pdf - Direitos Culturais
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ANÁLISE DA DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO E DO ASSÉDIO SEXUAL NO TRABALHO A PARTIR DO FILME “TERRA FRIA” (“NORTH COUNTRY”)1 ANALYSIS OF GENDER DISCRIMINATION AND SEXUAL HARASSMENT AT WORK FROM THE MOVIE “NORTH COUNTRY” Ana Maria Viola de Sousa2 Grasiele Augusta Ferreira Nascimento3 Resumo: A discriminação do trabalho da mulher sempre foi marcante ao longo da história. Para combater a discriminação e o preconceito em relação ao trabalho feminino, inúmeras foram as leis nacionais e internacionais criadas, assegurando a igualdade de oportunidades, direitos e de condições de trabalho, além da proteção em relação à maternidade. Uma das formas de discriminação é o assédio sexual no trabalho. O presente estudo tem como objetivo abordar a discriminação de gênero e o assédio sexual no trabalho, especialmente vivenciado pelas mulheres, a partir do filme “North Country”, que recebeu o nome no Brasil de “Terra Fria”, dirigido por Niki Caro e lançado nos Estados Unidos no ano de 2005. A análise é realizada através do estudo dos conceitos e características da discriminação de gênero e do assédio sexual com base na Organização Internacional do Trabalho (OIT) e na literatura brasileira atual, enfocando as conseqüências jurídicas nos âmbitos trabalhista, civil e penal. Ao final, são relatadas as cenas do filme em que são evidenciadas as agressões enfrentadas pelas trabalhadoras americanas. O estudo é parte integrante das pesquisas desenvolvidas no grupo de pesquisa “Minorias, discriminação e efetividade de direitos”, vinculado ao Programa de Mestrado em Direito do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL). Palavras-chave: Discriminação de gênero – assédio sexual – “Terra fria”. Abstract: Discrimination of women's work has always been outstanding throughout history. To combat discrimination and prejudice towards women's work, numerous national and international laws were created by ensuring equal opportunities, rights and working conditions, beyond protection in relation to maternity. One form of discrimination is sexual harassment at workplace. This study aimed to address gender discrimination and sexual harassment at workplace, especially experienced by women from the movie “North Country”, which was named “Terra Fria” in Brazil, directed by Niki Caro and released in United States in 2005. The analysis is performed by studying the concepts and characteristics of gender discrimination and sexual harassment on the basis of the International Labour Organisation (ILO) and the Brazilian literature, focusing on the legal 1 Artigo apresentado no XX Congresso Nacional do CONPEDI-Vitória/ES (2011) e publicado nos Anais do evento, p. 7192 (ISBN 978-85-7840-070). 2 Doutora em Direito pela PUC/SP, Professora do Programa de Mestrado em Direito do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL), integrante do grupo de pesquisa “Minorias, discriminação e efetividade de direitos” e do Observatório de Violência nas escolas (UNISAL/UNESCO). 3 Doutora em Direito pela PUC/SP, Coordenadora e Professora do Programa de Mestrado em Direito do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL), Professora da FEG/UNESP, líder do grupo de pesquisa “Minorias, discriminação e efetividade de direitos” e integrante do Observatório de Violência nas escolas (UNISAL/UNESCO). consequences in the areas of labor, civil and criminal law. In the end, scenes of the film are reported as evidenced by the attacks faced by American female workers. The study is part of research in the group "Minorities, discrimination, and effectiveness of rights", linked to the Masters Program in Law of the Salesian University Center of Sao Paulo (UNISAL). Keywords: Gender discrimination - sexual harassment – “North Country”. 1 Introdução As mulheres enfrentaram, ao longo da história, inúmeras formas de discriminação no trabalho. Para combater a discriminação e o preconceito em relação ao trabalho feminino, inúmeras foram as leis nacionais e internacionais criadas, assegurando a igualdade de oportunidades, direitos e de condições de trabalho. Infelizmente, porém, as mulheres ainda são vítimas de discriminação de gênero, incluindo o assédio sexual no trabalho, atualmente tipificado como crime pelo Código Penal brasileiro. O objetivo do presente estudo é abordar a discriminação de gênero, o assédio sexual e suas conseqüências jurídicas, a partir do filme “North Country”, que recebeu o nome no Brasil de “Terra Fria”. 2 Proteção ao trabalho da mulher A Constituição Federal de 1988 estabeleceu o princípio da igualdade entre homens e mulheres nos seguintes termos: Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.” (grifo nosso) A igualdade prevista no artigo supra-citado abrange a condição da mulher no trabalho, devendo receber os mesmos direitos e tratamentos que os homens, respeitadas as diferenças inerentes à maternidade e à condição física. Em relação à maternidade, a Constituição Federal assegurou à mulher o direito à licença-gestante de 120 dias, sem prejuízo do emprego e do salário, custeada pela Previdência Social. Atualmente, a emprega fica responsável pelo pagamento do saláriomaternidade diretamente à trabalhadora, abatendo o respectivo valor da quantia a ser paga à título de contribuição previdenciária. A Lei 11.770, de 09 de setembro de 2009, que instituiu o Programa Empresa Cidadã, ampliou a licença-maternidade para 180 (cento e oitenta) dias. Para tanto, a empresa empregadora deverá participar do programa e a trabalhadora interessada deverá solicitar a ampliação da licença até o primeiro mês após o parto. No período da prorrogação da licença, porém, a trabalhadora fica impedida de exercer qualquer atividade remunerada ou manter o filho em instituições escolares ou creches. O valor pago à trabalhadora no período da prorrogação será integralmente descontado nas parcelas do Imposto de Renda devido pela empresa. De acordo com o art. 392-A da CLT, acrescentado pela Lei 10.421/2002, as mães adotivas e as mulheres que receberem crianças de até oito anos de idade em guarda judicial também terão direito à licença-maternidade de 120 (cento e vinte) dias, sem prejuízo do emprego e do salário. A legislação atual (art. 10, II, b, do ADCT) também assegura estabilidade provisória no emprego à gestante desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto, observado o disposto na Súmula 244 do TST. Súmula 244 do TST – Gestante – Estabilidade provisória I-O desconhecimento do estado gravídico pelo empregador não afasta o direito ao pagamento da indenização decorrente da estabilidade. II-Garantia de emprego. A garantia de emprego à gestante só autoriza a reintegração se esta se der durante o período de estabilidade. Do contrário, a garantia restringe-se aos salários e demais direitos correspondentes ao período de estabilidade. III – Não há direito da empregada gestante à estabilidade provisória na hipótese de admissão mediante contrato de experiência, visto que a extinção da relação de emprego, em face do término do prazo, não constitui dispensa arbitrária ou sem justa causa. (ex-OJ nº 196 da SBDI-1 – inserida em 08.11.2000) Para amamentar o filho, o art. 396 da CLT assegura à trabalhadora o direito ao gozo de dois descansos especiais, de meia hora cada um, até o filho completar seis meses de idade. A empresa que empregar pelo menos 30 mulheres com mais de 16 anos também deverá disponibilizar local apropriado onde seja permitido guardar sob vigilância seus filhos no período da amamentação, devendo ter um local com, no mínimo, um berçário, uma saleta de amamentação, uma cozinha dietética e uma instalação sanitária (art. 400 da CLT). Além disso, será assegurado à trabalhadora um repouso semanal remunerado de 02 (duas) semanas, sem prejuízo do salário, no caso de aborto natural (art. 395). A condição física da mulher foi outro fator observado pela legislação trabalhista, estabelecendo que “ao empregador é vedado empregar a mulher em serviços que demande o emprego de força muscular superior a 20 quilos para o trabalho contínuo e 25 quilos para o trabalho ocasional” (art. 390 da CLT). 3 Proteção contra a discriminação de gênero A Constituição Federal, conforme já mencionado, estabeleceu o princípio da igualdade em seu art. 5º, garantindo aos “brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. A legislação trabalhista contempla vários dispositivos que protegem o trabalhador contra critérios discriminatórios. Entre eles, destacamos o art. 7º da Constituição Federal de 1988 que, além de assegurar a igualdade de direitos entre os trabalhadores urbanos e rurais, proíbe qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência (inc. XXXI) e proíbe a discriminação entre trabalhos manual, técnico e intelectual (inc. XXXII). A Constituição Federal de 1988 também elencou entre os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, “a proteção do mercado de trabalho da mulher, mediantes incentivos específicos, nos termos da lei” (art. 7º, XX, CF). Para tanto, a Lei 9.799, de 26 de maio de 1999 acrescentou os seguintes artigos na CLT: Art. 373-A – Ressalvadas as disposições legais destinadas a corrigir as distorções que afetem o acesso da mulher ao mercado de trabalho e certas especificidades estabelecidas nos acordos trabalhistas, é vedado: I – publicar ou fazer publicar anúncio de emprego no qual haja referencia ao sexo, à idade, à cor ou situação familiar, salvo quando a natureza da atividade a ser exercida, publica e notoriamente, assim o exigir; II – recusar emprego, promoção ou motivar a dispensa do trabalho em razão de sexo, idade, cor, situação familiar ou estado de gravidez, salvo quando a natureza da atividade seja notória e publicamente incompatível; III – considerar o sexo, a idade, a cor ou situação familiar como variável determinante para fins de remuneração, formação profissional e oportunidades de ascensão profissional; IV – exigir atestado ou exame, de qualquer natureza, para comprovação de esterilidade ou gravidez, ma admissão ou permanência no emprego; V – impedir o acesso ou adotar critérios subjetivos para deferimento de inscrição ou aprovação em concursos, em empresas privadas, em razão de sexo, idade, situação familiar ou estado de gravidez; VI – proceder o empregador ou preposto a revistas íntimas na empregadas ou funcionarias; Parágrafo único – O disposto neste artigo não obsta a adoção de medidas temporárias que visem ao estabelecimento das políticas de igualdade entre homens e mulheres, em particular as que se destinam a corrigir as distorções que afetam a formação profissional, o acesso ao emprego e as condições gerais de trabalho da mulher. O art. 7º, XXX, da Constituição Federal, também assegurou proteção contra a discriminação por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil, proibindo qualquer diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil. Em relação à admissão no emprego, a Lei 9.029/95 proíbe a exigência de atestados de gravidez e esterilização, e outras práticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho. A referida lei protege a mulher contra a discriminação em razão da situação familiar, como a gravidez, assegurando o direito à readmissão, com todos os salários do período de afastamento ou a percepção em dobro da remuneração do período de afastamento, corrigida monetariamente e com juros legais. A Organização Internacional do Trabalho, por sua vez, veda qualquer discriminação no trabalho, inclusive em relação à mulher, nos seguintes termos: Convenção 111 da OIT. Art. 1º. Para os fins da presente Convenção, o termo “discriminação” compreende: a) Toda a distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão; b) Toda e qualquer distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão, que poderá ser especificada pelo Estado Membro interessado depois de consultadas as organizações representativas de patrões e trabalhadores, quando estas existam, e outros organismos adequados. O assédio sexual pode ser incluído entre as formas de discriminação do trabalhador, interferindo no direito à liberdade sexual. Neste sentido, nas palavras de MARIA GORETTI DAL BOSCO, “o direito à liberdade sexual é uma expressão do direito à intimidade e à vida privada, podendo estar relacionado ao direito à integridade física, que inclui o direito à vida e ao próprio corpo” (2001, p. 2). 4 Assédio sexual 4.1. Conceito e caracterização Considera-se assédio sexual “toda conduta de natureza sexual não desejada que, embora repelida pelo destinatário, é continuamente reiterada, cerceando-lhe a liberdade sexual” (PAMPLONA FILHO, 2001, 0. 35). Trata-se de conduta física ou verbal insistente e importuna praticada pelo assediador, que tem como objetivo obter qualquer vantagem de natureza sexual com a vítima, violando a sua liberdade sexual. Para a caracterização do assédio sexual, que não se confunde com a paquera ou o flerte, é indispensável que a conduta do assediador seja indesejada pela vítima. Para a configuração do assédio basta que a vítima, ainda que intimamente, não deseje a conduta do assediador. Em outras palavras, que ela não aceite aquela atitude, mesmo que não se manifeste de maneira inequívoca neste sentido. Não é imprescindível que a recusa seja “manifesta”, pelo menos no sentido que se costuma dar ao termo. É possível que se revele até através de um sentimento íntimo da vítima, que pode ser – conforme o caso – presumido, a partir de indícios. Desta forma, o assédio sexual somente se caracteriza se a proposta sexual for indesejada, pois é justamente essa rejeição – expressa ou oculta – que concretiza a violação da liberdade sexual do assediado (CANTELLI, 2007, p. 133). Desta forma, para a caracterização do assédio sexual, além da conduta de natureza sexual do assediador, exige-se que a vítima não aceite e não tenha interesse na proposta do assediador, refletindo no ambiente de trabalho. Neste sentido, entendeu o Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região: ASSÉDIO SEXUAL. Configuração. Dano moral. Indenização. Se a reclamante, no interior da empresa, sofre reiteradas investidas de conotação sexual, por parte do chefe da área, submetendo-a a situação vexatória e atentadora à sua dignidade, configura-se assédio sexual, que segundo José Wilson Ferreira Sobrinho “é o comportamento consistente na explicitação da intenção sexual que não encontra receptividade concreta de outra parte, comportamento esse reiterado após a negativa” atraindo, assim, o direito da reclamante à reparação por dano moral (TRT 3ª Região, RO 14.159/97, Rel. Juíza Denise Alves Horta, DJMG de 13/06/98). Para obter a vantagem sexual pretendida, o assediador poderá agir por intimidação ou por chantagem. O “assédio sexual por intimidação”, também conhecido como “assédio sexual ambiental”, é aquele praticado por qualquer pessoa no ambiente de trabalho, independentemente de hierarquia ou ascendência sobre a vítima, podendo ser realizada por colega de trabalho. A intenção do assediador, neste caso, é importunar a vítima, prejudicando-a no trabalho, por meio de comportamentos e importunações sexuais indesejáveis. O “assédio sexual por chantagem”, por sua vez, é caracterizado mediante a utilização da superioridade hierárquica do assediador em relação à sua vítima. O assediador, neste caso, chantageia sua vítima, prometendo promoções ou benefícios no emprego, ou mesmo ameaçando-a com uma provável demissão, caso não ceda aos seus anseios sexuais. 4.2. Assédio sexual e suas implicações na relação de trabalho Embora a Consolidação das Leis do Trabalho não aborde o assédio sexual de modo específico, é possível enquadrá-lo entre os motivos autorizadores da rescisão indireta do contrato de trabalho ou mesmo a rescisão por justa causa do assediador, caso este seja empregado. A rescisão indireta do contrato de trabalho é cabível nos casos em que o assediador é o próprio empregador ou um de seus prepostos, com base no art. 483, c, d ou e, da Consolidação das Leis do Trabalho, conforme o caso: Art. 483. O empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida indenização quando: (...) c- correr perigo manifesto de mal considerável; d- não cumprir o empregador com as obrigações do contrato de trabalho; e- praticar o empregador ou seus prepostos, contra ele ou pessoas de sua família, ato lesivo da honra e da boa fama (...). A rescisão indireta será aplicada nos termos da alínea c, por exemplo, nas hipóteses em que o assédio sexual ocasionar transtornos físicos ou psíquicos na vítima (GOLSDAL, 2003, p. 236). Outro exemplo autorizador da rescisão indireta é a importunação de ordem sexual à vítima ou mesmo a permissão ou exigência, pelo empregador, de favores sexuais dos empregados aos clientes da empresa. Caso o assediador seja empregado da empresa, poderá ele ser demitido por justa causa, com fundamento na alínea b, do art. 482 da Consolidação das Leis do Trabalho: Art. 482. Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador: (...) b- incontinência de conduta ou mau procedimento. (grifo nosso) A “incontinência de conduta” é caracterizada por condutas irregulares referentes à moral sexual do trabalhador que afeta o ambiente de trabalho. São exemplos de incontinência de conduta, a atividade sexual na empresa, atitudes obscenas, envio de emails pornográficos, e demais condutas de cunho sexual. 4.3. Responsabilidade civil por danos morais Além das conseqüências no contrato de trabalho, como a possibilidade da rescisão indireta do contrato de trabalho e a rescisão do contrato por justa causa, a vítima também poderá buscar a reparação civil pelos danos sofridos. Nesta hipótese, caberá ao empregador responder pelos danos ocasionados à vítima, inclusive se praticados por seus prepostos, aplicando-se o disposto no art. 932, III, do Código Civil. Estabelece o referido diploma legal, em seu art. 933, tratar-se de responsabilidade objetiva, devendo o empregador arcar com a reparação do dano independentemente da existência de culpa. A competência para apreciar ação que objetiva a reparação civil por dano morais é da Justiça do Trabalho, com base no art. 114 da Constituição Federal. Outro não é o entendimento jurisprudencial: Competência. Ação de indenização por danos morais. Suposto assédio sexual perpetrado pelo réu à autora em seu local de trabalho, durante a relação de emprego. Demissão supostamente causada pela negativa da autora em aceitar manter relacionamento amoroso com o superior. Competência da Justiça do Trabalho, mesmo antes da Emenda 45/2004. Posicionamento consolidado com a nova redação do art. 114, inc. VI, CF. Incompetência absoluta da Justiça Comum Estadual. Precedentes. Sentença anulada de ofício. Remessa dos autos à Justiça do Trabalho. Recurso prejudicado. (TJ/SP Apelação nº 906551065.2004.8.26.0000 - Processo n. 9065510-65.2004.8.26.0000 - Comarca: Pedreira - Apelante: MARISA DE OLIVEIRA SOUZA - Apelado: ANTONIO CARLOS MOREIRA DE SOUZA - Juíza: Carla dos Santos Fullin Gomes) 4.4. Responsabilidade penal: art. 216-A do Código Penal O assédio sexual foi tipificado como crime no ano de 2001, através da Lei 10.224, que acrescentou ao Código Penal o art. 216-A. Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos Parágrafo único – VETADO Par. 2º - A pena é aumentada em até um terço se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos. (Incluído pela Lei 12.015/09) O Código Penal contemplou, ao prever a superioridade hierárquica ou a ascendência sobre a vítima para a caracterização do delito, apenas o “assédio moral por chantagem”, não tipificando o “assédio moral por intimidação”, também conhecido como “assédio moral ambiental”, conforme anteriormente explicitado. A vítima do crime de assédio sexual poderá ser tanto o homem como a mulher. Três são elementos do tipo penal em estudo: - constrangimento da vítima; - intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual; - condição de superioridade hierárquica ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. (CABETTE, 2010, p.115). Trata-se de crime próprio, uma vez que o sujeito ativo do crime necessariamente deve atender à condição de superior hierárquico ou a de ter ascendência profissional sobre a vítima. Também o sujeito ativo deverá atender à condição de ser subalterno, ou seja, de ser hierarquicamente subordinado ao assediador. Pelas duas exigências indicadas no artigo em estudo, tanto para o sujeito ativo, como para o sujeito passivo, pode-se afirmar tratar-se de crime “bipróprio”. (MIRABETE; FABBRINI, 2011, p. 392). Discute-se, doutrinariamente, se o Bispo, o sacerdote ou o professor podem ser sujeito ativo do assédio sexual. Alguns doutrinadores, como LUIZ REGIS PRADO (apud CUNHA, 2009, p. 238), por exemplo, entende cabível o assédio sexual pelo professor, diante da ascendência que possui em relação ao aluno. No mesmo sentido, entende possível a caracterização do assédio sexual do Bispo em relação ao sacerdote. Contudo, entendemos que para a caracterização do assédio sexual se faz necessária a existência de relação de trabalho entre o assediador e a vítima, uma vez que a superioridade hierárquica e a ascendência descritas no tipo penal são “inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”. Entende EDUARDO LUIZ SANTOS CABETTE (2010, p. 117): (...) não há se falar em assédio sexual sem que o autor do crime possa pressionar a vítima com relação ao trabalho (promoção, demissão, aumento de salário etc.). O professor em relação a seus alunos pode exercer constrangimentos, mas tais não são relativos ao exercício laboral da vítima. Referem-se a faltas, notas, disciplina etc. Nesses casos parece mais adequado o crime de “Constrangimento ilegal”, previsto no art. 146 do CP. O tipo subjetivo do crime é o dolo, caracterizado pela intenção do sujeito ativo em constranger a vítima com o objetivo de obter vantagem ou favorecimento sexual para si próprio ou para terceiro (amigo, filho, entre outros). Entendemos que a consumação do tipo penal ocorre com o constrangimento, mesmo que o sujeito ativo não obtenha a vantagem sexual pretendida. 5 Distinção entre Assédio Sexual e Assédio Moral no trabalho Diferentemente do “Assédio Sexual”, em que o assediador tem como objetivo constranger a vítima para obter vantagem ou favorecimento sexual, o “Assédio moral”, tem como objetivo a exclusão da vítima do ambiente de trabalho. Trata-se de “conduta abusiva, de natureza psicológica, que atenta contra a dignidade psíquica do indivíduo, de forma reiterada, tendo por efeito a sensação de exclusão do ambiente e do convívio social”. (PAMPLONA FILHO, 2009, p. 1079) Várias são as condutas utilizadas para a caracterização do assédio moral, como simples gestos, humilhações, constrangimentos, difamações, piadas discriminatórias, isolamento, indiferença, ironia, entre outras. O assediador poderá ser qualquer pessoa, independentemente de sua condição hierárquica, como o empregado em relação ao superior hierárquico, o superior e/ou empregador em relação ao empregado, e entre colegas de trabalho, sem qualquer hierarquia. Trata-se de assédio moral vertical ascendente, assédio moral vertical descendente, ou assédio moral horizontal, respectivamente. Para a caracterização do assédio moral são necessários os seguintes elementos: - Conduta abusiva (ilícita) por parte do assediador; Violação da dignidade e dos direitos de personalidade da vítima; Reiteração da conduta ; Finalidade de exclusão da vítima do ambiente laboral. A ocorrência do assédio moral na empresa assegura ao trabalhador, vítima do assédio, o direito de rescindir indiretamente o contrato de trabalho e de obter indenização pelos danos morais sofridos. Diferentemente do assédio sexual, até o presente momento o assédio moral não foi tipificado como crime pela legislação brasileira. 6 Análise do filme “Terra fria” (“North country”) 6.1. Resumo e indicadores do filme O filme “North Country”, que recebeu o nome no Brasil de “Terra Fria”, foi lançado em 2005 nos Estados Unidos, sob a direção de Niki Caro, roteiro de Michael Seitzman, baseado no livro de Clara Bingham e Laura Leedy. Entre os atores, destacam-se Charlize Theron, Elle Peterson, Thomas Curtis e Frances McDormand. Com duração de 126 (cento e vinte e seis) minutos, o filme narra a história verídica de Josey Aimes, interpretada por Charlize Theron, que promoveu a primeira ação de assédio sexual nos Estados Unidos no ano de 1989. Na trama, Josey retornou à sua cidade natal, no Minnesota, com o objetivo de trabalhar para criar seus dois filhos, longe do marido que a agredia frequentemente. Apesar da opinião contrária de seu pai, que também era funcionário da empresa, Josey foi trabalhar em uma mineradora, exercendo a função tipicamente masculina de extração do minério das pedreiras. A sua decisão em aceitar o emprego na mineradora foi fruto do incentivo de sua amiga Glory, interpretada por Frances McDormand, que exercia a mesma função. Embora a diretoria da empresa fosse extremamente machista e preconceituosa em relação ao trabalho feminino, o governo dos Estados Unidos instituiu um sistema de cotas para a contratação de mulheres, o que possibilitou o ingresso do trabalho feminino na mineradora. A discriminação já é notada desde o início da contratação de Josey, em que a empresa realiza exame ginecológico para a constatação de que a candidata não estava grávida. A partir daí, as funcionárias passaram a enfrentar todos os tipos de agressão dos colegas de trabalho e da diretoria da empresa, uma vez que eram tratadas com desprezo, ameaças, insultos e afrontas físicas e morais. As piadas, agressões verbais, físicas e o assédio sexual eram constantes no cotidiano laboral. O trabalho era prestado em um ambiente aterrorizante e desrespeitoso com as funcionárias. A empresa não oferecia condições de higiene para as trabalhadoras, e os banheiros químicos no local da extração do minério eram comuns aos homens e mulheres. Em uma das cenas do filme, por exemplo, Josey entra em um banheiro químico móvel e seus colegas de trabalho o derrubam, tornando o ambiente de trabalho insuportável. Além disso, as frases escritas nos banheiros e armários eram discriminatórias e afrontavam a dignidade das trabalhadoras. Ao reclamar da condição de trabalho aos seus diretores e ao sindicado, Josey é desprezada e ridicularizada, não encontrando qualquer apoio. A comunidade local também não apresenta um comportamento diferente, discriminando as trabalhadoras da mineradora e considerando-as masculinas ou promíscuas. Um dos pontos fortes do filme ocorre no momento em que um dos funcionários, Sharp, seu ex-namorado enquanto adolescente, a assedia sexualmente. Com o apoio de um amigo advogado (Bill), Josey se demite e promove ação em face da mineradora. Aos poucos consegue apoio das demais funcionárias, transformando em uma ação coletiva. No decorrer do processo, descobre-se que um dos filhos de Josey é fruto de um estupro sofrido por seu professor, que teve como única testemunha seu ex-namorado, o mesmo que a assediou sexualmente no trabalho. A confirmação do estupro derruba o principal argumento da advogada da empresa, que era a desqualificação moral de Josey. O julgamento marcou o primeiro caso vitorioso de assédio sexual na justiça americana e, posteriormente, foram criadas as primeiras leis de proteção às mulheres contra o assédio sexual no trabalho. 6.2. Discriminação de gênero e assédio sexual identificados no filme O filme narra uma série de discriminações enfrentadas pelas mulheres na comunidade e na empresa mineradora onde os fatos são relatados. Ainda na adolescência, a personagem principal é vítima de estupro praticado pelo professor, sob o olhar de uma única testemunha, que era seu namorado. Temendo não ser compreendida pela família, Josey esconde a paternidade de seu filho e enfrenta a revolta de seu pai, que a desqualifica moralmente. Seu namorado, por sua vez, não a defende e calase em relação à violência que presenciou. Vale destacar que nos termos da legislação brasileira, o crime praticado pelo professor foi o de estupro. Não caberia, no nosso entender, a caracterização do assédio sexual, pela inexistência do vínculo laboral. A personagem principal também é discriminada por ter deixado o marido que a agredia fisicamente, marcando um comportamento machista da sociedade, inclusive de seu pai. No trabalho, sofreu discriminação já no ato da contratação, diante da exigência de exame para a comprovação de que não estava grávida, o que é proibido pela legislação trabalhista brasileira. O ambiente de trabalho era insalubre e perigoso, não atendendo às exigências de higiene e segurança. As mulheres trabalhadoras da empresa mineradora eram constantemente vítimas de assédio moral, tornando insuportável o trabalho, já que inúmeras eram as piadas, insinuações, gestos e insultos que recebiam dos colegas no ambiente de trabalho, nos banheiros, no refeitório e nos demais locais da cidade. Sem dúvida, após as denúncias realizadas por Josey ao sindicato e à diretoria da empresa, o correto seria a aplicação de sanções aos assediadores e à empresa empregadora, esta responsável em oferecer um local de trabalho sadio e seguro às trabalhadoras. Como as funcionárias eram vítimas de assédio moral e sexual, caberia, no âmbito civil, a reparação pelos danos morais sofridos. No âmbito trabalhista, caberia a rescisão do contrato de trabalho dos empregados assediadores por justa causa, ou mesmo a rescisão indireta do contrato por iniciativa das vítimas, já que o assédio sexual sofrido configura ato grave praticado pelo empregador ou seus prepostos. No âmbito penal, caberia a responsabilidade dos assediadores pelo crime de assédio sexual, uma vez que em vários momentos da trama percebe-se a utilização da superioridade ou ascensão dos superiores sobre as trabalhadoras com o objetivo de obtenção de vantagem de natureza sexual. 7 Considerações finais As mulheres, ao longo da história do Direito do Trabalho no Brasil e no mundo, enfrentaram, e ainda enfrentam discriminações de diversas ordens. Além da discriminação em relação à maternidade, ainda recebem salários inferiores aos dos homens que ocupam as mesmas funções. O assédio sexual é uma das formas de discriminação ainda enfrentadas no trabalho e, embora contemple vítimas de ambos os sexos, ainda tem a sua maior incidência entre as mulheres. O filme relata com bastante precisão as dificuldades enfrentadas pelas mulheres no mercado de trabalho, em uma época em que foi preciso coragem e ousadia para enfrentar o preconceito e a discriminação. Atualmente, embora a legislação internacional e nacional assegure igualdade entre homens e mulheres, proteção contra a discriminação em relação ao sexo, à maternidade, ao estado civil e à liberdade sexual, os dados indicados pelo IBGE apontam que a discriminação ainda está presente nos ambientes de trabalho. Diante disso, esperamos que a mensagem do filme “Terra fria” sirva de exemplo e de reflexão para a efetiva aplicação da legislação atual, promovendo, também na prática, a igualdade dentre homens e mulheres no trabalho. Referências ALKIMIN, Maria Aparecida. Violência na relação de trabalho e a proteção à personalidade do trabalhador. Curitiba: Juruá, 2008. BRITO, Jonas Santana de. Assédio moral e sexual. IN: Revista do TRT 2ª Região. São Paulo, 4/2010. CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Crimes contra a dignidade sexual: temas relevantes. Curitiba: Juruá, 2010. CALIL, Léa Elisa Silingowschi. Direito do trabalho da mulher. São Paulo: LTr, 2007. CANTELI, Paula Oliveira. 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