Revista - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
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Revista - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
ISSN 1518-398X PSICANÁLISE – REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE Filiada à Associação Psicanalítica Internacional desde 1992, à FEPAL e à Associação Brasileira de Psicanálise v. 7, n. 2, 2005 EDITOR Heloisa Helena Poester Fetter CONSELHO EDITORIAL Ana Rosa C. Trachtenberg • Elfriede Susana Lustig de Ferrer (in memoriam) • Gildo Katz • João Baptista Novaes Ferreira França • Leonardo Wender • Samuel Zysman • Sara Zac de Filc COMISSÃO EDITORIAL Ane Marlise Port Rodrigues • Carmen Lúcia M. Moussalle • Carmen Saile Willrich • Rosa Beatriz S. Squef f • Vera Dolores Mainieri Chem BIBLIOTECÁRIA Geisa Costa Meirelles • Laís Rosa dos Santos – Estagiária EDITORAÇÃO Luiz Cezar F. de Lima LAY-OUT Josimo Silva Lopes – Speed Press DIGITAÇÃO Nilza Cidade Cardarelli REVISÃO DE PORTUGUÊS Professor Antônio Paim Falcetta Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre Rua Quintino Bocaiúva, 1362 – 90440-050 – Porto Alegre – RS – Brasil Fone/Fax: (55-51) 3330.3845 – (55-51) 3333.6857 Home page: ww w.sbpdepa.org.br • E-mail: [email protected] ww w.sbpdepa.org.br/revista.php • E-mail: [email protected] Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 311 Capa: AMENHOTEP I E AMÓSIS-NOFRETIRI 22 Egito, Novo Império (XVIII Dinastia), provavelmente de Amenhotep III, 1390-1353 a.C. Pedra-sabão, 9 x 8,3 cm 3072 A figura principal desta díade fragmentada é o deificado Amenhotep I, que é mostrado usando uma peruca núbia curta, saiote, braceletes e segurando um mangual em sua mão direita. Está ao lado de sua mãe, a rainha deificada Amósis-Nofretiri, que usa um elaborado ornamento para cabeça com a forma de um abutre, um vestido justo e um colar largo. Buracos de encaixe no topo da cabeça de cada uma das figuras tinham provavelmente a função de fixar adornos. Nas costas da peça estão gravados dois pares opostos de colunas de hieróglifos, uma coluna dupla para cada figura. No tex to atrás do rei lê-se: “O bom deus, filho de Amon, (...)/ Rei do Alto e Baixo Egito, Djeserkare (...).” A coluna atrás da rainha pode ser traduzida deste modo: “A esposa do deus, nascida de um deus, a esposa do rei (...)/ sua mãe, a mãe do rei, Amósis-Nofretiri (...).” Depois de suas mortes, tanto Amenhotep I, segundo rei da XVIII Dinastia (cerca de 1514-1493 a.C.), quanto sua mãe Amósis-Nofretiri, esposa do Rei Amósis I (cerca de 1539-1514 a.C.) foram venerados como protetores divinos da enorme necrópole de Tebas. Desfrutavam de especial popularidade entre os trabalhadores oficiais da necrópole, instalada no vilarejo de Deir el-Medina. A razão para a devoção prestada ao casal não é de todo clara, embora já se tenha especulado que Deir el-Medina teria sido fundada durante o reinado de Amenhotep I. Parece que ambos compartilharam uma sepultura em Dra Abu’l Naga, em uma tumba a princípio preparada para Amósis-Nofretiri e mais tarde ampliada para um segundo sepultamento. Em 1913-14 esta tumba foi aberta em nome do quinto Conde de Carnarvon por Howard Carter, o arqueólogo conhecido pela descoberta da tumba de Tutancâmon em 1922. Sua escultura, que talvez seja proveniente de um pequeno santuário doméstico, está ligada a um grupo de estatuetas em pedra-sabão esmaltadas que representam a própria Amósis-Nofretiri ou a Rainha Tiye, esposa de Amenhotep III, o faraó sob cujo reinado esta peça foi provavelmente esculpida.. —CNR Esta rainha-mãe, retratada afetuosa e intimamente ao lado de seu filho-rei, deve ter atraído Freud, que foi primogênito e filho favorito. “Se um homem foi, sem concorrência, o filho predileto de sua mãe, conserva ao longo da vida o sentimento triunfante, a confiança no sucesso, que não raro traz consigo o sucesso real.” (SE, 17, p.156). Ao longo de sua vida, Freud acompanhou avidamente as notícias de escavações, e certamente deve ter sabido da descoberta da tumba de Amenhotep I e Amósis-Nofretiri, realizada por Howard Carter. O autor do complexo de Édipo pode ter ficado intrigado com esta disposição funerária – mãe e filho, dispostos lado a lado em uma tumba comum, para toda a eternidade. —FM Sobre Amenhotep I e Amósis-Nofretiri, ver W. Helck et al., Lexikon der Ägyptologie (Wiesbaden, 1972-), I, cols. 102-109, s.v. “Ahmose Nofretere” (M. Gitton), e ibid., cols. 201-203, s.v. “Amenophis I” (E. Hornung), com referências. Sobre o sepultamento de Amenhotep I e Amósis-Nofretiri, ver C. N. Reeves, Valley of the Kings: The Decline of a Royal Necropolis (Londers, 1990), pp.3-5. Para outras esculturas relacionadas, ver C. Aldred, “Ahmose-Nofretari Again”, Artibus Aegypti. Studia in honorem Bernardi V. Bothmer a collegis amicis discipulis conscripta (Bruxelas, 1983), pp. 7-14. P975 Psicanálise – Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre/ Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. – v. 7, n. 2, 2005 –. Porto Alegre: SBPdePA, 1999 – 1. Psicanálise-Periódicos I. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. ISSN 1518-398X CDU: 616.891.7 Tiragem: 300 exemplares Bibliotecária Responsável: Geisa Costa Meirelles 312 Psicanálise v. 1, n. 1, 1999 CRB 10/1110 SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE Filiada à Associação Psicanalítica Internacional DIRETORIA INSTITUTO DE PSICANÁLISE Presidente Dr. New ton M. Aronis Diretor Dr. Gley Silva de Pacheco Costa Tesoureiro Dr. Lores Pedro Meller Secretária Dra. Ana Rosa C. Trachtenberg Coordenador da Comissão Científica Dr. Fernando Linei Kunzler Secretário Dr. Antônio L. Bento Mostardeiro Coordenador de Seminários Dr. Leonardo A. Francischelli Coordenador de Formação Dr. Luiz Gonzaga Brancher Coordenador da Comissão de Publicação e Biblioteca Dra. Heloisa Helena Poester Fetter Coordenador da Comissão de Divulgação, Relações com a Comunidade e Informática Dr. Flávio Roithmann Coordenador da Comissão de Clínica Social Dr. César Augusto Antunes NÚCLEOS Núcleo de Infância e Adolescência Coordenadora: Dra. Vera Maria H. Pereira de Mello Núcleo de Vínculos e Transmissão Geracional Coordenadora: Dra. Ana Rosa C. Trachtenberg Núcleo de Pesquisa em Psicanálise Coordenador: Dr. New ton M. Aronis Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 313 MEMBROS FUNDADORES Alberto Abuchaim Ana Rosa Chait Trachtenberg Antonio Luiz Bento Mostardeiro David Zimmermann Gildo Katz Gley Silva de Pacheco Costa Izolina Fanzeres José Facundo Passos de Oliveira José Luiz Freda Petrucci Júlio Roesch de Campos Leonardo Adalberto Francischelli Lores Pedro Meller Luiz Gonzaga Brancher Marco Aurélio Rosa New ton Maltchik Aronis Renato Trachtenberg Sérgio Dornelles Messias MEMBRO HONORÁRIO Dr. David Zimmermann (Falecido) LINHA EDITORIAL OU POLÍTICA EDITORIAL A revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre é uma publicação semestral editada regularmente desde 1999. Recentemente foi indexada na Base de Dados INDEX PSI. Tem como finalidade publicar trabalhos selecionados de psicanalistas brasileiros das Sociedades Psicanalíticas e Grupos de Estudos filiados à Associação Psicanalítica Internacional e de autores de notório saber, visando aprofundar, divulgar, ampliar e atualizar conhecimentos na área da psicanálise. A Revista publica também artigos originais ou traduções de trabalhos de analistas estrangeiros, ainda de candidatos em formação do Instituto de Psicanálise. São aceitos artigos de profissionais ligados a Universidades e articulistas de comprovado saber, ligados de alguma forma à psicanálise e às ciências humanas. 314 Psicanálise v. 1, n. 1, 1999 Psicanálise v. 7, n. 2, 2005 Revista da SBPdePA SUMÁRIO SAUDAÇÕES Palavras do Presidente New ton Aronis • 321 EDITORIAL Palavras do Editor • 325 Heloisa Helena Poester Fetter ARTIGOS/ENSAIOS/REFLEXÕES O Trauma Primordial na Dialética do Representável e do Irrepresentável • 329 Ana Paula Terra Machado, Ignácio Alves Paim Filho Identificações Traumáticas, Congelamento e Transgeracionalidade • 347 Ana Rosa Chait Trachtenberg, Mayra Dornelles Lorenzoni Transgeracionalidade: a patologia da transmissão psíquica entre gerações • 369 Aline Baümer, Ana Rosa Chait Trachtenberg, Maria Luíza Furtado Kahl Narcisismo e Trauma: a atualidade e a história • 395 Antonino Ferro A Vivência do Trauma no Analista: da dor ao ato criativo • 413 Augusta G. Heller, Magda Beatriz Martins Costa Trauma e Literatura: repetição e criação na Literatura e na Psicanálise • 429 Carlos F. L. Pires Leal Trauma e Adolescência • 445 David Léo Levisky Trauma e Construção do Imaginário • 465 Laura Ward da Rosa Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 315 Sedutopatia: um ensaio • 483 Leonardo A. Francischelli Contratransferência em Situações “Ex tremas” • 489 Mauro Manica Trauma e Interpretação • 513 Paola Marion O Objeto “Surdo-Mudo” e o Trauma Pré-Conceitual: com o uso do conceito de “Cesura” de W. Bion • 537 Rafael E. López-Corvo Trauma: impacto da família na estruturação psíquica • 561 Regina Lúcia Braga Mota Mudança Psíquica e Crescimento Emocional • 573 Rosane Muller Costa O Trauma, a Psicose e o Transtorno de Estresse Pós-Traumático • 595 Sebastião Abrão Salim O Traumático na Constituição do Psiquismo: as contribuições de W.R. Bion e Donald Meltzer • 625 Virginia Ungar CONFERÊNCIA na SBPdePA O Traumático na Constituição do Psiquismo em Lacan • 639 Miguel Leivi 316 Psicanálise v. 1, n. 1, 1999 Psicanálise v. 7, n. 2, 2005 Revista da SBPdePA CONTENTS ARTICLES/ESSAYS/MEDITATIONS The Primordial Trauma in the Dialetic of the Representable and the Unrepresentable • 329 Ana Paula Terra Machado, Ignácio Alves Paim Filho Trauma Identifications, Freezing and Transgenerationality • 347 Ana Rosa Chait Trachtenberg, Mayra Dornelles Lorenzoni Transgenerationality: the pathology of the psychic transmission among generations • 369 Aline Baümer, Ana Rosa Chait Trachtenberg, Maria Luíza Furtado Kahl Narcissism and Trauma: nowadays and history • 395 Antonino Ferro The Existence of Trauma in the Analyst: from the pain to the creative act • 413 Augusta G. Heller, Magda Beatriz Martins Costa Trauma and Literature: repetition and creation in Literature and Psychoanalysis • 429 Carlos F. L. Pires Leal Trauma and Adolescence • 445 David Léo Levisky Trauma and the Construction of the Imaginary • 465 Laura Ward da Rosa Sedutopatia: an essay • 483 Leonardo A. Francischelli Countertransference in “Ex treme” Situations • 489 Mauro Manica Trauma and Interpretation • 513 Paola Marion Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 317 The “Deaf-Mute” Object and the Pre-Conceptual Trauma: with the use of Bion’s “Caesura” Concept • 537 Rafael E. López-Corvo Trauma: the impact of family on psychic structuring • 561 Regina Lúcia Braga Mota Psychic Change and Emotional Grow th • 573 Rosane Muller Costa Trauma, Psychosis and Post traumatic Stress Disorder • 595 Sebastião Abrão Salim The Traumatic in the Constitution of Psychism: the contributions of W.R. Bion and Donald Meltzer • 625 Virginia Ungar LECTURE at SBPdePA The Traumatic in the Constitution of Psychism in Lacan • 639 Miguel Leivi 318 Psicanálise v. 1, n. 1, 1999 Saudações Newton Aronis Os últimos anos têm sido marcantes quanto a mudanças nas relações entre a Psicanálise e a sociedade. Nas suas primeiras décadas de existência, foi possível uma sedimentação da Psicanálise na cultura através de sua força teórica. Entre essas mudanças recentes, está, especialmente, a demanda de uma interatividade constante, colocando o psicanalista em uma situação bastante diferente da clássica posição de neutralidade, não só com seu paciente, como também com toda a realidade circundante. Abrimos espaços em nossas instituições para pensar nossos vínculos com a comunidade, incluindo a Universidade. A pesquisa, assim, Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 321 Newton Aronis Palavras do Presidente PALAVRAS DO PRESIDENTE passou a ter lugar especial em nosso trabalho. É certo que Freud apontara esse caminho de interatividade, na forma com que se relacionou com a cultura, com a Universidade, no diálogo com outras áreas do conhecimento, na sua curiosidade investigativa. Mas é igualmente correto afirmar que, a partir da década de 20, com a necessidade de sistematizar não só a ciência psicanalítica, mas também a transmissão da mesma, houve certa tendência à burocratização, paralelamente a uma evolução teórica inegável. Alguns preceitos supostamente técnicos foram, por decorrência, nos levando a um isolamento importante, sustentando uma pureza do pensamento psicanalítico que hoje podemos pensar como um empobrecimento. Por sorte, sempre tivemos pensadores que puderam ir além de suas instituições. Uma das mudanças mais significativas em nossa prática clínica, nas últimas décadas, foi a tendência à transformação do psicanalista, saindo este de sua posição de observador não-participante. Aumentou a autoridade da Psicanálise como um corpo teórico, e diminuiu a nossa, como psicanalistas, sujeitos às vicissitudes do processo analítico. Quando falamos em crise da psicanálise, podemos estar nos referindo, na realidade, a uma crise dos psicanalistas na exigência de se modificar continuamente. É nossa tarefa encontrar o ponto adequado entre um estado criativo e um estado tóxico, pelo excesso de estímulos. Mas esse é um problema de toda a sociedade e um objeto de nosso entendimento. Ler e escrever nos ajudará nesse processo elaborativo de como pensar a Psicanálise atual. Espero que nossa revista siga tendo a capacidade, pela qualidade de seus editores e articulistas, de nos ajudar nessa tarefa. Uma boa leitura e saudações a todos. Newton Aronis Porto Alegre, dezembro de 2005 322 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 321-322, 2005 Editorial Heloisa Helena Poester Fetter A equipe editorial da Revista da SBPdePA está fechando mais uma etapa de intenso e gratificante trabalho. Na verdade, é um ciclo que se completa – resultado da união de colegas voltados a um objetivo comum –, mas também que contribui para a estruturação de uma tradição científica, na medida em que a Revista congrega e exterioriza o pensamento da Sociedade como um todo. Dessa forma, não podemos deixar de reconhecer o trabalho das equipes anteriores (o passado como reservatório que nutre a nossa fome de saber) e dizer da nossa expectativa com o que poderá ser realizado pela nova equipe (o futuro com suas infinitas aberturas). Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 325 Heloisa Helena Poester Fetter Palavras do Editor PALAVRAS DO EDITOR O norte da nossa meta editorial foi a pluralidade e a abrangência dos temas abordados, havendo o cuidado de não se perder a essência do pensamento psicanalítico. Tivemos a preocupação de solicitar a indexação da revista junto à Base Lilacs, referência máxima na América Latina e do Caribe na área de Ciências da Saúde. Esse volume atende a um antigo desejo referente à realização de uma revista temática. Aproveitando o ano do Congresso Internacional, escolhemos o tema: trauma. Um número temático sempre é útil para dirigir a atenção a determinado assunto psicanalítico e propiciar que possamos observar a sua evolução e a sua inserção no contexto atual da teoria e da clínica. Os trabalhos são de excelente nível, especialmente os que foram apresentados no 44.º Congresso Internacional de Psicanálise e que tivemos o prazer de receber para publicação. Cabe à editora agradecer a imensa dedicação de todos os participantes da equipe, esperando que os leitores que têm nos prestigiado aproveitem mais essa publicação. Bom proveito a todos. Heloisa Helena Poester Fetter – Editora Porto Alegre, dezembro 2005 Comissão Editorial da Revista. 326 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 325-326, 2005 Artigos/Ensaios/Reflexões O que se segue é especulação, amiúde especulação forçada, que o leitor tomará em consideração ou porá de lado, de acordo com sua predileção individual. É mais uma tentativa de acompanhar uma idéia sistematicamente, só por curiosidade de ver até onde ela levará. (FREUD, 1920, p.39) Ana Paula Terra Machado Psicóloga; Membro pleno do Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre; Psicanalista Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. Ignácio Alves Paim Filho Médico; Membro Pleno do Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre; Candidato do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. Acompanhados pelas palavras de Freud, sentimo-nos estimulados e com o desejo de especular sobre um conceito, uma idéia com a pretensão de redimensionarmos o lugar da teoria do trauma. O trauma que carrega consigo a marca de algo conhecido e ao mesmo tempo desconhecido, suscitando questionamentos, com uma rara capacidade de Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 329 Ana Paula Terra Machado, Ignácio Alves Paim Filho O Trauma Primordial na Dialética do Representável e do Irrepresentável O TRAUMA PRIMORDIAL NA DIALÉTICA DO REPRESENTÁVEL E DO IRREPRESENTÁVEL alojar e desalojar os nossos conhecimentos. Com a meta de revisitarmos o pensamento freudiano sobre esse tema, partimos de uma fração de tempo, 1892 a 2005, na qual encontramos o desenrolar de uma história que julgamos fazer parte da essência da psicanálise, a história do trauma. Sabemos que Freud inicia suas investigações com pacientes histéricas, seguindo o caminho de Charcot e Breuer; naquele momento, o trauma sexual infantil é considerado o agente causador das neuroses, enfatizado em 1893 na célebre frase: “Os histéricos sofrem principalmente de reminiscências”. Assim, a partir da escuta das suas histéricas vienenses, Freud postulou suas concepções iniciais sobre o funcionamento mental, tendo no trauma real o agente etiológico princeps da histeria. O trauma se configuraria um evento de caráter sexual, uma sedução experienciada precocemente, permanecendo seu registro no inconsciente, sem entretanto ter significado, devido à imaturidade e à incapacidade de quem sofreu a sedução. Num segundo momento, diante de outra cena, que não necessariamente sexual, haveria uma ligação com a situação precedente, desencadeando o afeto até então inconsciente, gerando angústia e sintomas. A eclosão do trauma se daria a posteriori (nachträglichkeit), conceito introduzido e desenvolvido por Freud no Projeto (1950[1895]), no caso Emma, que abre caminho para a compreensão de como acontecimentos de um outro tempo, o atual, podem de maneira retroativa, através das ligações representacionais, ter significado ou novo significado, assumindo então um caráter traumático. Alguns anos depois, na conhecida Carta nº 69 a Fliess, de 21/09/1897, Freud (1950[1892-1899]) diz não acreditar mais na sua neurótica, renunciando à teoria da sedução infantil traumática, enquanto ligada ao que foi vivenciado, aos fatos propriamente ditos. Esse momento é um divisor de águas no pensar freudiano, o que permitiu emergir o novo, a idéia de uma realidade psíquica permeada pelo mundo pulsional e pelas fantasias, podendo estas, também, ter efeitos traumáticos, como, por exemplo, o complexo da castração (1908), abrindo um novo caminho à compreensão do 330 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 329-345, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 331 Ana Paula Terra Machado, Ignácio Alves Paim Filho trauma. Nesse sentido, amplia-se a noção de causa e efeito, e o mundo fantasmático passa a ocupar um espaço determinante, junto das vivências, no que se refere ao trauma no psiquismo. É importante ressaltar que a noção de trauma acompanha os desenvolvimentos teóricos até o final da obra freudiana, sofrendo modificações e, sobretudo, se complexizando. Esse entendimento do trauma oriundo da confluência tanto do externo quanto do interno resulta nas séries complementares propostas nas Conferências Introdutórias (1916/1917), nas quais as vivências individuais unem-se às fantasias primitivas, resultando daí as características próprias de cada indivíduo. Essas Conferências foram produzidas em meio aos horrores da Primeira Guerra, e essa realidade se impôs na vida diária da família Freud. Provavelmente, os acontecimentos o mobilizaram para que passasse a refletir sobre as repercussões psíquicas dessas vivências traumáticas. As chamadas neuroses de guerra são equiparadas às neuroses traumáticas, em que o perigo externo desencadeia o traumático. Na Conferência XVIII é estabelecida uma conexão entre neuroses traumáticas e as demais neuroses, em que a fixação ao trauma também está presente. “Assim, a neurose poderia equivaler a uma doença traumática e apareceria em virtude da incapacidade de lidar com a experiência cujo tom afetivo fosse excessivamente intenso”, afirma Freud (p.325). Essa idéia remete ao aspecto econômico que é salientado quando coloca: “Realmente o termo traumático não tem outro sentido senão o sentido econômico” (p.325). Como estamos vendo, Freud teve uma vida marcada por um interrogar-se constante e chega aos anos vinte inquieto, preocupado com a questão da destrutividade humana. Sua clínica lhe questionava a validade do seu método, como, por exemplo, seu mais célebre caso: o Homem dos Lobos, que retorna para tratamento em 1918, denunciando uma repetição. Repetição esta que põe em cheque um dos pilares metapsicológicos centrais do pensamento freudiano: o princípio do prazer. Parece-nos que essas questões influenciaram Freud a reformular a sua teoria pulsional, postulando um além do principio do prazer que terá como dualismo pulsional a pulsão de morte versus a pulsão de vida. A tese desse além se utilizaria O TRAUMA PRIMORDIAL NA DIALÉTICA DO REPRESENTÁVEL E DO IRREPRESENTÁVEL especialmente dos sonhos típicos das neuroses traumáticas, que não obedecem ao princípio do prazer, mas sim à compulsão à repetição, oriunda desse traumático que o psiquismo não consegue elaborar, denunciando a força da pulsão de morte, excedente pulsional que não consegue fazer ligações psíquicas. Com o advento da pulsão de morte, Freud reencontrou um lugar para o não-sexual no psiquismo, lugar que tinha se perdido em 1914, no texto sobre o narcisismo, em que tudo havia sido libidinizado, em que o dualismo se dá entre a libido do eu versus a libido objetal. A pulsão passa a circular dentro da psique como uma força disjuntiva, uma intensidade que invade o psiquismo, fazendo Freud retomar o seu interesse a respeito do trauma. A pulsão de morte, conceito introduzido em 1920, remeterá ao lugar do caos, da não-ordem, da destrutividade, e só temos acesso a ela via pulsão sexual. A pulsão sexual segue inerente ao campo representacional, é produto de um trabalho psíquico, constituída a partir do encontro com o objeto. O trauma ressurge intimamente ligado ao novo postulado pulsional, porém é em 1926, em Inibições, Sintomas e Ansiedade, que ele se torna fundamental para a metapsicologia freudiana. Constitutivo do psiquismo, tem como seu porta-voz a angústia. A partir desse artigo teremos o nascimento da segunda teoria da angústia, que passa a ser a responsável pela criação do recalque. Isso nos autoriza a dizer que sem trauma e angústia não há recalque, sendo um dado importante diante das patologias atuais, em que o traumático não se faz presente pela angústia, mas sim pelo vazio. Reafirmamos, o trauma é produto da inundação do aparelho psíquico que provoca uma ruptura das barreiras antiestímulo, criando um estado de tensão gerador de ansiedade. A incapacidade para lidar com essa situação remete ao desamparo original (hilflosigkeit), reeditando o desvalimento infantil, quando o psiquismo ainda incipiente e em formação não tem condições de metabolizar as intensidades que o assolam. O estado de desamparo é protótipo da situação traumática que desencadeia uma ansiedade 332 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 329-345, 2005 Seguindo essa seqüência ansiedade-perigo-desamparo (trauma) podemos agora resumir o que se disse. Uma situação de perigo é uma situação reconhecida, lembrada e esperada de desamparo. A ansiedade é a reação original ao desamparo no trauma, sendo reproduzida depois da situação de perigo como sinal de busca de ajuda. O ego, que experimentou o trauma passivamente, agora o repete ativamente, em versão enfraquecida, na esperança de ser ele próprio capaz de dirigir seu curso. Entretanto, o que estabelece a condição de perigo está relacionado às intensidades e ao modo como se dará seu registro no psiquismo. Os perigos que podem resultar numa situação traumática envolvem as perdas inerentes ao desenvolvimento, iniciando com a situação de nascimento e as demais experiências de separação que o sujeito enfrenta no decorrer da vida. Dentro desse contexto, o traumático é intrínseco à própria condição humana, assumindo em cada indivíduo seus contornos particulares, individuais. Agregaríamos a esses dois clássicos, Além do Princípio do Prazer (1920) e Inibições, Sintomas e Ansiedade (1926), um terceiro, O Mal-Estar na Civilização (1930), no qual encontramos uma espécie de fechamento da década, em que o novo postulado pulsional vai ser reconhecido de forma explícita, como a mola propulsora do psiquismo, com toda a sua força disruptiva. Freud (1930, p.142) comenta: “A pulsão de morte é a pulsão por excelência”, e segue dizendo, “não posso mais entender como podemos ter desprezado a ubiqüidade da agressividade e da destrutividade não eróticas e falhado em conceder-lhe o devido lugar em nossa interpretação da vida”. Após esse breve percorrido pelo pensamento metapsicológico freudiano acerca do trauma, vejamos como podemos esboçar uma possível trajetória para as suas vicissitudes, relacionando-o com as patologias da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 333 Ana Paula Terra Machado, Ignácio Alves Paim Filho automática que será revivida sob a forma de ansiedade sinal, quando detectada uma situação de perigo que ameace o ego. Eis o que Freud (1926, p.192) nos relata: O TRAUMA PRIMORDIAL NA DIALÉTICA DO REPRESENTÁVEL E DO IRREPRESENTÁVEL contemporaneidade. Em nossa clínica cotidiana nos deparamos com muitos interrogantes, que têm recebido os mais variados nomes: patologias atuais, patologias do vazio, clínica do negativo, o vazio na neurose e, principalmente, a questão da psicossomática, que segue sendo um enigma que clama por um deciframento metapsicológico, em que o corpo tem de dar conta das intensidades que o psiquismo não consegue elaborar. Parece-nos que o traço comum entre elas é um aquém da representação. Portanto, movidos por esses interrogantes nascidos a partir das inquietudes do criador da psicanálise e pelas peculiaridades do nosso tempo, pretendemos nos aventurar numa especulação do irrepresentável e do representável, na busca de construir uma hipótese metapsicológica do trauma como elemento fundante da psique. Acreditamos que, para isso, teremos de nos inquirir sobre os construtos do psiquismo. Façamos um recuo do tempo presente para o tempo das origens, anterior ao recalcamento originário, tempo de criação do inconsciente que nunca foi consciente (inconsciente originário), baseado nas intensidades das mais primitivas inscrições psíquicas que provocam um trauma primordial, percebido pela repetição oriunda da pulsão de morte. Iremos nos ocupar justamente dessas inscrições primordiais, marcas de um processo energético, nomeadas por Freud na Carta 52 (1896) de indicadores de percepção que ligamos à idéia de impressões: “é o primeiro registro das percepções; é praticamente incapaz de assomar à consciência e se dispõe conforme as associações por simultaneidade” (p.282). Esse conceito reaparece em vários momentos de sua obra, sempre vinculado aos primórdios, como em Leonardo da Vinci e uma Lembrança da sua Infância (1910), na qual temos as impressões ligadas à presença do seio materno, “a cauda do pássaro em sua boca”. No caso de O Homem dos Lobos (1918/1914), temos referências às impressões relacionadas à cena primária como algo passado que não pode ser lembrado, apenas construído. Finalmente em 1939, em Moisés e o Monoteísmo, Freud relaciona a gênese da neurose com as impressões infantis muito precoces. Assim sendo, postulamos que, através do binômio: pulsão de morte334 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 329-345, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 335 Ana Paula Terra Machado, Ignácio Alves Paim Filho impressões (afirmação-expulsão), podemos construir um pensar sobre o trauma primordial na dialética do representável e do irrepresentável. Nesse sentido, na Conferência XXXII, de 1932 (p.118), Freud coloca: “É apenas a magnitude da soma de excitação que transforma uma impressão em momento traumático, paralisa a função do princípio do prazer e confere à situação de perigo sua importância”. Com o objetivo de uma melhor contextualização desses primórdios, nos remetemos ao texto freudiano A Negativa (1925) e às idéias de GarciaRoza (1986) sobre esse tema, estabelecendo uma articulação das idéias de Freud, Hegel e Jean Hyppollite. Refletindo sobre essas idéias, partimos de Hegel, que em 1807 introduz no pensamento filosófico a categoria ontológica da negatividade, sendo esta considerada a própria essência do ser. Hegel afirma que o sujeito tem seu fundamento na negatividade; pensa que o homem rompe com o natural, vindo a constituir-se, justamente, por essa negação do natural. Garcia-Roza (1986, p.101), comentando o pensamento hegeliano, nos diz: “O sujeito desse discurso encontra seu fundamento na negatividade; é ao negar a natureza, assimilando-a e transformando-a, que o homem se constitui como homem. A negatividade aparece como ação do homem sobre a natureza, ação criadora porque negadora do dado”. Hyppollite, referindo-se ao texto freudiano A Negativa, no Apêndice I dos Escritos de J. Lacan (1998), faz algumas ligações entre o pensamento de Freud e Hegel. Ressalta a importância no pensar de Freud da palavra dialética de Hegel Aufhebung, que tem duplicidade de sentido: negar, suprimir, e conservar, caracterizando que algo é negado e ao mesmo tempo mantido. Esse raciocínio é fundamental na sustentação do sujeito psíquico freudiano, ficando exemplificado nos destinos da pulsão, que são modos de satisfação da demanda (conservar) e ao mesmo tempo uma defesa diante do poder da força pulsional (negar). Portanto, podemos dizer que o postulado de um trauma primordial inerente a todo sujeito está ligado à impossibilidade em suas origens de negativar as intensidades das suas pulsões, devido à fragilidade do humano, em meio à natureza da qual é oriundo – O TRAUMA PRIMORDIAL NA DIALÉTICA DO REPRESENTÁVEL E DO IRREPRESENTÁVEL recordando que o trauma, em Freud, sempre ficou ligado a uma quantidade pulsional não assimilável pela psique. Assim, nas origens de um ser desamparado em termos biológicos e psíquicos, é inevitável que o pulsional seja sempre traumático. Seguindo o percurso proposto por Hyppollite, Garcia-Roza postula a idéia de uma “Aufhebung freudiana”, ou seja, modos de negativar a força da pulsão, no seu duplo aspecto de suprimir e conservar. Essa força do negativo na obra de Freud é encontrada na construção de conceitos fundamentais, tais como: recalcamento (verdrängung), negação (verneinung), desmentida (verleugnung) e forclusão (verwerfung). É importante salientar que são as forças primordiais – afirmação e expulsão – as responsáveis pelo estabelecimento e articulação dessas operações no aparelho psíquico. Para que seja sustentável essa dupla ação (suprimir e conservar), é necessário um trabalho de transformação nomeado por autores contemporâneos, como Garcia-Roza (1986) e André Green (1977), de Trabalho do Negativo. Esse trabalho é o responsável pelo desligamento da pulsão do objeto, vinculado à idéia da pulsão de morte, pois esse ato de desligar possibilita a criação de um espaço e de um tempo que busca novo destino para a meta pulsional. Em síntese, a dinâmica do negativo se faz em duas etapas: inicialmente, ocorre um desligamento, através das forças negativadoras, à demanda pulsional; posteriormente, essa energia pulsional liberada poderá ter como destino novas ligações ou manter-se pulsando como intensidade não ligada. Assim sendo, o “trabalho do negativo” transita desde um pólo estruturante (representacional), ligado às vicissitudes da forclusão (o mais primitivo/representação de coisa), ao recalcamento (mais evoluído/representação de palavra e de objeto), em que temos uma boa sintonia entre a pulsão de vida e de morte e um pólo não estruturante, relacionado à expulsão primordial (irrepresentável), marcado pela força da pulsão de morte, porque não há ligação, em detrimento da pulsão de vida. Hyppollite, refletindo acerca dessas forças primordiais, faz a seguinte assertiva: “a afirmação primordial não é outra coisa senão afirmar, mas negar é mais que querer destruir” (LACAN, 1998, p.898). Remetendo-nos 336 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 329-345, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 337 Ana Paula Terra Machado, Ignácio Alves Paim Filho aos princípios de que a afirmação por si só é indeterminada e não produz diferenças e de que a negação (enquanto derivada da expulsão) produz ruptura (algo é destruído) e ao mesmo tempo cria uma afirmação, pois toda a negação é feita em relação a algo, tais princípios nos ajudam a compreender a teoria dos juízos (atribuição e existência), concebida por Freud como derivada dessas forças primordiais. Após esse recorte do pensamento de Garcia-Roza, vamos nos dedicar especificamente aos derivados do seguinte dizer de Freud (1925, p. 300) (tentando fazer uma ligação com o discurso de Hyppollite): “A afirmação – como substituto da união – pertence a Eros; a negativa – o sucessor da expulsão – pertence à pulsão de destruição”. Em cima desse aporte teórico, teremos a formulação de dois princípios fundamentais: a “afirmação primordial” (Bejahung), que tem a característica de ser indeterminada, e a “expulsão primordial” (Ausstossung), que vai possibilitar a criação da negação determinada. Do que se está falando quando evocamos esse tempo primordial marcado pela expulsão e afirmação? Pensamos num tempo mítico, quando a relação mãe-bebê é marcada por uma indiferenciação originária, na qual a natureza se faz presente com toda a sua plenitude, revelando o acontecer da afirmação primordial com toda a sua indeterminação. Essa cena mãe-bebê simplesmente é uma totalidade em si. É somente pela ação da negação determinada que esse dado, esse natural vai ser transformado, pois a expulsão, enquanto antecessora da negação, vai começar a estabelecer diferenças: primeiro entre o dentro e o fora (ação muscular), sendo por esse movimento que o externo é criado; depois com a negação, se fazendo presente através da transformação no contrário, e o retorno sobre si mesmo, teremos a diferenciação entre o bom e o mau (atribuição); e, por último, com o advento do recalcamento originário (a grande marca da negação), o sujeito estará apto a diferenciar a percepção da alucinação (existência). É nessa dialética entre a afirmação e a expulsão que vai se dar o trabalho do negativo, que consiste na criação de uma afirmação determinada a partir da ação da negação determinada. Poderíamos citar, a título de O TRAUMA PRIMORDIAL NA DIALÉTICA DO REPRESENTÁVEL E DO IRREPRESENTÁVEL exemplo, o recalcamento como uma negação determinada que gera uma afirmação determinada, ou seja, o desejo recalcado, que pode se fazer conhecer pelo “não”. Como dissemos acima, guiados por Freud, existem dois destinos pulsionais que são anteriores ao recalque: a transformação no contrário e retorno sobre si mesmo. Esses dados nos possibilitam pensar em um mundo psíquico que vai se iniciando antes mesmo da criação do inconsciente, pois é a partir do recalcamento originário que se estabelece o inconsciente. Diante desse fato, que mundo psíquico seria esse anterior ao recalcamento originário? Pensamos no inconsciente que nunca foi consciente (inconsciente originário), que é produto de um paradoxo, pois, à medida que vai nascendo, cria e é criado pelo espaço psíquico. Pensamos ser essa uma précondição ao que Green (1977) chamou de Alucinação Negativa, que é uma capacidade da criança de negativar a presença do objeto primário – a mãe. Esse pensador vê nesse processo alucinatório um fator enquadrante da psique, que dá condições para o acontecer das representações. Ao propormos a idéia de um inconsciente originário, estamos partindo de uma passividade, anterior à atividade, em que o bebê humano, antes de ser sujeito, é objeto, sendo essa condição dos primórdios, o que possibilita a criação de um espaço psíquico em que possam acontecer as primeiras inscrições, impressões, advindas desses clamores pulsionais (do sujeito e do objeto). Portanto, postulamos que a topografia das origens, do vir a ser humano, caracteriza-se por um ir albergando as impressões, que vão gestando o inconsciente que nunca foi consciente, ligado ao eu-realidade originária, que tem no par das forças primárias afirmação-expulsão o movimento que faz a distinção entre o interno (eu) e o externo (não eu). Devemos lembrar que esse processo, que é anterior à criação dos juízos de atribuição e de existência, Freud relaciona com o movimento muscular, o que nos faz reafirmar que a expulsão é uma espécie de ponto de partida que estabelece a saída de um estado de pura pulsão de indiferenciação mãe/bebê, inaugurando o externo. A partir de então, começam a se estabelecer binômios 338 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 329-345, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 339 Ana Paula Terra Machado, Ignácio Alves Paim Filho evolutivos, que carregam uma antítese e uma complementaridade, tais como: interno-externo, fusão-desfusão, introjeção-expulsão, afirmaçãonegação, pulsão de morte-pulsão de vida. Esse tempo primeiro, onde a pulsão marca sua presença no leito desse inconsciente via impressões, vai inaugurar nesse psiquismo incipiente a marca de uma ferida/trauma geradora de uma angústia originária que põe em ação o recalcamento originário, que será ressignificada num segundo tempo diante da angústia de castração que aciona o recalcamento propriamente dito. Esses elementos nos indicam um possível caminho para pensarmos na gênese do trauma primordial. Na relação entre o inconsciente que nunca foi consciente e o eu realidade originária vai se dar o trabalho do negativo, que visa instrumentalizar as condições de figurabilidade (o alucinatório de GREEN, 1977, e dos BOTELLA, 2002), que propiciarão as retranscrições e rearranjos para que as impressões desse trauma primordial possam, dentro de uma hipótese topográfica, tornar-se traço e depois representação, vindo a constituir o mundo do inconsciente, atravessado pelo recalcamento. Em síntese, estamos dizendo que uma parte das impressões primordiais terá como destino o universo das representações vinculadas à pulsão sexual; outra parte, pela impossibilidade de ser transformada, a partir do trabalho do negativo, devido a sua intensidade, ficará no núcleo desse inconsciente das origens, marcada pelo inominável, pelo indizível, ou seja, pelo irrepresentável, num eterno pulsar. Fazendo analogia com o trabalho do sonho, que é fruto do desejo do inconsciente recalcado, e com o trabalho do negativo, que é o responsável pela complexidade que vai adquirindo o aparelho psíquico, poderíamos dizer que, no trabalho do sonho, temos palavras buscando recriar imagens, num processo em que é desinvestida a representação da palavra e reinvestida a representação da coisa, rumo à percepção/soma, num movimento regressivo; no trabalho do negativo, temos viabilizadas as condições energéticas (pelo desligamento) para que as impressões busquem criar imagens que possam ser capturadas pela força do desejo recalcado, O TRAUMA PRIMORDIAL NA DIALÉTICA DO REPRESENTÁVEL E DO IRREPRESENTÁVEL num movimento progressivo rumo a percepção/consciência. Com isso, teríamos que a meta final desses trabalhos seria a percepção, tendo nesta o motor das transformações psíquicas. Esse pode ser um possível trajeto para pensarmos a contratransferência imaginativa (GREEN/BOTELLA); uma forma de comunicação entre o inconsciente que nunca foi consciente, mundo do irrepresentável do analisando, que, através do eterno trabalho do negativo, busca um destinatário, um analista, capaz, com o seu aparelho psíquico, via percepção, de construir uma cena, uma imagem, para poder contar uma história sobre essas marcas que pulsam no silêncio do mais aquém, na medida em que o psiquismo se constitui e se organiza a partir das percepções-alucinações-representações. De posse dessas especulações teóricas, podemos tecer o seguinte enunciado, que poderia dar sustentação a uma metapsicologia do trauma: a partir da noção de impressão, proposta por Freud como indicadora da percepção, como uma marca primeva da constituição do psíquico, construímos o postulado de que essas impressões são a inscrição da pulsão no inconsciente que nunca foi consciente (o não-recalcado), gerando um trauma primordial estruturante e não estruturante. Esse trauma terá dois destinos: o estruturante, que traz a marca do intercâmbio da “afirmação primordial” e da “expulsão primordial”, força essa (expulsão primordial) que irá fazer o seu percurso até atingir o status de negação. Temos aqui uma percepção ligada a um conteúdo traumático, a sedução do infans pelo objeto primário, que podemos relacionar com os significantes enigmáticos de Laplanche (1988) e com a violência primária de Piera Aulagnier (1979). Esse arcaico vai buscar criar o caminho representacional, simbólico, ligado às leis do inconsciente recalcado. Assim sendo, o trabalho da análise se faz, preferencialmente, via interpretação, buscando um sentido perdido, um (re)conhecimento do inconsciente pelo eu percepção. O outro destino refere-se a uma intensidade não estruturante (uma força negativadora), marcada pela ação da “expulsão primordial”, sem produzir uma “afirmação determinada”, pois a negação não se constituirá, acar340 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 329-345, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 341 Ana Paula Terra Machado, Ignácio Alves Paim Filho retando uma impossibilidade de se fazer representar, caracterizada por “uma ausência de conteúdo na percepção e não de uma percepção de conteúdo traumático” (BOTELLA; BOTELLA, 2002, p.189), em que teremos uma não-história, não havendo o que ser recordado, pois não se trata de um sentido perdido, mas sim de uma ausência de sentido, ou melhor, da presença do sentido tanático da pulsão de morte, que se faz presente numa comunicação em atos, no corpo, na cultura. Portanto, esse trauma não obedece à lei freudiana dos dois tempos, não está relacionado com a ressignificação. Diante dessa ausência de história, a tarefa analítica consiste essencialmente na construção de um sentido, de um possível conhecer sobre esse inconsciente que nunca foi consciente, a partir desse trauma primordial irrepresentável. Destarte, temos nesse trauma primordial não estruturante a gênese do irrepresentável, que está alojado topograficamente no inconsciente que nunca foi consciente, que ao não se subordinar ao trabalho do negativo, enquanto agente de transformação, vai se presentificar para o sujeito falante através da mudez e da força demoníaca da pulsão de destruição, que tem como mola propulsora a expulsão, que produzirá uma repetição aquém da palavra. Ao entendermos, nessa repetição, uma forma de comunicação, poderíamos dizer que essa repetição é uma expectativa de galgar a percepção/consciência para adentrar no mundo das representações. Seguindo os pensamentos de Freud (1925, p.298), sabemos que “todas as representações se originam de percepções e são repetições dessas”. Assim sendo, é imprescindível que uma marca mnêmica passe pela percepção do sujeito e/ ou do outro para se constituir representação. Diante dessa concepção, vemos um novo desafio para e na contemporaneidade, que se anuncia na inter-relação entre o irrepresentávelrepresentável, tendo como um dos elos de transformação a percepção. Pensamos que é sobre esse enigma, da percepção, que escrevem os Botella (2002), quando falam da necessidade de se construir uma metapsicologia da percepção, partindo da tese freudiana de que, “para o ego, a percepção desempenha o papel que no id cabe à pulsão” (FREUD, 1923, p.39). O TRAUMA PRIMORDIAL NA DIALÉTICA DO REPRESENTÁVEL E DO IRREPRESENTÁVEL Concluindo, a partir do trauma sexual infantil, Freud começa a construir a teoria das neuroses e, conseqüentemente, do sujeito, que terá como eixo fundante o inconsciente recalcado, o desejo infantil (parricida e incestuoso) e as suas vicissitudes representacionais, tendo no traumático primordial sexual uma história permeada pela percepção-alucinação-representação. Enquanto o trauma primordial não sexual, vinculado ao irrepresentável, a um inconsciente não recalcado, mantém-se excluído da dinâmica do recalcamento, permanecendo essencialmente como trauma, muito próximo da própria pulsão, evidenciando o tanático, o primado das intensidades onde a percepção não tem ação. Essa dialética entre o representável e o não representável, tendo como origem o trauma primordial, demarca um caminho para pensarmos nas patologias e na constituição do sujeito desses novos tempos. Resumo De acordo com os textos freudianos sobre trauma e a noção de negatividade, os autores se propõem a pensar a gênese do irrepresentável a partir da idéia de um trauma primordial que será estruturante ou não estruturante do psiquismo. O trauma dito estruturante trilhará o caminho das representações e estará submetido ao recalcamento, enquanto o não estruturante permanece no inconsciente não recalcado, marcado pelo inominável. O destino do traumático está relacionado ao par expulsão-afirmação primordial que possibilitará a ação da negatividade. Quando esta não opera, as intensidades permanecem no núcleo do inconsciente sem possibilidade de representação. Essa hipótese das origens do irrepresentável é um caminho para a compreensão das patologias da contemporaneidade. Palavras-chave Trauma primordial. Representável. Irrepresentável. Negatividade. 342 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 329-345, 2005 The Primordial Trauma in the Dialetic of the Representable and the Unrepresentable According to Freudian’s texts, about trauma and the negativity’s notion, the authors propose to analyse the irrepresentable, supporting the hypothesis of a primordial trauma that will be structuring or not structuring the psychism. The structuring trauma will follow the representability and will be submitted to repression, while the not structuring stays at the not repressed unconscious. The traumatic destiny is related to the primordial expulsion-affirmation that will make possible the negativity action. When this does not work, the intensities rest on the unconscious without presentation possibility. This hypothesis of the origins of the irrepresentable is a way to understand the contemporanies pathologies. Key-words Primordial trauma. Representable. Irrepresentable. Negativity. Resumen El Trauma Primordial en la Dialéctica de lo Representable y de lo Irrepresentable De acuerdo con los textos freudianos sobre trauma y la noción de negatividad, los autores se proponen pensar la génesis de lo irrepresentable a partir de la idea de un trauma primordial que será estructurante o no estructurante del psiquismo. El trauma dicho estructurante seguirá el camino de las representaciones y estará sometido a la represión, mientras lo no estructurante permanece en el inconsciente no reprimido, marcado por lo innombrable. El destino de lo traumático está relacionado al par expulsión-afirmación primordial que posibilitará la acción de la negatividad. Cuando esta no opera, las intensidades permanecen en el núcleo de lo inconsciente sin posibilidad de representación. Esa hipótesis de los orígenes de lo irrepresentable es un camino para la comprensión de las patologías de la contemporaneidad. Palabras-llave Trauma primordial. Representable. Irrepresentable. Negatividad. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 343 Ana Paula Terra Machado, Ignácio Alves Paim Filho Abstract O TRAUMA PRIMORDIAL NA DIALÉTICA DO REPRESENTÁVEL E DO IRREPRESENTÁVEL Referências AULAGNIER, P. A Violência da Interpretação: do pictograma ao enunciado. Rio de Janeiro: Imago, 1979. BOTELLA, C.; BOTELLA, S. Irrepresentável mais Além da Representação. Porto Alegre: Criação Humana, 2002. FREUD, S. (1893). Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar. In: ______. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v. 2. ______. (1908). Sobre as teorias sexuais das crianças. In: ______. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v. 9. ______. (1910). Uma lembrança infantil de Leonardo Da Vinci. In: ______. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v .11. ______. (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução. In: ______. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v. 14. ______. (1916-1917[1915-1917]). 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Eu quero partir todo o teu corpo pedaço por pedaço...” Mayra Dornelles Lorenzoni Psicóloga; Candidata do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre; Especialista em Psicologia Clínica pelo Conselho Federal de Psicologia; Docente e Supervisora do Centro de Estudos, Atendimento e Pesquisa da Infância e Adolescência. Este trabalho surgiu da surpresa e inquietação a respeito da semelhança entre o material clínico de um menino com diagnóstico inicial de Autismo Atípico e o livro de contos escrito e editado por seu pai. A Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 347 Ana Rosa Chait Trachtenberg, Mayra Dornelles Lorenzoni Identificações Traumáticas, Congelamento e Transgeracionalidade IDENTIFICAÇÕES TRAUMÁTICAS, CONGELAMENTO E TRANSGERACIONALIDADE violência expressada nos contos, que não era do conhecimento do pequeno paciente, e a violência presente no material clínico das sessões de análise, em forma quase especular, produziu nas autoras um alto impacto. Esse particular ponto de contato entre pai e filho levou-as a uma reflexão teórico clínica, que se apresenta a seguir. Parte I Uma Contribuição ao Estudo das Identificações Traumáticas Mayra Dornelles Lorenzoni Iniciamos este trabalho estampando duas cenas: CENA DE UM CONTO: “Eu estou em casa, são quatro horas da manhã, e ainda não peguei no sono. Foi depois, quando tudo acabou, que a imaginei morta. Morta sobre os lençóis, corpo gelado, congelado. Me deu mesmo essa vontade de vê-la morta, e de fato quase a matei. Talvez a mate! Porque só assim ela será minha. Morta, não; morta, ela ficará comigo!” CENA DA SESSÃO: “Era uma casa feia... Eu pensava em pegar uma arma e te congelar. Agora eu te prendi nos braços, pernas e pescoço com correntes. Vou te matar. Agora tu morres! Vou te queimar toda e vou derreter toda a tua pele. Tô pondo energia de morto no teu corpo, pra tu ficar bem morta e assim não saíres daqui e eu te dominarei, ficarás para sempre aqui, sem força, sem vida, mas, nas minhas mãos, passarás a ser minha”. Ao receber o livro de contos das mãos do próprio autor – pai do paciente –, surpreendi-me pelo inusitado. Ao ler seus contos, espantei-me e muito pela situação insólita. E, por alguns instantes, tive a sensação de déjà-vu, estava diante da mesma narrativa dramática e tirânica das histórias fantasiosas que povoam a mente de seu filho – meu paciente. Vi-me perple348 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 347-368, 2005 Pai e sua História José Carlos, 35 anos, engenheiro. Filho do engenheiro José, da pedagoga Ana Maria e irmão de Paulo, 30 anos, sem profissão. Na maior parte de sua infância, sua mãe manteve-se ausente, “viajando sempre pela educação. [...] Eu sofria, chorava quietinho! Sempre fui muito fechado! [...] A mãe era uma referência dentro da área de educação e eu era visto como o filho da pedagoga Ana Maria. Meu estigma desde pequeno. Eu era o filho certinho; meu irmão era o problema, e por causa disso eu carregava a necessidade de não falhar. Muitas coisas que eu conseguia realizar não pareciam méritos meus. Ficava sempre à sombra de minha mãe. Eu me sentia sobrecarregado!” No primeiro dia de aula na Faculdade, um dado professor, ao fazer a chamada, pronunciou: “José Carlos, ah! Tu que és o filho do José... Fui Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 349 Ana Rosa Chait Trachtenberg, Mayra Dornelles Lorenzoni xa, impactada, tomada de susto! Mas, aos poucos, tudo aquilo começava a fazer algum sentido... O enredo dos contos literários do pai e o conteúdo das sessões do filho se fundiam e se confundiam. A violência e a crueldade habitavam ambos os lugares com suas faces mais horrendas. O material clínico presente no transcorrer do trabalho corresponde a esse mesmo menino – José Carlos Júnior, de 7 anos –, e os posteriores fragmentos de contos literários seguem correspondendo ao mesmo autor, seu pai – José Carlos. É mister assinalar que o pequeno paciente nunca teve acesso aos escritos do pai, tampouco interessou-se quando da publicação de seu livro. Faz-se necessário pontuar que este trabalho é um estreito recorte dessa relação “clínica”: contos/sessão. Ficam de fora, lamentavelmente, outras tantas relações e conexões possíveis. Este é um trabalho que tem por objetivo focalizar a relação pai-filho, enquanto a relação mãe-filho está propositalmente excluída, já que foi objeto de outro trabalho (LORENZONI, 2003). IDENTIFICAÇÕES TRAUMÁTICAS, CONGELAMENTO E TRANSGERACIONALIDADE colega de trabalho do teu pai há muitos anos...”, e todo mundo virou-se para ele. “Meu irmão, na adolescência, se perdeu com uma turma pesada, queria ser um outsider, ‘rebelde’, sem nenhuma higiene pessoal, apreciava literatura marginal.” José Carlos sempre esteve envolvido com hobby de fazer coleções: carrinhos, jornais, CDs, etc. Enquanto o irmão era desorganizado, ele era perfeccionista e mantinha tudo sobre controle. Refere nunca ter convivido com qualquer espécie de brigas entre os pais ou dos pais com ele. Revoltava-se com a passividade dos pais diante das “loucuras do irmão”, mas nunca conseguiu reagir. Ao fantasiar imagens de reações agressivas, sentia muita culpa. “Tinha muito medo de soltar meus monstros internos.” O Filho e suas Vicissitudes Júnior era um bebê muito agitado, com escassas horas de sono acompanhadas de choros de pânico. Debatia-se, atirava-se, rastejava, denotava um estado constante de angústia. Não respondia aos sons e, com freqüência, babava-se. Aos 2 anos, mostrava uma excessiva desorganização com os brinquedos, a verbalização era escassa, e a compreensão, quase nula. Na escolinha, mordia os colegas e a si mesmo. Corria na ponta dos pés. Apresentava pânico diante de quadros artísticos e barulhos como sirenes, furadeira, liquidificador e canto de galo. Aos 3 anos, foi trazido ao atendimento emocional. O pequeno paciente possuía um olhar que ora parecia vazio, ora parecia “atravessar-me”. Apresentava nas sessões padrões estereotipados, tanto nos jogos como na linguagem; seus desenhos eram garatujas primárias. Seu pensamento era repetitivo, e sua conduta desorganizava-se diante de situações de mudança. Tinha um especial interesse por movimentos giratórios de certos objetos e pelo cheiro dos mesmos. Suas brincadeiras eram sem enredo, e suas histórias sem encadeamento. Apresentava idéias desconexas e, por vezes, perguntas sem sentido, 350 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 347-368, 2005 À Luz do Conceito do Contrato Narcisista CENA DE UM CONTO: “Só pescando para esquecer. Aprumo a vara com a mão do braço que ainda funciona e lanço a linha, um arremesso ruim para começar o dia. Usando um braço só não tenho mesmo jeito de lançar melhor do que isso. Um arremesso de vida, isso é o que me sobra. Mas o resto é tudo meu: minha mulher, minha quando joguei dentro dela o esperma que se tornaria o Roberto, meu filho, meu caniço sem nome, minha muleta, meu maldito lado morto. Aí vem ele! Vou te devolver à água, seu papa-terra desgraçado, com esse olho sangrando do meu anzol, ‘estás como eu’, meio pela metade. Com um lado morto”. CENA DA SESSÃO: “Este aqui sou eu. Meu braço doente se transformou em machado, arma e depois canhão. Esse braço-machado é para eu atacar os inimigos. Eu tenho um braço, uma perna, um olho, um corpo de robô. Eu tenho uma parte morta como uma estátua, eu tenho um lado invisível. Tu sim, és uma humana!” Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 351 Ana Rosa Chait Trachtenberg, Mayra Dornelles Lorenzoni como um quadro no qual visualizou a imagem de Cristo na cruz e indagou: “Mãe, o titio pega?”. Fazia uso de ecolalia e de palavras com estranhas combinações: “Mayra marronzinha”, referindo-se ao prédio de meu consultório. A hipótese diagnóstica naquela época fora a de um Transtorno Invasivo do Desenvolvimento: Autismo Atípico. Inicialmente trabalhamos com uma freqüência de duas sessões semanais e acompanhamento mensal aos pais, e isso era o limite das possibilidades da família. Aos 6 anos, já demonstrava nas sessões alguma evolução na habilidade representacional. Os temas focalizavam “lutas sangrentas” de superheróis contra os homens do mal. Aos 7 anos, passamos a trabalhar com quatro sessões semanais, e segui vendo os pais periodicamente. IDENTIFICAÇÕES TRAUMÁTICAS, CONGELAMENTO E TRANSGERACIONALIDADE Toda essa complexidade dramática que vem se descortinando tem como ponto de origem o psiquismo desse bebê que, como todo psiquismo, constituiu-se desde uma singular intersubjetividade. Esta pode entender-se desde aquilo que Piera Aulagnier (1975) denominou de contrato narcisista, que nos indica que existe um pré-investimento dos pais em relação ao bebê, ao qual reservam um lugar legítimo. A criança demanda ao grupo o reconhecimento de que ela lhe pertence, enquanto o grupo lhe demanda a preservação de seus valores e leis previamente estabelecidos. Logo, esses pais, sob o vértice de Aulagnier (1984), pré-enunciaram e pré-investiram nesse “novo ser”, como um “arremedo de vida”, “meio pela metade”, reservando a esse filho o lugar do “maldito lado morto”. E assim, ao ocupar esse lugar, ficou prejudicado severamente o espaço no qual a subjetividade desse ser deveria constituir-se. O processo identificatório de Júnior ficou, então, sobremaneira comprometido pela importante falta de uma investidura de pulsão de vida. Nessa família, a seqüência geracional, no que diz respeito ao nome, foi mantida fielmente: avô paterno José – pai José Carlos – filho José Carlos Júnior. A “Lei da Filiação” aqui tem como única referência o “Nome-do-Pai”, o doador do nome, sendo que esse pai acabou por fazer do filho, por um lado, um produto do ventre materno, por outro, um condenado a carregar sua identidade e reproduzir uma história que não lhe pertence. Em função do encontro dos psiquismos dos pais e de Júnior, enquanto bebê, foi possível identificar a presença precoce de transmissões desorganizantes, traumatogênicas. No seu entorno familiar, Júnior não encontrava significado, sustentação e apoio que qualificassem suas vivências, as quais ficavam misturadas com as de seus pais, o que impossibilitava qualquer ruptura na continuidade geracional. Sem essa distância geracional necessária, produziu-se um montante de condensações e de indiferenciações no psiquismo dessa criança. O discurso do pai do menino fora antecipado por um desejo identificatório, ou seja, que o filho se tornasse ele, através da doação do 352 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 347-368, 2005 À Luz do Conceito de Introjeção Extrativa CENA DE UM CONTO: “Tem que ter alguma coisa ainda. Será que tem? Não, não tem mais nada. Quarenta reais que sejam, já me quebram o galho! Quarenta tem que ter nessa coisinha. Tento tirar trinta tem que ter. Saldo insuficiente. Vou tirar vinte. Saldo insuficiente de novo... Mas por quê? Vou tentar dessa outra forma. Usei pouco neste Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 353 Ana Rosa Chait Trachtenberg, Mayra Dornelles Lorenzoni nome e com o acréscimo, no final desse, do adjetivo Júnior, o mais moço de dois, o que aponta para uma sucessão, uma identidade geracional imutável. Percorrendo as idéias de Aulagnier (1984), destacamos um importante conceito, o da “interpenetração”, no qual enfatiza que o efeito do processo intersubjetivo se produz entre um acontecimento, um fantasma inconsciente e um enunciado de valor identificante, se pronunciado por uma voz privilegiadamente investida. Trata-se de um momento no qual a experiência se imprime, se estampa nas crianças. De acordo com a autora, a interpenetração tem valor traumático, é um efeito da trama que produz fantasmas e fantasias. O sofrimento que experimenta o pequeno paciente parece ter relação também com o quantum de violência que seu frágil psiquismo precocemente experimentou. Isso implica que Júnior, segundo Aulagnier (1984), teve de renunciar rapidamente a uma ilusão necessária nessa etapa inicial de sua vida psíquica. “Que lugar ocupa esse filho no sistema narcisista parental e no desejo inconsciente dos pais?” Concordamos com Aulagnier (1984), quando diz que há desejos inconscientes que, quando não reprimidos, acabam por ter maior influxo na transmissão psíquica geracional. De alguma forma, quando no psiquismo dos pais falha o espaço do reprimido, além das demandas pulsionais não estarem transformadas, resulta algo incompatível à vida psíquica de um filho. Ao penetrarem no ego em constituição desse filho, essas demandas produziriam um efeito singular, à medida que, possivelmente, se manteriam em estado bruto, transformando-se em experiências de valor traumático. IDENTIFICAÇÕES TRAUMÁTICAS, CONGELAMENTO E TRANSGERACIONALIDADE mês. Quem sabe agora... Tiro o cem e depois vou tirando o resto de dez em dez até esgotar o saldo. Vamos lá, meu robozinho que não fala e não pensa. Mas o que há com essa máquina cretina? Quero tirar mais... Saldo insuficiente de novo! Vida insuficiente. Mas esse é o medo: de tirar extrato, de ver o que tirei e o que ainda tem, se é que sobrou!” CENA DA SESSÃO: “Mayra, sabe, tô com dificuldade: É muito complicado pensar em número, tirar números, tira cem, tira oitenta, tira sessenta, tira quarenta, tira dez, tira nove, tira oito, tira sete... e tudo isso. É ruim demais! quando é de tirar, deixar cem/sem. O que é de menos, me atrapalha, não consigo pensar”. Dentro da perspectiva de seguir tratando de compreender esse tipo de relação psíquica inconsciente estabelecida entre pai e filho, objeto desse estudo, o conceito de introjeção extrativa de Christopher Bollas (1987) parece dar conta de aspectos importantes. Esse processo é uma espécie de “um roubo” de alguns elementos da vida psíquica do outro. Essa violência intersubjetiva ocorre quando o violado não tem a experiência interna do elemento psíquico que o violador representa. De acordo com o autor, à medida que é mantida, a introjeção extrativa pode alterar a função intra-subjetiva de determinados elementos psíquicos. Nessas circunstâncias, Júnior tornou-se o doente da família para poder ser legitimado mesmo que por essa via, sendo obrigado a renunciar, assim, ao contato com partes psíquicas ligadas à pulsão de vida. José Carlos desenvolveu uma personalidade obsessiva, que o tornou afetivamente distante, embora um “operativo eficiente”. Ele tendeu sempre a decodificar intelectualmente o estranho mundo emocional de seu filho. O pai extraiu do psiquismo do menino sua vitalidade, sua capacidade de pensar, sentir e desenvolver-se, isto é, apropriou-se de grande parte do equipamento de pulsão de vida com o qual Júnior veio ao mundo, tornando-o um escravo do seu poder psíquico. O menino comportava-se, em muitos momentos, como alguém apático, alienado e desorganizado: aspectos esses que tipificam o outro lado da personalidade de seu pai. 354 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 347-368, 2005 À Luz do Conceito de Identificação Narcisista Inconsciente Alienante CENA DE UM CONTO: “A minha verdade é esta: sou um assassino. Deixei cair um bloco com meu nome timbrado, um homem de chapéu branco abaixou-se para pegá-lo: – Manuel Antunes Filho? Filho de Manuel Antunes? Fui colega de trabalho do teu pai há muitos anos! Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 355 Ana Rosa Chait Trachtenberg, Mayra Dornelles Lorenzoni Nas sessões, o pequeno paciente valia-se de intensas e maciças identificações projetivas de caráter destrutivo dirigidas a mim, enquanto sua analista, o que acabava por deixá-lo com um profundo vazio no seu estado mental. De alguma forma, eu tinha de dar conta da experiência de suportar as partes esvaziadas do seu self; esvaziadas também por alguma violação ativa do outro. O paciente desenvolveu, durante a primeira etapa de sua análise, transferências, nas quais tudo o que era intensificador da vida (incluindo a destruição) estava na analista. Vítima da introjeção extrativa, identificou-se com aspectos destrutivos contidos no inconsciente do pai, instalando-os em sua personalidade. Bollas (1987) diz que quando um pai que projetivamente identifica elementos cindidos e indesejados de seu próprio self no de seu filho o sobrecarrega com um mundo interno extremamente indiscriminado e caótico. Ao atribuir ao filho seu próprio nome, o pai extrai, de certo modo, alguma parte do seu self, seu sentimento de alteridade, deixando em seu lugar um vácuo, onde lá depositou muito do seu desespero e do seu próprio vazio. Bollas (1987) defende a idéia de que a perda de uma parte do self significa não só uma perda de conteúdo, função e processo, como também da percepção que tem de sua própria pessoa. Uma perda dessa natureza para esse pequeno paciente pode ter tido uma forte influência na nãoestruturação de sua história pessoal. IDENTIFICAÇÕES TRAUMÁTICAS, CONGELAMENTO E TRANSGERACIONALIDADE Conversamos por algum tempo e, ao final deste, o velho acendeu um charuto fedorento: – Onde é que teu pai está morando? Dei-lhe o endereço. Expliquei com detalhes: meu pai estava viúvo, morando sozinho, perto de um rio. O sujeito prometeu que apareceria para vê-lo. Por volta das duas horas da tarde, me despedi dele. Dei mil voltas e ao chegar em casa, lá pelas seis, liguei para o pai para contar o acontecido. Tentei várias vezes, mas ele não atendeu. Perto das sete, o telefone tocou, era meu tio. Tinha uma notícia ruim, eu que me agüentasse: tinham matado meu pai. Seis tiros no peito! Perguntei: pegaram o assassino? O tio respondeu que não, mas não seria difícil descobrir, haviam deixado um chapéu branco com sarro de charuto sobre o corpo”. CENA DA SESSÃO: “– O bebê é mais poderoso que seu pai. O que você quer com meu pai? – Seu pai nunca mais vai voltar; Homem Aranha! Waldemorte vai matar seu pai! – Diga adeus! Waldemorte está cortando, parte por parte da pele dele, em pedaços. – Ai... ai... ai... (gritos de dor) Atirou nele, vários tiros na cabeça, no peito e nas costas. – Eu sou do mal. To cuspindo pedaços do corpo do teu pai: um olho, uma mão, o cérebro!” Amplio as considerações teóricas pertinentes ao contexto desse trabalho com o conceito de identificação narcisista inconsciente alienante de Faimberg (1985, 1988), que, juntamente com as identificações intrusivas e apropriativas, configuram o quadro da “telescopagem (encaixe) de gerações”, a qual não é mais que um dos aspectos do funcionamento de uma lógica narcisista presente, sobretudo nas organizações psicóticas. Trata-se de identificações com aspectos não resolvidos da história dos pais ou avós do sujeito que o paralisam, ocupando-o na tentativa falida de buscar um outro destino psíquico para si. É possível observar a necessidade em ambos (pai e filho) da projeção 356 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 347-368, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 357 Ana Rosa Chait Trachtenberg, Mayra Dornelles Lorenzoni da violência, bem como a violência da projeção, o que nos faz lembrar de Faimberg (1985) quando coloca que situações como essas acabam por instalar uma zona inter-humana violentamente frágil, onde, de alguma forma, cristalizam-se angústias mais arcaicas. Poderíamos pensar que nesse movimento, através do qual um identifica-se com o desejo ou com o sintoma do outro, existe uma transmissão intersubjetiva: o que se transmite de um ao outro é um traço inconsciente posto em comum. Aqui nos parece que cabe uma questão: afinal, o que é transmitido ou transferido no sentido de transporte em intensidade e em representação dos pensamentos latentes ao relato manifesto? Faimberg (1985) tenta dar conta dessa forma violenta de transmissão psíquica, que condensa duas ou três gerações, marcando que desde o início da constituição do psiquismo existe um outro. Em uma das vinhetas de uma dramatização que incluía dois superheróis – Homem-Aranha e Visão –, verbalizou: “Visão! Vamos ver o espelho mágico! Vamos ver os pais deles que vão aparecer no espelho. Como vocês chegaram até aí dentro? Aqui dentro do espelho mágico está a mãe e o pai do Homem-Aranha. Eu vou quebrar o espelho para poder entrar e ver. Como é que vocês foram parar aí dentro?” Ao referir a presença de um pai e de uma mãe “dentro de um espelho”, denuncia, inconscientemente, a presença de personagens que haviam sido “metidos dentro de sua mente”, via identificação patológica. Esta parece ser de caráter alienante, dado que uma parte do psiquismo cindido dos pais se apropriara de forma intrusiva do seu psiquismo. Como pode se observar, pela história pessoal do pai de Júnior, os aspectos hostis, a pulsão tanática pareciam impedidos de externalização. Sob o forte manto da repressão e do mandato materno de ser “o filho perfeito”, José Carlos, além de aprisionar seus impulsos sádicos e destrutivos advindos das frustrações e privações impetradas pela mãe, não podendo descarregá-las em qualquer comportamento, via-se amordaçado em sua impossibilidade de expressar seus desejos e sentimentos negativos através IDENTIFICAÇÕES TRAUMÁTICAS, CONGELAMENTO E TRANSGERACIONALIDADE da palavra falada. Suas emoções encontravam abrigo em seu mundo fantasmagórico intensamente violento. Podemos pensar que se instalou entre essa dupla geracional (Filho – pai de José Carlos Júnior – e Mãe – avó de José Carlos Júnior) o processo que Faimberg (1988) chama de “identificação apropriativa”, entendido como um dos fatores de transmissão psíquica patológica entre gerações – transgeracional. Essa apropriação é efeito do desejo do outro e pelo desejo do outro. Como correlato, encontramos na dupla geracional (Filho – José Carlos Júnior – e Pai – José Carlos) uma demanda psíquica comum aos dois povoada de sentimentos odiosos e fantasias cruéis. Isso nos faz pensar numa espécie de mecanismo de contágio psíquico, no qual se põe em evidência a identificação como indicador de um lugar de coincidência entre os dois egos, o que levaria a pensar numa “aliança inconsciente”. O avô paterno, apesar de seus aspectos silenciosos e esvaziados, busca a reedição de um lugar, de um tempo e de um estado de troca afetiva que se instalava entre ele e seu próprio filho (pai de Júnior), agora com o neto. Através da atividade lúdica da pescaria – “pescaria de papa-terras não-desgraçados” –, avô, filho e neto reencontram-se de forma vital e se permitem nesse momento experimentar juntos uma emoção de satisfação e competência ao perceberem o peixe sendo fisgado e o caniço tremulando. Tudo indica que as demais emoções ficavam congeladas, amordaçadas, sem lugar, sem tempo e sem estado no mundo das palavras faladas e, portanto, intraduzíveis, somente transitando em estado bruto e primitivo, “inundado de papa-terras desgraçados”. O pai encontra-se não na forma “como poderia ser realmente”, mas como algo inscrito na realidade psíquica do filho. Então aqui entra a importância do papel da análise. Creio que é através dela, através da escuta da interpretação, que o pequeno paciente vai identificar esse “pai interno” – cujos aspectos foram desorganizadores para seu psiquismo. Essa identificação encontra eco justamente no conceito de Faimberg (1985, 1988) que estamos abordando, o da identificação 358 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 347-368, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 359 Ana Rosa Chait Trachtenberg, Mayra Dornelles Lorenzoni alienante, à medida que suas origens encontram-se na história do outro; portanto, não houve um reconhecimento de um espaço psíquico próprio. O ego do menino fica, assim, submetido ao poder alheio (paterno), uma vez que o pai projeta sobre ele a parte clivada de si mesmo. Sob outro vértice de Faimberg (1988), trata-se de algo ligado ao ódio narcisista o que pode ter levado esse pai à “função de intrusão”, ao expulsar ativamente no filho tudo o que rechaça em si. Essa função participa do processo de identificação alienante que promove, no ego dessa criança, uma espécie de organização estranha que pertence ao outro. O pai não é o único protagonista dessa relação, uma vez que esta, possivelmente, encontra-se inscrita, inconscientemente, em seus próprios sistemas familiares. Dentro dessa perspectiva, pode estar contida a fórmula que define a situação dramática na qual esse pai interno submete para sempre o filho a sua própria história de angústias e de morte. Conseqüentemente, isso cria um estado contraditório de vazio e de “demasiado cheio” no psiquismo dessa criança. O processo de intrusão parece ser o responsável desse demasiado cheio. O pai tem “jogado” ativamente aspectos violentos para dentro do psiquismo de Júnior numa tentativa de manter sua vida psíquica mais ou menos equilibrada. A fórmula correspondente a essa intrusão poderia ser: “A hostilidade contida e a frieza de minha família da infância é uma realidade interna que odeio e a expulso em meu filho”. IDENTIFICAÇÕES TRAUMÁTICAS, CONGELAMENTO E TRANSGERACIONALIDADE Parte II As identificações Traumáticas Congelam o Psiquismo? Ana Rosa Chait Trachtenberg O trabalho que acabamos de ler causa impacto, curiosidade e surpresa, e essas características são algumas de suas virtudes. Reservo-me voltar a falar desse aspecto no final deste comentário. Este trabalho está sustentado, teoricamente, em três eixos básicos: Piera Aulagnier (1975, 1984), Cristopher Bollas (1987) e Haydeé Faimberg (1985, 1988, 2000). Cristopher Bollas é psicanalista de formação no Middle Group, de Londres. Para o presente trabalho selecionou-se o capítulo “Introjeção extrativa”, que está no seu livro A Sombra do Objeto, publicado em Londres, em 1987. Bollas é um discípulo de Winnicott, que foi, para a escola inglesa, o pioneiro na abordagem da intersubjetividade, tão familiar a nós na atualidade. Na primeira parte desse trabalho aparece, com clareza, a patologia da intersubjetividade, no original conceito de Introjeção Extrativa. Parece-me importante sublinhar três aspectos que a abordagem de Bollas sugere: Identificação Projetiva, Introjeção Extrativa e Ação do Outro. A Identificação Projetiva, como todos sabem, trata-se de um primitivo mecanismo de defesa, descrito por Melanie Klein (1946), que ocorre quando o bebê/sujeito necessita esvaziar partes do seu self que resultam intoleráveis dentro de sua mente, e as coloca, violentamente, no interior da mente de outro sujeito. Esse sujeito poderá sentir um vazio dentro de si, um esvaziamento de seu próprio estado mental. Haverá também um estado de fusão e confusão narcísica entre o sujeito que identifica projetivamente (o “autor” da ação) e o sujeito aqui chamado de objeto, ou seja, aquele que recebe essa identificação. Estou me referindo ao que Bion posteriormente chamou de Identificação Projetiva patológica, que coloca destaque no aspecto violento e intrusivo desse mecanismo, que nisso se diferencia da Identificação Projetiva normal ou para fins de comunicação, em que o su360 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 347-368, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 361 Ana Rosa Chait Trachtenberg, Mayra Dornelles Lorenzoni jeito introduz no objeto – outro sujeito – um estado mental, como meio de comunicação, com a finalidade de ser entendido e contido. A fundamental contribuição kleiniana não se ocupou, em seu momento, das repercussões ocorridas na mente do receptor, e é nesse ponto que vemos o ingresso das idéias desenvolvidas por Bollas. O sujeito que é receptor sente-se inundado, passa a carregar um mundo interno alheio, que lhe traz caos, desorganização e vazio. Se observarmos a relação pai/mãefilho e, devido ao desamparo do último, bem como ao aspecto violento dessa intrusão, podemos pensar no alto potencial traumático dessa relação. A ação violenta exercida pelo outro é fundamental para compreendermos alguns estados da patologia do vazio. Bollas postula que cada introjeção extrativa é acompanhada de alguma identificação projetiva correspondente. Ele diz que, “quando uma pessoa tira de outra a psique – Introjeção Extrativa –, deixa em seu lugar um espaço ou um vácuo. Lá deposita seu desespero e vazio em troca daquilo que roubou” (1987, p.203). Bollas também alerta para a necessidade de discriminação, em patologias severas de vazio conseqüentes a atos de expulsão e intrusão exercidos no outro, ou conseqüentes a atos de extração violenta exercidos pelo outro. Ambas, por sua violência, têm caráter traumático. Neste momento, podemos fazer uma conexão entre Bollas e Haydeé Faimberg, com sua famosa “telescopagem de gerações” e “identificação narcisista inconsciente alienante” – esta última abreviada e popularizada como “identificação alienante”. A importante contribuição de Haydeé Faimberg, psicanalista argentina radicada em Paris há várias décadas, qualificou, detalhou, especificou, enriqueceu e colocou esta questão definitivamente no campo da intersubjetividade e da importância do outro. O conceito de Identificação Alienante, no meu entender, está apoiado no de Identificação Projetiva por: (a) realizar-se pela expulsão de conteúdos mentais com o conseqüente uso de outra mente; (b) ser um mecanismo IDENTIFICAÇÕES TRAUMÁTICAS, CONGELAMENTO E TRANSGERACIONALIDADE inconsciente; e (c) ser narcisista e promover a fantasia de fusão entre dois sujeitos. Faimberg integra, com brilhantismo, sua formação na escola argentina à influência da escola francesa, especialmente Piera Aulagnier – matriz de muitos pensadores daquele país – e André Green. Foi especialmente original ao descrever a identificação alienante vinculada à importância do outro no psiquismo do sujeito e, especialmente, num movimento que ocorre entre as gerações: a telescopagem, ou seja, o encaixe de gerações. Podemos discutir se, no material que Mayra coloca tão bem, há uma clínica da transgeracionalidade ou não, se há transmissão patológica de conteúdos psíquicos não elaborados, tais como segredos, situações traumáticas, lutos, crimes hediondos, vergonhas, violências exercidas ou sofridas, etc., através das gerações. Na sua acepção clássica, para falarmos em transgeracional, necessitamos de pelo menos três gerações, que manifestarão de diferentes maneiras essa passagem violenta do trauma não elaborado de uma geração a outra, sucessivamente. Os núcleos traumáticos precoces transgeracionais, como diz Konicheckis (2005, p.31-32), “caracterizam-se pelo fato de que a criança não os experimentou diretamente. [...] Tal como nuvens contaminadas pela radioatividade evocadas por Y. Gampel (2003), os efeitos desses traumas ignoram as limitações tópicas e as fronteiras entre gerações”. No caso apresentado, temos fortes elementos para pensar que, na préhistória de Júnior, em duas gerações, há introjeção extrativa e identificação alienante; portanto, identificações traumáticas e de importantes conseqüências no psiquismo indefeso desse bebê. Júnior não teve acesso ao uso da Identificação Projetiva normal ou comunicacional para ser entendido empaticamente e assim poder utilizar o direito que todos os bebês têm: experimentar, usufruir e se beneficiar da capacidade de rêverie parental. Sua história nos mostra que, ao contrário, ele foi depositário de uma parte da angústia do pai numa completa inversão da linha geracional ou rêverie invertida. Júnior foi obrigado a “conter” a violência desse pai, em vez de 362 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 347-368, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 363 Ana Rosa Chait Trachtenberg, Mayra Dornelles Lorenzoni ser contido na sua violência primitiva, comum a todos os bebês. O exemplo disso são os contos do pai e o jogo do filho. Não aparece no jogo inicialmente, e sim quando uma capacidade simbólica incipiente aparece, depois de ter percorrido uma longa e exitosa trajetória de trabalho analítico. Pode, então, iniciar um processo de descongelamento, representabilidade e liberação desse pedaço da mente paterna metido em sua mente. Entendo que o tema da violência e do trauma, em seu espectro mais amplo – entre indivíduos, entre gerações, nas convulsões sociais, nos holocaustos, nas ditaduras, nas violências de Estado, etc. –, é central para a Psicanálise. Aliás, os estudos da transgeracionalidade iniciaram com observações clínicas dos descendentes de sobreviventes do holocausto, da Shoa. Em várias partes do mundo – Judith Kertenberg, nos Estados Unidos, Yolanda Gampel, em Israel, Faimberg, na França, e Abraham e Torok, também na França, entre outros, – avaliaram o “impacto radioativo” (Gampel apud PUGET, 2005) dos lutos não-realizados das situações-limite dos genocídios, talvez inelaboráveis, nas gerações seguintes. O tema das repercussões da violência social através das gerações é também de nosso interesse, devido aos “holocaustos” da América Latina. O tema dos desaparecidos, por exemplo, tem sido amplamente estudado por psicanalistas da Argentina e do Uruguai. Essas temáticas, surpreendentes e traumáticas, ocorrem na realidade social e na sua interface com os nossos consultórios. O material clínico-literário da primeira parte do presente trabalho, pela surpresa e perplexidade que despertam na contratransferência, e nas contratransferências, num sentido mais amplo, pode e deve ser entendido enquanto potencial traumático para o analista. Via de regra, estão relacionadas a zonas de não-representação psíquica, de vazio mental, de congelamentos, a zonas atingidas por identificações traumáticas, alienantes, introjeções extrativas, etc. Esse trauma contratransferencial abre dois caminhos possíveis: um deles é o da confusão e da paralisia, de onde não surge elaboração, nem para o analista nem para o paciente, gerando um bolsão de estagnação no processo analítico. Outro caminho possível é o da transformação desse IDENTIFICAÇÕES TRAUMÁTICAS, CONGELAMENTO E TRANSGERACIONALIDADE trauma contratransferencial potencial, desse espanto e perplexidade, em curiosidade e desejo de investigar. Parece-me que Júnior e Mayra estão nessa fértil jornada. Considerações Finais Os processos intersubjetivos da introjeção extrativa de Bollas e da identificação narcisista inconsciente alienante da Faimberg são formas denominadas por nós de identificações traumáticas e estão inseridas no contrato narcisista de Aulagnier. José Carlos desenvolveu um caráter obsessivo, através do qual tentava controlar “suas feras pulsionais”, as intensas agressões e crueldades; parece, entretanto, não ter sido suficiente. Através dos contos, tenta liberar as “feras” aprisionadas em sua jaula neurótica. O filho, por sua vez, estava pré-destinado a colocar em cena partes dessa hostilidade e violência cindidas e contidas no psiquismo paterno. Mas que relação tem tudo isso com o congelamento do psiquismo de Júnior? Um pai que não discrimina ele e o filho mantém as portas entre eles permanentemente abertas... compelindo elementos de sua vida psíquica a se alojarem no inconsciente do menino, passando a habitá-lo como um “fantasma”. José Carlos, dono de um mundo interno com partes tão terroríficas, passou a usar o filho como depositário e ator de parte de sua pulsão de morte e de seu sadismo; como uma forma, portanto, de livrar-se de uma porção indesejada de si mesmo. Estamos diante de uma importante vertente transgeracional que denuncia a atividade de um outro tempo, incrustado na mente dessa criança. Esse tipo de transmissão geracional patológica – transgeracional – tem efeitos traumáticos, deixando nesse paciente profundas cicatrizes emocionais, uma vez que gerou um trabalho psíquico precoce, num tempo em que não possuía defesas. Júnior ficou impossibilitado de significar certos acontecimentos, de modo tal que não pôde habilitar outras interpretações cau364 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 347-368, 2005 ÚLTIMA CENA: “Eu estava caminhando num morro perto da minha casa quando vi um lagarto se mexendo. Fiquei apavorado, corri para casa chorando. Ele parecia muito perigoso. Achei que ele ia botar veneno em mim, me espetar e me comer. Mas pensando... pensando melhor... lagarto não come humano. Foi só um grande susto! As crianças têm medos, adultos não. Vou desenhar ele para ti... depois, vamos brincar!?” Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 365 Ana Rosa Chait Trachtenberg, Mayra Dornelles Lorenzoni sais em busca de sentido para a construção de seu ego. Essas vivências adquiriram, assim, um valor patógeno. Ao focalizarmos a atenção para a relação existente entre narcisismo parental e identificações, consideramos que o pai interno de Júnior está inscrito no psiquismo desse filho como um pai que o considera parte de si mesmo. Essas identificações constituem um vínculo entre gerações e se opõem a toda representação. Foram transmissões abusivas, violentas, que bordaram o limite do representável, sem dar acesso a uma história pessoal e a uma temporalidade de acordo com as necessidades do psiquismo dessa criança. Conseqüentemente, ficou impedida de um maior nível de simbolização, sublimação e potencialidade para um viver mais criativo. Podemos pensar numa captura identificatória. Júnior está identificado, inconscientemente, com esse “pai-filho-silencioso” frente a uma família escassamente estruturada e com partes adoecidas, partes mortas (avós com doenças degenerativas), aquele “maldito lado morto! meio pela metade!” Tudo levaria a crer que as identificações traumáticas tenderiam a congelar o psiquismo em um “sempre”. O desafio está lançado! O analista terá de ajudar o paciente a romper com essas identificações defeituosas, traumáticas, pois isso possibilitará inseri-lo em uma nova temporalidade, descongelando o psiquismo e dando início ao processo de historização, consagrado na descoberta do seu próprio desejo e na perspectiva da construção do seu sentimento de identidade e de sua singularidade. IDENTIFICAÇÕES TRAUMÁTICAS, CONGELAMENTO E TRANSGERACIONALIDADE Resumo O trabalho apresenta uma íntima correlação entre o material de sessões analíticas de um menino com diagnóstico inicial de Autismo Atípico e os contos literários escritos e editados por seu pai, sobre os quais o menino não tinha conhecimento antes ou durante o tratamento. Considerações são tecidas a respeito das transmissões psíquicas transgeracionais, ou seja, as identificações traumáticas: o impacto sobre a vida emocional desse pequeno paciente e o seu congelamento psíquico. Embasam este estudo, teoricamente, os conceitos de Introjeção Extrativa de Cristopher Bollas, de Contrato Narcisista de Piera Aulagnier e de Identificação Narcisista Inconsciente Alienante de Haydée Faimberg. Por fim, abordam-se as repercussões contratransferenciais nas identificações traumáticas. Palavras-chave Autismo. Identificação Projetiva. Transgeracional. Transmissão. Trauma. Rêverie. Abstract Trauma Identifications, Freezing and Transgenerationality This paper highlights the very close relationship between psychoanalytic materials gathered in sessions with a boy presenting with a diagnosis of atypical autism and short stories written by his father of which the boy had no knowledge before or throughout the treatment period. The authors reflect on these issues the transgerational pathological transmissions – traumatic identifications – and their subsequent impact on his emotional life, and his psychic frozen. This psychic phenomenology is presented vis-a-vis the theoretical concepts of Cristopher Bollas’ Extractive Identification, Piera Aulagnier’s Narcisistic Contract and Haydée Faimberg’s Alienating Unconscious Narcisistic Identification. Finally, they approach the countertransference repercussions in traumatic identifications. Key-words Autism. Projective Identification. Transgerational. Trasmission. Trauma. Reverie. 366 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 347-368, 2005 Identificaciones Traumáticas, Congelamiento y Transgeneracionalidad El trabajo presenta una intima relación entre el material de sesiones de analisis de un niño con diagnóstico inicial de Autismo Atípico y los cuentos literarios escritos y publicados de su padre, acerca de los cuales el niño no tenia conocimiento antes ó durante el tratamiento. Se tejen consideraciones acerca de la importancia de las transmisiones psíquicas transgeracionales – identificaciones traumáticas – y el impacto sobre la vida emocional del paciente, con su congelamiento psíquico. Esta trabajado teóricamente en base a los conceptos de Introjección Extrativa de Christopher Bollas, Contrato Narcisista de Piera Aulagnier e Identificación Alienante de Haydée Faimberg. Finalmente abordan las repercusiones contratransferenciales en las identificaciones traumáticas. Palabras-llave Autismo. Identificación Proyectiva. Transgeneracional. Transmisión. Trauma. Rêverie. 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Ana Rosa Chait Trachtenberg Rua Dr. Florêncio Ygartua, 391/404 91430-0100 Porto Alegre – RS – Brasil Fone: (0xx51) 3330-4941 Fax: (0xx51) 3330-6453 E-mail: [email protected] Dra. Mayra Dornelles Lorenzoni Rua Quintino Bocaiúva, 694/709 90440-050 Porto Alegre – RS – Brasil Fone: (0xx51) 3332-0001 E-mail: [email protected] 368 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 347-368, 2005 Aline Baümer Psicóloga. Ana Rosa Chait Trachtenberg Médica Psicanalista; Membro Titular em função Didática da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre; Membro Associado da Asociación Psicanalítica de Buenos Aires. Maria Luíza Furtado Kahl Psicóloga; Psicanalista; Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria; Mestre em Filosofia e Doutora em Comunicação e Cultura. A questão da transmissão da herança psíquica entre gerações é um assunto bastante recorrente na psicanálise contemporânea. A transgeracionalidade, transmissão da herança psíquica de maneira patológica, mais especificamente, é o viés que este trabalho pretende abordar. Salvador Dalí, em sua obra Le Cabinet Antropomorfique, utilizou gavetas inseridas em um corpo humano para simbolizar as teorias da psicanálise de Freud. Disse, certa vez, que Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 369 Aline Baümer, Ana Rosa Chait Trachtenberg, Maria Luíza Furtado Kahl Transgeracionalidade: a patologia da transmissão psíquica entre gerações TRANSGERACIONALIDADE: A PATOLOGIA DA TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES a única diferença entre a Grécia imortal e a época contemporânea era Freud, que descobriu que o corpo humano, puramente neoplatônico à época dos gregos, era repleto de gavetas secretas que somente a psicanálise seria capaz de abrir. (DALÍ apud SILVA, 2003, p.19). Tais gavetas são representações dos conteúdos secretos da psique de cada sujeito, recheadas de conteúdos que foram produzidos pelo próprio indivíduo e também por conteúdos passados a ele através das gerações, por meio da cultura, das tradições. A escultura de Dalí, assim, possibilita uma metáfora da transmissão psíquica, pois mostra um corpo sem rosto, sem identidade, repleto de gavetas, de compartimentos secretos, de criptas. 1 Uma figura humana seccionada, que nos convida a pensar nos conteúdos que são transmitidos entre e através das gerações, bem como na maneira como essa transmissão psíquica pode influir no psiquismo dos sujeitos. Se, como disse Dalí, é à luz da psicanálise que se podem investigar os conteúdos secretos das gavetas de cada um, é através de novas leituras acerca da transmissão psíquica, principalmente da transgeracionalidade, que podemos obter novas concepções sobre as doenças psíquicas. Antecedentes Freudianos para a Compreensão da Transgeracionalidade Em Estudos sobre a Histeria, Freud nos aponta que não apenas os caracteres genéticos são passíveis de ser transmitidos, mas também os psíquicos poderiam ser perpassados. Partindo do princípio de que existe um contexto subjetivo em que o herdado tem papel fundamental, Freud, através de Totem e Tabu (1913), nos apresenta importantes pontos que corroboram para o entendimento da transgeracionalidade. Através do tabu, código de leis – não escrito – mais antigo da humanidade que detinha todas as regras sociais vigentes, das quais evoluíram as 1 Conceito que será abordado mais adiante. 370 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 369-394, 2005 2 As questões relativas à identificação serão tratadas adiante. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 371 Aline Baümer, Ana Rosa Chait Trachtenberg, Maria Luíza Furtado Kahl atuais, e do maná, poder a ele atribuído, podemos perceber que questões como sagrado versus impuro e proibição versus violação atuaram, entre outras, como agentes constituintes da psique humana. Todos os que violassem os códigos do tabu eram castigados e acabavam, eles mesmos, se tornando um tabu, pois representavam a própria transgressão realizada. O medo e a necessidade de apaziguamento dos fantasmas, ou seja, dos mortos da mesma tribo ou de tribos inimigas, demonstram a ambivalência de sentimentos, pois o temor da vingança do fantasma se coloca independentemente da relação com o morto. Ainda, o poder de contágio e destruição atribuído ao totem, capaz de adoecer ou até mesmo matar aquele que o tocasse, remete a um tipo de transmissão pelo qual os espaços psíquicos são abolidos, fazendo, assim, com que o tabu funcione como um intermediário entre indivíduos. Dessa maneira, existem duas vias de transmissão: uma passa pela cultura e pela tradição, e seu suporte é o aparelho cultural e social que garante a continuidade de geração a geração; a outra é formada pela “parte ‘orgânica’ da vida psíquica das gerações ulteriores” (FREUD, 1913), na qual as proibições passam a ser parte integrante do inconsciente. Nas últimas páginas de Totem e Tabu, Freud levanta a hipótese de que essas duas vias se encontram para formar a extensão psíquica da cultura e a inclusão social na psique. Em Sobre o Narcisismo: uma introdução, Freud articula o conceito de identificação, fundamental para a compreensão da transgeracionalidade, pois, para haver transmissão, existe a necessidade de haver identificação entre os envolvidos.2 A questão da influência do psiquismo dos pais sobre a constituição do psiquismo infantil e da transferência do narcisismo infantil dos pais ao bebê num ato de reivindicação ao filho, que carrega a suposta obrigação de realizar em nome dos pais os desejos a que tiveram de renunciar, demonstram essa questão. A transferência se organiza a partir do que falta e falha: o narcisismo da criança apóia-se sobre o que falta na realização dos “sonhos de desejo” dos pais. Freud coloca, também, que o TRANSGERACIONALIDADE: A PATOLOGIA DA TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES indivíduo é, em si mesmo, seu próprio fim, mas se encontra vinculado a uma corrente geracional, como elo de transmissão, sendo beneficiário e herdeiro da mesma. O indivíduo leva realmente uma existência dúplice: uma para servir às suas próprias finalidades e a outra como um elo numa corrente, que ele serve contra sua vontade ou pelo menos involuntariamente. (FREUD, 1914). Em Luto e Melancolia, Freud segue os estudos acerca do conceito de identificação, e nos aponta para a identificação narcísica como centro das estruturações narcisistas. A melancolia é tida como resultante de um luto por uma perda de objeto escolhido em base narcísica e ambivalentemente amado. Existe uma relação de identificação narcísica com o objeto perdido, e daí a falta desse ser tão dolorosa. A libido, antes investida em objetos, agora é direcionada ao próprio ego, gerando auto-acusações e sentimentos de menos-valia. Esse entendimento é importante para o estudo da transgeracionalidade, pois a questão é tratada no âmbito da perda de um objeto escolhido em base narcísica e ambivalentemente amado, o que geraria a necessidade de ativar o mecanismo da incorporação para negar a mesma, através de um luto indizível.3 O fenômeno de uma “mente grupal”, apresentado em Psicologia das Massas e Análise do Ego, é trazido por Freud como decorrente de algo comum entre indivíduos, em um nível de reciprocidade tal que o grupo é capacitado a induzir emoções em um grau que dificilmente seria atingido individualmente. A idéia de contágio, antes referida em Totem e Tabu, retorna para explicar como as emoções são transmitidas aos membros do grupo, contagiando-os um a um, como se uma compulsão a fazer o mesmo que os outros integrantes se impusesse, sob pena de quebrar a harmonia do todo. Esse contágio emocional que conduz à imitação é provocado pela 3 Essa questão será analisada adiante. 372 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 369-394, 2005 O problema pareceria ainda mais difícil se tivéssemos razões para admitir a existência de impulsos mentais que pudessem ser tão completamente suprimidos que deles não restasse nenhum traço. Mas isso não existe. Por mais forte que seja a supressão, uma tendência jamais desaparece a ponto de não deixar atrás de si um substituto qualquer que, por sua vez, torna-se o ponto de partida de certas reações. É lícito, portanto, supor que não existe processo psíquico mais ou menos importante que uma geração seja capaz de ocultar àquela que a segue. (FREUD, 1913). Freud, portanto, introduz a idéia de uma formação do inconsciente na própria transmissão do recalcamento, e não apenas dos conteúdos Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 373 Aline Baümer, Ana Rosa Chait Trachtenberg, Maria Luíza Furtado Kahl influência sugestiva do grupo. Laços de amor e de identificação com o líder e com os outros membros do grupo funcionam também como base de sustentação para a influência sugestiva grupal. Esses pontos auxiliam na compreensão da transmissão psíquica, pois abarcam tanto a questão da idéia de transmissão por contágio como a questão do grupo e de como é difícil para um integrante do mesmo, principalmente se em posição de menos poder, ir contra o que o mesmo determina, seja por identificação, seja por desamparo, seja por submissão. Retrocedendo um pouco, lembremos do artigo de 1914, em que Freud fala da transferência do narcisismo infantil dos pais ao bebê. A família funciona como um grupo, logo, a questão dos laços de amor e de identificação com o líder também se coloca. O pai ou a mãe funcionam como líderes, e cabe à criança não quebrar a harmonia grupal, familiar, restando a ela receber o narcisismo infantil dos pais. O vínculo emocional e o desamparo da criança frente aos seus genitores parecem constituir, para Freud, os fundamentos mais primitivos dos processos de identificação, dos quais emanam as transmissões inconscientes de um indivíduo para outro e de geração para geração, formando a base para o funcionamento intrapsíquico. Ainda em Totem e Tabu, nos perguntamos sobre o que se transmite, e temos a resposta: o crime e a culpa pelo assassinato: TRANSGERACIONALIDADE: A PATOLOGIA DA TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES recalcados. O que se transmite é um traço, mas não só um traço. Lacan, no Seminário sobre a Carta Roubada (1966 apud KAËS et. al., 2001, p.56), retomou essa idéia: a carta sempre chega a seu destinatário. Não há nada que seja abolido e que não apareça, algumas gerações depois, como estigma, como impensado, ou seja, como signo do que não pôde ser transmitido na ordem simbólica. Nada do que foi retido permanece totalmente inacessível para a geração seguinte ou para aquela que a esta se segue. Deixará traços, pelo menos em sintomas, que continuarão a ligar gerações entre si, num sofrimento cuja motivação, mantida, lhes será desconhecida. No entanto, ainda resta a questão de compreender os agenciamentos psíquicos que fazem com que um sujeito determinado, e não qualquer um, se constitua seu portador e fixe nesse lugar, com o acordo inconsciente dos outros, as amarras de seu destino e seu próprio fim. A carta sempre chega a seu destinatário, mesmo que este não tenha sido constituído como tal por seu remetente: o traço, a marca segue seu caminho através dos outros até que um destinatário se reconheça como tal. Com Moisés e o Monoteísmo, Freud (1939) diz que a herança arcaica do homem não engloba apenas disposições, mas também conteúdos, traços mnêmicos do que foi vivenciado por gerações anteriores. Dessa maneira, tanto a extensão como a importância da herança arcaica seriam significativamente ampliadas. Fica claro, desse modo, que a questão da transmissão da herança psíquica transversalizou a obra freudiana, principalmente através de sua teoria de herança filogenética, a qual ele não abandonou em nenhum momento de seus escritos. O sujeito é entendido como herdeiro genético e também como herdeiro psíquico de sua linhagem parental, e desde cedo sofre influências dessas duas ordens, concomitantemente à sua formação egóica. Como essas duas vertentes vão se conciliar, a priori não se sabe, mas se julga que o resultado de sua união e de sua mútua construção, e a elaboração através de seus intermediários, irão formar o sujeito. A relação desse 374 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 369-394, 2005 Introdução aos Conceitos (Pertinentes à Transgeracionalidade) de Abraham e Torok Após breve percurso por alguns textos freudianos a fim de se obter entendimento sobre o modo como Freud pensava a questão da herança psíquica e de sua transmissibilidade, chega o momento da introdução de alguns conceitos da obra de Nicolas Abraham e Maria Torok, psicanalistas húngaros que elaboraram conceitos-chave na clínica psicanalítica contemporânea, tais como os efeitos dos segredos de família atravessando gerações (clínica do fantasma ou assombração), o luto impossível de uma pessoa significativa (tornando-se patológico) e o enterro intrapsíquico de uma vivência vergonhosa e indizível (cripta5 ). (CORREA, 2000) Ferenczi é a raiz mais importante da obra de Abraham e Torok, principalmente pelos conceitos de introjeção e incorporação, fundamentais para o entendimento da questão da cripta que se aloja no seio do Ego e pela concepção de trauma.6 4 GOETHE. Fausto. [s.d.] Parte I, cena I. Para Derrida, criptar é cifrar, operação simbólica ou semiótica que consiste em manipular um código secreto (apud LANDA, 1999, p.300). 6 O conceito de trauma para Ferenczi está implicado na sua idéia da “máquina de calcular”. A hipótese dessa máquina se torna a resposta à questão de como um desprazer pode receber um sim: “se o reconhecimento do ambiente hostil representa um desprazer, seu não reconhecimento comporta geralmente ainda mais desprazer, o menos desprazeroso se torna então relativamente prazeroso e pode ser afirmado como tal” (1974 apud LANDA, 1999, p.203). Ainda a noção de identificação com o agressor, a noção de clivagem e a negação pelos adultos da palavra da criança são fundamentais para a questão do trauma na concepção ferencziana (LANDA, 1999, p.215). 5 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 375 Aline Baümer, Ana Rosa Chait Trachtenberg, Maria Luíza Furtado Kahl com os meios social, familiar, cultural e biológico irá adicionar-se como mais um constituinte e, assim, mais um determinante na sua história como indivíduo, delimitando suas estruturas de defesa. Se esse indivíduo é o destinatário da carta enviada por um antepassado, podemos pensar que algo na regulação de suas instâncias psíquicas falhou, não reconheceu como nãoseu ou identificou-se com o conteúdo da carta. “Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu” (GOETHE apud SILVA, 2003, p.25).4 TRANSGERACIONALIDADE: A PATOLOGIA DA TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES Quanto à introjeção,7 sabe-se que é essencial para o problema do luto. Segundo Ferenczi, ela é um mecanismo que permite “estender ao mundo exterior os interesses primitivamente auto-eróticos, incluindo os objetos do mundo exterior no Ego” (FERENCZI, 1909 apud ABRAHAM; TOROK, 1987, p.221), concebendo, com isso, que todo amor objetal (ou toda transferência) se dá como um alargamento do Ego, ou seja, como uma introjeção. Sendo a “doença do luto” um tema muito recorrente em Abraham e Torok, a diferenciação entre introjeção e incorporação se faz pertinente. Introjeção, por conseguinte, se define como um processo de inclusão – a propósito de um “comércio” objetal – do Inconsciente com o Ego. A perda do objeto não seria capaz de acabar com esse processo, posto que a aspiração da introjeção não é da ordem da compensação, mas da ordem do crescimento, buscando introduzir no Ego a libido inconsciente, anônima ou recalcada, alargando, enriquecendo o Ego. “Não se trata puramente de introjetar o objeto, e sim do conjunto das pulsões e de suas vicissitudes, cujo objeto é o próprio contexto e mediador” (ABRAHAM; TOROK, 1987, p.222). A maior parte das características atribuídas à introjeção valem, no entanto, para a incorporação – mecanismo que supõe, para entrar em ação, a perda de um objeto. Tal mecanismo, contudo, deve entrar em ação antes mesmo que os desejos que o concernem tenham sido liberados. Como forma de compensação do prazer perdido e da introjeção ausente, ocorre a instalação do objeto proibido no interior do Ego. Essa é a incorporação propriamente dita, que pode operar no modo da representação, do afeto ou de algum estado do corpo, ou utilizar dois ou três modos simultaneamente. Independentemente do instrumento, ela se distingue sempre da introjeção, processo progressivo, em nome de seu caráter instantâneo e mágico (da ordem da fantasia), no qual, na ausência do objeto-prazer, obedece ao princípio do prazer e opera por processos semelhantes ao da realização alucinatória. 7 Ferenczi é tido como o pai do conceito de introjeção (1909). 376 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 369-394, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 377 Aline Baümer, Ana Rosa Chait Trachtenberg, Maria Luíza Furtado Kahl O objetivo, no final das contas, é o de recuperar, através de um modo mágico e oculto, o objeto que, por qualquer razão, não cumpriu sua missão: mediatizar a introjeção do desejo. Uma vez recusado o veredicto do objeto e da realidade, a incorporação, bem como o desejo de introjetar dissimulado, deve escapar a todo olhar estranho, inclusive o do próprio Ego. Para sua sobrevivência, o segredo é obrigatório, o que consta como uma diferença a mais com relação à introjeção, que opera às claras. Enquanto a introjeção das pulsões põe fim à dependência objetal, a incorporação do objeto cria ou reforça a situação oposta; o objeto incorporado exatamente no lugar do objeto perdido lembrará sempre (em nome da sua existência e pela alusão de seu conteúdo) alguma outra coisa perdida, ou seja, o desejo atendido por recalcamento. “Monumento comemorativo, o objeto incorporado marca o lugar, a data, as circunstâncias em que tal desejo foi banido da introjeção: quantos túmulos na vida do Ego” (ABRAHAM; TOROK, 1987, p.223). A questão da incorporação, tão importante para o conceito da cripta, faz-nos pensar que não poderia ser outro o processo responsável por colocar a cripta no seio do Ego, por assim dizer, pois é justamente ela o mecanismo mais primitivo de manutenção egóica. Ligada à questão oral, ao alimento, às representações pré-verbais, é lógico pensarmos ser esse o mecanismo que atua quando acontecimentos traumáticos, perdas, lutos, vergonhas, enfim, questões não passíveis de serem verbalizadas pelo sujeito, negadas antes mesmo da liberação de seus afetos, acontecem. São as perdas narcísicas que têm a incorporação como destino – perdas que não podem, por alguma razão, se confessar enquanto perdas. Nesse caso, a impossibilidade de introjeção, com sua recusa de luto, chega a proibir até que se faça uma linguagem, que se signifique que se está inconsolável. Na falta desse recurso, a única opção possível é a de fingir que nada aconteceu, que nada se perdeu. Assim, todas as palavras que não puderam ser ditas, todas as cenas que não puderam ser rememoradas, serão engolidas, assim como, ao mesmo tempo, o traumatismo, causa da perda. TRANSGERACIONALIDADE: A PATOLOGIA DA TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES “Engolidos e postos em conserva” (ABRAHAM; TOROK, 1987, p.249). O luto indizível instala no interior do sujeito uma sepultura secreta. Na furna repousa, vivo, reconstruído a partir de lembranças de palavras, de imagens e de afetos, o correlato objetal da perda, enquanto pessoa completa, com sua própria tópica, bem como os momentos traumáticos – efetivos ou supostos – que haviam tornado a introjeção impraticável. Criou-se, assim, todo um mundo fantasístico inconsciente que leva uma vida separada e oculta. Acontece, entretanto, que, por ocasião das realizações libidinais, “à meia-noite”, o fantasma da cripta vem assombrar o guardião do cemitério, fazendo-lhe sinais estranhos e incompreensíveis, obrigando-o a realizar atos insólitos, infligindo-lhe sensações inesperadas. (ABRAHAM; TOROK, 1987, p.249). A hipótese de Abraham e Torok a respeito da cripta inicia, então, pelo fato de que, cada vez que uma incorporação é evidenciada, ela deve ser atribuída a um luto vergonhoso que, aliás, apenas ocorreria depois de um estado de ego acuado, depois de uma experiência objetal vergonhosa, traumática, ou seja, depois de um fato acontecido, de um desejo realizado (contrariamente à histeria). É isso que a cripta perpetua. Não existe cripta que não tenha sido precedida por um segredo partilhado. Na clivagem que se segue a um choque, as partes se desenvolvem independentemente, “uma entre elas fazendo-o sob a égide do segredo, o que nas considerações de Nicolas Abraham e de Maria Torok será a característica mesma da incorporação” (LANDA, 1999, p.208). Ao sujeito criptófaro,8 trata-se de guardar seu segredo, de cobrir sua vergonha. A solução do sujeito criptófaro será anular o efeito da vergonha, assumindo às ocultas ou às claras a significação própria das palavras da vergonha (lembremos do artigo de Freud de 1914 e da questão do desamparo da criança frente aos pais, e de sua posição perante agressores, identificando-se com tais para restabelecer sua posição de ternura). 8 A palavra criptófaro não é encontrada facilmente nos dicionários, é integrada pela raiz cripta que significa o que está velado. Criptófaro é aquele que porta em si uma cripta, uma sepultura (CORREA, 2000, p.10). 378 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 369-394, 2005 No criptófaro, é um desejo já realizado e sem desvios que se encontra enterrado, tão incapaz que ele é de cair no esquecimento. Nada poderia ser feito para que ele não se realize e que a lembrança se apague dessa realização. O passado é, pois, presente no sujeito; como um bloco de realidade, ele é visado como tal nas denegações e retratações. Se essa realidade não pode morrer, ela tampouco pode pretender voltar à vida. O cortejo de personagens internas está lá para impedi-lo (ABRAHAM; TOROK, 1987 apud LANDA, 1999, p.200). Para Derrida, a cripta se constrói na violência, através de golpes silenciosos e de traumas pré-verbais. A cena traumática, assim, seria encriptada com todas as suas forças libidinais, com sua contradição que, pela oposição mesma dessas forças, como dos pilares, das vigas, das travessas, dos muros de sustentação, escora a resistência interna do jazigo, com seus poderes de sofrimento intolerável apoiados em um gozo indizível, interdito, em um lugar que não é simplesmente o inconsciente, mas o ego (DERRIDA apud LANDA, 1999, p.273). 9 O fantasma, objeto incorporado, poderia, na verdade, ser chamado de zumbi, pois sua característica é a de um morto-vivo: “é preciso guardar vivo aquilo mesmo que provoca o pior sofrimento [...] o recalcamento instala no inconsciente o que tem para o ego o aspecto de um cadáver delicioso” (DERRIDA apud LANDA, 1999, p.298). Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 379 Aline Baümer, Ana Rosa Chait Trachtenberg, Maria Luíza Furtado Kahl A incorporação, contudo, não passa de uma fantasia que tem por objetivo dar segurança ao ego, quando a realidade psíquica, no entanto, é completamente outra. As palavras, as frases indizíveis e ligadas a lembranças de grande valor libidinal e narcísico não se acomodam à sua exclusão. As palavras indizíveis postas em cripta não cessam de tentar voltar à tona. Pode-se sustentar, portanto, que toda fantasística advinda da incorporação do fantasma9 (o objeto incorporado) busca reparar uma ferida real que afetou o objeto ideal, tentando fazer com que nenhum trauma tenha ocorrido ou que nenhum trauma tivesse o que abalar. TRANSGERACIONALIDADE: A PATOLOGIA DA TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES Cabe, também, esclarecer o conceito de Realidade10 para Abraham e Torok. Para eles, o conceito metapsicológico de Realidade remete, no aparelho psíquico, ao lugar onde o segredo está escondido, enterrado. Assim, ela se define como o que é recusado, mascarado, denegado como realidade, como o que não deve ser conhecido. Em suma, em uma palavra, definida como um segredo (LANDA, 1999, p.217). Considerando os trabalhos de Ferenczi sobre o trauma, a “máquina de calcular” sofre uma pane. O choque da perda não permite mais contar o mundo nem contar com o mundo. A magia incorporativa restabelece a lei do tudo ou nada: tudo permanece sem mudança porque nada aconteceu. Essas considerações permitem pontuar algumas precisões no conceito de cripta: Na tópica, esta cripta corresponde a um lugar definido. Não é nem o Inconsciente dinâmico nem o ego da introjeção. Seria antes como que um enclave entre os dois, espécie de Inconsciente artificial, localizado no seio do ego. A existência de tal tumba tem por efeito obturar as paredes semipermeáveis do Inconsciente dinâmico. Nada deve filtrar para o mundo exterior. (ABRAHAM; TOROK, 1987 apud LANDA, 1999, p.218). Derrida auxilia: A cripta não é, pois, um lugar natural, mas a história marcante de um artifício, uma arquitetura, um artefato: de um lugar compreendido em um outro, mas rigorosamente separado dele, isolado do espaço geral por tabiques, muros, enclave. Para lhe substituir a coisa. Construindo um sistema de paredes, com suas faces interna e externa, o enclave críptico produz uma clivagem do espaço geral, no sistema reunido de seus lugares, na arquitetônica de sua praça aberta em seu interior e ela mesma limitada por uma parede geral, em seu foro. No interior desse foro, praça de livre circulação para as trocas de discurso e de objetos, 10 Escrito com letra maiúscula por ser um conceito metapsicológico, diferenciando-a da realidade de senso comum. 380 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 369-394, 2005 A condição para que o mecanismo de incorporação se realize e instaure, então, a cripta no seio do Ego,11 pode ser esclarecida a partir de duas questões: “como as palavras da introjeção chegam a faltar?” e “por que essa urgência que as chama?”. Segundo Abraham e Torok, “só pode se tratar da perda súbita de um objeto narcisicamente indispensável, quando então essa perda interdita a comunicação. Em qualquer outro caso, a incorporação não teria razão de ser” (ABRAHAM; TOROK, 1987 apud LANDA, 1999, p.227), já que, como dito anteriormente, a incorporação, para Abraham e Torok, surge como um recurso mágico que tem por finalidade negar a situação traumática na sua totalidade. É nos casos de lutos indizíveis, inomináveis, que as tumbas, as criptas se colocam, secretamente, no interior do ego, como esperança de restauração psíquica. Somado a isso, a questão de que a cripta indica ou que um desejo foi realizado, ou que um trauma realmente aconteceu, ou que a vergonha realmente precisa ser acobertada (ou todos esses exemplos juntos) aponta para 11 Segundo Derrida (apud Landa, 1999, p. 299), o Ego é o guardião do cemitério. A cripta é encerrada nele, porém como um lugar estranho, interdito, excluído. Ele não é o proprietário daquilo que ele tem a guarda. Ele faz apenas o papel de proprietário. Anda ao redor e sobretudo emprega todo o seu conhecimento dos lugares para desviar os visitantes. “Ele se mantém plantado lá para vigiar as idas e vindas da família próxima que pretende – por diferentes razões – ter acesso à tumba. Se ele consente introduzir os curiosos, os detetives, será para melhor lhes arrumar falsas pistas e tumbas fictícias” (Abraham, 1972, apud Landa, 1999, p.229). Segundo os autores Abraham e Torok, a cripta localiza-se no sistema pré-consciente – consciente. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 381 Aline Baümer, Ana Rosa Chait Trachtenberg, Maria Luíza Furtado Kahl a cripta constrói um outro foro: fechado, porém no interior de si mesmo, interior secreto no interior da grande praça, mas ao mesmo tempo exterior a ela, exterior no interior. Qualquer coisa que se escreva sobre elas, as superfícies parietais da cripta não separam simplesmente um foro interior de um foro exterior. Elas fazem do foro interior um foro excluído no interior do de dentro. Tal é a condição, tal o estratagema para que o enclave críptico possa isolar, proteger, disfarçar, manter ao abrigo de toda penetração, de tudo o que de fora possa se infiltrar com o ar, a luz ou o ruído, o olhar ou a escuta, o gesto ou a palavra. (DERRIDA apud LANDA, 1999, p.272). TRANSGERACIONALIDADE: A PATOLOGIA DA TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES a fragilidade real do ego, que necessitaria de uma profunda restauração, caso o material encriptado, o fantasma, assim não estivesse guardado, assim não estivesse escondido. A clivagem ocorre porque o trauma é forte demais para o sujeito, mas a cripta não fica para sempre escondida. Remetendo ao capítulo anterior, não há nada que uma geração consiga esconder completamente daquela que a ela sucede (FREUD, 1913). Transgeracionalidade Após deixarmos claras as principais raízes da transgeracionalidade, através de Freud e de Abraham e Torok, partimos, delineando-nos em determinados autores12 e remontando aos capítulos anteriores, para a questão propriamente dita. O primeiro ponto é deixar clara a diferença entre intergeracionalidade e transgeracionalidade, duas modalidades de transmissão de herança psíquica de uma geração para outra. A intergeracionalidade é a transmissão psíquica que acontece entre gerações, havendo uma distância mantida e o respeito aos espaços psíquicos de cada indivíduo, o que permite, assim, que haja uma transformação do material que é transmitido e que a subjetividade dos sujeitos seja respeitada. Na intergeracionalidade, o sujeito não é tido como um “escravo”, pois ele tem meios para, pelo trabalho psíquico, elaborar o material recebido através da transmissão, de modo a conduzi-lo a uma transformação e a uma diferenciação, a “uma evolução entre o que é transmitido e o que é herdado” (TRACHTENBERG, 2002). Isso permite que cada geração possa situar-se em relação às outras com identidade própria, sendo um elo entre outras gerações, e não a pura repetição do traumático de uma. A frase de 12 Os autores utilizados para a compreensão da transgeracionalidade, nesse trabalho, são: Trachtenberg, Faimberg, Aulagnier, Kaës, Granjon, além dos clássicos Freud, Abraham, Torok e Ferenczi, que, embora não tenham falado sobre transgeracionalidade, precisam ser reportados a fim de que possamos compreender os antecedentes da questão, bem como os conceitos a ela ligados. 382 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 369-394, 2005 13 Ler Freud, Luto e Melancolia (1917), ou revisar primeira parte deste trabalho. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 383 Aline Baümer, Ana Rosa Chait Trachtenberg, Maria Luíza Furtado Kahl Goethe, citada por Freud em Totem e Tabu, ilustra bem a intergeracionalidade: “Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu”, ou seja, recebe a herança psíquica e dá a ela características e trabalho psíquicos teus para que ela seja tua. Assim, concebe-se que a intergeracionalidade é uma transmissão psíquica estruturante, a partir da qual o sujeito pode, através de fantasias, identificações, etc., organizar sua “história familiar, um relato mítico, do qual cada indivíduo pode tomar os elementos necessários para a constituição de sua novela individual neurótica” (TRACHTENBERG, 2002). A transgeracionalidade, objeto principal deste trabalho, em contrapartida, é a patologia da transmissão psíquica entre gerações, pois acontece através dos sujeitos e das gerações, não respeitando subjetividades e espaços psíquicos, impondo ao receptor o seu material psíquico em estado bruto, encriptado. Segundo Abraham e Torok, em situações em que um trauma real aconteceu, e o sujeito, através do mecanismo da incorporação, criou uma cripta em seu interior, existe a necessidade, por parte do mesmo, de livrar-se desse material, como meio de livrar-se dos fantasmas da cripta, que, como dito no capítulo anterior, assombram o indivíduo. A transgeracionalidade pode, para alguns estudiosos, tais como Kaës e Silva, ser entendida como a transmissão da cripta, detentora do material bruto, dos afetos, das fantasias do trauma ocorrido e que se encontram nela enquistados. O indivíduo expulsa de dentro de si seu próprio fardo, bem como as partes alienadas de si mesmo, e as coloca em alguém narcisicamente selecionado da geração seguinte.13 É através do mecanismo de identificação projetiva que a geração precedente irá transmitir a cripta. A geração receptora, no entanto, precisa identificar-se com a que a precede, a fim de que receba esse material. A geração que transmite “liberta-se” através da identificação projetiva, enquanto que a receptora é como que escravizada, pois esta, vivendo uma história que ao menos em parte não é sua, acaba por ter parte de seu próprio TRANSGERACIONALIDADE: A PATOLOGIA DA TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES psiquismo alienado. Haydée Faimberg (2001, p.131) intitula esse fenômeno de telescopagem de gerações, o qual ela exemplifica com o modelo das bonecas russas, em que uma cabe dentro da outra, representando o material psíquico que habita o interior de outro ser que não o seu dono original. A questão das identificações alienantes, de Piera Aulagnier (apud KAËS, 2001, p.36), corrobora ainda com a questão da transgeracionalidade, posto que o material transmitido, por ser do sujeito que o transmite, aliena, da sua própria psique, o receptor. Na transmissão alienante, os pais perdem a função de fiadores, para a criança, do valor de investigação das verdades psíquicas e ocupam seu lugar. A criança, assim, fica sujeita ao que os pais dizem ou calam, passando a depender, de maneira paradoxal, para sua própria sobrevivência psíquica, dessa versão narcísica fundadora que é mantida em silêncio pelos pais, perdendo assim o livre acesso à interpretação de seu próprio psiquismo. (FAIMBERG, 2001, p.136). Freud, em 1921, citava o amor e a hipnose como resultantes da idealização do objeto, quando a libido narcísica transborda para o objeto, passando a ser um sucedâneo de algum inatingido de nós mesmos, fazendo prevalecer uma sujeição humilde ao objeto amado. No amor, há uma identificação com o objeto com cujas propriedades o ego pode enriquecer-se, pois o introjetou em si. Entretanto, na fascinação, ou servidão, tanto como na hipnose, o ego empobreceu-se, substituiu o seu constituinte mais importante pelo objeto. A hipnose conta com um elemento fundamental para o seu êxito: a paralisia – derivada da relação entre alguém com poderes e alguém que está sem poderes e desamparado. O vínculo emocional e o desamparo da criança frente aos seus genitores parecem, assim, para Freud, constituir os fundamentos mais primitivos dos processos de identificação, de onde emanam as transmissões inconscientes de um indivíduo para outro e de geração para geração, formando a base para o funcionamento intrapsíquico. (TRACHTENBERG, 2002). Assim, através dos conceitos de identificação projetiva, identificação 384 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 369-394, 2005 Na geração receptora, encontramos o impensável, o negativo, o processo de segredar, os restos insensatos, os passados em silêncio, as histórias vazias. Estará fundada, dessa forma, a cadeia traumática transgeracional. (TRACHTENBERG, 2002) A questão da transmissão psíquica, assim, torna-se central no grupo familiar e diz respeito a cada um e ao conjunto das relações geracionais grupais, já que a existência de cada um no grupo familiar está fundada no lugar oferecido e ocupado na cadeia das gerações (GRANJON apud CORREA, 2000). Remontando a Ferenczi (apud TRACHTENBERG, 2001), este descreve a posição infantil de submissão da criança ao adulto, justificando o fato de que ela se encontra altamente sugestionável.15 Como a criança não pode abrir mão da ternura, se identifica mesmo em situações de agressão. Frente a situações traumáticas, então, a criança não se defende. Sua personalidade fracamente desenvolvida não permite a defesa, e sua proteção passa a ser a identificação, tomando a realidade dura, exterior, como sua, tornando-a parte de seu próprio psiquismo. Por isso ela aceita a cripta, submissa que 14 15 Anteriormente citado mencionando Freud e Ferenczi. Ainda, Freud nos artigos de 1914 e 1921. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 385 Aline Baümer, Ana Rosa Chait Trachtenberg, Maria Luíza Furtado Kahl e cripta, passa-se a compreender como funciona o mecanismo da transgeracionalidade: o portador da cripta tem necessidade de livrar-se dela. Para tanto, através da identificação projetiva, transmite seu legado traumático e não elaborado ao receptor, que, devido à identificação, dependência, desamparo e posição de submissão inerente ao ser humano infantil, recebe o material como meio de manter a harmonia familiar, grupal, não indo contra o líder, detentor do poder e emissor, assumindo o papel a ele designado para restabelecer sua posição de ternura infantil.14 A transgeracionalidade, assim, impele as gerações a um sintoma de repetição, pois o mesmo material não elaborado, indizível, irá assombrar mais de uma geração, gerando sintomas. TRANSGERACIONALIDADE: A PATOLOGIA DA TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES está em relação ao adulto bem como identificada com o mesmo. A necessidade de ocupar o lugar oferecido na cadeia das gerações se faz presente. A patologia da transmissão, portanto, insere a geração receptora no traumático da geração precedente, fazendo com que se cumpram, para ela, várias funções, tais como ocupar o lugar dos mortos, identificando-se com eles, para satisfazer a mãe, por exemplo, ou servindo de continente para as angústias excessivas do adulto, invertendo as posições na linha geracional, transformando-se – outro exemplo – em pai de seus pais. Fica claro, nesse momento, o quão pode a patologia ser alienante. Kaës (2001) coloca que a questão da fundação do inconsciente do sujeito se dá através da intersubjetividade, do desejo do outro. Desse modo, podese pensar que o lugar que esse outro concede é o único lugar a ser ocupado pelo sujeito que está se constituindo, ou que, ao menos, é praticamente impossível não ocupá-lo. Aponta ainda que os conteúdos passíveis de serem transmitidos são as configurações de objetos, ou seja, os afetos, as representações e as fantasias; objetos providos de seus enlaces e que incluem sistemas de relações de objeto transmitidos através da transmissão transpsíquica,16 que não respeita os limites e os espaços subjetivos, predominando, assim, apenas as exigências narcísicas do transmissor.17 Convém pontuar que Totem e Tabu traz, na idéia de transmissão por contágio, do Maná, um exemplo de transmissão transpsíquica, posto que limites e espaços psíquicos não são respeitados. Trachtenberg (2001) coloca que, ao pensarmos numa linha geracional, observamos que, através da transmissão transpsíquica de um segredo, de 16 Convém dizer que transgeracionalidade é a patologia da transmissão da herança psíquica entre gerações, enquanto que a transmissão transpsíquica é transmissão entre sujeitos, supondo a abolição dos limites e dos espaços subjetivos. 17 Kaës distingue duas formas de transmissão: a já citada transpsíquica e a intersubjetiva, que aponta para conteúdos que podem ser transpostos e transformados de um indivíduo a outro ou de geração a geração, sendo um tipo de transmissão que transita num espaço subjetivo, em que são respeitados os espaços individuais e enunciadas as proibições fundamentais, possibilitando a cada sujeito do grupo familiar a atividade de representação, como o Complexo de Édipo (KAËS apud TRACHTENBERG, 2001). 386 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 369-394, 2005 Ao invadir a mente de seu filho, o progenitor [geração precedente] parasita-o ativamente com sua própria dolorosa e clivada história, tornando-o cativo de uma história que, pelo menos em parte, não é sua. Estamos falando de um cativeiro (clivagem, alienação e organização psíquica em torno do não-seu) que produz uma pobreza e um esvaziamento psíquicos e em que há, paradoxalmente, um “demasiado-cheio”, um objeto que jamais se ausenta. O representante dessa geraçãoreceptora de um ato psíquico que não é seu termina por se alienar de seu próprio psiquismo. (TRACHTENBERG, 2001) A patologia da transmissão, assim, embora afete um sujeito em sua singularidade, não pode por definição ser um atributo seu, mas, sim, uma formação que adquire função em uma dupla economia psíquica, pois é mantida e transmitida no processo psíquico do sujeito singular e no processo psíquico do conjunto intersubjetivo (KAËS, 2001). Coloca o sujeito, parafraseando Freud, no artigo de 1914, em lugar de indivíduo enquanto fim para si mesmo mas também enquanto elo entre gerações; contudo, enquanto alguém que cumpre variadas funções em nome da geração precedente. Os traços daquilo que se passou com a geração anterior e que por ela não pôde ser pensado, “com seu cortejo de terror, vergonha e interditos” (GRANJON apud CORREA, 2000, p.25), é o que constitui a transgeracionalidade, modalidade de transmissão psíquica imposta, que atravessa gerações, acarretando a alienação do sujeito que se encontra encarregado de uma parte não-explícita e não-acessível da história de um outro, como se o sujeito passasse a ser o “suplente narcísico” (GRANJON apud CORREA, 2000, p.26) desse outro. Concluindo, quando um acontecimento com potencialidade traumáti18 Lembrar do Complexo de Édipo, que é o exemplo mais claro da transmissão psíquica envolvendo pelo menos três gerações, embora não se trate de transmissão transpsíquica, como já citado. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 387 Aline Baümer, Ana Rosa Chait Trachtenberg, Maria Luíza Furtado Kahl uma situação não vivenciada afetivamente, verbalizada ou não, uma vez que essa verbalização pode não dar conta de todas as representações e afetos envolvidos no trauma, três gerações18 estão envolvidas. TRANSGERACIONALIDADE: A PATOLOGIA DA TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES ca (nascimentos, mortes, partidas, e, a fortiori, os acontecimentos traumáticos, etc.) vem perturbar ou impedir um processo de integração harmônica, ele cria lacunas, inclusões, criptas na psique em questão. Esses “passados em silêncio”, ou “mantidos em segredo”, esses “restos insensatos” de um acontecimento inaceitável estão fora de um trabalho psíquico, mas vão obstruir a psique do sujeito e do grupo, permanecendo em estado bruto, consagrados à repetição e oferecidos às identificações da criança, geração sucessora, com a secreta esperança de que esta, herdeira e suplente narcísico, possa realizar o trabalho fracassado. É possível estabelecer, ainda, que transmitir é mais importante que aquilo que é transmitido, e o que será encontrado na descendência é o indizível, o impensável, o processo do segredo mais do que seu conteúdo (GRANJON apud CORREA, 2000). Conclusão A questão da herança, daquilo que é adquirido ou daquilo que é imposto pela transmissão, no cerne da vida psíquica familiar e individual está, desde o momento originário, inscrito nas fundações e nos fundamentos da psique de cada um de seus membros e do grupo. A transmissão psíquica, entre e pelas gerações, tem a ver com a continuidade e com a evolução de cada indivíduo e do conjunto da sociedade. Tradições e culturas asseguram, parcialmente, a continuidade de uma geração para a outra. A isso se soma a transmissão psíquica, que pontua a idéia de que não somente o genético, em seu sentido restrito, mas também componentes psíquicos são passíveis de ser transmitidos. Os processos da transmissão implicam ligações com e entre diferentes níveis intrapsíquicos e intersubjetivos intermediadas pelo grupo e pelos seus agenciamentos e relações, favorecendo transformações e conduzindo a uma diferenciação, uma evolução entre o que é transmitido e o que é adquirido. Esse trabalho permite a cada geração situar-se em relação às outras, inscrevendo cada sujeito em uma cadeia e em um grupo (ou grupos), permitindo a fundação de sua própria subjetividade, constituindo sua 388 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 369-394, 2005 19 Contrato narcísico de Piera Aulagnier. Indica que existe um pré-investimento dos pais em relação ao bebê, ao qual reservam um lugar legítimo. A criança demanda ao grupo o reconhecimento de que ela lhe pertence, enquanto o grupo lhe demanda a preservação de seus valores e leis, previamente estabelecidos (AULAGNIER apud TRACHTENBERG, 2005). Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 389 Aline Baümer, Ana Rosa Chait Trachtenberg, Maria Luíza Furtado Kahl história e tornando-o proprietário de sua herança: essa é a modalidade “normal” da transmissão psíquica, a intergeracionalidade. É quando esse trabalho falha, então, que a intergeracionalidade dá lugar à patológica transgeracionalidade, fazendo com que a transmissão psíquica possa ser alienante em vez de estruturante, já que, ao atravessar gerações e se colocar de maneira não elaborada, em estado bruto na psique do indivíduo que a recebe, não permite metabolização ou trabalho psíquico, fazendo com que o sujeito realize tarefas para a geração precedente, como se fosse um suplente narcísico da mesma. O dano é que, vivendo uma história que não é integralmente sua, o indivíduo parte para uma lenta morte psíquica, pois suas próprias questões acabam ficando em segundo plano. A transgeracionalidade, modalidade da transmissão psíquica que, ao se impor aos indivíduos através das gerações, não respeita subjetividades e espaços psíquicos, se trata de um dispositivo patológico e não universal. A transmissão forçada, imposta desde o nascimento (pode ser intergeracional ou transgeracional, pois as duas modalidades acabam sendo impostas, porém, permitem ao indivíduo enlaces subjetivos completamente diferentes), faz da criança elo de uma cadeia geracional e a destina a um lugar que lhe é oferecido pelo grupo que a acolhe. Herdeira daquilo que se teceu e daquilo que calou de seus pais, a criança, que se beneficia do investimento narcísico desses, assegura a continuidade do conjunto e adquire a possibilidade de sua própria subjetividade. É a esse preço que ela poderá existir, constituir-se psiquicamente como sujeito do inconsciente e sujeito do grupo. O que é oferecido à criança, nos termos do contrato de vida19 que lhe é proposto, é um lugar a ocupar e uma carga a assumir, permitindo-lhe adquirir esse lugar que a funda. Como são os pactos inconscientes do grupo familiar que permeiam o que deve ser interdito, não dito ou dito, a criança encontra-se à mercê dessa TRANSGERACIONALIDADE: A PATOLOGIA DA TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES teia familiar, e tende a assumir o que esperam dela, como meio de fazer parte dessa teia. No entanto, a criança corre o risco de assumir-se como o próprio conteúdo secreto, e pode ser pega pelo irrepresentável familiar através da transgeracionalidade. Assim, de herdeira da “Caixa de Pandora”,20 ou das gavetas da escultura de Salvador Dalí,21 a criança passa a ser, ela mesma, o seu conteúdo; passa a ser o negativo, o segredo, a amnésia, o silêncio, o não dito, passando a alienar-se da sua psique e a viver em função da psique de um outro. As doenças chamadas limítrofes (borderlines), a psicose e o autismo, podem, através da transgeracionalidade, ter novas leituras, posto que esta tem por fato a alienação psíquica (ao menos em parte) daquele que recebe seu material, podendo, assim, ser possível pensarmos novos dispositivos que poderiam auxiliar a responder às perguntas de como e por que tais estruturas se instalam nos indivíduos. Poderiam ser essas estruturas casos extremos de transgeracionalidade? A psicossomatização, tanto em crianças como em adultos, também poderia ser estudada pelo viés transgeracional. Em se tratando de crianças, principalmente, a questão da psicossomática pode ser estudada como modo de repetir o sintoma do outro, da geração precedente, ou de tentar dar vazão ao material psíquico recebido através da via corpórea por não ter recursos psíquicos para lidar com o não-elaborado legado geracional. Além do mais, a transgeracionalidade pode ser caminho para estudos sobre as conseqüências psíquicas das situações de traumas reais, que não são reconhecidas ou querem ser banidas da memória pela sociedade ou instituições como a família, já que contribuem para a formação de criptas no sujeito, à medida que exigem que não se fale de certos fatos que acabam, assim, tornando-se impensáveis. Assim, a questão da transgeracionalidade se coloca como um caminho vasto para as investigações da psicanálise contemporânea, tamanha sua 20 A Caixa de Pandora faz parte dos mitos gregos. Trata-se de uma caixa detentora de todos os segredos e males do mundo, a qual não poderia nunca ser aberta. No entanto, Pandora, a primeira mulher (tal como Eva para a Bíblia) a abriu. 21 Referência à escultura de Salvador Dalí citada na introdução. 390 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 369-394, 2005 Resumo A questão da transmissão da herança psíquica entre gerações é um assunto bastante recorrente na psicanálise contemporânea. A transgeracionalidade, transmissão da herança psíquica de maneira patológica, no entanto, é o viés que este trabalho pretende abordar. O primeiro capítulo deste trabalho busca na obra de Freud os antecedentes da questão da transmissão da herança psíquica, enquanto o segundo apresenta conceitos fundamentais para o entendimento da transgeracionalidade, através dos autores Nicolas Abraham e Maria Torok, que, apesar de nunca terem falado em tal, possibilitaram, através de seus conceitos, que autores contemporâneos pudessem dar continuidade aos seus estudos e lançar a idéia de que a cripta pode ser transmitida. A terceira parte pontua o que é a transgeracionalidade e a diferencia da intergeracionalidade, que se trata do processo normal da transmissão psíquica, trazendo alguns dos mais importantes autores que estudam tal questão, tais como Kaës, Faimberg, Aulagnier e Granjon. Coloca também que a transmissão psíquica patológica entre gerações pode promover a alienação psíquica do sujeito. É através da transmissão (geração precedente) e recepção (geração seguinte) de um material psíquico em estado bruto, um trauma não elaborado, que podemos observar esses fenômenos. Palavras-chave Transgeracional. Introjeção. Incorporação. Trauma. Identificação Projetiva. Abstract Transgenerationality: the pathology of the psychic transmission among generations The issue of psychic inherited transmission is a well recurrent matter in contemporary psychoanalysis. The transgenerationality, a pathologic form of psycho inherited transmission, however, is the guideline for the approach of this work. In the first chapter, the research was based on Freud’s work, on the records of psychic inherited transmission matter; meanwhile, on the second chapter the focus was on basic concepts to understand transgenerationality based on some Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 391 Aline Baümer, Ana Rosa Chait Trachtenberg, Maria Luíza Furtado Kahl possibilidade de gerar novas leituras sobre antigas e inquietantes questões, abrindo caminhos para novas perguntas e novas hipóteses. TRANSGERACIONALIDADE: A PATOLOGIA DA TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES authors such as Nicolas Abraham and Maria Torok, who, despite the fact that they have never talked about this subject, they have opened the ground for contemporary authors to keep their studies based on their concepts, and they have launched the idea that the crypt can be transmitted. The third part of this study points out the definition for transgenerationality, and establishes the difference from intergenerationality, which is a normal process of psychic transmission, bringing about one of the most important authors who discuss this issue, such as Kaës, Faimberg, Aulagnier, and Granjon. It also shows that the pathological psychic transmission among generations can lead to the subject psychic alienation. It is through transmission (ancestors), and reception (descendants) of a gross psychic material, a non-worked trauma, that one can observe these phenomena. Key-words Transgenerational. Introjection. Incorporation. Trauma. Projective Identification. Resumen Transgeneracionalidad: la patología de la transmisión psíquica entre generaciones La cuestión de la transmisión de la herencia psíquica entre generaciones es un asunto bastante recurrente en el psicoanálisis contemporáneo. La transgeracionalidad, transmisión de la herencia psíquica de manera patológica, sin embargo, es el aspecto más importante que este trabajo pretende abordar. El primer capítulo de este trabajo busca en la obra de Freud los antecedentes de la cuestión de la transmisión de la herencia psíquica, mientras el segundo presenta conceptos fundamentales para el entendimiento de la transgeneracionalidad, a través de los autores Nicolas Abraham y Maria Torok que, a pesar de nunca haber hablado en tal, posibilitaron, a través de sus conceptos, que autores contemporáneos pudieran da continuidad a sus estudios y lanzar la idea de que la cripta puede ser transmitida. La tercera parte muestra lo que es la transgeneracionalidad y la diferencia de la intergeneracionalidad, que se trata del proceso normal de la transmisión psíquica, trayendo algunos de los más importantes autores que estudian tal cuestión, tales como Kaës, Faimberg, Aulagnier y Granjon. Coloca también que la transmisión psíquica patológica entre generaciones puede promover la alienación psíquica del sujeto. Es a través de la transmisión (generación precedente) y 392 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 369-394, 2005 Palabras-llave Transgeneracional. Introyección. Incorporación. Trauma. Identificación Proyectiva. Referências ABRAHAM, N.; TOROK, M. (1987). A Casca e o Núcleo. São Paulo: Escuta, 1995. CORREA, O. B. R. (Org.). Os Avatares da Transmissão Psíquica Geracional. São Paulo: Escuta, 2000. FAIMBERG, H. A Telescopagem das Gerações a Propósito da Genealogia de Certas Identificações. In: KAËS, R. et. al. Transmissão da Vida Psíquica entre Gerações. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001. FREUD, S. (1896). Estudos sobre a Histeria. In: ______. Edição Eletrônica das Obras Completas de Freud. Rio de janeiro: Imago, 1996. ______. (1913). Totem e Tabu.. In: ______. Edição Eletrônica das Obras Completas de Freud. Rio de janeiro: Imago, 1996. ______. (1914). 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Edição Eletrônica das Obras Completas de Freud. Rio de janeiro: Imago, 1996. KAËS, R. et. al. Transmissão da Vida Psíquica entre Gerações. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 393 Aline Baümer, Ana Rosa Chait Trachtenberg, Maria Luíza Furtado Kahl recepción (generación siguiente) de un material psíquico en estado bruto, un trauma no elaborado que podemos observar esos fenómenos. TRANSGERACIONALIDADE: A PATOLOGIA DA TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES LANDA, F. Ensaio Sobre a Criação Teórica em Psicanálise: de Ferenczi a Nicolas Abraham e Maria Torok. São Paulo: Editora UNESP; FAPESP, 1999. LAPLANCHE; PONTALIS. Vocabulário da Psicanálise. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. PESSOA, F. Poesias. Porto Alegre: L & PM, 1999. SILVA, M. C. P. da. A Herança Psíquica na Clínica Psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo; FAPESP, 2003. SZEJER, M. Palavras para Nascer: a escuta psicanalítica na maternidade. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999. TRACHTENBERG, A. R. C. Das Histórias Vazias à Transmissão Intergeracional. Revista Brasileira de Psicoterapia: CELG, Porto Alegre, v.4, n.3, 2002. ______ et al. De Escravo a Herdeiro: um destino entre gerações. Psicanálise: revista da SBPdePA, Porto Alegre, v.4, n.1, Porto Alegre, 2001. ______ et al. Vicissitudes do Conceito de Identificação e Transmissão entre Gerações. Revista do IEPP, Porto Alegre, n.4, 2002. ______ et. al. Transgeracionalidade – de Escravo a Herdeiro: um destino entre gerações. 1.ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005. Artigo Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Artigo adaptado do Trabalho de Conclusão do Curso de Psicologia na Universidade Federal de Santa Maria, apresentado em nov. 2004. Orientado por Maria Luíza Furtado Kahl e co-orientado por Ana Rosa Chait Trachtenberg, com autorização da Universidade Federal de Santa Maria. Dra. Aline Baumer Av Fernando Ferrari, nº 820 apto 302 Bairro Nossa senhora de Lourdes 97050-800 Santa Maria – RS – Brasil E-mail: [email protected] Dra. Ana Rosa Chait Trachtenberg Rua Florêncio Ygartua, 391/ 404 91330-120 Porto Alegre – RS – Brasil Fone/fax: (0xx51) 33306453 E-mail: [email protected] Dra. Maria Luiza Furtado Kahl Av. Presidente Vargas, 1945 ap. 802 Bairro: Centro 97015-513 Santa Maria – RS – Brasil E-mail: [email protected] 394 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 369-394, 2005 Antonino Ferro Membro Titular da Sociedade Psicanalítica Italiana. O grande problema, na origem do narcisismo, é o da falta de “care givers” capazes de se colocar como suficientemente confiáveis e introjetáveis. É uma situação comparável à de uma pequena cidade na qual começam focos de incêndio, no início de proporções reduzidas; esse lugar, no entanto, não possui um corpo de bombeiros suficiente ou uma proteção civil. Por isso, os habitantes inventam métodos, os melhores possíveis (mas freqüentemente inadequados) para controlar esses fogos, que se tornam, cada vez mais, verdadeiros incêndios (emocionais). Proto-emoções, proto-necessidades, excessos de sensorialidade, quando não acolhidos e não trans- Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 395 Antonino Ferro Narcisismo e Trauma: a atualidade e a história NARCISISMO E TRAUMA: A ATUALIDADE E A HISTÓRIA formados em “pensáveis”, aos poucos são liofilizados, desafetivizados, negados, cindidos, e assim por diante, de tal forma que, mesmo com um empobrecimento às vezes muito grande, uma parte da “old town” é salva. Dizer que o paciente narcisista nega qualquer dependência é até banal; certamente ele se salvou (pelo menos em parte) graças a isso: arregaçou as mangas e tentou desesperadamente se virar sozinho. Estamos, dessa maneira, no campo dos traumatismos por ausência ou inadequação, no melhor dos casos; no pior, o paciente teve também que se salvar de um objeto perturbador e invasivo, criando barreiras protetoras. Portanto, é conseqüência dessa situação o fato de um paciente com estrutura narcísica não ter nenhuma confiança no objeto, e o novo objetoanalista ter de conquistar a confiança no campo, operando por longo tempo, como um corpo de bombeiros ou de proteção civil de uma pequena cidade próxima que, na ocasião, é colocado à disposição. Gostaria agora de utilizar um caso clínico, ao mostrar o longo caminho realizado com Marcello para chegar a uma possibilidade de pensar as emoções e os afetos. A teorização de referência está constantemente subentendida ao trabalho clínico e é reconhecível em uma interseção entre o pensamento de Bion (1962, 1963, 1965) e alguns desenvolvimentos (FERRO, 2002a, 2002b, 2002c, 2003, 2005a) do conceito de campo, como o descrito pelos Baranger (1961-1962, 1992), retomado e desenvolvido por muitos autores da América Latina (LEWKOVICZ; FLECHNER, 2005), entre os quais, recentemente, Cláudio Eizirik (2005), no 44º Congresso Internacional de Psicanálise (Rio de Janeiro, 2005). Em Direção a uma Possibilidade de Sofrer a Dor Marcello é um paciente com estrutura fortemente narcísica que sempre negou qualquer dependência afetiva: por longo tempo, colocou-se como autônomo, auto-suficiente, brilhante no trabalho, mas sem nenhuma necessidade emocional. Por ocasião das nossas separações de rotina (Natal, Páscoa, verão) e 396 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 395-411, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 397 Antonino Ferro circunstanciais (ausência por impossibilidade dele ou minha), ele progressivamente introduziu no nosso campo algum tipo de “dor” física, muito marginal e não facilmente reconduzível a um significado compartilhável. Por ocasião de seu afastamento seu por causa de um Congresso, sinalizou “uma dor num pé”; por ocasião de umas férias, “uma dor de dente”; outras vezes, “uma dor no joelho”, e assim por diante, sem que nunca fosse possível qualquer interpretação, ainda que cautelosa, sobre separação – interpretação que, certamente, teria soado inadequada e capaz de romper aquele tênue fio de confiança que a minha escuta respeitosa, inclusive de seu texto manifesto, ia construindo. Por longo tempo, as minhas intervenções foram mais comentários insaturados sobre aquilo que ele me dizia (mesmo que eu mantivesse, dentro de mim, sempre aceso o fio do possível significado relacional do que ele me dizia, com as relativas interpretações de transferência – fio esse que, mesmo não expresso, ajudava-me a fazer intervenções de acordo com sua situação emocional). Lentamente, Marcello dá sinais de ir aos poucos se tornando permeável às próprias emoções, até então sempre ignoradas ou, no melhor dos casos, negadas. Nesse ponto, estou indeciso sobre como utilizar suas narrações: se renuncio o interpretar, percebo em mim, por um lado, uma vivência de perda da possibilidade de comunicar aspectos importantes, mas, freqüentemente, por outro, percebo que toda a atividade interpretativa que não seja ainda subliminar e alusiva pode levar a novos enrijecimentos. Encontro-me, num certo momento, comunicando a Marcello, em rápida seqüência, a data das férias de Páscoa e, a seu pedido, também as de verão. No dia seguinte, após ter-me dito que estava com uma forte dor de cabeça, fez os seguintes relatos: esteve em uma comunidade de pacientes psiquiátricos, na Alemanha, acompanhando a esposa, psicóloga, e um dos pacientes lhe roubou, por trás, o bife que ele tinha no prato. Um outro paciente, visivelmente deprimido, andava em círculo, batendo com os punhos na cabeça. Depois conta que, durante o plantão da noite, no setor de NARCISISMO E TRAUMA: A ATUALIDADE E A HISTÓRIA medicina de urgência em que trabalha, um paciente perdeu os sentidos, caindo no chão. Relata ainda sobre uma paciente que tinha fantasias de suicídio, dizendo que a mãe era uma “puta”. Finalmente, fala de um amigo, Nando, desesperado pela traição da esposa em quem não consegue dar nem um tapa. Eu sinto que o máximo que posso fazer é segui-lo em seu texto, a cada vez iluminando, focalizando as diversas emoções que o relato comporta, renunciando, por ora, a qualquer evidente (para mim!) significado transferencial. Na sessão seguinte, Marcello traz dois sonhos: no primeiro, fotografava pessoas em vários andares de um prédio, possuía também uma mochila cheia de pilhas Duracell, muitas das quais vazias; no segundo, o funeral da mãe, que ele seguia junto de quatro mulheres (quatro são, também, as sessões de Marcello), mas não conseguia chorar; depois, repentinamente, pensou que não comeria mais os pratos sicilianos que a mãe lhe preparava, como as orecchiette1, e desatou – no sonho – a chorar desesperadamente. Nesse ponto, digo a mim mesmo que o trabalho feito pelo sonho torna próximas emoções antes negadas e impossíveis de serem aproximadas. E digo-lhe que me parecia que havia adquirido uma capacidade de viver os lutos, as perdas e as emoções correspondentes. Depois, através da descrição mais geral, como quando fotografada do alto, “experimento” colocar em relação o segundo sonho também com a perda, em relação a mim, causada pela dupla separação das férias de Páscoa e de verão. Marcello fica em silêncio, mas de uma forma que me parece atento. Então prossigo, referindo-me ao primeiro sonho, dizendo que ele me parecia interessado em fotografar diversos níveis, diversos andares de seu sentir emocional. Parece, digo, que o sonho cozinhou juntos tantos ingredientes antes cozidos separadamente, em diferentes panelinhas: o bife roubado, o paciente que bate na própria cabeça (a dor de cabeça!), a história da traição de Nando e a perda dos sentidos, o desespero e a raiva dos dois pacientes, 1 Tipo de macarrão típico da região da Sicília. (NT) 398 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 395-411, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 399 Antonino Ferro retomando, assim, mais de perto, as emoções das quais havíamos falado no dia anterior. Marcello, num primeiro momento, fica em silêncio. Pareceme um silêncio digestivo e espero que essa minha “interpretação” possa ter sido acolhida. Após alguns minutos, Marcello toma a palavra, contando, com ar distante e indiferente, que na noite anterior havia brincado com prazer com seu filho, Marcello, de quatro anos; depois a brincadeira tinha se tornado violenta, e, assim, ele havia pressionado o estômago do menino, que vomitou tudo aquilo que havia comido, tossiu, ficando irritado e não querendo mais comer. Nesse ponto, sinto uma profunda desilusão e abatimento, percebendo que tudo – não me importa quem seja Marcello na sessão – fora de qualquer forma “evacuado”, e temo que tenha sido, inclusive, perdido. Não interpreto essa comunicação e me detenho em uma escuta receptiva do que o paciente me fala em relação a acontecimentos aparentemente externos e ao seu pouco interesse em assistir ao seminário da escola de especialização. Dou por perdido aquilo que eu havia comunicado e fico surpreso quando, na sessão seguinte, o paciente relata que “o outro filho, Luigi”, de poucos meses, havia chorado muito pela ausência da mãe, queria o leite e não se conformava com o que ele podia lhe dar, visto que era amamentado ao seio. Digo que, às vezes, as mães são indispensáveis às crianças e, com o ar de quem faz uma brincadeira, acrescento que, além da inveja do pênis, parece existir uma inveja do seio! Marcello responde dizendo que, de fato, “a mulher dispõe de uma aparelhagem” que ele não tem. Evito qualquer interpretação de transferência e, nesse ponto, entra na sessão um “duplo”: uma paciente que Marcello freqüentemente encontra na rua e que pensa se tratar da paciente “que vem antes dele”. Vê-a quando entra na igreja e, por longo tempo, pensa: “eu não estou tão mal como esta moça”, que seguidamente lhe parece triste e sofrida. Depois fica curioso: “Quais serão as emoções que esta moça vive? Será que sofre pela separação?” Eu faço somente NARCISISMO E TRAUMA: A ATUALIDADE E A HISTÓRIA intervenções enzimáticas, tomando cuidado para não interpretar a paciente como uma parte dele que “sente” emoções. Continua, depois, o relato, dizendo que um amigo psicanalista havia lhe dito viver fortes sentimentos quando os pacientes terminavam a análise. Comento que parece que, mesmo nas análises, podem circular emoções vivas. E, aqui, Marcello me surpreende, pois retoma, agora que não havia mais pressões interpretativas, aquilo que eu considerei evacuado irremediavelmente, isto é, a fala do dia anterior, e diz: “Ontem o senhor teve uma parte ativa, ao me falar do sonho, e percebi que, para me orientar, preciso de sua ajuda”. A sessão prossegue com a retomada das próprias emoções ligadas à separação. Confesso que me senti profundamente comovido pelas palavras de Marcello que constituem a primeira oficialização de um vínculo importante entre nós. Quando o Trauma se Repete Alguns meses depois, na hora da sessão de Marcello, estou mentalmente “fora de uso” (como aqueles elevadores com o cartaz: “fora de uso para manutenção”), porque fui invadido e tomado pela paciente psicótica da hora que, naquele dia, antecedia a sessão de Marcello, e que tinha tido uma série de atuações violentas na sessão. De fato, na sessão de Marcello, estou mentalmente ausente. Na sessão do dia seguinte, Marcello me conta dois episódios: o primeiro, a respeito de uma moça que tinha tido ataques de pânico depois que sua mãe, sentada no banco de trás, morrera quando um caminhão batera por trás no carro, ao passo que ela e seu filho, sentados na frente, não tinham se machucado; o segundo episódio refere-se ao amigo Amedeo, que ficou muito desiludido com a mulher (que tinha recém-saído de uma relação extraconjugal), que havia lhe dito que iria a um determinado lugar a trabalho e, controlando a quilometragem feita em seu carro, verificara que ela não fora onde deveria ter ido. Quando descoberta, ela lhe dissera ter se encontrado, às suas costas (escondido), com o ex-amante, em virtude de um pedido urgente por parte dele. 400 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 395-411, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 401 Antonino Ferro Durante a sessão, de fato, eu nego a mim mesmo o que havia acontecido na sessão anterior com Marcello (minha menor presença mental) e faço intervenções de rotina, sem espessura emocional, que Marcello, novamente distante e autárquico, aceita por complacência. Mas é no “fora da sessão” que posso encontrar a realidade emocional da própria sessão e dizerme que, por parte de Marcello, houve uma precisa descrição do meu não estar na sessão (do meu ter sido atropelado pela paciente da hora anterior e da minha traição em não ter ido “ao lugar de trabalho” com Marcello, mas de ter clandestinamente continuado a estar com a paciente da hora precedente). Quando posso entrar em contato com isso, em profundidade, comigo mesmo, salta aos meus olhos uma profunda raiz do narcisismo de Marcello: a relação com a mãe, com traços ausentes mentalmente, porque invadida pelos próprios estados emocionais, fazendo com que Marcello precisasse fazer uso das pilhas Duracell (que, já no sonho mencionado, estavam prestes a acabar) ou do autogerador elétrico (surgido num sonho em que, quando em uma sala de cirurgia faltava luz, entrava em funcionamento um gerador autônomo de eletricidade que depois, de fato, tomara o lugar da energia normal de rede, considerada pouco confiável). A partir daqui, ganha vida um intenso, partícipe discurso reconstrutivo da sua história infantil, no qual aparece uma mãe, pessoa doce e muito afetiva, mas emigrada com o marido para um país estrangeiro do qual não conhecia a língua; mãe que oferecia uma presença descontínua e que tinha freqüentes períodos em que era tomada pela angústia, durante os quais não respondia, ausentava-se mentalmente, e era como se não estivesse lá; portanto, necessitava virar-se por conta própria. Era necessário também que se virasse por conta própria na escola, com o alemão, língua que em casa ninguém falava (alemão que, depois, será possível interpretar como a língua das emoções profundas e intensas – como o Jovem Werter, de Goethe –, para as quais ninguém na família tinha espaço, estando todos tomados por sérios problemas de sobrevivência). NARCISISMO E TRAUMA: A ATUALIDADE E A HISTÓRIA O Trauma em Forma Reduzida Entramos em um período de bom trabalho, no qual abordamos novas emoções que vão florescendo e em que Marcello demonstra estar cada vez mais em condições de administrar, numa espécie de contracanto em relação a um funcionamento desafetivizado, quando, durante uma sessão, minha capacidade de atenção é raptada por um cigano que toca gaita exatamente embaixo da janela do meu consultório. Aos poucos, vou me tornando incapaz de qualquer tipo de escuta, enquanto o paciente continua falando ininterruptamente. Num certo ponto, como em um flash, entendo o que está acontecendo e tenho condições de lhe dizer que estamos vivendo diretamente a sua forma de colocar as Duracell. Quando me percebe mentalmente distante, coloca as pilhas da completa autonomia, e isso o impede de afundar na angústia do abandono. O paciente ri, aliviado, exclamando: recebido! Esse episódio passa a fazer parte dos momentos significativos da análise, permitindo uma ulterior ponte entre o nosso aqui e agora e o lá e então da sua infância. Naturalmente, reflito também, dentro de mim, a respeito da música desesperada do cigano com a gaita: talvez também uma parte cindida do paciente que, no momento em que “desabrocha” da situação liofilizada em que havia, por longo tempo, permanecido, ativa angústias que me invadem, mas esta é também a forma para me/nos colocar em contato com suas partes (funcionamentos) sem pátria (um dos problemas de Marcello havia sido o de não saber qual nacionalidade viver como própria) que inundam com a música das suas emoções, e dão assim um sinal forte da sua existência, além de ser um desesperado SOS. O Posterior evidenciar-se do “Duplo” Muito importante e precursor de férteis desenvolvimentos é quando o intrapsíquico torna-se relacional, porque nesse ponto há uma maior possibilidade de desembaraçar as fantasmatizações que, de outro modo, se desenvolveriam sempre da mesma forma. 402 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 395-411, 2005 A Receptividade de Marcello Anos se passaram desde o inicio da análise de Marcello, mesmo assim, qualquer aproximação interpretativa excessiva ainda pode, às vezes, causar angústias homossexuais (um conteúdo que força um continente não disponível, isto é, um outro conteúdo que pede, ao contrário, uma receptividade do analista para poder se aliviar: que pede ← ). Um dia após uma série de boas sessões, ouço o som do interfone na hora de Marcello e aperto o botão que abre a porta (meu consultório é no terceiro andar, sem elevador). Tenho a nítida percepção de que não seja Marcello a subir as escadas, mas uma mulher que produz um típico barulho de salto sobre os degraus. Tenho progressivamente a certeza. (Isto é, tenho uma rêverie acústico-visual.) Ouço o barulho da campainha da porta. Abro e, com espanto, vejo que é Marcello. Encaminho-me, seguindo-o na sala de análise, e me pergunto, dessa vez imediatamente, sobre a rêverie que eu havia tido (com tão intensa característica perceptiva). Entendo, bastante rapidamente, que aquela era a forma com a qual eu Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 403 Antonino Ferro No início de uma sessão, enquanto sigo Marcello da sala de espera para a sala de análise, me encontro – de forma (acreditem em mim!) completamente fora do habitual – pensando “que belo traseiro proeminente”. Essa fantasia sai de cena e, somente após o término da sessão, percebo ter “abusado” o tempo todo do paciente com interpretações intrusivas, violentas e precoces. Terminada a sessão, chama minha atenção o curso da mesma e reflito o quanto eu havia “fantasmatizado” e depois “personificado” aquela parte violenta e intrusiva de Marcello, pela qual ele mesmo se sentia freqüentemente “prevaricado”, até o medo de ser homossexual pela tolerância que sentia em relação às pessoas das quais tinha medo. Reaparece assim uma parte esquecida das lembranças infantis de Marcello, na qual ele havia, de um lado, sido um adolescente prevaricador e violento e, de outro, vivido insinuações homossexuais, às quais não fora capaz de se esquivar. NARCISISMO E TRAUMA: A ATUALIDADE E A HISTÓRIA captava uma nova capacidade receptiva de Marcello. Nesse ponto, no curso da sessão, faço uma série de interpretações de transferência que são todas aceitas e “bem-recebidas” e utilizadas para desenvolver novos percursos associativos. Nesse ponto (eis o assumir e o levar em conta, de minha parte, daquilo que era um resíduo de incontinência de Marcello), acrescento “e não vá me dizer amanhã que seu filho teve alergia!”, referindo-me ao que, por longo tempo, viera em seguida às minhas anteriores aproximações interpretativas. Rindo, o paciente diz: “mas o senhor não deve prevenir os meus movimentos!” No dia seguinte, me conta de um colega que, por causa da prepotência do médico-chefe, quase havia se demitido; depois, fala do próprio filho e do fato de que sua mulher temera que tivesse engolido alguns alfinetes e que o haviam levado ao pronto-socorro; e, por fim, do médico-chefe, que aumentara, de forma excessiva, as terapias de um paciente, sem levar em conta os efeitos colaterais. Nesse ponto, teria podido interpretar tudo isso como uma resposta à minha incontinência interpretativa, mas preferi ajustar a distância e meu timing interpretativo. Quando as Emoções podem ser Cozidas Passaram-se alguns anos, Marcello está mais capaz de ter um lugar para as próprias emoções e de vivê-las. Há uma breve separação, que coincide com um momento de perda de contato emocional, justamente na última sessão. Ao retomar as sessões, inicia falando da sua filha caçula, de dois anos, que fora dormir na cama dos pais e depois, ao acordar de manhã, vira papai e mamãe abraçados e se levantara silenciosamente, indo para o próprio quarto. O paciente seguira a menina em silêncio e a vira sentada no tapete, com ar desolado. Depois ela havia pegado a chupeta e olhava à sua volta, com ar perdido. O paciente então interveio, tomando-a no colo, captando seu sofrimento e trazendo-a de volta à cama de casal onde ela, depois de um pouco, abandonara o ar aflito e fizera um grande sorriso. 404 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 395-411, 2005 Capacidade de Viver as Emoções e de Manter o Vínculo Marcello agora é capaz, de uma forma estável, de aceitar e de utilizar também minha atividade interpretativa explícita, contanto que modulada por uma contemporânea função de tampão, operada pelas transformações narrativas: uma espécie de oscilação entre registro interpretativo decodificatório e registro assimilativo transformador, usando o registro do plano manifesto. Por ocasião da aproximação da última interrupção de Natal, particularmente longa, diz ter comprado um tipo de panela que continua a mexer a polenta, ainda que não se esteja constantemente presente para fazê-lo; depois fala do desejo de comprar um tipo particular de walkie-talkie que permita manter contato mesmo à distância; e de ter comprado também quatro Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 405 Antonino Ferro Logo depois, relata um sonho da noite anterior: tinha ido a uma festa, mas um amigo, Tonio (!), se afastava, deixando-o sozinho. Tomado por sentimentos de raiva e de exclusão, além do mais, em um clima de outono, com as folhas caindo, encontrava um casal feliz que ia em direção à própria casa, enquanto ele ficava na chuva. Em seguida, Tonio voltava, mas ele mesmo não sabia como se comportar, se manifestava alegria pela volta ou ficava bravo. Por fim, prevalecia o afeto pelo amigo. Depois, em seguida ao sonho, relata ter telefonado na noite anterior ao pai, que não havia respondido, talvez porque estivesse dormindo. Havia insistido e, finalmente, o pai respondera, muito contente de ouvi-lo. Marcello tornou-se, agora, mais capaz de viver as próprias emoções e de narrá-las, e narrá-las novamente, inclusive tecendo-as em três diferentes cenários: o da filha, o do sonho, o de seu pai. Havia se sentido excluído, colocado de lado com a breve separação, mas também porque, na última sessão, antes da breve separação, houvera uma perda de contato emocional, o que havia lhe provocado raiva, ciúme, um isolamento e depois uma nova possibilidade de reaproximação, a capacidade de viver as emoções e a capacidade de não perder o vínculo comigo. NARCISISMO E TRAUMA: A ATUALIDADE E A HISTÓRIA caixas de laranjas que deveriam ser suficientes para todo o período das férias. Sinto que posso lhe dizer que me parecem distantes os tempos nos quais, por ocasião das nossas separações, colocava as Duracell e que agora pode se aparelhar para as férias, dispondo de uma série de instrumentos que permitem manter o contato, o vínculo, e que ao mesmo tempo possui a capacidade de fazer reservas. Parece aceitar de bom grado essa proposta interpretativa, mas começa a falar da sogra que, freqüentemente, lhe é antipática, que teve a ousadia de entrar, não autorizada, na sua (dele) cantina e destampar algumas garrafas de vinho (o significado ainda não pode ser destampado!) e, além do mais, o importunar com longos discursos, justamente quando a mulher estava trabalhando (outra declinação do analista que interpreta?), impedindo-o de ocupar-se das crianças que choravam por querer a mãe. Captar seu desconforto pela presença intrusiva “da sogra”, de forma narrativa, renunciando à interpretação possível sobre o analista-sogra que destampa significados, permite que entre em cena sua mãe, que lhe telefona de forma afetiva. O caminho ainda não terminou! Creio que, para Marcello, o problema de acontecimentos traumáticos possa ser visto sob dois ângulos: de um lado, a história de um menino e depois de um adolescente que era abusado por emoções intensas demais para poder administrá-las sozinho; e, depois, o quanto esse “estar sozinho” corresponde a uma carência da função materna/paterna de rêverie (FERRO, 2005b; OGDEN, 1997) em relação às suas proto-emoções. A análise representa aquele lugar onde há o máximo de cautela com o paciente para que não seja, por sua vez, fonte de traumatismo intolerável; mas o problema da carência dos objetos, de sua inadequação deve ser vivido, ainda que de forma reduzida e contida, na sala de análise, para que o que ainda não pôde ser pensado possa vir a ser vivido e pensado. O campo deve, portanto, adoecer de forma mais leve da doença do paciente, para depois sarar, permitindo ao paciente a introjeção estável daquele instrumento para pensar que é a fonte da nossa saúde mental. 406 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 395-411, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 407 Antonino Ferro Para que isso seja possível, creio que é central um uso constante da capacidade de rêverie na sessão, a capacidade de estar no mesmo comprimento de onda do paciente e a permeabilidade para suas identificações projetivas, assim como, por longo tempo, o respeito pelos seus conteúdos manifestos. Para fazer interpretações, é necessário antes construir com o paciente um lugar onde ele possa contê-las. Também creio que é de extrema utilidade técnica utilizar as respostas do paciente como indicações que ele nos fornece para que possamos alcançá-lo, sem excessivos traumas e cada vez mais em profundidade. Bion falava do paciente como “melhor colega”; de minha parte, penso sempre naquele belíssimo relato de Conrad, O Companheiro Secreto, no qual há o clandestino, por longo tempo aceito a bordo pelo capitão, que em proximidade da costa se lança do navio e que, quando percebe que a embarcação está prestes a bater contra uma rocha, joga o próprio chapéu para sinalizar o perigo, permitindo assim que o capitão evite o naufrágio. Penso que é fundamental essa função do paciente que, a cada momento, nos lança o chapéu para nos sinalizar como estamos nos movimentando. Essa é, no fundo, a única maneira que temos para estarmos realmente em contato com o paciente – e insisto sobre o conceito de uníssono –, em vez de estarmos em contato com nossas teorias, ou acabamos fazendo uma espécie de cena primária com as teorias, excluindo o paciente. Concluo com um relato de sonho recente de Marcello que creio não necessite comentários: “Ia até Veneza, entrava em um cinema para ver um filme. Num certo momento, alguém me dava a oportunidade de alcançar algo escondido e secreto: uma espécie de alçapão... um acesso a um subterrâneo onde viviam homens e mulheres, ou melhor, homenzinhos não desenvolvidos, baixos, atarracados, alguns disformes, alguns em um barril, outros no cocô, abandonados, na miséria, segregados, sem ar, sujos... Em cima havia outro plano, máscaras de nobres... espadachins... em trajes de 1600 já sem sentido... Eu saía impressionado e via uma espécie de carrasco guardião, com foice e martelo, que se encaminhava para sedar com o ma- NARCISISMO E TRAUMA: A ATUALIDADE E A HISTÓRIA lho o surgirmento de qualquer grito ou necessidade... Eu saía... estava em Veneza, procurava minha mulher, abraçava-a”. Resumo O autor, através do relato do desenrolar de um caso clínico, compara a origem do narcisismo com uma pequena cidade onde começam alguns incêndios, de proporções reduzidas inicialmente, mas que não possui um corpo de bombeiros suficiente ou uma proteção civil. Por isso, os habitantes inventam métodos, os melhores possíveis (mas freqüentemente inadequados) para controlar estes fogos que tornam-se cada vez mais verdadeiros incêndios (emocionais). Segue, afirmando que o paciente narcisista arregaça as mangas e tenta desesperadamente se virar sozinho. E dessa forma, estamos no campo dos traumatismos por ausência ou inadequação do objeto, no melhor dos casos; no pior, o paciente tem que se salvar de um objeto perturbador e invasivo, criando barreiras protetoras. Como conseqüência dessa situação, o paciente com estrutura narcísica não tem nenhuma confiança no objeto, e o novo objeto-analista deve conquistar a confiança através do campo, operando por um longo tempo como um novo corpo de bombeiros ou como uma proteção civil de uma pequena cidade, pondo-se inteiramente à disposição. Palavras-chave Narcisismo. Trauma. Campo Analítico. Reconstrução. Abstract Narcissism and Trauma: nowadays and history The author, through the report of the development a clinical case, compares the origins of narcissism to a small town where fires of small proportions, initially, start taking place, but which does not have a suitable fire department or civil defense. As a response, the residents invent methods, the best possible ones but usually inadequate, to control those fires which progressively become more like true (emotional) fires. The author goes on to state that the narcissistic patient gets down to business and desperately tries to do everything by him or herself. Thus we are in the field 408 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 395-411, 2005 Key-words Narcissism. Trauma. Analytic Field. Reconstruction. Resumen Narcisismo y Trauma: la actualidad y la historia El autor, a través del relato del desarrollo de un caso clínico, compara el origen del narcisismo a una pequeña ciudad donde empiezan algunos incendios, de proporciones reducidas inicialmente, pero no posee un cuerpo de bomberos suficiente o una protección civil. Por eso, los habitantes inventan métodos, los mejores posibles (pero frecuentemente inadecuados) para controlar estos fuegos que se vuelven cada vez más verdaderos incendios (emocionales). Sigue, afirmando que el paciente narcisista arregaza las mangas e intenta desesperadamente arreglárselas solo. Y de esa forma, estamos en el campo de los traumatismos por ausencia o inadecuación del objeto, en el mejor de los casos; en lo peor, el paciente tiene que salvarse de un objeto perturbador e invasor, creando barreras protectoras. Como consecuencia de esta situación, el paciente con estructura narcísica, no tiene ninguna confianza en el objeto, y el nuevo objeto-analista debe conquistar la confianza en el campo, operando por un largo tiempo como un nuevo cuerpo de bomberos o de una protección civil de una pequeña ciudad, poniéndose enteramente a disposición. Palabras-llave Narcisismo. Trauma. Campo Analítico. Reconstruccion. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 409 Antonino Ferro of traumatisms by object’s absence or inadequacy, at best, or, in the worst case; the patient has to save him or herself from a disturbing or invasive object, building protective barriers. As a consequence of that situation, the patient with a narcissistic structure has no confidence in the object, and the new therapist-object must first gain the confidence through the field, functioning for a long time as small town new fire department or civil defense, making him or herself absolutely available. NARCISISMO E TRAUMA: A ATUALIDADE E A HISTÓRIA Referencias BARANGER, M. La Mente del Analista: de la escucha a la interpretación. Revista de Psicoanálisis: APA, v.49, n.2, p.223-237, 1992. BARANGER, M.; BARANGER, W. La Situación Analítica como Campo Dinámico. Revista Uruguaya de Psicoanálisis, Montevideo, v.4, p.1, 1961-1962. BION, W.R. Learning from Experience. London: Heinemann, 1962. ______. 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Ao abordarmos o tema do trauma, devemos, inicialmente, diferenciar verdade material de verdade histórica. Entende-se verdade material como a verdade da coisa em si, incognoscível e não apreensível. Essa percepção da realidade irá marcar o aparelho psíquico através de representações do objeto objetivamente percebido. Posteriormente, essas representações irão constituir o registro simbólico, estabelecendo a subjetividade do objeto, sendo isso a verdade histórica, que, por sua vez, consiste na verdade dos acontecimentos tal qual foram vivenciados pelo sujeito na ocasião dada. Freud (1895) definiu a verda- Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 413 Augusta G. Heller, Magda Beatriz Martins Costa A Vivência do Trauma no Analista: da dor ao ato criativo A VIVÊNCIA DO TRAUMA NO ANALISTA: DA DOR AO ATO CRIATIVO de histórica pela maneira como o pólo perceptual irá perceber os diferentes aspectos da realidade externa. Segundo Piera Aulagnier (1994), Willy Baranger e Eduardo Luque, um acontecimento somente se transforma em acontecimento psíquico quando tem o poder de afetar a psique, de ser fonte de prazer ou de sofrimento. Esse encontro entre a psique e a ocorrência externa vem exigir uma modificação no investimento que deverá sofrer correções no processo identificatório, na economia narcisista e na organização do próprio espaço relacional. Para Botella e Botella (2003), só o psiquicamente elaborável merece o qualificativo de traumático. O analisando espera encontrar na figura do analista um continente para suas angústias. Essa função só poderá ser exercida pelo analista à medida que este tenha podido elaborar os conflitos relativos à configuração edípica em sua análise pessoal. Nesses casos, acreditamos que a atitude da pessoa real do analista marque diferentes destinos a partir do reconhecimento dos seus próprios limites. Para Raquel Zak de Goldstein, ser analista não é uma qualidade definitivamente adquirida. “É saber um pouco mais do que acontece com a gente, é ser capaz de permanecer na incerteza, ‘com sua correlativa possibilidade de criatividade’” (2004, p.57). Sobre o Traumático [...] é bem natural que nossos instintos trabalhem contra nossos instintos, que quase nossos contra-instintos trabalhem em vez de nossos instintos, e ainda mais, em seu lugar – assim falei espirituosamente, caso isso possa ser chamado de espirituoso, isto é, caso a verdade nua e deplorável possa ser chamada de espirituosa (KERTÉSZ, 1995, p.7). Essa citação é de Imre Kertész, sobrevivente do campo de Auschwitz, para onde foi levado aos 15 anos. No livro Kadish1 para uma Criança Não Nascida, o autor aborda as terríveis lembranças do holocausto no cotidiano daqueles que sobreviveram; a “dificuldade de sobreviver o sobreviver”, 1 Kadish é a designação dada no ritual judaico à oração fúnebre – reza dos mortos. 414 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 413-427, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 415 Augusta G. Heller, Magda Beatriz Martins Costa introduzindo, assim, uma nova visão do que foi considerado um dos maiores traumas da história contemporânea. Podemos definir o trauma como a invasão de estímulos de tal magnitude que ultrapassam determinado umbral, impossibilitando a permanência de ligações entre as diferentes representações no aparelho psíquico. A conseqüência desse fenômeno é a ruptura das barreiras de contato ou conexões entre as representações, fazendo com que o aparelho psíquico seja tomado por intensidades tensionais, gerando ansiedade e sofrimento. Esses estímulos não metabolizados psiquicamente constituem o irrepresentável na mente humana. A reação ao traumático, à medida que rompe as ligações, incide direta e imediatamente sobre a consciência e sobre as fronteiras entre as instâncias psíquicas (ponto de vista econômico, dinâmico e estrutural). A ruptura promovida pelo trauma questiona dolorosamente no sujeito a continuidade do si mesmo, a organização de suas identificações e ideais, o emprego dos mecanismos de defesa, a coerência de sua forma pessoal de sentir, de atuar e de pensar. Freud (1926) irá centralizar a questão do trauma em seus aspectos subjetivos, como nas diversas experiências de perda – da mãe, do amor da mãe, do amor dos objetos, do amor do superego –, situações essas que levam o sujeito a um estado de desvalimento, de impotência psíquica frente a irrupções de estímulos. Sendo assim, podemos observar que, para Freud, em um determinado momento de sua obra, parece não haver grande diferença entre os efeitos traumáticos, sejam eles de origem interna ou externa. De acordo com Kaës, o sentimento subjetivo de ruptura na continuidade entre o meio externo e o si mesmo encontra suas raízes naquilo que foi experimentado na ocasião das primeiras rupturas sofridas pelo sujeito. Essas primeiras ansiedades, à medida que, como dissemos anteriormente, rompem as ligações necessárias entre diferentes representações psíquicas, irão constituir um vazio no interior do sujeito. Assim, qualquer palavra que se tente dizer no intuito de dar sentido ao irrepresentável poderá ser A VIVÊNCIA DO TRAUMA NO ANALISTA: DA DOR AO ATO CRIATIVO vivenciada como incremento de angústia, não possível de ser contida no psiquismo. Torna-se uma tensão em busca de representação, marcando o desamparo um dia vivido. O fenômeno de ruptura se assemelha ao processo do luto, definido por Freud como “a reação frente à perda de uma pessoa amada ou abstração que a ela se assemelha, como a pátria, a liberdade, um ideal [...] devendo ser retirada toda a libido de seus enlaces com esse objeto” (1917, p.241). Diferenciou-o da melancolia, ao referir que esta se singulariza no psíquico por uma indisposição profundamente dolorosa, um cancelamento do interesse pelo exterior, perda da capacidade de amar, inibição de toda produtividade e uma diminuição no sentimento do si mesmo que se exterioriza através de autocensuras e autodifamações, podendo chegar ao extremo de uma atitude delirante de castigo (1917, p.242). Pensamos que a diferença básica entre luto e melancolia resida na repercussão que a situação da perda ou a força do traumático irão causar no psiquismo, considerando-se o momento da ocorrência, história de vida, vínculos objetais e conquistas anteriores. No caso da melancolia, o sentimento de perda se relaciona ao fato de o sujeito saber quem (ele) perdeu, mas não o que perdeu do objeto. Nesse sentido, a perda do objeto foi subtraída, retirada da consciência, diferentemente do luto, em que não há nada inconsciente no que diz respeito à perda. Segundo Willy e Madeleine Baranger e Jorge Mario Mom (1988), um trauma psíquico começa a ter existência em uma análise quando é reconhecido como tal, seja por parte do analisando, seja por parte do analista. Adquire pleno estatuto quando ambos se dão conta de que isso, antes não nomeado, não datado, não explicitado, teve papel etiológico determinante em uma série de acontecimentos e de transtornos anteriores. O trauma original leva a uma ruptura do processo psicossexual em desenvolvimento, gerando, quando não superado, o roubo de um tempo da história que não poderá jamais ser recuperado. Por esse motivo, a teoria freudiana do trau416 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 413-427, 2005 [...] la historización analítica, que opera en un movimiento retroactivo, tiende a sustituir esta historia falsa por una historia más verdadera, al mismo tiempo que a reabrir la temporalidad con sus dimensiones de futuro, presente y pasado interactuando dialécticamente (1988, p.179). Jaime Szpilka (2002) refere que a palavra não diz toda a verdade da coisa; deve ser diferenciada em seu conteúdo manifesto e latente daquilo que a palavra representa. Afirma também que, racionalmente, somos atraídos pelo conteúdo manifesto de um discurso, a partir do qual privilegiamos tal ou qual ocorrência traumática, atribuindo uma determinada reciprocidade entre causa e efeito. Dessa maneira, formam-se conexões que parecem pertinentes, armando-se uma rede compreensível, comparável à elaboração dos sonhos. Entretanto, podem estabelecer-se falsas conexões, que alcançam a consciência através de um determinado derivado que pôde ultrapassar a barreira da repressão. Isso não quer dizer que tivemos acesso ao conteúdo latente, pois, nesse caso, pode tratar-se de um “sem sentido”, algo não representável, uma palavra vazia. Por essas questões, podemos pensar que o psicanalista não seria um intérprete como o músico, que executa a música a partir da leitura das notas musicais em uma partitura, nem poderia ser comparado com um tradutor, que escolhe a palavra que melhor se aplica a um conceito escrito em outra língua; o psicanalista tem de aprender pela sua curiosidade a respeito de si mesmo, através de um dicionário no qual as referências estão ausentes (SZPILKA, 2002). Ali onde falta a palavra correspondente a uma representação reprimida, o analista buscará um sentido, porque se trata da representação da pulsão que permaneceu no inconsciente, sem palavra, em busca de sentido. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 417 Augusta G. Heller, Magda Beatriz Martins Costa ma “em dois tempos” torna-o inseparável do processo de historização analítica, processo que permite vincular ambos os tempos. Para esses autores: A VIVÊNCIA DO TRAUMA NO ANALISTA: DA DOR AO ATO CRIATIVO Sobre o Setting Analítico [...] a palavra, que articula a jubilosa maravilha com a complicada desgraça, é a que se pode assumir como luto pela verdade como impossível, sendo que o conteúdo latente que através da livre-associação abre o caminho ao sentido e ao sem sentido, implica justamente o re-corrido que destitui do manifesto a idéia de uma unidade do ser, do saber e da verdade (SZPILKA, 2002, p.67). Segundo René Kaës, a situação psicanalítica compreende um enquadre específico do qual fazem parte o papel do analista, o conjunto de fatores que afetam o espaço e o tempo e a técnica (horários, pontualidade, honorários, interrupções). Sabemos que o encontro analítico é sustentado, por um lado, pelo desejo do analista associado a sua prática baseada no tripé da formação analítica e, por outro, pelo desejo do analisando de saber de seu sofrimento. Ambos estão protegidos pela neutralidade e pela abstinência, possibilitando, através da regra fundamental – associação livre/atenção flutuante – a comunicação entre duas subjetividades por meio da transferência e da contratransferência. Cabe ao psicanalista ter um conhecimento suficiente de seu funcionamento psíquico para poder distinguir os fenômenos que interferem em sua capacidade analítica e diferenciá-los dos que nascem de identificações projetivas originadas no analisando, dos fenômenos suscitados pelos seus próprios complexos. É importante que a elaboração da experiência da ruptura devida ao traumático se fundamente sobre o estabelecimento e a manutenção do enquadre psicanalítico. A não-manutenção do enquadre poderá provocar perigosos efeitos na segurança e identidade do analisando, que poderá vivenciá-la como um ataque à integridade do Eu, num momento em que este não dispõe dos mecanismos de defesa suficientes para lutar contra a angústia catastrófica. O que pensar, então, quando uma situação traumática é vivida pelo analista, provocando o afastamento temporário de suas atividades e um transtorno do setting analítico? 418 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 413-427, 2005 Arte é também canalizar em ato produtivo o que poderia ser aniquilamento (LUFT, 1986, p.133). Cada ser humano e nenhum em particular carrega em si o trauma do desamparo. Não é porque escolhemos ser psicólogos ou médicos que estamos imunes à dor promovida pelo inusitado, que invade o psiquismo devastando as barreiras de contato e rompendo, temporariamente, qualquer possibilidade de representação. Talvez justamente por termos vivenciado essa experiência de desamparo de forma intensa é que tenhamos escolhido essas profissões. Todavia, frente ao excesso, a grandes quantidades de estímulos externos que irrompem no psiquismo, a capacidade de adaptação dependerá dos caminhos anteriormente percorridos no trabalho de ligação e dependerá, também, dos destinos possíveis das forças pulsionais. Através de nossas próprias análises vamos pouco a pouco adquirindo condições de reordenamento representacional que irão estabelecer registros pulsionais necessários ao estabelecimento de processos simbólicos na mente do analista. É na presença e companhia do analisando que utilizamos a função psicanalítica da mente, ao interpretarmos um ato falho, sonho, sintoma, ou ao fazermos uma construção, no sentido que tomou Freud em 1937. A psicanálise contemporânea tratou de resgatar importantes contribuições de Ferenczi (1997) na compreensão de processos dinâmicos que se estabelecem na relação entre analista e analisando. Dizia esse autor que a psicanálise era um “ofício impossível”, pelo fato de os psicanalistas serem “os produtos da imperfeição de sua prática”. Dentro do contexto abordado por nós, o trauma sofrido pelo analista derrama sobre sua pessoa os efeitos dessa ocorrência. Como manter diante de situações de intenso sofrimento a estrutura necessária que sustente a capacidade analítica invadida por ocorrências traumáticas reais? Os efeitos que o trauma causa em sua pessoa poderão ou não interferir na demanda do paciente, pois, como menciona Marucco, a pessoa real do Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 419 Augusta G. Heller, Magda Beatriz Martins Costa Sobre o Psicanalista A VIVÊNCIA DO TRAUMA NO ANALISTA: DA DOR AO ATO CRIATIVO analista é um aspecto inerente à tarefa que não pode ser deixada de lado e que atuará como um “disparador” de algumas transferências do paciente. Nesse encontro, no campo da experiência analítica, se produz um descobrimento que “é histórico, construção da recordação, e presente, à medida que é motor e veículo para as transferências”. Dessa forma, aquilo que diz respeito a sua história pessoal, sua vivência e ideologia, “aporta à neurose de transferência um componente único, irrepetível e original que permite organizar novamente os capítulos daquela velha trama” (1995, p.732-733). Caberia aqui uma pequena vinheta no sentido de ilustrar esses processos disruptivos: Um analista, frente a uma situação de perda importante, afasta-se abruptamente de suas atividades profissionais, avisando a seus pacientes que se ausentará por uma semana. Tomado pelo impacto da dor, questionase a respeito de quando se sentirá em condições de retomar suas atividades, se o tempo comunicado aos pacientes será suficiente para recompor-se. Sente muitas dúvidas, naquele momento, quanto à sua capacidade analítica – poderá escutar o analisando se está tomado por sua própria dor? Passado o período previsto do seu afastamento, recebe uma chamada telefônica. Ao saber de que se trata de um analisando, começa a ouvi-lo. Este queixa-se do atendimento recebido pelo médico que lhe faz o acompanhamento psicofarmacológico, dizendo que não lhe prestava o devido cuidado, que fazia uma semana tentava comunicar-se com o médico, que não lhe respondia, sentindo-se, em conseqüência, descuidado, perdido, sem saber se seguia ou não a medicação. À medida que o analista passa a escutar seu paciente, percebe que era deles dois de quem falava, o que desencadeou no analista a lembrança da história de seu paciente. O analista se deu conta de que o paciente experimentava velhos e conhecidos sentimentos de desamparo. Simultaneamente, o analista percebe que, ao poder escutar o analisando, sua própria dor havia sido suspensa, passando para um outro tempo e espaço, constituído pela demanda do analisando. Assim, sente-se em condições de retomar seu trabalho e o campo analítico. Dessa forma, sai de foco a realidade da dor, passando ao ato criativo e 420 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 413-427, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 421 Augusta G. Heller, Magda Beatriz Martins Costa dando lugar a uma relação transferencial, que Nasio (1999) denomina “o vínculo da análise”. Esse afastamento da dor psíquica provocada pela demanda do analisando resgata a função analítica da mente e contribui para a elaboração do processo de luto no analista. Nasio, lembrando Spinoza, coloca que “ser afetado é ser capaz, ter o poder de; ter o poder não apenas de agir sobre os outros, mas de ser permeável à ação dos outros.” (1999, p.42). Considera que esse é um dos critérios de analisabilidade. Pensamos ficar clara a impossibilidade da aplicação do método terapêutico baseado na análise da transferência em que o analista não tenha passado por uma experiência de análise pessoal. Sem essa experiência, incorrer-se-ia no risco de atribuir ao paciente o incômodo representado pelo incremento de suas ansiedades pessoais. Cabe ao analista, além de analisar o analisando, buscar uma compreensão do que se passa com ele mesmo e do que foi gerado pelo paciente. Para Marucco (1995), no setting, aquilo que parte do analista como pessoa é fonte de mal-estar, na medida em que não possa tornar-se consciente no âmbito da tarefa analítica. Será, então, a partir do enfrentamento do mal-estar gerado que poderá surgir a riqueza de nossa prática analítica, visando dar sentido ao sem-sentido, considerando os riscos que a singularidade real poderá levar ao mais além da função analítica. A psicanálise está longe de ser uma ciência exata, e essa é sua virtude. É na impossibilidade de as palavras revelarem todo seu significado e na inexatidão dos sentidos que irão se manifestar os fenômenos do inconsciente. É nessas imperfeições que se revela o ser humano. Possivelmente, não sejam elas um obstáculo; poderão ser, bem mais, um “auxiliador específico” para o avanço do processo, quando podem ser reconhecidos os limites do analisável dentro de um espaço e tempo dados, aplicados igualmente para o analisando e o analista. Diferentemente da idealização do analisando, o analista tem uma vida própria e passa pelas intercorrências da vida. A impressão do mundo exterior e a demanda deste criam marcas, as primeiras inscrições constituintes do aparelho de memória. Piera Aulagnier afirma que a ação do Eu se manifesta pela possibilidade de A VIVÊNCIA DO TRAUMA NO ANALISTA: DA DOR AO ATO CRIATIVO metabolizar os roteiros pictográficos e as fantasias “em representações relacionais, pelo seu trabalho de sublimação e ou pela sua ação recalcadora” (1989, p.227). Com relação à realidade da situação analítica, Robert Caper sugere que o analista tenha “uma mente própria”, através de uma relação de paixão com seus objetos internos que exclua o paciente, “caso ele queira ajudar o paciente a sair da fusão esquizoparanóide, narcísica e entrar num contato depressivo realista com ele (analista) como um objeto propriamente dito” (2002, p.178). Para esse autor, uma das tarefas do analista é não se identificar com o paciente, a não ser de forma limitada e circunscrita. Através da manutenção de sua “mente própria” – relações com seus objetos internos que excluem o paciente –, ele está em posição de auxiliar o paciente a não se identificar com ele, o que permite que esse paciente se identifique consigo mesmo e tenha uma relação com seus próprios objetos internos, em vez de uma identificação com o analista. Sobre a Capacidade de Sublimação De acordo com Maria Rita Kehl, o conceito psicanalítico de maior alcance ético é o da sublimação, justamente porque permite o enfrentamento do problema, aparentemente incontornável, da relação do sujeito com a pulsão de morte, pulsão por excelência. Esta produz efeitos destrutivos e desorganizadores ao criar resistências para ser dominada pela pulsão de vida, que está sempre buscando um objeto a que se ligar. “As pulsões de vida apontam sempre para onde estão os outros”, segundo a autora (2002, p.163). O alcance da sublimação contempla a todos que se interessam pelo processo analítico, através do qual se torna possível suportar o vazio e fazer algo a partir dele diferente de uma reação violenta de pânico. A sublimação como um destino possível da pulsão e como re-elaboração permite enfrentar a vivência, por mais traumática que seja. Pensamos que mais vale a representação da castração, da falta do pênis, caminho necessário para elaborar a dor da perda, do desinvestimento no objeto, reco422 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 413-427, 2005 Considerações Finais Baseadas no que discorremos ao longo deste trabalho, entendemos que, entre as particularidades do campo analítico, uma delas diz respeito à presença do analista como pessoa real e como função analítica. Esta deverá manter-se preservada para que a comunicação entre inconscientes, à luz da transferência-contratransferência, não sofra distorções. Uma dessas distorções se assemelharia ao que Raquel Goldstein (1997) intitula demanda de dependência revertida, situação em que o analisando trataria de cuidar ilusoriamente do analista. Na situação de trauma do analista, pensamos que poderá haver uma identificação do analisando com aspectos deprimidos do analista, revivendo, dessa forma, o desamparo. Todavia, esse sentimento re-atualizado segue a sua própria história de vida e o curso do seu desenvolvimento, despertado a partir da pessoa real do analista. O grande diferencial reside no fato de que ao analista não caberá usar seu analisando para recuperar a perda temporária de sua capacidade de pensar, pois isso colocará em risco todo o processo analítico. Decorrentes do processo de luto do analista poderão ocorrer distorções na sua capacidade de escuta, já que estará preso a sua própria dor. Entretanto, poderá ocorrer que o analista encontre condições para manter sua capacidade de escutar a dor do paciente reutilizando sua própria vivência de falta em um espaço potencial, o espaço analítico. Promoverá, assim, crescimento em ambos, uma vez que sabemos que só é possível crescer na falta. Será a partir da dimensão do próprio desejo que se permitirá enfrentar a falta, através de uma nova criação. Quando os espaços mentais do analista e do analisando se mantêm como dois espaços em separado, e o analista reconhece o momento e o processo pelos quais passa, e preserva sua escuta, poderá manter intacta a função analítica. Nesse sentido, cada analista irá com a análise de seu anaSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 423 Augusta G. Heller, Magda Beatriz Martins Costa nhecimento do interdito, que a saída narcisista da falta de investimento do sujeito no objeto. A VIVÊNCIA DO TRAUMA NO ANALISTA: DA DOR AO ATO CRIATIVO lisando somente até onde foi com sua própria análise, como defendeu Freud em muitos de seus artigos técnicos. Pensamos, então, que a singularidade de cada analisando, no encontro com a singularidade do analista, constituirá uma demanda e uma capacidade criativa para cada par em particular. Resumo Nosso objetivo é abordar algumas questões suscitadas pela vivência de um trauma real no analista e suas repercussões na prática clínica. Entende-se que a particularidade do campo analítico diz respeito à figura do analista como pessoa real e ocorre através de uma escuta que chamamos escuta analítica. Esta remete a uma função da mente – função analítica – que deverá buscar um distanciamento emocional mínimo para preservar a comunicação entre inconscientes. O processo de transferênciacontratransferência assim poderá ser mantido com poucas distorções. Desenvolvemos, ainda, a questão da importância da análise pessoal e da supervisão como forma de estabelecer um espaço entre mente do analistamente do analisando, onde os fenômenos representacionais possam ser compreendidos. Palavras-chave Trauma. Campo analítico. Sublimação. Abstract The Existence of Trauma in the Analyst: from the pain to the creative act Our objetive is to deal with some questions raised by the existence of a real trauma in the analyst and its repercussions in the clinical practice. It’s understood that the particularity of the analytical field concerns the character of the analyst as a real person and occurs through a hearing that we call analytical hearing. This hearing refers to a function of the mind – analytical function – that shall look for a minimum emotional distance to keep the communication between the unconscious. This way, the transference-countertransference process can be kept 424 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 413-427, 2005 Key-words Trauma. Analytic field. Sublimation. Resumen La Vivencia del Trauma en el Analista: del dolor al acto creativo Nuestro objetivo es abordar algunas cuestiones suscitadas por la vivencia de un trauma real en el analista y sus repercusiones en la práctica clínica. Se entiende que la particularidad del campo analítico dice respecto a la figura del analista como persona real y ocurre a través de una escucha que llamamos escucha analítica. Esta remete a una función de la mente – función analítica – que deberá buscar un distanciamiento emocional mínimo para preservar la comunicación entre inconscientes. El proceso de transferencia-contratransferencia así podrá ser mantenido con pocas distorsiones. Aún, desarrollamos la cuestión de la importancia del análisis personal y de la supervisión como forma de establecer un espacio entre mente del analista-mente del analizando, donde los fenómenos representacionales puedan ser comprendidos. Palabras-llave Trauma. Campo analítico. Sublimación. 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Magda Beatriz Martins Costa Rua Caju, 28/807 90690-310 Porto Alegre – RS – Brasil Fone/fax: (0xx51) 3338-0157 E-mail: [email protected] Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 427 Augusta G. Heller, Magda Beatriz Martins Costa NASIO, J.D. Como Trabalha um Psicanalista? Rio de Janeiro: Zahar, 1999. SZPILKA, J. Creer en el Inconciente. Madrid: Síntesis, 2002. A VIVÊNCIA DO TRAUMA NO ANALISTA: DA DOR AO ATO CRIATIVO 428 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 413-427, 2005 Carlos F. L. Pires Leal Membro Efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro. A reflexão sobre as possibilidades de articulação entre a experiência traumática e a literatura ilumina, potencialmente, tanto o campo da teoria psicanalítica quanto os domínios da arte e da criação artística. Este trabalho, após uma breve delimitação dos conceitos de trauma e repetição, tomará a literatura de testemunho – na qual a situação traumática incide a partir da realidade externa – e a narrativa literária representada pelo romance e pela ficção – na qual o trauma incide a partir da vida fantasmática – como Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 429 Carlos F. L. Pires Leal Trauma e Literatura: repetição e criação na Literatura e na Psicanálise TRAUMA CRIAÇÃO NA LITERATURA: REPETIÇÃO E LITERATURA E NA PSICANÁLISE E produções a partir das quais será analisado o processo de criação. Entre outras, serão utilizadas imagens literárias de autores como Proust, Borges e Celan para ilustrar formas possíveis de dizer e representar a realidade interna-externa em suas figurações múltiplas, característica da atividade criadora. Especial ênfase será dada aos limites da representação e da linguagem que, simultaneamente, nutrem-se de aspectos restauradores e destrutivos (em Fedro, Platão denominou o ato de escrever de phármacon, que, a um só tempo, significa remédio e veneno). Finalmente, o texto procurará demonstrar que a repetição, no terreno da estética literária, não é obrigatoriamente sinônimo de monotonia, silêncio traumático ou reprodução obtusa do mesmo. Pelo contrário, pode indicar o esforço da elaboração psíquica convertendo-se em uma pré-condição da própria obra artística pela abertura que enseja à polifonia. Trauma: revisão do conceito A teoria do trauma incide do começo ao fim na produção de Freud. Ela se transforma junto à história da própria psicanálise, figurando como uma espécie de mito de origem do saber psicanalítico. Nos primeiros tempos da história da psicanálise, a compreensão etiológica da neurose teve no trauma seu fator central. Trauma sendo sinônimo de acontecimento factual e biográfico datável, subjetivamente relevante pelos afetos desagradáveis que desencadeia (PONTALIS; LAPLANCHE, 1983). Dentro da referência metapsicológica (em sua vertente econômica), trauma significa intensidade. Intensidade que implica, por um lado, incidência de excitação sobre o psiquismo e, por outro, impossibilidade de ele atenuar o impacto sofrido através do trabalho de elaboração psíquica. Com o abandono relativo da teoria da sedução infantil, a fantasia toma o lugar do fato. Agora é ela que vem para frente do palco, tornando-se protagonista na produção do trauma. Nas Conferências Introdutórias (1916-1917), Freud volta a falar sobre a possibilidade de a realidade externa atingir o psiquismo, não dando a ele chance de defesa – para preservar o princípio da constância. Os protótipos dessas situações são a neurose de 430 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 429-443, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 431 Carlos F. L. Pires Leal guerra e a neurose traumática. Cerca de três anos depois (em Além do Princípio do Prazer, 1920), Freud retoma a definição econômica do trauma, afirmando que o afluxo excessivo de excitação exige, como pré-condição para a descarga, a ligação das excitações às representações por meio de laços associativos – mesmo ignorando o princípio do prazer. A compulsão à repetição seria uma estratégia de dominação da situação traumática. A origem do trauma, na parte final dos escritos freudianos (FREUD, 1937), compatibiliza o interno com o externo (etiologia mista da origem das neuroses): o fundamental passa a ser a intensidade dos estímulos que incidem sobre o psiquismo e a incapacidade deste de proteger-se, devido ao rompimento da barreira de proteção. Uma das conseqüências fundamentais é o impedimento do processo de simbolização e pensamento. Repetição das necessidades ou necessidade de repetição? A pergunta foi formulada por D. Lagache, que questiona se a necessidade de repetição pelo psiquismo não seria ainda mais fundamental que a repetição das necessidades. Longe de representar um simples jogo de palavras, a pergunta encerra uma direção para compreendermos o caminho da dissolução do trauma. O exemplo clássico seria o jogo do carretel, no qual a repetição tem a função, através da dramatização e da intermediação da linguagem, de administrar a situação traumática deflagrada pelo desaparecimento da mãe. Trata-se, portanto – e é este aspecto que desejo salientar neste trabalho –, de uma repetição, dando ensejo ao fato criador. O sujeito implicado nessa experiência não sucumbe passivamente à angústia traumática de separação: cria, ativamente, um jogo para tentar suportá-la. M’uzan (1965) nos diz que o que é representado em situações como a descrita acima não é nem o agradável nem o real, mas uma situação de um ser de desejo que, em si, constitui uma nova realidade. A ela seria ligado o esforço de toda a criação: desde a invenção de um jogo simples, como o do carretel, até a obra artística mais elevada. O autor nos convida a prestar atenção ao fato de que essas formas de expressão são particularmente importantes por revelar um traço de espírito que parece ter estado presente no momento mesmo em que elas nasceram e a que poderíamos denominar TRAUMA CRIAÇÃO NA LITERATURA: REPETIÇÃO E LITERATURA E NA PSICANÁLISE E inspiração. Quando assim concebida, ela representa uma função egóica buscando a restituição da situação anterior ao trauma. Nessa perspectiva, a repetição estaria a serviço do ego, diferindo da alternativa na qual o ego permanece sob o domínio da compulsão à repetição, sem que haja a resolução da tensão interna (BIBRING, 1943). A inspiração, conforme a interessante concepção de M’uzan (1965), articula repetição e criatividade, jogando por terra a idéia tantas vezes propalada de que repetir é sinônimo de esvaziamento imaginativo ou de enfadonha monotonia. Pelo contrário, ela pode estar na base dos processos criativos. Mas, para que isso ocorra, é necessário que se cumpra um processo. Esquematicamente, ele constaria das seguintes fases: num primeiro momento, há a inundação energética do psiquismo (situação traumática); em seguida, o silêncio é restabelecido graças à encenação dramática da situação (a experiência adquire um valor positivo); o processo se reinicia, cada etapa suscitando uma nova experiência de ruptura – de um modo geral menos dramática que a primeira. E qual seria a primeira? Rank e Groddeck diriam que é o trauma do nascimento que permanece, indelével, inscrito na psique do indivíduo – que vida afora procura esquecê-lo e retomá-lo. Daí a necessidade de repetição indicada no subtítulo acima. Estabelecidos os elos que interconectam – como num jogo – repetição e criação, vejamos, a seguir, como essa dinâmica surge na criação literária, na qual o trauma determinará os limites da escrita e as fronteiras do dizível. Trauma e Criação Literária Com o objetivo de examinar formas possíveis de articulação entre a vivência traumática e a criação literária, escolhi dois tipos de narrativas literárias nas quais a incidência do trauma se dá de formas diversas: a literatura de testemunho – na qual o trauma incide a partir da realidade externa –, e o romance ou a ficção – em que as vivências traumáticas (e o fenômeno da repetição) incidem a partir da interioridade e da subjetividade do autor. Na literatura de testemunho, o estímulo que dá partida à escritura é a experiência-limite, algo de excepcional que exige ser relatado e que se en432 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 429-443, 2005 sempre irei encontrar, em minha própria repetição, apenas o último reflexo de uma fala ausente na escrita, o escândalo do silêncio deles e do meu silêncio [...] A lembrança deles está morta na escrita; a escrita é a lembrança de sua morte e a afirmação de minha vida. Vemos nesse pronunciamento o jogo dialético entre presença-ausência, dizível-indizível, representável-irrepresentável. A obra literária, ao dizer, deixa algo de fora. A escrita não dá conta do excesso da experiência que a desencadeia: deixa um resto que a linguagem jamais poderá conter. Esta nunca será mais do que um reflexo, uma miragem do vivido. É curioso, no entanto, que a literatura de testemunho precisará narrar o vivido – no caso, a barbárie do nazismo –, utilizando-se da narrativa de ficção para torná-la verossímil aos olhos do leitor. Um dos piores sentimentos experimentados pelos sobreviventes de campos de concentração foi o descrédito que seus relatos provocavam naqueles que os ouviam (ou liam). Passavam por inventores. A estética da ficção passou a ser necessária como forma de recuperar a credibilidade do testemunho dos que sentiram o hálito da morte, deflagrando uma compreensível premência de falar por si e pelos que foram silenciados para sempre. Paul Celan (pseudônimo de Paul Antschel) é outro escritor clássico da literatura de testemunho. Enaltecido como um dos maiores poetas de lín- Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 433 Carlos F. L. Pires Leal contra no limite do dizível. Georges Perec (1995) inverte a lógica mais comumente aplicada a essas situações ao dizer que “o indizível não está escondido na escrita, é aquilo que muito antes a desencadeou”. O escritor-testemunha “se relaciona de um modo excepcional com a linguagem: ele desfaz os lacres da linguagem que tentavam encobrir o ‘indizível’, que a sustenta” (SELIGMANN-SILVA, 2001). Perec sabia do que falava: seus pais foram covardemente assassinados pelos nazistas, deixando nele uma falta com a qual procurou se haver através de seus escritos – mas que também a desencadeou. Voltemos a ele, citado novamente por Seligmann-Silva (2001): TRAUMA CRIAÇÃO NA LITERATURA: REPETIÇÃO E LITERATURA E NA PSICANÁLISE E gua alemã do pós-guerra, registrou em sua obra o terror do nazismo. A desolação pela perda dos pais, mortos em um campo de extermínio do qual fugiria, o fez produzir um texto denso, vigoroso e envolto em silêncio e dor. Sua escrita, por vezes considerada obscura e hermética, desmentiu a declaração de que, “depois de Auschwitz, não haveria mais lugar para a poesia no mundo”. Celan foi um dos primeiros a provar o contrário: sua genialidade artística permitiu que extraísse poesia da escuridão traumática do terror inominável. Segundo Carone (1973), Celan arrancou “do miolo das palavras um vigor germinal”, fazendo sair “pelas frestas do idioma fraturado fragmentos liberados de um cortejo irracional e verdadeiro [...] tudo jogado numa rede pródiga de repetições e variações”. Novamente o contraponto entre a repetição e a criação. Paul Celan, num ato de fé, depositava na palavra uma propriedade de redenção e resgate. Preservou a língua como condição para recriar-se. Mas não deixava de nela também entrever um potencial assassino: Accesible, próxima y no perdida, quedaba en medio de todo lo que había sido necesario dejar atrás, esta única cosa: la lengua. La lengua, sí, no estaba, a pesar de todo, perdida. Pero hubo de pasar por sus propias ausencias de respuesta, pasar por un terrible mutismo, pasar por las mil espesas tinieblas de una palabra asesina. Pasó sin explicarse con palabras lo que había sucedido. Pero pasó por el lugar del Acontecimiento. Pasó y pudo de nuevo volver a la luz, enriquecida de todo ello. Es en ese lenguaje, durante esos años y los años que siguieron, en el que he intentado escribir poemas: para hablar, para orientarme y conocer en qué lugar me encontraba, adónde debía ir, y crearme así una realidad (BLANCHOT et al. citados por ANDRÉ, 2002). Em abril de 1970, Celan suicidou-se no Rio Sena. A esperança criativa ruiu; as palavras não puderam mais conter o excesso (de dor) que marcaram indelevelmente sua vida. A repetição sucumbiu ao ato criativo. Vejamos agora como a vivência traumática e o fenômeno da repetição 434 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 429-443, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 435 Carlos F. L. Pires Leal incidem a partir do mundo interno e de que forma determinam a produção literária. Em Proust, a incidência do trauma pode ser inferida em conjugação com a experiência do tempo e da temporalidade. A vivência traumática experimentada como vivência do instante em sua reverberação catastrófica não deixa que se estruture uma temporalidade psíquica. Como evidenciam as neuroses traumáticas, o trauma é sempre atual. Nelas as representações não podem ser substituídas por outras; não formam séries associáveis. González (2001) nos diz que “ciertas configuraciones traumáticas tienen este poder de destruir el tiempo en las imágenes, de expulsar a un sujeto fuera del tiempo, y de crear imágenes inmóviles que lo miran”. A busca proustiana do tempo perdido (PROUST, 2002) implica a recriação de experiências vividas por meio do recurso literário. Não se trata da rememoração do já-vivido. Ainda que o narrador nos induza, através da aparente concatenação lógica e racional de fatos e eventos, a pensar o contrário. O personagem não é real; real é a experiência estética que fruímos ao entrar em contato com ele através da narrativa literária. A consciência não contém em si o vivido que, como Freud nos indicou, funciona tãosomente como traço mnésico. De tempos em tempos, ele sofre uma reorganização, reinscrevendo-se no psiquismo. A rememoração torna-se, assim, uma reinterpretação que tem a propriedade de afugentar para um passado imaginário as exigências da realidade presente. Dessa forma, aquilo que foi vivido em um tempo anterior, e não podendo (devido ao caráter traumático) integrar-se num contexto significativo, encontra agora uma possibilidade de representação. Proust não teria escrito Em Busca do Tempo Perdido “para ‘contar sua vida’, seu tempo, seu mundo, mas para contar precisas obsessões, precisos nós, precisas dobradiças. A Busca torna ‘sua história’, ‘seu mundo’, ‘seu tempo’, artifícios, coberturas, estetizações em volta de um núcleo denso de pura repetição” (CALDAS, 2001a). Segundo o autor, a escrita proustiana seria uma espécie de vegetação textual luxuriante que prolifera em torno dessa repetição tão obsessiva quanto indizível. O esforço de dizer e narrar TRAUMA CRIAÇÃO NA LITERATURA: REPETIÇÃO E LITERATURA E NA PSICANÁLISE E mobiliza, no próprio ato de fazê-lo, elementos que, de uma forma não voluntariosa, apresentam-se à consciência do escritor distraído. Distração, aqui, implicando a qualidade involuntária da evocação de algo esquecido (caído para fora, como nos ensina a etimologia). O que foi esquecido e ressurge através da produção literária é, na realidade, uma espécie de prototexto que até aquele momento não podia ser formulado através da escrita apta a ser publicada. Antes de escrever sua obra, Proust, como qualquer outro criador literário, precisou passar pelo processo de ler sua própria vida desejante, “amputando, deslocando, denegando partes do texto primeiro, em sucessivas reformulações, até chegar ao texto final, àquele que o leitor convencional encontra pronto na edição finalizada da obra” (FREIRE, 2001). Em A Fugitiva, Proust diz: “O tempo passa, e pouco a pouco todas as nossas palavras mentirosas se tornam verdadeiras”. Em outro trecho: “Os momentos do passado não são imóveis, guardam em nossa memória o movimento que os arrastava para o futuro, um futuro que também se tornou passado, arrastando-nos também a nós”. No fragmento a seguir, Proust fala com clareza sobre a forma como as vivências traumáticas – indizíveis, incrustadas no corpo – transmutam-se em palavras: “a partir de certa idade, nossos amores e nossas amantes são filhos de nossa angústia; nosso passado e as lesões físicas em que ele se inscreveu determinam nosso futuro”. Passado e futuro influenciam-se, como vemos abaixo, de uma forma não linear exigindo-nos sua decifração através de uma leitura-escrita que lhes dá (ou restitui) sentido e significação. Por isso não se deve temer no amor, como na vida habitual, tão-somente o futuro, mas também o passado, o qual não se realiza para nós muitas vezes senão depois do futuro, e não falamos apenas do passado que só se revela mais tarde, mas daquele que conservamos há muito tempo em nós e que de repente aprendemos a ler. 436 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 429-443, 2005 Algo que não se satisfaz com um-dizer; não se define com uma aparição; não aparece com uma descrição; não se completa numa estilística; não pode obedecer a uma gramática, a uma sintaxe. E esse algo repeti- Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 437 Carlos F. L. Pires Leal O passado que conservamos em nós exige, para ser lido, uma experiência posterior que lhe abra caminho para a significação. No caso dos escritores, ela passa pela elaboração do registro escrito impregnado de qualidade estética. O que é elaborado, no entanto, não se confunde com fatos biográficos – não coincidindo com o tempo que o cronômetro registra. Trata-se de um “tempo em estado puro, alcançado pelo exercício da arte [...] o extemporâneo. Dá-se pelas impressões, pela memória involuntária, pelo ardil do esquecimento, pela manifestação do inconsciente, pelos signos artísticos [...] é o tempo para criar” (FREIRE, 2001). A própria criação de Em Busca do Tempo Perdido ilustra o processo descrito acima: a obra se anunciou em Contre Sainte-Beuve (1908-9); o primeiro e o sétimo – e último – volumes (No Caminho de Swan e O Tempo Redescoberto, respectivamente) foram escritos quase ao mesmo tempo (1910-11). Entre eles foram enxertados textos escritos em momentos diversos. Como nos diz Freire (2001), “a obra criou seu próprio tempo”. Uma temporalidade própria, original, móvel. Exatamente o oposto do que se dá no registro do trauma, no qual o sujeito é atirado fora do tempo: no espaço da repetição, da imobilidade e da monotonia no qual reina o a priori: “esa respusta masiva sin pregunta planteada” (GONZÁLEZ, 2001). Vejamos agora como um outro autor genial lidou com a repetição e, a partir dela, construiu obras de arte. Refiro-me ao poeta e escritor argentino Jorge Luis Borges. Tomarei duas imagens – espelhos e labirintos – recorrentes na sua obra, como eixos para compreender de que forma a repetição e a criação se articulam na produção da sua arte. O espelho para Borges ou, mais propriamente, os jogos de espelhos, indicam o jogo incessante entre o real e o virtual, a imagem e a coisa-em-si, o mesmo repetido – e diferindo – infinitamente: TRAUMA CRIAÇÃO NA LITERATURA: REPETIÇÃO E LITERATURA E NA PSICANÁLISE E do não é, normalmente, simplesmente uma repetição, mas um complexo em suas várias arestas (CALDAS, 2001b). A repetição de um texto, uma imagem, uma idéia nunca ocorre da mesma maneira. Cada vez que a revemos alguma nuance inédita se apresenta. Ou será que, ao revê-la, nós é que já não somos mais os mesmos leitores? Em A Biblioteca de Babel, Borges (1941) escreve sobre a “biblioteca total” que conteria todos os livros, em todos os idiomas, sobre todos os assuntos de todos os tempos... Tudo: a história minuciosa do futuro, as autobiografias dos arcanjos, o catálogo fiel da Biblioteca, milhares e milhares de catálogos falsos, a demonstração da falácia desses catálogos, a demonstração da falácia do catálogo verdadeiro, o evangelho gnóstico de Basilides, o comentário desse evangelho, o comentário do comentário desse evangelho, o relato verídico de tua morte, a versão de cada livro em todas as línguas, as interpelações de cada livro em todos os livros; o tratado que Beda pôde escrever (e não escreveu) sobre a mitologia dos saxões, os livros perdidos de Tácito. Todos os livros, no entanto, são compostos por elementos iguais: o espaço, o ponto, a vírgula, as vinte e duas letras do alfabeto. A imagem do labirinto metaforiza o desafio de encontrar o diferente no igual: sendo um lugar fechado, acabado, onde teoricamente todas as possibilidades de escolha (todas as direções a serem tomadas) já foram previstas, o labirinto propõe a quem quer sair dele – ou atingir o coração do enigma – uma atitude criativa e diligente, sem sucumbir à tentação de tentar o caminho já percorrido do óbvio – que a tantos faz sucumbir. Borges atravessa caminhos literários percorridos (por outros autores) quando conta histórias já contadas. Apesar da aparente falsidade da empreitada, ele crê que a literatura nunca se esgota: ela depende muito mais do leitor do que do autor das obras literárias. Enquanto leitores, não lemos 438 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 429-443, 2005 Trauma, Criação e Repetição Nem tudo se escreve... O limite do representável na escrita literária aponta para “o ponto de indizibilidade no coração da linguagem” (CARVALHO, 2001). Quando falamos sobre a literatura de testemunho (cf. acima), vimos que, no momento em que deixou de encontrar nas palavras uma possibilidade de redenção, Paul Celan desistiu da vida. O phármacon plaSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 439 Carlos F. L. Pires Leal estritamente o que está escrito, mas o que a nossa subjetividade possibilita. “Numa época em que tudo já foi dito, como ser original?” – indaga o poeta argentino. Nada do que já foi dito jamais poderá ser lido da mesma maneira como foi dito um dia, ou seja, todo texto lido será sempre, absoluta, necessária e, irrevogavelmente, original. Através do personagem-escritor Pièrre Menard, Borges reinventa Dom Quixote, pois nunca poderá saber o que Cervantes realmente escreveu; ele só poderá saber o que Menard lê. A originalidade é, para Borges, “uma espécie de prisão no tempo; uma limitação humana; uma condenação. A originalidade é que é o limite; o limite do sujeito em si mesmo, a inacessibilidade ao Outro, o irreversível solipsismo” (FERREIRA, 2004). Por isso, utiliza-se, reiteradamente, das imagens de labirintos, da duplicação possibilitada pelos espelhos e do mistério terrificante ou fascinante dos tigres. Em A Biblioteca de Babel, os espelhos reduplicam as imagens dos livros, criando a aparência de um infinito saber, ao mesmo tempo que a denuncia: “Os homens costumam inferir desse espelho que a Biblioteca não é infinita (se o fosse realmente, para que essa duplicação ilusória?), prefiro sonhar que as superfícies polidas representam e prometem o infinito”. O autor ora angustia-se com a dimensão daquele repositório inesgotável do saber – que demanda um leitor impossível – ora se deleita com essa possibilidade, entregando-se a uma extravagante felicidade. Por outro lado, assevera que “a certeza de que tudo está escrito nos anula ou nos fantasmagoriza”. É preciso não sucumbir ante o temor da inutilidade do dizer, dos limites da escrita... TRAUMA CRIAÇÃO NA LITERATURA: REPETIÇÃO E LITERATURA E NA PSICANÁLISE E tônico pendeu para o pólo destrutivo, envenenando (ou deixando de desintoxicar) o escritor. Nesse momento, ainda seguindo Carvalho (2001), “a morte real do autor [torna-se], num mesmo golpe, inscrição, representação e limite”. Estamos no registro do trauma que, em seu excesso, extrapola a capacidade de contenção, atenuação e transformação através da linguagem. Nesses casos, a palavra não representa, apresenta; a metáfora sai de cena, entra a metonímia; a descarga prevalece sobre o pensamento. A criação literária se vale, muitas vezes, do fracasso da representação para produzir efeitos estéticos. Nem toda literatura é sublime, mesmo sendo criativa e – eventualmente – bela. Escreve-se muitas vezes na tentativa de destituir o que de mais ignóbil abrigamos dentro de nós de seu caráter destrutivo e mortífero. Louise DeSalvo (1998) examinou a obra de escritores que usaram a palavra como arma, o romance para humilhar e conspurcar suas vítimas, enfim, a literatura transformada em “poderosa e duradoura forma de retaliação”. Nessa obra, examina textos de autores (Leonard e Virgínia Woolf, D. H. Lawrence, Djuna Barnes e Henry Miller) que tiveram na vingança a motivação para as suas produções. Fazendo coro com John Gardner, afirmaria que “nenhuma motivação é demasiado vil para a arte”. A qualidade artística, na literatura, advém da capacidade dos escritores de transformar o excesso traumático – proveniente das excitações pulsionais –, de modo a tornar possível sua descarga através da escrita. Mas, como acabamos de ver, essa transformação tem limites. O texto pode tornar-se um continente insuficiente, pois a linguagem é precária e a rede simbólica insuficiente para suturar o abismo que se interpõe entre a pulsão e a simbolização. Foi o que Silvia Plath genialmente descreveu, quando afirmou que a inundação não poderia ser inteiramente contida pelo “polegar da palavra no buraco do dique”. A repetição relaciona-se com a criatividade – incluindo a criação literária –, não obrigatoriamente como algo que a impede, mas como a condição que a torna possível. Repetir significando a insistência para a inscrição e representação do excesso na cadeia significativa da linguagem, fazendo 440 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 429-443, 2005 Resumo O trabalho propõe a reflexão sobre a articulação entre literatura e trauma, este último considerado à luz da teoria psicanalítica. Recorrendo à obra de escritores como Proust, Borges e Celan, situa a repetição não somente como falha da representação, mas como origem da elaboração estética das obras literárias. Palavras-chave Trauma. Literatura. Compulsão à Repetição. Criação Artística. Representação. Elaboração. Abstract Trauma and Literature: repetition and creation in Literature and Psychoanalysis The paper proposes reflecting on the articulation between literature and trauma, the latter considered from the viewpoint of the psychoanalytical theory. By resorting to the work of writers such as Proust, Borges, and Celan, it situates Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 441 Carlos F. L. Pires Leal “com que pontos do texto entrem em relação com outros pontos, com nós, com laços, com nervuras, com dobradiças: aparecências e funduras: se correlacionem, redimensionem arejando, com específicos ‘buracos de coelho’, o texto inteiro, abrindo-o a inesperados sentidos, dimensões, rotações” (CALDAS, 2001b). Vimos, ao longo deste trabalho, que a criatividade se reveste sempre de um caráter dramático. Dramático pela incerteza implicada nas tentativas, sempre falhas, de apreender o real, cuja irrupção desfaz a paz econômica e ameaça o ideal mítico do narcisismo primário. A Biblioteca de Babel de Borges exemplifica bem a aspiração inalcançável de tudo-saber e tudodizer. A criação literária tem uma função libertadora (e um valor estético), à medida que, ao reconhecer esse limite, abdica da compulsão de “tentar deter no tempo o movimento errático da vida podendo criar, a partir de sua falta-a-ser, uma ficção mais imprecisa, cheia de elipses. Que suporte os enigmas em vez de tentar esclarecê-los todos” (KEHL, 2001). TRAUMA CRIAÇÃO NA LITERATURA: REPETIÇÃO E LITERATURA E NA PSICANÁLISE E repetition not only as a flaw in representation, but also as the origin of the esthetic elaboration of literary works. Key-words Trauma. Literature. Repetition Compulsion. Creativity. Representation. Working through. Resumen Trauma y Literatura: repetición y creación en la Literatura y en el Psicoanálisis El trabajo propone la reflexión sobre la articulación entre literatura y trauma, este último considerado a la luz de la teoría psicoanalítica. Recorriendo a la obra de escritores como Proust, Borges y Celan, sitúa la repetición no solamente como falla de la representación, sino como origen de la elaboración estética de las obras literarias. Palabras-llave Trauma. Literatura. Compulsión a la Repetición. Creación artística. Representación. Elaboración. Referências ANDRÉ, R.L.M. El Testimonio: Roque Dalton y la representación de la catástrofe. 2002. Tese. (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, São Paulo, 2002. BIBRING, E. The Conception of the Repetition Compulsion. Psychoanalytic Quarterly, New York, n.12, p.486-519, 1943. BORGES, J.L. (1941). A Biblioteca de Babel. 3.ed. Porto Alegre: Globo, 2001. CALDAS, A.L. Proust em dois Tempos: as miragens do texto. 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Variantes kleinianas, bionianas, winnicottianas, kohutianas, entre outras, não anulam, só acrescentam conceitos e percepções que ampliam novas compreensões a respeito de diferentes formas de sofrimento mental que ferem a economia, a estrutura e a dinâmica psíquica do sujeito. Fatores múltiplos e complexos, endógenos e exógenos, participam da constituição dos agentes organizacionais e traumáticos do funcionamento mental consciente e, principalmente, inconsciente, onde o biológico, o psicológico, o social e a cultura se encontram. Situações Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 445 David Léo Levisky Trauma e Adolescência TRAUMA E ADOLESCÊNCIA estressantes, conflitos exacerbados entre instâncias psíquicas, perturbações narcísicas, auto-estima comprometida, fragmentações, dissociações, não integrações de componentes do self são traumáticas à medida que interferem na homeostase psíquica; conceito difícil de ser explicitado, quando se pensa que a dor psíquica também pode fazer parte do acervo mental como valor de penitência e de amor a Deus. Parece que o trauma psíquico está num sentimento de algo insuportável e não-sincrônico que se estabelece nas relações inconscientes do sujeito com ele mesmo e com sua cultura. Na atualidade, o trauma e a dor mental estão presentes quando o insuportável afeta a espontaneidade e a autonomia do sujeito – valores prezados pela pós-modernidade. As manifestações da dor psíquica e dos seus efeitos traumáticos inconscientes são mutáveis e dependem das construções das subjetividades (MEZAN, 2002). Pude, através de um estudo profundo, levantar hipóteses que contrariam as teses de Ariès (1978) e Le Goff (1995) sobre a vida familiar e a inexistência da adolescência na Idade Média. A análise histórico-psicanalítica da narrativa de Guibert de Nogent (1055-1125?) permitiu-me colocar em evidência e sugerir, ainda que seja apenas um único documento, que todos os jovens no período de transição da infância para a vida adulta passam pela adolescência. “O que varia é a forma de vivenciá-la e de manifestá-la, inclusive o tempo de duração, devido aos valores da cultura incorporados durante o desenvolvimento do sujeito psíquico”. A adolescência é uma manifestação do desenvolvimento humano que repercute na mentalidade1 vivenciada e expressa segundo as conjunturas provenientes do imaginário de cada cultura e seus subgrupos. Representa o conjunto de elementos psíquicos inconscientes e conscientes que caracteri1 A mentalidade vista pela interface histórico-psicanalítica pode ser extraída do conceito proposto por Franco Júnior (2001, p.149-150): “Indica o primado psicológico nos seus aspectos mais profundos e permanentes, mas sempre manifestados historicamente, dentro e em função de um determinado contexto social, que por sua vez passa a agir a longo prazo sobre aquele conjunto de elementos psíquicos coletivos [...] os significantes (palavras, símbolos, representações) que o imaginário utiliza [e que] alteram os significados (conteúdos essenciais) da mentalidade, decorrendo disso a dinâmica dela”. 446 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 445-463, 2005 2 Parte-se da idéia de que o ego, o superego e o self num suposto momento inicial são indiscriminados e/ou mal discriminados e/ou se confundem, diferenciando-se durante o processo de desenvolvimento evolutivo. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 447 David Léo Levisky zam o sentir, o pensar e o agir observáveis através dos tipos de raciocínio, de manejo da sexualidade, dos conceitos das palavras, dos signos, dos significados das relações temporais e espaciais que se preservam no longo tempo da história, tão longo que podem parecer permanentes. O imaginário, por sua vez, sofre transformações variáveis e progressivas na sua transmissibilidade, resultantes das ações recíprocas existentes entre o sujeito, o grupo social, a tecnologia e a cultura. Como psicanalistas, conhecemos bem as características psicológicas e comportamentais, umas constantes e outras mutáveis, dos adolescentes, que buscam na realidade exterior novos modelos identificatórios que expressem sua realidade interna. A vulnerabilidade egóica do adolescente decorre dos desinvestimentos do corpo, das imagos pessoais e parentais da infância e re-investimentos de novos objetos e potencialidades. Durante esse processo, há a emergência de mecanismos e de vivências primitivas inconscientes que entram em confronto com as novas aquisições provenientes das experiências e transformações biológicas integradas ao meio psicológico, social e cultural. São características conflitivas que envolvem o self,2 o ego e o superego durante a re-elaboração dos conflitos vinculares e edípicos nessa que é a segunda grande oportunidade na vida de estruturar e re-estruturar aspectos centrais da personalidade e da identidade. Na adolescência, mecanismos como onipotência, ambivalência, negação da realidade, cisão, tendência a descargas não elaboradas na busca do prazer imediato e concreto estão presentes nos acting out, provenientes das transformações decorrentes da sexualidade emergente e urgente. São experiências emocionais e potencialidades estimuladas pelas fantasias inconscientes – moldadas por imaginários conscientes e inconscientes que sofrem influências da cultura na qual o jovem está inserido. Cultura que reflete as projeções inconscientes num fluxo contínuo e recíproco de influências. São processos estruturais, dinâmicos e econômicos do aparelho psí- TRAUMA E ADOLESCÊNCIA quico provenientes das resultantes biológicas e das inscrições lingüísticas resultantes das interações com a realidade externa, plena de heranças presentes nas memórias históricas pessoais e do contexto. Nessa fase da vida, o processo de identificação está em plena reestruturação; os conteúdos internalizados são metabolizados e re-constroem a “matriz identificatória”, na concepção de Grinberg, com base em mecanismos inconscientes de seleção, inclusão, eliminação, identificação projetiva, projeções, etc., de elementos provenientes dos objetos externos, dos objetos internos e de partes do próprio self.3 A mentalidade adolescente – em sua transição para a sociedade adulta caracterizada por um conjunto de expectativas, ideais e valores – enfrenta desafios, ritos de passagem, evidentes ou diluídos na cultura, que configuram a inserção dos jovens nesse segmento social. Considera-se que a adolescência em todas as sociedades representa sua parte mais ativa. Quando estas oferecem condições de continência, de holding, o adolescer – geralmente tenso e turbulento – permite que as pulsões sejam processadas e reconfiguradas dentro de enquadramentos melhor definidos, e os indivíduos têm maiores possibilidades de encontrar seus sistemas internos de equilíbrio e interação social. Uma sociedade que não tem claras as definições de papéis, de funções, de valores, não cumpre a função organizadora e o adolescente tornase agente e vítima desse processo. Nesse mundo globalizado, adolescentes e os demais segmentos sociais vivem e sofrem impotentes as “globarbaridades”4 – que, freqüentemente, são estimuladas por setores da mídia e dos poderes econômicos 3 Identificação: “O conceito de identificação é central e básico para a compreensão do desenvolvimento e organização da personalidade. Intervém como processo fundamental do ego, do superego e do ideal de ego, do caráter e da identidade, sendo por sua vez uma constante no contínuo interjogo da relação entre o sujeito e os objetos. Tal como o sustentou Freud, constitui a forma mais primitiva de ligação afetiva com outra pessoa. O primeiro comportamento da criança em relação a um objeto desejado é querer incorporá-lo, isto é, ‘consumi-lo e recriá-lo no ego’. Esta é a base da identificação” (GRINBERG, 1976, p.7). 4 Expressão utilizada pelo compositor Tom Zé em seu CD Pagode. 448 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 445-463, 2005 Quando ocorre uma privação, em termos de um rompimento do lar, especialmente se houver uma desavença entre os pais, ocorre uma coisa muito séria na organização mental da criança. De repente, suas idéias e seus impulsos agressivos tornam-se inseguros. Penso que imediatamente a criança assume o controle que acabou de ser perdido e identifica-se com o novo quadro de referência familiar. Resultado: a criança perde sua própria impulsividade e espontaneidade. O nível de ansiedade é tão alto que o ato de experimentar, que poderia fazê-la chegar a um acordo com a própria agressividade, torna-se impossível [...] A tendência anti-social faz com que o menino se redescubra sempre que sinta alguma esperança de retorno da segurança, o que significa uma redescoberta da própria agressividade. Ódio, amor, coragem, medo, sexualidade, conflito edipiano e vincular estão sempre presentes nos sentimentos humanos, mas a forma de senti-los e de expressá-los varia de acordo com os sistemas repressores desenvolvidos pelos controles sociais ao significar e re-significar as manifestações Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 449 David Léo Levisky isentos de responsabilidade psico-social, e contam com o beneplácito da sociedade que, silenciosa, assiste o desenrolar da tragicomédia. Cresce o número de jovens violentos, delinqüentes, prostituídos, drogados, deprimidos, desesperançados, suicidas, angustiados, anoréxicos, obesos, adoecidos. Enquanto o sofrimento psíquico de uns indica a apatia ou a indiferença, para outros pode ser a expressão e a fonte de inspiração de ações transformadoras que tentam reverter o status quo e influenciar a moral, a ética, a comunicação, o contexto psíquico, histórico e social do seu grupamento. A violência não é questão apenas de segurança pública e de repressão. Ela está presente nas ruas, dentro das casas, nas escolas, nas empresas, nas instituições, nos meios de comunicação. Crimes hediondos cada vez são mais freqüentes e outras formas mais tênues de violência, como a falta de cidadania, perda da solidariedade, desvalorização do próximo, ocorrem e se banalizam, sem que se dê conta de que se está menosprezando a si mesmo. Diz Winnicott (1967, p.74): TRAUMA E ADOLESCÊNCIA pulsionais. A expressividade dessas manifestações varia de cultura para cultura, e dentro de uma mesma cultura de época para época, na dependência das mentalidades5 e dos imaginários representativos de suas utopias, crenças, ideologias, formas de pensamentos, anseios, temores e mecanismos defensivos coletivos e singulares predominantes de uma dada cultura. São significados e significantes simbólicos que impregnam o contexto, presentes nas entrelinhas dos textos, como ícones culturais que se manifestam através da linguagem das instituições. Linguagem que se faz representar nas formas de estruturação e exercício do poder, no conteúdo dos valores éticos e morais – influenciados pelas tecnologias – transmitidos através da memória histórica de curta, longa e longuíssima duração. Enquanto numa dada cultura certos aspectos pulsionais são liberados, noutra eles podem ser reprimidos ou recalcados no inconsciente individual e/ou coletivo daquele contexto (FOUCAULT, 1998; GUIRADO, 1995). Se o desrespeito aos pais já foi considerado pecado – motivo de penitências –, denunciá-lo também já foi enaltecido como prova de amor ao povo e à ideologia. No mundo das “globarbaridades”, onde se colocar? Eis a questão! O poeta já havia assinalado que “a questão não é saber, pois, se um homem é forte ou fraco, mas se pode aturar a medida de sofrimento, moral ou físico, não importa, que lhe é imposta”.6 O adolescente de hoje vive num mundo, e em particular no Brasil, de resquícios de uma mentalidade colonizadora e opressiva da ditadura, hoje imposta pelo predomínio do capital, do uso da propaganda ilusória, da corrupção manifesta que expressa um estado crônico de abandonos e de 5 Franco Júnior (2003) sugere como elementos básicos da mentalidade: 1 – a interseção entre o biológico e o social; 2 – a relação entre as emoções primitivas e uma forma específica de racionalidade, por exemplo o predomínio do pensamento analógico na Idade Média; 3 - a abrangência caracterizada pelo conjunto de automatismos, de comportamentos espontâneos, de heranças culturais profundamente enraizadas, de sentimentos e formas de pensamento comuns a todos os indivíduos, independentemente de suas condições sociais, políticas, econômicas e culturais, sendo a mentalidade a instância que abarca a totalidade humana. 6 GOETHE. Os Sofrimentos do Jovem Werther, 177l. 450 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 445-463, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 451 David Léo Levisky lutas vazias pelo poder em benefício de minorias. A democracia e as instituições democráticas em nosso meio são frágeis, afirma Angelina Peralva (2001). As barbáries dos genocídios humanos se repetem nas guerras, nas fomes, nas lutas religiosas, nas injustiças sociais que pipocam pelo mundo, representando para uns o bem, enquanto, para outros, a mesma ação ou pensamento é expressão do mal. A vulnerabilidade ética varia rápida e intensamente, na dependência de um conjunto cada vez maior de fatores que se interatuam, num movimento dinâmico, intenso e por vezes traumático, à medida que geram aumento de tensões, fragmentações e dissociações psíquicas. Vive-se com maior liberdade de expressão aspectos particulares e singulares do self. Em contrapartida, sente-se maior insegurança, incerteza e imprevisibilidade. São condições de vida que dificultam a construção de parâmetros internos, da organização da subjetividade, com repercussões no self, no ego, no superego, na identidade. Hiper ou hipo-estimulação, dificuldades na discriminação e escolha dos objetos libidinais, nas relações entre o virtual e o concreto, o público e o privado, o particular e o singular, são estados geradores de confusão, tensão, inércia afetiva, e que interferem na elaboração psíquica e na definição da identidade em seus múltiplos aspectos. Nos adolescentes, os mecanismos defensivos podem sofrer exacerbações, distorções, fragmentações, como formas protetoras de um ego normalmente frágil devido ao processo de transição para a vida adulta, variável em intensidade e duração na dependência das características de cada cultura – como a da globalização, que amplifica a livre expressão do self e das particularidades e singularidades, mas que, em contrapartida, libera e fomenta a expressão dos aspectos narcísicos, psicopáticos, perversos, psicóticos, neuróticos e deficitários dos sujeitos. Esse processo é incrementado pelas pressões externas que, quando altamente conflitantes e geradoras de dissociações, tende a perturbar ou mesmo quebrar o equilíbrio egóico. Vem aumentando o número de jovens que usa álcool e drogas, como tranqüilizantes ou estimulantes, “pra ficar numa boa”. Não agüentam os TRAUMA E ADOLESCÊNCIA estados de tensão ou a monotonia em que se encontram e buscam prazeres imediatos. A sociedade “adulta” sabe disso e fomenta o seu uso pela omissão, negação ou vista grossa, e ainda estimula o uso através de sistemas de propaganda subliminares ou mesmo explícitas, como ocorre em nosso meio. Em relação ao tabaco, agora se tomou alguma providência, não pela consciência de sua nocividade, mas e principalmente devido à relação custo/benefício, uma vez que pesados desembolsos eram feitos pelas companhias seguradoras para cobrir danos de seus assegurados e altas penalidades vêm sendo impostas às empresas fabricantes, que, conscientemente, manipulam as informações. A violência dos agentes traumáticos está na força que transgride os limites dos seres humanos, na sua realidade física e psíquica, e no campo de suas realizações sociais, éticas, estéticas, políticas e religiosas. É uma força que desrespeita os direitos fundamentais do ser humano, sem os quais o homem deixa de ser considerado sujeito de direitos e de deveres, e passa a ser olhado como um puro e simples objeto, em todas as suas formas de manifestação (ROCHA, 1996). Esse conceito de violência está diretamente relacionado à compreensão dos agentes e fenômenos traumáticos internos e externos, que geram pressões sobre o funcionamento mental, de modo que ele seja insuficiente na continência e elaboração secundária decorrente de tais pressões, variáveis em cada cultura – hoje tendendo à homogeneização devido à difusão midiática – e que agem sobre a estruturação e funcionalidade das atividades simbólicas e operacionais inconscientes do ego e do superego. Agem de forma mitigada e contínua ou abrupta e avassaladora, de modo a interferir no desenvolvimento da subjetividade em vários níveis: individual, interpessoal e transcultural. Essas forças psíquicas intoleráveis ferem os princípios de constância e de realidade, e podem gerar mecanismos defensivos contra ansiedades neuróticas, psicóticas e de caráter. As descargas podem se direcionar contra o próprio sujeito por meio de auto-agressões, somatizações, exacerbação e regressões dos mecanismos defensivos do 452 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 445-463, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 453 David Léo Levisky ego, paradas do desenvolvimento libidinal, acting out, regidas pelo princípio do prazer. O adolescente – sensibilizado pela fragilidade egóica e pelas pressões primitivas que invadem o ego em conflito e na busca de novos modelos identificatórios – vive suas experiências afetivas e potencialidades construtivas, destrutivas, reparadoras e de auto-afirmação pressionado por forças internas e externas que acabam por gerar cicatrizes profundas na autoestima, quanto mais grave e perturbada tiver sido sua primeira infância. Quando o jovem encontra um ambiente acolhedor, aberto e continente a suas experiências e transformações criativas e que o valorize, ele se torna sujeito e cidadão, solidário e participativo. Nossas experiências desenvolvidas no projeto Abrace seu Bairro – de incentivo ao protagonismo juvenil no meio escolar, integrado e articulado com o bairro onde o jovem vive ou estuda, com vistas à melhoria da qualidade de vida e prevenção à violência – resultam em ações sociais edificantes para ele e para toda a comunidade. O jovem se sente útil e sua auto-estima se eleva. Caso contrário, surgem a delinqüência e outros desvios comportamentais que expressam não apenas as tensões e turbulências inerentes ao adolescer, mas um incremento agressivo ou libidinal desmesurado, distorções egóicas que refletem o sofrimento psíquico e cujo significado latente precisa ser decodificado. Na Idade Média Central vivia-se sob a égide do pavor do Juízo Final; na contemporaneidade, vive-se o terror de sair às ruas devido à violência que nos assombra. O encontro da paz não está na promessa de alcançá-la no Além, como era no medievo ocidental, mas no aconchego que os inocentes encontram por detrás das grades e muros em que se enclausuram para se livrar do perigo gerado por aqueles que andam livres e impunes pelas ruas, caracterizado tão bem pela psicanalista Inaura Carneiro Leão no poema Rio Cidade Maravilhosa: grades, grades, grades.... O psiquismo humano carrega, ao longo de sua história, um sentimento de impotência e de desamparo em sua luta eterna para desenvolver processos adaptativos e ser continente do conjunto de pressões internas e externas na busca da felicidade – que uns dizem encontrar na espiritualidade, em TRAUMA E ADOLESCÊNCIA Deus; outros, no consumo. A busca da felicidade parece ser a utopia que nos auxilia a viver, que dá um sentido ao tempo vital presente na generosidade humana quando o sujeito tenta equilibrar realidades internas e externas nesse caleidoscópio que é a mente, cujas imagens se constroem e descontroem em maior ou menor velocidade no encontro de vivências suportáveis. São fenômenos que decorrem das fantasias conscientes e inconscientes, das partes conflitantes e antagônicas do self, parcialmente projetadas no mundo exterior, em seus confrontos com as realidades externas e objetivas, das quais somos vítimas e agentes. Nesse mundo complexo e de incertezas, os adolescentes têm de se desenvolver e construir mecanismos defensivos e condutas adaptativas que possibilitem a auto-afirmação do self projetado na sociedade. Cada vez mais a depressão, o suicídio, as doenças psicossomáticas, a violência tomam conta de crianças e adolescentes. Explora-se o sexo, adultos molestam crianças, as doenças sexualmente transmissíveis aumentam e atingem um número cada vez maior de jovens. Vive-se numa sociedade carente de pai e mãe. Faltam limites e critérios norteadores, continentes das ansiedades cotidianas que se exacerbam. Pretende-se a liberdade edificante, mas juntamente produz-se a liberalidade frustrante. Fatos que levam a sugerir que o analista e seu paciente precisam tornar-se cônscios não somente do mundo interno, mas também da biografia, do contexto histórico pessoal e cultural de cada um para que possam melhor alcançar as linguagens e os códigos internos, conflitantes entre si e com o meio exterior na constituição de suas subjetividades. Na Idade Média Central, início do pensamento ocidental moderno, pretendeu-se controlar a vida pulsional por meio da teocracia da Igreja. A partir daquele imaginário, acreditavam que a paz e a felicidade estavam na submissão às palavras de Deus e o destino da alma dependia do julgamento na hora do Juízo Final. Violências, prova do ordálio, inquisições, massacres foram cometidos por homens que, em nome de Deus, da fé e da Igreja, controlavam e propagavam o encontro da felicidade e da paz no Além. A Igreja submetia o sujeito às suas filosofias maniqueístas, manipuladoras, 454 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 445-463, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 455 David Léo Levisky repletas de simonias e de interferências na vida social em suas diversas formas, no intuito de preservar poderes terrenos e celestiais, numa visão imperialista de universalização de seus princípios. O adolescer medieval era carregado e conflituoso, porém os agentes traumáticos internos e externos tinham características próprias do medievo, ainda que o processo de transição para a vida adulta fosse essencialmente o mesmo. Os recursos egóicos e superegóicos eram outros, a predominância dos mecanismos defensivos também, mas o conflito entre o primitivo e o atual decorrente dos des-investimentos infantis e re-investimentos da vida adulta estavam lá (LEVISKY, 2004). Esse passado-presente equivale ou pouco difere em sua essência daquele que se observa na atualidade: religiosos fanáticos ou países que se intitulam defensores da democracia e que empregam formas de propaganda, de submissão, de manipulação e de convencimento em suas tentativas de impor controles, valores e princípios como forma de sobrevivência ou de expansão das áreas de influência. Vive-se uma revolução ética. Acompanhamos as constantes ameaças dos perigos atômicos, da volatilidade econômica, que interferem direta e indiretamente nos contextos, nas mentalidades, nos imaginários, nas construções dos vários níveis de subjetividade. A construção do sujeito psíquico sofre interferências conscientes e inconscientes nas configurações das várias linguagens que nele se inscrevem e que escrevem os direcionamentos da vida inconsciente, do mais primitivo e remoto às suas memórias mais recentes. As questões ambientais refletidas no acordo de Kioto, as organizações que buscam a paz, como a ONU, são exemplos de esforços extraordinários para contrabalançar as forças destrutivas humanas, exacerbadas pelas características da vida contemporânea globalizada, cujos valores e tecnologia se transformam em velocidades incríveis, diante das quais cada um de nós é co-responsável pelos benefícios e traumas que acompanham o processo de construção do sujeito psíquico. Há, principalmente entre os jovens, sentimentos generalizados de im- TRAUMA E ADOLESCÊNCIA potência, desesperança, descrença, desconfiança que tendem a se cronificar e se tornar um valor da cultura, como é a banalização do crime, do sexo, da violência. São estados mentais que ferem a auto-estima individual e coletiva, condições geradoras de insegurança e de incerteza. Não se pode negar a presença e a expansão dos movimentos sociais, comunitários, das ONGs, que através de suas redes incentivam o protagonismo juvenil e tendem a amenizar os aspectos destrutivos do contexto e gerar esperança na busca de novos rumos. Mas há um sentimento de que tais iniciativas em nosso meio, e talvez no mundo, sejam gotas d’água num oceano agitado; que passado o momento de ação e emoção se diluem frente às novas situações e vivências que afogam a iniciativa anterior. Mesmo assim, acredito que é preciso prosseguir, pois o vetor resultante depende das ações das diferentes pressões que agem na relação sujeito/sociedade/cultura no encontro de melhores estados de equilíbrio entre a estruturação da natureza humana e suas capacidades adaptativas e de sobrevivência e as pressões que surgem em decorrência da própria evolução humana. Vê-se que a qualidade do equilíbrio mental humano é dinâmica e instável, oscila com a cultura e com as transformações tecnológicas e históricas que agem sobre a vida pulsional e simbólica do homem. Temos a experiência de crianças e adolescentes que sofrem um verdadeiro “genocídio de almas”. As relações afetivas primárias estão extremamente deturpadas pela ausência ou má qualidade dos vínculos primários, cujas resultantes comprometem e deixam feridas profundas na auto-estima, no desenvolvimento das potencialidades afetivas, cognitivas, conativas, criativas e reparadoras. Nesses jovens há um comprometimento do objeto e do espaço transicional, das funções simbólicas, dos processos perceptivos e discriminatórios, da organização das relações self/objeto primitivo. É só acompanhar de perto o ensino público e a maneira como são tratados os jovens, geralmente como depositários de um saber e limitada capacidade crítico-analítica. Vivem estados de abandono, salvo alguns diretores abnegados que conseguem se envolver para atenuar as dificuldades existentes, e 456 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 445-463, 2005 7 Falhas na vida relacional primitiva comprometem capacidades básicas, tais como a “busca de objeto” expressa no ato de roubar, bem como a capacidade de “experimentar pesar e desesperança” (Winnicott). Comprometem a organização do self primitivo e o descobrimento dos potenciais e das relações entre construtividade, destrutividade e criatividade, a noção dos limites internos e sociais e, portanto, da própria liberdade. Submissão e apatia são atitudes comportamentais que geralmente antecedem as manifestações anti-sociais. Os fracassos sucessivos das relações iniciais podem deixar marcas profundas que afetam o desenvolvimento estrutural e funcional dos aspectos egóicos primitivos e sua evolução posterior (LEVISKY, 1997). Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 457 David Léo Levisky que são enormes. Aqueles que estão em confronto com a lei e encaminhados à FEBEM (Fundação do Bem-Estar do Menor) para serem re-integrados à sociedade são submetidos a condições sub-humanas de tratamento. Prevalece o clima prisional ou de campo de concentração nazista. Emprega-se a psicologia do medo, da agressão, e assim pretende-se re-integrá-los à sociedade na base da violência, em ambiente de profunda corrupção e carência de recursos devido à omissão do Estado e ao silêncio da sociedade. Os adolescentes e crianças, em plena fase de desenvolvimento, vulneráveis às influências do meio na constituição do aparelho psíquico e suas potencialidades, necessitam encontrar na realidade exterior nutrientes identificatórios, afetivos, cognitivos, vivenciais, valores a serem incorporados na construção das subjetividades. A psicanálise possui toda uma série de teorias do desenvolvimento da vida inconsciente e não pode se furtar de participar dessa luta contra traumas precoces, que tendem a aniquilar as capacidades do sujeito psíquico. A experiência mostra que, em sua maioria, quando tais crianças e jovens encontram carinho, consideração, continuidade nas relações e nas comunicações, ressurgem a esperança e a vitalidade. Caso contrário, saem para a vida aprimorados no crime, uma vez que já foram violentados em sua dignidade. Winnicott afirma que: “Tudo começa em Casa”, isso se considerarmos a casa como a primeira célula representativa da sociedade. Porém, muitos nascem nas ruas ou com casas perversamente destruídas pelo processo social. São almas sem vida ou que precocemente serão deturpadas pelo meio do qual se nutrem. São crianças e jovens que não têm a oportunidade de viver suas potencialidades criativas, voltadas para sua integração pessoal e social.7 TRAUMA E ADOLESCÊNCIA É preciso um esforço hercúleo e de todas as nações para atenuar os problemas psicológicos e sociais que atingem milhões de jovens desde o nascimento – crianças ou jovens que, em grande parte, são frutos da própria sociedade. Muitos querem vê-los mortos, ainda que de forma inconsciente, diante da negação inconsciente que existe ao se encararem as questões de co-responsabilidade nos processos de construção das intra, inter e transubjetividades que dependem das relações com a cultura. A sociedade e o Estado pouco se envolvem e fazem para atenuar a quantidade de problemas que se avolumam. Direta e indiretamente contribuímos para a geração da delinqüência juvenil, que pode ser a última tentativa, ainda que inconsciente, dos jovens de serem ouvidos e existirem. Poucos são os jovens delinqüentes cuja perturbação mental tem origem em doenças mentais irreversíveis. Geralmente elas se cronificam pelo abandono e omissão, com cristalização das estruturas psíquicas, de vivências e imaginários de caráter primitivo auto e hetero-destrutivos, e que são valores de suas culturas. Há muitas situações de desagregação familiar com maus tratos, abusos físicos e psicológicos, alcoolismo, drogas, prostituição infantil, exploração do menor e abandono. Situações que atingem pobres e ricos sem exceção. A menina de 12 anos que se prostitui é estimulada pela mãe, que implora para que se entregue a americanos, holandeses, alemães, italianos, franceses que vêm com dinheiro para cá para fazer turismo sexual. Em troca de um prato de comida, irmãos doentes, pai alcoólatra, a menina angustiada se vê coagida, agredida e culpabilizada pela mãe, que a considera ingrata e egoísta ao negar-se submeter ao peso e à penetração daqueles que deixarão dentro dela o fruto de sua diversão. São meninas que têm sua infância violada, violentada. A auto-estima destruída pelos pais, pela realidade social, política, econômica, historicamente organizada, pela penetração da riqueza perversa da superioridade econômica, daquele que troca o prazer da carne pela carne do prazer. É a vida por um prato de comida. Ninguém é responsável. Dirão uns que a menina é malcriada, responsável por desobedecer a seus pais, por não saber dizer não às tentações, pecado458 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 445-463, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 459 David Léo Levisky ra. Só lhe resta a delinqüência como grito de desespero diante da surdez da sociedade, das autoridades públicas, que a excluem como fruto do mal. Seu fim é a reclusão numa instituição tipo FEBEM. Lá, é tratada como vadia, puta ou doente mental. Reclusa, vive em condições sub-humanas. Apanha, com vistas a alcançar a re-integração sócio-educativa. Nesse meio tempo, tem de aprender a conviver com as máfias das benesses, das drogas, da prostituição existente nesse submundo, cuja autoridade máxima é a corrupção e a desfaçatez. A rebelião e a fuga podem ser uma das únicas formas de serem percebidas e ouvidas, não importando a que preço. Já foi agredida e agrediu tanto na vida que fica anestesiada diante de novas situações. Winnicott já havia salientado que a delinqüência pode conter, em meio ao ódio, um grito, um clamor, uma esperança de o adolescente ser ouvido e poder sentir-se existir, ser alguém e não uma coisa. O jovem infrator busca, através do ato delinqüencial, a presença dos pais, da família, da lei, de substitutos institucionais equivalentes aos pais e à família que deveria ter tido, capazes de modular a vida pulsional e de poderem introjetar valores que dêem a ele um re-significado à vida. Frustrado pela cronicidade da exclusão, sem perspectivas, aprimora–se no crime, na violência, na indiferença, como um câncer que se alastra na malha social. Sofre com o fato de que o pai simbólico não está internalizado. A função materna representada pela capacidade de continência institucional ou da sociedade está ausente. A instituição que o acolhe representa a sua família. A aplicação da lei se constitui na criação de um espaço simbólico dinâmico e aceitável pela sociedade, semelhante ao que ocorre dentro de casa, nas relações familiares, onde necessitaria encontrar os limites desejáveis, definidos pelos pais e pela sociedade. Do confronto dos filhos na relação parental nascem as relações estruturantes. Quando amados, considerados e tratados com dignidade, em sua maioria recuperam a auto-estima e retornam à sociedade de forma participativa e generosa. Os sentimentos de gratidão e reparação re-nascem de uma relação que se sustenta em vínculos de confiança, capazes de su- TRAUMA E ADOLESCÊNCIA portar descargas agressivas e amorosas, até se transformarem em sentimentos mais elaborados e pensamentos. Caso contrário, a repressão e o confinamento como meios educacionais apenas incrementam o ódio, a desconfiança e o desejo de vingança. É necessário apresentar ao jovem condições que limitem e modulem a vazão de sua impulsividade, mas que, ao mesmo tempo, lhes ofereçam meios alternativos e estruturantes para transformar seus impulsos agressivos, libidinais e criativos em ações sociais suportáveis. As práticas esportivas, artísticas, comunitárias, educativas e profissionalizantes são fundamentais para a construção do jovem e sua integração psico-social. A Paidéa já demonstrou isso há muitos séculos, mas vivemos em uma “Torre de Babel”. A Psicanálise, com suas teorias sobre o desenvolvimento humano e formação das subjetividades, tem o dever e a responsabilidade de intervir nas práticas sociais e contribuir para a re-construção de novos parâmetros éticos que possibilitem a convivência entre as diferenças, particularidades e singularidades em meio a semelhanças. Ao Estado – com a colaboração da sociedade – compete organizar, gerenciar, preservar e fiscalizar condições de bem-estar para o desenvolvimento de suas crianças e jovens. Não basta apenas a lei – o Estatuto da Criança e do Adolescente –, se as ações do Estado e da Sociedade não correspondem ao que a Lei preconiza. O discurso fica esquizofrênico. Não bastam apenas prédios bem edificados para a recuperação do menor infrator nem reduzir a idade de responsabilidade penal, se não houver uma metodologia que respeite a importância dos vínculos afetivos e cuja comunicação não utilize um discurso de aparências e conveniências, mas que conduza a um encontro sincero, realista e de esperança, conjunto difícil de ser desenvolvido. Birman (1994) salienta que o discurso freudiano se articula de maneira indissolúvel com a categoria de sujeito, com os registros da significação e da história, e considera impossível a separação de sujeito, sentido e historicidade. Concepções que possibilitam a construção do conceito de 460 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 445-463, 2005 Resumo O autor apresenta, neste trabalho, fatores múltiplos e complexos, endógenos e exógenos, que participam da constituição dos agentes organizacionais e traumáticos do funcionamento mental consciente e principalmente inconsciente, em que o biológico, o psicológico, o social e a cultura se encontram. Situa a criança e o adolescente neste contexto e enfatiza, entre outros aspectos, o processo de identificação na construção do sujeito psíquico. Palavras-chave Trauma. Adolescência. Subjetividade. Exclusão. Identificação. Abstract Trauma and Adolescence The author presents in this work multiple and complex factors, both endogenous and exogenous, that have a part in making up the organizational and traumatic agents in the conscious and mainly unconscious mental functions where biological, psychological, social, and cultural factors all come together. It sets the child and adolescent in this context and focuses on, among other aspects, the identification process in the continuation of the psychic being. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 461 David Léo Levisky inconsciente, cujos sentidos inscritos nos sintomas e na vida simbólica precisam ser decodificados, uma vez que estão fora do campo da consciência. Diante da oportunidade que me foi dada de comunicar aos colegas minha compreensão histórico-psicanalítica da relação trauma-adolescência na cultura atual, clamo à comunidade nacional e internacional que se manifestem contra os maus tratos, as ações traumáticas decorrentes das “globarbaridades”, os “genocídios de mentes” que se expandem pelo mundo. Clamo, pois o espectro do Juízo Final da Modernidade nos ameaça com a desconstrução ética – arma das guerras pós-modernas – que atinge pobres e ricos. A psicanálise precisa estar presente nas práticas sociais para contribuir com sua teoria e técnicas na re-construção da esperança e de novos rumos. Assim, nossos jovens, filhos e netos poderão se orgulhar de si e também de seus pais e avós. TRAUMA E ADOLESCÊNCIA Key-words Trauma. Adolescence. Subjectivity. Exclusion. Identification. Resumen Trauma y Adolescencia El autor presenta en este trabajo factores múltiples y complejos, endógenos y exógenos que participan de la constitución de los agentes organizacionales y traumáticos del funcionamiento mental consciente y principalmente inconsciente, donde lo biológico, lo psicológico, lo social y la cultura se encuentran. Sitúa al niño y al adolescente en este contexto y enfatiza, entre otros aspectos, el proceso de identificación en la continuación del sujeto psíquico. Palabras-llave Trauma. Adolescencia. Subjetividad. Exclusión. Identificación. Referências ARIÈS, P. História Social da Criança. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1978. 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Um monge no divã – o adolescer de Guibert de Nogent (1055-1125?): uma análise histórico-psicanalítica. 2004. Tese. (Doutorado) – Departamento de História, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, São Paulo, 2004. 462 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 445-463, 2005 Artigo Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Trabalho apresentado no 44º Congresso Internacional de Psicanálise da IPA. Rio de Janeiro, 2005. Dr. David Léo Levisky Rua Bruno Lobo, 218 - Butantã 05578-020 – São Paulo – SP – Brasil Fone: (11) 37221654 E-mail: [email protected] Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 463 David Léo Levisky MEZAN, R. Interfaces da psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. PERALVA, A. Violência brasileira: entre crescimento da igualdade e fragilidade institucional. In: LEVISKY, D.L. (org.). Adolescência e violência: ações comunitárias na prevenção – conhecendo, articulando, integrando e multiplicando. 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Segundo as condições em que esse encontro se dá, resultará maior ou menor vivência de trauma, descrito como um excesso de excitações para as quais o aparelho psíquico ainda não se encontra preparado. A condição de imaturidade do bebê humano, nascendo num Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 465 Laura Ward da Rosa Trauma e Construção do Imaginário TRAUMA E CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO momento anterior à capacidade de entender o significado das sensações captadas pelo sistema perceptivo, favorece a vivência traumática por parte do infans. Nesse sentido, podemos deduzir que a experiência do trauma é inerente ao desenvolvimento, sendo ele, na dimensão temporal, sempre precoce, e na dimensão econômica, sempre excessivo. Por outro lado, Freud descreveu o trauma como um desdobramento em dois tempos: só num segundo tempo, no a posteriori (nachtraglichkeit), é que a primeira cena, que originara as primeiras inscrições no inconsciente, ganha o seu caráter patogênico. Daí a afirmação de Freud de que os histéricos sofrem de reminiscências. Breve Histórico do Conceito de Trauma em Freud Falar de trauma em psicanálise significa reportar-se às origens, lá mesmo quando Freud ouvira o relato de Breuer do caso Anna O. (atendida por este entre 1880 e 1882) e quando viajara a Paris para estudar com Charcot, na Salpetrière, no ano de 1885. O mestre francês, que grande impressão causara em Freud, já descrevera um caso de paciente do sexo masculino, portador do que chamou “histeria traumática”. Tratava-se da ocorrência de sintomas histéricos em paciente considerado antes não-neurótico, que passara a apresentar tais manifestações após sofrer um acidente ferroviário. Freud descobre que as manifestações clínicas coincidem com as das pacientes que observara, do sexo feminino, portadoras de histeria. Numa carta a Breuer, em 1892, nos esboços para a Comunicação Preliminar, Freud explicita como fatores indispensáveis para a histeria – a necessidade do splitting, o elemento constante de um retorno a um estado psíquico que o paciente já experimentara antes, portanto, a uma lembrança traumática –, acrescentando: “o grande trauma isolado pode ser substituído por uma série de traumas menores que se interrelacionam por sua semelhança ou pelo fato de fazerem parte de uma história penosa”. Na publicação conjunta dos Estudos sobre a Histeria (1893-1895), concluem que os sintomas histéricos resultam de traumas psíquicos em que um conflito reprimido se expressava por um afeto dissociado e convertido no corpo. Freud, dedicando466 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 465-482, 2005 Assim, um evento sexual ocorrido numa fase determinada atua sobre a fase seguinte como se fosse um evento atual e, por conseguinte, não é passível de inibição. O que determina a defesa patológica – a repressão –, portanto, é a natureza sexual do evento e sua ocorrência numa fase anterior. Em agosto de 1897, na carta 67, Freud confessa-se atormentado por dúvidas quanto à sua teoria das neuroses e, já em setembro do mesmo ano, na carta 69, comunica a Fliess o seu grande segredo: “Não acredito mais em minha neurótica”, referindo-se ao abandono da teoria da sedução, e acrescenta seus motivos: conclusões de sua auto-análise, da impossibilidade de responsabilizar todos os pais, o seu inclusive, como perversos, o que levaria a perversão a ser mais freqüente do que a histeria, a ausência de êxito no tratamento das histéricas, a deserção de muitas pacientes e, finalmente, a descoberta da fantasia sexual relacionada aos pais e a verdade da realidade psíquica. Completava-se aqui, então, a trajetória do neurologista e iniciava a caminhada do psicanalista, enveredando pelos labirintos da verdade do inconsciente e da vida fantasmática, rompendo com o Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 467 Laura Ward da Rosa se a uma escuta diferenciada, detecta que os traumas psíquicos referiam-se a experiências da infância e ligavam-se à vida sexual dos pacientes, vividas como cenas de sedução por parte de um adulto, principalmente do pai. Surge aqui a idéia do trauma correlacionado a um agente, a um outro significativo causador da experiência traumática. Na carta 52 a Fliess (1896), dedica-se a examinar a questão da memória, estabelecendo que os traços de memória, de tempos em tempos, sofrem retranscrições, rearranjos, construindo-se o aparelho psíquico por estratificação. Quanto mais as lembranças retornam, mais são inibidas na produção de prazer. Somente os eventos sexuais não sofrem diminuição e seguem se comportando como eventos atuais, devido às magnitudes de excitações que tendem a se incrementar após a puberdade. Afirma Freud: TRAUMA E CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO paradigma da consciência e da racionalidade do pensamento psicológico e filosófico-científico do século XIX. A idéia do trauma segue sendo objeto de estudo por Freud. Assim, em Além do Princípio do Prazer (1920), referindo-se às neuroses traumáticas, Freud estabelece como traumáticas as excitações provindas de fora que rompem a barreira, antes eficaz, contra estímulos, ao que chama de “escudo protetor”, salientando que o excesso de energia inunda o aparelho psíquico, pondo fora de ação o princípio do prazer. As manifestações de compulsão à repetição teriam um caráter pulsional, opondo-se ao princípio do prazer, e funcionariam à semelhança de forças “demoníacas”. Os traços de memória recalcados das experiências traumáticas da infância encontram-se em estado não-ligado, por isso funcionam segundo o processo primário. Justamente esse não-ligado, incapaz de obedecer ao processo secundário, é que determina a compulsão à repetição na transferência ao analista das experiências primárias da infância e que, por ser móvel , conjugase aos restos diurnos para formar as fantasias de desejo nos sonhos. O Imaginário em Freud O mundo imaginário em Freud tem por característica transitar tanto pelo sistema consciente como pelo inconsciente. Inicialmente, trabalhando com as histéricas, buscava a reprodução das cenas originárias de produção do trauma. Assim, no Rascunho L., a Fliess, de maio de 1897, intitulado Arquitetura da Histeria, Freud escreve: O objetivo consiste em chegar às cenas primárias, o que em alguns casos se consegue diretamente, porém em outros somente através de longos rodeios pela fantasia. As fantasias são, efetivamente, antepórticos erigidos para bloquear o acesso a essas recordações. Ao mesmo tempo, as fantasias servem à tendência de refinar as recordações, de sublimá-las. Estão construídas de coisas ouvidas e somente depois aplicadas, de maneira que combinam o vivenciado com o ouvido, o passado (da história dos pais e antecessores) com o presenciado pelo próprio sujeito. 468 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 465-482, 2005 Elas (as fantasias) são, por outro lado, altamente organizadas, nãocontraditórias, aproveitam todas as vantagens do sistema Cs, e o nosso discernimento teria dificuldade para distingui-las das formações desse sistema; por outro lado, são inconscientes e incapazes de se tornarem conscientes. É a sua origem (inconsciente) que é decisiva para o seu destino. O que é importante na fantasia é a presença do outro ou de outros como personagens em cenas que se repetem e que são relatadas pelo analisando com um roteiro de caráter enigmático, que necessita ser decifrado ao longo do tratamento. A realidade objetiva perde terreno frente às manifestações do desejo inconsciente, expressos pela fantasia. Todo o tratamento analítico passa, dessa forma, pela busca da fantasia subjacente às formações do inconsciente, como os sintomas, os sonhos, os atos falhos, os chistes, bem como pelo acting-out e comportamentos de repetição, sendo detectável pela fala em livre associação ou por atos do analisando e pela transferência, cenário de reedição das fantasias infantis relacionadas às figuras parentais. O sujeito está sempre presente, nessas cenas, como vítima ou espectador de um roteiro perverso, uma vez que o conteúdo recalcado está ligado à sexualidade infantil, havendo um caráter enigmático que mobiliza o paciente como algo que lhe é imposto de fora. Sabemos que a representação recalcada pode servir de pólo de atração para outras repreSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 469 Laura Ward da Rosa Vemos aqui que Freud utiliza o termo fantasia (phantasie) como equivalente a sonhos diurnos ou devaneios conscientes, relacionados a cenas, episódios, lembranças, que a histérica criaria como característica da riqueza da sua imaginação. Já no capítulo 7 de A Interpretação dos Sonhos, porém, irá correlacionar mais claramente a fantasia no sentido tópico de nível inconsciente, considerando-a como expressão de um desejo que desencadearia todo o processo de formação do sonho. Segundo Laplanche e Pontalis (1994), Freud não explicita, mas utiliza o termo em diferentes níveis, consciente ou inconsciente, sendo que nos dá uma definição metapsicológica mais abrangente na seguinte afirmação: TRAUMA E CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO sentações insuportáveis, mantenedoras de um contra-investimento que mobiliza o desejo inconsciente em busca de satisfação. Enquanto o sintoma é o elemento que aparece de entrada na análise e é falado pelo analisando, a fantasia é algo a ser buscado pelo psicanalista, como obtendo o paciente, com ela, um prazer secreto que evita revelar. Freud mesmo, ao considerá-la um “sonho diurno”, admitia a fantasia como uma produção imaginária que proporcionava um certo grau de consolação, de prazer, ao contrário do sintoma, expressão do desprazer. O Imaginário em M. Klein A escola kleiniana caracteriza-se pela valorização da fantasia (phantasy) e do mundo intrapsíquico. Melanie Klein, em seu trabalho Nosso Mundo Adulto e suas Raízes na Infância (1963), citando Susan Isaacs, reafirma: “A fantasia é o corolário mental, a representação psíquica do instinto. Não há impulso, nem pressão ou resposta instintiva que não se experimentem como fantasia inconsciente”. Discordando de Freud, acrescenta: As fantasias inconscientes não são o mesmo que devaneios (embora a eles estejam vinculadas), mas uma atividade da mente que ocorre em níveis inconscientes profundos e acompanha todo impulso experimentado pela criança. Logo após o nascimento, na relação de objeto parcial com o seio, a criança já desenvolveria fantasias conectadas aos mecanismos introjetivos e projetivos, defendendo-se da ansiedade persecutória, sendo elas os fatores indispensáveis à constituição do mundo interno, como um reflexo do mundo externo. O Imaginário em Lacan Devemos a Jacques Lacan o uso da palavra “imaginário”, como substantivo, bem como a valorização do conceito que antes, por vezes, se confundia com o “ilusório”, algo fruto da imaginação ou fora da realidade. 470 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 465-482, 2005 Basta compreender o estádio do espelho como uma identificação, no sentido pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem – cuja predestinação para esse efeito de fase é suficientemente indicada pelo uso, na teoria do antigo termo imago. A função do estádio do espelho seria estabelecer uma relação do Innenwelt com o Umwelt, isto é, integrar o eu interior sob ameaça de fragmentação (corps morcelé) com o mundo externo, através da identificação com o outro especular, que proporciona a integração, uma espécie de prótese na progressiva construção da auto-imagem. Constatamos aqui uma identidade alienante presente nas relações imaginárias, característica dos processos narcísicos, em que o sujeito permanece alienado na imagem do outro especular, que na verdade é seu duplo, seu alter ego. Se, por um lado, a imagem de si é formada a partir da identificação com o outro que garante o reconhecimento do eu, ela está em permanente ameaça de fragmentação. Na clínica, constatamos a necessidade de muitos pacientes, capturados no eixo imaginário, de fazerem sintomas ou marcas no corpo como a busca de uma imagem que confirme a sua existência, devido a angústias determina- Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 471 Laura Ward da Rosa Para Lacan, o imaginário é a base da constituição do EU (moi) no Estádio do Espelho e tem um poderoso efeito no psiquismo, a ponto de incluí-lo, a partir de 1953, no seu esquema triplo dos três registros: o real, o imaginário e o simbólico. O imaginário, longe de ser de importância menor em relação ao simbólico, é, pelo contrário, estruturado pela ordem simbólica. Lacan fala numa “matriz simbólica” em que o Eu se precipitaria antes da identificação com o outro. Em seu trabalho de 1949, O Estádio do Espelho como Formador da Função do Eu, Lacan nos dá uma magnífica descrição da construção imaginária através “do espetáculo cativante do bebê diante do espelho”, a partir dos seis meses de vida, ainda precisando ser sustentado por alguém. Diz-nos textualmente: TRAUMA E CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO das pela ameaça de fragmentação, marcas corporais essas que funcionam como defesas narcísicas frente à ameaça de desmantelamento do eu. O esquema L estabelece bem a distinção entre a ordem imaginária e a ordem simbólica, correspondente à distinção entre o Eu (Moi) e o Sujeito (Je) do inconsciente. O esquema R introduz o campo das experiências da realidade entre os dois triângulos invertidos. Nele se representa a imagem do corpo, elemento ilusório e enganador, que vem a ser o fundamento essencial de referência do sujeito à realidade, razão pela qual o eu é originalmente paranóico. Também nesse campo se encontram as primeiras identificações e o ideal do eu. Esquema L Esquema R 472 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 465-482, 2005 Lacan critica o conceito freudiano e kleiniano de fantasia, considerando que ele funciona como uma “parada na imagem”, isto é, está restrito ao imaginário, como uma defesa contra o traumático da castração. Passa, então, a usar a palavra fantasma, derivada do grego, para designar a fantasia dentro de uma estrutura significante, isto é, simbólica. Concebe uma fórmula, a que chama matema, para o fantasma e o insere em sua representação gráfica do desejo, a que denomina grafo. O matema expressa, no grafo do desejo, a relação lógica de sujeição ao Outro, onde se formula a pergunta: “Che vuoi?” – Que queres? –, nunca respondida. O fantasma tem uma estrutura própria e se inscreve numa relação não-simétrica, numa sujeição originária no desejo do Outro. O sujeito barrado é dividido pelo significante que o constitui. Lê-se: sujeito barrado (por efeito do significante) punção do objeto a. Punção significa: todas as relações possíveis, menos a igualdade. Logo podemos entender que a fórmula expressa: sujeito do inconsciente em relação assimétrica com o objeto-causa do desejo. O Objeto pequeno a é conceituado por Roudinesco e Plon, no Dicionário de Psicanálise (1998), como: Termo introduzido por Jacques Lacan, em 1960, para designar o objeto desejado pelo sujeito e que se furta a ele a ponto de ser nãorepresentável, ou de se tornar um ‘resto’ não simbolizável. Nessas condições, ele aparece apenas como uma ‘falha-a-ser’, ou então de forma fragmentada, através de quatro objetos parciais, desligados do corpo: seio, fezes, a voz e o olhar, objetos do próprio desejo. Para Lacan, o objeto a, que considerava sua contribuição efetiva à psicanálise, define-se como simultaneamente real, simbólico e imaginário. Ele será real enquanto impossível de simbolizar – como um furo; será simSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 473 Laura Ward da Rosa Distinção entre Fantasia e Fantasma TRAUMA E CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO bólico, enquanto contingencial, passível de substituição – por exemplo, o carretel substituindo a mãe, no brinquedo do fort-da; será imaginário no plano do fantasma – por exemplo, o fetiche, na perversão, ou como representação recalcada e denegada (verneinung), na neurose (como afirmava Freud, a neurose como negativo da perversão). Lacan e Granoff, em Fetichismo: o simbólico, o imaginário e o real (1956) acentuam a importância da verleugnung ou renegação da idéia reprimida como mecanismo que lança o sujeito no campo do significado em detrimento do significante, obrigando-o a permanecer capturado na imagem e a dar realidade ao imaginário, criando o fetiche, em vez de imaginarizar o símbolo (falo). Somente podemos decifrar o imaginário se o traduzirmos em símbolos. Nesse sentido, o fetichista não o faz e, por isso, constrói um objeto fetiche que expressa, no real, o imaginário. O fantasma não é, portanto, obra de alguém, mas o efeito, ao mesmo tempo, da ação do objeto a e do corte do significante. O motor do fantasma é, assim, o objeto pequeno a, causa do desejo, aquele resto não-simbolizável, furo na estrutura. A encenação fantasmática se organiza em torno desse furo que funciona como lugar do gozo. Afirma Lacan, no Seminário 11 (1985): O sujeito é um aparelho. Esse aparelho é algo de lacunar e é na lacuna que o sujeito instaura a função de um certo objeto, enquanto objeto perdido. É o estatuto do objeto a, enquanto presente na pulsão. No fantasma, o sujeito é despercebido, mas ele está sempre lá, quer seja no sonho, no devaneio [...] O sujeito se situa a si mesmo como determinado pelo fantasma. O fantasma é a sustentação do desejo, não é o objeto que é a sustentação do desejo. Aqui penso ser muito ilustrativo o exemplo de Freud em seu relato do Homem dos Ratos. O paciente relata o seu fantasma: “Toda a vez que desejo ver uma mulher nua, meu pai deverá morrer”. Detectamos todos os elementos essenciais da estrutura fantasmática: a pulsão escópica, o desejo, a mulher, o pai (e o pai morto) e, por certo, o sujeito. Para Freud, apresenta474 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 465-482, 2005 Grafo do Desejo Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 475 Laura Ward da Rosa se um excepcional cenário edípico em Paul Lorenz, núcleo da neurose obsessiva. Então, o analisando conta uma de suas lembranças da infância, quando uma governanta, jovem e bonita, permitira a Paul enfiar-se por baixo de suas saias, com a condição de não contar para ninguém, permitindo que a tocasse nos genitais, onde o menino encontrou algo “curioso”. Desde então, o rapaz viveu atormentado pelo desejo de olhar corpos femininos nus. O significante “curioso” leva, então, Freud a identificar o curioso no relato: o paciente chamava a governanta pelo sobrenome masculino, o que não era habitual na burguesia de Viena, deduzindo, então, que isso se conectava à falta de pênis na mulher. Na transferência, o paciente passa a incluir Freud no seu fantasma perverso anal sádico, o da tortura com os ratos, colocando Freud no papel de torturador – numa ocasião o chama de “ Capitão”. Freud trata de fugir desse lugar, recusando-se a desempenhar tal personagem. Na verdade, diz Lacan, o analista ocupa o lugar do objeto a e dele não se pode furtar. TRAUMA E CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO Distinção entre Imaginário e Fantasma Embora coincidentes, a ordem do imaginário e a ordem do fantasma não se superpõem. Enquanto que no fantasma há uma cena imaginária na qual o sujeito figura sob diversas formas, o registro do imaginário está marcado pela presença da imagem do semelhante. É em função dessa relação com a imagem do outro (mas que é semelhante) que o registro do imaginário implica imagem e campo da ilusão. Aqui encontramos uma aproximação com o que Winnicott postulou como fenômenos e objetos transicionais, que se desenvolvem na área de ilusão que resulta da superposição entre o que a mãe é capaz de oferecer e o que o bebê é capaz de conceber. É no registro do imaginário que se estabelecem a trama das identificações, bem como as fantasias da novela familiar do neurótico. Contrariamente ao imaginário do animal, construído sem brechas, o imaginário do sujeito psíquico constitui-se com uma falta real: a não-inscrição da diferença sexual, considerada como uma falha ôntica no inconsciente. Essa falta original determinaria a instauração do imaginário em torno da sexualidade. A partir da falta da inscrição da diferença sexual a criança elabora, seguindo Freud, suas teorias sexuais infantis, tentativas de entendimento dos enigmas das origens, da sexualidade dos pais e da diferença sexual. Vemos que a fórmula do fantasma expressa a relação desejante entre o sujeito e o objeto causa do desejo, originariamente faltoso e perdido para sempre. O fantasma corresponde, assim, à própria realidade psíquica do sujeito. É importante aqui diferenciarmos a realidade do real. Se o real é o que não pode ser simbolizado, o que é imutável, o fantasma é a possibilidade de inserção na realidade pela mediação do simbólico através da linguagem, amortecedor do choque com o real. A realidade é mutável, constituindo-se duma trama de imagens e palavras. Para Lacan, o fantasma funciona como uma máquina que transforma o gozo em prazer, visto que o gozo em movimento produz desprazer. A eficácia da análise é determinada pela travessia do fantasma, com um reposicionamento em relação às defesas e ao gozo. 476 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 465-482, 2005 Freud, em Além do Princípio do Prazer (1920), ao observar seu neto no jogo do carretel, fornece-nos uma excelente observação do nascimento simbólico e de como a criança elabora a ausência da mãe, fazendo desaparecer e trazendo de volta o carretel, emitindo as primeiras palavras: fort (fora) e da (aqui). A perda do objeto é o fator que constitui o símbolo e a capacidade de imaginarizar a ausência, desprendendo-se da mãe real, para tê-la simbolicamente através da fala. A aquisição da palavra representa o momento de inserção do sujeito na cadeia significante, que preexiste na ordem simbólica da cultura. Uma vez incluído o sujeito no universo de significantes, o objeto real estará perdido para sempre. Na atualidade, encontramos com freqüência pacientes que não contam com recursos simbólicos, manejando-se ainda muito no registro do real, como a demandar outros modos de expressão, como atos ou condutas de ação, para confirmar sua existência. São casos de difícil acesso para o psicanalista, como nos distúrbios psicossomáticos, nos estados fronteiriços e psicóticos. Enquanto nos neuróticos lidamos com o imaginário da sexualidade movido pela libido, alimentando o circuito do desejo inconsciente, nos pacientes mais regressivos lidamos com o vazio representacional, onde o real do corpo está sempre procurando uma imagem que confirme sua forma, levado pelo ímpeto da compulsão à repetição. Nasio (1993b), baseado em Lacan, descreve três tipos de fenômenos, que chama “formações do objeto a”: a lesão de órgão (da patologia psicossomática), a alucinação e a passagem ao ato. Nesses casos, como não houve a inserção do sujeito na cadeia significante, por forclusão do Nome do Pai, não há capacidade fantasmática, há uma permanência no real do corpo e do ato ou ação. Desse modo, Peter, um campeão de motocross de vinte e cinco anos, busca o tratamento por apresentar problemas no trabalho, como caixa de um banco, onde vem cometendo erros de cálculo. O curioso em seu relato é o fato de já haver sofrido trinta e dois acidentes de moto ao disputar campeonatos e exibir suas cicatrizes como troféus. Quando lhe assinalo Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 477 Laura Ward da Rosa A Capacidade Simbólica e a Aptidão Fantasmática TRAUMA E CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO sua expressão de satisfação ao me fazer o relato, faz-me a seguinte revelação: “Claro, é dessa maneira que sinto ter braços e pernas. Preciso dessas fraturas para saber que estou vivo, que tenho um corpo”. Vê-se que faltou a Peter uma integração da imagem corporal no estágio do espelho, razão pela qual permanece na ameaça do corpo fragmentado, na falta de um outro que o confirmasse diante de sua imagem especular. Assim também com Mariana a repetição na colocação de piercings e tatuagens preocupou sua mãe, que a trouxe para tratamento aos quinze anos. Vem apresentando distúrbio de conduta, acompanha-se de amigos que integram uma gangue, falta à escola e não obedece a limites. Recebo uma adolescente toda vestida de preto, com cabelo curto pintado de três cores e com diversos piercings nas orelhas, supercílios e língua. Conta que também os usa nos mamilos e no umbigo. Também tem tatuagens nos braços e tornozelos. Essa necessidade de marcas corporais iniciou com a separação dos pais, há dois anos. Relacionava-se melhor com o pai do que com a mãe e sentiu muito quando ele se mudou para outra casa. Porém, dois meses após, o encontrou à noite trocando carícias com um amigo. A indignação por descobrir a homossexualidade do pai a transtornou de tal modo que nunca mais usou roupas “normais”, está sempre de preto, e seu corpo passou a expressar as marcas, como a demandar uma inscrição simbólica de uma função paterna até então ausente, no sentido de romper a alienação imaginária. Nas estruturas neuróticas contamos com a aptidão fantasmática resultante da presença do símbolo e da imaginarização, tornando o tratamento psicanalítico exitoso pelo entendimento e pelo atravessamento dos fantasmas, em direção à cura, enquanto que nos quadros narcísicos e patologias borderline nos deparamos com a dureza do real que se expressa, no concreto, em ato e no corpo, a demandar do psicanalista um longo trabalho na tentativa da aquisição simbólica. 478 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 465-482, 2005 A importância do conceito de trauma segue merecendo atenção, não só pelo seu caráter fundante, mas como fator determinante do avanço da pesquisa nos campos teórico e clínico da psicanálise, propiciando que hoje possamos atender a uma demanda de pacientes que antes estavam à margem da ajuda psicanalítica. A constituição do imaginário, por Lacan, ampliou e enriqueceu o nosso trabalho clínico, a ponto de ele declarar, já na fase final de seu ensino, em 1975: “O imaginário é o lugar onde toda a verdade se enuncia”, querendo expressar que o sujeito fala do lugar do Outro, lugar dos significantes, mas com seu Eu situado e constituído na relação imaginária com o semelhante. Não basta afirmar a primazia do simbólico, mas de como este se conjuga com o imaginário. Resumo Este trabalho tem por objetivo estudar a evolução do conceito de trauma em psicanálise e a sua importância para a construção do imaginário. Partimos de Freud, desde suas pesquisas iniciais, em que considerava a teoria da sedução ou a existência de um trauma real na gênese das neuroses até o momento em que, abandonando a sua “neurótica”, passa à concepção da fantasia e do mundo imaginário como verdade do sujeito psíquico. Seguimos com os aportes de Melanie Klein, abordando-se a ênfase que o conceito ganhou na escola kleiniana, e concluímos com Jacques Lacan, para quem o imaginário é conceituado no substantivo, vindo a integrar os três registros: o real, o imaginário e o simbólico, e a fantasia ganha outro lugar, passando a integrar a própria estrutura do sujeito, denominando-se fantasma. Palavras-chave Trauma. Imaginário. Simbólico. Fantasia. Fantasma. Abstract Trauma and the Construction of the Imaginary This work seeks to study the evolution of the concept of trauma in psychoanalysis and its importance in constructing the imaginary. We start with Freud and his initial research that considered the theory of seduction or the existence Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 479 Laura Ward da Rosa Considerações Finais TRAUMA E CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO of a real trauma in the creation of neuroses up to the time when, abandoning his “neurotics”, he moves to the conception of fantasy and the imaginary world as the truth of the psychic subject. We move on to the approaches of Melanie Klein and the emphasis the concept was given in the Kleinian school, and conclude with Jacques Lacan, where the imaginary is conceptualized in the substantive, bringing together the three registers: the real, the imaginary and the symbolic, with fantasy gaining another place, becoming part of the structure of the subject itself, denominated phantasm. Key-words Trauma. Imaginary. Symbolic. Fantasy. Phantasm. Resumen Trauma y Construcción del Imaginario Este trabajo tiene por objetivo estudiar la evolución del concepto de trauma en psicoanálisis y su importancia para la construcción del imaginario. Partimos de Freud, desde sus investigaciones iniciales en las que consideraba la teoría de la seducción o la existencia de un trauma real en la génesis de las neurosis hasta el momento en que, abandonando a su «neurótica», pasa a la concepción de la fantasía y del mundo imaginario como verdad del sujeto psíquico. Seguimos con los aportes de Melanie Klein y del énfasis que el concepto ganó en la escuela kleiniana y concluimos con Jacques Lacan, donde al imaginario se lo conceptúa en el sustantivo, integrando los tres registros: lo real, lo imaginario y lo simbólico y la fantasía gana otro lugar, pasando a integrar la propia estructura al sujeto, denominándose fantasma. Pallabras-llave Trauma. Imaginário. Simbólico. Fantasia. Fantasma. Referências BATAILLE, L. O Umbigo do Sonho. 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Por outro lado, não podemos esquecer a colocação freudiana de que a sedução compõe, junto ao comércio sexual dos pais, a castração e o retorno ao seio (ventre) materno, as chamadas “fantasias primordiais” (FREUD, 1915, p.269) que seriam, segundo expressão do próprio Freud (1915-16, p.338), “um patrimônio psicogenético”. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 483 Leonardo A. Francischelli Sedutopatia: um ensaio SEDUTOPATIA: UM ENSAIO O exame detalhado dessas questões entre acontecimentos e fantasias, ou seja, a diferença entre realidade psíquica e realidade material, acrescentada ainda a idéia forte do “patrimônio psicogenético”, mereceriam um maior cuidado e aprofundamento, entretanto, não o faremos neste trabalho, visto que vamos explorar o conceito de sedução em um sentido muito particular, como veremos mais adiante. Também é explícita a relação entre sedução e trauma: A palavra sedução remete, antes de mais nada, à idéia de uma cena sexual em que um sujeito, geralmente adulto, vale-se de seu poder real ou imaginário para abusar de outro sujeito, reduzido a uma posição passiva: uma criança ou uma mulher de modo geral. Em essência, a palavra sedução é carregada de todo o peso de um ato baseado na violência moral e física [...] Foi exatamente dessa representação de coerção que Freud partiu, ao construir, entre 1895 e 1897, sua teoria da sedução. (ROUDINESCO; PLON, 1998, p.696). Ignorávamos que essas idéias já haviam nascido com os gregos. Senão, vejamos: Como assinala Clemence Ramnoux – “os gregos conheciam três maneiras de se impor: pela violência (bía), pela persuasão (peithó) e pela sedução”. Esta última é função das Kharites, Graças, sequazes-irmãs das musas, e a estreita conexão entre ambos os grupos se revela também na homonímia (Thalia – Thalia) e proximidade onomástica (Euterpe – Euphrosyne) entre indivíduos de um e outro grupo. (HESÍODO, 2003, p.34). A idéia de se impor ao outro, seja pela violência, seja pela persuasão, seja pela sedução, está plenamente contemplada na premissa de se tratar de “um ato baseado na violência moral ou física”. Tudo isso pode ficar melhor configurado, convocando-se o histórico e famoso caso Emma, colocado em circulação por Freud em 1895 (p.448), no qual o abuso de um primeiro ato, quando Emma tinha 8 anos, é retomado a partir do segundo ato, aos 12 anos, criando sentidos ao primeiro, quando ela foi abusada por um adulto. A sedução é um acontecimento material 484 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 483-487, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 485 Leonardo A. Francischelli no primeiro ato, mas o segundo trabalha já como uma realidade psíquica. De qualquer forma, recorremos a essa história de Emma para destacar a temporalidade na construção dos eventos sedutores-traumáticos, nos quais o segundo ato vai re-significar o primeiro, que permanecia como traço de memória, e se faz trauma. Antes de concluir esse pequeno recorte histórico das vicissitudes da sedução e do traumático, destacaremos onde nasceria o verdadeiramente traumático para Freud (1923, p.56) dos últimos trabalhos: “Então acredita na seriedade do que ouviu e vivencia, ao cair sob a influência do complexo de castração, o trauma mais intenso de sua jovem vida”, que, de alguma forma, articula, mais uma vez, com o conceito de fantasias originais, em que a castração é uma delas, portanto com um pé no “patrimônio psicogenético”. Hoje, a idéia de sedução é re-visitada, entre outros, por Laplanche (1988), através de seu profundo trabalho sobre “a teoria da sedução generalizada”, que permite perceber toda a atualidade que a sedução mantém à teoria e à clínica do nosso tempo. Deixaremos agora esse caminho para investigar outro ângulo da sedução, já não no terreno da clínica ou teoria, mas talvez no da psicopatologia. Em nossa cultura do sucesso a qualquer preço, a sedução é uma arma poderosa na conquista do poder sobre os outros. Como dissemos, os gregos conheciam a sedução como um meio de imposição. Esse instrumento continua vigente em todos os vínculos societários que organizam a comunidade humana. Se olharmos a política, a vida das nossas instituições, constatamos que muitas vezes a sedução poderia ser confundida com a hipocrisia ou mesmo com a psicopatia. Sem ir muito longe, em nosso próprio meio, às vezes, nossas discussões teórico-clínicas, nas quais o elogio fácil campeia, enquanto a crítica construtiva, o comprometimento com a tarefa de uma discussão profunda com as questões que nos envolvem, sempre se vê postergada. A sedução domina a cena. E, dramaticamente, essa prática ocupa todos os espaços SEDUTOPATIA: UM ENSAIO sociais. Nesse sentido poderiam-se caracterizar as patologias das instituições. A esse proceder sedutor dominante nos vínculos intersubjetivos explorando a sedução como um meio de conquistar o outro sem cuidados com sua alteridade, isto é, sem olhar verdadeiramente para esse outro, só valendo o êxito pessoal, no qual a moeda de troca é o narcisismo pessoal, a esse comportamento chamaríamos de “sedutopatia”. Nessa categoria, o outro não é reconhecido como tal. Não existiria responsabilidade pelo outro. Por outro lado, sem a sedução nossa de cada dia ninguém sobreviveria. É fundamental uma pitada de artimanhas sedutoras, semelhantes ao devaneio, que precisamos exercitar para lidar melhor com a realidade material. Contudo, na sedutopatia encontramos uma marca diferente. A sedutopatia, expressão que construo aqui para designar a manifestação de um fenômeno que nos perturba: a sedução como meio de prestígio social, político e profissional. Na sociopatia já conhecemos o destino da culpa: ela não existe. Para alguns autores, a culpa não existiria, visto que, apoiados na colocação de Freud (1940, p.189), “existem dois caminhos pelos quais os conteúdos do id podem penetrar no eu: um é direto, o outro passa através do ideal do eu”. Sendo esse caminho direto aquele empregado pela sociopatia; o outro, pois, sofre a intervenção do ideal do eu, fonte da culpabilidade. Haveria culpa na sedutopatia? Somos tentados a sustentar que sim. Entretanto, pararemos por aqui, visto que nossa intenção era realizar uma primeira apresentação dessa nova entidade nosográfica que, partindo da idéia de sedução, a batizamos de “sedutopatia”. Referências FREUD, S. (1897). La Carta 29. In: ______. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1976. v.1. ______. (1915). Un Caso de Paranóia que Contradice la Teoría Psicanalítica. In: 486 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 483-487, 2005 Ensaio Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Dr. Leonardo A. Francischelli Rua Tobias da Silva, 267/206 90570-020 Porto Alegre – RS – Brasil Fone/fax: (51) 33462010 E-mail: [email protected] Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 487 Leonardo A. Francischelli ______. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1976. v.14. ______. (1915-16). 23ª Conferencia: los caminos de la formación de síntoma. In: ______. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1976. v.16. ______. (1923). El Ello y el Yo. In: ______. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1976. v.19. ______. (1940[1938]). Esquema del Psicoanálisis. In: ______. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1976. v.23. ______. (1950[1895]). Proyecto de Psicología. In: ______. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1976. v.1. HESÍODO. Teogonia. São Paulo: Iluminuras, 2003. ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. LAPLANCHE, J. Teoria da Sedução Generalizada e Outros Ensaios. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988. SEDUTOPATIA: UM ENSAIO 488 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 483-487, 2005 Mauro Manica Membro Associado da Sociedade Psicanalítica Italiana. Às vezes encontramos pacientes que nos levam a explorar as fronteiras da psicanálise como instrumento para a cura e como método de compreensão dos sofrimentos mentais graves. Criam-se, nesses lugares, situações “extremas” entre paciente e analista que, ao longo das diretrizes da transferência e da contratransferência, individualizam áreas da experiência inconsciente que não podem nem emergir em formas narrativas nem ser recordadas em sentido autobiográfico, senão sob a forma de rompimento ou de medos de rompimento (WINNICOTT, 1963). Podem ser revividas concretamente, em campo, com os aspectos de uma experiência atual, capaz de envolver Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 489 Mauro Manica Contratransferência em Situações ” “Extremas” CONTRATRANSFERÊNCIA EM SITUAÇÕES “EXTREMAS” a pessoa do analista: ainda quando, na realidade, seja a reprodução de uma quebra já ocorrida e que envolveu a relação com os objetos primários. Portanto, se assiste e se vê arrastado a experimentar “agonias”, mais do que angústias primitivas, pertencentes a uma área de experiências não simbolizadas e não verbalizadas – experiências que se podem converter em pensáveis e predispostas a uma transformação somente dentro da mente do analista. Nesses casos, estamos frente a um fracasso dos processos simbólicos e representativos. E, então, o conceito de agonia primitiva, de Winnicott, oferece uma perspectiva que permite dramatizar o significado afetivo da experiência traumática originária. A agonia faz referência à idéia de um sofrimento mental avassalador e comporta a idéia da confrontação com uma situação extrema, com a possibilidade de uma morte psíquica. Alinhado às formulações freudianas sobre a angústia traumática, poder-se-ia dizer que, talvez por meio do conceito de agonia, Winnicott quis indicar quão extensa e profunda foi a fratura do sistema de paraexcitação, o que provocou então uma dor mental tão intensa, de modo a impedir a realização de processos de contracatexia psíquica que pudessem delimitar a extensão da fratura ou das feridas do Si mesmo. Também Winnicott reconduziu esse fracasso dos processos psíquicos de defesa à extrema imaturidade do Eu no momento das experiências cataclísmicas. Trata-se, então, de experiências originárias que envolvem a formação do Si mesmo em épocas em que sua organização não é capaz de opor resistência, não é capaz de fazer nada, até o limite de não poder sequer ficar presente na experiência. O modo no qual as partes infantis do Si mesmo se retirarão da experiência agônica poderá ser substancialmente representado mediante uma “contracarga protetora” (ROUSSILLON, 1999). Por exemplo, se a agonia está suscitada pela experiência de ser-deixados-cair-ao-infinito, a defesa será a autocontenção; se tem a ver com estar-desorientados, com a perda do sentido da realidade, a defesa poderá ser o uso do narcisismo primário; ou, também, se a experiência agônica levou à perda das capacidades para esta490 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 489-512, 2005 1 Paul-Claude Racamier (1995) parece-me ser o psicanalista que mais conseguiu atrever-se, de uma maneira imaginativa, à exploração das soluções solipsísticas, criando a figura clínica do Antiédipo e estudando a área dos fenômenos e dos objetos incestuais (com potencialidade incestuosa). A constelação antiedípica – segundo Racamier – põe-se em uma relação de complementaridade com a edípica nos destinos mais favoráveis e naturais, enquanto que entra em competição com o Édipo nas variantes mais traumáticas. O Antiédipo é filho de uma sedução narcisística materna, de objetos que fazem enlouquecer; trata-se de um conflito nas origens que contrapõe as forças tendentes ao uníssono narcisístico com a mãe primária às outras forças opostas que aspiram à separação e à autonomia. Seu fantasma essencial (ou melhor dito: seu fantasma-não-fantasma), sua específica configuração é a de ser gerador de sua própria vida: o gerador de si próprio. Seria essa a via aberta para a psicose e, nos resultados mais dramáticos, para a esquizofrenia. Porém, se é a função “umbral” da organização de complexos antiedípicos a se derrubar, então cai Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 491 Mauro Manica belecer uma relação com os objetos, a defesa será o autismo ou o ataque ao vínculo. Em todos esses casos, que a clínica nos devolve em diversas combinações, a defesa consiste, em última análise, tirar a catexia da relação objetal para pôr em prática uma solução solipsística.1 Outras vezes, como nos ensinou Roussillon, tratar-se-á mais de um modo de se retirar da dor mental, estruturando “defesas paradoxais”, centradas essencialmente no revirar passivo/ativo, em um desesperado movimento defensivo que já Ferenczi (1932) havia vislumbrado frente a essas carências traumáticas do ambiente familiar que conduzem a “uma confusão de linguagens entre adultos e crianças” e à necessidade de se identificar com o agressor e com as modalidades próprias da agressão. Nessa articulação dramática de defesas, que não quer ser uma descrição clínica exaustiva, identifica-se imediatamente um traço comum: tratase de defesas extremas frente a experiências traumáticas extremas, aquelas para as quais Freud (1910) parece haver escrito: “é mortificante pensar que um Deus justo ou uma Providência benévola não nos proteja melhor de semelhantes influências no período mais indefeso de nossa vida”. Por outro lado, trata-se de defesas permanentes e paradoxais nas quais pode ser reconhecida, como traço genético comum, a condição de nãopensabilidade ou insuficiente pensabilidade dos eventos traumáticos que, CONTRATRANSFERÊNCIA EM SITUAÇÕES “EXTREMAS” no máximo, permite armazená-los nas partes psicóticas da personalidade, como ideogramas difíceis de decifrar (BION, 1963), a utilizar sucessivamente para a evacuação ou para desesperadas tentativas de comunicação. E se as articulações fenomenológicas da agonia primitiva a definem como extrema, sem fim (os organizadores temporais constituíram-se com labilidade), sem limites (conduz a uma desorganização), a mente da criança não dispõe, de imediato, de outros recursos que não sejam retrair-se na tentativa de evitar a ameaça de uma morte psíquica ou cindir as partes do Si mesmo que foram, principalmente, investidas pela onda de choque, encerrando-as em um objeto interno (“claustrum”) ou em um refúgio, ou ainda em um limbo psíquico colocado fora do Si mesmo e dos objetos internos. Então, o fato de que se experimente a agonia em dimensões não verbalizáveis e não simbolizáveis não implica que essa experiência não esteja gravada na personalidade e não deixe marcas internas. O trauma segue inelaborável e incontível, o sujeito retira-se da experiência e deixa-a, assim, que se desenvolva “sem ele” (ROUSSILLON, 1999), porém a defesa cria um estado de estruturação da mente que faz com que a marca da agonia esteja sempre presente, sob a forma de uma ausência de vida. Em outras palavras, a defesa despotencializa o sofrimento e o trauma, porém a estruturação do Si mesmo leva o sinal do mesmo. E esse sinal, essa marca não é dinamizável e não se pode processar senão através do processo (terapêutico) psicanalítico, que pode ativar a esperança de permitir a repea função do Antiédipo como organizador interior e social. Assim como para o Édipo o limite é o tabu do incesto, para o Antiédipo seu tabu é o da indiferenciação dos seres: o que não permite a confusão entre sujeito e objeto, entre os gêneros (masculino – feminino) e entre as gerações. Então, se infringimos o tabu antiedípico, as expectativas narcisísticas maternas prevalecem sobre as expectativas narcisísticas da criança, a mãe seduz o filho e se realiza um desvio irrefreável nas potencialidades incestuosas (incestuais). A criança converte-se em objeto-fetiche de uma figura materna que não tolera nem autonomia nem separação; inverte-se a função continente-conteúdo e a criança, invadida pelas angústias maternas, se encontra fixada na posição de objeto-não-objeto, herdeira de um destino que passa através de gerações, que não é seu destino e, no entanto, condena o obrigado a realizá-lo mais além da morte de quem obriga, até os confins do mundo, mais além dos limites de uma vida. 492 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 489-512, 2005 Material Clínico Hermes (assim chamarei o paciente) sempre teve de recorrer a defesas centradas no funcionamento de uma organização autárquica e protética que o obrigava a produzir seqüelas de elementos “balfa” 2 (FERRO, 2002), ou 2 Com a denominação evocativa de balfa, Antonino Ferro desenvolve, de maneira original, o conceito de Bion de “fatos não digeridos”: impressões sensoriais, turbulências traumáticas, emoções confusas e não-expressadas (elementos beta, no sentido bioniano) que não podem ser transformadas inteiramente por meio da função alfa em símbolos e pensamentos. Os fracassos dessa transformação fundamental – mediada no desenvolvimento infantil pelo funSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 493 Mauro Manica tição, o working through, e finalmente a construção de uma nova forma de lembrança. Então, talvez, devamos resseqüenciar o percurso indicado por Freud (1914): não lembrar, repetir e reelaborar, mas também repetir, elaborar progressivamente, para poder recuperar as partes do Si mesmo, agonizantes e afásicas, mediante o trabalho de co-construção, de simbolização e de reafetivização levado a cabo na relação analítica. Em outros termos, sempre para usar os conceitos rabdomânticos e quase premonitórios de Freud (1925), se a profundidade e a extensão da fratura do sistema de paraexcitação fizeram que a “angústia traumática” não se pudesse transformar em “angústia sinal”, não é sequer possível o trabalho simbólico da repressão. A experiência agônica precipita, assim, em um inconsciente não reprimido: não é acessível a uma memória autobiográfica, como intuiu Mancia (2002), se a relega à memória implícita e às dimensões implícitas da mente da criança. Somente na transferência é possível sua reatualização, por meio das articulações pictóricas do sonho ou dos elementos musicais da comunicação (o timbre, o ritmo, a tonalidade, o volume da voz), antes que por meio de seus conteúdos, e só – segundo os ensinamentos de Winnicott – se o paciente estiver suficientemente seguro de poder experimentar o trauma originário, a agonia primitiva, nesse contexto analítico específico e na relação com o analista, como terapeuta e, principalmente, como pessoa. CONTRATRANSFERÊNCIA EM SITUAÇÕES “EXTREMAS” elementos que, nesse caso, seriam melhor definidos como não-alfa-e-nãobeta, experiências emotivas aparentemente boas, porém, em realidade, contaminadas por núcleos angustiantes e destrutivos que não podem ser pensados. A que aparece de maneira fulminante na transferência é uma mãe afetivamente não responsiva, uma mãe “morta”, no sentido indicado por André Green (1980), emotivamente incapaz de aderir às necessidades e aos pedidos da criança. Uma mãe órfã de pai que, oferecendo ao filho um pai igualmente ausente, lhe confia uma parte de um destino próprio. Entregalhe um mandato hereditário que endivida as partes infantis de sua personalidade, dando a essas, como única alternativa, a ilusão de uma autogeração onipotente e desesperada (e Hermes torna-se autodidata, um leitor onívoro, caótico e voraz) ou a proteção que promete um encarceramento até o fim da vida (e Hermes freqüenta o seminário durante alguns anos, obrigado pela mãe a tratar de se fazer sacerdote: talvez para ser confiado a um pai eterno e imortal, talvez para recuperar, para a mãe, uma figura paterna da qual se havia sentido abandonada). Então, como eleger um caminho próprio na vida? Como se dar uma identidade que possa permitir a localização dentro de uma boa família interna? Depois de haver caído em um alcoolismo com traços essencialmente dipsomaníacos, depois de repetidos naufrágios sentimentais e existenciais, depois da dependência de drogas de um filho, depois de várias tentativas psicoterapêuticas abortadas, Hermes, no limiar dos cinqüenta anos, cínico e esvaziado, “como alternativa a uma solução suicida”, aporta na última praia de uma psicanálise. A estréia é impiedosa, porém do corpo-a-corpo cerrado e sem exclusão de golpes, com o transcorrer dos meses, se vislumbra um fio de esperança. cionamento mental materno – fazem, então, que os agregados alfa constituam a defesa primária frente a qualquer patologia e se proponham como fatores prioritários da transferência. 494 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 489-512, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 495 Mauro Manica Assim, depois de sonhos que o vêem emboscado em um “claustrum” retal, no qual aparece um pai-analista depreciado e desvalorizado, traz, às sessões, material onírico que mostra as defesas, as fantasias e as angústias que vive na transferência, porém que, talvez, também deixa entrever o esboço de um percurso terapêutico. No sonho, tem de comprar carne de cavalo e encontra o pai, a quem pede que o acompanhe. É ele, porém, que indica o caminho a percorrer: ainda melhor, conhece um atalho que os leva a percorrer becos cada vez mais estreitos e escuros, até que se vislumbra, à distância, a rua iluminada onde está o açougue. Nas associações do sonho diz que: 1) não sabe se o pai o aconselhará, ou estará atento à compra da carne de cavalo; 2) os becos escuros lhe fazem pensar no intestino e nas interpretações do “claustrum”, que apareceu em sonhos precedentes; 3) a carne eqüina remete-o à decisão, depois do alarme pela “vaca louca”, de não mais comer carne bovina; 4) lembra logo que o médico de seu povo de origem receitava a carne de cavalo e a propunha como remédio empírico para as crianças “anêmicas” – talvez a mãe, em alguma ocasião, havia seguido o conselho do médico e a havia cozinhado; 5) sorrindo, fala da necessidade de esperar que a carne eqüina que poderá comprar não seja de “cavalo louco” e lembra que Crazy Horse era um chefe índio que o havia fascinado, nas leituras de sua infância, por suas aventuras de “herói rebelde”. Faz-se evidente, como aparece no sonho, a necessidade de ativar as defesas narcisistas frente ao terror e à angústia suscitados pela relação de suas partes infantis com uma mãe-vaca louca (uma mãe que identifica projetivamente sua depressão, sua orfandade e sua visão cínica da vida) e intensificados pela ausência de um pai, de uma função paterna que pudesse protegê-lo, sanar a relação mãe-filho, e oferecer apoio à mãe, para que pudesse transformar em alimento nutritivo a própria “loucura”. A organização narcisista não pode aceitar a dependência do analista (ainda que comece a aceitar sua companhia): deve eleger por si próprio, CONTRATRANSFERÊNCIA EM SITUAÇÕES “EXTREMAS” autarquicamente, o caminho a percorrer, e melhor; deve tomar atalhos (como o álcool do qual abusa), porquanto o conduzam em um espaço retal. Certo, o percurso analítico poderia conduzir a uma relação nutritiva na qual há um pai que se tornaria capaz de desempenhar uma função de vigilância e, talvez, um açougueiro capaz de vender carne boa que, com diferença do vinho, faz realmente “bom sangue” para prover suas partes infantis “anêmicas”. No entanto, o risco é que sua organização afetiva não lhe permita nem tolerar a dependência nem se entregar ao vínculo com o analista-açougueiro: existe o temor de que lhe forneça “cavalo louco”, alimento aparentemente bom, porém, em realidade, contaminado e perigoso. Ao mesmo tempo, o risco está constituído pela fascinação de que a parte satânica de sua personalidade o subjugue e o seduza, como Crazy Horse, com a falsa promessa de ser seu herói rebelde, o vingador que, armando-o com álcool, lhe permite, entre uma sessão e outra, desembaraçarse do trabalho feito comigo na “análise”. Assim, o “cavalo louco” constitui-se na representação de um elemento não-alfa-e-não-beta: um híbrido, um elemento contaminado que permite atacar o vínculo com o analista, preservar as partes infantis traumatizadas pela dependência de objetos experimentados como não-confiáveis. Um elemento, no entanto, que ao mesmo tempo testemunha um fracasso dos processos de simbolização e do sofrimento gerado pelo desfalecimento (defaillance) da função alfa, da contenção, da capacidade de rêverie materna na relação primária. Dado que todos os indivíduos entram e saem de estados narcisistas da mente, e dispõem de um “idioma pessoal” – um núcleo inconsciente do Si mesmo, como disse Mancia (2003), está constituído pela sedimentação, na memória implícita, de experiências pré-verbais e pré-simbólicas convertidas em realidade mediante a relação primária mãe-filho –, Bollas (2000) sentiu a necessidade de destacar como se converte em realidade o que definimos “patológico”, quando não é possível subtrair-se ao encantamento de uma “fixação”. 496 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 489-512, 2005 Onde falta a nova transcrição, a excitação se produzirá segundo as leis psicológicas válidas para a precedente época psíquica e ao longo das vias disponíveis nesse momento. Assim, nos encontramos diante de um anacronismo: em uma província particular [...] sobrevivem refugos do passado.3 Desse modo, se quiséssemos aproximar a visões “pós-clássicas” (LOCH, 1975) a idéia originária de Freud, relativa a províncias do aparelho psíquico em que podem sobreviver os refugos de partes do Si mesmo do passado, poderíamos assimilar o conceito de fixação aos “claustruns” 3 Freud, em realidade, em Construções em Psicanálise (1937), aproximou-se novamente à possibilidade de supor um “inconsciente não reprimido”, quando se viu obrigado a reconhecer que, em algumas situações, construções que pareciam acertadas evocavam: “nos pacientes um fenômeno estranho e a princípio incompreensível. Provocaram-lhes vivas recordações [überdeutlich = ultraclaros] [...]; porém, o que recordaram não foi o sucesso que constituía o objeto da construção, mas detalhes relacionados com aquele”. E Freud fala de um paciente em cujo sonho aparecem rostos, com anormal clareza, o quarto ou os móveis desse quarto, “de cuja construção não tinha, naturalmente, nenhuma possibilidade de conhecimento”; faz, então, a hipótese de que seria plausível considerar esses pormenores como o produto de um compromisso psíquico entre o empuxo Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 497 Mauro Manica Fixierung é o termo adotado por Freud (1905, 1909, 1915-17, 1920), ainda que com articulações descritivas diferentes, para indicar o fato de que a libido fica fortemente ligada a pessoas (objetos) ou a imagens, repropondo um determinado modo de compensação e se organizando segundo a estrutura característica de suas fases evolutivas (oral, anal, genital). Com certeza, o conceito freudiano de fixação poderia revelar-se desgastado pelo tempo, por estar demasiadamente ancorado ao modelo de uma teoria determinista das pulsões e ligado a uma concepção genética que implica um processo excessivamente ordenado da libido. Isto porque Freud não tivera ainda a possibilidade de chegar a hipnotizar um inconsciente não-reprimido, ainda que, já em 1896, escrevesse a Fliess, a propósito da possibilidade de entender a fixação como transcrição de marcas de sistemas mnemônicos: CONTRATRANSFERÊNCIA EM SITUAÇÕES “EXTREMAS” meltzerianos (MELTZER, 1992), aos “refúgios” de Steiner (1993), ou, inclusive, às “criptonimias” (ABRAHAM; TOROK, 1976) que, recuperando a natureza traumática da fixação, voltam a levá-la a uma constelação de relações internas tão traumáticas que não podem ser pensadas e as quais se devem esconder (kryptós), ou não se pode dar-lhes um nome (ónyma). Então, o que não tem nome, que não alcança o nível de significação lingüística (MANCIA, 2002), que não se pode devolver em forma de narração ou novela autobiográfica, se encomenda àquelas modalidades defensivas de base – como a cisão, a negação e a identificação projetiva – que a criança teve de pôr em funcionamento para reduzir suas angústias de perda e fragmentação do Si mesmo, conectadas à fratura do sentimento de existir. E, principalmente, a identificação projetiva se ativará como modalidade filogeneticamente pré-humana e ontologicamente pré-verbal, segundo a definição de Money-Kyrle (1968), para exemplificar a evacuação e, eventualmente, a comunicação das experiências mais traumáticas. Com efeito, na relação psicanalítica com os casos graves, são justamente as identificações projetivas (interpessoais e intrapsíquicas) que se manifestam maciçamente no sonho, as que atuam em sessão e se ocultam no setting, fazendo o analista viver emoções intensas e catastróficas. Assim, depois de um encontro particularmente dramático com Hermes, marcado pelo surgimento de angústias psicóticas profundas, encontro-me tendo um sonho igualmente psicótico e que se poderia definir de contratransferência dolorosamente participada. No drama do sonho encontro um antigo companheiro de colégio que ascensional do inconsciente e a tendência regressiva de outras instâncias psíquicas que deslocam “as marcas mnemônicas importantes [...] de objetos adjacentes de importância menor”. A intuição mais genial de Freud é a de propor que nesses pormenores possa reaparecer “algo experimentado na infância e depois esquecido, algo que a criança viu ou ouviu em uma época em que mal sabia falar e que agora forja seu caminho até a consciência”. Com essas lembranças-detalhes, Freud parece confrontar-se com alguns conteúdos da área préverbal não suscetíveis de repressão; para tentar decifrá-los, deve-se pensar que sua persistência e composição derivem de ações psíquicas mais radicais e precoces, as quais – por exemplo – representadas por movimentos de cisão. 498 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 489-512, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 499 Mauro Manica sempre me havia comovido e perturbado devido à sua grave invalidez produzida por uma poliomielite infantil. Não me surpreende o encontro, como tampouco o fato de que me comunique que deve morrer: por outro lado, a mim não fica claro se se trata de um desejo seu ou de um destino inelutável. Trata-se, no entanto, de enfrentar uma espécie de jogo, a variante original de uma “roleta russa”: ele deve desafiar a sorte primeiro e, logo após, eu. A atmosfera do sonho torna-se inquietante. Na realidade, sou eu que devo interpretar o papel de ambos os jogadores e, portanto, disparar em mim, em seu lugar, quando é seu turno, e fazer o mesmo no momento em que isso me toque. Então, inicia-se o jogo: como seu substituto, tomo o cano da pistola entre os lábios e disparo. Observo uma dor dilacerante, é como se sentisse e visse o projétil penetrar minhas estruturas cerebrais, uma luz ardente, logo o mundo se converte em nada. Implodindo, meus pensamentos convertem-se em nada e, finalmente, anula-se meu sentimento de existir. Tudo se desenvolve com uma rapidez terrível, imediatamente vejo que devo repetir o jogo porque é meu turno. De novo observo o estrondo do disparo, a dor, a sensação de anulação, porém me dou conta de que ainda estou “vivo”. No entanto, ao alívio segue-se imediatamente uma perplexidade inquietante: onde estará o projétil? Onde se depositou a ameaça constante que leva com ele? Temo que possa haver se alojado perto de uma estrutura vital e que possa destruí-la a qualquer momento. Inesperadamente encontro minha esposa e, angustiado, conto-lhe o sucedido. Escuta-me atenta e preocupada, porém sem se assustar. Sinto-a próxima à minha angústia, porém capaz de acalmar-me. Sua proposta de me acompanhar ao hospital para realizar investigações radiográficas que localizem o projétil, permitindo sua extração, esfuma meu terror e me devolve a confiança e a esperança. Mais além das sugestões oferecidas por um trabalho auto-analítico, o dramatismo desse sonho leva diretamente a considerar o funcionamento das identificações projetivas na clínica e na relação em situações extremas. Com efeito, a particular intensidade dos movimentos identificadores e projetivos fez com que o paciente se desembaraçasse de elementos CONTRATRANSFERÊNCIA EM SITUAÇÕES “EXTREMAS” impensáveis e não pensados em sua sessão anterior ao sonho, introduzindo-os violentamente na mente do analista. Elementos cindidos na personalidade do paciente, tão destrutivos e tão mortíferos, como para poder ser somente evacuados; tão densos e tão opacos, como para paralisar a capacidade do analista de captar seu trânsito na imediatez do encontro. A sessão, de fato, havia estado caracterizada pela reproposição, por parte do analisando, de um enésimo ataque de raiva com respeito à mãe, que nessa ocasião havia se manifestado ausente e distante, por sofrer de uma grave enfermidade cardíaca. O fio das interpretações havia seguido ao surgimento das angústias abandonantes e à assimilação do analista a uma mãe ausente, distraída e não-disponível. Porém, o que se havia escapado, mascarado pela intensidade da raiva e do rancor, era a diferente orientação das pulsões agressivas do paciente: o temor de morrer no abandono, de ser morto por uma privação afetiva, começava, talvez, a estar acompanhado de um movimento integrador, pela preocupação e pela melancolia por uma mãe que podia morrer. E a melancolia asfixiava o Si mesmo do paciente, visto que, ao se haverem atenuados os mecanismos projetivos no curso do tratamento, não pôde ser expulsa imediatamente. O terror de ser morto havia se convertido no terror suscitado pela evocação de uma situação suicida como única possibilidade de tratar uma angústia persecutória que se estava transformando em angústia depressiva. Tudo o que o paciente havia expulsado, então, intensificando as identificações projetivas, constituía-se produto de uma elaboração incompleta e “em curto circuito”: uma necessidade de morrer que não podia ser tolerada e representada. O sonho do analista registrava, assim, o trânsito desse elemento incompleto, um elemento não-alfa-não-beta composto por uma preocupação excessivamente solícita pelo objeto que gerava, de todos os modos, uma dor difusa e intolerável (uma “comoção” e uma “perturbação” que não podiam ser contidas, mentalizadas pelo paciente). Com efeito, era tanto função como responsabilidade do analista tomá-lo, submetê-lo a um trabalho de rêverie e fazê-lo suportável. O que não havia sucedido na incandescência emotiva da sessão sucedia no sonho de contratransferência, onde 500 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 489-512, 2005 Considerações Técnicas Quando se desce aos abismos do coração de pacientes como Hermes, de pacientes com áreas precocemente traumatizadas a ponto de distorcer seu próprio sentimento ou sua própria consciência de existir? De quais instrumentos é necessário dotar-se para conseguir reanimar as partes hipóxicas e cianóticas do Si mesmo desses pacientes, para assim encaminhar esses processos reparadores – também “paradoxais” (MEOTTI, 1998) – que podem restituir o sentido de beleza e airosidade da vida? Muito provavelmente aqueles de quem me ocupei nas páginas precedentes são pacientes com os quais nos movemos sobre a linha do horizonte, no limite das fronteiras da analisabilidade; ou talvez mais além desse limite. E estamos obrigados a tornar a pensar nas potencialidades próprias dos instrumentos analíticos e a reconsiderar os critérios que definem quem é analisável e quem não é, que pacientes são analisáveis e quais não. Talvez nos encontremos em uma área extrema da clínica e das possibilidades terapêuticas da psicanálise, na qual pode dar-se que o único critério de Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 501 Mauro Manica aquilo que havia sido identificado projetivamente, e que sacudira a ordem mental do analista, encontrava novamente uma possibilidade de ser representado e pensado. O aparecimento depois de minha esposa – o médico, na realidade da vigília – vinha simbolizar a presença de um objeto interno confiável, um objeto materno capaz de rêverie, porém também o referente de uma função analítica da mente do analista. Certamente, o Si mesmo infantil do paciente devia cindir, atuar e identificar projetivamente as próprias partes traumatizadas e destrutivas. E teve de recorrer a drásticas modalidades defensivas, ao menos tanto como havia sido invadido na relação primária pelas identificações projetivas de uma mãe esmagada, quando o filho tinha dois anos, por um luto inelaborável pela morte do marido. Uma mãe que assim havia exposto o próprio filho a uma experiência lutuosa combinada e superposta: ao vazio, à falta de uma função paterna, se havia agregado, no paciente, o luto-de-uma-mãe-de-luto, por sua vez agonizante e moribunda. CONTRATRANSFERÊNCIA EM SITUAÇÕES “EXTREMAS” analisabilidade adotável esteja definido pela capacidade do analista de reconhecer se está ou não em condições de assumir a responsabilidade de manter um setting com esse paciente específico. E por “responsabilidade de manter o setting” não entendo simplesmente a conservação dos aspectos formais do marco terapêutico, mas também a capacidade de tolerar, de compartilhar e de conter, no sentido de ter dentro de si, e em alguns momentos sobre si, o sofrimento do paciente. Tenho a impressão de que uma tal responsabilidade necessita de cuidados e disciplina; o cuidado é algo que tem em si sentimentos de consideração, de empatia, de valor e de respeito pela alteridade do objeto. O cuidado pela vida – escreveu Bion (1992) – não quer dizer somente o desejo de não matar, ainda que esse seja seu significado de base. Quer dizer cuidado de um objeto, justamente porque esse objeto tem a qualidade de estar vivo [...] Quer dizer ter curiosidade por aquelas qualidades que constituem o que nós reconhecemos como “vida” e ter um intenso desejo de compreendê-las [...] Finalmente, cuidado pela vida quer dizer que uma pessoa deve ter respeito por si própria em sua qualidade de objeto vivo. A falta de cuidado implica uma falta de respeito por si próprio e, a fortiori 4 pelos demais, coisa fundamental e de relevância proporcionalmente grave para a análise. Parece-me que o discurso bioniano, quase no limite de uma mística psicanalítica, expressa-se em termos muito similares aos usados por Martin Heidegger (1927), quando pensou em um cuidado que pudesse ser um anticipare liberando, no sentido ao menos de essa possibilidade de cuidar que, em vez de se pôr no lugar dos Outros, os pressupõe em seu poder-ser existencial, já não para lhes tirar o “cuidado”, mas também para inseri-los autenticamente neste. Essa forma de ter cuidado, que concerne essencialmente ao cuidado autêntico, ou seja, à existência dos Outros e não a algo que esses cuidem, ajuda os Outros a se tornarem conscientes e livres para o próprio cuidado. 4 A fortiori = com maior razão. (NT = nota da tradução) 502 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 489-512, 2005 5 Stefano Bolognini (2002) distingue o conceito de contratransferência do de empatia. O primeiro, de derivação kleiniana, baseia-se em identificações “complementares” com o objeto projetado pelo paciente sobre o analista; o segundo, de derivação kohutiana, implica uma ordem mental do analista baseada em identificações “concordantes” com a vivência egossintônica do paciente e tem finalidades coesivas do Si mesmo. Como articulação entre os dois conceitos, Bolognini proSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 503 Mauro Manica Isso é ainda muito similar ao que Winnicott (1962) havia intuído, ao apresentar esse concern, essa “preocupação” entendida como uma capacidade a desenvolver para chegar a uma maturidade autêntica, nos mostrando como se fosse uma capacidade que necessita de um ambiente suficientemente bom para poder realizar-se, além de solicitar o compromisso de tolerar nossa destrutividade e assumir a responsabilidade de suas conseqüências. De fato, é necessário aceitar perder-se – perder o próprio Si mesmo e os objetos – para se poder encontrar mais além de uma mudança que tem todas as características de uma catástrofe. E perder-se, aqui, é perder-se realmente e não pode não gerar terror tanto (e sem dúvida) no paciente como no analista. Assim, é justamente o inevitável surgimento do medo de se perder nas fronteiras de um mundo conhecido o que enfatiza a particular relevância de duas funções da mente do analista: a da contratransferência e a da cultura, entendida principalmente como cultura do encontro, função poética e onírica da teoria. Recentemente, Richard Lucas (2003) observou que, se os sonhos são a via principal para se aproximar ao inconsciente nas neuroses, então a contratransferência pode representar a “via real” (via regia) para a compreensão das experiências esquizofrênicas. E, por extensão, creio que a relevância da contratransferência, no encontro com as personalidades psicóticas, pode ser transportada naquelas situações que defini extremas, principalmente quando se atribua importância a esse movimento dos processos contratransferenciais que se integra a uma orientação analítica empática.5 Então, se a empatia pode ser considerada a capacidade de pensar e CONTRATRANSFERÊNCIA EM SITUAÇÕES “EXTREMAS” sentir-se a si próprio na vida interior de outra pessoa (KOHUT, 1971), a contratransferência deve converter-se na capacidade de pensar e sentir a outra pessoa na própria vida interior. Isso é substancialmente o que se apresenta no filme The Cell-La Célula, onde a psicoterapeuta Catherine Deane – a atriz Jennifer López – recebe, como encargo do FBI, a tarefa de entrar na mente de um assassino serial, em coma profundo, para descobrir onde escondeu a última vítima. Vestindo um macacão cibernético, a psiquiatra se aventura no mundo interno do criminoso, onde encontra uma criança (o Si mesmo infantil do paciente) que coabita com um personagem monstruoso e capaz de infâmias aterrorizantes, em um lugar transfigurado, no sentido alucinatório, dominado por horrores e alienações (a combinação de uma organização narcisista maligna, de um “claustrum” perverso e do mundo de um sistema delirante). Catherine toma, assim, contato com o terror e pode conhecer as arquiteturas de uma realidade devastada; para chegar a recuperar a inocência violada pelo monstro, no entanto, deve decidir-se a fazer entrar o Si mesmo infantil traumatizado e o aberrante aparelho defensivo do assassino serial dentro de sua própria mente, invertendo o habitual fluxo do macacão cibernético. Então, não só o contato empático, mas também uma contratransferência dolorosamente participada é o que nos leva aos abismos do coração dos pacientes em situações extremas. E, simetricamente, nos arrasta aos abismos da contratransferência, onde somos conduzidos a experimentar sentimentos atormentadores,6 que freqüentemente nos levam a nos pergun- põe considerar um percurso cognitivo e de experiência, do qual a contratransferência representa uma etapa e a empatia o resultado final, uma empatia como: “contato progressivo, compartilhado e profundo com a complementaridade objetal. Com o Eu defensivo e as partes cindidas do outro, não menos que com subjetividade egodistônica”. 6 Sempre mais intensamente me encontro a pensar que, ainda que seja importante para qualquer relação terapêutica, para o paciente grave chega a ser essencial e necessário tornar a escrever uma psicanálise das experiências emocionais extremas e, talvez, chegar a teorizar uma metapsicologia dos afetos além da metapsicologia das pulsões. Talvez essa necessidade já estivesse implícita na 504 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 489-512, 2005 Não é só questão de análise pessoal feita em seu momento [...] de análise sucessiva, de supervisões, de training, de leituras e “horas de vôo”; é também questão de “material de base” e de vida vivida, ou melhor, das modalidades com que essa foi vivida: como um apêndice do trabalho, em uma negação da própria subjetividade ou com uma intensidade emotiva, ao qual permita uma autêntica disponibilidade para o paciente, não somente do “saber” do analista, mas também do “ser” do analista. Estou cada vez mais convencido de que na análise conta cada vez mais o que “fazemos” do que o que dizemos. Por “fazer” não entendo, naturalmente, um atuar, mas todas aquelas operações mentais que cumpriconceitualização dos vínculos de Bion e nos permitiria chegar a formular uma psico(pato)logia psicanalítica em termos clínicos deste tipo: ± L (Love) y/o ± H (Hate) e, por conseqüência, ± K (Knowledge). (N. da T.: Do ingl., Love, Amor; Hate, Ódio; Knowledge, Conhecimento). Não creio que seja por acaso que os psicanalistas italianos, muito empenhados em situações extremas, reflexionem sobre a função da “fé” e da “confiança” em seu trabalho analítico (NERI, 2005), ou então falem de uma “linguagem da ternura” (GABURRI, 2004). E, outra vez, não por acaso, me parece que Racamier (1995) tenha dedicado atenção à “ternura” como sentimento primário, com funções protetoras, para desvios narcisísticos negativos ou incestuosos. Em particular, creio que a ternura (T ) possa constituir um fator terapêutico específico (fator T ) , porque as experiências extremas nos ensinam que, freqüentemente, foi também a impossibilidade originária de vivenciar a ternura de um continente que ajude a se individuar o que alterou a evolução do sujeito. Os pacientes graves, freqüentemente, não estão em condições de criar um significado subjetivo (sujetivo) sobre o qual reflexionar no hic et nunc da sessão. Então, o trabalho terapêutico deve desenvolver-se em uma área de experiência intermediária ou, inclusive, interna à mente do analista, área que possa conseguir oxigênio de um fator T, considerando-o como o substrato emocional essencial de uma contratransferência apaixonada e inspirada por bons objetos internos. Porque, uma vez mais, nas situações extremas devemos voltar a pôr em jogo a essência mais arcaica da vida mental, isto é, a vida afetiva. Então, junto à necessidade de estar o mais aberto possível para Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 505 Mauro Manica tar até que ponto é lícito fazer reviver no paciente uma dor e um sofrimento que parecem estar no limite das possibilidades de ser tolerados. Uma contratransferência no limite também para o analista, ou talvez mais além de margens mais freqüentadas, nesse mais além das possibilidades contratransferenciais do próprio analista no que, como diz Ferro (2002a): CONTRATRANSFERÊNCIA EM SITUAÇÕES “EXTREMAS” mos na presença do paciente: algumas conhecemos (como recebemos ou não suas identificações projetivas, como as elaboramos, como as restituímos, quais rêveries ativamos, quão capazes somos de modular nossas intervenções segundo as capacidades assuntivas que o paciente nos aponta...), porém seguramente são muitas mais aquelas operações mentais que fazemos, inclusive na inconsciência de fazê-las, e cuja descrição e “descobrimento” constituirão os resultados das futuras investigações em psicanálise. Creio que, junto às operações inconscientes e novas das quais Ferro fala, os pacientes em situações extremas nos levam a repensar e a criar novos significados também para operações mentais mais experimentadas e conhecidas, tanto em suas qualidades como em suas distorções. Ao longo dessa diretriz, penso que à função de uma contratransferência dolorosamente participada entrecruza-se a função da teoria: claro, de captar cada elemento do paciente, a condição indispensável para que o analista alcance uma autêntica compreensão de seu paciente está dada pelo carinho (fator T) que ele consiga realmente sentir por aquele paciente, qual função derivada do código materno. No fundo, isso corresponde ao que Harold Searles (1959) intuiu, com antecipação, em sua genialidade sem preconceitos: isto é, a importância de que o analista seja consciente de seus sentimentos de carinho para com o paciente e a importância de que os expresse abertamente. E isto a fim de que cada paciente (seja neurótico ou psicótico) possa receber, de nossa parte (a fim de sanar suas próprias áreas traumatizadas), já não a frustração de suas necessidades afetivas, não a repressão de seus desejos, tampouco uma sedutividade atuada, não a negação de seus valores pessoais (assim como os vivenciou em sua relação com as figuras primárias), mas a máxima compreensão, de nossa parte, dos sentimentos que nascem em nós como resposta às suas experiências emocionais. Isso – nos ensina Searles – faz com que o paciente possa emergir da situação terapêutica, assim como a criança sai da situação edípica: isto é, que a criança descubra que os pais queridos correspondem ao seu amor, reagem para ele como pessoa que vale e é capaz de ser amado. Essa experiência reforça o Eu e o paciente que, como a criança, irá adiante, com um self mais estável propriamente, por estar seguro de que seu amor, ainda que seja irrealizável, é correspondido; também será mais estável dando-se conta de que está vivendo em um mundo no qual os sentimentos de cada indivíduo estão inseridos em uma realidade muito mais ampla do que a sua, ou a de sua própria relação com seu analista, porém toda essa compreensão dá-se graças ao fator T, à ternura de seu analista. 506 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 489-512, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 507 Mauro Manica uma teoria entendida principalmente como cultura do encontro (e sobre o encontro) entre paciente e analista. Inclusive, recentemente, alguém (DE MASI, 2002) sustentou que, na psicanálise dos casos graves, desde as fases iniciais do tratamento, é necessário dotar-se de uma hipótese teórica sobre o paciente, ou seja, dispor de uma teoria a partir da qual se guiar, ainda que criticamente. Bem, creio que assim o psicanalista se expõe ao risco de perder o paciente dentro da própria teoria, visualizando apenas a teoria que adotou e vinculou ao paciente, desconhecendo-o, desse modo, como pessoa portadora de uma irredutível subjetividade. Em essência, o risco é fazer um uso defensivo da estrutura teórica, transformando-a de religião da mente (MANCIA, 1987) – capacidade de criar vínculos e conexões – em religião do analista, que dessa maneira conserva demasiada memória e demasiado desejo, sem poder desenvolver suficientes capacidades negativas (BION, 1970). Por outro lado, é inevitável que, em certa medida e principalmente com os pacientes graves, o analista busque uma referência e uma contenção nas próprias teorias, que, em resumo, se dirija a elas como se pode dirigir-se a um bom objeto interno. Claro, é essencial que se trate de um autêntico objeto interno e não de um ídolo, para que se possa chegar a uma teorização livremente flutuante, a uma relação livre e inspirada com teorias que se dêem como metáforas vivas. Nesse sentido, creio que se pode falar de uma função onírica da teoria. Ou seja, de uma teoria sobre o paciente que se vá criando com a evolução da relação e que se possa considerar no mesmo nível que um sonho feito com e sobre esse paciente e, no fundo, evocado e solicitado justamente por esse paciente. Então, enquanto sonho, a teorização do analista pode submeter-se a um trabalho associativo e interpretativo – um trabalho autoanalítico de personalização da teoria – que poderia, também, permitir um desenvolvimento tanto da análise pessoal do analista quanto das capacidades criativas da dupla analítica. Talvez uma função onírica, e poderíamos agregar poética, da teoria seja assimilável ao que, no campo da poiesis artística, é a vontade-de-dar- CONTRATRANSFERÊNCIA EM SITUAÇÕES “EXTREMAS” forma, é esse movimento que leva com ele o impulso para a integração e a transcendência criativa. A teoria, essa teoria específica sobre esse paciente específico, poderia, então, ser entendida como um processo imaginativo e empático necessário para acolher suas partes cindidas mais incompletas e traumatizadas. Até agora, funções contratransferenciais e funções inspiradas da teoria encontram uma possível conexão: aqui, paciente e analista podem criar algo juntos, pondo em contato diferentes partes da experiência e podendo sintetizar, de novas maneiras, coisas que talvez já estavam ali, porém pela primeira vez dessa maneira. Rochelle Kainer (1999) usou o conceito de “empatia imaginativa” para descrever a sintonia do terapeuta com uma patologia que se tornou parte da estrutura do caráter e da visão pessoal do mundo que o paciente deseja transcender e, além disso, definiu-a como a capacidade do terapeuta para dar espaço à identificação projetiva e, por meio de tal experiência, liberá-la do núcleo patológico de que se origina. Bem, eu penso que um psicanalista que queira tentar ser empático e criativo não pode ter a hybris de querer curar todos os núcleos de patologia, porque sabe que não pode pretender cicatrizar todas essas feridas que, às vezes, leva também em si. Talvez possa modulá-las, talvez possa transformá-las; certamente, pode tratar de levá-las a um pensamento que consiga fazer-se sonho ou poesia. Creio que esse é o desafio que toda psicanálise deveria lançar às formas mais dilacerantes de sofrimento mental: não a celebração da dor ou a ênfase nas dimensões inefáveis de qualquer experiência extrema, mas a busca constante e apaixonada de um encontro, de uma integração que possa criar as premissas para uma poética da relação. Loewald (1975) disse que um fragmento de bom trabalho analítico é uma criação artística realizada pelo paciente e analista. E, freqüentemente, o paciente grave chega até nós como um poeta que perdeu todo contato com a capacidade simbólica e com a função imaginativa da própria poesia (MANICA, 1999). Poderia, então, ser um dos intentos essenciais da relação terapêutica o reanimar tanto a dimensão poética do encontro como a pre508 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 489-512, 2005 Resumo O autor explora, neste trabalho, a contratransferência como instrumento de compreensão do sofrimento mental grave. Algumas situações extremas que não podem nem ser recordadas nem simbolizadas são revividas na sessão analítica como uma experiência atual. No processo terapêutico, através da repetição na transferência e na contratransferência dolorosamente participada, é possível uma elaboração e uma construção de uma forma de lembrança. Palavras-chave Contratransferência. Vivência Traumática. Aflição. Abstract Countertransference in “Extreme” Situations In this paper the author explores countertransference as an instrument for understanding serious mental suffering. Some extreme situations that can be neither remembered nor symbolized are relived in the analytic session as a current experience. In the therapeutic process, through repetition in the painfully shared transference and countertransference, it is possible to make and build a mode of remembrance. Key-words Countertransference. Traumatic Experience. Distress. Resumen Contratransferencia en Situaciones “Extremas” El autor explora, en este trabajo, la contratransferencia como instrumento de comprensión del sufrimiento mental grave. Algunas situaciones extremas que no pueden ser recordadas, ni simbolizadas, se reviven en la sesión analítica como una experiencia actual. En el proceso terapéutico, a través de la repetición en la transferencia y en la contratransferencia dolorosamente participada, es posible una elaboración y una construcción de una forma de recuerdo. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 509 Mauro Manica sunção da existência de um mundo poético complementar ao destino desse momento... CONTRATRANSFERÊNCIA EM SITUAÇÕES “EXTREMAS” Palabras-llave Contratransferencia. Vivencia traumática. 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Artigo Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Somente depois de concluir este trabalho cheguei a conhecer que Bruno Bettelheim (1968) já adotou a definição de “situação extrema” para indicar essas condições nas quais uma perene ameaça de morte espreita o indivíduo, provocando a queda simultânea de seus habituais mecanismos de defesa e pondo em perigo sua própria capacidade para sobreviver. Segundo Bettelheim, é o caráter de inexorabilidade de uma imprevisível ameaça que expõe o indivíduo a um estado de absoluta impotência, a qual põe em perigo de morte sua integridade psíquica. Porém, minha definição de “situação extrema” refere-se a uma perspectiva completamente diferente. Com efeito, Bettelheim parecia pensar em uma situação catastrófica, exterior, objetiva, que pode arrastar o indivíduo em qualquer fase de sua vida. Eu, ao contrário, penso em uma situação interior e fantasmagórica que se realiza em um acontecimento traumático originário e que se perpetua, seja em uma experiência de grave sofrimento psíquico, seja no reproduzir-se na relação paciente-analista. Tradução: Maria Lucia Meregalli Revisão: Maria Regina Lucena Borges Dr. Mauro Manica Via Porta 3 28100 – Novara – Itália Fone: (39) 0321 399544 E-mail: [email protected] 512 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 489-512, 2005 Introdução Paola Marion Membro Associado da Sociedade Psicanalítica Italiana. A questão do trauma, sua existência tanto em termos reais quanto em termos psíquicos e seu papel na patologia têm acompanhado os processos psicanalíticos desde a época de Freud até hoje. É bem sabido que a psicanálise começou com a teoria do trauma e que Freud nunca se cansou de reportar-se a esse conceito em seus textos, reexaminando-os e corrigindo-os constantemente – o trauma estava fortemente entrelaçado com o desenvolvimento global de sua teoria e de sua construção metapsicológica. Realmente, todo o trabalho de Freud pode ser lido como o processamento desse ponto de partida, que estava para continuar a “operar” em sua mente (GO- Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 513 Paola Marion Trauma e Interpretação TRAUMA E INTERPRETAÇÃO RETTI, 1997), sendo constantemente modificado com relação às formula- ções primitivas e à interpretação que lhe fora dada. A complexidade da teoria do trauma que acompanhou o desenvolvimento posterior da psicanálise, bem como a amplidão de sua literatura, torna difícil apresentar um contexto sintético (MARION, 1999). Como revela o artigo clássico de Baranger e Mom (1987), as vicissitudes do conceito de trauma não refletem somente as modificações que Freud trouxe ao edifício teórico da psicanálise (do início à segunda topografia; do trauma sexual infantil ao abandono da teoria de sedução; de uma concepção econômica do trauma ao conceito de situação traumática após Inibições, Sintomas e Ansiedade); elas também refletem o debate psicanalítico entre os fatores psíquicos e ambientais que se foram desenvolvendo com os vários autores que repetidamente adotaram os termos da formulação de Freud, porém com a ênfase depositada em um senso ou no outro. Conforme alguns autores pós-freudianos, as relações primárias e o objeto como organizador psíquico foram admitidos como tendo um papel importante e dominante na formação do trauma. Essas considerações deslocam a atenção do trauma do Ego para o conceito de trauma de desenvolvimento dentro da relação mãe-filho, com envolvimento, em um nível psicopatológico, das áreas primitivas e dos níveis narcisísticos. Além disso, é impossível separar qualquer tratamento, do trauma do Nachträglichkeit, um conceito que introduz a idéia da causalidade não-linear e do tempo circular, e postula a possibilidade da ação terapêutica específica da psicanálise (BARANGER e MOM, 1987). O efeito traumático de um evento real que ocorre fora da possível área de controle do sujeito e que escapa à sua interpretação, o impacto sobre a organização interna dos processos psíquicos e os problemas que sua interpretação produz no interior do processo analítico – esses são os temas que este artigo oferece para reflexão. O trauma resulta em trauma porque, depois de uma experiência à qual o sujeito é totalmente incapaz de dar sentido e integrar a sua própria realidade psíquica, são desencadeados processos de negação maciça que se refletem sobre sua própria realidade psíquica. 514 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 513-536, 2005 1 De modo similar, examinando sucintamente o conceito de interpretação sob um ponto de vista histórico, Etchegoyen (1986, p.407) também declarou que, como analistas, devemos nos preocupar com a realidade interna e como o indivíduo assimilou a experiência. Na medida em que deixamos o paciente perceber como ele incorporou a experiência, estamos de fato estabelecendo uma contraposição entre a realidade psíquica e a realidade factual. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 515 Paola Marion Uma situação de desconexão e “alienação do self proveniente do self” (BONAMINIO; DI RENZO, 2000, p.3) compromete a possibilidade e a capacidade do indivíduo de comunicar-se com sua própria realidade psíquica e, conseqüentemente, com o mundo exterior. Winnicott (1971) afirma que a comunicação verbal na análise de adultos é uma área criativa que corresponde aos jogos das crianças. Quando a comunicação é substituída por uma pseudo ou falsa comunicação, é um sinal de que essa área de subjetividade e o espaço psíquico pessoal foram comprometidos. O colapso do mundo subjetivo interno, manifestado como paralisia da comunicação ou ausência de substancialidade psíquica, informa que algo violentamente traumático ocorreu, algo incapaz de encontrar refreamento significativo na relação ou representação, comprometendo assim, radicalmente, não só a capacidade do psiquismo para perceber, conter, representar e investir a experiência, mas também a estruturação completa da psique. O problema é se existe ou não um espaço psíquico no qual a experiência possa ser representada e, portanto, ponderada; conseqüentemente, a tarefa do trabalho analítico consistirá em sustentar esse processo de restabelecimento da comunicação do paciente com ele próprio e, dessa maneira, com o outro. Parsons (1999) postula que a realidade psíquica é o meio através do qual somos capazes de representar nossas experiências para nós mesmos, e grande parte do trabalho psicanalítico baseia-se em ajudar o paciente a representar suas próprias experiências para si, de modo que a transformação psíquica dessa experiência possa tornar-se uma possibilidade. Parsons continua, acrescentando que essa tarefa psicanalítica (que representa nossas próprias experiências para nós mesmos) coincide com o auxílio ao paciente para criar a realidade psíquica além da realidade material.1 Em minha TRAUMA E INTERPRETAÇÃO opinião, a postulação de Parsons contém uma diferença dupla em relação à lição de Freud e capta os últimos desenvolvimentos do pensamento psicanalítico depois de Freud. Em lugar de referir-se a fantasias que “possuem uma realidade psíquica em contraste à realidade material” (FREUD, 1915), ela chama a atenção, por um lado, para o espaço psíquico em que as fantasias – juntamente com as experiências físicas, excitamento, prazeres, dores, emoções – podem deter-se e residir; por outro lado, alude ao trabalho psíquico de representação, e isso se refere a situações em que a responsabilidade pessoal voltada para a própria experiência foi comprometida e a capacidade para seu processamento, paralisada. O Mundo Interno e sua Interpretação Com pouco mais de um ano, desde o início de sua análise, Ginevra trouxe-me um sonho ou, como ela colocou, “um pesadelo”. Eu dirigia para o interior de um túnel. Atrás de mim, havia um caminhão e na minha frente muito tráfego, além de alguma coisa semelhante a fumaça. Pensei: isso está ficando realmente perigoso. Parecia-me que havia um nevoeiro espesso e pensei que não podia ver absolutamente nada. Tive a impressão de que havia uma saída à direita e que era minha última possibilidade de sair dali. Subitamente, a estrada estreitou-se e fui de encontro a uma parede. Tive a sensação de colidir com ela e morrer, e senti uma ansiedade terrível. Quando acordei, percebi que tinha estado face a face com minha morte. O “pesadelo” de Ginevra representa uma leitura e uma descrição muito precisa do que a paciente fez de si própria e de seu ambiente interior após os primeiros meses de nosso trabalho psicanalítico, durante o qual eu era confrontada com sua condição mental e emotiva particular. Imediatamente depois que ela me contou seu pesadelo, minha mente chegou à vívida sensação da contratransferência que acompanhara o primeiro longo período de análise com essa paciente, o qual eu podia definir como um bloqueio mental violento, e dentro do qual eu estava tentando com empenho encontrar espaço para pensamento e afetos. Às vezes, essa sensação com a 516 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 513-536, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 517 Paola Marion qual eu estava lutando para dar um sentido tinha sido tão violenta, que me fazia sentir cada vez mais apreensiva quanto à ausência de um local para colocar alguma coisa afetiva e significantemente viva entre mim e a paciente: sentia como se avançasse contra uma parede de desesperança. Realmente, os primeiros meses da análise tinham sido caracterizados pela maneira particular da paciente se relacionar comigo, e isso também emergia nas associações oníricas que o próprio sonho agora começava a indicar: ela me disse que na noite anterior, em um jantar, sentira-se excluída e que uma parede havia sido construída em seu interior, ao mesmo tempo em que ela ignorava o convidado ao seu lado. Nessa época, o trabalho com Ginevra freqüentemente me dava a impressão de que eu estava falando com uma parede, com nossas palavras chocando-se contra ela, sem produzir qualquer repercussão. A necessidade de Ginevra quanto à análise foi expressa de uma forma muito especial, que eu chamaria de possessão concreta da sessão. Durante esse encontro, fui tornada o objeto de um intenso bombardeamento de comunicações concretas, na forma de histórias muito detalhadas e confusas sobre tudo o que acontecia em sua vida real (coisas que ela havia feito ou tinha de fazer, organizado ou tinha de organizar), e essa troca tendia a se tornar um contínuo vaivém; de vez em quando, isso me fazia pensar em um jogo de pingue-pongue. Apesar do fato de emoções violentas estarem no ar, referindo-se principalmente ao aspecto persecutório e geralmente expressas como experiências de abandono e queixa recriminatória, a comunicação da paciente carecia totalmente de qualquer reflexão sobre seu self e de contato com suas emoções. Esse tipo de alienação separada/separação, que faz o analista sentir-se alienado de si próprio, torna-se óbvio na contratransferência do analista, o qual se descobre preso em uma atmosfera pesada, seus pensamentos agrilhoados e ancorados a uma superfície plana, monótona. Essa sensação é acompanhada, muitas vezes, de um sentido de confusão e sentimentos de falta de confiança e desamparo. Em situações como essas, o analista parece chegar muito perto, e muito diretamente, da impossibilidade de representar a “confusão de afetos que não mais se rela- TRAUMA E INTERPRETAÇÃO ciona a representações, mas à irrepresentabilidade”, e que revela a ausência de “formações intermediárias” (GREEN, 1999, p.295). Gradualmente, à medida que o trabalho analítico prosseguia, fui impressionada por dois aspectos que influenciaram a imagem que eu estava formando de minha paciente: por um lado, como a falta de contato com ela própria a privava dos instrumentos do pensamento, deixando-a totalmente confusa; por outro lado, e ligado a esse primeiro aspecto, havia uma necessidade escrupulosa de relatar todos os diminutos detalhes de sua vida exterior (um fim de semana, a organização de um jantar, etc.). Era como se o fato de ser capaz de contar tudo lhe desse uma satisfação especial. Quanto a mim, era deixada com a sensação oposta de frustração e preocupação com algo que parecia estar faltando. Como diz Winnicott (1945), nesses casos, a impressão do analista é a de que nenhum trabalho analítico foi feito. Muito tempo se passou antes que eu percebesse que havia realmente uma operação sofisticada e complexa acontecendo sob a superfície, a qual servia para indicar e comunicar algo relacionado a uma necessidade básica da paciente, a necessidade – jamais satisfeita anteriormente e relacionada com o problema de espelhamento (mirroring) e integração – “de ser conhecida em sua completa miscelânea por uma pessoa, o analista” (WINNICOTT, 1945). Refletindo sobre o que aconteceu antes que “a criança se conheça (e, portanto, conheça os outros) como a pessoa inteira que ela é (e que eles são)”, Winnicott sustenta que o processo de integração precede a personalização e a aquisição do senso de realidade, e o que ocorre nesse nível é de “importância vital” para o que acontece depois. Realmente, no caso de Ginevra, esse conjunto de problemas foi expresso não tanto por meio do conteúdo de suas comunicações, mas através de seu especial modo de comunicação comigo, criando uma situação de engessamento sufocante e rígida, que excluía qualquer possibilidade de criar uma distância mental entre nós, na sessão. Entretanto, por meio do pesadelo, a paciente foi capaz de entrar em contato com o seu self e sonhar com a existência deste, fornecendo-me uma descrição de sua condição mental e da estrutura de suas defesas, po518 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 513-536, 2005 2 Do latim, claustrum, limite ou barreira. (NT) Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 519 Paola Marion rém com algo extra, com relação aos sonhos que vinha trazendo para mim, naquela época. A presença de ansiedade como um estado afetivo funciona como “indicador” de que alguma coisa pode começar a emergir do inconsciente da paciente. De fato, Ginevra não apenas estava descrevendo simplesmente, em termos do congestionamento do tráfego no túnel, sua sensação claustrofóbica de sufocação e bloqueio que caracterizava a condição de sua mente (bloqueio mental) e que se projetava externamente como um claustrum2 em sua relação com os outros e em sua recusa da dependência, mas estava experimentando diretamente a morte psíquica. Isso a invadia sempre que se sentia obrigada a ativar seu mecanismo projetivo, delegando ao outro (p. ex., a analista-motorista do caminhão atrás dela) a função de pensar e sentir em seu interesse (havia algo como uma névoa espessa e pensei que não podia ver absolutamente nada). O mecanismo de “delegar” seus próprios desejos e pensamentos, por um lado, está ameaçando esmagá-la como o caminhão, fazendo-a sentir-se uma vítima de claustrofobia e perseguição; por outro lado, isso a obriga a se confrontar com seu próprio vácuo interno – a ausência de um espaço pessoal e de um nível simbólico e metafórico, que ela agora é capaz de experimentar pela primeira vez, por meio de uma experiência angustiante (tive a sensação de colidir com ela e morrer). A paciente associa a direita (a saída à direita) com as idéias políticas de sua mãe, as quais despreza e combate. Entretanto, a saída à direita, a via para a salvação (sua última possibilidade), também me faz pensar em um meio de fuga, uma fantasia de ser capaz de recuperar os antigos modos de relacionamento, nos quais existe uma mãe que pensa por ela, em vez de levar em conta o seu mundo interno e as memórias de sua infância, às quais, até esse momento, a paciente fizera somente referência muito escassa e vaga. Por meio do espaço analítico e da relação de transferência, Ginevra começou a perceber uma possibilidade de enfrentar o problema de seu próprio mundo interno, sem maniacamente o negar e fugir dele. A sensação de bloqueio mental e a falta de espaço para comunicação TRAUMA E INTERPRETAÇÃO parecem referir-se a uma forma particular em que o “trabalho negativo” pode manifestar-se durante a cura. Tanto as considerações de Green (1993, 2002) sobre esse tema como o trabalho de Botella e Botella (2001) sobre o problema da “representação psíquica” enfatizam a maneira como o pensamento do “negativo” se refere ao desenvolvimento da teoria freudiana após 1920 e à evolução do conceito de trauma e “neurose traumática” em seu trabalho, ainda que o ponto de vista apresentado por Luto e Melancolia examine condições que causam deficiência na capacidade para investir e representar o objeto.3 O trabalho negativo que caracteriza o aparelho psíquico em suas manifestações extremas parece remover o corpo e a substância do próprio objeto sobre o qual o trabalho de análise é realizado – a realidade psíquica, como é expressa e manifestada dentro da relação analítica. Nesses casos, a comparação que Freud usa em seu artigo de 1937 (p.55) é especialmente apropriada: “Dá a impressão não tanto de trabalhar com argila, mas, ao contrário, de escrever em água”. Em situações em que a capacidade para a representação não foi desenvolvida ou entrou em colapso, o problema para a análise é ser procurada em um nível primitivo básico, que se refere ao estágio de integração, bem como à possibilidade de estruturação para e com o paciente, da experiência de uma realidade psíquica. No caso da minha paciente, assim como com outros pacientes que conheci ao longo dos anos, essas manifestações do negativo jazem ocultas atrás de uma normalidade aparente em seu comportamento exteriorizado, e este freqüentemente acompanha as afirmações de sucesso profissional e uma capacidade de administrar suas próprias vidas de uma determinada maneira eficiente. Pelo menos esse é o caminho que existia para Ginevra. 3 A propósito da teoria estrutural, o pensamento freudiano abriu perspectivas que se estendem além da teoria da representação baseada essencialmente no modelo da interpretação dos sonhos. Essa modificação no centro de gravidade em relação à elaboração da primeira topografia relaciona-se à expansão progressiva dos limites da realidade psíquica, a partir da atenção substancialmente dada ao conflito psíquico até ao reconhecimento da relação com a realidade, e abre o caminho para o rumo tomado pela psicanálise depois de Freud e ao espaço designado progressivamente para a relação de objeto e suas vicissitudes. 520 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 513-536, 2005 O Núcleo Traumático Retornando a Ginevra, o núcleo traumático que se encontra na base das defesas da paciente, e que esta tentou tenazmente evitar, forma parte da sua história pessoal que fui descobrir somente através de abordagens progressivas no decurso da análise. Ginevra era a primeira filha de pais que haviam se casado tarde; sua mãe tinha aproximadamente 40 anos quando minha paciente nasceu. Alguns meses após o nascimento de Ginevra, a mãe engravidou novamente, Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 521 Paola Marion No entanto, atrás da fachada imaculada se esconde um bloqueio interno que impede o trabalho da livre associação e que é manifestado na contratransferência, pela sensação da analista de perder continuamente o fio do relato, de sentir-se confusa, em um nevoeiro, de estar exposta a um bombardeio caótico de “fatos” e “atualidades” que muitas vezes são difíceis de organizar como uma seqüência lógica de eventos ou como memórias. Nessas situações, “a livre associação, que revela um tema coerente, já está afetada pela ansiedade, e a coesão de idéias é uma organização de defesa” (WINNICOTT, 1971). Em situações como essa, a regra fundamental é uma conquista, não o ponto de partida. De fato, o trabalho dessa aglomeração de associações era preencher ou esconder o vazio que havia sido criado após o processo de negação (erradicação e apagamento) de sua própria realidade interna. Como escreve Green (2000a), esses pacientes sentem-se ameaçados pelo fluxo de pensamento espontâneo ou pela tentativa de estabelecer uma rede de vínculos e conexões importantes que poderiam realmente levá-los a reassumir o contato com a parte da realidade interna que havia sido apagada ou erradicada. É esse evacuar-se da representação que causa a desconexão da realidade interna. O que é revelado no material clínico “é a morte da representação da mãe que não aparece ou do seio que não aplaca a fome, mas aumenta a excitação. Subseqüentemente, o sujeito que realiza isso nega a existência de sua própria realidade psíquica” (2000a, p.436). A negação dessa realidade psíquica conduz a uma forma de vazio ou depressão (2000a, p.437). TRAUMA E INTERPRETAÇÃO mas dessa vez deparou-se com graves dificuldades (problemas cardíacos), que tornaram essa segunda gravidez extremamente arriscada; muitas vezes sua mãe precisou ser hospitalizada e permanecer acamada durante longos períodos. Tal situação continuou depois do nascimento do irmão de Ginevra, e aqui minha idéia era a de que esse novo estado de coisas representou, para a minha paciente, uma ruptura traumática no sentido da continuidade de sua própria existência, ao mesmo tempo em que a “preocupação materna primária” era substituída pela demanda da mãe para satisfazer suas necessidades narcisísticas através da filhinha. Menciono o núcleo traumático não casualmente, porque o colapso no sentido de continuidade ocorreu em um período muito precoce de sua vida, na área da relação primária na qual a criança ainda se encontra em estado de “dependência absoluta” do objeto externo, o qual não é reconhecido como tal, mas se conserva contido dentro da esfera da onipotência infantil. Em termos winnicottianos, estamos na área do “objeto subjetivo”, a qual, se comprometida, resulta em uma alteração da sensação de existir e da consciência de que se é real (WINNICOTT, 1971). A paciente descrevia sua mãe como uma bela mulher, competente e resoluta em tudo o que empreendia, e era vista com admiração e respeito por todos que a conheciam. O pai aparecia como uma figura obscura e não parece ter preenchido nem um papel separativo nem a função de terceiro quanto ao par mãe-filha, facilitando desse modo o desdobramento do complexo de Édipo. Desta forma, Ginevra foi sobrecarregada com uma mãe e um pai que eram incapazes de colaborar no desenvolvimento de seus filhos: o irmãozinho, cujo nascimento tivera conseqüências tão graves para a saúde de sua mãe, tornou-se uma criança extremamente exigente e difícil. Porém, enquanto o irmão se identificava com esses aspectos infantis e exigentes, minha paciente assumia o papel do adulto, uma irmã mais velha responsável, uma “vice-mãe”. O dilema em que Ginevra se encontrava parecia ser representado, por um lado, pela identificação com uma mãe fálica, que precisava triunfar sobre os homens e se apresentava, em um sonho, como uma “alemã aria522 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 513-536, 2005 Defesa Maníaca Mudando o foco de atenção para a relação com o “ambiente”, Winnicott pondera sobre os efeitos desorganizadores de experiências particularmente – e precocemente – traumáticas sobre a psique. Seus conceitos de defesa maníaca (1935) e falsa reparação (1948) parecem-me extremamente úteis, ao focalizarem um tipo específico de condição patológica em que a estruturação do espaço intrapsíquico foi violentamente danificada. Ao contrário da elaboração de Melanie Klein (1935) sobre o conceito de defesa maníaca, Winnicott considera esses mecanismos de defesa como associados a um sentimento de alguém se tornar alienado de seu próprio mundo interno. À luz do conceito da falsa reparação, isso pode ser explicado como não tendo conexão alguma com a culpa do paciente, mas estando certamente ligado a uma de suas identificações com a depressão materna. As fantasias onipotentes são vistas como um meio de distanciar-se da realidade interna – uma defesa contra a sua aceitação –, e não da realidade propriamente. A influência dominante da defesa maníaca indica que ocorrera um colapso do mundo interno do sujeito em uma fase de desenvolviSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 523 Paola Marion na”; por outro lado, pela necessidade de recuperar a parte dissociada que, no mesmo sonho, aparecia sob a forma do “judeu torturado” e coincidia com os aspectos primitivos ligados a aspectos instintivos e agressivos, irreconhecíveis ao seu ambiente e relacionados à área de identificação primária, que Winnicott (1971) define como “talvez a mais simples de todas as experiências, a experiência de existir”. A re-atividade maníaca que geralmente caracterizou sua vida e que foi apresentada claramente em seu modo de comunicação na análise parecia consistir em meio de fuga de seu mundo interno, rumo à realidade percebida e experimentada em termos concretos: um “estado de unidade ou um estado de integração de espaçotempo, no qual existe um self contendo tudo”, parecia ser substituído por uma condição em que “predominam os elementos dissociados que existem em compartimentos ou estão dispersos por toda parte e largados descuidadamente” (WINNICOTT, 1971). TRAUMA E INTERPRETAÇÃO mento muito precoce, sendo então substituído por um estado de alienação e contra-senso organizado (WINNICOTT, 1971); ao mesmo tempo, foi danificada sua capacidade de conceder reconhecimento e sentido à sua própria realidade interna e aos objetos ali alojados, bem como às relações entre eles. Essa questão foi compreendida e desenvolvida nas considerações de André Green sobre a mãe morta (1980), assim como em seu estudo da função desobjetalizante (1993, 2004). Na situação à qual Green se refere, o verdadeiro caráter da vida psíquica é mantido sob controle, e “não é apenas a relação com o objeto que está sujeita a ataque, mas todos os seus substitutos, terminando com o próprio Ego” (2004). O risco da não-representação confirma o caráter impotente e traumático do processo real, pois – como salientam Botella e Botella (2001, p.27) – a perda da apresentação “causa um autêntico vazio que tem um efeito implosivo”; ainda mais devastadora é a experiência do não-representável de sua própria ausência aos olhos do outro (BOTELLA e BOTELLA, 2001; FABOZZI, 2003). No caso de minha paciente, esses problemas resultaram na impossibilidade de “sentir-se real e ter uma vida interna em que pudesse retrair-se e relaxar” (WINNICOTT, 1971, p.199). Eu só estava muito consciente de tudo isso na contratransferência por causa da minha dificuldade de manter um contato empático com ela. Muitas vezes eu sentia que tinha errado o ponto ou esbarrado no tom errado, tornando-me confusa e desorientada. Minhas próprias comunicações pareciam-me apáticas, correndo o risco de se tornarem pedagógicas ou explanatórias. Ginevra lembrava-me uma daquelas crianças eternamente agitadas que, incapazes de brincar, estavam continuamente em busca de algum estímulo ao qual reagir. Essa situação suscitou uma questão específica, relativa ao uso das comunicações no decurso das sessões. Darei aqui dois exemplos extraídos de uma fase avançada da análise. Durante o trabalho analítico, tornou-se firmemente mais claro como sua dificuldade de manipular O. – a filhinha que o casal havia adotado – e o seu próprio problema de criança difícil colocavam-na em contato com seus aspectos dissociados. Em uma sessão (a segunda da semana), aproximadamente no terceiro ano de análise, a paciente me disse 524 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 513-536, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 525 Paola Marion que havia tido um sonho, mas que não podia mais lembrá-lo. Eu me lembrei dele por algum tempo, mas depois o esqueci. Ela continuou a me contar que no dia anterior tivera problemas com sua filha: Sofri o problema da loucura (era sobre isso, realmente, que tínhamos falado na sessão anterior, mas a paciente não fez a conexão) e nós tivemos uma briga horrível. Eu achei que ia ficar louca. O. tornou-se agressiva e começou a me atacar. (Ginevra caiu em silêncio, como se suspensa.) Estou confusa. Não consigo recordar o que aconteceu. Sem lhe explicar nada, penso que Ginevra havia me falado, na sessão anterior, sobre sua mãe, que tinha feito sua filha adolescente tingir o cabelo por não gostar de sua cor natural. Creio que agora ela está em contato com uma mãe louca, uma mãe que desconecta e erradica os pensamentos durante a lembrança do sonho, e o que aconteceu foi evacuado. Com isso, simultaneamente, a capacidade de perceber “o seu próprio interior” também foi evacuada. Mas também penso no pequeno propósito que há em oferecer interpretação nessa freqüência, arriscando fazê-la sentir-se “esmagada” sob sua impotência. Assim, tudo que lhe digo é: “Talvez você não se lembre do que aconteceu, mas pode recordar como você se sentiu”. Ginevra desencadeou uma descrição de sua agitação, de como ela se sentiu no auge da raiva e não sabia como lidar com O. Eu estava fora de mim. O. recusava-se a comer. Ninguém dizia uma palavra à mesa. O. disse: “Tudo isso é tão triste!”, depois ela me deu um colar que ela havia feito para ela mesma, com um bilhete anexado: “Eu te amo”. Mas para mim era difícil aceitá-lo. Eu estava em um tal estado... literalmente fora de mim. Também associo sua raiva à ansiedade que sente com a minha rejeição, quando me presenteia sua confusão e seu sentimento de não estar à altura de seu papel de mãe. Talvez ela tenha medo de estar me despistando, quando me presenteia sua criança difícil e acha que preciso mantê-la à distância. Nesse momento, Ginevra foi capaz de começar a recuperar algumas de suas idéias sobre o que havíamos conversado nas sessões anteriores. Quando digo a Ginevra que ela está preocupada com a possibilidade TRAUMA E INTERPRETAÇÃO de eu rejeitá-la, por um lado, estou consciente do seu medo por ter em seu interior a loucura de uma mãe que não aceita nem maneja, e que, realmente, correspondia à realidade com os problemas suscitados por seu irmão mais jovem; por outro, estou referindo-me aos meus sentimentos, na contratransferência, causados pela deficiência da rêverie e de minha capacidade para transformar as emoções despertadas pela relação em elementos de pensamento que possam ser compartilhados e comunicados. Além disso, se “o objetivo da interpretação deve incluir a sensação, por parte do analista, de que uma comunicação foi feita e requer reconhecimento” (WINNICOTT, 1948), é precisamente essa impossibilidade de reconhecer e aceitar o ‘gesto’, como ocorreu com o colar de O., que tem caracterizado, desde o início, meu diálogo com Ginevra. Enfatizando o compartilhamento de uma experiência, e não o que realmente aconteceu, inicialmente meus comentários destinaram-se a sustentar a emergência do espaço interno da paciente; portanto, de um espaço que se colocasse entre nós, no qual o ‘gesto’ pudesse encontrar reconhecimento e aceitação. O desenvolvimento do processo é descrito em uma sessão, alguns meses depois da que acabei de relatar. Estávamos no momento da interrupção de verão, e Ginevra me disse que estivera pensando em me pedir para reduzir o número de sessões após as férias. Freqüentar quatro sessões semanais era realmente demasiado para ela. Ficou calada por alguns minutos, depois começou a falar sobre a filha, que lhe dissera ter se sentido muito ferida em um delicado lugarzinho dentro dela, pela falta de compreensão que ela encontrava em casa e entre seus colegas da escola. Eu lhe disse que era exatamente desse delicado “lugarzinho” dentro dela e das emoções que ele contém que ela precisava me falar; ela necessitava de mim para compreender que, quando isso a assustava, ela precisava cancelálo, como no caso das sessões. Um silêncio momentâneo, depois ela continua: P.: Para mim, é muito trabalho pensar que tenho medo da separação. A.: Provavelmente não é da separação que você tem medo, mas dos sentimentos que ela lhe desperta. 526 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 513-536, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 527 Paola Marion Ginevra fica silenciosa durante um período muito mais longo, o que absolutamente não lhe é usual. Quando ela fala novamente, sua voz é muito calma e ponderada. P.: Pode ser que eu esteja curiosa sobre esses sentimentos enquanto estou aqui. Mas trarei o assunto de reduzir as sessões novamente, quando eu voltar, apenas para lhe mostrar que não dependo delas. Agora estou me sentindo triste. Talvez seja porque eu não tenha tido esses sentimentos antes, como quando eu era criança. Eu fazia praticamente tudo para atrair a atenção de minha mãe. A.: É como se você estivesse dizendo que se sentia forçada a fazer isso a fim de obter sua atenção. P.: É, assim ela gostaria de mim. A.: Forçada a fazer, talvez sem se permitir sentir o que você estava experimentando ou o que você sentia. (Enquanto digo isso, penso comigo mesma na diferença entre “fazer” e “ser”.) P.: Tenho falado muito mais com O. Ela tem um jeito de falar abertamente, ela tem sofrido muito mais do que eu. O “delicado lugarzinho” que a paciente menciona na sessão pareceme o primeiro sinal de um espaço interno potencial, uma área ainda delicada, mas que já pode começar a representar uma base para o self e o sentido de existir. A capacidade de desenvolver uma dimensão interna e usar os mecanismos de introjeção e projeção agora envolverá um afrouxamento do seu controle sobre a realidade externa, que a impedia de fazer contato com (sua dimensão subjetiva e seus sonhos) a dimensão da subjetividade e do sonho (BOLLAS, 1999). Entretanto, foi apenas mais tarde, no decurso da análise, que o significado do primeiro sonho pôde vir à luz e revelar o profundo sentido da defesa maníaca que a paciente adotou. No início do sexto ano de análise, a mãe da paciente adoeceu gravemente em conseqüência de uma cirurgia. Ginevra foi chamada a ajudá-la e, embora se recuperasse, até certo ponto sua mãe permanecia em condição muito precária; do ponto de vista psicológico, confusa e diminuída. No entanto, essa situação dolorosa ofereceu- TRAUMA E INTERPRETAÇÃO nos uma oportunidade para dar mais um passo adiante na análise. Através dessa experiência da doença, Ginevra veio a reconhecer uma representação da mãe que provavelmente tinha sido “morta” em botão, por ser dolorosa demais; isto é, uma mãe frágil, em perigo de vida (a mãe da sua infância mais remota), contra a qual ela reagia, substituindo-a por outra imagem, a da mãe triunfante. Essa imagem de sua mãe agora podia ser representada em um sonho, por meio do qual o processo de luto podia começar e com ele terminar a análise. Eu estava no sonho, e minha mãe também estava. Eu estava parada atrás de uma tela de vidro. Você sabe, aquelas telas que têm aonde você vai para olhar os bebês recém-nascidos, no berçário. Mas dentro não havia caminhas de criança, apenas pessoas deitadas. Entrei e vi que minha mãe estava lá dentro também. Eu não sei se ela estava morta, porque elas estavam todas deitadas ali, bastante quietas, como se estivessem dormindo. Eu me sentei e meditei. Eu me senti bem lá dentro. Agora, digo-lhe que, por meio da meditação-análise, ela parece estar apta a encarar os sentimentos relacionados ao luto pela mãe moribunda, além de seus próprios sentimentos pelos filhos que jamais tivera e pelo nascimento de seu irmão mais jovem. A análise parece tê-la levado além da tela de vidro de suas defesas, ajudando-a a construir um lugar em seu interior (meditação) e a dar uma representação ao núcleo traumático e aos seus sentimentos. As razões para suas reações e sua onipotência maníaca, que eu agora era capaz de conectar à imagem de uma mãe doente e moribunda, e que tinham servido para defendê-la das ansiedades da morte, adquiriam então uma profundidade e uma substância que me fora impossível ver até aquele momento. Meus pensamentos retornaram ao primeiro sonho, à “saída à direita” que a paciente havia associado às idéias políticas de sua mãe, ao passo que eu, particularmente, percebia-a como um meio de fuga e um recurso para antigas formas de relacionamento. À luz do que agora eu estava descobrindo, as palavras da paciente (Tive a sensação de que era minha 528 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 513-536, 2005 O Trabalho de Interpretação Como tentei mostrar através do exemplo clínico, a experiência de extrema ansiedade, suscitada pela ausência do objeto, adquire sua qualidade traumática logo após o colapso da função de investimento do outro – uma função que age como rêverie e dá sentido à experiência. O sujeito desinvestido está à mercê de emoções inomináveis, e ao próprio processo de integração, a base para a construção de um espaço psíquico pessoal, dentro do qual sua própria experiência pode ser ponderada e representada, está comprometido. A presença de um self interpretador (OGDEN, 1985) e o papel implícito e explícito de dar sentido, desempenhado pelo outro, são decisivos para a criação do espaço potencial como uma área hipotética criada na fase de negação do objeto, a fim de sustentar o objeto não-eu. A existência ou a falta de um espaço psíquico pessoal – “um espaço em que a criatividade possa se tornar possível” (OGDEN, 1985) – são mediadas por um self que interpreta, assumindo o papel do terceiro, o qual Green (2004) propõe denominar de o outro do objeto, enfatizando, desse modo, seu caráter simbólico intimamente correlacionado à atitude mental da mãe. No caso de Ginevra, como em outras situações similares, o irrepresentável, o inconcebível, a coisa que violenta a existência do sujeito Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 529 Paola Marion última possibilidade de sair) também pareciam referir-se à experiência traumática de “uma mudança repentina, transformando literalmente a imagem da mãe” (GREEN, 1993, p.274), depois da qual não havia chance ulterior de salvação. A morte que a paciente mencionou no sonho podia, presentemente, ser interpretada como a transformação repentina na vida psíquica, à época do desinvestimento da mãe, registrada como uma autêntica morte pessoal. Essa transformação na vida psíquica era “experimentada pela criança como uma catástrofe”. Realmente, nessas situações, juntamente com o que é sentido como uma perda de amor, há “a perda de sentido que priva a criança do acesso a qualquer explanação que possa ajudá-la a compreender o que aconteceu” (GREEN, 1993, p.275). O que permanece acessível, entretanto, é a profunda identificação com a mãe morta. TRAUMA E INTERPRETAÇÃO é a identificação primária com a depressão materna, que se torna um objeto psiquicamente morto para a criança (GREEN, 1980; BONAMINIO; DI RENZO, 20004). A defesa maníaca é um meio de negar o luto e a desesperança resultantes da experiência da “mãe morta”, mas é também um meio de tentar mantê-la viva e preencher o vazio, e ao mesmo tempo manter-se viva. O mundo interno é ocupado por constantes ação e reação, que simultaneamente indicam a negação do objeto morto e de sua representação. Através dessa contínua insistência para “começar a trabalhar”, o que podemos conectar com o conceito de falsa reparação, o sujeito permanece “animado”, em uma tentativa de preencher o vazio e dar sentido à sua existência, enquanto o sentido de alienação separada é retomado e indicado por meio da contratransferência do analista. As experiências depressivas negadas dão surgimento a um programa vitalizante, baseado em “fazer”, no lugar de “ser”, em um “ser reativo em um meio reflexivo” (OGDEN, 1985). Isso pode ser atualizado (atuado) na contratransferência, através de ativismo na interpretação. São pacientes que, para se sentir e conservar vivos, tendem a sair correndo para procurar estímulos aos quais eles possam reagir; e as comunicações também podem ser percebidas como objetos ou ações que servem para comunicar e solicitar respostas ou reações. Os símbolos são experimentados concretamente e, portanto, não são disponíveis para a troca e o compartilhamento de experiências, tanto intrapsíquicas quanto interpessoais (KAHN, 1974). Esse mecanismo de funcionamento deixa o paciente com um vazio de idéias que o obriga a funcionar de uma maneira concreta direta, evitando toda metáfora e perpetuando, desse modo, sua necessidade de um contêiner (continente) externo 4 Conforme Bonaminio e Di Renzo (2000, p.4) explicam, a idéia básica de dissociação da personalidade está subentendida no conceito de defesa maníaca. O que está envolvido aqui é a dissociação, não a repressão ou a separação: esse é um ponto essencial, pois enquanto a repressão e a separação implicam a existência de um ego “em atividade” (p.10), a dissociação impede o desenvolvimento da criança e bloqueia a integração. Somente quando tenha ocorrido essa passagem é que podem ser dados o sentido completo à realidade interna e o reconhecimento aos objetos que residem em seu próprio mundo interno e às relações entre eles. 530 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 513-536, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 531 Paola Marion (o analista, um membro da família, seu ambiente profissional, um amigo) que possa fazer as reflexões por ele. Sob essas condições, o analista é chamado a assumir a função do self interpretador, do qual o paciente é incapaz de se beneficiar durante o seu desenvolvimento. Aqui, o papel e a função da interpretação não estão tão relacionados com o conteúdo contribuído pelo analisando, mas mais exatamente com o auxílio para que ele revele o espaço subjetivo de sua realidade interna e, dentro da comunicação em análise, crie o espaço potencial para pôr em andamento a cadeia de associações e as conexões entre os processos primário e secundário, a fim de que o processo analítico aconteça. Defini as interpretações amplamente usadas nessas situações como interpretações concordantes (MARION, 2003), no sentido de que elas funcionam como um espelho para confirmar e reforçar os estados psicológico e emocional do paciente, ou como “um derivativo complexo da face que reflete o que existe para ser visto” (WINNICOTT, 1971), favorecendo, assim, o estabelecimento das bases do self. Mediante esse trabalho realizado à beira do conteúdo comunicado, a atenção do analista é focalizada na obtenção de elementos favoráveis à personalização e à capacidade de auto-análise. As comunicações do analista podem representar, nos termos de Winnicott, os “objetos subjetivos” oferecidos ao paciente, e não “decifrações” de sua vida inconsciente. Somente quando o paciente percebe seu funcionamento psíquico refletido no analista, ou na mente do analista em atividade, é que ele pode começar a transformar seus bloqueios e inibições, reconhecer o que pode fazer com suas forças psíquicas que estão em jogo, recriar uma circulação muito mais livre de afetos e representações pertencentes ao passado e ao presente (GREEN) e construir uma capacidade de auto-reflexão. Tudo isso foi muito bem expressado por Ginevra, que declarou: Eu não poderia ser pior na interpretação... É sempre tão difícil imaginar o que está acontecendo internamente... Realmente, eu jamais poderia aprender filosofia. Tenho de tomá-la emprestada a outras pessoas, meu próprio raciocínio é passivo. De fato, trabalhar com ela era um estímulo poderoso para essas considerações. TRAUMA E INTERPRETAÇÃO Conseqüentemente, esses casos exigirão um longo percurso de análise realizado às margens da comunicação, embora relegando os conteúdos e o sentido a um nível secundário, antes de termos esperança de alterar essa sensação de achatamento devastador, que Green denomina de ausência de “formações intermediárias”, e também antes de existir alguma indicação de uma capacidade para refletir e sustentar uma ativa troca de comunicação com o outro. Nesse trabalho às margens da comunicação, a tarefa de interpretação deixa de ser relacionada com a decodificação de significados, nem é relacionada com a “construção” de novos significados ou com a reconceitualização de eventos psíquicos e suas conexões. Nessas situações, a interpretação deve primeiramente desempenhar um trabalho preliminar que diz respeito ao lugar no qual os eventos psíquicos (emoções, afetos, representações) podem ocorrer e onde as interpretações podem acontecer, a fim de ajudar o paciente a criar uma realidade psíquica além da realidade material. A palavra, a interpretação – antes “desenvolvendo novos sistemas de conhecimento, para assumir perspectivas mais adequadas, capazes de fornecer um sentido mais rico e menos automutilante à existência, ou reorganizar experiências limitadoras ou fragmentárias”, como escreve Bordi (2004) – deve estar engajada na construção do psíquico, para usar a expressão de Green (2004) com relação à obra de Bion. Utilizando a função do terceiro, a interpretação deve visar à tarefa de fornecer forma para o lugar, o contêiner, o espaço em que pode acontecer todo o trabalho posterior de livre associação e representação por meio da linguagem, uma vez que esse espaço interno parece ocorrer no ponto de colapso, e o representacional parece ter aberto caminho para o perceptivo (MARION, 2004). Como me aproximo da conclusão, estou pensando que a linguagem e a função de interpretação desempenham papel fundamental na constituição da psique humana; por meio do diálogo, embora não só através desse, construímos a experiência da relação; é através da comunicação com o outro que nosso discurso é transformado, e com isso a percepção que temos de nós próprios, do outro e dos nossos limites é igualmente transformada. Green (2004, p.103) escreve que, “a fim de construir o psíquico, Bion con532 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 513-536, 2005 Resumo A autora através da apresentação de um exemplo clínico traz a questão sobre o núcleo traumático. Demonstra baseando-se nas teorias de Winnicott, Green, Botella e outros que o mesmo ocorre num período muito precoce, cuja dependência do sujeito do objeto ainda é absoluta e ocorre também em conseqüência da falta de investimento desse sobre o sujeito. Palavras-chave Trauma. Investimento Objetal. Interpretação Mutativa. Abstract Trauma and Interpretation The author brings the issue of traumatic nucleus through the presentation of a clinical example. Based on the theories of Winnicott, Green, Botella and others, she demonstrates that the traumatic nucleus occurs at a very early period, when the subject’s dependency on the object is still absolute, and it also occurs as a consequence of the lack of investment of the latter on the subject. Key-words Trauma. Object’s Investiment. Mutative Interpretation. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 533 Paola Marion siderava que não faria explanação alguma em termos de seio bom, seio mau; era necessário algo mais, pertencente à própria psique, que era indispensável à sua criação.” Ele assim postulava a existência da função alfa. Green concluiu formulando que é uma ilusão acreditar que se consiga entender a natureza da mente humana em todos os seus aspectos, sem esse “terceiro elemento”, que inevitavelmente carrega uma dimensão metafórica. A atividade interpretativa envolve cada organismo vivo pertencente à espécie humana, e na ausência dessa atividade o ser humano não consegue sobreviver. Realmente, na ausência de interpretação nos encontramos face a face com a morte psíquica. TRAUMA E INTERPRETAÇÃO Resumen Trauma y Interpretación La autora a través de la presentación de un ejemplo clínico trae la cuestión sobre el núcleo traumático. Demuestra basándose en las teorías de Winnicott, Green, Botella y otros que lo mismo ocurre en un período muy precoz, cuya dependencia del sujeto del objeto todavía es absoluta y ocurre también en consecuencia de la falta de inversión de este sobre el sujeto. Palabras-llave Trauma. Investidura del Objeto. Interpretación Mutativa. Referencias BARANGER, M. W.; MOM, J. M. El Trauma Psiquico Infantil de nosotros a Freud: trauma puro, retroactividad y reconstrucción. Revista de Psicoanálisis: APA, Buenos Aires, v.44, n.4, p.745-774, 1987. BONAMINIO, V.; DI RENZO, M. Un Compito che non Può mai Essere Assolto... far Fonte all’Umore della Madre: la comprensione clinica di Winnicott del lavoro psichico svolto periculosidade l’altro. Trabalho apresentado no Congresso Internacional Winnicott em 2000, ocorrido na cidade de Milão em nov. 2000. BORDI, S. L’Interpretazione Oggi: come sono cambiate le interpretazioni dell’analista e come sono cambiati i nostri pazienti. 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O trauma pré-verbal representa a fenomenologia de uma estrutura interna, sempre presente na transferência e à qual me refiro como o “objeto surdo-mudo”: espécie de cesura ou síntese de uma interação entre o self atual, adulto, e a expe- Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 537 Rafael E. López-Corvo O Objeto “SurdoMudo” e o Trauma Pré-Conceitual: com o uso do conceito de “Cesura” de W. Bion O OBJETO “SURDO-MUDO” E O COM O USO DO CONCEITO DE TRAUMA PRÉ-CONCEITUAL: “CESURA” DE W. BION riência traumática real, acontecida durante a infância. Constitui um objeto que, no presente, controla o pensamento desses pacientes e é responsável por sua incapacidade para aprender com a experiência ou de encontrar uma saída para a dor mental crônica. O “objeto surdo-mudo” reúne uma série de características que poderiam resumir-se da seguinte forma: a) devido ao que ocorre em um momento em que ainda não existe o pensamento verbal, o trauma apresenta grande dificuldade para ser conhecido e compreendido – trauma só pode ser reconstruído por meio das dimensões transferênciacontratransferência e é caracterizado por emoções incompreensíveis, tais como fobias, angústia crônica, conteúdos oníricos ou tiques; b) é uma forma de defesa em que o ego fragmenta a experiência traumática e a projeta no mundo externo, juntamente com a parte da mente (e do corpo) que o trauma contém; a este último se deve que qualquer tentativa de reconstrução do trauma se torne muito difícil. A conseqüência imediata de sua ausência é a necessidade de utilizar a mente do analista e o desejo de que seja o analista que, por si só, se encarregue da cura; c) o evento traumático converte-se em uma estrutura inconsciente narcisista, sumamente cruel e poderosa, que persegue, ataca e submete invejosamente tanto os objetos dentro do self como no exterior, em tal sentido que, por exemplo, o paciente ouve a interpretação, mas não a escuta – é uma forma de “surdez”; tampouco pode aprender com a experiência – o material tratado na sessão não é utilizado ou pensado, como se também existisse uma forma de “mudez” interna. É apresentado um caso clínico com o propósito de ilustrar a teoria formulada. A Cesura do Tempo A palavra mystes (μυστισ), de onde deriva “mistério”, foi usada pelos antigos gregos durante as celebrações dos chamados “Mistérios Eleusinos” e significava “iniciado”, “adepto” ou “aqueles cujos lábios permaneciam em silêncio”. O ritual consistia na experiência de uma só noite, quando cerca de 3.000 “mistes” se reuniam todos os anos, no início do inverno. Celebrado por mais de 1.400 anos, estava relacionado aos mistérios da deu538 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 537-560, 2005 uma vez pintou um quadro sobre um pedaço de vidro que podia ser visto de um ou do outro lado [...] e as mulheres são penetradas por dentro durante o parto e por fora no momento do coito: [...] Investiga a cesura; não o analista; não o analisando; não o inconsciente; não o sadio; não o insano. Senão a cesura, o vínculo, a sinapse, a (contra)transferência, o humor transitivo-intransitivo. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 539 Rafael E. López-Corvo sa Perséfone e seu retorno da superfície da terra até as profundidades do inferno, para se reunir com Hades, seu esposo, senhor do baixo mundo. O que sucedia exatamente durante essa única noite, assistida ao longo dos anos pelos mais ilustres gregos e romanos, permaneceu sendo um segredo até recentemente, quando, nos anos sessenta, Karl Kerenyi (1997), um suíço especialista em mitos, descobriu que o kikeon (κψκεον), uma combinação de cereais e aveia, única bebida consumida durante o ritual, estava contaminada com LSD. A reação tóxica alucinatória que freqüentemente se observa em quem consome alucinógenos é algo tão particular, que teve de ser absolutamente impossível para os gregos daquela época compartilhar uma experiência que não compreendiam, sendo, portanto, essa ignorância que pode garantir que o segredo da experiência fosse preservado durante tantos anos: era absolutamente impossível obter um consenso sobre algo tão particular como uma experiência alucinógena, quando ainda não existia uma linguagem conceitual para compreendê-la. A privacidade e a absoluta impossibilidade de compartilhar a experiência fizeram do evento uma história jamais contada ou um verdadeiro mistério. Em Inibições, Sintomas e Ansiedade, Freud (1926, p.138) estabelece que “existe muito mais continuidade entre a vida intra-uterina e a primeira infância do que a impressionante cesura do ato do nascimento nos faz crer”. Bion, por outro lado, ampliou a metáfora da cesura para incluir a presença de um limiar que une/separa dimensões diferentes, como o intra/extra-uterino, dia/noite ou pensamentos pré/verbais (1987, p.298). A cesura pode ser penetrada a partir de uma ou outra dimensão, tal como as culturas ocidentais e orientais se influenciam entre elas. Picasso, refere Bion (1987, p.56) O OBJETO “SURDO-MUDO” E O COM O USO DO CONCEITO DE TRAUMA PRÉ-CONCEITUAL: “CESURA” DE W. BION Impossível de ser simbolizada, a experiência traumática penetra a cesura do tempo, da dimensão primitiva pré-conceitual à dimensão adulta atual; constitui um anacronismo que perdeu o vínculo, como alguém que não pode compreender os movimentos planetários porque ainda não foi criado o cálculo infinitesimal. Bion (1987, p.308) diz: Depois de tudo se os anatomistas disseram que detectam uma cauda vestigial e se os cirurgiões, da mesma forma, dizem que conseguem tumores que derivam da fenda branquial, então por que não podem existir vestígios mentais, ou elementos arcaicos que ainda sejam funcionais, de tal maneira que alarmem e preocupem, porque atravessam a superfície bela e tranqüila que concebemos comumente como expressão de uma conduta sadia e racional. O problema da análise é poder penetrar a cesura do verbal ao préverbal, de tal forma que o paciente finalmente possa agarrar e conhecer o “espectro”, para assim contê-lo, em lugar de ser contido por ele. Bion sugeriu a existência de certas condições que, em um dado momento, parecessem tão efêmeras e imperceptíveis, que poderíamos não estar em absoluto conscientes delas; elas logo se convertem em algo tão real que podem chegar a destruir-nos, sem chegarem jamais a ser conscientes (LÓPEZ-CORVO, 2003, p.152). A Experiência Traumática Em relação ao trauma pré-verbal, existem pelo menos duas complicações importantes: a) a dificuldade de ser conhecido o elemento traumático; b) a fragmentação e a projeção da experiência traumática junto à mente que a contém. Detalhadamente as revisaremos. Anteriormente, referi-me ( LÓPEZ-CORVO , 1995) ao “segredo esquizóide” como uma forma de experiência observada em pacientes que não podem lembrar-se de fatos significativos que ocorreram durante as fases pré-verbais ou pré-conceituais de seu desenvolvimento, isto é, acontecimentos que não podem ser conhecidos ou tornar-se conscientes esponta540 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 537-560, 2005 1 Uma paciente que lutava com lembranças muito dolorosas, relacionadas com o divórcio de seus pais quando ainda era muito jovem, apresentou o seguinte sonho: Via uma barata enorme, que mata, e do inseto morto saem milhares de baratinhas. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 541 Rafael E. López-Corvo neamente, porque ainda não havia um pensamento verbal ou um aparelho mental suficientemente maduro para analisá-los, expressá-los e contê-los. A palavra falada representa uma separação/união com o objeto original, necessitando-se de um processo de luto que permitiria a mudança da posição esquizoparanóide para a depressiva, e esta última constituindo a capacidade de simbolizar o vínculo e conseguir a representação na sua ausência. A identificação projetiva, por outro lado, constitui um mecanismo da mente para se livrar da dor contínua induzida pelo trauma e representa uma linguagem de ação, uma ausência de luto diante da separação do objeto; Segal (1957) designa-a “a equação simbólica”. Esses acontecimentos traumáticos precoces constituem material para fabricar sonhos, descargas motoras (FRANK, 1969; PINES, 1980; AKHTAR, 1994), emoções, sensações, linguagem somática; atos incompreensíveis similares a ideogramas ou outras expressões apenas detectáveis na dimensão transferênciacontratransferência. A conseqüência dessa condição é a criação de uma estrutura interna que designei como “objeto surdo-mudo”, o qual controla a mente verbal do adulto e é responsável por sua incapacidade de aprender com a experiência e obter uma saída efetiva do sofrimento. O segundo aspecto refere-se ao mecanismo de defesa continuamente utilizado para lutar com a dor mental produzida pela experiência traumática, que consiste em uma fragmentação diminuta da mesma e sua projeção no mundo externo, com o objetivo de se livrar dela, de tal forma que os fragmentos ocupam muitos dos espaços da vida cotidiana do paciente e dali exercem seu poder ameaçador que, em geral, se manifestam como angústias persecutórias.1 A origem ou fonte do trauma é obstinadamente reprimida, constituindo a presença de uma ausência que poderia se resumir no apotegma de Cusa, sobre a existência de Deus como “um círculo cuja circunferência está em todas as partes e seu centro em nenhuma”. O OBJETO “SURDO-MUDO” E O COM O USO DO CONCEITO DE TRAUMA PRÉ-CONCEITUAL: “CESURA” DE W. BION Uma complicação crucial é a expulsão, junto aos fragmentos projetados, da mente que os contém, a qual, paradoxalmente, é absolutamente essencial para a reversão e resolução do conflito, espécie de armadilha, porquanto a mente projetada é absolutamente essencial para resolver o problema. Essa dinâmica pode provocar pelo menos três complicações: a) a necessidade do paciente de depender da mente do analista, o qual Lacan resumiu como “o lugar do suposto saber”; b) o terror de reintrojetar o projetado, ou seja, reverter a direção da identificação projetiva; c) a mudança catastrófica. Nesse sentido, Bion (1967, p.62-63) disse: “esses objetos que foram expelidos via identificação projetiva se tornam infinitamente piores do que eram antes de ser expulsos; o paciente sente-se violado, assaltado e torturado por essa reincorporação, ainda que a deseje”. Uma paciente apresentou um sonho em que falava tranqüilamente com sua mãe e, além delas, havia um homem que escutava tranqüilamente, mas que ela não conseguia reconhecer. O homem saiu, porém regressou em pouco tempo completamente transformado, estava alterado, despenteado, sujo, com os dedos manchados de nicotina e sinais de se haver drogado, muito barulhento e interrompendo continuamente a conversa com sua mãe. Disse-lhe que o homem representava elementos desterrados de sua mente, os quais agora ela sentia que tentavam fazê-los regressar, piores do que antes, ajudados por minhas interpretações. Muito freqüentemente, as partes projetadas são sentidas como fezes que regressam para atacar e destruir os bons objetos internos. A terceira complicação refere-se ao que Bion chamou de “mudança catastrófica”, uma dificuldade que aparece quando a análise obtém algum êxito e representa os efeitos secundários à reintrojeção. Manifesta-se tanto no paciente quanto nos seus familiares, que experimentam as mudanças do paciente como uma ameaça. 542 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 537-560, 2005 a) Surdo-mudez Os sintomas mais freqüentes que levam esses pacientes a consultar se relacionam com altos níveis de ansiedade, preocupações ou sintomas fóbicos, inibição da motivação e depressão. Uma característica relevante durante o processo analítico, comum a todos os casos, é a discrepância existente entre a motivação para se envolver na investigação analítica, além de uma compreensão razoável da interpretação, versus uma recorrente obstinação para manter o status quo. Parece que o paciente luta com a “presença de uma ausência” que se recusa a ser contida, como um cirurgião incapaz de cobrir um ferimento porque a pele não o alcança. Na transferência, assomam sentimentos de resignação, desesperança, sensação de estar preso e sem saída, assim como dor ante a necessidade de ser ajudado, curado ou cuidado. Ainda que essas emoções, experimentadas na contratransferência, possam ser reconhecidas intelectualmente como algo diretamente relacionado com o trauma, o paciente não consegue estabelecer um vínculo emocional significativo entre uma situação e a outra. Durante uma parte significativa do processo, a análise pode apresentar as características de uma reação terapêutica negativa. Em geral, os pacientes compreendem o que é interpretado e freqüentemente acrescentam algo à hipótese apresentada pelo analista; no entanto, na próxima sessão, o discurso pode mostrar-se obstinadamente similar ao da sessão anterior. Minha impressão é a de que o paciente escuta mas não ouve ou não assimila o que é introduzido pela interpretação, como se estivéssemos lutando com um “objeto surdo”. Ao mesmo tempo, o material discutido em sessão não é usado pelo paciente, como se aquele se desvanecesse entre as sessões, ou este não fosse capaz de utilizá-lo a posteriori para falar com ele próprio a respeito do discutido na hora analítica. Parece que o paciente não é capaz de falar a si próprio, isto é, lutamos não só com um objeto interno “surdo”, mas também “mudo”. Um corolário importante é a discrepância entre o modelo elaborado Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 543 Rafael E. López-Corvo Duas Qualidades Importantes na Fenomenologia do “Objeto Traumático” O OBJETO “SURDO-MUDO” E O COM O USO DO CONCEITO DE TRAUMA PRÉ-CONCEITUAL: “CESURA” DE W. BION progressivamente pelo analista, de acordo com a compreensão da transferência, de como aconteceu o trauma e quais as emoções que ele induziu, por um lado, e o que o paciente mostra compulsivamente em seu discurso, pelo outro. São modelos que correm paralelos, sem se tocar, exemplificando o conceito de Bion sobre a “reversão da perspectiva”. O paciente considera que as tentativas do analista para compreendê-lo são as “teorias do analista”. Em um dado momento, um paciente me fez o comentário de que eu era como um cachorro pit bull, que quando mordia não soltava, referindo-se ao modo reiterativo de minha interpretação, que buscava relacionar sua sintomatologia com a fenomenologia do trauma, sem o conseguir. Sentia que era minha interpretação, não o trauma, que incessantemente o “mordia”. b) Aspecto sádico do objeto “surdo-mudo” Uma característica importante do “objeto traumático” é a crueldade e o sadismo contra outros objetos do self. No caso de traumas relacionados com patologias somáticas, o corpo é sentido como marcado e ferido, gerando sentimentos de perseguição e vergonha. Um sonho apresentado por Irene, paciente que nasceu com uma malformação congênita à qual me referirei mais adiante, é o seguinte: Corria, perseguida por homens maus que se exibiam como mendigos, sujos e malcheirosos. Corria por uma casa que não era a sua, a qual se assemelhava a um labirinto; com ela ia uma garotinha órfã que, no final, conseguia sair da casa e esconder-se atrás de uns arbustos; ela começa, porém, a fazer ruídos e teme ser descoberta pelos homens que as perseguem. Depois se encontra em seu banheiro, mas o piso está completamente coberto de fezes, além disso tem a sensação de que alguém se encontra dentro dele, talvez a mãe da garotinha, e se sente muito envergonhada e com uma intensa necessidade de se desculpar. Diz sentir-se muito envergonhada de falar dessas coisas sujas. Pergunto-lhe se ela sujava sua roupa íntima antes de ser operada, ela diz não recordar. A inveja dos irmãos, experimentada como sentimentos de rivalidade, estende-se às outras pessoas sentidas como sãs e livres dos efeitos do trau544 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 537-560, 2005 Um Caso Selecionei uma paciente como paradigma de vários casos que apresentam experiências traumáticas pré-verbais similares, e que por isso se mostravam impedidos de verbalizar o impacto emocional de seus traumas. Pacientes que pareciam lutar com um “terror sem nome” induzido pela ausência extrema de uma presença. Por exemplo, um de meus pacientes tinha o sentimento de que havia estudado medicina com o propósito inconsciente de se assegurar de não saber o que tanto o atemorizava saber. Um elemento comum revela-se ser a presença de irmãos livres do trauma, que se convertem em objeto de invejas intensas, como se um aspecto importante do trauma se baseasse na relatividade do contraste, ao compararse com eles. Ao mesmo tempo, esses irmãos, paradoxalmente, sentem Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 545 Rafael E. López-Corvo ma. O objeto traumático é um elemento superegóico, sádico, cruel e perseguidor, que induz a um sentimento de imperfeição vergonhosa, a qual contrasta com um elemento idealizado fragmentado e projetado em outros, que logo é atacado invejosamente, com o propósito de inverter a relação. A condição sádica é estimulada pelo pensamento inconsciente de que os sentimentos de bem-estar, se experimentados, induzirão à fúria do objeto traumático, e toda a ameaça e a angústia associadas com a experiência do trauma voltarão a ser experimentadas. O sofrimento converte-se em um salvoconduto ou proteção que neutraliza a crueldade do objeto traumático e induz a uma fragmentação significativa da personalidade. A conjunção formada por um objeto traumático sádico e perverso junto à ingenuidade do elemento egóico, livre de conflito, que se submete, constitui uma combinação letal paralisante. A fragmentação, presente na condição traumática, é determinante no desenlace da análise. Ao mesmo tempo em que existe uma motivação significativa do paciente para o tratamento, buscando assim livrar-se da dor mental crônica, também existem ameaças sádicas do objeto traumático, de que tentar livrar-se da angústia implicará risco de que a experiência dolorosa do trauma se faça presente novamente. Essa condição explica, em parte, a dinâmica do objeto “surdo-mudo”. O OBJETO “SURDO-MUDO” E O COM O USO DO CONCEITO DE TRAUMA PRÉ-CONCEITUAL: “CESURA” DE W. BION muita inveja do irmão traumatizado, pois interpretam a preocupação dos pais como expressão de um privilégio para com o irmão enfermo. O Caso de Irene Irene é uma mulher de 25 anos, solteira, inteligente, fisicamente atraente, co-gêmea não-idêntica, que recém-terminou seu treinamento em desenho e procura trabalho. Diagnosticada ao nascer com “espinha bífida oculta”, teve de sofrer uma série de exames médicos e, finalmente, uma intervenção cirúrgica, com aproximadamente 6 ou 7 anos. Consultou por sentimentos de angústia fóbica e crise de pânico, pelo qual já havia tentado, anteriormente, psicoterapia e medicação ansiolítica durante uns dois anos, com poucos resultados. Como sucede com pacientes que sofreram traumas precoces, Irene havia dado pouca importância ao fato de sua intervenção, o qual se tornou óbvio, à medida que a análise foi progredindo. No início de nossos encontros, para ela revelava-se difícil e doloroso falar sobre sua doença e sua posterior cirurgia. Esse episódio havia sido fragmentado em forma diminuta e projetado como defesa, resultando-lhe ameaçadora qualquer tentativa de reintrojetar a experiência traumática. À medida que a análise progredia, Irene foi aceitando com menos resistência as interpretações, que apontavam para o relevante do trauma. Sentia, em suas fantasias, que havia sido torturada e investigada em sua intimidade, em seus próprios genitais, por homens mascarados que atuavam com o consentimento de sua mãe. Com respeito à cicatriz nas costas, vivia-a como algo feio que marcava seu corpo, fazendo-a sentir-se disforme, impura, suja e ferida. Assustava-a expor seu corpo e preferia sempre usar calças longas, roupas de cor escura, as camisas bem abotoadas até ao pescoço, mesmo no verão, como um escudo diante da ameaça mental de sofrer novas manipulações traumáticas. Na transferência, as interpretações eram recebidas com receio e desconfiança, gerando como resposta, freqüentemente, uma proteção excessiva frente à possibilidade de ser invadida e investigada em sua intimidade. A inveja de quem Irene considerava “normal” era muito significativa, 546 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 537-560, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 547 Rafael E. López-Corvo principalmente de sua irmã, a ponto de se evitarem mutuamente ou incorrerem em terríveis brigas e discussões. Em geral, Irene iniciava as sessões fazendo fortes críticas a essa irmã, aos pais e aos amigos, como se escolhesse atacá-los invejosamente e assim vingar-se do rechaço; depois de tudo, eles também a haviam destruído. Não compreendendo a verdadeira natureza do conflito, a irmã reagia igualmente com inveja, porquanto sentia que havia sido excluída da especial atenção que, durante anos, Irene recebera de seus pais. Algumas mudanças começaram a aparecer: terminou seus estudos e iniciou uma relação amorosa com B., um colega de aula; além disso, tornou-se menos difícil conversar sobre a situação do trauma, que já não produzia o mal-estar e a ansiedade de antes. Em algum momento, me fez saber que seus pais haviam viajado no fim de semana e que ela havia ficado em casa sozinha com B. Sua irmã chegou tarde da noite e bateu em seu quarto para lhe dizer que ela também havia trazido seu namorado e que não se aterrorizasse, no caso de encontrá-lo. Explica que sempre lhe dá muito medo pensar que alguém possa entrar quando está sozinha e lhe fazer mal, que por isso pediu ao seu amigo que ficasse com ela. “Quando me olho no espelho, aterroriza-me ver alguém atrás de mim que possa me atacar.” Digo-lhe que ela deseja que eu reintroduza sua parte “espinha bífida” projetada em sua mente, de tal forma que não a aterrorize, como costuma ocorrer-lhe, quando fantasia que sua parte “espinha bífida” ataca-a por trás (as cicatrizes da operação estão na parte inferior de suas costas). Lembra então de um sonho: Encontra-se com um velho amigo que era totalmente louco. Era agradável, mas se tornava muito agressivo quando sentia que o rejeitavam, “eu tinha medo dele”. Digo-lhe que, aparentemente, esse sonho poderia estar nos dizendo que ignorar o assunto da espinha bífida poderia torná-la perigosa e totalmente louca, mas que lembrar e conter a dor relacionada com essas memórias poderia torná-la amistosa. Sente que falar livremente sobre o que sofreu quando pequena seria como esquecer as coisas espantosas que experimentou, como a raiva e os desejos de vingança, a frustração ou a impotência. (Penso que esse mecanismo podia ser respon- O OBJETO “SURDO-MUDO” E O COM O USO DO CONCEITO DE TRAUMA PRÉ-CONCEITUAL: “CESURA” DE W. BION sável pela passividade que, com freqüência, se observa em pacientes que sofreram traumas graves precoces.) Diz sentir-se marcada, como uma mercadoria quebrada que ninguém quer e, portanto, não tem direito a nada, como pedir dinheiro a seus pais para pagar sua terapia ou encontrar um trabalho decente. Não tem um lugar próprio, sente-se culpada de estar viva, ocupando um espaço, culpada de respirar e de existir. Então lhe digo: “Como se sentisses que é necessário transformar-te em teu próprio trauma para poder existir”. Na sessão seguinte, Irene diz que deseja compreender o que lhe falei na sessão anterior sobre recordar sua operação; algo que ela tenta, porém não consegue fazer. Há um silêncio. “Lembro que uma vez, quando tinha 6 ou 7 anos, fui com minha mãe e minha irmã a uma feira. Como ganhei em um dos jogos, podia escolher qualquer dos prêmios, e gostei de um bicho de pelúcia, era um gato preto enorme, mas minha mãe e minha irmã disseram que era horrível e que devia escolher outra coisa; terminei aceitando a troca, ainda que não quisesse nenhuma outra coisa mais que o gato.” Disselhe então que um “objeto interno mãe-irmã” também a convencia de que a operação era como um gato preto horrível demais para ser lembrada. “Sim”, respondeu Irene, “era assim porque minha mãe é dessas pessoas que não quer que tu penses em algo que não seja agradável, e ela não queria que eu pensasse sobre a operação porque era horrível e, além disso, já havia passado”. “Mas o conflito continua”, eu lhe disse, “não pensar nele porque uma mãe interna te proíbe fazê-lo tampouco ajuda a te livrares de suas terríveis conseqüências.” Fala sobre seus dois gatos, um amigável, que com freqüência sai de casa e ela teme que possam roubá-lo, e outro medroso que permanece, literalmente, dentro do closet. Diz sentir-se de forma parecida em relação à sua irmã, que sai continuamente sem jamais sentir medo; recém-regressou de férias no Caribe, dizendo que passou muito bem com seu novo namorado. “Ela viaja e troca de namorados sem maior dificuldade, muito diferente de mim.” Digo-lhe: “Como teus gatos”. “Sim”, responde, “uma vez fui às Bahamas e não conseguia sair do aeroporto porque estava em pânico.” Lembra de um sonho: Está em uma festa, 548 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 537-560, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 549 Rafael E. López-Corvo em uma casa muito grande, e há muitos atores conhecidos que viu na TV. Começam a subir uma escada e um deles lhe acaricia as costas e lhe dá uma palmada nas nádegas, algo que sente como falta de respeito, porém dá volta e não diz nada. O ambiente lhe agrada muito, porém acredita que é similar a alguns lugares que tem visitado quando busca trabalho, “são um montão de manipuladores e mentirosos”. Os atores são de um programa de televisão sobre detetives, que ela vê regularmente e acha o ator principal bastante atraente. Não produz mais associações e lhe digo que parecera que, no sonho, existisse uma dissociação entre uma parte “espinha bífida” desvalorizada e outro elemento idealizado, “atores de TV”. Pareceria que sonha com aquilo de que sente falta, porém teme, como uma situação que só fosse acessível para sua irmã e outros personagens privilegiados como os atores de TV, que estariam livres da cicatriz terrível que ela tem nas costas. No sonho, não se queixa quando o ator lhe acaricia as costas e lhe dá uma palmada nas nádegas, o que implicaria agradar-lhe ser desejada por alguém tão idealizado como esse ator de que ela gosta: no entanto, imediatamente ataca e desqualifica essa possibilidade, quando diz que “são manipuladores e mentirosos”. Quando comento essas idéias, ela contesta: “Devo encontrar-me a mim mesma”. Algum tempo mais tarde, Irene diz, rindo, que falou para seu namorado trocar os lençóis da cama, porque já estão lá há mais de um ano. Após uma pausa, diz que estava comendo com seus pais, e o pai, ao comer, fazia uma série de ruídos estranhos, enquanto sua mãe também fazia ruídos quando respirava, devido a fumar continuamente, pelo que, depois de um momento, decide afastar-se da sala de jantar. Fala a respeito da próxima sexta-feira, quando irá ao norte com seu namorado, por uns quatro dias. Está incomodada com ele e sente vontade de maltratá-lo, porque, segundo ela, não é suficientemente forte e não dá mostras de ter iniciativa alguma. “Sei o que você vai dizer, que meu namorado é um homem que agrada a uma parte minha e a outra não, mas que eu necessito dele para ter alguém com que brigar, pois ele representa a minha parte preguiçosa.” Digo-lhe que talvez ela se sinta com direito a algo melhor, como um lençol limpo, e O OBJETO “SURDO-MUDO” E O COM O USO DO CONCEITO DE TRAUMA PRÉ-CONCEITUAL: “CESURA” DE W. BION também se sente cansada de permanecer dentro do ânus de seus pais, ouvindo o ruído de suas tripas, e que gostaria de ter alguém que a resgatasse. Recorda-se de um sonho: Encontra-se no supermercado com um carrinho, comprando comida saudável, e não como seu namorado e sua família, que comem comidas rápidas e insalubres. Depois que termina de comprar, deixa o carrinho abandonado e alguém o leva, e então tem de buscar outro e começar de novo, o que a incomoda muitíssimo. Em seguida, deseja comprar milho tenro, porém quando o agarra dá-se conta de que está mole e murcho, e decide não o levar. Esclarece que lhe parecia estranho que o milho estivesse mole, porque sempre é duro. Depois de uma pausa, digolhe que ela vem à sessão para comprar algo “saudável” que possa levar com ela em sua viagem de fim de semana, mas que a parte “espinha bífida”, por inveja, rouba-lhe a comida, ou o peito saudável que eu lhe proporciono; no entanto, acrescento que outra parte nela está aprendendo a se defender e, ainda que lhe resulte muito desagradável, faz a compra novamente. Também sente que o pênis2 de seu namorado, e talvez o de seu pai e o meu, não são o suficientemente duros, são frouxos e não a resgatam de sentir-se perdida dentro do ânus de seus pais. Depois de tudo, digo-lhe, recordando algo dito anteriormente por ela, que seu pai nunca esteve presente durante a investigação e intervenção de sua espinha bífida. Alguns dias depois, apresenta outro sonho: Encontra-se com seu namorado, procurando resgatar uma garotinha que havia sido seqüestrada por malfeitores, no entanto, cada vez que tenta libertá-la, a menina fica menor; Irene sente que, se não conseguir libertá-la rapidamente, a menina terminará por desaparecer. Também há o fato de que, cada vez que se encontram com a garotinha, no processo de resgatá-la, ela nunca os reconhece. Identifica esse sonho com sua própria luta com a espinha bífida. Acrescento-lhe que seu namorado, no sonho, poderia estar relacionado comigo e que a crueldade da espinha bífida poderia estar com os malfeitores. 2 A associação do pênis com o milho pode sustentar-se no fato de que, diferentemente de outros alimentos (vegetais) de forma similar, o milho se come de maneira semelhante a como se realiza a felação. 550 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 537-560, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 551 Rafael E. López-Corvo Também pareceu, digo-lhe, que tenta pensar de maneira diferente, ser menos surda sobre o que ela e eu tratamos, sobre essas associações que relacionam seus temores à experiência traumática e sua tentativa de resgatar, nela, a parte evasiva e assustada da menina boa. A resistência de “conter” a ameaça do trauma também se observa na tendência da garotinha do sonho de se fazer menor e nunca reconhecer seus resgatadores. Talvez essa tendência represente o caráter evasivo do trauma pré-verbal, a dificuldade de poder agarrá-lo, compreendê-lo, reconhecê-lo e nomeá-lo, o que geralmente se traduz na transferência, como um aspecto “surdo-mudo” que invejosamente obstrui e dificulta a posterior utilização da interpretação, a qual não lembra e termina por desaparecer. Uma semana mais tarde, apresenta um sonho que mostra dois aspectos muito importantes: a) defesas novas que apontam para uma “mudança catastrófica”, ou a presença de elementos acusatórios para possíveis efeitos indesejáveis produzidos pela análise; e b) aspectos invejosos muito cruéis do “objeto traumático”, que ameaçam e nela induzem o sofrimento ou a necessidade de se sentir morta, em lugar de se sentir bem e viva. Anda sozinha por um caminho, muito perto da borda de um precipício, quando, de repente, uma caminhonete muito moderna, de tração dupla e cor prateada, aparece e se detém a sua frente. Da caminhonete sai uma menininha que começa a atacá-la, tentando apunhalá-la, e ela, ao retroceder, cai pelo precipício e permanece imóvel, se faz de morta para impedir que a menina a assassine, mas está incômoda; move-se e, então, a menininha arremete novamente contra ela, que, no entanto, consegue prover-se de uma estaca, que se transforma em um lápis com o qual fere e mata a menininha. Então, consegue subir e vê que da caminhonete, que ainda está ali, alguém abre a porta e a convida a subir. Dentro havia como que uma família e outras menininhas prontas para atacar outras pessoas, mas, por terminarem mortas, as trocavam pela pessoa que tinham atacado, como havia acontecido com ela. Associa a caminhonete comigo, pelo “cabelo prateado”, mas se pergunta pelo aspecto moderno do carro. Digo-lhe que eu “atualizei” nela o O OBJETO “SURDO-MUDO” E O COM O USO DO CONCEITO DE TRAUMA PRÉ-CONCEITUAL: “CESURA” DE W. BION assunto da espinha bífida e a fiz consciente de sua importância. Esse elemento ataca-a internamente só se ela estiver viva, e não o fará se estiver “como morta”; é uma parte extremamente invejosa de sua própria vitalidade, tem de mostrar-se morta, isto é, sofrendo continuamente, sem nenhum direito de passar bem, e permanecendo confinada dentro da casa-ânus de seus pais. Diz que hoje, quando vinha para a consulta, repentinamente sentiu-se diferente das outras vezes, menos atenta às pessoas ao seu redor; sentiu-se bem, embora fosse somente por poucos minutos. Sempre está alerta a respeito dos outros, sente-os diferentes, como de outro planeta e ameaçadores, o que a amedronta. Digo-lhe que tudo dependerá de ela conseguir lutar com a ameaça do elemento “espinha bífida”, o que lhe permitirá sentir-se com direito a estar viva e igual aos demais. Se conseguir conter esse elemento, se sentirá como parte de minha família, irá em meu carro prateado, ajudando outros com problemas semelhantes. Também lhe digo que ela teme aquelas pessoas livres da espinha bífida, porque, em sua mente, os atacou com sua inveja e agora teme a retaliação da parte deles, o que a impede de aventurar-se a sair sem sentir pânico. Algum tempo depois, como algo muito incomum, chega bastante tarde e explica que teve de auxiliar seu pai a transportar alguns pertences de sua irmã, que se muda para uma cidade próxima, a fim de seguir os estudos universitários. “A eles não importava meu compromisso”, diz, “ainda que lhes tenha dito claramente a hora que teria de estar de volta. A minha irmã, nada importa, antes de ir embora me atirou algumas coisas, dizendo que eram minhas e que as havia tomado emprestado, entre elas uma calça, que havia alterado para que lhe servisse, e que agora eu tenho de descosturar.” Digo-lhe que tenta descoser-se de sua irmã gêmea para encontrar sua própria pele. Diz lembrar de um sonho: Estava em uma balsa com alguém. Havia muitíssimos tubarões dando voltas e alguém lança à água um cachorro, que imediatamente é atacado pelos tubarões. Diz: “Os cachorros não me agradam, são imprevisíveis, muito agressivos e perigosos”. Digolhe que o cachorro é uma parte agressiva e perigosa dela, enquanto que os 552 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 537-560, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 553 Rafael E. López-Corvo tubarões representam a parte “espinha bífida” que ataca e destrói sua parte agressiva, da qual necessita para exercer seu sentimento de “direito” que lhe permita enfrentar os outros, seu pai e sua irmã. Também lhe digo que penso que veio tarde porque tenta encontrar uma saída para o dilema entre permitir que a parte espinha bífida destrua sua agressão e, assim, permanecer para sempre costurada à sua irmã, ou soltar sua agressão e enfrentar o perigo de se tornar imprevisível e perigosa. Recorda de outro sonho: Encontra-se caminhando, à noite, com um ator dos anos oitenta. É uma cidade grande que não reconhece. Pode ver as luzes e lhe parece uma cidade espetacular. Há somente uma rua que sobe e desce. Então, se dá conta de que tem uma fissura no braço esquerdo, que não transpassa o braço, mas que logo piora e todo o braço torna-se oco e pode ver as veias dentro dele. Vai consultar uma doutora, que lhe diz que é um quisto e que estará bem se não se espetar os tendões. Não dá associações, mas quando lhe formulo que os anos oitenta possivelmente coincidem com a época de sua operação da espinha bífida, ela concorda. Diz não saber que coisa é um quisto, porém o associa aos tumores dos seios. Não consegue associar o do braço e lhe pergunto se poderia representar o que ela teria pensado que podia ser sua lesão na coluna, porquanto a espinha bífida oculta geralmente se mostra como um quisto, mas que ela não podia vê-lo, porque estava nas costas. Já estávamos na hora e, ao sair, disse, pensativa, que a rua solitária que subia e descia, no sonho, a faz pensar em sua coluna. Na próxima sessão, chega na hora e diz que teve uma entrevista para um trabalho e que foi muito bem, que vinha fazendo algumas investigações a respeito de onde fazer contatos e conseguiu com essa gente, que lhe pareceu muito boa. Sente-se com muito entusiasmo, ainda que um pouco assustada. Fala de um amigo a quem não via há algum tempo porque pensava estivesse aborrecido por algo que ela dissera. Chamou-o por telefone, por esses dias e, para sua surpresa, ele lhe respondeu carinhosamente. Ela diz que o suposto mal-entendido esteve, todo esse tempo, em sua imaginação. “Estou sempre lançando o cachorro aos tubarões”, disse, referindo-se ao sonho anterior. Fala sobre seus dois gatos, tenta ajudar o “medroso” a sair O OBJETO “SURDO-MUDO” E O COM O USO DO CONCEITO DE TRAUMA PRÉ-CONCEITUAL: “CESURA” DE W. BION de casa, tira-o e o acaricia e busca, mediante recompensas, que fique fora o maior tempo. Já conseguiu que se mantenha fora por mais de uma hora, o que lhe dá muita alegria. Depois de uma pausa, diz que recorda do sonho da sessão anterior, sobre o “braço oco”: “estive pensando sobre esse sonho: a cidade que via com uma única rua que sobe e desce, pensei que representa a minha coluna – é o que falamos aqui, que eu encontro a espinha bífida em toda parte... O doutor,3 no sonho, diz que não espete os tendões em lugar das veias, que era o que eu via; no entanto, meus pais me disseram alguma vez e ainda o dizem hoje em dia que a operação era para cortar uns tendões que não me deixavam crescer e que, durante a operação em que cortaram essas cordas, eu cresci como que uma polegada e meia”. Há coisas muito importantes quanto a uma mudança em suas relações de objeto. O sonho do braço representa uma tentativa para recordar a realidade, a forma como aconteceram os fatos, o que sucedeu em torno da operação. Há uma bela metáfora quando recria uma cidade “espetacular” atravessada pela sua coluna, como forma de representar uma operação que está em todas as partes. Outras mudanças estão relacionadas com a busca séria de um trabalho, o descobrimento de suas projeções em relação aos seus sentimentos com o velho amigo e seu entusiasmo por ajudar um de seus gatos a lidar com o medo. São todos reflexos de uma nova distribuição nas relações de seus objetos internos. O sonho do “braço oco” constitui um aspecto relevante, porquanto, penso, represente uma tentativa de reparar, assim como de falar com ela própria, o modo como, na verdade, foram os acontecimentos do trauma. Também o aspecto de ter continuado depois a pensar nele, quando traz hipóteses novas na sessão seguinte, como se a mudez interna estivesse cedendo e, pela primeira vez, tentasse um diálogo com ela própria. Outro aspecto importante está representado no ato de “lançar o cachorro aos tubarões” no sonho da balsa; penso que esse elemento simboliza um aspecto egóico defensivo de que ela precisa para poder conter seu terror, assim como a capacidade de lutar por seu direito a estar bem. 3 No original: el doctor en el sueño, embora anteriormente tenha se referido a una doctora. (NT) 554 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 537-560, 2005 Pós-escrito Em uma manhã, muito cedo, um dinossauro de duas patas caminha lentamente pela borda do que agora conhecemos como o rio Connecticut, perto do povoado de South Hadley, no Estado de Massachusetts, talvez buscando saciar a sede, tomar um banho ou ambas as coisas. Cento e oitenta milhões de anos mais tarde, em 1802, para ser mais exato, um menino, com o original nome de Plinio Moody, enquanto arava a terra na granja de seu pai, encontra uma pedra achatada com as pegadas daquele dinossauro sedento, que concebem, então, erroneamente, como um pássaro gigante e celestial ao qual dão o nome de “o corvo de Noé”. Aproximar-se do rio pode representar, para o dinossauro, um ato banal repetido regularmente, sem maior transcendência; entretanto, nessa manhã especial, uma série de variáveis se fez presente e contribuiu, em uníssono, para preservar suas pegadas para sempre. Talvez o enorme peso do animal, assim como a qualidade da areia, ou o pântano, junto a condições atmosféricas, como a umidade e o calor, se conjuraram para salvaguardar as pisadas, o que significa, em última instância, que agora, quando os dinossauros já desapareceram da face da terra, suas pegadas, produzidas em apenas um instante, foram preservadas para a eternidade. Em outras palavras, o que deveria ter sido um fato temporal converteu-se em uma condição perma- Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 555 Rafael E. López-Corvo Bion (1967, p.47, grifo nosso) expressou que, “como conseqüência dessas fragmentações, todos esses traços da personalidade, que, em algum momento, haveriam de proporcionar as bases para uma compreensão intuitiva tanto do self como dos outros, são colocados em perigo”. Para finalizar, os eventos traumáticos produzem um imenso terror à realidade, assim como a necessidade de buscar livrar-se da mente, como órgão que a percebe, mediante fragmentação diminuta e projeção dessas partículas ao exterior. Uma das complicações desse mecanismo é constituída pelo fato de que a mente projetada, como o cachorro do sonho, é também indispensável para a “compreensão intuitiva do self e dos outros”. O OBJETO “SURDO-MUDO” E O COM O USO DO CONCEITO DE TRAUMA PRÉ-CONCEITUAL: “CESURA” DE W. BION nente; uma ausência esmagadora tornou-se uma significativa e poderosa presença. Similarmente a uma roda que corre em uma via, a realidade toca somente um ponto, descansa sobre um instante, o presente, ao tempo que incessantemente flui do passado para o futuro em um ritmo análogo ao rio de Heráclito. Se a realidade representa um evento temporal circunscrito a um instante, poderíamos então perguntar-nos: que obscuridade de circunstâncias, similar a essas circunstâncias que proporcionaram eternidade às pegadas do dinossauro, haveria de se implementar para que aquilo que devia ser um momento transitório na vida de uma pessoa se convertesse em uma presença permanente? Existem, portanto, condições que, por sua própria natureza, fraturam a “barreira protetora” de Freud e não chegam, segundo Bion, a ser contidas pela função rêverie da mãe. Tais condições convertem-se em “marcas permanentes”, em substância que compõe a transferência e a contratransferência, e buscam conhecer sua própria história para conseguirem ser esquecidas. Representam “pensamentos silvestres” (wild thoughts) à busca de um pensador que os contenha, de uma mente que lhes adjudique um significado. A mente “viva”, diferente das pegadas “inanimadas” dos dinossauros, proporciona vida às marcas traumáticas, de modo similar ao “membro fantasma” dos amputados. Tal “élan vital” poderia ser considerado análogo ao “instinto de domínio” (instinct to master – Hendrick, 1942), uma espécie de busca implacável pela verdade que Grotstein (2004) – considerando a intensidade com a qual um pensamento silvestre solicita um pensador – recentemente considerou como um autêntico “instinto da verdade”. Aproximadamente um ano depois da última sessão referida, Irene conseguiu uma ocupação estável. Chega pontualmente e inicia a sessão dizendo que, em comparação ao seu trabalho anterior, o atual significa uma queda em seu status: “em meus novos crachás, sou ‘desenhista’; nos anteriores, era ‘diretora de arte’ ”. Diz, no entanto, sentir-se melhor, porque agora seus companheiros de trabalho são mais agradáveis. Digo-lhe que parecia não estar segura de seu verdadeiro status e que necessita de um crachá para 556 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 537-560, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 557 Rafael E. López-Corvo sabê-lo. Após uma pausa, diz: “Há algo muito importante que queria dizerlhe. Minha mãe insiste que sou bulímica, que me ouviu vomitar no banheiro, o que é absolutamente falso e o neguei, mas ela insistiu e disse ao meu pai, que acreditou nela, ainda que eu insistisse que era mentira. Preocupame, porque sei que ela me obrigará a fazer algo”. Parece preocupada. Pergunto-lhe: “E esse ‘fazer algo’, o que significa?” – “Bom, que me obrigue a consultar alguém, como um médico”. Digo-lhe, então, que parecia que ela estava lutando com várias confusões em sua mente. Que parecia estar batalhando com uma mãe arbitrária e cruel que a ameaça e que não lhe parece claro se essa mãe está fora ou dentro de sua mente; também, sente que se torna impossível chegar a um acordo sensato com ela e que o médico que, segundo ela, teria de ver, seria também, do mesmo modo que sua mãe, igualmente insensato e arbitrário, como se fosse uma extensão dessa mãe poderosa e perigosa. “Bom”, responde, “minha mãe pode me expulsar de casa como fez com meu irmão”. Por um momento, permanece em silêncio e diz que se lembra de uma cena de quando estava no hospital para ser operada. É de noite e se encontra dentro de uma banheira muito alta, o que a faz pensar que teria entre 5 ou 6 anos. A mãe lava-lhe o cabelo, ou lhe dá banho. “Eu me sentia como se tivesse tocado fundo, era um sentimento de grande vazio, de total desesperança, o qual também sinto agora. Devia ter sido depois da operação.” Digo-lhe, então, que, mais exatamente, pode ter sido antes, que talvez a banhavam para prepará-la para a operação e que ela pode ter perguntado à mãe, nesse momento, quando talvez a sentisse amorosa enquanto a banhava, se poderia ir com ela para casa, e ela pode ter-lhe dito que não, que teria de ficar para a intervenção no dia seguinte, o que destruía todas as suas esperanças de evitar o que viria e que tanto a atemorizava; havia tocado fundo, como um condenado à morte que esgotou todos os recursos de perdão e se prepara para a execução. Talvez deseje também que eu a proteja e impeça que esses sentimentos de vazio e desesperança deixem de persegui-la de uma vez por todas. O maior problema parecia ser o grande poder e a crueldade que ela sentia provir de um “objeto mãe”, que podia ser induzido por um ataque bulímico invejoso, ao contrá- O OBJETO “SURDO-MUDO” E O COM O USO DO CONCEITO DE TRAUMA PRÉ-CONCEITUAL: “CESURA” DE W. BION rio da harmonia entre seus pais – uma dinâmica que ajudava que um acontecimento ocorrido 19 anos atrás se tivesse tornado permanente. Espécie de pegada imperecível que não muda e que a captura, como se ela ainda fosse essa menina desamparada, paralisada e inútil, que ainda não consegue decidir por si própria. Resumo O ego luta com o trauma pré-conceitual por meio de sua fragmentação diminuta e projeção no mundo externo, junto à mente que contém a experiência. Posteriormente, o trauma penetra na cesura do tempo e se apresenta como um objeto interno cruel, controlador e ameaçador, que rouba ao ego seu direito ao bem-estar. Na transferência, é percebido como uma poderosa resistência para absorver a interpretação. Palavras-chave Trauma Psíquico Precoce. Objeto Interno. Pensamento Arcaico. Resistência. Transferência. Reconstrução. Abstract The “Deaf-Mute” Object and the Pre-Conceptual Trauma: with the use of Bion’s “Caesura” concept Ego fights against the pre-conceptual trauma by way of its tiny fragmentation and projection onto the external world, inside the mind that contains the experience. Later, trauma penetrates time’s caesura and presents itself as a cruel, controlling, and threatening internal object, which deprives ego of its right to well-being. In transference, it is perceived as a powerful resistance to absorb interpretation. Key-words Early Psychic Trauma. Internal Object. Archaic Thoughts. Resistance. Transference. Reconstruction. 558 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 537-560, 2005 El Objeto “Sordomudo” y el Trauma Preconceptual: con el uso del concepto de “Cesura” de W. Bion El yo lidia con el trauma pre-conceptual mediante su fragmentación diminuta y proyección en el mundo externo, junto a la mente que contiene la experiencia. Posteriormente el trauma penetra la cesura del tiempo y se presenta como un objeto interno cruel, controlador y amenazante el cual roba al yo su derecho al bienestar. En la transferencia es percibido como una poderosa resistencia a utilizar la interpretación. Palabras-llave Trauma Psíquico Temprano. Objeto Interno. Pensamiento Arcaico. Resistencia. Transferencia. Reconstrucción. Referências BION, W. R. (1963). Elements of Psycho-Analysis. In: ______. Seven Servants. New York: Jason Aronson, 1977. ______. Second Thoughts: Selected papers on Psycho-analysis. New York: Jason Aronson, 1967. ______. Clinical Seminars and Four Papers. Oxford: Fleetwood Press, 1987. FRANK, A. The Unrememberable and the Unforgettable: passive primal repression. Psychoanalytic Study of the Child, New Haven, v.24, p.48-77, 1969. FREUD, S. (1926). 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International Journal of Psychoanalysis, London, v.61, p.315-323, 1980. SCOTT, W.C.M. Self-Envy and Envy of Dreams and Dreaming. International Review of Psycho-Analysis, v.2, 1975. SEGAL, A. Notes on Symbol Formation. International Journal of Psychoanalysis, London, v.38, p.39, 1957. Artigo Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Tradução: Maria Regina Lucena Borges Revisão: Maria Lucia Meregalli Dr. Rafael E. López-Corvo 186 St. Clair Avenue East, Apt. 3 Toronto Ont. M4T1N8 E-mail: [email protected] 560 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 537-560, 2005 Regina Lúcia Braga Mota Membro Titular e Analista Didata da Sociedade de Psicanálise de Brasília. Penso no trauma não só como o estrondo da tsunami, mas também como o registro interno de dores silenciosas e imperceptíveis – sem representação –, que vão corroendo o tecido psíquico com o tempo, até que produzem gritos no corpo ou na fala, em princípio inexplicáveis e incompreensíveis. Entendo a família como cenário de dores traumáticas que constroem o psiquismo, do nascimento à morte e, ao mesmo tempo, principal campo de impacto da estruturação psíquica. À primeira, a de nascer, vão se sucedendo outras dores traumáticas, relativas ao crescimento: a descoberta da mãe como ser separado, o desmame, o nascimento de um ir- Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 561 Regina Lúcia Braga Mota Trauma: impacto da família na estruturação psíquica TRAUMA: IMPACTO DA FAMÍLIA NA ESTRUTURAÇÃO PSÍQUICA mão, a primeira escola, mudanças de casa, as primeiras doenças infantis, a adolescência, as separações, as formaturas e a saída da casa dos pais para constituir seu próprio lar. Permeando todas essas dores, a inexorável dor do Édipo e da castração, fundantes de estruturas psíquicas, presentes nas famílias que vamos constituindo ao longo da vida, após a família original. Todas as conquistas implicam perdas que, além de sentidas, necessitam ser sofridas, pois quem “não sofre a dor, falha ao sofrer prazer”, afirma Bion (1970). O sofrimento doloroso tem que encontrar refúgio psíquico, pois, havendo representação da situação traumática, não haverá repetição nem somatização. As pessoas que não fazem lutos mantêm na mente grandes quantidades de afetos dolorosos. Quando não é possível a evocação do sentimento doloroso pelo pensamento, a compulsão à repetição arma o retorno a uma cena traumática através de sintomas para conciliar as partes cindidas pelo trauma, propõe Kreiselman de Mosner (2004). Neste trabalho, não pretendo me deter nas nuances entre dor e trauma, mesmo porque encontramos diversos outros campos de interseção. Às vezes, as dores ficam situadas na fronteira entre o corpo e a mente, como sugere Betty Joseph (1981), ao falar em “dor psíquica”, que o paciente N. define adiante apropriadamente como seu “corpo emocional gritando”. Dor indefinível, quase física, ocorre quando a identificação projetiva sucumbe e as defesas estão ameaçadas, gerando sentimentos persecutórios intensos, experimentados como violentos traumatismos. “Sentido é dor?”, indaga uma menininha, infante, quase ainda sem fala, às voltas com sensações, sentimentos e palavras. A mãe falava para a tia: “Fulano está muito sentido”, e a menina pedia para a mãe nomear o que era físico e o que era psíquico, mas certamente ela já sabia o que era dor! Representação de um objeto perdido e sempre procurado, ferida produzida no psiquismo, no caso da psicanálise, dor e trauma se situam na relação com o outro, produzindo frustração e desamparo. Referentes a um trauma antigo, traumas cumulativos se seguem, necessitando de um trabalho de luto que vai fazer o paciente reexperimentar na transferência a perda e reconstruir seu mundo interno, apropriando-se de sua história. 562 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 561-572, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 563 Regina Lúcia Braga Mota Instituição de transmissão de valores e tradições que recebemos ao nascer, espaço inaugural de construção do eu, palco de múltiplas identificações e da estruturação psíquica, a família nos antecede e nos recebe com um nome e sobrenome, uma filiação, ponto de origem do qual temos que nos apropriar para construir nossa história pessoal de angústias e defesas. É um eixo que nos protege do risco da loucura e da deriva (PASSOS, 2003), mas que também pode fazer enlouquecer. História que ancora nossas vidas, conjunto de vivências e narrativas dos pais, constitui-se através de palavras ouvidas, contadas e recontadas, posteriormente, ressignificadas na análise. Winnicott (1979) enfatiza que o crescimento mental da criança se constitui a partir de um intercâmbio contínuo entre as realidades interna e externa, na jornada da dependência à independência em relação à família, até encontrar sua identidade como sujeito nascido de um drama, marcado e modelado por ele. O trauma “inventado”, no “romance familiar” de Freud (1909), é um recurso edípico do imaginário em que é fantasiada uma família que não corresponde à sua realidade, tecendo-se uma trama digna de folhetim: são filhos adotados, mães com amantes secretos, irmãos bastardos, etc., estranhos numa família ilegítima. Funciona como uma defesa enganosa contra o incesto, já que não haveria por que recriminar os desejos sexuais da criança em relação aos pais ou irmãos, se não possuem o mesmo sangue. Constituindo-se de fantasias referentes a cenas recalcadas, o “romance familiar” aparece ainda como manifestação do desejo de humilhar ou exaltar os pais e de nutrir rivalidade fraterna. Intrigam-me as conseqüências da adoção para o psiquismo da criança que foi adotada, que vive um verdadeiro romance familiar, e que não estaria protegida contra desejos incestuosos. Além disso, vemos uma busca obsessiva pelos pais biológicos, que afinal a rejeitaram. Haveria algum tipo de cisão interna em decorrência de dois registros coexistindo no inconsciente: rejeitada e aceita ao mesmo tempo? Se, até a Idade Média, a criança era um fardo a se desembaraçar, criada por amas, longe dos pais, sendo consideradas família as pessoas que TRAUMA: IMPACTO DA FAMÍLIA NA ESTRUTURAÇÃO PSÍQUICA habitavam em uma mesma propriedade indivisível, com o Renascimento, forma-se a família patriarcal, a partir da divisão de propriedades, em que amamentação, higiene e cuidados com a criança se impõem (BANDAROVSKY; BRAZ, 1996). Com o capitalismo, houve um retrocesso, em que as crianças tinham que trabalhar e lutar nas guerras, até chegar à época da “criança majestade” de Rousseau (séc. XVIII), boa por natureza e corrompida pela sociedade, à qual Freud (1905) contrapõe a criança por natureza perversa polimorfa. Mas a criança da Psicanálise está sujeita às projeções dos pais, e, assim como estes, todos os adultos abrigam internamente a criança que foram. Da mesma forma que a família, as casas em que vivemos são marcos do nosso trânsito pelo viver, afirma Vida de Prego (1976). Nascemos de uma casa-ventre, nutrimo-nos numa casa-seio, crescemos envolvidos por uma moldura determinante que implica a constante perda de objetos ideais, os quais estaremos sempre procurando reencontrar. A casa que não protege é um buraco gerador de profundas angústias. Essas casas, continentes de lembranças e do esquecido, palco do romance familiar e de dramas inolvidáveis que se repetem na análise, aparecem em sonhos, fundindo passado e presente, ao longo do trajeto analítico, como o quarto sem tranca da casa de Dora (FREUD, 1905). As casas que o paciente G. traz constantemente para a análise representaram um divisor de águas na estruturação de sua personalidade: a primeira, grande e farta, o paraíso, com uma babá carinhosa que lhe secava os cabelos. Mas o bebê lindo e gordinho é subitamente arremessado ao vestíbulo do inferno, antecipando as dores que iria sofrer na vida, quando o pai, alcoólatra, começou a perder tudo no jogo, inclusive a própria casa, iniciando a derrocada da família numerosa. Enquanto se construía o casebre onde iriam morar, G. fica temporariamente na casa da babá, um barraco num beco infecto. Como numa cena de realismo fantástico, a chegada do marido dela, tarde da noite, era anunciada por uma matilha de cães que uivava, cercando o bêbado desde o início da rua, acordando a todos. Quando finalmente mudaram 564 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 561-572, 2005 Se a família não acolhe a dor de existir, a dor faz parte da análise, campo onde batalhas transferenciais são travadas para que se possa fazer emergir e recriar o caminho em direção à genuína posição depressiva. Depois de uma sessão muito mobilizante, o paciente N. escreve seu primeiro conto e me traz. Relata uma batalha sangrenta contra a morte, que se desenrola na própria casa onde viveu e onde os pais moram até hoje, e mais precisamente no quarto dos pais! Começa descrevendo em detalhes o sobrado antigo: “Há um clima de oração, com velas queimando, cheiro de flores e de frutas. Mulheres se comunicando com sinais, gestos e olhares quase imperceptíveis, tipo de diálogo que passou a adotar. Sentia tudo, mas não definia. O que faria com tanto sentimento? Sentimentos em blocos desorganizados como trouxa de roupa suja, que, depois de lavadas, eram guardadas. Pena não poder fazer o mesmo com seus sentimentos. Sentir e não querer sofrer; sentir e não querer rir, pois sabia que tornaria a sofrer e a sorrir, e esse círculo era comum, enfadonho. Para que viver, se iria morrer? Não era hora de se questionar, afinal, a passagem, como se costuma dizer, é um momento bastante tumultuado, com pouco espaço ao exercício da reflexão [...]Deve ter sido muito complicado para ele, pois a existência exige muitas coisas, exige estar adequadamente aparelhado para viver. Exige resistência física e emocional, exige vontade e conhecimento de seus desejos e exige boa capacidade para expressá-los. Quem só sabe Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 565 Regina Lúcia Braga Mota para o casebre “daquele bairro”, a decadência do pai se acentuou, chegando a perder a roupa do corpo: retornava sempre bêbado, quebrando tudo, e a mãe iniciava uma discussão que varava a madrugada. G., o filho caçula, resolveu ocupar o lugar do pai sempre ausente, tentando colocar ordem no recinto desde muito pequeno. Começou a trabalhar muito cedo, em todo tipo de biscates, e assim conseguiu se formar, por sua própria conta sempre. Cuidou do pai até a sua morte por cirrose hepática. Inteligente e sedutor, desenvolveu muito precocemente defesas extraordinárias para sobreviver. Entretanto, sempre sofreu de muita solidão. Até hoje, não consegue ir direto do trabalho para sua casa; para não ficar sozinho, tem que passar no bar, como o pai. TRAUMA: IMPACTO DA FAMÍLIA NA ESTRUTURAÇÃO PSÍQUICA sentir, sente um turbilhão de coisas ao mesmo tempo que imobilizam, assustam. Era seu corpo emocional gritando”. E finaliza: “Na tentativa de salvar aquela vida, o médico pôs-se a fazer de tudo que sabia. Havia barulho de costelas envergando. Gritos surdos de dor e orações. Mantas, lençóis, trapos e até as paredes do quarto estavam ensangüentadas. Era o final de mais um episódio do quotidiano, era só mais um acontecimento da existência, que para ele era a sua experiência mais forte. Sua vida mudaria radicalmente, nas dimensões do mundo físico e espiritual. Nada mais seria como antes. Como levar toda aquela pureza austera que bem conhecia para um outro mundo? Depois de todo aquele esforço conjunto, acabou sucumbindo e respirando com força. Momentos depois, veio do quarto um choro alto que podia se ouvir desde a distante cozinha... por fim, havia nascido! Talvez sua primeira derrota registrada”. Para alguém ensimesmado, sem palavras para seu sofrimento, N. evoluiu muito, produzindo um impactante relato da dor de nascer! Quando a dor de nascer deixa marcas indeléveis, o convite à vida não suscita um interesse maior do que o de voltar ao inanimado ou de não ser nada. Embora para N. sofrer a vida seja o mesmo que sofrer a morte, vemos descrita a derrota da pulsão de morte pela pulsão de vida. A tragédia do bebê – seu desamparo físico e psíquico ao ser confrontado com um mundo sentido como hostil, não tendo um aparelho psíquico desenvolvido – depende da função continente dos pais para ser elaborada, tolerando e absorvendo a agressão inata do filho. Quando essa função falha, podem surgir estados depressivos na criança, já que a hostilidade não canalizada se volta para ela própria. De acordo com B. Joseph (1981), a dor psíquica reflete uma sensação de confusão, “sentimentos em blocos desorganizados como trouxa de roupa”. Segundo N., um aglomerado de estágios (nascimento, oral e edípico), relativos aos primórdios da dor, quando a fragmentação imperava, embora os pacientes que a sentem não sejam necessariamente psicóticos. Para Ferenczi (1933), traumático é não poder nomear a experiência e 566 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 561-572, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 567 Regina Lúcia Braga Mota vê-la desqualificada por algum adulto confiável, pois, nesses casos, a simbolização falha, restando a concretude do episódio traumático. Somente a palavra recupera a cisão entre o que a criança compreendeu e o que lhe disseram (HAYNAL, 1989) para dar sentido à situação dolorosa. Se a palavra da criança é desconsiderada como sendo apenas “coisa de criança” e se a mesma não tem acesso a nenhuma palavra verdadeira, pode encontrar no sintoma uma possibilidade de expressão. O sintoma é um véu que esconde o acontecimento perturbador ou o texto original e entra no lugar das palavras que faltam, sempre incluindo o indivíduo e o outro. A criança aprende a emudecer face à repressão do adulto que anula o discurso e elimina a possibilidade de reagir espontaneamente. A dependência do amor dos pais impede que os traumas infantis, ocasionados por eles, sejam reconhecidos, pois permanecem ocultos por idealizações. A violência encoberta é um fator tão traumático quanto a primitiva violência física, mas é tolerada com submissão pela criança vulnerável. Em suas formas sutis, vemos o descaso, a humilhação, a coerção, a insensibilidade ante o sofrimento e a apropriação do outro, gerando traumas inconscientes mudos e podendo se manifestar mais tarde através de sintomas sadomasoquistas. Alkolombre e Petronacci de Hacker (2004) mostram que o poder do adulto aí se revela, coexistindo com cuidados e modelos educativos, que nem sequer são mencionados nas entrevistas preliminares, por serem egossintônicos. Simone, uma paciente, relata que ficava desesperada quando os pais e irmãos faziam uma “brincadeira”, comunicando-se numa língua inventada, através da qual fingiam se entender entre si, excluindo-a. Ignorar a criança, como represália à sua agressividade, pode ser tão traumático quanto uma surra. A violência sobre a criança apaga a subjetividade e é exercida sobre alguém que não pode ser reconhecido como diferente (ALKOLOMBRE; PETRONACCI DE HACKER, 2004). Pais narcísicos reagem violentamente à autonomia do filho, transmitindo uma história que vai se repetindo transgeracionalmente: pais que maltratam porque foram crianças maltrata- TRAUMA: IMPACTO DA FAMÍLIA NA ESTRUTURAÇÃO PSÍQUICA das, e assim por diante. Lembramos, no entanto, que limites e proibições também são necessários à estruturação do superego e que a permissividade é nociva. Leclaire (1977) ressalta que, logo ao nascermos, temos de começar a fazer o luto da criança maravilhosa ou terrível que fomos nos sonhos dos nossos pais. Essa “representação narcísica primária” inconsciente, “sua majestade o bebê”, começará a falar e a desejar, e nesse momento dar-se-á o início da constituição do seu “eu”. Mannoni (1987) afirma que todo estudo da criança implica o adulto, sendo que a constituição da criança como sujeito depende do desejo dos pais de deixá-lo nascer. “A criança, nos seus esforços para se constituir como indivíduo reencontra o que no inconsciente dos pais é obstáculo ao surgimento do seu ser.” A criança de Freud, perversa polimorfa, é a que está no adulto, buscando o prazer do passado que foi proporcionado pela mãe, investindo em novos objetos. É a palavra do adulto que vai modificá-la ou se inserir no seu inconsciente. Assim, a doença da criança revela a doença dos pais. A queixa dos pais em relação ao sintoma do filho pode se referir a um sonho irrealizado, a um ideal perdido, à falta que há no adulto e à expectativa de que essa falta será preenchida pela criança. Os conflitos se desenvolvem em torno da palavra veiculada, pois o discurso do passado permanece inscrito no inconsciente. A criança entra na ordem simbólica através do Édipo e da castração, do terceiro, da lei e da cultura. O que foi dito ou não dito pode refletir a dificuldade do casal parental, e ordens contraditórias podem perturbar os processos identificatórios de construção da subjetividade do filho. Há que também desvendar a palavra do pai no discurso da mãe. O sintoma da criança surge indiretamente na sua relação com os pais, representando o lugar da angústia destes. Prosseguindo nesse ponto de vista, Mannoni (1987) pergunta: “Para quem a criança deve permanecer o louco que não é, já que está sujeita à loucura do adulto?”. Quando nasce uma criança organicamente “defeituosa”, interessa-nos saber como a doen568 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 561-572, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 569 Regina Lúcia Braga Mota ça real é vivida por ela e pela família. Às vezes, a melhora da criança pode produzir nos pais crises somáticas e psíquicas. Em casos mais graves, a mãe pode adoecer o filho e mantê-lo doente. “Procura-se introduzir um meio ambiente melhor, sem pensar que o meio é antes de tudo o discurso coletivo em que o sujeito se acha preso”, ressalta Mannoni (1987). O discurso paterno explica o que na criança não pode ser dito – a distância entre a palavra de um e de outro –, um malentendido que se dissipa quando se ouve o conjunto da criança e dos pais. Teríamos um meio ambiente “imaterial”, efeito das palavras, ouvidas ou não, da família. Como é esperada pela família a criança antes do nascimento? O que vai representar como projeção dos pais? Como a situação real é vivida simbolicamente pela criança? O que na palavra adulta marcou a criança? O que representa a criança no mundo fantasmático dos pais e na transferência com o analista? Uma paciente minha sonha que está ameaçada por ladrões e usa seu bebê, o filho caçula, falo da mãe, como escudo. Ao contrário do exemplo acima, o papel do analista assemelha-se ao da boa mãe, que deve funcionar como estímulo, escudo e filtro protetor. Sua verbalização e compreensão servem para elaborar o trauma. Além do exposto acima, a Psicanálise atual tem que dar conta das novas formas de famílias contemporâneas, a partir das quais sugiro algumas questões para reflexão: 1) Tenho curiosidade de saber, por exemplo: como se apresenta a rede identificatória e o tabu do incesto na criança em novas estruturações familiares, em que coabitam “os meus, os seus e os nossos” filhos? 2) Numa época de provetas e ameaça de clonagem, preocupo-me com a nova geração de bebês criados por mães que dispensam os homens, recorrendo a bancos de sêmen. Como ficaria a função paterna nesses casos? 3) Pares de homossexuais, tanto masculinos quanto femininos, adotam crianças que terão dois pais ou duas mães, em vez de um casal. Do ponto de vista identificatório, isso dependeria apenas de uma boa definição dos papéis materno e paterno na dupla? TRAUMA: IMPACTO DA FAMÍLIA NA ESTRUTURAÇÃO PSÍQUICA Ficam as perguntas, por enquanto sem respostas, como sugestões para a pesquisa psicanalítica, já que a família contemporânea não é mais igual à da época de Freud, mesmo que consideremos universais e atemporais os mitos em que o pai da Psicanálise se baseou para construir suas teorias. Trauma, acolhimento e identificações sempre haverão de existir no seio das famílias e o impacto dessas novas constelações familiares requerem um estudo sério e aprofundado para a Psicanálise desses novos tempos. Resumo A autora discorre sobre a família como o cenário de dores traumáticas, desde o nascimento até a morte, permeadas pela dor do Édipo e da castração, mas também campo de impacto para a estruturação psíquica e constituição da subjetividade. Ilustra com um breve relato de dois casos clínicos em que a família e a casa são retratadas como moldura nem sempre satisfatória para o sofrimento mental, acrescentando uma descrição literária feita por um paciente. Apresenta o ponto de vista teórico de autores kleinianos e não-kleinianos, revelando a opinião desses últimos quanto à análise da criança ser indissociável do relato dos pais. Ao final, algumas questões são formuladas para que se possa refletir a respeito do impacto das novas configurações familiares contemporâneas. Palavras-chave Trauma. Estrutura Familiar. Subjetividade. Representação. Elaboração. Abstract Trauma: the impact of family on psychic structuring The author discourses on family as the scenario of traumatic pain, from birth until death, permeated by Oedipus pain and the pain of castration, but also as an impact field for psychic structuring and the constitution of subjectivity. She illustrates it with a brief account of two clinical cases in which the family and the house are depicted as a not always satisfactory frame for mental suffering, adding a literary description made by a patient. She presents the theoretical viewpoint of Kleinian and non-Kleinian authors, revealing the opinion of the latter as to child analysis being inseparable from the parents’ account. Finally, some questions are 570 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 561-572, 2005 Key-words Trauma. Family Structure. Subjectivity. Representation. Working-through. Resumen Trauma: impacto de la familia en la estructuración psíquica La autora discurre sobre la familia como el escenario de dolores traumáticos, desde el nacimiento hasta la muerte, penetradas por el dolor de Édipo y de la castración, sino también campo de impacto para la estructuración psíquica y constitución de la subjetividad. Ilustra con un breve relato de dos casos clínicos en que la familia y la casa se retratan como moldura y no siempre satisfactorias para el sufrimiento mental, añadiendo una descripción literaria hecha por un paciente. Presenta el punto de vista teórico de autores kleinianos y no kleinianos, revelando la opinión de estos últimos en lo que se refiere al análisis de que el niño sea indisociable del relato de sus padres. Al final, algunas cuestiones se formulan para que se pueda pensar sobre el impacto de las nuevas configuraciones familiares contemporáneas. Palabras-llave Trauma. Estructura Familiar. Subjetividad. Representación. Elaboración. Referências ALKOLOMBRE, P.; PETRONACCI DE HACKER, R. La Violencia Encuberta en la Clínica con Niños e Adolescentes. Trabalho apresentado no 25º Congresso Latino-americano de Psicanálise, Guadalajara (México), set. 2004. BANDAROVSKY, J.; BRAZ, M. A Criança da Psicanálise: algumas reflexões sobre a metáfora. 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Regina Lúcia Braga Mota SHIS QI9, Lote E, Bloco I, sala 209, Lago Sul 71625-009 Brasília – DF – Brasil Fone: (0xx61) 248-6216 E-mail: [email protected] 572 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 561-572, 2005 Introdução Rosane Muller Costa Candidata do Núcleo de Fortaleza, ligado à Sociedade Psicanalítica de Recife. Na natureza, o dado primeiro é a observação de ciclos; a existência consiste em movimento e mudança. Sendo a transformação intrínseca aos seres viventes, as ciências que os estudam se debruçam na investigação desse grande enigma. No que se refere à mente humana, não é diferente, pois, mesmo que Freud não tenha dedicado um trabalho especificamente à noção de mudança psíquica, toda a sua obra pode ser focalizada a partir desse ângulo, desde o seu mais precoce início. Com efeito, a invenção da Psicanálise decorre do esforço do seu criador para operar mudanças no interior do aparelho psíquico. Foi assim que, no Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 573 Rosane Muller Costa Mudança Psíquica e Crescimento Emocional MUDANÇA PSÍQUICA E CRESCIMENTO EMOCIONAL tratamento das pacientes histéricas, Freud chegou à descoberta da realidade psíquica e da eficácia da sexualidade infantil atuante no adulto. Vislumbrar o infantil como determinante das manifestações psíquicas mais elementares da vida adulta, não só dos sintomas, inspirou a criação de conceitos como inconsciente, repressão e transferência, entre outros, que convergem às grandes descobertas da Psicanálise. Ficou, então, aberto o caminho para a investigação do ponto de vista genético da metapsicologia. A presente comunicação visa abordar, mais especificamente, a evolução do narcisismo às relações de objeto na perspectiva de Freud, Ferenczi e Klein, focalizando a contribuição do objeto nesse percurso. Ilustraremos as idéias apresentadas com o conto de fadas A Bela e a Fera, que tão bem expressa a feição mágica das transformações e os ingredientes necessários para produzi-las. Considerações sobre a Mudança Psíquica e a Estruturação do Sujeito Os estados mentais são dotados de grande mobilidade, mesmo no que concerne à passagem de um estado mais saudável para outro mais patológico, como se vê no seguinte trecho de Freud (1907, p.50): “o limite entre o que se descreve como estado mental normal e como patológico é tão convencional e variável, que é provável que cada um de nós o transponha muitas vezes no decurso de um dia”. A esse fenômeno convencionou-se chamar de mudança psíquica, e a sua investigação conduz à questão de como o aparelho mental realiza mudanças mais duradouras, de como evolui ao longo do tempo. Em linhas gerais, a metapsicologia mostra uma tendência no sentido de uma crescente complexificação das estruturas psíquicas que acompanha as transformações na organização defensiva do sujeito em relação à sua vida pulsional (BLEICHMAR, 1993). O desenvolvimento do aparelho psíquico tende para formas superiores de organização, o que está associado, na concepção de autores diferentes, à noção de diferenciação (Spitz e os organizadores da psique), de vir a ser mais o que se é (Winnicott e o verda574 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 573-593, 2005 A Bela e a Fera A noção de crescimento psíquico como uma transformação, em que a importância do objeto é, sobremaneira, evidente, foi magnificamente retratada no conto A Bela e a Fera. Os contos de fadas, assim como os mitos e as lendas, transmitem uma verdade universal, impregnada de sentimentos atemporais e comuns a toda a humanidade. Conferem expressão de modo metafórico, tanto quanto os sonhos e os sintomas, a um saber do incons- Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 575 Rosane Muller Costa deiro self) ou de desenvolvimento do senso de identidade (Mahler e o processo de separação-individuação). Freud considerava o desenvolvimento emocional como uma decorrência do crescimento psíquico e este como um processo natural, que acontecia de acordo com os sucessivos rearranjos da relação pulsional com os objetos organizados em fases. Deve-se a Karl Abraham, segundo Roudinesco e Plon (1998), a introdução da idéia de que as atividades do sujeito são moldadas pelos próprios objetos, mais precisamente, pela maneira como o sujeito se constrói na relação com os objetos parciais vinculados às pulsões orais, anais e uretrais. Abraham também estava interessado em demonstrar como se articula a atividade de fantasia na criança, conforme os tipos de relações objetais alcançados, tema que foi extensamente desenvolvido por Klein, cujo trabalho incide no modo como se constrói e se modifica a fantasia inconsciente no contexto das relações de objeto. Para Klein, o crescimento psíquico decorre sempre do desenvolvimento emocional e, embora resultante de um processo natural, precisa ser alcançado pelo sujeito, haja vista inúmeras forças que se opõem a ele desde os primórdios da existência. Há registros de que o movimento psicanalítico da segunda metade do século XX em diante dedicou-se à reflexão sobre a maneira pela qual o sujeito humano constrói sua personalidade na relação com o meio social, sobretudo com o outro significativo, não qualquer outro, mas aquele cuja ligação é mediada pelos investimentos pulsionais do sujeito. MUDANÇA PSÍQUICA E CRESCIMENTO EMOCIONAL ciente, passível de ser captado em seus múltiplos significados pela mente consciente, pré-consciente e inconsciente. Como todas as manifestações do id, os contos de fadas têm um surgimento aparentemente espontâneo. Ninguém sabe de onde vieram, qual a sua origem ou as leis que regem o seu aparecimento. Supõe-se que tais leis existam e possam ser formuladas, pois há semelhanças nos contos encontrados nas mais longínquas regiões do planeta (NISSENBAUN; LEVY, 1998). Os contos tiveram início como parte de uma tradição oral preservada por sucessivas gerações de contadores até que, na França, na segunda metade do século XVII, Charles Perrault (1628-1703), entre outros escritores, contribuiu para sua divulgação como literatura, gênero bastante apreciado desde então. Em função dessa característica – o anonimato da autoria do conto e a existência de um trabalho psíquico coletivo sobre este – é que não importa de quem é a versão relatada, pois todas são igualmente relevantes, desde a última da Disney encenada no teatro e levada para o cinema de animação até as primeiras e mais remotas. O resumo de A Bela e a Fera apresentado a seguir foi baseado na narrativa de Marianne Mayer, cuja versão para o inglês, editada em 1978, baseia-se na escrita por Madame Leprince de Beaumont, de 1757, que, por sua vez, remete à versão francesa original, elaborada por Madame de Villeneuve em 1740. Segundo Bettelheim (1980), esse é o relato mais popular do conto. Era uma vez ... uma assustadora fera que vivia sozinha em seu castelo numa floresta distante. Um dia, um homem bateu em sua porta tendo se perdido em meio a uma noite escura e tenebrosa. Fera o recebeu com a mesa posta e um quarto aquecido, porém, como de hábito, nada quis com aquele visitante, até que, quando já ia indo embora, o homem arrancou uma das rosas do seu jardim. Furioso, Fera apareceu e falou: “Eu lhe dou comida e abrigo e você me agradece roubando. Prepare-se para morrer por sua ousadia”. O homem, então, contou sua história. Tinha sido um mercador rico, mas perdeu suas posses na tempestade que naufragou seus navios, tendo então que se mudar com a família 576 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 573-593, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 577 Rosane Muller Costa para o campo. Tinha seis filhos, três mulheres e três homens, que passaram a sofrer com o trabalho duro, à exceção de Bela, das filhas a mais nova e a mais ligada a ele. Recentemente, teve a notícia de que um de seus navios retornou ao cais e fez essa viagem para ver se recuperava algo, mas em vão, nada havia restado da rica carga de outrora. Essa rosa que ele colhera do seu jardim tinha sido um pedido de Bela a ele, o único que podia atender, já que o pedido das outras filhas tinha a ver com ricos presentes. Fera, ouvindo isso, teve uma idéia e disse: “Se sua filha ama você o bastante para vir aqui em seu lugar, eu a tomarei em vez de você; mas, se ela recusar, você deverá voltar ao castelo para ser punido”. O mercador protestou, mas Fera determinou que deveria ser escolha da jovem. Desolado, o homem partiu levando também os tesouros que Fera lhe presenteara.Chegando em casa, contou o ocorrido, e Bela, apreensiva, rumou para o castelo. Lá foi recebida pelo anfitrião, que lhe comunicou as regras: “Tudo aqui lhe pertence, mas você não poderá jamais deixar o castelo”. Dito e feito. Os dias foram se passando, e ela encontrava tudo de que necessitava num passe de mágica; numa torre descobriu muitos livros e se entretinha lendo. Via Fera apenas no jantar, quando este lhe contava histórias de países e povos estrangeiros e, invariavelmente, antes de se retirar, perguntava se Bela queria casar com ele. Ela sempre recusava, mas, com o tempo, passou a esperar por esses encontros. Também passou a querer saber mais sobre Fera, que nada lhe contava de si mesmo. Ela, então, começou a ter sonhos nos quais via um jovem que dizia ter sido vão e orgulhoso, até que, tendo recusado comida a uma mendiga, esta, na verdade uma feiticeira, o condenou a vagar sozinho, encanto que só seria quebrado se alguém nele visse alguma beleza.O tempo passou mais um pouco até que Bela foi novamente surpreendida pela descoberta de um espelho. Neste viu seu pai muito doente e seus familiares pranteando à sua volta. Aflita, Bela comunicou o ocorrido a Fera, que confirmou que o espelho dizia a verdade. Aí a jovem implorou para visitar o pai, ao que Fera relutante concordou, desde que ela retornasse em três semanas. Em casa, seu pai recuperou-se com a visão da filha, mas uma armadilha a aguardava. As irmãs invejosas da boa aparência da caçula a convenceram a ficar; certamente Fera entenderia que o pai precisava mais dela do que ele. Assim, Bela não voltou ao castelo no tempo com- MUDANÇA PSÍQUICA E CRESCIMENTO EMOCIONAL binado e, quando olhou novamente o espelho, foi Fera quem ela viu, dessa vez era ele quem estava desfalecido e parecendo muito doente. Ela, então, regressou apressada ao castelo e, encontrando Fera como na visão do espelho, não se conteve e disse “Eu te amo, Fera”. Nesse momento, a aparência animalesca desapareceu e em seu lugar surgiu um príncipe, o palácio voltou a ter vida, e uma grande festa foi realizada para celebrar o casamento de ambos. Eles, assim, viveram com amor e alegria para todo o sempre. A essência do conto é a passagem de uma existência biológica para outra, humana, transformação efetuada mediante a presença do objeto no contexto de uma relação prenhe de significado. Essa travessia, que é o destino da cria humana, se opera sob uma lei que se funda na linguagem e no simbólico. Na ordem humanizante, existem trocas – os bens, a linguagem – e se estabelecem valores morais e éticos. Barthes (1991, p.102) comenta o aspecto transformador do simbólico e seu caráter essencialmente humano, atentando para o fato de que Fera espera receber a palavra cujo efeito a livrará do encantamento. Diz ele: A Fera – que foi encontrada na sua feiúra – ama a Bela; a Bela, evidentemente, não ama a Fera, mas, no final, vencida (pouco importa por quê; digamos: pelas conversas que tem com a Fera), lhe diz a palavra mágica: “Eu te amo, Fera”; e, imediatamente, através do rasgo suntuoso de um acorde de harpa, aparece um novo sujeito. Muito cedo, em seu trabalho, Freud descobriu o poder mutativo da palavra e dele fez nascer a psicoterapia, desde que o que transita entre os seus participantes é tão-somente o verbo. No artigo Tratamento Psíquico (ou Mental) (FREUD,1905a, p.306), ele afirma: Agora, também, começamos a compreender a mágica das palavras. As palavras são o mais importante meio pelo qual um homem busca influenciar outro; as palavras são um bom método de produzir mudanças mentais na pessoa a quem são dirigidas! Nada mais existe de enigmá578 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 573-593, 2005 O conto evoca, de forma mais imediata, a mudança que acontece numa relação amorosa e, por alusão, aproxima-se da transformação presente no processo de crescimento e na que acontece por intermédio da Psicanálise. Ao longo desta exposição, abordaremos esses três tipos de mudança e os aspectos de intersecção destas. As personagens do conto – Bela, o pai e Fera – constituem uma tríade, o que é sugestivo da compreensão que a psicanálise tem do crescimento mental no que se refere à importância da triangulação edípica, porém, até que se tenha chegado a esse ponto, algumas transformações devem ocorrer. Freud e o Ponto de Vista Genético A fera representa a cria humana em vias de humanizar-se, já que o homem em status nascendi nada tem de civilizado. Freud fez várias referências em seus textos à proximidade entre as crianças, os animais e os homens primitivos. Nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905b), ele se refere à criança como “o perverso polimorfo”, meio animal, meio homem primitivo, para falar da pulsão em seu estado original, entregue ao seu curso, dominada pela excitação sexual e pela urgência do prazer, pelo sadismo, que, eventualmente, transborda no comportamento infantil. Assinala que a disposição para a perversão da pulsão sexual humana é um dado primário e universal. Na infância, encontramos a criança entregue ao prazer pulsional, mas isso, deve-se ressaltar, é bem diferente da perversão sexual, mais tarde encontrada no adulto. No caso da criança, uma renúncia acontece, à medida que as repressões vão sendo construídas e a luta entre as forças que visam ao prazer de modo irrestrito cedem lugar àquelas que o limitam. Assim, a fera, o perverso polimorfo, é o tempo da infância, quando estão se formando as forças restritivas da pulsão. Nos Três Ensaios..., Freud menciona a Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 579 Rosane Muller Costa tico, portanto, na afirmativa de que a mágica das palavras pode eliminar os sintomas das doenças, e especialmente daquelas que se fundam em estados mentais. MUDANÇA PSÍQUICA E CRESCIMENTO EMOCIONAL vergonha, a repugnância, a piedade e as concepções de normalidade, edificadas socialmente. O princípio da realidade instala-se muito lentamente, sendo os aspectos aspectos fera progressivamente empurrados para os domínios do inconsciente. A infância é o tempo de estruturação do aparelho psíquico, exatamente porque o inconsciente não existe desde as origens do indivíduo, sendo produto de relações humanizantes. Em Freud, a origem do inconsciente define-se em relação à sexualidade infantil, que encontra o clímax no drama edípico, mas é inicialmente auto-erótica e pré-genital, ligada a um corpo fragmentado e a uma personalidade em formação. A pulsão em si só vai em busca da descarga, sendo que aquilo que se torna um obstáculo a essa descarga leva a mudanças nas defesas mentais, o que vai culminar nos processos fundantes da tópica psíquica. Acontece uma clivagem, o surgimento de uma ordem consciente e outra inconsciente pelo efeito do recalcamento, sendo que o infantil passa a ser a sexualidade reprimida, recalcada, que está na origem da estruturação do aparelho psíquico. O infantil em Freud, portanto, é o próprio inconsciente. A fera, como o infantil resultante do recalcamento, é o animal que continua à espreita, uma condição situada na área do conflito psíquico. Sua aparência assustadora no conto remete ao surgimento da angústia diante de figuras que evocam o recalcado, uma menção de Freud no texto O Estranho (1919) quanto às representações figuradas da castração, a fantasia do duplo e o movimento do autômato encontrados nas histórias de ficção. O animal lembra o desejo humano insatisfeito, que cobra realização, mas que permanece proibido. Foi, contudo, essa proibição que organizou a psique, lhe deu uma forma, uma direção e gerou a capacidade de produzir sentido. É a tensão entre o desejo e a sua interdição que funda o simbólico, sendo por amor ao objeto que a criança renuncia aos seus impulsos agressivos e sexuais imediatos. Bela, como contrapartida da fera, é o tempo do narcisismo, representado pelo isolamento num castelo onde todos os desejos se tornam realidade, onde não há falta, o que dá ensejo ao sentimento de ter um poder ilimi580 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 573-593, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 581 Rosane Muller Costa tado, corolário da onipotência de pensamentos. A ilusão de onipotência é necessária nos primórdios da existência, e o narcisismo daí advindo é narcisismo de vida. Uma tal ilusão acontecendo num momento evolutivo de total passividade, depende de uma mãe – metaforizada também por Bela – que ali está para atender incondicionalmente ao filho. Ela mantém a situação de isolamento, refletindo no seu rosto – esse espelho que só diz a verdade – os sentimentos e estados da criança, como sugere Winnicott (1975). A função da mãe para Bion (1988) depende da rêverie materna, que é a capacidade de captar os estados infantis com sua própria mente, significá-los e devolvê-los à criança num contexto atenuado onde ela parece dizer: “O que você tem é isso, mas esteja tranqüila”. Essa capacidade materna torna as experiências infantis dotadas de significado e, em conseqüência, toleráveis, constituindo uma comunicação extremamente poderosa, enquanto troca estabelecida muito antes que as palavras adquiram significado e sejam usadas como forma prioritária de expressão. A cria humana, entretanto, para desenvolver sua personalidade, precisa caminhar para além do narcisismo primário. Assim, o mundo onde tudo é concedido de imediato, num passe de mágica, torna-se monótono e vazio, e Bela passa a esperar – esse signo do desejo – os encontros com Fera. Chega um tempo em que self e objeto se separam. A mãe passa a existir para o bebê como um outro que se interpõe ao seu desejo, que frustra, não estando onde deveria, nem fazendo o que seria preciso, e por isso desperta a ira da criança. Em Sobre o Narcisismo: uma Introdução, Freud (1914) afirma existir uma relação inversa entre a libido, que é dirigida a si mesmo – libido narcísica – e a libido objetal ou a libido dirigida a outrem: “a libido objetal é uma antítese da libido narcísica”, o que quer dizer que, quando a primeira está em alta como na paixão, a libido narcísica está em baixa. Se a libido narcísica predomina, como na megalomania, é o investimento no mundo dos objetos e das coisas que fica deficitário. No conto, o principezinho recusa comida à mendiga, e esta põe Narciso diante de outro espelho, onde ele descobre sua imperfeição, sua feiúra: a MUDANÇA PSÍQUICA E CRESCIMENTO EMOCIONAL alteridade quebra a ilusão de onipotência, interrogando o sujeito, e ele se dá conta da falta. Isso que falta toma a forma de ser o reconhecimento, a aprovação ou o amor do outro, o qual passa a ser aspirado com fervor como modo de recuperar o narcisismo perdido. Em estreita relação com esse aspecto, o indivíduo passa a desenvolver um modelo interno, como padrões de conduta e qualidades, ao qual busca se conformar. Esse modelo, uma mescla do narcisismo infantil perdido, dos ditames parentais e de seus representantes sociais, é a instância psíquica denominada ideal do ego, o qual determina que o amor-próprio seja pautado em qualidades que o indivíduo realisticamente possui e possam ser expressas em ações que acontecem no mundo compartilhado. Acentuando o aspecto em que o ideal do ego é imposto a partir de fora, no conto, a velha feiticeira decreta que o jovem permanecerá fera e, nesse caso, feio, até que alguém veja beleza nele. Essa passagem traduz a dependência que o amor a si tem do olhar do objeto e a idéia de que o narcisismo – no conto, a beleza – possa ser recuperado por esse olhar. O objeto amado, como Freud observou, é elevado às alturas da idealização, de maneira que a pessoa que ama é sempre humilde, e não ser correspondido em seu amor provoca grande sofrimento. Já a ameaça de perder o amor do objeto é fonte, por excelência, da experiência de angústia (FREUD, 1926). O fato é que os investimentos objetais são sempre um risco para o sujeito, pois “o estar apaixonado consiste num fluir da libido do ego em direção ao objeto”, uma espécie de hemorragia. Ao investir os objetos, coisas e pessoas do mundo, o ego torna-se empobrecido em benefício desses investimentos e se enriquece mais uma vez a partir da satisfação que obtém de volta. O movimento incessante das relações com os objetos afeta muito particularmente a vida psíquica, tendo repercussões em campos em que sua influência não é evidente. O vislumbre da importância do objeto para o sujeito pode remeter determinado tipo de pessoa a sentimentos dolorosos de humilhação, e com isso impedir a libido de investir as representações dos objetos, paralisando trocas potencialmente significativas com o mundo. Essa condição, quando 582 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 573-593, 2005 Algumas Considerações sobre o Objeto do Desejo Nasio (1997) tem idéias interessantes sobre o que em psicanálise se denomina desejo. Diz ele que o desejo pode ser compreendido como o estado de tensão próprio do funcionamento do aparelho psíquico, que se expressa para o sujeito como um estado de insatisfação perene. Essa insatisfação é associada ao objeto, pois a sua existência determina, por natureza, um estado de carência no sujeito, daí por que ele é motivo de queixas e acusações, ao mesmo tempo que é visualizado como tendo o poder de nos satisfazer e finalmente nos conduzir ao prazer absoluto que acreditamos existir. Ele é, portanto, aquele que garante uma insatisfação necessária para viver. Nas palavras de Barthes (1991) “se queres saber onde se encontra o teu desejo, basta proibi-lo um pouco”. O objeto de amor dá um estatuto ao desejo, resultando ser um elemento organizador do mundo mental. O seu papel no seio do inconsciente é ocupar “o buraco de (uma) insatisfação interior, como se a carência fosse Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 583 Rosane Muller Costa tornada crônica, revela o estado de adoecimento e tem relação com o sentimento de isolamento presente nos mais diversos tipos de patologia. A fera sozinha no seu castelo é a pessoa que sofre pela impossibilidade de se relacionar. Ainda no texto Sobre o Narcisismo, Freud (1914, p.118) faz uma diferenciação entre a escolha de objeto narcísica, quando amamos uma representação de nós mesmos reencontrada no objeto, e o tipo anaclítico (ou de ligação) de escolha objetal, onde “o estar apaixonado ocorre em virtude da realização das condições infantis para amar”. Assim, amamos pessoas que satisfazem nossa necessidade de proteção e cuidados e, com isso, reproduzimos nossa ligação com os objetos primários. Pensamos, contudo, que essa diferenciação é arbitrária, pois o objeto eleito contém tanto aspectos do sujeito quanto dos primeiros objetos de amor. A questão que surge a essa altura é sobre a especificidade da pessoa que escolhemos como objeto de amor, a pessoa a quem destinamos a importante missão de dizer a palavra que nos transformará. MUDANÇA PSÍQUICA E CRESCIMENTO EMOCIONAL finalmente um lugar vacante, sucessivamente ocupado pelos raros seres e coisas exteriores que consideramos insubstituíveis e cujo luto deveríamos realizar caso desaparecessem” (NASIO, 1997, p.36). O desejo que se define em relação à falta pode ser assim formulado: desejo é “desejo do desejo do outro”. Isso quer dizer: desejo de ser amado, situação expressa no pedido que Fera, noite após noite, faz a Bela. O amor leva à presença em fantasia do(da) amado(a) no inconsciente. Amamos sempre um ser que é constituído pela pessoa real e viva do outro e pela sua presença fantasiada e inconsciente em nós mesmos. Das duas presenças, a real e a fantasiada, a segunda é mais importante como organizadora do mundo mental, se bem que é a existência viva do objeto que sustenta a fantasia inconsciente, que não se mantém quando este desaparece além de um certo tempo. É difícil distinguir que força é essa emanada do corpo e do inconsciente daquele que elegemos como objeto de amor e que o torna único, diferente. A percepção dessa diferença é o primeiro sinal manifesto de uma relação objetal em curso e pode ser observado já aos 8 meses de idade, na reação de angústia da criança diante de pessoas estranhas (SPITZ, 1987), angústia sempre associada ao medo de perder ou de ter perdido o objeto. Existe algo, definitivamente, inconsciente que permeia nossa ligação com este e que leva a marca do constitutivo. A Perspectiva de Ferenczi As colocações de Nasio sobre a existência inconsciente do objeto no nosso mundo mental encontram ressonância no pensamento pioneiro de Ferenczi (1991, p.182), fecundo em reflexões sobre esse tema. Para ele, a noção de investimento no objeto corresponde à idéia de introjeção, pois “amar a outrem equivale a integrar esse outrem no seu próprio ego. [...] É essa união entre os objetos amados e nós mesmos, essa fusão desses objetos com o nosso ego, que designamos por introjeção e – repito-o – acho que o mecanismo dinâmico de todo amor objetal e de toda transferência para um objeto é uma extensão do ego, uma introjeção” . Dessa maneira, todo 584 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 573-593, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 585 Rosane Muller Costa investimento objetal é de natureza narcísica, sendo o objeto incluído no eu a partir do deslocamento para ele de sensações, sentimentos e afetos do próprio sujeito. É sempre de acordo com uma lógica afetiva que a relação do sujeito com o objeto é construída e mantida. Na concepção de Ferenczi, conforme a revisão efetuada por Mezan (2002), o movimento de inclusão dos objetos no eu acontece mediado pela sexualidade, a partir da ampliação dos interesses auto-eróticos do sujeito para incluir o mundo exterior, ocorrendo uma “objetalização do auto-erotismo primitivo”. Esse pensamento está de acordo com a teoria das pulsões expressa por Freud no texto de 1914 sobre o narcisismo, citada há pouco. Podemos deduzir também que a transferência erótica, freqüente nos processos analíticos, não faz mais do que reproduzir o percurso pelo qual o eu investe o mundo dos objetos, isto é, a sexualização da relação com o analista é parte natural do processo de investimento no mundo. Ferenczi sustenta o argumento de que o estado inicial de indiferenciação é modificado muito lentamente, contando para isso o desprazer decorrente da percepção de que não basta a onipotência de pensamento para satisfazer as necessidades e desejos, ou seja, a frustração é o móvel por excelência da constituição do psiquismo, e o trajeto em direção à tolerância da realidade deixa marcas profundas na vida mental. Numa etapa precoce da existência mediante o choro, a criança traz o adulto para perto, e este elimina a sensação de desconforto. Nesse momento, os movimentos do seu corpo parecem ter produzido a satisfação, por isso são vivenciados como “gestos mágicos”. As sensações agradáveis proporcionadas pelos cuidados maternos vão sendo introjetadas e constituem as etapas iniciais da introjeção do objeto. O movimento de cisão que vai fazer surgir um eu e um mundo externo acontece mediado pela frustração mais prolongada. Nesse momento, a criança vê-se forçada a representar o exterior e o faz com as qualidades descobertas em si mesma; essa é a fase “animista”, em que as coisas parecem dotadas de vontade, vida e poder. Ferenczi acredita que, nesse estágio, a criança encontra seus órgãos e o funcionamento destes no mundo externo. Do auto-erotismo de onde par- MUDANÇA PSÍQUICA E CRESCIMENTO EMOCIONAL te, só se interessa pelo seu corpo e pela satisfação que pode obter do funcionamento pulsional relacionado às atividades de excreção, sucção, alimentação, toque dos genitais. Com efeito, o que a atrai no mundo são as coisas que a fazem lembrar de suas experiências com esse corpo. Resulta que relações profundas se estabelecem entre o corpo humano e o mundo dos objetos, relações que têm a qualidade de ser simbólicas. O símbolo, portanto, aparece na etapa animista e como conseqüência do processo de introjeção dos objetos. Com a formação do símbolo, a criança é introduzida numa nova modalidade de existência. Seguindo-se aos “gestos mágicos”, à medida que a criança adquire os rudimentos da linguagem, vem a etapa das “palavras e pensamentos mágicos”. Nesse período, a linguagem assume uma função evocativa, sendo esta a essência da magia: “fazer ser o que não é por meio da palavra”. Essa função da linguagem está presente na sessão analítica, onde a palavra mais parece evocar do que denominar as coisas. Esse enfoque torna a transferência diferente de um deslocamento de afetos e a concebe como uma atividade produtiva, na qual a linguagem transforma o analista nisso ou naquilo, segundo a fantasia predominante. Acrescentamos que a faculdade evocativa da palavra na análise é potencializada, haja vista um contexto onde os limites entre a fantasia e a realidade estão meio confusos, residindo nisso um dos móveis pelos quais as mudanças psíquicas se tornam efetivas para a dupla analítica. Essa abordagem do poder mutativo da análise a aproxima da hipnose e da sugestão, perigo já advertido por Freud, mas, muito além disso, tem algo de mais profundo nessa questão, pois a transferência, como Ferenczi observou, é um caso particular de introjeção, não só de projeção ou deslocamento, com o analista desempenhando um papel largamente inconsciente no mundo mental do analisando. Analisanda de Ferenczi, Melanie Klein absorveu muito de suas idéias, tendo construído um sistema teórico no qual centra suas concepções sobre a mudança psíquica na evolução da relação de objeto. 586 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 573-593, 2005 Klein assinala que a relação que a criança estabelece com um outro significativo e a fantasia inconsciente que perpassa essa relação constituem as unidades organizadoras da vida psíquica. Tais relações são iniciadas muito cedo pelos processos de projeção e introjeção ligados às emoções e angústias. Em virtude do estado de não-integração mental de onde começa, a criança vai se relacionar com partes do objeto, sendo seus impulsos e ansiedades cindidos e absolutos. A criança verá a mãe, ou mais precisamente o seio materno, como um objeto inteiramente mau e perseguidor, se estiver imersa em raiva e frustração e, ao contrário, a sentirá como um objeto extremamente bom, caso seu humor seja de contentamento. Não existe ausência ou terceiros, além da díade mãe-criança nesse primeiro vínculo. A relação diádica original caracteriza-se por uma ligação em que o objeto é visado apenas como possibilidade de satisfazer necessidades e desejos. Esse é o chamado objeto parcial, alvo das identificações-projetivas do sujeito. Tal como esclarece Joseph (1992, p.174): “Nas suas formas iniciais, a identificação-projetiva não tem consideração pelo objeto e, na verdade, freqüentemente ela é anticonsideração, quando se destina a dominar, independentemente do custo para o objeto”. Voltando ao conto, Fera torna o pai e depois Bela cativos da sua vontade. Bela pode compartilhar do seu poder desde que submeta sua liberdade a ele. Comentando esse aspecto das relações objetais na posição esquizoparanóide – a tirania –, Kristeva (2002) a encontra como parte da relação com o objeto idealizado. Assinala que a idealização depende mais da angústia persecutória do que da capacidade de amar e decorre de uma fantasia inata referente à existência de um objeto cuja bondade seria total e ilimitada, um objeto que tudo satisfaria. Esse objeto, o seio idealizado, é fundamental como esteio do crescimento mental, pois sem ele a criança ficaria entregue ao inferno do ódio e da perseguição. Se por um lado, entretanto, ele mitiga as angústias persecutórias, por outro ele é, igualmente, um objeto perseguidor, pois, sendo a criança imperativa nesse momento, seu objeto Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 587 Rosane Muller Costa A Perspectiva de Melanie Klein MUDANÇA PSÍQUICA E CRESCIMENTO EMOCIONAL idealizado também refletirá esse aspecto de si mesma, o controle e a dominação. Klein, citada por Kristeva, 2002, p.123 diz que “o seio ideal é o complemento do seio devorador”; “as crianças dotadas de uma forte capacidade de amor”, no entanto, sentem menos a necessidade de uma idealização excessiva, a qual “indica que a perseguição constitui a principal força pulsional”. Indagamo-nos até que ponto a circunstância em que o estado amoroso é visado com a força de uma compulsão não estaria melhor revelando uma organização mental dominada pela hostilidade e pela perseguição mais do que uma psicologia verdadeiramente amorosa, já que este, o estado amoroso, pode amenizar os males da alma ao menos por certo tempo. A crescente integração do psiquismo na criança com o crescimento vai capacitando-a a perceber que o objeto que frustra e o que satisfaz são uma só e mesma pessoa. Assim ela chega a compreender que o seu objeto de amor é também objeto de ódio. O passo seguinte no desenvolvimento consiste na instalação da posição depressiva e depende da possibilidade do amor que o sujeito sente pelo objeto sobreviver ao seu ódio, passo que só poderá ser dado se a criança for capaz de tolerar frustração. Se isso acontecer, um objeto interno bom poderá ser estabelecido, emanando dele o sentimento de segurança interior e o gosto pela vida. Resulta dessa mudança uma nova maneira de ser e relacionar-se com o mundo e com as pessoas, a ampliação para relações triangulares e a emergência da constelação edípica. A Fera, que tiranizou o pai por haver se sentido atacado no episódio da rosa, com as conversas que tem com Bela e com o tempo, modifica-se ao ponto de expressar consideração, permitindo que a jovem se afaste para visitar o pai, mesmo arriscando-se a perdê-la. Depois, quando acredita que ela não vai voltar, Fera, contradizendo a postura violenta e ameaçadora do princípio da narração, fica muito triste, pensa que a perdeu definitivamente e com isso perde a motivação para viver. Os impulsos agressivos dirigidos ao objeto de amor dão origem a sentimentos de culpa, os quais são a base do medo de perder a pessoa amada, mas também dos sentimentos de consideração por esta. A partir daí, a cons588 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 573-593, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 589 Rosane Muller Costa ciência da separação entre o self e o objeto é firmemente estabelecida, e o sujeito torna-se capaz de enfrentar o doloroso fato de que o objeto mantém relações com outros objetos das quais ele está excluído. O medo de perder o amor intensifica-o, mas também faz com que o sujeito se afaste até certo ponto da pessoa amada, uma fuga parcial, já que ele tentará reencontrá-la em cada nova pessoa, projeto ou atividade que realizar. Uma tal disposição torna possível o alargamento do espaço psíquico, a simbolização dos conflitos e a mitigação das angústias. A teoria de Klein (1937, p.347) sobre o simbolismo diz que “a criança introjeta e simboliza o corpo da mãe e essa mãe internalizada é deslocada para o mundo externo [...] Através de um processo gradual, tudo aquilo que parece emanar bondade e beleza e que provoca prazer e satisfação num sentido físico ou mais amplo pode tomar o lugar desse seio generoso ou da mãe total na mente inconsciente”. Isso faz com que todo objeto de amor do presente ocupe na mente inconsciente o lugar do primeiro objeto, sendo com ele resgatada a relação dual de colorido esquizo-paranóide. Se para Ferenczi a criança redescobre o seu corpo no mundo externo que passa a representá-lo, para Klein é o objeto que é buscado e reencontrado por meio do símbolo e um registro primitivo de prazer é atualizado sempre que uma nova relação é capaz de evocar a primeira. O modelo de relação triangular, próprio da posição depressiva, só se sustenta sob essa fundação, a capacidade da mente para cindir, excluir terceiros e fusionar-se de maneira a que na Bela possa haver algo de Fera e vice-versa. A relação da criança com as pessoas da sua infância interfere na escolha objetal da vida adulta, já o disse Klein. O objeto eleito retira sua força de atração de impressões arcaicas, tendo sido o desejo articulado num tempo muito antigo. Apesar disso, os novos relacionamentos não são meras repetições, contêm elementos das circunstâncias atuais e da personalidade das pessoas em questão. É assim ainda no caso da transferência (KLEIN, 1952), em que está em pauta a projeção na pessoa do analista de sentimentos, objetos internalizados e situações vivenciadas. A transferência, mesmo atravessada por fantasias, contém elementos da experiência real com o MUDANÇA PSÍQUICA E CRESCIMENTO EMOCIONAL analista, uma vez que o desejo é despertado e mantido pela narração em processo da dupla e não por algo, unicamente, pré-concebido. Essa talvez seja a magia da linguagem de que as teorias suspeitem, havendo algo de indizível na comunicação de dois sujeitos, algo na linha do sexual que perpassa sempre que dois se põem a falar. O casamento de Bela e Fera, a própria transformação, expressa a tendência à integração do psiquismo para onde caminha o crescimento mental e emocional, se as pulsões de vida vencerem as pulsões de morte, se houver uma conciliação entre o amor e o ódio; as partes boas e más do self; o id, o ego e o superego. Poder-se-ia pensar que uma pessoa que atingisse esse ponto viveria, definitivamente, com amor e alegria, mas não é assim. Há um trabalho psíquico eternamente em curso, porque a realidade, mais cedo ou mais tarde, vai impor-se ao desejo, havendo sempre o recurso da regressão às cisões até que o perseguidor e o ideal possam ser novamente conciliados para formar o bom. Nisso, a sombra do objeto pode ser edificante a partir de uma construção, onde contam tanto as potencialidades do sujeito quanto as do objeto. Resumo Têm sido objeto da investigação dos grandes pensadores da psicanálise os processos pelos quais mudanças mais duradouras acontecem no aparelho psíquico, tanto pelos seus desdobramentos clínicos quanto teóricos, na elaboração do ponto de vista genético da metapsicologia. Nesse campo, o movimento psicanalítico da segunda metade do século XX em diante tem destacado a participação fundamental do objeto, atentando para a importância das relações humanas de grande significação emocional no contexto das quais o poder transformador da palavra pode se revelar e o sujeito ser inserido no universo de intercâmbios simbólicos. No presente estudo, o conto de fadas A Bela e a Fera é usado como analogia ao processo de mudança psíquica e crescimento emocional, relacionando-se a tipificação das personagens e sua evolução dentro do conto aos processos de transformação do humano, seja por intermédio das relações no início da vida, seja das relações amorosas ou como resultado da psicanálise. As reflexões e análises efetuadas basearam-se, sobretudo, nos textos de Freud, Ferenczi e Klein. 590 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 573-593, 2005 Desenvolvimento Emocional. Narcisismo. Relações Objetais. Psicanálise Aplicada. Simbolização. Abstract Psychic Change and Emotional Growth It has been the object of investigation of the great thinkers of psychoanalysis, the processes through which more durable changes occur in the psychic apparratus, due to their clinical, as well as their theoretical unfoldments in the elaboration of the genetic point of view of metapsychology. In this field the psychoanalytic movement of the second half of the twentieth century onwards has pointed out the fundamental participation of the object paying attention to the importance of human relationships of great emotional significance in the context of which the transforming power of the word can reveal itself and the subject can be inserted in the universe of symbolic exchanges. In the present study the fairy tale Beauty and the Beast is used as an analogy to the process of psychic change and emotional growth, relating itself to the typification of the characters and its evolution within the tale towards the processes of transformation of the human being, through the relationships at the beginning of life, or through the loving relationships or as a result of psychoanalysis. The reflections and analyses made were based, above all, on the texts of Freud, Ferenczi and Klein. Key-words Emotional Growth. Narcisismus. Object Relations. Applied Psychoanalysis. Simbolization. Resumen Cambio Psíquico y Crecimiento Emocional Ha sido objeto de la investigación de los grandes pensadores del psicoanálisis los procesos por los cuales cambios más duraderos ocurren en el aparato psíquico, tanto por sus consecuencias clínicas como teóricas, en la elaboración del punto de vista genético de la metapsicología. En ese campo, el movimiento psicoanalítico de la segunda mitad del siglo XX en adelante ha destacado la participación fundamental del objeto atentando para la importancia de las relaciones humanas de gran significado emocional en el contexto de las cuales el poder transformador de la palabra puede revelarse y el sujeto ser insertado en el univerSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 591 Rosane Muller Costa Palavras-chave MUDANÇA PSÍQUICA E CRESCIMENTO EMOCIONAL so de intercambios simbólicos. En el presente estudio, el cuento de hadas La Bella y la Bestia se usa como analogía la proceso de cambio psíquico y crecimiento emocional, relacionándose la tipificación de los personajes y su evolución dentro del cuento a los procesos de transformación del humano, sea por intermedio de las relaciones al inicio de la via, sea de la relaciones amorosas o como resultado del psicoanálisis. Las reflexiones y análisis efectuados se basaron, sobre todo, en los textos de Freud, Ferenczi y Klein. Palabras-llave Desarrollo Emocional. Narcisismo. Relaciones Objetales. Psicoanálisis Aplicada. Simbolización. Referências BARTHES, R. Fragmentos de um Discurso Amoroso. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991. BION, W.R. Estudos Psicanalíticos Revisados. Rio de Janeiro: Imago, 1988. BETTELHEIM, B. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. BLEICHMAR, S. Nas Origens do Sujeito Psíquico: do mito à história. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. FERENCZI, S. O conceito de introjeção. In: ______. Obras Completas: psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1991. v. 1. FREUD, S. (1905a). Tratamento psíquico (ou mental). In: ______. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. ______. (1905b). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: ______. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. ______. (1907). Delírios e sonhos na Gradiva de Jansen. In: ______. 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O paciente considerado atípico é, também, denominado paciente de difícil manejo clínico ou paciente borderline. Essas são designações imprecisas, indefinidas e sem uma conceituação científica definida. Isso ocorre porque esse paciente apresenta uma sintomatologia diversa e antagônica, por vezes acompanhada de sintomas psicóticos, quando então podem receber o diagnóstico de Esquizofrenia (EF) ou de Transtorno do Humor Bipolar (THB), estas psicoses não orgânicas. Para complicar, os estudos desenvolvidos a partir de 1980 sobre o Transtorno de Estresse Pós-Trau- Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 595 Sebastião Abrão Salim O Trauma, a Psicose e o Transtorno de Estresse PósTraumático O TRAUMA, A PSICOSE E O TRANSTORNO DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO mático (TEPT) vêm mostrando a existência nesta entidade clínica de sintomatologia semelhante que pode vir acompanhada de sintomas psicóticos. Esse fato tem um entendimento difícil, mas requer um exame pela presença desse paciente na clínica psicanalítica atual. Esse paciente atípico apresenta resposta terapêutica pouco satisfatória, do ponto de vista psicológico e farmacológico, como é de se esperar, devido ao desconhecimento da etiologia dessas manifestações indefinidas pelos psiquiatras e psicanalistas. As ciências afins procuram por um marcador biológico, seja um substrato químico, uma área específica do cérebro ou uma alteração genética para estabelecer de modo mais científico a etiologia, o diagnóstico e o tratamento do mesmo. Mesmo entre as psicoses tem sido destacada a dificuldade para se fazer o diagnóstico diferencial entre elas. Shirakawa (2004) cita o trabalho feito por Cooper, em 1970, nesse sentido. O autor “compara protocolos de diagnósticos de Esquizofrenia nos Estados Unidos e na Inglaterra. Verifica que, nos Estados Unidos, havia uma tendência maior em descrever a Esquizofrenia e, na Inglaterra, o Transtorno do Humor Bipolar. Então, comparando os protocolos de pacientes diagnosticados em Londres e Nova York, Cooper troca os protocolos e verifica que aqueles que em Londres eram diagnosticados como maníaco-depressivos, quando vistos pelos psiquiatras americanos transformavam-se em pacientes esquizofrênicos, e vice-versa”. Shirakawa complementa: Esse trabalho de Cooper levou a comunidade psiquiátrica a rever os diagnósticos existentes em Psiquiatria, isto é, que haveria necessidade de uma linguagem internacional e que houvesse um consenso a respeito do diagnóstico”. Conclui que essas dificuldades de diagnóstico passam “pela dificuldade de encontrar um marcador biológico que identifique o transtorno como tal. 596 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 595-624, 2005 É possível que existam várias formas intermediárias de psicose com sintomas de humor ou que os dois diagnósticos clássicos de Esquizofrenia e Transtorno de Humor Bipolar representem um espectro da mesma doença, ou um tipo de expressão fenotípica incompleta de uma única doença, sem necessariamente implicar resposta a tratamentos diferentes. Hoje, por exemplo, a importância do uso precoce e continuado de antipsicóticos é reforçada, independentemente do tipo de diagnóstico categórico da psicose (Esquizofrenia ou Transtorno do Humor Bipolar com sintomas psicóticos). Essa imprecisão diagnóstica referente às psicoses agrava-se, a meu ver, quando se considera o TEPT, que pode apresentar sintomas psicóticos (FIGUEIRA; MENDLOVICZ, 2003). Conforme Berlim et al. (2003): Uma vez diagnosticado o Transtorno do Estresse Pós-Traumático (TEPT), há necessidade de serem examinadas as comorbidades, já que ao menos um transtorno psiquiátrico foi encontrado em aproximadamente 80% dos indivíduos com TEPT [...] A prevalência ao longo da vida para transtornos comórbidos com o TEPT foi de aproximadamente 48% para a Depressão Maior. Este trabalho é produto do meu empenho em estudar essa complexa inter-relação, mediante uma articulação da Psicanálise com a Psiquiatria, a Neurociência e a Psicologia Experimental. Venho priorizando o estudo do trauma e estendendo-o ao TEPT, às psicoses e ao paciente atípico. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 597 Sebastião Abrão Salim Outros autores têm destacado essa mesma dificuldade diagnóstica. Daker (2004) escreve: “Não há qualquer dado consistente que nos leve a definir os limites precisos da Esquizofrenia, por exemplo, com os limites dos Transtornos de Humor, haja vista os transtornos esquizoafetivos (DAKER, 2004), bem como os limites de depressão na esquizofrenia (ALVARENGA; TEIXEIRA JÚNIOR, 2002)”. Segundo Martins et al. (2004): O TRAUMA, A PSICOSE E O TRANSTORNO DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO Formulei a partir, desses estudos, o conceito de Desconexão, que se tem mostrado útil na minha prática clínica para entender esse ‘paciente de muitas faces’. Sugiro e comento, ainda, a hipótese de que a variada e antagônica sintomatologia desse paciente tem sua etiologia relacionada ao trauma, ao retraimento autístico e ao estresse resultante. O TEPT O quadro clínico do TEPT foi descrito inicialmente por Freud (1919) com o nome de Neuroses Traumáticas e atualmente encontra-se definido no DSM-IV (APA, 1994), de forma mais precisa. Segundo este, o TEPT tem três dimensões de sintomas: 1 – o re-experimentar o evento traumático sob a forma de imagens e memórias intrusivas (flash-backs) ou de sonhos repetitivos; 2 – a evitação dos estímulos que podem conduzir à lembrança do trauma; 3 – a presença contínua de sintomas de hiperestimulação autonômica. Essa sintomatologia pode estar associada a sintomas depressivos, maníacos, fóbicos, psicossomáticos e psicóticos. Como veremos adiante, seguindo as contribuições de Tustin (1972, 1990), proponho que essa sintomatologia tem característica autística e deriva de uma matriz psíquica inicial, que Ogden (1989) denominou posição autista-contígua. A essa sintomatologia se associa uma outra, derivada de matrizes psíquicas posteriores, com predomínio dos sentimentos de culpa e de inferioridade decorrentes das cobranças que esse paciente e seus acompanhantes fazem pela insuficiência e incapacidade que apresentam para os atos da vida social, profissional, familiar e sexual. Recentemente, escrevi dois trabalhos (SALIM, 2004b, 2005) baseados em minha experiência clínica como psicanalista clínico, supervisor e psiquiatra. Tenho observado que esse paciente passa por diversos tratamentos psicológicos e por diversos tratamentos psiquiátricos, com mudança suces598 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 595-624, 2005 As neuroses traumáticas não são, em sua essência, a mesma coisa que as neuroses espontâneas que estamos acostumados a investigar e tratar pela análise; até agora, não conseguimos harmonizá-las com nosso ponto de vista, e espero, em alguma época, poder explicar-lhes a razão dessa limitação. Talvez, por essa insuficiência, tenha explicado os sintomas pós-traumáticos apresentados pelos soldados como benefícios secundários para escaparem do retorno aos campos de batalha. Ficou-nos devendo a explicação etiopatogênica, possivelmente porque estivesse voltado ao estudo da conciliação das suas teorias então emergentes, como a teoria do narcisismo e a reformulação da teoria dos instintos, com a técnica psicanalítica. Em 1938, escreveu: É possível que aquelas que são descritas como neuroses traumáticas (devidas a um susto excessivo ou graves choques somáticos, como desastres ferroviários, soterramentos, etc.) constituam exceção a isso; seus determinantes na infância até aqui fugiram à investigação. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 599 Sebastião Abrão Salim siva da medicação antipsicótica e até uso da eletroconvulsoterapia, que se mostram insuficientes para o seu controle físico e psíquico. O trauma na posição autista-contígua (OGDEN, 1989) do desenvolvimento psíquico seria o elemento etiológico básico e, devido a fatores ainda desconhecidos, seus portadores desenvolvem uma sintomatologia mais característica de EF ou de THB ou de TEPT, com sintomas psicóticos ou um quadro clínico indiferenciado com manifestações dessas três entidades. O Trauma Freud preocupou-se com o estudo do trauma em 1918 e 1919, época da realização do simpósio A Psicanálise das Neuroses de Guerra, relacionado à Primeira Guerra Mundial, que lhe trouxe e a seus contemporâneos sofrimentos múltiplos. Naquela época, Freud escreveu: O TRAUMA, A PSICOSE E O TRANSTORNO DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO Conclui-se que Freud não adentrou esse estudo. Os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, envolvendo o World Trade Center e o Pentágono, têm originado uma retomada dos estudos sobre o trauma, como se pode ver acompanhando as recentes publicações psiquiátricas americanas. Penso que ressaltar a importância de estudar o trauma em função das grandes catástrofes é uma visão reducionista de seu valor clínico, desde que um atropelamento leve ou uma violência sexual pode ter para suas vítimas dimensão caótica. O próprio Freud (1919) disse: “a neurose traumática não está relacionada somente à guerra”. Meus estudos, do ponto de vista psicanalítico, foram baseados em Winnicott (1962), Bick (1968), Tustin (1972, 1990) e Ogden (1989, 1994). No entanto, esses autores não consideraram o conceito de trauma como o faço neste trabalho. Segundo o DSM-IV (APA, 1994), um evento só é considerado traumático quando a vítima ou testemunha tem um sentimento consistente de morte. Também aqueles autores não levaram em conta a classificação do trauma de acordo com a natureza desse evento, isto é, se físico ou psíquico, sua relação com sua ocorrência em uma etapa inicial do desenvolvimento psíquico de traumas anteriores, sua etiopatogenia e a sistematização da sintomatologia resultante. Este trabalho apresenta-se singular nesse sentido. Os psiquiatras e os neurocientistas, por sua vez, têm se preocupado apenas com o diagnóstico clínico, a epidemiologia e as manifestações neurobiológicas ligadas ao trauma. Eles não têm comunicação com a Psicanálise, como nós não temos com eles. Perdem eles, nós e os pacientes. Há poucos anos alguns representantes dessas áreas comuns perceberam a importância desse estudo conjunto, e daí surgiu a Associação Internacional de Neurociência e Psicanálise, com encontros constantes e contribuições cientificas importantes, como aquelas apresentadas por ocasião do IV Congresso Internacional de Neuro-Psicanálise, em 2005. 600 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 595-624, 2005 Descrevi o conceito de Desconexão (SALIM, 2004b) como um movimento reflexo da vítima de um trauma físico ou psíquico em busca do estado autístico inicial, no qual há uma regularidade do ritmo das funções vitais que dá ao ser emergente a noção de estar existindo com os processos evolutivos e de adaptação acontecendo simultaneamente, tudo registrado pela memória procedural (KANDEL, 2003) incipiente. No dizer de Tustin (1972), é uma “procura pelo próprio corpo”, quando as condições do meio se tornam adversas em busca de preservação e serenidade. Ao recorrer à Desconexão, seu portador se modifica, por vezes, radicalmente, não se reconhecendo mais. Fica ausente de si mesmo. Metamorfoseia-se. Franz Kafka (1915) escreveu um fantasmagórico conto da literatura universal que denominou de A Metamorfose. Escrevi um ensaio literáriopsicanalítico sobre esse conto, tanto para entendê-lo como para ilustrar clinicamente esse meu conceito (SALIM, 2004a). É sintomático como Kafka descreve a metamorfose de Gregor Samsa em uma barata, um animal. O personagem central vive como um inseto, mas pensa como um ser humano, com funções cognitivas preservadas. Esse conto reproduz nossa condição de homem e animal. O portador de Desconexão está imerso em seu mundo animal primitivo. Passa parte do tempo deitado, imóvel, vivendo entre a vida e a semivida, à borda, somente com o mínimo necessário. Não deseja ser incomodado. Rilke (1922), em Elegias a Duíno, descreve com leveza e fidelidade o sentir do indivíduo nesse estado. Segue um trecho: Certamente é estranho não mais habitar a terra, não mais praticar costumes apenas apreendidos, não mais dar destino humano às rosas e a outras coisas promissoras; não mais ser aquilo que se era, entre mãos infindamente angustiadas, Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 601 Sebastião Abrão Salim O Conceito de Desconexão O TRAUMA, A PSICOSE E O TRANSTORNO DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO e esquecer, até, o próprio nome e largá-lo como um brinquedo quebrado. Estranho, não mais desejar os desejos. Estranho ver, flutuando no espaço, tudo que estava relacionado. E o estar-morto é penoso e pleno de tentativas para chegar a sentir, enfim, um pouco de eternidade. Essa preciosa descrição poética do viver autístico destaca o valor das artes e dos artistas, para expressar as formas mais excêntricas, esdrúxulas e sensíveis do experimento humano, quase todo ele originado da trama entre o Ser animal e o Ser homem, entre o mundo dos vivos e o mundo dos semivivos, entre o mundo orgânico e o mundo inorgânico, entre o mundo animado e o mundo inanimado e entre as estruturas neurais subcorticais e as corticais. Essa trama está no paciente à espera da nossa leitura afetiva. Não intelectual. Ele se sente desamparado, só, vazio, sem vida, sem massa, sem calor, sem cheiro, sem desejo e sem uma pele protetora. Subjuga-se à sonolência, à apatia, à fadiga, ao imobilismo. Torna-se insuficiente para falar, caminhar ou se sustentar em pé. Aterroriza-se ante o medo de se desfazer, que o leva a manter ativados os sistemas de alarme existentes em suas estruturas neurais (SIDARTA, 2003), relacionados ao risco da sobrevivência, como um sistema antivírus para o computador. Ao tentar sentir segurança e calma por meio da Desconexão, fica, paradoxalmente, mais próximo da morte. Em decorrência, mantém de forma dialética uma exaltação dos sentidos e do pensamento que impedem o sono tranqüilo e prolongado. O paciente relata a vontade de ficar só, quase todo o tempo deitado, sem, no entanto, conseguir dormir. Esse estado é alternado a momentos de sensação de morte iminente, de aflição, de dor no coração, de taquicardia e de sudorese. Torna-se vulnerável para tolerar estímulos sensoriais mais intensos, sejam eles térmicos, olfativos, visuais, gustativos, táteis e sinestésicos. Outro trauma de natureza física (maustratos, cirurgia, seqüestro e outros) ou psíquica (separação, perda, acusação 602 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 595-624, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 603 Sebastião Abrão Salim e outros) pode ser desastroso. Foi pior recorrer ao estado de retraimento autístico. A Desconexão psicológica descrita tem um correlato biológico que Panksepp (2005), importante neurofisiologista, chamou de Síndrome de Desconexão. Nesta há uma desvinculação da articulação entre as estruturas subcorticais e corticais com o lobo orbito-frontal. Para ele, essa Desconexão é responsável pela psicose. O estado de Desconexão é presidido pelo Sistema Nervoso Autônomo, e a sensação sensorial é o seu elemento mais importante. Além de fazê-lo sentir vivo, ainda lhe possibilita desenvolver a noção de lugar (onde está) e de como é (está sendo). A importância da sensação sensorial pode ser destacada em nossa vida diária pela procura das mesmas. Por exemplo, as pessoas se coçam, esfregam as mãos, apertam objetos duros nas mãos ou na boca (chaves, canetas, unhas), ficam enrolando os cabelos com as pontas dos dedos ou dedilham as contas de um terço. São atos repetitivos e praticados de forma sempre rítmica que lhes conferem um sentimento de inteireza e de coesão, contrários ao sentimento de estarem-se desfazendo. Não há participação do pensamento, isto é, “não são feitos de cabeça”. Buscam-se, também, sensações de natureza olfativa, auditiva, visual, gustativa ou sinestésica. O universo sensorial foi descrito por Tustin (1990) como o universo dos objetos autistas e das formas autistas. O trauma responsável pela Desconexão produz em sua vítima uma vivência consistente de morte. Dependendo da gravidade do perigo, das experiências anteriores e do desenvolvimento das estruturas neurais, apresenta movimentos de reação ou de imobilidade, como acontece nos animais. A angústia de morte resultante, se não finalizada, gera uma sintomatologia psicótica representada por sensações de decomposição física, de perda de fezes e de urina, de queda ininterrupta no espaço em busca de algo para agarrar-se sem o conseguir; verificam-se, também, sensações de perda ou de paralisação de membros, além da ocorrência de sintomas O TRAUMA, A PSICOSE E O TRANSTORNO DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO persecutórios. Estes últimos são por mim compreendidos de uma maneira diferente do referencial clássico, conforme mostrarei adiante. O conceito de Desconexão tem-me auxiliado no entendimento e tratamento psicanalítico desse mal compreendido paciente. O paciente nos procura para tratamento, devido ao sofrimento e à insuficiência para o exercício de suas atividades adultas. Sua vida profissional, social, familiar e sexual torna-se precária, porque fica entregue aos seus recursos biológicos e psicológicos do estado autístico, diante de um mundo externo, com demandas crescentes de atividades para sobreviver, somada às próprias cobranças superegóicas, sempre acentuadas nesse paciente que se sente culpado e inferior. Segundo Selye (1936), o pai dos estudos sobre estresse, esse esforço a mais e continuado gera um estado de desgaste, como acontece com um motor ajustado para uma tarefa que demande dele mais potência. Esse estresse exaure seu portador, que passa a desejar a própria morte. Essa é uma causa de suicídio, mais sob a forma de deixar-se morrer, porque talvez lhe falte forças para o ato final concreto. Estresse é um termo de múltiplos significados. Neste trabalho, porém, ele é empregado com essa referencia de Selye e envolve, como o trauma, uma proximidade com o sentimento de morte. O Retorno à Biologia Freud desejou a Psicanálise fundamentada na Biologia, mas se distanciou desta, e seus seguidores, com poucas exceções, se distanciaram mais ainda. A propósito, Andrade (2003) nos diz: “Após a morte de Freud, os conhecimentos psicológicos, considerados por ele como provisórios, foram assumidos como definitivos pela maioria de seus seguidores, de forma a apartá-los completamente das raízes biológicas”. Kandel (2003), representante da Neurobiologia, também pensa assim. Entre os psicanalistas há uma concordância de que as psicoses estão relacionadas a falhas no desenvolvimento psíquico inicial, ou seja, falhas 604 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 595-624, 2005 O dano causado ao ego pelas suas primeiras experiências nos parece desproporcionadamente grande; basta, porém, tomar como analogia a diferença existente nos resultados produzidos pela picada de uma agulha em uma massa de células durante o processo de divisão celular [...] e em um animal adulto plenamente desenvolvido a partir delas. Nenhum ser humano está isento de tais experiências traumáticas; nada escapa às manifestações que resultam delas. O registro psíquico do trauma precoce é ratificado por Wilheim (2004), uma estudiosa do psiquismo inicial. Diz ela: “Todas as experiências biológicas ocorridas com o ser, desde a formação de cada uma das células básicas componentes – espermatozóide e óvulo – até o momento do nascimento, ficam inscritas em uma matriz básica por meio de uma memória celular, proporcionando a matéria-prima para a produção das fantasias inconscientes. Assim, as fantasias são, de fato, memórias: correspondem às representações dos imprints de nossas impressões sensoriais iniciais, que ficam armazenadas como matéria-prima para a produção de pensamentos nos quais mais tarde irão se transformar, quando um aparelho mental suficientemente desenvolvido estará disponível”. Ogden (1989), no meu entendimento, contribuiu com este conhecimento, quando postulou a existência de uma posição autista-contígua no início do desenvolvimento psíquico, segundo ele, anterior à posição esquizoparanóide de Klein (1946) e do falso self de Winnicott (1962). Diz ele: Conservei a palavra autística para designar a mais primitiva organização psicológica [...] a palavra contígua é particularmente adequada favorecendo a nomeação dessa organização, uma vez que a experiência de haver superfícies que se tocam [...] provê a antítese necessária à conotação de isolamento e desconexão contida na palavra autística. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 605 Sebastião Abrão Salim no desenvolvimento do ego. Freud (1938) enfatizou a importância dessas falhas iniciais, embora não estivesse se referindo às psicoses especificamente nem ao trauma, como conceituado neste trabalho. Diz ele: O TRAUMA, A PSICOSE E O TRANSTORNO DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO Ogden acredita na existência de uma matriz psíquica com produção mental característica desse período do desenvolvimento, que vai do período fetal até logo após o nascimento, corroborando as afirmações de Tustin (1972) a respeito. Pela importância da fundamentação desse fato para a psicopatologia e para a clínica, isto é, uma matriz psíquica nesse período específico do desenvolvimento capaz de gerar elementos psíquicos, procurei fontes para confirmá-lo. Encontrei-as na Psicologia Experimental, com as experiências de Harlow (1958) com macacos recém nascidos e suas respostas ao trauma da separação de todos os outros macacos até dez dias após o nascimento. Esses macacos têm uma resposta de isolamento e retraimento, quando aos seis meses de idade são colocados de novo em seu ambiente inicial. Permanecem retraídos e isolados, não se misturando aos demais macacos. A mesma resposta não acontece com macacos que são isolados com mais de dez dias de vida pós-parto. Depois a confirmei com as experiências de Levine (1962) com ratos recém nascidos e com observações idênticas àquelas de Harlow. Com essas contribuições mostrando que existe uma diferença quando o trauma ocorre em períodos diferentes do desenvolvimento psíquico e biológico, associadas à minha experiência clínica atual, julgo procedente a proposição de Ogden da existência da matriz psíquica autista-contígua nesse período, responsável por uma sintomatologia específica, que denomino autística, quando ocorre um trauma. Pode-se conjeturar, assim, que um trauma nesse período tem efeitos psicopatogênicos diferentes e mais graves do que quando ocorre em época posterior, seguindo a observação clínica de que quanto mais precoce o dano mais grave é a doença. Tentei expor em outro trabalho (SALIM, 2004b) a relação da etiologia do TEPT com o trauma no período autístico. Talvez seja procedente estender às psicoses essa hipótese da relação do TEPT com esse trauma inicial, mais dentro de um enfoque biológico, e conjeturar que o desenvolvimento de uma psicose está relacionado à ocor606 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 595-624, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 607 Sebastião Abrão Salim rência de trauma naquele período. Desse modo, poderíamos substituir “falhas no desenvolvimento” por “traumas no desenvolvimento”, agravados por falhas ambientais após o nascimento. Corroboram essa hipótese os fatos apontados da dificuldade de diagnóstico diferencial entre essas três entidades com alguns pacientes, devido à diversidade e ao antagonismo da sintomatologia e ao habitual tratamento psicofarmacológico idêntico para essas entidades, quando o TEPT vem acompanhado de sintomas psicóticos – embora tratamento idêntico não signifique certeza de diagnóstico e etiologia. Uma dedução clínica relevante é de que se torna mais compreensível entender os sintomas psicóticos como expressões do estado de desamparo do seu portador em busca de proteção pela sua insuficiência para o viver, do que como produtos da matriz psíquica esquizoparanóide de gerar elementos psíquicos, principalmente os persecutórios. Essa proposição já foi exposta por mim (SALIM, 2002). Outra dedução, tema para outro trabalho, não menos importante, é a possibilidade de estabelecerem-se as bases psicobiológicas da atenção flutuante de Freud (1912) e a condição “sem memória e sem desejo” de Bion (1962). Basta considerarmos que os movimentos de taquipsiquismo e bradipsiquismo do portador do trauma podem contaminar de forma sensorial a escuta psicanalítica, impedindo as condições necessárias para obter o estado de mente para as escutas citadas. Para substanciar a hipótese deste trabalho – o trauma como elemento central na psicopatologia desse paciente – e ilustrar as considerações feitas sobre a sintomatologia e o diagnóstico, apresento o relato do tratamento de M., cujo diagnóstico inicial foi de EF ou THB, segundo parâmetros clássicos da Psiquiatria, e depois foi se caracterizando como TEPT acompanhado de sintomas psicóticos. Seu tratamento foi conduzido com alguns aportes iniciais do conceito de Desconexão. Finalizo com a revisão desse caso clínico à luz desse conceito, agora mais definido. O TRAUMA, A PSICOSE E O TRANSTORNO DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO Material Clínico M. era uma empresária voltada para si, pouco afetiva, empreendedora, inteligente, dotada de acentuada censura moral, econômica e desconfiada em relação a dinheiro. Deixou de confiar no banco, onde deixava o mínimo de dinheiro possível. Os primeiros sintomas de doença foram tremores dos dedos das mãos, espasmos ocasionais da musculatura estriada da face, quedas ao solo e sintomas de depressão sem antecedentes na história pessoal. Foi feito um diagnóstico inicial por um médico clínico de doença de Parkinson e recebeu medicação antidepressiva com resultado terapêutico insignificante e transitório. Como persistiram esses sintomas, foi encaminhada a um neurologista, e, na propedêutica realizada, foi descoberta a existência de hematoma extradural na região occipital como resultado dessas quedas no solo. Foi submetida à craniotomia para a retirada do mesmo. Dias depois, houve um agravamento de seus sintomas. Passou a dormir mal, conversar pouco, tornou-se repetitiva, sem apetite e mostrava-se ora prostrada, ora agitada. Distanciou-se afetivamente daqueles que a cercavam. Deixou de sair para passear, não conseguia mais assinar cheques, tinha dificuldade para evacuar e continuava sofrendo quedas sucessivas ao solo, embora mantivesse total consciência da ocorrência das mesmas. Levantava-se à noite, indo de quarto em quarto e voltando à cama. M. se tornara uma paciente de difícil manejo a tumultuar seu ambiente familiar. Fui solicitado a atendê-la, quando foi contada essa história clínica pelos familiares. Dirigi-me ao quarto de M. Encontrei-a semideitada. Recebeu-me com cortesia e acolhimento. Demonstrou que eu era aguardado. Logo, começou a contar a história da cirurgia em detalhes. Parecia assustada em relação à mesma e relatou-a duas vezes quase igualmente. Entendi essa repetição, pelos estudos iniciados, como remendo para acalmar-se, provavelmente porque tivera vivência de morte em decorrência dessa cirurgia. Esse en- 608 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 595-624, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 609 Sebastião Abrão Salim tendimento auxiliou-me a ter paciência e tolerância para continuar ouvindo. Prosseguiu falando da cirurgia e, em determinado momento, falou das quedas ao solo. Indagada, descreveu-as como perda momentânea da força muscular, semelhante a um desfalecimento com preservação da consciência. Esta, porém, não era suficiente para evitá-la. Faltava-lhe força física para se sustentar em pé. Logo voltou ao relato da cirurgia e prolongou-se até o fim do atendimento. Foi preciso interrompê-la com a promessa de que voltaria para continuarmos a conversa. Surpreendeu-me seu vigor físico para se levantar da cama, seu olhar fixo e contínuo voltado para mim e o convite para conhecer a casa. Chamou minha atenção essa súbita manifestação de intimidade e disposição física, a qual senti como incômoda em um primeiro momento, mas aceitei o convite. Depois, retornamos ao quarto e nos despedimos. Ao sair, seu marido me contou que M. andava esquisita. Dizia que via e ouvia soldados andando em volta da casa. Isso acontecia algumas vezes ao dia. Alterava sua vida diurna e noturna, com perturbações dos hábitos de higiene, de alimentação e de dormir. Perambulava inquieta pela casa, deitava-se tarde e acordava cedo. Alternava esse comportamento com outros de prostração. Não conseguia mais administrar a parte doméstica da casa, emagreceu pela dificuldade para alimentar-se e evacuar; era como se perdesse as forças física e psíquica. O mau funcionamento intestinal a incomodava. Obrigava-a ao uso de laxantes, utilizados sem resultado. Estava utilizando antidepressivo. Temia a possibilidade de M. não se recuperar. Julguei oportuna uma avaliação por um colega psiquiatra. Este concordou com meu diagnóstico entre a EF e o THB e sugeriu uma medicação (Olanzapina 10 mg ao dia). Diante da receptividade da paciente, iniciei a Psicoterapia Analítica com uma sessão por semana, pela dificuldade de atendê-la em sua casa. Combinei com M. meu retorno para a semana seguinte, no mesmo dia e no mesmo horário. Nessa época, estava convencido de que, mesmo de uma forma espaçada, esse paciente requer regularidade e constância de O TRAUMA, A PSICOSE E O TRANSTORNO DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO horário, de acordo com a constância do ritmo das funções vitais, garantindo-lhe uma previsibilidade sem a qual são incertas as melhoras, mesmo bem medicado. É como se o corpo registrasse essa regularidade, como se pensasse com o corpo, sem participação da racionalidade, independente do intervalo de tempo entre os encontros. Tudo isso aconteceu em uma quartafeira. Na segunda-feira seguinte, o marido fez contato por telefone. Disse que M. apresentara uma melhora significativa, mas estava preocupado com o diagnóstico de Parkinson. Disse-lhe que não havia atentado a esse detalhe e que, naquele momento, o mais importante era tratar do quadro psíquico. Ele concordou comigo. Ocorrência do Surto Psicótico Na terça-feira, por volta de vinte e uma horas, o marido voltou a telefonar à procura de orientação. M. estava agitada e havia dificuldade para contê-la. Queria medicá-la, mas ela dizia que só tomaria o remédio com o marido. No entanto, olhava-o e referia-se a ele, assim que saíra, como um homem estranho que havia entrado em seu quarto. Lá o homem permanecera, incomodando-a com sua presença, em busca de um contato sexual. M. exigia que chamassem a polícia para retirá-lo. O marido pedia orientação. Certamente, não era recomendável medida de força. Disse-lhe que, se não conseguisse medicá-la com o tranqüilizante, fizesse novo contato. Para mim, esse surto seria transitório diante das melhoras apresentadas, mas não o entendi de imediato. No dia seguinte, na quarta-feira, já em sua casa, seu marido me disse que conseguira dar a medicação e que M. acordara menos confusa e menos agitada. Agora dormia. Havia passado bem toda a semana, dormindo sem sobressaltos, com o quadro alucinatório dos soldados ocorrendo discreto pelas manhãs. Alimentava-se melhor, o funcionamento intestinal melhorara e já conseguia redigir e assinar cheques, embora com alguma dificulda- 610 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 595-624, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 611 Sebastião Abrão Salim de. Contou-me que, no dia anterior ao surto, M. levantara bem, sem apresentar sintomas delirantes. O marido desejava esclarecimentos sobre a ocorrência do surto. Na ausência de uma resposta adequada, respondi-lhe que, de alguma forma, estava relacionado às melhoras apresentadas. Para mim mesmo relacionei o surto à revitalização de M., agora mais fortalecida física e psiquicamente. Voltava ao mundo dos vivos, daqueles que podem ter desejos, em oposição ao mundo dos semivivos. O surto erótico deveria estar relacionado a mim por ter ocorrido à véspera de nosso encontro. Entendi que M. se sentia seduzida por mim, e isso podia ser considerado um sinal de melhora. Tal entendimento remeteu-me à lembrança do incômodo que senti ao final do primeiro atendimento. Considerei-o, então, um fato analítico. Tinha a ver com o surto. Eu estava me sentido seduzido por ela, também, devido ao modo jovial com que se levantou da cama, pelo seu olhar fixo e contínuo voltado para mim e ao convite para me mostrar a casa. Pude, então, sentir-me mais relaxado quando a encontrei no quarto, após a conversa com os familiares. M. acabara de acordar. Cumprimentoume de forma amistosa e pediu licença para ir ao banheiro. Quando voltou, desejou falar sobre o acontecimento recente. Contou, com absoluta certeza do que estava falando, da entrada do homem no quarto em busca de sexo, o qual se teria aproveitado da saída do marido, para ficar com a filha no hospital, naquela noite. O homem havia-se deitado a seu lado na cama. Por várias vezes, fez questão de mencionar que não houve consumação de qualquer contato físico. Estava aliviada, porque os familiares compreenderam o sucedido sem lhe fazer nenhuma reprovação. Esse relato foi longo e ouvido em silêncio, sem perguntas ou demonstração de qualquer discordância ou concordância em relação ao absurdo do mesmo. M. manifestava a existência de um vínculo erótico comigo, devido à admiração e à confiança em minha pessoa. Disse-lhe que a entendia e que não havia coisa alguma a temer, porque eu e seus familiares estávamos a seu lado. Ouviu-me calada, e nos despedimos em seguida. O TRAUMA, A PSICOSE E O TRANSTORNO DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO Interpretando o Delírio à Época À época do atendimento dessa paciente, orientava-me pelos conceitos clássicos da Psicanálise e da Psiquiatria sobre as psicoses. Foi com esse referencial clássico que me conduzi no primeiro momento. Interpretei a alucinação com os soldados como produto da rigidez de M., ditada por conceitos religiosos, morais e éticos característicos de sua personalidade autoritária e obsessiva compulsiva, além de suas identificações projetivas persecutórias. Assim, também entendia as desconfianças da paciente em relação ao dinheiro, o que colocava todos sob suspeita. Era produto de objetos internos sempre em prontidão para evitar a transgressão relacionada a impulsos incestuosos; era resultado da presença de um superego rígido que se instalara a partir de introjeções de objetos externos idênticos aos existentes ao longo de sua formação pessoal. O segundo delírio, o qual envolvia um intruso, representava o desejo de ter relações com ele naquela noite e, para tanto, M. imaginou que enviara o marido ao hospital a fim de auxiliar no tratamento da filha lá hospitalizada. Ocorreu-lhe, provavelmente, o desejo de manter um relacionamento sexual com o intruso. No entanto, reprimiu esse desejo e passou a ver o homem à sua frente como um ser indesejável, ficando inquieta e agressiva com sua presença e exigindo que os parentes o expulsassem. O surto resultaria da existência de desejos edipícos reprimidos, voltados a minha pessoa: era significativo o fato de o delírio ter ocorrido na noite anterior a minha ida para a sessão semanal. Associei essa possibilidade com o entendimento do incômodo sentido no final da primeira sessão, relacionado às tentativas de sedução de M. Tal associação tornou mais fácil chegar ao entendimento do delírio. A relação estava sendo presidida pelo terceiro sujeito analítico de Ogden (1996), no caso o sujeito sedutor, o pai edípico e a filha edípica. Não neguei que estava ocorrendo um envolvimento recíproco. Esses entendimentos facilitaram o contato com M. O mesmo não aconteceu a ela. Em função da rigidez moral e da exacerbação dos impulsos sexuais incestuosos reprimidos, M. fez o acting out. 612 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 595-624, 2005 Evolução Clínica Após dois meses de uso do antipsicótico, o mesmo foi suspenso, devido às apreciáveis melhoras da paciente, que se mantiveram por um ano. Passou a beijar os filhos na entrada e na saída de casa. Voltou a sair acompanhada do marido e a fazer caminhada com ele. Não mais caiu ao solo. Fez uma viagem de férias por dez dias. Sua vida retornava à regularidade. Como estabelecido, em uma quarta-feira, voltei à sua casa. Fui recebido com cordialidade. M. levou-me até a sala de visitas, ao contrário de antes, quando me recebia na ante-sala e onde nos sentávamos. Comentava, então, objetivamente, como vinha se sentindo; em geral, falava da sua saúde física e a sua trajetória profissional. Só uma vez mencionou um sonho, Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 613 Sebastião Abrão Salim Eu começava a desenvolver o conceito de Desconexão, baseado no estudo do trauma e no estado de desamparo da vítima. Sob a luz daqueles incipientes estudos, houve uma mudança importante na compreensão desses delírios no momento seguinte. Passei a interpretar o sentimento persecutório em relação aos soldados e ao estranho como uma necessidade de ser encontrada por eles que, paradoxalmente, a protegeriam do medo caótico de se desfazer. Esse medo era, literalmente, representado pelas consecutivas quedas ao solo em decorrência da falta de força física. Pude, então, deixar de ver a manifestação erótica como sexualidade perversa relacionada à repressão e talvez ao Édipo, para ser entendida como necessidade de M. me sentir como uma segunda pele (BICK, 1968), devido ao seu medo de se desfazer. Esse juízo me levou a compreender sua relação comigo como vital. Contudo, ainda não possuía a dimensão real da minha importância pessoal para ela, como se verá adiante. Tais entendimentos parciais foram importantes para o êxito da continuidade do tratamento pela tranqüilidade e espontaneidade que me propiciaram preservar a regularidade do setting, garantida pelo tom de voz, o olhar e o cumprimento de mãos, todos elementos sensoriais. O TRAUMA, A PSICOSE E O TRANSTORNO DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO sem valorizá-lo, e, algumas vezes, falou de si como pessoa, citando alguns dados familiares, embora soubesse estar em Psicoterapia. Naquele dia, começou a exibir vários livros de arte, presentes de amigos. Delongava-se no relato das histórias destas amizades. Próximo do final da sessão, convidou-me de forma pouco audível para tomar café com ela, e ela o repetiu de modo mais explícito. O inusitado do convite deixoume embaraçado. Pensei na neutralidade analítica e disse-lhe, atrapalhado, que o aceitaria na outra quarta-feira. Não me ocorreu, nem mesmo, uma só desculpa razoável. Não aceitar o convite foi desastroso. Na sexta-feira, à noite, dois dias depois, seu marido me telefonou para comunicar a mudança de M. Estava ora inquieta, ora prostrada e não dormia. Desejavam saber, apenas, sobre a medicação indicada para acalmá-la. Não queriam atrapalhar meu fim de semana. Ainda assim, disse-lhes que iria vê-la. Não concordaram, e, assim, foi recomendada uma medicação sedativa. Porém, a reação de preocupação permaneceu. Na segunda-feira, cedo, o marido solicitou a antecipação da sessão. Ao chegar, encontrei-a assentada, prostrada, cabisbaixa, quase imóvel. Com um olhar sem brilho, não conseguia levantar nem a cabeça para cumprimentar ou fazer uma saudação. Estava desfeita. Seu estado deixoume apreensivo. Havia ocorrido uma metamorfose. Relacionei essa piora a minha recusa ao seu convite para tomar café com ela. Senti-me mal por não tê-lo aceitado e não havê-la assistido, pessoalmente, na sexta-feira, no sábado ou no domingo. O estado físico de M. requeria cuidado e avaliação de alguma intercorrência clínica, pois ela era diabética. Concluí com os familiares a necessidade de ser avaliada por um clínico e por um neurologista. A piora deixou-me incomodado. M. sentira-se indesejada e desamparada após a recusa ao convite, sentindo-se não apreciada. Isso não correspondia à realidade, pois era grande meu zelo por ela. Depois, com a piora, fez-me sentir incompetente para tratá-la e a outros pacientes com os quais vinha obtendo êxitos que indicavam a procedência de meu novo 614 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 595-624, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 615 Sebastião Abrão Salim referencial e a senti-la como fraca por ter se desfeito. Estava, também, modificado. Fiquei subjugado por esse sujeito incompetente naquele momento crucial para ela, quando mais precisava da minha convicção de que poderia ajudá-la, mesmo com o clínico e o neurologista a ditarem seu tratamento. Continuei a vê-la, mas já não mais levava o setting analítico comigo. Já não mais sustentava minhas convicções anteriores. Enquanto hospitalizada, M. foi submetida a inúmeros exames radiológicos e laboratoriais invasivos. Dois dias depois, saiu do quadro de prostração e passou a apresentar agitação. Tornou-se agressiva com aqueles que queriam contê-la fisicamente para a realização de exames e para tomar a medicação prescrita. Foi preciso proceder à sedação com o auxílio do mesmo colega psiquiatra. Este lhe prescreveu Haldol 5 mg duas vezes ao dia e 25 mg de Amplictil ao deitar-se. Ainda assim, apresentou poucas melhoras. Os exames realizados não revelaram a existência de qualquer causa orgânica. M. retornou para casa, e o clínico e o neurologista afastaram-se. Voltei a pensar nos fatos analíticos: o fato de M. ter-me julgado distante e ter-me feito sentir que meu tratamento lhe era insuficiente. Foi incômodo me admitir o causador de sua transformação e a improcedência da avaliação de julgá-la fraca por ter-se desfeito. Voltei a pensar nos impulsos sexuais da paciente como uma segunda pele e sua relação com a delicada reação que tivera ao recusar seu convite. Pude considerar, então, minha recusa como traumática. Produziu-lhe uma ruptura do seu sentimento de continuidade, ruptura esta por onde vazou tudo que havíamos conseguido em termos de confiança e segurança. Desfez-se, como descreve Rosenfeld (1980), ao comparar esse quadro a uma hemorragia, um sangramento. Voltei a acreditar em meus estudos. Convenci-me de que M. apresentava um quadro de hiperestimulação (exaltação), alternado com hipoestimulação (imobilismo), sintomas antagônicos, sugerindo transtorno do humor bipolar acompanhado de sintomas esquizóides, mas que podiam ser oscilações antagônicas decorrentes do trauma. Passei o atendimento psicoterápico para duas sessões por semana. Ela O TRAUMA, A PSICOSE E O TRANSTORNO DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO melhorou e voltou a apresentar momentos de choro e afetividade com os filhos. Parecia se recuperar. Semanas depois, apresentou outro delírio. Insistia no desejo de voltar à casa antiga e precisou ser contida. O portão da casa teve de ser trancado com cadeado. Compreendi esse delírio como expressão do desejo de voltar a sentir tão confiante em mim como antes. Temi, então, pelo fato de M. haver perdido de vez sua confiança em mim. Esse delírio perdurou por algum tempo e desapareceu espontaneamente para dar lugar a uma outra manifestação clínica. Andava de modo diferente a cada dia. Curvava-se, rígida, para frente num dia; em outro, curvava-se para trás; em outro, para a direita; e, em outro, para a esquerda. Era muito estranho vê-la caminhar daquele modo sem poder aliviá-la. Procurei entendê-la, segundo Tustin (1990) e sua teoria dos objetos autistas. Essa rigidez muscular era um objeto autista. M. fazia do próprio corpo um instrumento gerador de sensações para sentir coesão. Era um arranjo dramático para se sentir viva. Intensifiquei minha atenção para com M. Acompanhava-a para o café e para ouvir música clássica que outrora apreciara. Notei poucos progressos. Certo dia, M. recebeu a visita de um sobrinho médico que lhe fez nova prescrição de remédios. A partir do dia seguinte, inexplicavelmente, começou a melhorar e me vi afastado dela. Esse fato atestava a importância para o tratamento de M. do elemento afetivo. Um mês depois, seu marido me telefonou para avisar que M. falecera de forma tranqüila, quando se sentava para tomar o café da manhã. Certamente seu sobrinho médico a desapontou em algum momento. Revisitando M. segundo o Conceito de Desconexão Seguem alguns comentários sobre o caso clínico em questão, à luz do conceito de Desconexão, agora mais definido. A aposentadoria precoce de M. lhe foi traumática. Seu trabalho profis616 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 595-624, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 617 Sebastião Abrão Salim sional bem-sucedido e ininterrupto funcionava como seu olhar fixo e contínuo. O olhar era uma emenda para manter seu sentimento de coesão física e psíquica. Constituía uma segunda pele, assim como os seguidos êxitos profissionais. É como a dedicação desmesurada à ginástica em busca do fortalecimento da musculatura estriada. No caso de M., pode ser aqui citada a manutenção criteriosa e extremada da escrita financeira, um outro remendo protetor. Outro trauma foi a craniotomia, à qual a paciente se referiu em detalhes na data do primeiro atendimento. A cirurgia, provavelmente, a levou ao quadro psicótico persecutório com os soldados. Sobre este mantenho o mesmo entendimento da época. M. procurava serenar-se das angústias catastróficas de desfazer-se, embora isso pareça paradoxal. A história de traumas precoces ou anteriores normalmente não é detectada pela narrativa do próprio paciente, que se esquiva da sua lembrança ou de qualquer indicativo que possa levar a ela. Há um movimento de esquiva em relação à lembrança do trauma. Em oposição a esse movimento, há um outro oposto caracterizado pela presença de imagens e lembranças sob a forma de flash-backs que ocorrem independente da vontade consciente do portador do trauma de esquecê-las. Aqui se repete o que acontece em relação ao antagonismo da sintomatologia. Existe, ainda, o recurso dos sonhos para se chegar a esses traumas, pela relação desses com a memória procedural. Os sonhos tornam-se repetitivos e continuam até a idade adulta ou senil. No entanto, o meio mais importante é a presença da sintomatologia autística, como já citado. Por ela, podemos afirmar que houve um trauma precoce, embora não possamos reconhecer qual foi e o que determina o modo de ser do seu portador por toda a vida. Uma tendência para o imobilismo e a lentidão, observada desde a infância até a vida senil, pode indicar que houve um traumatismo significativo do parto ou no período fetal. O TRAUMA, A PSICOSE E O TRANSTORNO DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO Nesse sentido, considero muito útil para a prática clínica o conhecimento da psicopatologia autística. Do ponto de vista terapêutico, é importante considerar o corpo do analista tendo cor, cheiro, forma, acrescido de outros elementos sensoriais, tais como o timbre da voz, a tensão do aperto de mãos, o modo de andar e olhar, a indumentária e outros, que funcionam como uma sutura para uma ferida sangrando. É freqüente o paciente explicitar preocupação com a saúde física do analista, em especial o paciente grave. Sempre chega à sessão perguntando como estamos. Qualquer fragilidade física nossa é motivo de medo para ele, como se fôssemos um esparadrapo fraco no qual não pode confiar para auxiliá-lo, de forma incondicional e constante, no tratamento de suas feridas. Esse fato não é fortuito. O remendo tem uma natureza psíquica e física, como já expus (SALIM, 2002). Esse tem inúmeros elementos sensoriais e elementos cognitivos. Ogden (1994) propõe a hipótese de que, na ausência da mãe, o recémnascido volta-se para o próprio corpo, para a regularidade do ritmo das funções vitais. Isso é o mesmo que dizer que seu corpo se torna sua mãe e que necessita de ambos, de seu corpo e de sua mãe, como um Band-aid, enquanto está nessa etapa inicial do desenvolvimento. Depois a mãe vai ter outro papel de grande importância para o desenvolvimento pleno dos processos cognitivos e de maturação do recém-nascido. M. respondeu nesses termos à minha recusa. Decompôs-se na ausência da colagem executada pelos movimentos da sexualidade. Melhor teria sido aceitar o convite. Para além do manto do impulso sexual de natureza edípica ou não, está o impulso voltado para a sua preservação, como observamos em presos e animais confinados que desenvolvem vários tipos de perversões sexuais quando têm a sobrevivência ameaçada. Se o paciente mantém conosco, seu psicanalista, um vínculo tido como simbiótico ou erótico, por muitos considerados indesejáveis, é preci618 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 595-624, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 619 Sebastião Abrão Salim so responder a eles com empatia, sem ficar dominado pelo medo de transgressão às regras da técnica. A relação não pode ser presidida pelo desamparo e pelo medo. Esse paciente necessita de nossa presença física concreta de forma saudável para obter a segurança, através dos estímulos sensoriais, de estar existindo. Aceitar o convite de M. para o café não caracterizaria transgressão técnica. Quanto mais grave o paciente, maior tem de ser nossa disponibilidade para a empatia e até mesmo para o contato físico pela sua demanda de uma segunda pele. Considero M. portadora de TEPT com sintomas psicóticos. O desconhecimento da sua etiologia e do seu diagnóstico favorece o caráter precário dos tratamentos clínicos existentes e a evolução crônica do mesmo, assim como das psicoses mencionadas. Os psicanalistas estão mais aptos para valorizar a sensação de desamparo diante da angústia de morte física e da loucura em decorrência do trauma e para manter a regularidade do setting terapêutico, elemento necessário para restabelecer o sentimento de segurança. Isso se torna possível pela sua consciência da existência dos fenômenos de transferência, contratransferência, da intersubjetividade e da empatia. Diante do exposto, considero pertinente prosseguir estudando a hipótese desenvolvida neste trabalho. A clínica psicanalítica atual apresenta um número crescente desses pacientes, devido às mudanças sociais, culturais e econômicas de nossos dias, que elevam o índice da ocorrência da violência física e psíquica. Para finalizar, algumas indagações: A – Considerando correta a hipótese de que os pacientes atípicos têm como elemento etiológico comum o trauma, o retraimento autístico e o estresse, esses pacientes não poderiam ser reunidos sob uma só denominação? B – Considerando meus estudos sobre o trauma e o estresse, indago se o aprofundamento dos mesmos não pode vir favorecer o encontro do O TRAUMA, A PSICOSE E O TRANSTORNO DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO marcador biológico para as entidades clínicas citadas, procurado pelas ciências biológicas? C – Seria oportuno, nesse sentido, o estudo da relação entre o trauma, o sonho e a psicose sob a ótica atual da Neurobiologia? D – A expressão “núcleo psicótico”, utilizada por alguns autores psicanalíticos de forma indefinida e imprecisa, não poderia ser substituída com mais propriedade por “núcleo traumático”, entendido como resíduo do trauma? E – Como a teoria do narcisismo primitivo, largamente divulgada e defendida pelos psicanalistas, tem a ver com a teoria da posição autistacontígua, não seria recomendável uma melhor avaliação dessa teoria do narcisismo sob a ótica do trauma na posição autista-contígua? Resumo Existe, na clínica, um paciente atípico, também denominado de difícil manejo clínico ou de paciente borderline. Costuma-se, ainda, diagnosticá-lo como portador de Esquizofrenia (EF) ou de Transtorno do Humor Bipolar (THB) e ou de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) com sintomas psicóticos. Isso ocorre porque esse paciente tem uma sintomatologia diversa, antagônica e complexa. É um paciente presente na clínica atual. Neste trabalho, discuto a hipótese de que a etiologia dessa sintomatologia está relacionada ao trauma, à retirada autística e ao estresse resultante, baseado em meus estudos psicanalíticos e recentes trabalhos da Psiquiatria e da Neurociência. A partir deles, formulei o conceito de Desconexão. Ilustro, clinicamente, essa hipótese com o relato do tratamento de M., cujo diagnóstico inicial foi de EF ou de THB, segundo parâmetros clássicos da Psiquiatria, e depois foi se caracterizando como TEPT, acompanhado de sintomas psicóticos. No final do trabalho faço uma revisão desse caso clínico com o enfoque atual do conceito de Desconexão, cujo desenvolvimento coincidiu com o início do tratamento de M. Finalizo com indagações pertinentes ao tema tratado para futuros estudos. Palavras-chave Psicose. Trauma. Estresse. Autístico. Desconexão. Etiologia. Tratamento. 620 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 595-624, 2005 Trauma, Psychosis and Posttraumatic Stress Disorder In our actual clinical practice there is a patient named as an atypical patient or a difficult clinic care patient or a borderline patient. He or she can be diagnosed also as having in one moment a Squizophrenia (SF), in another moment a Bipolar Mood Disorder (BMD) and in another moment a Posttraumatic Stress Disorder (PTSD) with psychotic symptoms. This happens because this patient presents a multiple and antagonic symptomatology. In this work I discuss the hypothesis that the etiology of this symptomatology seems to be related to the trauma, the autistic retreat and the stress based in my psychoanalytical studies and recent psychiatric and neuroscientific publications. Through them I formulated the Disconnection Concept. In order to illustrate this hypothesis, I present the clinical case of M, which was initially diagnosed as a psychotic patient diagnosed as SF or a MBD, according to classical psychiatric diagnostic references. Nowadays I consider M as a PTSD patient with psychotic symptoms. I end up this work with a review of this clinical case under the actual references of the Disconnection concept, which development started when I was beginning M’s treatment and some questions related to the theme of this work for future studies. Key-words Psychosis. Trauma. Stress. Autistic. Disconnection. Etiology. Treatment. Resumen El Trauma, la Psicosis y el Trastorno de Estrés Postraumático Existe en la clínica un paciente atípico, también, denominado de difícil manejo clínico o de paciente borderline. Se suele decir, también, diagnosticarlo como portador de Esquizofrenia (EF) o de Trastorno del humor bipolar (THB) y o de Trastorno de estrés postraumático (TEPT) con síntomas psicóticos. Esto ocurre porque este paciente tiene una sintomatología diversa, antagónica y compleja. Es un paciente presente en la clínica actual. En este trabajo discuto la hipótesis de que la etiología de esta sintomatología está relacionada al trauma, a la retirada autística y al estrés resultante basado en mis estudios psicoanalíticos y recientes trabajos de la Psiquiatría y de la Neurociencia. A partir de ellos formulé el concepto de Desconexión. Ilustro, clínicamente, esta hipótesis con el informe del tratamiento de M, cuyo diagnóstico inicial fue de EF o de THB, según parámetros clásicos de la Psiquiatría y después se fue caracterizando como TEPT acompañado Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 621 Sebastião Abrão Salim Abstract O TRAUMA, A PSICOSE E O TRANSTORNO DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO de síntomas psicóticos. Al final del trabajo hago una revisión de este caso clínico con el enfoque actual del concepto de Desconexión, cuyo desarrollo coincidió con o inicio del tratamiento de M. Finalizo con indagaciones pertinentes al tema tratado para futuros estudios. Palabras-llave Psicosis. Trauma. Estrés. Autístico. Desconexión. Etiología. Tratamiento. Referências: ANDRADE, V.M. Um Diálogo entre a Psicanálise e a Neurociência. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. APA (American Psychiatric Association). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders - DSM-IV. Washington: APA, 1994. BERLIM, M.T. et al. Transtorno do estresse pós-traumático e depressão maior. Revista Brasileira de Psiquiatria, v.25, suplemento 1,p. 51-54, 2003. BICK, E. (1968). The experience of the skin in early objects relations. Int. J. Psychoanal., v.49, p.484-486, 1968. BION, W.R. (1962). Learning from Experience. New York: Basic Books, 1962a. DAKER, M.V. Diagnóstico em Esquizofrenia. Conferência apresentada em evento de atualização em Esquizofrenia da Associação Mineira de Psiquiatria. Belo Horizonte, 2004. FIGUEIRA, I.; MENDLOVICZ, M. Diagnóstico do tratamento de estresse póstraumático. Revista Brasileira de Psiquiatria, v.25, supl.I, p. 12-16, 2003. FREUD, S. (1912). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. 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Artigo Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Dr. Sebastião Abrão Salim Rua do Ouro, 104/904 30220-000 Belo Horizonte – MG – Brasil Fone: (0xx31) 3223-3786 Fax: (0xx31) 31-3291-8189 E-mail: [email protected] 624 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 595-624, 2005 Virginia Ungar Psicanalista, Membro titular da Associação Psicanalítica de Buenos Aires. Escrever ou apresentar um texto sobre um tema que foi solicitado constitui um desafio interessante. Em primeiro lugar, obriga a pensar sobre um assunto que talvez não constitua o interesse do momento. No entanto, de outra parte, obriga a percorrer caminhos e, ao se chegar a um determinado ponto, surgem novas interrogações, aberturas para os terrenos teóricos a seguir. Nesse sentido, agradeço à Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPdePA) este convite, que me fez ler e reler textos que, como costuma acontecer, reve- Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 625 Virginia Ungar O Traumático na Constituição do Psiquismo: as contribuições de W.R. Bion e Donald Meltzer O TRAUMÁTICO NA AS CONTRIBUIÇÕES DE CONSTITUIÇÃO DO PSIQUISMO: W.R. BION E DONALD MELTZER lam facetas ainda não percebidas. Antes de abordar as contribuições de Bion e Meltzer, farei um breve percurso pelos autores que me interessaram pessoalmente em relação ao tema do “traumático”. Aparentemente, todo trabalho psicanalítico deveria começar com uma referência a Freud, e não farei exceção desta vez. Entretanto, só o referirei para recordar que, no início, o conceito de trauma ocupou um lugar central na teoria freudiana, para, em seguida, em 1897, na famosa carta a Fliess, registrar sua célebre frase: “Já não creio mais em minha neurótica”. Essa guinada na teoria promoveu uma mudança radical na concepção da relação entre a psique e a realidade externa. Na primeira teoria traumática da histeria, recordarão que postula dois tempos: o de início, infantil, que continha a realização de um fato concreto de índole sexual, sem significação como tal, porém com registro dos estímulos; e o segundo tempo, no qual uma situação que podia até ser banal atuava como desencadeante em um corpo capacitado para a genitalidade, atuando retroativamente sobre a situação inicial. Com o abandono da teoria da sedução, gera-se uma nova estrutura teórica, produzindo conceitos básicos para a Psicanálise, como realidade psíquica, sexualidade infantil, protofantasias, complexo de Édipo e inconsciente dinâmico, entre outros. Essa mudança teórica provocou a relativização do conceito de trauma na obra freudiana, embora retomado nas concepções acerca da compulsão de repetição, em Mais Além do Princípio do Prazer, em Moisés e o Monoteísmo e, sem dúvida alguma, em suas histórias clínicas, das quais o célebre Homem dos Lobos revela-se paradigmático. Na década de 1960, Jean Laplanche retoma a teoria do traumatismo para destacar que a teoria da sedução mostra que todo traumatismo vem ao mesmo tempo do exterior e do interior, é simultaneamente exógeno e endógeno. Diz Laplanche: 626 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 625-636, 2005 Penso que essas contribuições são centrais, ao considerar o tema que nos ocupa hoje, que é o do papel do trauma na constituição subjetiva, dado que nos remete ao lugar do Outro na estruturação do psiquismo. Essa estrutura psíquica será sempre singular, e de sua constituição e modo de funcionamento dependerão seus possíveis futuros conflitos e sintomas. Passemos agora à teoria kleiniana, antes de entrar nos avanços póskleinianos. Sabemos que Melanie Klein não outorga um lugar explícito ao trauma em sua teoria. De qualquer modo, penso que se possa tentar uma abordagem à questão, a partir da relação entre a realidade psíquica e o mundo externo. Melanie Klein centraliza sua tarefa de construção da noção do mundo interno nos artigos sobre o luto, que culminam com o de 1940. A idéia de realidade psíquica freudiana adquire vida concreta nesse mundo povoado de objetos com existência, com vida própria, que podem personificar-se e até exteriorizar-se, por exemplo, na transferência analítica. Em 1946, em seu artigo Nota sobre Alguns Mecanismos Esquizóides, Klein apresenta a posição esquizoparanóide e o mecanismo de Identificação Projetiva. Lembremos que Klein formula a Identificação Projetiva como um mecanismo e, ao mesmo tempo, como uma fantasia onipotente, em que partes não desejadas da personalidade e dos objetos internos podem ser dissociadas e projetadas nos objetos. Essa operação, descrita como de natureza agressiva e baseada em mecanismos anais, tem como conseqüência que as partes más e destrutivas do self tentam ferir, controlar e possuir o objeto. De qualquer modo, seguindo-se atentamente o desenvolvimento da teoria kleiniana, é possível rastrear os antecedentes do mecanismo quase desde o início de suas publicações. Sua genial descoberta sobre a relação Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 627 Virginia Ungar Do exterior, porque é do outro que chega a sexualidade ao sujeito; do interior, porque brota desse externo interiorizado, dessa ‘reminiscência’, da qual, segundo uma esplêndida fórmula, sofrem os histéricos, da qual já reconhecemos a fantasia. O TRAUMÁTICO NA AS CONTRIBUIÇÕES DE CONSTITUIÇÃO DO PSIQUISMO: W.R. BION E DONALD MELTZER do bebê com o interior do corpo da mãe, já presente em seu primeiro artigo sobre o Édipo precoce, de 1928, é certamente um antecedente crucial no desenvolvimento da noção de Identificação Projetiva. Para Melanie Klein, a criança estabelece uma relação inicial com o seio, representante do que é o mundo para ela, isto é, sua mãe. Diferentemente do Édipo freudiano, seus impulsos logo se dirigem para o interior do corpo da mãe, no qual, em sua fantasia, se encontra tudo o que é desejável: o leite, os excrementos, a urina, os bebês e o pênis do pai. Na etapa em que o bebê se dirige ao interior do corpo materno e se identifica com ele, Melanie Klein denomina-a de fase feminina. A relação com o interior do corpo materno, além de ser uma descoberta transcendental que inaugura a noção de espaços psíquicos, interioridade dos objetos e do self, proporciona o que se poderia chamar de cenário do conflito edípico – em realidade, o da fantasia inconsciente. Posteriormente, em seu trabalho On Identification (1955), Melanie Klein inclui a noção de Identificação Projetiva relacionada à projeção de partes boas do self que, em conseqüência, se transforma em um mecanismo central para o estabelecimento das boas relações de objeto. De minha parte, tenho pensado que, acompanhando-se com atenção o desenvolvimento da teoria kleiniana, a noção de Identificação Projetiva aparece em um momento em que se fazia necessária a articulação, dentro de uma teoria das relações objetais, com o objeto externo. Até esse momento, Klein concentrou-se em construir a noção de mundo interno. Isso não quer dizer, em absoluto, que não prestava atenção às relações do sujeito com o mundo externo. Para desmentir tal idéia, basta se ler qualquer dos exemplos clínicos que permeiam seus artigos; a questão está na prevalência que deu à realidade interna, ao seu peso, até tal ponto que, a partir de uma óptica kleiniana, a relação com o ambiente vai estar colorida e, ainda mais, determinada pelas qualidades das relações entre o self e os objetos no mundo interno. Esse pode ser o ponto de partida da apresentação das idéias de Bion em relação ao traumático. Esse autor não dedica cláusula alguma específica de sua obra ao conceito de trauma, porém se refere à situação de trauma 628 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 625-636, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 629 Virginia Ungar bélico e suas conseqüências, sobretudo em sua autobiografia O Longo Fim de Semana, na qual relata suas experiências durante quatro anos como psiquiatra no corpo de tanques de guerra, na Segunda Guerra Mundial. Também se refere ao trauma de nascimento, que considera uma experiência de travessia da cesura na passagem da vida intra-uterina para a vida pós-natal, e o faz principalmente em seu artigo A Cesura. Creio que podemos encontrar um lugar no pensamento de Bion para a noção do traumático na estruturação psíquica, se considerarmos sua extensão do conceito kleiniano de Identificação Projetiva (IP). Na década de 1950, é Bion que amplia o espectro de ação do mecanismo de IP, ao lhe atribuir uma função essencial, qual seja, a da comunicação primitiva entre o bebê e a mãe. Bion propõe um modelo segundo o qual, quando o bebê se sente angustiado por sentimentos e ansiedades que o ultrapassam, concebe a fantasia de poder evacuar esses estados de ânimo, “uma parte de sua psique”, diz Bion, na mãe (um seio bom), a qual, se for capaz de “conter” o projetado sem se perturbar demasiadamente, poderá “devolver” à criança esses sentimentos, de maneira que sejam mais aptos a poder manejá-los dentro dela. A esse mecanismo denominou Identificação Projetiva realística. Desse modelo abstrai a idéia de um continente (o objeto que recebe) e de um conteúdo (o projetado). A seguir, esclarece que o continente e o conteúdo são suscetíveis a serem impregnados de emoção e, se isso ocorrer, se dará o crescimento por meio da experiência. Esse modelo apresentado por Bion que se refere à capacidade de rêverie ou ao devaneio da mãe parece-me crucial em relação ao tema do traumático na estruturação psíquica. No meu entender, enfatiza e amplia o valor do mecanismo de IP kleiniana, já que a partir dessas idéias não se pode pensar ser possível o desenvolvimento psíquico fora da relação com outro humano. Temos de recordar que, para Bion, a mente constrói a si própria, por meio do processo de pensar acerca das experiências emocionais. Nessa concepção, a emoção é o centro do significado e a mente se desenvolve O TRAUMÁTICO NA AS CONTRIBUIÇÕES DE CONSTITUIÇÃO DO PSIQUISMO: W.R. BION E DONALD MELTZER alimentada pela verdade, na área das relações íntimas. Bion propõe uma nova teoria dos afetos e fala de amor, ódio e desejo de conhecer (L, H e K), em oposição à parte mentirosa da personalidade com –L, -H e –K. A partir dessa perspectiva, a função alfa opera sobre os dados obtidos pela percepção e transforma elementos beta, inassimiláveis, em elementos alfa, uma espécie de ladrilhos dos pensamentos oníricos, bases para formar símbolos. A mãe, nessa concepção bioniana, atua como primeiro amortizador do impacto do externo traumático. Se essa função for cumprida de maneira adequada, a mãe colocará à disposição do bebê sua própria função alfa, com a qual a criança mais adiante se poderá identificar e, assim, dar andamento ao seu próprio processo de pensamento. É outro o curso dos fatos, se falhar a precoce função rêverie. Os intensos sentimentos de angústia, ao não poderem ser metabolizados, permanecerão na categoria do “terror sem nome”, na própria denominação de Bion. Com relação ao processo de formação de símbolos, podem apresentar-se perturbações em sua gênese, tal como apresenta Melanie Klein no caso Dick, até a destruição parcial ou total do aparelho simbólico, como postula Bion suceder-se na esquizofrenia. Nesse ponto, podemos dar entrada às idéias de Donald Meltzer, autor psicanalítico que também pode ser enquadrado na linha pós-kleiniana. Lamentavelmente, faleceu em Oxford, na madrugada de 13 de agosto de 2004, às vésperas do seu 82º aniversário. Não é este o momento de fazer um memorial, pois temos de nos concentrar no tema “trauma e estruturação psíquica”; gostaria, ao menos, de transmitir algo da impressão que deixou nas pessoas que o conheceram. Ter mantido contato com Meltzer e sua obra de maneira constante provocou efeitos não só na maneira de pensar e trabalhar em Psicanálise, mas também na visão do mundo e da vida para os que foram seus seguidores – cremos que a palavra discípulos não seria do seu gosto. Foi generoso na transmissão de suas idéias, ofereceu um estímulo permanente aos jovens analistas, estimulou para que, na tarefa analítica, se 630 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 625-636, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 631 Virginia Ungar realizasse um monitoramento contínuo sobre um tratamento, para se detectar se estava se mantendo em contato com o paciente – nos limites da relação transferência-contratransferência. Como analista, Meltzer teve sempre um compromisso total com seus pacientes, com uma incomparável capacidade para compreender e interpretar os estratos mais profundos do inconsciente. Mostrava uma capacidade de captação imediata, singular, aguda e precisa. Foi muito modesto, talvez em excesso, ao dizer que não trouxe novas idéias à Psicanálise, mas sim que recorreu a seus antecessores, em uma linha Freud-Abraham-Klein-Bion, para pensá-los em termos de modelos. É assim que Meltzer chama o modelo freudiano neurofisiológico ou hidrostático, já que Freud criou sua obra no clímax da ciência moderna, época em que a termodinâmica clássica, de processos reversíveis e em equilíbrio, constituía o paradigma científico. No modelo kleiniano, privilegia-se a “geografia” da fantasia em termos de espaços na mente e nos objetos. Ao cindir-se e cindir seus objetos, um mundo de imagos que, com o desenvolvimento da teoria, se tornarão objetos internos e conformarão o “mundo interno”, a partir de 1934. Nesse modelo, o desenvolvimento mental parte de um caos inicial com predomínio do impulso de morte, que traz intensas ansiedades de aniquilamento, figuras superegóicas extremamente sádicas e defesas do Ego de igual teor. Esse mundo interno tem uma realidade tão concreta como o externo; esses objetos que podem ser personificados amam, odeiam e sofrem. Com a evolução do desenvolvimento, o self manterá um vínculo de dependência de caráter introjetivo, que substitui o predomínio do uso da IP como mecanismo de defesa. Tal concepção motiva Meltzer a chamar modelo teológico da mente ao modelo kleiniano. Esse se baseia na idéia de que as pessoas têm algo como uma “religião”, na qual seus objetos internos cumprem o papel de “deuses”, com funções reguladoras no mundo interno. Depois dos modelos neurofisiológico freudiano e teológico kleiniano, o terceiro modelo que Meltzer explora é o de Bion, ao qual denomina epistemológico, por ter relação com o conhecimento e o pensar. O TRAUMÁTICO NA AS CONTRIBUIÇÕES DE CONSTITUIÇÃO DO PSIQUISMO: W.R. BION E DONALD MELTZER A meu ver, um dos aportes fundamentais de Meltzer é o de nos ter ajudado a compreender melhor a obra de Bion, desde seus escritos, como o terceiro volume de Desarrollos Kleinianos ou seus livros escritos a partir de 1984, ano em que publica Vida Onírica, ou, de 1986, La Metapsicología Ampliada: aplicaciones clínicas de las ideas de Bion, ou, de 1988, La Aprehensión de la Belleza. Esses três últimos livros podem ser tomados em conjunto, por meio de um conceito unificador: a emoção. Meltzer (seguindo Bion) localiza-a no centro do desenvolvimento humano e da psicanálise. O pensamento e a evolução têm a ver com dar significados às experiências emocionais que começam já no útero. Inclusive, o momento do parto é concebido não como uma situação predominantemente traumática, mas como uma experiência emocional à qual se deve dar um sentido, isto é, que requer ser pensada. A noção meltzeriana de conflito estético é que permite articular, de alguma maneira, a noção do traumático com o desenvolvimento psíquico prematuro, sem que isso tenha sido explicitado em sua obra. Para Meltzer, a saída ao mundo exterior é uma experiência impressionante que põe o bebê em contato com a beleza do mundo externo por intermédio de seu primeiro representante, a mãe, especialmente seu rosto, seus olhos e o seio. Esse primeiro encontro faz desenvolver-se o que Meltzer denominou conflito estético, ao propor que o mesmo se produz entre o exterior visível e o interior misterioso do objeto presente, já que, ao ser opaca a mente da mãe para o bebê, este não pode ter certeza acerca da reciprocidade do amor. Recorrendo à poesia, a isso chamou “a agonia da dúvida”. O enfoque psicanalítico da estética tem uma longa tradição. Seguramente todos conhecemos o interesse de Freud pelo tema da produção artística, tanto no terreno das motivações do criador como no efeito que a obra de arte produz no espectador. Basta mencionar obras como A Interpretação dos Sonhos, A Gradiva de Jensen, O Moisés de Miguelângelo ou Uma Recordação Infantil de Leonardo da Vinci. No entanto, talvez a obra que tenha maior relação específica com o tema de hoje seja O Sinistro, de 1919. Freud retoma aí um caminho de expansão do âmbito da Estética, já inicia632 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 625-636, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 633 Virginia Ungar da por Kant na Crítica do Juízo, em que se estendem os limites de uma estética baseada na Beleza como harmonia, proporção e limite. A partir dessa volta, o sentimento do Sublime pode ser despertado por objetos caóticos, sem forma, incomensuráveis e até infinitos (a visão do oceano, a tormenta, o deserto). O contato com a Beleza será um caminho para o sinistro, que sempre se mostra velado. Freud designa, nesse artigo, o sinistro unheimlich como aquela situação de estranheza que afeta as coisas familiares. O Belo seria sempre essencialmente conflituoso, pois é máscara que sugere, que revela sem deixar de esconder. A Beleza é um véu através do qual se pode pressentir o caos. Para conseguir efeito estético, o sinistro deve estar oculto por um véu, sugerido. Depois de Freud, autores de diferentes correntes psicanalíticas, tais como E. Jones, E. Kris, Ella Sharpe, Hanna Segal, Money Kyrle, Bion e Lacan, fizeram importantes aportes, que permitem avaliar que a psicanálise deu um lugar à questão estética. A nota distintiva da contribuição de Meltzer localiza o problema em uma posição central na questão do desenvolvimento da mente. Por outro lado, sua proposta contrasta fortemente com os pressupostos filosóficos da Estética, em que esse tipo de experiência corresponde a um dos níveis mais elevados a serem alcançados. Essas idéias sobre o desenvolvimento psíquico precoce têm sua base no trabalho com casos de processos analíticos de crianças autistas. Suas primeiras descobertas foram publicadas em 1975, no livro Exploração do Autismo, no qual, juntamente com um grupo de analistas de crianças e psicoterapeutas, estudaram-se esses casos durante dez anos. Descreveram suas descobertas de que essas crianças mostravam um fracasso na formação de um objeto que contivesse um espaço para ser usado para o desenvolvimento. A partir disso, Meltzer realiza uma conjetura imaginativa a respeito do desenvolvimento mental precoce, o que o leva a formular o conflito estético, mais de dez anos após o livro sobre o autismo, em La Aprehensión de la Belleza. Passamos a descrever sua proposta: nesta, o O TRAUMÁTICO NA AS CONTRIBUIÇÕES DE CONSTITUIÇÃO DO PSIQUISMO: W.R. BION E DONALD MELTZER encontro inicial, mítico, com o seio da mãe como representante da beleza do mundo, coloca, para começar, o bebê em uma situação de conflito. As emoções postas em jogo ante o impacto da beleza o ultrapassam e espantam. A essência do conflito estético é que não existe impacto da beleza sem conflito e esse se dá entre o exterior belo, que pode ser percebido, e o interior, que não é observável, é desconhecido, enigmático, misterioso, somente conjeturável, convertendo-se, daí em diante, em fonte atormentadora de toda ansiedade. O poder que tem para provocar emocionalidade somente é igualado por sua capacidade de gerar dúvida, incerteza e desconfiança. É como se nesse instante se instalasse uma pergunta acerca de se esse interior seria tão belo como o exterior, que os órgãos dos sentidos captam. A partir daí, a opção para o desenvolvimento mental estaria dada pela possibilidade de tolerar essa pergunta sem resposta. Isto é, ser capaz de suportar a lenta construção da noção do mistério essencial do interior de outra pessoa, que comporta a idéia do mistério do mundo. O conflito estético faz surgir uma combinação conflituosa de paixão e antipaixão, o que leva o autista, ao não poder tolerar a turbulência emocional, a desmantelar a integração da experiência emocional e assim se desmentalizar. Meltzer diz que a criança autista representa a tragédia do fracasso do espírito humano. A criança autista, ao não tolerar esse conflito e ao desmantelar sua resposta emocional não concebendo um objeto com interior, não pode usar a IP para iniciar a seqüência de seu desenvolvimento. Recorre ao que Meltzer, seguindo E. Bick, chama identificação adesiva, e fica aderido à superfície do objeto, como suspenso dos atributos sensoriais. Meltzer lida com um conceito de verdade que tem três componentes: a) a idéia de Bion acerca da verdade como alimento necessário à mente para se desenvolver; b) a idéia, que em si mesma já é estética, de que a verdade é enigma: é iminência de revelação, porém não é revelação. Unindo essas duas idéias, poderia sustentar-se que a possibilidade de 634 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 625-636, 2005 Conclusões Tive por intenção trazer-lhes as idéias da escola inglesa e, principalmente, a dos autores pós-kleinianos. Como síntese, diria que mesmo quando Klein não tomou a situação traumática de maneira explícita, em termos do desenvolvimento, vemos, nos casos clínicos que apresenta, um olhar aguçado sobre a realidade externa do paciente. De qualquer forma, como já disse ao iniciar, ela estava muito centrada, na primeira parte de suas obras até 1934, na construção da noção de mundo interno, que culmina com sua postulação do processo de luto e com o surgimento do objeto interno bom, núcleo do Eu. Também insisti em que postulou o mecanismo de IP em 1946 e, no meu entender, o fez ao necessitar articular, em sua teoria, a relação do sujeito com o mundo externo. Para ela, esse mecanismo é patológico, baseaSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 635 Virginia Ungar desenvolvimento ou, nos termos de nosso tema, de estruturação do psiquismo se desdobra no terreno da capacidade de tolerar o enigma que considera o encontro com um objeto opaco, não-transparente; c) o amor à verdade está ligado à capacidade de apreciar a beleza do objeto. Esse é o conceito de verdade que Meltzer traz, citando o poeta Keats, que havia dito que beleza e verdade se equiparam. Considerando os três pontos anteriores, resulta então que a beleza implica o contato com a inacessibilidade do objeto estético. O paradigma estético consistiria assim em que a verdade é beleza enquanto se tolere o enigma inapreensível e exista capacidade para suportá-la. Retomando as idéias a respeito da estruturação psíquica, como vimos, Meltzer pensa nos momentos inaugurais como conflituosos, inquietantes. O bebê não tem certeza sobre o amor da mãe e, para superar esse momento conflituoso, deve contar com que nela se desenvolva um conflito paralelo, ao qual Meltzer chama reciprocidade estética. Diz de uma maneira muito sensível que, para a mamãe, a essência de seu bebê também lhe é desconhecida. Fala-nos de que o bebê tem uma “bebetude” que se converte em enigma e mistério para ela. O TRAUMÁTICO NA AS CONTRIBUIÇÕES DE CONSTITUIÇÃO DO PSIQUISMO: W.R. BION E DONALD MELTZER do em mecanismos anais e na necessidade do aparelho psíquico de evacuar parte das emoções do self e dos objetos internos. Bion segue esse caminho ao apresentar o mecanismo de IP de maneira realística, como o modo primitivo de comunicação de um bebê com sua mãe, e a função rêverie como necessária para uma estruturação psíquica na linha do que poderia se pensar como normalidade. Meltzer postula o nascimento da psique como um momento mítico de encontro do bebê com sua mãe, representante da beleza do mundo, instante no qual entra em um conflito que denomina estético. Daí em diante, o desenvolvimento vai consistir em se recuperar desse conflito. Ensaio Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Tradução: Maria Regina Lucena Borges Revisão: Maria Lucia Meregalli Dra. Virginia Ungar Billinghurst 2533 3º 1425 Buenos Aires – Argentina E-mail: [email protected] 636 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 625-636, 2005 Conferência na SBPdePA Miguel Leivi Membro Titular e Didata da Associação Psicanalítica de Buenos Aires. O tema desta conferência é “O traumático na constituição do psiquismo em Lacan”. Vou falar, no entanto, mais sobre Freud, basicamente porque a articulação entre ambos é o terreno que mais me interessa e no qual me movimento de forma mais confortável. Acredito que Lacan é um autor muito rico e interessante para ampliar a leitura de Freud, e não somente no que diz respeito ao conceito de trauma. Pessoalmente, acho que esse é um conceito psicanalítico importante e interessante de se considerar, que tem longa história em Freud e na psicanálise. Lacan não trabalhou muito, pelo que conheço, no tema do trauma, abordan- Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 639 Miguel Leivi O Traumático na Constituição do Psiquismo em Lacan O TRAUMÁTICO NA CONSTITUIÇÃO DO PSIQUISMO EM LACAN do-o desde outros ângulos, como o da repetição, que para ele é um conceito fundamental. Mas, de todas as formas, creio que o que ele pensa em relação à problemática do trauma se encaixa e se articula muito bem com o desenvolvido por Freud. Para tomar a noção de trauma em Freud, é importante lembrar que esse foi o primeiro conceito com que ele pensou a patologia psíquica, montando a primeira teoria pré-psicanalítica: a teoria traumática. Embora a mesma tenha sido logo abandonada, o conceito de trauma nunca desapareceu. Se consultássemos, por exemplo, o índice analítico de conceitos em Freud, que está na Standard Edition de Strachey e também em outras versões, ficaria claro como o conceito de trauma aparece muito nos seus primeiros escritos e depois quase desaparece, reaparecendo no final. Ou seja, é um conceito no qual continuou trabalhando e, no meu entendimento, dando-lhe um caráter mais propriamente psicanalítico; a noção de trauma em si veio, antes de mais nada, da medicina e via Charcot, um dos, ou talvez o primeiro, mestre de Freud na psiquiatria. Para que fique claro o que significou essa teoria traumática no seu momento, temos de considerar que, à época, as teorias sobre patologia mental davam ênfase à constituição, à herança, à degeneração; esses eram os conceitos dominantes. A experiência do sujeito, o que havia acontecido na sua vida, não era significativo. Nesse aspecto, a importância de Charcot, destacada por Freud, foi que ele falou de dois quadros totalmente insólitos para a época: por um lado, a histeria masculina; por outro, a histeria traumática. Freud falava com humor que os alemães, à época, se opuseram muito à histeria masculina. Em sua Autobiografia, ele conta que um professor vienense veio dizer-lhe que histeria derivava de hysteron, que quer dizer útero em grego. Era, portanto, caracteristicamente feminina. Falar de histeria masculina, dessa forma, era um disparate; entretanto, rompeu-se com a concepção que entendia histeria como uma forma particular de patologia mental relacionada aos órgãos sexuais. Quanto à histeria traumática, ela se opunha às teorias constitucionalistas hereditárias, porque hierarquizava algo da experiência 640 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 639-662, 2005 Vocês encontram em Jeannet uma teoria da histeria que levou em consideração as doutrinas prevalecentes na França sobre o papel da herança e da degeneração. Segundo ele, a histeria é uma forma de alteração degenerativa do sistema nervoso que se dá a conhecer mediante uma fragilidade inata da síntese psíquica. Sustenta que os doentes de histeria são, desde o início, incapazes de colecionar, em uma unidade, a diversidade dos processos anímicos; inclinam-se, por isso, à dissociação anímica. Essa é a teoria de Jeannet, que segue a de Charcot, e que é possível encontrar nos primeiros desenvolvimentos de Freud, também. Nos Estudos sobre a Histeria, ele mostra um pouco disso, por exemplo, com as histerias hipnóides. Mas certamente já não em 1909. Nessa segunda conferência, Freud continua com um comentário irônico sobre Jeannet e diz: Se me permitem vocês uma analogia simples, a histeria de Jeannet lembra uma frágil senhora que saiu para fazer compras e volta para casa carregada de pacotes. Seus dois braços e as mãos não conseguem dominar todo o montante, então cai um pacote, ela se agacha para recolhê-lo, e cai outro pelo outro lado, etc.. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 641 Miguel Leivi do sujeito, relacionando-a à patologia. Esse é o valor de Charcot, que hierarquizava os traumas, embora não lhes desse valor etiológico, ou seja, não os colocasse como causa central da patologia, e sim como causas acidentais, agentes provocadores que desencadeavam uma disposição. Essa linha de Charcot foi seguida por Pierre Jeannet, contemporâneo de Freud e opositor às suas idéias. Jeannet foi muito importante na França, e o fato de que ele e Freud não se entendiam muito bem foi uma das razões pelas quais a psicanálise na França se desenvolveu relativamente tarde. Freud diz, por exemplo, na segunda das Cinco Conferências, de 1909: O TRAUMÁTICO NA CONSTITUIÇÃO DO PSIQUISMO EM LACAN Freud critica Jeannet, mas ele esteve inicialmente em uma linha parecida. Em 1888 tem um artigo sobre a histeria escrito numa enciclopédia, no qual diz: Histeria é um estado, uma disposição nervosa que produz crises de tempos em tempos. A etiologia do estado histérico deve ser procurada inteiramente na herança, inclusive nos homens, que a recebem de suas mães. Todos os outros fatores, comparados à herança, têm uma importância secundária, são somente causas incidentais. Essa era uma velha postura de Freud totalmente de acordo com Charcot e Jeannet. Em tudo isso, então, qual foi a contribuição de Freud e Breuer? Foi passar a considerar o trauma como um fator etiológico. Em 1893, no Manuscrito B, ele diz: “Toda histeria que não for hereditária é traumática”, ou seja, coloca as duas formas no mesmo nível, a traumática e a hereditária. Ele apresenta aqui uma oposição entre trauma e herança que depois será relativizada. Em 1917, na Conferência 23, ele diz: “As disposições constitucionais, ou seja, hereditárias, são certamente as seqüelas que deixaram as vivências de nossos antepassados; elas também foram adquiridas alguma vez: sem tal aquisição não haveria nenhuma herança”. A herança repete, assim, experiências passadas, só que não do próprio sujeito, mas dos antepassados. Observem que aqui há uma noção de herança que tem pouco a ver com a biologia, pois está se referindo à herança dos caracteres adquiridos, como na teoria de Lamark, atualmente desacreditada. A biologia atual não aceita a herança dos caracteres adquiridos. Freud usa mais o conceito jurídico de herança, que se refere antes à organização simbólica que à biologia. A questão é que ele, embora hierarquize o valor etiológico do trauma e o coloque no mesmo nível da herança, vai enfatizando cada vez mais o aspecto traumático. Em 1893, em Sobre o Mecanismo Psíquico dos Fenômenos Histéricos, diz: 642 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 639-662, 2005 Ou seja, generaliza o trauma como a etiologia de toda histeria. “Em todos os casos, temos de enfrentar a noção de traumas psíquicos, os que determinam a natureza dos sintomas que aparecem.” Quer dizer, o trauma não só é o fato etiológico principal como também determina o tipo de sintomas que aparecem. Essa é agora a etiologia específica da histeria; diz, em 1896, nos Novos Comentários sobre as Neuropsicoses de Defesa: os traumas sexuais da infância precoce são vividos passivamente na histeria em contraposição aos traumas sexuais exercidos ativamente, causa da etiologia das neuroses obsessivas. Isso em 1895/1896. Em 1905, em Dora, operadas algumas alterações no seu pensamento, vai dizer outra coisa; algo mudou. E ele diz em Dora que “o trauma biográfico por nós conhecido resulta inútil para explicar as especificidades dos sintomas para determiná-los”. Ou seja, diz o contrário do que dizia antes: o trauma já não é o fator etiológico dominante, nem determina por si só a forma dos sintomas. Em suma, nesses poucos anos dos primeiros desenvolvimentos de Freud, podemos reconhecer vários momentos no que diz respeito ao trauma. Há o momento prévio à teoria traumática, no qual, de acordo com as teorias da época, a histeria é hereditária e a experiência não conta. Depois aparece a teoria traumática, segundo a qual toda histeria e, por extensão, toda psiconeurose são traumáticas; em um terceiro momento, ele abandona essa teoria traumática e começa a desenvolver a noção da sexualidade infantil e o valor da fantasia. Aí o trauma parece perder importância em relação aos outros fatores. E, em uma última etapa, todo o resto da obra de Freud que acho que aponta para uma complexização da noção de trauma e Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 643 Miguel Leivi Há uma completa analogia entre a paralisia traumática e a histeria comum, não-traumática (ou seja, nessa época, hereditária). É lícito, então, conceber os fenômenos da histeria comum seguindo o mesmo esquema válido para a histeria traumática; toda histeria pode ser, portanto, considerada histeria traumática. O TRAUMÁTICO NA CONSTITUIÇÃO DO PSIQUISMO EM LACAN para uma localização especificamente psicanalítica da mesma, assim como para uma articulação do trauma com a fantasia. Mas o que é trauma a todas essas? Eu dizia que, tal como é visto por Freud no princípio, é um conceito médico que tem a ver com todo um ramo da medicina, que é a traumatologia. O termo trauma, do grego “ferida com ruptura”, deriva de um verbo que quer dizer penetrar, ferir, atravessar. Uma definição médica que encontrei foi: “ferida ou lesão ocasionada diretamente por causas externas ao corpo, por violência, acidente, fratura de origem externa”. Isso é o que caracteriza o trauma do ponto de vista médico. E a questão é que o primeiro conceito de trauma que Freud usa na teoria traumática está praticamente modelado sobre esse conceito médico. Freud o diz explicitamente, nessa segunda conferência, em 1909: “O trauma psíquico é considerado sobre o modelo do trauma corporal”. O trauma tem várias características, e acho importante não as perder de vista, para depois considerar como isso foi se continuando. Por um lado, tem o valor de um acontecimento real, ou seja, de algo que realmente aconteceu, que se pode localizar no tempo e no espaço e na experiência do sujeito – algo que aconteceu em algum momento de sua vida. Uma questão central, nesse sentido, é que Freud acredita na realidade da situação traumática; se ele desenvolveu a teoria traumática como a etiologia da histeria, é porque acreditava no que lhe contavam, à diferença da medicina, que não acreditava nas histéricas. À medicina importava apenas, na histeria, que as histéricas mentem, simulam qualquer doença e levam, assim, a uma complicação para os médicos. A histeria está caracterizada pela mentira. E Freud partiu do pólo oposto, de acreditar nelas. Se vinha uma histérica dizer-lhe que o pai a havia seduzido, ele tomava o que parecia ser uma recordação ao pé da letra. Então, é um acontecimento real, ou seja, que aconteceu efetivamente na vida do sujeito; é também, portanto, acidental, quer dizer, poderia não ter acontecido. Se um pai seduziu sua filha, poderia não ter feito isso. Digamos que o fato em si mesmo é puramente contingente e acidental. Outra característica é a de produzir um impacto violento – idéia que 644 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 639-662, 2005 Descrevemos como traumáticas as excitações que vêm de fora, o suficientemente poderosas em intensidade para abrir caminho através do escudo protetor [...] (para abrir) uma brecha (ou seja, o aspecto de fratura, de ruptura) em uma barreira contra os estímulos que em outras circunstâncias é eficaz. (Isso) produz uma ampla perturbação no funcionamento da energia do organismo. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 645 Miguel Leivi também vem da medicina. O fator de intensidade, o aspecto econômico do trauma que se destaca é sempre muito grande e produz ruptura. Na medicina, fica claro que algo se rompe, enquanto no campo psíquico é mais difícil saber o que é que se rompe. Por isso Freud fala de uma ruptura da barreira protetora contra os estímulos, conceito esse que aparece seguidamente em sua obra, embora nem sempre seja muito claro a que se refere quando fala nessa barreira protetora. Há, além disso, uma incapacidade de resposta adequada, e isso é importante, porque marca outro aspecto, um aspecto relativo, algo que não tem a ver diretamente, exclusivamente, com a intensidade absoluta do trauma, mas se refere a alguma capacidade de resposta: é traumática alguma coisa diante da qual nós não temos capacidade de responder, de certa forma, mais além de sua intensidade objetiva. E se lembrarem da teoria traumática: ela punha toda a ênfase no fato de que o trauma não foi descarregado, e era isso que produzia a patologia. Toda essa situação leva a um transtorno geral do aparelho, com conseqüências duradouras sobre o conjunto da organização. E, por último, algo que é mais específico, uma idéia mais difícil de relacionar ao conceito médico de trauma, é o que Freud diz: o trauma psíquico é sempre sexual. Aqui já há uma especificidade que vai se conservar na psicanálise, que não tem a ver diretamente com a medicina. A questão que se propôs é uma etiologia, ou seja, a causa da patologia psíquica, como sendo devida a um ou mais traumas. A abordagem terapêutica, por sua vez, consiste de descarregar a energia retida, a energia não descarregada do trauma. Em Mais Além do Princípio do Prazer, ou seja, bem mais tarde, Freud retoma muitas dessas posições, definindo trauma da seguinte maneira: O TRAUMÁTICO NA CONSTITUIÇÃO DO PSIQUISMO EM LACAN Eu teria interesse em destacar duas ou três coisas a esse respeito: primeira, a noção de trauma está completamente no terreno da causa, postulase como uma noção etiológica. Quando se trata de teorizar a causa da doença mental, é exatamente aí que aparece a noção de trauma na teoria mental. Isso vai ficar cada vez mais complexo, mas de qualquer maneira vai permanecer. O trauma aponta ao terreno da causa da patologia, uma causa real. O que é valorizado, como eu dizia antes, e acho que isso é fundamental, é a experiência, e isso é algo que na psicanálise não se abandonou nunca. Enfatizo a idéia de real porque em torno disso há algumas das questões que levaram Lacan a ter de desenvolver o conceito de real como diferente do conceito de realidade. Se Lacan tomou o conceito de trauma, é como conceito que tem a ver com o real, e para ele o real é algo que tem um lugar fundamental na psicanálise. No Seminário 11, que se chama Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, Lacan toma o conceito de trauma pelo viés da repetição, que, esse sim, é um conceito fundamental. Ele ali diz: “Não é relevante que, na origem da experiência analítica, o real tenha se apresentado sob forma de trauma, determinando toda a sua sucessão, impondo-lhe uma origem na aparência acidental?”. Ou seja, esse é o lugar que Lacan quer levantar: o fato de que, na origem da experiência analítica, aparece o real sob a forma da noção de trauma. A valorização da experiência do sujeito é algo que tampouco vai se perder na análise. E a dimensão de repetição, que é, digamos, o fenômeno principal do traumático, será a marca traumática que se caracteriza porque dá lugar ao lançamento repetitivo. Em Mais Além do Princípio do Prazer, as neuroses e os sonhos traumáticos são a principal razão de Freud para incorporar como conceito a compulsão à repetição. Ele o diz explicitamente: “Os sonhos traumáticos são os exemplos menos duvidosos da operação da compulsão à repetição”. Há também alguns aspectos específicos fundamentais para destacar. Um deles é que o trauma é sempre sexual. Freud atribui esse fator às características da sexualidade humana: prematura e precoce. Essas características não se referem necessariamente à idéia de localização cronológica; não é que necessariamente tenhamos de buscá-las nos primeiros anos de vida, 646 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 639-662, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 647 Miguel Leivi ainda que, na verdade, a maioria das situações traumáticas ocorra nesses primeiros anos, mas pode haver experiências traumáticas em qualquer momento da vida. Então, essas experiências traumáticas sempre são prematuras e precoces em relação a quê? Em relação à possibilidade de compreendê-las e de reagir diante delas. Por que a maioria ocorre na primeira infância? Porque se caracteriza pela situação indefesa em que se encontra o bebê humano, isso faz com que não possa reagir diante de nada; ou seja, tudo é potencialmente traumático e precoce para ele. Está antecipado em relação às suas possibilidades de compreender e reagir de alguma maneira. A outra questão importante que Freud destaca, e que também é especificamente psicanalítica, é a função da lembrança da experiência. Algo que marca, de entrada, uma diferença fundamental com o conceito médico de trauma. Na medicina, o trauma é um fato em si: se cai uma coisa na cabeça de alguém e produz um traumatismo de crânio, esse é o trauma. Mas na psicanálise não é assim: acontece algo e no momento não produz nada, o que se torna traumática é a lembrança dessa experiência. Lembrem da frase de Freud que diz que “histéricos sofrem de reminiscências”. Isso quer dizer: não sofrem de sedução, na realidade padecem da lembrança de algo que aconteceu ou, ainda, que não aconteceu, não importa, mas que fica registrado como se tivesse acontecido e padecido. E o padecimento não vem com o acontecimento, e sim com a lembrança do mesmo. Nenhum desses aspectos relativos ao trauma desaparece, ainda que a teoria traumática em si mesma seja abandonada e tudo isso vá percorrer diferentes caminhos, continuando como aspectos fundamentais. Bem, vocês têm então a teoria traumática e a famosa Carta 69, na qual Freud diz que não acredita mais nessa teoria, e já começa a colocá-la em dúvida: não pode ser verdade que haja tantos pais sedutores; seu próprio pai teria de ter sido um perverso; há uma série de argumentos na qual a teoria não se sustenta. E disse outra coisa: “No inconsciente não há nenhum sinal de realidade [...] não se pode distinguir a verdade da ficção investida com afeto”; ou seja, não há nenhum elemento no inconsciente O TRAUMÁTICO NA CONSTITUIÇÃO DO PSIQUISMO EM LACAN que permita determinar o que realmente aconteceu, que poderia ser também uma fantasia vivida como real. Essas razões levaram o papel do trauma a um segundo plano, ao desenvolvimento do conceito de sexualidade infantil e a descobrir a importância da fantasia. Em torno de 1900, Freud já tinha totalmente montada a sua teoria da sexualidade infantil, publicando-a somente em 1905, porque temia que pudessem matá-lo, caso dissesse que as crianças tinham sexualidade. Então, o trauma de sedução ficou convertido em fantasia de sedução, e essa mudança é fundamental, porque o abandono da teoria traumática marca a origem da psicanálise. Contudo, há versões da velha teoria traumática, do velho modelo próximo à medicina que seguem aparecendo, nas quais noções sobre trauma precoce seguem exatamente o modelo do trauma em medicina. Nessa mesma linha está o modelo de Otto Rank do trauma do nascimento, que Freud criticava justamente por essas razões, uma vez que Rank levava as coisas cada vez mais para trás, e, obviamente, o quanto mais para atrás se pode ir, quanto à experiência de um sujeito, do que com o nascimento? Com isso, colocava a coisa num plano muito diferente, porque, como todos nós nascemos com o trauma do nascimento, isso não é algo acidental, mas totalmente estrutural. Mas o trauma de nascimento era pensado por Rank à maneira da medicina, por isso é que ele colocava a necessidade de chegar até ele e produzir sua ab-reação, coisa com que Freud não concordava. Ele dizia em Inibição, Sintoma e Angústia: “Não sabemos o que significa ab-reação do trauma [...] Eu abandonei essa teoria que tinha papel tão destacado no meu método catártico porque se contradizia com os fatos”. O conceito de trauma, já disse várias vezes, não desaparece, torna-se mais complexo, mais especificamente analítico, e articula-se com a fantasia. O que cai é o modelo do trauma baseado no modelo médico, esse sim abandonado. A fantasia não desloca o trauma; passar do trauma da sedução à fantasia da sedução não faz com que desapareça a questão do traumático. O conceito psicanalítico de trauma como causa já não se refere a um 648 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 639-662, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 649 Miguel Leivi acontecimento único, como na medicina: saio à rua, um carro me atropela e não precisa mais nada para que eu tenha um traumatismo de qualquer tipo. Na psicanálise não é assim, há dois fatos pelo menos, ou seja, há o desdobramento da causa no plano do trauma. Não é que seja um somatório, mas são dois acontecimentos diferentes, em diferentes lugares e com funções diferentes e articulados entre si. Sem essa complexa articulação não há trauma, no sentido psicanalítico. No caso Emma, Freud descreve uma paciente que se trata porque tem fobia em relação a lojas: não pode entrar sozinha em nenhuma delas, sempre tem de estar acompanhada de alguém, porque se não entra em pânico, embora essa companhia possa ser uma criança pequena. Isso quer dizer que não precisa haver nenhuma proteção real do acompanhante. Freud começa a trabalhar com seu método e aparece algo que aconteceu com essa mulher na época da puberdade, aos 12 anos, e que aí começou todo o desencadeante da patologia. Quando tinha 12 anos, entrou sozinha numa loja para comprar algo e havia dois empregados que estavam falando entre eles e rindo. Ela interpretou que estavam rindo dela, particularmente de sua roupa. Então, teve uma crise de pânico e saiu rapidamente, e, a partir daí, nunca mais pôde entrar sozinha numa loja. Além disso, acrescentou que um dos empregados a atraía sexualmente. Freud diz que isso não explica nada, é uma situação totalmente inocente. Por que, a partir desse momento, vai se instalar uma fobia que a limita e não permite que entre sozinha numa loja? Continua procurando e encontra uma segunda cena anterior, quando tinha 8 anos e entrou também numa loja sozinha para comprar alguma coisa. O senhor mais velho a pegou, a levou para trás do balcão e começou a tocar em seus genitais através da roupa. Ela lembrava um trejeito desse senhor; foi embora, não disse nada, não aconteceu nada. Depois, voltou outra vez à loja, o mesmo aconteceu, e depois não voltou mais. E todo esse episódio ficou esquecido. Quando ocorreu a segunda cena, aos 12 anos, não lembrava da primeira experiência. Freud diz que aqui há algo que nenhuma das duas cenas sozinhas explica, mas que há relação entre elas e isso sim nos traz algo: “Só nos faz falta uma conexão associativa entre O TRAUMÁTICO NA CONSTITUIÇÃO DO PSIQUISMO EM LACAN ambas”. No início, há muitos elementos em comum, digamos, elementos associativos entre as duas situações: o riso dos dois empregados, a associação com o trejeito do homem que a tocou; eles rindo dela, de sua roupa, e lembrem que o homem a tocava através da roupa. O elemento de entrar sozinha numa loja está muito relacionado às duas cenas. E Freud se pergunta qual é o trauma aqui. Na primeira cena há uma sedução real: efetivamente o homem a tocou, mas não produziu nada, nenhum efeito. Esse momento foi totalmente esquecido e passou justamente despercebido: falta algo que é tão importante no trauma e que aí não aparece – o elemento de intensidade. A cena é sexual, mas na menina não há desenvolvimento de excitação nem significado sexual. Deve ser tomado em consideração que, à época da teoria traumática, ou seja, antes do descobrimento da sexualidade infantil, para Freud, a sexualidade se desenvolvia na puberdade. Então, essa menina, aos 8 anos, não tinha sexualidade ainda, a sexualidade era do homem que a estava tocando, mas ela não tinha maneira de compreendê-la; e aí vem o aspecto da precocidade, algo que sobrevém antes do tempo, antes de ela poder compreender, antes de ela poder reagir. Tudo isso está marcado nesse primeiro momento. E se essa primeira cena vai interferir, vai fazê-lo somente depois, como lembrança; no momento, não produziu nenhuma reação. Algo vai reacender essa lembrança depois, e aí se tornará traumático. Ou seja, age de dentro e não de fora. Então, a questão é que: se o trauma é algo que vem de fora, aqui há algo estranho, porque efetivamente há algo que veio de fora, que aconteceu, mas que depois se inscreveu e atuou desde dentro. Por tudo isso, a primeira cena carece de elementos para ser caracterizada como traumática. E, na segunda, faltam ainda mais elementos, porque em si mesma não há nada, é totalmente inocente, nada aconteceu, só dois rapazes rindo, só. Mas produz uma reação enorme em relação ao que está acontecendo. Aqui sim está presente o aspecto da intensidade, mas não há nada que tenha ocorrido que dê conta da mesma. A segunda cena tampouco é traumática, nem por seu conteúdo nem pelo que possa ter acontecido nesse momento. Ou seja: no sentido médico, nenhuma das duas é traumática; o único que dá valor de trauma a toda essa cons650 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 639-662, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 651 Miguel Leivi trução é a relação entre as duas situações. E isso, creio, passa a dar conta do trauma, no seu sentido mais especificamente psicanalítico, esse desdobramento da causa. A puberdade aparece nessa primeira versão aportando a sexualidade que, no momento da primeira cena, ainda não tinha se desenvolvido. E Freud diz no Projeto, com relação a esse caso de Emma: “Esse caso é típico da repressão na histeria. Encontramos invariavelmente que uma lembrança reprimida se torna trauma nachträglich”. Essa última é uma palavra difícil de se traduzir. Esse conceito, considerado muito importante, muitos o traduzem como efeito diferido; no meu julgamento, no entanto, essa não é uma boa tradução, porque efeito diferido entra muito bem num trauma médico. Suponhamos um traumatismo de crânio: pode haver efeitos imediatos, desde desmaiar até morrer; efeitos um pouco tardios, por exemplo, um hematoma extradural que pode produzir sintomas nas 24 horas, ou efeitos, como no caso de um hematoma subdural, de efeitos mais lentos. Aí há efeitos diferidos, mas a causa é sempre a mesma. Na psicanálise, não há propriamente um diferimento dos efeitos, e sim um desdobramento da causa. Há uma dupla causalidade, na qual o primeiro é causa do segundo, digamos, essa primeira cena causa a segunda, se não a segunda cena seria totalmente inocente. Mas a segunda também tem efeito causal sobre a primeira, que retroage: esse nachträglichkeit é a retroação do posterior sobre o anterior. O fato é que o anterior determina e hierarquiza o posterior, mas o posterior também retroage sobre o anterior. Essa organização temporal especificamente psicanalítica está muito implicada na função de trauma, e Freud diz isso no Projeto, em plena teoria traumática: “uma lembrança reprimida se torna retroativamente um trauma”. A causa desse estado de coisas é o retardamento da puberdade. Lacan diz algo muito similar no Seminário 1, Os Escritos Técnicos de Freud, falando do Homem dos Lobos, de quando sua fobia surge efetivamente. Lembrem que a história do Homem dos Lobos é a análise de uma fobia infantil. Como em Emma, em que a fobia aparece aos 12 anos, no Homem dos Lobos vai aparecer depois do sonho dos lobos, aos 4 anos. Mas esse O TRAUMÁTICO NA CONSTITUIÇÃO DO PSIQUISMO EM LACAN surge efetivamente aos 2 anos e meio, depois da suposta observação do coito dos pais, e “adquire (nesse momento do sonho) o valor de trauma [...] O trauma, enquanto cumpre uma ação repressora, intervém a posteriori, nachträglich”, e intervém retroativamente. Então, na primeira cena, não há resposta, porque não há aí nem excitação nem significação sexual. Não há nesse momento maneira de entender de que se trata, mas há registro, há uma inscrição. Temos de falar de Lacan: eu diria, então, que isso é quase uma definição de uma inscrição significante. Algo capaz de significação, mas que, em si, não consiste de significação, e que, além do mais, é uma inscrição significante de algo que nesse momento não significa nada, mas que estará aberto a todos os encadeamentos significativos possíveis. Por isso que o trauma é sempre precoce; sempre se produz antes que possa significar. A significação sempre requer um outro acontecimento. No primeiro momento, sobretudo em relação àquilo que é uma espécie de primeira inscrição, não há elementos para entender do que se trata. Em termos gerais, compreende tudo o que se pode incluir em algo que já está estruturado previamente e que remete a uma experiência anterior; em troca, o que aparece como uma espécie de primeira vez, que não remete a nada anterior, resulta sempre precoce, porque não se tem maneira de compreendê-lo. Nesse ponto, a primeira inscrição é em Inibição, Sintoma e Angústia, quando Freud desenvolve a segunda teoria da angústia. Ficará localizada a “angústia automática”, “angústia traumática” – automática justamente porque não há forma de reagir. Em troca, a “angústia sinal” é já um segundo momento: já houve uma inscrição prévia, e surge a angústia como sinal de perigo para evitar novo desenvolvimento da angústia traumática. Isso quanto à primeira cena, à primeira inscrição. A segunda cena, em si mesma, é totalmente intranscendente. O que faz é aportar significação e excitação sexual à lembrança da primeira. Aí sim, pode-se dizer: Emma fugiu da loja, mas já era tarde. Responder à lembrança não é a mesma coisa que responder ao fato: esse já passou, a resposta resulta tardia. Isso terá relação com a dimensão repetitiva dos traumas, pela qual todas as insistên652 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 639-662, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 653 Miguel Leivi cias posteriores das inscrições traumáticas geram respostas, mas nenhuma resposta é suficiente, nem consegue evitar o que já aconteceu ou apagar a inscrição do trauma. Esse é um dos fundamentos da compulsão à repetição: só o que se pode fazer é repetir ou evitar. Em um de seus últimos trabalhos, Moisés e o Monoteísmo, Freud retoma e dá muita importância à noção de trauma. Fala que as únicas alternativas que ficam abertas são as repetições ou as evitações compulsivas. Há algo irremediável, algo que está dentro do perdido, do que já aconteceu; é impossível voltar a ele, é impossível evitá-lo. Essa mesma estrutura é a que se vê na fobia infantil do Homem dos Lobos. Temos a segunda cena, que seria o sonho dos lobos, aos 4 anos. Isso é mais insólito ainda, porque nem sequer é algo que aconteceu, um fato – é somente um sonho. Freud, entretanto, diz ter esse sonho valor traumático. E a primeira cena nem sequer pode ser recordada, o que abre toda a questão das construções na psicanálise: como se pode resgatar aquilo que, por estrutura, não pode ser lembrado? Essa primeira cena da visualização do coito dos pais foi construída por Freud. As considerações são as mesmas: nessa primeira cena, ele diz que não há excitação nem significação sexual, pelo menos não a significação sexual genital. Freud teoriza dizendo ter havido uma resposta anal. Ele deve ter respondido a essa cena evacuando, mas não é uma significação genital. E a segunda cena, que é só um sonho e vem de fora, aporta a excitação e a significação sexual às recordações da primeira. A noção de trauma aqui também se desdobra: a segunda cena é um sonho, e Freud diz que revalida retrospectivamente – nachträglichkeit. Observe-se como, nesse terreno, insiste em tal conceito: “Revalida retrospectivamente a observação do coito, realizada há um ano e meio [...] A ativação dessa imagem agora pode ser compreendida devido ao desenvolvimento intelectual”. E, apesar de não ser um acontecimento, porque é um sonho, não é nada que tenha acontecido em sentido positivo; nada ocorreu na realidade. Diz Freud que “operou não somente como um novo acontecimento, mas como um novo trauma, como uma interferência de fora análoga à sedução”. Observe-se que O TRAUMÁTICO NA CONSTITUIÇÃO DO PSIQUISMO EM LACAN essa característica, vinculada ao trauma, que era algo que vinha de fora, fica totalmente relativizada: aqui há algo que nem aconteceu nem vem de fora, é um sonho, no entanto tem valor traumático. A primeira cena não pode ser recordada, é construída, e Freud nem sequer está certo de sua construção. Ele diz que o menino tem de ter observado um coito nessas condições, mas depois acrescenta: “Talvez não tivesse observado nada, mas montou essa cena a partir de diferentes coisas que observou”. Como o Homem dos Lobos era de uma família aristocrática, que possuía campos nos quais passava muito tempo, deve ter tido muitas oportunidades de ver ovelhas em coito. A partir daí construiu a cena, esse coito dos pais, talvez a partir de ver os pais simplesmente dormindo numa tarde de verão. Por decorrência, fica totalmente perdido e deslocado a respeito do que realmente aconteceu; o caráter de acontecimento real se relativiza. Lacan diz algo a esse respeito, no seu Seminário 1: Em O Homem dos Lobos, Freud faz a pergunta: O que é o trauma? E se dá conta de que o trauma é uma noção tremendamente ambígua, já que, de acordo com a evidência clínica, sua dimensão fantasmática é infinitamente mais importante do que sua dimensão de acontecimento, o qual passa, então, a segundo plano [...] Ao contrário, a data do trauma continua sendo para ele um problema que convém conservar a qualquer preço [...] Quem saberá o que viu? Mas, tenha visto ou não, somente o poderia ter feito em data precisa, nem sequer um ano depois. Há, portanto, uma localização temporal, uma localização numa cronologia organizada simbolicamente; é impossível, no entanto, se saber exatamente o que viu. Freud nos dirá que algo viu, mas não se pode saber exatamente o quê. Por isso é que a psicanálise, como método de investigação judicial, se quiséssemos investigar os pontos tais como foram, não serviria para nada. Não há forma de se saber o que realmente viu. Pode-se, sim, localizar o que tenha visto, em algum momento, por uma série de elementos, de indícios. 654 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 639-662, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 655 Miguel Leivi Essa estrutura Freud vai conservar todo o tempo até o Moisés e a aplica tanto à patologia quanto ao surgimento de estruturas culturais. Moisés e o Monoteísmo é um artigo que fala do surgimento da religião e das tradições, e aplica ali o mesmo modelo: o de um primeiro acontecimento, depois um período de latência, como ele chama, e logo um retorno do esquecido, do reprimido. Além do mais, faz uma equiparação entre o que é o desenvolvimento de um sujeito – sexualidade infantil, latência e desenvolvimento puberal – e o que é para ele, por exemplo, a religião monoteísta, que surge também em dois tempos. Há um primeiro surgimento, um declínio desse primeiro surgimento, logo um longo período de latência, e um ressurgimento posterior. E diz, em Moisés, que os traumas são “impressões experimentadas precocemente e logo depois esquecidas, às quais damos grande importância na etiologia das neuroses. Nem sempre é possível descobri-las”, ou seja, recordá-las. O que lhes dá o caráter traumático é essa carga retroativa, ou seja, é desde o sintoma que o trauma fica ressignificado; nunca se sabe exatamente o que é que vai ter valor traumático, a não ser que partamos dos seus efeitos, ou seja, do sintoma. Lacan coloca, no Seminário 8, intitulado A Transferência, que “não é trauma simplesmente o que irrompe num momento determinado, e rompendo em algum lugar uma estrutura que se imaginava total. O trauma é quando certos acontecimentos se situam num certo lugar nessa estrutura”. Lembro o Homem dos Lobos: se aconteceu, tem de ter acontecido num determinado lugar e em um determinado momento. A estrutura fixa determinados lugares e certos acontecimentos, ocupando-os; “tomam o valor significante de traumas que estão ligados a um sujeito determinado. Isso é o que constitui o valor traumático de um acontecimento”. Freud fala, como vem falando desde o princípio, que constituem traumas as experiências no corpo e as sensopercepções; em Construções em Psicanálise, entretanto, diz que também pode estar em jogo “algo experimentado na infância e logo esquecido, algo que o menino viu ou ouviu em uma época em que apenas começava a falar”. Ou seja, pelo que ouvimos também se veiculam traumas. O que ouvimos é linguagem, e não só produz O TRAUMÁTICO NA CONSTITUIÇÃO DO PSIQUISMO EM LACAN inscrição como também é traumática. Através da linguagem também se veiculam esses traumas ancestrais, herdados – por exemplo, os que se transmitem entre gerações numa família. Uma herança da qual, como vimos, a biologia não dá conta mas a linguagem sim, e que permitiria algo assim como a transmissão do traumático, do adquirido, entre as gerações. Tenho um pequeno exemplo da minha clínica pessoal que acho que faz sentido com o que estamos falando. Sobre um paciente que tive há anos, à época com trinta e tantos anos, digamos entre 35 e 40, não importa, tampouco importa muito o que acontecia com ele naquele momento, mas sim alguns elementos da sua história. Esse rapaz era filho de um casal que sobrevivera a um campo de concentração. Cada um deles possuíra uma família. O pai fora casado e tivera duas filhas; a mãe fora casada e tivera um filho. Estiveram em campos diferentes, não se conheceram à época. O pai perdera a mulher e as duas filhas, a mãe perdera o marido; ou seja, sobreviveram, o pai sozinho e a mãe com o seu filho. Eles eram da Polônia, acho que se conheceram no campo de refugiados na França e formaram um novo casal. Desse novo casal nasceu o rapaz, meu paciente, criado em condições que não tiveram nada a ver com a experiência pela qual haviam passado seus pais e seu irmão. Ele era considerado francês e o chamaram Pièrre. Mudaram-se para a Argentina quando ele era muito pequeno, e a família, apesar de não estar em boas condições financeiras, o colocou em uma escola francesa cara, porque ele era francês, ou seja, já estava, digamos, excluído da experiência da família, que, além do mais, não tinha sido uma experiência pessoal dele; ele não tinha passado por aquilo. Era um rapaz com muitas complicações, que na adolescência fora muito alto e magro. Conta que, naquele período, quando ia a determinado clube fazer esporte e ia ao vestiário tomar banho, os outros, que não o conheciam e não sabiam nada a seu respeito, olhavam-no e diziam: como tu és magro, saíste de um campo de concentração? Era impressionante, uma vez que sentia isso como uma inscrição traumática que não havia sido de sua própria experiência, mas que vinha de seus pais. A questão é que tudo isso faz com que a linguagem veicule inscrições 656 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 639-662, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 657 Miguel Leivi traumáticas, e, mais além, ela em si mesma é traumática. Pensem em como é a aquisição da linguagem: aprendem-se coisas as quais não se sabe o que querem dizer. Ouvem-se palavras, o “banho de linguagem” em que estamos imersos, como diz Lacan; contudo, até que se consiga adquirir mais ou menos o uso da linguagem, não se entende nada; ou seja, há uma série de inflexões que não se pode entender, a que não se pode responder nem reagir – algo característico das inscrições traumáticas. E também a sexualidade é traumática em si mesma, uma vez que também nós, enquanto bebês, estamos abertos à sexualidade dos adultos. Freud, quando retoma a questão da fantasia da sedução em A Feminilidade, artigo de 1932, diz que “a fantasia da sedução toca o chão da realidade” – ou seja, não é mais pura fantasia, puro produto da imaginação: toca o chão da realidade “porque foi realmente a mãe quem, através de suas atividades em torno da higiene corporal da criança, estimulou inevitavelmente e, quem sabe, despertou pela primeira vez sensações prazerosas nos genitais da criança”. Há então uma condição de estrutura que faz com que a sexualidade em si mesma seja traumática. Vou falar rapidamente sobre algo que me interessa destacar, que é a articulação entre trauma e fantasia. O conceito de fantasia deslocou o de trauma e, no entanto, nunca o eliminou; há uma articulação necessária entre trauma e fantasia, já que a fantasia não é puro produto da livre imaginação. Lacan diz, no Seminário 11, que “a fantasia é sempre a tela que disfarça algo totalmente primeiro, determinante da função da repetição”. Esse primeiro e determinante é a inscrição traumática, “o primeiro encontro, o real que está detrás da fantasia”; ou seja, o trauma é um componente da fantasia. Freud diz, em O Homem dos Lobos, que “a criança, assim como o adulto, só pode produzir fantasias com material que adquiriu em algum lugar”. As fantasias, em sua estrutura, são universais. A fantasia de sedução, por exemplo, é universal. Cada um monta, entretanto, suas próprias fantasias com os pequenos acontecimentos que tem à disposição. E aí estão as inscrições traumáticas. O componente traumático é o que dá a configuração singular à fantasia. Para Lacan, o trauma é o real da fantasia, aquilo O TRAUMÁTICO NA CONSTITUIÇÃO DO PSIQUISMO EM LACAN que dá sustentação real à mesma. Ele diz, também no Seminário 11: “É em relação ao real que funciona o plano da fantasia. O real a sustenta, e ela protege o real”. Ou seja, tratando-se da fantasia, há algo real que aconteceu. Freud diz, inclusive, em relação ao delírio, em Construções em Psicanálise, que há algo de real no delírio, “um fragmento de verdade históricovivencial” – ou seja, que há também o trauma, algo que marca certa sustentação real. Isso é muito importante – que pena que vou ter de dizer com pressa, porque já é tarde –, mas essa é uma diferença fundamental entre Freud e Jung, e um dos temas que os separaram. Para Jung, a fantasia não tinha nenhuma sustentação real, por isso impugnava a sexualidade infantil. Para ele, as recordações infantis eram fantasias elaboradas à época da puberdade e projetadas retroativamente, sem nenhuma relação com acontecimentos, com algo real. A relação que ele fazia era com os arquétipos inconscientes, mas aí temos outra versão do hereditário, totalmente independente da experiência do sujeito. Para Freud, isso não é assim, e ele escreveu O Homem dos Lobos justamente em plena polêmica com Jung sobre isso. Por isso é que a pergunta que retorna quase obsessivamente nesse relato: o que ele viu, o que aconteceu?. Freud não tem dúvida de que ele viu algo; há fatos reais que dão forma concreta a essa fantasia. De qualquer maneira, lhes dizia antes que por aqui também temos algo que levou Lacan a elaborar a noção de real como diferente e oposta à realidade, porque a realidade na qual nos movemos está totalmente entremeada de fantasias, já está totalmente armada com as lembranças que nós temos. Como Freud diz: “todas as lembranças são encobridoras” – ou seja, já estão totalmente armadas, articuladas e organizadas a partir da fantasia. Se possível fosse descolar, tirar toda a cobertura de fantasia e chegar a esse ponto real, aí sim chegaríamos no conceito de trauma para Lacan. Trauma, para ele, não está do lado da realidade, mas do lado do real. Nesse sentido, ele considera que “nenhuma praxis mais que a análise está orientada para o que no coração da experiência é o núcleo do real [...] que se apresenta, antes de mais nada, sob a forma do trauma”. Mas não é possível 658 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 639-662, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 659 Miguel Leivi eliminar a fantasia – por isso diz que “o real é o impossível”. Podemos teorizar, mas eliminarmos o campo da fantasia é impossível. Há um exemplo clínico que não é de Lacan, mas que ele trabalha no Seminário 3, As Psicoses, que acho interessante para dar conta de onde ele colocaria o trauma e como ele se articula no conjunto da patologia. É o caso de um psicanalista húngaro, logo depois da Primeira Guerra, apresentado como um caso de histeria traumática. O paciente era um senhor que vendia bilhetes nos bondes, esse era o seu trabalho. Um dia, ao descer do bonde, cai, o bonde o arrasta um pouco, ele se machuca, se bate e fica com um galo na cabeça. É levado ao hospital, revisado de ponta a ponta, fazem muitos raios-X, e não encontram nada. Fazem uma pequena sutura no couro cabeludo, ele vai para casa. Um dia de repouso, pronto, passou, não aconteceu nada. Pouco tempo depois, começa a ter sintomas, a sentir dor na altura da primeira costela que se difunde, um mal-estar crescente. Deitase sobre o lado esquerdo, abraçado a um travesseiro, e perde a consciência; ou seja, tudo começa a crescer. Tornam a interná-lo no hospital, revisam tudo, não encontram nada novamente, e o mandam a um psicanalista, com diagnóstico de histeria traumática. O artigo, muito bom, é o relato clínico do tratamento desse senhor, e Lacan faz uma série de considerações sobre esse artigo que não vem ao caso agora. O que nos interessa é que ele diz que aí, evidentemente, há um trauma: caiu, se machucou, e o analista conseguiu continuar por essa linha da histeria traumática. O trauma foi a queda, mas a análise começa a encontrar cenas infantis. Por exemplo, quando ele estava começando a engatinhar, um dia a mãe pisou no seu polegar. Começam a aparecer, enfim, pequenas cenas hierarquizadas a partir disso, que era considerado um trauma. Mas Lacan diz que há um pequeno inconveniente, porque, à medida que se vai apresentando o material clínico, se observa que o decisivo na descompensação da neurose não foi o acidente, mas foram os exames radiológicos. O sujeito desencadeia suas crises durante os exames, que o submetem à ação de misteriosos instrumentos que o perscrutam por dentro, e essas crises, seu sentido, sua periodicidade, seu estilo, se apresentam muito evidentemente como vinculadas ao fantasma O TRAUMÁTICO NA CONSTITUIÇÃO DO PSIQUISMO EM LACAN de uma gravidez. De fato, o próprio analista apresenta o caso centrado na fantasia de gravidez. Surge, então, uma coisa totalmente diferente. A partir da configuração do sintoma, o que aparece hierarquizado como inscrições traumáticas é outro tipo de coisa: aparece, por exemplo, uma cena infantil na qual ele estava escondido, olhando uma mulher que se queixava, gemia e estava em trabalho de parto. Como ninguém viu, ele presenciou todo o parto, que foi traumático, porque a criança nasceu morta e tiveram de tirála aos pedaços. À parte os detalhes, o que importa é o fato de que sempre o trauma é designado a partir dos sintomas. Se o tomarmos no sentido convencional, médico, o trauma foi a queda do bonde; na configuração sintomática, no entanto, o que resultou, o que produziu efeito, foi a radiografia, porque ele estava intrigado com o que se passava no interior do corpo onde poderia crescer uma criança. Eu dizia que Lacan articula o trauma com a repetição, o que é um dos seus conceitos fundamentais em psicanálise. O trauma é o lugar do encontro com o real que está por trás da fantasia: o que há de real, o que sustenta a fantasia, já que a fantasia não é pura imaginação. Poderia ser para Jung, mas não o é para Freud e não o é para Lacan. Ele diz que a fantasia não é uma espécie de “a vida é um sonho”; o trauma está além do retorno, é a causa real da repetição. O traumático é esse primeiro encontro com o real, essa primeira inscrição que sempre é essencialmente um encontro falido, porque nós nunca reagimos adequadamente. “A fantasia é sempre somente a tela que disfarça algo totalmente anterior, determinante na função da repetição [...] Aí está o real que governa mais do que qualquer outra coisa nossas atividades. E a psicanálise é quem designa isso.”1 Lacan discorda de Melanie Klein sobre a função da fantasia. Ele diz que não é a fantasia o motor do desenvolvimento psíquico, mas o traumático que está articulado a ela; não é a fantasia em si mesma, mas ela, de alguma maneira, articula um ponto do traumático que insiste repetidamente, e isso tem a ver com o desenvolvimento psíquico. Não é a mera repeti- 1 Lacan em Seminário 11. 660 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 639-662, 2005 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 661 Miguel Leivi ção pela repetição que demanda algo novo. Na repetição se procura algo que não ocorreu, e se repete indefinidamente um encontro sempre falido, porque – como dissemos – já é tarde para corrigi-lo ou evitá-lo. Além disso, a repetição não se esgota em nenhuma satisfação, porque a satisfação é impossível – por isso, há uma espécie de permanente abertura ao novo. Freud articula o traumático e a repetição com o jogo infantil a partir dessa idéia. Lembrem-se que o “fort-da”, a maior teoria de Freud sobre jogo infantil, está totalmente articulado com a repetição – um dos fundamentos de Mais Além do Princípio do Prazer – e com o traumático, pela desaparição da mãe; é, no entanto, o estímulo para que o netinho comece a brincar e crie a base para todo o seu desenvolvimento. Assim, não é a fantasia o verdadeiro motor do desenvolvimento, e sim o núcleo real, traumático, encoberto pela fantasia, que insiste uma e outra vez, demandando sempre o novo. Lacan trabalha essa questão no Seminário 11, em relação ao sonho que Freud relata no começo do capítulo 7 de A Interpretação dos Sonhos. Trata-se de um pai cujo filho morrera de febre e estava sendo velado. O pai vai dormir no quarto ao lado e sonha que o filho está parado ao lado dele, o pega pelo braço e lhe diz: “Pai, não vês que estou ardendo?”. O pai se acorda, e uma vela havia caído sobre a cama e estava incendiando os lençóis em que estava o cadáver do filho. Lacan diz que Freud coloca esse sonho no princípio do capítulo 7, no qual fala do sonho como a realização de desejos: de certa forma, era a realização do desejo do pai de seguir dormindo para ver um pouquinho mais o filho vivo. Mas se isso fosse tudo, ele continuaria dormindo, não despertaria. Se houvesse somente realização de desejo, continuaria dormindo, poderia usar todo o tempo que quisesse para ver o filho vivo. Então, por que acorda? Lacan, sobre isso, diz que “o sonho não é somente uma fantasia que realiza um desejo”. Esse é o aspecto do sonho que está ligado ao princípio do prazer; há, porém, um mais além desse aspecto: o que o desperta é a realidade, mas qual realidade? Há, por um lado, a realidade do fogo, seu resplendor percebido através das pálpebras. Mas há uma outra realidade, muito mais forte, na dimensão O TRAUMÁTICO NA CONSTITUIÇÃO DO PSIQUISMO EM LACAN do traumático, que é a que ele vê nas palavras do filho no sonho: “Pai, não vês que estou ardendo?”. Essas palavras devem ser palavras reais, palavras ouvidas; essa é uma idéia geral de Freud: tudo o que aparece como palavras no sonho são palavras ouvidas. Isso deve ter sido algo que o filho disse ao pai em algum momento da doença: “Pai, estou ardendo em febre”, e o pai nada pôde fazer para remediar, e o filho morreu. Há aí algum encontro real falido, diante do qual o pai não conseguira fazer nada, e as palavras do filho ficaram inscritas nele como marca traumática desse encontro real falido, como inscrição que volta a aparecer no sonho. E o pai acorda pela ação combinada dessas duas realidades e pôde fazer algo com uma delas – ou seja, pôde apagar o fogo que ameaçava o cadáver. Com a outra realidade, a realidade psíquica que se manifesta no sonho, no entanto, nada pôde fazer: o filho morrera – isso não teria remédio, era tarde e para sempre. Todo encontro possível com esse filho morto será para sempre um encontro falido, como o foi desde aquele momento em que o filho lhe reclamou que fizesse algo, e ele nada pôde fazer. Somente no sonho pôde realizar-se, como desejo, por um instante, esse encontro. Mas no sonho voltará uma e outra vez essa reclamação do filho, diante da qual ele poderá acordar outra vez, mas não a tempo de fazer algo. Muito obrigado. Conferência Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Tradução: Beatriz Afonso Neves Revisão: Heloisa P. Fetter Dr. Miguel Leivi Azcuénaga 1051 – P.B. – B 1115 – Buenos Aires – Argentina Fone/fax (54 11) 4826 0615 / (54 11) 4825 0306 E-mail: [email protected] 662 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 639-662, 2005 PSICANÁLISE – REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE ORIENTAÇÃO AOS COLABORADORES NORMAS GERAIS PARA PUBLICAÇÃO DE TRABALHOS* 1. Os manuscritos que se publicam na Revista devem ajustar-se a alguns requisitos formais: a. O trabalho deve ser inédito (excetuam-se trabalhos publicados em anais de Congressos, Simpósios, Mesas Redondas, ou Boletins de circulação interna b. c. de Sociedades Psicanalíticas; exceções serão consideradas); O trabalho não pode infringir nenhuma norma ética e todos os esforços devem ser feitos de modo a proteger a identidade dos pacientes mencionados em relatos clínicos; d. O trabalho deve respeitar as normas gerais que regem os direitos do autor; e. ofensivo ou difamatório; f. O trabalho não deve conter nenhum material que possa ser considerado O autor deve estar ciente que ao publicar o trabalho na Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegr e ele está transferindo automaticamente o “copyright” para essa, salvo as exceções previstas pela lei; O trabalho não deve estar sendo encaminhado simultaneamente para outra publicação sem o conhecimento explícito e confirmado por escrito do Conselho Editorial. A Revista normalmente não colocará obstáculos a divulgação do artigo em outra publicação, desde que informada previamente. Quaisquer violações destas regras que impliquem em ações legais serão de responsabilidade exclusiva do autor. * Baseado na Revista Brasileira de Psicanálise da Associação Brasileira de Psicanálise. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 663 2. Os trabalhos aceitos e publicados tornam-se propriedade da Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, sendo vedada a sua reprodução, ainda que parcial, sem a devida autorização da Revista. 3. As opiniões emitidas nos trabalhos, bem como a exatidão, adequação e procedência das referências e citações bibliográficas, são de exclusiva responsabilidade dos autores. 4. Os originais deverão obedecer as seguintes exigências mínimas: a. b. 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Tabelas gráficos, desenhos e outras ilustrações sob forma de cópias fotográficas devem ser Os ensaios e reflexões deverão obedecer a seguinte estrutura: título, nome do autor, titulação do autor, tex to, palavras-chave (em português, Inglês e O resumo deverá conter em torno de 150 palavras e ser capaz de transmitir ao leitor os pontos principais que o autor deseja expressar. As seguintes normas estão baseadas nas publicadas pelo International Journal of Phychoanalysis e na Revista Brasileira de Psicanálise. As referências deverão incluir somente trabalhos estritamente relevantes e necessários, não se deve acumular uma vasta bibliografia. As referências no decorrer do tex to serão dadas citando-se o nome do autor seguido do ano de publicação entre parênteses, por exemplo, Freud (1918) ou (Freud, 1918). 664 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 663-666, 2005 Se dois co-autores são citados, os dois nomes deverão ser mencionados, por exemplo Marty , de M’Uzan (1963) ou (Marty, de M’Uzan, 1963). Se houver mais de dois autores, a referência no tex to indicará o primeiro, por exemplo: Rodrigues et al.(1983) ou (Rodrigues et al.,1983). A referência completa das obras citadas figurará na lista das referências bibliográficas, colocada no final do artigo, lista essa que deverá corresponder exatamente às obras citadas, sem referências suplementares. Os autores são mencionados em ordem alfabética e suas obras pela ordem cronológica de publicação. (para as obras de Freud, as datas correspondentes são indicadas entre parênteses na Standard Edition). Se várias obras foram publicadas no mesmo ano, deve-se acrescentar à data de publicação, as letras a, b, c etc. Quando um autor é citado individualmente e também como co-autor, serão citadas antes as obras onde ele é o único autor, seguidas das publicações em que ele é o co-autor. Os nomes dos autores não serão repetidos, mas indicados por um traço. Os títulos dos livros grifados, sendo que as palavras mais importantes serão escritas em letras maiúsculas, o lugar da publicação e o nome do editor serão igualmente indicados. Se uma referência é dada a partir de outra edição que a original, a data da edição utilizada deverá figurar no final da referência. Nos títulos dos artigos (e igualmente nas obras de Freud) somente a primeira palavra figurará em letra maiúscula. O título do ar tigo será seguido da abreviação grifada da revista, do número do volume, e dos números da primeira e da última página. Para as abreviações dos títulos das revistas, poder-se-ão consultar os números que já foram mencionados ou no caso de dúvida, citar o nome por ex tenso. Nos exemplos seguintes, podem-se obser var a utilização das letras maiúsculas, a pontuação, os dados e sua ordem de apresentação. 6. Procedimentos de Avaliação: a. Todo ar tigo entregue para publicação será avaliado através de critérios padronizados por três avaliadores membros do Conselho Editorial da Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre; Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 665 b. O avaliador será mantido em sigilo pela Revista, recomendando-se que o c. mesmo seja mantido pelo próprio avaliador. d. editorial estabelecido; Sendo o artigo recomendado pela maioria dos avaliadores, será considerado, em princípio, aprovado para publicação. A decisão final quanto à data de sua publicação dependerá do número de artigos aprovados e do programa Artigos que não forem publicados em 6 (seis) meses, a partir da data de sua aprovação serão oferecidos de volta ao seu autor, para que esse tenha liberdade de enviá-lo a uma outra publicação. PS. Para mais detalhes consultar revistas. 666 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 663-666, 2005