A BOLSA AMARELA E OS TEMAS TRANSVERSAIS

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A BOLSA AMARELA E OS TEMAS TRANSVERSAIS
A BOLSA AMARELA E OS TEMAS TRANSVERSAIS: UMA PROPOSTA DE
ANÁLISE*
Lorena Gomes Monteiro**
INTRODUÇAO
No ensino de língua portuguesa, o trabalho com os textos literários é de fundamental
importância, pois o aluno poderá reinterpretar o texto estabelecendo uma nova relação entre o
mundo real e fictício. Esse processo ocorre através do aprendizado da leitura, uma etapa em
que o leitor necessita de compreensão e interpretação do texto.
Nesse sentido, os esforços de muitos educadores brasileiros são de estimular seus
alunos, crianças e adolescentes a adquirirem o hábito da leitura, especialmente dos textos
literários, pois estes possuem “elementos estéticos, uma resignifcação do sentido, da forma,
permitindo que o conteúdo ganhe maior significado e ambos juntos aumentem nossa
capacidade de ver e sentir”. (CANDIDO, 2004, p. 179). Então, trabalhar a literatura na sala de
aula faz com que o aluno aumente sua possibilidade de interpretar, criticar e refletir sobre si
mesmo e o mundo em que vive.
A leitura que cada criança e adolescente fará do texto literário dependerá do que Paulo
Freire (1993), em “A importância do ato de ler”`, denomina como leitura de mundo, isto é a
relação entre o objeto de leitura e o leitor. Esta ligação se dá de acordo com o conhecimento
de mundo de cada individuo e o texto. É possível ler e não compreender, pelo fato do leitor
não estar sensível aos signos oferecidos em dado momento, mas em outra situação é possível
se envolver imediatamente com o texto, por este trazer referências do conhecimento de
mundo do leitor.
Ao acionar o conhecimento de mundo da criança e do adolescente, torna-se possível
atingir sua dimensão afetiva e emocional, o que implica a busca de referências para a
constituição de valores próprios, os quais possibilitam novas formas de compreensão das
experiências por que passam, sejam elas de natureza particular ou social. Por isso, a
associação entre a literatura e temas transversais possibilita a construção da cidadania devido
*
Ensaio científico.
.Acadêmica do 8º período do Curso de Letras da Faculdade Alfredo Nasser, sob orientação da Prof. Dr.
Michele Giacomet.
**
ao caráter ideológico da linguagem que propicia o dialogo na explicitação, contraposição e
argumentação de idéias.
Além disso, sabe-se que a literatura exerce um papel indispensável na formação social,
sendo ela um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos
escolares. Os valores que a sociedade prioriza estão associados à ficção e a mídia, pois ela
confirma e nega, propõe e denuncia, apóia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos
dialeticamente os problemas, assim como são vivenciados no texto literário. Portanto, a
literatura pode contribuir na formação da personalidade. Por isso, nas mãos do leitor, o livro
pode ser fator de perturbação e mesmo de risco como também de confiança e respostas a seus
conflitos.
Desse modo, este artigo apresenta uma análise da obra A bolsa amarela, de Lygia
Bojunga, enfocando a ética e a pluralidade cultural, a partir do comportamento, ações e
sentimentos das personagens do livro. A obra narra a vida de Raquel, que tem três grandes
vontades: a de se tornar escritora, a vontade de ser gente grande e a de ter nascido menino.
Por ter essas vontades, Raquel se encontra em vários conflitos até o dia em que recebe de sua
tia Brunilda uma bolsa amarela e daí por diante guarda suas vontades dentro desta bolsa. Ao
longo da história a menina encontra vários elementos figurativos, como: (um galo, um
alfinete, um guarda-chuva, um galo de briga) que a ajudam a resolver os seus conflitos e
convidam o leitor a uma reflexão sobre conflitos, sonhos e inseguranças.
A escolha deste livro se deu devido à uma das características de suma relevância na
obra de Bojunga que é a linguagem figurada. Através dela, a autora aborda verdades
universais que precisam ser urgentemente refletidas, repensadas por crianças que estão
começando a fazer parte de uma sociedade desestruturada e por adultos que comungam e se
mostram passivos e coniventes com a barbaridade do mundo real, envolvendo toda a
população.
Enfim, este artigo visa auxiliar o professor no seu trabalho de ensino e estímulo ao
hábito da leitura literária, a fim de propiciar uma educação integral, focada no
desenvolvimento da afetividade, autoconhecimento, respeito às diferenças e solidariedade,
afim das crianças adolescentes exercitarem a cidadania, pois com o hábito de uma boa leitura
é possível reformular e reconstruir conceitos esquecidos ou reprimidos, tendo condições de
expor idéias e tomar decisões.
“Eu tenho que achar um lugar pra esconder minhas vontades [...]”. Ao iniciar o livro com
esse questionamento de Raquel, a autora estabelece uma ampla aproximação do leitor com a
personagem, sugerindo, e, ao mesmo tempo, estimulando uma auto-avaliação sobre nossas
vontades íntimas, contra as quais lutamos todos os dias com o pretexto de escondê-las, para
ninguém encontrá-las. Desta forma, Raquel, no decorrer da narrativa, procura um lugar para
esconder suas vontades, que são solucionadas, a partir do momento em que ela ganha a bolsa
amarela. Começando sua auto descoberta e a satisfação de seus desejos.
Ao traçarmos uma correlação com a personagem Raquel e seus desejos aos desejos
dos jovens de hoje em dia, percebe-se uma variação de valores, pois Raquel procura esconder
suas vontades, pois a própria não tem diálogo com seus familiares, que não a compreendiam.
Contrariamente, os jovens da atualidade têm outras concepções de seus desejos e vontades,
não se importam com o respeito entre os semelhantes, não conservam sua dignidade, pois
todos os seus valores foram revertidos ao consumismo e a futilidade e, nem tentam escondêlos.
A vontade de Raquel em esconder seus desejos íntimos e secretos é bem explícita no
trecho a seguir:
Não digo vontades magras, pequenininha, que nem tomar sorvete a toda hora, dar
sumiço da aula de matemática, comprar um sapato novo que eu não agüento mais o
meu. Vontades assim todo mundo pode ver, não to ligando a mínima. Mas as outras
– as três que de repente vão crescendo e engordando toda vida- ah, essas eu não
quero mostrar. De jeito nenhum (NUNES, 2008, p. 09).
Esta fala de Raquel traz uma analogia entre os jovens da atualidade e a personagem,
pois ambos sentem vontades e desejos, mas ela, mesmo com pouca idade, busca ocultar os
sentimentos, já os jovens baseados nos desequilíbrios pelos quais a humanidade esta
passando, tem como ponto de partida uma grande influência da mídia nos comportamentos,
onde suas dúvidas, desejos, vontades, alegrias e raivas são expostas de forma vulgar e
inadequadas, contribuindo assim para que ocorram tantas barbaridades.
Ao ler esse livro, o aluno adolescente, cheio de conflitos, pode se identificar com as
idéias do personagem ficcional, e assimilar valores, formas e pensamentos, trazendo-os para
seu mundo. Ao mesmo tempo em que esse processo ocorre, o leitor responde, em
contrapartida, com os seus valores e os seus sentimentos, naquele momento, a todo o conjunto
de valores sociais representado pelo personagem, pela história, pelo narrador da ficção. É um
processo de identificação. Por isso:
Priorizar o estudo de texto literários que visam a reformulação de novos conceitos,
unindo literatura á formação intelectual e sócio-afetiva, é de grande importância na
formação integral das crianças e adolescentes, pois a literatura é fator de
humanização. (CANDIDO, 2004, p. 176)
A literatura é a porta que se abre para os dois lados, onde o leitor se encontra com a
realidade e o imaginário, pois o texto literário retrata o cotidiano do leitor. Outro ponto
importante da narrativa é quando a personagem Raquel apresenta a bolsa para o leitor. As
variadas significâncias que a palavra bolsa pode adquirir em determinadas ocasiões,
possibilita uma aproximação com o universo infantil, inclusive ao referir-se ao tamanho da
bolsa, que como Raquel queria ser grande.
A protagonista apresenta assim a bolsa: “[...] Vi aparecer uma bolsa; todo mundo
pegou, examinou, achou feia e deixou pra lá [...]. Ela era grande; tinha até mais tamanho de
sacola do que de bolsa. Mas vai ver ela era que nem eu: achava que ser pequena não dá pé”.
(NUNES, 2008. p, 25).
O leitor pode estabelecer relações propostas pela autora, em relação à bolsa, pois
sabemos que a bolsa é um objeto que caracteriza o sexo feminino, onde se guardam os
documentos pessoais, objetos íntimos, sendo que somente a própria pessoa pode abrir por ter
sua privacidade resguardada. Da mesma forma, a palavra bolsa retrata a maternidade,
representando a bolsa materna,que guarda, cuida, alimenta um sonho, um desejo ainda
intocável no ventre materno, ao mesmo tempo é este lugar “sagrado” e individual para todas
as mulheres que Raquel encontra para depositar seus desejos e vontades. Como mostra a
autora, de acordo com o crescimento de suas vontades, a bolsa vai ficando pesada e difícil de
carregar, mas no momento em que seus conflitos vão sendo resolvidos, ela se torna mais leve,
como podemos verificar nesta passagem a seguir:
[...] a historia ficou sem fim, e aí pronto: a vontade de continuar escrevendo apertou,
desatou a engordar, engordou tanto que eu mal agüentava carregar a bolsa. (NUNES,
2008. p. 46).
Fui andando e pensando que eu também queria ter escolhido nascer mulher: a
vontade de ser garoto sumia e a bolsa amarela ficava muito mais leve de carregar.
(NUNES, 2008. p. 48)
A autora Bojunga utiliza de recursos lúdicos, para uma melhor comunicação estre a
leitura da ficção e a leitura de mundo do leitor, criando assim um prazer no ato de ler. Pois, na
narrativa de Raquel identificamos algumas ideias e conflitos que se assemelham com as
nossas, pois no momento da leitura, nos desprendemos da realidade habitual e adentramos no
contexto da autora, possibilitando desta maneira um vinculo com o personagem e seu enredo.
Dessa forma, recorremos à afirmação de Bakhtin, pois ele diz que a língua é uma arena de
conflitos. Desse modo, a autora nos mostra passagens que nos possibilitam uma reflexão de
nossas vidas com o fragmento que se segue:
Às vezes a gente quer muito uma coisa e então acha que vai querer a vida toda.
Mas ai o tempo passa. E o tempo é o tipo do sujeito que adora mudar tudo. Um
dia ele muda você e pronto: você enjoa de ser pequena e vai querer crescer. ``
(NUNES, 2008, p. 49)
Esta afirmação que Raquel faz possibilita uma vasta avaliação de nossos desejos de
infância. A obra possibilita estabelecer a relação do personagem com seus leitores e suas
vidas. Pois tendo em vista as mudanças que o tempo, as condições financeiras e o estilo de
vida nos propiciam ocorrem varias mudanças íntimas, ao longo de nossas vidas.
Para Ivanda Martins (2006), “[...] A leitura literária deveria ser mais valorizada como
meio de o aluno desenvolver a criatividade e a imaginação com o texto que inaugura mundos
possíveis, construídos com base na realidade empírica”. Esta afirmação confirma a
importância da reflexão íntima feita por Raquel para o desenvolvimento do aluno, pois irá se
imaginar em situações semelhantes a da personagem.
Outro personagem marcante da narrativa que estimula a crítica e a reflexão das nossas
condutas é o galo Afonso, por desafiar as regras impostas a ele:
_ Fiquei danado. Subi no puleiro e berrei: ´Não quero mandar sozinho! Quero um
galinheiro com mais galos! Quero as galinhas mandando juntas com os galos! ` _
Que legal! _Que legal coisa nenhuma; me levaram preso.
_ Mas por que? (NUNES, 2008, p. 36)
Nesta fala, o personagem galo demonstra a sua revolta pelas imposições recebidas e
que era obrigado a aceitar. Ele idealizava um galinheiro mais justo em que todos pudessem
decidir sobre suas vidas e nem ele ficasse ordenando o que os outros tinham que fazer. Isso
mostra um posicionamento crítico, revolucionário, segundo as regras sob as quais o
personagem vivia.
Pois, são estes personagens figurados, que servem de visão ótica da autora para mostrar
toda a nossa realidade dentro do campo do imaginário, pois a imagem do galo representa a
não aceitação de valores ditados, assim assumem um sentido figurado dos valores defendidos
pela autora. Como podemos perceber:
Me botaram num quartinho escuro. Tão escuro que quando eu saí de lá tava tudo
preto. Só depois é que a cor foi voltando. Fiquei preso um tempão; sofri á beça. Ai,
um dia, eles me soltaram. E foram logo dizendo: ´´ Daqui para frente você vai ser
um tomador-de-conta-de-galinha como seu pai era, como seu avo era, como o seu
bisavô era, como o seu tataravô era_ senão volta pra prisão.`(NUNES, 2008, p. .36 ).
Além disso, deve-se levar em consideração o que Candido (2004, p. 179) diz sobre
“[...] o direito do cidadão a ter a acesso à boa literatura, pois as produções literárias
enriquecem nossa visão e percepção de mundo”. Tendo em vista que o habito de se fazer uma
boa leitura proporciona ao leitor uma ampliação em seu vocabulário, novas formas de
organizar os pensamentos, tendo mais sensibilidade a todos os signos que são representados a
ele, adquirindo uma ampla visão para solucionar problemas, tornando assim crítico, estudioso
e formador de idéias, adquirindo mais responsabilidade perante a sociedade, sendo um
formador de opiniões.
O uso da figura do animal também auxilia no processo de identificação entre leitor e
personagem. Segundo Regina Zilbermam (1997), com a imagem da criança e personagens
animalizados o leitor se retrata com maior facilidade, pois vê o personagem como um herói
encontrando assim uma ligação (tendo pra si novos conceitos e adquirindo novos valores
morais), “Com a utilização de personagem criança na literatura houve varias mudanças, a
relação do mundo do herói e os dos adultos. Desse modo, o leitor encontra um elo visível com
o texto, vendo-se representado no âmbito ficcional”.
Assim sendo, a escolha de um animal como personagem, possibilita que o leitor se
transporte para o mundo do livro vivendo os conflitos e aventuras do personagem, colocando
a prova os seus próprios conflitos também. Por meio da fala a seguir do galo “Terrível” é
possível estabelecer relação entre o conflito dos personagens e dos leitores, pois o
personagem que teve seus pensamentos costurados sem a oportunidade de desejar algo novo,
assim se faz uma comparação a sociedade que nos oprime há todos os instantes, sem ter o
direito de pensar, questionar ou criar novos rumos, foi assim no tempo da ditadura e é até
hoje.
“Meus donos falaram que se eu brigo mal dessa vez ninguém mais aposta em mim;
então eles não vão mais me defender; vão deixar o outro galo acabar comigo e pronto. Eu não
posso perder essa briga de jeito nenhum! [...]” (NUNES, 2008. p. 58)
Lygia acaba levando o leitor a repensar suas concepções acerca dos pensamentos
costurados de seus pais, dos colegas e dos seus próprios. Dependendo da maturidade da
criança, ela se vê fazendo reflexão políticas e sociais cabíveis à realidade que a circunda.
Nesse trecho comprovamos essa afirmação:
Eu
achei
aquilo
tão
impressionante!
É
claro
que
eu
já
tinha visto gente com mania de dizer que a gente tem que ganhar dos outros, tem
que ser a primeira disso, a primeira daquilo, mas nunca pensei que alguém tinha que
ganhar tanto assim. O Afonso ficou olhando pro Terrível com uma cara muito séria.
De repente se zangou:
_ Você ganhou cento e trinta luta.
_ Ganhei.
_Então você ganhou um bocado de dinheiro.
_Eu não: meus donos é que ganharam.
_ Ué, você que briga e ele é que ganham.
_É
_Então eles tão ricos.
_Tão.
_Se eles tão ricos vocês não precisa brigar.
_Preciso.
_Você pode dizer pra eles que agora quer viver sossegado.
_Não.
_ Sem ter que arriscar mais a vida.
_Não.
_ Mas não porque, cara.
_Porque eu tenho que brigar.
_Mas por que
_Porque eu preciso ganhar de todo mundo _ E começou a pular no
mesmo lugar se esquentando pra briga. Afonso virou pra mim e cochichou: _
Puxa, ele só pensa nisso. Será que costuraram mesmo o pensamento dele. (NUNES,
2008, p. 59-60)
Quando expõe que o personagem galo tinha o pensamento costurado, exemplifica
nossas idéias, que não podem ser ditas e nem executadas, ficando meramente a disposição de
fazer o que os outros mandam, isto seria uma poda de nossos valores e de nossas decisões. E
vendo pelo viés da construção da nossa essência, a infância é o momento de novas
afirmações, e havendo interrupções, acarreta a perda da afirmação da identidade, tornandonos seres alienados à situação a que estamos expostos.
Trabalhando também o sistema ditatorial, onde o rico ganha sob o trabalho do pobre, o
texto de Lygia faz assim o leitor repensar suas concepções acerca da ética, pluralidade cultural
e social, pois segundo os PCNs (1998, p. 36): “[...] o trabalho desenvolvido a partir dos temas
transversais demanda participação efetiva e responsável dos cidadãos, tanto na capacidade de
análise critica e reflexão sobre os valores e concepções vinculadas quanto nas possibilidades
de participação e de transformação das questões envolvidas”.
Assim sendo, trabalhar os temas transversais em sala de aula através da literatura
proporciona ao leitor o poder de expressar-se sobre questões afetivas, expondo suas
diversidades e ponto de vista, convivendo e respeitando outras formas ideológicas,
exercitando o exercício da democracia em temas diversos.
A Bolsa Amarela é uma boa obra para trabalhar essas questões, pois a autora consegui
abordá-las de forma suave, mas objetiva, através de seus personagens animalizados que
ganham vida, como no referido trecho que se segue: “Antes de começar a perder, eu é que era
o campeão. Eles também batiam palmas para mim e gritavam desse jeito. Agora eu só levo
vaias [...]” (NUNES, 2008, p. 61).
Com essa fala de Terrível acima, podemos fazer uma comparação com os valores que
a sociedade impõe á nós, nos moldando a objetos perfeitos, sem direito de errar, pois a pessoa
é a melhor até o instante que ela tem sua primeira queda, sendo substituída por outra que até
mesmo não tenha os mesmos requisitos, mas que ao menos nunca errou, pois sabemos que até
os erros são necessários para o crescimento moral e intelectual.
Antônio Candido (2004) mostra algumas observações entre as várias idéias que
dividem a sociedade perante o ter ou não ter, o saber ou não saber. O fato é que cada época e
cada cultura fixam os critérios de incompressibilidade, que estão ligados á divisão da
sociedade em classe, pois inclusive a educação pode ser instrumento para convencer as
pessoas de que o que é indispensável para uma camada social não o é para outra.
No decorrer da narrativa, Raquel coloca em seus questionamentos algumas escolhas de
vida, que temos nós também que tomar em certas ocasiões, sendo elas favoráveis ou não, para
nós. Vejamos neste trecho que se segue:
[...] Calça comprida eu só tenho duas: uma boa, outra ruim: enquanto uma lava, uso
a outra. A boa estava lavando, e ainda mais essa, eu pensei. [...] Botei aquele vestido
xadrez que eu acho o fim; meu nariz tava o fim; eu toda estava o fim; saí de casa
achando a minha vida o fim. [...] Eu não queria inventar nada; o que eu queria
mesmo era poder dizer: Eu preciso levar a bolsa amarela. Eu guardo aqui dentro
umas coisas muito importantes. Umas coisas que eu ainda não to podendo nem
querendo mostrar pra ninguém. Pronto. Que legal eu falando assim e ninguém
perguntando: ´Mas por que! Que coisas são essas! Como é que essa bolsa abre! O
fecho tá enguiçado! Nem mandando: Abre! Fala! Diz!. (NUNES, 2008, p. 66-68).
Com esses pensamentos de Raquel, podemos chegar a várias atitudes que somos (na
maioria dos casos) obrigados a tomar por respeito, se for o caso entre família, ou por
obrigação, em caso de emprego e até mesmo cedemos quando gostamos demais e não
queremos que a outra pessoa se magoe conosco, colocando assim os nossos sentimentos a
prova de suportar tudo,
Desta maneira, a personagem mostra que até mesmo uma criança com tão pouca
idade é responsável por aquilo que é imposta a ela sem se revoltar ou tomar outra atitude mais
drástica, sendo assim, em “A criança e a ficção”, Marly Amarilha (1997), coloca a
importância da figura da criança nos textos literários, que possibilita a aproximação do texto e
a realidade, e nos mostra novas formas de solucionar os nossos conflitos. Ela diz que: Ao
identificar-se com um personagem de ficção, o leitor entra em sintonia com os valores, ideal e
formas da comunidade em que o personagem se situa. Ao mesmo tempo em que o processo
catártico ocorre, o leitor responde, em contrapartida, com os seus valores e os seus
sentimentos sociais representados pelo personagem, pela historia, pelo narrador da ficção.
Assim sendo, é a repetição de uma boa leitura que propiciará o hábito de boas condutas.
No decorrer do livro, tem-se a plena certeza do motivo pelo qual a autora Lygia
recebeu tantas premiações por esta obra, pois a cada fala e descoberta de cada personagem
nos leva a refletir nós mesmos e a nos questionando sobre nossa vida, pois quando ela nos
mostra o bilhete que foi deixado pelo Terrível à Afonso, executa o processo que nos mostra
Amarilha, “[...] o leitor de um texto, ao vivenciar o processo de identificação e vesti-se das
mascaras dos personagens, já demonstrou que o texto de alguma lhe toca em seu contexto [...]
O que engajou e provocou toda a identificação foi, provavelmente, a experiência com sua
realidade interna”.
Da mesma forma, como a autora nos mostra a personagem Raquel, uma criança que
tem muitos desejos e vontades que são podadas pelos familiares que a cercam, ela já se utiliza
de seus personagens figurados para disseminar a idéia de renovação na busca de seus desejos
e vontades, pois coloca no personagem galo, o ser que está sempre a procura de algo
desconhecido e fascinante que o leve a novas coisas, sendo que ao descobrir o que
verdadeiramente gostaria de fazer vai atrás do que deseja, assim conclui sua fala direcionada a
Raquel informando que tinha achado a idéia que tanto procurava, dizendo: “_ Vou sair pelo
mundo lutando pra não deixarem costurar o pensamento de ninguém”. (NUNES, 2008, p.
105).
Desta maneira, mais uma vez a obra convida e estimula o leitor a repensar e a desejar
algo novo e diferente que nunca tenha feito sem ter medo de errar, levando em conta as suas
vivências e possibilidades, de modo lúdico, o que é coerente com as idéias de Amarilha
(1997): “Na verdade a atividade lúdica é uma forma do indivíduo relacionar-se com a
coletividade e consigo mesmo”.
Ao criar a casa de consertos, Lygia estabelece um equilíbrio entre matéria e espírito,
entre perfeito e imperfeito, prazer e trabalho, grupo e individual, saber e descobrir, livros e
alegrias, num ambiente em que se consertam coisas estragadas, logo metaforicamente, não
teria espaço para as coisas, pessoas, idéias enferrujadas ou que não funcionassem. A Casa dos
Consertos apresenta-se como um ambiente democrático solidário e foi construída para
perceber que há igualdades entre os homens, estabelecendo uma comparação às produções
literárias, isto é, á ficção literária possibilita a criação de novos mundos e a melhor
compreensão da realidade.
Nesse sentido, a casa dos consertos muda o olhar de Raquel sobre sua vida e sua
família, suprindo as carências da personagem. Assim, como Raquel, o leitor também pode
enxergar, com a leitura da obra, uma nova perspectiva a partir daquele universo ficcional.
Tal fato comprova a capacidade da literatura de unir o prazer de ler e a realização das
necessidades básicas do ser humano, conforme Candido (2004, p. 179) afirma: “As produções
literárias, de todos os tipos e todos os níveis, satisfazem necessidades básicas do ser humano,
sobretudo através dessa incorporação, que enriquece a nossa percepção e a nossa visão de
mundo”.
No momento em que a autora começa e relatar a rotina da casa dos consertos, ela
descreve uma menina desenhando o mapa mundi, colorindo os países com igual capricho, sem
distinção. Essa imagem remete ao tratamento de igualdade não só entre os países, mas
também entre as pessoas, independentemente da sua idade ou sexo, tanto que na sequência da
narrativa aparece um personagem idoso que contribui na rotina da casa:
O velho espiou o fundo da panela e falou:
- Vou soldar essa panela tão bem soldada que ela vai cozinhar muitos anos.- Deu
uma risada. – Bobalhona! Pensou só porque estava velha não servia pra mais nada.
(NUNES, 2008. p. 109)
Essa passagem sugere que as mudanças devem ocorrer a partir do âmbito pessoal e
familiar, ou seja, o respeito, e a solidariedade devem começar a partir das atitudes cotidianas,
para, posteriormente, ampliar-se á toda sociedade. O senhor e toda a sua família têm uma
visão diferenciada da velhice, que em nossa sociedade é pouco valorizada. E a imagem da
menina desenhando o mapa aponta, metaforicamente, que as mudanças começam na família.
Para o leitor, isso desmistifica a ideia de uma sociedade preconceituosa e egoísta,
apresentando novos conceitos e métodos.
A experiência de Raquel na casa dos consertos fez com que ela percebesse uma
possibilidade de resolução de seus conflitos. A autora descreve situações que são muito
diferentes das que existem na casa de Raquel, como a visão da criança pelo o adulto:
- Quem é que resolve as coisas? quem é o chefe?
- Chefe?
- É o chefe da casa. Quem é? Teu pai ou teu avô?
- Mas pra que que precisa chefe?
- Pra resolver os troços, ué; pra resolver o que é que cada um vai estudar.
- Cada um estuda o que gosta mais. Tem livro aí; a gente escolhe o que quer. O
vovô agora tá estudando teatro de bonecos: ele vai fazer um lá na praça.
resolve?
- Nós quatro. Pra isso todo dia tem hora de resolver coisa. Que nem ainda há pMas... e o resto?
- Que resto?
- Não tem sempre uma porção de coisas pra resolver? Quem nem ainda há pouco
teve hora de brincar. A gente senta aí na mesa e resolve tudo que precisa. Resolve
como é que vai enfrentar um caso que a vizinha criou; resolve se vai brincar mais do
que trabalhar; ou estudar mais do que brincar; resolve o que é que vai comer; quanto
é que vai gastar em roupa, em comida, em livro; resolve essas transas todas. Cada
um dá uma idéia. E fica resolvido o que a maioria acha melhor. (NUNES, 2008, p.
114)
O diálogo entre Raquel e Lorelai, a menina moradora da casa dos consertos, mostra
que a criança tem participação ativa na vida familiar. Lorelai decide junto com a mãe, o pai e
o avô o que deve acontecer em casa, de uma maneira autônoma e responsável, pois tem hora
para o estudo, trabalho e resolução de conflitos. Isso leva à reflexão de que a criança deve
aprender a ser autônoma e resolver seus próprios problemas. Na casa dos consertos também
há uma inversão do papel da mulher:
- E aí ela apresentou os três: - Meu pai, minha mãe e meu avô.
Eles me deram um sorriso legal, e eu cochichei pra menina:
- Por que é que ele tá cozinhando?
Ela me olhou espantada:
- O quê?
Perguntei ainda mais baixo:
- Por que é que ele tá cozinhando bastante e tua mãe soldando panela?
- Porque ela hoje já cozinhou bastante e ele já consertou uma porção de coisas; e eu
também já estudei um bocado e meu avô soldou muita panela: tava na hora de trocar
tudo.
- Por que?
Pra ninguém achar que tá fazendo uma coisa demais. E pra ninguém achar também
que está fazendo uma coisa menos legal do que o outro. (NUNES, 2008, p. 113)
Nesse trecho, Lorelai mostra à Raquel que em sua casa a mulher não tem apenas o
papel de cuidar da casa, como na família da protagonista da narrativa, a mãe de Lorelai
assume a função do marido e este também faz a atividade da mãe, o que gera uma harmonia
familiar, pois um personagem não oprime o outro por ser melhor ou mais importante.
É interessante notar que essas situações são contrárias aos dois desejos de Raquel,
pois, em sua vivência familiar, ser criança e ser mulher significa ter pouca participação social.
E, na casa dos consertos, Raquel descobre a possibilidade de ser sujeito ativo na sociedade,
mesmo na condição de criança e mulher. Por isso, essas vontades diminuem.
Quanto ao desejo de ser escritora, Raquel não deixa de ter essa vontade, pois ela
representa a expressão dos seus sentimentos:
Abri a bolsa amarela e tirei minha vontade de ser garoto e minha vontade de ser
grande.
Elas tinham emagrecido tanto que pareciam até de papel.
- Tão aqui. Agora é só pendurar o rabo e amarrar a linha.
O Afonso ficou no maior espanto:
- Você não vai mais esconder as vontades dentro da bolsa amarela?
- Não. Elas viram que eu tava perdendo a vontade delas, então perguntaram se
podiam ir embora. Eu falei que sim. Elas quiseram saber se podiam ir que nem pipa
e eu disse: "claro, ué".
- E a tua vontade de escrever?
- Ah, essa eu não vou soltar. Mas sabe? Ela não pesa mais nada: agora eu escrevo
tudo que eu quero, ela não tem tempo de engordar. (NUNES, 2008, p. 131-132)
Portanto, o ato de escrever, para Raquel é uma forma de se libertar do que lhe oprime,
ao passo que as outras vontades se acabaram porque ela amadureceu, a partir de vivência de
situações lúdicas e maravilhosas, e descobriu a sua importância e o seu valor.
Assim, a obra A bolsa amarela oferece ao leitor a possibilidade de refletir sobre sua
realidade, seus conflitos, buscando amenizá-los. Para o professor esta é uma obra rica que
pode ser lida em sala de aula para cumprir com os objetivos do ensino de literatura, quanto o
trabalho com os PCN’s.
A análise da obra A bolsa amarela reforça a concepção de que através da leitura
literária é possível transformar as visões e preconceitos dos leitores, devido ao caráter
formador que ela possui. Além disso, é inegável a importância de se trabalhar, em sala de
aula, obras que valorizem o lúdico e o imaginário, pois:
A ligação entre o infantil e o popular se dá porque em ambos predomina o
pensamento mágico. Ambos estão abertos ao jogo dos possíveis do imaginário e,
através da brincadeira, das representações e manifestações espontâneas, enfrentam
de forma simbólica as questões existenciais e sociais. (TURCHI,1995)
Ao ler as aventuras de Raquel, o jovem leitor adentra no mundo imaginário da
narrativa e se permite identificar com a protagonista, exercitando a imaginação, a capacidade
de julgar, criticar e principalmente, refletir sobre si e o mundo em que vive. Por isso a obra
pode ser associada ao trabalho, em sala de aula, com os temas transversais como ética,
pluralidade cultural, meio ambiente e orientação sexual que podem e devem ser discutidos,
observando a literatura também como veiculo de valores e preconceitos de classe, credo,
gênero e etnia, formando assim novas ideologias e preceitos.
Além disso, essa obra pode despertar no leitor o hábito de se fazer uma boa leitura,
proporcionar a ampliação em seu vocabulário, criar novas formas de organizar os
pensamentos, fazendo com que o aluno tenha mais sensibilidade a todos os signos que são
apresentados a ele. Isso faz com que o jovem leitor adquira uma ampla visão para solucionar
problemas, tornando-se crítico, estudioso e multiplicador de idéias, adquirindo mais
responsabilidade perante a sociedade, sendo um formador de opiniões.
Sendo assim, o professor deve estimular o aluno à leitura de diversos textos literários,
para que o aluno reconheça os múltiplos sentimentos que são construídos na sua interpretação
dos textos.
REFERÊNCIAS
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azul/ São Paulo: Duas cidades, 2004.
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ZILBERMAN, Regina. A literatura Infantil na Escola, 11ª ed, revista atualizada e
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