Consolidação da proibição de dupla persecução penal no

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Consolidação da proibição de dupla persecução penal no
Rogerio Schietti. A proibição de dupla persecução penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008
4
CONSOLIDAÇÃO
DA
PROIBIÇÃO
DE
DUPLA
PERSECUÇÃO PENAL NO DIREITO NORTE-AMERICANO
Ao tempo em que as duas mais reconhecidas fontes do common law, Edward
Coke e William Blackstone1, elaboravam seus comentários sobre o direito inglês, as
colônias da América do Norte construíam doutrina similar, porém com fronteiras mais
alargadas e tendo como referência o indivíduo ameaçado pelo risco de dupla persecução
penal.
De fato, é no insurgente direito norte-americano que a doutrina inglesa do
double jeopardy assume contorno de verdadeira garantia constitucional do indivíduo,
culminando com sua incorporação à Quinta Emenda.
4.1
CONSTITUIÇÕES E LEIS DAS COLÔNIAS
Antes da formação dos Estados Unidos da América, várias colônias britânicas do
Novo Mundo começaram a escrever suas próprias constituições, contrariando a tradição
inglesa de não possuir uma constituição escrita.
A então ainda colônia de Massachusets foi a pioneira em desafiar essa tradição,
edificando uma espécie de codificação dos dispositivos constitucionais que tratavam de
direitos do indivíduo, o assim chamado Bodies of Liberties, de 1641.
Esse documento, assemelhado ao Bill of Rights inglês e cujo conteúdo, em
grande parte, se reproduziu nas constituições estaduais e federal dos Estados Unidos,
realizou importante avanço, ao estabelecer previsões contra penas cruéis, escravidão,
prisões ilegais e outras tantas normas que passaram a garantir o direito, em igualdade de
condições (equal justice under law), para qualquer pessoa sob sua jurisdição, inclusive
1
Edward Coke, que após exercer os mais altos cargos na Corte do Rei James I, tornou-se um de seus
maiores opositores, completou seus Institutes of the laws of England na metade do século XVII,
recolhendo o que já havia sido escrito até então sobre o direito e os costumes ingleses, aos quais
acrescentou suas próprias formulações. A seu turno, William Blackstone, autor repetidamente citado em
qualquer estudo aprofundado do common law, legou à posteridade seus Commentaries on the laws of
England, quando já era efervescente o movimento reformista gerado pelas idéias iluministas. Releva
sublinhar, como lembrado por Robert D. Stacey, que o common law já começara a tomar forma no século
XIII, principalmente pelos escritos de Henry de Bracton, juiz do King's Bench e autor de significativos
comentários sobre o direito então praticado, "De legibus et consuetudinibus angliae" (Robert D. Stacey.
Sir William Blackstone and the common law Blackstone's legacy to America. Eugene: ACW Press, 2003,
p. 55-57).
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para estrangeiros, indo além da usual previsão de assegurar liberdades públicas apenas
para os cidadãos.
Posteriormente, em 1648, Massachusetts condensou em um código todas as
existentes previsões de direitos, deveres e privilégios dos habitantes daquela colônia2,
passando a servir de paradigma para outras unidades administrativas do Império
Britânico.
Como intuiu Jay Siegler3, talvez o significado da doutrina do double jeopardy
em Massachusetts explique o status constitucional que veio a adquirir anos mais tarde.
Isso ocorreu, pela primeira vez, com a Constituição de New Hampshire, de 1784, ao
estatuir: “No subject shall be liable to be tried, after an acquittal, for the same crime or
offence”.
Formulação mais ampla que o texto de New Hampshire – que assegurava
proteção apenas para os casos de anterior absolvição – e com fraseologia quase idêntica
à adotada no Bill of Rights federal4 proveio da Declaração de Direitos da Pennsylvania,
de 1790: “No person shall, for the same offense, be twice put in jeopardy of life or
limb”.
4.2
A INCORPORAÇÃO DA REGRA DO DOUBLE JEOPARDY À
CONSTITUIÇÃO DOS EUA
Era, então, chegada a hora de elevar a cláusula do double jeopardy ao ápice da
estrutura normativa federal. Coube ao congressista James Madison – “O pai da
Constituição” e futuro presidente dos EUA – apresentar à House of Representatives, em
8 de junho de 1789, a proposição inicial da garantia em exame, nos seguintes termos:
“No person shall be subject, except in cases of impeachment, to more than one
punishment ou trial for the same ofense”.
2
O Código de Massachussetts foi considerado o primeiro código de leis no Novo Mundo (Haskins,
Codification of the Law in Colonial Massachusetts. A study in comparative law, 30 Ind. L.J. 1 (1954,
apud Jay A. Siegler. Double jeopardy: The development of a legal and social policy. New York: Cornell
University, 1969, p. 22).
3
4
Jay A. Siegler. Double jeopardy, op. cit., p. 23.
As primeiras dez emendas à Constituição Americana, chamadas de Bill of Rights, foram ratificadas em
15 de dezembro de 1791.
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A proposta foi aprovada pelos representantes do povo, mas a segunda parte foi
modificada no Senado. Passou a emenda a ostentar a seguinte redação: “No person shall
be twice put in jeopardy of life or limb.”5
A cláusula que expressa a garantia contra dupla persecução penal finalmente foi,
com tais reparos, aprovada pelo Congresso dos EUA e também pelo número mínimo
exigido de Estados.
Entretanto, a arcaica terminologia adotada – jeopardy of life or limb – rendeu
espaço para futuras interpretações dúbias.
Especula-se quanto às conseqüências da adoção dessa terminologia, em
detrimento da redação proposta por James Madison (“trial for the same ofense”), a qual,
sem dúvida alguma, valia-se de linguagem mais moderna e clara.
Tudo indica que os autores da proposta aprovada no Senado se encontravam de
tal modo apegados à terminologia do common law “que tenderam mais a perpetuar suas
impropriedades do que estatuir uma precisa proteção ao acusado”.6
Na verdade, o apego à linguagem tradicional deveu-se à preocupação quanto às
eventuais implicações que do texto poderiam resultar sobre o julgamento de apelações
de réus condenados em primeiro grau.
Com efeito, ao estatuir que “ninguém poderia sujeitar-se, exceto em casos de
impedimento, a mais de uma punição ou julgamento pelo mesmo crime”, temeu-se que
autores de crimes graves, condenados em processos que contivessem vícios insanáveis,
permanecessem imunes a novo julgamento.7
Entretanto, não se deram conta os congressistas norte-americanos de que, se
viesse a ser interpretada em sentido puramente literal – “... life or limb...” – a cláusula
do doble jeopardy, inscrita na Quinta Emenda à Constituição dos Estados Unidos da
América, somente viria a proteger os acusados de crimes cuja respectiva pena fosse a de
5
Jay A. Siegler ressalta que o texto aprovado no Senado incluía, ao final, a sentença “by any public
prosecution”, que foi, sem que se saiba como e porque, eliminada da versão definitiva (Double jeopardy.
The development of a legal and social policy. New York: Cornell University, 1969, p. 31).
6
7
Ibid., p 33.
George C. Thomas III. Double jeopardy. The history, the law. New York University Press. New York:
1998, p. 84. Cumpre sublinhar que essa preocupação não era de todo despropositada. Prova-o a
circunstância de que somente com a consolidação da doutrina do double jeopardy pela jurisprudência da
Suprema Corte dos EUA assentou-se o entendimento de que a reversão de uma condenação, em face do
provimento da apelação do réu, não impede seja este novamente julgado pelo mesmo crime, perante seu
juiz natural.
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morte, tendo em vista que o tempo se encarregou de banir, no direito ocidental,
mutilações ou amputações de membros.
Outrossim, a interpretação literal vedaria qualquer novo julgamento, quer em
grau de recurso8, quer em subseqüente processo decorrente de anulação ou retirada da
acusação (onde isso é possível), porquanto, em tais hipóteses, haveria duplo risco para o
acusado.
Por diversa angulação, com a escolha da arcaica e vaga linguagem usada na
Inglaterra perdeu-se a oportunidade, naquele momento histórico, de estabelecer uma
doutrina mais precisa sobre a double jeopardy clause, com seus consectários, a saber: a)
nenhuma barreira poderia ser oposta contra julgamento por crimes diferentes do
inicialmente julgado, situação abrangida pela vetusta plea of attainder; b) nenhum
benefício seria assegurado ao clero, como era permitido pelo benefit of clergy; c) não
haveria mais reconhecimento da existência de dois sistemas de persecução penal
paralelos, com complexas regras e exceções, dependendo de qual sistema primeiro
houvesse produzido um veredito.9
Tivessem assim os congressistas adotado a terminologia de Madison, de sorte a
deixar claro que o acusado poderia apelar contra a condenação e possivelmente
enfrentar novo julgamento, teriam os norte-americanos um dispositivo com fronteiras
mais rígidas e bem definidas10, porquanto definir duplo julgamento é muito mais fácil
do que definir duplo risco.
Com efeito, é possível, como salienta George Thomas, que um acusado esteja
sob risco “desde o momento em que inicia o julgamento, ou, na verdade, mesmo em
anterior momento do processo criminal, talvez com o recebimento da denúncia”.11
Todavia, se a garantia opera já desde o início do processo, os juízes de primeiro grau
poderão sentir-se pressionados psicologicamente para não acolher pedido de anulação
8
Mais adiante será melhor explicada a particularidade do direito dos EUA, onde há limitações ao recurso
da acusação contra a absolvição do réu.
9
George C. Thomas III. Double jeopardy. The history, the law. New York University Press. New York:
1998, p. 85.
10
Ibid.
11
Ibid.
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do processo; por sua vez, os juízes que julgarem a apelação também poderão ficar
receosos de permitir novo julgamento por haverem anulado o processo.12
Não obstante essas possíveis interpretações, o certo é que, com a incorporação
da garantia contra a dupla persecução penal à Carta Política dos EUA, o double
jeopardy deixa de ser apenas uma máxima do common law, eventualmente incorporado
a leis e constituições estaduais, e passa a representar uma regra federal de política
pública criminal, de proteção do acusado.13
Desde esse importante momento histórico da evolução da garantia contra a dupla
persecução penal – a sua incorporação ao Bill of Rights dos EUA – intérpretes e
aplicadores das leis criminais têm-se ocupado do tema, sem pleno êxito, porquanto
ainda inexiste uniforme entendimento dos precisos contornos dessa garantia.
Talvez para esse propósito tenha servido a opção dos legisladores norteamericanos do fim do século XVIII: jeopardy é expressão mais elástica do que trial
(que constava da proposição de Madison), favorecendo oscilações da jurisprudência e
da interpretação doutrinária sobre essa cláusula que integra a Constituição dos EUA.
Aliás, essa Carta Política é aplaudida exatamente por ostentar tal qualidade, i.e., ser
rígida quanto ao seu teor formal, mas bem flexível, de acordo com a evolução dos
costumes da sociedade, quanto ao significado de seus preceitos.
Esses fatores justificam a necessidade – como de resto em qualquer análise e
interpretação históricas de determinado instituto ou costume – de considerar a criação e
o desenvolvimento do princípio proibitivo de dupla persecução penal em ambiência
social, jurídica e política bem diversa da atual.
Se o Estado de então era concebido como permanente ameaça, inimigo opressor
do indivíduo, pretende-se que o modelo de Estado atual seja orientado a funcionar como
estimulador das potencialidades do indivíduo, regulador das desigualdades injustas e
intoleráveis e protetor das liberdades públicas.
12
George C. Thomas III. Double jeopardy. The history, the law. New York University Press. New York:
1998, p. 85.
13
Jay A. Siegler. Double jeopardy. The development of a legal and social policy. New York: Cornell
University, 1969, p. 35.
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4.3
A ATUAL DOUTRINA DO DOUBLE JEOPARDY NO DIREITO NORTE-
AMERICANO
No tópico anterior, indicou-se o desenvolvimento da double jeopardy clause no
direito das colônias britânicas na América do Norte, cuja independência foi
acompanhada do nascimento e do fortalecimento do espírito federativo e de grande
respeito pelas decisões do Poder Judiciário.
Convém notar que as tradições e os estatutos do common law, inspiradores, em
grande parte, da formação do direito norte-americano, de alguma forma permaneceram
estagnados na prática judiciária e na ciência jurídica da Inglaterra.
De maneira bem diversa, a doutrina e a jurisprudência construídas ao longo dos
230 anos da história dos Estados Unidos da América formaram arcabouço
principiológico todo peculiar, a merecer análise dirigida à melhor compreensão dos
temas, subjacentes à garantia contra a dupla persecução penal, que tenham algum
reflexo importante no trato da matéria nos países do civil law.
Tenha-se sempre presente, todavia, que o direito norte-americano possui
peculiaridades próprias que o diferenciam quer dos modelos de persecução penal
utilizados pelos países da civil law, quer, sob muitos aspectos, até mesmo dos sistemas
pertencentes à família do common law.
Primeiramente, é possível asseverar que as ciências penais (lato sensu) nos
Estados Unidos, tanto no meio acadêmico quanto na legislação em geral, carecem de
maior desenvolvimento científico. É também razoável afirmar que os institutos
utilizados para punir e processar os autores de infrações penais nesse país possuem
dimensão e lógica bem diferentes das que caracterizam o direito dos países de tradição
romano-germânica, mercê de uma política criminal agressiva e severa.
No terreno do direito penal, os EUA ainda prevêem e exercitam, ao contrário de
quase a totalidade dos países do ocidente, a pena de morte. Em boa parte dos estados
norte-americanos grassam regras anacrônicas ou bizarras, como a que impõe ao
condenado pela terceira vez (a qualquer crime, independentemente de sua concreta
gravidade) pena mínima de vinte e cinco anos de prisão (three strikes you’re out law),
ou a que obriga o autor de crimes que afetam a liberdade sexual a, depois do retorno ao
convívio social, afixar aviso em frente de sua residência, para informar que ali vive
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alguém condenado pela prática de crime sexual14. Um derradeiro exemplo: somente em
2003 a Suprema Corte dos EUA, em Lawrence v. Texas (539 U.S. 558), julgou
inconstitucional a previsão, presente em leis de vários estados, de considerar criminoso
o relacionamento íntimo entre pessoas do mesmo sexo, com previsão de penas que
chegavam a quinze anos de prisão; e por aí vai.
Já no âmbito do direito processual penal, há maior preocupação em assegurar ao
acusado um fair trial, de acordo com o due process of law. Sem embargo, a grande
maioria dos acusados nem chega a valer-se dessas garantias, porquanto preferem, pelo
temor quanto às conseqüências penais que poderão advir de um julgamento, negociar
uma pena menor com a promotoria, em troca da confissão do crime ou da delação de
um partícipe da conduta.15 A transação penal e processual (plea bargaining, plea guilty)
é, portanto, utilizada em larga escala (mais de 95% dos casos são assim resolvidos),
como forma de encerrar-se o litígio.16
A seu turno, a composição e as competências do júri (grand jury e petit jury)17,
os amplos poderes e a elevada dose de discricionariedade de que dispõe a promotoria,
além de outras peculiaridades do direito praticado nos EUA, tornam o seu estudo
intrigante, a par de útil para a verificação de outras possibilidades pensadas e aplicadas
para o trato das questões de cunho criminal.
14
Essa lei, conhecida como Megan’s Law, foi inicialmente adotada pelo Governo Federal em 1996 e
posteriormente reproduzida nos estados norte-americanos. O nome da lei é em homenagem a Megan
Kanka, uma criança de sete anos, morta após ser vítima de abuso sexual por um criminoso que já
cumprira pena por crime semelhante, fato que mobilizou os pais da vítima a recolher milhares de
assinaturas e obter a aprovação da lei.
15
A barganha pode, portanto, ter como objeto o próprio conteúdo da acusação (charge bargaining),
consistente na supressão de algum dos crimes imputados ao réu ou desclassificação para uma figura
delitiva menos grave, ou pode referir-se aos parâmetros da sentença (sentence bargaining), relativos à
quantidade ou à qualidade da pena, tais como redução do tempo de prisão, substituição do tipo de pena,
permissão de livramento condicional em menor tempo de pena, etc (Cfe. Richard G. Singer. Criminal
procedure II: from bail to jail. New York: Aspen, 2005, p. 123).
16
17
Harold J. Rothwax. Guilty – The collapse of criminal justice. New York: Random House, 1996, p. 144.
O Grand Jury, formado por 23 cidadãos (o número oscila um pouco nos Estados), tem competência
para, de modo geral, analisar a viabilidade da acusação (indictment), aceitando-a ou não, diante do
material probatório recolhido pela promotoria, a indicar a possível existência de justa causa para a ação
penal (probable cause). O Petit Jury, por sua vez, é o responsável pela definição do caso, por meio de
veredito (alcançado mediante deliberação conjunta dos 12 jurados, em sala secreta), com base nas provas
e nas alegações produzidas, em sua presença, pelas partes. Ambos os júris são presididos por um Juiz
togado, a quem, grosso modo, cabe dirimir as questões suscitadas durante o processo, admitir ou não as
provas apresentadas e ao final fixar a pena resultante do veredito dos jurados.
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4.4
AS CONSEQÜÊNCIAS DO FEDERALISMO NORTE-AMERICANO EM
RELAÇÃO À PROIBIÇÃO DE DUPLA PERSECUÇÃO PENAL
Cumpre também não perder de vista outra particularidade dos Estados Unidos da
América, relativa ao formato de sua divisão política em Estados membros, os quais,
desde a Convenção de Philadelphia em 1787 (quando foi estatuída a Constituição dos
EUA), conquanto tenham dado forma a uma República Federativa, conservaram alguma
autonomia em determinados setores da relação entre o Estado e o indivíduo.
De fato, o Federalismo norte-americano se notabiliza por não privar os seus
entes federados de parcelas de soberania que lhes permitam, por exemplo, ter seus
próprios códigos criminais (Criminal Codes) e de processo penal (Criminal Procedure
Codes).
Outrossim, no que diz respeito às garantias previstas no Bill of Rights da
Constituição dos EUA, a Suprema Corte vinha entendendo, a partir do caso Barron v.
Baltimore18, que as liberdades públicas asseguradas naquele documento obrigavam
apenas o governo federal, mas não os Estados da Federação.
Esse antigo entendimento, mais enfaticamente assentado em Palko v
Connecticut19, foi alterado em decisão da Suprema Corte, no ano de 1969, ao julgar-se
Benton v. Maryland.20
18
Barton v. Baltimore, 32 U.S. 243 (1833).
19
Palko v Connecticut, 302 U.S. 319, 82 (1937). Palko fora processado por homicídio em primeiro grau,
mas o júri o condenou por homicídio em segundo grau, do que lhe resultou pena de prisão perpétua,
livrando-se da pena capital. O Estado, autorizado pelas leis de Connecticut, recorreu e o tribunal
reconheceu a existência de vícios processuais, determinando novo julgamento, no qual Palko foi
condenado por homicídio em primeiro grau e sentenciado à morte. Ao opor a exceção do double
jeopardy, Palko não obteve a resposta esperada, porque a Corte Suprema entendeu que a V Emenda à
Constituição dos EUA não vincula os estados federados, excluindo a doutrina do double jeopardy da lista
de garantias absorvidas pelo due process of law (IV Emenda). Vale destacar trecho do voto do célebre
juiz Benjamin Cardozo: "O Estado não está buscando exaurir o acusado por meio de múltiplos casos
julgados acumuladamente. Requer-se não mais do que isso, que o caso contra ele deve prosseguir até
onde exista um julgamento livre da corrosão de vícios legais. [...] Isso não é de forma alguma tratamento
cruel ou vexatório em grau imoderado. Se o julgamento tivesse sido contaminado por nulidade prejudicial
ao acusado, teria havido recurso de sua parte, o tanto quanto necessário para purgar o vício. Um privilégio
recíproco, sempre sujeito à discrição do juiz-presidente (State v. Carabetta, 106 Conn. 114, 137 A. 394),
foi agora concedido ao Estado. Não se trata de inovação sísmica. O edifício da justiça, para muitos, exibe
simetria ainda maior do que antes."
20
Benton v. Maryland, 395 U.S. 784 (1969). O Juiz Thurgood Marshall, que expressou, em seu voto, a
opinião da maioria, observou: "Está claro que a condenação do requerente pelo crime de larceny não pode
prevalecer, uma vez aplicadas as normas federais relativas ao duplo risco. O requerente foi absolvido do
crime de larceny em seu primeiro julgamento. Porque ele decidiu apelar da sua condenação pelo crime de
burglary foi forçado a ser novamente julgado também pela acusação de larceny. Como já decidiu esta
Corte em Green v. United States [...] 'condicionar a apelação, contra condenação por determinado crime,
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O réu, John Dalmer Benton, havia sido acusado pela prática dos crimes de
burglary (invasão de domicílio com intenção de cometer algum outro crime) e larceny
(furto) sendo absolvido por este último e condenado apenas pelo crime menos grave à
pena de dez anos de prisão. Em decorrência de uma nulidade ocorrida na seleção dos
jurados, o sentenciado obteve novo julgamento, no qual, todavia, foi condenado pelos
dois crimes de que fora inicialmente acusado. A condenação do crime em face do qual o
réu havia sido anteriormente absolvido foi mantida pelo Tribunal de Apelação de
Maryland, mas, na Suprema Corte, houve mudança do posicionamento até então
adotado. Passou-se, então, a entender que a double jeopardy clause, prevista na Quinta
Emenda à Constituição dos EUA, era aplicável aos Estados membros, por força da
Décima Quarta Emenda. Predominou a opinião de que, decidido que uma garantia
prevista no Bill of Rights é fundamental para o sistema de justiça norte-americano, os
standards de decisão devem ser iguais tanto no âmbito federal quanto no dos estados.
A jurisprudência a partir de então sedimentou essa nova doutrina (incorporation
doctrine), deixando, porém, intacta a soberania de cada Estado membro e do próprio
governo federal para julgar pessoa acusada de crime já objeto de julgamento por outra
unidade federativa, doutrina que passou a ser conhecida como dual sovereignty
doctrine.
Recentemente, conhecido episódio da crônica judiciária norte-americana
confirmou as bases da doutrina da dupla soberania. Trata-se do caso envolvendo
Rodney King, cidadão norte-americano de origem africana que, por não atender à
determinação para parar seu automóvel, foi perseguido e passou a ser violentamente
agredido por policiais de Los Angeles após sua detenção. O fato ocorreu na noite de 3
de março de 1991 e foi registrado em vídeo por um cidadão que se encontrava nas
imediações.
O processo contra os policiais foi instaurado perante a Justiça estadual da
Califórnia, e a acusação consistiu em imputar aos policiais o crime de agressão com uso
de instrumento mortal e excessivo uso da força por policial. Todavia, o corpo de
jurados, formado por pessoas de etnia branca, considerou os policiais inocentes, fato
a que o sentenciado forçosamente renuncie a invocar a plea of former jeopardy em relação a outro crime
constitui uma penalidade totalmente incompatível com a garantia constitucional contra duplo risco.'"
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que deu origem a forte reação da comunidade negra de Los Angeles.21 O governo
federal então, diante da gravidade da situação, iniciou processo contra os policiais,
acusando-os de um crime federal: violação dos direitos constitucionais de Rodney King.
Desse segundo processo resultou a condenação de um sargento e um oficial à pena de
30 meses de prisão, a par da absolvição de outros dois oficiais.
Percebe-se que a “brecha” utilizada para mover dupla persecução penal contra o
mesmo acusado, a exemplo do que ocorreu em inúmeros outros casos, foi considerar
que um único fato criminoso atinge bens jurídicos distintos e que um único
comportamento ilícito pode dar origem a diversos crimes, punidos por jurisdições
distintas e independentes. De tal modo, não haveria violação da cláusula proibitiva do
double jeopardy, visto que ela faz alusão a um mesmo crime (same ofense) e não a um
mesmo ato (same act), ou algo parecido.
Nesse e em outros casos já decididos pela Suprema Corte dos EUA restou,
portanto, assentado que tanto é permitido ao governo federal processar criminalmente,
pela mesma conduta, autor de infração penal após ter sido ele julgado em corte estadual,
quanto o inverso, independentemente do resultado do primeiro processo.
4.5
A PROIBIÇÃO DE DUPLA PERSECUÇÃO PENAL EM FACE DAS
DECISÕES QUE ENCERRAM A RELAÇÃO PROCESSUAL
O objetivo deste item é o de analisar o entendimento da Suprema Corte norteamericana na aplicação dos principais pontos formadores da doutrina do double
jeopardy, em sua faceta processual e particularmente naquilo que diz respeito à
aplicabilidade dessa garantia às diversas modalidades de decisões – tomadas em
julgamento popular (trial by jury), ou em julgamento efetuado por juiz singular (bench
trial) – que encerram uma relação processual penal, com ou sem julgamento do mérito
da pretensão punitiva.22
21
Cerca de duas mil pessoas foram feridas e mais de cinqüenta morreram em razão dos protestos, que se
estenderam por vários dias, durante os quais foram perpetrados atos de vandalismos, com danos
estimados em mais de oitocentos milhões de dólares.
22
Releva alertar, pela voz de Gustavo Henrique R. I. Badaró (Correlação entre acusação e sentença. São
Paulo: RT, 2000, p. 76), que a pretensão punitiva pode ser de ordem material, existente antes do processo
e decorrente do concreto direito de punir do Estado, e de ordem processual, veiculada em juízo pelo
exercício do direito de ação e que constitui o objeto do processo. Outrossim, como acentua mais adiante o
professor paulista, "se o objeto do processo penal é a pretensão processual penal, e sendo a imputação o
meio pelo qual se formula tal pretensão, o objeto do processo penal não pode ser a imputação, que é o
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4.5.1 ABSOLVIÇÃO (ACQUITTAL)
É absoluta a proibição de nova persecução penal após sentença de absolvição
(acquittal), em qualquer das situações possíveis, a saber: a) veredito de inocente (not
guilty), tanto em julgamento realizado por jurados quanto por juiz singular (nos poucos
casos em que isso acontece); b) absolvição implícita (implied acquittal), pelo juiz ou
júri23; c) decisão do juiz que de algum modo beneficie o acusado em algum ponto da
acusação (quando, e.g., o magistrado considera insuficientes as provas para condenar o
acusado, em procedimento do tribunal do júri).24
Não importa a causa da absolvição, ou mesmo se o julgamento foi proferido por
autoridade judiciária incompetente, ou que interpretou incorretamente a lei, ou mesmo
se houve equivocada exclusão de prova favorável à argumentação da promotoria.25 Em
todos esses casos, a decisão absolutória impedirá que o Estado mova outro processo,
pelo mesmo crime, contra o acusado já absolvido.
Sem embargo, em People v. Aleman, o acusado foi absolvido em julgamento
perante o juiz singular (bench trial), tendo-se apurado anos depois que o juiz fora
subornado para absolver o réu, o que motivou a promotoria a propor nova acusação pelo
mesmo crime e a postular a condenação do imputado. Provocada pela defesa, a Corte de
Apelação rejeitou a exceção do double jeopardy, argumentando que o primeiro
julgamento fora resultado de fraude.26
veículo da pretensão [deduzida na denúncia ou na queixa]. Por isso, o objeto do processo penal não é a
imputação, mas sim aquilo que foi imputado, isto é, o objeto dessa imputação." (p. 81)
23
Verifica-se esse tipo de absolvição implícita – se é que efetivamente existe – quando o réu é condenado
por acusação menos grave da que originalmente lhe fora feita, de modo a entender-se “absolvido” desta
última. O exemplo corrente é o de condenação por crime de homicídio culposo, após desclassificação da
acusação de homicídio doloso. Nessa hipótese, não poderá o acusado, para os que admitem a implied
acquittal, ser novamente processado pelo crime de homicídio pelo qual já foi condenado e muito menos
pelo homicídio mais gravoso. O tema foi bem desenvolvido no caso Green v. United States, 355 U.S. 184
(1957).
24
Joshua Dressler. Understanding criminal procedure. 3. ed. Newark: LexisNexis, 2002, p. 705.
25
A "santidade de uma absolvição" (sanctity of an acquittal) não inclui as situações de "absolvições
acidentais" (accidental acquittals), que podem ocorrer quando o líder dos jurados (foreman) diz
"inocente", querendo dizer "culpado", ou anuncia um veredito que não expressa o real veredito (Martin L.
Friedland. Double jeopardy. Oxford: Clarendon Press, 1969, p. 61).
26
Conforme será visto mais adiante, alguns países permitem novo processo após absolvição obtida por
meio fraudulento ou criminoso. Em sentido contrário ao do texto, ver Richard G. Singer (Criminal
procedure II: from bail to jail. New York: Aspen, 2005, p. 180).
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Vale ressaltar que desde 1904, a Suprema Corte27 interpreta a double jeopardy
clause no sentido de não apenas vedar novo processo contra o acusado absolvido, mas,
também, de restringir, de modo quase absoluto, que a promotoria possa recorrer nos
casos julgados perante a Justiça Federal.
4.5.2 CONDENAÇÃO (CONVICTION)
Tanto quanto a sentença de absolvição, a condenação do acusado impede seja ele
novamente processado pela mesma infração penal.
Todavia, a cláusula proibitiva da dupla persecução penal não incide nos casos
em que o acusado, após ser condenado, logra provimento de apelação interposta contra
a condenação, de modo a desconstituir tal decisão e a ensejar que a promotoria renove a
acusação.
Já entendia William Blackstone, no século XVII, que, quando uma condenação é
anulada ("falsified or reversed"), todos os procedimentos anteriores são absolutamente
postos de lado, "e a parte permanece como se ela nunca houvesse sido acusada". Por
conseguinte, nada impede uma outra persecução pelo mesmo fato, porquanto, na
verdade, "ele nunca esteve sob risco".28
A par das possíveis razões que a justificam29, há duas exceções à regra que
assegura ao Estado o “direito a rejulgar” (right to retry): Primeiramente, veda-se nova
persecução penal se o provimento da apelação desconstitui o veredito condenatório com
base na avaliação de insuficiência de provas para sustentar uma condenação. Em tal
hipótese, conforme restou assentado em Burks v. United States30, o acusado
anteriormente condenado não pode ser novamente processado, visto que a decisão final
do tribunal equivale a sentença de absolvição.31
27
Kepner v. United States, 195 U.S. 100.
28
William Blackstone. The commenaries of Sir William Blackstone on the laws and constitution of
England. Londres: Elibron Classics, 2005 (Fac-simile da edição publicada em 1796), p. 544.
29
Uma dessas razões veio expressa no voto do Justice Harlan, no caso United States v. Tateo, 377 U.S.
463 (1964): “É no mínimo duvidoso que tribunais de apelação seriam tão zelosos como são
presentemente na proteção contra os efeitos de equívocos do julgamento ou de atos a ele anteriores, se
eles soubessem que a reversão de uma condenação poderia colocar o acusado irrevogavelmente fora do
alcance de qualquer outra persecução penal”
30
31
Burks v. United States, 437 U.S. 1 (1978).
De forma diferente decidiu-se em Tibbs v. Florida, 457, U.S. 31 (1982), por entender a Suprema Corte
que não há proibição a novo julgamento – e, portanto, não se aplica a double jeopardy clause – se a
decisão é anulada não por insuficiência de prova para a condenação, mas porque ela é contrária ao peso
Rogerio Schietti. A proibição de dupla persecução penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008
A mesma regra se aplica à hipótese em que o próprio juiz de primeiro grau, e
não o Tribunal de Apelação, decide por novo julgamento, ante a evidente carência de
elementos probatórios para um juízo condenatório.32
A segunda exceção à regra relativa ao veredito de condenação se verifica quando
a segunda persecução penal é deflagrada por emulação ou espírito vingativo do órgão de
acusação, em face do provimento do recurso da defesa, em situação diversa da
anteriormente mencionada. Haverá, portanto, vedação a que se dê seguimento ao
segundo processo, não propriamente em razão da double jeopardy clause, mas em
virtude da garantia do devido processo legal.33 Conforme anotado por Richard G.
Singer, a jurisprudência da Suprema Corte dos EUA, nos últimos trinta anos, tem sido
intolerante com esse comportamento da promotoria, principalmente quando esta, no
segundo processo, imputa conduta ainda mais grave ao acusado.34
Entretanto, não há impedimento a que se reformule a acusação quando o
provimento da apelação do acusado contra sentença condenatória de primeiro grau
decorre da verificação de vício processual insanável, como, por exemplo, quando há
violação às regras de exclusão da prova ou de cumprimento de mandado de busca e
apreensão. Em casos tais, a Corte Suprema dos EUA sufragou o entendimento de que:
Correspondente ao direito do acusado de ter um julgamento justo há o
interesse social em punir aquele cuja culpa se mostre clara após o devido
julgamento. Seria, de fato, um alto preço para a sociedade pagar se fosse
assegurada a cada acusado imunidade contra punição em razão de algum
vício suficiente para constituir um erro anulável no procedimento de que
resultou condenação.35
4.5.2.1 Ne reformatio in pejus
Detalhe de paralelo interesse para a compreensão dos limites da garantia contra
dupla persecução penal diz respeito à possibilidade de agravamento da pena do acusado
no julgamento decorrente de anulação anterior da sentença condenatória.
da prova. No julgamento desse caso, a Suprema Corte dos EUA, com o propósito de estabelecer a
diferença entre "suficiência" e "peso" da prova, asseverou que uma condenação apoiada em prova
insuficiente ocorre quando, na análise das evidências favoráveis à promotoria, não é razoável condenar o
acusado, além de uma dúvida razoável. Já a análise relativa ao weight of evidence diz respeito à
credibilidade da prova, ao seu poder de convencimento, principalmente quando comparado às provas
produzidas pela outra parte.
32
Hudson v. Louisiana, 450 U.S. 40 (1981).
33
Richard G. Singer. Criminal procedure II: from bail to jail. New York: Aspen, 2005, p. 203.
34
Richard G. Singer. Criminal procedure II: from bail to jail. New York: Aspen, 2005, p. 203.
35
United States v. Tateo, 377 U.S. 463, 465 (1964).
Rogerio Schietti. A proibição de dupla persecução penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008
Nos países de tradição romano-germânica, a apelação contra a sentença
condenatória, pelo acusado, não pode gerar-lhe resultado desfavorável, fenônemo que
constitui princípio-garantia conhecido como ne reformatio in pejus. Tal proibição vale,
também, para a hipótese em que a condenação é anulada e o processo retorna, para novo
julgamento, perante o juiz natural da causa (ne reformatio in pejus indireta).
Em anterior análise36, foi sustentado que o fundamento principal da regra
proibitiva em estudo reside em opção de política criminal (ou de política processual),
decorrente da concepção garantista presente no processo penal moderno37, mais voltado
à proteção do inocente do que à punição do acusado. Em verdade, antes do interesse do
Estado em punir o infrator, encontra-se o interesse, do mesmo Estado, em tutelar a
liberdade individual daquele que se encontra na posição de réu ainda não reconhecido
culpado.
Em verdade, se o direito de defesa encontra na possibilidade de recorrer uma de
suas principais expressões, “a proibição da reformatio in pejus se perfila como
indispensável premissa para dar efetividade ao direito”38, tendo em vista ser a finalidade
da impugnação precisamente a de eliminar ou amenizar anterior provimento
jurisdicional afirmado como prejudicial ao acusado.
Portanto, se, ao cabo de um processo criminal, sobrevém sentença condenatória,
com a qual o Ministério Público se dá por satisfeito, é de repudiar-se a possibilidade de
eventual recurso do condenado vir a resultar-lhe em algo ainda mais oneroso, até porque
o próprio órgão acusador a tanto não se empenhou.
No direito norte-americano, entretanto, inexiste restrição a que, no segundo
julgamento, decorrente da anulação da sentença condenatória por vício de direito, o juiz
imponha pena superior à do julgamento anterior. Todavia, assegura-se ao acusado o
desconto do tempo já cumprido de sua pena original diante do total impingido no
segundo veredito, o que decorre da faceta substancial da garantia contra o double
jeopardy:
36
Rogerio Schietti Machado Cruz. Garantias processuais nos recursos criminais. São Paulo: Atlas, 2002,
p. 110.
37
Certamente não é a política criminal de países como os Estados Unidos, onde há declarada guerra
contra o crime, mediante previsão e concretização de elevadas penas, rígido controle penal e
penitenciário.
38
Mariangela Montagna, Divieto di reformatio in peius e appello incidentale. In: A. Gaito (Org.). Le
impugnazioni penali. Turim: Utet, 1998, p. 377.
Rogerio Schietti. A proibição de dupla persecução penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008
A Corte decidiu hoje, em Benton v. Maryland, que a garantia contra duplo
risco, prevista na V Emenda, aplica-se aos Estados por meio da IV Emenda.
Essa garantia consiste, como se tem afirmado, de três proteções
constitucionais distintas. Ela protege contra uma segunda persecução pelo
mesmo fato, após absolvição. Ela protege contra uma segunda persecução
pelo mesmo fato, após condenação. E ela protege contra múltipla punição
pelo mesmo crime. [...] Nós decidimos que a garantia constitucional contra
múltipla punição pelo mesmo crime requer, efetivamente, que a punição já
executada deve ser totalmente „creditada‟ na sentença que decorrer de uma
nova condenação pelo mesmo crime.39
A jurisprudência oscila, contudo, quando se trata de casos envolvendo
condenação à pena capital. Se o réu logra desconstituir o julgado perante o tribunal de
segundo grau, o entendimento era no sentido de que fora ele “absolvido” do veredito de
morte. Por conseguinte, no segundo julgamento, o pior que poderia ocorrer para o
acusado era a condenação à prisão perpétua.40 Porém, em caso mais recente41, a
Suprema Corte decidiu diferentemente, por apertada maioria (5 votos a 4), ao asseverar
que não violava a double jeopardy clause, ou mesmo o devido processo legal, a
imposição de pena de morte no segundo julgamento, porque a opção por uma sentença
de prisão perpétua no processo original não significava “absolvição” do acusado em
face da pena capital.
Feito esse breve esclarecimento sobre tal particularidade do direito dos EUA,
cumpre dizer, retomando a análise da jurisprudência da Corte Suprema, que, ao lado das
decisões que encerram o processo com julgamento de mérito sobre a pretensão punitiva
(absolvição ou condenação), são usuais, no direito norte-americano, outras duas
modalidades de decisão, quais sejam, a mistrial e a dismissal.
4.5.3 MISTRIAL
Um processo criminal pode não chegar ao seu natural desfecho – um julgamento
de mérito, com a condenação ou a absolvição do acusado – em virtude de alegação de
qualquer das partes, ou por iniciativa do próprio juiz, que encerre o processo.
39
Excerto do voto do Juiz Stewart, expressando a opinião da Suprema Corte, ao julgar North Carolina v.
Pearce, 395 U.S. 711 (1969).
40
Bullington v. Missouri, 451 U.S. 430 (1981).
41
Sattazahn v. Pennsylvania, 537 U.S. 101 (2002).
Rogerio Schietti. A proibição de dupla persecução penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008
Sublinhe-se, contudo, que uma decisão de mistrial não importa em invalidação
do ato de acusação (indictment), que permanece idôneo a dar início ao novo processo.42
Em princípio, não havendo oposição da defesa (ou quando ela própria postula o
mistrial), a anulação do processo mantém abertas as portas para nova persecução penal
contra o acusado, pelo mesmo fato, afetando os interesses da defesa.43
Uma segunda persecução penal “aumenta o ônus financeiro e emocional do
acusado, prolonga o período de sua estigmatização em virtude de uma acusação
criminal não definida, e pode até implicar o risco de que um inocente seja condenado”.44
Normalmente os juízes criminais decidem pelo mistrial quando os jurados não
chegam a um veredito unânime, necessário para a condenação em certos casos.45 Em
tais situações, afirma-se que a decisão ficou pendente (hang jury).
Não tendo os jurados chegado a um consenso, alguém poderia inferir que é de
ter-se como não provada a acusação "beyond a reasonable doubt", o que equivaleria
então a um veredito de absolvição (acquittal). Mas a Suprema Corte não partilha de tal
opinião, tendo assentado o entendimento de que a permissão para um segundo
julgamento corresponde aos interesses da sociedade em dar ao Estado “uma
oportunidade completa para condenar.”46
Um dos critérios utilizados pela Suprema Corte nos EUA para definir se novo
processo pode ser aberto ou não contra o acusado é a verificação da “manifesta
necessidade” (manifest necessity) da decisão de encerrar o processo sem julgamento de
mérito.
42
George C. Thomas III. Double jeopardy. The history, the law. New York University Press. New York:
1998, p. 229.
43
Cfe. voto do Juiz J. Rehnquist, no julgamento de United States v. Scott (437 U.S. 82 (1978).
44
Arizona v. Washington, 434, U.S. 497, 503-05 (1978).
45
A obrigatoriedade de decisâo unânime em processos criminais não é regra absoluta no direito norteamericano, oscilando de Estado para Estado, já tendo a Suprema Corte decidido (Johnson v. New York,
1970) pela constitucionalidade de um veredito se 9 entre 12 jurados decidiram pela condenação. Mesmo
em relação a outros países do common law, a unanimidade da decisão dos jurados não é, conquanto
desejada, obrigatória para validar a condenação. Na Inglaterra, por exemplo, aceita-se a decisão
majoritária se pelo menos 10 entre os 12 jurados votam pela condenação. Não atingido esse número
mínimo, o júri é dissolvido e novo julgamento é designado (Malcolm Davis; Hazel Croall; Jane Tyrer.
Criminal Justice. A introduction to the criminal justice system in England and Wales. 2. ed. Londres:
Longman, 1998, p. 210).
46
Richardson v. United States, 468 U.S. 317 (1984).
Rogerio Schietti. A proibição de dupla persecução penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008
A “manifesta necessidade” costuma ser aplicada a casos em que houve nulidade
no ato de acusação (indictment), ou quando algum jurado foi desqualificado (por tecer
comentários com outras pessoas sobre o assunto sub judice, por exemplo), ou ainda
quando se constataram nulidades processuais causadas exclusivamente pela defesa.
Diversas razões podem justificar as decisões de mistrial. Além da já citada
situação em que o júri não logra chegar a um veredito47, cite-se, entre outras, a hipótese
de um jurado do Petit Jury (responsável pelo veredito) haver integrado o Grand Jury
(encarregado de receber a acusação)48, ou a hipótese de ter um jurado anterior
relacionamento com o acusado49.
A idéia que subjaz ao critério de verificação da manifest necessity é a de
ausência de alternativa para levar adiante o processo, sem prejuízo da correta
administração da justiça. Demais disso, é preciso que inexistam motivos para acreditar
“que o promotor esteja usando os recursos do Estado para constranger o acusado ou
obter uma vantagem tática sobre ele.”50
A partir da leitura dos votos em diversos outros julgamentos, o critério de
averiguação da “manifesta necessidade”, para que uma decisão de mistrial possa ser
considerada impeditiva de novo julgamento, condiciona-se a verificar, in concreto, a) se
o Estado foi responsável pela dificuldade que deu causa à moção de mistrial; b) se
houve intenção da promotoria em provocar o mistrial; c) se o acusado sofreu particular
prejuízo em decorrência da decisão; d) se havia razoáveis alternativas para evitar o
mistrial.51
Releva notar que, nas hipóteses em que a iniciativa de requerer o encerramento
antecipado do processo for da defesa, ou quando esta anuir à decisão do juiz (tomada
sponte sua52, ou mediante provocação da promotoria), não haverá impedimento a que se
47
Dreyer v. Illinois, 187, U.S. 71 (1902).
48
Thompson v. United States, 155, U.S. 271 (1894).
49
Simmons v. United States, 142 U.S. 148 (1891).
50
Arizona v. Washington, 434 U.S. 497 (1978).
51
Joshua Dressler. Understanding criminal procedure. 3. ed. Newark: LexisNexis, 2002, p. 701. Um
outro fator – a iniciativa do requerimento de mistrial – é apontada por Richard G. Singer (Criminal
procedure II: from bail to jail. New York: Aspen, 2005, p. 198) como importante para a averiguação da
manifesta necessidade da decisão.
52
Curioso desfecho de decisão tomada espontaneamente pelo juiz é lembrado por Richard G. Singer (Op.
loc. cit): após 13 dias de atraso no julgamento, dois jurados perderam, cada qual, um dos genitores e, além
disso, a promotora do caso não apareceu para as audiências finais do processo, alegando que havia
Rogerio Schietti. A proibição de dupla persecução penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008
inicie novo processo, salvo se restar demonstrado que a promotoria induziu
propositalmente a defesa a formular tal requerimento.
Observe-se, por derradeiro, que se o acusado preferir aguardar o veredito final,
ao invés de solicitar a declaração de mistrial – contando com possível absolvição –,
ainda lhe restará a chance de, por meio de apelação, provocar a anulação do processo, o
que, todavia, não impedirá outro julgamento pelo juiz natural da causa.53
4.5.4 DISMISSAL
O processo em que ocorre uma decisão de dismissal encerra-se semelhantemente
àquele em que se optou por uma decisão de mistrial, ou seja, antes de atingir o veredito
final, de absolvição ou de condenação. Porém, quando há um dismissal, o acusado é, em
princípio, beneficiado: embora permaneça incerta perante a comunidade a definição do
alegado comportamento ilícito, não será mais possível iniciar-se contra ele novo
processo, em face do mesmo crime.
Em geral, essa decisão é tomada quando se constata a insuficiência de lastro
probatório (justa causa, ou, na linguagem norte-americana, probable cause) para
suportar a acusação e o pretendido provimento condenatório, hipótese que possui o
mesmo efeito preclusivo de uma absolvição, em relação a novo julgamento.
Portanto, o dismissal, ao contrário do mistrial, assemelha-se a uma absolvição,
com a ressalva de que não se afirma a inocência do acusado, tendo em vista a falta de
deliberação dos jurados acerca do fato criminoso a ele atribuído.54
A decisão em apreço pode ser tomada antes da constituição do corpo de jurados
(before a jury has ben impaneled) ou durante o julgamento. Há porém a possibilidade
de o juiz decidir pelo dismissal após o veredito dos jurados (antes, porém, da segunda
etapa da condenação, que se torna efetiva pela sentence).
planejado, antecipadamente, suas férias para aquele período. Considerou-se que a decisão tomada pelo
juiz de declarar o mistrial poderia ser evitada, não havendo, portanto, a manifesta necessidade de encerrar
o feito.
53
54
Joshua Dressler. Understanding criminal procedure. 3. ed. Newark: LexisNexis, 2002, p. 702.
Observa Richard G. Singer que quando o dismissal não envolve matéria de mérito, a Suprema Corte
costuma tratar tal decisão como se fosse um mistrial, o que, em princípio, permite à acusação tanto apelar
quanto, se provido o apelo, renovar a imputação (Criminal procedure II: from bail to jail. New York:
Aspen, 2005, p. 202).
Rogerio Schietti. A proibição de dupla persecução penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008
Nessa última hipótese, a promotoria pode recorrer da decisão, e se o Tribunal de
segundo grau, ao julgar o recurso, desconstitui a decisão de dismissal, permanece válido
o anterior veredito, sem necessidade de novo processo, eis que a causa da anulação
ocorreu posteriormente à soberana decisão dos jurados. Bastará, então, ao juiz
completar o julgamento, com a determinação da pena apropriada.55
4.5.5 PLEA GUILTY
Outra característica do direito norte-americano, referida linhas atrás, diz respeito
à possibilidade de encerrar-se o processo por meio de negociação (plea bargaining)
entre a promotoria e a defesa, cujo objeto é a confissão do acusado (plea guilty) em
troca de algum benefício, geralmente consistente na redução da pena, ou a substituição
do pedido de condenação à pena de morte por pedido de prisão perpétua.
O uso da plea guilty pelo acusado põe termo ao processo, como já dito, e a
decisão judicial que homologa o acordo equivale a um veredito, no sentido de que não
pode mais haver novo processo contra o mesmo réu em razão do mesmo fato.
No entanto, há uma modalidade de guilty plea em que se abre a possibilidade de
nova persecução penal. Isso ocorre quando, juntamente com a guilty plea, o acusado se
obriga a cumprir, como parte do acordo, algumas condições no futuro e falha nesse
propósito, descumprindo a transação. Nessa hipótese, sendo certo que o sentenciado
descumpriu sua promessa, o Estado é livre para desconstituir o acordo, recolocando o
acusado na mesma posição processual em que antes se encontrava56, como assentado
em Ricketts v. Adamson.57
Não se aplica, na espécie, o precedente de Green v. United States 58, no qual se
vedou novo processo contra o acusado pelo crime mais grave de que fora
55
Vide United States v. Wilson, 420 U.S. 332 (1975); United States v. Morrison, 429 U.S. 1 (1976) e
United States v. Scott, 437 U.S. 82, 92, n. 7 (1978).
56
Similar problemática se verifica no direito brasileiro, em face do descumprimento da transação penal
(aplicação imediata de pena), de que cuida o art. 76 da Lei nº 9.099/95, tema a ser enfrentado no último
capítulo deste trabalho.
57
Ricketts v. Adamson, 483 U.S. 1 (1987). No julgamento desse caso, o acusado Adamson declarou-se
culpado, para obter pena menor, de assassinato em segundo grau, em troca da promessa de testemunhar
contra outros envolvidos no crime. Todavia, quando ele se recusou a testemunhar no julgamento dos
demais réus, o tribunal desconstituiu a condenação obtida pela guilty plea e restabeleceu a acusação
original. Por conseguinte, Adamson foi condenado por homicídio em primeiro grau à pena de morte,
decisão sustentada pela Suprema Corte.
58
Green v. United States, 355 U.S. 184 (1957). A Suprema Corte, ao julgar esse processo, modificou
precedente anterior (Tronto v. U.S., de 1905) para assentar o entendimento de que a condenação por um
Rogerio Schietti. A proibição de dupla persecução penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008
implicitamente absolvido ao ser condenado pelo crime menos grave. É que, “quando o
promotor aceita uma guilty plea de uma infração penal menor, não há apuração de fatos
sobre a culpabilidade do acusado, em relação à acusação mais grave. Como asseverou a
Corte Suprema, uma condenação por meio de guilty plea não importa em absolvição
implícita de qualquer outro crime.”59
4.6
O MARCO INICIAL DE INCIDÊNCIA DA CLÁUSULA DE PROIBIÇÃO
DA DUPLA PERSECUÇÃO PENAL NO DIREITO ANGLO-AMERICANO
Desde os tempos do Direito Romano, debate-se sobre a partir de qual momento
processual incide a "autoridade da coisa julgada" sobre a res in iudicium deducta, com a
conseqüente vedação a que se rediscuta o mesmo tema, entre as mesmas partes, em
juízos futuros.60
No nascedouro do direito inglês, por volta do século XIII, as já referidas pleas in
bar, que tinham o poder de barrar a renovação de um mesmo processo contra o súdito
(em especial a plea of acquittal e a plea of conviction), somente podiam ser opostas
depois de anterior absolvição (acquital) ou condenação (conviction). Isso ocorria
porque, nos julgamentos realizados por um tribunal de jurados leigos, somente o
veredito final concluía o processo, salvo hipóteses raras nas quais ambas as partes
consentiam com a retirada da acusação.61
Passaram-se os séculos e o direito da Inglaterra continua a exigir julgamento
final de mérito, antes de se poder afirmar como já iniciada a situação de risco para o
acusado. Logo, até que sobrevenha absolvição ou condenação final não há decisão com
força preclusiva capaz de impedir a renovação do processo.62
crime menor importa em absolvição implícita do crime mais grave, de modo a impedir que, havendo
desconstituição da sentença condenatória, seja o réu novamente processado pela acusação original.
59
George C. Thomas III. Double jeopardy. The history, the law. New York University Press. New York:
1998. p. 225, referindo-se a Ohio v. Johnson, 467 U.S. 493 (1984).
60
Sugere-se, para a compreensão do tema, a leitura do volume 2, Capítulo II, da já referida obra de
Arturo Rocco (Opere giuridiche. Roma: Società Editrice del Foro Italiano, 1932), especialmente das
páginas 42-50, onde descreve como o momento consumativo da ação (na terminologia da época) passou
da litis contestatio à sentença (res judicata).
61
George C. Thomas III. Op. cit., p. 214. Vale registrar, porém, não ser incomum, já na segunda metade
do século XVII, que juízes, diante da possibilidade de absolvição do réu por fragilidade da prova,
dissolvessem o Júri para habilitar a acusação a reapresentar o caso com evidências mais fortes (Martin L.
Friedland. Double jeopardy. Oxford: Clarendon Press, 1969, p. 12).
62
Aliás, vale relembrar que essa posição mais restrita do direito inglês encontra apoio na Convenção
Européia de Direitos Humanos. Após o acréscimo conferido pelo Protocolo 7, a Convenção passou a
Rogerio Schietti. A proibição de dupla persecução penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008
No direito norte-americano, contudo, esse "termo inicial" para a incidência da
garantia protetiva em comento pode ocorrer bem antes da sentença de absolvição ou de
condenação. Tal particularidade, em relação ao direito inglês, firmou-se a partir do caso
Downum v. United States, julgado em 1963 pela Suprema Corte, a qual já vinha
construindo a idéia de que outras decisões, além do veredito final, poderiam impedir
novo julgamento pelo mesmo fato.63 Procurou-se definir o momento em que, cessada a
atividade persecutória no primeiro processo, houve uma "suficiente quantidade de risco"
para se considerar que o réu, efetivamente, esteve in jeopardy, de tal modo a obstruir a
nova tentativa do Estado em impor-lhe uma sanção penal.
De modo geral, pode-se dizer que jeopardy attaches quando uma pessoa é
levada a julgamento mediante acusação válida, perante tribunal competente. Mais
especificamente, boa parte dos estados norte-americanos aceita, como conceito mínimo,
que, após os primeiros atos de um processo (arraignments), quando já formulada a
acusação e efetivada a citação do réu, este está "sob risco" a partir do momento em que
os jurados são selecionados e submetidos a solene juramento (impaneled and sworn).64
Já no âmbito federal, a Suprema Corte dos EUA reviu anterior posicionamento –
o qual considerava que o acusado se encontrava sob risco somente após o juramento da
primeira testemunha do processo65 – e passou a entender que, em um julgamento pelo
Júri, isso ocorre um pouco antes, quando os jurados são selecionados e prestam
compromisso.66
É dizer, até esse momento, eventual término do processo – por qualquer motivo
– não impede a renovação do feito posteriormente, a critério do órgão de acusação, que,
prever em seu artigo 4º, que a garantia contra dupla persecução penal incide quando o acusado, pela
mesma infração penal, "já tiver sido finalmente absolvido ou condenado", nada dispondo sobre outras
modalidades de decisões.
63
Em Downum v. United States, 372 U.S. 734, o reconhecimento da double jeopardy clause se deveu ao
fato de, no primeiro julgamento, a promotoria não ter conseguido apresentar a principal testemunha para
depor contra o acusado, o que gerou decisão de mistrial antes do início da instrução, sob protesto da
defesa. O tema dos efeitos preclusivos de decisões anteriores ao veredito já fora ventilado em outros
julgados da Suprema Corte, desde United States v. Perez, 9 Wheat. 579, decidido em 1824, passando por
Logan v. United States, 144 U.S. 263, 298; Dreyer v. Illinois, 187 U.S. 71, 85-86; Keerl v. State of
Montana, 213 U.S. 135, Wade v. Hunter, 336 U.S. 684, e Gori v. United States, 367 U.S. 364, inter alia.
64
Jay A. Siegler. Double jeopardy: The development of a legal and social policy. Cornell University
Press. Ithaca, New York, 1969, p. 84.
65
Esse entendimento, que remonta ao caso Keerl v. State of Montana, julgado em 1909, continua a ser
válido para os julgamentos realizados pelo juiz singular, sem intervenção de um júri (George C. Thomas
III. Double jeopardy. The history, the law. New York University Press. New York: 1998, p. 251).
66
Crist v. Bretz, 437 U.S. 28 (1978).
Rogerio Schietti. A proibição de dupla persecução penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008
como é notório, rege-se por critérios de conveniência e oportunidade, bem diferente do
que se verifica em boa parte dos países de tradição romano-germânica. Se, por exemplo,
são retiradas as acusações contra o réu durante o processo de seleção do Júri
(procedimento conhecido pela expressão voir dire), antes, portanto, do juramento que os
selecionados devem proferir, a double jeopardy clause não previne a promotoria de
trazer novamente o réu a julgamento pelas mesmas infrações penais, dentro,
evidentemente, do prazo prescricional previsto em lei.67
Nos Estados Unidos, além das sentenças definitivas (absolutórias ou
condenatórias), haverá casos em que decisões tomadas no curso do processo – mistrial
ou dismissal – poderão impedir novo processo, a depender de fatores objeto de aferição
concreta. Mas, usualmente, situações emergenciais não tributáveis à desídia ou à astúcia
da acusação costumam ser aceitas como idôneas a configurar uma "manifesta
necessidade" – o que é fundamental para a corte decidir pelo jury discharge – tais como
doença ou morte de um jurado, enfermidade grave do acusado ou do juiz, mau
comportamento de um jurado, irregularidade no ato de acusação, etc.68
A par das circunstâncias que autorizam em princípio o prematuro encerramento
do processo, o momento em que o ato foi praticado será determinante para avaliar a
incidência ou não da double jeopardy clause. Se o mistrial ou o dismissal ocorrer antes
de o corpo de jurados ser selecionado e prestar juramento, a regra é que não haverá
impedimento a se reformular a acusação.69
Inevitável, portanto, inferir que não gera efeito preclusivo a decisão cometida ao Grand
Jury de aceitar ou rejeitar a acusação (indictment) apresentada pela promotoria, tendo
em vista que tal decisão é necessária e logicamente anterior à seleção e ao juramento do
corpo de jurados a quem caberá a função de julgar a causa (Petit Jury). É dizer, a
doutrina e a jurisprudência norte-americanas entendem que o indivíduo criminalmente
processado ainda não está in jeopardy, antes de atingir-se estágio do processo –
posterior ao mero juízo inicial de admissibilidade – em que já restou superada a questão
da existência de justa causa (probable cause) para dar seguimento à acusação.
67
Mark E. Cammack e Norman Garland. Advanced Criminal Procedure in a Nutshell (Nutshell Series).
2. ed. s/l: Thomson/West, 2006, p. 205.
68
Jay A. Siegler. Double jeopardy: The development of a legal and social policy. Cornell University
Press. Ithaca, New York, 1969, p. 43 e 88.
69
De igual modo, a retirada da acusação (withdrawal of an information) no processo penal inglês, antes
do início do julgamento, não impede subseqüente processo (Martin L. Friedland. Double jeopardy.
Oxford: Clarendon Press, 1969, p. 32).