MACHADO,Maristela_e_ZANINI,Mariza

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MACHADO,Maristela_e_ZANINI,Mariza
A POESIA EM SALA DE AULA DE FRANCÊS LÍNGUA ESTRANGEIRA (FLE)
Maristela Gonçalves Sousa Machado (UFPEL) e Mariza Zanini (UFPEL)
Uma pedra no meio do caminho
ou apenas um rastro, não importa.
Estes poetas são meus. De todo o orgulho,
de toda a precisão se incorporaram
ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinicius
sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.
Que Neruda me dê sua gravata
chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakovski.
São todos meus irmãos, não são jornais
nem deslizar de lancha entre camélias:
é toda a minha vida que joguei.
Carlos Drummond de Andrade
Palavras-chave: texto poético, FLE, didática de línguas.
A discussão sobre o papel do texto literário no ensino do FLE não é nova e ressurge
constantemente, não importando o quanto perspectivas, metodologias e tecnologias se
modifiquem. Considerado em diferentes momentos como modelo de língua culta,
documento cultural em função de sua temática, documento autêntico, pretexto para
ilustração de questões gramaticais ou para exercícios de fonética (sobretudo no caso da
poesia), raramente o texto literário é abordado em sua especificidade: “la langue au travail”
(a língua em ação), a indissociabilidade entre sentido e forma, o caráter não datado, a
intenção estética, a exigência da atividade do leitor para produzir sentido (Albert e
Souchon, 2000). O debate sobre a questão é também estimulado pelo Quadro europeu
comum de referência para as línguas, que preconiza no item Utilisation esthétique ou
poétique de la langue : “Les littératures nationale et étrangère apportent une contribution
majeure au patrimoine culturel européen que le Conseil de l‟Europe voit comme „une
ressource commune inappréciable qu‟il faut protéger et développer‟. Les études littéraires
ont de nombreuses finalités éducatives, intellectuelles, morales et affectives, linguistiques
et culturelles et pas seulement esthétiques.” (Conselho da Europa, 2005, p. 47).
Nosso objetivo nesse trabalho é relatar o planejamento da disciplina Literatura de Língua
Francesa III – Poesia na Licenciatura de Português e Francês e respectivas literaturas da
Universidade Federal de Pelotas, apontar rumos para a abordagem do texto poético em sala
de aula, no sentido de contribuir para a formação de leitores literários em FLE capazes de
se lançarem na busca da presença não transparente do referente por trás do jogo poético e,
em uma perspectiva intercultural, de incentivá-los a pensar sobre a poesia em língua
materna e em seu quotidiano.
O lugar do texto literário em sala de aula de FLE: uma retrospectiva
O debate sobre a utilização do texto literário (TL) em sala de aula de Francês Língua
Estrangeira (FLE) tem mobilizado um grande número de pesquisadores, sobretudo a partir
do final dos anos sessenta. Essa discussão passa por várias questões de fundo desde a
contestada separação entre língua e literatura até a especificidade do texto literário, mas os
estudiosos que procuram traçar uma retrospectiva da presença da literatura no ensino do
FLE apontam frequentemente duas atitudes que parecem sintetizar as diferentes posturas
adotadas pela didática: a sacralização e a banalização (Albert e Souchon, 2000, p.10). A
primeira se apropria do TL como um modelo da língua culta, elegante e sofisticada
destinado, portanto, a permanecer por muito tempo inacessível ao aluno. Reconhecem-se
aqui aqueles manuais cujos volumes mais adiantados apresentavam, visando ao
aperfeiçoamento de um já sólido conhecimento da língua, na abertura de uma unidade
didática, um excerto literário com alta incidência de um determinado fato gramatical ou
conteúdo lexical substituindo os diálogos fabricados dos primeiros volumes. A banalização,
por sua vez, implica no uso do TL como mais um documento autêntico ao lado da notícia
de jornal, da publicidade, da receita culinária, não levando em conta sua especificidade. É o
caso de fragmentos em prosa e verso usados como recurso didático para exercitar a
fonética, a entonação, ilustrar temáticas culturais em manuais que privilegiam o uso
funcional da língua em situação.
Para uma revisão da presença de TLs nos métodos de FLE utilizados no Brasil de 1957 a
2006 é interessante analisar o estudo de Pinheiro-Mariz (2007) para constatar o que
acabamos de afirmar a respeito da maior ocorrência nos volumes mais adiantados, do uso
do TL como pretexto para atividades que ignoram a sua literariedade. Esse quadro contraria
o que preconizam vários pesquisadores (Peytard, 1982; Peytard e Morand, 1992; Albert e
Souchon, 2000) em estudos que se tornaram referências quando se trata do assunto.
Compreende-se a dificuldade do trabalho com o TL. Basta lembrar Gilles Deleuze (1993, p.
15) –“La littérature trace dans la langue une sorte de langue étrangère, qui n‟est pas une
autre langue, ni un patois retrouvé, mais un devenir-autre de la langue, une minoration de la
langue majeure, un délire qui l‟emporte, une ligne de sorcière qui s‟échappe du système
dominant.” Ao lidar com essa língua estrangeira em segundo grau, o professor depara-se
com a necessidade de trabalhar, para além do FLE, com elementos da teoria literária,
história e cultura a partir de sua própria postura enquanto leitor. Obriga-se a buscar
estratégias para explorar modos de funcionamento discursivos e textuais associando-os à
criação de sentido, criando um efeito particular, estético, diferente do uso funcional da
língua. Estratégias que necessariamente levarão em conta os conhecimentos dos leitores em
formação a fim de criar uma interação que lhes permita reconhecer a alteridade e o
universal no TL e experienciar o prazer do texto – segundo Roland Barthes – através do
reconhecimento dos elementos conhecidos bem como daqueles que causam estranhamento
frustrando as expectativas criadas pelo código literário e linguístico.
Segundo Christian Puren (2004, p. 138), o TL, considerado em uma perspectiva ampla – de
formação, cultura e língua – tem lugar privilegiado no ensino de línguas estrangeiras:
"L’équilibre entre les trois objectifs fondamentaux (formatif, culturel et langagier) favorise
l’utilisation des supports littéraires, étant donné la conception scolaire de la littérature,
modèle à la fois de langue, de document culturel et de moyen de formation ; or les deux
évolutions récentes peuvent s’interpréter comme un rééquilibrage de l’ensemble du
dispositif aux dépens du seul objectif langagier auparavant privilégié ; on peut donc penser
que le regain d’intérêt pour la littérature dans l’enseignement français des langues n’est
pas un phénomène passager, mais une évolution lourde qui se poursuivra dans les années à
venir."
Embora pareça haver certo consenso quanto à importância da palavra literária no processo
desestabilizador de fundamentos identitários e de descoberta do outro que caracteriza a
aprendizagem de uma língua estrangeira em função de seu caráter autêntico, polissêmico,
capaz de mobilizar as competências linguística, discursiva e sociocultural, parece-nos que a
questão ainda se coloca como um espaço de interrogações. Como fazer na prática?
A literatura no contexto da licenciatura em FLE
Vamos discutir a didática do TL no contexto específico da Licenciatura de Português e
Francês e respectivas literaturas no Centro de Letras e Comunicação da Universidade
Federal de Pelotas. Não abordaremos aqui questões mais amplas, que classicamente
precedem esse tipo de reflexão como a dicotomia entre língua e literatura nos cursos de
Letras ou a própria definição de literatura (Daunay, 2011, Dufays, 2007), mas é evidente
que, no contexto dessa formação, a literatura não pode ser considerada como um mero
adjuvante no ensino da língua. Vejamos o que dizem as Diretrizes curriculares do MEC de
2001 (p. 30) quanto às finalidades do ensino de Literatura:
“O objetivo do Curso de Letras é formar profissionais interculturalmente competentes,
capazes de lidar, de forma crítica, com as linguagens, especialmente a verbal, nos contexto
oral e escrito, e consciente de sua inserção na sociedade e das relações com o outro. [...]
O profissional deve, ainda, ter capacidade de reflexão crítica sobre temas e questões
relativas aos conhecimentos linguísticos e literários.”
E essa formação de leitores críticos embasada nos conhecimentos literários pressupõe “o
domínio do uso da língua portuguesa ou de uma língua estrangeira, as suas manifestações
oral e escrita, em termos de recepção e produção de textos” é o que diz a seção
“Competências e Habilidades” do referido documento. É evidente, no entanto, que o ensino
da literatura em contexto exolingue, isto é, no âmbito de ensino da língua estrangeira, tem
especificidades e não pode seguir a mesma didática da literatura em língua materna.
Na licenciatura em FLE da UFPEL existem apenas quatro disciplinas que contemplam o
estudo da literatura: Literaturas de Língua Francesa I, II, III, IV ministradas do 5º ao 8º
semestre da graduação, abordando respectivamente a Narrativa curta, o Romance, a Poesia
e o Teatro. É evidente que diante do corpus que potencialmente oferecem as literaturas de
língua francesa há um tempo muito limitado para a leitura dos diferentes autores
considerados incontornáveis para cada um dos gêneros literários. Em nosso projeto
pedagógico, planejamos abordar essas literaturas através de disciplinas eletivas.
Nesse trabalho, vamos discutir a metodologia empregada na Literatura de Língua Francesa
III - Poesia, ministrada no 7º semestre tendo o aluno cursado Cultura e Civilização
francófona e 660 horas de Língua francesa, o que corresponde ao nível B1-B2 segundo o
Quadro europeu comum de referência para as línguas. Trata-se, portanto, de sujeitosleitores e futuros formadores com um bom nível linguístico de FLE e experiência na leitura
de narrativas curtas e romances.
Optamos pela escolha de um eixo temático ou uma sequência literária: o amor (os primeiros
amores, os amores fatais, os amores perdidos, os amores eternos, a paixão, o desejo, os
tormentos dos amantes) cantado da Idade Média ao Século XIX a fim de sensibilizar o
grupo para uma característica fundamental do discurso literário que repousa no fato de a
originalidade da obra estar mais relacionada à escritura do que ao tema. O poeta se apropria
de um determinado topos (representação de um motivo recorrente) reformulando-o de
acordo com a evolução histórica das sensibilidades e da estética e através do trabalho com a
língua, com expressões conotadas e neologismos, variações nos registros linguísticos e nas
construções gramaticais e sintáticas que traduzem a sua marca pessoal. Essa perspectiva
diacrônica contribui para uma conscientização quanto às progressivas variações no
tratamento dos versos e no estatuto da poesia.
A escolha do amor como eixo temático se deu ainda pelo interesse que é capaz de despertar
entre os jovens da faixa etária do grupo-classe, que reconhecem muitos dos motivos
presentes na música popular, no cinema e na própria literatura da atualidade.
É evidente que a escolha do corpus de uma disciplina dessa natureza será sempre
problemática diante do grande número de poetas incontornáveis que oferecem as várias
literaturas de língua francesa – francesa, antilhana, quebequense, africana, magrebina,
belga.
Somos particularmente sensíveis ao debate a cerca da “Littérature-Monde” (Le Bris e
Roaud, 2007; Bernd, 2009 e Pinheiro-Mariz, 2011) e de seu papel no ensino do FLE não só
porque a formação intercultural e a descoberta da alteridade são essenciais na aprendizagem
da língua estrangeira, mas pela sua força criativa e relevância na expressão poética da
contemporaneidade. Dito isso, optamos por autores franceses canônicos, sem que isso
implicasse em purismo ou desvalorização das demais literaturas, mas por que estas se
constituíram, em grande parte, através de suas relações – de ruptura, de transgressão, de
várias formas de intertextualidade – com esse cânone. Consideramos, além disso, que o
forte diálogo que há muito se estabeleceu entre a literatura francesa e a literatura brasileira
contribui para legitimar ainda mais a nossa opção (Santiago, 2009). Nesse sentido,
procuramos sempre trazer para a sala de aula textos em língua portuguesa – poemas,
traduções, estudos críticos e trabalhos acadêmicos sobre essas relações intertextuais. Isso
conferiu à disciplina uma dimensão que consideramos fundamental na formação em FLE: a
de contribuir para a reflexão sobre produção poética em língua materna e a abertura de
horizontes quanto à possibilidade de realizar futuras pesquisas.
Conscientes da limitação do número de autores do corpus, explicamos os critérios de sua
escolha, enfatizamos ao máximo a instrumentalização e a sensibilização do estudante para a
prática dinâmica da leitura literária como processo reflexivo visando à fruição dos poemas
– acompanhada do distanciamento essencial à observação dos mecanismos responsáveis
por ela – seu autoconhecimento e sua autonomia. Ouvimos Carlos Drummond de Andrade
em uma das estrofes do “Poema da necessidade” (2006, p.68):
É preciso estudar volapuque,
é preciso estar sempre bêbado,
é preciso ler Baudelaire,
é preciso colher as flores
de que rezam velhos autores.
Essa reflexão levou à proposição do seguinte conteúdo programático:
I- Traços gerais do amor idealizado: o amor cortês (Bernard de Ventadour, Guillem de
Cabestah, Marie De France)
II- O petrarquismo e o platonismo na França (La Pléiade de Pierre Ronsard e Joachim Du
Bellay; Clément Marot, Maurice Scève, Louise Labbé)
III- O Eros barroco: a poesia amorosa no século do Classicismo (Théophile de Viau, Pierre
Corneille)
IV- Idealização e devaneio românticos (Lamartine, Victor Hugo, Alfred Musset)
V- Rupturas (Charles Baudelaire, e Arthur Rimbaud e Stéphane Mallarmé)
Na apresentação da disciplina, procuramos conhecer os estudantes individualmente como
leitores de poesia e registramos uma primeira reação à leitura de “L‟Adieu” de Guillaume
Apollinaire através das questões:
Racontez votre expérience comme lecteur (lectrice) de poésie. Aimez-vous lire des
poèmes? Pourquoi ?
Citez des poètes (brésiliens, français, portugais…) que vous connaissez. Citez des
poèmes que vous connaissez.
Lisez le texte ci-dessous. Et répondez : est-ce un poème ? Pourquoi?
L‟Adieu
J‟ai cueilli ce brin de bruyère
L‟automne est morte souviens-t‟en
Nous ne nous verrons plus sur terre
Odeur du temps brin de bruyère
Et souviens-toi que je t‟attends
Alcools (1913)
Guillaume Apollinaire
As respostas mostram diferenças significativas entre as experiências individuais de
escolarização e letramento literário. Poucos são os que leram poesia no ensino médio,
tiveram noções de versificação ou ainda se lembram do nome de um poema. A maior parte
menciona poetas citados nas redes sociais Fernando Pessoa, Caio Fernando Abreu, Paulo
Leminski, Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana. Ferreira Gullar e Vinícius de
Moraes estão entre os mais estudados no ensino médio assim como Camões, este a serviço
da análise sintática.
Lembram-se de poetas de língua francesa que aparecem nas páginas do método Panorama
I. São quase sempre fragmentos de poemas usados em exercícios de gramática, fonética e
reescritura, alguns são inventados pelos autores do método. Em apenas um exercício
(Panorama I, p.150), é dado um fragmento de “L‟appartenance” de Alain Bousquet para
que o leitor responda qual é o seu significado e se está de acordo com essa significação. Há
também uma série de cinco fragmentos sem título de Lamartine, Vigny, Verlaine, Paul Fort
e Baudelaire, compostos por um ou dois versos que se deve associar a fotos de paisagens
(Panorama I, p.76). A ideia de um sentido unívoco e imediatamente recuperável fica
implícita por essas atividades. Tal visão não impede, no entanto, que haja um consenso
entre os estudantes quanto ao caráter hermético da poesia e uma forte impressão de que se
trata de uma leitura difícil, subjetiva, mais para “sentir” do que compreender ou analisar.
Leitura frustrante e monótona para muitos que preferem acompanhar uma narrativa em
prosa.
Passamos em seguida à leitura em voz alta de “L‟Adieu”. Desde o primeiro dia, insistimos
quanto à importância dessa prática de tal maneira que, se inicialmente poucos se
apresentavam como voluntários, com o passar do tempo todos queriam fazer a sua. Como
características determinantes da natureza do texto, os estudantes apontaram primeiramente
sua disposição gráfica evidenciando os cinco versos, o título, a coletânea e do poeta,
distinguiram a homofonia ao final dos versos com duas rimas dominantes. Evidenciaram
outras recorrências: as dentais em “automne”, “morte”, “temps”, o som [j] em “cueilli”,
“bruyère”, “souviens”.
Ainda sem uma análise formal da versificação, (cujas noções vieram a ser ministradas de
maneira gradativa e aplicada ao estudo de cada poema do corpus), essas conclusões
geraram uma discussão acerca da importância do significante, do caráter material (gráfico,
sonoro) das palavras e da conotação na poesia. O agenciamento espacial e sintático das
palavras, sua sonoridade, sua combinação, sua direção de leitura produzem formas antes de
produzir sentido.
Passamos as informações essenciais para situar o poeta Guillaume Apollinaire (do qual
nunca haviam ouvido falar) e para responder à pergunta inescapável – como produzir
sentido a partir desse texto? – propusemos uma leitura dirigida em duplas guiada por
tópicos com o mero objetivo de aprofundar a sensibilização linguística, de mediar uma
aproximação com o texto poético, sem pretensão de resolver os problemas de compreensão:









as expressões e palavras desconhecidas, repetidas, campos lexicais
o efeito criado pelas rimas, assonâncias e aliterações detectadas na discussão
anterior
o título e o horizonte de expectativa criado, relação com outro texto conhecido
as marcas de enunciação
o tempo do discurso e a ocorrência de atos de fala
as imagens
as oposições, progressões e rupturas
a impressão dominante quanto ao tom do poema
o tema
Em um segundo momento de debate, reunimos as contribuições de cada dupla:
- O uso do dicionário é motivado pelo estranhamento diante do uso da forma feminina da
estação do ano: trata-se de um emprego exclusivo da língua literária. A repetição da única
expressão desconhecida “brin de bruyère” traduzida por “ramo de urze” (arbusto de flores
miúdas de cores diferentes) evidencia sua importância, assim como a do verbo “souvenir”
na forma imperativa.
- A ausência de pontuação e de conectores lógicos confere ao poema uma forte fluidez que
remete à fugacidade do tempo essa fugacidade associado pelo poeta ao aroma do ramo de
urze.
- No campo lexical fúnebre “morte”, “automne” (com conotação de declínio), “temps”, há
aliteração em [t]. A assonância em [j] “cueilli”, “bruyère”, “souviens” remete à lembrança.
- A despedida (anunciada pelo título sóbrio, grave) se confirma com o “eu” que colheu um
ramo de urze e evoca a separação de um “tu”, o destino de “nós” separados para sempre (o
futuro do indicativo é categórico), pela morte (“Nous ne nous verrons plus sur terre”).
- A imagem recorrente do „“eu” lírico que colheu flores – vista na estrofe de “Poema da
necessidade” de Drummond (é preciso colher as flores/ de que rezam velhos autores)
citada acima e à qual voltaremos com Ronsard – motivou a nossa intervenção para apontar
a relação de intertextualidade que Apollinaire estabelece com os versos de um dos poemas
mais conhecidos de Victor Hugo, “Demain dès l‟aube” (1847) – Et quand j’arriverai, je
mettrai sur ta tombe/ Un bouquet de houx vert et de bruyère en fleur. – e encontrar a
conotação do ramo de urzes.
-Trata-se da expressão da tristeza que produz o luto pela morte da pessoa amada, pelo fim
do outono, pela passagem inexorável do tempo? O outono é uma metáfora da pessoa
amada? E a ruptura, o estranhamento provocado pela expressão da espera no tempo
presente ou gerúndio – “Et souviens-toi que je t‟attends” – da certeza de um reencontro,
após a constatação da separação expressa pelo verso central do quintil ( – “Nous ne nous
verrons plus sur terre”) ? Como se justifica a insistência dessa interpelação no imperativo?
Trata-se de uma voz além-túmulo que responde à do amante que deposita flores em seu
túmulo, metáfora de uma cerimônia de adeus.
Rapidamente chega-se à constatação de que não é possível elucidar essas ambiguidades,
estamos diante de um texto de sentido aberto com o qual o leitor estabelece uma relação
diferente daquela construída com outros textos que trazem respostas às indagações do
leitor. A poesia lhe devolve perguntas, requer raciocínio e apreensão sensível de uma forma
de representação da experiência humana que transcende o registro de fatos, a descrição da
realidade e instaura e uma relação particular entre o sujeito e o mundo. Haquira Osakabe
(2005, p.50) expressa a essência da leitura da poesia como uma experiência transformadora:
“Na verdade, o que qualifica um texto poético é a consistência de sua singularidade capaz
de provocar aquela sensação nova e fundadora do sujeito. Ora, encarar a tarefa de
franquear o acesso à poesia pode ser pensado, nesse sentido, como tarefa complexa e
simples a uma só vez. Complexa, por conta de todo um trabalho de constituição de um
contexto que viabilize o acesso (retrabalhar a sensibilidade, recompor elementos culturais,
dar-lhe embasamento contextual etc.), e simples porque tudo acaba por resumir-se na
suspensão temporária dos processos de mediação que o aluno já terá vivenciado, ou seja,
dos inevitáveis lugares comuns, estereótipos que lhe dão a estabilidade referencial
necessária para a sua convivência cultural e social.”
Terminado esse preâmbulo, passamos ao corpus escolhido. Das formas trabalhadas pelos
poetas no período medieval, aos caminhos percorridos pelos poetas da Renascença no
esforço de renovar a língua, às novidades trazidas pelo século XVII cujas regras
caracterizaram a poesia versificada das grandes épocas clássica e romântica até as
profundas modificações que marcaram a expressão poética do fim do século XIX (Aquien,
2010), o trabalho visou à compreensão da evolução das formas poéticas, sua
contextualização, suas referências culturais, suas relações intertextuais e sua singularidade.
É compreensível que, num contexto de uma disciplina de Poesia em uma Licenciatura em
FLE, o professor sinta certa apreensão, pois a leitura do poema requer um trabalho
permanente com a língua, com o jogo da escritura que escamoteia o referente disseminado
no texto, em suas imagens, metáforas, na sua materialidade e obriga o leitor a renunciar à
procura de apenas um sentido, uma mensagem, uma história, mesmo que a poesia seja
narrativa ou desenvolva uma ideia. Mas cabe ao professor se preparar para mediar esse
processo, sugerindo estratégias que motivem os estudantes a confrontar a opacidade do
texto poético e procurar seus sentidos latentes e não estritamente textuais. Lembrar as
palavras de Michel Collot em uma leitura de Mallarmé (1988, p.237) é estimulante: “Le
caractère obscur de la parole poétique n‟est pas une manière de se détourner du monde,
mais de répondre à son „mystère‟ et à sa complexité.”
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