Heimatlos: Antropagia, Montagem e Alegoria, de Gonzalo Aguilar

Transcrição

Heimatlos: Antropagia, Montagem e Alegoria, de Gonzalo Aguilar
1
HEIMATLOS: ANTROPOFAGIA, MONTAGEM E ALEGORIA
(OSWALD DE ANDRADE LEITOR DE NAVIO DE EMIGRANTES, DE
LASAR SEGALL)1
Em sua tese A crise da filosofia messiânica, Oswald de Andrade evoca Sócrates
e diz que caminha pelas ruas empoeiradas de Atenas. O qualificativo contrasta com o
papel fundador do pensamento ocidental que se atribui ao filósofo: não nega este fato,
mas mediante uma montagem (filosofia/pó) destaca ironicamente uma defasagem entre
a permanência da ideia e a volatilidade do terrenal, entre as origens da civilização
ocidental e o ambiente antiquado e precário no qual se moviam Sócrates e seus amigos
filósofos. Não o mármore (com o qual é habitualmente associado), mas o pó. “Sem
cessar – escreve Bataille – tristes mantos de pó invadem os quartos terrestres e as sujam
uniformemente”. 2 Mediante a técnica da montagem, Oswald propõe uma nova origem,
uma nova imagem do filósofo na polis, que conota dispersão, errância, contingência,
caducidade. Não a cabeça que funda o pensamento ocidental, mas os pés imundos de
quem aprende caminhando.
Esta visão da modernidade e de suas origens será a marca de distinção da
antropofagia a partir dos anos quarenta, quando Oswald começa a recuperar o legado
vanguardista em um movimento que desembocará na tese de 1950. À modernidade
assentada do progresso, Oswald opõe a modernidade do desterro e da diáspora que, em
plena guerra mundial, encontra nas imagens de Lasar Segall. Uma modernidade das
ruínas e das ruas empoeiradas, labiríntica entre os escombros, que quebra qualquer
simulacro de permanência e estabilidade. Uma modernidade não feita de ferro e
cimento, mas de pó e areia.
Em razão da exposição de Segall no Rio de Janeiro em 1943, Oswald descobre
que o pintor – a quem não o unia uma amizade particular – não é tanto o regenerado
pela
terra
brasileira
em
que
insistia
certa
crítica,
mas
o
“degenerado” errante que havia sido exibido pelos nazistas na Exposição de Arte
Degenerada, de 1937. Realizada em Munique, a mostra contou com três óleos e sete
gravuras de Segall. Em “Diálogo contemporâneo [I]”, um dos textos mais sagazes
escritos sobre o pintor de origem lituana, Oswald dá com a palavra que será sua chave
de leitura: heimatlos (sem pátria, sem lar). Diferentemente de Candido Portinari, Segall
1
Agradeço muito especialmente a leitura de Jorge Schwartz e Alexandre Nodari.
Georges Bataille: La conjuración sagrada (Ensayos 1929-1939). Buenos Aires, Adriana Hidalgo, 2003,
p.43.
2
2
3
“exprime admiravelmente a nossa época de migrações lancinantes”. Não retrata o
sedentário, “os frutos da terra roxa de Brodósqui que caracterizaram a sua aparição”,4
mas a genealogia do eu contemporâneo.
A tela Navio de emigrantes que Lasar Segall expunha pela primeira vez em
público levou Oswald a utilizar esse termo que, na Alemanha nazista, designava aquele
que era despojado de sua pátria, de sua cidadania e de seu lar. Sua raiz heim (casa) é a
mesma que unheimlich, conceito freudiano que foi traduzido como “o sinistro” e que é o
não familiar ou o familiar que se torna estranho. Heimat, além disso, possui conotações
afetivas das quais carece Vaterland, a outra palavra alemã para se referir à pátria. Desta
maneira, Oswald extraía Segall da rede nacional à qual ele era geralmente associado. E
não só isso, com o termo heimatlos, supera a oposição entre o estrangeiro ou imigrante
bem posicionado (como era o caso de Segall) com o imigrante pobre que viajava de
primeira classe.5 Uma situação de despojo a qual ninguém era alheio e na qual o Brasil
não desempenhava o papel de terra prometida. Estar sem pátria é uma condição que une,
que anuncia uma comunidade por vir, ao mesmo tempo em que dispersa e pulsa no eu
moderno de quem escreve (neste caso, Oswald). Dispersão, contingência, errância,
caducidade: o homem moderno se assemelha ao pó ou a areia e Segall sabia disso; mais
ainda, o havia experimentado. Por isso, ao misturar areia com óleo, não só utiliza uma
técnica para trabalhar a pintura e dar-lhe uma superfície mais rugosa. Também está
colocando na tela a condição do pintor e dos migrantes que retrata. A areia é margem,
tempo, volatilidade, multidão, mistura, dispersão. É também a ausência de pegadas,
entre o mar e a terra, não fosse que, em um momento, o pintor a tomou em suas mãos,
misturou-a com óleo e a usou para seus retratos.
Judeu errante
Nas primeiras décadas do século XX, as migrações pelo mundo todo alcançam
proporções inéditas. A princípio do século, tinham a ver principalmente com a falta de
trabalho, a modernização e os programas políticos dos Estados, mas com a Primeira
Guerra Mundial as migrações adquiriram um caráter muito mais dramático do que já
3
Em Feira das sextas (org. Gênese Andrade). São Paulo, Globo, 2004, p.77. Ele também acrescenta em
outra passagem do mesmo ensaio: “Todos os filhos naturais de Goebbels se reuniram numa conspiração
soturna para esmagar Segall...” (p.77). Oswald recupera a figura de Segall no mesmo momento que Mário
desloca suas preferências pelo pintor de origem lituana para a obra de Candido Portinari (devo esta
observação a Jorge Schwartz).
4
Idem, ibidem, p.76.
5
Sobre estas questões ver a excelente exposição sobre Navio de emigrantes (org. Vera d´Horta) realizada
no Museu Lasar Segall e os agudos ensaios de Moacyr Scliar, Paulo Sergio Duarte, Jorge Coli e Celso
Lafer reproduzidos em Navio de migrantes, catálogo. São Paulo, Museu Lasar Segall/Imesp, 2008.
3
tinham. Os judeus, que não gozavam de cidadania em muitos dos países europeus,
encontraram-se diante de uma situação muito complexa que se agudizou, nas zonas
próximas à Rússia, com a Revolução de 1917. Nessa época, Lasar Segall encontrava-se
na Alemanha, onde havia chegado em 1906 para ingressar na Escola de Artes Aplicadas
de Berlim, mas o impacto da Revolução deve ter sido tremendo, já que a Lituânia
pertencia à Rússia czarista. Em que pese haver podido se integrar aos grupos de Berlim
e depois de Dresden, isso não o excetuava das comoções da migração. Do mesmo modo
que quando se diz que assumiu a nacionalidade brasileira em 1927: tão importante como
adquirir uma nacionalidade é enfrentar a necessidade de ter que pedir outra. É que
Segall não pertence a esses judeus que Joseph Roth denominou “ocidentais”, mas foi,
no sentido amplo do termo, um “judeu da Europa oriental”. Em Judíos errantes, de
1927, Roth sustenta que há três tipos de judeus europeus: os ocidentais, os alemães e os
orientais.6 No momento em que escreve seus artigos, “o país das possibilidades
ilimitadas não eram os Estados Unidos da América e sim a Alemanha”.7 Era na
Alemanha que judeus de todos os lugares chegavam, sobretudo das zonas mais
paupérrimas da Europa Oriental. As críticas mais ácidas de Roth em suas reportagens
estão voltadas para os judeus alemães, aos quais recrimina terem se acreditado em
igualdade de condições com os cidadãos alemães e em menosprezar os judeus orientais
– esfarrapados e em trânsito – com os quais sempre trataram de se diferenciar. Essa
crítica estava dirigida aos judeus cultos, artistas, músicos e escritores, que acreditaram
que a cultura alemã era Goethe e Beethoven.
Segall tinha uma dupla condição, porque como artista havia se integrado a
diversos grupos, primeiro em Berlim e depois em Dresden, ainda que por sua origem
fosse judeu oriental. Nesse sentido, não chega a ser em termos estritos o que Joseph
Roth definiu – ao falar dos judeus orientais – como personagens com pacotes: “São
residentes. Indigentes residentes. O provisório se transformou para eles em uma forma
de vida estável e, em seu desenraizamento, fincaram raízes”.8 Nessa errância de cidade
em cidade, os judeus orientais começam a mudar suas preferências, e em vez de ter a
esperança de se instalar em Berlim, anseiam viajar para os Estados Unidos. Segall, em
que pese vir da Lituânia, parece ter se incorporado rapidamente à elite de artistas locais,
6
A procedência de Roth era diferente da de Segall, já que o escritor era originário de Galitzia, território
que não estava sob o poder do czar e sim do imperador austro-húngaro. Mas como observador das
migrações européias e habitante de Viena, Berlim e Paris, Roth soube, em seus textos jornalísticos e
ficcionais, plasmar como ninguém o drama do judeu oriental.
7
Roth, Joseph. Judíos errantes. Barcelona, Acantilado, 2008, p.9.
8
Roth, Joseph. Crónicas berlinesas. Barcelona, Minúscula, 2006, p.63.
4
talvez porque ele viesse de uma família culta e bem situada dentro de sua comunidade
(o pai era soifer ou escriba). Entretanto, a situação foi se tornando cada vez mais difícil
e a viagem para a América foi se transformando em uma possibilidade (no seu caso,
para o Brasil, onde tinha parentes).
No deslocamento para a América, segundo Joseph Roth, ocorrem dois fatos
significativos. Em primeiro lugar, ao chegar à Nova Iorque os judeus descobrem que
“ali há judeus que são ainda mais judeus do que os judeus, a saber: os negros. Ali um
judeu é, certamente, um judeu. Mas é um branco e isso é o principal. Pela primeira vez,
uma vantagem é oferecida à sua raça”.9 A experiência pode não ser alheia à que Segall
teve no Brasil: a semelhança de alguns retratos de negros com os de migrantes, com os
olhos negros como que esvaziados, recupera o substrato de uma experiência comum que
faz a modernidade diaspórica de uns e outros. Existe até um desenho intitulado Favela,
de 1930, que estabelece uma analogia entre o morro e o navio (embora o ânimo dos
personagens seja oposto).
A outra observação de Roth vincula-se com a viagem transoceânica:
O judeu oriental – escreve Roth – está acostumado a errar através
de extensos países, mas não pelos mares [...]. A estepe não lhe dá
medo, como tampouco o ilimitado da planície [...]. Mas no mar
não se sabe onde Deus está. Não se reconhece onde está o
misraj. Não se sabe qual é a situação da pessoa com relação ao
mundo. Não se é livre. Depende-se do rumo que o barco tomou.
Aquele que, como o judeu oriental, carrega no sangue a
consciência de que qualquer momento pode ser bom para fugir,
não se sente livre em um barco. Aonde pode ir, para salvar-se, se
acontecer alguma coisa? O judeu oriental vem se salvando já há
muitos séculos. Sempre está acontecendo, há séculos, algo
ameaçador. Há séculos foge sempre. O que pode acontecer?
Progroms também podem estourar em um barco? Para onde se
dirigir então?10
O navio, desta perspectiva, surge com uma dupla significação: é a marcha à
deriva dos errantes e, ao mesmo tempo, a tristeza por não poder fugir, de haver perdido
a extensão para a fuga. Lasar Segall relatou a Oswald uma experiência neste sentido,
que depois o autor de Serafim Ponte Grande contou em “Diálogo das vozes segalinas”,
ensaio que publicou na Revista Acadêmica, no número dedicado a Segall: “Uma noite o
artista de Os emigrantes [sic] me contou, em sua expressiva conversa, um dos episódios
máximos de sua vida de heimatlos quando, entre as fronteiras de dois países, tomara um
9
Roth, Joseph. Judíos errantes. Barcelona, Acantilado, 2008, p.111.
Idem, ibidem, p.108.
10
5
trem sem saber a que destino o levava, se para a fuga ou para a prisão. Desta ânsia
parece haver brotado o pânico de sua obra. Suas figuras, cores e composições são uma
demonstração plástica do ser que luta e se desdobra entre a agonia do viver e a certeza
da morte”.11 É esta situação de perigo permanente, mais do que a integração feliz à
pátria que o acolheu, que interessa a Oswald: um pânico comovedor que faz de sua vida
uma agonia, uma luta – como proporá em sua leitura – entre o ícone e a revolução,
entre a infância perdida e o futuro.
A visão de Joseph Roth é a de alguém contemporâneo aos fatos, mas que, no
entanto, capta perfeitamente, além de algumas simplificações, a experiência da diáspora
judia. Faltavam vários anos para o nazismo, mas Roth já detecta a virulência da
intolerância e a obcecada negação dos judeus frente aos anúncios do desastre (em seu
romance La tela de araña não havia sido menos profético). Já depois da ascensão
nazista ao poder, houve outra voz que refletiu agudamente sobre o estatuto do
refugiado como uma categoria chave da política contemporânea. No mesmo ano que
Segall expõe Navio de emigrantes no Ministério da Educação do Rio de Janeiro,
Hannah Arendt publicava o ensaio “Nós os refugiados”, no The Menorah Journal, um
pequeno periódico judeu de Nova Iorque.12 Neste ensaio, Arendt evoca um tal de Mr.
Cohen, que em Berlim era 150% alemão, em 1933 se mudou para Praga onde foi 150%
checo e depois se mudou para Viena até chegar a Paris. Cohen é um negador, mas não
lhe faltam razões: “nossa identidade muda tão frequentemente que ninguém pode
descobrir como é realmente”. Mas diferentemente de Cohen, também há muitos que
enfrentam sua condição de párias e obtêm, assim, uma vantagem inestimável: “para
eles a história não é mais um livro fechado e a política não é mais um privilégio dos
gentis”. Essa abertura à verdade e à história é central na política contemporânea, porque
11
O texto “Diálogo das vozes segalinas” foi traduzido ao castelhano em Judaica, nº 155, Buenos Aires,
maio de 1946, em um número dedicado ao pintor. Na introdução ao número, são explicadas as razões que
levaram a Revista Acadêmica a dedicar um número a Segall. A introdução diz assim: “Além do grande
número de pessoas que desfilaram pela exposição (em três semanas o livro de visitantes registrou mais de
12.000 assinaturas) ela originou uma viva agitação [...] além do aspecto puramente artístico, é preciso
lembrar também um político. Aproveitando a oportunidade, que lhes pareceu excepcional, alguns
elementos conhecidos por seus elementos fascistas trataram de criar um ambiente que lhes permitisse
prosseguir em suas atividades delituosas, depois da declaração de guerra do Brasil às nações do Eixo,
suscitando uma feroz campanha contra a “arte degenerada” do grande pintor. A reação dos artistas e
intelectuais brasileiros, contudo, não se fez esperar, desmoralizando de vez aquela tentativa”. Em razão
desses ataques, Murilo Miranda idealizou um número de desagravo. O número de Judaica reproduz este
editorial, além de vários artigos da Revista Acadêmica, entre eles o de Oswald e Mário de Andrade. Ver
Jorge Schwartz: “Segall, una ausencia argentina. Notas para la primera retrospectiva en Buenos Aires”
em Lasar Segall. Un expresionista brasileño. MALBA/ Museu Lasar Segall, São Paulo, Takano, 2002,
p.284.
12
Em castelhano foi incluído em Hannah Arendt: una revisión de la historia judia y otros ensayos.
Barcelona, Paidós, 2005.
6
põe no seu centro a figura do refugiado. Como o que está acontecendo com esses
judeus na Europa também acontecerá com os outros países europeus, conclui Arendt, os
refugiados judeus “representam a vanguarda de seu povo”. Esta parece ter sido a ideia
de Segall sobre aqueles aos quais retratou. Como não os observava do país de chegada,
não os chamou de imigrantes e sim de emigrados, destacando mais o despojo do que a
reintegração. Como os considerava expulsos, chamou-os assim e não de migrados.
Nesse fragmento, como Oswald viu muito bem, Segall não quis expressar um drama
particular e sim um fragmento da história contemporânea.
Segall não os observa da margem nem do convés, não os vê da terra prometida
nem tampouco se mistura com eles. Neste ponto torna-se central compreender por que,
em Navio de emigrantes, o pintor assumiu o ponto de vista elevado, da superestrutura
do transatlântico, para retratar o destino de seu povo ou a condição moderna por
excelência: ser um heimatlos. Por que em vez de se incluir como figura em pânico
preferiu a panorâmica.
Em IIIª Classe (1928), uma das tantas ilustrações que Segall fez em suas
viagens transatlânticas, oferece-se uma visão do barco de migrantes, mas de uma
perspectiva diferente à do quadro. Observa-se da proa, mas em uma posição aérea que é
imaginária. O “motivo do voo”, do qual fala Mário de Andrade em seu ensaio para o
catálogo da mostra de 1943, materializa-se no ponto de vista adotado pelo pintor. No
convés, vêm-se os grupos em posições bastante similares à de Navio de emigrantes. Na
superestrutura, o capitão observa os passageiros da segunda classe fumando um
cachimbo. O desenho tem uma estrutura piramidal que se cria mediante uma falsa
perspectiva, já que, pelo ponto de vista adotado, o capitão deveria ver-se menor do que
seus passageiros. Mas acontece o contrário: seu tamanho é demasiadamente grande e o
detalhe de seus traços contrasta com os rostos em branco dos migrantes. Majestoso e
impávido é o único ao qual o destino não faz inclinar a cabeça. A posição do capitão é a
mesa que o olho do pintor ocupa em Navio de emigrantes, onde se observa os
personagens do segundo convés. Mas ao apagar o corpo que observa de um lugar
elevado, Segall também suprime a existência de uma distância hierárquica. Esta
supressão da distância tem alguns traços peculiares que podem ser destacados se se
confrontar a obra de Segall com outra que lhe é afim e a qual inspirou.
Em 1956, Antonio Berni pinta Os emigrantes, em homenagem a Segall. A cena
se assemelha a do quadro de Segall, mas com algumas modificações essenciais: o céu e
o anúncio das pombas desaparecem na obra de Berni e o ponto de vista adotado não é o
7
do segundo convés do barco, mas uma mais próxima, também artificial (os passageiros
são colocados em uma posição escalonada vertical), mas na qual o pintor pareceria
também estar na 3ª classe, dividindo o mesmo espaço que seus retratados. Dois
elementos incorporados por Berni sugerem se não uma crítica, pelo menos uma
distância com a visão adotada por Segall: o uso de uma paleta muito variada, com cores
fortes e o detalhe posto em cada retrato, destacando não só os
gestos, mas também diferenças entre as roupas e as posições.
Segall, entretanto, usa uma paleta uniforme e uma gestualidade e
posição dos corpos que percorre todos os personagens como se
buscasse uma tonalidade comum, ou a construção de uma
comunidade (do comum) pela existência de um mesmo destino.
Segall pinta uma multidão e dissolve a identidade individual ou a
conecta com outras; Berni retrata um grupo (quinze pessoas) de
diferentes sexos e idades, cada um constituindo alguém particular.
É possível que o compromisso de Berni com o Partido Comunista,
particularmente poderoso nesse ano, depois de sua viagem a Santiago del Estero e da
exposição na Galeria Creuze, de Moscou, em 1955, o tenha levado a adotar
determinadas soluções: em primeiro lugar, a inclusão do pintor na terceira classe como
mais um lutador e, em segundo lugar, a importância dada ao casal central, em que a
mulher grávida usa um vestido vermelho, com todas as conotações próprias dessa cor.
Lasar Segall
Navio de emigrantes,
1939/41
230x275 cm
Antonio Berni
Os emigrantes, 1956.
300x182 cm
A solução de Berni resulta hoje menos aguda do que a de Segall, porque à força
de identificar-se com os outros, anula a diferença existente entre o pintor e os
retratados. Colocar-se no lugar do outro é mais efetivo, mas à custa de anular a
distância material que separa o pintor (consagrado) dos migrantes. Ao dotar cada
personagem de particularidade e de um poder de expressão própria, o poder alegórico
8
da imagem modulada segundo um mesmo pathos de Segall, perde-se em benefício da
construção de um símbolo: os emigrados trazem a mudança e a Revolução.
O ponto de vista adotado por Navio de emigrantes suprime então a distância
hierárquica, mas sem chegar à ideia de dividir um mesmo lugar que há em Berni e sim
marcando uma distância (a visão panorâmica) e ao mesmo tempo uma continuidade.
Por meio de um procedimento que Picasso já havia utilizado em As senhoritas de
Avignon, com a mesa e as frutas, o convés da terceira classe continua na margem do
quadro como se se estendesse até o lugar em que o espectador está.13 Jorge Schwartz,
em seu ensaio “Segall, una ausencia argentina”, conta que o que inspirou o artista a
fazer o quadro foi ficar a par, pelo Diário da Noite, da existência de um barco “sem
norte”, chamado Navio Fantasma. Eram, nas palavras do pintor, exilados do mundo.
Mediante seu procedimento de distância, apagamento de hierarquia e continuidade do
convés até os limites da tela, Segall resolve a relação que tem com seu tema e evita
tanto a solução sentimental como o entusiasmo político. O que aparece é a grande
história patética que se alegoriza diante de nossos olhos como um testemunho do
momento de permanente pânico e desespero.14
O Navio como alegoria
Na tentativa que Mário de Andrade faz para
inserir Segall na arte brasileira, Navio de emigrantes
emerge como um símbolo. “Vidas silenciosas”, o
texto que lhe dedica na Revista Acadêmica (e que
Judaica reproduz), começa com estas palavras:
"Terceira classe", 1928. Ponta-seca (matriz de
Em sua ascensão contemporânea em direção as formas e as
noções ideais, Lasar Segall está criando obras que são, na
realidade, não só aquilo que elas mostram em sua representação,
mas que realizam toda a identidade interior de um símbolo, no
sentido psicológico moderno desta palavra.15
Para Mário, Lasar é um “artista-filósofo”, dando a cada quadro, a cada assunto,
a cada sentimento ou ideia “um valor de transcendência”. Transcendência e ascensão
13
Para uma análise desse efeito em Picasso, ver Leo Steinberg: Outros critérios. São Paulo, CosacNaify,
2008, p.214.
14
Não se deve esquecer que esse processo de composição do quadro se dá nos anos nos quais os nazistas
estão conquistando a Europa e vencem no conflito bélico.
15
Em Judaica, nº 155. Buenos Aires, maio de 1946, p.199. Grifos meus.
9
são as duas operações simbólicas que dotam esse navio de uma direcionalidade e um
objeto – o pássaro – consegue sintetizar todas as vicissitudes representadas.
Onde Mário vê um artista-filósofo, Oswald encontra um artista-dramaturgo. Em
seu ensaio, depois de uma breve introdução, desenvolve-se uma peça cênica “em um
amplo estudo com cortinas corridas” e no qual dialogam Ícone e Revolução. Navio de
emigrantes, aos olhos de Oswald, não é um símbolo e sim uma alegoria.16 O pintor
pinta com a cabeça e “as mãos e o pincel [fazem] uma prolongação acessória do que ele
recebe, sofre e alegoriza”.17 A imagem materializa a história (já não é mais um livro
fechado como observava Arendt) e agudiza a tensão entre a representação do ícone e a
construção da revolução, entre a pintura e a arquitetura, entre a devoção religiosa e a
épica miguelangelesca, entre o destino de tragédia e a ação do drama. O que faz com
que esta multiplicidade agônica nunca se reduza é que, em que pese que “a revolução
receba o sem-pátria e o acolha no mar dos que emigram, entre as vítimas dos progroms
e das guerras”,18 esta integração não suprime o abandono a que essas criaturas se veem
lançadas. Por isso, quando a Revolução diz “Eu sou o futuro”, o Ícone responde: “Eu
sou a permanência”. O sentido trágico da vida é ineliminável.
As águas que arrastam a embarcação são as da história. O navio é um fragmento
que cifra uma decadência que encontra no povo judeu seu paradigma. Um ícone
melancólico que nos é oferecido a nossa contemplação com um “sentido perturbador”
que nenhuma revolução poderá dissipar. A areia permanece.
A situação dos refugiados e do heimatlos muda o eixo da antropofagia rumo a
um nomadismo da dispersão e o torna alegoria abrindo-o à flutuação do devir histórico.
A partir dessa leitura da grande obra segalliana, Oswald – de um modo que é muito
típico de seus últimos anos – sustenta, ao mesmo tempo, a montagem vanguardista que
foi sua arma privilegiada nos anos vinte e a dialética teleológica que defendeu em seus
anos comunistas. A areia e a proa. A Errática e a comunidade. A duplicidade
antagônica e a abertura alegórica. Como soube vê-lo em Sócrates, o pó não cessa, o pó
permanece e nessas ruas arenosas caminhamos.
Trad. Maria Paula Gurgel Ribeiro
16
Mário expõe, em seu texto da Revista Acadêmica, suas dúvidas em relação com a leitura alegórica:
“Cada obra atual do pintor congrega um ramalhete de imagens, de ideias, de associações e até de
alegorias”. (grifo meu).
17
Em Judaica, nº155, p.201.
18
Idem, ibidem.
10

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