OS HERÓIS DA RESISTÊNCIA

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OS HERÓIS DA RESISTÊNCIA
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ISSN 1808-1207
CARTA BOI
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JULHO DE 2010
Ano 7 - Edição:
93
OS HERÓIS DA RESISTÊNCIA
T
empos atrás, era costume
das famílias rezar antes das
refeições. Sim, rezar para
agradecer o alimento recebido.
Luiz Felipe Pondé diz que muitos
teólogos, sejam eles judeus, cristãos
ou muçulmanos afirmam que a única
teologia verdadeira é aquela que
agradece.
Os americanos, estes porcos
imperialistas, têm até um dia especial
no ano para agradecer a Deus não só
pela mesa farta à sua frente, mas por
tudo o que receberam.
Não custa lembrar, os períodos
de colheita em toda a história da
humanidade sempre foram celebrados
em festividades religiosas, como
até hoje é o caso das nossas festas
juninas.
Infelizmente, nos dias urbanos e de
fast-food em que vivemos, comendo
às vezes até de pé, damos nossas
refeições por garantidas.
Nossas crianças acham que o leite
nasce dentro da caixinha tetra-pak
e o bife é espontaneamente gerado
em bandejas de isopor. Achamos que
a comida vem do supermercado, que
sempre estará ali, repleto de queijos já
prontos, manteiga já batida, carne já
desossada, frutas já cortadas, e saladas
já lavadas, além de todo o assortiment
de guloseimas pré-fabricadas de
composição indefinida prontas a
garantir a nossa obesidade.
Não temos mais ideia do que é o
trabalho de plantar, colher, cuidar,
ordenhar. E por incrível que pareça,
nos esquecemos de agradecer também
quem faz esse trabalho por nós.
A HISTÓRIA DE UM PRODUTOR
São produtores rurais, estes
impressionantes personagens que
entendem um pouco de terra, um
pouco de água, um pouco dos ventos e
das chuvas, das plantas e dos animais,
e ainda precisam entender de dinheiro.
Vou falar de um Produtor Rural.
Há muito tempo seu pai lhe levou
para aquelas paragens. O governo
dizia para migrarem, para derrubarem
a mata e assim teriam terras. Dormiam
em casa de pau a pique, teto de palha
e chão batido, lampião de querosene
e fogão de lenha. Abriram mata,
semearam e colheram. Criaram bois.
Deu certo. Ele, que era menino, virou
Produtor Rural.
O Produtor Rural não estudou, é fato,
embora tenha feito todo o esforço do
mundo para que seus filhos pudessem
ir à faculdade. Mas não é ignorante.
Conversa com gente nova, aprende
coisas. Melhora sua plantação, compra
máquinas. Usa adubos, sementes,
insemina o gado. O que ele produz
hoje na mesma fazenda é com certeza
bem mais do que seu pai produzia. Ele
e outros, mesmo sem saber, sustentam
a economia de todo um país.
Mas anos depois aparece um fiscal
do governo em suas terras. Diz que
ele está ilegal porque plantou café no
morro e não pode. Aplica uma multa
porque na beira do rio onde o boi
bebe água deveria estar cercado, e no
“corguinho” que passa na fazenda
devia ter 15 metros de árvores dos
dois lados, embora ele explicasse que
quando foram para lá ninguém lhes
falou dessas regras.
Aparece outro fiscal, e lhe dá multas
porque ele deveria por banheiros para
seus empregados lá no meio da roça,
como se ele algum dia tivesse tido
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esses luxos. E outra multa porque seu
tratorista come sua marmita debaixo
da árvore quando deveria ter um
refeitório para comer.
Outro dia vem um outro rapaz
estudado, e diz que seus bois deveriam
ter brinco, e que cada uma deveria
ter um documento de identidade. Diz
que os europeus estão preocupados
com isso e querem os brincos porque
é mais saudável. O Produtor Rural não
entende muito bem porque, para ele,
mais saudável que aquele boi seu que
passou a vida ali no pasto não existe,
e se pergunta se boi europeu tem
aquela vida boa. Mas vai na dele e põe
brinco em tudo. Depois lhe dizem que
as regras mudaram, e o que ele fez
precisa ser refeito.
Aí aparece um outro cabeludo, com
sotaque de gringo. Fala que quer
preservar a biodiversidade, que o
mundo todo está muito preocupado e
diz que se ele plantar árvore um dia
vai receber por aquilo. Mas quem é da
roça desconfia, e normalmente se é pra
fazer serviço quer ver a cor do dinheiro
antes. Ele pergunta ao moço se no país
dele tem muita mata, e ouve que não,
e que é por isso que ele devia plantar
mais árvores ali.
Uma moça toda arrumada diz que
é do supermercado, e vem falando
coisas bonitas como paradigmas,
sustentabilidade, mudanças climáticas,
e diz que o consumidor está muito
preocupado, e lhe dá um manual de
regras pra seguir.
Um outro rapaz de sandália de
couro e bolsa de tricô diz que é da
ONG, e traz um calhamaço de leis que
o Produtor nem sabia que existiam.
Diz que a sociedade está muito
preocupada, porque quase todos
os Produtores são ilegais e ele não
deveria continuar assim.
Aí aparece um doutor do Governo,
diz que tem que zelar pelo bem do País
e pela Constituição, e que o Produtor
deve assinar um papel e ajustar sua
conduta, que ele não sabia que estava
desajustada. E se ele não assina não
pode mais vender nada para ninguém.
Uma outra moça, cara de francesa,
chega e fala que está muito
preocupada lá onde ela mora porque
o clima do mundo está mudando,
e ela diz que as vacas dele estão
esquentando o mundo. O Produtor
se espanta e dá risada ao perguntar
como.
Um outro doutor, estudado, diz que
a fazenda dele é na verdade terra dos
índios, e que está preocupado com
os índios porque nós matamos quase
todos eles, que eram os donos do
Brasil. Tem índios ali perto, já donos
de bastante terra. O Produtor viu
uma vez o governo construindo casas
para os índios, e dando cestas básicas
aos índios dali. E viu o material de
construção das casas sendo vendido na
cidade, e as cestas trocadas por pinga.
Aí aparece um padre, com uns índices
na mão. Diz que o produtor não
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produz o que está escrito ali, e que
portanto a terra dele devia ser dada
para quem precisa. O padre está muito
preocupado com os excluídos.
O Produtor pergunta quem são os
excluídos, e reconhece ali um povo
que nunca trabalhou em roça. Tem
garçom, ajudante de pedreiro, tem até
funcionário público. E ele vê esse povo
recebendo dinheiro do governo todo
mês. E se pergunta se o excluído não
é ele que paga um monte de imposto
e ainda tem que pagar escola para
os filhos, seguro saúde e ainda anda
em estrada esburacada, sem receber
dinheiro nenhum do governo de volta.
O Padre volta com outro doutor, que
quer que ele prove que um dia no
passado o governo realmente fez um
papel dizendo que aquela terra era
do seu pai. O Produtor pensa que se
o governo durante esse tempo todo
cobrou impostos dele por aquela terra
é porque sabia que era dele, ou não?
Aí o Produtor vai no banco, quer
emprestar para investir e produzir mais,
plantar árvore. E um gerente do banco,
que diz que está muito preocupado
com o planeta e o clima diz que só
empresta se ele cumprir todo um outro
livro de regras. O Produtor se pergunta
se o dono do banco sabe se o dinheiro
que está ali vem de drogas, de jogo,
de corrupção de políticos, de venda de
madeira ilegal. Mas se cala e desiste
daquilo.
Então o Produtor vai dar uma volta
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na cidade. Ele vê favelas nos morros
de tudo quanto é jeito, e depois vê
na TV que o morro desabou na chuva
e um monte de gente morreu, e se
pergunta se o moço que disse que
não podia plantar no morro tinha ido
lá ver aquilo. Vê um monte de esgoto
sendo jogado no rio e se pergunta se
o doutor que queria zelar pelo bem do
País foi atrás de quem fazia aquilo. E
vê no jornal que o chefe do fiscal que
lhe havia multado foi preso por tráfico
de madeira.
Vai no supermercado, e em sua
economia simples faz uma conta e
vê que o quilo de carne vendido ali
custa quase dez vezes mais o que ele
recebeu pelo boi, embora ele tenha
ficado três anos cuidando do bicho e
o supermercado três dias cuidando da
bandejinha. E vê o povo comprando
o que é mais barato mesmo, e se
pergunta se tudo o que está ali segue
as regras que a moça arrumada lhe deu
para seguir.
O Produtor começa a desconfiar que
aquele povo todo preocupado que foi
na sua fazenda está preocupado mais é
em justificar os próprios empregos uns
aos outros. Todos tem trabalhos tão
bonitos, é consultor disso, coordenador
daquilo, empresa de governança,
ONG de sustentabilidade, tem até uns
cargos em inglês que ele nem sabe
o que são. Ele é do tempo em que
você sabia o que a pessoa fazia. Era
o açougueiro, o peão, o padeiro, o
sapateiro... Então ele decide que não
quer fazer mais nada daquilo.
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Chamam-no de turrão, ignorante,
reacionário, desconfiado, atrasado.
Dizem que ele não quer se adequar
aos novos tempos, não entende como
funciona o mundo, não liga para a
natureza e nem para a sociedade. Logo
ele que passou a vida aprendendo
como a natureza funciona e que faz
comida para esse povo todo.
mato crescer, a Terra esfriar e todos os
índios e animais felizes na floresta.
E o Produtor vai lá para o seu fim de
mundo, em uma estrada esburacada e
esquecida, escutando no rádio que o
copeiro do Palácio ganha R$9.000,00
por mês, e que mais alguém havia
sido pego com dinheiro na meia ou na
cueca.
Hoje, meu respeito é também pelo
heróico ato de resistir. Resistir a uma
sociedade obcecada pelo controle
da vida alheia em todos os aspectos.
Resistir a uma relativização de direitos
básicos de toda sociedade democrática.
Resistir ao despotismo estatal. Resistir
à ditadura de minorias. Resistir ao
globalismo ecológico. Resistir a uma
Justiça parcial. Resistir à centralização
de poder. Resistir à delegação de
responsabilidades. Resistir, em suma,
ao fascismo que se desenha em nosso
futuro.
Apesar de tudo continua produzindo.
Não, nós não agradecemos pela
comida. Nós pegamos quem a produz
e colocamos no cantinho da sala,
ajoelhado no milho, com um chapéu
de burro na cabeça. Nós pegamos o
Produtor, lambuzamos ele de piche e
jogamos penas de galinha em cima,
fazendo-o perambular pelas ruas da
cidade. Podemos também colocá-lo
numa gaiola para que seja cuspido e
apedrejado por quem passar.
Ou, melhor ainda, vamos costurar
uma Estrela de Davi nas roupas de
todos eles, para podermos identificálos bem. Como estão quase todos na
ilegalidade, poderemos colocá-los
todos fechados em um campo de
concentração. Então será fácil tomar
essas terras e aí sim poderemos
produzir como se deve, deixando o
RESISTÊNCIA
Eu sempre tive um respeito nato
por quem produz, simplesmente pelo
heróico ato de produzir.
Sei que é luta inglória e que
fatalmente a Resistência cairá. Mas
tenho meu respeito declarado e minhas
armas à disposição da luta.
E hoje rezo não só para agradecer
o prato de comida à minha frente,
mas para pedir que ele continue
aparecendo sempre.
FERNANDO SAMPAIO
engenheiro agrônomo, especialista em
mercado de carnes pela ESA Angers.
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