pesquisadores, sobretudo a partir de 1996, com
a priorização dada ao ensino de alunos com
necessidades educacionais especiais na rede
regular de ensino (BRASIL, 1996). Entre debates,
embates e avanços, é fato que, na educação
inclusiva que está em curso, ainda existem
muitos desafios a serem vencidos. Como afirma
Beyer (2003), há um sentimento de incompletude
das redes de ensino – particularmente das
escolas e dos professores – ao tentarem fazer
cumprir a legislação educacional vigente.
Em nossos trabalhos e pesquisas sobre a
temática, temos constatado esse sentimento de
incompletude a partir de profundas inquietações
sobre o fazer cotidiano relatadas a nós pelas
professoras com quem trabalhamos. Tomamos
como exemplo a fala de uma professora
regente de uma classe do 1º ano de ensino
fundamental que possui, entre seus alunos,
um com necessidades educacionais especiais.
Durante um dos encontros realizados com ela,
no qual tínhamos o objetivo de refletir sobre as
condições de ensino na sala de aula e pensar em
indícios das possibilidades de desenvolvimento
do referido aluno, a professora nos disse:
alternativos e recursos especiais1 adequados
para auxiliá-lo na aprendizagem da leitura e da
escrita. Seus dizeres trazem indícios de que ela
percebe seu aluno como alguém com vontade
para aprender; revelam ainda que ela tem
consciência de que a família espera da escola –
e particularmente da professora – a realização
de um trabalho efetivo que permita ao aluno o
acesso ao conhecimento escolar.
A partir das inquietações explicitadas
por essa docente, temos o objetivo de refletir
sobre o papel dos educadores e seus pares
diante das possibilidades de desenvolvimento
e aprendizagem de alunos com necessidades
educacionais especiais que estão inseridos na rede
regular de ensino. Pretendemos contribuir para
uma discussão sobre práticas educativas que sejam
orientadas por relações de ensino significativas.
Nos dizeres de Smolka (2010, p. 128), ao comparar
o ato de ensinar à análise realizada por Vigotski
sobre a transformação do movimento de pegar do
bebê em gesto de apontar:
[...] ensinar seria, assim, um trabalho com
signos, um trabalho de significação por
excelência, que implica incansáveis gestos
indicativos nas orientações dos olhares,
nas configurações dos objetos, nas formas
de referir, de conceituar.
A gente já está em agosto, a maioria dos
alunos já está alfabética, já tem alguns
lendo... Aí eu me preocupo, assim, [com]
o que eu posso fazer mais pra ele, porque
ele tá... Eu percebo que ele tem vontade
de aprender, mas eu não sei o que posso
fazer... Eu tenho receio que [...] a família...
O que o pai e a mãe [...] querem [...]?
Que ensine a ler e a escrever, aí a gente
falou, né? Pra ficar mais um ano comigo,
eu percebo que isso é importante pra ele,
porque ele se sente tranquilo, se sente
seguro, mas, assim, eu falo, será que eu
vou conseguir fazer isso?
Orientamo-nos
pela
perspectiva
histórico-cultural do desenvolvimento humano,
sobretudo pela tese de Vigotski sobre a gênese
social das funções mentais superiores, ou seja,
aquelas tipicamente humanas, bem como
pelas ideias do autor sobre a relação entre
desenvolvimento e aprendizagem.
Em seu manuscrito sobre a psicologia
concreta do homem, Vigotski (2000)
esclarece sua lei geral do desenvolvimento
humano ao apontar sua natureza histórica
e social. Ele apresenta sua posição diante do
A fala da professora, a nosso ver, revela
que ela se sente despreparada para lidar com
esse aluno, sobretudo em relação aos caminhos
1- Ao utilizarmos as expressões caminhos alternativos e recursos especiais,
remetemo-nos aos estudos de Vigotski (1997) sobre a deficiência e os
indivíduos com deficiência. Tais noções serão problematizadas no decorrer
deste texto.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 95-107, jan./mar. 2014.
97
desenvolvimento argumentando que “qualquer
função psicológica superior foi externa –
significa que ela foi social antes de se tornar
função, ela foi uma relação social entre duas
pessoas” (VIGOTSKI, 2000, p. 24). Para o autor,
o desenvolvimento cultural da criança pode ser
compreendido em dois planos: primeiro, em
um plano social, entre as pessoas; em seguida,
“dentro da criança” (p. 26). Nessa afirmação
está implícito o conceito de internalização.
Pino (2000) busca problematizar o
sentido do social e do cultural na obra de
Vigotski e salienta que a mediação do outro é
condição para o desenvolvimento. Ele afirma
que, “segundo Vigotski, o desenvolvimento
cultural passa por três estágios ou momentos
[...]: o desenvolvimento em si, para os outros
e para si” (PINO, 2000, p. 65). O primeiro
momento constitui-se pela realidade natural ou
biológica da criança. Num segundo momento,
essa realidade natural – ou seja, o que está
dado – adquire significação para os outros. E o
terceiro momento é aquele em que a significação
que os outros atribuem ao dado natural tornase significativa para si, isto é, para o indivíduo
singular. O exemplo mais característico desse
processo nos textos de Vigotski (1987, 1991a,
2000) refere-se ao gesto de apontar.
Segundo Smolka (2000), o processo de
formação do funcionamento mental dá-se à
medida que os sujeitos são afetados por signos
e sentidos produzidos nas relações com os
outros. As ações humanas adquirem múltiplos
significados e sentidos, tornando-se práticas
significativas, a depender das posições e dos
modos de participação dos sujeitos nas interações.
A autora procura problematizar a
dinâmica da significação como produção
humana de signos e sentidos e discute as
consequências dessa dinâmica para as relações
de ensino. Para ela, os esforços de Vigotski (1987,
2000) ao propor a emergência da dimensão
semiótica – isto é, a produção de signos, o
princípio da significação – como chave para se
compreender a conversão das relações sociais
em função mental trazem implicações radicais
98
para o que se denomina relações de ensino.
Nesse sentido, Smolka (2000) compreende o
ato de ensinar como um trabalho com signos,
um trabalho de significação por excelência,
que implica incansáveis gestos indicativos nas
orientações dos olhares, nas configurações dos
objetos, nas formas de referir e de conceituar.
A
teoria
histórico-cultural
traz
contribuições importantes sobre a relação
entre desenvolvimento e aprendizagem.
Vigotski (1987, 1991a) esclarece que o
desenvolvimento é suscitado e impulsionado
pela aprendizagem, sendo que esta depende
de condições de desenvolvimento. Para uma
melhor compreensão de tal relação, o autor
propõe o conceito de zona de desenvolvimento
proximal, cuja principal ideia refere-se à
relação existente entre desenvolvimento e
aprendizagem e à ação colaborativa de outra
pessoa. Segundo ele, a aprendizagem, ao ser
realizada em uma ação colaborativa, seja do
adulto ou entre pares, cria possibilidades de
desenvolvimento. No que concerne ao conceito
de zona de desenvolvimento proximal, Freitas
(2001, p. 27-28) afirma:
O desenvolvimento proximal, visto como
desenvolvimento emergente, supõe a
participação do outro no processo de
aprendizado dos indivíduos, corresponde
ao espaço onde ocorrem os processos
de elaboração compartilhada. Sendo
assim, fica reiterada a tese de que o
desenvolvimento psicológico depende das
condições sociais em que é produzido.
No âmbito educacional, o referido conceito
tem sido amplamente utilizado e alguns autores
buscam elaborar diretrizes para as práticas
educativas (MORTIMER; CARVALHO, 1996 apud
FREITAS, 2001; COLAÇO et al., 2007; FERREIRA,
2008). Ancorada nas teses centrais de Vigotski,
Góes (1997) apresenta contribuições fundamentais
sobre a participação do outro e o papel da
linguagem na elaboração do conhecimento. Ela
se apoia na concepção de um sujeito interativo
Maria Inês Bacellar MONTEIRO; Ana Paula de FREITAS. Processos de significação na elaboração de conhecimentos...
que elabora conhecimentos sobre objetos, em
processos necessariamente mediados pelo outro e
constituídos pela linguagem, pelo funcionamento
dialógico. A autora salienta que, no âmbito
educacional, as relações intersubjetivas são
muitas vezes consideradas de maneira prescritiva
e o outro é visto como aquele que sempre ajuda,
partilha, guia, cria suportes, estabelece pontes.
Porém, o desenvolvimento parece acontecer
tanto em acordo quanto em desacordo com
as características uniformes, esperadas ou
idealizadas das relações entre sujeitos, isto é,
ainda que as relações intersubjetivas não sejam
harmoniosas. O outro tem um papel contraditório
e o jogo dialógico que constitui a relação entre
sujeitos não tende a apenas uma direção; abrange
circunscrição, expansão, dispersão e estabilização
de significados e envolve o deslocamento forçado
de certas operações de conhecimento.
Consideramos que ainda é preciso refletir mais profundamente sobre o que se espera
dos educadores e alunos em relação a essa ação
colaborativa. O que vem a ser agir colaborativamente? A ideia de ação colaborativa atrelada ao conceito de significação remete-nos à
procura da compreensão sobre as relações que
se estabelecem em sala de aula, que permitem
a elaboração de novos sentidos pelo grupo de
alunos e pelo professor.
Baseamo-nos na visão de que a
elaboração de conhecimentos dá-se na
interação entre sujeitos, em processos mediados
pelo outro e pela linguagem. Partimos da ideia
de que o conceito de zona de desenvolvimento
proximal mostra-se relevante para a discussão,
desde que seja considerado parte inseparável
do desenvolvimento como processo dialético,
fundamentado nas dimensões cultural e
semiótica do funcionamento humano.
Caminhos metodológicos
Neste estudo, assumimos os princípios
metodológicos da pesquisa histórico-cultural,
tal como proposto por Vigotski (1991a, 1991b).
O autor baseia-se na abordagem materialista
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 95-107, jan./mar. 2014.
dialética da análise da história humana e aponta
uma nova descrição metodológica, focalizando:
(1) uma análise do processo em oposição a
uma análise do objeto; (2) uma análise que
revela as relações dinâmicas ou causais,
reais, em oposição à enumeração das características externas de um processo, isto
é, uma análise explicativa e não descritiva;
e (3) uma análise do desenvolvimento que
reconstrói todos os pontos e faz retornar à
origem o desenvolvimento de uma determinada estrutura. (VIGOTSKI, 1991a, p. 74)
Como forma de análise, utilizamos o
que se denomina análise microgenética. Góes
(2000) a define como uma forma de construção
de dados que requer a atenção aos detalhes e o
recorte de episódios interativos, sendo o exame
orientado para o funcionamento dos sujeitos
focais, as relações intersubjetivas e as condições
sociais da situação, o que resulta num relato
minucioso dos acontecimentos.
Apoiados na perspectiva e nas formas de
análise expressas aqui, analisamos dois episódios
extraídos do banco de dados das pesquisadoras
referente a um estudo maior realizado em
uma escola municipal de ensino fundamental
de uma cidade do interior do Estado de São
Paulo. O referido banco de dados é composto
por filmagens de situações de uma sala de
aula de 1o ano do ensino fundamental com
23 alunos e gravações de reuniões periódicas
entre uma das pesquisadoras e Lourdes,2 a
professora do aluno focalizado no estudo. As
filmagens foram feitas entre novembro de 2009
a novembro de 2010, considerando-se o período
letivo; as reuniões com a professora ocorreram
durante o ano de 2010. Realizamos a tarefa de
transcrição minuciosa dos dados das filmagens
e gravações, procurando revelar indícios das
relações intersubjetivas e das condições de
produção dos acontecimentos em curso.
2 - Todos os nomes utilizados são fictícios para preservar a identidade
dos sujeitos.
99
O aluno é Gil, 8 anos, que na época da
pesquisa de campo frequentava o 1o ano do
ensino fundamental. Gil nasceu prematuro,
pesando 1,1 kg e medindo 30 cm. Segundo
relato de sua mãe, ele não apresentou
dificuldades motoras: aos 7 meses, já ficava
sentado e engatinhava; com 1 ano e 3 meses
já andava. Em relação ao desenvolvimento da
linguagem oral, a mãe relatou que Gil demorou
para falar e as primeiras palavras surgiram
quando ele tinha 4 anos. Até então, usava gestos
indicativos e balbucios. Segundo o diagnóstico
neurológico, Gil apresenta uma má formação do
desenvolvimento cortical com agnosia verbal
auditiva e apraxia fonoarticulatória.3
Em relação à sua história escolar, em
2008, aos 6 anos de idade, Gil ingressou no 1º
ano do ensino fundamental. Em 2009 e 2010,
permaneceu no 1º ano e com a mesma professora. Em 2011, passou para o 2º ano.
Lourdes, a professora, possui formação
em Magistério e cursa Pedagogia em uma universidade privada. É professora da rede escolar
municipal desde 2001.
Resultados e discussões
Com o intuito de refletir sobre as relações
que se estabelecem no espaço escolar e que
permitem a elaboração de novos sentidos pelo
grupo de alunos e pela professora, apresentamos
aqui dois episódios. O primeiro refere-se a uma
situação ocorrida em sala de aula e o segundo,
a um dos encontros realizados entre uma das
pesquisadoras e a professora. Optamos pela
transcrição em ortografia regular das falas
dos envolvidos. Os gestos e as ações dos
participantes estão descritos entre colchetes.
Episódio 1
Situação: As carteiras estão dispostas
em semicírculo. Todos copiam o cabeçalho
3 - A agnosia verbal auditiva refere-se a uma falha no reconhecimento de
estímulos linguísticos sem que a audição esteja prejudicada. A apraxia fonoarticulatória é uma desordem na programação motora da fala (MURDOCH, 1997).
100
e a rotina do dia escritos na lousa pela
professora. No cabeçalho constam as
seguintes informações: nome da cidade; data,
com dia, mês e ano; nome da escola; nome
da professora e nome do ajudante do dia.
Na rotina constam as atividades que serão
realizadas ao longo do dia. Gil está sentado
entre dois alunos, uma menina e um menino
– Jane e Caio –; como os demais colegas,
também copia o cabeçalho. A professora está
em pé e caminha pela sala, olhando para os
cadernos de cada aluno. O caderno de Gil
está aberto e ele está escrevendo na página
da esquerda, mas, como escreve em letras de
forma muito grandes, às vezes ultrapassa para
a folha da direita. Isso já ocorreu em outros
momentos e a professora já chamou sua
atenção para o fato. Quando ela se aproxima,
ele começa a apagar a página da direita.
1. Professora: Aqui, ó, aqui tá certinho,
aqui... não precisa apagar, faz a letra “i”.
O que você escreveu aqui? [Vai apontando com o dedo indicador para cada linha
que Gil havia copiado.]
2. Gil: [Não responde.]
3. Professora: Olha lá! [Aponta a lousa.]
Esse tá certo. [Indica algo no caderno.]
4. Caio: Aqui. [Indica algo no caderno de Gil.]
5. Professora: É, ele já vai corrigir.
[Dirige-se ao aluno Caio e continua a caminhar pela sala.]
6. Gil: [Continua a apagar.]
[...]
7. Professora: Só pra quem terminou, viu,
Jane. Eu vou passar de novo olhando os
cadernos. [Pede para Jane distribuir a
atividade do dia para os alunos que já
haviam terminado a cópia.]
8. Jane: [Distribui a atividade.]
9. Professora: E você, Gil, cadê o seu? Você
já terminou?
10. Gil: [Olha para o caderno e vira a página,
voltando para a página correspondente à
cópia do dia.]
11. Professora: Terminou?
Maria Inês Bacellar MONTEIRO; Ana Paula de FREITAS. Processos de significação na elaboração de conhecimentos...
12. Gil: [Aceno positivo com a cabeça.]
13. Professora: Aqui tá certo, ó. [Apontando
algo no caderno dele.]
14. Gil: [Olha para o que a professora está
apontando.]
15. Professora: O que você fez aqui?
16. Gil: [Pega a borracha e começa a
apagar.]
17. Professora: Re-crei-o [fala de modo
silabado]. Faltou uma letra “r” no meio.
[Aponta no caderno.]
18. Gil: [Olha para a professora e para o
caderno.]
19. Professora: Faz o “r”. [Pega a borracha
e apaga algo.]
20. Gil: [Escreve.]
21. Professora: Foi o 3, o 4! [Indicando
no caderno de Gil os itens da rotina que
ele já havia copiado.] Vê se você consegue
escrever. [Apaga o que Gil havia escrito à
frente do número quatro e indica o lugar
na folha onde deve ser escrito. Observa
o caderno e vê que há várias palavras
escritas na página da direita; apaga tudo o
que está fora da ordem.] Agora é no outro
lado, o 4 está aqui, mas tá inteiro aqui,
olha lá pra lousa.
22. Gil: [Permanece com o caderno aberto
sobre a carteira, observa o movimento da
sala por uns instantes e volta a escrever.]
23. Pesquisadora: Acabou? Deixa eu ver.
24. Gil: [Não responde e volta a folhear o
caderno. Fecha o caderno e o guarda sob
a carteira. Levanta-se, vai até a frente da
sala, próximo da professora.]
25. Professora: Que foi, Gil? [Pega sua mão
e o conduz à carteira.] Pega o caderno.
26. Gil: [Senta-se novamente, pega seu
caderno e o coloca sobre a carteira.]
27. Professora: Só vai ganhar depois que
terminar, tá bom? [Referindo-se à folha
com a atividade do dia.]
28. seu caderno, procurando a página
correta. Abre em uma página.]
29. Professora: É esse o de hoje? [Aponta
no caderno de Gil.]
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 95-107, jan./mar. 2014.
30. Gil: [Fica olhando para o que está
escrito no caderno.]
31. Professora: É, Gil? [Afasta-se da
carteira de Gil e vai até a lousa.]
32. Gil: [Olha para a professora, olha
para o caderno, olha para a lousa, vira
a página.]
33. Professora: [Aproxima-se novamente e
aponta para a página do caderno de Gil.]
Ó! [Indica com o dedo algo escrito no
caderno.] Tá igual?
34. Gil: [Aceno positivo com a cabeça.]
35. Professora: Tem o “l”? [Vai para a
lousa e começa a apontar letra por letra da
palavra “linguagem”.]
36. Gil: [Aceno positivo com a cabeça, sem
olhar para o caderno.]
37. Professora: Tem o “i”?
38. Gil: [Aceno positivo com a cabeça, sem
olhar para o caderno.]
39. Professora: Olha no seu caderno!
40. Gil: [Olha para o caderno.]
41. Professora: Tem o “n”?
42. Gil: [Aceno positivo.]
43. Professora: Tem? E o “u”?
44. Gil: [Aceno positivo.]
45. Professora: Tem o “a”?
46. Gil: [Aceno positivo.]
47. Professora: Tem? [Aproxima-se de Gil
e aponta em seu caderno o que Gil havia
escrito.]
48. Gil: [Pega a borracha e apaga algo.]
49. Professora: Depois do “u”... O que é que
tem lá depois do “u”? Olha lá. [Aponta para
a lousa.]
50. Gil: [Olha para a lousa.]
51. Alguns alunos: “A”!
52. Gil: “A”. [Volta a apagar e escreve “a”.]
53. Professora: E depois do “a”? O que vem
lá, Gil?
54. Gil: [Apaga novamente algo em seu
caderno e escreve outra letra.]
55. Alunos: “G”
56. Professora: O Gil!
57. Professora: E depois do “g”?
58. Gil: [Apaga algo e escreve.]
101
59. Professora: E depois do “g”?
60. Alunos: “E”!
61. Gil: [Apaga algo e completa a palavra
“linguagem”. Olha para a lousa.]
62. Professora: Já acabou, Gil. Não tem
mais nada nesta linha. Você apagou aquilo
que você fez a mais?
63. Gil: [Aceno positivo.]
64. Professora: Apagou todas?
65. Caio: [Aproxima-se e indica no caderno
de Gil onde ele deve apagar.]
66. Professora: Mostra pra ele, tá bom?
67. Gil: [Apaga onde o aluno Caio indica.]
68. Caio: [Pega a borracha e apaga o que
Gil havia feito a mais na página da direita.]
69. Pesquisadora: Gil, você não vai fazer
o 5, ó? Você fez até o 4, faltam o 5 e o 6.
[Apontando na lousa o que falta ser feito.]
70. Caio: [Pega o lápis e escreve o número
5 no caderno de Gil.]
71. Pesquisadora: Seu amigo marcou pra
você, agora você copia o número 5 da lousa.
72. Gil: [Começa a escrever.]
73. Caio: [Continua a indicar a linha para Gil.]
74. Gil: [Olha na lousa e copia.]
75. Pesquisadora: Isso!
76. Caio: [Pega a borracha e apaga algo
que Gil havia escrito errado. Aponta para
Gil a linha de baixo.]
77. Gil: [Copia a última linha da rotina.]
78. Pesquisadora: Ele te ajudou?
79. Professora: [Aproxima-se de Gil, fecha
o caderno para ele e lhe entrega a folha de
atividade, mas neste instante toca o sinal
para o recreio.]
Gil permanece na cópia do cabeçalho
durante todo o primeiro período da aula e não
realiza a atividade de linguagem. A professora
revela sua preocupação em ajudá-lo a copiar o
cabeçalho e a rotina (atividade que havia sido
proposta para a classe toda). Durante o episódio,
várias vezes a observamos realizar diferentes
gestos e ações com o intuito de auxiliá-lo:
aproxima-se da carteira de Gil, mostrando o que
ele deve escrever; segura em sua mão e o ajuda
102
a grafar a letra desejada; confere com Gil o que
ele produziu; apaga ou o orienta a apagar o que
escreveu a mais; indica as letras das palavras
para o aluno. Os colegas também colaboram
para que Gil conclua a tarefa e apropriam-se
dos mesmos modos de atuação da professora:
indicam, corrigem, apagam, soletram as letras,
escrevem por ele. Gil realiza diferentes ações e
gestos durante a atividade: olha para a lousa,
escreve, apaga o que escreve, pede ajuda para
a professora. Não se pode negar que há uma
preocupação orientada para que Gil aprenda.
Todos querem isso. Embora demore para fazer a
cópia, ele a termina com o auxílio da professora
e dos colegas.
Para refletir sobre essa situação, retomamos
as proposições de Vigotski (1987, 2000) acerca da
natureza social do desenvolvimento psicológico,
quando argumenta que toda função psicológica
superior foi antes uma relação social entre duas
pessoas. A essa ideia está atrelado o conceito
de internalização. Como explicou Pino (2000),
Vigotski refere-se a três momentos significativos:
o desenvolvimento em si, para os outros e para si.
São várias as enunciações de Lourdes na
tentativa de organizar as ações de Gil. Por meio
de gestos e palavras, ela indica o que deve ser
feito e chama a atenção do aluno ora para a
lousa, ora para o caderno, com o intuito de que
ele realize a cópia. Além disso, aproxima-se da
carteira de Gil, toca nele, aprova aquilo que ele
escreve corretamente e o questiona sobre o que
deve ser reformulado.
Gil apropria-se de ações e gestos
significativos realizados pela professora e pelos
colegas, fazendo ele mesmo tais gestos e ações
– apontar, olhar, apagar, escrever, nomear.
Assim, em um primeiro momento, temos suas
ações significadas pela professora e por seus
pares; mas, à medida que essas ações se tornam
significativas, convertem-se em ações para si. As
interações sociais vividas nesse espaço escolar
podem ser compreendidas como um trabalho
de significação que implica incansáveis gestos
indicativos – gestos de ensinar, conforme aponta
Smolka (2010).
Maria Inês Bacellar MONTEIRO; Ana Paula de FREITAS. Processos de significação na elaboração de conhecimentos...
Examinando o episódio, podemos afirmar
que durante todo o tempo houve participação do
outro para a realização da tarefa proposta; todavia, conforme aponta Góes (1997), as relações
intersubjetivas nem sempre são harmoniosas e,
na dinâmica dialógica, os envolvidos participam de diferentes formas. Quando a professora
aproxima-se da lousa e aponta letra por letra da
palavra linguagem, notamos movimentos de resistência, insistência e persistência de Gil, dos colegas e da própria professora, movimentos estes
que culminam na escrita da palavra. Na análise
da dinâmica interativa, consideramos que foram
criadas possibilidades de caminhos diferenciados
para a participação de Gil na atividade proposta.
Esse movimento conjunto da professora
e dos colegas envolve Gil numa rede de significações própria das relações de ensino de nossas
escolas. Entretanto, ao analisarmos o episódio a
seguir, constatamos que a professora revela, na
conversa com a pesquisadora, a dúvida sobre o
efeito de suas ações e a incerteza sobre a aprendizagem de Gil. Vemos aí estampada sua angústia.
Episódio 2
Situação: Durante um dos encontros, a
pesquisadora mostra para a professora um trecho
de uma filmagem na qual ela contava a história
de Chapeuzinho Vermelho para toda a classe. Na
ocasião filmada, Gil mostra-se especialmente
participativo e envolvido com a atividade. Após
assistirem ao vídeo, elas conversam sobre o
aluno e sobre os momentos em que ele participa
ou não das atividades propostas.
1. Professora: Eu, assim, por exemplo,
nessa [referindo-se à filmagem assistida]
dá pra perceber que ele entende, ele fala,
ele compreende o que está acontecendo. Só
que tem momentos na sala em que eu falo
com ele e ele não se manifesta, sabe? Às
vezes, quando eu faço alguma pergunta,
ele faz assim: “deixa eu ver” [coloca a mão
no queixo, como se estivesse pensando],
“deixa eu ver”... Se deixar, ele vai ficar 10,
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 95-107, jan./mar. 2014.
20 minutos assim. Então, eu já experimentei
falar “pessoal, vamos ouvir o que ele tem
pra falar”. Então agora é o momento dele,
então eu fiquei, né? Talvez ele precise de
mais um tempo pra expor a ideia dele, mas
não, eu fiquei 5 minutos assim; ele: “deixa
eu ver”... Aí ele começa a rir, aí ele abaixa
a cabeça, então ele não fala. Eu tenho que
fazer assim, por exemplo, se é uma votação
pra um animal que eles querem saber sobre
o animal, que eu trago um texto científico,
aí eu falo “qual que você quer, Gil?” Aí ele
fica “deixa eu ver” e nada... Dá risada, olha
o colega, dá risada de novo... Aí eu falo
assim: “Olha, a gente tem esses daqui”. Aí
eu dou as opções pra ele: “cachorro, gato,
borboleta, vagalume, qual que você quer?”.
Aí ele fica “hum, hum” [gesto de pensar], aí
demora mais, aí eu falo, “é cachorro?”. Aí
ele fala “não”. “É gato?”. “Não”. Aí quando
chega no que ele quer, ele faz assim
(professora faz gesto afirmativo). Então eu
não sei se ele tem vergonha de falar, se ele
tem dificuldade para falar. É isso que eu
queria entender. Por que ele não fala? Então
eu tenho que dar as opções, eu tenho que
ficar, sabe, tentando de alguma maneira
descobrir a opinião dele, a ideia dele.
2. Pesquisadora: Então, eu entendo isso.
Lógico que o que a gente quer é que a
criança fale, que a criança participe...
3. Professora: Eu gostaria que ele falasse!
4. Pesquisadora: E aí eu acho que tem uma
questão que eu já falei antes: ele é uma
criança que precisa mesmo do outro.
5. Professora: Dessas opções.
6. Pesquisadora: Ele precisa de formas pra
ajudar ele, parece que ainda ele sozinho,
pra autonomia, ele não fala, “eu quero
estudar a borboleta”. Mas se você vai dando
as opções, ele chega lá, ele tem a opinião
dele, mas ele precisa do outro.
7. Professora: Aí eu tenho dúvida, será que
eu estou fazendo certo isso? Eu dando as
opções, ou será que eu tenho que forçar
ele a falar? Então, essa é a minha situação.
103
8. Pesquisadora: Mas se a gente pensar, por
exemplo, de coisas... Você é quem tem a
história dele. Como você me falou do cabeçalho... Agora ele voltou [referindo-se à
volta das férias], ele não está mais assim.
Ele já está copiando. Então já houve situações em que você precisou muito dessa intervenção, de dar essas pistas, de mostrar,
ensinar. Ele precisa de quem o ensine. E
que agora ele já se vira...
9. Professora: Então é bom o que eu faço?
10. Pesquisadora: Eu acho que é esse o
caminho.
[...]
11. Pesquisadora: Eu penso assim, o espaço
da sala de aula é um espaço muito rico e
muitas coisas vão ocorrendo ao mesmo
tempo. Se a gente pensar nessa questão
da inclusão, ele é mais um aluno que está
lá, faz parte daquela sala de aula, não é
um aluno que você vai trabalhar com ele
isoladamente; e se a atividade é essa, de
escolher os animais, então é isso. Qual é o
jeito de fazer? Então, são esses caminhos
que é preciso descobrir mesmo. Como ele
vai fazer? Como ele vai descobrir? Essas
atividades que envolvem a linguagem, a
oralidade, são muito importantes! [...]
12. Professora: Agora, por exemplo, quando
ele precisa de alguma coisa, ele fala assim:
“Pessoal...”. Aí todo mundo: “O que, Gil? Fale,
Gil”. Aí ele tem que mostrar, tem que apontar.
Ele já consegue chamar os colegas. É uma
coisa que ele não fazia no ano passado. Ele
não chamava o pessoal. Quando ele quer
uma borracha, uma coisa, aí todo mundo
vira pra ele: “O que você quer?”. Aí ele faz
assim: o que ele quer, ele aponta, mostra.
13. Pesquisadora: Isso é importante, como ele
usa, é a possibilidade de linguagem dele, e
que isso seja significado. E aí pra gente poder
pensar, o que é importante? A interação, essa
relação dialógica, essa troca entre todos da
sala de aula, professores e alunos, que ela
possa acontecer e cada um vai participar
disso com os recursos que tem. [...]
104
14. Pesquisadora: O que mudou nele, nessa
questão da escrita? O que ele não sabia
antes, que ele já sabe, desde quando você
o conheceu?
15. Professora: Ele já tá... Quando eu o
conheci ele usava letras aleatoriamente...
Ele usava letras pra desenhar... Ele não
sabia o que era aquilo... Ele repetia as
atividades de leitura...
16. Pesquisadora: Ele até sabia nomear as
letras?
17. Professora: É, mas ele não via função.
Eu percebia isso, é uma coisa assim, o “a”, o
“b”... Acho que foi uma coisa tão repetitiva
pra ele no 1º ano que ele conseguiu, isso
ele apropriou. Aí o que eu tive dificuldade,
ele ainda não usava o caderno, mesmo
com aquela folha, com a linha mais grossa,
então, era uma atividade diferente pra ele...
É... Que mais? Eu senti que comigo ele
conseguiu se expressar de outras formas,
primeiramente, desenhava lindamente,
atividade de música, nossa, se saía muito
bem, eu sempre elogiando. Então, ele
conseguiu superar até os outros em outras
áreas. Então, desenho, ele adora desenhar,
ele se sente mais tranquilo, os amigos dele
falam: “Nossa, Gil, que lindo, deixa eu ver”.
Ele adora esse momento do desenho, ele
adora o momento de música, ele tem uma
noção de ritmo, que é... nossa... sabe, é mil!
Aí eu percebi que nesses momentos e na
relação comigo também, de fazer carinho,
de ficar perto, de querer estar junto e eu
com ele e isso aflora também comigo, aí
a preocupação qual foi? E escrever, como
nós vamos fazer? [...] Daí comigo agora ele
consegue entender que as letras existem
pra gente se expressar, ele sabe isso hoje,
que o alfabeto é usado pra quê? Não é pra
desenhar o alfabeto, porque ele desenhava
o alfabeto antes. Pra que que existe o
alfabeto? Hoje ele tem essa noção. Ele usa o
alfabeto pra escrever, pra colocar o que eu
penso, falar do que eu quero escrever, uma
frase, né?
Maria Inês Bacellar MONTEIRO; Ana Paula de FREITAS. Processos de significação na elaboração de conhecimentos...
No início do episódio, nota-se que a
professora revela acreditar na capacidade de
seu aluno. Ela quer auxiliá-lo a encontrar um
modo de se comunicar na sala de aula e, para
isso, vale-se de algumas estratégias: dá tempo
para ele pensar, dá opções para ele escolher o
que quer dizer. Todavia, ela tem dúvidas em
relação ao seu modo de atuação e questiona:
“Será que eu estou fazendo certo isso?”.
A pesquisadora ressalta a importância
da participação do outro quando Gil ainda não
consegue realizar a tarefa sozinho e faz indagações
para a professora que podem ajudá-la a avaliar
aquilo que já mudou em Gil, o que ele já aprendeu
e o que ainda é difícil para ele. Ela também reflete
sobre os caminhos alternativos de aprendizagem
e indica que as ações realizadas pela professora
podem ter ajudado na participação de Gil nas
atividades e em suas conquistas.
O questionamento da pesquisadora sobre
o desenvolvimento de Gil – “o que mudou
nele [...] o que ele não sabia antes, que ele já
sabe [...]?”– auxiliou Lourdes a refletir sobre o
processo de desenvolvimento de seu aluno e a
constatar que há conceitos escolares que Gil já
conhece – ou seja, que já estão consolidados –
e momentos em que ele ainda precisa do outro
para elaborar seus conhecimentos. Diz ela: “ele
usava letras aleatoriamente [...] pra desenhar
[...] ele não via função [...] isso ele apropriou
[...] hoje ele tem essa noção, ele usa o alfabeto
pra escrever”. Chamamos a atenção para a
semelhança entre as ações da pesquisadora
nesse episódio e as ações da professora no
episódio anterior. A pesquisadora relaciona-se
com a professora da mesma forma como esta
se relaciona com Gil: apontando, questionando,
chamando a atenção para o que é relevante.
Conforme já apontamos nas análises
sobre o episódio 1, notamos que durante as
relações entre Gil, a professora e seus colegas
há momentos mais harmoniosos e situações
mais conflitivas, que não permitem afirmar
se houve ou não desenvolvimento em Gil. No
episódio 2, pelos dizeres da professora Lourdes,
constatamos que ela age buscando garantir
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 95-107, jan./mar. 2014.
a Gil o acesso ao conhecimento escolar.
Retomamos aqui a noção de desenvolvimento
proximal (VIGOTSKI, 1991a), que, vista de
maneira prospectiva, supõe a participação
do outro no processo de aprendizagem, em
situações de elaboração partilhada. Atrelamos a
essa ideia as considerações pertinentes de Góes
(1997) sobre o papel contraditório do outro no
processo de elaboração do conhecimento.
As ações da professora de Gil ganham um
lugar importante se reconhecermos a relevância
de sua participação no processo de elaboração
do conhecimento escolar. É ela quem dá o tom,
quem mostra para Gil, por meio de suas falas,
ações e posturas, que é importante copiar o cabeçalho, reconhecer as letras, escrever.
A professora escolheu um caminho para
seguir: ficar perto, apontar, olhar, nomear,
mostrar, escrever, esperar por Gil. Outros
caminhos e/ou recursos poderiam ser utilizados,
melhores ou piores, mais fáceis ou mais difíceis. O
importante é garantir a qualidade de vivência do
aluno com necessidades educacionais especiais,
considerando sempre que, acima do caminho
que se escolha ou do recurso especial que se
utilize, a linguagem, os signos e os sentidos estão
partilhados e elaborados nos diversos contextos.
Considerações finais
Pensamos que ainda é preciso refletir
mais profundamente sobre o que se espera
dos educadores e alunos em relação a essa
ação colaborativa. O que vem a ser agir
colaborativamente? A ideia de ação colaborativa
atrelada ao conceito de significação nos remete
à procura da compreensão sobre as relações que
se estabelecem em sala de aula, que permitem
a elaboração de novos sentidos pelo grupo de
alunos e pelo professor.
É possível afirmar que há uma ação colaborativa ocorrendo na sala de aula e que há
interesse e preocupação da professora nesse
sentido. Mas como essas ações se atrelam ao
processo de significação? Quais são as possibilidades de elaboração de novos sentidos? O
105
estudo aqui apresentado mostrou que as possibilidades de ação residem nos processos interativos
e nas significações produzidas na dinâmica escolar. Envolvem uma inter-relação de professores e
alunos que buscam a constituição dos múltiplos
sentidos partilhados no contexto escolar.
Problematizar a possibilidade de elaboração
de novos sentidos, a nosso ver, torna-se central
para a compreensão dos caminhos alternativos de
aprendizagem e dos recursos especiais referidos
por Vigotski (1997) em suas proposições sobre
as possibilidades de aprendizagem de pessoas
com deficiência. Para o autor, a superação das
dificuldades encontra-se nas relações sociais e
nas mediações proporcionadas pelo outro, por
signos e instrumentos, ou seja, pela mediação
social-semiótica.
Ressaltamos aqui que a professora,
ao refletir junto com a pesquisadora sobre
suas próprias ações, consegue compreender
sua participação no processo de significação
e desenvolvimento de seu aluno. Assim,
destacamos o importante papel que o outro tem
no processo de ensino e aprendizagem. Vigotski
afirma que as leis gerais de desenvolvimento
são iguais para todas as crianças, ou seja, a
criança aprende na relação social com o outro.
No caso das crianças com deficiência, isso não
será diferente. Explicitar modos de ação que
permitam criar formas culturais singulares
pode contribuir, no âmbito educacional, para
tornar o processo de ensino significativo
também para os alunos com necessidades
educacionais especiais.
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Recebido em: 11.06.2012
Aprovado em: 14.11.2012
Maria Inês Bacellar Monteiro é doutora em Psicologia e docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Metodista de Piracicaba.
Ana Paula de Freitas é doutora em Educação e docente do Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro Universitário
Moura Lacerda.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 95-107, jan./mar. 2014.
107
Dicionarização da língua brasileira de sinais: estudo
comparativo iconográfico e lexical
Cássia Geciauskas SofiatoI
Lucia Helena ReilyII
Resumo
A língua brasileira de sinais (Libras) utilizada pela comunidade
surda no Brasil é uma língua de modalidade espaço-visual cuja
representação gráfica comumente se dá por meio de imagens
em dicionários impressos e em meio digital. No Brasil, o
primeiro dicionário de língua de sinais de que se tem notícia é
a Iconographia dos signaes dos surdos-mudos, que data de 1875.
A partir da elaboração dessa obra, outras surgiram e foram se
constituindo como materiais de referência para o ensino e o
aprendizado da língua em questão. O presente trabalho objetiva,
com base em dicionários de Libras que servem de referência,
analisar e discutir a constituição histórica do gênero no Brasil a
partir da identificação de características e fragilidades em relação
à iconografia e à lexicografia de tais obras, fatores que podem
interferir no ensino e no aprendizado dos sinais nos cursos de
graduação. Do ponto de vista da abordagem do problema, esse
estudo é qualitativo e caracteriza-se como documental. Foram
selecionados cinco dicionários de Libras, pautando-se no critério
da indicação bibliográfica em disciplinas de Libras em cursos de
graduação. As categorias estabelecidas para a análise priorizaram
a questão da representação das imagens (a iconografia) e os
aspectos lexicais que as compõem. Por meio do estudo, observouse que as obras analisadas apresentavam características bastante
semelhantes em relação à apresentação, à constituição das
imagens e aos aspectos lexicais, desafiando os profissionais que
trabalham com esse gênero de ilustração.
Palavras-chave
Língua brasileira de sinais — Surdez — Dicionários.
I- Universidade de São Paulo, São Paulo,
SP, Brasil.
Contato: [email protected]
II- Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, SP, Brasil.
Contato: [email protected]
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 109-126, jan./mar. 2014.
109
Brazilian sign language dictionaries: comparative
iconographical and lexical study
Cássia Geciauskas SofiatoI
Lucia Helena ReilyII
Abstract
Brazilian sign language as used by the deaf community in Brazil
is a visual spatial modality language; graphic representations
of this language usually consist of images in printed and digital
dictionaries. In Brazil, the first known sign language dictionary is
the Iconographia dos Signaes dos surdos-mudos printed in 1875.
After this work, other dictionaries followed and they became part of
the reference materials used for teaching sign language. Based on the
Libras dictionaries that serve as references, the present study aims
to analyze and discuss the historical constitution of this publication
genre in Brazil. Characteristics and weaknesses related to the
iconography and lexicography of these publications are identified
as aspects that may interfere with learning signs in undergraduate
courses. Regarding how we have approached the theme, this is a
qualitative study, supported by documentary methodology. Five Libras
dictionaries were selected, based on the criteria that these publications
have been selected as bibliographic references in Libras courses at
the undergraduate level. The categories for analysis mainly focus
on issues related to the representation of the images (iconography)
and to the lexical aspects that make up the signs. We were able to
see that the selected works present similar characteristics, regarding
their presentation, the constitution of the images and lexical aspects
that make up the signs, but the dictionaries challenge professionals
that work with this genre of illustration, because reading the images
is not always easy to accomplish.
Keywords
Brazilian sign language — Deafness — Dictionaries.
I- Universidade de São Paulo, São Paulo,
SP, Brasil.
Contact: [email protected]
II- Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, SP, Brasil.
Contact: [email protected]
110
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 109-126, jan./mar. 2014.
A consulta a dicionários dos mais
variados tipos, quando necessária, é uma
prática corrente dos usuários de uma língua,
assim como das pessoas interessadas em algum
assunto específico. Em relação aos dicionários
de línguas, estes têm se constituído na cultura
ocidental, de acordo com Bagno (2011, p. 119),
como “um dos principais instrumentos de
descrição, prescrição, codificação e legitimação
do modelo idealizado de uma língua correta”.
Da mesma forma que as línguas orais,
as línguas de sinais, línguas de modalidade
espaço-visual utilizadas pelas comunidades
surdas no mundo todo, foram demandando
registros ao longo da história, quer para
seu ensino, quer para difusão entre surdos e
ouvintes interessados. O sentido atribuído por
Bagno (2011) pode ser observado também nos
dicionários de línguas de sinais, apesar das
peculiaridades estruturais que apresentam. Cada
vez mais, e principalmente após a homologação
da Lei nº 10.436 em 2002, que reconhece a
língua brasileira de sinais (Libras) como língua
da comunidade surda do Brasil, a publicação de
dicionários tem sido promovida no país.
Historicamente, o primeiro dicionário
de língua de sinais que surgiu no Brasil foi a
Iconographia dos signaes dos surdos-mudos,
de autoria de Flausino da Gama, em 1875.
O autor era surdo e estudante do Imperial
Instituto dos Surdos-Mudos, localizado na
cidade do Rio de Janeiro. A obra foi produzida
por meio de litografia, técnica de gravura
muito utilizada no Brasil no século XIX.
Trazia como conteúdo 382 verbetes ilustrados,
classificados por meio de indexação semântica,
e estampas que apresentavam uma descrição
verbal correspondente aos verbetes listados,
com o intuito de auxiliar o leitor/aprendiz na
realização dos sinais propostos. De acordo com
Leite (apud GAMA, 1875, p. 2), Flausino, ao
visualizar a obra de um surdo francês chamado
Pierre Pélissier, que fora professor no Instituto
de Paris, “manifestou o interesse de reproduzir
as estampas para os falantes conversarem com
os surdos-mudos”. A obra de Pierre Pélissier
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 109-126, jan./mar. 2014.
foi determinante e funcionou como referência
para a elaboração do dicionário de Flausino.
Em estudo recente (SOFIATO, 2011), verificouse que a obra de Flausino é uma cópia direta
do original de Pélissier, trazendo o mesmo
léxico, traduzido da língua francesa para a
língua portuguesa. À época, tal dicionário
foi produzido com o auxílio de influentes
litógrafos, entre eles Eduard Rensburg, e com
a cessão da Typographia Universal dos irmãos
Eduard e Heinrich Laemmert para a realização
das litogravuras.
Após a elaboração do dicionário de
Flausino, outros surgiram ao longo da história
da educação dos surdos no Brasil. Entretanto,
observa-se um longo período de tempo
entre a primeira publicação e as demais que
foram ganhando visibilidade, o que se deve,
provavelmente, à inibição no uso de sinalização
na educação de surdos após o Congresso de
Milão, em 1880. Felipe (2000) refere que em
1969 foi publicado outro material sobre Libras,
o dicionário intitulado Linguagem das mãos, de
Eugênio Oates. Tal material, assim como o de
Flausino da Gama, sofreu influência de outra
língua de sinais – nesse caso, a americana –,
embora tenha sido elaborado no Brasil por meio
de uma pesquisa realizada pelo autor.
Esses dois livros foram, durante décadas, o
material didático utilizado pelos instrutores
surdos para ensinarem sua língua e, talvez
por essas obras trazerem uma seleção de
fotografias ou desenhos de sinais da LIBRAS
com explicações, a metodologia que vem
sendo utilizada para ensinar esta língua
tem sido somente a apresentação de sinais e
tradução dos mesmos. (FELIPE, 2000, p. 1)
Na
atualidade
existem
diversos
dicionários impressos de Libras distribuídos
pelo território nacional, elaborados basicamente
por meio do uso de imagens. Nosso interesse no
gênero de dicionários de sinais surgiu quando
verificamos as dificuldades de interpretação
das imagens de dicionários de Libras por
111
parte de alunos dos cursos de pedagogia e
Fonoaudiologia em disciplina de Libras. A
princípio, imaginávamos que a produção
manual de sinais a partir das imagens seria
fácil, mas vimos que pessoas com pouco contato
com surdos revelaram dificuldades em entender
as imagens e, consequentemente, em realizar
a configuração manual e os movimentos
previstos nos sinais.
Por se tratar do ensino de uma língua, a
adoção de dicionários na referida disciplina é uma
prática comum que tem por finalidade oferecer
um material de apoio ao professor e um material
de consulta ao aluno. Após a obrigatoriedade do
oferecimento da disciplina de Libras nos cursos
de formação de professores e de fonoaudiologia
por meio do Decreto-Lei nº 5.626 de 2005, a
busca por boas referências bibliográficas tem
sido uma constante e, ao mesmo tempo, algo
desafiador, tendo em vista a variedade de obras
presentes no mercado nacional e a forma de
constituição de algumas delas.
Para ouvintes que se utilizam dos
dicionários de línguas de sinais, os verbetes
podem servir como suporte de memória,
principalmente quando o professor fluente em
Libras, seja ele surdo ou ouvinte, apresenta
sinais novos em contexto de conversação. Os
alunos podem praticar os sinais aprendidos
e explorar o léxico novo. Entretanto, é
importante lembrar que os dicionários
contêm palavras isoladas e não combinadas
em construções frasais específicas da língua.
A tentativa de formar frases semelhantes ao
português com sinais de Libras gera equívocos
gramaticais, pois Libras e português são
línguas de estruturas diferentes.
Já no caso dos surdos, que podem
estar mais familiarizados com a interpretação
de sinais desenhados, os dicionários podem
funcionar para a aprendizagem de sinais novos
ou para tirar dúvidas, mas, ainda assim, a
consulta a um usuário com maior domínio pode
se fazer necessária para se confirmar a correta
realização dos movimentos ou o significado
dos verbetes escritos em português. Mesmo na
112
era da imagem digital, os dicionários de Libras
impressos ainda são bastante consultados, com
edições novas mais atualizadas e completas
em construção a cada ano, o que demonstra a
pertinência de analisá-los.
O presente trabalho objetiva, com base em
dicionários de Libras que servem de referência,
analisar e discutir a constituição histórica
do gênero no Brasil a partir da identificação
de características e fragilidades em relação à
iconografia e à lexicografia de tais obras, fatores
que podem interferir no ensino e no aprendizado
dos sinais nos cursos de graduação.
Para Turazzi (2009, p. 50), iconografia:
compreende tanto a(s) arte(s) e a técnica de
representação através da imagem, quanto
a própria documentação (um conjunto de
imagens) resultantes dessa atividade.
No presente estudo, faremos uso desse
termo para designar as representações visuais
encontradas nos dicionários de Libras. Já o
termo lexicografia aqui empregado se refere, de
acordo com Borba (2003, p. 15),
[...] à técnica de montagem de dicionários,
que se ocupa de critérios para a seleção de
nomenclaturas ou conjuntos de entradas,
de sistemas definitórios, de estruturas de
verbetes, de critérios para remissões, para
registro de variantes, etc.
Não será realizada uma comparação de
itens lexicais entre os dicionários, nem uma
análise da pertinência das escolhas; o léxico é
indicado para situar a natureza de cada obra.
Método
Ghedin e Franco (2008, p. 26) pontuam
que o método, numa perspectiva filosóficoepistemológica, “propõe os fundamentos para
o exercício de uma investigação”. Do ponto de
vista da abordagem do problema, este estudo é
qualitativo e caracteriza-se como documental,
Cássia Geciauskas SOFIATO; Lucia Helena REILY. Dicionarização da língua brasileira de sinais: estudo comparativo...
sendo o documento aqui entendido em seu
sentido mais amplo (KOSSOY, 2012), transmitido
em forma de texto e também de imagem.
A fim de selecionar as obras para a
análise, foram levantados com quatro docentes
de três universidades (uma pública e duas
privadas da cidade de Campinas) os dicionários
de referência utilizados nos últimos cinco
anos na disciplina de Libras nos cursos de
pedagogia e de fonoaudiologia. Com base nas
indicações dos docentes, selecionaram-se as
seguintes obras: Linguagem das mãos (1969);
Livro ilustrado de língua brasileira de sinais:
desvendando a comunicação usada pelas
pessoas com surdez (2009); Comunicando com
as mãos (1987); e Dicionário enciclopédico
ilustrado trilíngue: língua de sinais brasileira
(2001). A obra Iconographia dos signaes dos
surdos-mudos (1875) foi incluída como um
parâmetro histórico para verificarmos uma
possível constituição de tradição iconográfica,
já que 10% dos verbetes nela presentes ainda
compõem o léxico da Libras (SOFIATO, 2011).
Alguns docentes mencionaram que,
a partir da publicação do Dicionário enciclopédico ilustrado trilíngue, dicionários como
Linguagem de sinais, publicado pela Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, deixaram de ser utilizados como recurso didático. Outra obra não analisada foi o Dicionário
língua de sinais: a imagem do pensamento,
devido ao fato de apresentar outra lógica de
indexação, qual seja: por configuração de
mão, destoando marcadamente dos dicionários selecionados.
Para nortear as análises, foram
estabelecidos os seguintes eixos:
a) Informações gerais: ano de publicação,
autor/ilustrador/fotógrafo, local de publicação,
quantidade de sinais apresentados, forma de
indexação, léxico, textos introdutórios e textos
complementares.
b) Tratamento dado à informação visual:
sistema de representação, características da
figura-referência (gênero, aspecto e destaque às
expressões faciais) e uso de recursos gráficos.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 109-126, jan./mar. 2014.
Com base nos dados apresentados, partiuse para as análises em busca de um entendimento
do processo de constituição de uma iconografia
para a língua de sinais brasileira por meio dos
trabalhos produzidos após a primeira obra no
país, em 1875, e de seu impacto no processo de
ensino e aprendizagem da Libras.
A partir do delineamento de categorias
formadas por núcleos de sentido, a intenção foi
estabelecer as relações entre os dados apresentados
e os referenciais teóricos estabelecidos para a
pesquisa. Andrade (1999, p. 136) refere que
[...] os dados não apresentam importância
em si mesmos; a relevância está no fato
de, através dos dados, chegar-se às
conclusões, procedendo-se a avaliações
e generalizações; inferências de relações
causais que conduzem a interpretação.
Dados coletados nas obras
Obra 1: Iconographia dos signaes dos surdos-mudos
• Ano de publicação: 1875
• Autor e ilustrador: Flausino José da Costa Gama
• Local de publicação: Rio de Janeiro
(Tipographia Universal de E. & H. Laemmert)
• Quantidade de sinais apresentados: 382
• Forma de indexação: Semântica
• Léxico: Alfabeto manual dos surdos-mudos
(datilologia), alimentos e objetos de mesa,
bebidas e objetos de mesa, objetos para
escrever, objetos de aula, individualidade e
profissões, animais, pássaros, peixes e insetos,
adjetivos, pronomes e os três tempos absolutos
do indicativo, verbos, advérbios, preposições e
conjunções, interjeições e interrogações.
• Textos introdutórios: A obra de Flausino da
Gama apresenta um breve prefácio com os
objetivos pelos quais foi elaborada. O prefácio
foi escrito por Tobias Leite, diretor do Instituto
Imperial dos Surdos-Mudos na época em que
Flausino da Gama foi aluno.
• Textos complementares: A obra de Flausino
da Gama, após a apresentação de cada estampa,
113
contém uma página com explicações sobre a
forma de realização dos sinais apresentados.
Essas explicações são numeradas de acordo
com os respectivos sinais, descrevendo-os
e auxiliando o leitor no entendimento e na
produção manual dos mesmos.
• Sistema de representação: Desenho linear em
litografia (ocasionalmente de corpo inteiro, de
acordo com a especificidade do sinal, e destacando
algumas partes do corpo, tais como: cabeça,
tronco, mãos, dedos). Apresenta a representação
pictórica da forma de realização do sinal.
• Características da figura-referência:
Gênero: Masculino. Não há presença de figura
feminina na obra.
Aspecto: Não há um padrão. A figura-referência
se apresenta jovial em determinados sinais
e mais velha em outros. Em alguns, ainda,
apresenta traços de uma criança.
Destaque às expressões faciais: Há uma
tentativa de representar expressividade nos rostos
correspondendo ao significado do sinal.
Uso de recursos gráficos: Utiliza setas, pontilhados,
zigue-zagues, linhas retas e linhas curvas.
Figura 1 – Algum
• Quantidade de sinais apresentados: 1.258
• Forma de indexação: Semântica
• Léxico: Alfabeto manual, verbos, substantivos,
cores, homem e família, alimentos e bebidas,
animais, o mundo e a natureza, religião, o tempo, regiões do mundo (alguns países, nacionalidade), estados brasileiros (territórios federais e
capitais), vestuário e acessórios, esportes e jogos
recreativos, antônimos, e números.
• Textos introdutórios: A obra de Eugênio Oates
apresenta um prefácio com algumas orientações
para o leitor. A apresentação foi escrita pelo
Padre Vicente de Paula P. Burnier.
• Textos complementares: Após a apresentação
de cada verbete, o material de Oates inclui uma
legenda que tem por finalidade explicar a forma
de realização do sinal.
• Sistema de representação: Por meio da
fotografia, apresenta a representação da forma
do sinal (composição quirêmica) e dá destaque
a algumas partes do corpo – tais como cabeça,
tronco, mãos e dedos – quando estas são
relevantes para a produção do sinal em questão.
• Características da figura-referência:
Gênero: Masculino. Não há presença de figura
feminina na obra.
Aspecto: Há um padrão. A figura-referência é
a mesma para todos os sinais. Um senhor de
meia-idade vestido com um terno preto.
Destaque às expressões faciais: Não há tentativa
aparente de representar expressividade no rosto
correspondendo ao significado do sinal.
Uso de recursos gráficos: Utiliza setas, pontilhados,
zigue-zagues, linhas retas e linhas curvas.
Figura 2 – Cochilar
Fonte: Gama ( 875).
Obra 2: Linguagem das mãos
• Ano de publicação: 1969
• Autor: Eugênio Oates
• Fotógrafo: Esdras Batista
• Local de publicação: Aparecida do Norte (SP)
114
Fonte: Oates (1969)
Cássia Geciauskas SOFIATO; Lucia Helena REILY. Dicionarização da língua brasileira de sinais: estudo comparativo...
Obra 3: Livro ilustrado de língua brasileira de sinais:
desvendando a comunicação usada pelas pessoas com
surdez (volume 1)
• Ano de publicação: 2009
• Autor e ilustrador: Márcia Honora e Mary
Lopes Esteves Frizanco. Revisão especializada:
Flaviana Borges de Silveira Saruta (surda)
• Local de publicação: São Paulo
• Quantidade de sinais apresentados: 1.247
• Forma de indexação: Semântica
• Léxico: Alfabeto manual, números, calendário,
identidade,
pessoas/família,
documentos,
pronomes, lugares, natureza, cores, escola,
casa, alimentos, bebidas, vestuário/objetos
pessoais, profissões, animais, corpo humano,
higiene, saúde, meios de transporte, meios de
comunicação, lazer/esportes, instrumentos
musicais, verbos, negativos, adjetivos/advérbios,
localidades, países/continentes.
• Textos introdutórios: Essa obra apresenta
vários textos introdutórios. Inicia-se com uma
apresentação que aborda os conteúdos contidos
na obra. A seguir, há um texto que apresenta
o conceito de surdez e, sumariamente, as
abordagens educacionais da surdez (Oralismo,
Comunicação Total e Bilinguismo); outro
texto destaca a história da educação dos
surdos no mundo com base nos períodos
históricos (Antiguidade, Idade Moderna e Idade
Contemporânea, especificamente o século XX).
Finaliza esse tópico com a educação de surdos
no Brasil. Por fim, apresenta as Leis em vigência
no Brasil relacionadas à surdez (com ênfase no
Decreto-Lei nº 5.626 de 22 de dezembro de
2005) e encerra com a conceituação de língua
de sinais e língua brasileira de sinais.
• Textos complementares: Após a apresentação
de cada verbete, há a descrição da forma de
realização de cada sinal, tomando-se como
base os parâmetros que constituem as línguas
de sinais, a saber: configuração de mãos, ponto
de articulação, movimento e orientação.
• Sistema de representação: Desenho linear.
Apresenta a representação pictórica da forma
do sinal (composição quirêmica) e, ao lado,
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 109-126, jan./mar. 2014.
a representação pictórica do significado do
sinal (desenho naturalista). É feito destaque a
algumas partes do corpo da figura-referência,
tais como cabeça, tronco, mãos e dedos.
• Características da figura-referência:
Gênero: Masculino e feminino, mas há
predominância da figura masculina.
Aspecto: Observamos que há um padrão.
A figura-referência apresenta-se jovial em
alguns sinais e mais velha em outros (homens
e mulheres).
Destaque às expressões faciais: Há uma ênfase
maior na expressão facial das figuras-referência
cujo sinal necessita mais da expressão facial.
Uso de recursos gráficos: Utiliza setas, pontilhados,
zigue-zagues, linhas retas e linhas curvas.
Figura 3 – Bebidas
Fonte: Honora; Frizanco (2009)
Obra 4: Comunicando com as mãos
• Ano de publicação: 1987
• Autor e ilustrador: Não há menção de autor.
A ilustradora é Judy Ensminger.
• Local de publicação: Piracicaba (SP)
• Quantidade de sinais apresentados: 574
• Forma de indexação: Há evidências de indexação
semântica, mas a obra não possui subdivisões.
• Léxico: Alfabeto manual, números, família,
objetos de casa, bebidas, frutas, alimentos, verbos,
115
natureza, adjetivos, meios de transporte, animais,
cores, pronomes pessoais, pronomes possessivos,
profissões, locais, substantivos comuns, pronomes
interrogativos, calendário e religião.
• Textos introdutórios: O material apresenta um
prefácio que faz comentários sobre a surdez e
dá algumas orientações sobre a aprendizagem
da criança surda; também contém um texto
denominado Instruções, que tem por finalidade
orientar os pais de crianças surdas, escrito por
John E. Peterson.
• Textos complementares: Não apresenta.
• Sistema de representação: Desenho linear.
Apresenta a representação pictórica referente ao
significado do sinal e também a representação
pictórica da forma do sinal (composição
quirêmica). O ilustrador destaca algumas partes
do corpo – tais como cabeça, tronco, mãos e
dedos – quando estas são relevantes para a
produção do sinal.
• Características da figura-referência:
Gênero: Em muitos sinais, o gênero é
indefinido, pois o rosto da figura-referência
não aparece de forma completa. Em outros,
parece ser masculino.
Aspecto: Nesse material, segue-se um padrão.
Algumas vezes a figura-referência aparece com
o rosto completo e outras vezes não, havendo
uma ênfase maior a outras partes do corpo.
Destaque às expressões faciais: Não há uma
preocupação com esse aspecto, pois a figura-referência aparece muitas vezes sem o rosto
e sem a cabeça.
Uso de recursos gráficos: Utiliza setas, pontilhados,
zigue-zagues, linhas retas e linhas curvas.
Figura 4 – Avisar
Fonte: Esminger (1987)
116
Obra 5: Dicionário enciclopédico ilustrado trilíngue:
língua de sinais brasileira (volumes I e II)
• Ano de publicação: 2001
• Autores: Fernando César Capovilla e Walkíria
Duarte Raphael
• Ilustradora: Silvana Marques
• Local de publicação: São Paulo
• Quantidade de sinais apresentados: 9.500
• Forma de indexação: A indexação é realizada
por ordem alfabética.
• Léxico: Alfabeto manual, numerais, verbos,
adjetivos, substantivos (comuns, abstratos e
concretos), advérbios, pronomes (pessoais,
possessivos e interrogativos).
• Textos introdutórios: Destacam-se como
elementos pré-textuais: o sumário, os
agradecimentos, a dedicatória, a apresentação
feita por Oliver Sacks, a apresentação
realizada pelo presidente da Federação
Nacional de Educação e Integração dos
Surdos (Antônio Campos de Abreu) e por seu
coordenador nacional de cursos de Libras
(Eduardo Sabanovaite). Além disso, consta
uma apresentação feita por Valerie Sutton. Em
seguida, há o resumo, o abstract e um prefácio
escrito pelos autores, que contempla os
aspectos da obra em questão; na sequência, a
apresentação do léxico do dicionário (volume
I: A-L; volume II: M-Z).
• Textos complementares: Ao final da obra, os
autores apresentam Capítulos de indexação, em
que constam o Thesaurus: English-Portuguese
(dicionário de inglês-português) e um índice
semântico dos sinais de Libras; em seguida,
Capítulos de educação em surdez e Capítulos de
tecnologia em surdez.
• Sistema de representação: Desenho linear.
Apresenta a representação pictórica do
significado do sinal e a representação pictórica
da forma do sinal (composição quirêmica). Além
disso, inclui a escrita visual direta da forma do
sinal (sistema Sign Writing).
• Características da figura-referência:
Gênero: Masculino.
Aspecto: A figura-referência é sempre a mesma.
Cássia Geciauskas SOFIATO; Lucia Helena REILY. Dicionarização da língua brasileira de sinais: estudo comparativo...
Figura 5 – Presunto
Fonte: Capovilla; Raphael (2001).
Destaque às expressões faciais: Há uma
tentativa de evidenciar a expressão facial que
acompanha alguns sinais.
Uso de recursos gráficos: Faz uso de setas,
pontilhados, zigue-zagues, linhas retas, linhas
curvas e outros símbolos gráficos próprios do
Sign Writing.
Análise e discussão
Autoria das obras e ilustrações
Nessa categoria, destaca-se a menção
feita aos ilustradores ou fotógrafos responsáveis
pelas obras analisadas, tendo em vista que
os dicionários de Libras se diferenciam dos
dicionários de línguas orais por serem quase
em sua totalidade ilustrados. Quando uma
obra sobre a língua de sinais vai ser elaborada,
uma das prioridades a ser pensada pelo autor é
a escolha de um profissional competente que
realize a ilustração do material, respeitando
todas as características intrínsecas a essa língua
espaço-visual. A escolha precisa ser criteriosa,
pois, além da liberdade poética conferida a cada
um durante a preparação de uma obra, tem-se,
nesse caso, que levar em consideração a função
do trabalho, o desenho de uma informação
estabelecida por uma convenção. Ao nos
depararmos com tal necessidade, percebemos
que não se trata de uma tarefa simples, como
alguns autores parecem acreditar.
Quando nos referimos às imagens que
têm por finalidade a instrução, ou seja, a
explicação para o uso dirigido de algo, notamos
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 109-126, jan./mar. 2014.
a necessidade de uma reprodução que seja o
mais real possível, de forma a facilitar a leitura
e a apreensão da mensagem. Nesse sentido, a
imagem instrucional e a imagem publicitária
têm algo em comum: uma certeza intencional;
portanto, elas devem ser essencialmente
comunicativas e destinadas à leitura pública
(JOLY, 1996).
Por meio do inventário realizado,
pudemos ver que, em algumas obras, o nome
do ilustrador aparece, mas nem sempre em
posição de destaque; entretanto, a presença de
um ilustrador é condição sine qua non para a
elaboração de uma obra dessa natureza. Sem
a participação do referido profissional não é
possível fazer esse tipo de trabalho.
Na obra de Gama (1875), quem assume
a autoria e a ilustração é o surdo Flausino da
Gama. Nas obras de Oates (1969), Honora e
Frizanco (2009) e Capovilla e Raphael (2001),
a autoria é assumida por pessoas ouvintes;
entretanto, na obra de Oates (1969), temos a
menção ao nome do fotógrafo responsável
pelas imagens no interior da obra. Na obra
de Honora e Frizanco (2009), o nome do
ilustrador é citado, porém não na capa,
onde há menção ao nome de uma revisora
especializada, identificada como surda. A obra
de Esminger (1987) não apresenta o nome do
autor, somente o do ilustrador do material. No
dicionário de Capovilla e Raphael (2001), os
nomes dos autores estão presentes na capa e o
da ilustradora encontra-se no interior da obra.
Além disso, há menção a nomes de surdos que
participaram da elaboração do material.
117
Pelo que pudemos observar, nem sempre o
nome do ilustrador do material aparece na capa
juntamente com o do autor. Entretanto, também
verificamos que há a participação de surdos em
três das obras analisadas: em uma, na qualidade de
autor e ilustrador; nas outras, como participantes
da elaboração das obras. Em se tratando de
obras de línguas de sinais, a presença de surdos
na condição de revisores ou autores parece ser
interessante em razão de pelo menos dois aspectos:
primeiro, porque a língua de sinais é considerada
língua natural da pessoa surda; segundo, como
consequência do primeiro, por poderem avaliar
com maior legitimidade alguns níveis linguísticos
que compõem tal língua, como o fonológico.
O nível fonológico da Libras compreende os
seguintes parâmetros, de acordo com Fernandes
(2003): configuração das mãos (forma que a mão
assume ao realizar o sinal); localização do sinal;
movimento das mãos e orientação da(s) palma(s)
da(s) mão(s). Ao ser representado pictoricamente,
esse parâmetro precisa ser o mais preciso possível
para garantir a boa compreensão do sinal. Dessa
forma, presume-se que um nativo na língua tenha
melhores condições de fazê-lo do que um ouvinte
que aprende Libras.
Capovilla e Raphael (2001, p. 30), ao se
referirem à elaboração de um dicionário de língua
de sinais, destacam que não são os ouvintes
[...] os conquistadores que dominam e
desvendam os mistérios do sinal dos
surdos; mas são eles, os Surdos, que [...]
nos concedem a revelação dos segredos
mais íntimos do seu Sinal.
Dessa forma, reiteramos que a participação
do surdo é fundamental. Todavia, com base nas
obras analisadas, percebemos que nem sempre
isso acontece.
Apresentação do alfabeto manual
(datilologia)
Durante a análise, observou-se que o
primeiro conteúdo apresentado nos dicionários
118
selecionados é o alfabeto manual ou datilologia.
Quando se adota um dicionário como apoio
para o trabalho pedagógico, o alfabeto manual
constitui-se como uma espécie de introito para
os estudos sobre a língua de sinais, pois é o
primeiro conteúdo a ser apresentado. Gesser
(2009) define o alfabeto manual como um código
que representa as letras alfabéticas. Geralmente
tal alfabeto é utilizado para soletração de nomes
próprios de pessoas, lugares e também para os
casos em que ocorre a falta de determinado sinal.
Na língua brasileira de sinais, existem 27 formatos
de mãos (considerando-se o ç) que compõem o
alfabeto manual, cada um representando uma
letra do alfabeto da língua portuguesa. O uso da
soletração supõe o letramento, pois, se o soletrador
não for alfabetizado, não conseguirá entender o
significado de tal código e fazer uso do mesmo.
Das cinco obras estudadas, quatro apresentam o alfabeto manual representado por
meio de desenho linear de contorno; apenas
na obra de Oates (1969) o alfabeto foi fotografado. Verifica-se nas representações, tanto
nas desenhadas quanto nas fotografadas, que
cada ilustrador ou fotógrafo faz uma escolha
em relação à posição das mãos ao representá-las. Constatamos que a representação correta
das configurações de mãos constitui-se um problema, pois há várias maneiras de representar
uma mesma configuração, isto é, a posição de
determinada mão não é a mesma, dependendo
do ilustrador, de sua posição diante do sinal e
do material gráfico escolhido para o desenho.
Alguns optam por desenhar ou fotografar a
mão vista conforme a posição que ela assume
ao ser sinalizada; outros já preferem desenhá-la
sob outro ângulo de visão que facilite o aprendizado do sinal. Por vezes, essas escolhas constituem um impasse para o aprendiz de Libras
se não houver a presença de um mediador que
possa esclarecer qual é a posição correta para a
produção manual do sinal. Esse aspecto denota
que a representação das configurações de mãos
correspondentes ao alfabeto manual não é fácil
de ser produzida, necessitando-se de um ilustrador qualificado que seja capaz de expressar
Cássia Geciauskas SOFIATO; Lucia Helena REILY. Dicionarização da língua brasileira de sinais: estudo comparativo...
os detalhes que compõem as mãos de acordo
com a convenção estabelecida para esse alfabeto específico.
A fim de exemplificar tal ocorrência,
mencionamos a dificuldade de representação
da posição de dedos para algumas letras do
alfabeto manual. Há ilustradores que desenham
determinadas letras com os dedos mais abertos,
enquanto outros representam as mesmas letras
com os dedos mais fechados ou em posições
diferentes (palma da mão para frente ou de perfil).
Isso ocorre principalmente na representação das
letras F, H, Q, e T. Como resultado, o leitor não
sabe ao certo qual é a maneira correta de realizar
tais sinais. Sem a presença de um mediador
fluente em Libras, fica difícil a interpretação
correta das imagens produzidas.
to semântico. Cada grupo semântico escolhido pelo autor do dicionário é apresentado por
meio de verbetes, que não apresentam acepções, usos, derivações e classificação gramatical, como ocorre comumente nos dicionários
de línguas orais. Somente no dicionário de
Capovilla e Raphael (2001) a indexação obedece ao critério de ordem alfabética e, nesse
caso, tem-se a apresentação da acepção de
cada verbete. Além disso, nessa mesma obra,
o verbete é também apresentado em inglês.
Introduz-se ainda o Sign Writing, que é um
sistema de escrita visual direta utilizado para
ler e escrever os sinais de Libras.
Os referidos autores propõem uma
nomenclatura específica para a descrição das
diferentes formas de apresentação dos sinais:
Forma de indexação e
composição dos verbetes
1. A representação pictórica do
significado, que retrata aquilo a que o sinal
se refere; 2. A Representação pictórica da
forma do sinal, que retrata a composição
quirêmica dos sinais [...]; 6. A descrição
da forma do sinal, que descreve, de modo
detalhado e sistemático, a articulação
das mãos e dos braços, a orientação das
palmas, o tipo, a direção, a freqüência e a
amplitude do movimento envolvido, e a
expressão facial associada. (CAPOVILLA;
RAPHAEL, 2001, p. 40)
Buscato, Garcia e Pelachin (1998) acreditam que é comum as pessoas pensarem num dicionário como uma lista de palavras e suas acepções. Entretanto, a partir de informações sobre
como um dicionário se organiza, os autores mostram que é possível consultá-lo de forma mais
eficaz. A rigor, nos dicionários de língua portuguesa, a indexação é feita por ordem alfabética.
A indexação das obras de Gama (1875),
Oates (1969), Honora e Frizanco (2009) e
Esminger (1987) obedece a outro critério. Por
meio do estudo, percebe-se que o critério para
a indexação das obras citadas é o agrupamen-
Para a compreensão da forma de
indexação de cada dicionário analisado,
apresenta-se o quadro a seguir:
Quadro 1 – Indexação
Características
Verbete em
português
Verbete em
inglês
Representação
pictórica do sinal
Representação pictórica
da forma do sinal
Descrição da forma do
sinal
Obra 1
X
-
-
X
X
Obra 2
X
-
-
X
X
Obra 3
X
-
X
X
X
Obra 4
X
-
X
X
-
Obra 5
X
X
X
X
X
Fonte: GAMA (1875); OATES (1969); HONORA; FRIZANCO (2009); ENSMINGER (1987); CAPOVILLA; RAPHAEL (2001).
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 109-126, jan./mar. 2014.
119
Nota-se que a obra de Capovilla e
Raphael (2001) contempla todos os aspectos listados e objetiva apresentar a Libras de forma
bastante variada. A obra de Honora e Frizanco
(2009) segue a mesma tendência, porém de forma mais simplificada se a compararmos com a
obra anterior. Constata-se que todas as obras
estudadas apresentam a representação pictórica
da forma do sinal. Tal fato é, de certa forma,
esperado em se tratando de uma língua de modalidade espaço-visual.
A obra de Gama (1875) não apresenta a
representação pictórica do significado do sinal.
Ao que parece, essa forma de representação,
numa tentativa de tornar o significado do sinal
mais claro para o leitor não letrado, aparece nos
dicionários mais tardiamente. Entretanto, isso
não significa que a forma de representação do
significado do sinal, realizada por meio de desenhos, consiga expressar exatamente aquilo a
que se refere o sinal. No exemplo que se segue
(figura 6), podemos verificar a dificuldade de
entender o sentido que a imagem traz segundo a forma apresentada pelo ilustrador. Haveria
múltiplas maneiras de interpretar as imagens do
urso diante de um menino com braços erguidos.
Figura 6 – Menino diante de urso.
Fonte: Esminger (1987)
Vejamos agora, por meio do emprego da
hibridização dos recursos, como interpretamos
o sentido:
Figura 7 – Coragem
Fonte: (ESMINGER, 1987)
Nesse caso, a hibridização tenta facilitar
a compreensão, representando a ideia abstrata
da coragem por meio de um contexto narrativo
em que uma criança enfrenta com coragem um
animal muito maior do que ela.
As obras analisadas, em sua maioria,
também apresentam a descrição da forma do
sinal. Esse aspecto aparece para complementar
a informação, auxiliando o leitor em seus
120
esforços de interpretar as instruções contidas
nas imagens de cada verbete. A associação
da imagem ao texto explicando a forma de
realização do sinal é vista como uma espécie
de solução interpretativa nesse tipo de material
por parte de quem o organiza. O leitor que teve
acesso à linguagem escrita pode se beneficiar
com tal recurso, contudo não terá a mesma
possibilidade o leitor não alfabetizado.
Cássia Geciauskas SOFIATO; Lucia Helena REILY. Dicionarização da língua brasileira de sinais: estudo comparativo...
De qualquer forma, percebemos que a
hibridização de recursos visuais e textuais se
faz presente em todas as obras analisadas.
A constituição das imagens
e o uso de recursos gráficos
específicos
As imagens das obras de Gama (1875),
Honora e Frizanco (2009), Esminger (1987) e
Capovilla e Raphael (2001) constituem-se por
desenhos lineares. A obra de Oates (1969, p. 27)
é a única que apresenta imagens fotografadas.
Segundo Reily (2004), a imagem visual “é um
veículo sígnico e dessa forma, como instrumento,
a mesma pode veicular conhecimento de alta
ou baixa qualidade”. Ressaltamos o papel
do ilustrador de dicionários ou manuais de
língua de sinais, material cuja característica
é instrucional. É de sua responsabilidade
promover e facilitar o aprendizado por meio da
elaboração de figuras instrucionais. A rigor, os
dicionários contemplados neste estudo elegem
uma figura-referência, que é uma espécie
de modelo para a demonstração da forma de
realização dos sinais que compõem a obra.
Essas figuras-referência, em sua maioria, são
do sexo masculino. Somente na obra de Honora
e Frizanco (2009) há também a figura feminina,
que aparece alternada com a masculina.
Observa-se nas obras analisadas o uso
abundante de recursos gráficos. Isso se justifica,
no caso da Libras, pelo fato de que quase todos
os sinais são compostos por movimentos
iniciais ou contínuos. A representação gráfica
do movimento é um grande desafio para os
ilustradores e fotógrafos dos materiais em
questão. Gombrich (1999) já dizia que essa tarefa
é dificultada porque o desenhista necessita
transformar os fluxos de movimentos presentes
numa sequência de posições fixas. Quando o
material é produzido por meio da fotografia,
existe a dificuldade de se captar o movimento
realizado pelas mãos e de se demonstrar o efeito
de sua continuidade nas imagens, pois estas
ficam congeladas.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 109-126, jan./mar. 2014.
Passar do plano tridimensional para o
plano bidimensional exige o uso de técnicas
próprias da área do desenho e da fotografia.
Nesse caso, as soluções encontradas pelos
ilustradores ou fotógrafos de materiais de
Libras estão relacionadas ao uso de recursos
gráficos que, acoplados à imagem, teriam a
finalidade de elucidar a direção e a qualidade
do movimento. Assim, setas são incluídas em
muitas ilustrações e também fazem o papel de
vetores, com a função de indicar a direção que
se deve obedecer para se realizar corretamente
o sinal. Existem também outros recursos que
são incorporados à imagem com a finalidade de
demonstrar a movimentação, tais como curvinhas,
zigue-zagues, círculos e desenhos de trajetória de
movimento com o uso de pontilhados. Por vezes,
o recurso do pontilhado pretende demonstrar qual
é o ponto inicial do movimento a ser realizado
para a produção do sinal e assim sucessivamente,
numa sequência de imagens.
O uso desses recursos gráficos não
garante a eficácia durante a tentativa de
interpretação e realização dos sinais manuais
por parte do aprendiz em Libras, pois, no caso
dos sinais, o repertório do leitor em relação
à leitura dos códigos visuais, assim como
sua interpretação individual, conta muito no
momento de realização de um sinal a partir de
um modelo gráfico.
Outro parâmetro que foi incorporado à
língua brasileira de sinais é a expressão facial
(movimentos de cabeça, olhos, boca, sobrancelha
etc.), segundo Gesser (2009). A expressão facial
e também a corporal são elementos gramaticais
que compõem a estrutura dessa língua e que
podem funcionar como elementos lexicais,
modificando o significado do sinal de acordo
com a necessidade. Nas obras de Gama (1875),
Honora e Frizanco (2009), Esminger (1987) e
Capovilla e Raphael (2001), a figura-referência,
por meio do uso da expressão facial, tenta
enfatizar o significado correspondente a cada
sinal apresentado. Entretanto, na obra de Oates
(1969), percebe-se que a figura-referência não
esboça as expressões faciais que acompanham
121
os sinais, o que dificulta a interpretação e a
tentativa de realização do sinal por parte de um
aprendiz. Ao que parece, alguns ilustradores
ou fotógrafos contratados para a elaboração
de obras sobre língua de sinais desconhecem
a importância da expressão facial e corporal
durante a utilização da língua. Esse aspecto é
muito relevante e está presente em qualquer
situação comunicativa. Podemos dizer que
quando os usuários da língua de sinais, o
surdo ou o ouvinte, estão se comunicando, a
compreensão da mensagem também depende da
composição cênica presente. As mãos sinalizam
e o corpo, por intermédio da expressão
corporal e facial, confirma o sentido atribuído
ao sinal efetuado. Assim sendo, salientamos
a necessidade de o ilustrador ou fotógrafo
conhecer os parâmetros que compõem a língua
em questão para que possa representá-la de
forma adequada.
Inserção de textos introdutórios e
outros nos dicionários de Libras
As obras analisadas contêm, na maioria
das vezes, textos introdutórios que versam
sobre assuntos relacionados à surdez, mas a
natureza desses textos varia de acordo com
a obra. Nas obras de Gama (1875), Oates
(1969) e Esminger (1987), existem prefácios
que têm por finalidade apresentá-las e dar
pistas para facilitar a comunicação entre
surdos e ouvintes, pais ouvintes e filhos
surdos. Também incluem termos que não são
mais utilizados na área da surdez, tais como
mímica, surdo-mudo, pessoas infelizes, gestos,
linguagem mímica, entre outros. Isso até se
justifica se levarmos em consideração a época
em que foram criadas. Por meio de muitos
estudos e investimento de pesquisadores na
área da surdez, hoje se considera que esses
são termos inapropriados para a área, ainda
que utilizados no senso comum. Com base em
Gesser (2009, p. 21), quando as pessoas fazem
uso de termos como esses, está implícito um
preconceito associado à
122
[...] ideia que muitos ouvintes têm sobre
os surdos: uma visão embasada na
anormalidade, segundo a qual o máximo
que o surdo consegue expressar é a forma
pantomímica indecifrável e somente
compreensível entre eles. Não à toa, as
nomeações pejorativas anormal, deficiente,
débil mental, mudo, surdo-mudo, mudinho
têm sido equivocadamente atribuídas a
esses indivíduos.
As obras de Honora e Frizanco (2009)
e Capovilla e Raphael (2001) apresentam
um diferencial nesse sentido. Os textos de
apresentação, além de trazerem a terminologia
correta para se referirem aos surdos e a aspectos
que concernem à sua língua, examinam variados
assuntos. Na obra de Honora e Frizanco (2009),
existe uma menção à história da educação dos
surdos em nível mundial e nacional; as autoras
apresentam abordagens educacionais existentes
na área da surdez e descrevem algumas políticas
públicas relevantes na área. Ao final, oferecem
uma relação de sites, filmes e livros que tratam
da questão da surdez.
A obra de Capovilla e Raphael (2001),
além do prefácio e das apresentações feitas por
profissionais da área, tem dois capítulos com a
finalidade de auxiliar o uso do dicionário. Ao
final, inclui capítulos sobre educação em surdez
e tecnologia em surdez.
É interessante observar que todas as
obras analisadas contêm textos introdutórios
e que tal aspecto se perpetuou e foi se
aprimorando se levarmos em consideração a
primeira obra produzida no Brasil. Surge, então,
o questionamento: por que as obras destinadas
ao ensino da Libras apresentam esses textos e
qual seria a finalidade deles? Ao que parece,
além da pretensa intenção de ensinar a língua
brasileira de sinais, os autores assumem que
existe a necessidade de instruir o leitor a
respeito da história da educação de surdos e
das características da língua considerada alvo,
o que sugere que a função dos dicionários está
ligada à intenção de ensinar e divulgar a Libras.
Cássia Geciauskas SOFIATO; Lucia Helena REILY. Dicionarização da língua brasileira de sinais: estudo comparativo...
Ainda com relação aos textos
introdutórios, gostaríamos de fazer um paralelo
com outro gênero de material instrucional.
Tomemos como base alguns livros destinados
à prática do origami, técnica japonesa que,
segundo Jackson e A’Court (1996), consiste na
arte de dobrar papel. Muitos trazem instruções
que explicam como dobrar o papel das mais
variadas formas.
Jackson e A’Court (1996) explicam os
diversos símbolos utilizados nessa técnica e
acrescentam que eles podem ser encontrados
na maioria dos livros de origami, não
importando a língua em que estejam escritos.
Tal padronização pretende tornar universais os
procedimentos para a realização da técnica para
que os entusiastas de todo o mundo possam
fazer dobraduras, usando qualquer livro com
seus mais variados modelos e sequências.
Como pudemos ver, toda a exploração
dos procedimentos para o uso do material
ocorre antes de o leitor manusear a obra e tem
por finalidade oferecer a maior autonomia
possível a qualquer pessoa que queira fazer
uma dobradura, tarefa nem sempre muito fácil,
a depender da escolha do objeto ou tema.
Em relação à língua brasileira de sinais,
percebemos que a inclusão de legendas para
interpretação de marcas gráficas – como
pontilhados e flechas – e de marcas onduladas
não é valorizada, excetuando-se a obra de
Capovilla e Raphael (2001), que apresenta
o sistema Sign Writing. Não encontramos
um glossário com explicações referentes ao
significado dos recursos gráficos e ao seu uso
nas obras em questão, como acontece nas obras
destinadas ao ensino do origami, que também
são produzidas por meio de imagens. Percebemos
uma defasagem na apresentação ou introdução
dos materiais da língua brasileira de sinais,
pois não há uma padronização de indicadores
gráficos que poderiam auxiliar na interpretação
da intensidade de movimentos dos sinais e nas
posições iniciais e finais durante sua realização.
A partir da análise dos trabalhos
desenvolvidos ao longo do tempo, percebe-se
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 109-126, jan./mar. 2014.
que existe a tendência de deixar os dicionários de
Libras cada vez mais completos, com a inserção
de textos como os descritos anteriormente. Por
se tratar de materiais com objetivos instrucionais
e pelo fato de a Libras ser uma língua que se
apresenta em forma de outra modalidade se
comparada às línguas orais, a inserção desses
textos tem uma finalidade didática aparente:
instruir o leitor a respeito das peculiaridades
linguísticas e da complexidade da língua em
questão para além de um mero léxico. Capovilla e
Raphael (2001, p. 31) pontuam que “dicionaristas
têm uma nobre e espinhosa tarefa”. Em se
tratando de Libras, o desafio aumenta devido à
forma de constituição dessa língua e aos aspectos
já apresentados.
Considerações finais
A adoção de dicionários de Libras ocorre
com a finalidade didática em cursos de formação
de professores e de fonoaudiologia, em que pesem
as dificuldades que possam surgir apresentadas
ao longo deste estudo em relação à leitura e à
produção dos sinais por parte dos aprendizes de
tal língua. Apesar de já contarmos com outras
formas de apresentação de dicionários, tais como
os virtuais, parece que a preferência ainda recai
sobre os impressos pelo fato de serem mais fáceis
para consultar e transportar.
O uso de tais obras justifica-se por serem
um apoio para a construção de uma nova rede de
conhecimentos linguísticos, como afirma Coroa
(2011), embora, no caso da Libras, apresentem
apenas o léxico em forma de representação
pictórica na maioria dos casos observados.
Neste estudo, buscou-se demonstrar
a constituição histórica do gênero e revelar
quais são as fragilidades e os desafios que se
colocam para os aprendizes de Libras no que se
refere ao aprendizado dos sinais apresentados
nos dicionários e, por outro lado, demonstrar
as soluções encontradas e as não encontradas
por autores e ilustradores para darem conta da
imagem instrucional relacionada à língua de
sinais. As questões explicitadas ao longo do
123
trabalho podem servir de parâmetros para a
escolha e a avaliação dos melhores dicionários
de referência para interessados em geral e para
cursos de graduação que tenham a disciplina
de Libras.
Reitera-se, a partir dos resultados do
estudo, que a elaboração de dicionários para
democratizar o acesso das pessoas ao léxico da
Libras é algo desafiador, dada a complexidade
do gênero, conforme lembram Capovilla e
Raphael (2001, p. 31):
Transmitir e compreender, com precisão, o
significado e o uso lingüístico de milhares
de sinais são realizações complexas
que demandam muitas aproximações e
abordagens, tentativas e quase acertos,
edições e reedições em busca da correção,
precisão e completude.
A elaboração de dicionários de línguas de
sinais é um problema que vem sendo enfrentado
desde as primeiras formas de representação
dessa língua e, portanto, trata-se de um desafio
histórico. Tal desafio evidencia-se quando os
aprendizes de Libras tentam fazer os sinais de
forma autônoma, sem sucesso. Observa-se que,
sem a presença de um mediador, a leitura da
imagem e a produção dos sinais podem ficar
muitas vezes comprometidas.
O estudo indica que se configurou ao
longo da história uma tradição iconográfica
para o design de dicionários da língua brasileira
de sinais independentemente das diferenças
nos estilos dos ilustradores, observando-se
características do dicionário de Gama (1875)
124
que perduram em novos dicionários de Libras.
Evidenciam-se, nesse sentido, além da figurareferência sempre presente, a apresentação inicial
do alfabeto manual, as semelhanças em relação
aos critérios de indexação, a inserção de textos
introdutórios, o uso da representação pictórica
do significado do sinal, da representação gráfica
da forma de realização do sinal e a inserção de
recursos gráficos com a finalidade de mostrar o
parâmetro movimento nos sinais.
Os fatores que interferem diretamente
na iconografia da língua de sinais merecem
atenção especial por parte dos envolvidos com
a questão da representação pictórica ou fotográfica na elaboração de dicionários, pois se
acredita que cada vez mais o uso de tais obras
será implementado nos cursos de graduação,
dada a obrigatoriedade da disciplina de Libras,
e nas escolas que possuem alunos surdos, principalmente as de educação bilíngue, nas quais a
língua brasileira de sinais e a língua portuguesa
são consideradas línguas de instrução. Tendo
em vista todas as discussões que envolvem a
área da surdez e que primam por uma melhor
qualidade de ensino, acredita-se que o investimento na elaboração de bons dicionários,
considerando-se suas limitações, pode contribuir significativamente para o aprendizado da
Libras por parte dos futuros educadores e profissionais da saúde.
Esperamos que essa discussão sirva
de motivação para futuros investimentos na
dicionarização da Libras aos artistas que se
aventuram nessa delicada tarefa e que isso se
reverta em benefícios para quem deseja ensinar
e aprender a língua.
Cássia Geciauskas SOFIATO; Lucia Helena REILY. Dicionarização da língua brasileira de sinais: estudo comparativo...
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Recebido em: 25.02.2013
Aprovado em: 14.08.2013
Cássia Geciauskas Sofiato é mestre e doutora em Artes pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e docente da
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP).
Lucia Helena Reily é doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (USP) e
docente da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
126
Cássia Geciauskas SOFIATO; Lucia Helena REILY. Dicionarização da língua brasileira de sinais: estudo comparativo...
Indicadores de estresse e coping no contexto da
educação inclusivaI
Kelly Ambrosio SilveiraII
Sônia Regina Fiorim EnumoIII
Renata Nascimento PozzattoIV
Kely Maria Pereira de PaulaIV
Resumo
I- Agradecemos o apoio financeiro do
CNPq/MCTI, por meio de bolsa de Iniciação
Científica- Proc. n. 508906/2010-5, bolsa
de doutorado, bolsa de produtividade em
pesquisa, em nível 1B, e auxílio à pesquisa
Proc. n. 481483-2009-8.
II- Universidade Federal do Espírito
Santo,Vitória, ES, Brasil.
Contato: [email protected]
III- Pontifícia Universidade Católica de
Campinas, Campinas, SP; Brasil.
Contato: [email protected];
IV- Universidade Federal do Espírito Santo,
Vitória, ES, Brasil.
Contatos: renatapozzatto@ gmail.com
[email protected]
A escola tem sido o principal meio de educação para alunos
com necessidades educativas especiais (NEE), graças às políticas
inclusivas. Mas as dificuldades vivenciadas na implementação
de tais políticas podem contribuir para o desenvolvimento de
estresse entre docentes. Tendo isso em vista, no presente artigo
procurou-se identificar os estressores e os níveis de estresse
docente e analisar variáveis sóciodemográficas, pessoais, do
trabalho e dos alunos, de acordo com a presença de estresse.
Dezenove professoras de classes de 1º, 2º e 3º ano do Ensino
Fundamental de escolas públicas da cidade de Vitória/ES,
regentes de classes com alunos com NEE, responderam ao
Inventário de Sintomas de Stress para adultos de Lipp, a um
questionário com variáveis de interesse e a seis escalas de
estressores e de enfrentamento (coping), especialmente traduzidas
e adaptadas para o presente estudo. A grande quantidade de
alunos e seus problemas comportamentais foram os estressores
mais frequentes. Especificamente com relação à educação
inclusiva, destacaram-se a sobrecarga de serviço e a percepção
de pouca preocupação governamental em fornecer subsídios
para o trabalho. Todavia, cabe ressaltar que a inclusão de alunos
com NEE foi um fator menos citado, podendo não ser a variável
central para o estresse, uma vez que os docentes com estresse
apontaram mais frequentemente a seguinte causa: a percepção
de incompreensão pública frente ao trabalho docente. A partir
dessa constatação, sugerem-se intervenções para a promoção do
bem-estar entre os professores.
Palavras-chave
Estresse — Enfrentamento — Professores — Educação inclusiva.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 127-142, jan./mar. 2014.
127
Indicators of stress and coping in the context of
inclusive educationI
Kelly Ambrosio SilveiraII
Sônia Regina Fiorim EnumoIII
Renata Nascimento PozzattoIV
Kely Maria Pereira de PaulaIV
Abstract
I- We acknowledge the financial support of
CNPq/MCTI, by means of scientific initiation
fellowship number 508906/2010-5, a
doctoral fellowship, a research productivity
fellowship level 1B, and research support
number 481483-2009-8.
II- Universidade Federal do Espírito
Santo,Vitória, ES, Brasil.
Contact: [email protected]
III-Pontifícia Universidade Católica de
Campinas, Campinas, SP; Brasil.
Contact: [email protected];
IV- Universidade Federal do Espírito Santo,
Vitória, ES, Brasil.
Contacts: renatapozzatto@ gmail.com;
[email protected]
128
Thanks to inclusive policies, school has been the main means
of education for pupils with special educational needs (SEN).
But the difficulties experienced in the implementation of
such policies may contribute to the development of stress
among teachers. Keeping this in view, this study has sought
to identify stressors and levels of teacher stress and examine
sociodemographic, personal, work and student variables,
according to the presence of stress. Nineteen teachers of classes
of 1st, 2nd and 3rd grades of primary education in public schools
in Vitória city, Espírito Santo state, Brazil, working with
classes with students with SEN, responded to Lipp’s Inventory
of Stress Symptoms for Adults, a questionnaire with variables
of interest and six scales of stressors and coping, translated
and adapted especially for this study. The large number of
students and their behavioral problems were the most frequent
stressors. With regard to inclusive education, the main results
were work overload and the perception that the government is
little concerned with providing support for work. However, it
is noteworthy that the inclusion of pupils with SEN was a less
cited factor and may not, thus, be the central variable for stress.
Actually, teachers with stress identified more often the following
cause: the perception of the public misunderstanding of the
teaching work. Based on this finding, we suggest interventions
to promote well-being among teachers.
Keywords
Stress — Coping — Teachers — Inclusive education.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 127-142, jan./mar. 2014.
Introdução
As políticas nacionais de atendimento
educacional especial têm afirmado a escola como
o principal agente para os processos de ensino
e aprendizagem dos alunos com necessidades
educativas especiais - NEE (BRASIL, 2008a,
2008b). Essas políticas propõem a reformulação
do ensino, com a recepção de alunos com
condições diferenciadas de desenvolvimento e a
oferta de recursos físicos, didáticos e interacionais
adaptados às NEE, tendo como foco o trabalho
com a diversidade (MANTOAN, 2003).
Desde a Declaração de Salamanca
(UNESCO, 1994), a definição do conceito de
NEE tornou-se mais abrangente, passando a
contemplar alunos cujas necessidades envolvam
deficiências ou dificuldades de aprendizagem,
com a manifestação de desvantagem ou
sobredotação, problemas de conduta ou de
ordem emocional, além de situação de risco
psicossocial ou pertencimento a minorias. Com
isso, em seus princípios, a educação inclusiva
passou a contemplar a diversidade entre os
alunos e a adequar meios e recursos para os
processos educacionais.
O professor, nesse contexto, é tradicionalmente reconhecido como facilitador dos
processos de aprendizagem, mediando as experiências escolares (RODRIGUEZ; BELLANCA,
2007). Entretanto, parece haver descontentamento com relação à maneira como o processo
de inclusão está sendo implantado, por ser muitas vezes dissociado de investimentos em adaptações físicas das escolas, na aquisição de materiais específicos às necessidades dos alunos e na
formação dos profissionais. Em consequência, o
ensino de alunos com diferentes níveis de desenvolvimento na sala de aula regular pode ser
um fator estressor para o trabalho docente.
O estresse, entendido como o resultado
de respostas fisiológicas e psicológicas a
eventos internos e externos (COMPAS, 2006),
tem suscitado o desenvolvimento de pesquisas
na área docente (GOULART JÚNIOR; LIPP,
2008; MARTINS, 2005; POCINHO; CAPELO,
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 127-142, jan./mar. 2014.
2009). Contudo, muitas pesquisas das últimas
décadas ainda têm considerado os professores
como avaliadores das condições de estresse de
alunos e familiares, ao invés de tomá-los como
sujeitos de pesquisa sobre as suas condições
laborais estressoras (WITTER, 2003). Além
disso, o estresse tem sido causa recorrente
de afastamentos do trabalho (GASPARINI;
BARRETO; ASSUNÇÃO, 2005), o que abre a
possibilidade de novos focos de análise, como
os estressores do contexto escolar inclusivo e
as estratégias de enfrentamento (EE) utilizadas
pelos professores. É o que investigaremos no
presente trabalho.
Definições de estresse e de
estratégias de enfrentamento
e suas aplicações no contexto
escolar
O estresse pode ser entendido como um
conjunto de reações psicológicas e/ou físicas
produzidas no confronto com uma situação
desafiadora ao sujeito. Apresenta-se em quatro
estágios gradativos, que variam do estado de
alerta até o de exaustão, esta considerada a
fase patológica, com importante desequilíbrio
interior, depressão e produtividade nula
(LIPP, 2002). O estresse pode ser também
caracterizado por uma experiência emocional
negativa que, no caso do professor, pode ser
acionada pela percepção de que sua situação de
trabalho constitui uma ameaça à sua autoestima e
ao seu bem-estar (KYRIACOU; SUTCLIFFE, 1978),
a depender da interação entre as características
individuais e a percepção das exigências presentes.
Considerando a experiência de estresse,
sabe-se que, caso seja cumulativo, ele pode gerar
mais consequências adversas do que eventos
isolados. Além disso, a restrição de escolhas,
o pouco controle e a grande responsabilidade,
presentes também no trabalho docente, podem
ser estressores significativos (ALDWIN, 2007).
Já o estresse em sua vertente ocupacional
é entendido como o resultado da interação entre
condições laborais e individuais, de modo que
129
as exigências criadas ultrapassam a capacidade
de lidar com elas (GOMES; PEREIRA, 2008).
Porém, nem sempre a experiência de estresse
é, em si, danosa. Na perspectiva de Pocinho
e Capelo (2009), se uma situação profissional
encarada como exigente for bem sucedida, o
estresse possibilita a adaptação e a confiança.
Ao contrário, pode haver aumento do estresse,
ligado à percepção de dificuldade na adaptação
às exigências.
Em casos extremos de estresse em
professores, pode ocorrer ainda a Síndrome de
Burnout (BENEVIDES-PEREIRA et al., 2003), um
tipo de estresse ocupacional que tende a acometer
profissionais envolvidos em atividades de
cuidado e atenção direta e altamente emocional
(MASLACH; JACKSON, 1981). É resultado de
uma experiência subjetiva que altera hábitos,
satisfação, autocontrole, concentração na sala
de aula e que acentua reações emocionais a
acontecimentos cotidianos (RITA; PATRÃO;
SAMPAIO, 2010) e pode prejudicar os processos
interativos (BENEVIDES-PEREIRA et al., 2008).
Nesse contexto, considerando que as
pessoas têm um papel ativo no processo de
enfrentamento a situações adversas, como se lida
com o estresse é mais importante que a simples
exposição a ele (ALDWIN, 2007). O conceito
de coping ou estratégias de enfrentamento
(EE) inclui respostas voluntárias ao estresse, a
partir de esforços conscientes para a regulação
da emoção, cognição, comportamento e
ambiente (COMPAS, 2006). As EE do estresse,
mesmo sendo consideradas adaptativas, podem
transformar uma condição em um fator de risco
ou conferir proteção (SKINNER et al., 2003).
Sousa et al. (2009) complementam esse tema
em revisão sobre estresse ocupacional, burnout
e coping, na qual apresentaram o coping como
variável mediadora entre a avaliação dos
estressores e as respostas de estresse (explica
como essas respostas ocorrem) e como variável
moderadora entre o estresse ocupacional e o
burnout (aumenta a força do estresse).
Considera-se também que o bem-estar no
trabalho pode ser sustentado nos sentimentos
130
de otimismo e autoeficácia, mobilizadores da
crença de controle e modificação do ambiente
(BANDURA, 1997). A autoeficácia aumenta
no professor a percepção de possibilidade
de mudança no comportamento do aluno
e em seu próprio comportamento (ALMOG;
SHECHTMAN, 2007) e exerce um papel
importante no modo de cada pessoa enfrentar
os desafios que a ela se apresentem (POCINHO;
CAPELO, 2009).
A literatura internacional a respeito do
estresse e EE tem apontado para a existência
de diferentes estressores do ambiente escolar.
Entre os principais, destacam-se: lidar com a
classe e manter a disciplina, aplicar as tarefas,
organizar grupos de trabalho, ajudar crianças
com problemas comportamentais e preparar
recursos para lições (RIEG; PAQUETTE; CHEN,
2007), lidar com incidentes envolvendo
comportamento desafiador (KELLY et al., 2007)
e indisciplina (LHOSPITAL; GREGORY, 2009),
vivenciar a falta de suporte diante de problemas
comportamentais dos alunos (ZURLO; PÉS;
COOPER, 2007), suportar o excesso de trabalho
e a falta de tempo (ANTONIOU; POLYCHRONI;
KOTRONI, 2009; BETORET; ARTIGA, 2010),
articular-se com relação às diferenças de
desenvolvimento e motivação dos alunos e às
políticas educacionais (POCINHO; CAPELO,
2009), e lidar com a pressão exercida pelos pais
(STOEBER; RENNERT, 2008).
No Brasil, os estressores mais comumente
encontrados são o desinteresse da família
em acompanhar a trajetória educacional dos
filhos, a infraestrutura inadequada da escola,
os problemas de indisciplina e o desnível entre
os alunos, a grande demanda e desvalorização
profissional e a falta de trabalho em equipe
(RODRIGUES et al., 2005).
Considerando tais fatores e a própria
necessidade de efetivação das políticas inclusivas
no Brasil, acredita-se que as atuais adequações
ao modelo inclusivo de ensino também possam
ser um desafio. Constata-se, na literatura, a
falta de preparo (GUARINELLO et al., 2006),
devido a falhas na formação acadêmica (VALLE;
Kelly A. SILVEIRA; Sônia Regina F. ENUMO; Renata N. POZZATTO; Kely M. P. de PAULA. Indicadores de estresse e...
GUEDES, 2003) e profissional (FONTES, 2009;
NAUJORKS, 2002) dos professores. Dificuldades
na articulação de programas e de políticas
(FERREIRA, 2007) e na orientação oferecida
por outros profissionais (MAIA-PINTO; FLEITH,
2002; SILVEIRA; NEVES, 2006) também são
apontadas como falhas na implementação de
programas de inclusão.
A dissociação entre o trabalho prescrito
e o trabalho real em educação inclusiva pode
levar à angústia (DUEK; NAUJORKS, 2008), ao
desconforto acerca do processo educacional
(MONTEIRO; MANZINI, 2008; RIOS; NOVAES,
2009), à sobrecarga e a sintomas de ansiedade
e depressão (LIMA et al., 2003). A falta de
apoio e de conhecimento sobre como lidar
nesse contexto também tem colocado o
docente no papel de professor-cuidador (MELO;
FERREIRA, 2009). Trata-se de uma postura
tipicamente assistencialista, que isola o aluno
e não motiva seu crescimento (ALBUQUERQUE,
2008; SODRÉ; PLETSCH; BRAUN, 2003). A
esse respeito, Naujorks (2002) aponta que,
mesmo com formação adequada, pode haver
dificuldades no trabalho com os alunos devido
a experiências internas, decorrentes de crenças
e valores pessoais, os quais, estando em conflito
com a realidade que se apresenta, podem
acentuar o estresse.
O presente estudo, assim, enfatizou
a avaliação do estresse, das características
sociodemográficas, pessoais, do trabalho e dos
alunos, a fim de fornecer dados que subsidiem
intervenções de caráter preventivo (MURTA;
LAROS; TRÓCCOLI, 2005) ou interventivo
(LAUGAA; RASCLE; BRUCHON-SCHWEITZER,
2008) como possibilidade de prevenção ao aumento
dos sintomas de estresse e burnout em professores.
Objetivos
Este trabalho pretendeu, de modo geral,
avaliar os níveis de estresse e os estressores
percebidos frente ao trabalho, em consideração
a fatores específicos à educação inclusiva e a
outros fatores estressores gerais para a atividade
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 127-142, jan./mar. 2014.
docente em professores do Ensino Fundamental
da rede pública do município de Vitória (ES),
que atuam em classes com a inclusão de pelo
menos um aluno com alguma necessidade
educativa especial. Os objetivos específicos
desta pesquisa foram:
a) avaliar a presença de estresse nesses
professores;
b) identificar os principais estressores
percebidos por esses professores, considerando
aqueles que se apresentam como gerais e
específicos ao contexto de educação inclusiva;
c) identificar variáveis sóciodemográficas,
pessoais e do trabalho desses professores e de
seus alunos, associadas a altos níveis de estresse.
Método
Para atender aos objetivos propostos, a
pesquisa contou com delineamento descritivo
para identificar os estressores e os níveis de
estresse. Também realizou a análise de um grupo
estático, para casos de altos e baixos níveis de
estresse (KANTOWITZ; ROEDIGER; ELMES,
2006; SELLTIZ; WRIGHTSMAN; COOK, 1981).
Participantes e local de coleta
Participaram 19 professoras de 1º (8),
2º (6) e 3º ano (5) do Ensino Fundamental,
que tinham alunos com algum tipo de
necessidade educativa especial (NEE) em suas
salas de aula, situadas em quatro escolas
públicas municipais de Vitória. Tais escolas
estão localizadas em bairros de classe média
do município com indices de qualidade
urbana semelhantes.
O critério utilizado para a coleta foi
abranger professores de uma mesma região
do município para garantir maior consistência
nos dados quanto à presença dos estressores
ambientais percebidos. As participantes foram
contatadas durante o expediente nas escolas. A
coleta de dados foi realizada nas dependências
das escolas, em horários pertinentes à rotina
de trabalho dos professores, com anuência dos
131
diretores e pedagogos, de modo a não causar danos
à rotina escolar ou à saúde das participantes.
Instrumentos e materiais
1) Questionário de caracterização dos
participantes, com os seguintes itens: idade, sexo
e modalidade de ensino em que atua, tempo de
serviço e quantidade de alunos em sala, incluindo
a quantidade de alunos com alguma necessidade
educativa especial percebida. Tal instrumento foi
desenvolvido para a presente pesquisa;
2) Escala de Estressores do Contexto
Escolar: conta com 20 itens acerca de
estressores gerais ligados ao trabalho docente,
pontuados de 1 a 5 quanto ao grau de estresse
percebido para cada item. Esse instrumento
é parte do Questionnaire Taiwanese Primary
School Teachers’ Stress and Coping Strategies
(KYRIACOU; CHIEN, 2004). Os itens foram
traduzidos e adaptados transculturalmente
seguindo as orientações da literatura da área
(KLEIN; PUTNAN; LINHARES, 2009).
3) Inventário de Indicadores de Stress
ligados ao Trabalho no Ensino Inclusivo
(NAUJORKS, 2002, em adaptação do Stress
Faculty Index de GMELCH; LOVRICH; WILKE,
1984, para professores da Educação Inclusiva
(EI) no país): contém 25 itens que representam
problemas e insatisfações ligados ao exercício
da docência no contexto inclusivo. Os itens
são pontuados caso o participante concorde em
referir-se à sua percepção atual sobre o trabalho;
4) Escala de Vulnerabilidade ao Estresse
no Trabalho - EVENT (SISTO et al., 2007): a partir
de 40 itens, avalia o quanto as circunstâncias do
cotidiano do trabalho influenciam a conduta da
pessoa, a ponto de caracterizar certa fragilidade
para o desenvolvimento de estresse laboral.
Avalia a vulnerabilidade ao estresse a partir de
três fatores: fator 1 - clima e funcionamento
organizacional; fator 2 - pressão no trabalho; e
fator 3 - infraestrutura e rotina;
5) Inventário de Sintomas de Stress para
Adultos de Lipp – ISSL (LIPP, 2000): identifica
a presença de sintomas de estresse, os tipos
132
de sintomas existentes, sejam eles físicos ou
psicológicos, a presença e a fase do estresse
que se manifesta – Alerta, Resistência, Quase
exaustão ou Exaustão, a partir de 37 itens de
natureza somática e 19 de natureza psicológica.
A escala é dividida em três partes, referentes aos
sintomas físicos e psíquicos sentidos nas últimas
24 horas, na última semana e no último mês;
6) Escala de Coping para Professores:
com 25 itens sobre comportamentos de coping
ou enfrentamento. É parte do Questionnaire
Taiwanese Primary School Teachers’ Stress
and Coping Strategies (KYRIACOU; CHIEN,
2004). Esse instrumento também foi traduzido
e adaptado transculturalmente. Durante o
preenchimento, o participante é requisitado a
apontar a frequência para a eficácia percebida
de cada comportamento na redução do estresse
e a frequência com que manifesta cada
comportamento listado, a partir de escala que
varia de 1 a 5;
7) Escala de Satisfação do Professor:
conta com 5 itens pontuados de 1 a 5 acerca do
grau de concordância quanto aos itens ligados
a indicadores de satisfação no trabalho docente.
Os itens foram adaptados a partir da Teacher
Satisfaction Scale (HO; AU, 2006);
8) Escala de Autoeficácia do Professor no
desenvolvimento de atividades: apresenta 4 itens
adaptados da Norwegian Teacher Self-Efficacy
Scale (SKAALVIC; SKAALVIC, 2010). Os itens
referem-se a indicadores de eficácia percebida
pelo participante no desenvolvimento de
atividades do trabalho, especialmente referentes
à adaptação de instrução às necessidades
individuais dos alunos.
Ressalta-se que o uso dos instrumentos
descritos deu-se em consequência à inexistência de um instrumento específico que pudesse
fornecer as informações necessárias, tendo em
vista os objetivos aqui propostos. Como a literatura também ainda não sugere de forma consistente uma bateria de instrumentos avaliativos para a coleta de dados pessoais e laborais
ligados a estressores e ao estresse, foi montada
a presente lista de instrumentos, especialmente
Kelly A. SILVEIRA; Sônia Regina F. ENUMO; Renata N. POZZATTO; Kely M. P. de PAULA. Indicadores de estresse e...
formulada para o desenvolvimento desta pesquisa. Ao todo, foram coletadas as variáveis:
a) sociodemográficas: idade, sexo,
estado civil, número de filhos, estresse familiar
percebido e total de horas diárias de lazer;
b) do trabalho: série escolar em que
atua, anos de experiência em salas regulares
inclusivas, anos na instituição, anos de serviço,
horas diárias de planejamento em casa, tipo de
vínculo e número de turnos em que trabalha;
c) dos alunos: quantidade de alunos em
sala, quantidade de alunos com NEE em sala,
quantidade de crianças com laudo médico,
quantidade de crianças que frequentam sala
de atendimento educacional especializado,
presença de estagiário em sala; e
d) pessoais: satisfação com o trabalho,
autoeficácia percebida no trabalho, percepção de
estressores, comportamentos de enfrentamento ao
estresse, percepção de itens ligados à vulnerabilidade
ao estresse no trabalho, fatores estressores ligados
à Educação Inclusiva e sintomatologia do estresse.
Para a análise dos dados, foi utilizado
o software SPSS - Statistical Package for the
Social Sciences®, na versão 18.
Procedimento
Antes de a coleta ser iniciada, foram
mantidos os procedimentos para a tradução e
adaptação transcultural de instrumentos ainda
não adaptados ou comercializados, de modo
a preservar a semântica e o escopo teórico
subjacente aos mesmos (KLEIN; PUTNAN;
LINHARES, 2009). Após aprovação da pesquisa
junto ao Comitê de Ética em Pesquisas da UFES
(n. 264-11), foi estabelecido contato com a
Secretaria Municipal de Educação, a fim de se
obter anuência para inserção nas escolas e para
o processo de coleta de dados. Em seguida, as
instituições escolares da região foram contatadas.
Após o consentimento para a participação
da coleta, foram oferecidos os protocolos e as
instruções diretamente pelos pesquisadores.
Ao final da coleta, foi realizada devolutiva a
cada participante. A pesquisa não implicou
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 127-142, jan./mar. 2014.
riscos à saúde das participantes, nem custos
ou exposição das mesmas. Todas assinaram
o Termo de Consentimento para a Pesquisa.
A coleta foi realizada durante os períodos de
intervalo, com o objetivo de não trazer prejuízo
ao andamento das atividades programadas.
Resultados
As 19 professoras que participaram da
coleta tinham, em média, 44,1 anos (DP= 7,1),
sendo a maioria casada (52,6%). Lecionavam
no 1º ano (36,8%), 2º ano (26,3%) e 3º ano
(15,8%) como regentes de classe e 10,3% delas
tinham disciplinas nessas séries escolares. A
maioria trabalhava em dois turnos (73,7%) e em
duas escolas (57,9%), com uma média de 22,3
anos de serviço (DP= 7,3), sendo a maior parte
delas (78,9%) efetiva em pelo menos um turno.
Estavam trabalhando na instituição há 7,3 anos
(DP= 7,9) e a experiência em classes com a
inclusão de alunos com NEE era de 13,5 anos
(DP= 8,1). Apenas 26,3% tinham estagiário na
sala de aula. Havia, em média, 1,78 alunos com
NEE por professora (DP= 0,98).
As NEE apontadas pelas participantes
foram: deficiência mental (10), TDAH (8), deficiência visual (5), altas habilidades (3), dislexia
(3), deficiência física (2), deficiência múltipla
(1), transtorno global do desenvolvimento (1) e
deficiência auditiva (1).
Um total de 10 professoras (52,63%)
apresentou estresse. Dessas, quase a totalidade
(nove) encontrava-se na fase de resistência
e uma estava na fase de quase exaustão.
A sintomatologia foi tanto física quanto
psicológica, porém, houve predomínio de
sintomas físicos (70%).
Estressores percebidos acerca do trabalho docente
Foram destacados os 25% dos itens mais
e menos pontuados da lista de estressores. Os
mais pontuados, em ordem decrescente das
médias obtidas, foram: grande quantidade de
alunos na sala; problemas comportamentais
133
dos alunos; atitude pública de incompreensão
sobre a carga de trabalho do professor; falta
de motivação dos alunos; e falta de recursos
suficientes para o ensino. Os itens menos
pontuados, em ordem decrescente das médias
obtidas, foram: competição entre colegas de
trabalho; dificuldade para auxiliar alunos em
atividades extras; envolvimento em atividades
para formação continuada; problemas para
auxiliar os alunos no desenvolvimento de
tarefas escolares; e estranhamento ao ser
observado por colegas, estagiários, supervisores
ou pais (Tabela1).
Verificou-se que a permanência de
crianças com NEE em sala de aula, em si, não
foi um fator de estresse pontuado com alta
frequência entre as participantes. Contudo,
fatores indiretamente ligados à sobrecarga e
às atividades escolares no contexto inclusivo
foram largamente apontados, tais como a falta
de recursos para o ensino e a grande quantidade
de alunos por sala de aula.
Tabela 1 – Estressores apontados pelas professoras de classes inclusivas (N = 19)
Estressores
M*
DP*
Grande quantidade de alunos na sala
4,10
1,24
Problemas comportamentais dos alunos
3,94
1,31
Atitude pública de incompreensão sobre a carga de trabalho do professor
3,84
1,01
Falta de motivação dos alunos
3,84
1,34
Falta de recursos suficientes para o ensino
3,52
1,38
Atitudes pobres dos alunos frente às tarefas
3,47
1,17
Poucos recursos para trabalho
3,26
1,69
Estilo de gerenciamento dos superiores
3,10
1,14
Comunicação com pais
3,00
1,45
Mudanças constantes nas políticas educacionais
2,89
1,32
Excesso de conteúdo a ser lecionado
2,78
1,13
Trabalhar com conteúdos não ligados à expectativa, preparo, habilidade
2,73
1,32
Pouco tempo de intervalo
2,72
1,01
Trabalho administrativo adicional
2,57
1,07
Alunos com necessidades educativas especiais na sala
2,52
1,17
Competição entre colegas de trabalho
2,47
1,21
Auxiliar alunos em atividades extras
2,36
1,42
Envolvimento em atividades para formação continuada
2,15
1,16
Auxiliar no desenvolvimento de diversas tarefas extras da escola
2,10
1,32
Ser observado por colegas, estagiários, supervisores ou pais
1,73
0,93
Fonte: dados da pesquisa
* M = Média; DP = Desvio padrão
134
Kelly A. SILVEIRA; Sônia Regina F. ENUMO; Renata N. POZZATTO; Kely M. P. de PAULA. Indicadores de estresse e...
Estressores percebidos acerca do trabalho no
contexto da educação inclusiva
Características sociodemográficas, pessoais e
do trabalho dos professores e de seus alunos, de
acordo com a presença de estresse
Considerando a Educação Inclusiva, o
estressor mais frequente a partir do Inventário
de Indicadores de Estresse ligados ao Trabalho
no Ensino Inclusivo (NAUJORKS, 2002) foi a
sobrecarga de serviço, seguida da percepção de
pouca preocupação em fornecer aos professores
subsídios necessários ao trabalho junto à
diversidade. Os estressores frequentes em mais
de 50% da amostra encontram-se na Tabela 2.
Tabela 2 – Indicadores mais frequentes de estresse ligados ao
trabalho no ensino inclusivo (N = 19)
Indicadores
%
“Há uma sobrecarga de serviço docente que impede o
aperfeiçoamento, principalmente em relação a esta proposta.”
63
“Sinto que não existe uma preocupação efetiva em fornecer
subsídios aos professores para trabalhar com a diversidade.”
63
“Sinto que esta proposta tem um conteúdo muito mais
político do que pedagógico.”
63
“Meu salário não é adequado para cobrir minhas
necessidades pessoais e familiares.”
53
Fonte: dados da pesquisa
Para a análise das variáveis sociodemográficas e pessoais, dos alunos e do trabalho, de
acordo com a presença de estresse, realizou-se
um teste de diferença entre grupos para amostras não paramétricas (Mann Whitney-U), considerando duas condições: com estresse versus
sem estresse. Não houve diferença significativa para a quantidade de alunos com NEE para
os grupos de participantes com e sem estresse
(Tabela 3).
Também não houve diferenças para
as variáveis sociodemográficas, do trabalho e
dos alunos, no que tange à presença ou não
de estresse. Foram observadas diferenças em
variáveis pessoais ligadas à percepção de
alguns estressores, à satisfação com o trabalho
e a algumas EE (Tabela 3).
Entre as professoras com estresse,
houve maior pontuação para os escores totais,
especialmente para os estressores ligados à
grande quantidade de alunos na classe, à
Tabela 3 – Diferenças significativas na percepção de estressores entre professoras de classes inclusivas com e sem estresse
Condições de stress
Sem estresse
Estresse
Variáveis analisadas
Rank
M*
Rank
M*
*p-valor
Estressor - Grande quantidade de alunos na classe (f )
6,67
3,33
13,00
4,80
0,00
Estressor - Atitude pública de incompreensão sobre carga de trabalho (f )
6,22
3,11
13,40
4,50
0,00
Estressor - Ser observado por colegas, estagiários, supervisores ou pais (f )
7,17
1,22
12,55
2,20
0,02
Estressor (escore médio)
6,94
2,55
12,90
3,32
0,02
Estressor Educação Inclusiva (soma)
7,33
5,22
12,40
8,70
0,04
Vulnerabilidade estresse, fator infraestrutura/rotina (f )
6,19
5,00
10,81
9,37
0,05
Coping percebido- Assegurar-se de que entende o conteúdo (f )
12,83
4,77
7,45
3,90
0,02
Coping percebido- Tentar conhecer mais os alunos em suas especificidades, como indivíduos (f) 12,56
4,55
7,70
3,80
0,04
Coping manifesto- Assegurar-se de que entende o conteúdo (f )
12,83
4,66
7,45
3,80
0,02
Coping manifesto- Enxergar o lado cômico da situação (f )
12,83
4,22
7,45
3,10
0,02
Coping manifesto- Ter uma vida pessoal saudável (f )
12,61
3,66
7,65
2,70
0,04
Coping manifesto- Ficar só (f )
13,72
3,11
6,65
1,50
0,00
Satisfação no trabalho (escore médio)
12,83
3,73
7,45
3,00
0,03
*p = significância da diferença entre grupos. Valores ≤ 0,05 são considerados significativos pelo teste de Mann Whitnney-U. M = Média. (f )= frequência.
Fonte: dados da pesquisa
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 127-142, jan./mar. 2014.
135
atitude pública de incompreensão sobre a carga
de trabalho e ao fato de ser observado por
colegas, estagiários e supervisores ou pelos pais
dos alunos.
Além disso, houve maior frequência de
estressores ligados à Educação Inclusiva e maior
média para o fator de vulnerabilidade para o
estresse ligado à infraestrutura e à rotina. Com
isso, é possível que professores com estresse
possam experimentar maior percepção de
sobrecarga de trabalho proveniente das interrelações entre as atividades realizadas e a oferta
de materiais e recursos para o desenvolvimento
do trabalho.
Professoras sem estresse, por outro lado,
apresentaram maior sensação de satisfação com
o trabalho. Apresentaram também uma percepção
mais aguçada a respeito da efetividade dos
comportamentos de enfrentamento do estresse,
ligados a manter-se seguro sobre o conteúdo a
ser ensinado e a tentar conhecer os alunos em
suas especificidades. Esse grupo demonstrou
ainda maior percepção de efetividade dos
comportamentos ligados ao planejamento, à
busca de informações e à reestruturação cognitiva
frente aos desafios, para a redução do estresse.
Assegurar-se de que entende o conteúdo,
ficar só, ter uma vida saudável e enxergar o
lado cômico da situação foram comportamentos
mais praticados entre aqueles sem estresse,
em comparação ao grupo com estresse. Esses
comportamentos também são ligados à busca
de informações, à reestruturação cognitiva
frente aos desafios e à busca de relaxamento.
Discussão
O presente trabalho pretendeu avaliar
os níveis de estresse e os estressores percebidos
em professoras do Ensino Fundamental da rede
pública do município de Vitória/ES que atuam
em salas com a inclusão de pelo menos um aluno
com alguma NEE. Foram levadas em consideção
variáveis pessoais, do trabalho e dos alunos.
Uma parcela significativa da amostra
apresentou quadro de estresse¸ confirmando
136
os dados da literatura que afirmam a docência
como categoria vulnerável a tal condição
(GOULART JÚNIOR; LIPP, 2008; MARTINS,
2005; POCINHO; CAPELO, 2009). O nível de
estresse presente em nove das 10 professoras
com estresse foi o de resistência, caracterizado
por uma tentativa automática de lidar com as
situações de estresse para manter a saúde (LIPP,
2000), fase também recorrente entre os docentes
(MARTINS, 2007).
Os sintomas apresentados foram, em sua
maioria, físicos. Assim como em outras regiões
ou redes de ensino, a maioria trabalhava em
dois turnos e em duas escolas. Considerando
toda a amostra, pouco mais de um quarto
contava com estagiário em sala de aula, apesar
de, em média, haver quase dois alunos com
alguma NEE por professora.
Os estressores apontados com maior
frequência, considerando toda a amostra,
incluíam a grande quantidade de alunos na
sala e os seus problemas comportamentais,
a atitude pública de incompreensão sobre o
trabalho do professor, a falta de motivação dos
alunos e a falta de recursos suficientes para o
ensino. Pesquisas nacionais (FERREIRA, 2007;
RODRIGUES et al., 2005) e internacionais
(POCINHO; CAPELO, 2009; RIEG; PAQUETTE;
CHEN, 2007; ZURLO; PÉS; COOPER, 2007)
confirmam a presença de tais estressores.
A permanência de crianças com NEE, em
si, não foi um fator de estresse pontuado com
alta frequência entre as professoras, podendo
não ser uma variável determinante para o
estresse. Possivelmente, a presença de tais alunos
não seja um fator de maior desafio ou ameaça
ao bem-estar no trabalho, em comparação à
percepção significativa de outros problemas,
como a falta de materiais e recursos, além da
pouca valorização do trabalho realizado.
Esses
fatores,
em
consequência,
podem interpor-se à experiência do trabalho
educacional com enfoque inclusivo. Assim, o
que mais parece afligir esses docentes é a falta
de preocupação das políticas educacionais ou
da sua efetivação no que tange ao fornecimento
Kelly A. SILVEIRA; Sônia Regina F. ENUMO; Renata N. POZZATTO; Kely M. P. de PAULA. Indicadores de estresse e...
de subsídios para o trabalho com a diversidade
de alunos, assim como apontado por Ferreira
(2007), Maia-Pinto e Fleith (2002) e Silveira
e Neves (2006). Talvez, por causa disso, entre
as professoras com estresse tenha havido
maior frequência para fatores ligados à
Educação Inclusiva, como a baixa percepção
de efetividade das políticas educacionais e a
percepção de pouco comprometimento com a
proposta, entre outros.
Os resultados apontaram alguns fatores
que poderiam influenciar no contexto da sala
inclusiva, tais como a quantidade de alunos
em sala e a falta de recursos. Os fatores
de vulnerabilidade ao estresse ligados à
infraestrutura e à rotina, que constam na Escala
de Vulnerabilidade ao Estresse no Trabalho
(EVENT), foram mais presentes entre aquelas
professoras com estresse e complementam
o quadro observado a partir dos outros
instrumentos de coleta de dados.
Ser observado por colegas, estagiários,
supervisores ou pais de alunos foi o fator
menos pontuado como estressor pelas
professoras. Porém, esse fator foi indicado
com maior frequência por aqueles que
apresentaram estresse, assim com a percepção
da incompreensão pública de seu trabalho.
Tendo em vista esses resultados, é possível
que o professor com maiores níveis de estresse
possa sentir-se mais afligido pela observação de
terceiros quando o trabalho não é desempenhado
nas condições ideais, ou quando seu trabalho
não é tão eficaz como gostaria que fosse.
Nesse caso, o raciocínio inverso também
poderia ser aplicado, ou seja, aqueles professores
que experimentam maior descontentamento
em relação à efetivação das políticas públicas
voltadas ao ensino em salas inclusivas, as quais
deveriam abarcar a diversidade de características
e de necessidades educativas dos alunos,
poderiam sentir maior constrangimento diante
da inadequação da prática realizada, ou da
contradição manifesta diariamente entre o processo
educacional idealizado e aquele vislumbrado de
modo deficiente. Tensões cotidianas poderiam,
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 127-142, jan./mar. 2014.
assim, levar a sinais mais expressivos de estresse
(RITA; PATRÃO; SAMPAIO, 2010).
Na tentativa de compreender as diferenças
nos níveis de estresse e na percepção de estressores
no modelo inclusivo, de acordo com variáveis
pessoais e do trabalho, serão apresentados a
seguir os dados obtidos sobre as estratégias de
enfrentamento apontadas pelos professores.
Assegurar-se de que entende o conteúdo
a ser ensinado e tentar conhecer mais os alunos
em suas especificidades foram comportamentos
avaliados pelos professores sem estresse como
mais eficazes no enfrentamento das dificuldades
que podem surgir em sala, em comparação
àqueles com nível significativo de estresse. Os
professores sem estresse apresentaram também
uma maior sensação de satisfação com o
trabalho, o que também pode ser um fator de
proteção (CARLOTTO, 2002).
Sabe-se que as EE utilizadas para lidar
com as situações estressantes, tanto na escola
quanto em sua vida pessoal, além de modular as
reações de estresse, podem influenciar a forma
como os professores lidarão com os alunos em
sala e na administração dos recursos didáticos
(ANTONIOU; POLYCHRONI; KOTRONI, 2009;
CARMONA et al., 2008). Deve-se considerar
também que as EE podem sofrer influências de
inúmeras outras variáveis, como o tempo de
serviço, local e condições de trabalho, gênero,
condições sociodemográficas (idade, estado
civil e número de filhos), além da autoeficácia,
entre outras variáveis (GOMES; PEREIRA, 2008;
POCINHO; CAPELO, 2009). Nem todos esses
modelos foram testados na presente pesquisa, de
modo que estudos futuros poderão complementar
a compreensão do processo de enfrentamento ao
contexto da Educação Inclusiva e seus possíveis
impactos, considerando as variáveis sugeridas.
Os dados obtidos deflagram análises
complexas acerca da experiência em salas
inclusivas e do seu enfrentamento, análises essas
que não deverão se encerrar nesta discussão,
pois a experiência do ensino inclusivo parece
ser subjacente ao processo de desenvolvimento
do trabalho dos professores e merece maior
137
atenção entre os pesquisadores. Contudo,
mesmo considerando as limitações presentes
no método empregado no presente artigo, tais
como o número reduzido de participantes e
as consequentes técnicas de análise de dados,
que se tornam mais imprecisas, é possível fazer
alguns questionamentos.
Considerando as diferenças obtidas entre
os grupos com e sem estresse, é possível que,
entre aqueles professores com menos estresse,
haja maior adaptação às características do
trabalho, tendo em vista a maior expressividade
nas respostas ligadas às estratégias de
enfrentamento. Diante disso, é possível indagar:
aqueles professores sem níveis significativos
de estresse teriam desenvolvido estratégias
adaptativas às características da educação
real, repleta de desafios, de diversidade e de
diferenças individuais?
Entende-se por educação real aquela
que ultrapassa as barreiras da idealização
construída durante o processo formativo, que
instrumentaliza o profissional diante da falta de
recursos, de materiais, de maior conhecimento
e que o motiva na busca de estratégias voltadas
à sua superação e ao desenvolvimento de
comportamentos favorecedores do trabalho
com crianças reais, em salas reais.
Talvez manter o foco nos problemas do
cotidiano percebidos ao longo do exercício das
atribuições laborais que, por vezes, ocorrem
em condições diferentes daquelas idealizadas,
possa acentuar as tensões e a experiência de
estresse. Com isso, ressalta-se a incompreensão
pública frente à carga de trabalho do professor
encontrada nos resultados, percebida de modo
expressivo entre as participantes.
Com a maior compreensão de seu trabalho
educativo e inclusivo pela comunidade, a partir do
envolvimento mais efetivo dos alunos e dos pais
na vida escolar de seus filhos e de uma política
de valorização do trabalho, é possível que haja
impacto na satisfação e na percepção de eficácia
nas atividades realizadas, com reforçamento de
comportamentos adaptativos ao bem-estar e ao
processo de ensino-aprendizagem.
138
Cabe também ressaltar as condições que
comprometem essa percepção pelo professor,
como a sensação de ser incompreendido, a
pouca colaboração com o trabalho docente
e a falta de envolvimento em sala de aula.
Trata-se de aspectos que podem colaborar
para o aumento do risco de estresse, uma
vez que o professor pode sentir que necessita
exercitar trabalho de grande responsabilidade
sem dispor de autonomia suficiente para
a produção de resultados acadêmicos e
comportamentais nos alunos (ALDWIN, 2007).
É possível que a persistência de estressores que
coloquem em risco a percepção de autonomia
e responsabilidade possa levar a atitudes de
esquiva frente ao trabalho, a fim de se buscar a
restauração do self e o equilíbrio. Tal postura,
todavia, pode comprometer os relacionamentos
estabelecidos em sala de aula com os alunos.
É inegável que, para evitar o estresse e
seus danos recorrentes, não seja necessária apenas uma mudança de atitude do professor frente
à educação inclusiva, modalidade que intensifica a diversidade na escola, com desafios e limitações que requerem constantes tentativas de
adaptação. Obviamente, o investimento em recursos e em formação deve acompanhar de forma imprescindível esta proposta. Cabe lembrar,
então, que o desenvolvimento das atribuições
laborais do professor, acima de tudo, necessita
ser subsidiado por políticas de incentivo salarial, material e formativo, direcionadas tanto ao
profissional quanto ao contexto escolar e que
favoreçam os processos de saúde e a qualidade
das experiências de aprendizagem criadas.
Há a necessidade de uma investigação mais
ampla acerca da utilização das EE e seu impacto
na redução do estresse, tendo em vista os diferentes estressores que atuam no contexto escolar. Na
amostra avaliada, houve mais comportamentos ligados ao planejamento, busca de informações ou
reestruturação cognitiva diante de desafios entre
as professoras sem estresse. É possível, com isso,
que a manifestação desses comportamentos possa
favorecer a autoeficácia percebida e ter efeito protetor contra o estresse docente.
Kelly A. SILVEIRA; Sônia Regina F. ENUMO; Renata N. POZZATTO; Kely M. P. de PAULA. Indicadores de estresse e...
Pode-se pensar também que a percepção
de autoeficácia no trabalho, em si, apesar
de poder ocasionar um maior esforço para
mudança das condições estressoras, na medida
em que se acredita ser capaz de fazê-lo (ALMOG;
SHECHTMAN, 2007), pode não ser capaz de
proteger o profissional do estresse, caso a
presença e a percepção dos estressores seja m
intensas, de modo a comprometer a relação
entre a autonomia e as responsabilidades
ligadas ao trabalho (ALDWIN, 2007).
Desse modo, se acompanhado de investimentos materiais, formativos e em recursos
humanos, o sentimento de autoeficácia pode
contribuir para o bem-estar do professor e sua
satisfação. Isso torna o ambiente de trabalho
mais saudável, também para os alunos, na medida em que possibilita exercer a crença de controle e de modificação do ambiente (BANDURA,
1997) favorecendo a manifestação de EE mais
adaptativas (POCINHO; CAPELO, 2009).
É necessário destacar que, embora pequena, a amostra por nós analisada foi significativa para a região onde a pesquisa foi
realizada, de modo que novas investigações
com amostras maiores e mais abrangentes
podem vir a complementar os dados encontrados. Seria também interessante acompanhar o cotidiano dos profissionais, suas per-
cepções sobre o trabalho em salas inclusivas
e o relacionamento manifesto com os alunos
ao longo do ano, para melhor observar os
efeitos longitudinais da docência no contexto inclusivo sobre as percepções construídas,
com comportamentos exibidos e os níveis de
estresse apresentados.
Os resultados obtidos ajudam a
confirmar a presença do estresse entre as
professoras, além de destacar os principais
estressores percebidos no desenvolvimento
do trabalho. Destacam a presença de fatores
estressantes complementares à educação
inclusiva que podem ampliar a experiência de
estresse, apesar da presença, em si, de alunos
com NEE não ter sido apontada como fator
significativo de estresse.
Portanto, são interessantes intervenções preventivas voltadas ao desenvolvimento de treino para a manifestação assertiva das
competências pessoais adquiridas durante a
formação acadêmica, profissional ou pessoal,
considerando a realidade do trabalho e seus
desafios. Nesse sentido, é útil a organização de
intervenções que construam, junto com os docentes, formas que facilitem a administração
de situações estressoras a partir de treinamento em recursos de coping mais adequados ao
contexto escolar.
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Recebido em: 06.09.2012
Aprovado em: 18.02.2013
Kelly Ambrosio Silveira é doutoranda em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade
Federal do Espírito Santo e bolsista de doutorado do CNPq/MCTI.
Sônia Regina Fiorim Enumo é doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo; Docente do Programa de PósGraduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, e orientadora no Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo e bolsista de produtividade em pesquisa em nível 1B do CNPq/MCTI.
Renata Nascimento Pozzatto é aluna do curso de Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo,
bolsista de Iniciação Científica do PIBIC/CNPq.
Kely Maria Pereira de Paula é psicóloga e professora do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento e
do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo, doutora em Psicologia pela
Universidade Federal do Espírito Santo.
142
Kelly A. SILVEIRA; Sônia Regina F. ENUMO; Renata N. POZZATTO; Kely M. P. de PAULA. Indicadores de estresse e...
Interações comunicativas entre uma professora e um
aluno com autismo na escola comum: uma proposta de
intervençãoI
Rosana Carvalho GomesII
Débora R. P. NunesII
Resumo
Os aspectos polêmicos que envolvem o processo de inclusão de
educandos com autismo nas salas de aula comuns têm suscitado
debates amplos nas últimas décadas. Um dos principais desafios
apontados por professores para realizar esse tipo de inclusão
são os prejuízos na comunicação, tipicamente evidenciados por
alunos com esse diagnóstico. Desse modo, torna-se imperativo
o desenvolvimento de programas de intervenção focados no
desenvolvimento das habilidades comunicativas desses alunos.
Tendo isso em vista, o objetivo do presente estudo foi avaliar os efeitos
de um programa de intervenção nas interações comunicativas, no
contexto da sala de aula comum, entre um aluno não falante de 10
anos, com diagnóstico de autismo, e sua professora. Os dados foram
coletados em uma escola de Ensino Fundamental, localizada na
cidade de Natal (RN). No programa de intervenção, a professora foi
capacitada a empregar estratégias do ensino naturalístico e recursos
da comunicação alternativa ampliada para aumentar a frequência
de interações com o aluno durante três rotinas da sala de aula.
Com base em um delineamento de pesquisa quase experimental
do tipo A-B (linha de base e tratamento) foram identificadas
mudanças qualitativas e quantitativas nas interações professoraaluno, logo após a implementação do programa de intervenção.
Limitações do estudo são apresentadas e discutidas a partir dos
dados observacionais e registros das interações entre a díade.
Palavras-chave
Educação inclusiva — Autismo — Comunicação alternativa e
ampliada.
I- Dissertação de Mestrado financiada
pela CAPES.
II- Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, Natal, RN, Brasil.
Contatos: [email protected];
[email protected]
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 143-161, jan./mar. 2014.
143
Communicative interactions between a teacher and a
student with autism in regular schools: an intervention
proposal I
Rosana Carvalho GomesII
Débora R. P. NunesII
Abstract
The controversial aspects involving the process of inclusion of
students with autism in public school classrooms have sparked
extensive debate in recent decades. One of the main challenges faced
by teachers to perform this type of inclusion are impairments in
communication, typically evidenced by students with this diagnosis.
Thus, it becomes imperative to develop intervention programs focused
on the development of the communicative skills of these students.
Keeping this in view, the aim of this study was to evaluate the effects
of a program of intervention on the communicative interactions, in
the context of common classrooms, between a non-speaking student
aged 10 years, diagnosed with autism, and his teacher. Data were
collected in a primary education school located in Natal city, Rio
Grande do Norte state. In the intervention program, the teacher was
trained to employ naturalistic teaching strategies and resources of
extended alternative communication to increase the frequency of
interactions with the student during three routines of the classroom.
Based on a quasi-experimental research design of AB type (baseline
and treatment), we identified qualitative and quantitative changes
in teacher-student interactions shortly after the implementation of
the intervention program. Limitations of the study are presented
and discussed on the basis of observational data and records of the
interactions between the dyad.
Keywords
Inclusive education — Autism — Extended and alternative
communication.
I- Master’s thesis funded by CAPES.
II- Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, Natal, RN, Brazil.
Contact: [email protected];
[email protected]
144
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 143-161, jan./mar. 2014.
Introdução
O autismo é um transtorno do
desenvolvimento neurobiológico, definido por
critérios essencialmente clínicos. Passível de ser
detectado antes dos 36 meses de vida, o autismo
é o mais prevalente e conhecido dentre os
Transtornos Globais do Desenvolvimento (TGD),
acometendo homens em proporção quatro vezes
superior às mulheres. Para que se tenha uma
dimensão do contingente populacional de que
estamos tratando, ressaltamos que pesquisas
epidemiológicas internacionais indicam que
os TGD afetam um em cada 160 indivíduos
(ELSABBAGH, 2012). No Brasil, os valores
são ainda maiores: um estudo conduzido por
Paula et al. (2011) sugere que o autismo e suas
variações afetam um em cada 350 brasileiros.
No que se segue, passamos a descrever
algumas das características típicas de pessoas
diagnosticadas com autismo, consideradas por
nós como relevantes para o presente estudo.
Quanto ao comportamento, à interação social e
à comunicação de pessoas diagnosticadas como
autistas, percebem-se prejuízos qualitativos e
quantitativos bastante marcados (APA, 2002).
Nos casos de comportamentos atípicos, por
exemplo, pode haver adesão aparentemente
inflexível a rotinas desadaptativas, rituais não
funcionais, padrões restritos de interesses, além de
maneirismos motores estereotipados e repetitivos.
Os prejuízos qualitativos nas interações
sociais são evidentes nos comportamentos
não verbais, tais como dificuldades em
manter o contato visual ou a presença de
expressões faciais e posturas corporais
atípicas durante interação interpessoal. Cabe,
ainda, ressaltar aspectos como o fracasso em
desenvolver relacionamento com pares, a falta
de reciprocidade emocional e a ausência de
tentativas em compartilhar prazer, interesses ou
realizações com o outro (APA, 2002).
As alterações da linguagem podem
variar de acordo com o grau de severidade
do quadro clínico. Para que se tenha uma
ideia, aproximadamente 30% dos autistas são
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 143-161, jan./mar. 2014.
desprovidos da linguagem verbal (KLIN, 2006).
Outros, apesar de desenvolverem a linguagem, não
apresentam intenção comunicativa ou exibem
atipicidades, como ecolalia, inversão pronominal
e dificuldades na prosódia (MACEDO; ORSATI,
2011). Adicionalmente, o sistema de comunicação
gestual, tanto em indivíduos vocais quanto
não vocais, pode ser deficitário (APA, 2002).
Além disso, o cometimento na compreensão da
linguagem falada é outra característica comum
dessa população (MACEDO; ORSATI, 2011;
HALL, 2012).
A tríade sintomatológica que caracteriza
o perfil da pessoa com autismo não pode
ser ignorada no contexto da escola. As
especificidades da síndrome podem interferir
no aprendizado e na inclusão social desses
indivíduos em ambientes educacionais (HALL,
2012; NUNES, 2012). A proximidade física com
os colegas, a dificuldade em apreender regras
sociais, a falta de compreensão de instruções
verbais ou a incapacidade em utilizar a
linguagem falada podem representar desafios
para essa população.
Vale ressaltar, ainda, que estudos
nacionais e internacionais revelam que os
professores se sentem despreparados para lidar
com a sintomatologia autista no contexto da
sala de aula comum, conforme já estudado em
diversas ocasiões (MCGREGOR; CAMPBELL,
2001; ROBERTSON; CHAMBERLAIN; KASARI,
2003; ALVES, 2005; MARTINS, 2007; SERRA,
2008). Ao serem interrogados, esses docentes
indicam que um dos principais desafios é educar
alunos que apresentam limitada competência
comunicativa (MCGREGOR; CAMPBELL, 2001).
Os prejuízos comunicativos tipicamente
observados nessa população podem ser
minimizados pelo uso da Comunicação
Alternativa e Ampliada (CAA) (NUNES, 2008;
WENDT, 2009; MACEDO; ORSATI, 2011). A
comunicação alternativa é aquela em que os
recursos substituem a fala, e a ampliada é aquela
em que esses recursos suplementam a fala.
Estudos sobre CAA no Brasil têm crescido
nas últimas décadas (CUNHA, 1997; ARAUJO;
145
NUNES, 2003; DELIBERATO, 2009; SCHIRMER;
NUNES et al., 2009; PAULA; ENUMO, 2007;
WALTER; ALMEIDA, 2010). Trata-se de
uma área da prática clínica e educacional
que objetiva compensar, temporária ou
permanentemente, os prejuízos na comunicação
expressiva e receptiva. Ela envolve o uso de
gestos manuais, expressões faciais e corporais,
símbolos gráficos (fotografias, gravuras,
desenhos, linguagem alfabética, objetos reais
e miniaturas), voz digitalizada ou sintetizada,
dentre outros meios que podem ser usados para
efetuar a comunicação face a face de pessoas
que apresentam limitações no uso e/ou na
compreensão da linguagem oral.
A metodologia de intervenção utilizada
para capacitar populações com prejuízos na
linguagem a utilizar os recursos da CAA é
o Ensino Naturalístico (EN), o qual se tem
destacado em muitas das pesquisas realizadas
na área (LAMONICA, 1993; NUNES, 2000;
PAULA; NUNES, 2003; ARAUJO; NUNES,
2003; NUNES et al., 2009). O EN é um
modelo geral de intervenção em linguagem,
que inclui diversos programas de tratamento
(CUNHA, 1997). De acordo com Nunes (1992),
os seguintes elementos são considerados
comuns a esses programas: a) o uso de
reforçadores indicados pelo aprendiz; b) o
interesse da criança, considerado como fio
condutor no processo de aprendizagem; c)
as contingências do meio natural utilizadas
para o aumento na frequência de emissões
de respostas desejadas; d) a ênfase dada à
competência comunicativa do educando
em vez da linguagem per se; e e) o ensino
realizado durante atividades cotidianas em
contextos e ambientes naturais.
Dentre as estratégias de ensino derivadas
da abordagem naturalística, destacam-se: o
arranjo ambiental, o modelo dirigido à criança,
o mando e a espera. Esses procedimentos, que
serão posteriormente definidos no presente
artigo, permitem à criança aumentar a frequência
de interação com pessoas e objetos do seu meio
(CUNHA, 1997).
146
Com relação à eficácia desse tipo de
abordagem, ressaltamos que, em uma avaliação
de programas de intervenção dirigidos para
populações com autismo, o uso das Estratégias
Naturalísticas de Ensino (ENE) foi categorizado
como uma prática cientificamente válida1
(NATIONAL AUTISM CENTER, 2013). No
contexto educacional, no entanto, o número
de estudos que avaliam a eficácia das ENE no
ensino da CAA para populações com autismo é
limitado (NUNES et al., 2009).
A pesquisa realizada por Nunes et al.
(2009) investigou o trabalho de uma professora
que recebeu capacitação para utilizar as ENE
para ensinar uma menina autista, de 6 anos, a
usar os recursos da CAA em um ambiente de
sala de aula especial. Os resultados do estudo
evidenciaram que a professora, após o programa
de treinamento, passou a se comunicar em
vários contextos de interação com a criança.
Houve generalizações das práticas aprendidas
para outro contexto e aumento na frequência
de turnos comunicativos da criança.
Tendo em vista a relevância desse tipo
de investigação, o presente artigo tem como
propósito a ampliação dos estudos nesse campo,
focando o uso dos recursos da CAA por aluno
com autismo, no contexto da escola comum.
Assim, visamos a avaliar os efeitos do emprego
de um programa de capacitação do professor
para a utilização dos recursos da CAA com um
aluno com autismo, por meio de ENE.
Metodologia da pesquisa
O presente estudo foi conduzido com Luan,
um aluno com diagnóstico de autismo, e Sônia,
sua professora. Na ocasião em que realizamos
a pesquisa, o menino havia completado 10
anos e estava matriculado no 3o ano de uma
escola comum do Ensino Fundamental. Aos 3
anos, recebera diagnóstico de autismo, por um
neuropediatra. Adicionalmente, por meio do
1- Práticas cientificamente válidas são descritas como métodos e
técnicas que tenham produzido resultados positivos quando testados
experimentalmente (SIMPSON, 2005).
Rosana Carvalho GOMES; Débora R. P. NUNES. Interações comunicativas entre uma professora e um aluno...
instrumento Childhood Autism Rating Scale –
CARS2 (PEREIRA et al., 2008), aplicado pelas
autoras no início da pesquisa, obtiveram como
resultado a constatação de que o grau de autismo
de Luan foi considerado severo (52 pontos).
No que se refere ao comportamento, suas
verbalizações eram limitadas e desprovidas de
intenção comunicativa. A ausência de fala
funcional não era compensada pelo uso de gestos
ou outras formas não verbais de comunicação.
O aluno demonstrava, ainda, dificuldade em
interagir com seus pares, limitada compreensão
da fala e exibição de estereotipias motoras e
inflexibilidade comportamental.
Sônia, 41 anos, trabalhava há 14 como
professora. Sua formação profissional era de
nível médio, no curso de magistério. Embora
tivesse experiência como docente em outros
estabelecimentos de ensino, não havia trabalhado
com crianças com necessidades educacionais
especiais, até o momento da pesquisa.
O estudo foi conduzido em uma sala de
aula comum de 3o ano de uma escola da rede
privada de ensino. A instituição, localizada em
um bairro de classe média da cidade de Natal
(RN), atendia aproximadamente a 120 alunos
da Educação Infantil ao Ensino Fundamental.
Foram utilizados alimentos, jogos,
atividades pedagógicas e pictogramas contendo
fotografias ou símbolos PCS3 dos objetos
ou atividades realizadas durante as rotinas
escolares. Uma câmera filmadora portátil, uma
câmera fotográfica digital e um laptop foram os
equipamentos usados.
Para registrar as interações entre
professora e aluno, optou-se pelo uso de dois
roteiros de entrevista individual e um diário de
campo, no qual foram registradas as impressões
e anotações da pesquisadora (1a autora).
2- CARS - entrevista estruturada, traduzida e validada no Brasil por
Pereira e colaboradores (2008), que avalia o comportamento em 14
habilidades tipicamente afetadas pelo autismo. A pontuação varia de 15
a 60, sendo 30 o ponto de corte para o autismo (PEREIRA et al., 2008).
A escala auxilia no diagnóstico diferencial e na classificação do grau de
severidade da síndrome, como leve, moderada ou severa. A aplicação pode
ser feita por profissionais de qualquer área com experiência em autismo.
3- Símbolo PCS – Picture Communication Symbols.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 143-161, jan./mar. 2014.
O presente estudo caracteriza-se como
uma pesquisa quase experimental, com um
delineamento do tipo A-B (KENNEDY, 2005). As
respostas comunicativas da díade professoraaluno constituíram as variáveis investigadas.
Essas
variáveis
foram,
inicialmente,
categorizadas em tipos de turno, conforme
indicado no Quadro 1 abaixo:
Quadro 1 – Tipos de turnos
Turno
Definição
Resposta
Enunciados verbais/vocais, gestuais (gestos, língua de
sinais e expressões faciais) ou pictográficos emitidos
pelo aluno/professora após pergunta/solicitação do
parceiro.
Iniciativa
Enunciados verbais/vocais, gestuais (gestos, língua de
sinais e expressões faciais) ou pictográficos emitidos
pelo aluno/professora sem ocorrência de solicitação
de resposta do parceiro.
Fonte: Elaboração das autoras do artigo.
Os turnos (iniciativa e resposta) foram,
posteriormente, categorizados em cinco modalidades, conforme indicado no Quadro 2,
abaixo:
Quadro 2 – Modalidade de turnos
Modalidade
Definição
Gestual
Olhar, expressão facial, contato corporal e ação
gestual (convencional; simbólica e de contenção)
emitidos pelo aluno ou professora durante um
turno (iniciativa ou resposta).
Verbal/vocal
Pictográfica
Gestual e
pictográfico
Verbal/vocal e
pictográfico
Verbalizações, sons guturais, gemidos,
murmúrios, balbucios ou vocábulos não
inteligíveis emitidos pelo aluno ou professora
durante um turno (iniciativa ou resposta).
Uso de pictograma (fichas com fotos da rotina e
objetos do aluno dispostas na mesa, ou em uma
pasta de comunicação) pelo aluno ou professora
durante um turno (iniciativa ou resposta).
Uso simultâneo de duas modalidades: gráfico
(pictogramas) e gestual (gestos manuais/
corporais e expressões faciais) pelo aluno ou
professora durante um turno (iniciativa ou
resposta).
Uso simultâneo de duas modalidades: verbal
(fala inteligível)/vocal (vocábulos não inteligíveis)
e gráfico (pictogramas) pelo aluno ou professora
durante um turno (iniciativa ou resposta).
Fonte: Elaboração das autoras do artigo.
147
Como se trata de um estudo no qual
as autoras participaram ativamente das
interações entre Luan e Sônia, cabe apontar
para o fato de que a primeira autora, com
formação em pedagogia, atuou como agente
de capacitação. Ela exercia, há dez anos, a
função de pedagoga, tendo trabalhado durante
cinco anos com crianças com deficiência
em escola comum no estado do Piauí. No
presente manuscrito, essa será identificada
como pesquisadora.
O projeto foi inicialmente submetido ao
Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (Parecer no
038/2010; CAAE no 0212.0 051.000-09). A
formalização do consentimento se deu por
meio de um Termo de Consentimento Livre
e Esclarecido (TCLE), assinado pela mãe do
aluno e pela professora.
Após a aprovação do projeto pelo
Comitê de Ética e a assinatura do TCLE,
o estudo foi operacionalizado em seis
etapas distintas: entrevistas/observações,
treinamento dos assistentes de pesquisa,
identificação das rotinas-alvo, linha de base,
capacitação e intervenção. Cada uma delas
foi descrita abaixo:
Etapa 1: entrevistas/observações.
A pesquisadora realizou uma entrevista
com a mãe e outra com a professora de Luan,
na casa e na escola do aluno, respectivamente.
Os encontros, com duração aproximada de 60
minutos, foram estruturados considerandose um roteiro de entrevista previamente
elaborado pelas autoras. Com o propósito
de complementar os dados das entrevistas,
assim como identificar as habilidades
comunicativas do aluno no contexto escolar,
a pesquisadora realizou quatro sessões de
observação de Luan, com duração média de
60 minutos, no ambiente escolar. Os dados
foram devidamente registrados em um diário
de campo.
148
Etapa 2: treinamento dos assistentes
de pesquisa.
Duas alunas graduandas do curso de
pedagogia da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte foram treinadas no sentido
de categorizarem as variáveis previamente
definidas. Ambas foram bolsistas, durante três
anos, em um projeto de pesquisa envolvendo o
uso da comunicação alternativa para alunos com
autismo. A capacitação dessas duas bolsistas
foi implementada pelas autoras e envolveu
procedimentos como discussões, análise de
vídeos e leituras. Após a familiarização com
os procedimentos empregados, as assistentes
classificaram as sessões de linha de base e
intervenção. Ao término das videogravações,
realizadas pela pesquisadora, as sessões eram
então entregues às alunas. Cada assistente
ficou responsável pela categorização de 50%
das sessões. Com o propósito de verificar o grau
de fidedignidade das categorias de respostas
analisadas no presente estudo, a pesquisadora,
atuando
como
segunda
avaliadora,
randomicamente avaliou 50% do total das
sessões analisadas pelas duas assistentes.
Vale ressaltar que as assistentes de pesquisa
atuaram como primeiras avaliadoras. O cálculo
de concordância foi obtido por meio do índice
de concordância descrito por Fagundes (1985).
Esse índice variou entre 73 e 100%, indicando
boa fidedignidade.
Etapa 3: Identificação das rotinas alvo.
A partir dos registros de observações
e entrevistas foram selecionadas, junto com
a professora, três rotinas durante as quais
ocorreriam as intervenções: no decorrer
do lanche, em atividades pedagógicas e
na entrada da escola. Essas rotinas foram
escolhidas porque aconteciam diariamente e
pelo fato de a professora expressar dificuldade
em se comunicar com o aluno durante as
referidas atividades. No presente artigo, serão
Rosana Carvalho GOMES; Débora R. P. NUNES. Interações comunicativas entre uma professora e um aluno...
apresentados os resultados das duas primeiras
rotinas: lanche e atividade pedagógica.
Etapa 4: Linha de base.
Nessa fase, a professora foi instruída
a interagir livremente com o aluno nas
três rotinas selecionadas. As sessões foram
videografadas, e a frequência de turnos e a
modalidade de respostas utilizadas pela díade
foram mensuradas. Houve também avaliação a
respeito do fato de a professora utilizar ou não,
de forma espontânea, as ENE. Os critérios foram
definidos no Quadro 3, abaixo:4
Quadro 3 – Estratégias naturalísticas de ensino utilizadas no
estudo
Estratégias
Definição
Consiste na organização do ambiente com
pictogramas acessíveis ao aluno e objetos de
Arranjo ambiental
seu interesse dispostos em seu campo visual,
mas fora de seu alcance.
A professora tece comentários, formula
perguntas e faz solicitações utilizando,
Mando com CAA
simultaneamente, a linguagem oral e o sistema
pictográfico de comunicação.
dos gráficos, a estabilidade na frequência
de turnos da professora na rotina do lanche.
Foram realizados, na escola, três encontros de
capacitação com a professora. Nesses episódios,
Sônia compartilhou com a pesquisadora seu
planejamento bimestral, no qual estavam
descritos os conteúdos acadêmicos. Em seguida,
foram apresentados segmentos de sessões de
linha de base à professora. A partir do material
videografado, a professora e a pesquisadora
elencaram fatores que pareciam prejudicar a
interação da díade, assim como aspectos positivos
do comportamento de Luan e da própria docente.
A partir dessas discussões, foram descritos
os conceitos de Comunicação Alternativa
e Ampliada e apresentadas as quatro ENE,
previamente definidas neste manuscrito. Com o
auxílio da pesquisadora, foram confeccionados
pictogramas5 a serem empregados durante as três
rotinas e reelaboradas as atividades acadêmicas
apresentadas no planejamento de Sônia.
Etapa 6: intervenção
Essa etapa teve início quando foi
evidenciada, por meio de inspeção visual
Ao término da capacitação, Sônia foi
instruída a utilizar as estratégias aprendidas nas
rotinas em que recebeu o treinamento. Ela não
recebia instruções da pesquisadora durante esses
episódios, mas, nos encontros subsequentes,
a pesquisadora fornecia dicas pontuais sobre
as interações previamente realizadas. As
rotinas foram videografadas, e, posteriormente,
analisados: a frequência de turnos, a modalidade
de respostas da díade e os tipos de ENE
empregados pela professora.
Dois roteiros de entrevista foram elaborados
pelas autoras. No instrumento utilizado com a
mãe constavam itens sobre o desenvolvimento do
aluno, seu histórico social e escolar, assim como
suas rotinas em casa. Com a professora, o roteiro
incluía perguntas sobre o comportamento de Luan
em sala de aula e os tipos de atividades realizadas
com o aluno. As entrevistas foram gravadas e
transcritas pela pesquisadora.
4- Essas estratégias foram adaptadas de estudos realizados previamente
por Oliveira (2002), Souza (2000), Nunes (2000; 2005) e Danelon (2009).
5- Fotos da rotina de Luan na sala de aula (lavar as mãos, lancheira,
biscoito, batata, água).
Modelo
A professora oferece ajuda física com o
objetivo de guiar o aluno para fixar a atenção
no que está fazendo. Esse procedimento é
acompanhado por comentários, perguntas ou
solicitações verbais.
Espera
A professora aguarda, de forma silenciosa, a
iniciativa de interação do aluno.
Fonte: Elaboração das autoras do artigo.
A análise dessas estratégias foi realizada
da seguinte maneira: a pesquisadora assistia
às sessões videografadas, as quais haviam sido
codificadas, e transcrevia os episódios em que
as ENE eram utilizadas por Sônia.
Etapa 5: capacitação
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 143-161, jan./mar. 2014.
149
As sessões de linha de base e intervenção
foram videografadas pela pesquisadora. O
tempo de duração das interações variava de
cinco a dez minutos, aproximadamente. Para
fins de análise e controle da variável tempo,
apenas os primeiros cinco minutos de interação
foram considerados nas avaliações.
A análise dos dados ocorreu em duas etapas.
Inicialmente, as variáveis turno e modalidade de
respostas foram codificadas pelas assistentes de
pesquisa e pela pesquisadora. A frequência dessas
variáveis foi disposta em gráficos. Posteriormente,
a pesquisadora revisou as sessões codificadas e
transcreveu os episódios em que as ENE foram
empregadas pela professora.
Tratando-se de uma pesquisa quase
experimental (A-B), a análise ocorreu por meio de
inspeção visual dos dados plotados graficamente.
Dessa forma, as variáveis (turno e modalidade de
respostas) foram categorizadas e, posteriormente,
suas frequências disponibilizadas em gráficos.
O critério para finalizar a fase de linha
de base e iniciar a capacitação foi a estabilidade
observada na frequência de turnos da professora
em uma das rotinas selecionadas, conforme
exposto anteriormente. Em seguida, as mesmas
sessões foram analisadas pela pesquisadora,
que transcreveu os episódios em que as ENE
foram empregadas nas fases de linha de base
e de intervenção. As informações dos gráficos
e as transcrições da pesquisadora foram
complementadas com os dados das entrevistas
e do diário de campo.
Resultados
O objetivo geral do presente estudo
foi avaliar os efeitos de um programa de
intervenção nas interações comunicativas
entre um aluno com diagnóstico de autismo
e sua professora, no contexto da sala de aula
comum. A partir desse objetivo, três questões
norteadoras da pesquisa foram elaboradas:
1. Quais os efeitos do programa de capacitação
no uso de estratégias de ensino empregadas
pela professora?
150
2. Quais os efeitos do programa de capacitação
nos turnos (iniciativas e respostas) da professora
e do aluno?
3. Quais os efeitos do programa de capacitação
nas modalidades dos turnos da díade?
As respostas foram extraídas dos diários
de campo e da análise das sessões videografadas,
no decorrer dos cinco meses de estudo. No total,
foram realizadas 22 sessões (11 de linha de base
e 11 de intervenção), em cada rotina.
Quanto aos efeitos do programa de
capacitação no uso das estratégias de ensino
empregadas pela professora, destacou-se o fato
de que antes da intervenção foram detectadas
situações nas quais as ENE poderiam ter sido
empregadas no momento do lanche, o que
não ocorreu. Esse fato foi particularmente
evidenciado na sessão três, linha de base,
descrita a seguir:
Neste dia há dois cartões sobre a mesa
de Luan, o da água e o da atividade
pedagógica. Outros cartões de alimentos
(batata e biscoito) e atividades rotineiras
(lavar as mãos) estão na mesa da
professora, fora do campo visual do aluno.
A professora se aproxima de Luan e diz:
“Lanchar, vambora!” Ela o conduz pela
mão até o banheiro e fornece ajuda física
para que ele lave as mãos. Eles voltam para
a sala de aula. Luan senta em sua carteira
e a professora caminha até a prateleira. Ela
pega a lancheira de Luan, abre e leva até
ele. Ele olha para a lancheira. Ela pergunta:
“Você quer batatinha ou biscoito?”. Ele
pega o pacote de batatas. Ela toma o
pacote das mãos de Luan, abre e devolve a
ele. (GOMES, cd 1, 2010)
Na sessão explicitada acima, alguns dos
pictogramas que Luan poderia ter utilizado
durante a interação estavam fora de seu
campo visual. O emprego de estratégias como
o mando com CAA, a espera e o arranjo
ambiental pela professora seria apropriado no
contexto descrito. Sendo assim, ela poderia ter
Rosana Carvalho GOMES; Débora R. P. NUNES. Interações comunicativas entre uma professora e um aluno...
sinalizado a rotina de lavar as mãos e lanchar
utilizando os pictogramas que estavam em sua
mesa (mando com CAA). Da mesma forma,
poderia ter mostrado ao aluno os pictogramas
da batata e do biscoito, incitando-o a indicar
o que gostaria de lanchar. Em seguida, em vez
de abrir o pacote de batatas para ele, poderia
ter utilizado o procedimento de espera para
estimular a iniciativa de interação do aluno. O
saco de batatas poderia ter permanecido com
a professora e oferecidas poucas batatas, por
vez, a ele. Isso caracterizaria o procedimento
de arranjo ambiental, que poderia favorecer
o aumento na frequência de iniciativas de
interação do aluno.
O relato da sessão cinco (linha de
base) evidencia a carência de uso das ENE
durante as rotinas pedagógicas. Nessa sessão,
a turma está realizando uma atividade de
matemática enquanto Luan senta no fundo da
sala manipulando, de forma estereotipada, um
pincel. Na mesa de Luan há seis pictogramas,
duas cédulas de 2 e 5 reais e duas cópias
pequenas das mesmas notas. A proposta da
atividade é para que Luan coloque as cópias das
cédulas sobre as notas originais.
A professora se aproxima de Luan e retira
o pincel de sua mão, dizendo: “Tá bom,
você já brincou demais!”. Ela puxa o
menino para cima, pelas mãos. Ele resiste,
contraindo o corpo para o chão. Ela diz:
“Venha!”. Ele levanta e senta na carteira.
Ela mostra: “Olha Luan, 2 reais! Coloca
aqui, ó!”. Ela aponta para a nota original,
solicitando que ele coloque a cópia sobre
ela. (GOMES, cd 1, 2010)
A falta de responsividade de Luan
pode ter sido em função da dificuldade de
compreender a fala da professora. Assim, a
professora poderia ter utilizado os pictogramas
das atividades enquanto dava comandos verbais
ao aluno (mando com CAA). Cabe enfatizar que
o uso de duas modalidades de expressão (verbal
e pictográfica) pode favorecer a compreensão
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 143-161, jan./mar. 2014.
de alguns alunos com diagnóstico de autismo
(HEFLIN; ALAIMO, 2007).
Apesar de ter acesso aos pictogramas na
interação descrita, Luan não os utilizou como
alternativa de expressão. Podemos atribuir esse
comportamento à falta de instruções explícitas de
como utilizá-los. Isso porque estudos anteriores
apontam que a mera exposição da pessoa com
autismo aos recursos da CAA pode ser pouco
eficaz para o desenvolvimento de novas formas
de expressão (NUNES et al., 2009).
Após o programa de capacitação, foram
identificados episódios em que as estratégias
de ensino foram adequadamente utilizadas.
O relato da sessão 16 (intervenção) abaixo,
indicou o uso apropriado do arranjo ambiental
durante a atividade de lanche:
Luan está sentado no chão no canto da
sala. Na carteira dele, localizada ao lado
da professora, há oito cartões de CAA,
incluindo o pictograma da lancheira e do
copo. A lancheira e o copo encontram-se na
prateleira, no canto da sala, à vista dele, mas
fora de seu alcance. (GOMES, cd 2, 2010)
No exemplo acima, observa-se o uso de
arranjo ambiental, uma vez que a professora
colocou os objetos à vista do aluno, mas longe
de seu alcance. Essa organização do ambiente
físico pode instigar, conforme evidenciado
na literatura, iniciativas de interação social
(NUNES, 1992). No caso de Luan, poderia
estimulá-lo a utilizar os pictogramas para
solicitar sua lancheira, que estava inacessível.
Na atividade pedagógica da sessão 16,
descrita a seguir, o aluno tinha à sua frente
várias gravuras de animais separados por
quantidade e colocados em sequência de ordem
numérica. A proposta da atividade era que Luan
colocasse duas fichas ao lado de cada gravura.
A professora aponta para a gravura e diz:
“Olhe uma vaquinha Luan! Coloca aqui
Luan, o número 1 de uma vaquinha!”.
Ela permanece em silêncio, observando o
151
menino por alguns segundos. Ele pega a
figura da vaca. Ela verbaliza: “A vaquinha
não Luan, o numeral 1. Vá Luan, uma
vaquinha, o número 1!”. Luan posiciona
a mão sobre o numeral 1 e olha para a
professora. Ela aponta para a gravura da
vaca e, em seguida, para o numeral. Ela
diz: “Agora uma bolinha, pega Luan!”. Ele
pega a ficha com as bolinhas e põe ao lado
da figura da vaca. Ela verbaliza e aponta
para as fichas: “Olha Luan, que lindo! Uma
vaquinha, o numeral 1 e uma bolinha!
Muito bem Luan! [...]”. (GOMES, 2010, cd 2)
No episódio acima descrito, a professora
realizou a tarefa com Luan utilizando as
gravuras da atividade e a linguagem verbal,
de forma simultânea. Sempre que o aluno
desviava o olhar ou resistia em pegar os
materiais, ela chamava a sua atenção, pegava
sua mão e colocava em cima da gravura,
reiniciando a ação com comando de voz
e indicação das fichas. O pareamento de
estímulos verbais e visuais empregado por
Sônia pode ter favorecido a compreensão do
aluno, mantendo-o atento à tarefa.
O procedimento de espera ocorreu
quando a professora pediu para Luan pegar
as gravuras e colocar nos lugares apontados
por ela. Nesses episódios, era dado um tempo
de aproximadamente dez segundos para ele
dar a resposta. Quando não havia resposta, a
professora repetia a ação, provendo dicas verbais
ou ajudando-o fisicamente no prosseguimento
da atividade.
Apresentados alguns dos principais
procedimentos verificados na interação entre
Luan e Sônia, no que se segue apresentam-se os
efeitos do programa de capacitação nos turnos
da díade nas rotinas investigadas, por meio do
gráfico 1, a qual indica a frequência de turnos
da díade nas sessões de lanche.
Gráfico 1 - Lanche: frequência de turnos da professora e do aluno
Linha de base
30
Intervenção
25
Frequência
20
15
10
5
0
1
2 3
4
5
6
7
8
9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22
Turno da professora
Turnos do aluno
Fonte: dados da pesquisa.
152
Rosana Carvalho GOMES; Débora R. P. NUNES. Interações comunicativas entre uma professora e um aluno...
O Gráfico 1 sugere relativa estabilidade
e baixa frequência de turnos comunicativos da
professora e do aluno nas sessões de linha de
base. Esse fenômeno pode ser justificado pelo
distanciamento físico da díade professora-aluno.
No momento do lanche, Sônia tipicamente
entregava os alimentos a Luan e retornava à
sua mesa. Ele, por sua vez, permanecia em seu
assento, até consumir a merenda. A interação
de Sônia com Luan limitava-se a comandos
verbais, solicitando sua permanência na
carteira até finalizar o lanche. Ele, por vezes,
vocalizava e dirigia o olhar para a professora,
mas, em geral, suas iniciativas de interação não
eram percebidas por ela.
O aumento na frequência de ocorrência
de turnos da díade na fase intervenção pode
ser observado no gráfico 1. Essa tendência
ascendente pode ter sido ocasionada pelas
estratégias implementadas pela professora após
o programa de capacitação. A proximidade física
estabelecida com o aluno, que começou a sentarse ao seu lado, parece ter também favorecido o
aumento na frequência das interações.
O gráfico 2 indica a frequência de turnos
da díade nas rotinas da atividade pedagógica.
Gráfico 2 - Atividade pedagógica: frequência de turnos da professora e do aluno
Linha de base
30
Intervenção
25
Frequência
20
15
10
5
0
1
2
3
4
5
6
7
8
9 10 11
12 13
14 15
16 17 18 19
20 21 22
Turno da professora
Turnos do aluno
Fonte: dados da pesquisa
A maior frequência de interação da díade
ocorreu durante as atividades pedagógicas. Esse
padrão de respostas pode ser justificado pelo fato
de ser o único momento em que a professora
se sentava por mais tempo para interagir,
individualmente, com o aluno. Apesar da elevada
frequência, a qualidade da interação durante a
fase de linha de base nem sempre era positiva.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 143-161, jan./mar. 2014.
Luan mostrava-se pouco responsivo
às tarefas propostas pela professora antes
da intervenção. Essa baixa responsividade
se manifestava por comportamentos como:
reduzida frequência em dirigir o olhar para
a atividade, lassidão das mãos no momento
de segurar os lápis, estereotipias motoras e
tentativas de levantar-se da carteira. Nessas
153
ocasiões, a professora ficava em pé, na frente
dele, fazendo contenção física e empregando
elogios para mantê-lo na tarefa.
O comportamento de desinteresse de Luan
pode ser atribuído à falta de compreensão ou
motivação para realizar as atividades. De fato,
dados observacionais revelaram que, muitas vezes,
as tarefas propostas antes da intervenção pareciam
inapropriadas para ele. Foram identificados
poucos momentos em que Sônia individualizou
a atividade pedagógica, considerando as
necessidades educacionais específicas de Luan.
Conforme aludem Oliveira e Machado (2007), a
falta de adaptação curricular pode determinar a
menor participação acadêmica do educando com
necessidades educacionais especiais na sala de aula
comum. Nesse contexto, as estereotipias motoras
e outras condutas desadaptativas observadas
durante essas atividades possivelmente refletem o
não envolvimento de Luan com as tarefas.
De maneira geral, após a implementação
do programa de capacitação, as atividades
propostas passaram a ser mais bem adaptadas
e realizadas, em grande parte, com o apoio de
pictogramas. Conforme sugerido na literatura,
o uso de recursos visuais pode facilitar a
compreensão de educandos com autismo
(WENDT, 2009). Esse parece ter sido o caso
de Luan. Como possível consequência da
introdução dos recursos de CAA, foi observada
melhora qualitativa nas interações estabelecidas
pela díade. Sônia passou a interagir com Luan
não apenas para redirecioná-lo para a tarefa,
mas também para tecer comentário e fazer
solicitações durante as atividades.
O aumento na frequência de turnos da
professora foi acompanhado pelo aumento
na frequência de turnos do aluno, tanto na
rotina do lanche quanto durante as atividades
pedagógicas. Na medida em que a professora
diminuía a frequência de turnos, o aluno
comportava-se de forma semelhante. Conforme
argumenta Carvalho (1986, 2003, p. 90),
“o comportamento do aluno influencia o
comportamento do professor e vice-versa”.
Para tratar a respeito dos efeitos do
programa de capacitação nas modalidades de
respostas empregadas pela díade, apresentamos
a tabela 1. Ela indica o somatório da
frequência dos turnos gestuais, verbais/vocais,
pictográficos, verbais/vocais/gestuais e verbais/
vocais/pictográficos empregados pela díade
durante todas as sessões de linha de base e
intervenção na hora do lanche.
Tabela 1 – Somatório das frequências de modalidades de turnos empregados pela díade nas rotinas de lanche
Professora
Aluno
Linha de base
Intervenção
Linha de base
Intervenção
Gestual
10
13
23
57
Verbal/vocal
25
69
16
32
Pictográfico
6
2
12
29
Verbal/vocal/ Gestual
20
33
1
5
Verbal/vocal/Pictográfico
12
66
0
9
Total
73
183
52
132
Fonte: Dados da pesquisa.
De modo geral, esses dados refletem um
aumento na frequência de turnos empregados
pela díade, nas diferentes modalidades,
na rotina de lanche, após o programa de
capacitação. A única exceção é uma ligeira
154
queda na frequência de turnos pictográficos
pela professora.
Os gráficos 3 e 4 indicam a porcentagem de
cada modalidade de turno empregada nas sessões
de linha de base e intervenção na hora do lanche.
Rosana Carvalho GOMES; Débora R. P. NUNES. Interações comunicativas entre uma professora e um aluno...
Gráfico 3 – Porcentagem das modalidades de turnos empregados pela professora na hora do lanche
Linha de base
Intervenção
38%
38%
34%
27%
18%
16%
14%
8%
7%
1%
Gestual
Pictográfico
Verbal
Verb/gestual
Verb/picto
Fonte: Dados da pesquisa.
Gráfico 4 - Porcentagem das modalidades de turnos empregados pelo aluno na hora do lanche
Linha de base
44%
Intervenção
43%
31%
24%
23% 22%
2%
Gestual
Verbal
Pictográfico
4%
Verb/gestual
7%
0%
Verb/picto
Fonte: Dados da pesquisa.
O gráfico 3 revela que a professora,
tipicamente, interagia com Luan por meio de
verbalizações acompanhadas ou não por gestos,
antes da intervenção. Após a capacitação, foi
observado aumento expressivo no emprego
dos pictogramas associados à verbalização/
vocalizações e diminuição de turnos gestuais.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 143-161, jan./mar. 2014.
Esses dados sugerem que Sônia substituiu os
gestos pelo uso dos cartões de comunicação,
como ilustra o trecho a seguir:
Luan está no canto da sala com um jogo
de memória do “Menino Maluquinho”
nas maõs. A professora pega o cartão de
155
o aumento de turnos verbais/vocais associados
ao uso de pictogramas. A partir desses dados é
possível conjecturar que Luan passou a explorar
outras modalidades de expressão, como o uso de
pictogramas, após o programa de intervenção.
A Tabela 2, abaixo, indica o somatório
da frequência dos turnos gestuais, verbais,
pictográficos, verbais/gestuais e verbais/
pictográficos empregados pela díade durante
todas as sessões de linha de base e intervenção
na rotina de atividades pedagógicas.
“lavar as mãos” que está sobre a sua mesa.
Ela caminha até o menino e aponta para
o cartão, enquanto diz: “Vamos lavar as
mãos para depois lanchar, vamos Luan?”
(GOMES, cd 2, 2010)
Em relação a Luan, é observada a
preferência pelas modalidades gestuais e
verbais/vocais, antes da intervenção, conforme
revela o gráfico 4. Essa tendência é mantida
após a capacitação. Vale ressaltar, no entanto,
Tabela 2 – Somatório das frequências de modalidades de turnos empregados pela díade nas rotinas de atividades pedagógicas
Professora
Aluno
Linha de base
Intervenção
Linha de base
Intervenção
Gestual
12
10
73
56
Verbal/vocal
37
38
16
22
Pictográfico
9
0
39
40
Verbal/vocal / Gestual
65
69
16
12
Verbal/vocal /Pictográfico
92
110
2
1
Total
215
227
146
131
Fonte: dados da pesquisa.
Assim como na rotina de lanche, a
professora evidenciou aumento da frequência
de turnos após a intervenção. Foi observada,
também, uma diminuição no uso de
pictogramas de forma isolada e um aumento
na modalidade verbal, associada ou não ao uso
dos cartões de comunicação por Sônia. Luan,
por sua vez, diminuiu a frequência de turnos,
após a implementação do programa. De forma
específica, vocalizou mais e empregou menos
gestos associados ou não a vocalizações.
As outras modalidades de expressão não
apresentaram alterações expressivas.
Os gráficos 5 e 6, que se seguem,
indicam a porcentagem de cada modalidade de
turno empregada nas sessões de linha de base e
intervenção nas atividades pedagógicas.
De forma geral, o programa de intervenção
parece ter produzido poucas alterações no que
concerne às modalidades de comunicação
156
empregadas pela professora durante as
rotinas pedagógicas. Sônia priorizou, antes
e após a intervenção, o uso de verbalizações
associadas a pictogramas e gestos. Em seguida,
focalizou expressões verbais isoladas. Por fim,
ela utilizou, de forma mais tímida, gestos e
pictogramas para se comunicar com Luan antes
e depois da intervenção. Vale ressaltar, no
entanto, que, assim como na rotina de lanche,
houve aumento no emprego das verbalizações
associadas ao uso de pictogramas e diminuição
na porcentagem geral de gestos.
Após o programa de intervenção, Luan
apresentou leve crescimento no uso de formas
pictográficas e verbais/vocais de expressão. Foram
detectados a diminuição no emprego de gestos e
gestos associados a verbalizações/vocalizações.
A utilização de formas verbais de expressão
associada ao uso da comunicação alternativa
manteve-se estável nas duas fases do estudo.
Rosana Carvalho GOMES; Débora R. P. NUNES. Interações comunicativas entre uma professora e um aluno...
Gráfico 5 - Porcentagem das modalidades de turnos empregados pela professora na atividade pedagógica
Linha de base
Intervenção
48%
43%
30% 30%
17% 17%
6%
4%
Gestual
4%
0%
Pictográfico
Verbal
Verb/gestual
Verb/picto
Fonte: dados da pesquisa.
Gráfico 6 - Porcentagem das modalidades de turnos empregados pelo aluno na atividade pedagógica
Linha de base
Intervenção
50%
43%
31%
27%
17%
11%
11%
9%
1%
Gestual
Verbal
Pictográfico
Verb/gestual
1%
Verb/picto
Fonte: dados da pesquisa.
Discussão
O objetivo do presente estudo foi avaliar
os efeitos de um programa de intervenção
psicopedagógica nas interações comunicativas
entre um aluno não falante, na faixa etária
de 10 anos, com diagnóstico de autismo, e
sua professora, no contexto da sala de aula
comum. De forma específica, a investigação
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 143-161, jan./mar. 2014.
buscou identificar os efeitos do programa: a)
no uso das ENE empregadas pela professora; b)
nos turnos da díade; e c) nas modalidades de
respostas da díade. O estudo foi delineado como
uma pesquisa quase experimental do tipo A-B,
tendo como cenário duas rotinas escolares: a
hora do lanche e as atividades acadêmicas.
Os resultados indicaram momentos
de baixa frequência de interação social entre
157
Sônia e Luan no início da pesquisa. O uso de
verbalizações como modalidade de expressão
era predominante no repertório da professora,
e o uso de gestos, no repertório de Luan.
Como forma de aumentar a frequência de
interações na díade, objeto do presente estudo,
um programa de capacitação foi proposto à
professora. Esta, ao rever sua prática nas sessões
videografadas, expôs suas angústias e sinalizou
as dificuldades de interagir com o aluno. Em
seguida, em colaboração com a pesquisadora,
identificou estratégias que poderiam favorecer
essa interação. Nesse contexto, a pesquisadora
apresentou as ENE e os recursos da CAA como
forma de incitar a comunicação. O caráter
individualizado do programa parece ter sido
de fundamental importância para a adesão da
professora à proposta de intervenção.
Após a capacitação, Sônia aumentou a
frequência de turnos comunicativos e o uso de
pictogramas associados a enunciados verbais,
e demonstrou adequado emprego das ENE nas
duas rotinas investigadas. A ampliação na
frequência de turnos do aluno foi observada
nas rotinas de lanche, mas não durante as
atividades pedagógicas. O uso dos recursos de
CAA por Luan ganhou notoriedade nas sessões
de lanche, após o programa de capacitação. A
utilização de gestos, no entanto, permaneceu
sendo a principal forma de expressão de Luan,
nas duas rotinas investigadas.
Considerações finais
A literatura científica revela resultados
promissores sobre o uso dos recursos da CAA
e de Estratégias Naturalísticas de Ensino
158
no desenvolvimento das habilidades de
comunicação de indivíduos desprovidos de fala
articulada, como os autistas. A transposição
dessas práticas da teoria para a sala de aula
pode ser viabilizada pela participação ativa
do professor, como agente de intervenção, em
programas instrucionais como o apresentado
no presente manuscrito.
Limitações metodológicas são evidenciadas no presente estudo. Como em qualquer
pacote de intervenções, em que múltiplas estratégias são ensinadas, é difícil estabelecer o nível
apropriado de cada variável independente para
otimizar respostas (TANNOCK; GIROLAMETTO,
1992). Ou seja, caso Sônia tivesse empregado as
ENE ou os recursos da CAA com uma frequência distinta, haveria diferença na frequência de
turnos e modalidades de expressões de Luan?
Qual estratégia foi mais efetiva? Outros estudos
podem enfocar a avaliação de cada estratégia,
de forma isolada.
Foram observados perfis distintos de
comunicação da professora nas duas rotinas
investigadas, antes e após a intervenção.
Enquanto Sônia priorizou a modalidade
verbal nas rotinas do lanche, a utilização de
verbalizações associadas ao uso dos pictogramas
foi mais frequente durante as atividades
pedagógicas, nas duas fases do estudo. Esse
fenômeno pode evidenciar uma diferença
estrutural nas rotinas investigadas. Em outras
palavras, a atividade em si pode favorecer o
uso de diferentes formas de expressão. Nesse
sentido, é preciso que futuras pesquisas atentem
para rotinas estruturalmente similares, quando
delineamentos experimentais do tipo linha de
base são empregados.
Rosana Carvalho GOMES; Débora R. P. NUNES. Interações comunicativas entre uma professora e um aluno...
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Recebido em: 25.09.2012
Aprovado em: 24.04.2013
Rosana Carvalho Gomes é professora da rede Estadual de Educação do Estado do Piauí e pedagoga na rede Municipal de
Educação de Teresina-PI, pedagoga e mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Débora R. P. Nunes é docente dos Programas de Graduação e Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte; doutora em Educação Especial pela Florida State University; Mestre em Educação pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro; psicóloga pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Conceitos matemáticos iniciais e linguagem: um estudo
comparativo entre crianças surdas e ouvintesI
Heloiza H. BarbosaII
Resumo
Pesquisas têm demonstrado que as crianças que se desenvolvem
tipicamente constroem conceitos matemáticos desde muito
cedo. Esse processo de desenvolvimento cognitivo parece estar
intimamente conectado com o desenvolvimento da linguagem
verbal. O que acontece com o desenvolvimento matemático de
crianças que possuem uma forma diferente de linguagem, como
a língua de sinais utilizada pelos surdos? Essa pergunta, além de
demais indagações sobre o baixo desempenho em matemática
de alunos surdos documentado por outros estudos, orientou o
desenvolvimento da pesquisa aqui apresentada. Para responder
a tais questionamentos, foram realizados testes experimentais
com crianças surdas (grupo 1), crianças ouvintes mais jovens
da escola pública (grupo 2), crianças ouvintes mais velhas da
escola pública (grupo 3) e crianças da escola privada (grupo 4).
Os resultados evidenciaram uma clara distinção entre habilidades
cognitivas matemáticas mais dependentes e menos dependentes
do estímulo linguístico, notificando que crianças surdas têm
o mesmo desempenho ou, em alguns casos, até mesmo um
desempenho superior do que crianças ouvintes em habilidades
menos dependentes do estímulo linguístico. Contudo, tanto as
crianças surdas quando as crianças ouvintes mais jovens da escola
pública demonstraram um desempenho significativamente baixo
em relação às crianças ouvintes mais velhas da escola pública e às
crianças da escola privada. Tal resultado indica que a surdez não é
causa de baixo rendimento escolar na área da matemática. Assim,
parece ser necessário pensar em formas de intervenção pedagógica
que possam garantir uma aprendizagem de sucesso em matemática
tanto para as crianças surdas, quanto para as crianças ouvintes que
frequentam as escolas públicas brasileiras.
Palavras-chave
Educação matemática — Surdez — Cognição — Contagem.
I- Estudo realizado com apoio do CNPq.
II- Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis, SC, Brasil.
Contato: [email protected]
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 163-179, jan./mar. 2014.
163
Early mathematical concepts and language: a
comparative study between deaf and hearing childrenI
Heloiza H. BarbosaII
Abstract
Research has shown that children who develop typically build
mathematical concepts very early. This process of cognitive
development seems to be closely connected with the development of
verbal language. What happens to the mathematical development
of children who have a different form of language such as the sign
language used by deaf people? This question, and other questions
about deaf students’ low performance in mathematics documented
by other studies guided the development of the study presented
here. To answer these questions, experimental tests were carried
out with deaf children (group 1), younger hearing children from
public schools (group 2), older hearing children from public schools
(group 3) and children from private schools (group 4). The results
evidenced a clear distinction between mathematical cognitive skills
more dependent and less dependent on linguistic stimuli, notifying
that deaf children have the same performance, or in some cases even
higher performance than hearing children in skills less dependent on
linguistic stimuli. However, both deaf children and younger hearing
children from public schools had a significantly lower performance
in comparison to older hearing children from public schools and
children from private schools. This result indicates that deafness is
not a cause of poor academic performance in mathematics. Thus, it
seems necessary to think of forms of pedagogical intervention which
can ensure the successful learning of mathematics for both deaf
children and hearing children who attend public schools in Brazil.
Keywords
Mathematics education — Deafness — Cognition — Counting
I- Study supported by CNPq.
II- Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, SC, Brazil.
Contact: [email protected]
164
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 163-179, jan./mar. 2014.
Problema de pesquisa
Ao longo dos anos, as pesquisas
produzidas com foco no desenvolvimento
de ideias matemáticas mudaram, de forma
fundamental, nosso entendimento sobre o
pensamento quantitativo e matemático das
crianças (para uma revisão detalhada, ver
BARBOSA, 2008). Piaget e Szeminska (1952),
pioneiramente, promovem uma mudança
paradigmática por volta da década de 1950
ao estudarem o pensamento matemático
em crianças antes de seu ingresso na escola
formal. Piaget, assim como tantos outros
pesquisadores que o sucederam, argumentou
que a cognição matemática – construção
de conceitos matemáticos – não acontece
somente quando as crianças já conseguem
operar com símbolos abstratos típicos de uma
aprendizagem formal, mas que, contrariamente,
o pensamento matemático das crianças iniciase antes da educação formal, e é inicialmente
caracterizado por representações mentais que
exigem a presença concreta de entidades e as
transformações sofridas por essas entidades. Ou
seja, a sugestão apresentada é de que a cognição
matemática é, a princípio, informal, pois opera
com objetos cognitivos não simbólico-formais e
necessita das experiências com o mundo físico.
Outros estudos sugerem que tais
conceitos matemáticos iniciais, de natureza
informal, parecem ser importantes para o
posterior desenvolvimento de habilidades e
entendimentos mais complexos presentes nas
séries mais avançadas do sistema educacional
(BAROODY, 2000; BAROODY, 2003; MIX;
HUTTENLOCHER; LEVINE, 2002; NUNES;
BRYANT, 1996). Portanto, é importante investigar
a trajetória do desenvolvimento cognitivo a
partir dos conhecimentos informais que se
refinam pelas experiências sociais, culturais e de
escolarização, levando à construção de conceitos
e procedimentos matemáticos formais.
Em relação aos conhecimentos matemáticos
iniciais, ou seja, aqueles presentes durante o
período da educação infantil – no qual não há
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 163-179, jan./mar. 2014.
um ensino formalizado de matemática –,
estudos feitos com crianças ouvintes dessa
faixa etária têm mostrado que antes do início
da escolarização formal crianças desenvolvem
conceitos quantitativo-numéricos tanto de
base não-verbal/não-simbólica, quanto de base
verbal/simbólica, os quais posteriormente serão
envolvidos nos atos de contar e calcular. Por
exemplo, os vários estudos desenvolvidos por
Kelly Mix (MIX, 1999; MIX; HUTTENLOCHER;
LEVINE, 2002) sobre o desenvolvimento do
entendimento de equivalência quantitativa
demonstraram que, inicialmente, antes mesmo
de entrarem na escola e de aprenderem a
enumerar, crianças por volta de 3 anos de
idade desenvolvem conceitos de representação
de equivalência quantitativa de forma não-simbólica. A equivalência quantitativa é
importante no entendimento do valor cardinal
de número, pois, ao julgar que dois conjuntos –
um com três carrinhos e outro com três maçãs
– são numericamente equivalentes, as crianças
estão abstraindo a informação numérica e
ignorando a informação perceptiva. Mix,
então, por meio de seus experimentos, mostrou
que, no início, a criança faz julgamento de
equivalência baseado em dados perceptivos de
similaridade, i.e., quanto maior a similaridade,
maior a facilidade de perceber equivalência –
duas bolinhas pretas e duas ameixas pretas.
Somente mais tarde, por volta dos 4 e 5
anos de idade, as crianças começam a usar
tanto as informações perceptivas quanto as
informações de cardinalidade para guiar seus
julgamentos de equivalência.
Afora esses estudos sobre o desenvolvimento de julgar conjuntos quantitativos equivalentes, há inúmeras pesquisas que mostram
que as crianças estão desenvolvendo, informalmente e de forma gradual, diversas habilidades e
ideias matemáticas, tais como os procedimentos
envolvidos no ato de contar e a função desse
ato (BRIARS; SIEGLER, 1984; FUSON, 1988;
FUSON; RICHARDS; BRIARS, 1982; FUSON;
SECADA; HALL, 1983; FUSON, 2000; GELMAN;
GALLISTEL, 1978; GALLISTEL; GELMAN,
165
1990; SHIPLEY; SHEPPERSON, 1990; SIEGLER;
ROBINSON, 1982; WYNN, 1990, 1992), as ideias
de quantificação, os conceitos de aritmética e
as lógicas aditivas e multiplicativas (BAROODY,
1992, 2000, 2003; BISANZ; LEFEVRE, 1992;
MIX; HUTTENLOCHER; LEVINE, 2002; NUNES;
BRYANT, 1996; PIAGET; SZEMINSKA, 1952).
Além disso, elas estão construindo conceitos sobre as relações ordinais dos números e as funções nominativas dos mesmos (WIESE, 2003).
Como se pode ver, há uma vasta
complexidade de conhecimentos matemáticos
que são desenvolvidos durante o período da
educação infantil e que foram registrados
por um imenso volume de publicações.
Essas pesquisas investigaram habilidades
quantitativo-numéricas em crianças ouvintes,
que é a população mais representada nos
centros de educação infantil. Entretanto, há
grupos minoritários de crianças com perfis
linguísticos e cognitivos distintos, os quais
não estão representados em estudos sobre o
desenvolvimento de conceitos matemáticos.
Esse é o caso, por exemplo, das crianças
surdas que não processam o estímulo auditivo
e produzem e compreendem linguagem na
modalidade visual-espacial (língua de sinais).
Até o momento, não existem estudos sobre o
desenvolvimento de conceitos e procedimentos
matemáticos feitos com crianças surdas
brasileiras em idade pré-escolar. Então,
parece necessário investigar a trajetória de
desenvolvimento das ideias matemáticas na
criança surda de tal faixa etária, pois há uma
grande lacuna nessa área. O presente estudo,
portanto, vem remediar essa lacuna por meio de
uma investigação experimental comparativa,
a qual será detalhada mais adiante. Seu foco
investigativo é investigar os conhecimentos e
procedimentos matemáticos que as crianças
ouvintes e surdas possuem, informalmente, nos
anos compreendidos pela educação infantil.
Este estudo também se justifica pelos
dados advindos de pesquisas acadêmicas
feitas em outros países que apontam para uma
tendência de fracasso escolar pela criança
166
surda na área da matemática nas séries mais
avançadas do ensino fundamental. Os dados
em questão são relativos aos vários estudos
e levantamentos estatísticos de desempenho
escolar com o uso de testes padronizados
(KLUWIN; MOORES, 1989; NOGUEIRA;
ZANQUETTA, 2008; NUNES; MORENO, 1998;
WOOD; WOOD; HOWART, 1983; TRAXLER,
2000), que demonstraram que crianças surdas
apresentam um desempenho em matemática
inferior ou abaixo da média em comparação às
crianças ouvintes de mesma série e idade.
Por exemplo, Traxler (2000), ao analisar
o desempenho de alunos surdos nos EUA na
nova edição do teste padronizado Stanford
Achievement Test (SAT 9th edition) – o qual foi
administrado de acordo com o nível de cada
aluno, depois de uma triagem para detectar o
nível adequado –, constatou um desempenho
muito abaixo da média nos subtestes de
Procedimentos Matemáticos e de Solução
de Problemas Matemáticos. Os níveis de
desempenho dos alunos surdos indicaram um
atraso de dois anos na idade de 8 anos (com
um desempenho equivalente à 1ª série). Esse
atraso aumenta de três a quatro anos na idade
de 11 anos (com um desempenho equivalente
à 3ª série), e de seis a oito anos na idade
compreendida entre 17 e 18 anos (com um
desempenho equivalente à 5ª série).
Ainda, outros estudos têm mostrado
que as dificuldades em matemática continuam
até a universidade para os alunos surdos,
principalmente no que se refere à solução de
problemas matemáticos. Por exemplo, Kelly et
al. (2003) detectaram atraso na habilidade de
estudantes universitário surdos de resolverem
problemas
aritméticos
que
envolvem
comparação. Em outro estudo recente sobre a
representação visual de problemas matemáticos,
os resultados de Blatto-Vallee et al. (2007)
mostraram que alunos do ensino médio e
universitários surdos utilizam muito pouco a
representação visual, se comparados a alunos
do ensino médio e universitários ouvintes.
Quando utilizam a representação visual, os
Heloiza H. BARBOSA. Conceitos matemáticos iniciais e linguagem: um estudo comparativo entre crianças surdas e...
alunos surdos criam representações dos aspectos
pictóricos e icônicos, os quais são, todavia,
irrelevantes para a solução do problema. Outro
estudo conduzido por Ansell e Pagliaro (2006)
demonstrou que crianças surdas de 5 a 9 anos
apresentam dificuldades em resolver problemas
matemáticos que são apresentados em contexto
de estórias nas quais eles precisam calcular
diferenças, mesmo quando tais problemas são
apresentados em língua de sinais.
Se essas dificuldades com a matemática
acontecem e parecem perpassar a escolarização
da criança surda, então é necessário investigar se
os problemas com o conhecimento matemático
já estão presentes antes da escolarização formal,
ou seja, na educação infantil. Será que durante o
período de educação infantil as crianças surdas
desenvolvem informalmente procedimentos
e conceitos matemáticos seguindo uma
temporalidade aproximada à criança ouvinte,
ou há atrasos temporais que podem influenciar
negativamente o desenvolvimento posterior?
A grande escassez de estudos sobre o
desenvolvimento de conceitos e procedimentos
matemáticos feitos com crianças surdas em
idade pré-escolar deixa em aberto essa e muitas
outras questões. Por exemplo, as questões
envolvidas na aquisição do procedimento de
contagem, cujo desenvolvimento se inicia
informalmente por volta de 2 anos em crianças
ouvintes. Os poucos estudos existentes com
esse foco sugerem que as crianças surdas têm
dificuldades em aprender a sequência numérica
utilizada durante a contagem (LEYBAERT; VAN
CUTSEM; 2002; NUNES, 2004; ZARFARTY;
NUNES, BRYANT, 2004). Tais estudos indicam
que talvez a dificuldade de aquisição da
sequência numérica possa causar problemas
no desenvolvimento de futuras habilidades
matemáticas que são importantes nas séries
mais avançadas. Não há, porém, nenhuma
evidência conclusiva para dizer se a dificuldade
em adquirir a sequência numérica acontece
devido a problemas de processamento cognitivo
(HITCH; ARNOLD; PHILIPS, 1983), ou devido ao
pouco acesso às experiências sociais e culturais
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 163-179, jan./mar. 2014.
envolvendo contagem em casa e na escola
(NUNES, 2004).
Há ainda outras questões relacionadas ao
conhecimento quantitativo-numérico das crianças
surdas que também precisam ser investigadas.
Por exemplo, sabemos que é comum às crianças
ouvintes cometerem alguns erros de coordenação
de correspondência um-pra-um (recitar o
numeral e apontar ao mesmo tempo) durante
a aquisição do procedimento de contagem.
Entretanto, nada sabemos sobre os erros de
contagem das crianças surdas. Parece importante
que professores conheçam quais são os tipos de
erros de contagem mais frequentes em crianças
surdas que usam a língua de sinais para sua
comunicação, pois assim tais profissionais estarão
mais preparados para organizar um programa de
apoio e intervenção que auxilie essas crianças a
superarem tais dificuldades comuns. Precisamos
também saber de que forma o conhecimento da
sequência numérica influencia o desempenho da
criança surda em testes numéricos. Além disso, é
necessário ter mais informação sobre a relação
entre língua de sinais e conhecimentos numéricos
em crianças surdas.
Em relação a esse último ponto,
pesquisadores têm se ocupado em investigar
como a língua produzida e compreendida na
modalidade visual-espacial (i.e., a língua de
sinais) pode contribuir para o desenvolvimento
cognitivo do indivíduo surdo, considerando os
aspectos cognitivos que são mais dependentes
ou menos dependentes do estímulo linguístico.
Em funções cognitivas menos dependentes do estímulo linguístico, crianças surdas
e ouvintes parecem ter um desenvolvimento
similar. Essa hipótese tem sido reiterada por
vários estudos na área que demonstraram que
as crianças surdas apresentam um tempo e
uma trajetória de desenvolvimento similares
ou até mesmo superiores aos das crianças ouvintes em funções cognitivas não-linguísticas,
tais como: reconhecimento facial, construções
com blocos lógicos, percepção de movimentos, memória espacial e localização espacial
(BEVALIER et al., 2006; BLATTO-VALLEE et
167
al., 2007). Mesmo que a emergência dessas
funções não dependa do estímulo linguístico,
esses pesquisadores explicam que a superioridade no desenvolvimento de tais funções
cognitivas em crianças surdas foi atribuída ao
uso da língua de sinais, que, por suas características visual-espaciais, pode contribuir positivamente para o desenvolvimento das habilidades de manipulação da informação visual
e espacialmente apresentada (BULL; BLATTOVALLEE; FABICH, 2006; BLATTO-VALLEE et
al., 2007). Nesse caso, veem-se argumentos
evidenciando a possibilidade de uma estreita
relação entre língua e processos cognitivos.
Mas há vários fatores que complexificam a
relação entre língua e processos cognitivos no caso
de crianças surdas. Dentre esses fatores, pode-se
destacar a heterogeneidade de perfis do indivíduo
surdo (BARBOSA, 2009). Por exemplo, há indivíduos
surdos que nasceram dentro de uma família de
surdos e que, consequentemente, têm amigos e
uma comunidade surda em volta. Esse contexto
familiar e social garante a exposição do indivíduo,
desde seu nascimento, a um código linguístico
que é usado pelos membros de sua família e de
sua comunidade. Especialistas têm argumentado
que o fato de o indivíduo ser exposto desde o
nascimento a um estímulo linguístico tem efeitos
marcadamente positivos em seu desenvolvimento
(QUADROS, 1997; MAYBERRY, 2002). Por outro
lado, há indivíduos surdos que não têm acesso a
estímulos linguísticos durante os primeiros anos
de vida, por motivos tanto sociais, culturais e
familiares, quanto econômicos. Esse segundo grupo
representa a maioria da população surda brasileira
(QUADROS, 1997). Como agravante adicional, a
população surda que tem acesso tardio à língua de
sinais também tem acesso tardio a uma educação
apropriada, podendo apresentar diferentes perfis
de desenvolvimento. Assim, crianças surdas
que não são expostas a estímulos linguísticos
e não recebem educação apropriada em idade
apropriada podem não demonstrar a similaridade
e/ou superioridade no desenvolvimento de
determinadas funções cognitivas documentadas
em estudos já mencionados.
168
Em síntese, foi o registro de poucos
estudos feitos no Brasil sobre o desenvolvimento
matemático de crianças surdas da educação
infantil, assim como questões levantadas por
pesquisas recentes, que provocaram a realização
desta pesquisa. O presente estudo não tem o
propósito de responder a todas as questões aqui
levantadas, tampouco de esgotá-las, mas sim a
intenção de despertar o interesse em promover
bons níveis de rendimento escolar na área da
matemática para todas as crianças.
Metodologia
Metodologia experimental
O presente estudo teve o objetivo de
investigar o desempenho das crianças surdas e
ouvintes de idade entre 5 e 6 anos (educação
infantil) por meio de tarefas experimentais que
compreendam vários aspectos cognitivos ligados
à conceituação quantitativo-numérica. Entre
esses aspectos estão: a) representação mental
de quantidade; b) memorização e reprodução
de uma sequência ordenada; c) uso espontâneo
de numeral em narrativa; d) conhecimento
da sequência numérica; e) contagem; f)
entendimento de cardinalidade; g) aritmética; e
h) conhecimento da linha numérica.
A metodologia empregada foi baseada
em entrevistas clínicas experimentais com o
uso de tarefas especialmente formuladas para
a investigação de habilidades e procedimentos
matemáticos iniciais em questão neste estudo.
Teve-se a preocupação de desenvolver e
previamente testar tarefas experimentais que
pudessem ser usadas tanto com crianças ouvintes
quanto com crianças surdas, de modo a não
prejudicar as bases comparativas. Ou seja, na
tradução das tarefas para a língua de sinais,
houve grande zelo em não fornecer informações
numéricas pela gestualidade, evitando-se, assim,
a possível facilitação na apresentação das tarefas.
Neste artigo, os resultados das tarefas
experimentais mencionadas embasarão as
discussões sobre aspectos gerais comparativos,
Heloiza H. BARBOSA. Conceitos matemáticos iniciais e linguagem: um estudo comparativo entre crianças surdas e...
tais como o desempenho dos diversos
grupos estudados em habilidades mais e
menos dependentes do estímulo linguístico
e a caracterização dos erros de contagem
observados. Manteve-se a hipótese de que os
aspectos quantitativo-numéricos que não são
dependentes do estímulo linguístico poderão,
então, apresentar igual desenvolvimento entre
os diversos grupos de crianças participantes.
Em estudos comparativos, buscase a construção de bases aproximadamente
equânimes de comparação entre grupos. Neste
estudo, em particular, por envolver crianças
com diferentes perfis de desenvolvimento –
como é o caso da intrínseca heterogeneidade
das crianças surdas e das crianças ouvintes –, é
muito complexa a tarefa de criar os grupos para
o controle de importantes variáveis, tais como
idade, escolarização, habilidades cognitivas e
linguísticas. Optou-se por parear os grupos de
crianças surdas e ouvintes tendo como base
a idade e a escolarização. Tal opção pode ter
trazido alguns prejuízos para a pesquisa, os
quais serão apontados ainda neste artigo.
Participantes
Como já dito, parear crianças surdas com
crianças ouvintes em estudos experimentais
é sempre problemático, devido à grande
diversidade de perfis cognitivos existentes entre
as crianças. Por essa razão, o pareamento pela
idade cronológica pareceu apropriado. Mesmo
essa opção, porém, apresentava problemas
devido à disparidade encontrada entre as
crianças surdas em relação a suas idades, suas
séries e o tempo frequentando a escola. Ou seja,
as crianças surdas de 6 anos que participaram
do estudo estavam iniciando seu segundo ano
ainda na escola infantil. Nos centros infantis
públicos, não havia mais crianças de 6 anos,
pois elas já haviam ingressado no ensino formal.
Entretanto, como a pesquisa aconteceu no ano
de transição do ensino de nove anos, houve um
centro de educação infantil público que reteve
crianças com 6 anos de idade. Aproveitando-se
dessa oportunidade, a pesquisa optou por testar
tanto um grupo de crianças um ano mais novas
do que as crianças surdas, quanto um grupo
da mesma idade. Outra variável que pareceu
importante para a investigação é relativa ao tipo
de escolarização, ou seja, pública ou privada.
Isso porque pesquisas no Brasil têm apontado
para a disparidade de rendimento acadêmico
entre diferentes classes sociais que frequentam
diferentes sistemas de ensino (PINTO; GARCIA;
LETICHEVSKY, 2006)
Dessa forma, quarenta e três (N=43)
crianças da educação infantil participaram do
estudo, sendo divididas em quatro grupos:
• grupo 1: onze (N=11) crianças surdas (surdez
profunda), com média de 6 anos de idade;
• grupo 2: onze (N=11) crianças ouvintes da
escola pública, com média de 5 anos de idade;
• grupo 3: dez (N=10) crianças ouvintes da
escola privada, com média de 5 anos de idade;
• grupo 4: onze (N=11) crianças ouvintes da
escola pública, com média de 6 anos de idade.
Como se pode perceber, a composição dos
grupos de crianças ouvintes serviu de controle
para as variáveis de idade (um ano mais novo
ou da mesma idade) e tipo escolarização (escola
pública e privada). Para melhor visualização da
idade dos grupos, ver tabela 1.
Tabela 1 – Quadro de participantes e médias de idades em meses
Grupos
Grupo 1: criança surda; 6 anos de idade
escola pública
Grupo 2: criança ouvinte; 5 anos de idade
escola pública
Grupo 3: criança ouvinte; 5 anos de idade
escola privada
Grupo 4: criança ouvinte; 6 anos de idade
escola pública
N
Mínimo
Máximo
Média
Desvio padrão
11
61.00
90.00
73.54
8.58
11
59.00
68.00
63.09
3.33
10
61.00
71.00
66.40
4.11
11
69.00
80.00
73.72
3.03
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 163-179, jan./mar. 2014.
169
Para que as crianças participassem voluntariamente do estudo, seus pais e/ou responsáveis assinaram um termo de consentimento.
Aqueles que trouxeram seus filhos para serem
avaliados no laboratório da universidade foram
monetariamente recompensados pelas despesas
com transportes.
Todas as crianças surdas participantes
frequentavam escolas públicas de educação infantil
e eram instruídas em Libras. Um conhecimento
de no mínimo um ano em Libras foi estabelecido
como critério para participação no estudo.
Nenhum dos participantes, surdos
ou ouvintes, recebia instruções formais de
matemática na escola, mas apenas praticava a
contagem em suas brincadeiras.
Procedimentos
Cada criança participou, individualmente,
de duas sessões de aproximadamente 40
minutos cada, realizadas com um intervalo
de uma semana. Uma estudante surda da pósgraduação que usa a Libras como sua língua
nativa foi treinada nas tarefas experimentais
do estudo e conduziu em Libras as sessões com
as crianças surdas. A principal investigadora
conduziu as sessões com as crianças ouvintes.
Todas as sessões foram filmadas para assegurar
maior acuidade da coleta e da análise dos dados.
Conforme mostra a tabela 2, 14
tarefas experimentais compuseram o estudo:
1) pareamento quantitativo não-verbal; 2)
reprodução de ordem sequencial visível; 3)
reprodução de ordem sequencial invisível; 4)
descrição de estímulo visual; 5) recitação da
sequência numérica até o maior número que
souber; 6) contar objetos soltos; 7) contar
conjuntos; 8) contar ações; 9) e 10) cardinalidade
com objetos homogêneos e heterogêneos; 11)
equivalência da transformação numérica; 12)
adição; 13) subtração; e 14) conhecimento da
linha numérica. As tarefas de 1 a 5 constituíram
a primeira parte do estudo, na qual o
conhecimento quantitativo não-simbólico e o
conhecimento da sequência numérica foram
investigados. As tarefas de 6 a 13 constituíram
a segunda parte do estudo, que se deteve no
conhecimento numérico que apresenta uma
grande demanda linguística dos participantes.
Tabela 2 – Jogos utilizados no projeto de pesquisa
Habilidades
Jogos
1- Produção não-verbal das seguintes quantidades: (1, 2) 3, 4, 6, 8 items
“Olhe o que eu vou fazer.”; “Faça o seu igual ao meu.”; “O seu está igual ao meu?”; “O que você pode fazer para o seu ficar igual ao meu?”
Sessão 1:
Representação
mental de
quantidade
Sessão 2:
Contagem
Cardinalidade
Operações
aritméticas
Linha numérica
170
2- Reprodução das quantidades seguindo uma lembrança seriada: (2) 3, 4, 6 items (dinosauro, banana, caminhão, uva, avião,
sapo, coelho, barco, laranja, ovelha, carro, botão, urso, etc...). Fazer seis conjuntos (três para a criança e três para o pesquisador)
com o número exato de peças, mas só dar as peças das crianças quando estas forem reproduzir o conjunto mostrado. Não haverá
comparação nesta atividade
3- Reprodução não visível das quantidades seguindo uma lembrança seriada: (2) 3, 4, 6 itens.
4- O que você vê? O pesquisador apresenta à criança uma carta de cada vez contendo adesivos de objetos, e pergunta: O que você
vê? As cartas têm dois sets com duas condições diferentes. No primeiro, há seis cartas apresentadas em forma de organização padrão
(OP), que lembra a organização presente no dado, e mais seis cartas na organização aleatória (AO). O objetivo desta tarefa experimental é investigar o uso de vocabulário contendo numeral em narrativa e se esse uso pode ser mais estimulado em formato OP ou OA.
5- Conte até o maior número que você souber. Os dados da contagem serviram para criar grupos de conhecimento da
sequência numérica: grupo básico, com contagem de 01 a 10; grupo intermediário, de 11 a 59; e grupo avançado, de 60 a 100.
Esses níveis de contagem foram correlacionados com outras habilidades numéricas nas análises quantitativas.
6- Conte os objetos: 3, 6, 10, 15 itens. Quantos objetos você contou?
7- Conte estas figuras: 6, 10, 15, 30, arrumados em uma linha horizontal. Quantas figuras você contou?
8- Esse boneco vai dar uns pulos. Observe. Quantos pulos ele deu? Contando ações: 3, 4, 6, 10 pulos.
9- Dá-me X. Com cubos de uma só cor.
10- Dá-me X. Com ursos coloridos: (1, 2) 3, 4, 6 e 10.
11- Onde tem mais (ou menos)? Tarefa com as bolinhas de gude adaptada do CMA.
12- Adição com objetos, mas com o resultado não-visível: 3+1; 4+2; 7+3; 1+3.
13- Subtração com objetos, mas com o resultado não-visível:
3-2; 4-1; 7-3; 10-1.
14- Qual número vem depois do X? (3, 7); Qual numero vem antes do X? (4, 6).
Heloiza H. BARBOSA. Conceitos matemáticos iniciais e linguagem: um estudo comparativo entre crianças surdas e...
As crianças surdas também foram testadas
em seu conhecimento de Libras para assim
correlacioná-lo com o conhecimento matemático.
Análise dos dados
Inicialmente, participaram deste projeto 14 crianças surdas. Três delas, porém,
foram eliminadas e o restante compôs um
grupo de 11 crianças surdas. As causas da eliminação foram: uma criança tinha audição
residual e era oralizada (uso de língua oral na
comunicação); duas outras não tinham ainda,
aos 6 anos de idade, nenhum entendimento
de Libras e, por isso, apresentaram uma comunicação muito deficitária. Nos grupos das
crianças ouvintes não houve qualquer tipo de
exclusão do estudo.
Análises qualitativas e quantitativas
foram conduzidas. O desempenho das crianças
nos testes foi computado em dois níveis:
(1) pontos para acertos e (2) codificação das
respostas para análise qualitativa. A pontuação
quantitativa foi usada em análises comparativa
de variáveis por meio do teste ANOVA,
considerando-se os quatro grupos como
variáveis independentes e os desempenhos nos
testes como variáveis dependentes.
Resultados
Nas tarefas experimentais que focam
na representação quantitativa de base não-linguística, não houve diferenças estatísticas
entre os grupos de crianças surdas e ouvintes
em Produção Não-Verbal de Quantidades – 3,
4, 6 & 8, F(3, 39) = 1.81, p = .161; Reprodução
de Ordem Seriada Visível – 3, 4, & 6, F(3,
39) = .617, p = .608; e Reprodução de Ordem
Seriada Invisível – 2, 3, & 4, F(3, 39) = 1.59,
p = .205. A tabela 3 mostra as médias e o
desvio padrão dos grupos nesses aspectos. Isso
significa que as crianças surdas e ouvintes
apresentam o mesmo nível de representação
numérica quando o estímulo é de natureza
não-linguística.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 163-179, jan./mar. 2014.
Tal como esperado, não há diferenças
entre crianças surdas e ouvintes no que se refere
às habilidades quantitativas não-simbólicas.
Assim, no que se refere às capacidades de
julgar quantidades como equivalentes ou
de representar mentalmente e reproduzir
determinados conjuntos utilizando informações
perceptivas, não há diferenças entre crianças
surdas e ouvintes da educação infantil. No
entanto, como se pode ver na tabela 3, houve
diferença entre os grupos no tempo levado
para reproduzir uma sequência, sendo que as
crianças surdas não cometeram nenhum erro,
mas levaram mais tempo para reproduzir a
sequência. Isso significa dizer que, durante
a educação infantil, as crianças surdas e
ouvintes demonstraram as mesmas capacidades
quantitativas não-simbólicas. Portanto, esse
resultado exclui a possibilidade de que a
criança surda seja cognitivamente deficiente
na formação de seus conceitos quantitativos
não-simbólicos.
Contudo, quando o conhecimento
quantitativo-numérico de base simbólica foi
avaliado, ou seja, quando o uso da representação
numérica simbólica foi medido em tarefas de
contagem, aritmética e linha numérica, houve
uma significativa mudança. As crianças surdas
tiveram um desempenho bem abaixo da média
e estatisticamente diferente de alguns grupos de
crianças ouvintes, mas não de todos, como é o
caso das crianças de 5 anos da escola pública.
É um dado importante de ser ressaltado
que as crianças ouvintes de cinco anos de idade
da escola pública tiveram um desempenho nos
testes numérico tão inferior quanto as crianças
surdas. Tais dados, então, apontam para um
desempenho desigual de ambos os grupos em
comparação com as crianças de 5 anos da
escola privada e com as crianças de 6 anos da
escola pública. As implicações desse resultado
serão discutidas mais adiante.
Os dados das tarefas de contagem (contar
objetos, figuras e ações) foram unificados para
a criação da categoria Contagem, a qual aparece
no gráfico 1. O teste ANOVA revelou diferença
171
Tabela 3 – Resultados do teste ANOVA
Tarefas experimentais
Média
F
Sig.
Produção não-verbal de quantidade
1.95
1.81
.161
Julgamento correto de equivalência
2.19
1.55
.215
Número de vezes em que empregou ação de consertar conjunto
.46
1.52
.222
Reprodução de ordem seriada visível total
.43
.617
.608
292.80
5.11
.004
1.55
1.59
.205
Tempo médio de ordem seriada invisível
133.57
4.43
.009
Número de vezes em que utilizou numeral (linguagem espontânea / org. padrão)
24.15
5.25
.004
Número de vezes em que utilizou numeral (linguagem espontânea / org. aleatória)
283.98
10.0
.000
Total: contar objetos soltos
10.76
9.83
.000
Total: contar figuras
12.71
10.2
.000
Total de pontos: adição (máx. 4)
7.21
6.02
.002
Total de pontos: subtração (máx. 4)
4.97
3.41
.027
Tempo médio de ordem seriada visível
Reprodução de ordem seriada invisível total
entre os quatro grupos de participantes, F(3,
39) = 12.05, p<.001. O perfil das diferenças é o
mesmo visto anteriormente. Ou seja, as crianças
surdas não diferem das crianças ouvintes de 5
anos da escola pública, pois ambos os grupos
apresentam desempenho significativamente
inferior em relação aos demais grupos.
Todos os participantes tiveram mais
dificuldades na contagem de figuras do
que na contagem de objetos. Isso talvez se
justifique pela grande demanda depositada na
coordenação entre o apontar e o contar quando
há conjuntos fixos alinhados horizontalmente.
Em uma análise ainda inicial dos dados
dos erros de contagem, foi possível perceber que
a criança surda comete mais erros relacionados
à sequência numérica. Além disso, as crianças
surdas têm um limite menor para contagem do
que as crianças ouvintes. Ou seja, no presente
estudo, observou-se que a grande maioria das
crianças surdas de 6 anos sabe contar até o
172
numeral 10 fazendo um pareamento um-praum, isto é, a criança inicia a contagem com a
mão fechada e vai abrindo os dedos da mão,
um de cada vez, à medida que conta. Se o
conjunto a ser contado tem valores maiores
do que o expresso pelo numeral 10 (limite de
dedos na mão), como aconteceu em uma das
tarefas experimentais na qual havia um quadro
com 30 figuras para serem contadas, a criança
surda que só sabe contar até 10, ao chegar
nesse limite, para e diz acabou ou reconta três
vezes até 10, sem juntar o resultado no final
da contagem para informar a cardinalidade do
conjunto. Essa estratégia de contagem é icônica
e não-simbólica.
Nenhum erro de emprego dos
procedimentos de contagem foi observado nas
crianças de 5 anos da escola privada, tampouco
nas crianças de 6 anos da escola pública. Mas
as crianças ouvintes de 5 anos da escola pública
cometeram erros em todas as modalidades
Heloiza H. BARBOSA. Conceitos matemáticos iniciais e linguagem: um estudo comparativo entre crianças surdas e...
Gráfico 1 – Média de contagem entre os grupos
12.00
11.00
Mean of contagem score
10.00
9.00
8.00
7.00
6.00
5.00
4.00
3.00
2.00
1.00
0.00
criança surda
criança ouvinte, 5 anos,
escola pública
criança ouvinte
escola privada
criança ouvinte, 6 anos,
escola pública
Grupos de crianças estudados
Fonte: dados da pesquisa.
de contagem e em todos os conjuntos. Seus
erros, porém, estão mais relacionados à
coordenação entre contar e apontar, bem como
à cardinalidade, ou seja, era comum a criança
ouvinte contar um conjunto e informar uma
cardinalidade diferente da qual foi verbalmente
contada. Esse tipo de erro de cardinalidade não
foi cometido por nenhuma criança surda.
Em geral, os resultados de contagem
sugerem que tanto as crianças surdas quanto as
crianças ouvintes de 5 anos da escola pública
parecem ter dificuldades em empregar os
procedimentos de contagem. Tais dificuldades
podem influenciar de forma negativa a
aprendizagem da matemática, caso não sejam
trabalhadas na escola (BAROODY, 2000;
FUSON, 2000).
Ao analisarmos a correlação entre o
conhecimento linguístico das crianças surdas
referente à língua de sinais e sua habilidade
de contagem, pudemos perceber que há uma
influência direta da habilidade linguística na
habilidade de contagem. Os testes estatísticos
revelaram uma correlação positiva na qual as
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 163-179, jan./mar. 2014.
crianças que têm mais conhecimento de Libras,
no grupo de crianças surdas, são as que têm um
melhor desempenho em contagem F(1,9) = 7.73,
p =.021, rs (9) = .68, p = .021. O coeficiente
de correlação r² indica que o conhecimento de
Libras explica 40% da variação da pontuação
em contagem.
Além da contagem, outras habilidades
quantitativo-numéricas das crianças surdas
apresentam-se em uma forte correlação com o
conhecimento que essas crianças têm da língua
de sinais. Ou seja, as crianças que têm mais tempo
de exposição à Libras e maior grau de fluência
são as que apresentam um desempenho mais
elevado nos testes de aritmética e cardinalidade.
Isso parece demonstrar uma relação entre
linguagem e formação de conceitos.
A mesma correlação foi encontrada entre
as crianças ouvintes. Por exemplo, as crianças
com menor vocabulário numérico documentado
pela tarefa do uso do numeral na narrativa
foram crianças mais novas de 5 anos do centro
de educação infantil público, e elas foram as
crianças com mais baixo desempenho nos demais
173
testes. Já as crianças mais novas de 5 anos do
centro de educação infantil privado apresentaram
um grande vocabulário numérico e tiveram um
desempenho bastante superior em todas as tarefas
em comparação aos demais grupos.
Nas tarefas aritméticas da adição, houve
diferença significativa entre os grupos, F(3, 39)
= 6.03, p = .002. O teste estatístico post-hoc
Tukey HSD detectou que as crianças surdas e as
crianças ouvintes de 5 anos da escola pública
tiveram um desempenho similarmente mais
baixo do que as crianças dos demais grupos.
Esses dois grupos tiveram um desempenho
inferior em relação às crianças ouvintes de 5
anos da escola privada (p = .004, d = 1.62 para a
criança surda e p = .029, d = .52 para a criança
ouvinte de 5 anos), e as crianças mais velhas de
6 anos da escola pública (p = .028, d = 1.33).
Nas tarefas aritméticas de subtração,
houve diferença significativa entre os grupos,
F(3, 39) = 3.41, p =.027. Mas, interessantemente,
na subtração não houve diferença entre o
desempenho das crianças surdas e o dos demais
grupos. Em geral, as crianças surdas acharam
mais fácil a subtração do que a adição. A
diferença ficou entre as crianças ouvintes de 5
anos da escola pública e as crianças mais velhas
de seis 6 da escola pública (p = .036, d = 1.36).
Em resumo, esses resultados sugerem
que as crianças surdas e as crianças ouvintes da
educação infantil têm as mesmas habilidades de
representação numérica e quantitativa de base
não-simbólica, mas diferem nas habilidades
que requerem um conhecimento numéricoquantitativo de base simbólica. Para melhor
visualização desses resultados, veja o gráfico 2.
Gráfico 2 – Média de contagem, aritmética e vocabulário para numerais entre os grupos
Contagem-Score
Aritmetica-Score
Uso do numeral
14.00
12.00
Mean
10.00
8.00
6.00
4.00
2.00
0.00
criança surda
criança ouvinte, 5 anos,
escola pública
criança ouvinte
escola privada
criança ouvinte, 6 anos,
escola pública
Grupos de crianças estudados
Fonte: dados da pesquisa.
Considerações finais
O presente estudo revelou que não
existem diferenças nas representações mentais
quantitativas não-simbólicas das crianças
174
surdas e ouvintes. Isto é, quando não é exigido o
uso da contagem verbal ou outro conhecimento
de ordem simbólica formal, tanto as crianças
surdas quanto as crianças ouvintes apresentam
as mesmas habilidades de representação da
Heloiza H. BARBOSA. Conceitos matemáticos iniciais e linguagem: um estudo comparativo entre crianças surdas e...
informação quantitativa. Quanto às habilidades
quantitativas simbólicas, o perfil se apresenta
de forma mais complexa. As crianças surdas,
no geral, tiveram um desempenho inferior
em relação às crianças ouvintes com um ano
a menos de idade (5 anos) da escola infantil
privada, assim como também, em relação à
criança da mesma idade (6 anos) da escola
pública. Mas o desempenho das crianças surdas
foi equivalente ao das crianças de 5 anos da
escola pública. Esses dados são surpreendentes,
pois têm implicações muito importantes para
o ensino da matemática na educação infantil
e para o desenvolvimento do pensamento
matemático nas crianças.
Uma das implicações que podem ser
extraídas é de que a surdez não é causa de baixo
rendimento em matemática (NUNES, 2004), pois
crianças ouvintes também demonstraram baixo
rendimento nas tarefas apresentadas. Nesse
caso, os resultados reiteram a hipótese de Nunes
(2004) de que a surdez pode colocar a criança
em risco de ter uma difícil aprendizagem em
matemática. É de extrema importância notar,
porém, que os dados deste estudo mostraram
que tal risco também é experienciado pelas
crianças de 5 anos das classes populares que
frequentam os centros públicos de educação
infantil, conforme mostra o gráfico 2. Então,
o quê há de comum entre as crianças surdas
e ouvintes de 5 anos da escola pública que
participaram da pesquisa?
Evidenciou-se uma falta de vocabulário
para expressar informações numéricas e
matemáticas tanto nas crianças surdas quanto nas
crianças ouvintes de 5 anos das classes populares.
Como não foi objetivo deste estudo investigar as
causas de um vocabulário matemático reduzido,
limitaremos nossa análise do dado, que destaca
dois importantes fatores a serem considerados.
Um deles é a estreita relação entre pensamento
matemático e linguagem; o outro é o caráter
sóciocultural da linguagem. Ambos também já
foram evidenciados por outros estudos similares,
por exemplo, as pesquisas feitas com o grupo
indígena Pirahã da Amazônia. Os Pirahãs são
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 163-179, jan./mar. 2014.
índios da Amazônia que não possuem, em seu
vocabulário, nenhuma forma de expressar
quantidades de modo preciso, nem mesmo a
quantidade um, mas que demonstram serem
capazes de representar equivalência numérica
quando os conjuntos estão fisicamente presentes
de forma não-simbólica, sem uma demanda de
memória (GORDON, 2004; FRANK et al., 2008). A
conclusão apresentada por esses estudos sugere
que é necessário ter vocabulário numérico para
lembrar quantidades maiores de forma exata,
mesmo que o conceito da quantidade exata
não seja criado pela linguagem. O vocabulário
numérico, de acordo com tal argumento,
funciona como um instrumento cognitivo que
ajuda o sujeito a controlar a informação cardinal
de conjuntos com grande quantidade de itens.
Dessa forma, podemos perceber a estreita ligação
entre linguagem e conceitos matemáticos.
Parece que o argumento explica os
resultados deste estudo com as crianças surdas
e ouvintes de 5 anos das classes populares. Isto
é, a falta de vocabulário numérico pode ter
prejudicado o desempenho dessas crianças em
tarefas que demandam memória da informação
cardinal do número. Portanto, parece
importante investir em um programa de ensino
que desenvolva vocabulário para expressar
ideias matemáticas. Tal vocabulário inclui tanto
a sequência numérica, quanto o léxico para
expressar ordem (primeiro, segundo, terceiro
etc.), valor (mais que ou menos que; maior que
ou menor que), equivalência (igual a) e outras
relações matemáticas.
É importante ressaltar que os dados
evidenciaram que, mesmo que as crianças
ouvintes da escola pública apresentem
dificuldades em matemática, elas parecem
superá-las com mais tempo de escolarização,
uma vez que as crianças mais velhas da escola
pública, com 6 anos, apresentaram um bom
desempenho. Entretanto, o desempenho das
crianças mais velhas da escola pública parece
estar um ano abaixo do que o das crianças da
escola privada. Esse quadro é extremamente
preocupante, pois mostra que há diferentes
175
experiências de escolarização no Brasil de
acordo com a classe social.
Assim, para diminuir o desnível de
rendimento escolar na área da matemática
entre crianças surdas e ouvintes e entre crianças
de classes sociais diferentes, são necessários
programas educacionais na educação infantil e
nas séries iniciais que garantam condições de
desenvolvimento para o conhecimento informal
quantitativo numérico dessas crianças. Enormes
esforços e investimentos precisam ser alocados
para melhorar a educação matemática recebida
por crianças surdas e ouvintes oriundas de
classes sociais menos favorecidas, a fim de
atender aos centros públicos de educação
infantil. O baixo desempenho dos dois grupos
mostra a necessidade de uma ação imediata
do governo para melhorar a aprendizagem e
o desempenho dessas crianças, que estão em
grande risco de fracasso escolar. Os dados
deste estudo sugerem, por exemplo, que as
crianças surdas e ouvintes se beneficiariam
de um programa de ensino de matemática
que faça uso de materiais concretos e visuais,
os quais devem ser conectados e ancorados
em suas fortes habilidades quantitativas
de base não-simbólica. As crianças surdas
176
também se beneficiariam de uma educação
que fosse ministrada em sua língua nativa,
a Libras. Além disso, ambos os grupos se
beneficiariam de um programa com ênfase na
aquisição do léxico quantitativo-numérico,
haja vista a correlação aqui documentada
entre língua e formação de conceitos. Se as
crianças não têm o léxico para expressar
ideias matemáticas, seu desenvolvimento
nessa área pode ficar comprometido. Portanto,
é essencial que às crianças seja ensinado,
de forma significativa, o vocabulário
numérico-quantitativo-matemático.
O presente estudo forneceu algumas
informações importantes sobre áreas cognitivas
em que as crianças podem estar em maior risco
de apresentar uma difícil aprendizagem em
matemática. No entanto, mais pesquisas na área da
cognição matemática em crianças surdas e ouvintes
são absolutamente necessárias para a elucidação
de processos que podem ser prejudicados pela falta
de acesso a um modelo linguístico. Também será
importante, em estudos futuros, criar metodologias
e testes que possibilitem o pareamento e o controle
pela variação linguística, pois só assim podemos
ter mais segurança nos resultados apresentados de
estudos comparativos feitos com indivíduos surdos.
Heloiza H. BARBOSA. Conceitos matemáticos iniciais e linguagem: um estudo comparativo entre crianças surdas e...
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Recebido em: 13.09.2012
Aprovado em: 27.06.2013
Heloiza H. Barbosa é pesquisadora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), nos programas de Pós-Graduação
em Educação (PPGE) e em Educação Científica e Tecnológica (PPGECT). Obteve seu doutorado em Educação pela Boston
University. Sua pesquisa foi financiada pelo CNPq.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 163-179, jan./mar. 2014.
179
Nos interstícios da cidadania: a inevitabilidade e urgência
da dimensão da virtude cívica na educaçãoI
Eduardo Nuno FonsecaII
Resumo
I- Este artigo faz parte de uma seção de um
capítulo da tese de doutoramento em Educação
intitulada A Educação para a cidadania no
sistema de ensino básico português no
âmbito da formação do carácter: análise e
propostas – dois estudos de caso, submetida
ao Instituto de Educação da Universidade de
Lisboa no final de 2012, a qual foi apoiada
pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia
(FCT) (SFRH/BD/45232/2008). Um merecido
reconhecimento à supervisora desse trabalho
acadêmico, a professora doutora Maria Odete
Valente, a qual marcou indelevelmente, desde
a década de oitenta do século XX, o
contexto educativo português na área da
formação pessoal e social e da cidadania.
II- Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal.
Contato: [email protected]
Este artigo tem dois objetivos centrais. O primeiro é
problematizar a conceptualização da cidadania, de acordo
com sua acepção moral e o segundo é equacionar as
respectivas implicações para qualquer projeto educativo que
reconheça a importância da educação para a cidadania em
contexto escolar. Assim, primeiramente serão feitas algumas
considerações a respeito da dimensão poliédrica do conceito
de cidadania. Especificamente, salientaremos que a cidadania
participativa, além de requerer conhecimentos e competências,
abrange igualmente o domínio de recursos pessoais e
extrapessoais, bem como as disposições conducentes à ação.
Ademais, existe um vínculo entre a constituição moral de cada
cidadão, a democracia e a vivência democrática. Finalmente,
abordaremos a cidadania democrática, a qual envolve a
capacidade da pessoa de se mover além dos seus próprios
interesses individuais, para que possa comprometer-se com o
bem da comunidade onde se encontra inserida. A cidadania,
nessa perspectiva, origina uma latente tensão que necessita
ser prudentemente dirimida. O processo educativo, portanto,
desenvolve-se na fronteira escorregadia entre a doutrinação e
o respeito pela livre escolha individual, devendo existir uma
fidelidade intransigente à bússola balizadora dos direitos
humanos (UNESCO, 2006), os quais privilegiam a defesa
da dignidade das pessoas, o direito ao desenvolvimento da
personalidade e o combate a todas as formas de discriminação
(ROLDÃO, 1992; SANTOS, 2011).
Palavras-chave
Democracia — Cidadania — Educação — Caráter.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 181-196, jan./mar. 2014.
181
In the interstices of citizenship: the inevitable, urgent
character of the dimension of civic virtue in education I
Eduardo Nuno FonsecaII
Abstract
This article has two central points. The first is to problematize
the conceptualization of citizenship according to its moral
meaning; the second is to evaluate its respective implications
for any educational projects that recognize the relevance of
education for citizenship in the school context. Therefore,
a few considerations will initially be made regarding the
polyhedral dimension of the concept of citizenship. We will
particularly emphasize that, besides requiring knowledge
and competences, participatory citizenship also covers the
domains of personal and extra personal resources, as well as
the dispositions leading to action. Moreover, there is a bond
between each citizen’s moral constitution, democracy itself,
and the experiencing of democracy. Finally, we will approach
democratic citizenship, which involves one’s capacity to move
beyond one’s own individual interests in order to be committed to
the good of the community. In this perspective, citizenship raises a
latent tension that must be wisely settled. The educational process
therefore occurs in the slippery border between indoctrination
and the respect for free individual choice, thus calling for strict
faithfulness to the guiding compass of human rights (UNESCO,
2006), which favors defending people’s dignity, the right to
the development of personality, and the fighting of all forms of
discrimination (ROLDÃO, 1992; SANTOS, 2011).
I- This article is part of a chapter of the
Education doctorate thesis A Educação para
a cidadania no sistema de ensino básico
português no âmbito da formação do caráter:
análises e propostas – dois estudos de
caso, submitted to Instituto de Educação da
Universidade de Lisboa in late 2012; the thesis
was supported by Fundação para a Ciência e
a Tecnologia (FCT) (SFRH/BD/45232/2008).
We wish to thank this work’s supervisor, Maria
Odete Valente, Ph.D., who since the 1980’s
has indelibly marked the Portuguese education
context in the area of personal and social
Keywords
Democracy — Citizenship — Education — Character.
education and citizenship.
II- Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal.
Contact: [email protected]
182
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 181-196, jan./mar. 2014.
Introdução
Este artigo busca equacionar e problematizar a conceptualização da cidadania, na perspectiva de sua acepção moral e as respectivas
implicações para qualquer projeto educativo
que reconheça a importância da educação para
a cidadania em contexto escolar. A cidadania
é uma noção antiga que encontramos tanto na
polis grega como na civitas romana, onde os
então considerados cidadãos participavam no
governo da cidade. Hoje, a amplitude, o horizonte, a responsabilidade e o desafio de ser um
cidadão do século XXI cresceram exponencialmente, adquirindo um cunho universal nunca
antes ocorrido na história da humanidade.
A cidadania tem se projetado fora do
âmbito nacional, chegando a ter um alcance
global, configurador de uma supercidadania
globalizada que, de modo concentrado, abrange
gradativamente as esferas local, regional,
nacional e supranacional. Como afirma Freire-Ribeiro (2010, p. 67), “mais do que ser cidadão
nacional impera ser cidadão do mundo”, ou, como
Reis-Monteiro (2003) nos lembra, no contexto
do império romano podia-se dizer com orgulho
civis romanus sum! (sou cidadão romano), mas,
atualmente, cada ser humano deve poder dizer:
civis humanus sum! (sou cidadão humano!).
Trata-se, desse modo, de uma responsabilidade
substancial do sistema educativo, no contributo
concedido ao desenvolvimento e à formação das
novas gerações.
Conceptualização e
problematização da cidadania
No que se refere à conceituação da
cidadania, essa tem vindo a registar, ao longo
do tempo, limites cada vez mais amplos. Desde
a ênfase à pertença exclusiva e exclusivista
a uma cidade (cidadania clássica), passando
pela conquista de direitos vários, derivados
principalmente da matriz axiológica da
Revolução Francesa (cidadania moderna), até a
uma dimensão denominada socioliberal na qual
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 181-196, jan./mar. 2014.
cada indivíduo desfruta plena e soberanamente de
um conjunto de direitos (FREIRE-RIBEIRO, 2010).
O conceito de cidadania é devedor,
historicamente, a diversas tradições de
pensamento político. A tradição liberal enfatiza
os direitos civis e políticos, expressos nas
liberdades individuais (de pensamento, de
expressão, de participação e de associação).
Por seu turno, o comunitarismo sublinha a
pertença a uma comunidade, realçando desse
modo os direitos sociais e culturais. Finalmente,
a cidadania apresenta-se para a tradição
democrática como participação ativa dos
cidadãos na sociedade (AFONSO, 2010). Com
esse pano de fundo, que tem caracterizado a
essência conceitual da cidadania, manifesta de
vários prismas, mas que salientam a natureza
simultaneamente individual/gregária do ser
humano, da inerência de ser portador de
direitos/deveres, e de poder ser um agente
participativo na comunidade que faz parte, faz
sentido colocar a seguinte indagação: em que
medida será possível dissociar a cidadania das
dimensões morais? Se a cidadania requerer pelo
menos certa forma de caráter, designando-se
virtude cívica ou carácter cívico ou democrático,
então a educação para a cidadania deverá
incorporar as concepções relevantes do caráter
e as práticas da educação do caráter (ALTHOF;
BERKOWITZ, 2006, p. 511).
Mas quais são os argumentos aduzidos
para que se incorpore a vertente da moral
na essência da cidadania? A resposta terá
implicações evidentes no que diz respeito à
educação para a cidadania. Alguns autores
têm sustentado que a verdadeira cidadania
democrática necessariamente compreende
o desenvolvimento moral e, desse modo,
requer educação moral, sendo um aspecto
incontornável da cidadania. O corolário
argumentativo resulta na afirmação de que a
educação para a cidadania é invariavelmente
normativa e abrange assim as dimensões morais
inerentes à membrazia cívica (CARR, 2006;
HOGE, apud ALTHOF; BERKOWITZ, 2006).
Veremos, em seguida, que são de ordem diversa.
183
Iremos então expor aqueles aspectos que se nos
afiguram como os mais relevantes.
A dimensão poliédrica do
conceito de cidadania
Segundo Althof e Berkowitz (2006) e
Audigier (2000, apud FREIRE-RIBEIRO, 2010),
na linha daquilo que a Comissão Internacional
sobre Educação para o século XXI pronunciou
sobre a conceptualização da educação (totalidade
do ser e não reducionismo), hoje é consensual,
nomeadamente na investigação acadêmica
recente e na tomada de posição de reconhecidas
instituições, conceber um cidadão competente,
envolvido e efetivo, como alguém detentor de
determinados traços que são necessários para uma
participação plena nos planos político, econômico,
social e cultural. No relatório produzido pela
referida comissão, a educação engloba quatro
pilares, que enaltecem a totalidade do ser e
contrapõem qualquer reducionismo. Dois desses
pilares estão intimamente relacionados com a
formação pessoal e social e nos ajudam a focalizar
e a não negligenciar determinadas dimensões
humanas, a saber: aprender a viver juntos e
aprender a ser. Nessa perspectiva, a compreensão
do outro, a capacidade de iniciar projetos comuns,
gerir e dirimir potenciais conflitos, além de viver
autônoma e responsavelmente são consideradas
metas educativas para o ser humano ao longo da
formação em que se desenvolve holisticamente
como pessoa em uma dialética constante e que
representa uma simbiose entre espírito e corpo,
inteligência e sensibilidade, sentido estético,
responsabilidade pessoal e espiritualidade
(UNESCO, 1996).
Tal cidadania necessita assim de
um conjunto de competências (cognitivas,
processuais, éticas e de ação) que abranjam, de
forma equilibrada, criativa e contextualizada,
quatro domínios: 1) conhecimento político
e cívico: conceitos como o de democracia, a
compreensão da estrutura e dos mecanismos
do processo legislativo, direitos e deveres dos
cidadãos, os problemas e assuntos políticos
184
contemporâneos; 2) habilidades intelectuais:
capacidade de compreender, analisar e verificar a
fidedignidade da informação acerca do governo
e políticas públicas sobre determinadas matérias;
3) competências sociais e de participação:
capacidade de pensar, argumentar e expressar
as suas opiniões nas discussões políticas;
habilidades na resolução de conflitos; saber
como influenciar as políticas e decisões através
da petição e do lobbying, construir coligações
e cooperar com organizações parceiras; e 4)
possuir certos valores, atitudes e disposições
with a motivational power: interesse em assuntos
políticos e sociais; sentido de responsabilidade,
tolerância e reconhecimento dos seus erros;
apreciação dos valores nos quais as sociedades
democráticas são fundadas como a democracia, a
justiça social e os direitos humanos. Nessa última
vertente, os direitos humanos, que compõem
o eixo da adesão aos valores da democracia,
sublinham na sua filosofia conceitual a dignidade
de todo o ser humano, o respeito, a liberdade, a
solidariedade, a tolerância, a compreensão ou a
coragem cívica.
A Declaração Universal dos Direitos
Humanos (DUDH), coloca a cidadania como
“ideal comum a atingir por todos os povos e
todas as nações”. O mesmo documento pretende
que todos os cidadãos:
[...] se esforcem, pelo ensino e pela
educação, por desenvolver o respeito desses
direitos e liberdades e por promover, por
medidas progressivas de ordem nacional
e internacional, o seu reconhecimento e a
sua aplicação universais. (UNESCO, 2006)
Assim, tais expressões, as quais a
educação para a cidadania deve também
entroncar-se, não se apelam unicamente in
extremis como direitos que têm de ser observados
nas instâncias superiores, mas reclamamse na sua expressão humana, nos patamares
concretos do quotidiano. Não são, portanto,
categorias abstratas, distantes, mas realidades
operativas que reconfiguram os relacionamentos
Eduardo Nuno FONSECA. Nos interstícios da cidadania: a inevitabilidade e urgência da dimensão da virtude cívica...
interpessoais. Essa reconfiguração introduz
pontos de referência que delimitam o espaço
onde é legítimo coexistir a pluralidade e a
expressão heterogênea da conduta, bem como de
posicionamentos humanos, fazendo, inclusive,
com que a tolerância seja ela própria uma
virtude balizada por outros critérios normativos
(ALTHOF; BERKOWITZ, 2006; AUDIGIER, 2000,
apud FIGUEIREDO, 2005, p. 35; LEGRAND,
1991 apud FONSECA, 2001, p. 53).
Recentemente, no contexto português, o
conceito de cidadania foi também conceitualizado
remetendo para três dimensões: (i) cidadania
enquanto princípio de legitimidade política; (ii)
cidadania como construção identitária; e (iii)
cidadania como conjunto de valores (SANTOS,
2011). A cidadania é então perspectivada de
forma a também incluir os valores, atitudes e
comportamentos expectáveis do bom cidadão
e da própria sociedade (SANTOS, 2011, p. 5).
Somos assim concordantes com vários autores
(AFONSO, 2010; CAETANO, 2010; MENEZES,
2005; PEREIRA, 2007; RODRIGUES, 2008;
ROLDÃO, 1992, 1999) que têm chamado a
atenção para que a cidadania não seja concebida
de forma minimalista. Para alguém ser um bom
cidadão, a provisão de capacidades cognitivas e
de informação, sendo claramente uma condição
necessária, não se constituiu como uma condição
suficiente. Esses autores sublinham a necessidade
premente, em um contexto democrático,
de funcionamento das instituições políticas
democráticas, de cidadania participativa, de
ser contemplada a “interiorização de valores
associados à liberdade individual e ao respeito
pelos outros”, o desenvolvimento de “atitudes
que traduzam um comportamento social
esclarecido e interveniente” (ROLDÃO, 1992,
p. 105), de atender as “disposições para agir”
(MENEZES, 2005, p. 18), as quais envolvem
“competências de natureza ética, cognitiva e
afectiva” (AFONSO, 2010, p. 128).
Heater (1999, p. 336) sintetiza assim
as diversas valências que uma pessoa deve
incorporar para que, de fato, seja considerada
um cidadão pleno:
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 181-196, jan./mar. 2014.
a citizen is a person furnished with
knowledge of public affairs, instilled with
attitudes of civic virtue, and equipped with
skills to participate in the political arena.
Essa segmentação ajuda-nos a compreender a riqueza e o carácter multifacetado
e holístico do conceito de cidadania, nomeadamente o interrelacionamento e o peso idêntico da importância do conhecimento cívico,
das competências e das disposições (virtudes),
refletindo desse modo aquilo que o Character
education partnership designou como carácter
cívico (ALTHOF; BERKOWITZ, 2006).
Assim, o carácter cívico resulta da
interação das três componentes da cidadania: 1)
literacia (englobando o conhecimento político e
cívico e as habilidades intelectuais), participação
e moralidade: se alguma não for contemplada,
a cidadania torna-se, respectivamente, uma
cidadania alienada (não detém conhecimentos
que permitam uma tangibilidade ao nível
da esfera de uma participação esclarecida e
produtiva); 2) cidadania de bancada: por muito
conhecimento e património cívico e moral, não
entra no jogo real da vida social, perdendo
aquilo que Aristóteles (1998) considerava
a qualidade verdadeiramente característica
do cidadão – a participação no exercício do
poder público na sua pátria; e 3) cidadania
niilista: pode inclusive ter todas as outras
dimensões altamente desenvolvidas, mas carece
de um núcleo axiológico que possibilite uma
intervenção, além de esclarecida e efetiva,
moralmente dirigida (ver figura 1).
Não queremos incorrer no perigo de
descurar a riqueza do conteúdo e das questões
que envolvem a concretização da educação para
a cidadania. Somos concordantes com Menezes
(2005, p. 18), quando defende que a cidadania
participativa, além de requerer conhecimentos
e competências, abrange igualmente o domínio
de recursos pessoais e extrapessoais, bem como
as disposições conducentes à ação. Rejeitamos,
desse modo, uma concepção minimalista da
educação para a cidadania, reduzindo-a somente
185
Figura 1 – A cidadania coartada em função das suas três dimensões principais
Cidadania
Niilista
Cidadania
Alienada
Cidadania de
Bancada
Fonte: dados da pesquisa.
à provisão de informação e ao desenvolvimento
de competências, sem levar em consideração,
com a mesma seriedade e preocupação, o eixo
da moralidade.
A expressão educação para a cidadania
contém, assim, um reconhecimento implícito da
tensão entre formação ética e formação cívica,
na medida em que os comportamentos cívicos
implicam a interiorização de valores morais e a
manifestação em atos responsáveis (PEREIRA,
2007, p. 71). Desde o Pacto internacional sobre
os direitos econômicos, sociais e culturais
(UNESCO, 1966, artigo 13), passando pelo
aclamado relatório produzido pela Comissão
Internacional sobre Educação para o século XXI
(UNESCO, 1996), chegando até o projeto europeu
Educação para a cidadania democrática e para
os direitos humanos, iniciado em 1997, a ênfase
tem recaído na responsabilidade de formar as
novas gerações, no sentido de existirem condições
para uma convivência harmoniosa conjunta
(independentemente de qualquer critério étnico,
social ou religioso) e para uma intervenção útil
na sociedade. Aliás, esse último projeto tem vindo
a construir um quadro conceitual, expresso em
186
convenções, declarações, recomendações políticas,
trabalhos de investigação teórica e aplicada, no
campo da democracia, dos direitos humanos,
da cidadania, da pedagogia e da formação de
professores. Nessas áreas, a cidadania é entendida
como pró-ativa, ética, responsável, descolando-se
assim do já mencionado paradigma minimalista
(SALEMA, 2010).
A educação para a cidadania democrática, tal como afirma Kerr (2004), tem como
coluna vertebral um núcleo essencial de sensibilidades morais, que possibilita a construção
(ação, preservação e valorização) do respeito,
da confiança, da tolerância e da autoestima. O
conhecimento e as competências por si só não
se constituem como fatores suficientes para
conduzir à prática de uma cidadania responsável e ativa. É necessário o desejo e a vontade
de participar positivamente na sociedade dessa
forma (SALEMA, 2005).
Cidadania e democracia
Existe um vínculo entre a constituição
moral de cada cidadão, a democracia e a
Eduardo Nuno FONSECA. Nos interstícios da cidadania: a inevitabilidade e urgência da dimensão da virtude cívica...
vivência democrática. Essa preocupação
relacionada com a moralidade dos indivíduos foi
manifesta nos primeiros filósofos educacionais,
tais como Sócrates, Platão e Aristóteles, e em
pessoas como Baron Charles e Montesquieu,
que advogaram, no século XVIII, a favor da
necessidade absoluta de zelar pela virtude das
pessoas para que o sistema político proposto, a
República, pudesse subsistir. O carácter cívico
ou a virtude cívica surgem, segundo alguns
pensadores, como um vetor preponderante na
composição de uma cidadania harmoniosa e
consistente. Por isso mesmo é aduzido que o
carácter não se concretiza em um vácuo social,
mas cristaliza-se na própria textura social,
refletindo-se na conduta regular e quotidiana
dos membros de uma sociedade (JOHNSON;
JOHNSON, 2006).
Torna-se, assim, fundamental que a
educação para a cidadania supere a ideia de
um civismo exterior ao sujeito e desligado
do sentimento de integração na comunidade.
Sem o componente ética, a integração social
e política resultaria em mera adaptação às
tendências dominantes (PEREIRA, 2007, p. 71).
Em última análise, uma democracia que não
assente na realidade dos seus membros serem
self-governing não é democrática de todo.
Uma sociedade democrática, em que a ordem
e a coesão social são legitimamente almejadas,
não pode descurar a predisposição individual
dos seus membros. Nata e Menezes (2010,
p. 3397) enfatizam essa condição ao nível
transpessoal em sociedades heterogêneas,
quando sustentam:
A qualidade das nossas democracias
depende quer do sistema político em si,
quer das ‘virtudes’ dos seus cidadãos.
Entre outras, a democracia necessita de
cidadãos que participem na vida política
e cívica, e que, simultaneamente, tolerem
e aceitem a participação e identidade
de outros, particularmente quando estes
outros pensam de forma distinta da sua e
são diferentes de si.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 181-196, jan./mar. 2014.
O filósofo educacional John Covaleskie
(1999) argumenta ainda que sem essa condição
de os cidadãos se apropriarem de um conjunto
de disposições morais, a alternativa em zelar
pela manutenção da ordem social seria um
sistema que colocaria em causa a própria
democracia. O pensamento do autor é expresso
da seguinte maneira:
In a democratic society, character does
matter. For democracy to work, the
citizens must have a settled predisposition
to do the right thing far more often than
not. For social order to obtain, either this
must be true or the citizenry must be
subject to such pervasive surveillance and
regulation that their behavior is controlled
despite the lack of this predisposition. No
society in which supervision is the means
of social control can lay legitimate claim
to be democratic. Democracy requires
citizens who are, literally, self-governing.
Therefore, character formation — the
fostering of virtue — is the critical role
of education in any society, but perhaps
never more than in a society that would
be democratic. (COVALESKIE, 1999, p. 181)
Apesar das divergências em torno
do conceito da cidadania, tem-se chegado
atualmente a um consenso com relação à
convicção de que a estabilidade das democracias
e o desenvolvimento das sociedades inspiradas
e baseadas nos direitos humanos não somente
dependem da organização do estado, mas,
também, da virtude individual dos seus cidadãos
e das suas atitudes de diálogo, de respeito, de
participação e de responsabilidade (GONZÁLEZ
apud VALENZUELA, 2011, p. 44). Por isso,
parafraseando Barber (apud PACHECO, 2000, p.
108), o termo escola pública não concebe apenas
a definição dos destinatários por excelência da
instituição educativa, o público, mas encerra
uma notoriedade da escola, arraigada na
compreensão do que é ser público e em uma
identidade cívica nacional e comum.
187
A escola é, em sintonia com a metáfora
comeniana, uma oficina de cidadania e constituiu nada mais, nada menos, que o alicerce
do sistema democrático, especialmente em um
contexto em que o seu protagonismo se acentua como agente de socialização (precocidade
na entrada no sistema educativo, jornada diária
escolar ampliada e, finalmente, no alargamento
da escolaridade obrigatória – em Portugal existe a massificação do pré-escolar, estabeleceu-se
a denominada escola a tempo inteiro e a escolaridade obrigatória foi recentemente alargada
para os 18 anos de idade). Ademais, a conjuntura contemporânea, marcada pela perda das
tradicionais instituições de socialização e pela
desorientação e insegurança dos interventores
educativos – derivada da pluralidade axiológica
e dos corolários do pensamento pós-moderno
(incerteza, efemeridade e relativismo) –, também salienta essa necessidade (CAMPOS, 2004;
ESTRELA; CAETANO, 2010, p. 10).
Na senda do pensamento de Montesquieu,
outros vultos como Benjanim Franklin e Alexis
de Tocqueville, já no século XIX, também
se pronunciaram, mostrando a necessidade
de se atentar à moralidade, pois era fator
determinante para a liberdade e a consecução
da obtenção de prosperidade a nível nacional
(BROGAN; BROGAN, 1999; MCDONNEL apud
RYAN; BOHLIN, 1999). Na mesma linha de
argumentação, são denunciadas as repercussões
nefastas de não considerar a formação moral
como elemento decisivo. Isso, não somente
como realização da natureza humana, mas
nas decorrentes implicações para o futuro
individual e coletivo de uma nação. Note-se
que, considerando a esfera social decorrente, já
foi observado que 19 de 21 civilizações notáveis
ruíram, não por terem sido conquistadas por
outros povos mas pelo declínio moral que se
foi instalando no próprio seio da civilização
(JOHNSON; JOHNSON, 2008; LICKONA, 2004;
RYAN; LICKONA, 1987).
A esse respeito é invocada, recorrentemente, a célebre expressão do filósofo pré-socrático Heráclito, carácter é destino (BERKOWITZ;
188
BIER, 2005; JOHNSON; JOHNSON, 2008; RYAN,
1986, 1999; RYAN; BOHLIN, 1999; SCHAPS et
al., 2001). Isso porque viver em conjunto suscita inúmeros desafios que cada pessoa tem de
lidar e ultrapassar da melhor forma possível,
consubstanciando, desse modo, uma moralidade pública. Assim, a polis grega cultivou conscientemente hábitos particulares entre os seus
cidadãos, virtudes percepcionadas pelos gregos
como necessárias para a vida na cidade, para se
ter uma vida civilizada (RYAN; BOHLIN, 1999).
Para Althof e Berkowitz (2006) e
Johnson e Johnson (2008) a resolução de
conflitos e saber lidar com a diferenciação de
uma forma justa, quer em uma perspectiva
intergrupal quer em uma óptica interpessoal,
são outros aspectos do exercício da cidadania.
Na verdade, esses eixos foram recentemente
reconhecidos pelo Citizenship education
policy study project, cujo alvo foi identificar
as exigências que a cidadania contemporânea
iria requerer no século XXI. As características
fundamentais que um cidadão deveria ter,
a bem da própria estabilidade da sociedade
global, passariam incontornavelmente por
assumir responsabilidade pelas suas funções
e compreender, aceitar e tolerar as diferenças
culturais, resolver um conflito de uma forma
não violenta e respeitadora dos direitos
humanos (NARVAEZ, 2001, p. 4-5).
Vemos, assim, a necessidade de contemplar
os valores da responsabilidade, da tolerância e do
respeito pelos outros como acervo imprescindível
à formação de uma cidadania tal que satisfaça
os exigentes desafios locais, nacionais e à escala
global que a contemporaneidade encerra para
a humanidade. Viver juntos de forma pacífica,
portanto, implica a existência de conjunto
básico de valores universais, uma ética comum
da humanidade em torno dos direitos do ser
humano e da democracia. Exige, ainda, que
os membros da comunidade reconheçam e
compartilhem entre si a alma da sua identidade
coletiva, a qual constitui o centro de gravidade
da importante educação para a cidadania (REIS-MONTEIRO, 2003).
Eduardo Nuno FONSECA. Nos interstícios da cidadania: a inevitabilidade e urgência da dimensão da virtude cívica...
Além disso, é indeclinável a existência
de um núcleo axiológico no qual alguns
princípios universais mínimos subjazem à
generalidade das matrizes culturais e religiosas,
de modo a assegurar a liberdade responsável
do ser humano e a proporcionar um verdadeiro
diálogo
intercultural
(ARAÚJO,
2005;
CARNEIRO, 1999). Assim, é necessário um chão
comum de cidadania, em um solo de areias
movediças, que evite um marasmo e niilismo
ético confrangedor e uma anomia crescente.
Cidadania e participação social
Como último ponto, a cidadania
democrática envolve a capacidade da pessoa
de se mover além dos seus próprios interesses
individuais, para que possa comprometer-se
com o bem comum da comunidade onde ela
está inserida (ALTHOF; BERKOWITZ, 2006, p.
500-501). Nessa concepção, o compromisso e a
ação no domínio cívico e político não podem
estar dissociados do fato de as pessoas se
preocuparem com os assuntos e valorizarem
a sua ação, na medida em que reconhecem
que o seu contributo nessa esfera é válido e
consequente (COLBY, 2002). Althof e Berkowitz
(2006, p. 512) reconhecem que, ao incorporar
no conceito de cidadania um envolvimento
pró-social no seio de um sistema político
democrático, tal envolvimento depende em
larga escala do carácter de cada cidadão.
Em outras palavras, a cidadania ativa
que se almeja no projeto educacional é deveras
exigente, especialmente numa sociedade
onde proliferam um individualismo sedento
de gratificação imediata e um consumismo
frenético, minando, dessa forma, o exercício
da solidariedade, da empatia e da compaixão.
Abdicar dessa enorme pressão social, e
abnegadamente dar um contributo tangível aos
outros, constitui sobremaneira um desafio nos
dias de hoje. Existe uma larga e importante classe
de obrigações morais e sociais que não é redutível
à categoria dos deveres, os quais poderão estar
explicitados ou mesmo consignados.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 181-196, jan./mar. 2014.
Uma cidadania democrática liberal responsável não pode ser somente um assunto teórico de direitos e obrigações concebidos abstratamente (CARR, 2006). Johnson e Johnson
(2008) mencionam que a virtude cívica existe
quando o espírito e a letra das obrigações públicas são satisfeitos. Subsequentemente, não se
pode deixar de privilegiar o desenvolvimento
de uma constituição moral sólida e enformada
por distintas qualidades humanas. Essa dimensão deve ser firmemente fixada em disposições
éticas, qualidades de carácter como a honestidade, justiça, temperança, coragem e compaixão (CARR, 2006. p. 451).
Temos ainda, além do cunho pró-social
da cidadania, a necessidade dessa se configurar
como uma cidadania efetiva que valoriza
a individualidade e a inerente realização
pessoal de cada pessoa. Em uma perspectiva
mais pessoal, os cidadãos efetivos deverão ser
capazes de ordenar a sua conduta e perseguir
os seus vários projetos à luz de uma concepção
pessoal de bem que seja fortemente desejada ou
daquilo que é considerado humanamente digno
de obtenção. A cidadania, assim construída, é
um também um assunto de formação ou cultivo
de valores significantes e virtudes (CARR, 2006,
p. 444). Por isso, Reis-Monteiro (2003) sustenta
que a educação para a cidadania está sempre
associada, formalmente ou não, à educação
moral, pois, como Aristóteles (1994) já tinha
sublinhado, a singularidade dos seres humanos
em relação aos animais, evidencia-se pela sua
capacidade única de ter a percepção do bem e
da justiça, do mal e da injustiça.
Cidadania e a atmosfera cívica
nos estabelecimentos educativos
Finalmente, a atmosfera moral e cívica
da escola sempre foi uma faceta importante
na educação, por isso a novidade no contexto
português, hoje, prende-se com o grau de
regularidade e intensidade existentes, bem como
com a gradual deterioração (CARVALHO, 2000;
RANGEL, 2006). Desde a década de 80 do século
189
XX, essa deteriorização tem sido estudada com
maior amplitude em Portugal, sendo que os
analistas têm chamado a atenção desse quadro
inquietante, composto por elementos que vão
desde as injúrias, a linguagem inapropriada, a
alienação, o consumo de drogas e o bullying
(JUSTINO, 2005; MARQUES, 1998; WONG, 2011).
Se é sensato não defender uma perspetiva
de educação e uma estratégia ao nível da
formação pessoal e social dos alunos, com base
exclusiva nos sinais atuais que a sociedade
manifesta, seria igualmente ilegítimo não levar
em consideração essas interpelações que, de
fato, acentuam a necessidade de intervenção e
nos ajudam a compreender facetas marcantes
do próprio contexto educativo e dos seus
interventores mais diretos, alunos e respectivas
famílias. Reconhecemos que um ambiente não
harmonioso dentro de um estabelecimento
melindra a natureza e as finalidades do ato
educativo, prejudica as aprendizagens, a
estabilidade emocional e profissional dos seus
docentes, mas também a atmosfera geral, eixo
igualmente relevante na promoção de uma
formação moral e cívica adequada.
Quer partamos de uma base pré-teórica,
quer estejamos apenas sensíveis ao senso
comum, é difícil aceitar que crianças e jovens
possam adquirir e vivenciar a sabedoria prática e
a justiça, na ausência de algum grau de controle
sobre as suas inclinações e desejos (o aumento
da obesidade, a gravidez na adolescência, as
doenças transmitidas sexualmente, abuso de
droga e de álcool, violência nas suas múltiplas
expressões são corolários da negligência, da
temperança e do domínio-próprio na vida
das pessoas) (CARR, 2006). Claro que existem
outros fatores que concorrem para isso, a
saber: parentalidade irresponsável, exploração
comercial da violência, cultura sexual, acesso
facilitado à pornografia, álcool e drogas,
exemplos raros ou mesmo inexistentes daqueles
que são considerados pelas gerações mais novas
modelos a imitar (CARR, 2006, p. 452).
Se os alunos não aprendem disciplina-própria e respeito pelos outros, continuarão a
190
explorar-se sexualmente, não sendo condição
suficiente o número de sessões de aconselhamento clínico ou o acesso aos contraceptivos. Se
não tiverem hábitos de coragem e de justiça, não
acabarão os fenômenos de extorsão, bullying e
violência (KIDDER, 1991; KILPATRICK, 1992;
LICKONA, 1993, 2004; RYAN; BOHLIN, 1999).
Um
regime
democrático
precisa
vitalmente de intervenção no nível educativo,
não somente devido aos problemas já
mencionados de violência social e escolar, mas
também pelo recrudescimento da intolerância
e da xenofobia, pelo declínio dos valores e
da autoridade tradicionais, pela descrença no
primado do direito e pelos novos problemas
éticos emergentes do progresso científicotecnológico, designadamente no campo das
ciências da vida (REIS-MONTEIRO, 2003). Claro
que a falta de consenso não está no diagnóstico
em relação à gravidade social e cultural, notória
nas sociedades desenvolvidas, mas em relação
ao que deve ser feito, nomeadamente através da
instituição social escola (CARR, 2006).
No âmbito das estratégias relacionadas ao
desenvolvimento pessoal e social, pensamos que
existe legitimidade de considerar a premissa de
que a patologia moral nas instituições escolares
radica também na ausência de um bom caráter.
Sustenta-se, desse modo, que as abordagens
relacionadas com a formação do carácter lidam
com a raiz do problema, constituindo-se como
a melhor ação a empreender para inverter a
situação. Isso porque tais abordagens enfatizam
a dimensão emocional e a dimensão de ação.
Ora, Marques (1999) refere que no contexto
português público, a atmosfera cívica escolar
nas últimas três décadas (ambiente, práticas
e condutas) tem sido negativamente afetada,
devido à desvalorização das vertentes afectivas e
comportamentais no empreendimento educativo
da formação pessoal e social nas escolas.
Conclusão
Para finalizar, reiteramos que o conceito
da cidadania, na perspectiva de suas múltiplas
Eduardo Nuno FONSECA. Nos interstícios da cidadania: a inevitabilidade e urgência da dimensão da virtude cívica...
facetas e nas suas implicações, requer que a
dimensão moral esteja presente, particularmente
no seio de uma democracia, pois essa terá
implicações na harmonia social e na consecução
da própria prosperidade de uma sociedade. A
moralidade pública é um alvo que faz depender
a coesão e a qualidade de relacionamento entre
as pessoas e os grupos diversos que compõem
o tecido social. Na complexa matriz social,
surgem inevitavelmente diferendos que urgem
ultrapassar de forma justa, ordeira e sensata.
Ora, a inexistência de um carácter cívico
condicionam sobremaneira esse desígnio.
Para subsistir, a democracia necessita,
mais do que qualquer outro sistema político,
da motivação para ser virtuoso, da partilha de
valores e objetivos similares. As pessoas têm de
estar conscientes que fazem parte de um grupo
humano mais alargado, preocupando-se com a
sociedade como um todo e tendo vínculos morais
com a comunidade (JOHNSON; JOHNSON,
2008, p. 224). Outro aspecto importante foi
destacar a exigência que a expressão cidadania
ativa e efetiva encerra e requer em termos da
necessidade de existir como condição prévia à
formação de valores operativos, sob pena de ser
somente um simulacro.
Em suma, o cultivo de virtudes não
pode deixar de estar presente em todo e
qualquer desenvolvimento pessoal de uma
digna cidadania responsável e interventiva.
Assim, não nos parece exagero afirmar que a
educação para a cidadania realmente carece
de um fundamento baseado em uma educação
do caráter, como se de uma pré-condição se
tratasse – “a precondition of good citizenry is
a virtuously ordered character” (CARR, 2006,
p. 453). Esse foi também o entendimento
da sociedade inglesa que determinou que a
educação para a cidadania se tornasse uma
disciplina obrigatória, na qual sobressai
claramente o conceito de educação com caráter
(ARTHUR, 2003a, 2003b, 2003c, 2005; KERR,
2003; KIWANI, 2005).
À luz da argumentação feita, a educação
para a cidadania não se deve confinar à
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 181-196, jan./mar. 2014.
transmissão e promoção de noções ou reflexões
sobre valores. É simultaneamente curial
a criação de hábitos e atitudes através de
experiências, em um processo de aquisição e
interiorização de valores, quadro configurador
de uma formação de carácter que se liberta de
um paradigma exclusivamente cognitivo da
moralidade (CUNHA, 1996; FONSECA, 2007).
Reconhecemos desde já, todavia, que esse
posicionamento a que chegamos é polêmico,
apesar de não colocarmos em nenhum momento
em causa as demais componentes (participação,
literacia política etc.). Mas, somente o fato de
assinalar a componente virtuosa, como âmago
de se ser cidadão, despoleta invariavelmente
questões ideológicas e políticas, enquadrando-se naquilo que Pacheco (2000, p. 110-111)
menciona como a “linguagem política do
carácter”. Essa linguagem é utilizada, segundo
a sua argumentação, por movimentos políticos
conservadores, cuja matriz realça uma
cidadania associada a projetos de moralidade,
os quais concebem a escola e os demais
espaços socializadores (família e comunidade)
como contextos privilegiados para doutrinar
valores tradicionais. Ora, aqui está, julgamos
nós, a ponderação do caráter doutrinador
da potencial dependência de uma agenda
ideológica e em última análise da formação
de cidadãos impossibilitados de exercer a sua
autodeterminação ética.
No entanto, somos concordantes com a
recente postura lúcida e preventiva de Caetano
(2010), em relação à possibilidade de se ter uma
abordagem diretiva, com segurança e autoridade,
mas sem qualquer traço manipulatório. Não
obstante, admitimos as dificuldades e tensões
inerentemente envolvidas, substancialmente
derivadas da complexidade da compatibilidade
entre, seguindo as palavras de Savater (2006,
p. 165), um ensino empenhado no máximo
de persuasão didática e o desenvolvimento do
espírito crítico da autonomia dos alunos.
Vários investigadores contemporâneos
(PEREIRA, 2007; ROLDÃO, 1992, 1999; SANTOS,
2011) referem que a educação no âmbito da
191
escola – ao promover a formação pessoal,
social e moral do indivíduo, alicerçada em
quadros de referência consistentes, que chama
a si princípios inerentes a toda a dignidade
da pessoa humana, os quais são acolhidos
nas constituições dos estados democráticos –
traduz uma tensão e um problema sério. Roldão
(1992, p. 106) especifica de forma interessante
essa latente tensão, mencionando que esse
processo educativo “se desenvolve na fronteira
escorregadia entre a doutrinação e o respeito
pela livre escolha individual”, devendo existir
uma fidelidade intransigente à bússola balizadora
dos direitos humanos (UNESCO, 1996), os quais
privilegiam a defesa da dignidade das pessoas,
o direito ao desenvolvimento da personalidade
e o combate a todas as formas de discriminação
(SANTOS, 2011).
A meta consagrada em 1986, na Lei de
Bases do Sistema Educativo em Portugal, regista dois binómios que poderiam ser considerados
como portadores de uma antinomia interna (liberdade/responsabilidade e autonomia/solidariedade). No entanto, acompanhamos essa composição e cremos que a concepção realizada
capta com lucidez a possibilidade da conjugação dessas dimensões. Apesar da liberdade e da
autonomia serem consideradas, não raramente, baluartes de uma educação emancipadora e
não heterônoma, não implicam inevitavelmente a rejeição de valores objetivos, os quais são
normativos e norteadores de condutas balizadas e dirigidas – como a responsabilidade e a
solidariedade. Portanto, sustentamos que uma
cidadania ativa, responsável, livre, autônoma e
solidária, não pode surgir dissociada da reflexão e desenvolvimento de referências e critérios
pessoais normativos de conduta. Aliás, esses
são vetores presentes na matriz conceitual ainda vigente do texto fundador de 1986, cujo teor
lançou as bases para o surgimento da educação
para a cidadania no ensino básico público em
2001, que se mantém até aos dias de hoje como
preocupação premente na escola portuguesa.
Terminamos esta reflexão a respeito dos
interstícios da cidadania com uma implicação
192
geral que julgamos relevante, e, por último,
com o pensamento atual do pedagogo Paulo
Freire. A implicação deriva do fato de que, ao
assumir-se com frontalidade, a inevitabilidade
e urgência da dimensão da virtude cívica na
educação, as questões relacionadas com o acesso
à profissão docente, à formação inicial, contínua
e de especialidade deverão ser devidamente
equacionadas. À luz desse enquadramento,
em Portugal, a Recomendação do Fórum de
Educação para a Cidadania – no âmbito da
qualificação dos recursos humanos, a formação
inicial e contínua de professores foi considerada
crucial para o empreendimento educativo, em
todas as situações vividas nos estabelecimentos
de ensino (FCG, 2008), nomeadamente em
relação à educação para a cidadania.
A resposta à questão de como capacitar,
habilitar e motivar os educadores para a formação
positiva do caráter das gerações mais novas em
contexto escolar tem de ser consubstanciada
com seriedade e retirando igualmente as devidas
consequências. Como Narvaez e Lapsley (2008)
corretamente sustentam, não se trata de discutir
se os professores devem ou não ensinar valores,
mas como é que os docentes são equipados
(e nós também diríamos selecionados) para
exercerem, da melhor maneira possível, a sua
ação nesse processo complexo e exigente, repleto
de desafios interpessoais e questões moralmente
desafiadoras e dilemáticas.
Nesse sentido, Patrício (1995, 1997) tem
sublinhado essa necessidade de competência
antropológica, cuja essência radica na construção
do humano no homem. Ser um funcionário
do humano e não meramente um funcionário
público (ou como apontaria Baptista (2005),
um mero funcionário-especialista-ensinante)
requer, na formação de professores, dimensões
que abranjam conjuntamente, no âmbito dos
valores, a reflexão e a ordem praxeológica.
Para finalizar este artigo, trazemos as
palavras do autor da Pedagogia da autonomia,
o qual concebeu pertinentemente a educação
de forma holística e integral. Nessa perspectiva,
o autor salienta a singular natureza ontológica
Eduardo Nuno FONSECA. Nos interstícios da cidadania: a inevitabilidade e urgência da dimensão da virtude cívica...
e antropológica do ser humano e destaca que
a cidadania deriva do processo educativo, o
qual é substantivamente formador. A educação
progressista e emancipatória não despreza a
dimensão da virtude cívica, nem a liberdade
e autonomia individual se confundem com a
licenciosidade e com a pedagogia orientada
exclusivamente pela ciência e pela técnica.
Mulheres e homens, seres histórico-sociais, nos tornamos capazes de
comparar, de valorar, de intervir, de
escolher, de decidir, de romper, por
tudo isso, nos fizemos seres éticos. Só
somos porque estamos sendo. Estar
sendo é a condição, entre nós, para ser.
Não é possível pensar os seres humanos
longe, sequer, da ética, quanto mais
fora dela. Estar longe ou pior, fora da
ética, entre nós, mulheres e homens,
é uma transgressão. É por isso que
transformar a experiência educativa em
puro treinamento técnico é amesquinhar
o que há de fundamentalmente humano
no exercício educativo: o seu carácter
formador. Se se respeita a natureza do
ser humano, o ensino dos conteúdos não
pode dar-se alheio à formação moral do
educando. Educar é substantivamente
formar (FREIRE, 1996, p. 18-19).
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Recebido em:18.12.12
Aprovado em:26.03.13
Eduardo Nuno Fonseca é doutorando em Educação pelo Instituto de Educação da Universidade de Lisboa (Portugal).
196
Eduardo Nuno FONSECA. Nos interstícios da cidadania: a inevitabilidade e urgência da dimensão da virtude cívica...
Expresiones de lo sensible: lecturas en clave pedagógica
Luz Elena GalloI
Resumen
Este artículo surge de un estudio hermenéutico sobre la educación
del cuerpo cuyo objeto es analizar las condiciones de sensibilidad
en clave pedagógica como ámbito de estudio de la Educación
Corporal. En esta investigación se piensa lo sensible en relación
con la educación a partir de una ruta filosófica, pedagógica y
experiencial, por ello, el estudio de lo sensible se enmarca en el
pensamiento filosófico de Federico Nietzsche y Gilles Deleuze, y la
educación en la reflexión pedagógica de Jorge Larrosa y Fernando
Bárcena. Con el análisis teórico documental que se realiza no se
trata de reproducir conceptos ni ideas, sino de analizar aquellas
situaciones en que la sensibilidad despliega otras maneras de
pensar la educación porque la preocupación por las condiciones
de sensibilidad pasa también por la necesidad de ver la estrecha
relación que guarda el cuerpo y la Educación. Así, en este texto
se exponen algunas prácticas corporales en clave pedagógica
para hacer ver las potencias que se ejercen sobre el cuerpo. De
conformidad con la dimensión simbólica del cuerpo, las prácticas
corporales son, ante todo, simbologías corporales, son modos de
decir del cuerpo que nos orientan para pensar una educación de lo
sensible. Esta ruta experiencial del danzar, jugar y caminar permite
abordar el análisis de la educación y del cuerpo desde experiencias
que, quizás, están desposeídas de significado educativo, este modo
de preocuparnos por lo pedagógico es una posibilidad para pensar
una educación de lo sensible desde el cuerpo.
Palabras clave
Educación de lo sensible — Educación corporal — Aprendizaje a
través de la experiencia — Prácticas corporales estéticas.
I- Universidad de Antioquia, Medellín,
Colombia.
Contato: [email protected]
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 197-214, jan./mar. 2014.
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Expressions of the sensible: readings in a pedagogical key
Luz Elena GalloI
Abstract
This article results from a hermeneutic study about the education
of the body with the object of analyzing the conditions of sensibility
under a pedagogical perspective seen as a part of the study of
Physical Education. In such investigation we think about the
sensible in respect to education from a philosophical, pedagogical,
and experiential approach; the study of the sensible is thereby
grounded in the philosophical thinking of Friedrich Nietzsche
and Gilles Deleuze, and the pedagogical reflection on education is
based on the ideas of Jorge Larrosa and Fernando Bárcena. The
theoretical documental analysis carried out here is not aimed at
reproducing concepts or ideas, but at analyzing those situations
in which sensibility gives rise to other forms of thinking about
education, since the concern with the conditions of sensibility also
includes the need to see the close relationship that the body has
with Education. Thus, some physical practices are explained in this
text under a pedagogical perspective in order to show the influences
exerted upon the body. Following the symbolic dimension of the
body, physical practices are, above all, physical symbologies; they
are ways of speaking about the body that guide us in thinking about
an education of the sensible. This experiential approach to dancing,
playing and walking allows us to deal with the analysis of education
and of the body on the basis of experiences which are, perhaps,
divested of their educative meaning; this manner of looking into
the pedagogical is a possibility to think about an education of the
sensible based on the body.
Keywords
Education of the sensible — Physical education — Learning through
experience — Aesthetic physical practices.
I- Universidad de Antioquia, Medellín,
Colombia.
Contact: [email protected]
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Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 197-214, jan./mar. 2014.
Una mirada de lo sensible en
relación con la educación
No aprendemos nada con quien nos dice; “haz como
yo”. Nuestros únicos maestros son aquellos que nos
dicen “hazlo conmigo”, y que en vez de
proponernos gestos para reproducir, saben emitir
signos desplegables en lo heterogéneo.
Gilles Deleuze
En primer lugar, lo sensible, como
concepto estético, tiene que ver con aquello que
(nos) pasa por el cuerpo, ese poder de afectar y
ser afectado. Ocuparnos de las cosas que (nos)
pasan es darles importancia a las circunstancias
de las cosas, ¿por qué?, ¿en qué casos?, ¿dónde?,
¿cuándo?, ¿cómo? ¿En qué casos la práctica
corporal es una expresión de lo sensible? Tal vez,
cuando pensamos que aprender también tiene que
ver con lo que puede un cuerpo. Si el cuerpo está
compuesto de zonas de intensidad, de fuerzas, de
relaciones que le dan vida, es capaz de actualizar
sus potencias. Cuando Spinoza nos dice que no
sabemos lo que puede un cuerpo, nos provoca a
pensar el cuerpo en la educación porque quizás,
no nos han enseñado a hacer experiencia con
lo que puede el cuerpo y pensar en términos de
potencia implica pensar corporalmente.
Pensar el cuerpo en la educación implica
redefinirlo en virtud de los poderes y fuerzas
que lo atraviesan. Así lo que constituye el ser
de lo sensible es la diferencia de la intensidad
y la diferencia es lo realmente implicante,
envolvente y lo que “conmueve el alma, lo que
la deja perpleja, es decir, la fuerza a plantearse
un problema” (DELEUZE, 2009, p. 216). La
intensidad estará determinada por lo desigual, la
disparidad, lo múltiple, lo diverso. Si lo sensible
tiene que ver con las intensidades ¿cómo hacer
que en una práctica corporal importen las
sensibilidades diferenciales?
Ahora bien, estamos poniendo aquí
lo sensible al lado de la educación. ¿En qué
casos podemos decir que hay un saber en la
educación de lo sensible? Para dar cuenta de
ello necesitamos acompañarnos de una idea de
educación, aquélla que nos pone en el lugar
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 197-214, jan./mar. 2014.
del acontecimiento. Un acontecimiento en el
contexto educativo es una irrupción, es cuando
algo nos da qué pensar, es lo que rompe con la
continuidad del tiempo; podemos decir que un
acontecimiento hace experiencia en nosotros
cuando hace algo en nosotros y no (nos) deja
intactos, así la educación es experiencia del
aprendizaje de lo nuevo (BÁRCENA, 2002;
FARINA, 2005; BÁRCENA; LARROSA; MÈLICH,
2006; LARROSA, 2006; GALLO, 2011; 2012).
El saber de lo sensible nos pone en un
plano distinto de las teorías cuyo saber está
fundado en leyes, en la medición, la prueba,
la abstracción de uno mismo, la objetividad,
la distinción, la claridad, la norma y al estar
guiado por el imperativo de la razón estrechan la
intuición, la imaginación y el cuerpo. Podemos
decir que una educación de lo sensible se pone
en el lugar de lo heterogéneo, de la pluralidad,
acoge la incertidumbre, la diversidad y es una
forma de producción — poiesis, acto de creación
—, siendo estas un modo de conocer. Hoy sabemos
que hay una nueva modalidad de la experiencia
educativa que intenta poner el acento en el
cuerpo y, en sus variaciones sensibles, rescata
la imaginación, la contemplación, la atención,
el sentimiento, la percepción, el asombro; así
como los principios de introspección, delicadeza,
inexactitud, fineza y variabilidad.
Sabemos que la Educación separa lo
sensible y el pensamiento, que le otorga mayor
relevancia a lo intelectivo que a lo sensible,
privilegia más los aspectos intelectuales y
morales en detrimento de la corporalidad, hay
una discordia entre sensibilidad y pensamiento.
¿La Educación se preocupa por lo que puede el
cuerpo?, por ejemplo ¿lo que expresa el cuerpo
como potencia y ver lo que no está visible,
escuchar lo que no es audible, tocar lo que está
intacto y por el gusto de las palabras?
Aunque vemos, escuchamos, tocamos
y nos gustan demasiadas cosas, tal vez,
necesitamos aprender a ver lo que vemos para
mirar cuidadosamente, ¿será mirar acoger lo
que se ve tal y como es sin modificaciones? O
¿estamos ante la necesidad de una ética de la
199
mirada? (BÁRCENA, 2004). El que se dispone
a aprender se torna un aprendiz del mirar, es
un espectador entrometido, anhela la luz, es
un lector erotizado por saber, es aquél a quien
le interesan las cosas. Tal vez, necesitamos
aprender a escuchar lo que oímos para escuchar
atenta y delicadamente.
de proceder que nota determinadas texturas,
pasar por la afección, el acercamiento, la
aproximación, la receptividad. “La experiencia
del tacto hacia el otro – como toda experiencia
táctil – es siempre, experiencia de uno mismo”
(BÁRCENA; MÈLICH, 2000, p. 181).
Gustar por cierto,
La voz, esa cara sensible de la lengua, esa
que hace que la lengua no sea solamente
inteligible, que no esté toda ella del lado
del significado, que no sea solamente
un instrumento eficaz y transparente de
comunicación, que no sea sólo una voz
mecánica, sin nadie dentro, que dice cosas
(…) la voz sería entonces algo así como
el sabor y la resonancia de la lengua.
(LARROSA, 2008, p. 2)
Un amigo me decía hace tiempo que un aula
universitaria es un lugar donde algunas
palabras, o algunas ideas, pasan de los
papeles arrugados del profesor a los papeles
nuevecitos de los alumnos, sin haber pasado
ni por el corazón, ni por la cabeza, ni por
el cuerpo, ni por el alma, ni del profesor
ni de los alumnos. Yo no diría que eso es
vomitar. Pero sí que me parece que ahí no se
puede aprender de oído porque nadie habla
y nadie escucha. (p. 3)
[...] no supone apenas una relación estricta
de mero afecto o musicalidad con las
palabras; tiene mucho más que ver con la
afección, la conmoción, la perplejidad, el
asombro. (SKLIAR, 2011, p. 9)
Todo aprender tiene que ver con un
encuentro, se aprende entre dos, se aprende al
escuchar cuidadosamente, se aprende al mirar
cuidadosamente, sin embargo, el verdadero
aprendizaje no brota de lo que ya se sabe, sino
de lo que está por saber, probablemente se
trata de un asunto de atención. Si el maestro
no propone modelos porque no le interesa
moldear al otro, su posibilidad es emitir signos,
signos que den qué pensar y sentir. Si estamos
ante una idea de aprendizaje como relación,
aprender también tiene que ver con el tacto, con
hacer un con-tacto. El tacto es un término que
se relaciona con aquello que está intacto. ¿Qué
puede ser enseñar con tacto educativo? Tal vez,
tocar en un sentido sensible y estético, un modo
200
Cuando enseñamos con gusto se
resaltan las palabras que nos gustan y hacemos
resonancia con las palabras porque nos tocan
y nos conectan con la vida y nos producen
vitalidad. Sugerimos para una educación de
lo sensible acompañarnos de lo que hay en las
palabras, en vez, de lo que es la palabra.
Si preguntamos ¿qué hay en la palabra
cuerpo? el concepto se agranda, se refuerza o
se desarticula siguiendo las líneas o estratos de
variaciones que él coordina, ramifica y ordena, el
concepto ordena o conecta con otros rasgos que
lo componen. Lo que hay en la palabra es lo que
está entre, lo que hay en medio de ella, entre ella
o en el intersticio, así la palabra cuerpo adquiere
movimiento, velocidad, variación y dirección.
Ahora bien, si preguntamos ¿qué es la palabra
cuerpo? El concepto se cristaliza, se determina
su identidad, su esencia y se inmoviliza, y
generalmente alude a conceptos vacíos.
Amigo mío, a propósito de las palabras.
No sé de palabras que puedan perdernos:
¿qué es una palabra para poder destruir un
sentimiento? No le adjudico una fuerza así.
Para mí todas las palabras son minúsculas.
Y la inmensidad de mis palabras no es sino
una tenue sombra de la inmensidad de mis
sentimientos. (TSVIETÁIEVA, 2008, p. 219)
Algunas expresiones de lo sensible en
clave pedagógica pasan por aprender a mirar,
Luz Elena GALLO. Expresiones de lo sensible: lecturas en clave pedagógica
escuchar, tocar, gustar, pensar, sentir, imaginar,
crear, desear. Son esas expresiones variaciones
de lo sensible que, al tratar de entenderlas
desde el cuerpo, nos ponen en contacto con una
variedad de posibilidades.
El aprender, como nos dice Deleuze en
Diferencia y Repetición, no se realiza en la
reproducción de lo mismo, sino como encuentro
con el otro, con lo otro. No se aprende de
una práctica corporal imitando, haciendo lo
mismo, sino arriesgándonos hacia nuevos
gestos, expresiones, orientaciones, posiciones.
No se aprende tras imitar una acción motriz
que ya se hizo, y cuya representación hemos
grabado con el fin de hacer una imitación
exacta o una copia del movimiento. Tal vez,
se aprende acompañando el gesto de lo que se
viene haciendo o lo que pueda hacer el cuerpo
en el mismo instante que hace un movimiento.
Aprender desde una práctica corporal requiere
decisión, prestar atención a lo relevante,
propiciar la re-creación, atender a una especie
de poética de la creatividad, según la cual los
planos no son dados, antes bien, se crean otro
planos de sentido; esto sólo cobra sentido con
cierta idea de la Educación que abandona las
pretensiones de control, de la técnica, de la
modelación y se guía por el interés de la relación
del sujeto con el mundo, con cierta invitación
al encargo de sí, a no conservarnos idénticos
porque si nos pensamos como una identidad fija
e inmutable, no podríamos decir que gracias a
la educación nos agrietamos, nos fracturamos,
perdemos la rigidez del yo y nos hacemos de
otras maneras porque quien aprende tiene una
historia, una biografía en la que no se queda
fijado, se puede invitar a que el otro aprenda
y es aquí donde el tacto educativo tiene una
influencia sutil en el otro.
Aprender haciéndose sensible a los signos
del cuerpo pone en juego los conceptos, las
percepciones, los afectos las sensaciones. Los
conceptos como “nuevas maneras de pensar”,
los perceptos como “nuevas maneras de ver y
oír” y los afectos como “nuevas maneras de
experimentar” (DELEUZE, 1996, p. 260). Aquí
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 197-214, jan./mar. 2014.
nos encontramos con una forma de incitar un
acontecimiento sensible, un cuerpo es afectado
por lo que le pasa, cuando lo que le pasa, le
irrumpe, lo desestabiliza, le crea nudos, focos,
le afecta sus puntos sensibles. Lo que (nos) pasa
produce efectos sobre el modo como nos vemos
y entendemos, produce efectos sobre nosotros
mismos, así podemos crear nuevos modos de ser,
nuevas maneras de pensar, de ver, de escuchar y
nuevas maneras de experimentar. Por ejemplo,
mediante una práctica corporal se desacomoda,
se desestabiliza el cuerpo, se mueven las formas
de referencia y se varían las formas de la
experiencia que pasan por el cuerpo.
El valor de aprender reside en el
acontecer de una experiencia, en el hecho
de ser un acontecimiento, algo que no (nos)
confirma lo que ya sabíamos. Así, aprender no
es acumulación, y el aprendizaje de una práctica
corporal no se resuelve en la mera repetición ni
en confirmarnos en lo mismo. La experiencia no
se tiene, se hace, (nos) pasa en el cuerpo, en una
práctica corporal el aprendizaje pasa por una
experiencia que se sitúa en el propio cuerpo, en
ese poder expresivo y revelador de la acción.
Nos referimos al aprendizaje como
algo que nos ocurre como seres humanos y
que, en parte, puede cambiarnos. Aprender es
un acontecimiento, una experiencia singular.
Bárcena y Mèlich (2000, p. 162) nos dicen que
[…] no hay aprendizaje sin experiencia.
No hay genuino aprendizaje si eludimos
someternos al rigor del acontecer de una
experiencia que, en buena parte, escapa a
nuestro control. Cada situación educativa,
potencialmente pedagógica, contiene una
trama que, al descifrarla, nos permite hacer
estallar su significado educativo.
Ahora bien, hay un riesgo en el
aprendizaje, en una práctica corporal, puede
que nada nos ocurra, que nada cambie.
Con Deleuze, el cuerpo conserva sus
órganos pero estos son desorganizados por
las fuerzas que los atraviesan, interrumpiendo
201
así el proceso de disposición de los órganos
como organismo. “El cuerpo está más vivo
mientras más afectado está por las fuerzas que
lo desorganizan como organismo” (BEAULIEU,
2012, p. 48). ¿Por qué dejar que el cuerpo sea
desorganizado por estas fuerzas? Porque libera
el cuerpo de sus funciones orgánicas, lo pone
en situación de expresión, lo vuelve sensible
a esas fuerzas, lo hace experimentar en un
estado de extrañeza, lo desestabiliza. Por ello
Deleuze admira a los personajes de Beckett
obstinados en agotar las posibilidades ligadas
a las actitudes corporales; su admiración por
Kafka y la nomenclatura de las posturas de
su cabeza que propone en su obra: cabeza
inclinada o levantada, cabeza que rebasa los
límites. Deleuze en La imagen-tiempo reanuda
su estudio del cuerpo a través de los cineastas
del cuerpo donde expone que el cine tiene
el poder de mostrar el efecto de las fuerzas
vitales sobre el cuerpo. ¿Qué interesa? Poner en
imágenes las posibilidades del cuerpo, mostrar
las fuerzas que impulsan al cuerpo a rebasar
sus capacidades, la adopción de posturas, la
alteración de los gestos, la acción de un cuerpo
sobre otro, el acto creador, las composiciones
entre cuerpos con efectos sonoros y visuales.
En síntesis,
Deleuze renueva enérgicamente el vínculo
con Spinoza: aquello de lo que un cuerpo es
capaz, es de hacerse en un devenir perpetuo
e intensivo que pueda sorprenderlo a sí
mismo. (BEAULIEU, 2012, p. 56)
Todo aquello de lo que es capaz el cuerpo
como potencia no puede estar determinado,
la potencia ha de entenderse como esa fuerza
que nos empuja hacia algo, ese deseo que
está determinado por afecciones. Desde esta
perspectiva, el deseo se corresponde con una
capacidad de ser afectado de múltiples maneras
con vistas a acrecentar la potencia de obrar del
cuerpo. Nos dice Spinoza que el cuerpo puede
ser afectado de muchas maneras, por las que su
potencia de obrar aumenta o disminuye.
202
Ahora bien, pretendemos recuperar las
fuerzas que afectan al cuerpo a través de unas
prácticas corporales. Una práctica corporal
se constituye en una variación intensiva del
cuerpo respecto de sí mismo. Quien experimenta
es el cuerpo, es el cuerpo en que se vuelve
plenamente expresivo y sintiente. Una práctica
corporal es una forma de lo sensible relacionada
con la sensación porque es una modalidad de la
experiencia: a la vez devengo en la sensación y
algo ocurre por la sensación.
Formas de expresión de lo
sensible
Como formas de expresión de lo sensible
están las prácticas corporales que podemos
entender como esas acciones o fuerzas que
actúan sobre el cuerpo, por ejemplo cuando
bailamos, jugamos o caminamos se hacen
visibles fuerzas de presión, de dilatación, de
contracción, de estiramiento, de placidez, de
angustia, de placer, etc. ¿De qué cuerpo estamos
hablando? De un cuerpo intenso, intensivo
que tiene niveles y umbrales de variación, allí
donde el cuerpo se escapa, pero, escapándose,
descubre la materialidad que lo compone, en
pocas palabras cuando la música levanta su
sistema sonoro y su órgano polivalente, el oído,
se dirige a cualquier cosa menos a la realidad
material del cuerpo.
Es cierto que la música atraviesa profundamente nuestro cuerpo, y nos pone un oído en
el vientre, en los pulmones, etc… pero arrastra justamente nuestro cuerpo, y los cuerpos,
a otro elemento. (DELEUZE, 2009, p. 60)
Richard Sennett (2009) en El artesano
presenta dos argumentos: en primer lugar,
que todas las habilidades, incluso las más
abstractas, empiezan como prácticas corporales;
en segundo lugar, que la comprensión
técnica se desarrolla a través del poder de la
imaginación. El primer argumento se centra en
el conocimiento que se obtiene en la mano a
Luz Elena GALLO. Expresiones de lo sensible: lecturas en clave pedagógica
través del tacto y el movimiento. El argumento
acerca de la imaginación comienza con la
exploración del lenguaje que intenta dirigir y
orientar la habilidad corporal. Este lenguaje
alcanza su máxima funcionalidad cuando
muestra de modo imaginativo cómo hacer algo.
Podríamos decir que las prácticas
corporales se corresponden con un performance
corporal1, potencia de creación, flujo de
relaciones que nos exponen a procesos de (trans)
formación. El performance es característico
de prácticas corporales artísticas como el
teatro, la danza y la música. Antonin Artaud,
en la primera mitad del siglo XX, realzó las
propiedades performativas del teatro y exigía
que fuera un performance de rituales que
tenían como fin el ataque emocional y sensual
de los espectadores y actores. En el campo
musical, John Cage redujo la importancia de
los directores y compositores a un mínimo, de
manera que deja
[...] la composición meramente a quienes la
ponían en escena, y dejando a los espectadores
la tarea de entender la (falta de) unidad entre
las piezas. (MACKELDEY, 2010, p. 101)
Si aceptamos el reto de superar el dominio
de lo técnico en una práctica corporal, podemos
decir que son expresiones de lo sensible, más
aún, significa estrechar los lazos entre un saber
educativo y un saber poético. Mediante una
práctica corporal podemos crear novedades en
educación, la dimensión poética es un mundo
simbólico que nos puede hacer estallar nuevos
significados y abrir nuevas maneras de decirle
algo a la educación. Sabemos que la educación
contemporánea siente un enorme temor a todo
lenguaje no cognitivo, los saberes que emergen
desde el cuerpo parecieran ir en contra de lo
intelectivo y, por ello, son catalogados como
menos importantes. La pedagogía ha dejado
1- Performance se refiere a cualquier clase de movimiento corporal. El
performance aparece como el acto en el que los performers – actores,
bailadores, músicos – realizan, actualizan, representan, presentan, exhiben,
ejecutan (Gumbrecht, 2006).
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 197-214, jan./mar. 2014.
de lado los lenguajes poéticos: el cuerpo, la
literatura, la poesía y, paradójicamente, las
formas de expresión artístico-corporales son las
que muestran que las cosas pueden ser de otras
maneras, le apuestan a la diferencia, a las utopías,
rompen las formas periódicas, es posible decirle
otra vez a la Educación que las expresiones de lo
sensible necesitan ocupar un lugar.
Veamos unos ejemplos, hay prácticas
corporales en la que se repite un gesto, otras
que tienen variaciones de velocidad, también
hay gestos bruscos que carecen de gracia
porque cada uno de ellos se bastan a sí mismos,
hay otros que son suaves y tienen gracia por su
fluidez, facilidad. Hay prácticas somáticas que
reúnen métodos orientados hacia el aprendizaje
de la conciencia del cuerpo desde la experiencia
personal, hay movimientos cuya danza revela,
repite, repiensa y reinventa formas, incluso se
dice que cuando una persona desarrolla una
habilidad, lo que repite cambia de contenido.
Nos dice Sennett (2009, p. 54) que:
[…] el desarrollo de la habilidad depende
de cómo se organice la repetición. Por
eso en la música, como en los deportes, la
duración de una sesión de práctica debe
juzgarse con cuidado: la cantidad de veces
que se repite una pieza depende del tiempo
durante el cual se pueda mantener la
atención en una fase dada del aprendizaje.
A medida que la habilidad mejora, crece
la capacidad para aumentar la cantidad
de repeticiones. Es lo que en música se
conoce como regla de Isaac Stern: este
gran violinista declaró que cuanto mejor es
la técnica, más tiempo puede uno ensayar
sin aburrirse. Hay momentos de hallazgos
repentinos que desbloquean una práctica
que estaba atascada, pero esos momentos
están integrados en la rutina.
Paul Valéry, tan admirador de la
Argentinita2, que de alguna manera le
2 - Conferencia realizada por Paul Valéry en la Universidad des Annales el
5 de marzo de 1936 con el título de Filosofía de la danza.
203
dedicaría su “Filosofía de la danza3”, nos
muestra que el cuerpo en movimiento puede
generar una potencia de alteración porque
algo puede ocurrir.
Estar en movimiento significa estar
fuera de las cosas, fuera de los marcos
habituales donde las cosas se distribuyen
con mayor o menor estabilidad en el
espacio. (DIDI-HUBERMAN, 2008, p. 28)
¿En qué sentido decimos que una práctica
corporal puede generar experiencia educativa?
En que algo (nos) pasa, (nos) conmueve, algo (nos)
ocurre en términos de intensidad y resonancia,
y se constituye en un acontecimiento en la
medida que genera sentido porque le otorgamos
valor a las cosas que (nos) pasan o aquello
que sentimos cuando bailamos, danzamos,
caminamos, nadamos, jugamos. Desde la idea de
educación como experiencia podemos decir que
es un sentimiento experimentado, pensamiento
en conmoción. Una práctica corporal que deja
de lado la geometría del cuerpo en movimiento
es capaz de invertir o cambiar la dirección del
gesto, esquivar contactos, salirse de un esquema
motriz, o dicho de otro modo, es capaz de crear
una estética nueva, hacer del movimiento una
intensidad de la experiencia, una intensidad
incluso en la repetición.
Las actitudes, gestos y movimientos del
cuerpo humano son risibles en la exacta
medida en que ese cuerpo nos hace pensar en una simple mecánica. O peor, en
una mecánica sujeta a averías o a sobresaltos imprevistos. Lo cual suscita gestos
quebrados y no fluidos, dificultades ostensibles, irregularidades rítmicas, movimientos imprevisibles. Suscita la imagen
del cuerpo venciendo el alma, incluso la
de una persona dándonos la impresión de
cosa. (DIDI-HUBERMAN, 2008, p. 95-96)
3- Conferencia publicada en: VALÉRY, Paul. Teoría poética y estética.
Madrid: Visor, 1998, p.173-189.
204
Por medio de una práctica corporal
podemos saber de la experiencia y, por tanto,
del cuerpo. Si el ser humano se produce a sí
mismo, esto significa que a partir de las formas
de expresión del cuerpo se hacen visibles
formas de la experiencia de la persona que
lo transportan a otro marco de reflexión y
de sensibilidad. Digamos que se acogen las
variaciones de velocidad del cuerpo para abrir
la percepción de la experiencia corporal. Con
ello exponemos una idea pedagógica de la
formación destacando que esa persona se hace
en el cuerpo. Así, las prácticas corporales como
formas de expresión de lo sensible se convierten
en espacios de experimentación y aquel gesto
aprendido de la danza pone en relación la
percepción, el cuerpo y el saber.
El bailarín no tiene el oído en las orejas.
Sus músculos oyen el sentir del mundo
mediante melodías que hacen contraer
y distender sus articulaciones mediantes
gestos. Todo su cuerpo está atento a
desplegarse del melos para articularlo
en ritmos que hablan otro lenguaje. (DE
SANTIAGO, 2004, p. 517)
Nos dice Nietzsche (2009, p. 314) en La
otra canción del baile:
A mi pie furioso de bailar, lanzaste una
mirada, una balanceante mirada que reía,
preguntaba, derretía:
Sólo dos veces agitase tus castañuelas con
pequeñas manos – entonces se balanceó ya
mi pie con furia de bailar.
Mis talones se irguieron, los dedos de mis
pies escuchaban para comprenderte. Lleva,
en efecto, quien baila sus oídos ¡en los
dedos de los pies!
Cuando establecemos relación entre las
prácticas corporales y lo sensible, queremos
orientarnos hacia una configuración estética
de la existencia: ¿por qué baila Zaratustra? En
primer lugar, para protegerse del espíritu de la
Luz Elena GALLO. Expresiones de lo sensible: lecturas en clave pedagógica
pesadez, y, en segundo lugar, porque quiere
enseñar cómo se vuelve uno ligero; la danza
transforma y metamorfosea al bailarín, haciendo
que la pesadez se convierta en ligereza. Wagner,
por ejemplo, es un músico que no sabe danzar,
sólo sabe nadar; hay lugares donde se danza
poco porque las personas están poseídas del
espíritu de la pesadez.
Ahora la esencia de la naturaleza debe
expresarse simbólicamente; es necesario
un nuevo mundo de símbolos, de momento
todo el simbolismo corporal completo, no
sólo el simbolismo de la boca, del rostro,
de la palabra, sino el gesto íntegro del
baile que mueve rítmicamente todos los
miembros. (NIETZSCHE, 1998, p. 70)
Para explicarnos la danza, se coloca Paul
Valéry frente a la bailarina no como bailarín sino
como espectador que observa y recoge impresiones
e intuiciones, para, después, expresarlas por medio
del lenguaje y dárnoslas a conocer. Pero moldea
esta vez el lenguaje no en forma de poema, sino
que, acostumbrado al pensar filosófico, escribe
un ensayo. Y así disminuye la distancia entre sus
pies y su cabeza para hacer cumplir a la danza
las características del ensayo mismo ya que para
Valéry la danza es la vida misma.
Antes de que la Sra. Argentina les atrape,
les capture en la esfera de la vida lúcida
y apasionada que ve a formar su arte;
antes de que muestre y demuestre en lo
que puede convertirse un arte de origen
popular creación de la sensibilidad de una
raza ardiente, cuando se ampara de él la
inteligencia, lo penetra y lo convierte en
un medio soberano de expresión y de
la invención, tendrán que resignarse a
escuchar algunas propuestas que, ante
ustedes, va a aventurar sobre la Danza
un hombre que no danza. Esperarán el
momento de la maravilla, y se dirán que
no estoy menos impaciente que ustedes por
dejarme arrebatar. (VÁLERY, 1998, p. 173)
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 197-214, jan./mar. 2014.
Nos dice el autor que la danza no se limita
a ser un ejercicio, un entrenamiento, un arte
ornamental o un juego de la sociedad; es una
cosa seria, aquí el cuerpo experimenta, se traslada
a un espacio-tiempo que no es exactamente el
mismo que el de la vida práctica. En ocasiones,
algunos de los movimientos procuran un placer
que alcanza una especie de embriaguez.
Cuando leemos algunas prácticas
corporales en clave pedagógica queremos
hacer ver las potencias que se ejercen sobre el
cuerpo como una forma de experimentación.
Gracias a que el cuerpo en movimiento nos
permite hacer experiencia, los movimientos
corporales permiten hacer lecturas simbólicas
del cuerpo, así nos acercamos a las expresiones
de lo sensible a través de unos ejemplos: bailar,
jugar y caminar que, entre otros, se convierten
en la posibilidad para hacer resonancia con el
despliegue de potencias que tiene el cuerpo.
El arte de bailar
Aprendí a caminar, luego me permití correr.
Aprendí a volar, luego no he tenido necesidad
alguna que me impulse a cambiar de lugar. Ahora
soy ligera, ahora vuelo, ahora un dios danza en mí.
Así hablaba Zaratustra…
Nietzsche
Nietzsche se sirvió de la manifestación
artística de la danza, la música, el canto y la
poesía como recursos estéticos para expresar la
estética dionisíaca como expresiones de la vida
misma. Aunque la danza o el baile requieren
cierto dominio técnico, también se realizan de
manera libre, con diferentes formas de expresión
de la corporalidad; en ella los movimientos y los
gestos forman una expresión mucho mayor que
la suma de sus partes. Aunque para algunos esta
práctica corporal se ve limitada por las posturas
y movimientos del cuerpo, otros parecieran que
tienen su genio en los pies; sin embargo, lo que
nos importa destacar es el sentido formativo de
la danza, su valor transformativo.
La danza forma parte de la estética
dionisíaca y es el cuerpo el que se eleva con
205
la danza a un lugar privilegiado. La danza,
en ocasiones, estimula, libera las tensiones
de lo real, abre pasiones, recrea la imagen
de hombre por medio de la expresión de sus
gestos y movimientos; es un lenguaje en el
que se unen la melodía, el tono, el ritmo y la
armonía, transforma la pesadez en ligereza, se
fundamenta en la alegría, brota de ella,
[…] la bella apariencia de sus gestos, que
desvelan lo profundo. Y, en lo profundo,
el dios Dionisio se mueve como un dios
danzarín, un artista que manifiesta su
fuerza y poder creativo, que es el de
trasgredir, trascender y transformar. (DE
SANTIAGO, 2004, p. 510)
Cuando decimos que el cuerpo se eleva
a un lugar privilegiado, estamos diciendo que
el hombre que danza experimenta algo que
Plessner (1960) denomina principio excéntrico
o estar fuera de sí4�. La excentricidad hace que
el hombre experimente, por un lado, que tiene
cuerpo y, por otro, que es cuerpo. Estar fuera
de sí no significa dejar el mundo; el hombre
dionisíaco es ese hombre en devenir que es
capaz de transportarse y elevarse por encima
de sí mismo: “ahora soy ligero, ahora vuelo,
ahora me veo a mí mismo por debajo de mí”
(NIETZSCHE, 2009, p. 75).
En el estado dionisíaco primordial, todo ritmo
continúa hablando a nuestros músculos,
imprimiendo al cuerpo un movimiento que,
por su repetición, hace salir el alma de ella
misma. Es al ritmo al que debe obedecer el
verso de tocar el corazón del hombre. (DE
SANTIAGO, 2004, p. 514)
penetra en el cuerpo, provocando un estado de
exaltación; la danza le devuelve a la música su
dimensión corporal, la danza como lenguaje
poético otorga una simbología corporal; la
danza es una forma de experimentar los modos
de decir del cuerpo. Aquel que no danza no
siente los ritmos acompasados de su cuerpo.
Ahora bien, recordemos que, desde el punto
de vista de algunas tradiciones, el alma miraba
con desprecio al cuerpo, pero ahora “el cuerpo
es la gran razón, es una pluralidad dotada de un
único sentido, una guerra y una paz, un rebaño
y un pastor” (NIETZSCHE, 2009, p. 64); el
cuerpo es plural, pluralidad de expresiones que
vemos por medio de la danza, pues el bailarín
no permanece pesadamente en un sitio, gira,
se desplaza, cambia de direcciones y de ritmos,
“baila sobre los pies del azar” (NIETZSCHE,
2009, p. 240). También Nietzsche espera que
las palabras se muevan como en una danza,
que los conceptos bailen, que haya en ellos
movimiento, desplazamiento y que provoquen
nuevas figuras. Dionisio es el dios que danza
bajo las palabras, por lo que habrá entonces que
poner a danzar a las palabras y a las frases.
Hablar del pensamiento como danza
implica asumir lo provisional, lo inesperado,
lo inestable y el riesgo; la danza representa un
equilibrio mudable que se crea constantemente
en la misma práctica corporal en sus gestos,
sus figuras, sus ritmos, ¿podemos llegar al
pensamiento bailando? Recordemos a Nietzsche
en La Gaya Ciencia:
Para los griegos, la danza pone el alma
en movimiento y para redescubrir la vida
es necesario el cuerpo; es la danza la que se
[…] no somos de esos que sólo llegan a
tener ideas entre libros, por impulso de
libros; estamos acostumbrados a pensar
al aire libre, andando, saltando, subiendo,
bailando, y donde más nos gusta hacerlo
es en montañas solitarias o justo al lado
del mar, allí donde incluso los caminos se
hacen reflexivos. (2002a, p. 387)
4- Para Plessner (1960) esta posición excéntrica o estar “fuera de sí”, le
da al ser humano la posibilidad de verse desde fuera y reflexionar sobre sí
mismo. Que el ser humano sea excéntrico o sea capaz de estar “fuera de
sí” es un fundamento antropológico-pedagógico que implica progresividad,
dinamismo, apertura, moralidad.
La danza como práctica corporal, leída
en clave pedagógica, nos pone la mirada en
una escena móvil, con posibilidades cambiantes,
206
Luz Elena GALLO. Expresiones de lo sensible: lecturas en clave pedagógica
con multiplicidad de puntos de vista, de
perspectivas y de horizontes: ¿acaso el mundo
de las perspectivas no es consecuencia de un
pensamiento bailarín? Virtuoso el bailarín que
abre significados a perspectivas nuevas a partir
de su devenir azaroso, aquel que despliega su
pensamiento en-movimiento, aquel cuyo modo de
pensar es la movilidad, aquel que en su fugacidad
puede captar el nacimiento del pensamiento. En
términos pedagógicos, Zaratustra también nos
enseña con el lenguaje de la danza, nos pone ante
una forma de lenguaje corporal donde algo (nos)
pasa es en el cuerpo: él es fuente de movimiento,
ahora bien, con la danza no se trata de un
problema de lugar ni de dirección ni de técnica,
sino más bien del acontecimiento.
Cuando esa música ha actuado sobre mí ya
no respiro con facilidad; enseguida mi pie
se enfada con ella se rebela, tiene necesidad
de cadencia, una necesidad de danza y de
marcha, lo que reclamo de la música es ante
todo el éxtasis que procura la buena marcha,
el paso, el salto, la danza y yo me pregunto
desde entonces: ¿qué es lo que quiere
realmente de la música todo mi cuerpo? Creo
que su alivio. (NIETZSCHE, 2002a, p. 391)
El juego como dimensión estética
Aunque la danza y la risa se encuentran
en Nietzsche estrechamente relacionadas, no
hay risa ni danza sin la dimensión del juego.
El juego desestabiliza, quiebra la unidad en
multiplicidad, abre distintas perspectivas
y favorece una diversidad de miradas e
interpretaciones. El juego apela a la dimensión
creadora y lúdica de la existencia humana.
Una de las raíces fundamentales de la
idea de juego la encontramos en la referencia
que hace la estructura griega del agon. Aunque
el impulso agonal es competencia y rivalidad,
[…] el motivo del agon adquiere una mayor
relevancia cuando Nietzsche lo relaciona
con lo puramente ético o con un principio
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 197-214, jan./mar. 2014.
estético, ¡qué problema se abre entre
nosotros cuando investigamos la relación
entre el agonismo y la concepción de la
obra de arte!, pues toda fuerza creativa se
despliega y se manifiesta luchando. (DE
SANTIAGO, 2004, p. 554-555)
El juego es siempre una lucha por algo,
es contienda, incertidumbre, es una puesta a
prueba de destrezas y habilidades, es inclemente;
aunque desde Heráclito el juego no tiene un por
qué, no tiene finalidad alguna, particularmente
en el agon los juegos significan, exigen un
por qué “precisamente porque el juego se guía
también por el principio de razón suficiente que
hay en cada movimiento” (HOLZAPFEL, 2003,
p. 74). Incluso esto hace que autores como
Thierry Lenain, Eugen Fink, Frederick Johannes
Buytendijk, Johan Huizinga y Roger Caillois
desarrollen la idea de razón lúdica, en la que,
paradójicamente, el juego es algo que no se
deja guiar por una finalidad o por una meta,
y a la vez, es el escenario mismo del crear;
dicho de otro modo, la finalidad que tiene
el juego descansa únicamente en él mismo.
Por ejemplo, el niño convierte el juego en el
modelo esencial de la actividad creadora y en
el acontecer del juego representa su verdadera
esencia. Al margen del por qué, el niño crea sus
propios personajes, que constituyen su mundo;
pareciera que el niño tiene un poder ilimitado
de fantasía para crear.
Lo importante es el juego en su acontecer
mismo, lo significante es ese algo que está en
juego, esas fuerzas de lucha, contienda, el impulso
agonal, esa fuerza creativa que se despliega y se
manifiesta. Jugar, nos dice Skliar (2011, p. 217),
[…] siempre habrá que pronunciarla en
infinitivo. Búsqueda de lo que vendrá.
Sentido que ya se encontrará. Utilidad nula o
desierta o ignorada o no pretendida. Tiempo
en el cual los objetos no son los objetos, las
palabras no son las palabras, la voz no es la
voz y el tiempo no es el tiempo. Parecida a la
libertad de espíritu y de pensamiento.
207
En esta misma idea nos dice Brougère
(1998) que el juego es la expresión libre de
una subjetividad y es productor de múltiples
interacciones.
Nos importa el juego como práctica
corporal no solamente por su actitud
desinteresada, también porque jugar significa
inventar, transformar, transformarse, crear
y crearse. Dioniso es un Deus ludens, es el
dios que juega con sus máscaras, allí donde
el rostro deviene, donde el yo se disloca, se
metamorfosea. El juego es un estado de riesgo.
El juego es para el hombre un acontecer y, a la
vez, es una forma de expresión simbólica del
acontecer de la vida; quizás, lo que importa
del juego no es su carácter de distracción sino
que en el jugar se da una especie de seriedad.
Más allá de que el niño construya castillos de
arena y luego los destruya, lo que importa del
juego es su dimensión creadora, esa expresión
creativa de la vida.
Una vez más Zaratrustra, de la misma
manera que había increpado a los hombres
superiores porque no sabían danzar y
no sabían reír, vuelve a su pedagógica
cantinela: los hombres superiores también
saben jugar. Para poder superarse a sí
mismo y poder crear por encima de sí
mismo, hay que aprender a jugar, a saber
jugar. (DE SANTIAGO, 2004, p. 573)
Podemos revestir al juego de una
dimensión estética al establecer un paralelismo
entre el juego de niño y el artista, de la misma
manera que juega el niño, juega el artista
creador, tanto en el niño como en el artista hay
un deseo de crear. El niño se cansa de jugar,
tira el juguete, lo recoge y vuelve a jugar,
ese impulso del niño y el deseo son propios
del artista. Es un pensamiento creativo y por
ende sensitivo. Una forma de experimentar un
pensamiento-artista es generar nuevas maneras
estéticas y éticas de vivir, inventar posibilidades
de vida, modos de existencia. Recordemos que
el juego tiene dos cualidades: la inocencia y la
208
seriedad. Inocencia es apertura, olvido, nuevo
comienzo, suspende el porqué, afirma el azar;
detrás del juego y de su aparente arbitrariedad
e indiferencia existe, por lo tanto, la seriedad,
esta seriedad lúdica hace que el niño, por
momentos, se convierta en hombre o en padre,
crea un orden propio, el juego es un acontecer.
Por eso, la seriedad del juego consiste en que
los que participan se entregan a él, es el juego
el que se juega o se desarrolla.
Así el juego nos impulsa a crear. Y así
Zaratrustra, irá asociando al niño con
la capacidad de crear y con la inocencia
infantil. ¿Dónde hay inocencia? Allí donde
hay voluntad de engendrar algo.
El eterno niño. Creemos que los cuentos
y los juegos son cosas de la infancia:
¡qué miopes somos! ¡Como si nosotros
pudiésemos vivir en cualquier edad de la
vida sin cuentos ni juegos! Es cierto que
damos otros nombres a todo esto y que
lo consideramos de otro modo, pero es
precisamente la prueba de que es la misma
cosa, pues también el niño siente el juego
como su trabajo y el cuento como su
verdad. (NIETZSCHE, 2002b, p. 129)
Elogio del caminar
¿De dónde vienen las delicias tan
intensas que procuran la marcha y la carrera?
Caminar, en el sentido de dar pasos, de estar
en marcha, evoca una imagen que hace posible
pensar el caminar como una práctica de lo
sensible donde se exploran nuevas maneras de
ver y se abren horizontes.
Recurrir al bosque, a las rutas o a los
senderos, no nos exime de nuestra
responsabilidad, cada vez mayor, con los
desórdenes del mundo, pero nos permite
recobrar el aliento, aguzar los sentidos,
renovar la curiosidad. El caminar es a
menudo un rodeo para reencontrarse con
uno mismo. (LE BRETON, 2011, p. 15)
Luz Elena GALLO. Expresiones de lo sensible: lecturas en clave pedagógica
La práctica corporal del caminar está
relacionada con mirar, con abrir los ojos, con
estar atentos, con generar una nueva mirada, lo
cual no es sinónimo de adquirir una perspectiva
o una visión determinadas, sino que equivale a
desplazar nuestra mirada; “abrir los ojos es mirar
lo que es evidente cuando estamos atentos o
expuestos” (MASSCHELEIN, 2006, p. 299). En
perspectiva pedagógica, es algo así como dislocar
la propia mirada para ver de un modo diferente;
vemos lo visible: terrenos, curvas, lejanías, y no
nos quedamos sólo en ese transcurrir pasivo;
caminar puede permitirnos una experiencia para
abrirnos paso en el camino.
Masschelein (2006, p. 297) nos dice que
[…] caminar no es que nos ofrezca una
perspectiva mejor ni una comprensión
más cierta y completa, ni nos permite
superar los límites de nuestra perspectiva,
caminar nos permite una mirada más allá
de cualquier perspectiva, una visión o
una mirada que nos transforma, como es
experiencia, también nos conduce.
La mirada que tenemos cuando
caminamos por un sendero será siempre
diferente porque corresponde a otro punto
de vista, a otra perspectiva; ejemplo de ello
es que vemos distinto un sendero o una calle
caminando que si lo recorremos en automóvil
o en avión: no solo cambian las perspectivas
de arriba-abajo, sino que vemos de un modo
distinto; son diferentes modos de vincularnos
al mundo, con lo presente y con lo que está
presente. Nos indica Benjamín: aquel que vuela,
solo ve, pero el que camina conoce el poder que
conduce, es decir, experimenta cómo ese algo
se presenta a sí mismo, se vuelve evidente y
dirige nuestra alma, nos atraviesa. El camino no
puede tocar a quien lo sobrevuela, mejor dicho,
no puede atravesarlo ni determinar su ruta.
¿Quién no se ha sorprendido alguna vez
al salir del metro al aire libre y verse
caminando, arriba, a plena luz del sol? Y,
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 197-214, jan./mar. 2014.
sin embargo, el sol brillaba con la misma
claridad unos minutos antes, cuando él
bajó. Así de rápido ha olvidado qué tiempo
hacía en el mundo de arriba. Y éste, a su
vez, lo olvidará con igual rapidez. Pues,
¿quién puede decir de su existencia algo
más que esto: que ha pasado por la vida de
dos o tres personas con la misma dulzura
y proximidad con que va cambiando el
tiempo? (BENJAMÍN, 1987, p. 92)
Caminar es exponerse, estar fuera
de lugar. Esta práctica corporal nos puede
volver atentos, dislocar la mirada, ofrecer una
mirada nueva frente a aquello que estábamos
habituados a ver porque no nos conduce a
un lugar determinado de antemano sino que
nos lleva sin destino u orientación alguna,
desplazando entonces la mirada que teníamos;
es, entonces, una actitud para con el presente.
Caminar es también aumentar la distancia
crítica, lo que no significa lograr una metapunto de vista, sino más bien una distancia
que permite que la propia alma se disuelva
desde dentro. (MASSCHELEIN, 2006, p. 300)
El espacio, originariamente, se presenta
como campo o medio donde el ser humano
ejerce su actividad. El espacio se ofrece a la
persona como un quehacer. Nuestra relación
con él no es un mero estar o encontrarse, sino
un habitar, lo cual significa estar en un espacio
teniéndolo, apropiándose de las posibilidades
que descubrimos en él para configurarnos. En
síntesis, estoy en el mundo; mi instalación en
él va cambiando, mi estar en el mundo tiene
estructura biográfica, y es mi cuerpo el que hace
posible que experimentemos. Así un viaje, por
ejemplo, deja impresas en mí marcas, huellas,
señales, impresiones, imágenes. Todo aquello
que me ha afectado queda inscrito en mi cuerpo.
Podríamos decir que caminar es una
expresión de la corporalidad que nos ayuda a
pensar de otra manera la perspectiva pedagógica
de la motricidad, en tanto no se inscribe en
209
ningún horizonte, no ofrece tradiciones ni
representaciones, no busca de antemano algo
ni conduce hacia alguna perspectiva; brinda,
simplemente, trayectos, insinúa líneas que
atrapan, movilizan y hacen desviar la mirada;
la línea no pretende mostrar ninguna escena ni
representación, ayuda a pensar el movimiento
corporal como apertura y posibilidad de una
transformación. Para Masschelein (2006, p.308)
“caminar a lo largo de esa línea es caminar sin
programa, sin objetivo, pero sí con una carga,
con un encargo: ¿qué hay ahí para ver, para oír,
para pensar?”
Esta perspectiva pedagógica, esta
práctica corporal opta por la posición de
vulnerabilidad, incomodidad, inseguridad y
riesgo. Como el sujeto de esa caminata es el
sujeto de la experiencia,
[…] importa poco no saber orientarse en
una ciudad. Perderse, en cambio, en una
ciudad como quien se pierde en el bosque,
requiere aprendizaje. Los rótulos de las
calles deben entonces hablar al que a
errando como el crujir de las ramas secas,
y las callejuelas de los barrios céntricos
reflejarle las horas del día tan claramente
como las hondonadas del monte. Este arte
lo aprendí tarde. (BENJAMÍN, 1990, p. 15)
Le Breton (2011), nos recuerda que
algunos autores confiesan sus deudas con ciertas
caminatas. Por ejemplo, Rousseau dice que el
andar tiene algo que anima y aviva sus ideas,
es preciso que su cuerpo esté en movimiento
para que se mueva su espíritu. Kierkegaard en
1847 le escribe a Jette y le dice que ha tenido
sus pensamientos más fecundos mientras
caminaba, y que jamás se he encontrado con
un pensamiento tan pesado que el caminar no
pudiera ahuyentar.
Podemos decir que al caminar aprendemos
del sentido de la experiencia de un cuerpo que se
produce como experiencia de sentido a través de
lo sensible, de un saber que se ejercita en el cuerpo,
del sentido perceptivo del cuerpo. De hecho,
210
la percepción tiene que ver con el aprendizaje
y está en relación con el conocimiento y en el
nivel de la sensibilidad; este modo de ser sensible
que acontece en una práctica corporal nos pone
en un lugar, en la valoración de lo sensible. La
percepción, atendiendo a lo que hemos dicho
respecto a las prácticas corporales, nos puede
provocar una experiencia perceptiva; de hecho,
sentidos y percepción, constituyen experiencia de
potencias e imponencias del cuerpo que acercan el
sentir y el pensar. No olvidemos que la percepción
es también equívoca, falible, frágil y cambiante.
En el sentido más abierto de la expresión
caminar nos vemos en la necesidad de pensar
en el viaje a la formación. Algo así como
un pasaje que se expresa en una búsqueda,
en un trayecto, en un lugar, en un paisaje
desconocido. Y es que aprender es como viajar,
es una salida cuyo resultado es imprevisible.
La salida de nuestro mundo personal hacia un
nuevo espacio nos despierta a nuevas vivencias
de tiempo y espacio, bien decía Rilke que el
espacio más propio del hombre no es el civil ni
el urbano, sino el del peregrino, un espacio por
el que la persona transita atravesando sucesivas
heterogeneidades. Recordemos el mito de
Ulises, el prototipo del viajero que vuelve a casa
porque tiene una importancia radical. Ya no se
ve en primer plano el regreso a Itaca, o por lo
menos se matiza. Como dice Cavafis (1999),
cuando se sale para Itaca, se ha de rogar que
el camino sea largo, lleno de aventuras y de
conocimiento, y si al llegar encuentras Itaca
vacía, no pienses que todo ha sido un engaño,
Itaca te ha dado experiencia: rico en saber y
vida, como has vuelto.
Clarice Lispector (2005, p. 497) también
nos recrea esta idea en el cuento La Fuga:
Empezó a quedar oscuro y ella tuvo miedo,
la lluvia caía sin tregua y las aceras brillaban
húmedas a la luz de las lámparas (…) estaba
cansada. Pensaba siempre: ¿pero qué va a
suceder ahora si permaneciera caminando?
No era la solución ¿volver a casa? No.
Temía que alguna fuerza la empujara hacia
Luz Elena GALLO. Expresiones de lo sensible: lecturas en clave pedagógica
el punto de partida. Atontada como estaba,
cerró los ojos e imaginó un gran torbellino
(...) esperó un momento en el que nadie
pasaba para decir con todas las fuerzas:
tú no regresarás. Se apaciguó. Ahora que
había decidido irse todo renacía (...) ahora
la lluvia ha parado. Sólo hace frío pero
está muy agradable. No volveré a casa.
Ah, sí, eso es infinitamente consolador ¿él
quedará sorprendido? Sí, doce años pesan
como kilos de plomo. Los días se derriten,
se funden y forman un solo bloque, una
gran ancla. Y la persona está perdida. Su
mirada adquiere una forma de pozo hondo
(...) sus gestos se tornan blancos y ella tan
sólo tiene un miedo en la vida: que algo
venga a transformarla.
Encontramos en Nietzsche (2002a, p.60)
en el aforismo 52 de la Gaya ciencia algo que
dice del caminar: “No escribo sólo con la mano:
el pie siempre quiere escribir también. Firme,
libre y valiente corre ya por el campo, ya por
el papel”. En el texto Así habló Zaratustra nos
dice Nietzsche (2009, p. 223):
Yo soy un caminante y un escalador de
montañas, decía a su corazón, no me
gustan las llanuras, y parece que no puedo
estarme sentado tranquilo largo tiempo. Y
sea cual sea mi destino, sean cuales sean las
vivencias que aún haya yo de experimentar,
siempre habrá en ello un caminar y un
escalar montañas: en última instancia uno
no tiene vivencias más que de sí mismo.
También podemos ver en las Aventuras de
Alicia en el país de las maravillas de Lewis Carroll
(2010), una suerte de desplazamientos que Deleuze
plantea como una lógica del sentido, donde los
acontecimientos toman un papel protagónico.
Alicia crece (se hace mayor de lo que era) y
disminuye de tamaño, de allí el trastocamiento
del crecer y el empequeñecer. Sabemos que en
la aventura Alicia experimenta sentimientos de
tristeza, cólera, curiosidad, sorpresa, soledad,
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 197-214, jan./mar. 2014.
indignación, asombro, perplejidad y son
precisamente estas singularidades a lo que se
refiere el acontecimiento.
¿Quién eres tú? – dijo la Oruga.
Alicia contestó con cierto recelo: Yo… yo
casi no lo sé, señor, en este momento…por lo
menos sé quién era cuando me levanté esta
mañana, pero me parece que debo haber
cambiado varias veces desde entonces.
¿Qué quieres decir con eso? – Digo
severamente la Oruga – ¡Explícate!
Temo señor que no puedo explicarme
porque yo no soy la misma, como usted ve.
No veo – digo la Oruga.
Temo que no puedo explicarlo más
claramente – replicó muy cortésmente
Alicia – porque, para empezar, yo misma
no lo entiendo y ser de tantos tamaños
en un solo día es muy desconcertante.
(CARROLL, 2010, p. 55)
En Alicia vemos un conocimiento
sensitivo y, por lo tanto, absolutamente
corporal (ARCOS-PALMA, 2011) el cual genera
una nueva manera de conocerse y de habitar
poéticamente el mundo. Las sensaciones de
Alicia son esas fuerzas que actúan en su
cuerpo, así un acontecimiento se efectúa en el
cuerpo, hace experiencia en nosotros al punto
que cuando las cosas (nos) pasan ya no nos
referimos del mismo modo a nosotros mismos,
con Alicia aprendemos la posibilidad de anudar
lo sensible a lo pensable. Alicia, aumenta y
disminuye de tamaño, y esto pareciera no tener
sentido, pero es precisamente ahí donde surge
el sentido, pues el pensamiento está instalado
en la profundidad de lo sensible, en el cuerpo.
Consideración final: las prácticas
corporales como despliegue de
potencias
Las prácticas corporales permiten
hacer una experiencia de potenciación. En el
movimiento corporal hay un lenguaje que
211
simboliza, expresa y significa; las prácticas
corporales nos enseñan a pensar con el cuerpo.
Así, danzar, jugar y caminar nos ofrecen una
manera de pensar el cuerpo de la experiencia.
Nos recuerda Serres (2011, p. 137) que
Marcel Proust se entregaba al éxtasis de
la memoria de las calles de topografía
desigual como el montañista aprende con el
ejercicio, en una larga preparación, la fiesta
del ascenso. De distinto modo, Proust o el
montañista son hombres de coraje porque
han alcanzado la flexibilidad; los cobardes
huyen de la experiencia y de la expresión.
Las prácticas corporales ponen el cuerpo
en un juego de potencia, hacen real la experiencia,
exploran las potencias del cuerpo. Cuando
Spinoza dice en un escolio que lo asombroso es
el cuerpo, que aún no sabemos lo que puede un
cuerpo, nos indica Deleuze que quiere eliminar
la pseudo-superioridad del alma sobre el cuerpo,
el alma y el cuerpo expresan una misma y única
cosa porque un atributo del cuerpo es también
un sentido del alma (DELEUZE, 2008). Lo que
puede un cuerpo en tanto poder de afectar y ser
afectado nos estimula a pensar en términos del
devenir, como aquello que nunca está fijo, sino
siempre en movimiento como puro acontecer
que está abierto a algo nuevo.
En todo acontecimiento algo nos pasa
e incluso constituye una experiencia cuando
llegamos a darnos cuenta o sentimos que algo
nos (trans)forma. “Un acontecimiento hace
experiencia en nosotros cuando algo nos pasa y
212
no nos deja igual que antes” (BÁRCENA,2004,
p.86). Sin embargo, el acontecimiento tiene un
carácter de imprevisible, no se puede prever,
no se puede planear y no es prometeico, más
bien, aprendemos después de que (nos) pasan
las cosas, cuando algo nos impacta, conmueve,
cuando somos afectados, cuando algo nos
concierne, cuando algo nos da a pensar, cuando
tenemos una determinada experiencia.
Las expresiones de lo sensible leídas en
clave pedagógica nos ponen ante la necesidad
de estrechar los lazos entre el saber educativo
y el saber poético. Nos ha dicho Octavio Paz
(1994, p. 81) que “(…) lo poético es la otra voz.
Su voz es otra porque es la voz de las pasiones
y las visiones”. Expresiones de lo sensible
como el arte, la música, la literatura, el cine,
la poesía, la danza, el caminar y el juego, en
tanto expresan grados de intensidad, resultan
centrales para seguir pensando esas condiciones
de sensibilidad como ámbito de estudio de la
educación corporal. A su vez, es una forma de
pensar la educación desde el cuerpo porque no
se trata de hacer de lo sensible un apéndice
de la educación sino de pensar y sortear la
experiencia de lo sensible desde el cuerpo.
Sabemos que el cuerpo en la educación es
todavía un territorio por descubrir, por mucho
que se oculte su lugar en el campo pedagógico,
aún hay mucho por revelar. El cuerpo es
también un lenguaje poético que proponemos
sea raíz de significación e inteligibilidad para
la educación, así las expresiones aquí expuestas
se convierten, quizás, en una superficie para
pensar lo sensible en clave pedagógica.
Luz Elena GALLO. Expresiones de lo sensible: lecturas en clave pedagógica
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Recebido en: 13.12.12
Aprovado en: 25.03.13
Luz Elena Gallo - doctora en Educación. Grupo de Investigación: Estudios en Educación Corporal. Docente de la Universidad de
Antioquia, Colombia.
214
Luz Elena GALLO. Expresiones de lo sensible: lecturas en clave pedagógica
Educação sobre drogas: uma proposta orientada pela
redução de danos
Mariana AdadeI
Simone MonteiroI
Resumo
Diante do fracasso das políticas centradas na condenação do uso
de drogas, este trabalho visa contribuir para o desenvolvimento
de uma proposta educativa informada pela contextualização dos
aspectos socioculturais, econômicos e políticos desse fenômeno e
pelo conceito de redução de danos (RD). Para tanto, por meio de
entrevistas, investiga as visões sobre drogas e temas afins de 40
escolares dos ensinos fundamental e médio, das redes pública e
privada do Estado do Rio de Janeiro. Ademais, revisa o conteúdo
de um jogo educativo sobre o uso indevido de drogas denominado
Jogo da Onda, com base na análise documental do material. As
entrevistas revelaram que a maioria dos estudantes tem uma
concepção negativa das drogas ilícitas, minimiza os riscos do
consumo das drogas lícitas e não considera as singularidades dos
elementos envolvidos no consumo (sujeito, tipo de droga e contexto
de uso). Tais achados, somados à revisão bibliográfica, orientaram a
atualização do conteúdo do Jogo da Onda e a proposição de novas
temáticas a serem incorporadas na nova edição do material. Em
face das lacunas na formação dos educadores em relação ao tema
das drogas, da escassez de recursos educativos participativos e do
interesse dos estudantes em dialogar sobre o assunto, este estudo
pretende fornecer subsídios para o desenvolvimento de ações
educativas sobre drogas entre jovens, pais e educadores.
Palavras-chave
Educação — Drogas e juventude — Redução de danos — Jogos
educativos.
I- Fundação Oswaldo Cruz, Rio de
Janeiro, RJ, Brasil.
Contatos: [email protected];
[email protected]
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 215-230, jan./mar. 2014.
215
Education about drugs: a proposal oriented by
damage reduction
Mariana AdadeI
Simone MonteiroI
Abstract
In view of the failure of policies centered on the condemnation of
drug abuse, this work aims at contributing to the development of
an educative proposal informed by the contextualization of socio-cultural, economic and political aspects of this phenomenon, and
by the concept of damage reduction (DR). For that, making use of
interviews, the work investigates the views about drugs and related
issues expressed by 40 students from both public and private
primary and secondary education schools in the State of Rio de
Janeiro. Furthermore, it reviews the contents of an educative game
about the inadequate use of drugs called Jogo da Onda (Wave Game)
based on the documental analysis of the material. The interviews
revealed that most students have a negative view of illegal drugs,
minimize the risks of consuming them, and do not consider the
singularities of the elements involved in the consumption (subject,
type of drug, and context of use). These findings, added to the
bibliographic review, guided the update of the content of the Jogo
da Onda, and the proposition of new themes to be incorporated in
a new edition of the material. In view of the gaps in the formation
of educators regarding the theme of drugs, the lack of participative
educative resources, and the interest of students in talking
about this subject, this study attempts to give elements for the
development of educative actions about drugs among youngsters,
parents and educators.
Keywords
Education — Drugs and youth — Damage reduction — Educative
games.
I- Fundação Oswaldo Cruz, Rio de
Janeiro, RJ, Brazil.
Contacts: [email protected];
[email protected]
216
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 215-230, jan./mar. 2014.
As limitações e o insucesso das abordagens
proibicionistas voltadas para o controle e a
prevenção do uso indevido de drogas têm sido
atestados por diversos estudos e pelo crescimento
regular do uso de drogas entre jovens nas ultimas
décadas, particularmente do álcool (BASTOS
et al., 2008; GALDURÓZ et al., 2010). Tais
evidências têm motivado a revisão de políticas
públicas descontínuas e descontextualizadas,
historicamente orientadas por perspectivas
teórico-metodológicas de caráter repressivo e
informativo, visando unicamente ao não consumo
de drogas. Nesse enfoque, a droga é definida
como um mal que precisa ser exterminado e as
pessoas são consideradas indefesas e passivas
diante das substâncias ilícitas, necessitando de
proteção e orientação de autoridades médicas e
jurídicas (BUCHER, 2007; CANOLETTI; SOARES,
2005). Em contraposição a essa visão, há novas
formas de compreender e intervir no controle e
na prevenção do uso indevido de drogas, como a
abordagem de redução de danos (RD) (SOARES;
JACOBI, 2000; CARLINI-COTRIM, 1992).
Segundo a definição da OMS, a RD é uma
estratégia de auxílio ao usuário na redução do
consumo de drogas que pode contribuir para
uma possível interrupção do seu uso (WHO,
s.d.). Com base em revisão da literatura, Santos,
Soares e Campos (2010, 2012) constataram
que existem variações conceituais sobre a RD,
decorrentes da apropriação da abordagem por
diferentes campos disciplinares e contextos,
sendo recomendada a definição do embasamento
teórico e metodológico do termo nos trabalhos
que partem dessa perspectiva. Na presente
pesquisa, adota-se uma visão ampliada, global e
crítica sobre a realidade social na compreensão do
fenômeno das drogas. Assim, a concepção de RD
utilizada centra-se em um conjunto de saberes e
práticas acerca do uso de drogas fundamentados
no conhecimento amplo da realidade histórica e
sociocultural. Dentre eles, destaca-se a evidência
de que a produção, o comércio e o consumo
de drogas são práticas que sempre estiveram
presentes na história da humanidade, ganhando
significados e funções de acordo com o momento
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 215-230, jan./mar. 2014.
social, político e econômico de cada sociedade.
Considerando a inevitabilidade do uso de drogas,
as ações de RD objetivam minimizar os prejuízos
individuais e sociais associados a essa prática a
partir do respeito às diversas singularidades e
do resgate do direito individual de escolha e de
acesso aos serviços de saúde (SANTOS; SOARES;
CAMPOS, 2010).
No campo da educação sobre drogas,
Acserald (2005) faz uma aproximação da
abordagem da RD com a perspectiva de
educação para autonomia definida por
Freire (2008), que afirma que o processo de
aprendizagem deve ser permeado por um
conhecimento crítico da realidade. Ou seja,
aprender transcende o armazenamento de
saberes, sendo resultado de uma constante
reflexão sobre a realidade global. De acordo
com essa perspectiva, o educador e o educando
são sujeitos ativos do processo de construção
de conhecimento, aprendendo mutuamente por
meio de sucessivas aproximações e reflexões
sobre determinado assunto. A aprendizagem
é facilitada pelo educador por meio de
técnicas reflexivas e participativas que visam
ao estímulo do raciocínio crítico diante de
temas específicos contemplados com base na
inserção na realidade social. O processo de
aprendizagem global, crítico e emancipatório
torna-se possível a partir do reconhecimento
do educando como um ser histórico, distante
de uma perspectiva determinista e naturalizada
não só do seu papel enquanto sujeito social,
mas de todos os elementos que compõem
seu cenário de vida. Educar é aprender a ser
cidadão tanto de direitos quanto de deveres, é
estar habilitado para transformar sua realidade
levando em consideração não só os interesses
individuais, mas também os interesses
coletivos (FREIRE, 2008).
Com base na revisão da literatura
internacional na área de educação sobre drogas,
Paglia e Room (1998) constataram a carência
de estudos sobre práticas de RD. Todavia,
as experiências existentes foram avaliadas
positivamente. Os autores salientaram que os
217
benefícios das estratégias educativas não podem
ser relacionados apenas à diminuição ou não do
consumo de drogas. A proposta da RD centra-se
em um trabalho processual de conscientização
e emancipação do sujeito enquanto cidadão;
daí a importância de ações contínuas e do
envolvimento dos jovens no processo de criação
e implementação das atividades educativas
(FEFFERMANN; FIGUEIREDO, 2006; SOARES;
JACOBI, 2000).
As evidências do fracasso das políticas de
guerra às drogas, somadas às novas perspectivas
sobre o tema, como a RD, têm potencializado a
mobilização e a articulação de profissionais de
diversas áreas do conhecimento e promovido
a ampliação da discussão sobre as diretrizes
legais e as ações de controle do uso indevido
de drogas entre diferentes esferas da sociedade
(ACSERALD, 2005; BUCHER; OLIVEIRA, 1994;
SOARES, 1997). Para ilustrar, cabe citar a
criação da Comissão Brasileira sobre Drogas
e Democracia (CBDD), formada por atores de
diferentes setores da sociedade que se propõem
a pensar a política de drogas e intermediar a
comunicação entre especialistas, o governo e a
opinião pública. Outros exemplos são: o projeto
Lei de drogas: é preciso mudar!, capitaneado
por uma organização não governamental
que visa transformar a atual legislação, e as
manifestações populares que reivindicam o
direito de cultivo e consumo da maconha,
realizadas em vários estados do Brasil. O tabaco,
por sua vez, tem sido alvo de campanhas da
mídia que evidenciam os malefícios do consumo
continuado e abusivo e de intervenções
legislativas referentes à restrição à divulgação
de propagandas nos veículos de comunicação
e à proibição do consumo em espaços de
sociabilidade (NOTO et al., 2003).
Na educação escolar está prevista a
inclusão da temática das drogas nos currículos
da educação infantil e dos ensinos fundamental
e médio, uma vez que ela faz parte do cotidiano
juvenil. Segundo os Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN), tal tema deve ser abordado
transversalmente aos conteúdos programáticos
218
tradicionais, a partir de estratégias definidas
pelas escolas (ARAÚJO, 2001; FEFFERMANN;
FIGUEIREDO, 2006). No âmbito da legislação
brasileira, embora a Lei nº 9.394/96 não
apresente um item sobre drogas, a Lei nº
11.343/2006 regulamenta a formação continuada
de professores na área de prevenção ao uso
indevido de drogas e recomenda a implantação
de projetos pedagógicos no ensino público e
privado (BIZZOTTO; RODRIGUES, 2007). Assim,
reafirma-se legalmente a responsabilidade
da escola e do professor na formação social e
intelectual dos sujeitos, incluindo uma formação
educacional a respeito das drogas.
Embora o contexto formal de ensino seja
reconhecido como um local privilegiado para as
ações educativas sobre drogas, os estudos sinalizam
um descompasso entre as diretrizes acadêmicas e
o despreparo (teórico e afetivo) do educador para
assumir essa tarefa, o que se expressa nas omissões
e/ou negações para abordar o assunto. Ou seja,
os educadores recebem a demanda para incluir
o tema nas atividades curriculares, mas não são
fornecidos subsídios para tal implementação. A
literatura constata que a resistência dos educadores
em desenvolver tal conteúdo no contexto escolar
está vinculada à falta de formação apropriada
e às ideias preconcebidas acerca das relações
entre droga, violência e criminalidade (CARLINIMARLATT, 2001; MARTINI; FUREGATO, 2008;
MOREIRA; SILVEIRA; ANDREOLI, 2006; SOARES;
JACOBI, 2000).
No que se refere às iniciativas na
área de ensino de ciências associadas à
temática, as publicações encontradas foram
predominantemente resumos estendidos e relatos
de experiências em sala de aula apresentados em
eventos da área. Parte dos trabalhos privilegiou
a discussão sobre a formação do professor,
sugerindo que esta seja orientada para a integração
curricular em prol da superação das disciplinas
ministradas de forma compartimentada (BOFF
et al., 2009). Nesse sentido, Cavalcante et al.
(2005) investigaram as representações sociais
sobre drogas de um grupo de professores da
rede pública de um município na Bahia. Entre
Mariana ADADE; Simone MONTEIRO. Educação sobre drogas: uma proposta orientada pela redução de danos.
os entrevistados prevaleceram representações
negativas acerca das substâncias e dos usuários.
Os autores reforçam a importância da formação
inicial e continuada sobre o tema, tendo por base
o manejo das representações dos educadores e
uma visão ampliada do fenômeno das drogas.
Vale ressaltar que tem havido iniciativas
nas áreas da saúde, da educação e da justiça
visando à capacitação de professores para o
manejo do tema, como o Curso de Prevenção
do Uso de Drogas para Educadores de Escolas
Públicas, organizado pela Secretaria Nacional
de Políticas sobre Drogas (Senad), em parceria
com a Secretaria de Educação Básica do
Ministério da Educação (MEC). O curso faz
parte do Plano Integrado de Enfrentamento ao
Crack e outras Drogas desde 2004 e a próxima
edição será ministrada em oito meses, a partir
de agosto de 2012.1
Em suma, existem desafios na prevenção
do uso indevido de drogas que implicam o
envolvimento de vários setores e atores sociais
dos campos da saúde, da educação e da justiça.
Integra esse esforço o desenvolvimento de
abordagens educativas capazes de contemplar
aspectos caros da interação, como o contexto
sociocultural e econômico e a dimensão
simbólica das populações que são alvo das
ações (ACSERALD, 2005; SOARES, 1997).
Com o propósito de contribuir para o
incremento de práticas educativas sobre drogas
afinadas com a RD, o presente trabalho objetiva
investigar as visões de escolares das redes pública
e privada do Estado do Rio de Janeiro sobre
esse fenômeno, bem como revisar o conteúdo
de um jogo educativo sobre o uso indevido de
drogas, denominado Jogo da Onda (REBELLO;
MONTEIRO, 1998), com base na análise
documental do material. Desenvolvido por
pesquisadoras do Laboratório de Educação em
Ambiente e Saúde (LEAS) do Instituto Oswaldo
Cruz (IOC), esse jogo foi adotado por programas
de educação em saúde da Secretaria Estadual
de Saúde do Rio de Janeiro e da Secretaria
1- Informações disponíveis em: <www.brasil.gov.br/enfrentandoocrack/
plano-integrado>. Acesso em: 31 mar. 2013.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 215-230, jan./mar. 2014.
Municipal de Educação de São Paulo, dentre
outras ações nos âmbitos público, privado e da
sociedade civil (MONTEIRO; REBELLO, 2005).
Desde 2008 o jogo está esgotado e existe uma
demanda contínua pelo material, atestada por
contatos dirigidos ao LEAS/IOC por parte de
instituições e profissionais da área da educação
e da saúde, das redes pública e privada de
diferentes regiões do Brasil (ver quadro 1).
A opção pela atualização do conteúdo do
Jogo da Onda resultou da revisão de estudos
sobre educação e drogas no contexto nacional.
A partir dos artigos sobre o desenvolvimento
e a avaliação do jogo, foi possível conhecer
o referencial teórico utilizado pelas autoras —
o qual é relacionado à RD e à educação para
autonomia, em contraposição às abordagens
informativas e/ou prescritivas sobre drogas — e
as funções do material, quais sejam: estimular a
troca de saberes, o diálogo, o compartilhamento
de experiências e a reflexão sobre os temas
abordados, contribuindo para um processo de
aprendizagem prazeroso e interativo.
O desenho do estudo resulta de uma
dissertação de mestrado (ADADE, 2012) e
fundamenta-se no pressuposto de que as práticas
educativas sobre drogas precisam ser embasadas
pelo conhecimento da realidade dos sujeitos
e orientadas por abordagens pedagógicas
participativas e dialógicas. Conhecer a realidade
é uma tarefa ampla e complexa, pois significa
investigar as condições materiais de existência
(perfil socioeconômico) e os aspectos culturais
e simbólicos que permeiam e constituem os
sujeitos da ação educativa e suas experiências
e visões acerca do tema tratado (CANOLETTI;
SOARES, 2005; CARLINI-COTRIM, 1992;
FEFFERMANN; FIGUEIREDO, 2006; SOARES,
1997, 2007; SOARES; JACOBI, 2000).
As abordagens educativas dialógicas
e participativas compreendem o processo de
aprendizagem como um diálogo de saberes
entre educador e educando, e a realidade como
um todo complexo e multideterminado em que
os acontecimentos não são naturalizados. Esse
enfoque busca facilitar o reconhecimento da
219
intencionalidade das ações sociais e de diferenças
socioculturais a partir da problematização do
tema abordado de modo a propiciar um olhar
crítico acerca da realidade (ACSERALD, 2005;
MONTEIRO; REBELLO, 2005).
Percurso metodológico
As representações sociais são aqui
concebidas como imagens, concepções e ideias
sobre a realidade compartilhada por determinado
grupo, demonstrando a visão consensual nele
presente. As representações e práticas sociais se
manifestam por meio de sentimentos, discursos,
pensamentos e ações expressas, especialmente,
pela linguagem (JODELET, 2001). Para investigar
as representações e práticas sociais dos
estudantes sobre drogas e temas afins, foram
utilizadas estratégias metodológicas de caráter
qualitativo, como entrevistas individuais e
observações de campo. A abordagem qualitativa
se caracteriza pela compreensão da realidade
como uma construção social e dialética, uma
vez que todo e qualquer fato concreto está
intrinsecamente relacionado a uma forma
simbólica, constituída no e constituinte do
campo social. Para conhecer e compreender o
caráter subjetivo e interpretativo de aspectos
da vida social, faz-se necessário contemplar as
interações sociais (que são atravessadas por esses
sentidos e significados), integrando-as com a
análise dos contextos social, cultural e material
que servem de contorno para os sujeitos da
pesquisa (BECKER, 1994; MINAYO, 2006, 2010).
Caracterização do universo do estudo
Os dados sobre o consumo de drogas
entre estudantes do Estado do Rio de Janeiro
são encontrados no trabalho de Galduróz et al.
(2004). No entanto, não há um detalhamento
dos achados no que se refere a regiões e bairros
específicos. Tendo em vista essa lacuna e o caráter
qualitativo deste estudo, a seleção das unidades
de ensino foi orientada por contatos junto às
Secretarias Estadual e Municipal de Educação
220
do Rio de Janeiro, pela disponibilidade da
direção da escola e dos alunos em participar do
projeto e pela localização geográfica da escola.
A pesquisa foi realizada na unidade de ensino
indicada pela Secretaria Estadual de Educação,
que justificou a indicação esclarecendo que tal
instituição enfrentava muitos problemas com
drogas em razão de sua localização. No caso
da escola indicada pela Secretaria Municipal, a
despeito do atendimento de todos os requisitos
solicitados, a direção da unidade não autorizou
a realização da pesquisa. A solução se deu por
meio de um contato pessoal com a diretora de
outra escola municipal.
Quanto à seleção da unidade privada,
foram contatadas escolas geograficamente
próximas das unidades públicas de ensino.
Das cinco escolas, apenas duas responderam,
não autorizando o desenvolvimento do estudo
devido às implicações da abordagem do tema
drogas para os familiares dos alunos e à falta
de compatibilidade da agenda escolar para
realização das entrevistas. Novamente a solução
se deu a partir de contatos pessoais. A literatura
aponta para a dificuldade de inserção dessa
temática no contexto escolar (CARLINI, 2005).
É ilustrativo que o CEBRID (Centro Brasileiro
de Informações sobre Drogas Psicotrópicas),
responsável pela realização de levantamentos
sobre o consumo de drogas entre estudantes de
todas as capitais brasileiras desde o ano de 1997,
somente em sua sexta edição apresenta dados do
universo particular.
Participaram do estudo alunos de três
escolas: uma estadual, localizada na Tijuca
(bairro da zona norte do município do Rio de
Janeiro); uma municipal, em Duque de Caxias
(município contíguo ao município do Rio de
Janeiro); e uma particular, em Teresópolis
(Região Serrana do Estado). As três regiões
apresentam perfil socioeconômico diversificado,
mas têm em comum a presença de tráfico de
drogas no entorno dos estabelecimentos de
ensino. O universo da pesquisa compreendeu 40
estudantes, de 11 a 19 anos, sendo 20 do sexo
feminino (metade da escola pública e metade da
Mariana ADADE; Simone MONTEIRO. Educação sobre drogas: uma proposta orientada pela redução de danos.
escola privada) e 20 do sexo masculino (metade
da escola pública e metade da escola privada).
No total, foram: da rede privada, 10 estudantes
do ensino médio e 10 do ensino fundamental;
da rede pública, 20 estudantes distribuídos do
mesmo modo.
A seleção dos sujeitos se deu a partir da
divulgação da pesquisa nas salas de aula das três
escolas. Apresentou-se o Jogo da Onda e expôsse o objetivo de atualizá-lo. Em cada sala de aula
visitada foi deixada uma folha a ser preenchida
com nome e contato dos alunos que gostariam
de participar da entrevista. Esclareceu-se que
a seleção seria feita a partir do sorteio dos
interessados, que a participação era voluntária,
que os dados eram sigilosos e que os pais e/ou
responsáveis precisariam autorizar.
Estratégias metodológicas
A definição das estratégias foi norteada
pelo percurso metodológico que originou o
Jogo da Onda, caracterizado pela investigação
do conhecimento, das representações e das
práticas sobre drogas por parte de estudantes,
bem como pela revisão da bibliografia e
de propostas educativas relativas ao tema
(MONTEIRO; REBELLO, 2005).
Na primeira etapa foram realizadas 40
entrevistas semiestruturadas e observações de
campo referentes às interações ocorridas nos
contextos investigados, considerando-se os
aspectos sociais, culturais e materiais. O roteiro
da entrevista incluiu: perfil socioeconômico;
trajetória escolar; visões, conceitos e
experiência sobre drogas; relação entre drogas
e mídia; motivações e prazeres; drogas e
legislação; pressão social; dificuldades na vida
cotidiana; visão acerca do usuário de drogas;
relações entre sexualidade, Aids e drogas;
relações interpessoais; e tipo de educação
sobre drogas recebida. Todas as entrevistas
aconteceram nas dependências das escolas,
em um único contato individual durante o
horário de aula. A assinatura do termo de
consentimento concedeu a autorização dos
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 215-230, jan./mar. 2014.
responsáveis dos estudantes para a participação
no estudo e a gravação das entrevistas.
Os relatos foram transcritos e lidos
de forma exaustiva, visando à organização
e à codificação do conteúdo segundo os
eixos temáticos do roteiro da entrevista e das
questões do estudo, bem como à identificação
do significado das narrativas (BECKER, 1994).
O processo de interpretação das informações
buscou articular as categorias identificadas nas
entrevistas com as informações das observações
de campo, os objetivos do estudo e a revisão
da literatura do campo das ciências sociais e
da educação sobre drogas (ACSERALD, 2005;
BUCHER, 1992, 2007; BUCHER; OLIVEIRA,
1994; MACRAE, 1997, 1999; SOARES 1997,
2007; VELHO, 1999; ZALUAR, 1999.
A segunda etapa, referente à revisão e
à atualização do conteúdo do jogo, orientouse pela metodologia de criação do material
(MONTEIRO; REBELLO, 2005). Para tanto,
foram realizadas: 1) análise das publicações
sobre o processo de avaliação e repercussão
do Jogo da Onda em contextos de ensino
(REBELLO; MONTEIRO; VARGAS, 2001;
MONTEIRO; VARGAS; REBELLO, 2003) e dos
relatórios sobre as etapas de desenvolvimento
e avaliação das cartas do material, disponíveis
no LEAS/ Fiocruz; 2) revisão bibliográfica
sobre o cenário contemporâneo relacionado ao
consumo de drogas, centrada em informações,
pesquisas científicas sobre o tema, políticas
públicas na área da saúde e da educação e
legislação;2 3) revisão do conteúdo das 145
cartas da primeira edição do Jogo da Onda
a partir dos achados da literatura e das
entrevistas com os jovens. Tal análise visou
identificar a atualidade e a defasagem do
conteúdo das cartas do jogo educativo.
2- O processo de levantamento bibliográfico se deu no portal de
periódicos Scielo e nas bases de dados Lilacs e Scopus, a partir dos
seguintes descritores: uso indevido de drogas e adolescência (ou
juventude), educação ou prevenção e RD e outras possíveis combinações.
Foram incluídos na revisão artigos, teses e livros que abordassem o tema,
bem como contatos com profissionais da área em busca de sugestões e
indicações bibliográficas.
221
Resultados e discussão
Os estudantes das escolas públicas
referiram, com maior frequência, que residiam
com uma família ampliada, constituída pelo
agrupamento de diferentes parentes (avô, tia e
prima; tios, irmãos e mãe). O número de pessoas
residentes nas casas foi maior, variando de 3
a 11. Nesses contextos, a responsabilidade pela
educação dos jovens é mais descentralizada,
ficando a cargo de todos os adultos; alguns
estudantes ajudavam financeiramente e nas
atividades domésticas. Na unidade privada
foram mais comuns as famílias nucleares,
compostas somente por pais e filhos(as).
Dentre os 40 entrevistados, a maioria
possui computador em casa (92,5%), tem
acesso à internet (82%) e participa de redes de
relacionamentos virtuais (97,5%). Em relação
ao perfil socioeconômico dos entrevistados
oriundos de unidades de ensino públicas e
privada, foram observadas diferenças relativas
à constituição familiar, à inserção profissional
dos pais, à possibilidade de acesso a práticas
de consumo e a oportunidades de lazer e
aprendizagem. Todavia, foram identificadas
aproximações relacionadas aos parâmetros e
às referências identitárias compartilhadas por
uma geração, como o acesso à internet e a
valorização de bens de consumo.
A maior parte dos alunos (85%) possui
representações negativas acerca do consumo
de drogas. Segundo os jovens, o uso de drogas,
principalmente de drogas ilícitas, é sempre
uma experiência abusiva e maléfica, sendo o
usuário o único responsável por essa interação.
Tal visão individualizada e descontextualizada
do fenômeno converge com a racionalidade
técnico-científica, pautada no discurso de
guerra às drogas historicamente difundido em
diversos fóruns, inclusive nas escolas (BUCHER;
OLIVEIRA, 1994; CARLINI-COTRIM, 1992).
A concepção de prevenção primária
do uso de drogas tem como a priori apenas
os aspectos danosos da droga (ilícita) e a
orientação de que o consumo de qualquer
222
droga deve ser evitado. Esses pressupostos se
distanciam da realidade experimentada pelos
jovens, dado que as drogas estão presentes em
diversos contextos e figuram como instrumento
de socialização. O não reconhecimento de
aspectos contextuais, como a pressão social e
o acesso facilitado às drogas, torna os jovens
mais vulneráveis ao uso indevido, uma vez que
não legitima as possíveis influências presentes
em seus espaços de circulação. Ademais,
contribui para a manutenção do estereótipo
do usuário de drogas como o fracassado e o
desviante, facilitando a construção de posturas
discriminatórias e dificultando a percepção da
condição de usuário de drogas. Conceber todas as
dimensões existentes no ato de consumir drogas
implica constatar que as alterações ocasionadas
transcendem o espectro de puramente
fisiológico e envolvem aspectos subjetivos
e construções sociais acerca de determinada
substância. Os efeitos de uma droga dependem
da complexa interação do sujeito (sua fisiologia
integrada à sua dimensão subjetiva e simbólica)
com a substância específica (suas propriedades
químicas e seus significados sociais) em dado
contexto, levando-se em consideração toda
sorte de fatores aí presentes (BECKER, 2008).
Pouco mais da metade dos entrevistados
(52,5%) conseguiu diferenciar, de forma breve e
superficial, as drogas lícitas das drogas ilícitas. Para
muitos, essa diferenciação é orientada pela ideia
de que as drogas lícitas causam menos prejuízos e
por isso são permitidas. A dificuldade em justificar
as origens de tal classificação não se restringe ao
universo desta pesquisa, mas resulta do discurso
proibicionista que oculta os diversos fatores que
rivalizam na complexa interação sujeito-droga e
justifica a proibição de determinadas substâncias
a partir de critérios farmacológicos. Ou seja,
focaliza somente as substâncias e não a rede de
elementos que estão presentes nessa interação e
que influenciam as motivações sociais, políticas
e, especialmente, econômicas da classificação das
drogas (ESCOHATADO, 2004; MACRAE, 1997).
Noto et al. (2003) afirmam que os psicoativos,
apesar de similares em várias características
Mariana ADADE; Simone MONTEIRO. Educação sobre drogas: uma proposta orientada pela redução de danos.
farmacológicas, são classificados, legalizados
e divulgados de modo diferenciado, o que pode
gerar, por sua vez, ideias e práticas incoerentes
que precisam ser alvo das ações educativas.
As motivações do uso de drogas ilícitas
são associadas às ideias de doença, descontrole,
infelicidade, criminalidade, fraqueza e loucura,
coerentes com o discurso reducionista que
encerra o sujeito em sua condição de usuário,
adoecido e/ou criminoso. Segundo Rodrigues
(s.d.), a diferenciação entre o usuário e o
traficante, já presente na legislação da década
de 1970 e reeditada na Lei nº 11.343/06,
reforça uma possível troca de estereótipos
atrelados à pessoa que consome drogas. O
lugar de doente do usuário de drogas ilícitas se
materializa quando este é penalizado a partir
do encaminhamento ao tratamento específico
na área. Significados e representações existem e
são construídos socialmente ao longo do tempo,
estando, a cada momento, atrelados a valores,
crenças, interesses e motivações de diversas
ordens. A percepção dos estudantes acerca dos
usuários de drogas, além de se configurar como
um obstáculo para o reconhecimento de um
uso abusivo, sinaliza a importância de o tema
ser incluído nas práticas educativas visando
também amenizar a difusão de estereótipos e,
consequentemente, de posturas discriminatórias
ante os sujeitos que consomem drogas ilícitas.
Ainda no que se refere aos fatores
desencadeadores da experiência inicial com as
drogas, a maioria dos entrevistados privilegiou
elementos relacionados ao entorno social. Os
jovens reconhecem somente a presença de
elementos da dimensão microssocial, como as
mediações sociais (entre amigos, familiares e
outros) e características pessoais, como baixa
autoestima, personalidade fraca, Maria vai
com as outras etc. A valorização de aspectos
relacionados ao contexto mais próximo, além
de responsabilizar – e muitas vezes culpabilizar
– o individuo pela escolha de consumir drogas,
desconsidera toda a gama de elementos de ordem
macrossocial presentes. Dentre tais elementos,
podemos citar o incentivo ao consumo de
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 215-230, jan./mar. 2014.
diversos bens (como as substâncias psicoativas),
as diferentes condições socioeconômicas dos
grupos populacionais e os elementos que
influenciam diretamente na construção de
hábitos e atitudes (como no caso de opções de
lazer, de diversão, nas formas de lidar com os
problemas etc.) (ALMEIDA; EUGÊNIO, 2007;
SOARES, 2007).
Conclui-se que os entrevistados têm
informação sobre várias drogas, mas não
consideram os diferentes tipos de consumo. No
caso das substâncias ilícitas, a experimentação
é associada à dependência, sendo escassos
os relatos sobre o uso recreativo ou ocasional
de drogas. A forte introjeção de que a atitude
correta é não ter o primeiro envolvimento com
qualquer tipo de droga contrasta com a realidade
vivenciada – que inclui o consumo de álcool – e
com os efeitos danosos do álcool entre jovens
(BASTOS et al., 2008; GALDURÓZ et al., 2010).
Tal fato ganha relevância na medida em que
grande parte dos entrevistados não identifica
o álcool como droga; mesmo aqueles que o
definiram como droga e que afirmaram consumilo, ao longo da entrevista responderam que
não usavam drogas. O não conhecimento dos
tipos e das possíveis implicações das diferentes
formas de consumo dificulta o reconhecimento
dos usos devido e indevido (SILVEIRA FILHO,
2007). Em relação às experiências pessoais
com drogas ilícitas, apenas uma estudante da
escola privada relatou ter usado maconha e
ecstasy, pontualmente. Outra disse ainda não ter
experimentado o ecstasy, mas compartilhou a
curiosidade de experimentar.
As observações de campo e os depoimentos
indicaram maior espaço para o diálogo na escola
privada. Apesar de a maioria desses alunos não
participar de ações educativas sobre drogas,
eles mencionaram atividades sobre o tema no
contexto escolar, principalmente nas aulas do
professor de biologia, com quem demonstraram
nutrir uma relação de proximidade e admiração.
Tais aspectos possivelmente influenciaram a
forma como os conteúdos foram tratados, no
sentido de haver um espaço para a exposição
223
de perguntas, dúvidas e trocas. Por outro lado,
os estudantes das unidades públicas relataram
atividades educativas sobre drogas em contextos
não escolares, predominantemente no formato de
palestras, e consideraram a experiência negativa,
sobretudo pela ausência de interatividade. De
acordo com eles, as palestras e exposições em
sala de aula privilegiam um caráter informativo
e relatos de pessoas que tiveram experiências
com drogas. A atenção a esse último formato
de atividade é necessária para profissionais que
trabalham na área de educação sobre drogas, uma
vez que tais relatos podem vir a reproduzir uma
visão alarmista e reduzida acerca do fenômeno.
Ao se contemplar somente a dimensão (e a
responsabilização) individual, os aspectos
contextuais são omitidos pelo realce dado
aos prejuízos da interação. O foco nos
danos tem a intenção de garantir que as
pessoas rejeitem qualquer tipo de consumo
(de drogas ilícitas) a partir da mobilização
do medo. Ou seja, usa-se o recurso do
amedrontamento, ofuscando a consciência
crítica para questionar o relato apresentado
e seus elementos constituintes (FERREIRA et
al., 2010; MONTEIRO; REBELLO, 2005).
Embora a polícia tenha como função
assegurar a proteção dos sujeitos e a
manutenção da ordem pública, a maioria dos
estudantes desacredita nas atividades policiais,
caracterizadas como ações predominantemente
repressivas e punitivas. No caso do consumo
de substâncias ilícitas, os jovens afirmam que
a questão deve ser tratada pela saúde pública
e não pela justiça. Tal visão nos remete para a
atual discussão sobre os limites da autorização
para que os policiais façam a distinção entre
usuário e traficante, o que está previsto na lei
de drogas (Lei nº 11.343/06) e vem ocasionando
uma explosão carcerária de usuários presos
como traficantes no país (ABRAMOVAY, 2012).
Sobre a relação entre drogas e Aids,
mais da metade dos entrevistados afirmou
desconhecer as possíveis implicações dessa
articulação. Apenas um aluno da rede privada
associou o compartilhamento de drogas
224
injetáveis à infecção do vírus HIV, conhecimento,
segundo ele, adquirido em aula de biologia.
Outros afirmaram que o uso de drogas pode
alterar a consciência e facilitar a prática do sexo
sem preservativo ou uma postura promíscua. A
relação entre sexo, Aids e drogas remeteu os
estudantes à noção de falta de controle, expressa
por comportamentos arriscados na busca pelo
prazer, mas distanciado da realidade deles, a
despeito de haver consumo, principalmente de
álcool, no grupo (JEOLÁS; PAULILO, 1999).
Os entrevistados afirmaram conversar com
os pais e/ou familiares sobre relacionamentos
amorosos e sexo (70%) e sobre drogas (62,5%). A
maioria gosta e tem interesse em dialogar sobre
drogas, mas as conversas são predominantemente
pautadas por orientações para o não uso,
como ilustra a fala de um aluno: “quando eles
já dizem o que é pra fazer, a gente não tem
muita escolha, né?”. Outro ponto destacado
refere-se ao fato de, muitas vezes, os pais e/ou
responsáveis desconhecerem o que deve ser dito
(“não sabem o que dizer”), por constrangimento
(“eu acho que eles sentem vergonha”) ou “falta
de conhecimento”. Ou seja, os entrevistados
ressaltaram a importância do diálogo em casa,
destacando o papel da família na constituição do
sujeito, mas apontaram a carência de informações
e a falta de preparo dos pais para abordar o
assunto. Esses dados reiteram a importância
de se fornecerem subsídios educativos capazes
de fomentar o conhecimento e o diálogo sobre
drogas entre jovens, pais e educadores, tendo por
base as demandas, as curiosidades e os interesses
dos jovens, tal como proposto pelo Jogo da Onda.
Cabe destacar que mais da metade dos
entrevistados afirmou ter algum familiar que
usa drogas lícitas (álcool e tabaco) e um terço
mencionou o uso de drogas ilícitas (maconha,
ecstasy, cocaína) entre familiares. Nenhum
deles informou o uso de psicofármacos ou
de drogas ilícitas pelos pais na ocasião. No
entanto, dois estudantes da rede pública
relataram que seus pais foram usuários de
drogas ilícitas e se envolveram com o tráfico de
drogas. Existem vários fatores interdependentes
Mariana ADADE; Simone MONTEIRO. Educação sobre drogas: uma proposta orientada pela redução de danos.
relativos às motivações para o consumo (in)
devido de drogas; ter um familiar usuário
não é determinante para o uso ou abuso de
drogas, mas as relações familiares pautadas
por um vínculo afetivo e por uma interação
saudável colaboram para o desenvolvimento de
potencialidades do sujeito e para a redução do
uso indevido de drogas (SCHENKER; MINAYO,
2005). Dessa forma, as propostas educativas a
esse respeito devem integrar os diversos atores e
as instituições que participam da formação dos
jovens, como a escola e a família (MOREIRA;
SILVEIRA; ANDREOLI, 2006).
Os relatos dos alunos confirmam
os achados da literatura sobre educação
e drogas relativos aos seguintes aspectos:
falta de propostas educativas continuadas,
predomínio da concepção de responsabilização
individual, ênfase na repressão do consumo
de determinadas drogas e manutenção de
visões empobrecidas que desconsideram
fatores comumente experimentados pelos
sujeitos, como a pressão social, a curiosidade
e a sensação de bem-estar, entre outros
(ACSERALD, 2005; SOARES et al., 2011).
O interesse pelo tema e a menção
positiva da experiência da entrevista
sinalizam que os estudantes valorizam práticas
baseadas em trocas relacionais viabilizadas
pelo diálogo, pelo respeito e pela confiança,
elementos facilitadores da livre expressão
de dúvidas e experiências. Faz-se necessário
investir no conteúdo e, especialmente, no
formato dos dispositivos de educação sobre
drogas capazes de criar práticas que priorizem
a construção de espaços para que os jovens
falem de sentimentos, vivências e dúvidas,
estabelecendo um diálogo com seus pares,
pais e educadores. Nessa direção, as ações
educativas devem contemplar os pais e/ou
responsáveis pelos jovens, visando orientálos sobre o manejo do tema e trabalhando
suas crenças a esse respeito (SCHENKER;
MINAYO, 2005; SOARES, 1997).
O interesse dos jovens por atividades
dinâmicas e criativas que privilegiem a troca
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 215-230, jan./mar. 2014.
relacional e estimulem a criatividade reitera
a importância da revisão e da atualização do
conteúdo do Jogo da Onda para uma futura
reedição, tal como descrito a seguir.
Jogo da Onda: mesmo formato, novos conteúdos
Os achados das entrevistas e da revisão
da literatura evidenciaram que o conteúdo da
maioria das cartas do Jogo da Onda continua
atual. Conforme assinalado, muitos jovens não
consideraram o álcool e o tabaco como drogas
e demonstraram dificuldade em diferenciar as
substâncias lícitas e ilícitas. De igual modo, o uso
indevido de medicamentos não é associado ao
consumo de drogas, embora a OMS (Organização
Mundial da Saúde) aponte para as consequências
da superprescrição, da automedicação e do abuso
de ansiolíticos em diferentes países, incluindo o
Brasil (ORLANDI; NOTO, 2005).
Em suma, embora os estudantes tenham
informações sobre os diferentes tipos de droga,
prevalecem respostas equivocadas sobre seus
efeitos. Desse modo, é importante manter e
ampliar as cartas centradas nos prejuízos do
consumo de drogas lícitas, na diferenciação entre
as substâncias (a partir do status de legalidade
e ilegalidade) e na divulgação da definição das
substâncias no que se refere aos efeitos, além de
inserir uma breve contextualização da droga.
Outro ponto bastante presente nos
relatos diz respeito à influência dos pares como
uma das motivações centrais para o consumo
de drogas, aspecto que tem sido assinalado
pela literatura (ACSERALD, 2005; ALMEIDA;
EUGÊNIO, 2007). No entanto, a maioria dos
estudantes não falou de si diretamente. A
pesquisa que deu origem à primeira edição
do Jogo da Onda igualmente identificou a
tendência dos jovens de não abordar o tema
a partir de suas próprias experiências. Os
estudantes reconheciam a existência da pressão
social, mas não se sentiam atravessados por ela
(REBELO; MONTEIRO; VARGAS, 2001).
Demais estudos assinalam que o discurso
dos jovens tende a focalizar a experiência de
225
terceiros; os relatos de experiências pessoais sobre
o consumo de drogas (em geral, ilícitas) são mais
escassos, possivelmente em razão de ser algo
ilegal, sujeito a sanções. Poucos mencionaram
o prazer e a busca por sensações de bem-estar.
O conteúdo das cartas originais que abordam
esses temas está atualizado. Coerente com a
fundamentação teórica do material educativo,
que combina a perspectiva da educação para
autonomia com a RD, o desenvolvimento do
conteúdo do jogo não só abordou e incorporou
temas que surgiram de demandas dos jovens,
como adotou uma dinâmica que facilita a
participação dos jogadores. Ainda nessa direção,
as autoras optaram por privilegiar, no conteúdo
das cartas, situações envolvendo terceiros que
discutissem diferentes aspectos do consumo de
drogas e temas afins (MONTEIRO; VARGAS;
REBELLO, 2003; SCHENKER; MINAYO, 2005;
SOARES, 2007).
Os relatos apontam para o desconhecimento dos alunos acerca de algumas transformações no cenário do consumo e comércio de
drogas, como as mudanças legislativas, que têm
sido divulgadas pela imprensa. Tais dados reforçam a contribuição do Jogo da Onda na divulgação e na discussão de informações atuais sobre o
tema. Nesse sentido, sugere-se a inclusão de novas cartas relativas às legislações mais recentes,
bem como às implicações de situações de discriminação dos usuários perante as associações
entre uso de drogas, criminalidade, descontrole
e adoecimento. Propõe-se, ainda, a incorporação
de cartas sobre as repercussões das novas formas de sociabilidade contemporânea, como as
redes digitais, e das diversas formas de consumo
(materiais e simbólicas) e suas implicações para
o fenômeno das drogas – nesse contexto, vistas como mercadorias de consumo que mobilizam interesses, movimentações econômicas etc.
Objetiva-se também inserir cartas sobre estratégias de RD, como informações sobre os possíveis
riscos de associação de uma substância com outras drogas, devido às interações tóxicas.
Como desdobramento do estudo, os
novos conteúdos propostos passarão pelo
226
mesmo processo de testagem que caracterizou a
construção e a avaliação da primeira edição do
Jogo da Onda, configurada pela realização de
grupos focais com estudantes e observações do
uso. Após esse processo, objetiva-se encaminhar
uma segunda e nova edição do jogo.
Considerações finais
As reflexões apresentadas indicam que
o consumo de drogas se conecta a aspectos
históricos, socioculturais, econômicos, políticos
e individuais. O manejo do tema no contexto
educacional depende, entre vários fatores,
de processos formativos e da disponibilidade
do educador. Isso significa dizer que o
desenvolvimento de ações educativas deve
privilegiar a capacitação continuada de
educadores e a oferta de recursos/estratégias
educativas, contemplando, tal como propõe a
abordagem de RD, o conhecimento, as crenças e
os sentimentos que o tema mobiliza, bem como
a contextualização do fenômeno a partir de uma
perspectiva educativa dialógica e participativa.
Conforme assinalado por Soares
(2007), é preciso reconhecer as dificuldades
de se assumir uma perspectiva sobre drogas
orientada pela RD, que, apesar de solidamente
fundamentada, ainda é emergente e alvo de
críticas combativas. A busca pela construção
de argumentos se faz necessária para a
sustentação de um posicionamento claro e
seguro diante de questionamentos e censuras.
Tratar o tema amplamente, valorizando
todas as suas dimensões, implica enfrentar as
críticas de diferentes atores sociais e fornecer
esclarecimentos e informações coerentes e
sérias, as quais nem sempre são divulgadas,
embora atualmente estejam mais acessíveis
(CANOLETTI; SOARES, 2005).
Este trabalho teve o propósito de
contribuir para o desenvolvimento e o
aprimoramento de práticas educativas sobre
drogas e fomentar reflexões sobre as relações
entre a abordagem da redução de danos e a
perspectiva da educação para a autonomia. Em
Mariana ADADE; Simone MONTEIRO. Educação sobre drogas: uma proposta orientada pela redução de danos.
um sentido mais global, o trabalho integra um
movimento – já instaurado e que gradualmente
vem se solidificando – de difusão de discursos
contra-hegemônicos, procurando divulgar novos
conhecimentos contextualizados sobre o tema
do consumo de drogas e seus desdobramentos.
Assim, ao materializar tal perspectiva em
um jogo educativo, o desenvolvimento desta
pesquisa demonstra o comprometimento em
afinar a teoria à prática.
Quadro 1 – Jogo da Onda
O Jogo da Onda contém: 1 tabuleiro; 1 dado; 4
pinos; 1 encarte com dicas de atividades e sugestões
bibliográficas; 4 baralhos. O baralho laranja descreve
o conceito e os efeitos de drogas lícitas e ilícitas; o
baralho vermelho contém perguntas e respostas
sobre aspectos jurídicos, conceito e classificação
das drogas e as consequências do uso abusivo; nos
baralhos verde e azul são apresentadas situações
do cotidiano associadas ao consumo de drogas,
como relacionamento familiar, políticas educativas,
conflitos pessoais, pressão social do grupo, entre
outros; o baralho verde difere do baralho azul por
conter mensagens sobre o tema abordado na carta.
Recomendado para maiores de 12 anos, o jogo foi
projetado para ser jogado em dupla em contextos
do ensino formal e informal, podendo ser adaptado
para diferentes realidades (REBELLO; MONTEIRO;
VARGAS, 2001).
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 215-230, jan./mar. 2014.
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Recebido em: 08.10.2012
Aprovado em: 12.12.2012
Mariana Adade é psicóloga, gestalt-terapeuta, especialista em Assistência a Usuários de Álcool e outras Drogas pelo
Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ) e mestra em Ciências pelo Instituto Oswaldo
Cruz (IOC/FIOCRUZ).
Simone Monteiro é pesquisadora do Instituto Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), onde chefia o Laboratório de Educação em Ambiente
e Saúde (LEAS), bolsista de produtividade em pesquisa nível 2 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) e doutora em Saúde Pública (ENSP/FIOCRUZ), com pós-doutorado na Columbia University.
230
Mariana ADADE; Simone MONTEIRO. Educação sobre drogas: uma proposta orientada pela redução de danos.
O imperativo do afeto na educação infantil: a ordem do
discurso de pedagogas em formação
Rodrigo Saballa de CarvalhoI
Resumo
Este artigo apresenta resultados de uma pesquisa que teve como
foco de análise a problematização dos discursos sobre afeto
docente presentes em relatórios de um estágio realizado em turmas
de Educação Infantil por 30 acadêmicas de pedagogia em fase de
conclusão do curso. O objetivo do artigo é problematizar como
os discursos sobre afeto se constituem enquanto imperativos que
inventam e regulam os modos de exercício docente. O campo
de estudos no qual se fundamentou a pesquisa foi o dos estudos
culturais e dos estudos desenvolvidos por Michel Foucault. A
metodologia consistiu na análise do discurso foucaultiana, por meio
da qual foram destacadas as regularidades e inflexões presentes nos
relatórios. Estes foram escritos a partir de elementos recordatórios,
como fotos, planejamentos e demais registros das acadêmicas. A
análise evidenciou a assunção da afetividade como um imperativo
profissional associado a um processo de generificação da docência.
A partir da pesquisa, concluiu-se que os significados do afeto no
exercício da docência só existem como resultados inacabados de
processos que tratam de nomeá-lo e conformá-lo. Por essa razão,
se for assumida a perspectiva de que os discursos que tomam o
afeto como imperativo docente presentes nos relatórios analisados
são produzidos pelas práticas sociais, pelas relações de poder e
pelo tipo de lógica disciplinar que os operacionaliza, é possível
desnaturalizá-los e reinventá-los, experimentando outros modos de
agir e de pensar o exercício da docência na Educação Infantil.
Palavras-chave
Educação Infantil — Afetos docentes — Discurso — Pedagogia.
I- Universidade Federal da Fronteira
Sul, Erechim, RS, Brasil.
Contato: [email protected]
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 231-246, jan./mar. 2014.
231
The imperative of affect in early childhood education:
the order of discourse of undergraduate education students
Rodrigo Saballa de CarvalhoI
Abstract
This article presents the results of a study that focused on the
problematization of the discourses on teacher affect present in reports
of an internship in early childhood education classes of 30 Education
students nearing graduation. The aim of this paper is to discuss how
discourses on affect become imperatives that invent and regulate the
ways of teaching. The research was based on cultural studies and
the studies developed by Michel Foucault. Its methodology consisted
of Foucauldian discourse analysis, through which regularities and
inflections found in the reports were highlighted. These reports were
written using memory aids such as photos, plans, and other records
of the students. The analysis evidenced the assumption of affection
as a professional imperative associated with a process of gendering
of teaching. From the research, it was concluded that the meanings
of affect in the teaching profession only exist as unfinished results of
processes that deal with naming it and shaping it. For this reason, if
one assumes the perspective that the discourses that take affect as a
teacher imperative, as the ones present in the reports analyzed, are
produced by social practices, by the relations of power and type of
disciplinary logic that operationalizes such discourses, it is possible
to denaturalize them and reinvent them, experimenting with other
ways of acting and thinking of teaching in early childhood education.
Keyword
Early Childhood Education — Teacher affect — Discourse — Pedagogy.
I- Universidade Federal da
Fronteira Sul, Erechim, RS, Brasil.
Contact: [email protected]
232
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 231-246, jan./mar. 2014.
Considerações iniciais
Contemporaneamente, é possível observar
que os discursos sobre a importância do afeto
no processo educativo e da responsabilidade
docente pela promoção de vínculos cada vez
mais estreitos e duradouros com as crianças
se proliferam nas searas educativas, conforme
destaca Alves (2006). A questão afetiva e a
linguagem sentimental, de acordo com Illouz
(2011), ocupam um espaço singular e vêm
adquirindo cada vez mais centralidade na
descrição do cotidiano escolar. A afetividade do
professor é muitas vezes entendida como o único
atributo necessário para o exercício da docência.
Vivencia-se uma espécie de inflação retórica de
discursos sobre o afeto docente pelas crianças
como estratégia infalível para a identificação e a
resolução dos problemas em sala de aula.
A proliferação dos discursos afetivos,
conforme aborda Abramowski (2010), iniciou-se a partir da circulação e da legitimação
científica dos estudos advindos das pedagogias
psicológicas; da comprovação, pelos especialistas
em educação, da suposta falta de afeto das
famílias em relação às crianças; dos estereótipos
emocionais que constituem a definição e a
normatização do perfil esperado de uma boa
professora de Educação Infantil; e do crescente
processo de afetivização da cena contemporânea,
por meio da circulação, cada vez maior, de
reality shows, livros de autoajuda, programas
de entrevistas, entre outras pedagogias culturais
que operam na subjetivação docente.
Desse modo, o presente artigo apresenta
resultados de uma pesquisa que teve como foco
a problematização dos discursos presentes em
relatórios de práticas de estágio realizadas em
turmas de Educação Infantil por acadêmicas
de pedagogia em fase de conclusão do curso. O
campo de estudos no qual se fundamentaram as
análises desenvolvidas foi o dos estudos culturais
e dos estudos desenvolvidos por Michel Foucault.
A metodologia utilizada consistiu na
análise do discurso de inspiração foucaultiana,
por meio da qual foram destacadas as
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 231-246, jan./mar. 2014.
regularidades e inflexões presentes nos discursos
que constavam nos relatórios de estágio
(referentes ao ano de 2011) das 30 participantes
da pesquisa. Os relatórios tinham em média 60
páginas e apresentavam a seguinte estrutura:
a) descrição da instituição; b) apresentação
do projeto de intervenção; c) planejamentos
semanais; d) relatos reflexivos escritos a partir
das práticas desenvolvidas em sala de aula. O
foco de análise foi somente os relatos reflexivos,
escritos pelas acadêmicas com base em
elementos recordatórios, como fotos, anotações
e planejamentos. Com a análise dos dados, foi
possível notar a presença do imperativo do afeto
nos discursos de todos os relatos, configurando
determinadas funções enunciativas e produzindo
regimes de verdade sobre a docência.
Tendo em vista visibilizar os discursos
das acadêmicas sobre a importância do afeto e
evidenciar que eles se valem de um vocabulário
comum e de certas formas de argumentar,
foram selecionadas para análise citações literais
de trechos dos relatos reflexivos. Tais citações
foram escolhidas pelo fato de apresentarem
recorrentemente discursos relacionados ao afeto
no exercício da prática docente. Após a seleção,
os discursos foram organizados em unidades
analíticas: afetos docentes, afetos considerados
politicamente incorretos, mandatos pedagógicos
afetivos e generificação dos afetos. No intuito
de manter o anonimato das participantes, estas
foram nomeadas pela letra A (acadêmica),
seguida pela numeração correspondente de 01 a
30, ao final de cada citação. Sobre a instituição
em que foi realizada a pesquisa, por solicitação,
seu nome será mantido em sigilo. A partir da
exposição da metodologia, cabe reiterar que, nos
discursos analisados, evidenciou-se a assunção
da afetividade como um imperativo profissional
associado a uma generificação da docência.
Na contramão de tais discursos,
entendendo gênero, segundo Scott (1995),
Nicholson (2000) e Meyer (2003), como uma
construção social culturalmente contingente e
não como uma mera concretização de distinção
biológica prévia, é possível dizer que as práticas
233
sociais são constituídas e constituintes de
gênero. Por essa razão, os significados do afeto
no exercício da docência só existem como
resultados inacabados de processos que tratam
de nomeá-lo e conformá-lo. Desse modo,
reconhecer-se como mulher e professora de
Educação Infantil é decorrência de inúmeros
processos educativos. O intuito do artigo é,
assim, problematizar como os discursos sobre
afeto presentes nos relatórios se constituem
enquanto imperativos que inventam e regulam
os modos de exercício profissional das futuras
pedagogas. Nessa perspectiva, o imperativo
do afeto pode ser descrito como o conjunto
de discursos circulantes no meio social que
operam na formação de uma profissional
que entende o afeto (de modo naturalizado)
como condição exclusiva para o exercício da
docência com crianças, deixando em segundo
plano (ou até mesmo desconsiderando) a
formação acadêmica específica para a atuação
em sala de aula e os conhecimentos decorrentes
de pesquisas produzidas na área. Esse
imperativo está implicado no ordenamento da
sala de aula e na autorregulação do trabalho
docente, funcionando dentro de um sistema
de produção e regulação de enunciados que
define seu estatuto de verdade.
O processo de afetivização da docência
também se relaciona com os estereótipos
emocionais definidores das características de
uma boa professora de crianças. Conforme
Abramowski (2010, p. 21), esses estereótipos
prescrevem que “uma boa professora deve ter
vocação pela sua tarefa e ser afetiva, meiga,
simpática, carinhosa, compreensiva com
as crianças”. Tais enunciados evidenciam a
importância concedida ao componente afetivo
como condição imprescindível para o exercício
da docência. A partir dessa lógica, o afeto pelas
crianças é entendido de modo naturalizado,
sendo suprimido seu caráter histórico e
cultural. É como se o afeto pelas crianças fosse
o único motivo para a escolha profissional,
desconsiderando-se completamente o interesse
acadêmico na área.
234
Alves (2006), em pesquisa realizada com
pedagogas atuantes na Educação Infantil sobre
o perfil profissional do educador da infância,
destacou que as entrevistadas argumentavam
que o trabalho que desenvolviam em sala
de aula requeria prioritariamente amor às
crianças e à profissão. O afeto era entendido
como meio desencadeador de outras atitudes
profissionais, como abertura a mudanças,
compromisso, dedicação e responsabilidade. Em
relação aos indicadores que, hipoteticamente,
caracterizariam uma boa professora, as docentes
elencaram simpatia, carinho, paciência,
criatividade, tranquilidade, delicadeza, sutileza
e capacidade de acolhimento às crianças,
atribuindo, novamente, centralidade ao afeto no
exercício qualificado da docência com crianças.
Com base na exposição, cabe esclarecer
os demais conceitos que serão utilizados como
ferramentas analíticas. Entendendo a partir de
Foucault (1995, 2007) a centralidade da linguagem
e da cultura na constituição dos sujeitos, podese dizer que os relatórios que compõem o
corpus analítico da pesquisa serão examinados
como discursos que procuram instituir e fixar
determinados modos de exercício da docência
na Educação Infantil. O discurso, em uma
perspectiva foucaultiana, é considerado como
mais do que uma simples representação, porque
a linguagem é entendida como subsidiadora das
categorias pelas quais os indivíduos nomeiam
e agem no mundo, sendo, portanto, produtora
de sentidos e significados que não preexistem
às práticas discursivas. O discurso é concebido
como uma prática (ou, ainda, um conjunto de
práticas) que define e produz os objetos dos
quais trata. Os relatórios dos estágios são vistos,
nesse âmbito, como discursos que assumem
forma, ordem e coerência por meio de uma
linguagem comum, que opera sempre de
modo microfísico, sutil, retórico e persuasivo,
atualizando-se por meio de um sistema de
remissões. Isso quer dizer que tais discursos
são decorrentes de múltiplas combinações,
interdições e atravessamentos de outros ditos,
que os inscrevem em determinada ordem.
Rodrigo Saballa de CARVALHO. O imperativo do afeto na educação infantil: a ordem do discurso de pedagogas...
Os significados a respeito do afeto no exercício da docência presentes nos escritos analisados não existem independentemente da ordem
discursiva em que se encontram inscritos. Os registros evidenciam a presença de múltiplas vozes.
Em todos os discursos enunciados nos relatórios,
existem outras vozes a quem as acadêmicas se
dirigem, outras vozes a quem se referem, outras
vozes que falam em seus escritos. Em relação à
consideração exposta, Arfuch (2010, p. 184) a
ratifica, declarando que sempre há outras vozes
que habitam os discursos – “a da tradição, da cultura, do senso comum: valorações, crenças, verdades aceitas que são assumidas como próprias,
nas quais se imprime o selo afetivo”. Reiterando
o argumento apresentado, Foucault (1995, p. 8-9)
afirma que a produção dos discursos: “ é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e
redistribuída por certo número de procedimentos
que tem por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório” e afastar sua pesada e terrível materialidade.
A partir de sua circulação, os discursos
promovem e instituem sentidos no social que
incidem diretamente no processo de constituição dos indivíduos enquanto docentes e em
suas concepções sobre a profissão. Nesse âmbito, as acadêmicas posicionam-se e são posicionadas no interior de certas regras, por meio das
quais podem vir a conduzir os outros e a si mesmas, partindo do que estabelecem como sendo
o exercício adequado da docência e o perfil da
boa professora de Educação Infantil. Ao definirem o imperativo do afeto como o modo correto
de ser e de agir com as crianças, as acadêmicas
determinam um campo possível para suas ações
e formas de ser enquanto professoras.
No intuito de visibilizar as estratégias
discursivas presentes nos relatórios, na próxima
seção serão apresentadas as análises referentes
à temática dos afetos docentes.
Afetos docentes
É importante esclarecer que as discussões a serem expostas não tratam da oposição
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 231-246, jan./mar. 2014.
entre ser ou não um professor afetivo com as
crianças, mas focalizam a primazia dos discursos sobre a afetividade no exercício da docência
na Educação Infantil. Os discursos sobre afeto
docente enunciados na pesquisa se relacionam
com uma ampla rede discursiva histórica e cultural que posiciona as acadêmicas dentro de um
regime de verdade em que ser afetiva é condição para o alcance do reconhecimento e da
realização profissional. Esse regime de verdade
institui o imperativo do afeto como condição
exclusiva para o exercício profissional, operacionalizando um processo de subjetivação da
acadêmica. Por meio de um autoexame contínuo, a acadêmica é produzida (e se produz),
transformando suas maneiras de ser e de agir
em relação ao trabalho e a si própria com vistas
a tornar-se afetiva, como pode ser notado no
excerto do relatório apresentado a seguir.
Durante minha prática de estágio na
Educação Infantil, tive ainda mais certeza de
que precisamos amar nossas crianças para
ensinar, respeitando suas especificidades.
A aprendizagem é uma consequência do
carinho que demonstramos por elas. Através
da convivência, acabamos gostando até
das crianças mais terríveis, pois temos que
aprender a lidar com todas sem exceção.
Não é tarefa fácil, mas quem disse que é
fácil ser professora? É uma diversidade
enorme dentro da sala de aula e por isso é
importante sabermos lidar de modo afetivo
com todas as crianças para que todas
possam aprender. (Transcrição de excerto de
relatório de estágio A16).
Pelo exposto, é possível observar o modo
como a acadêmica regula seu próprio discurso a
partir da rede de práticas na qual se encontra inscrita, como jovem, branca, mulher, trabalhadora
etc. Lidar com todas as crianças é um aprendizado
e se constitui um desafio para quem assume a docência – pois quem disse que é fácil ser professora? É preciso aprender a lidar com a diversidade
de crianças para que todas possam aprender.
235
Ratificando a análise desenvolvida,
é importante destacar o dito por Foucault
(2005, p. 35), que afirma: é “sempre possível
dizer o verdadeiro no espaço de uma exterioridade selvagem, mas o indivíduo não se
encontra no verdadeiro senão obedecendo as
regras de uma polícia discursiva” reativada
sempre em cada um dos discursos enunciados
pelos indivíduos. Eis o imperativo do afeto
fazendo-se presente nas considerações. Na
contramão dos discursos pedagógicos de ordem moral que definem o afeto como algo
natural, o estabelecimento de vínculos afetivos com as crianças é uma prática desenvolvida no interior da cultura (via escolarização, formação docente, exercício profissional,
pedagogias culturais que instituem e fazem
circular discursos generificados sobre a docência, a aprendizagem, o trabalho pedagógico etc.) e, portanto, contingente e sujeito
a múltiplas significações pelos indivíduos.
Isso quer dizer que não se nega a importância do afeto nos processos de ensino e de
aprendizagem, mas apenas se problematiza
a naturalidade dos modos como os vínculos estabelecidos entre docentes e crianças
na Educação Infantil têm sido enunciados
de forma naturalizada no meio social como
atributos da ordem do coração.
Abramowski (2010, p. 33) destaca que “os
afetos que os indivíduos sentem não ocorrem
de modo natural, não brotam de dentro para
fora, não nascem do coração e muito menos das
entranhas” dos professores. Os afetos, em todas as suas variantes, não são puros, naturais,
espontâneos, instintivos, universais, eternos,
nem imutáveis. Portanto, pode-se depreender
que eles são históricos, cambiantes, construídos
e aprendidos diariamente nas relações estabelecidas pela professora no contexto da sala de
aula, ao educar, cuidar e brincar com as crianças, respeitando-as como sujeitos de direitos e
produtoras de culturas infantis.
Assumindo essa contingência dos
afetos docentes, é oportuno explorar a origem
etimológica da palavra afeto. Etimologicamente,
236
tal vocábulo origina-se de afecção, que tem
o sentido de ser afetado, sofrer uma ação, ser
influenciado ou modificado por uma ação. Nessa
perspectiva, os afetos podem ser conceituados
como as formas pelas quais os professores
sentem, percebem, agem e expressam seus
sentimentos em relação às crianças e ao
trabalho que desenvolvem.
Por essa razão, o conceito de afetos
docentes, segundo Abramowski (2010), contempla
uma variedade de sentimentos vivenciados pelo
professor em seu fazer profissional. Nessas
experiências, estão incluídos tanto os sentimentos
de amor, carinho, atenção e dedicação, como
os de cansaço, angústia, aflição e raiva. Os
afetos docentes não se restringem somente
ao amor – palavra enunciada repetidamente
na pesquisa. Os afetos incluem também os
sentimentos
considerados
politicamente
incorretos, que geralmente são interditados na
ordem do discurso docente, conforme afirma a
referida autora. Nesse sentido, ser um professor
que realiza a mediação da aprendizagem dos
alunos a partir do estabelecimento de vínculos
afetivos é muitas vezes considerado – no meio
educacional – o único indicador de qualidade do
ofício profissional. Irritação, decepção, cansaço,
falta de paciência, tristeza, mau humor, entre
outros sentimentos, são vistos como déficit
de competência emocional e profissional do
professor, que sozinho deve procurar a solução
para o problema. É possível perceber uma
regulação marcante dos discursos dos docentes
em relação ao que sentem por seus alunos e sua
profissão, já que eles se encontram no âmbito da
ordem do discurso afetivo.
Com base nessa linha argumentativa,
serão apresentados e discutidos, na próxima
seção, os afetos considerados politicamente
incorretos1 e seus efeitos no processo de
subjetivação docente.
1- Expressão utilizada por Abramowski (2010) quando se refere, em sua
pesquisa, aos sentimentos geralmente interditados nos discursos dos
professores (cansaço, angústia, insatisfação etc.) em relação ao trabalho
docente com as crianças.
Rodrigo Saballa de CARVALHO. O imperativo do afeto na educação infantil: a ordem do discurso de pedagogas...
Afetos considerados
politicamente incorretos
O professor é um indivíduo deste
mundo e, como tal, encontra-se suscetível aos
sentimentos de irritação, angústia, desespero,
insatisfação, cansaço, entre outras tantas
sensações que poderiam ser elencadas. Ele
aprende a controlar o livre fluir de seus próprios
sentimentos e estados de ânimo a partir de um
longo processo de disciplinamento e correlato
aprendizado de autogoverno, que se inicia na
família e se estende pela escolarização e pelo
convívio social nas demais instituições. Esse
autogoverno é de suma importância para que
ele possa lidar cotidianamente com as crianças,
já que o trabalho na Educação Infantil, além de
pedagógico, é também relacional.
O que faz com que o professor se
controle é o fato de que ele, conforme afirma
Abramowski (2010, p. 63), “não tem via livre
para sentir qualquer coisa”. Ao entrevistar
professores argentinos que atuavam na
escolarização inicial, a autora percebeu que
eles apresentavam dificuldade para expressar
os sentimentos politicamente incorretos que
sentiam em relação aos alunos e à profissão. Ao
tratarem de tais sentimentos, os respondentes da
pesquisa enfatizavam que, mesmo não gostando
de determinadas crianças ou de situações
ocorridas na escola, tinham a obrigação de
controlar as palavras, dominar os instintos e
metabolizar a raiva, pois os maus sentimentos
não deveriam ser expressos nem em reuniões
com a equipe gestora das instituições.
Embora, nas entrevistas com os
professores, esses sentimentos sejam muitas
vezes regulados, controlados e até mesmo
excluídos dos discursos por não condizerem com
as expectativas sociais que historicamente se têm
em relação ao professor da Educação Infantil, é
consenso que eles existem. Porém, é preciso que
esses sentimentos sejam enunciados e discutidos
no âmbito da formação acadêmica e também no
espaço de atuação profissional. Mediante um
processo de reflexão com os pares, o profissional
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 231-246, jan./mar. 2014.
terá a possibilidade de evidenciar os fatores
atuantes no processo de constituição de seu
desgaste, buscando auxílio para a resolução dos
problemas apresentados e para a construção de
estratégias com vistas à qualificação das relações
estabelecidas com as crianças.
Corroborando esse argumento, é relevante apresentar o excerto de um relatório em
que a acadêmica enfatiza:
[...] aprendi a lidar com as minhas emoções,
pois, muitas vezes, perdi o controle e, dessa
forma, acabei errando com as crianças.
Uma professora de Educação Infantil
jamais deve perder a calma e a paciência.
(Transcrição de excerto de relatório de
estágio A24)
É possível perceber a regulação do
discurso sobre o afeto por meio de técnicas de
conhecimento e controle de si que influenciam
diretamente o modo como a acadêmica enuncia
o que sente. Por outro lado, ao entrar na ordem
do discurso que sustenta o imperativo do afeto,
ela acaba muitas vezes desenvolvendo os
sentimentos de culpa e má consciência, por nem
sempre conseguir atender de forma solitária a
todas as demandas afetivas contemporaneamente
apresentadas pelas instituições escolares. Pode-se
dizer que esses sentimentos passam a perturbar,
atormentar e angustiar a futura professora,
tornando-a presa aos seus próprios pensamentos:
Por mais que eu tente, nem sempre consigo
atender às demandas afetivas de todas as
crianças, pois existem muitas demandas.
Fico angustiada, pois sei que a base de
tudo é o carinho. (Transcrição de excerto
de relatório de estágio A28)
Segundo Foucault (2003), essas relações
de poder, produtoras da culpa e da má consciência, não definem o que é a estagiária em
sua interioridade, mas procuram normalizá-la,
no sentido de que ela assuma, cada vez mais, o
repertório de características que historicamente
237
foi definido como parte de sua profissão. No
limite, trata-se de relações de poder que circulam microfisicamente via uma rede de discursos
variados por todo o tecido social, produzindo,
assim, a figura da docente afetiva.
Prosseguindo a discussão, na próxima seção serão discutidos os mandatos afetivos e o processo de subjetivação docente por eles operado.
Mandatos pedagógicos afetivos
Apesar de ter observado durante meu
estágio na Educação Infantil professores
que não preparam aulas, não pesquisam
e nem demonstram um mínimo de amor
por seus alunos, acredito que a educação
pode melhorar muito. É preciso ser um
professor afetivo e dedicado para que
realmente a mudança ocorra em sala de
aula. (Transcrição de excerto de relatório
de estágio A28)
Percebi durante a minha prática em sala de
aula com as crianças da Educação Infantil
o quanto minhas atitudes marcam meus
alunos. Procuro ser cuidadosa em tudo que
falo e afetuosa em todas as minhas ações
em sala de aula. (Transcrição de excerto de
relatório de estágio A12)
Como consequência dos excertos
apresentados, o professor se tornou merecedor
de toda uma ortopedia discursiva que o incita
a enunciar repetidamente a importância do
afeto em sua profissão. Assim, estabelecem-se,
de forma vertiginosa, publicações, palestras,
entrevistas, vídeos e cursos de formação
continuada que prescrevem procedimentos
eficazes para o professor de Educação Infantil
atingir sucesso no ensino a partir da criação e da
manutenção de laços afetivos com as crianças.
Trata-se de um investimento estratégico que
inclui o docente em processos correlatos
de autoavaliação e autorreconhecimento,
capturando-o e moldando-o de modo que
ele se reconheça e seja reconhecido como
238
um profissional afetivo, que, por ter amor à
profissão, não precisa reivindicar melhores
condições de trabalho e remuneração financeira.
Esse argumento é ratificado pelos estudos
de Abramowski (2010, p. 166), que afirma que
os professores, tanto na formação inicial quanto no decorrer de suas práticas, “são subsidiados
por discursos que ensinam a ser afetivo”, pois se
aprende a gostar dos alunos por meio de um longo processo. A ordem do discurso afetivo docente
não tem como função apenas disciplinar, normalizar e interditar, mas também tem o propósito de
intensificar a relação que o professor estabelece
consigo no intuito de promover transformações
em sua subjetividade. Por essa razão, é importante destacar a afirmação de Garcia (2002, p.
31) de que o modo como o professor se vê e se
pensa, “bem como procura moldar sua conduta,
é produto de práticas sociais particulares”.
A subjetividade do professor é objeto de
poder, é produto de maquinações, de saberes e
técnicas que o incluem ativamente em um campo
de visibilidade, atribuindo-lhe certo padrão de
comportamento. O professor afetivo é produzido
por determinadas práticas que o incitam a se
reconhecer, a falar sobre si mesmo e a se tomar
sob sua própria responsabilidade em um processo
de autoavaliação permanente. A subjetividade
decorrente desse processo pode ser considerada
antes uma norma do que um dado natural. Isso
ocorre porque a docência na Educação Infantil
se torna alvo de uma rede de discursos que
explicam, detalham, objetivam, tornam visíveis
e passíveis de enunciação determinadas formas
de se experienciar o afeto pelas crianças. Como
pode ser percebido, opera-se uma condução do
comportamento docente que não se caracteriza
pela imposição, pela repressão ou pela ação de
uma autoridade externa, mas, sutilmente, pelo
modo como a acadêmica procura direcionar
suas ações, tomando como referência a rede de
discursos na qual se encontra inscrita.
Gostei muito da prática realizada na
Educação Infantil, pois me propiciou
vivenciar a rotina de uma sala de aula e
Rodrigo Saballa de CARVALHO. O imperativo do afeto na educação infantil: a ordem do discurso de pedagogas...
percebi que tenho paciência e carinho para
lidar com as crianças. Soube me portar com
certa desenvoltura e intimidade com os
alunos, soube respeitar as especificidades
de cada aluno. Acho que tenho condições
de ser uma boa professora. (Transcrição de
excerto de relatório de estágio A14)
Em relação a esse excerto, é importante
destacar duas considerações analíticas. A
primeira diz respeito ao acento eminentemente
moral e prescritivo nele presente. A acadêmica
precisa dizer a verdade acerca de si própria,
confessar-se, examinar-se e reconhecer-se
como uma professora afetiva. Ela precisa se
afirmar enquanto profissional por meio do
testemunho público de suas próprias ações. Para
tanto, necessita definir indicadores avaliativos
que sejam devidamente reconhecidos no
âmbito educacional, indicadores relacionados
ao campo afetivo, como paciência, carinho,
desenvoltura, intimidade e respeito aos alunos,
os quais possibilitam validar sua própria atuação
docente e ratificar o sucesso das propostas
desenvolvidas em sala de aula. Além da
definição de indicadores, ela precisa estabelecer
certa hierarquia entre eles. Paciência e carinho
assumem o primeiro plano, compondo, com
os demais aspectos citados, um vocabulário.
Esse processo de escrutínio do eu não é algo
natural, mas um empreendimento produtivo no
qual concorrem diferentes práticas sociais que
tornam a docente (auto)governável e cada vez
mais identificada com o imperativo do afeto.
Quanto à segunda consideração analítica, observa-se o evidente atravessamento operado pelos estudos da psicologia no discurso em
questão quando a acadêmica afirma que, em
sua prática, soube respeitar as especificidades
de cada um de seus alunos. Destaca-se, assim,
conforme os estudos de Burman (1998), a relevância concedida ao relacional como traço
emergente das teorizações psicológicas. É evidente a importância das questões relacionais no
que diz respeito ao processo de ensino e aprendizagem; porém, muitas vezes, com base em
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 231-246, jan./mar. 2014.
leituras superficiais dos estudos decorrentes da
psicologia, as acadêmicas acabam esquecendo
a intencionalidade pedagógica de suas práticas.
Por essa razão, é importante que o afeto seja
pensado no contexto do trabalho pedagógico,
articulado com as relações de cuidado, educação e ludicidade que são estabelecidas com as
crianças no espaço institucional.
Análises sobre práticas pedagógicas
desenvolvidas por Bujes (2009) e Walkerdine
(1998) acentuam o quanto professores e acadêmicos, a partir de entendimentos equivocados,
têm percebido a pedagogia como uma psicologia aplicada. A psicologia, nesse caso, torna-se
o centro de produção de verdade sobre o aluno
e a docência. Isso não significa que a psicologia
sirva a propósitos de manipulação dos professores e nem que esse campo possua um discurso
considerado homogêneo. O que se tem evidenciado é o modo equivocado como, muitas vezes,
as teorizações de tal campo são apropriadas pelas acadêmicas, partindo da enunciação de jargões que, em muitos casos, não se relacionam
com o trabalho pedagógico efetivo em sala de
aula. Ainda a esse respeito, destaca-se a seguinte transcrição de outro excerto:
Tentei ser lúdica, teórica e afetiva ao mesmo
tempo. Gostei do desafio e me diverti muito
mais do que as crianças enquanto aprendi e
descobri como ser professora de Educação
Infantil. Vi na sala de aula uma troca muito
grande de amizade e carinho. (Transcrição
de excerto de relatório de estágio A20)
Como consequência das considerações e
dos posicionamentos expressos nos relatórios
apresentados, é importante acompanhar
Abramowski (2010) quando argumenta que,
anteriormente, apelava-se para a autoridade
do professor; hoje, insiste-se cada vez mais em
conhecer profundamente o aluno e em gerar
vínculos afetivos estreitos e duradouros com
ele, deixando em segundo plano a relação
afetiva estabelecida no contexto de ensino.
Pode-se dizer que é na produção da subjetividade
239
docente que o governamento se operacionaliza,
já que a autoridade pedagógica passa a ser
fundamentada em leituras (muitas vezes)
superficiais da psicologia enquanto campo do
saber. Referido de outro modo, mais do que a
aplicação dos saberes da psicologia, a formação
docente torna-se o lugar de difusão desse saber,
de forma fragmentada e frequentemente sem
articulação com o trabalho desenvolvido.
Corroborando os argumentos, a seguir
será apresentada uma sequência de excertos do
material produzido em que as acadêmicas evidenciam a satisfação que sentem em terem seu
trabalho recompensado pelo afeto demonstrado
pelas crianças com as quais atuam.
um colchão, abriu o sorriso mais encantador
que já vi e simplesmente disse: “Oi!”. Nesse
momento, percebi que, mesmo que não
fosse bem aceita pela equipe de educadoras,
eu consegui conquistar instantaneamente
o carinho de uma menina, que, após sorrir,
se levantou, correu até mim e me abraçou.
Logo em seguida, os bebês foram acordando
pouco a pouco, pegando seus sapatinhos e
trazendo para que eu os colocasse. A cada
vez que terminava de calçá-los, cada um
me agradecia com os melhores presentes:
um sorriso encantador, um abraço apertado
ou um beijinho. (Transcrição de excerto de
relatório de estágio A26)
Semana de observação da prática de
Educação Infantil. Sexta-feira – último dia
de observação em uma turma de 5 anos
de idade. Turma com 22 alunos. Um aluno
tem diagnóstico médico de problemas
neurológicos. Percebo que ele precisa de
ajuda. Pego uma cadeira e sento ao seu
lado. Passo a tarde inteira auxiliando-o
e, diferentemente dos outros dias, ele
consegue realizar pela primeira vez
todas as atividades. No final da aula, ele
me desenha em seu caderno. Saio muito
feliz e com muita vontade de voltar, pois
percebi que estabeleci um laço afetivo
com a criança. (Transcrição de excerto de
relatório de estágio A05)
Como tenho um jeito meio moleca de ser,
acho que isso faz com que as crianças
criem vínculos afetivos comigo mais
rapidamente. Já fui bruxa, gato, coelho,
noiva de festa junina – e adoro isso,
poder ser diferentes pessoas e ver a alegria
estampada em cada rostinho. (Transcrição
de excerto de relatório de estágio A01)
Entrei na sala do berçário no horário de
descanso, quando estavam todos com seus
bicos e cheirinhos, dormindo. Comecei a
conversar com as educadoras sobre a rotina,
para poder me situar quanto aos horários das
crianças. Enquanto a conversa transcorria,
uma das educadoras precisou ausentar-se da
sala para ir ao banheiro. Ficamos eu e outra
estagiária cobrindo as crianças que haviam
chutado seus cobertores durante o sono. Ao
terminarmos isso, sentamos em um sofá
para retomarmos a conversa, quando uma
menina acordou. A menina sentou-se em
240
Como docente em formação, posso sentir,
a partir das práticas realizadas, o carinho e
a admiração por parte das crianças. Como
é recompensador saber que elas procuram
o meu abraço, minha atenção e que sou
amada por elas. Sinto-me realizada em
receber o amor das crianças. (Transcrição
de excerto de relatório de estágio A17)
Na verdade, ser professora é algo que ainda
não sei expressar em palavras, é algo que
sinto, penso, desejo quando estou frente aos
bebês do meu estágio, estejam eles sorrindo,
chorando, dormindo ou comendo. É algo
que acontece e só depois é que consigo,
talvez, pensar sobre. O que sei é que fico
muito contente quando percebo que os bebês
retribuem através do afeto todo o empenho
e dedicação que tenho com eles durante as
horas que passamos juntos. (Transcrição de
excerto de relatório de estágio A21)
Rodrigo Saballa de CARVALHO. O imperativo do afeto na educação infantil: a ordem do discurso de pedagogas...
A leitura possibilita enfatizar que, no
entendimento das acadêmicas, o envolvimento afetivo com as crianças, além de influenciar
diretamente o processo de ensino e aprendizagem, também é motivo de satisfação para elas.
Em tal situação, a professora que não estabelece
vínculos afetivos (entendidos, nesse caso, como
beijos, abraços e afagos) com as crianças não é
reconhecida como uma profissional qualificada.
Percebe-se, então, a eficácia da rede de discursos
que sustenta o imperativo do afeto, operando na
mobilização da subjetividade das professoras em
formação. Em outras palavras, os discursos que
sustentam e incitam a produção da professora
afetiva, ao descrevê-la e reconhecê-la somente por esse valor, buscam modos de condução
desta. Tomando como referência as discussões
desenvolvidas, é possível observar um produtivo
processo de subjetivação, no qual o docente, ao
ser constituído como objeto do discurso afetivo
relacionado ao ensino, passa a ser caracterizado,
classificado e identificado a partir de um sistema
de normas sociais moralizantes que procuram
enquadrá-lo dentro de uma média ou como um
desvio a ser devidamente corrigido.
A esse respeito, conforme declara
Badinter (1985, p. 15-16), deve-se sempre
lembrar que o afeto “no reino humano não
é apenas uma norma – pois nele intervêm
numerosos fatores [discursos de diferentes
ordens]”. O afeto, segundo a referida autora, é
apenas um sentimento humano, incerto, frágil,
imperfeito e constituído no âmbito da cultura e
das relações estabelecidas entre os indivíduos,
não estando inscrito em suas naturezas. É um
sentimento que pode existir ou não, aparecer e
desaparecer, pois não é inerente à docência na
Educação Infantil, mas adicional a ela por ser
uma profissão relacional. Portanto, o processo
de subjetivação do docente afetivo é efeito
de uma produtiva rede de discursos que, ao
descreverem, analisarem e narrarem o professor
enquanto objeto de saber, subjetivam-no.
Prosseguindo com essa discussão, na
próxima seção será abordado o processo de generificação dos afetos.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 231-246, jan./mar. 2014.
A generificação dos afetos
Lembro-me bem: “se não se comportar
vai para a creche”; “coitada, não tem
onde deixar os filhos e teve que colocar
na creche” – falas de minha avó materna.
Uma bagagem que carreguei, uma
verdade desconfiada. Será que é tão ruim
assim? Questionava-me. Na primeira
experiência como estagiária de Pedagogia,
a coordenadora me perguntou: “Tu já és
mãe?”; “Sim.”; “Ótimo, pois preciso para
o estágio no berçário de alguém com
experiência. As outras acadêmicas que
vieram não eram mães. Somente uma mãe
é capaz de cuidar bem de uma criança, pois
entende realmente as suas necessidades de
carinho, alimentação e higiene”. Chego na
sala e observo: quatro bebês nos berços,
três nos carrinhos. Pensei: “Como minha
avó falou!”. (Transcrição de excerto de
relatório de estágio A30)
Badinter (1985, p. 9) afirma que a
maternidade ainda hoje é um tema sagrado e que,
por essa razão, “continua sendo difícil questionar
o amor materno, já que a mãe permanece em
nossas representações – identificada a Maria,
símbolo do indefectível amor oblativo”. Tomando
como referência essas observações, é possível
pensar nas relações que ainda são estabelecidas
entre maternagem e docência na Educação
Infantil, assim como nos efeitos desse processo
na invenção, na circulação e na manutenção
de mandatos pedagógicos afetivos. Ser mãe foi
o único critério utilizado para a aceitação da
estagiária em uma turma de berçário, conforme
consta no excerto.
É consenso que o trabalho com as crianças que se encontram na Educação Infantil (e
também com as demais) envolve afeto, cuidado
e educação (quanto aos aspectos relacionais de
escuta, diálogo, atenção, respeito e acolhida);
todavia, ser mãe não pode ser considerado critério indefectível para a definição da turma de
uma estagiária, já que a maternagem, aliada ao
241
propósito educativo, pode ser realizada independentemente de o profissional ser homem ou
mulher, ter ou não filhos. O que é necessário
é que essa pessoa esteja disposta a atender às
demandas referentes à faixa etária das crianças
com quem atua, tendo conhecimento teórico e
empatia com o trabalho que realiza.
A diferença fundamental é que a
maternagem exercida por um profissional de
Educação Infantil deve estar associada a um
projeto educativo que lhe possibilite refletir
sobre as práticas por ele exercidas, tendo em
vista a produção de sua própria docência –
sem se rotular com etiquetas de feminilidade,
afetuosidade, calma, paciência, subserviência,
entre outros tantos vocábulos usados de
modo excessivo nos discursos escolares. O
campo da docência com crianças pequenas é
profundamente atravessado pela generificação
dos afetos e muitas vezes assumido pelas próprias
professoras como um trabalho exclusivamente
feminino. Conforme refere Carvalho (1999, p.
215), no momento em que “um homem ou uma
mulher decidem ser professores, devem lidar de
alguma forma com o fato de que a docência
junto a crianças foi historicamente associada
a um modelo de feminilidade”, devido ao seu
caráter relacional e por evocar as relações de
cuidado no interior da família.
Tais discussões têm a intenção de
destacar que a vinculação entre maternagem e
docência, por seu caráter cultural e simbólico,
vem historicamente produzindo uma concepção
naturalizada da relação entre mulher e afetividade
que incide diretamente no modo como o docente
se reconhece (e é reconhecido) e se posiciona
(e é posicionado) como profissional que ensina
crianças na escola. É possível dizer que, na
Educação Infantil, existe o estabelecimento
de uma notável relação entre maternagem e
docência. Especificamente no que concerne ao
trabalho nesse nível de ensino, a relação entre
maternagem e docência é ainda mais visível,
devido ao grande número de mulheres atuando
como professoras, funcionárias e gestoras das
instituições, ao predomínio de modos femininos
242
de relacionamento entre elas e às práticas de
cuidado realizadas cotidianamente, utilizando
objetos relacionados ao contexto doméstico, que
ajudam a confirmar a existência de um espaço
no qual estão presentes ações socialmente
reconhecidas como femininas e domésticas.
A imagem modelar da professora
naturalmente afetiva e materna ainda se encontra
fortemente marcada pelo mito da maternidade –
da mulher como sendo instintivamente carinhosa,
paciente, dedicada, perspicaz, dinâmica e
educadora nata –, cujo papel é associado
diretamente ao trabalho doméstico de organização
do lar, cuidado e educação das crianças pequenas.
Em suma, conforme Arce (2001, p. 182), nota-se
que essa situação vem se repetindo historicamente,
porque, “a todo o momento, tem-se reforçado a
imagem da professora de crianças como sendo
uma educadora nata, passiva, paciente, amorosa,
dedicada” e guiada, exclusivamente, pela ordem
do coração, em detrimento de sua formação
profissional. Ratificando tais colocações, a
seguir serão apresentados excertos de relatórios
analisados nos quais as acadêmicas se identificam
e se descrevem enquanto signatárias do imperativo
materno-afetivo.
Eu sou uma professora paciente, amorosa,
carinhosa, respeitosa, sempre pronta a parar
tudo e escutar a fala de todos os meus alunos.
Professora que encanta, que conta histórias,
que faz caretas, que brinca. Professora que
erra, mas assume seus erros e que, errando,
também aprende. (Transcrição de excerto de
relatório de estágio A02)
Disposta, interessada, afetuosa, paciente,
engajada, respeitosa, sonhadora, realista,
ouvinte, falante, observadora, participante
e atenta – assim me vejo como professora.
(Transcrição de excerto de relatório de
estágio A11)
Pelas práticas que realizei em sala de
aula, me vejo como uma professora que
transmite afeto e emoção em todos os
Rodrigo Saballa de CARVALHO. O imperativo do afeto na educação infantil: a ordem do discurso de pedagogas...
seus atos, respeitando a singularidade dos
sentimentos demonstrados pelas crianças
na sala de aula. (Transcrição de excerto de
relatório de estágio A25)
Nos momentos em que estive até então atuando na Educação Infantil, sempre procurei ser afetuosa e conhecedora dos anseios
e das necessidades das crianças. A partir
do afeto e do conhecimento das necessidades delas, passei a atuar de forma coerente
e respeitosa, buscando a valorização das
contribuições de tudo que minha turma
trazia para a sala de aula. (Transcrição de
excerto de relatório de estágio A18)
Relacionar a teoria com uma prática
sempre é a minha meta; porém, valorizo
muito as questões afetivas em sala de
aula, principalmente na Educação Infantil.
(Transcrição de excerto de relatório de
estágio A03)
Enquanto mudo diariamente, as crianças
são as minhas principais interlocutoras,
pois, com sensibilidade e flexibilidade, elas
me possibilitam criar novas estratégias.
Sou uma professora atenta, paciente e
muito carinhosa com as crianças, pois o
amor vem sempre em primeiro lugar na
Educação Infantil. (Transcrição de excerto
de relatório de estágio A23)
A leitura possibilita destacar a presença
de uma regularidade discursiva em que é evidente uma listagem de características materno-afetivas com as quais se identificam e se descrevem
as acadêmicas enquanto futuras professoras. Ao
se descreverem como professoras afetivas, as
acadêmicas estão falando com base em um regime de verdade imerso em regras de formações
discursivas historicamente construídas. Não são
indivíduos autônomos que se descrevem como
afetivos, mas indivíduos que assumem determinada posição na ordem do discurso e, nessa ordem, submetem-se a certas regras.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 231-246, jan./mar. 2014.
Por sua vez, a tônica das regras decorrentes dos discursos em questão é a de que, para ensinar, é preciso conhecer e amar os alunos, respeitando as necessidades de todos. Abramowski
(2010, p. 158) afirma que “os discursos da psicologia ditam aos que querem ser bons professores
que eles devem estabelecer vínculos próximos e
íntimos com seus alunos”, conhecendo-os como
pessoas individuais, pois uma boa pedagogia será
necessariamente relacional. Na medida em que,
cotidianamente, tais discursos se tornam visíveis
e enunciáveis, as características elencadas pelas
acadêmicas passam a constituir-se em práticas
bastante concretas, que operam efetivamente em
sua normalização.
As características da professora afetiva
que foram apresentadas nos discursos como supostamente naturais, constitutivas e intrínsecas
ao fazer profissional das acadêmicas são efeitos
de aparatos discursivos e linguísticos que assim
as constituíram. A acadêmica, futura professora
afetiva, longe de se configurar como uma essência universal e atemporal, é aquilo que foi (e é)
feito dela, já que sua descrição naturalizada coloca em segundo plano seu processo de fabricação.
Em outras palavras, reconhecer-se e descrever-se como uma profissional afetiva implica cuidar
do próprio eu, ajustar-se ao exterior, oferecer-se
como um repertório de verdades que, ao serem
aprendidas e progressivamente operacionalizadas,
inventam uma professora com certo modo de ser
e certa maneira visível de agir com as crianças
que se encontram sob sua responsabilidade.
Segundo essa lógica, tomando como referência os discursos analisados, depreende-se
que o docente afetivo se reconhece e se descreve a partir de um vocabulário comum, marcado
pelo afeto (no sentido de carinho) que sente em
relação aos alunos. O vocabulário com o qual as
acadêmicas se descrevem faz parte do processo
de sua subjetivação e incide no que elas são e
no que podem se tornar enquanto profissionais
que exercem a docência com crianças. Por outro lado, é preciso esclarecer que esse processo,
por ser microfísico, não ocorre com todas as
acadêmicas do mesmo modo, pois é organizado
243
com base em práticas sociais constituídas em
relações de desigualdade, de poder e de controle, sempre passíveis de resistência.
Os discursos que referendam e prescrevem
a formação da professora afetiva decorrentes dos
estudos da psicologia das relações humanas e de
suas adaptações por meio de livros de autoajuda
para docentes, conforme aponta Burman (1998),
têm encontrado cada vez mais repercussão e
adesão de acadêmicos e professores que estão
atuando nas escolas. Como pôde ser observado
no decorrer das análises, os discursos afetivos são
constituídos por um regime de verdade no qual
se intensifica o argumento de que, para ensinar,
é preciso amar os alunos e que, para amálos, é necessário desenvolver determinadas
competências vinculadas diretamente ao
campo emocional.
Referendando tais assertivas, Abramowski
(2010, p. 158) afirma que os professores por
ela entrevistados destacaram “que atualmente
um bom professor deve ter conhecimentos de
psicologia, deve ser um profissional flexível,
comunicativo, paciente, ouvinte, respeitoso,
empático e tolerante com todos os seus alunos”.
Em outras palavras, um bom profissional
deve
possuir
competência
emocional.
Segundo Illouz (2011), a competência
emocional, atualmente, é considerada moeda
imprescindível para atuar nas instituições. A
partir do desmantelamento das antigas regras
institucionais, os profissionais devem apelar ao
afeto para construírem vínculos que antes já
vinham estruturados. Tomando como referência
as observações da autora, o imperativo do afeto
tem se transmutado contemporaneamente em
competência emocional, que o trabalhador
deve desenvolver por meio da condução de si
mesmo a fim de ser considerado um indivíduo
supostamente eficaz, produtivo e bem-sucedido.
Considerações finais
A rede de discursos que opera na produção da professora afetiva constitui um conjunto
de práticas que indica as formas a partir das
244
quais as acadêmicas devem direcionar e moldar
a conduta de si e dos outros, conforme pode ser
acompanhado no excerto a seguir:
Serei uma professora que abrirá muitas
portas para que as crianças conheçam e
descubram o mundo. Serei uma líder que
compreenderá as crianças, que saberá
ouvir e falar, que conhecerá seus alunos.
Serei como a pastora de um rebanho de
ovelhas, não para prendê-las ou limitálas, mas para orientá-las para que saiam,
um dia, mundo afora e descubram seus
próprios caminhos. Serei uma professora
que saberá cuidar de forma afetiva e
estimulante. Enfim, serei educadora e
mestra. Terei mais que um emprego. Terei
uma profissão que gratifica, apaixona,
enlouquece, cansa, ensina, envolve e
acima de tudo realiza. (Transcrição de
excerto de relatório de estágio A14)
Líder, pastora, educadora e mestra –
enfim, uma professora modelar constituída
pelos discursos afetivos. É preciso esclarecer,
a partir de Foucault (2003), que não existe
algo (ou alguém) que seja responsável pela
produção e circulação dos discursos afetivos
(ou de quaisquer outros), senão os próprios
indivíduos, por meio dos ideais que elegem
como verdades. Por essa razão, é profícuo que,
desde a formação acadêmica, o imperativo
do afeto possa ser desnaturalizado e que as
futuras professoras percebam que os discursos
afetivos por elas tomados como verdades
indeléveis ao fazer docente não passam de
construções datadas, de invenções, sendo
passíveis de problematização. Por isso, é
importante que as acadêmicas compreendam a
possibilidade de problematização dos discursos
que as constituem como profissionais que têm
somente o afeto como recurso para o exercício
docente, passando a identificar a rede discursiva
(composta por configurações institucionais,
relações de poder e lógicas disciplinares)
propulsora do imperativo do afeto.
Rodrigo Saballa de CARVALHO. O imperativo do afeto na educação infantil: a ordem do discurso de pedagogas...
Obviamente que as provocações propostas
não são simples. Por outro lado, se for assumida
a perspectiva de que os discursos presentes nos
relatórios analisados são produzidos a partir de
uma rede discursiva, é possível desnaturalizá-los, repensá-los, reinventá-los, experimentando
outras posições de sujeito, outros modos de agir e
de pensar enquanto docente na Educação Infantil.
Talvez assim se possa, como sugere
Abramowski (2010, p. 168):
sacudir os estereótipos emocionais, revisar
os discursos que formam as maneiras
docentes de amar, retirar os afetos da zona
escondida e estritamente singular, para
situá-los em um plano coletivo, social,
cultural e histórico.
Enfim, será possível perceber a docência
na Educação Infantil para além da ordem dos
discursos que prescrevem o imperativo do afeto.
Referências
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245
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a pedagogia construtivista e outras formas de governo do eu. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 143-213.
Recebido em: 27.01.2013
Aprovado em: 20.05.2013
Rodrigo Saballa de Carvalho é doutor e mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
docente do curso de Pedagogia da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) e líder do Grupo de Pesquisas em Educação,
Culturas e Políticas Contemporâneas (UFFS – Erechim/RS).
246
Rodrigo Saballa de CARVALHO. O imperativo do afeto na educação infantil: a ordem do discurso de pedagogas...
Formação de professores e saberes docentes: trajetória
e preocupações de uma pesquisadora da docência – uma
entrevista com Ruth Mercado
Denise Trento Rebello de SouzaI
Marli Lúcia Tonatto ZibettiII
Resumo
A entrevista concedida pela pesquisadora mexicana Ruth Mercado
Maldonado em outubro de 2013 traz importantes contribuições
para o campo educacional ao tratar de temas contemporâneos a
partir da experiência profissional de uma investigadora de renome
internacional. Docente e pesquisadora do Departamiento de
Investigaciones Educativas del Centro de Investigación y de Estudios
Avanzados del Instituto Politécnico Nacional (DIE-CINVESTAV), a Dra.
Ruth Mercado mantém contato com pesquisadores brasileiros desde a
década de 1980, debatendo temas envolvendo a etnografia e a formação
de professores. A abordagem etnográfica, calcada na articulação entre
trabalho empírico e conceitual, possibilita que a autora, a partir do
pensamento de Agnes Heller, Mikhail Bakhtin e Lev Vigotsky, dentre
outros, produza uma construção teórica própria acerca dos saberes
docentes. Sua trajetória revela as concepções de uma pesquisadora
que busca compreender a perspectiva do outro, distanciando-se dos
olhares avaliativos e prescritivos comuns ao campo pedagógico. Na
entrevista, a autora aborda, de modo instigante, questões atuais e
relativas ao campo da formação inicial e continuada de professores:
o processo de universitarização e suas implicações, o papel dos
formadores, as relações entre cultura universitária e cultura escolar.
Suas reflexões sobre a história da profissão docente no México e da
criação de programas de mestrado profissional em diferentes países
oferecem contribuições importantes para a comunidade educacional
da América Latina. A leitura da entrevista envolve, assim, um convite
à reflexão sobre os desafios que a universidade e seus profissionais
enfrentam na construção de propostas de formação docente adequadas
às necessidades, demandas e características próprias daqueles que
atuam na educação básica.
Palavras-chave
I- Universidade de São Paulo, São
Paulo, SP, Brasil.
Contato: [email protected]
II- Universidade Federal de Rondônia,
Porto Velho, RO, Brasil.
Contato: [email protected]
Etnografia — Formação docente — Saberes docentes — Universitarização
— DIE-CINVESTAV.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 247-267, jan./mar. 2014.
247
Teacher education and teachers knowledges: trajectory
and concerns of a researcher in teaching - an interview with
Ruth Mercado
Denise Trento Rebello de SouzaI
Marli Lúcia Tonatto ZibettiII
Abstract
The text derives from an interview with Mexican researcher Ruth
Mercado Maldonado conducted in October 2013, and brings
significant contributions to the educational field by dealing with
contemporary themes in the light of the professional experience of
an internationally renowned scholar. A professor and researcher
at the Departamento de Investigaciones Educativas del Centro de
Investigación y de Estudios Avanzados del Instituto Politécnico
Nacional (DIE-CINVESTAV), Dr Ruth Mercado has been in contact
with Brazilian researchers since the 1980s, discussing with
them themes involving ethnography and teacher education. The
ethnographic approach, based on the articulation between empirical
and conceptual works, allows her, drawing from the thinking of Agnes
Heller, Mikhail Bakhtin, and Lev Vygotsky, among others, to produce
her own theoretical construct about teachers knowledges, seen by
her as part of a historical process, thereby revealing the conceptions
of a researcher that seeks to understand the perspective of the other,
and to distance herself from judgmental and prescriptive outlooks so
common in the pedagogical field. In this interview Dr Ruth Mercado
stimulates us to reflect about current issues in the field of initial and
continued teacher education: the universitization process and its
implications, the role of instructors, the relations between university
culture and school culture. Her reflections about the history of the
teaching profession in Mexico and of the creation of professional
master programs in different countries offer important contributions
to the educational community in Latin America. The reading of this
interview amounts therefore to an invitation to the reflection about
the challenges that the university and its professionals face in the
construction of teacher education proposals that are adequate to the
needs, demands and characteristics specific to those that work in
basic education.
I- Universidade de São Paulo, São
Paulo, SP, Brazil.
Contact: [email protected]
II- Universidade Federal de Rondônia,
Porto Velho, RO, Brazil.
Contact: [email protected]
248
Keywords
Ethnography — Teacher education — Teachers knowledges —
Universitization — DIE/CINVESTAV.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 247-267, jan./mar. 2014.
Apresentação
A Profa. Ruth Mercado
Maldonado é pesquisadora do Departamiento de
Investigaciones Educativas
do Centro de Investigación
y de Estudios Avanzados
del Instituto Politécnico
Nacional (DIE-CINVESTAV).
Nesse departamento, internacionalmente reconhecido pela alta qualidade e
pela grande influência na
Fonte: Arquivos da autora.
pesquisa educacional da
América Latina, ela desenvolve investigações
há mais de 25 anos. Também orienta projetos em nível de mestrado e doutorado sobre a
docência e o ensino, principalmente em duas
linhas de investigação: a) estudos socioculturais sobre a docência cotidiana; b) políticas
e processos de formação inicial e continuada de docentes. Profissional envolvida com a
educação básica e a formação de professores
no México, ela participa tanto de processos
de investigação, quanto do desenvolvimento
curricular e da produção de materiais pedagógicos. Dentre suas atuações, destaca-se a
coordenação, em conjunto com a Profa. Eva
Taboada, de projeto para avaliação de desempenho e desenvolvimento docente dos cursos
comunitários do CONAFE (Consejo Nacional
de Fomento Educativo). Sua expertise lhe rendeu ainda um convite para colaborar como
consultora junto à UNESCO.
O nome de Ruth Mercado está
vinculado ao DIE e à sua perspectiva de
conceber e realizar a etnografia educacional.1
A abordagem etnográfica desenvolvida pelos
pesquisadores desse singular departamento do
CINVESTAV desperta interesse da comunidade
brasileira já nos anos 1980, quando a pesquisa
sobre a escola passa por momentos descritos
por um segmento da comunidade acadêmica
1 - Ver ROCKWELL, 2009.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 247-267, jan./mar. 2014.
latino-americana como sendo de crise teóricometodológica.2 Nos anos subsequentes, iniciase um intercâmbio profícuo entre pesquisadoras
do DIE e universidades brasileiras – entre elas,
a Universidade de São Paulo.3 Durante esse
período, a Profa. Ruth Mercado esteve no
Brasil a convite da Faculdade de Educação e
do Instituto de Psicologia em duas ocasiões,
em 1990 e em 2010. Em sua última estada,
ela ministrou cursos e desenvolveu trabalhos
junto a quatro universidades brasileiras, em
diferentes regiões do país.4 Em 2013, ela volta
ao Brasil na condição de professora visitante da
Universidade Federal de Santa Catarina.5 É nessa
ocasião que nos recebe em Florianópolis para
uma entrevista que se estende por quase quatro
horas. Ali partilha conosco um pouco de sua
trajetória e dos conhecimentos desenvolvidos
como pesquisadora do ensino para quem a
docência assume lugar central.
Essa marca em seu modo de relacionarse com a pesquisa e o ensino tem forte relação
com sua história de formação e atuação
profissional. Como ela mesma relata durante
a entrevista, existiram momentos-chave. Um
deles relaciona-se a um grande projeto de
investigação etnográfica realizado na década de
1980, por cinco anos, junto a escolas mexicanas,
denominado O contexto social e institucional da
escola básica (ROCKWELL, 1980). Tal projeto
deu origem aos seus trabalhos de mestrado e
doutorado, o que também ocorreu com várias de
suas colegas do DIE.
Partícipe de uma das formas por ela
consideradas como das mais potentes de fazer
etnografia educacional – aquela em que grupos
de investigadores partilham todo o processo –,
2- Ver PATTO, 1990; AZANHA, 1990/1991; ROCKWELL, 1987; EZPELETA;
ROCKWELL, 1986; SOUZA, 2006; BUENO, 2007; BUENO; SOUZA, 2011.
3- Em 1990, no âmbito de um dos primeiros programas de cooperação
internacional (USP-BIRD) mais recentes, docentes da Faculdade de
Educação da USP realizaram estágio junto ao DIE-CINVESTAV, dando início
ao intercâmbio entre as duas instituições.
4- A Profa. Ruth Mercado esteve no país a convite do LIEPPE (Laboratório
Interinstitucional de Estudos e Pesquisas em Psicologia Escolar), do Instituto
de Psicologia, e da Faculdade de Educação, com recursos do CNPq.
5- Agradecemos à Profa. Dra. Luciane Maria Schlindwein o empenho
em trazer a Profa. Ruth Mercado ao Brasil para mais esse período de
intercâmbio profissional.
249
Ruth Mercado desponta como pesquisadora no
campo da formação de professores, contribuindo
para a construção do conceito de saberes
docentes (MERCADO, 2002), a partir de sua
participação nesse longo projeto de investigação
que, entre outros materiais empíricos, resultou
em rico arquivo de observações de sala de aula.
É justamente a abordagem etnográfica,
calcada na articulação entre trabalho empírico
e conceitual, que possibilita a essa autora
uma construção teórica própria acerca dos
saberes docentes e que a distingue de outros
pesquisadores da área. Apoiando-se no
pensamento de Agnes Heller, Mikhail Bakhtin
e Lev Vigotsky, entre outros, ela concebe a
construção dos saberes docentes como parte de
um processo histórico.
Em minha visão, as decisões dos professores
e suas estratégias de sobrevivência são parte
dos saberes docentes, e a construção destes
não implica apenas processos cognitivos ou
ações individuais, mas faz parte do processo
histórico local da relação cotidiana entre
professores e crianças. Nessa história, os
professores constroem um conhecimento
particular sobre o ensino que articula
abordagens provenientes de distintos
momentos históricos e espaços sociais.
Nesse processo, os professores também
elaboram conhecimentos sobre seus alunos,
reelaboram suas crenças pedagógicas e
suas avaliações acerca dos conteúdos e
das formas de ensinar, entre outras coisas.
(MERCADO, 2002, p. 19, tradução nossa)
Para a compreensão desse processo de
constituição dos saberes, Ruth fundamenta-se no
conceito de vida cotidiana, conforme concebido
por Agnes Heller (1987): momento do movimento
social em que ocorrem as apropriações dos
saberes sociais presentes na vida diária.
De Bakhtin (1997), a autora se vale
do conceito de dialogia, o qual pressupõe o
papel do outro na constituição do sentido
dos discursos, pois entende que as palavras
250
enunciadas trazem em si a perspectiva de outras
vozes. Nessa direção, a entrevistada defende
que é no trabalho cotidiano dos professores que
ocorre o processo coletivo de apropriação de
saberes, tendo este processo várias dimensões:
a história social da docência, a história pessoal
de cada professor, o diálogo entre os docentes,
destes com seus alunos e com outros sujeitos
com os quais convivem. Em tal perspectiva, os
saberes docentes são considerados pela autora
como “pluriculturais, históricos e socialmente
construídos” (MERCADO, 2002, p. 36).
Em Vigotsky (1977, 1979), Ruth Mercado
encontra apoio teórico para fundamentar
as relações entre pensamento, linguagem e
mundo social.
Assim, o conceito de saberes docentes
por ela proposto revela as concepções de uma
pesquisadora que busca compreender, por meio
dessa abordagem com viés antropológico,
a perspectiva do outro, distanciando-se dos
olhares avaliativos e prescritivos comuns
no campo pedagógico. Seu conhecimento
acumulado ao longo dos anos em que
coordenou e participou de numerosos
projetos de pesquisa sobre a formação
docente no México, bem como de outros
em que contribuiu para o desenvolvimento
de materiais destinados a escolas primárias,
secundárias, normais e pós-graduações,
qualifica a interlocução dessa pesquisadora.
Na entrevista, Ruth aborda de modo
instigante diversas questões bastante atuais e
recorrentes relativas ao campo da formação
inicial e continuada de professores: o processo
de universitarização e as implicações daí
decorrentes, tais como as relações entre
formação teórica e formação prática; o papel
dos formadores; as relações entre cultura
universitária e cultura escolar. Ela também
relata elementos importantes da história da
profissão docente no México no caminho de
sua profissionalização. Ainda nesse âmbito,
a entrevistada nos convida a refletir sobre os
desafios que a universidade e nós, acadêmicos,
teremos que enfrentar na construção de
Denise Trento Rebello de SOUZA; Marli Lúcia Tonatto ZIBETTI. Formação de professores e saberes docentes:...
propostas de desenvolvimento profissional
docente adequadas às necessidades, demandas
e características desse segmento da comunidade
educacional – professores da escola básica –
que, apesar de alvo de nossa atenção há tempos,
ainda permanece em parte desconhecido.
Sobre o mestrado profissional, a autora
destaca sua importância no campo da formação
dos professores da educação básica, bem como
a necessidade de construção de um projeto específico com foco na formação dos profissionais do ensino que se diferencie dos mestrados
acadêmicos, estes últimos voltados para a formação de pesquisadores.
A escrita nos processos formativos
também é tema abordado pela entrevistada, num
diálogo em que fica evidente o olhar sensível,
próprio dos pesquisadores que dedicaram anos
observando e acompanhando atentamente
o cotidiano escolar e as transformações da
profissão docente. Assim ela vai apresentando
suas ideias sobre a produção escrita para
professores e sobre as propostas de escrita
utilizadas nos processos formativos.
Confiamos que a publicação desta entrevista poderá fomentar debates, sempre bem-vindos, especialmente porque o país passa por modificações substanciais nas políticas de formação
de professores, com a implementação de vários
programas de formação inicial e continuada que
indicam, inclusive, a constituição de novos modelos de formação docente (BUENO; SOUZA, 2012).
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VIGOSTKY, Lev. Pensamiento y lenguaje. Buenos Aires: La Pléyade, 1977.
______. El desarrollo de los procesos psicológicos superiores. Barcelona: Grijalbo, 1979.
Denise Trento Rebello de Souza é professora doutora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).
Marli Lúcia Tonatto Zibetti é professora doutora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Rondônia (UNIR).
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 247-267, jan./mar. 2014.
251
Inicialmente, queremos lhe agradecer a
disponibilidade em nos receber para essa
entrevista. É sempre um prazer poder
compartilhar ideias com você, Ruth.6
Gostaríamos que começasse comentando sobre
sua trajetória profissional e seu encontro
com as questões e os temas a que tem se
dedicado ao longo de sua vida profissional: a
pesquisa em sala de aula, os saberes docentes
e a perspectiva etnográfica como abordagem
para entender os processos e as práticas que
constituem a escola.
É uma longa história, muito longa
mesmo. Porque já faz algum tempo que eu
passei por esses inícios. Acredito que não
seja possível contar toda a história dessa
trajetória, mas alguns momentos-chave que
determinaram, talvez, esse caminho. Olhando
para trás, escutando sua pergunta, acho que
sempre estive muito próxima dessa inquietação
de saber o que se passava na escola. Inicialmente
estudei para ser professora de ensino básico. O
pouco tempo em que, por questões pessoais,
trabalhei como professora nesse nível de ensino
permitiu-me identificar certas questões que
me preocupavam, como as crianças que não
conseguiam avançar na escola. Foi por pouco
tempo, um ano e meio talvez. Eu era muito
jovem e me perguntava sobre o que a escola
poderia fazer a esse respeito. Talvez eu não
me perguntasse com essas palavras, porque
pensar na escola como instituição ou abstração
não era ainda uma construção. Fiquei com
essas perguntas e me envolvi com o campo
da educação, apesar de não ter sido minha
iniciativa o ingresso na carreira docente. Essa
foi uma decisão tomada pelo meu pai. Sua mãe
tinha sido professora entre o final do século
XIX e o começo do século XX, quando estudar
para ser professora era algo raro e chegava-se
a ser professor por meio da prática. Minha avó
estudou em uma das primeiras Escolas Normais
do México, e eu não sabia disso naquela época.
6- O trabalho de transcrição e tradução da entrevista foi realizado por
Edilson da Silva Cruz e Camila de Lima Gervaz.
252
Como primeira filha, meu pai decidiu que eu
seria professora. Mas eu não queria isso e fui
para a Escola Normal sem o mínimo desejo de
ser professora. Queria ser médica. Pensei: faço
esse curso e depois estudo o que quero. Quando
terminei meus estudos e me tornei professora,
interessei-me pelas crianças que ficavam para
trás, que a escola não conseguia manter. Decidi
estudar educação especial, que nesse tempo
apenas começava a ser entendida como um
campo próprio da educação. Permaneci por
pouco tempo nessa área, pois eu continuava me
fazendo uma série de perguntas às quais não
conseguia responder.
Também por razões pessoais fui trabalhar
em um Estado próximo à Cidade do México,
como consultora junto a um departamento
de planejamento educacional, que era o que
tínhamos de mais moderno. Nesse departamento,
as principais funções que desenvolvi foram
de assessoria e formação de professores da
educação básica. Trabalhávamos diretamente na
Secretaria Estadual de Educação, identificando
problemas em todos os níveis escolares e
elaborando programas e materiais para dar
apoio aos professores. Estive muito próxima dos
professores de diferentes regiões, desde áreas
rurais, indígenas, até as cidades mais importantes
do Estado do México. Aprendi muito com essa
diversidade e, mais do que isso, essa foi minha
escola. Estive, por vários anos, responsável pela
educação especial do Estado, inclusive dirigindo
uma escola especial por dois anos. Tínhamos
professoras de educação especial, atendíamos
surdos, crianças com déficit mental, tínhamos
também crianças que eram consideradas “com
problemas de aprendizado” – entre aspas, porque
não sabíamos o que tinham, mas estavam fora
da escola e precisavam de um atendimento
especial. Essa foi outra grande escola para mim:
trabalhar com pais de crianças especiais. Aprendi
muito com as mães. A energia que elas têm, a
força, a capacidade... Dessa experiência também
ficou o aprendizado de um trabalho conjunto,
em equipe, com professores especializados em
linguagem e ensino de crianças com déficit,
Denise Trento Rebello de SOUZA; Marli Lúcia Tonatto ZIBETTI. Formação de professores e saberes docentes:...
médicos, psicólogos e enfermeiros. Foi necessário
criar estratégias para atender as necessidades
dessas crianças.
Consegui também trabalhar com
professoras de educação básica – e isso nos
anos 1970, ou seja, quando não existiam ainda
esses planos de inclusão. E consegui também
atuar com professoras de ensino fundamental,
não por meio de uma política imposta a elas,
mas com visitas às escolas, perguntando quais
poderiam aproximar o aluno surdo de um grupo
regular. E houve professoras que aceitavam,
faziam seu programa e combinavam um tempo
conosco depois de sua aula regular.
De onde vieram essas ideias de um tempo na
escola regular e um tempo na escola especial?
Já havia algumas ideias no campo da
educação especial, mas não havia programas,
nem políticas educativas definidas como tais. Eu
sabia porque havia estudado, e as professoras de
educação especial sabiam que isso podia ampliar
as possibilidades educacionais das crianças. Mas o
sistema de educação pública não se interessava por
isso e quando eu perguntava o que poderiam fazer
para levar adiante essas ideias, via-me sozinha.
Em síntese, essas experiências me levaram a
questionar sobre o que é possível fazer em meio
ao abandono das autoridades educativas. Decidi
que deveria estudar mais. Os casos que chegavam
até nós como problemas de aprendizagem não
eram de fato problemas de aprendizagem. Eram
problemas decorrentes da pobreza e do abandono
social em que as famílias se encontravam. Então,
minhas perguntas começaram a se tornar mais
elaboradas e mais amplas.
E onde você procurou responder a essas
perguntas?
Nessa época, conheci o Departamiento
de Investigaciones Educativas (DIE). Cada vez
tenho mais certeza de que tomamos algumas
decisões em razão de circunstâncias de vida,
mas nem tudo é planejado em nossa trajetória
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 247-267, jan./mar. 2014.
profissional. Há alguns momentos-chave que
se apresentam em sua vida e que conduzem
a um caminho que talvez você não estivesse
procurando. E foram muitas as coincidências.
Depois que deixei a direção da escola especial,
continuei no departamento de planejamento e
comecei a trabalhar junto às salas de aula, com a
ideia de saber mais de onde vem a possibilidade
de um professor se abrir a experiências difíceis
e desafiadoras, como aceitar um aluno surdo em
sua classe. Tal interesse me levou a elaborar um
projeto que se propunha, além de assessorar,
conhecer mais sobre esses professores. Isso
porque eu me perguntava: como vamos
assessorar os professores se nunca estivemos
com eles? Então comecei a ir às salas de aula,
ainda de uma maneira improvisada, pois eu não
tinha a menor ideia do que fazer com aquilo.
E aí vocês começaram a ir às escolas observar
as professoras...
Vocês, não. Apenas eu fazia isso, porque
meus colegas de departamento estavam fazendo
mestrado ou algo assim. Meus colegas não
tinham essas preocupações, tinham outras,
mais relacionadas à psicologia, como elaborar
instrumentos para a ficha biopsicossocial.
Também comecei fazendo isso e depois parei. Esse
foi outro projeto. Minhas colegas perguntavam:
“Para que vamos até as escolas? Por que vamos
falar com os professores se nós já sabemos o que
os professores falam?”. “Não acho que sabemos” –
eu dizia. Fui sozinha e decidi, naquele momento,
que iria estudar. Eu tinha colegas que estavam
fazendo mestrado no DIE e, a partir das conversas
com eles, pensei que gostaria de estudar em
um lugar assim. Isso se tornou possível quando
alguns professores do departamento convidaramme para trabalhar lá pela minha experiência em
educação, o que coincidiu com minha mudança
de residência, por motivos pessoais, para a Cidade
do México. Iniciei meu trabalho no DIE como
assistente no momento em que elaboravam um
manual para cursos comunitários, e foi nesse
projeto que entrei. Tratava-se de um projeto
253
do CONAFE (Consejo Nacional de Fomento
Educativo) de cursos comunitários que também
incluía a elaboração de material pedagógico para
jovens do ensino básico e crianças de escolas
rurais, o que me interessava, pois envolvia as
escolas e os professores. Depois disso, decidi fazer
o mestrado.
Então você começou o mestrado no próprio DIE?
Sim. Fiz o mestrado e comecei um
trabalho de pesquisa, propriamente dito, com
minha colega Elsie Rockwell e depois com
Justa Ezpeleta. Naquela época, quase ninguém
tinha doutorado no DIE. As professoras tinham
mestrado e muitos dos projetos que mais
tarde se consolidaram como diferenciais do
departamento ainda não haviam começado ou
estavam apenas começando.
E quem eram seus parceiros nesses anos
iniciais do DIE?
Éramos todos muito jovens. Meus colegas
dessa época, os que estavam na turma do mestrado,
eram universitários que haviam acabado de se
formar. Eles não tinham muita experiência na
área, enquanto eu vinha de um trabalho muito
inserido na vivência educacional, já que, antes de
ir para o DIE, eu tive uma experiência de trabalho
junto aos pais, às famílias.
Então o tema com que você se envolve com o
tempo — os saberes docentes e a pesquisa na
sala de aula — tem como origem sua própria
inserção no campo da educação, certo?
Claro! Tem essa origem, mas há um
pressuposto de que nós nos interessamos pela
sala de aula, pelos professores, pelo cotidiano
docente, porque somos professores de formação.
Contudo, acho que meu envolvimento tem a
ver com a minha inserção na educação básica,
não somente como professora, mas como
alguém que teve a possibilidade de ter acesso a
diferentes níveis e estratos da educação básica.
254
E quais foram as situações que a levaram ao
encontro com a pesquisa, mais especificamente
na perspectiva da etnografia?
Não sei bem. Começou com Elsie
Rockwell e outras colegas, como Grecia Gálvez
e, em seguida, Ruth Paradise, ainda nos anos
1970. Logo que entrei no DIE, fiz com Elsie um
estudo exploratório que deu lugar ao projeto
denominado La práctica docente y su contexto
institucional y social, que posteriormente
desenvolvemos sob a coordenação por Elsie
(ROCKWELL, 1980). Mais adiante tivemos a
participação de Justa e a equipe se ampliou
com o ingresso de outras pessoas. No título,
não constava a expressão escolas rurais; havia
subjacente ao projeto uma discussão sobre isso,
se eram escolas rurais ou não, se iríamos utilizar
essa categoria oficial e se isso era importante.
Vimos que nem sempre se tratava de escolas
rurais, mas sim de escolas de transição.
Enquanto estávamos no local, observávamos
que a escola mais rural estava sempre mudando,
transformando-se em outra coisa, porque as
comunidades iam se urbanizando e algumas
ficavam no meio entre o rural e o urbano. Desse
projeto saíram vários mestrados – inclusive o
meu –, que depois deram lugar a pesquisas de
doutorado. A descrição desse processo está em
nosso livro La escuela, lugar del trabajo docente.
(ROCKWELL; MERCADO, 1999)
Nesse projeto já havia a discussão sobre os
saberes?
Não, esse tema decorre do meu
doutorado. Meu mestrado abordou os processos
de negociação sobre a gratuidade da escola. O
primeiro aspecto que nós encontramos ao chegar
nas escolas era sua parte física, constantemente
mudando, de um mês para o outro. Sempre
estavam construindo algo – uma parte do
muro, um portão, uma sala de aula nova –,
arrumando os banheiros que não funcionavam
etc. E essa pesquisa sobre a negociação durou
aproximadamente cinco anos. Fiquei com muito
Denise Trento Rebello de SOUZA; Marli Lúcia Tonatto ZIBETTI. Formação de professores e saberes docentes:...
material de sala de aula, e como minha pesquisa
de mestrado já estava avançada noutra direção,
eu o conservei. Era um material muito rico,
em que desde a época do mestrado eu havia
identificado coisas relativas ao ensino que me
interessavam. Essas análises não me levaram
diretamente ao conceito de saberes docentes,
mas sim ao doutorado. Notei indícios de coisas
que os professores faziam e que o senso comum
dizia que eles não faziam. Quando comecei
o doutorado, não falava ainda em saberes
docentes, mas, depois que terminamos o projeto
etnográfico, Elsie e eu publicamos esse livro
que acabo de citar e que ficou muito conhecido.
Nele, que foi editado pela primeira vez em
1986, incluímos em coautoria o capítulo La
práctica docente y la formación de maestros, em
que anunciávamos o tema dos saberes docentes
(ROCKWELL; MERCADO, 1999).
Essa questão da abordagem etnográfica nasce
com mais força, então, nesse projeto maior que
dá origem ao seu mestrado. Foi no bojo desses
projetos que a perspectiva etnográfica ganhou
corpo e se sistematizou no âmbito do DIE?
Sim. Fomos uma equipe que conseguiu
trabalhar muito coletivamente, e acho que a
possibilidade de construir etnograficamente, nesse
momento da história do departamento, permitiu
tal coletividade. Éramos um grupo de cinco ou
seis pessoas, e essa coletividade num trabalho
etnográfico potencializa a força da etnografia,
porque conseguimos partilhar entre nós todos
os materiais, as leituras, as discussões e também
as inquietações que o campo nos provocava.
Há, por exemplo, toda a parte ética. Eu fiquei
morando na casa de pessoas próximas às escolas
e compartilhávamos a experiência entre a equipe:
podíamos fazer debates e saber como cada um
se sentia, assim como hoje fazemos com nossos
orientandos. Acho que essa é uma boa forma de
fazer etnografia. Acho que é a melhor. Quando
encerramos esse projeto, eu me envolvi com o
ensino que posteriormente associei à formação de
professores, pois, nas descobertas sobre os saberes
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 247-267, jan./mar. 2014.
docentes, encontrei forçosamente essa relação
com a formação: à medida que se constroem
saberes docentes no ensino, está se formando
profissionalmente também.
Hoje em dia, levando em consideração o tempo
encurtado para o desenvolvimento da pósgraduação, você tem encontrado dificuldades
na orientação de pesquisas etnográficas? É
possível ainda manter essa perspectiva?
É possível, mas cada vez menos. É
preciso encontrar estudantes que tenham
certas características e condições de vida. Por
exemplo, meus alunos que são solteiros têm
mais tempo, mais independência. Outra coisa:
há certas características de personalidade e
de formação que permitem um contato mais
rápido com outras pessoas. E isso não se sabe
de antemão quando se aceita um estudante.
Mas eu insisto que não é preciso ser etnográfico
em todos os aspectos, e sim ter a possibilidade
de um olhar etnográfico. O olhar etnográfico é
essa possibilidade de não julgar, não avaliar. No
fim das contas, essa é a parte mais difícil, pois
o modelo que predomina na perspectiva mais
pedagógica atua como se mantivesse os olhos
vendados e não fosse além de uma preocupação
mais normativa. Se você consegue sair isso e
elaborar uma pesquisa com uma perspectiva
etnográfica, com rigor conceitual e empírico, o
trabalho é feito. A cada dia isso se torna mais
difícil, eu concordo, e não só para os estudantes,
mas para os pesquisadores também.
Gostaríamos que você comentasse sobre
um movimento que tem acontecido aqui no
Brasil a partir da Lei de Diretrizes e Bases
(LDB) de 1996, que prescreveu a formação
em nível superior a todos os professores do
país, estipulando um prazo de dez anos para
isso. Tal processo tem sido conhecido como
universitarização e consiste na elevação da
formação do professor para o nível superior.
Sabemos que no México essa exigência já
ocorre há mais tempo.
255
Sim, eu acho que em muitos países esses
movimentos estão presentes na formação dos
profissionais da educação. Sempre houve a
necessidade de atualizar, de profissionalizar,
porque a profissão docente começou, no México
e em outros países, com pessoas que não eram
qualificadas em nível superior. No México, foi
uma profissionalização que começou muito cedo
na história da educação, desde quando se tem
formação inicial em nível médio. Não era uma
formação universitária, mas já era profissional,
pois eram as Escolas Normais que formavam os
professores desde o século XIX. Lá iniciaram
essa formação sistematizada com currículo,7
com validação oficial de nível médio-superior.
Depois houve a necessidade de universitarizar.
Muitos professores exerceram a profissão sem
terem cursado a Escola Normal. As Normais
existiam antes da Revolução Mexicana, mas
com ela houve a necessidade do Estado de
promover a educação e certas ideias sobre o
mexicano, o nacional, além de universalizar os
conteúdos da educação e levar às comunidades
a palavra escrita e a leitura. Foram inúmeros
os professores que exerceram a docência sem
terem estudado nas Escolas Normais. Criouse então um sistema de atualização para
professores, que se profissionalizavam durante
os feriados, as férias e os finais de semana
em um grande instituto, o Instituto Federal
de Capacitação do Magistério. Esse instituto
teve muito peso na formação de professores
e veio a constituir uma tradição de formação
docente muito forte no México. Depois da
Revolução, houve também um movimento,
originado na Secretaria da Educação Pública,
que levava às escolas contribuições para os
professores que não tinham formação. Eram
as chamadas missões culturais, ocorridas nos
anos 1930 e 1940. Eram grupos que iam às
escolas com pessoal especializado em diferentes
áreas, tais como a pedagogia, a didática, o
cultivo das hortas escolares e o trabalho com
as comunidades, não somente com as crianças
7- Os termos plano de estudo e currículo são usados como sinônimos.
256
na escola, mas também com os jovens e com
os adultos. Essas missões constituíram o que
poderíamos definir como as primeiras formas
de atualização ou capacitação de professores,
mas levadas às escolas, por todo o país. Isso
durou muito tempo, e inclusive me parece que
algumas ainda funcionam em alguns estados.
Havia a possibilidade, que nesse momento
coincidia com uma disposição política, de se
estar bem próximo às escolas e apoiar o trabalho
que ali se realizava. Esse foi então outro ramo
que me parece ter auxiliado na construção do
patrimônio histórico-cultural da formação dos
professores no México. Depois, esse instituto ao
qual me referi, que profissionalizava em aulas
normais, nas férias e nos feriados, cresceu muito,
pois havia muitos professores nessa situação.
Ele atuou por várias gerações e as Normais
continuaram crescendo. Chegou um momento
em que as Normais já formavam os novos
professores e não havia mais a necessidade de
profissionalizar, embora ainda houvesse uma
grande quantidade de professores sem formação
em nível superior. Por isso, algum tempo depois
se constituiu a Universidade Pedagógica, que
representava a aspiração de grandes setores
do magistério de ter um espaço universitário
próprio de profissionalização. Esse era também
um projeto do sindicato de professores, que
historicamente tem, no México, vínculos fortes
com o Estado, sendo um dos sindicatos em que
o Estado se apoiava para promover e introduzir
suas políticas educativas em todo o país.
Assim, a Universidade Pedagógica Nacional
foi um projeto em que convergiram diferentes
interesses. Há uma sede central na Cidade
do México, além de unidades em diferentes
estados do país. Depois, entre os anos 1980 e
1990, com a federalização que se denominou
descentralização educativa, o Estado mexicano
delegou aos estados a responsabilidade pelas
instituições; agora, são os estados que fazem
a gestão da educação nos diferentes níveis
e propõem programas, mas com recursos do
governo central. As Universidades Pedagógicas
ficam, assim, a cargo dos estados e já não
Denise Trento Rebello de SOUZA; Marli Lúcia Tonatto ZIBETTI. Formação de professores e saberes docentes:...
mais do governo central, embora a unidade
central da Universidade Pedagógica continue
estabelecendo as normas acadêmicas, ou pelo
menos as mais fundamentais. Esse processo de
descentralização, muito estudado no México,
não foi homogêneo, nem sequer semelhante
entre os estados.
Em 1984, houve uma reforma nas Normais,
que passaram a ser instituições de ensino
superior, embora não tenham se transformado
em universidades. As Normais Superiores são as
que formam os professores de ensino médio –
ou de secundária, como chamamos no México.
Esses professores são aqueles especializados
em disciplinas, como biologia e matemática.
No México, as Escolas Normais oferecem
licenciaturas em educação primária, educação
pré-escolar, educação especial, educação
física e outras áreas. As Normais Superiores
são responsáveis pelas licenciaturas para os
professores da escola secundária (ensino médio)
nas diversas disciplinas. Todas têm o nível de
educação superior e aqueles que nelas ingressam
passam por um bachilerato, que, para nós, é a
educação média superior, depois da secundária.
Quanto tempo leva essa formação?
Acredito que são dois ou três anos de
preparatória e depois quatro ou cinco de nível
superior; no caso da formação de professores,
são quatro anos. Os que concluem as Escolas
Normais recebem o título de professor licenciado
em pré-escolar, educação primária ou educação
especial, entre outras, conforme expliquei.
Hoje, a maioria dos professores tem o
nível superior, pois a Universidade Pedagógica
profissionalizou nesse nível todos os que
já atuavam, enquanto os novos professores
ingressavam nas Escolas Normais.
E isso aconteceu em que época? Anos 1980?
Sim, porque em 1984 a Normal se
transformou, passando sua formação para
quatro anos. Por algum tempo, a formação
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 247-267, jan./mar. 2014.
de professores era feita apenas pelas escolas
públicas e ninguém mais podia fazê-lo, pois
se tratava de uma profissão de Estado. Há
um historiador muito bom no México que se
dedicou à história da educação (ARNAUT,
1996). Esse autor, ao descrever os processos
de mudança na formação de professores,
analisa o modo como, em algum momento,
dentro da política educativa e de governo,
as universidades obtiveram sua autonomia.
No debate travado entre as comunidades
universitárias e o Estado mexicano, as
universidades conseguiram autonomia, o que foi
questionado por alguns governantes, já que as
Normais não eram autônomas. Arnaut escreve
que as universidades podiam ser autônomas,
mas a formação de professores não, pois nas
mãos destes está a educação pública, que é
de responsabilidade estatal. Por esse motivo
a formação dos professores não poderia ser
autônoma, devendo estar ao encargo do Estado.
Tal ideia diz muito sobre como era importante,
naquela época, conservar o caráter público
e estatal da educação. Hoje existem Normais
privadas, mas isso começou há pouco tempo e
agora essa modalidade de formação está aberta
ao mercado. Ela é um mercado, como vocês
dizem.8 Temos muitos professores egressos
das Normais particulares, as quais, supõem-se,
devem ater-se aos planos de estudo oficiais.
Retomando um pouco a história, a ampliação da Universidade Pedagógica nos anos
1980 garantiu acesso ao ensino superior à
maioria dos professores em exercício. Depois
dos anos 1990, ela começou a ser reduzida e
sua função passou a ser, principalmente, a de
oferecer pós-graduação. Abriram-se alternativas de formação de professores não apenas no
ensino fundamental, básico e pré-escolar, mas
também em questões interculturais, relacionadas à tecnologia e a outros temas emergentes. A
interculturalidade passou a ser um tema, muito
embora a questão da educação indígena seja
algo presente há bastante tempo no México.
8- A entrevistada refere-se a uma pesquisa desenvolvida no âmbito de
um Projeto Temático da FAPESP (SOUZA; SARTI, 2008).
257
Então, o que a Universidade Pedagógica fez foi
dar abertura à formação de professores em diversas áreas que foram emergindo, inclusive em
temas que parecem não ter relação direta com a
educação. Os cursos de pós-graduação são uma
questão à parte.
Essa é uma discussão que agora se tem
também no Brasil: a do mestrado profissional.
Sim. Afinal, que alternativas tinham os
professores de cursar a pós-graduação? Foram
criadas pós-graduações mais acessíveis, mais
flexíveis, pois os cursos de mais exigentes não
tinham a possibilidade de receber os professores.
Mas imaginamos que no México também seja
como aqui. A pós-graduação é um programa
que, a princípio, visa à formação do pesquisador e do docente no ensino superior, o que
não é o caso dos professores da escola básica. Alguns argumentam que a pós-graduação
poderia ser mais adequada às necessidades
do professor que não tem o objetivo de ser
pesquisador ou professor do ensino superior,
mas sim busca um processo de formação, de
desenvolvimento profissional.
Claro, de desenvolvimento profissional
dentro do seu campo de trabalho, que é o ensino. Muitos dizem: “quero continuar estudando, mas quero ser professor, e não pesquisador”.
Porém, não há essa possibilidade, já que todos
os cursos de pós-graduação visam à pesquisa.
Quem desenha os cursos de pós-graduação quer
formar pesquisadores. Eu assessorei um plano
de estudos para um mestrado voltado à profissionalização, junto a uma Escola Normal, mas
acabaram fazendo algo voltado para a pesquisa. Pergunto a eles: “Por que tanta ênfase na
pesquisa? Por que não um maior conhecimento,
um aprofundamento de tudo o que nós já sabemos sobre a docência e o ensino?”. Eles me
escutam, pois eu os estou assessorando, mas a
tendência é focar na pesquisa-intervenção, na
pesquisa etnográfica, e os professores se sentem
258
obrigados a fazer isso. Então, esses são planos
de estudo que não são academicamente muito
fortes, porque se vai trabalhar com professores
que não têm tempo para estudar, apenas nos
finais de semana. São planos de estudo aprovados pelo governo do Estado, que pensa: “Tudo
bem, vamos ter um curso de pós-graduação”.
Aprovar cursos é bom para o governo do Estado,
mas, academicamente, não há especialistas que
avaliem anteriormente esses programas de pós-graduação quanto à sua qualidade.
Em sua opinião, as dificuldades em se construir
um currículo de pós-graduação voltado à
docência, ao aperfeiçoamento da docência,
decorrem do quê? Nós, na universidade, temos
esse saber já construído?
Creio que isso decorre de múltiplos fatores. Há uma tensão na academia que se relaciona
aos cursos de pós-graduação. As pós-graduações
têm maior história nas áreas das ciências duras,
que formam os cientistas. Na área da educação,
o que se fez foi imitar esse paradigma de formação em pós-graduação, que deve sim, obviamente, formar cientistas e estudiosos da educação,
mas que, nesse caso, por ser uma profissão que
demanda atualização, como todas, não termina
com a formação inicial. Só que outros profissionais têm espaços para continuar se formando
academicamente, sem necessariamente se transformarem em cientistas. Na área da profissão docente, há no mínimo dois pressupostos: um deles
é de que os cursos de pós-graduação são para
formar cientistas, pesquisadores; o outro é o de
que aquele que realiza a docência não precisa
saber tanto, pois já sabe o que tinha que saber.
Trata-se de uma construção social de uma visão
sobre o ensino e sobre a docência como algo não
tão difícil: “Por que você entraria em um curso
de pós-graduação para saber mais da docência?
Você já estudou pedagogia, você estudou sociologia da educação!”.
Teria isso a ver com a ideia de que se aprende
pela experiência, de que essa aproximação
Denise Trento Rebello de SOUZA; Marli Lúcia Tonatto ZIBETTI. Formação de professores e saberes docentes:...
com a experiência forma e de que não é
preciso saber muito?
Pode ser, não sei... Afinal, menosprezase muito essa formação prática. Eu acredito
que tem mais a ver com uma ideia da docência
como algo simples. Ou seja, um médico precisa
continuar se atualizando porque a medicina é
associada a conhecimentos muito complexos e
em constante desenvolvimento; um engenheiro
civil precisa continuar sabendo sobre a produção
dos novos materiais, de novos desenhos. Todas
essas profissões são tidas como complexas para
justificar que sejam criados cursos de pósgraduação que não estejam voltados para a
produção científica. Os médicos, por exemplo,
vão a congressos e não têm que ser cientistas.
São profissionais.
Profissionais da medicina que não
necessariamente
fazem
pesquisa.
São
profissionais que têm desafios de resolução
cotidiana. Mas o que o profissional da educação,
da docência, tem que saber mais? Será que
se produzem novos conhecimentos sobre a
docência? Essas concepções me parecem muito
complicadas, pois são construções históricas e
quase não nos é possível imaginar um curso
de pós-graduação em educação que tenha
conteúdos, produtos de pesquisas, mas que
permita ao profissional da docência saber
mais sobre a própria docência. Acredito que
essa é uma das razões. A outra, à qual você
se referiu, é que nós não sabemos bem como
fazer. Nós pretendemos conduzir o professor
por determinado caminho, definindo conteúdos
que ele deve aprender, pois achamos que esses
são os mais importantes. E não há um consenso
acadêmico quanto ao que seria a formação
de um bom professor. Alguns argumentam
que é necessário mais didática; outros, maior
densidade teórica. Para mim, há outras coisas
importantes na formação do professor, como
a produção de conhecimento sobre a escola
cotidiana, sobre o ensino cotidiano, sobre a
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 247-267, jan./mar. 2014.
conformação histórica da profissão docente.
Há várias coisas que podem ajudar o professor
a simplesmente saber mais, a ampliar seu
conhecimento sobre a docência, sobre a escola
e os processos de escolarização. Muita coisa
está sendo produzida o tempo todo na pesquisa,
mas embora isso circule entre nós, não sabemos
como traduzir aos professores. Pretendemos
levar as teorias e os produtos da pesquisa tal
qual eles são elaborados na academia. Depois
dizemos: “Não compreendem, não leem!”.
Sua fala se aproxima do que afirma AnneMarie Chartier (2007) sobre como os textos
e os discursos circulam de modo diverso na
academia e na escola.
Totalmente. Inclusive escrevi um livro
em coautoria com uma colega que foi publicado
recentemente: Saber enseñar, un trabajo de
maestros (MERCADO; LUNA, 2013). Foi um
trabalho árduo, pois não se trata de uma produção
para a academia; vem daí, mas tem outra
linguagem, outra forma de falar com o professor.
Esse é um tema sobre o qual gostaríamos de
conversar. Como escrever para os professores?
Digo a vocês que isso é um ofício que
precisamos aprender, que não nos é dado
pela pesquisa. Não se aprende a escrever
para o professor por ser pesquisador. Acredito
que é justamente o contrário: por sermos
pesquisadores, desenvolvemos características
que podem nos afastar da possibilidade de
escrever para o professor. A pesquisa alimenta,
dá a possibilidade escrever algo, mas não nos
forma para fazê-lo. Há inúmeros exemplos. O
DIE nasceu produzindo livros de texto para a
escola. O diretor, um biólogo, não era a pessoa
mais indicada para fazê-lo, pois sabia sobre
biologia, mas não sobre como falar com o
professor. Não o sabia pois nunca esteve na
escola, nunca foi falar com os alunos. Seu
pensamento não foi formado para saber o que
é ser um professor, o que é essa profissão, qual
259
é sua condição de trabalho. Então ele fala da
perspectiva da biologia, apenas. A inovação no
DIE foi que antropólogos, biólogos, físicos e,
enfim, especialistas em disciplinas específicas
tinham, de alguma maneira, proximidade
com a escola e com os professores, ou algum
interesse. Tinham uma postura avaliativa,
mas também uma abertura intelectual que fez
com que eles construíssem seus textos e os
levassem às escolas, perguntando depois para
o professor: “O que você achou?”. Daí começou
o que denominamos etnografia, pois vinha de
pesquisadores que se interessavam por saber o
que pensavam os professores.
O DIE nasceu com esta raiz: a partir dos
livros nas escolas e do interesse por saber o
que acontecia. Era um departamento que fazia
livros, e não uma instituição de pesquisa, mas
estavam ali pessoas que se interessavam em
pesquisar. O departamento nasceu dessa forma e
nós acumulamos muita experiência em elaborar
materiais para professores e, posteriormente,
para os cursos comunitários. Nessa experiência,
aprendemos que os especialistas nas disciplinas
não conseguiam elaborar livros de textos que
os professores compreendessem e que dessem
sentido ao seu trabalho, ou que os ajudassem a
dar sentido. Então, os físicos, os biólogos e todos
os demais, sempre que produziam seus livros
sozinhos, não conseguiam fazer com que estes
correspondessem ao que queriam transmitir.
Escrever para os professores tem vários
níveis; um deles é relacionado ao trabalho dos
especialistas de cada disciplina, mas é preciso
que haja também alguém da pesquisa educativa.
Que conheça a escola...
Que conheça a escola e que saiba escrever
para os professores. Outra forma é a escrita que
vocês estão pensando: para a formação dos
professores, em si; para que o professor leia e
estude, de forma coletiva.
Essa é um pouco a função do livro que vocês
escreveram.
260
Sim. Esse livro teve, no fundo, a mesma
dificuldade: como escrever para um professor?
De que modo escrever sem pretender dizer
como fazer; sem pretender dizer ao outro “você
não sabe, eu sei”? Não se trata de um manual.
O manual é algo que diz como se deve fazer. É
claro que a editora quer que nós façamos um
manual, ou algo mais próximo de um manual.
Os editores dizem: “Está boa a ideia de vocês de
não fazer um manual assim, estrito; mas não
vai ter algo de didática, para que o professor
se forme, para ensinar-lhe algo?”. Então nós
temos que negociar, sobretudo eu. No meu
caso, o livro não é nem de espanhol, nem de
matemática, nem de ensino de nenhuma área;
é do ensino, e por isso tem esse título. Eu tive
que brigar pelo título com a editora, porque
eles queriam – e conseguiram – acrescentar um
subtítulo – propostas, sugestões, não lembro ao
certo. Mas fiz questão de manter a expressão
um trabalho de professor. Essa expressão parte
da orientação de que o professor sabe ensinar,
mas que nós podemos contribuir com algo, o
que pode vir, inclusive, de outros professores.
Para desenvolver esse tipo de escrita,
foi necessário retomar o conhecimento que
tínhamos sobre a escola e os professores – não
apenas do contato com eles, mas também de
leituras e pesquisa sobre eles –, considerar
o que eles sabem (como imagino ser esse
professor, como sujeito histórico coletivo)
e entrelaçar tudo isso na escrita. Acho que é
o que permite que você se aproxime de uma
linguagem acessível, próxima, com sentido
para o professor. Mas isso só saberei depois,
quando o livro estiver na escola e eu conseguir
falar com eles. Penso que esse é o desafio de
uma escrita para professores, porque há essas
vozes – seguindo Bakhtin (1989), o dialogismo
–: a voz do professor, a do pesquisador, a do
formador. Quando se concebe o professor como
sujeito histórico, diverso, você consegue falar
com ele não como alguém inferior ou superior,
mas como alguém que decide o que faz. Você
diz algo, mas sem um caráter prescritivo. No
livro, mostro vídeos com cenas de sala de aula
Denise Trento Rebello de SOUZA; Marli Lúcia Tonatto ZIBETTI. Formação de professores e saberes docentes:...
que foram bastante editadas. Os professores,
quando olham a atuação de outros colegas,
tendem a avaliá-los: “Ele não fez isso, ele não
sabe!”. Então, tive que editar muito e fazer
comentários, em várias passagens, lembrando
sempre que se trata de um material que não se
pretende ser um modelo, mas apenas provocar
uma reflexão. Comecei dizendo que essa é uma
dívida que o pesquisador tem com o professor:
não basta escrever artigos em periódicos.
Pensamos que é a mesma coisa, mas você leva
o artigo e o professor não vai ler. Eu costumava
deixar artigos nas escolas, e até levei minha
própria tese de doutorado; depois voltei para
ver o que eles tinham achado e eles não haviam
lido: era chato! Alguns podem se interessar,
mas eles estão muito ocupados, e é preciso que
haja um espaço de formação, com outro tipo
de trabalho. Esse livro é uma derivação do meu
livro sobre saberes (MERCADO, 2002), mas não
está escrito da mesma forma.
Aproveitando que estamos falando sobre escrita,
sobre como escrever para professores, este é
um tema que o qual temos nos ocupado mais
recentemente: a investigação dos processos de
escrita, em várias modalidades, utilizados nos
programas especiais de formação de professores.
Há, por exemplo, os memoriais que convidam
os professores a retomarem sua própria história
a partir de um tipo de escrita autobiográfica.
Na França, os IUFMs (Institutos Universitários
de Formação de Professores) têm uma prática
de escrita de memoriais de formação que difere
da escrita autobiográfica que temos no PEC. Há
vários tipos de escritas: a escrita de trabalhos
monográficos, a escrita de registro das vivências
do estágio. Gostaríamos que você falasse um
pouco tanto da escrita para o professor, quanto
da escrita do próprio professor.
Eu tive experiência com vários processos
relativos a essas diferentes modalidades de
escrita usadas em vários países, e acho que
depositamos muitas expectativas em cada tipo
de escrita. Por que pedimos aos professores que
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 247-267, jan./mar. 2014.
escrevam? – eu me pergunto. Porque temos
hipóteses a respeito de que essa escrita pode
ser algo bom, por algum motivo. Eu não tenho
respostas. Pode ser que para alguns professores
seja bom. Eu gostaria de saber o que pensam
quando escrevem, o que a escrita lhes agrega
ou acrescenta. Quando uma pessoa escreve
sua autobiografia ou relatos autobiográficos,
está cumprindo diferentes funções para ela
mesma: pode ser que haja um alívio emocional
com benefícios terapêuticos. Por exemplo,
durante uma crise, escrever sobre o que está
acontecendo pode ter efeitos psicoterapêuticos
para alguém, ainda que não sejam explícitos;
para outra pessoa, isso pode não ocorrer.
Temos a hipótese de que essa escrita pode
servir para a autoformação, mas eu gostaria
de saber se ela realmente tem alguma função
formativa para os professores. Eu acho que é
bom escrever. Existem professores que, pelo
seu próprio trabalho, gostam muito de escrever,
mas produzem escritos que não conhecemos,
que não são públicos. Tais escritos são os que
eu gostaria de conhecer, mais do que os textos
que nós promovemos como formadores. Essa
escrita, porém, é quase inacessível; só em um
trabalho etnográfico muito fino se consegue ter
acesso a ela.
Retomando a pergunta: será que podemos
ter algum acesso a coisas como os saberes
docentes por meio dos escritos? Duvido muito,
pelo menos em minha concepção de saberes:
saberes como postos em práticas, como ações,
como ações com sentido, como construções
de conhecimentos docentes – e não quaisquer
saberes (MERCADO, 2002). Certamente existem
saberes num escrito, mas não sei se esses são
os saberes docentes de que estou falando. Há
uma reflexão sobre os saberes que, como seres
humanos, construímos para viver no mundo.
Mas não se pode falar de saberes docentes. Penso
que a escrita dos professores pode ser muito
valiosa para a formação. Há autores e trabalhos
que se valem de narrativas de professores em
que podem estar envolvidas muitas áreas, desde
a história, a micro-história, a autobiografia e
261
essa dimensão mais psicológica ou afetivoemocional, bem como a literatura. Penso que
tais narrativas de professores podem servir a
muitos propósitos, mas não sei se servem para
a formação ou para a autoformação.
De alguma forma há certo modismo na
utilização de escritas de cunho autobiográfico
em processos de formação.
Sim, há. É como se essa abordagem
fosse uma mina de ouro, a chave de enigmas
sobre a formação. Há expectativas excessivas
acerca disso. Não duvido que a escrita aporte
elementos para diversos tipos de análises. Acho
que ela pode ser um campo muito fértil, muito
produtivo de conhecimento sobre nós, e não só
sobre os professores. Por que os médicos não
escrevem? Penso que deviam escrever.
De alguma maneira, isso tem a ver com o fato
de nós, professores tanto do ensino superior
quanto da educação básica, lidarmos com a
escrita em nossa prática; o médico não lida
com a escrita. Na etnografia e em todos esses
estudos que você tem feito sobre a docência,
sobre a prática dos professores, você se deparou
com professores que fazem registros próprios?
Temos grande dificuldade em conceber o
que realmente escrevem os professores e o que
leem. Essa é uma dificuldade epistemológica
nossa, porque não concebemos como eles
aprendem coisas e desenvolvem seu próprio
conhecimento diferentemente de nós – ou dos
médicos, por exemplo, que pegam um livro na
estante no momento da consulta para explicar
um diagnóstico. Há aí uma relação ativa com
os livros, porque no momento em que o médico
mostra o livro, ele não precisaria fazê-lo, ou
seja, não se trata de um instrumento para curar
o paciente. A escrita e a leitura, para o médico,
são construções próprias que ele usa em certas
circunstâncias, e que não são comuns, não
consistem em um instrumento, mas são outra
coisa. Essa escrita dos professores que ficou
262
pouco acessível a nós – porque, volto a dizer,
é uma prática privada – é muito frequente. Os
indícios que tenho em meu trabalho são estes:
“Ah! Eu tenho um livro de poesia, eu faço
poesia”. Vários professores fazem poesia, mas
é muito difícil que mostrem. E eles também
produzem outros escritos, como memórias, mas
não no formato acadêmico de memórias.
Certa vez, quando eu visitava uma Normal
rural do México – que foi muito combativa, de
esquerda e radical, tendo à época 60 ou 70 por
cento de indígenas –, um professor me entregou
um texto impresso de aproximadamente 60
páginas, na intenção de que eu lesse e depois
comentasse. Eu não sabia o que ele queria
que eu fizesse ou que finalidade tinha aquela
escrita. Era como uma memória dessa Normal,
famosa no México por sua combatividade. Eles
estavam sofrendo repressão pelo governo e
aquele professor era parte dessa escola. Então
eu lhe perguntei: “Professor, isto é um livro?
O que espera que eu faça?”. “Faça o que você
quiser”, ele me respondeu. Não entendi nada.
Então levei o impresso para minha casa para ler
e depois dar um retorno. O texto continha sua
história, a história da escola e do movimento
social contra o Estado, que sempre buscou
subjugá-la, sem sucesso. Parecia um livro
escrito ao longo de anos, mas ele não queria
que ninguém soubesse: “É só para você”. O
que quero ressaltar é que essa escrita que o
professor faz durante toda sua vida é pode ser
de muitos tipos. Acho que a maioria trata de
memória de coisas que se passaram em suas
vidas de professores. Desses escritos, destaco
duas coisas: quase todos os professores que
conheci, que são muitos, escrevem, mas suas
escritas são totalmente privadas. Acho que
eles conseguem, sim, escrever em um espaço
de formação em que se consiga construir
uma relação, um espaço de confiança. Mas de
seus escritos originais, feitos por sua própria
iniciativa, poucos vêm à luz. Uma hipótese que
me ocorre é que os professores têm, mais do
que outros profissionais, grande necessidade de
expressar o que se passa em suas histórias. Como
Denise Trento Rebello de SOUZA; Marli Lúcia Tonatto ZIBETTI. Formação de professores e saberes docentes:...
a docência é um trabalho tão desvalorizado
socialmente, seus escritos ficam privados. Parece
que não têm valor para ninguém, porque é uma
profissão muito criticada atualmente no México
e foi assim por anos: “Os professores não fazem,
os professores não pensam, os professores não
ensinam, estão na rua”. Eu entendo que, antes,
no México, quando a profissão docente era
mais valorizada, eles mostravam mais. Lembro
que, quando eu era jovem, havia professores
que liam seus poemas em algumas ocasiões,
principalmente nos círculos de estudo, que eram
muito tradicionais. Depois isso desapareceu e
toda a escrita se tornou privada. Se o espaço
de formação consegue constituir-se num lugar
onde os professores podem expressar tudo o
que eles fazem, acho que isso seria saudável.
Nós também gostaríamos de conversar com
você sobre esse movimento de aproximação
entre a formação de professores e a escola
de educação básica. Essas discussões estão
relacionadas à histórica crítica feita à formação
mais teórica e pouco prática dos professores.
Voltarei depois ao tema da prática, da
formação prática. Antes gostaria de retomar as
mudanças ocorridas recentemente no México.
Em setembro de 2012, introduziu-se uma nova
reforma, uma mudança no currículo. Houve
muita insistência por parte do Estado e dos
grupos acadêmico-políticos, que desenharam
a reforma para que a formação fosse ampliada
para cinco anos. De fato, eles já tinham o
plano de cinco anos no currículo, mas houve
muita discussão, resistência e oposição, ainda
que essa não tenha sido uma discussão muito
aberta. É o que digo no artigo publicado na
revista da ABRAPEE (MALDONADO, 2010).
Não foi uma discussão pública, mas os grupos
que participaram conseguiram que a formação
ficasse com quatro anos. A discussão não
dizia respeito apenas à duração, mas também
questionava se a formação do professor
devia continuar nas Normais ou passar às
universidades, debate este sempre presente.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 247-267, jan./mar. 2014.
Dizia-se: “As Normais são coisas do passado,
agora é preciso universitarizar”. Mas as Normais
continuaram e não se conseguiu passar essa
formação para a universidade. Então, minha
opinião é a de que, em muitos países nos
quais se fez a mudança das Normais para a
Universidade, os problemas-chave da formação
não foram resolvidos. Um deles é a relação entre
formação teórica e prática. Em toda revisão de
literatura que se faça em qualquer país, está
presente a discussão sobre a melhor proporção
de prática e de teoria, sobre qual porção do
currículo a prática deve ocupar e sobre qual
será a relação entre essas duas dimensões. E
esse debate continua. Ainda que a formação
esteja na universidade, muitos investigadores
estadunidenses se interessaram em estudar o
que chamamos de distância entre a formação
universitária e a prática na escola básica,
tratando de encurtar essa distância de mil
maneiras, desde a investigação-ação, em que os
professores universitários que fazem pesquisa
vão à escola básica e fazem intervenção e
pesquisa participante, supondo incorporar os
professores da escola básica na pesquisa. Assim,
nessa colaboração, já se resolveria a falta de
proximidade entre professores universitários
e a escola básica. Mas há muitos estudos que
analisam e contam que não foi possível, por
esses meios, estabelecer uma maior relação para
a formação de professores.
Mas existia uma relação formal entre as
Normais e as escolas? Existiam figuras
docentes nesses dois espaços, nas Normais e
nas escolas?
Havia professores de técnica de ensino
na Normal que acompanhavam um pouco,
mas não havia uma regulamentação para
tal acompanhamento. Esse professor de
técnica avaliava o estudante que desenvolvia
as propostas que ele havia ensinado, as
quais se concentravam, principalmente, na
elaboração de material didático. Produziam-se
muitos materiais didáticos e essa era a parte
263
fundamental da formação para o ensino. Então,
o professor da escola básica simplesmente tinha
que aceitar que esse estudante fosse um dia da
semana dar uma aula. Mas também as Normais
tinham uma escola anexa, as “Escolas de
Aplicação”, que eram locais para os estudantes
praticarem, observarem. Eram escolas tão
especiais, tão observadas, tão próximas às
Normais, que alguns de seus professores
acabaram constituindo o pessoal docente das
Normais. Muitos professores das Normais,
ainda nos anos 1960, haviam sido professores
de educação básica e tinham experiência no
ensino daquilo que hoje ensinavam aos seus
alunos. Isso desapareceu no Plano de 1984,
que foi muito centrado na teoria e demandou
profissionais como sociólogos, historiadores
e psicólogos. Havia estágio, sim, em que os
professores iam até a escola com os estudantes,
numa matéria que se chamava Laboratório
de Docência. Na escola Normal, no Plano de
1984, essa prática era usada a título de análise
numa perspectiva de formação de professores
investigadores, embora não explicitamente.
As matérias ministradas eram etnografia e
investigação qualitativa, e todas as abordagens
de pesquisa tinham que ser ensinadas. Foi
quando comecei a trabalhar com as Normais,
porque elas precisavam de pesquisadores que
ensinassem seus professores a pesquisar. Aí
desenvolvi mais intensamente meu trabalho
sobre formação de professores. Eu falava
para eles: “os professores não têm que saber
etnografia”. “Mas no currículo diz que temos que
ensinar os alunos a observar os professores”,
respondiam eles. Publiquei alguns trabalhos
afirmando que assim não estávamos formando
docentes, nem pesquisadores (MERCADO,
1994). Foram anos e anos de trabalhos e
seminários com professores de Normais que
realizavam seus estudos etnográficos com todos
os preconceitos a respeito dos professores de
educação básica: “Eles não sabem disso, não
sabem daquilo”, diziam. Os estudantes iam
para as escolas com um olhar avaliativo, e eu
usava diversos materiais para trabalhar com
264
os professores, explicando o que era e o que
não era etnografia. Foram muitas discussões
procurando deixar claro que formar professores
e formar etnógrafos são tarefas diferentes. E isso
tudo me levou no caminho dos estudos sobre
a formação inicial. Os estudantes iam para a
escola básica e diziam aos professores: “Eu
sou pesquisador, venho aqui fazer etnografia,
venho observar”. Era como dizer “Vocês não são
licenciados”, pois isso foi justamente quando
os professores ficaram desprofissionalizados.
“Nós somos licenciados e vocês não são. Vamos
analisar o que vocês fazem.” Era tudo tão
avaliativo, que as escolas básicas começaram a
fechar as portas para a prática. Foi um grande
conflito entre a formação nas Normais e a
escola básica. No Plano de 1997, foram feitas
várias alterações a partir dessa experiência com
a finalidade de fortalecer a prática. Desde o
primeiro semestre os estudantes iam à escola –
não para ensinar, só para conhecer. No sétimo
e oitavo semestres, que eram os períodos
finais, eles ficavam o ano todo em uma turma.
Assim, esse eixo de aproximação à prática era
feito ao longo do curso, até que, ao final, os
estudantes permaneciam durante todo o ano na
escola básica. Ao mesmo tempo, iam à Normal
e aos seminários. A mudança que ocorreu na
formação durante esse Plano não era só em
relação ao tempo passado na escola, mas à
ideia de analisar na condição de aprendizes
da docência, e não como pesquisadores. A
dissertação de Nancy Hilario (2011), que
orientei, analisa melhor esses processos.
E nesse Plano surge a figura do tutor dentro
da escola básica?
Sim. O currículo previa um tutor na
escola básica e um assessor na Escola Normal,
formando um triângulo com o aluno.
Isso foi no Plano de 1997?
De 1997 a 2012. Em setembro de 2012,
o governo de direita que assumiu o poder
Denise Trento Rebello de SOUZA; Marli Lúcia Tonatto ZIBETTI. Formação de professores e saberes docentes:...
desde 2006 introduziu mudanças alinhadas
ao neoliberalismo na educação. O interesse
era mudar todos os currículos desde a escola
básica, organizando-os por competências.
Então, as Normais não só assumiram as
competências, como eliminaram boa parte da
prática. Ou seja, o que se fazia era semelhante à
residência, porque eles ficavam na escola com
o professor titular. Nesse modelo, eu entendia
que era necessário definir melhor a figura
do tutor, pois ele é um profissional que tem
um trabalho como professor e também uma
responsabilidade na formação dos estudantes
da Normal, observando-os e apoiando-os,
mas que não recebe um pagamento por esse
trabalho. Foi estabelecido um perfil para tal
profissional: ser um bom professor, ser bemvisto pela escola. O assessor tampouco recebe
um pagamento extra e tem mais trabalho,
porque dá aulas e acompanha os estudantes.
Cada um tem cerca de oito estudantes para
acompanhar nos estágios, devendo ir às escolas
e participar da elaboração, pelos estudantes,
de seu trabalho de conclusão de curso. Assim,
esses dois professores têm responsabilidades
agregadas ao seu trabalho cotidiano.
Nas investigações que realizei e orientei,
fizemos etnografia com estudantes das escolas
Normais, com tutores e com assessoras, e
encontramos coisas maravilhosas, coisas que
contradizem e questionam as afirmações
dicotômicas de que as práticas de estágio ou
são tudo ou não são nada. Encontramos vários
processos formativos nos quais ocorrem situações
em que os estudantes vão transformando suas
ideias acerca do que é a escola, do que é o ensino.
Assim que chegavam à escola, diziam: “Os
professores não têm relações harmônicas, não se
comunicam tanto. Deveriam fazer tudo como um
coletivo”. Há aí uma visão idealizada, uma visão
romântica de como deveria ser a escola, com
todos de acordo, todos caminhando juntos. Não
existe isso em nenhum lugar. No início, quando
entravam nas salas de aula para apoiar o tutor,
falavam assim: “O professor é muito autoritário;
eu não vou fazer assim, eu não vou gritar”. Depois
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 247-267, jan./mar. 2014.
eles descrevem, não somente nas entrevistas,
mas também nos encontros que os professores
organizam, como eles próprios agiam da mesma
maneira: “Ah! Quando comecei a dar aula, os
meninos não me davam atenção e eu gritava.
Depois fiquei doente e a professora me dizia: ‘Você
não tem que gritar, porque você vai adoecer’”.
Assim, os relatos dos estudantes mudavam
bastante e eles iam aprendendo, inclusive com
aqueles professores que se valiam da ajuda dos
estagiários para fazer outras coisas. Isso era muito
negativo, mas entre o negativo e o não negativo,
vai havendo um processo de mudança. Não que
todos vão ficar felizes com o que acontece, mas
mudam e esses são processos formativos.
No Chile e no México, os pesquisadores
falavam: “Como os estudantes vão lidar com um
professor ruim neste estágio, nesta residência?
Eles vão ensinar coisas ruins!”. Claro! Assim
é a vida! Mas não vão ficar só com coisas
ruins, afinal, entre os médicos com quem os
estudantes vão fazer residência, há médicos
ruins e outros que não são ruins, e eles têm que
aprender. Não estou justificando a existência
de professores ruins, mas essa diversidade é o
que compõe a escola. “Então não deveríamos
escolher, selecionar os melhores para serem
tutores?” – perguntavam os professores chilenos
e mexicanos. Ou então: “Como podemos
saber quais são os melhores? Vamos fazer um
concurso? E como se isso dará?”. Há muitas
questões envolvidas e penso que deveríamos
abordá-las nos seminários da universidade,
junto com os estudantes.
Então agora não existe mais essa figura do
tutor na escola?
Existe, mas agora só durante um semestre.
Isso muda toda a ideia de acompanhar um ano
escolar de uma mesma turma de meninos, cujos
processos você conhece. Seriam necessárias
avaliações com estudos de meio. Se não se
fazem estudos, como é possível aperfeiçoar? Há
agora uma confusão, uma rejeição, pois a essa
reforma se agregou a reforma trabalhista para
265
todos os professores, que precisam ser avaliados
por competências. Há uma rejeição forte pelos
professores, e eu acredito que existem argumentos
pedagógicos, acadêmicos e de todo tipo contra
a introdução da reforma. Há muitas coisas que
podiam se resolver sem uma reforma total. Afinal,
são 15 anos em que coisas aconteceram, mas
apagaram tudo. A reforma apagou tudo.
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Capítulos de livros:
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Artigos:
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inicial. Educação e Pesquisa, v. 35, n. 2, p. 331-350, maio/ago. 2009.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 1, p. 247-267, jan./mar. 2014.
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Instruções aos colaboradores
Educação e Pesquisa publica somente artigos inéditos na área de Educação e não aceita
trabalhos encaminhados simultaneamente para livros ou outros periódicos do país ou do exterior.
Os trabalhos deverão ser enviados por meio da página da revista no Sistema SciELO de Publicação
(http://www.scielo.org/php/index.php).
O prazo para resposta (aceitação ou recusa) varia conforme a complexidade das avaliações
e de eventuais modificações sugeridas e realizadas. As datas de recebimento e aprovação de cada
colaboração serão informadas no texto publicado. Cabe à Comissão Editorial definir, a cada número da revista, os critérios para reunir os artigos já aprovados.
Diretrizes para a submissão de artigos
No ato da submissão de um artigo, a identificação do(s) autor(es) e a filiação institucional
serão preenchidas em espaços próprios do Sistema SciELO e não devem constar do corpo do texto, o
qual será enviado para avaliação cega dos pares. Tampouco se aceitam quaisquer outras referências
que permitam ao avaliador inferir indiretamente a autoria do trabalho. As informações autorais
serão registradas à parte, como metadados, e acessadas apenas pelos editores.
Na redação do artigo, devem ser observadas as seguintes orientações:
• O texto pode ser apresentado em português, espanhol ou inglês, devendo ser digitado em
processador de texto Word for Windows, fonte Times New Roman, tamanho 12 e espaçamento 1,5. Todas as páginas do original devem estar numeradas sequencialmente. O texto
deve contar, ainda, com o mínimo de 35.000 e o máximo de 50.000 caracteres, considerados
os espaços e excluído o resumo.
• O título do artigo deve ter no máximo 15 palavras.
• O resumo deve conter entre 200 e 250 palavras e explicitar, em caráter informativo
e sem enumeração de tópicos, os seguintes itens: tema geral e problema da pesquisa;
objetivos e/ou hipóteses; metodologia utilizada; principais resultados e conclusões.
Recomenda-se o uso de parágrafo único, voz ativa e na terceira pessoa do singular, frases
concisas e afirmativas. Devem-se evitar: neologismos, citações bibliográficas, símbolos
e contrações que não sejam de uso corrente, bem como fórmulas, equações, diagramas
etc. que não sejam absolutamente necessários. A revista não solicita versão do resumo
em inglês na entrega dos originais, sendo o abstract por ela encomendado a um tradutor
após a aprovação do artigo.
• As palavras-chave devem ser de 3 a 5.
• Os agradecimentos (opcionais) devem ser citados junto ao título, mas em nota de rodapé
e sem quaisquer referências, diretas ou indiretas, à autoria.
• Tabelas, quadros, gráficos e figuras (fotos, desenhos e mapas) devem estar numerados
em algarismos arábicos conforme a sequência em que aparecem, sempre referidos no corpo
do texto e encabeçados por seu respectivo título. Imediatamente abaixo das figuras devem
269
constar suas respectivas legendas textuais. Os mapas devem conter escalas e legendas gráficas.
• As imagens devem figurar em preto e branco, estar digitalizadas eletronicamente em
formato JPG com resolução a partir de 300 dpi e ser apresentadas em dimensões que permitam sua ampliação ou redução sem que a legibilidade seja prejudicada. Todas as imagens
devem ser enviadas separadamente, em seus arquivos originais. O nome da cada arquivo
deve corresponder ao nome da imagem (por exemplo: Gráfico 1).
• Notas de rodapé de caráter explicativo devem ser evitadas, sendo utilizadas apenas quando
estritamente necessárias para a compreensão do texto e tendo a extensão máxima de três
linhas. As notas devem estar numeradas em algarismos arábicos conforme a sequência em
que aparecem no texto.
• Citações no corpo do texto devem obedecer aos seguintes critérios:
a) citações textuais de até três linhas devem ser incorporadas ao parágrafo, transcritas entre
aspas e acompanhadas pelas seguintes informações entre parênteses: sobrenome do autor
da citação, ano da publicação e número de páginas;
b) citações textuais de mais de três linhas devem estar em parágrafo isolado, com recuo de
4 cm na margem esquerda, tamanho 11 e sem aspas;
c) caso não haja citação textual, mas apenas referência ao autor, o sobrenome deste deve
ser indicado entre parênteses, em caixa alta, junto com o ano da publicação referida.
• As referências devem obedecer à norma técnica NBR6023, de 30/08/2002, da Associação
Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Apenas as obras citadas ao longo do texto devem
figurar na bibliografia, a qual deve constar, sob o título de Referências, ao final do artigo
e em página separada.
Métodos de estatísticas
Quando utilizados, os métodos estatísticos precisam ser descritos com o pormenor necessário
para permitir o acesso aos dados originais e a verificação dos resultados apresentados por um leitor
versado no assunto; ao mesmo tempo, deve-se evitar linguagem excessivamente técnica e apresentálos com suficiente clareza de modo a favorecer a compreensão de um leitor não especializado. Tal
solicitação aos autores requer providências como: procurar, sempre que possível, quantificar os
resultados e apresentá-los com os correspondentes indicadores de erro de medição ou de incerteza
(por exemplo, intervalos de confiança); evitar basear-se apenas em testes de inferência estatística,
que não veiculam informação quantitativa relevante; discutir a elegibilidade das unidades de
experimentação; fornecer informação pormenorizada sobre a aleatorização e sobre as observações;
discutir a razoabilidade dos resultados e relatar possíveis limitações do método utilizado; especificar
os programas informáticos utilizados; restringir quadros e figuras à quantidade necessária para
explicitar a fundamentação do artigo e sua solidez; evitar quadros com muitos tópicos e duplicação
de dados; definir termos estatísticos, abreviaturas e símbolos utilizados no artigo.
270
Processo de avaliação pelos pares
Os artigos recebidos para eventual publicação em Educação e Pesquisa serão previamente
avaliados pela Comissão Editorial. Aqueles que estiverem fora dos critérios editoriais da revista
serão devolvidos e os demais encaminhados para a análise de pareceristas, sendo no máximo um
deles membro da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, à qual esta publicação
está subordinada. Os avaliadores consultados terão, no mínimo, o título de doutor e pertencerão
a instituições científicas diversas. Os nomes dos autores, dos pareceristas e das instituições a que
pertencem permanecerão em sigilo durante todo o processo. A revista publica anualmente os
nomes de seu corpo de pareceristas ad hoc.
Os aspectos que orientam a avaliação dos originais encaminhados aos pares para análise
são: conteúdo teórico e empírico, domínio da literatura científica, atualidade do tema, contribuição para a área de conhecimento específica, originalidade da abordagem, estrutura do texto e
qualidade da redação. Os avaliadores poderão recomendar a aceitação integral do texto, indicar
recusa ou, ainda, sugerir modificações para nova avaliação. A Comissão Editorial poderá submeter as sugestões de reformulações ao autor e o artigo, já reformulado, retornará aos mesmos
avaliadores para um parecer final.
Autoria
Entende-se como autor todo aquele que tenha efetivamente participado da concepção do
estudo, do desenvolvimento da parte experimental, da análise e interpretação dos dados e da
redação final. Recomenda-se não ultrapassar o número total de quatro autores. Caso a quantidade
de autores seja maior do que essa, deve-se informar ao editor responsável o grau de participação
de cada um. Em caso de dúvida sobre a compatibilidade entre o número de autores e os resultados
apresentados, a Comissão Editorial reserva-se o direito de questionar as participações e de recusar
a submissão se assim julgar pertinente.
Ao submeter um artigo para publicação em Educação e Pesquisa, o autor concorda com
os seguintes termos:
1. O autor mantém os direitos sobre o artigo, mas sua publicação na revista implica, automaticamente, a cessão integral e exclusiva dos direitos autorais para a primeira edição,
sem pagamento.
2. As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não
refletindo, necessariamente, as opiniões da revista.
3. Após a primeira publicação, o autor tem autorização para assumir contratos adicionais,
independentes da revista, para a divulgação do trabalho por outros meios (ex.: publicar em
repositório institucional ou como capítulo de livro), desde que feita a citação completa da
mesma autoria e da publicação original.
4. O autor de um artigo já publicado tem permissão e é estimulado a distribuir seu trabalho
on-line, sempre com as devidas citações da primeira edição.
271
Conflitos de interesse e ética de pesquisa
Caso a pesquisa desenvolvida ou a publicação do artigo possam gerar dúvidas quanto a
potenciais conflitos de interesse, o autor deve declarar em nota final que não foram omitidas
quaisquer ligações a órgãos de financiamento, bem como a instituições comerciais ou políticas.
Do mesmo modo, deve-se mencionar a instituição à qual o autor eventualmente esteja vinculado,
ou que tenha colaborado na execução do estudo, evidenciando não haver quaisquer conflitos de
interesse com o resultado ora apresentado. É também necessário informar que as entrevistas e
experimentações envolvendo seres humanos obedeceram aos procedimentos éticos estabelecidos
para a pesquisa científica.
Os nomes e endereços informados à revista serão utilizados exclusivamente para os serviços
prestados por esta publicação, não sendo disponibilizados para outras finalidades ou a terceiros.
Correspondência:
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Educação e Pesquisa
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Instructions to authors
Educação e Pesquisa publishes only previously unpublished articles in the field of education
and does not consider manuscripts concurrently submitted for publication in books or other
periodicals in Brazil or abroad. Manuscripts must be submitted via the journal’s page in SciELO
publishing system (http://www.scielo.org/php/index.php).
The time frame necessary for submissions to complete the review process – and be selected
or rejected – varies according to the complexity of the reviews and possible changes suggested and
implemented. The dates of receipt and approval of each article are stated in the published text. For each
of the journal’s issues, the Editorial Board establishes the criteria of organization of the articles approved.
Guidelines for manuscript submission
Upon submission of an article, authorship and the author’s institutional affiliations must
be filled out in proper spaces in SciELO System and should not be mentioned in the text, which
will be submitted to blind peer review. Any references that enable reviewers to infer indirectly the
authorship of the work are not accepted either. Authorship information is recorded separately, as
metadata, and it is accessed only by the editors.
When preparing the manuscript, the following guidelines should be followed:
• The manuscript can be submitted in Portuguese, Spanish or English. It should be typed
in Word for Windows, Times New Roman font, 12-point font size, 1.5 line spacing. All the
manuscript pages should be numbered sequentially. The body of the manuscript should
have a minimum length of 35,000 and a maximum length of 50,000 characters, including
spaces and not including the abstract.
• The title of the manuscript should have 15 words or fewer.
• The abstract should contain between 200 and 250 words and describe, in an informative
manner and without listing topics, the following items: general theme and research problem;
objectives and/or hypotheses; methodology; main results and conclusions. It is recommended
that the abstract should be written as a single paragraph, in the active voice, in the third
person of the singular, in concise and affirmative sentences. The following items should be
avoided: neologisms, bibliographical citations, symbols and abbreviations except those in
common use, as well as formulae, equations, diagrams etc., unless absolutely necessary. The
journal does not require an English version of the abstract along with the original text; if an
article is accepted for publication the journal will provide an English version of its abstract.
• The article should have 3 to 5 keywords.
• Possible acknowledgements should be cited with the title, but in a footnote, and without
any direct or indirect reference to the authorship.
• Tables, charts, graphs, and figures (photos, drawings and maps) should be numbered
with Arabic numerals in the order in which they appear in the text and should include
appropriate headers. Legends should appear right below each figure. Maps should contain
graph scales and legends.
273
• Images must be grayscale, be scanned electronically in JPG format with 300 dpi or
higher resolution and have dimensions that allow reducing or enlarging them without
impairing their readability. All images must be submitted as separate files and named
according to their references in the text (e.g., Graph 1).
• Explanatory footnotes should be avoided and used only when strictly necessary for
understanding the text. Their maximum length should be three lines. Notes should be
numbered in Arabic numerals according to the order in which they appear in the text.
• Citations in the text should meet the following criteria:
a) quotations of up to three lines should be run in – integrated into the text in the same
font size as the text - enclosed in quotation marks and be followed by the following
information in parentheses: last name of the author of the quote, the year of publication
and page numbers;
b) quotations longer than three lines should be set off as block quotations – that is, in a
new paragraph with a hanging indent of 4 cm on the left, 11 point font, without quotation
marks;
c) if there is no quotation, but just a reference to some work, the author’s last name should
be cited in parentheses in capital letters along with the year of publication.
• References must conform strictly with the technical standard NBR6023 of August 30,
2002 of the Brazilian Association of Technical Standards (ABNT). Only works cited in the
text should be included in the reference list, under the heading References, at the end of
the article and on a separate page.
Statistical methods
When employed, statistical methods must be described in sufficient detail to allow a competent reader access to the original data and verification of the results presented, whilst avoiding
excessively technical language and presenting results with enough clarity so as to facilitate their
understanding by a non-specialized reader. This guidance to authors requires steps such as:
seeking, as much as possible, to quantify the results and present them with corresponding indicators of measurement error or uncertainty (for example, confidence intervals); avoiding relying
solely on statistical inference tests that convey no relevant quantitative information; discussing
the eligibility of the experimentation units; supplying detailed information about randomization
and about the observations; discussing the reasonableness of the results, as well as the possible
limitations of the method used; specifying the software employed; restricting tables and graphics
to the amount necessary to explain the foundations of the article and their robustness; avoiding
tables with too many topics and duplication of data; defining statistical terms, abbreviations and
symbols used in the article.
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Peer review process
The articles received for their eventual publication in Educação e Pesquisa will be
previously read by the Editorial Board. The articles that do not meet the editorial requirements
shall be returned, and the rest of them will be forwarded to three evaluators for their analysis. At
the most, one of the evaluators will be a member of the School of Educaton of the Universidade
de São Paulo, to which the journal is subordinated. All evaluators have at least a doctor’s degree
and belong to various scientific institutions. The names of the authors, the evaluators and the
institutions they belong to will remain undisclosed throughout the entire process. The journal
publishes annually the names of its body of evaluators ad hoc.
The aspects that guide the evaluation of the articles are: theoretical and empirical content,
author’s knowledge of scientific literature, current relevance of the topic, contribution to the specific
area of knowedge, originality of the approach, text structure and writing style. The evaluators may
recommend the integral acceptance of the text or its rejection, or they may suggest modifications
for a new evaluation. The Editorial Board may submit such suggestions to the author of the article,
and after the changes have been included, the Board will send the article again to the evaluators
for a final evaluation
Authorship
Author is understood here as anyone who has effectively taken part in the conception of the
study, in the development of the experimental sections, in the analysis and interpretation of data
and in the final writing. It is recommended that the total number of authors should not be greater
than four. If the number of authors is larger than that, the editor in charge must be informed of
the degree of participation of each author. In the case of doubt about the compatibility between
the number of authors and the results presented, the Editorial Board has the right to question the
participation of authors and to refuse submission at its discretion.
By submitting an article for publication in Educação e Pesquisa the author agrees to the
following terms:
1. The author holds the article copyrights, but its publication in the journal automatically
implies the author’s agreement to release its complete copyright to the journal’s first issue,
without financial compensation.
2. The ideas and opinions expressed in the article are the author’s exclusive responsibility
and they do not necessarily reflect the opinions of the journal.
3. After the article’s first publication, the author is authorized to assume additional contracts,
independent from the journal, to publish or present the work through other means (e.g.
in an institutional repository or as a book chapter), as long as a complete quote of the
authorship and of the original publication are provided.
4. The author of an article published in the journal has the right to, and is encouraged to,
distribute the work on-line, always quoting its first publication in the journal.
275
Conflicts of interest and research ethics
When the research developed or the publication of the article may raise doubts about
potential conflicts of interest, the author should declare in an endnote that no links to funding
agencies or to commercial or political institutions have been omitted. Similarly, the institution to
which the author is associated, or that has collaborated in the conducting of the study, should also
be mentioned to guarantee that there are no conflicts of interest with the results being presented.
It is also necessary to inform that the interviews and experiments involving human beings have
followed the ethical procedures established for scientific research.
The names and email addresses entered in this journal site will be used exclusively for the
stated purposes of this journal and will not be made available for any other purpose or to any
other party.
Contact:
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Educação e Pesquisa
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Instrucciones a los autores
Educação e Pesquisa publica solamente artículos inéditos en el área de Educación y no
acepta trabajos que hayan sido enviados simultáneamente a libros u otros periódicos nacionales o
extranjeros. Los trabajos se deben enviar a través de la página de la revista en el Sistema SciELO
de Publicação (http://www.scielo.org/php/index.php).
El plazo para respuesta (aceptación o rechazo) varía según la complejidad de las evaluaciones
y posibles alteraciones sugeridas y realizadas. Las fechas de recibimiento y aprobación de cada
colaboración se informarán en el texto publicado. Le corresponde al Comité Editorial definir, en
cada número de la revista, los criterios para reunir los artículos ya aprobados.
Directrices para la presentación de trabajos
Al proponer un artículo, la identificación del (de los) autor(es) y la pertenencia institucional
se deben rellenar en los espacios propios del Sistema SciELO y no deben figurar en el cuerpo del
texto, que se enviará para evaluación. No se aceptará ninguna referencia que le permita al lector
crítico inferir indirectamente la autoría del trabajo. Las informaciones autorales se registran a
parte y solamente los editores tienen acceso a ellas. De esa forma, el Comité Editorial garantiza
el anonimato de autores y evaluadores.
Al redactar el artículo, se deben considerar las siguientes orientaciones:
• El texto se puede presentar en portugués, español o inglés, se debe digitar en procesador
de texto Word for Windows, en Times New Roman 12 pto, espacio 1,5. Todas las páginas
del original se deben numerar secuencialmente. El texto debe tener como mínimo 35.000
caracteres y como máximo 50.000, considerando espacios y excluyendo el resumen.
• El título del artículo debe tener como máximo 15 palabras.
• El resumen debe contener entre 200 y 250 palabras y explicitar, con carácter informativo
y sin enumeración de tópicos, los siguientes ítems: tema general y problema de la investigación; objetivos y/o hipótesis; metodología empleada; principales resultados y conclusiones.
Se recomienda el uso de un único párrafo, voz activa y tercera persona del singular, frases
concisas y afirmativas. Se deben evitar: neologismos, citaciones bibliográficas, símbolos
y contracciones que no sean de uso corriente, así como fórmulas, ecuaciones, diagramas,
etc. que no sean absolutamente necesarios. La revista no solicita la versión en inglés en la
entrega de los originales, sino que le encarga el abstract a un traductor una vez aprobado
el artículo.
• Se deben incluir de 3 a 5 palabras clave.
• Los agradecimientos (opcionales) se deben mencionar junto al título, pero en nota de pie
de página y sin ninguna referencia, directa o indirecta, a la autoría.
• Tablas, cuadros, gráficos y figuras (fotos, dibujos y mapas) deben estar numerados con
números arábigos según la secuencia en que aparezcan, siempre referidos en el cuerpo del
277
texto y encabezados por su respectivo título. Inmediatamente debajo de las figuras deben
constar sus respectivos subtítulos. Los mapas deben presentar escalas y subtítulos gráficos.
• Las imágenes deben figurar en blanco y negro y deben estar digitalizadas electrónicamente
en formato JPG con resolución a partir de 300 ppp. Deben presentarse en dimensiones
que permitan ampliarlas o reducirlas sin perjudicar su legibilidad. Todas las imágenes
deben enviarse separadamente, en sus archivos originales. El nombre de cada archivo debe
corresponder al nombre de la imagen (por ejemplo: Gráfico 1).
• Notas de pie de página de carácter explicativo se deben evitar. Pueden utilizarse
únicamente cuando sean imprescindibles para la comprensión del texto y deben tener la
extensión máxima de tres líneas. Las notas deben estar numeradas con números arábigos
según la secuencia en que aparezcan en el texto.
• Las citas en el cuerpo del texto deben obedecer a los siguientes criterios:
a) Citas textuales que tengan hasta tres líneas se deben incorporar al párrafo, transcritas
entre comillas y acompañadas de las siguientes informaciones entre paréntesis: apellido
del autor de la cita, año de publicación y número de página;
b) Citas textuales que tengan más de tres líneas deben estar en párrafo aislado, con margen
izquierdo de 4 cm, letra tamaño 11 y sin comillas;
c) Si no hay cita textual sino cita bibliográfica, el apellido del autor tiene que estar indicado
entre paréntesis, con letras mayúsculas, junto al año de la publicación mencionada.
• Las referencias deben obedecer a la norma técnica NBR6023, de 30/08/2002, de la Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Solamente las obras mencionadas a lo largo
del texto deben figurar en la bibliografía, que debe constar con el título de Referencias, al
final del texto y en página separada.
Métodos y estadísticas
Cuando utilizados, los métodos estadísticos se tienen que describir con el detalle necesario
para permitir el acceso a los datos originales y la comprobación de los resltados presentados por
un lector versado en el asunto; por otro lado, se debe evitar un lenguaje excesivamente técnico y
presentarlo con suficiente claridad de modo a favorecer la comprensión de un lector no especializado. Tal solicitud a los autores requiere providencias tales como: buscar, siempre que posible,
cuantificar los resultados y presentarlos con los correspondientes indicadores de error de medición
o de incertidumbre (por ejemplo, intervalos de confianza); evitar basarse solamente en tests de
inferencia estadística, que no vehiculan información cuantitativa relevante; discutir la elegibilidad
de las unidades de experimentación; proveer información pormenorizada sobre lo aleatorio y sobre
las observaciones; discutir la razonabilidad de los resultados y dar a conocer posibles limitaciones del método utilizado; especificar los programas informáticos empleados; restringir cuadros y
figuras a la cantidad necesaria para explicitar la fundamentación del artículo y su solidez; evitar
cuadros con demasiados tópicos y duplicación de datos; definir términos estadísticos, abreviaturas
y símbolos utilizados en el artículo.
278
Proceso de revisión por pares
Los artículos enviados para eventual publicación en la Educação e Pesquisa serán previamente
evaluados por el Comité Editorial. Los que no estén de acuerdo con los criterios editoriales de la
revista se devolverá a sus autores y los demás enviados para análisis de tres evaluadores, como
máximo uno de ellos será miembro de la Facultad de Educación de la Universidad de São Paulo,
a la que la revista está subordinada. Los evaluadores consultados pertenecen a instituciones
científicas diversas y tendrán, como mínimo, el título de doctor. Los nombres de los autores, de
los evaluadores y de las instituciones a que pertenecen permanecen anónimos durante todo el
proceso. La revista publica a cada año los nombres de sus evaluadores ad hoc.
Los aspectos que orientan la evaluación de los originales enviados a los pares para el
análisis son: contenido teórico y empírico, dominio de la literatura científica, actualidad del tema,
contribución para el área de conocimiento específica, originalidad del abordaje, estructura del
texto y calidad de redacción. Los evaluadores podrán recomendar la aceptación del texto en su
íntegra, o su rechazo, o aun sugerir modificaciones para nueva evaluación. El Comité Editorial
podrá someter las sugerencias de reformulación al autor y el artículo, ya reformulado, retornará
a los mismos evaluadores para una evaluación final.
Autoría
Se entiende por autor todo el que haya participado efectivamente de la concepción del estudio, del desarrollo de la parte experimental, del análisis e interpretación de datos y de la redacción
final. Se recomienda no exceder el número total de cuatro autores. En el caso de que la cantidad
de autores exceda ese número, se debe informar al editor responsable el grado de participación
de cada uno. Si hay alguna duda sobre la compatibilidad entre el número de autores y los resultados presentados, el Comité Editorial se reserva el derecho de cuestionar las participaciones y de
rechazar la sumisión del artículo si lo juzga pertinente.
Al someter un artículo para publicación en Educação e Pesquisa el autor está de acuerdo
con los siguientes términos:
1. El autor mantiene los derechos sobre el artículo, pero su publicación en la revista implica,
automáticamente, la cesión total y exclusiva de los derechos de autor para la primera
edición, sin pago.
2. Las ideas y opiniones expresadas en el artículo son de exclusiva responsabilidad del
autor y no reflejan necesariamente las opiniones de la revista.
3. Después de la primera publicación, el autor tiene autorización para asumir contratos
adicionales, independientes de la Revista, para la divulgación del trabajo por otros medios
(ex.: publicar en repositorio institucional o como capítulo de libro), desde que hecha la cita
completa de la misma autoría y de la publicación original.
4. El autor de un artículo ya publicado tiene permiso y es estimulado a distribuir su trabajo
online, siempre con las debidas citas de la primera edición.
279
Conflictos de interés y ética de investigación
En el caso de que la investigación desarrollada o la publicación del artículo puedan generar dudas en cuanto a potenciales conflictos de interés, el autor debe declarar en nota final
que no se han omitido cualesquiera relaciones con órganos de financiamiento ni tampoco con
instituciones comerciales o políticas. De la misma manera, se debe mencionar la institución a la
que el autor esté vinculado, o que haya colaborado en la ejecución del estudio, evidenciando
que no hay cualquier tipo de conflictos de interés con el resultado que se presenta. También es
necesario informar que las entrevistas y experimentos que impliquen a seres humanos obedezcan
a los procedimientos éticos establecidos para la investigación científica.
Los nombres y las direcciones informados en esta revista serán utilizados exclusivamente
para los servicios dados por la publicación, no estarán disponibles a otros propósitos o a terceros.
Correspondencia:
Faculdade de Educação - USP
Educação e Pesquisa
Av. da Universidade, 308 - 2º andar - Biblioteca
05508-040 - São Paulo/SP
Tel/Fax: (11) 3091-3520
E-mail: [email protected]
280
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Educação e Pesquisa
revista
da
faculdade
de
educação
da
usp
Sumários
Educação e Pesquisa
v. 39, n. 4, out./dez. 2013
Educação e Pesquisa
v. 39, n. 3, jul./set. 2013
Artigos
Artigos
URZÊDA-FREITAS, Marco Túlio de. Do pensamento abissal
à ecologia de saberes na escola: reflexões sobre uma
experiência de colaboração, p. 843-858.
SOUZA, Ana Paula Gestoso de; OLIVEIRA, Rosa Maria Moraes
Anunciato de. Aprendizagem da docência em grupo
colaborativo: histórias infantis e matemática, p. 859-874.
OLIVEIRA, Adolfo Samuel de; BUENO, Belmira Oliveira.
Formação às avessas: problematizando a simetria invertida na educação continuada de professores, p. 875-890.
GUZMÁN-VALENZUELA, Carolina; BARNETT, Ronald.
O desenvolvimento da autocompreensão em posturas
pedagógicas: explicitando o implícito entre os novos
docentes. p. 891-906.
RABELO, Amanda Oliveira. Professores discriminados: um
estudo sobre os docentes do sexo masculino nas séries do
ensino fundamental, p. 907-926.
CHAGURI; Jonathas de Paula; JUNG , Neiva Maria.
Letramento no ensino fundamental de nove anos
no Brasil: ações legais e pedagógicas previstas nos
documentos oficiais, p. 927-942.
ROCHA, Eloísa Acires Candal; BUSS-SIMÃO, Márcia.
Infância e educação: novos estudos e velhos dilemas da
pesquisa educacional, p. 943-954.
OLIVEIRA, Carolina Bessa Ferreira de. A educação escolar
nas prisões: uma análise a partir das representações dos
presos da penitenciária de Uberlândia (MG), p. 955-968.
PADOVANI, Andréa Sandoval; RISTUM, Marilena. A
escola como caminho socioeducativo para adolescentes
privados de liberdade, p. 969-984.
MENDONÇA, Ana Waleska P. C. ; LOPES, Ivone Goulart;
SOARES, Jefferson da C. ; PATROCLO, Luciana B. A criação
do Colégio de Pedro II e seu impacto na constituição do
magistério público secundário no Brasil, p. 985-1000.
ALMEIDA, Rogério de. Aprendizagem de desaprender:
Machado de Assis e a pedagogia da escolha, p. 1001-1016.
GARCÍA, Vicente Javier Llorent; IVANESCU, Carolina. La
religión como currículo social: educación, valores e Islam
en Europa, p. 1017-1028.
Dias, Juliana Maddalena Trifilio. Desenhos e vozes no
ensino de geografia: a pluralidade das favelas pelos
olhares das crianças, p. 1029-1048.
GORDON, Colin. Governamentalidade e a genealogia da
política, p. 1049-1066.
VIDAL, Diana Gonçalves. 80 anos do Manifesto dos Pioneiros
da Educação Nova: questões para debate, p. 577- 588.
BEISIEGEL, Celso de Rui. Os primeiros tempos da pesquisa
em sociologia da educação na USP, p. 589-607.
CUNHA, Maria Isabel da. O tema da formação de professores:
trajetórias e tendências do campo na pesquisa e na ação,
p. 609-625.
SOUZA, Gizele de; ANJOS, Juarez José Tuchinski dos;
BARBOSA, Etienne Baldez Louzada. O arquivo público
paranaense: possibilidades para a pesquisa em história da
educação no período provincial, p. 627-643.
FENERICH, Claudia. Razão, sentido e formação a partir de
um diálogo entre Benjamin e Habermas, p. 645-658.
VALLE, Ione Ribeiro. (In)Justiça escolar: estaria em xeque
a concepção clássica de democratização da educação?,
p. 659-671.
BARBOSA, Anna Carolina. Educação bilíngue nos Estados
Unidos: uma possível transição moral para a cidadania
global, p. 673-688.
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