Doença de Fabry – Aspectos clínicos e estruturais

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Doença de Fabry – Aspectos clínicos e estruturais
Doença de Fabry – Aspectos clínicos e estruturais
Paulo Ricardo Gessolo Lins
Introdução
Doença de Fabry compreende os aspectos clínicos e manifestações patológicas da deficiência
hereditária ligada ao cromossomo X da enzima alfa-galactosidase (ceramida trioxidase) – alfaGAL A, resultando em acumulo intracelular de glicoesfingolipideos neutros com resíduos ricos
em galactose na posição alfa, principalmente globotriasilceramida.Descrita por Fabry (1) e
Anderson (2) como uma patologia com lesões cutâneas clássicas associada com proteinuria e
doença renal, o qual Fabry descreveu como angiokeratoma corporis diffusum.
Fisiopatologia
Mais de 300 mutações já foram descritas em portadores da doença de Fabry no gene
responsável pela produção intracelular da enzima alfa-GAL A (Gene Xq22.1) ou GLA. Essa
enzima é responsável por parte do metabolismo das ceramidas, os quais são constituintes da
membrana plasmática celular, membrana de organelas intracelulares e também são
encontrados na circulação sistêmica como componente das apolipoproteínas(3). A alfa-GAL A
catalisa a remoção de um resíduo de galactose ligado em posição alfa nos glicoesfingolipideos.
(Figura 1)
Figura 1 - Via metabólica
Com herança ligada ao X, a deficiência da alfa-GAL A gera um acúmulo progressivo de
glicoesfingolipideos neutros, principalmente aqueles com resíduos alfa-galactose, sendo o
globotriasilceramida (Gb3). Outras patologias hereditárias conhecidas denotam de diferentes
deficiências enzimáticas na via de metabolização dos glicoesfingolipideos (Figura 2)
Figura 2 - Via de metabolização dos esfingolípideos – Em vermelho doença resultante da deficiência da enzima
chave na via descrita.
O acúmulo dos glicoesfingolipideos, principalmente o Gb3, ocorre dentro dos
lisossomos (organelas intracelulares presente em todas as células do corpo humano), gerando
assim uma disfunção celular progressiva e cumulativa desde os primeiros anos de vida até a
morte do indivíduo. (Figura 3) Virtualmente, todos os órgãos do corpo humano são
envolvidos, porém o endotélio é um dos principais acometidos, gerando assim os conhecidos
fenômenos vasculares isquêmicos precoces. (3)
Figura 3 - Via metabólica com erro inato responsável pela doença de Fabry
No rim, esse acúmulo ocorre de forma universal. Devido a características próprias, o
podócito é a célula que mais apresenta depósitos de Gb3 ocasionando assim grande grau de
disfunção podocitária já nas primeiras décadas de vida expressos clinicamente por proteinúria
sub-nefrótica e até nefrótica e consequente disfunção renal. (Figura 4) (3)
Figura 4- Eletrofotomicrografia de bíopsia renal de portador de Doença de Fabry - No detalhe, acúmulo de
glicoesfingolipideos
Macroscopia
Descrições macroscópicas são raramente encontradas, porém os rins podem estar
aumentados de tamanho globalmente devido ao acúmulo de material. Múltiplos cistos renais
ou parapiélicos podem estar presentes em até 50% dos acometidos, a incidência destes cistos
aumenta com a idade, no entanto não se correlaciona com atividade residual enzimática, tipo
de mutação ou função renal. (4)
Exame de urina
A avaliação da urina de pacientes com doença de Fabry pode apresentar com grandes
quantidades de glicoesfingolipideos, que em microscopia de fase / polarizada se apresentam
como corpos ovais ou até cruzes de malta assimétricas. (Figura 4)
Figura 4 – A – Microscopia de fase de amostra urinária mostrando diversos corpúsculos ovais. B – Microscopia
polarizada demonstrando corpúsculos de malta (4 gotículas organizadas simetricamente) C – Microscopia de fase e
detalhe da microscopia polarizada de corpúsculo oval assimétrico com cruz de malta assimétrica, característicos da
doença de Fabry.
Microscopia óptica
Os achados na microscopia ótica são considerados fáceis de correlação diagnóstica. O
acometimento é predominantemente glomerular via presença de células aumentadas de
tamanho e com presença de inúmeros vacúolos intracelulares. Dentre as células do tufo
glomerular, o podócito é o que apresenta maior acometimento de vacuolização
citoplasmática, entretanto o endotélio capilar, células mesangiais e inclusive células do epitélio
parietal da cápsula de Bowman também podem estar acometidas. Esses depósitos e vacúolos
também geram um importante espessamento da membrana basal glomerular com finos
pontos da vacuolização.
Esses vacúolos classicamente aparecem como figuras negativas nas preparações com
parafina pois os glicoesfingolipideos acumulados são removidos durante o processamento do
material para emblocamento em parafina. Se o material for preservado fresco ou fixado
somente em formalina, os vacúolos vão se apresentar birrefringentes, autoflourescentes e
fortemente corados por métodos que utilizem o Sudan, oil red O e ácido periódico de Schiff.
Com relação ao compartimento vascular, também podemos encontrar os mesmos
vacúolos nas células endoteliais e na camada muscular lisa, gerando inclusive espessamenos
médio-intimais não compatíveis com a idade cronológica. Já citando o compartimento
intersticial, também podemos presenciar os vacúolos nas células tubulares e presença de
células gigantes espumosas.
Em heterozigotas (mulheres portadoras do traço), os vacúolos também podem ser
encontrados, porém em menor quantidade e grau de afecção.
A progressão natural da Doença de Fabry renal gera esclerose mesangial glomerular
(padrão GESF like), espessamento e esclerose da parede vascular inespecífico, atrofia tubular e
fibrose intersticial.
Os achados da microscopia por imunoflourescencia são escassos, muitas vezes sendo
negativos ou demonstrando somente “trappings” glomerulares focais e segmentares de
imunoglobulinas
Microscopia eletrônica
A microscopia eletrônica de transmissão demonstra lisossomos aumentados e
preenchidos por material osmofílico, com membrana de forma lamelar a granular dando um
aspecto descrito como “corpo de zebra”. Essas inclusões são especialmente vistas em
podócitos, células do epitélio de bowman, epitélio tubular distal e miócitos vasculares,
entratanto elas são descritas em virtualmente todas as células renais.
Transplante
Como o enxerto renal apresenta expressão genética da alfa-GAL A, o transplante renal
corrige a insuficiência renal com grande eficácia, com boa função do enxerto e sobrevida em
longo prazo. (5) Quando investigado via biópsia, esse enxerto pode demonstrar em menor
intensidade, os mesmos vacúolos, porém isso é infreqüente e sem correlação com disfunção
do enxerto.
Marcadores de Resposta terapêutica a TER (beta-agalsidase)
O tratamento com terapia de reposição enzimatica (beta-Algasidase) demonstra
clareamento dos vacúolos em biópsias protocolares (6) além de melhora de sintomatologia e
redução da progressão da doença renal (7).
Apesar de já estar disponível uma terapêutica efetiva e eficaz, ainda é de grande
dificuldade a análise de clareamento e resposta terapêutica a terapia de reposição enzimática.
Grupos internacionais de especialistas sugerem sistemas de escores com contabilização de
variáveis na biópsia (Grau de vacuolização podocitária, presença e forma da esclerose
glomerular, aderências, colapso glomerular, fibrose intersticial, hialinose arterio-arteriolar. E
inclusões tubulares e no endotélio vascular. (8)
Quadro clínico
O curso clínico da doença de Fabry acomete diversos sistemas, de forma variável e por
vezes devastadoras, incluindo coração, rins e sistema nervoso (central e periférico). De acordo
com o padrão de herança geneticamente condicionado e ligado ao X, os homens hemizigotos
(ou seja, portadores do X com a mutação) apresentam uma condição clínica mais florida e
proeminente em comparação a mulheres heterozigotas, as quais podem apresentar variações
de espectros clínicos dependente do sistema de lyonização do cromossomo X.
Manifestações neurológicas
As manifestações neurológicas são as mais comuns e precoces na apresentação da
doença de Fabry. Parestesias acrais, hipohidrose ou até anidrose, além de crises de dor
neuropática podem surgir desde a infância / pré adolescência. Sintomas de disautonomia e
redução da motilidade gastro-intestinal também podem estar presentes. Essas manifestações
são acarretadas pelos depósitos de glicoesfingolipideos diretamente nos corpos axonais.
Depósitos de glicoesfingolipideos no endotélio vascular pode precipitar quadros
cérebro-vasculares, principalmente em território de circulação vertebro-basilar, com
manifestação de vertigem, nistagmos, náuseas e vômitos incoercíveis, cefaleia e até ataxia.
Quadros demenciais já foram descritos pelo depósito de glicoesfingolipideos em vasos de
pequeno calibre intracerebrais. Acidentes vasculares encefálicos, como hemorragias e infartos
também podem ocorrer.
Manifestações oculares
Alterações corneanas são comumente descritas em pacientes com Doença de Fabry,
tanto do sexo masculino como feminino. A anormalidade é descrita como córnea Verticillata e
são referidas como espirais de material esbranquiçado emergindo do centro da córnea (padrão
de roda de bicicleta), sendo vistas à partir de uma lâmpada de fenda. Glaucoma e catarata
também podem ocorrer.
Manifestações pulmonares
O acúmulo de glicoesfingolipideos em parede vascular e do trato respiratório podem
também ocasionar distúrbios do tipo obstrutivos, mimetizando quadros asmatiformes na
infância, principalmente em meninos, porém sem a presença de reversão da obstrução
espirométrica após uso de broncodilatador.
Manifestações cutâneas
Classicamente, os pacientes com doença de Fabry apresentam angioqueratomas, essas
lesões são de característica papulosas pouco elevadas ou maculares, vermelho-escuras, de
número variável. Tipicamente, elas se localizam em nadegas, região periumbilical, genitália e
coxas. (Figura 5)
Figura 5 - Manifestações cutâneas - Angioqueratomas
Manifestações cardíacas
O depósito de glicoesfingolipideos em tecido miocárdico pode ocasionar presença de
bradicardias e taquiarritmias, sendo potencialmente fatais. Doença valvar também pode
ocorrer.
Já o depósito em endotélio / vasos coronários pode levar a quadros anginosos e até
infarto agudo do miocárdio.
Manifestações renais
O espectro de manifestação renal da doença de Fabry é bastante amplo, sendo
descrito desde defeitos de concentração até doença renal terminal. A manifestação mais típica
é a abertura do quadro com proteinúria sub-nefrótica com hematúria discreta a moderada na
segunda década de vida, podendo em alguns casos causar até síndromes nefróticas em casos
esporádicos. A deterioração da função renal é insidiosa, se iniciando em hipertensão até
apresentação em franca uremia, o tempo médio de evolução final dos pacientes com doença
de Fabry é ao redor da quarta ou quinta década de vida.
Diagnóstico
O diagnóstico de homens afetados é eminentemente clínico, com a ajuda das
alterações oculares específicas (córnea Verticillata). A confirmação laboratorial pode ser
realizada a partir da demonstração de baixa ou ausência atividade da alfa-Gal A em leucócitos,
tecidos orgânicos ou cultura de fibroblastos do paciente em questão. O diagnóstico em
mulheres é mais trabalhoso, já que estas podem apresentar expressão variável da atividade da
alfa-GAL A. Dosagem urinária de ceramida digalactosideos ou trihexosideos podem corroborar
o diagnóstico em situações clínicas complexas, assim como a avaliação oftalmológica com
lâmpada de fenda.
Técnicas moleculares podem identificar defeitos genéticos já descritos (gene GLA) e
avaliar possíveis carreadores do gene defeituoso assintomáticos. Esta situação é de extrema
importância no contexto da doação renal intervivos entre familiares com doença de Fabry.
A figura abaixo ilustra as propostas de possibilidade diagnóstica nas diferentes
situações clínicas:
CATEGORIA
HOMENS
MULHERES
PRÉ-NATAL
TECNICAS UTILIZADAS
Atividade da alfa-GAL A em leucócitos, plasma ou
cultura de tecidos
Sequenciamento do gene da alfa-GAL A e
idenficação da mutação culpada ou teste para todas
as mutações familiares já conhecidas
Sequenciamento do gene da alfa-GAL A e
idenficação da mutação culpada ou teste para todas
as mutações familiares já conhecidas ( Medida da
atividade enzimática não é confiável)
Sequenciamento do gene da alfa-GAL A e
idenficação da mutação culpada ou teste para todas
as mutações familiares já conhecidas ( Medida da
atividade enzimática não é confiável)
Figura 6 - Proposta diagnóstica da Doença de Fabry nos diferentes sexos e pré-natal
Existem guidelines que propõem a investigação de doença de Fabry em todos os
pacientes, principalmente homens, com doença renal terminal. Especialmente naqueles com
miocardiopatia e histórico de acidentes vasculares encefálicos em idade jovem. (9,10)
SITUAÇÕES ONDE DOENÇA DE FABRY DEVE SER LEMBRADA
Episódios intermitentes de dores neuropáticas de moderada a grande intensidade,
principalmente em pés e mãos.
Presença de angioqueratomas
Hipohidrose ou anidrose
Hipertrofia ventricular esquerda de origem indeterminada em jovens adultos
Acidente vascular encefálico (Isquêmico ou hemorrágico) sem origem determinada
em jovens adultos
Doença renal crônica de origem indeterminada em pacientes jovens adultos
Presença de múltiplos cistos renais em seio renal descobertos incidentalmente
Figura 7- Resumo das recomendações para investigação de doença de Fabry
Tratamento
Após o advento da terapia de reposição enzimática (TRE), a doença de Fabry passou de
uma sentença de doença com evolução para quadros clínicos debilitantes e necessidade de
terapia renal substitutiva para uma doença com terapêutica individualizada e com bons
desfechos clínicos (renais, cardíacos e qualidade de vida em geral), tanto em ensaios
randomizados quando meta-analises – sendo inclusive já indicado em pacientes portadores
assintomáticos. (11-15)
A TRE disponível no Brasil é composta pela droga beta-galactosidade recombinante, a
dose preconizada é de 1mg / kg de peso a cada 2 semanas indefinidamente, ou pela alfagalactosidase recombinante. Além da TRE, todo paciente com nefropatia deve receber
tratamento anti-hipertensivo, acompanhamento nutricional e nos casos com proteinúria,
deve-se adicionar um inibidor da enzima conversora de angiotensina ou bloqueador do
receptor de angiotensina.
Pacientes com doença renal terminal em hemodiálise ou diálise peritoneal podem ser
candidatos a transplante renal, a sobrevida do enxerto é descrita como excelente, sem
descrição repercussão clínica desfavorável da doença de Fabry no enxerto renal,
principalmente nos pacientes que estão em TRE.
Referências
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