o meu desejo é que o seu desejo não me defina
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o meu desejo é que o seu desejo não me defina
“O MEU DESEJO É QUE O SEU DESEJO NÃO ME DEFINA” (METÁFORAS EM ELLEN OLÉRIA E LUCILLE CLIFTON) TATIANA NASCIMENTO DOS SANTOS Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução Centro de Comunicação e Expressão Universidade Federal de Santa Catarina Campus Reitor João David Ferreira Lima – 88040-970 – Trindade – Florianópolis – SC – Brasil [email protected] Resumo. Metáforas de autodefinição, inversão e disputa no rap antiga poesia, de Ellen Oléria (2010) e no poema won't you celebrate with me, de Lucille Clifton (1993), questionam a “tradição do silêncio” do racismo sexista. Analiso como permitem às autoras constituir-se em sujeitos, afirmando-se pela palavra. Caminho por teorias feministas de linguagem e tradução e Análise de Discurso Crítica nessa jornada de versos intertextuais que se encontram e transformam para montar identidades negras feministas. Palavras-chave. Ellen Oléria. Lucille Clifton. Metáforas. Negritude. Feminismo. Abstract. The rap “antiga poesia” (Oléria, 2010) and the poem “won’t you celebrate with me” (Clifton, 1993) bring metaphors of self-definition, inversion and dispute that challenge the "tradition of silence" of sexist racism. I analyze their use of metaphors as a constitutive tool to affirm subjectivity by the word. Feminist theories of language and translation, with Critical Discourse Analysis, lead me through this journey on intertextual verses meeting to build black feminist identities. Keywords. Ellen Oléria. Lucille Clifton. Metaphors. Blackness. Feminism. 1. Começo 1 Entremeios: revista de estudos do discurso. n.8, jan/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > Na canção antiga poesia, a lésbica negra Ellen Oléria canta ancestralidades1: “Salve! As negras do sertão / Negras da Bahia / Salve / Clementina, Leci, Jovelina / Salve / Nortistas, caribenhas, clandestinas / Salve / As negras de mi America Latina” (OLÉRIA, 20102). Em emocionante apresentação, um coro de mais de 3 mil mulheres3 celebra com Oléria a existência desse panteão múltiplo, simbólico e material de deusas (“Manhandeua cinge / o nariz da esfinge / de axé tô cercada / Oyá / Yemanjá vive”) e mulheres que o cotidiano tenta esquecer ou apagar (“a baixa autoestima / da dona Maria / sua prima, da sua filha e sua vizinha”), mas resistem: “A vida toda alguma coisa tentou me matar / E eu me refiz”. Essa enunciação de si como autocriadora volta no segundo verso da canção – “Eu me fiz sozinha. / Força feminina”, e evoca Lucille Clifton, poetisa educadora, feminista e negra. Em março de 2010, publiquei a tradução de seu poema “won't you celebrate with me” (1993) no Nosso Jornal do DF (em favor das cotas raciais no ensino superior). Alguns meses depois, conheci antiga poesia e reconheci a intertextualidade. Vejo o racismo sexista (PERRY, 2009) como sistema de opressão e silenciamento que cria uma tradição do silêncio: “Eu não mais serei feita para sentir vergonha por existir. Eu vou ter minha voz. [...] Eu vou ter minha língua de serpente – minha voz de mulher, minha voz sexual, minha voz de poeta. Eu vou romper a tradição do silêncio.” (ANZALDUA, 1999, p. 81, tradução minha4). Para Glória Anzaldua, poetisa lesbiana chicana, a escrita das mulheres importa ao definir nossa existência em termos próprios: Escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você. Para me tornar mais íntima comigo mesma e consigo. Para me descobrir, preservar-me, construir-me, alcançar autonomia. Para desfazer os mitos de que sou uma profetisa louca ou uma pobre alma sofredora. Para me convencer de que tenho valor e que o que tenho para dizer não é um monte de merda. Para mostrar que eu posso e que eu escreverei, sem me importar com as advertências contrárias. (ANZALDUA, 2000, p. 232) Traduzi o poema de Clifton por reverberar em mim, para reverberar em mulheres negras que não leem inglês ou não a tinham lido. Logo, essa tradução é política, me insere no fluxo de escrita como “prática emancipatória” individual e coletiva, pois o discurso das mulheres “é duplo, ele é o eco de si e da outra, um movimento rumo à alteridade” (GODARD, 1990, p. 88, tradução minha5). Para Barbara Godard, teórica lésbica feminista e canadense, [...] o discurso feminista é um discurso político dirigido em direção à construção de novos sentidos, e é focado nos sujeitos tornando-se em/pela linguagem. Ele busca expor os modos ideológicos de percepção através de uma expansão das mensagens nas quais experiências individuais e coletivas 1 A canção ainda não está registrada em fonograma. Uma versão está disponível no website youtube.com: <http://www.youtube.com/watch?v=iwbWZuVkI0w>. Acesso em: 01 mar 2013. 2 Letra enviada gentilmente pela cantora em comunicação pessoal (cf. Referências). 3 Show de encerramento da Marcha Mundial de Mulheres de 2010, em Várzea Paulista, SP. 4 As traduções de Anzaldua (1999) são minhas. 5 Todas as traduções de Godard nesse artigo são minhas. 2 Entremeios: revista de estudos do discurso. n.8, jan/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > originam-se de uma postura crítica contra os contextos sociais do patriarcado e sua linguagem. (GODARD, 1990, p. 88) Parto da tradução como prática de reescritura, cocriação; recusa à hierarquia impermeável autoria X tradução e às gastas metáforas de tradução como reprodução e atividade feminizada, evocando reprodutivismo biológico (CHAMBERLAIN, 2005). É tradução feminista de discurso feminista: “aprendemos a forma pela qual o discurso feminista trabalha no discurso dominante em um movimento complexo e ambíguo entre discursos” (GODARD, 1990, p. 88). Indo entre as palavras de Clifton e Oléria, localizome como herdeira afrodiaspórica dessa contra-tradição de ruptura do silenciamento. Entendendo esse encontro textual como enunciações pautadas por relações dialógicas, no sentido bakhtiniano do termo – dialogia reconhecida como “espaço de tensão entre vozes sociais” (FLORES; TEIXEIRA, 2009, p. 152) – olho o funcionamento desses discursos de resistência cotidiana e micropolítica às opressões do racismo sexista, formuladores são de identidades individuais coletivizadas a partir da própria existência discursiva. Investigo como as metáforas de Oléria e Clifton contestam poderes sociais, raciais e sexuais. Metáforas remetem a uma “determinada experiencia cultural” (LAKOFF; JOHNSON, 2009, p. 23), ou seja, estão calcadas na experiência, o que torna fundamental sua dimensão contextual, histórica e intersubjetiva. Elas “tienem sus raíces em la experiencia física y cultural, no son asignadas de manera arbitraria” (LAKOFF; JOHNSON, 2009, p. 55). Metáforas importam ao montar “o modo como pensamos e o modo como agimos, e nossos sistemas e conhecimento e crença, de uma forma penetrante e fundamental” (FAIRCLOUGH, 2008, p. 241). Escolhendo uma metáfora e não outra, construímos “nossa realidade de uma maneira e não de outra, o que sugere filiação a uma maneira particular de representar aspectos do mundo e de identificá-los” (RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 88). Metáforas reafirmam e jogam com o caráter essencialmente simbólico da palavra: “a metáfora não é uma questão meramente linguística ou lexical, ao contrário, o pensamento humano é largamente metafórico e a metáfora só é possível como expressão linguística porque existe no sistema conceptual humano” (RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 86). Elas expressam uma dimensão inegociável e profunda da linguagem, essa da representação de uma coisa por outra: “entender y experimentar un tipo de cosa em términos de otra” (LAKOFF; JOHNSON, 2009, p. 41); explicitam como as coisas (ou a percepção que temos delas) são construídas pela linguagem. Significação é, portanto, criação. E os atos ilocucionários (expressão) ganham força perlocucionária (significação) quando o enunciado não só expressa, declara, mas significa, ou seja, cria o que enuncia: e isso é o “poder simbólico de constituir o dado pela enunciação, de confirmar ou de transformar a visão do mundo” (RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 113). “[...]o contato entre a língua e a realidade – que se dá no enunciado – provoca o lampejo da expressividade” (BAKHTIN, 1997, p. 311). Nos versos, as metáforas, que denotam, de forma notável, a consolidação da significação em expressividade (BAKHTIN, 1997), são escolhas discursivas deliberadas, conscientes, que rearquitetam 3 Entremeios: revista de estudos do discurso. n.8, jan/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > o esqueleto da significação, deixando o dito mais contundente. Conjugam conteúdo e forma para ampliar a expressividade do encontro de alteridades em que “o reconhecimento de si se dá pelo reconhecimento do outro” (FLORES, TEIXEIRA; 2009, p. 152). 2. Meio As metáforas aqui analisadas são as que as autoras usam para autodefinição (construção de si mesmas), inversão (retomada de valores depreciados) e disputa (confronto com a hegemonia). Elas explicitam um processo de constituição subjetiva desde um encontro simultâneo consigo mesmas e com uma outra. 2.1 Autodefinição você não vai celebrar comigo?6 você não vai celebrar comigo o que eu moldei em um tipo de vida? ninguém me ensinou. nascida na Babilônia tanto não-branca quanto mulher o que eu vi para ser exceto eu mesma? eu inventei aqui nessa ponte entre brilhodeestrela e barro, minha uma mão segurando firme minha outra mão; vem celebrar comigo que todo dia algumacoisa tentou me matar e falhou. Nos versos 06 a 10, Clifton se elabora frente a um mundo em que os modelos não a espelham, não-branca/negra e mulher/não-homem. Fazer-se na poesia evoca Audre Lorde, poetisa negra, lésbica e feminista, para quem poesia não é luxo, mas autodefinição: “A poesia faz algo acontecer, de fato. Ela faz você acontecer.” (LORDE, 2009, p. 184, tradução minha). A escrita de Clifton assemelha-se ao próprio espelho de Oxum, a Orixá relacionada à água doce e a força criadora do amor. Diferentemente das associações à vaidade que a relação entre Oxum e espelho suscita, aqui espelho surge como superfície de enxergar a si mesma para, aí, se autoconstituir: “o que eu vi para ser exceto eu mesma?” Em Oléria, a primeira metáfora de autodefinição está no terceiro verso de antiga poesia: Minha nova poesia é Antiga poesia Eu me fiz sozinha. Força feminina. 6 Uso aqui uma revisão da tradução antes publicada. 4 Entremeios: revista de estudos do discurso. n.8, jan/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > As culturas negras da diáspora são culturas de reverberação: a segregação espacial de povos inteiros roubados e misturados fracassou na tentativa de desarticular pessoas e cultura. Abya Yala, como a América Latina e Caribe são chamados por alguns povos ameríndios, é palco de expressões que reverberam do afoxé pernambucano ao hiphop de Brasília, as quais reverberam na minha escrita sobre a escrita cantada de uma poetisa negra, lésbica, versando as reverberações de uma negra poetisa afroestadunidense que escreveu o poder da palavra enquanto afirmação da própria existência. E por ser linguagem cultura, as reverberações culturais são reverberações pela linguagem. Os discursos assemelham-se, reconstroem-se, alimentam-se, espelhando-se uns nos outros e criando seus avessos. Fazem-se numa solidão anunciadora de controversa coletivização e também denunciam que a estratégia de segregação colonizadora fracassou: as vozes, “mesmo fraturadas, continuariam cantando em uníssono” (WERNECK; MENDONÇA; WHITE, 2000, p. 7). O terceiro verso de Oléria é composto de uma oração – “Eu me fiz sozinha.” – e uma frase – “Força feminina”. Formalmente, não é um período composto, mas as relações contextuais entre oração e frase lembram causa e consequência: fazer-se sozinha demanda força feminina, encerrando uma ideia pouco usual numa cultura patriarcal que confina mulheres à reprodução. Ou seja, rompem-se tanto o cânone da divindade masculina criadora quanto a confirmação existencial feminina pela maternidade (ambas bem recorrentes na mitologia cristã). O mito da criação é revisitado e feminizado. E essa subversão é das mais significativas, tanto na canção quanto no poema. Aquilo que considero reverberação entre Oléria e Clifton é questão de raça e gênero. A experiência negra feminina coletiva é evocada ao longo dos versos das poetisas, pautada pelo alargamento da textualidade dialógica: existências que se referem umas às outras e constituem a si mesmas no fluxo histórico de existências já existidas. 2.2 Inversão Nas metáforas de inversão, as poetisas se apropriam de imagens depreciativas, ofensivas e elaboram uma ressignificação das mesmas, positivando-as, denegrindo-as – no sentido ressignificado e antirracista do termo: importante estratégia de revalorização que recusa o denuncismo vitimista (HOOKS, 1995). Em antiga poesia: Minha nova poesia é Antiga poesia Eu me fiz sozinha. Força feminina Escrevo sem ter linha. Escrevo torto mesmo. Escrevo torto eu falo torto pra seu desespero O verso “Escrevo sem ter linha. Escrevo torto mesmo.” reverbera a falta de parâmetros externos enunciada por Clifton, no terceiro verso de seu poema, “ninguém me ensinou.” Porque nascer na confusão babilônica, nascer na contramão dos padrões rompe qualquer possibilidade de identificação positiva com o alheio – suas constituições dão-se no avesso, na inversão das normas. E suas enunciações invertem a própria lógica de negação das existências não-hegemônicas, retomando, precisamente, o 5 Entremeios: revista de estudos do discurso. n.8, jan/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > que é depreciado, mas agora alçado de negação (não-hegemônico) à afirmação (contrahegemônico). Enquanto Clifton trilha uma autocosmogonia subjetiva (versos 07 a 11), constatando ser seu único modelo, Oléria aposta no poder contestador que tem sua enunciação frente ao outro. Sua escrita diverge da prescrição normativa, como é o caso do verso cinco. A ausência de vírgulas entre as orações é a própria escrita torta de que nos fala. Esse recurso linguístico aparentemente simples, que parece ter mais importância em termos de (in)adequação à variante padrão do português do que da expressividade do texto, conjuga forma e conteúdo para materializar sua metáfora na escrita. “Torto” vai de advérbio modal a um modificador significativo no contexto discursivo de disputa aqui traçado. Por ser assumido, porque a escrita torta é deliberada e autoconsciente, fala diretamente ao desespero do Um, agora alterizado, tornado outro, numa relação de intento, a qual monta todo esse campo conceitual de disputa, a partir da locução conjuncional subordinativa final “pra seu desespero”. Assume-se a disputa entre discursos hegemônicos e contra-hegemônicos, com ênfase na desestabilização que estes trazem àqueles. É nítida a impossível paridade desses pares tão opostos, mas a metáfora é cheia de força expressiva. “Torto”, além de modificar sintaticamente escrita e fala (uma vez que se trata de um hiphop), habilita uma dimensão semântica em que o lugar depreciado é assumido com orgulho, não de forma ingênua, mas consciente de seu ímpeto questionador. É o anúncio de que o dominador há de se desesperar com a voz contra-hegemônica, e é também a recusa de se debater contra esse desespero, numa tentativa de ajuste ao padrão. É uma afronta, é malcriação, desaforo: insolência mesmo. Anzaldua chama as línguas tortas, desafiadoras dos cânones, de deficientes, pesadelo, aberração: Deslenguadas. Somos los del español deficiente. Nós somos seu pesadelo linguístico, sua aberração linguística, sua mestizaje linguística, o assunto de sua burla. Porque nós falamos com línguas de fogo nós somos crucificadas culturalmente. Racialmente, culturalmente e linguisticamente somos huérfanos – nós falamos uma língua órfã (ANZALDUA, 1999, p. 80). Em How to tame a wild tongue (“Como domesticar uma língua selvagem”), a tradução acima é o primeiro parágrafo de um tópico chamado “Terrorismo Linguístico” (Linguistic Terrorism), em que Anzaldua alerta para a depreciação que é internalizada pelas falantes das variantes não-padrão (ela está falando especificamente do conflito entre o “chican spanish”, falado pela comunidade latina, residente nos EUA, e o inglês padrão, ensinado nas escolas, de forma a apagar seus sotaques), e sobre essa internalização conta que “nossa língua tem sido usada contra nós pela cultura dominante” (ANZALDUA, 1999, p. 80). Subverter o uso envenenado, retomar a própria língua dita torta, é retomar a própria existência: “Identidade étnica é gêmea de pele de identidade linguística – eu sou minha língua. Enquanto eu não puder me orgulhar de minha língua, não poderei me orgulhar de mim mesma.” (ANZALDUA, 1999, p. 81). Tal orgulho passa por compreender a condição de ilegitimidade da própria língua frente aos sistemas de poder que assim a condicionam – não para ajustar-se ao cânone, mas questioná-lo, e à tradição do silêncio imposta pelo racismo sexista lesbofóbico. 6 Entremeios: revista de estudos do discurso. n.8, jan/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > Chamar a própria escrita de aberração é um movimento bastante diferente de vêla acusada de “grunhidos ou cuinchos” (HOOKS, 2008, p. 858). O primeiro traduz por uma elaborada estratégia de apropriação e ressignificação; o segundo representa nada mais que a velha tática colonizadora de definir para conquistar, e definir pelo estranhamento, pelo desumanizante – para justificar a conquista. Na etapa colonial da colonização, a igreja católica publicava bulas para justificar o sequestro e evangelização dos povos não-brancos , considerando-os sem alma, portanto inumanos. Clifton pergunta: “o que eu vi para ser, além de mim mesma?”. A invisibilização que os cânones de branquitude, adequação sexo/gênero e humanidade impõem aos corpos desviantes de sua padronagem é espelho de duas faces: as que não são reconhecidas como humanas e não enxergam no modelo uma possibilidade de constituição da qual partir – logo, constituem-se por si. Subvertendo, inclusive, a lógica criador-criatura, o que aparece na resposta que o próprio poema fornece àquela pergunta: “eu inventei / aqui nessa ponte entre / brilhodeestrela e barro / minha uma mão segurando firme / minha outra mão”. Versos ecoados nos versos de Oléria em antiga poesia: “Eu me fiz sozinha / Força feminina”. As enunciações de Clifton e Oléria contestam, frontalmente, a paradoxal interdição da criatividade das mulheres (uma vez que a criação maternal é reforçada). 2.3 Disputa Para a filósofa feminista e educadora indígena María Lugones (2008), a contemporaneidade é a modernidade da colonização. As novas roupagens da dominação usam, como ferramenta, entre outras, preconceito linguístico e seus diversos graus de desvalorização das variantes consideradas não-padrão para garantir que alguma seja considerada padrão, inclusive e principalmente no aparato estatal escolar (BORTONIRICARDO, 2004). É essa variante que define as outras como variações menores de si e as acusa de erradas, não-cultas, tortas. O poder definidor, classificatório, tem sido usado a partir de uma assimetria entre poderes, em que um grupo possui o “privilégio de atribuir valores aos grupos classificados” (RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 77). Analisar sob tal debate o período “o meu desejo é que o seu desejo não me defina”, verso 16 de antiga poesia, não se trata unicamente de apontar que o desejo do outro está ontologizado em metáfora, pois isso não daria conta de apontar a amplitude subversiva que o campo metafórico de desejos-entidade em oposição-disputa desvela. Aqui, somos postas frente a um dos temas mais centrais e recorrentes nas reverberações afrodiaspóricas (NASCIMENTO DOS SANTOS, 2011) das poetisas aqui dialogadas: se há tipos de existência/desejo que aniquilam existências/desejo outras, como elas podem coabitar o mesmo mundo, senão em conflito? Em Oléria, esse conflito é explicitado como disputa de desejos: ao desejo de aniquilamento colonial, a poetisa responde “O meu desejo é que o seu desejo não me defina / A minha história é outra / Tô rebobinando a fita”. Aqui, gostaria de trazer os versos iniciais de outra canção oleriana, testando (OLÉRIA, 2009): eu eu não domino a esgrima mas minha palavra 7 Entremeios: revista de estudos do discurso. n.8, jan/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > a minha palavra minha palavra é afiada e contamina As orações coordenadas adversativas e, em especial, a repetição do sintagma nominal (minha palavra / a minha palavra / minha palavra), trazem uma ideia de confronto de alteridades que é retomada em “O meu desejo é que o seu desejo não me defina / A minha história é outra” (antiga poesia). Para contar essa história outra, há que se usar outra linguagem; reinventar-se a si mesma demanda reinventar a linguagem, em especial a linguagem do opressor; aqui se pauta a primeira instância de disputa discursiva em análise. O uso metafórico de “esgrima” traz uma referência imediata ao código de prestígio por referir-se a uma prática aristocrática; mas o alcance metafórico do enunciado não se encerra aí, completando-se na seleção lexical de “dominar”, que consolida a assunção de duelo, embate (racial e de gênero). Uma mirada a “eu não domino a esgrima (a), mas minha palavra é afiada (b) e contamina (c)”: A coordenação adversativa de (b) reforça o caráter beligerante em termos formais; enquanto a força semântica de (b) e (c) extrapola o caráter opositivo ao trazer despeito ou desprezo pelo código de prestígio, que se torna irrelevante ou ineficaz perto da palavra que não só é afiada, mas contamina. O modificador “afiada” faz referência direta a espada, lâmina, corte – a seleção lexical flui dentro do campo conceitualmetafórico de combate. Além de desenvolver-se no campo metafórico das disputas, a agência que “palavra” tem em testando é exemplo do recurso metafórico da ontologização. As metáforas ontológicas são aquelas que nos permitem “considerar acontecimientos, actividades, emociones, ideas, etc., como entidades y sustancias” (LAKOFF; JOHNSON, 2009, p. 64), ou seja, nos permitem corporificar experiências, sensações, entes não-materiais. Os versos de Oléria e Clifton trazem, em reverberação, uma imagem específica do existir a partir das tentativas de aniquilação. Em Clifton, a disputa está vencida e a celebração deve ser compartilhada: “... vem celebrar / comigo que todo dia / alguma coisa tentou me matar / e falhou”. Oléria, no verso “todo dia alguma coisa tentou me matar / e eu me refiz”, enfatiza a agência de si mesma na sobrevivência, diferentemente de Clifton – que enfatiza o fracasso do opositor. Mas ambas prestam saravá à sua própria existência, que aqui significa a existência possível de muitas outras. Vivendo pela palavra (WALKER, 1988), mesmo a aprendida, inicialmente, com o opressor – e então subvertida. 3. Caminhos compartilhados bell hooks [sic], educadora negra, feminista e heterossexual, comenta o uso de línguas colonizadoras como estratégia de descolonização e reconstrução de afetividades perdidas pela trágica empreitada branca de sequestro negro: De que modo descrever o que deve ter sido para os africanos, cujas ligações 8 Entremeios: revista de estudos do discurso. n.8, jan/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > mais profundas foram forjadas historicamente no espaço da fala compartilhada, serem transportados abruptamente para um mundo onde o verdadeiro som da língua materna não tinha sentido... Eu os imagino ouvindo inglês falado como a língua do opressor, no entanto eu os imagino também se dando conta de que essa língua precisaria ser possuída, tomada, reivindicada como um espaço de resistência. Imagino que o momento em que eles perceberam que a língua do opressor, tomada e falada pelas bocas dos colonizados, poderia ser um espaço de ligação foi uma intensa alegria (HOOKS, 2008, p. 859). Para Lorde, a poesia não é luxo (LORDE, 1984). Amplio sua assunção à palavra: é estratégia de vivência, de reaprender a viver em meio a economias de caos, desmazelo, abandono, perda e sobrevivências críticas. Palavra não só palco de macrodisputas de poder: também trama onde se forja o próprio nó da existência, fio que tece as micropolíticas do devir. É a essa dimensão ontológica da palavra que procurei dar ênfase, bem como a seus enraizamentos contra realidades de destruição. Há algo mais na disputa entre os discursos hegemônicos de silenciamentos e os discursos contra-hegemônicos que um embate pelo poder (de) falar. O embate é por poder (de) existir, e existir pela palavra. A dimensão perlocutória da enunciação, que não só expressa, mas constrói sentidos ao expressá-los, deve ser percebida juntamente à força expressiva das metáforas, porque elas se articulam em termos de “como se cria o que se cria”, conectando conteúdo e forma e apaziguando uma antiga e falaciosa clivagem entre essas instâncias processuais da episteme. A metarreflexão elaborada por Oléria nos versos iniciais de testando aponta para a consciência da função de sua palavra como desafiadora daquelas naturalizações, desconstruindo os paralelismos rígidos que criam e opondo-se, radical e francamente, às culturas de silenciamento racistas, sexistas e lesbofóbicas. Assim, sacode a prerrogativa de proferir inexistências que elas têm. Parece-me muito interessante, no entanto, que a relação conflituosa estabelecida entre quem se rebela e (contra) quem oprime não se dê sempre em termos de aniquilação. Em antiga poesia, Oléria apresenta e comenta muitos outros saberes entendidos de forma desprestigiada (saberes femininos, saberes negros, saberes anciãos, saberes não-escolarizados), não aceitos como conhecimento válido de mundo; ademais, ela nos presenteia com suas cosmovisões, suas epistemologias da resistência negra, da resistência negra feminina, da resistência negra feminina lesbiana. A homenagem que presta à própria Clitfon homenageia lideranças quilombolas palmarinas Akotirene e Dandara, saúda a ancestralidade material – desde sua avó (“minha vó formou na vida / e nunca soube o que é reprovação”) até Clementina de Jesus, Leci Brandão e Jovelina Pérola Negra – e também as imaterializadas – Manhandêua, Oyá e Yemanjá. Seus versos cantam a existência daquelas que escreveram e produziram conhecimento, sua própria história, na carne mesma, uma na carne da outra: “a vida toda alguma coisa tentou me matar / e eu me refiz / Dandara / Akotirene”. Completa-se a metáfora individual, autocentrada da autocriação: em Oléria, fazer-se sozinha é fazer-se em bando, relembrando e celebrando a existência de mulheres negras que conformam nossa existência agora materializada. Uma celebração de amor entre mulheres, amor lesbiano, portanto7: as referências são criadas desde 7 A metáfora literária da lésbica (FARWELL, 1988), entretanto, não é alegoria discursiva, uma vez que 9 Entremeios: revista de estudos do discurso. n.8, jan/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > dentro, internas, advindas da experiência compartilhada e, mesmo que dialoguem com um outro dominador, não dependeram dele para se constituir – a autocosmogonia de Clifton é ampliada em Oléria para uma cosmogonia compartilhada. Se a cosmogonia em Oléria conjuga ancestrais corporificadas e imateriais, na corporificação da autocosmogonia, em Clifton, a materialidade é inventada da própria carne-terra a partir da imaterialidade do céu: “eu inventei / aqui nessa ponte entre / brilhodeestrela e barro, / minha uma mão segurando firme / minha outra mão”. Reinventando um dos maiores mitos da criação das mulheres, vindas agora do barro original automodelado, encerro com a belíssima metáfora de Clifton. Referências Bibliográficas ANZALDUA, Gloria. Falando em línguas: uma carta às mulheres escritoras do terceiro mundo. Tradução de Édna de Marco. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 8, n. 1, p. 229-236, jan.-jun. 2000. ______. Borderlands/La frontera: the new mestiza. 2. ed. São Francisco: Aunt Lute Books, 1999. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Maria E. G. Pereira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. (Coleção Ensino Superior) BORTONI-RICARDO, Stella Maris. 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