Revista - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre

Transcrição

Revista - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
ISSN 1518-398X
PSICANÁLISE – REVISTA DA SOCIEDADE
BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE
Filiada à Associação Psicanalítica Internacional desde
1992, à FEPAL e à Associação Brasileira de Psicanálise
v. 7, n. 2, 2005
EDITOR
Heloisa Helena Poester Fetter
CONSELHO EDITORIAL
Ana Rosa C. Trachtenberg • Elfriede Susana Lustig de Ferrer (in
memoriam) • Gildo Katz • João Baptista Novaes Ferreira França •
Leonardo Wender • Samuel Zysman • Sara Zac de Filc
COMISSÃO EDITORIAL
Ane Marlise Port Rodrigues • Carmen Lúcia M. Moussalle • Carmen Saile
Willrich • Rosa Beatriz S. Squef f • Vera Dolores Mainieri Chem
BIBLIOTECÁRIA
Geisa Costa Meirelles •
Laís Rosa dos Santos – Estagiária
EDITORAÇÃO
Luiz Cezar F. de Lima
LAY-OUT
Josimo Silva Lopes – Speed Press
DIGITAÇÃO
Nilza Cidade Cardarelli
REVISÃO DE PORTUGUÊS
Professor Antônio Paim Falcetta
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
Rua Quintino Bocaiúva, 1362 – 90440-050 – Porto Alegre – RS – Brasil
Fone/Fax: (55-51) 3330.3845 – (55-51) 3333.6857
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 311
Capa:
AMENHOTEP I E AMÓSIS-NOFRETIRI
22
Egito, Novo Império (XVIII Dinastia), provavelmente de
Amenhotep III, 1390-1353 a.C.
Pedra-sabão, 9 x 8,3 cm
3072
A figura principal desta díade fragmentada é o deificado Amenhotep I, que é mostrado usando uma peruca
núbia curta, saiote, braceletes e segurando um mangual em sua mão direita. Está ao lado de sua mãe, a rainha deificada
Amósis-Nofretiri, que usa um elaborado ornamento para cabeça com a forma de um abutre, um vestido justo e um colar
largo. Buracos de encaixe no topo da cabeça de cada uma das figuras tinham provavelmente a função de fixar adornos.
Nas costas da peça estão gravados dois pares opostos de colunas de hieróglifos, uma coluna dupla para cada figura.
No tex to atrás do rei lê-se: “O bom deus, filho de Amon, (...)/ Rei do Alto e Baixo Egito, Djeserkare (...).” A coluna atrás
da rainha pode ser traduzida deste modo: “A esposa do deus, nascida de um deus, a esposa do rei (...)/ sua mãe, a mãe
do rei, Amósis-Nofretiri (...).”
Depois de suas mortes, tanto Amenhotep I, segundo rei da XVIII Dinastia (cerca de 1514-1493 a.C.), quanto
sua mãe Amósis-Nofretiri, esposa do Rei Amósis I (cerca de 1539-1514 a.C.) foram venerados como protetores divinos
da enorme necrópole de Tebas. Desfrutavam de especial popularidade entre os trabalhadores oficiais da necrópole,
instalada no vilarejo de Deir el-Medina. A razão para a devoção prestada ao casal não é de todo clara, embora já se tenha
especulado que Deir el-Medina teria sido fundada durante o reinado de Amenhotep I. Parece que ambos compartilharam
uma sepultura em Dra Abu’l Naga, em uma tumba a princípio preparada para Amósis-Nofretiri e mais tarde ampliada
para um segundo sepultamento. Em 1913-14 esta tumba foi aberta em nome do quinto Conde de Carnarvon por Howard
Carter, o arqueólogo conhecido pela descoberta da tumba de Tutancâmon em 1922.
Sua escultura, que talvez seja proveniente de um pequeno santuário doméstico, está ligada a um grupo de
estatuetas em pedra-sabão esmaltadas que representam a própria Amósis-Nofretiri ou a Rainha Tiye, esposa de
Amenhotep III, o faraó sob cujo reinado esta peça foi provavelmente esculpida..
—CNR
Esta rainha-mãe, retratada afetuosa e intimamente ao lado de seu filho-rei, deve ter atraído Freud, que foi primogênito e
filho favorito. “Se um homem foi, sem concorrência, o filho predileto de sua mãe, conserva ao longo da vida o sentimento
triunfante, a confiança no sucesso, que não raro traz consigo o sucesso real.” (SE, 17, p.156).
Ao longo de sua vida, Freud acompanhou avidamente as notícias de escavações, e certamente deve ter sabido
da descoberta da tumba de Amenhotep I e Amósis-Nofretiri, realizada por Howard Carter. O autor do complexo de Édipo
pode ter ficado intrigado com esta disposição funerária – mãe e filho, dispostos lado a lado em uma tumba comum, para
toda a eternidade.
—FM
Sobre Amenhotep I e Amósis-Nofretiri, ver W. Helck et al., Lexikon der Ägyptologie (Wiesbaden, 1972-), I, cols. 102-109,
s.v. “Ahmose Nofretere” (M. Gitton), e ibid., cols. 201-203, s.v. “Amenophis I” (E. Hornung), com referências. Sobre o
sepultamento de Amenhotep I e Amósis-Nofretiri, ver C. N. Reeves, Valley of the Kings: The Decline of a Royal Necropolis
(Londers, 1990), pp.3-5. Para outras esculturas relacionadas, ver C. Aldred, “Ahmose-Nofretari Again”, Artibus Aegypti.
Studia in honorem Bernardi V. Bothmer a collegis amicis discipulis conscripta (Bruxelas, 1983), pp. 7-14.
P975
Psicanálise – Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre/
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. – v. 7, n. 2, 2005 –.
Porto Alegre: SBPdePA, 1999 –
1. Psicanálise-Periódicos I. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto
Alegre.
ISSN 1518-398X
CDU: 616.891.7
Tiragem: 300 exemplares
Bibliotecária Responsável: Geisa Costa Meirelles
312 Psicanálise v. 1, n. 1, 1999
CRB 10/1110
SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE
Filiada à Associação Psicanalítica Internacional
DIRETORIA
INSTITUTO DE PSICANÁLISE
Presidente
Dr. New ton M. Aronis
Diretor
Dr. Gley Silva de Pacheco Costa
Tesoureiro
Dr. Lores Pedro Meller
Secretária
Dra. Ana Rosa C. Trachtenberg
Coordenador da Comissão Científica
Dr. Fernando Linei Kunzler
Secretário
Dr. Antônio L. Bento Mostardeiro
Coordenador de Seminários
Dr. Leonardo A. Francischelli
Coordenador de Formação
Dr. Luiz Gonzaga Brancher
Coordenador da Comissão de Publicação e Biblioteca
Dra. Heloisa Helena Poester Fetter
Coordenador da Comissão de Divulgação, Relações com
a Comunidade e Informática
Dr. Flávio Roithmann
Coordenador da Comissão de Clínica Social
Dr. César Augusto Antunes
NÚCLEOS
Núcleo de Infância e Adolescência
Coordenadora: Dra. Vera Maria H. Pereira de Mello
Núcleo de Vínculos e Transmissão Geracional
Coordenadora: Dra. Ana Rosa C. Trachtenberg
Núcleo de Pesquisa em Psicanálise
Coordenador: Dr. New ton M. Aronis
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 313
MEMBROS FUNDADORES
Alberto Abuchaim
Ana Rosa Chait Trachtenberg
Antonio Luiz Bento Mostardeiro
David Zimmermann
Gildo Katz
Gley Silva de Pacheco Costa
Izolina Fanzeres
José Facundo Passos de Oliveira
José Luiz Freda Petrucci
Júlio Roesch de Campos
Leonardo Adalberto Francischelli
Lores Pedro Meller
Luiz Gonzaga Brancher
Marco Aurélio Rosa
New ton Maltchik Aronis
Renato Trachtenberg
Sérgio Dornelles Messias
MEMBRO HONORÁRIO
Dr. David Zimmermann (Falecido)
LINHA EDITORIAL OU POLÍTICA EDITORIAL
A revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre é uma publicação
semestral editada regularmente desde 1999. Recentemente foi indexada na Base
de Dados INDEX PSI. Tem como finalidade publicar trabalhos selecionados de
psicanalistas brasileiros das Sociedades Psicanalíticas e Grupos de Estudos filiados
à Associação Psicanalítica Internacional e de autores de notório saber, visando
aprofundar, divulgar, ampliar e atualizar conhecimentos na área da psicanálise. A
Revista publica também artigos originais ou traduções de trabalhos de analistas
estrangeiros, ainda de candidatos em formação do Instituto de Psicanálise. São
aceitos artigos de profissionais ligados a Universidades e articulistas de comprovado
saber, ligados de alguma forma à psicanálise e às ciências humanas.
314 Psicanálise v. 1, n. 1, 1999
Psicanálise v. 7, n. 2, 2005
Revista da SBPdePA
SUMÁRIO
SAUDAÇÕES
Palavras do Presidente
New ton Aronis
•
321
EDITORIAL
Palavras do Editor • 325
Heloisa Helena Poester Fetter
ARTIGOS/ENSAIOS/REFLEXÕES
O Trauma Primordial na Dialética do Representável e do Irrepresentável • 329
Ana Paula Terra Machado, Ignácio Alves Paim Filho
Identificações Traumáticas, Congelamento e Transgeracionalidade • 347
Ana Rosa Chait Trachtenberg, Mayra Dornelles Lorenzoni
Transgeracionalidade: a patologia da transmissão psíquica entre gerações • 369
Aline Baümer, Ana Rosa Chait Trachtenberg, Maria Luíza Furtado Kahl
Narcisismo e Trauma: a atualidade e a história • 395
Antonino Ferro
A Vivência do Trauma no Analista: da dor ao ato criativo • 413
Augusta G. Heller, Magda Beatriz Martins Costa
Trauma e Literatura: repetição e criação na Literatura e na Psicanálise • 429
Carlos F. L. Pires Leal
Trauma e Adolescência • 445
David Léo Levisky
Trauma e Construção do Imaginário • 465
Laura Ward da Rosa
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 315
Sedutopatia: um ensaio • 483
Leonardo A. Francischelli
Contratransferência em Situações “Ex tremas” • 489
Mauro Manica
Trauma e Interpretação • 513
Paola Marion
O Objeto “Surdo-Mudo” e o Trauma Pré-Conceitual: com o uso do conceito de
“Cesura” de W. Bion • 537
Rafael E. López-Corvo
Trauma: impacto da família na estruturação psíquica • 561
Regina Lúcia Braga Mota
Mudança Psíquica e Crescimento Emocional • 573
Rosane Muller Costa
O Trauma, a Psicose e o Transtorno de Estresse Pós-Traumático • 595
Sebastião Abrão Salim
O Traumático na Constituição do Psiquismo: as contribuições de W.R. Bion e
Donald Meltzer • 625
Virginia Ungar
CONFERÊNCIA na SBPdePA
O Traumático na Constituição do Psiquismo em Lacan • 639
Miguel Leivi
316 Psicanálise v. 1, n. 1, 1999
Psicanálise v. 7, n. 2, 2005
Revista da SBPdePA
CONTENTS
ARTICLES/ESSAYS/MEDITATIONS
The Primordial Trauma in the Dialetic of the Representable and the
Unrepresentable • 329
Ana Paula Terra Machado, Ignácio Alves Paim Filho
Trauma Identifications, Freezing and Transgenerationality • 347
Ana Rosa Chait Trachtenberg, Mayra Dornelles Lorenzoni
Transgenerationality: the pathology of the psychic transmission among
generations • 369
Aline Baümer, Ana Rosa Chait Trachtenberg, Maria Luíza Furtado Kahl
Narcissism and Trauma: nowadays and history • 395
Antonino Ferro
The Existence of Trauma in the Analyst: from the pain to the creative act • 413
Augusta G. Heller, Magda Beatriz Martins Costa
Trauma and Literature: repetition and creation in Literature and
Psychoanalysis • 429
Carlos F. L. Pires Leal
Trauma and Adolescence • 445
David Léo Levisky
Trauma and the Construction of the Imaginary • 465
Laura Ward da Rosa
Sedutopatia: an essay • 483
Leonardo A. Francischelli
Countertransference in “Ex treme” Situations • 489
Mauro Manica
Trauma and Interpretation • 513
Paola Marion
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 317
The “Deaf-Mute” Object and the Pre-Conceptual Trauma: with the use of Bion’s
“Caesura” Concept • 537
Rafael E. López-Corvo
Trauma: the impact of family on psychic structuring • 561
Regina Lúcia Braga Mota
Psychic Change and Emotional Grow th • 573
Rosane Muller Costa
Trauma, Psychosis and Post traumatic Stress Disorder • 595
Sebastião Abrão Salim
The Traumatic in the Constitution of Psychism: the contributions of W.R. Bion and
Donald Meltzer • 625
Virginia Ungar
LECTURE at SBPdePA
The Traumatic in the Constitution of Psychism in Lacan • 639
Miguel Leivi
318 Psicanálise v. 1, n. 1, 1999
Saudações
Newton Aronis
Os últimos anos têm sido
marcantes quanto a mudanças nas
relações entre a Psicanálise e a sociedade. Nas suas primeiras décadas
de existência, foi possível uma sedimentação da Psicanálise na cultura através de sua força teórica.
Entre essas mudanças recentes,
está, especialmente, a demanda de
uma interatividade constante, colocando o psicanalista em uma situação bastante diferente da clássica
posição de neutralidade, não só com
seu paciente, como também com
toda a realidade circundante.
Abrimos espaços em nossas
instituições para pensar nossos vínculos com a comunidade, incluindo
a Universidade. A pesquisa, assim,
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 321
Newton Aronis
Palavras do
Presidente
PALAVRAS
DO
PRESIDENTE
passou a ter lugar especial em nosso trabalho.
É certo que Freud apontara esse caminho de interatividade, na forma
com que se relacionou com a cultura, com a Universidade, no diálogo com
outras áreas do conhecimento, na sua curiosidade investigativa. Mas é
igualmente correto afirmar que, a partir da década de 20, com a necessidade de sistematizar não só a ciência psicanalítica, mas também a transmissão da mesma, houve certa tendência à burocratização, paralelamente a
uma evolução teórica inegável.
Alguns preceitos supostamente técnicos foram, por decorrência, nos
levando a um isolamento importante, sustentando uma pureza do pensamento psicanalítico que hoje podemos pensar como um empobrecimento.
Por sorte, sempre tivemos pensadores que puderam ir além de suas instituições.
Uma das mudanças mais significativas em nossa prática clínica, nas
últimas décadas, foi a tendência à transformação do psicanalista, saindo
este de sua posição de observador não-participante. Aumentou a autoridade da Psicanálise como um corpo teórico, e diminuiu a nossa, como psicanalistas, sujeitos às vicissitudes do processo analítico.
Quando falamos em crise da psicanálise, podemos estar nos referindo,
na realidade, a uma crise dos psicanalistas na exigência de se modificar
continuamente. É nossa tarefa encontrar o ponto adequado entre um estado
criativo e um estado tóxico, pelo excesso de estímulos. Mas esse é um
problema de toda a sociedade e um objeto de nosso entendimento.
Ler e escrever nos ajudará nesse processo elaborativo de como pensar
a Psicanálise atual.
Espero que nossa revista siga tendo a capacidade, pela qualidade de
seus editores e articulistas, de nos ajudar nessa tarefa.
Uma boa leitura e saudações a todos.
Newton Aronis
Porto Alegre, dezembro de 2005
322 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 321-322, 2005
Editorial
Heloisa Helena
Poester Fetter
A equipe editorial da Revista
da SBPdePA está fechando mais
uma etapa de intenso e gratificante
trabalho. Na verdade, é um ciclo
que se completa – resultado da
união de colegas voltados a um objetivo comum –, mas também que
contribui para a estruturação de uma
tradição científica, na medida em
que a Revista congrega e exterioriza
o pensamento da Sociedade como
um todo. Dessa forma, não podemos deixar de reconhecer o trabalho das equipes anteriores (o passado como reservatório que nutre a
nossa fome de saber) e dizer da nossa expectativa com o que poderá ser
realizado pela nova equipe (o futuro
com suas infinitas aberturas).
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 325
Heloisa Helena Poester Fetter
Palavras
do Editor
PALAVRAS
DO
EDITOR
O norte da nossa meta editorial foi a pluralidade e a abrangência dos
temas abordados, havendo o cuidado de não se perder a essência do pensamento psicanalítico.
Tivemos a preocupação de solicitar a indexação da revista junto à Base
Lilacs, referência máxima na América Latina e do Caribe na área de Ciências da Saúde.
Esse volume atende a um antigo desejo referente à realização de uma
revista temática. Aproveitando o ano do Congresso Internacional, escolhemos o tema: trauma. Um número temático sempre é útil para dirigir a atenção a determinado assunto psicanalítico e propiciar que possamos observar
a sua evolução e a sua inserção no contexto atual da teoria e da clínica.
Os trabalhos são de excelente nível, especialmente os que foram apresentados no 44.º Congresso Internacional de Psicanálise e que tivemos o
prazer de receber para publicação.
Cabe à editora agradecer a imensa dedicação de todos os participantes
da equipe, esperando que os leitores que têm nos prestigiado aproveitem
mais essa publicação.
Bom proveito a todos.
Heloisa Helena Poester Fetter – Editora
Porto Alegre, dezembro 2005
Comissão Editorial da Revista.
326 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 325-326, 2005
Artigos/Ensaios/Reflexões
O que se segue é especulação,
amiúde especulação forçada, que
o leitor tomará em consideração
ou porá de lado, de acordo com
sua predileção individual. É mais
uma tentativa de acompanhar uma
idéia sistematicamente, só por curiosidade de ver até onde ela levará. (FREUD, 1920, p.39)
Ana Paula Terra
Machado
Psicóloga; Membro pleno do
Centro de Estudos Psicanalíticos
de Porto Alegre; Psicanalista
Membro Associado da Sociedade
Brasileira de Psicanálise
de Porto Alegre.
Ignácio Alves Paim
Filho
Médico; Membro Pleno do Centro
de Estudos Psicanalíticos de Porto
Alegre; Candidato do Instituto de
Psicanálise da Sociedade Brasileira
de Psicanálise de Porto Alegre.
Acompanhados pelas palavras
de Freud, sentimo-nos estimulados
e com o desejo de especular sobre
um conceito, uma idéia com a pretensão de redimensionarmos o lugar
da teoria do trauma. O trauma que
carrega consigo a marca de algo conhecido e ao mesmo tempo desconhecido, suscitando questionamentos, com uma rara capacidade de
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 329
Ana Paula Terra Machado,
Ignácio Alves Paim Filho
O Trauma
Primordial na
Dialética do
Representável e
do Irrepresentável
O TRAUMA PRIMORDIAL NA DIALÉTICA DO
REPRESENTÁVEL E DO IRREPRESENTÁVEL
alojar e desalojar os nossos conhecimentos.
Com a meta de revisitarmos o pensamento freudiano sobre esse tema,
partimos de uma fração de tempo, 1892 a 2005, na qual encontramos o
desenrolar de uma história que julgamos fazer parte da essência da psicanálise, a história do trauma. Sabemos que Freud inicia suas investigações
com pacientes histéricas, seguindo o caminho de Charcot e Breuer; naquele momento, o trauma sexual infantil é considerado o agente causador das
neuroses, enfatizado em 1893 na célebre frase: “Os histéricos sofrem principalmente de reminiscências”. Assim, a partir da escuta das suas histéricas vienenses, Freud postulou suas concepções iniciais sobre o funcionamento mental, tendo no trauma real o agente etiológico princeps da histeria.
O trauma se configuraria um evento de caráter sexual, uma sedução
experienciada precocemente, permanecendo seu registro no inconsciente,
sem entretanto ter significado, devido à imaturidade e à incapacidade de
quem sofreu a sedução. Num segundo momento, diante de outra cena, que
não necessariamente sexual, haveria uma ligação com a situação precedente, desencadeando o afeto até então inconsciente, gerando angústia e sintomas. A eclosão do trauma se daria a posteriori (nachträglichkeit), conceito
introduzido e desenvolvido por Freud no Projeto (1950[1895]), no caso
Emma, que abre caminho para a compreensão de como acontecimentos de
um outro tempo, o atual, podem de maneira retroativa, através das ligações
representacionais, ter significado ou novo significado, assumindo então um
caráter traumático.
Alguns anos depois, na conhecida Carta nº 69 a Fliess, de 21/09/1897,
Freud (1950[1892-1899]) diz não acreditar mais na sua neurótica, renunciando à teoria da sedução infantil traumática, enquanto ligada ao que foi
vivenciado, aos fatos propriamente ditos. Esse momento é um divisor de
águas no pensar freudiano, o que permitiu emergir o novo, a idéia de uma
realidade psíquica permeada pelo mundo pulsional e pelas fantasias, podendo estas, também, ter efeitos traumáticos, como, por exemplo, o complexo da castração (1908), abrindo um novo caminho à compreensão do
330 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 329-345, 2005
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 331
Ana Paula Terra Machado,
Ignácio Alves Paim Filho
trauma. Nesse sentido, amplia-se a noção de causa e efeito, e o mundo
fantasmático passa a ocupar um espaço determinante, junto das vivências,
no que se refere ao trauma no psiquismo. É importante ressaltar que a noção de trauma acompanha os desenvolvimentos teóricos até o final da obra
freudiana, sofrendo modificações e, sobretudo, se complexizando.
Esse entendimento do trauma oriundo da confluência tanto do externo
quanto do interno resulta nas séries complementares propostas nas Conferências Introdutórias (1916/1917), nas quais as vivências individuais
unem-se às fantasias primitivas, resultando daí as características próprias
de cada indivíduo. Essas Conferências foram produzidas em meio aos horrores da Primeira Guerra, e essa realidade se impôs na vida diária da família Freud. Provavelmente, os acontecimentos o mobilizaram para que passasse a refletir sobre as repercussões psíquicas dessas vivências traumáticas. As chamadas neuroses de guerra são equiparadas às neuroses traumáticas, em que o perigo externo desencadeia o traumático. Na Conferência
XVIII é estabelecida uma conexão entre neuroses traumáticas e as demais
neuroses, em que a fixação ao trauma também está presente. “Assim, a
neurose poderia equivaler a uma doença traumática e apareceria em virtude
da incapacidade de lidar com a experiência cujo tom afetivo fosse excessivamente intenso”, afirma Freud (p.325). Essa idéia remete ao aspecto econômico que é salientado quando coloca: “Realmente o termo traumático
não tem outro sentido senão o sentido econômico” (p.325).
Como estamos vendo, Freud teve uma vida marcada por um interrogar-se constante e chega aos anos vinte inquieto, preocupado com a questão da destrutividade humana. Sua clínica lhe questionava a validade do
seu método, como, por exemplo, seu mais célebre caso: o Homem dos Lobos, que retorna para tratamento em 1918, denunciando uma repetição.
Repetição esta que põe em cheque um dos pilares metapsicológicos centrais do pensamento freudiano: o princípio do prazer. Parece-nos que essas
questões influenciaram Freud a reformular a sua teoria pulsional, postulando um além do principio do prazer que terá como dualismo pulsional a
pulsão de morte versus a pulsão de vida. A tese desse além se utilizaria
O TRAUMA PRIMORDIAL NA DIALÉTICA DO
REPRESENTÁVEL E DO IRREPRESENTÁVEL
especialmente dos sonhos típicos das neuroses traumáticas, que não obedecem ao princípio do prazer, mas sim à compulsão à repetição, oriunda
desse traumático que o psiquismo não consegue elaborar, denunciando a
força da pulsão de morte, excedente pulsional que não consegue fazer ligações psíquicas.
Com o advento da pulsão de morte, Freud reencontrou um lugar para o
não-sexual no psiquismo, lugar que tinha se perdido em 1914, no texto
sobre o narcisismo, em que tudo havia sido libidinizado, em que o
dualismo se dá entre a libido do eu versus a libido objetal. A pulsão passa
a circular dentro da psique como uma força disjuntiva, uma intensidade
que invade o psiquismo, fazendo Freud retomar o seu interesse a respeito
do trauma.
A pulsão de morte, conceito introduzido em 1920, remeterá ao lugar
do caos, da não-ordem, da destrutividade, e só temos acesso a ela via pulsão
sexual. A pulsão sexual segue inerente ao campo representacional, é produto de um trabalho psíquico, constituída a partir do encontro com o objeto.
O trauma ressurge intimamente ligado ao novo postulado pulsional,
porém é em 1926, em Inibições, Sintomas e Ansiedade, que ele se torna
fundamental para a metapsicologia freudiana. Constitutivo do psiquismo,
tem como seu porta-voz a angústia. A partir desse artigo teremos o nascimento da segunda teoria da angústia, que passa a ser a responsável pela
criação do recalque. Isso nos autoriza a dizer que sem trauma e angústia
não há recalque, sendo um dado importante diante das patologias atuais,
em que o traumático não se faz presente pela angústia, mas sim pelo vazio.
Reafirmamos, o trauma é produto da inundação do aparelho psíquico
que provoca uma ruptura das barreiras antiestímulo, criando um estado de
tensão gerador de ansiedade. A incapacidade para lidar com essa situação
remete ao desamparo original (hilflosigkeit), reeditando o desvalimento
infantil, quando o psiquismo ainda incipiente e em formação não tem condições de metabolizar as intensidades que o assolam. O estado de desamparo é protótipo da situação traumática que desencadeia uma ansiedade
332 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 329-345, 2005
Seguindo essa seqüência ansiedade-perigo-desamparo (trauma) podemos agora resumir o que se disse. Uma situação de perigo é uma situação reconhecida, lembrada e esperada de desamparo. A ansiedade é a
reação original ao desamparo no trauma, sendo reproduzida depois da
situação de perigo como sinal de busca de ajuda. O ego, que experimentou o trauma passivamente, agora o repete ativamente, em versão
enfraquecida, na esperança de ser ele próprio capaz de dirigir seu curso.
Entretanto, o que estabelece a condição de perigo está relacionado às
intensidades e ao modo como se dará seu registro no psiquismo. Os perigos
que podem resultar numa situação traumática envolvem as perdas inerentes ao desenvolvimento, iniciando com a situação de nascimento e as demais experiências de separação que o sujeito enfrenta no decorrer da vida.
Dentro desse contexto, o traumático é intrínseco à própria condição humana, assumindo em cada indivíduo seus contornos particulares, individuais.
Agregaríamos a esses dois clássicos, Além do Princípio do Prazer
(1920) e Inibições, Sintomas e Ansiedade (1926), um terceiro, O Mal-Estar na Civilização (1930), no qual encontramos uma espécie de fechamento da década, em que o novo postulado pulsional vai ser reconhecido de
forma explícita, como a mola propulsora do psiquismo, com toda a sua
força disruptiva. Freud (1930, p.142) comenta: “A pulsão de morte é a
pulsão por excelência”, e segue dizendo, “não posso mais entender como
podemos ter desprezado a ubiqüidade da agressividade e da destrutividade
não eróticas e falhado em conceder-lhe o devido lugar em nossa interpretação da vida”.
Após esse breve percorrido pelo pensamento metapsicológico freudiano acerca do trauma, vejamos como podemos esboçar uma possível trajetória para as suas vicissitudes, relacionando-o com as patologias da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 333
Ana Paula Terra Machado,
Ignácio Alves Paim Filho
automática que será revivida sob a forma de ansiedade sinal, quando detectada uma situação de perigo que ameace o ego. Eis o que Freud (1926,
p.192) nos relata:
O TRAUMA PRIMORDIAL NA DIALÉTICA DO
REPRESENTÁVEL E DO IRREPRESENTÁVEL
contemporaneidade. Em nossa clínica cotidiana nos deparamos com muitos interrogantes, que têm recebido os mais variados nomes: patologias
atuais, patologias do vazio, clínica do negativo, o vazio na neurose e, principalmente, a questão da psicossomática, que segue sendo um enigma que
clama por um deciframento metapsicológico, em que o corpo tem de dar
conta das intensidades que o psiquismo não consegue elaborar. Parece-nos
que o traço comum entre elas é um aquém da representação. Portanto, movidos por esses interrogantes nascidos a partir das inquietudes do criador
da psicanálise e pelas peculiaridades do nosso tempo, pretendemos nos
aventurar numa especulação do irrepresentável e do representável, na busca de construir uma hipótese metapsicológica do trauma como elemento
fundante da psique.
Acreditamos que, para isso, teremos de nos inquirir sobre os construtos do psiquismo. Façamos um recuo do tempo presente para o tempo das
origens, anterior ao recalcamento originário, tempo de criação do inconsciente que nunca foi consciente (inconsciente originário), baseado nas
intensidades das mais primitivas inscrições psíquicas que provocam um
trauma primordial, percebido pela repetição oriunda da pulsão de morte.
Iremos nos ocupar justamente dessas inscrições primordiais, marcas
de um processo energético, nomeadas por Freud na Carta 52 (1896) de
indicadores de percepção que ligamos à idéia de impressões: “é o primeiro
registro das percepções; é praticamente incapaz de assomar à consciência e
se dispõe conforme as associações por simultaneidade” (p.282). Esse conceito reaparece em vários momentos de sua obra, sempre vinculado aos
primórdios, como em Leonardo da Vinci e uma Lembrança da sua Infância (1910), na qual temos as impressões ligadas à presença do seio materno, “a cauda do pássaro em sua boca”. No caso de O Homem dos Lobos
(1918/1914), temos referências às impressões relacionadas à cena primária como algo passado que não pode ser lembrado, apenas construído. Finalmente em 1939, em Moisés e o Monoteísmo, Freud relaciona a gênese
da neurose com as impressões infantis muito precoces.
Assim sendo, postulamos que, através do binômio: pulsão de morte334 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 329-345, 2005
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 335
Ana Paula Terra Machado,
Ignácio Alves Paim Filho
impressões (afirmação-expulsão), podemos construir um pensar sobre o
trauma primordial na dialética do representável e do irrepresentável. Nesse
sentido, na Conferência XXXII, de 1932 (p.118), Freud coloca: “É apenas
a magnitude da soma de excitação que transforma uma impressão em momento traumático, paralisa a função do princípio do prazer e confere à situação de perigo sua importância”.
Com o objetivo de uma melhor contextualização desses primórdios,
nos remetemos ao texto freudiano A Negativa (1925) e às idéias de GarciaRoza (1986) sobre esse tema, estabelecendo uma articulação das idéias de
Freud, Hegel e Jean Hyppollite. Refletindo sobre essas idéias, partimos de
Hegel, que em 1807 introduz no pensamento filosófico a categoria
ontológica da negatividade, sendo esta considerada a própria essência do
ser. Hegel afirma que o sujeito tem seu fundamento na negatividade; pensa
que o homem rompe com o natural, vindo a constituir-se, justamente, por
essa negação do natural. Garcia-Roza (1986, p.101), comentando o pensamento hegeliano, nos diz: “O sujeito desse discurso encontra seu fundamento na negatividade; é ao negar a natureza, assimilando-a e transformando-a, que o homem se constitui como homem. A negatividade aparece
como ação do homem sobre a natureza, ação criadora porque negadora do
dado”.
Hyppollite, referindo-se ao texto freudiano A Negativa, no Apêndice I
dos Escritos de J. Lacan (1998), faz algumas ligações entre o pensamento
de Freud e Hegel. Ressalta a importância no pensar de Freud da palavra
dialética de Hegel Aufhebung, que tem duplicidade de sentido: negar, suprimir, e conservar, caracterizando que algo é negado e ao mesmo tempo
mantido. Esse raciocínio é fundamental na sustentação do sujeito psíquico
freudiano, ficando exemplificado nos destinos da pulsão, que são modos
de satisfação da demanda (conservar) e ao mesmo tempo uma defesa diante do poder da força pulsional (negar). Portanto, podemos dizer que o postulado de um trauma primordial inerente a todo sujeito está ligado à impossibilidade em suas origens de negativar as intensidades das suas pulsões,
devido à fragilidade do humano, em meio à natureza da qual é oriundo –
O TRAUMA PRIMORDIAL NA DIALÉTICA DO
REPRESENTÁVEL E DO IRREPRESENTÁVEL
recordando que o trauma, em Freud, sempre ficou ligado a uma quantidade
pulsional não assimilável pela psique. Assim, nas origens de um ser desamparado em termos biológicos e psíquicos, é inevitável que o pulsional
seja sempre traumático.
Seguindo o percurso proposto por Hyppollite, Garcia-Roza postula a
idéia de uma “Aufhebung freudiana”, ou seja, modos de negativar a força
da pulsão, no seu duplo aspecto de suprimir e conservar. Essa força do
negativo na obra de Freud é encontrada na construção de conceitos fundamentais, tais como: recalcamento (verdrängung), negação (verneinung),
desmentida (verleugnung) e forclusão (verwerfung). É importante salientar
que são as forças primordiais – afirmação e expulsão – as responsáveis
pelo estabelecimento e articulação dessas operações no aparelho psíquico.
Para que seja sustentável essa dupla ação (suprimir e conservar), é necessário um trabalho de transformação nomeado por autores contemporâneos,
como Garcia-Roza (1986) e André Green (1977), de Trabalho do Negativo. Esse trabalho é o responsável pelo desligamento da pulsão do objeto,
vinculado à idéia da pulsão de morte, pois esse ato de desligar possibilita a
criação de um espaço e de um tempo que busca novo destino para a meta
pulsional. Em síntese, a dinâmica do negativo se faz em duas etapas: inicialmente, ocorre um desligamento, através das forças negativadoras, à
demanda pulsional; posteriormente, essa energia pulsional liberada poderá
ter como destino novas ligações ou manter-se pulsando como intensidade
não ligada. Assim sendo, o “trabalho do negativo” transita desde um pólo
estruturante (representacional), ligado às vicissitudes da forclusão (o mais
primitivo/representação de coisa), ao recalcamento (mais evoluído/representação de palavra e de objeto), em que temos uma boa sintonia entre a
pulsão de vida e de morte e um pólo não estruturante, relacionado à expulsão primordial (irrepresentável), marcado pela força da pulsão de morte,
porque não há ligação, em detrimento da pulsão de vida.
Hyppollite, refletindo acerca dessas forças primordiais, faz a seguinte
assertiva: “a afirmação primordial não é outra coisa senão afirmar, mas
negar é mais que querer destruir” (LACAN, 1998, p.898). Remetendo-nos
336 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 329-345, 2005
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 337
Ana Paula Terra Machado,
Ignácio Alves Paim Filho
aos princípios de que a afirmação por si só é indeterminada e não produz
diferenças e de que a negação (enquanto derivada da expulsão) produz ruptura (algo é destruído) e ao mesmo tempo cria uma afirmação, pois toda a
negação é feita em relação a algo, tais princípios nos ajudam a compreender a teoria dos juízos (atribuição e existência), concebida por Freud como
derivada dessas forças primordiais.
Após esse recorte do pensamento de Garcia-Roza, vamos nos dedicar
especificamente aos derivados do seguinte dizer de Freud (1925, p. 300)
(tentando fazer uma ligação com o discurso de Hyppollite): “A afirmação –
como substituto da união – pertence a Eros; a negativa – o sucessor da
expulsão – pertence à pulsão de destruição”. Em cima desse aporte teórico,
teremos a formulação de dois princípios fundamentais: a “afirmação primordial” (Bejahung), que tem a característica de ser indeterminada, e a
“expulsão primordial” (Ausstossung), que vai possibilitar a criação da negação determinada. Do que se está falando quando evocamos esse tempo
primordial marcado pela expulsão e afirmação? Pensamos num tempo
mítico, quando a relação mãe-bebê é marcada por uma indiferenciação originária, na qual a natureza se faz presente com toda a sua plenitude, revelando o acontecer da afirmação primordial com toda a sua indeterminação.
Essa cena mãe-bebê simplesmente é uma totalidade em si. É somente pela
ação da negação determinada que esse dado, esse natural vai ser transformado, pois a expulsão, enquanto antecessora da negação, vai começar a
estabelecer diferenças: primeiro entre o dentro e o fora (ação muscular),
sendo por esse movimento que o externo é criado; depois com a negação,
se fazendo presente através da transformação no contrário, e o retorno sobre si mesmo, teremos a diferenciação entre o bom e o mau (atribuição); e,
por último, com o advento do recalcamento originário (a grande marca da
negação), o sujeito estará apto a diferenciar a percepção da alucinação
(existência).
É nessa dialética entre a afirmação e a expulsão que vai se dar o
trabalho do negativo, que consiste na criação de uma afirmação determinada a partir da ação da negação determinada. Poderíamos citar, a título de
O TRAUMA PRIMORDIAL NA DIALÉTICA DO
REPRESENTÁVEL E DO IRREPRESENTÁVEL
exemplo, o recalcamento como uma negação determinada que gera uma
afirmação determinada, ou seja, o desejo recalcado, que pode se fazer conhecer pelo “não”.
Como dissemos acima, guiados por Freud, existem dois destinos pulsionais que são anteriores ao recalque: a transformação no contrário e retorno sobre si mesmo. Esses dados nos possibilitam pensar em um mundo
psíquico que vai se iniciando antes mesmo da criação do inconsciente, pois
é a partir do recalcamento originário que se estabelece o inconsciente.
Diante desse fato, que mundo psíquico seria esse anterior ao recalcamento
originário? Pensamos no inconsciente que nunca foi consciente (inconsciente originário), que é produto de um paradoxo, pois, à medida que vai
nascendo, cria e é criado pelo espaço psíquico. Pensamos ser essa uma précondição ao que Green (1977) chamou de Alucinação Negativa, que é uma
capacidade da criança de negativar a presença do objeto primário – a mãe.
Esse pensador vê nesse processo alucinatório um fator enquadrante da psique, que dá condições para o acontecer das representações.
Ao propormos a idéia de um inconsciente originário, estamos partindo
de uma passividade, anterior à atividade, em que o bebê humano, antes de
ser sujeito, é objeto, sendo essa condição dos primórdios, o que possibilita
a criação de um espaço psíquico em que possam acontecer as primeiras
inscrições, impressões, advindas desses clamores pulsionais (do sujeito e
do objeto).
Portanto, postulamos que a topografia das origens, do vir a ser humano, caracteriza-se por um ir albergando as impressões, que vão gestando o
inconsciente que nunca foi consciente, ligado ao eu-realidade originária, que tem no par das forças primárias afirmação-expulsão o movimento que faz a distinção entre o interno (eu) e o externo (não eu). Devemos
lembrar que esse processo, que é anterior à criação dos juízos de atribuição
e de existência, Freud relaciona com o movimento muscular, o que nos faz
reafirmar que a expulsão é uma espécie de ponto de partida que estabelece
a saída de um estado de pura pulsão de indiferenciação mãe/bebê, inaugurando o externo. A partir de então, começam a se estabelecer binômios
338 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 329-345, 2005
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Ana Paula Terra Machado,
Ignácio Alves Paim Filho
evolutivos, que carregam uma antítese e uma complementaridade, tais
como: interno-externo, fusão-desfusão, introjeção-expulsão, afirmaçãonegação, pulsão de morte-pulsão de vida. Esse tempo primeiro, onde a pulsão marca sua presença no leito desse inconsciente via impressões, vai
inaugurar nesse psiquismo incipiente a marca de uma ferida/trauma geradora de uma angústia originária que põe em ação o recalcamento originário, que será ressignificada num segundo tempo diante da angústia de castração que aciona o recalcamento propriamente dito. Esses elementos nos
indicam um possível caminho para pensarmos na gênese do trauma primordial.
Na relação entre o inconsciente que nunca foi consciente e o eu realidade originária vai se dar o trabalho do negativo, que visa instrumentalizar as condições de figurabilidade (o alucinatório de GREEN, 1977, e
dos BOTELLA, 2002), que propiciarão as retranscrições e rearranjos para
que as impressões desse trauma primordial possam, dentro de uma hipótese topográfica, tornar-se traço e depois representação, vindo a constituir o
mundo do inconsciente, atravessado pelo recalcamento. Em síntese, estamos dizendo que uma parte das impressões primordiais terá como destino
o universo das representações vinculadas à pulsão sexual; outra parte, pela
impossibilidade de ser transformada, a partir do trabalho do negativo, devido a sua intensidade, ficará no núcleo desse inconsciente das origens, marcada pelo inominável, pelo indizível, ou seja, pelo irrepresentável, num
eterno pulsar.
Fazendo analogia com o trabalho do sonho, que é fruto do desejo do
inconsciente recalcado, e com o trabalho do negativo, que é o responsável pela complexidade que vai adquirindo o aparelho psíquico, poderíamos
dizer que, no trabalho do sonho, temos palavras buscando recriar imagens, num processo em que é desinvestida a representação da palavra e
reinvestida a representação da coisa, rumo à percepção/soma, num movimento regressivo; no trabalho do negativo, temos viabilizadas as condições energéticas (pelo desligamento) para que as impressões busquem
criar imagens que possam ser capturadas pela força do desejo recalcado,
O TRAUMA PRIMORDIAL NA DIALÉTICA DO
REPRESENTÁVEL E DO IRREPRESENTÁVEL
num movimento progressivo rumo a percepção/consciência. Com isso, teríamos que a meta final desses trabalhos seria a percepção, tendo nesta o
motor das transformações psíquicas. Esse pode ser um possível trajeto para
pensarmos a contratransferência imaginativa (GREEN/BOTELLA); uma
forma de comunicação entre o inconsciente que nunca foi consciente, mundo do irrepresentável do analisando, que, através do eterno trabalho do
negativo, busca um destinatário, um analista, capaz, com o seu aparelho
psíquico, via percepção, de construir uma cena, uma imagem, para poder
contar uma história sobre essas marcas que pulsam no silêncio do mais
aquém, na medida em que o psiquismo se constitui e se organiza a partir
das percepções-alucinações-representações.
De posse dessas especulações teóricas, podemos tecer o seguinte
enunciado, que poderia dar sustentação a uma metapsicologia do trauma: a
partir da noção de impressão, proposta por Freud como indicadora da percepção, como uma marca primeva da constituição do psíquico, construímos o postulado de que essas impressões são a inscrição da pulsão no inconsciente que nunca foi consciente (o não-recalcado), gerando um trauma
primordial estruturante e não estruturante.
Esse trauma terá dois destinos: o estruturante, que traz a marca do
intercâmbio da “afirmação primordial” e da “expulsão primordial”, força
essa (expulsão primordial) que irá fazer o seu percurso até atingir o status
de negação. Temos aqui uma percepção ligada a um conteúdo traumático, a
sedução do infans pelo objeto primário, que podemos relacionar com os
significantes enigmáticos de Laplanche (1988) e com a violência primária
de Piera Aulagnier (1979). Esse arcaico vai buscar criar o caminho representacional, simbólico, ligado às leis do inconsciente recalcado. Assim sendo, o trabalho da análise se faz, preferencialmente, via interpretação, buscando um sentido perdido, um (re)conhecimento do inconsciente pelo eu
percepção.
O outro destino refere-se a uma intensidade não estruturante (uma força negativadora), marcada pela ação da “expulsão primordial”, sem produzir uma “afirmação determinada”, pois a negação não se constituirá, acar340 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 329-345, 2005
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Ana Paula Terra Machado,
Ignácio Alves Paim Filho
retando uma impossibilidade de se fazer representar, caracterizada por
“uma ausência de conteúdo na percepção e não de uma percepção de conteúdo traumático” (BOTELLA; BOTELLA, 2002, p.189), em que teremos
uma não-história, não havendo o que ser recordado, pois não se trata de um
sentido perdido, mas sim de uma ausência de sentido, ou melhor, da presença do sentido tanático da pulsão de morte, que se faz presente numa
comunicação em atos, no corpo, na cultura. Portanto, esse trauma não obedece à lei freudiana dos dois tempos, não está relacionado com a ressignificação. Diante dessa ausência de história, a tarefa analítica consiste essencialmente na construção de um sentido, de um possível conhecer sobre
esse inconsciente que nunca foi consciente, a partir desse trauma primordial irrepresentável.
Destarte, temos nesse trauma primordial não estruturante a gênese do
irrepresentável, que está alojado topograficamente no inconsciente que
nunca foi consciente, que ao não se subordinar ao trabalho do negativo,
enquanto agente de transformação, vai se presentificar para o sujeito falante através da mudez e da força demoníaca da pulsão de destruição, que tem
como mola propulsora a expulsão, que produzirá uma repetição aquém da
palavra. Ao entendermos, nessa repetição, uma forma de comunicação,
poderíamos dizer que essa repetição é uma expectativa de galgar a percepção/consciência para adentrar no mundo das representações. Seguindo os
pensamentos de Freud (1925, p.298), sabemos que “todas as representações se originam de percepções e são repetições dessas”. Assim sendo, é
imprescindível que uma marca mnêmica passe pela percepção do sujeito e/
ou do outro para se constituir representação.
Diante dessa concepção, vemos um novo desafio para e na
contemporaneidade, que se anuncia na inter-relação entre o irrepresentávelrepresentável, tendo como um dos elos de transformação a percepção. Pensamos que é sobre esse enigma, da percepção, que escrevem os Botella
(2002), quando falam da necessidade de se construir uma metapsicologia
da percepção, partindo da tese freudiana de que, “para o ego, a percepção
desempenha o papel que no id cabe à pulsão” (FREUD, 1923, p.39).
O TRAUMA PRIMORDIAL NA DIALÉTICA DO
REPRESENTÁVEL E DO IRREPRESENTÁVEL
Concluindo, a partir do trauma sexual infantil, Freud começa a construir a teoria das neuroses e, conseqüentemente, do sujeito, que terá como
eixo fundante o inconsciente recalcado, o desejo infantil (parricida e incestuoso) e as suas vicissitudes representacionais, tendo no traumático primordial sexual uma história permeada pela percepção-alucinação-representação. Enquanto o trauma primordial não sexual, vinculado ao
irrepresentável, a um inconsciente não recalcado, mantém-se excluído da
dinâmica do recalcamento, permanecendo essencialmente como trauma,
muito próximo da própria pulsão, evidenciando o tanático, o primado das
intensidades onde a percepção não tem ação. Essa dialética entre o
representável e o não representável, tendo como origem o trauma primordial, demarca um caminho para pensarmos nas patologias e na constituição
do sujeito desses novos tempos.
Resumo
De acordo com os textos freudianos sobre trauma e a noção de negatividade,
os autores se propõem a pensar a gênese do irrepresentável a partir da idéia de um
trauma primordial que será estruturante ou não estruturante do psiquismo. O trauma dito estruturante trilhará o caminho das representações e estará submetido ao
recalcamento, enquanto o não estruturante permanece no inconsciente não
recalcado, marcado pelo inominável. O destino do traumático está relacionado ao
par expulsão-afirmação primordial que possibilitará a ação da negatividade. Quando esta não opera, as intensidades permanecem no núcleo do inconsciente sem
possibilidade de representação. Essa hipótese das origens do irrepresentável é um
caminho para a compreensão das patologias da contemporaneidade.
Palavras-chave
Trauma primordial. Representável. Irrepresentável. Negatividade.
342 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 329-345, 2005
The Primordial Trauma in the Dialetic of the Representable and the
Unrepresentable
According to Freudian’s texts, about trauma and the negativity’s notion, the
authors propose to analyse the irrepresentable, supporting the hypothesis of a
primordial trauma that will be structuring or not structuring the psychism. The
structuring trauma will follow the representability and will be submitted to
repression, while the not structuring stays at the not repressed unconscious. The
traumatic destiny is related to the primordial expulsion-affirmation that will make
possible the negativity action. When this does not work, the intensities rest on the
unconscious without presentation possibility. This hypothesis of the origins of the
irrepresentable is a way to understand the contemporanies pathologies.
Key-words
Primordial trauma. Representable. Irrepresentable. Negativity.
Resumen
El Trauma Primordial en la Dialéctica de lo Representable y de lo
Irrepresentable
De acuerdo con los textos freudianos sobre trauma y la noción de negatividad,
los autores se proponen pensar la génesis de lo irrepresentable a partir de la idea
de un trauma primordial que será estructurante o no estructurante del psiquismo.
El trauma dicho estructurante seguirá el camino de las representaciones y estará
sometido a la represión, mientras lo no estructurante permanece en el inconsciente no reprimido, marcado por lo innombrable. El destino de lo traumático está
relacionado al par expulsión-afirmación primordial que posibilitará la acción de
la negatividad. Cuando esta no opera, las intensidades permanecen en el núcleo
de lo inconsciente sin posibilidad de representación. Esa hipótesis de los orígenes
de lo irrepresentable es un camino para la comprensión de las patologías de la
contemporaneidad.
Palabras-llave
Trauma primordial. Representable. Irrepresentable. Negatividad.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 343
Ana Paula Terra Machado,
Ignácio Alves Paim Filho
Abstract
O TRAUMA PRIMORDIAL NA DIALÉTICA DO
REPRESENTÁVEL E DO IRREPRESENTÁVEL
Referências
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344 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 329-345, 2005
Ensaio
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Ana Paula Terra Machado,
Ignácio Alves Paim Filho
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O TRAUMA PRIMORDIAL NA DIALÉTICA DO
REPRESENTÁVEL E DO IRREPRESENTÁVEL
346 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 329-345, 2005
[...]..mesmo quando tenho um
texto que sei que vou ter de fazer
e refazer, cortá-lo em pedaços,
esquartejá-lo [...] mesmo nisso
que chamo de “tentativa de conto” eu me realizo porque, na verdade, sempre parecerá ser o caminho para algo que ainda virá.
Ana Rosa Chait
Trachtenberg
Médica Psicanalista; Membro
Titular com Função Didática da
Sociedade Brasileira de Psicanálise
de Porto Alegre; Membro
Associado da Asociación
Psicoanalítca de Buenos Aires.
“Estou com um disco de corte e
vou te cortar em partes. Eu quero
partir todo o teu corpo pedaço
por pedaço...”
Mayra Dornelles
Lorenzoni
Psicóloga; Candidata do Instituto
de Psicanálise da Sociedade
Brasileira de Psicanálise de Porto
Alegre; Especialista em Psicologia
Clínica pelo Conselho Federal de
Psicologia; Docente e Supervisora
do Centro de Estudos,
Atendimento e Pesquisa da
Infância e Adolescência.
Este trabalho surgiu da surpresa e inquietação a respeito da semelhança entre o material clínico de
um menino com diagnóstico inicial
de Autismo Atípico e o livro de contos escrito e editado por seu pai. A
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 347
Ana Rosa Chait Trachtenberg,
Mayra Dornelles Lorenzoni
Identificações
Traumáticas,
Congelamento
e Transgeracionalidade
IDENTIFICAÇÕES TRAUMÁTICAS,
CONGELAMENTO E TRANSGERACIONALIDADE
violência expressada nos contos, que não era do conhecimento do pequeno
paciente, e a violência presente no material clínico das sessões de análise,
em forma quase especular, produziu nas autoras um alto impacto. Esse particular ponto de contato entre pai e filho levou-as a uma reflexão teórico
clínica, que se apresenta a seguir.
Parte I
Uma Contribuição ao Estudo das Identificações Traumáticas
Mayra Dornelles Lorenzoni
Iniciamos este trabalho estampando duas cenas:
CENA DE UM CONTO: “Eu estou em casa, são quatro horas da manhã, e ainda não peguei no sono. Foi depois, quando tudo acabou, que
a imaginei morta. Morta sobre os lençóis, corpo gelado, congelado.
Me deu mesmo essa vontade de vê-la morta, e de fato quase a matei.
Talvez a mate! Porque só assim ela será minha. Morta, não; morta, ela
ficará comigo!”
CENA DA SESSÃO: “Era uma casa feia... Eu pensava em pegar uma
arma e te congelar. Agora eu te prendi nos braços, pernas e pescoço
com correntes. Vou te matar. Agora tu morres! Vou te queimar toda e
vou derreter toda a tua pele. Tô pondo energia de morto no teu corpo,
pra tu ficar bem morta e assim não saíres daqui e eu te dominarei,
ficarás para sempre aqui, sem força, sem vida, mas, nas minhas mãos,
passarás a ser minha”.
Ao receber o livro de contos das mãos do próprio autor – pai do paciente –, surpreendi-me pelo inusitado. Ao ler seus contos, espantei-me e
muito pela situação insólita. E, por alguns instantes, tive a sensação de
déjà-vu, estava diante da mesma narrativa dramática e tirânica das histórias
fantasiosas que povoam a mente de seu filho – meu paciente. Vi-me perple348 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 347-368, 2005
Pai e sua História
José Carlos, 35 anos, engenheiro. Filho do engenheiro José, da
pedagoga Ana Maria e irmão de Paulo, 30 anos, sem profissão.
Na maior parte de sua infância, sua mãe manteve-se ausente, “viajando sempre pela educação. [...] Eu sofria, chorava quietinho! Sempre fui
muito fechado! [...] A mãe era uma referência dentro da área de educação
e eu era visto como o filho da pedagoga Ana Maria. Meu estigma desde
pequeno. Eu era o filho certinho; meu irmão era o problema, e por causa
disso eu carregava a necessidade de não falhar. Muitas coisas que eu conseguia realizar não pareciam méritos meus. Ficava sempre à sombra de
minha mãe. Eu me sentia sobrecarregado!”
No primeiro dia de aula na Faculdade, um dado professor, ao fazer a
chamada, pronunciou: “José Carlos, ah! Tu que és o filho do José... Fui
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 349
Ana Rosa Chait Trachtenberg,
Mayra Dornelles Lorenzoni
xa, impactada, tomada de susto! Mas, aos poucos, tudo aquilo começava a
fazer algum sentido...
O enredo dos contos literários do pai e o conteúdo das sessões do filho
se fundiam e se confundiam. A violência e a crueldade habitavam ambos
os lugares com suas faces mais horrendas.
O material clínico presente no transcorrer do trabalho corresponde a
esse mesmo menino – José Carlos Júnior, de 7 anos –, e os posteriores
fragmentos de contos literários seguem correspondendo ao mesmo autor,
seu pai – José Carlos. É mister assinalar que o pequeno paciente nunca teve
acesso aos escritos do pai, tampouco interessou-se quando da publicação
de seu livro.
Faz-se necessário pontuar que este trabalho é um estreito recorte dessa
relação “clínica”: contos/sessão. Ficam de fora, lamentavelmente, outras
tantas relações e conexões possíveis.
Este é um trabalho que tem por objetivo focalizar a relação pai-filho,
enquanto a relação mãe-filho está propositalmente excluída, já que foi objeto de outro trabalho (LORENZONI, 2003).
IDENTIFICAÇÕES TRAUMÁTICAS,
CONGELAMENTO E TRANSGERACIONALIDADE
colega de trabalho do teu pai há muitos anos...”, e todo mundo virou-se
para ele.
“Meu irmão, na adolescência, se perdeu com uma turma pesada, queria ser um outsider, ‘rebelde’, sem nenhuma higiene pessoal, apreciava
literatura marginal.” José Carlos sempre esteve envolvido com hobby de
fazer coleções: carrinhos, jornais, CDs, etc. Enquanto o irmão era desorganizado, ele era perfeccionista e mantinha tudo sobre controle.
Refere nunca ter convivido com qualquer espécie de brigas entre os
pais ou dos pais com ele. Revoltava-se com a passividade dos pais diante
das “loucuras do irmão”, mas nunca conseguiu reagir. Ao fantasiar imagens de reações agressivas, sentia muita culpa. “Tinha muito medo de soltar meus monstros internos.”
O Filho e suas Vicissitudes
Júnior era um bebê muito agitado, com escassas horas de sono acompanhadas de choros de pânico. Debatia-se, atirava-se, rastejava, denotava
um estado constante de angústia. Não respondia aos sons e, com freqüência, babava-se.
Aos 2 anos, mostrava uma excessiva desorganização com os brinquedos, a verbalização era escassa, e a compreensão, quase nula. Na escolinha,
mordia os colegas e a si mesmo. Corria na ponta dos pés. Apresentava
pânico diante de quadros artísticos e barulhos como sirenes, furadeira,
liquidificador e canto de galo.
Aos 3 anos, foi trazido ao atendimento emocional. O pequeno paciente possuía um olhar que ora parecia vazio, ora parecia “atravessar-me”.
Apresentava nas sessões padrões estereotipados, tanto nos jogos como na
linguagem; seus desenhos eram garatujas primárias. Seu pensamento era
repetitivo, e sua conduta desorganizava-se diante de situações de mudança.
Tinha um especial interesse por movimentos giratórios de certos objetos e
pelo cheiro dos mesmos. Suas brincadeiras eram sem enredo, e suas histórias sem encadeamento.
Apresentava idéias desconexas e, por vezes, perguntas sem sentido,
350 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 347-368, 2005
À Luz do Conceito do Contrato Narcisista
CENA DE UM CONTO: “Só pescando para esquecer. Aprumo a vara
com a mão do braço que ainda funciona e lanço a linha, um arremesso
ruim para começar o dia. Usando um braço só não tenho mesmo jeito
de lançar melhor do que isso. Um arremesso de vida, isso é o que me
sobra. Mas o resto é tudo meu: minha mulher, minha quando joguei
dentro dela o esperma que se tornaria o Roberto, meu filho, meu caniço sem nome, minha muleta, meu maldito lado morto. Aí vem ele! Vou
te devolver à água, seu papa-terra desgraçado, com esse olho sangrando do meu anzol, ‘estás como eu’, meio pela metade. Com um lado
morto”.
CENA DA SESSÃO: “Este aqui sou eu. Meu braço doente se transformou em machado, arma e depois canhão. Esse braço-machado é
para eu atacar os inimigos. Eu tenho um braço, uma perna, um olho,
um corpo de robô. Eu tenho uma parte morta como uma estátua, eu
tenho um lado invisível. Tu sim, és uma humana!”
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 351
Ana Rosa Chait Trachtenberg,
Mayra Dornelles Lorenzoni
como um quadro no qual visualizou a imagem de Cristo na cruz e indagou:
“Mãe, o titio pega?”. Fazia uso de ecolalia e de palavras com estranhas
combinações: “Mayra marronzinha”, referindo-se ao prédio de meu consultório.
A hipótese diagnóstica naquela época fora a de um Transtorno
Invasivo do Desenvolvimento: Autismo Atípico. Inicialmente trabalhamos
com uma freqüência de duas sessões semanais e acompanhamento mensal
aos pais, e isso era o limite das possibilidades da família.
Aos 6 anos, já demonstrava nas sessões alguma evolução na habilidade representacional. Os temas focalizavam “lutas sangrentas” de superheróis contra os homens do mal.
Aos 7 anos, passamos a trabalhar com quatro sessões semanais, e segui vendo os pais periodicamente.
IDENTIFICAÇÕES TRAUMÁTICAS,
CONGELAMENTO E TRANSGERACIONALIDADE
Toda essa complexidade dramática que vem se descortinando tem
como ponto de origem o psiquismo desse bebê que, como todo psiquismo,
constituiu-se desde uma singular intersubjetividade. Esta pode entender-se
desde aquilo que Piera Aulagnier (1975) denominou de contrato narcisista, que nos indica que existe um pré-investimento dos pais em relação ao
bebê, ao qual reservam um lugar legítimo. A criança demanda ao grupo o
reconhecimento de que ela lhe pertence, enquanto o grupo lhe demanda a
preservação de seus valores e leis previamente estabelecidos.
Logo, esses pais, sob o vértice de Aulagnier (1984), pré-enunciaram e
pré-investiram nesse “novo ser”, como um “arremedo de vida”, “meio pela
metade”, reservando a esse filho o lugar do “maldito lado morto”. E assim,
ao ocupar esse lugar, ficou prejudicado severamente o espaço no qual a
subjetividade desse ser deveria constituir-se. O processo identificatório de
Júnior ficou, então, sobremaneira comprometido pela importante falta de
uma investidura de pulsão de vida.
Nessa família, a seqüência geracional, no que diz respeito ao nome,
foi mantida fielmente: avô paterno José – pai José Carlos – filho José
Carlos Júnior.
A “Lei da Filiação” aqui tem como única referência o “Nome-do-Pai”,
o doador do nome, sendo que esse pai acabou por fazer do filho, por um
lado, um produto do ventre materno, por outro, um condenado a carregar
sua identidade e reproduzir uma história que não lhe pertence. Em função
do encontro dos psiquismos dos pais e de Júnior, enquanto bebê, foi possível identificar a presença precoce de transmissões desorganizantes,
traumatogênicas.
No seu entorno familiar, Júnior não encontrava significado, sustentação e apoio que qualificassem suas vivências, as quais ficavam misturadas
com as de seus pais, o que impossibilitava qualquer ruptura na continuidade geracional. Sem essa distância geracional necessária, produziu-se um
montante de condensações e de indiferenciações no psiquismo dessa criança.
O discurso do pai do menino fora antecipado por um desejo
identificatório, ou seja, que o filho se tornasse ele, através da doação do
352 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 347-368, 2005
À Luz do Conceito de Introjeção Extrativa
CENA DE UM CONTO: “Tem que ter alguma coisa ainda. Será que
tem? Não, não tem mais nada. Quarenta reais que sejam, já me quebram o galho! Quarenta tem que ter nessa coisinha. Tento tirar trinta
tem que ter. Saldo insuficiente. Vou tirar vinte. Saldo insuficiente de
novo... Mas por quê? Vou tentar dessa outra forma. Usei pouco neste
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 353
Ana Rosa Chait Trachtenberg,
Mayra Dornelles Lorenzoni
nome e com o acréscimo, no final desse, do adjetivo Júnior, o mais moço de
dois, o que aponta para uma sucessão, uma identidade geracional imutável.
Percorrendo as idéias de Aulagnier (1984), destacamos um importante conceito, o da “interpenetração”, no qual enfatiza que o efeito do processo intersubjetivo se produz entre um acontecimento, um fantasma inconsciente e um enunciado de valor identificante, se pronunciado por uma voz
privilegiadamente investida. Trata-se de um momento no qual a experiência se imprime, se estampa nas crianças. De acordo com a autora, a
interpenetração tem valor traumático, é um efeito da trama que produz fantasmas e fantasias.
O sofrimento que experimenta o pequeno paciente parece ter relação
também com o quantum de violência que seu frágil psiquismo precocemente experimentou. Isso implica que Júnior, segundo Aulagnier (1984),
teve de renunciar rapidamente a uma ilusão necessária nessa etapa inicial
de sua vida psíquica.
“Que lugar ocupa esse filho no sistema narcisista parental e no
desejo inconsciente dos pais?” Concordamos com Aulagnier (1984),
quando diz que há desejos inconscientes que, quando não reprimidos, acabam por ter maior influxo na transmissão psíquica geracional.
De alguma forma, quando no psiquismo dos pais falha o espaço do
reprimido, além das demandas pulsionais não estarem transformadas, resulta algo incompatível à vida psíquica de um filho. Ao penetrarem no ego
em constituição desse filho, essas demandas produziriam um efeito singular, à medida que, possivelmente, se manteriam em estado bruto, transformando-se em experiências de valor traumático.
IDENTIFICAÇÕES TRAUMÁTICAS,
CONGELAMENTO E TRANSGERACIONALIDADE
mês. Quem sabe agora... Tiro o cem e depois vou tirando o resto de dez
em dez até esgotar o saldo. Vamos lá, meu robozinho que não fala e
não pensa. Mas o que há com essa máquina cretina? Quero tirar mais...
Saldo insuficiente de novo! Vida insuficiente. Mas esse é o medo: de
tirar extrato, de ver o que tirei e o que ainda tem, se é que sobrou!”
CENA DA SESSÃO: “Mayra, sabe, tô com dificuldade: É muito complicado pensar em número, tirar números, tira cem, tira oitenta, tira
sessenta, tira quarenta, tira dez, tira nove, tira oito, tira sete... e tudo
isso. É ruim demais! quando é de tirar, deixar cem/sem. O que é de
menos, me atrapalha, não consigo pensar”.
Dentro da perspectiva de seguir tratando de compreender esse tipo de
relação psíquica inconsciente estabelecida entre pai e filho, objeto desse
estudo, o conceito de introjeção extrativa de Christopher Bollas (1987)
parece dar conta de aspectos importantes. Esse processo é uma espécie de
“um roubo” de alguns elementos da vida psíquica do outro. Essa violência
intersubjetiva ocorre quando o violado não tem a experiência interna do
elemento psíquico que o violador representa.
De acordo com o autor, à medida que é mantida, a introjeção extrativa
pode alterar a função intra-subjetiva de determinados elementos psíquicos.
Nessas circunstâncias, Júnior tornou-se o doente da família para poder
ser legitimado mesmo que por essa via, sendo obrigado a renunciar, assim,
ao contato com partes psíquicas ligadas à pulsão de vida.
José Carlos desenvolveu uma personalidade obsessiva, que o tornou
afetivamente distante, embora um “operativo eficiente”. Ele tendeu sempre a decodificar intelectualmente o estranho mundo emocional de seu filho.
O pai extraiu do psiquismo do menino sua vitalidade, sua capacidade
de pensar, sentir e desenvolver-se, isto é, apropriou-se de grande parte do
equipamento de pulsão de vida com o qual Júnior veio ao mundo, tornando-o um escravo do seu poder psíquico. O menino comportava-se, em
muitos momentos, como alguém apático, alienado e desorganizado: aspectos esses que tipificam o outro lado da personalidade de seu pai.
354 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 347-368, 2005
À Luz do Conceito de Identificação Narcisista
Inconsciente Alienante
CENA DE UM CONTO: “A minha verdade é esta: sou um assassino.
Deixei cair um bloco com meu nome timbrado, um homem de chapéu
branco abaixou-se para pegá-lo:
– Manuel Antunes Filho? Filho de Manuel Antunes? Fui colega de
trabalho do teu pai há muitos anos!
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 355
Ana Rosa Chait Trachtenberg,
Mayra Dornelles Lorenzoni
Nas sessões, o pequeno paciente valia-se de intensas e maciças identificações projetivas de caráter destrutivo dirigidas a mim, enquanto sua analista, o que acabava por deixá-lo com um profundo vazio no seu estado
mental.
De alguma forma, eu tinha de dar conta da experiência de suportar as
partes esvaziadas do seu self; esvaziadas também por alguma violação ativa do outro. O paciente desenvolveu, durante a primeira etapa de sua análise, transferências, nas quais tudo o que era intensificador da vida (incluindo a destruição) estava na analista.
Vítima da introjeção extrativa, identificou-se com aspectos
destrutivos contidos no inconsciente do pai, instalando-os em sua personalidade.
Bollas (1987) diz que quando um pai que projetivamente identifica
elementos cindidos e indesejados de seu próprio self no de seu filho o sobrecarrega com um mundo interno extremamente indiscriminado e caótico. Ao atribuir ao filho seu próprio nome, o pai extrai, de certo modo,
alguma parte do seu self, seu sentimento de alteridade, deixando em seu
lugar um vácuo, onde lá depositou muito do seu desespero e do seu próprio
vazio.
Bollas (1987) defende a idéia de que a perda de uma parte do self
significa não só uma perda de conteúdo, função e processo, como também
da percepção que tem de sua própria pessoa. Uma perda dessa natureza
para esse pequeno paciente pode ter tido uma forte influência na nãoestruturação de sua história pessoal.
IDENTIFICAÇÕES TRAUMÁTICAS,
CONGELAMENTO E TRANSGERACIONALIDADE
Conversamos por algum tempo e, ao final deste, o velho acendeu um
charuto fedorento:
– Onde é que teu pai está morando?
Dei-lhe o endereço. Expliquei com detalhes: meu pai estava viúvo,
morando sozinho, perto de um rio. O sujeito prometeu que apareceria
para vê-lo.
Por volta das duas horas da tarde, me despedi dele. Dei mil voltas e ao
chegar em casa, lá pelas seis, liguei para o pai para contar o acontecido. Tentei várias vezes, mas ele não atendeu. Perto das sete, o telefone
tocou, era meu tio. Tinha uma notícia ruim, eu que me agüentasse:
tinham matado meu pai. Seis tiros no peito! Perguntei: pegaram o assassino? O tio respondeu que não, mas não seria difícil descobrir, haviam deixado um chapéu branco com sarro de charuto sobre o corpo”.
CENA DA SESSÃO: “– O bebê é mais poderoso que seu pai. O que
você quer com meu pai?
– Seu pai nunca mais vai voltar; Homem Aranha! Waldemorte vai
matar seu pai!
– Diga adeus!
Waldemorte está cortando, parte por parte da pele dele, em pedaços.
– Ai... ai... ai... (gritos de dor)
Atirou nele, vários tiros na cabeça, no peito e nas costas.
– Eu sou do mal. To cuspindo pedaços do corpo do teu pai: um olho,
uma mão, o cérebro!”
Amplio as considerações teóricas pertinentes ao contexto desse trabalho com o conceito de identificação narcisista inconsciente alienante de
Faimberg (1985, 1988), que, juntamente com as identificações intrusivas e
apropriativas, configuram o quadro da “telescopagem (encaixe) de gerações”, a qual não é mais que um dos aspectos do funcionamento de uma
lógica narcisista presente, sobretudo nas organizações psicóticas. Trata-se
de identificações com aspectos não resolvidos da história dos pais ou avós
do sujeito que o paralisam, ocupando-o na tentativa falida de buscar um
outro destino psíquico para si.
É possível observar a necessidade em ambos (pai e filho) da projeção
356 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 347-368, 2005
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 357
Ana Rosa Chait Trachtenberg,
Mayra Dornelles Lorenzoni
da violência, bem como a violência da projeção, o que nos faz lembrar de
Faimberg (1985) quando coloca que situações como essas acabam por instalar uma zona inter-humana violentamente frágil, onde, de alguma forma,
cristalizam-se angústias mais arcaicas.
Poderíamos pensar que nesse movimento, através do qual um identifica-se com o desejo ou com o sintoma do outro, existe uma transmissão
intersubjetiva: o que se transmite de um ao outro é um traço inconsciente
posto em comum.
Aqui nos parece que cabe uma questão: afinal, o que é transmitido
ou transferido no sentido de transporte em intensidade e em representação dos pensamentos latentes ao relato manifesto?
Faimberg (1985) tenta dar conta dessa forma violenta de transmissão
psíquica, que condensa duas ou três gerações, marcando que desde o início
da constituição do psiquismo existe um outro.
Em uma das vinhetas de uma dramatização que incluía dois superheróis – Homem-Aranha e Visão –, verbalizou:
“Visão! Vamos ver o espelho mágico! Vamos ver os pais deles que vão
aparecer no espelho. Como vocês chegaram até aí dentro? Aqui dentro do
espelho mágico está a mãe e o pai do Homem-Aranha. Eu vou quebrar o
espelho para poder entrar e ver. Como é que vocês foram parar aí dentro?”
Ao referir a presença de um pai e de uma mãe “dentro de um espelho”,
denuncia, inconscientemente, a presença de personagens que haviam sido
“metidos dentro de sua mente”, via identificação patológica. Esta parece
ser de caráter alienante, dado que uma parte do psiquismo cindido dos pais
se apropriara de forma intrusiva do seu psiquismo.
Como pode se observar, pela história pessoal do pai de Júnior, os aspectos hostis, a pulsão tanática pareciam impedidos de externalização. Sob
o forte manto da repressão e do mandato materno de ser “o filho perfeito”,
José Carlos, além de aprisionar seus impulsos sádicos e destrutivos
advindos das frustrações e privações impetradas pela mãe, não podendo
descarregá-las em qualquer comportamento, via-se amordaçado em sua
impossibilidade de expressar seus desejos e sentimentos negativos através
IDENTIFICAÇÕES TRAUMÁTICAS,
CONGELAMENTO E TRANSGERACIONALIDADE
da palavra falada. Suas emoções encontravam abrigo em seu mundo
fantasmagórico intensamente violento.
Podemos pensar que se instalou entre essa dupla geracional (Filho –
pai de José Carlos Júnior – e Mãe – avó de José Carlos Júnior) o processo
que Faimberg (1988) chama de “identificação apropriativa”, entendido
como um dos fatores de transmissão psíquica patológica entre gerações –
transgeracional. Essa apropriação é efeito do desejo do outro e pelo desejo
do outro.
Como correlato, encontramos na dupla geracional (Filho – José Carlos
Júnior – e Pai – José Carlos) uma demanda psíquica comum aos dois povoada de sentimentos odiosos e fantasias cruéis. Isso nos faz pensar numa
espécie de mecanismo de contágio psíquico, no qual se põe em evidência a
identificação como indicador de um lugar de coincidência entre os dois
egos, o que levaria a pensar numa “aliança inconsciente”.
O avô paterno, apesar de seus aspectos silenciosos e esvaziados, busca a reedição de um lugar, de um tempo e de um estado de troca afetiva que
se instalava entre ele e seu próprio filho (pai de Júnior), agora com o neto.
Através da atividade lúdica da pescaria – “pescaria de papa-terras não-desgraçados” –, avô, filho e neto reencontram-se de forma vital e se permitem
nesse momento experimentar juntos uma emoção de satisfação e competência ao perceberem o peixe sendo fisgado e o caniço tremulando. Tudo
indica que as demais emoções ficavam congeladas, amordaçadas, sem lugar, sem tempo e sem estado no mundo das palavras faladas e, portanto,
intraduzíveis, somente transitando em estado bruto e primitivo, “inundado
de papa-terras desgraçados”.
O pai encontra-se não na forma “como poderia ser realmente”, mas
como algo inscrito na realidade psíquica do filho.
Então aqui entra a importância do papel da análise. Creio que é através
dela, através da escuta da interpretação, que o pequeno paciente vai identificar esse “pai interno” – cujos aspectos foram desorganizadores para seu
psiquismo. Essa identificação encontra eco justamente no conceito de
Faimberg (1985, 1988) que estamos abordando, o da identificação
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alienante, à medida que suas origens encontram-se na história do outro;
portanto, não houve um reconhecimento de um espaço psíquico próprio. O
ego do menino fica, assim, submetido ao poder alheio (paterno), uma vez
que o pai projeta sobre ele a parte clivada de si mesmo.
Sob outro vértice de Faimberg (1988), trata-se de algo ligado ao ódio
narcisista o que pode ter levado esse pai à “função de intrusão”, ao expulsar ativamente no filho tudo o que rechaça em si. Essa função participa do
processo de identificação alienante que promove, no ego dessa criança,
uma espécie de organização estranha que pertence ao outro.
O pai não é o único protagonista dessa relação, uma vez que esta,
possivelmente, encontra-se inscrita, inconscientemente, em seus próprios
sistemas familiares. Dentro dessa perspectiva, pode estar contida a fórmula
que define a situação dramática na qual esse pai interno submete para sempre o filho a sua própria história de angústias e de morte.
Conseqüentemente, isso cria um estado contraditório de vazio e de
“demasiado cheio” no psiquismo dessa criança. O processo de intrusão
parece ser o responsável desse demasiado cheio. O pai tem “jogado” ativamente aspectos violentos para dentro do psiquismo de Júnior numa tentativa de manter sua vida psíquica mais ou menos equilibrada. A fórmula correspondente a essa intrusão poderia ser: “A hostilidade contida e a frieza de
minha família da infância é uma realidade interna que odeio e a expulso em
meu filho”.
IDENTIFICAÇÕES TRAUMÁTICAS,
CONGELAMENTO E TRANSGERACIONALIDADE
Parte II
As identificações Traumáticas Congelam o Psiquismo?
Ana Rosa Chait Trachtenberg
O trabalho que acabamos de ler causa impacto, curiosidade e surpresa,
e essas características são algumas de suas virtudes. Reservo-me voltar a
falar desse aspecto no final deste comentário.
Este trabalho está sustentado, teoricamente, em três eixos básicos:
Piera Aulagnier (1975, 1984), Cristopher Bollas (1987) e Haydeé Faimberg
(1985, 1988, 2000).
Cristopher Bollas é psicanalista de formação no Middle Group, de
Londres. Para o presente trabalho selecionou-se o capítulo “Introjeção
extrativa”, que está no seu livro A Sombra do Objeto, publicado em Londres, em 1987. Bollas é um discípulo de Winnicott, que foi, para a escola
inglesa, o pioneiro na abordagem da intersubjetividade, tão familiar a nós
na atualidade. Na primeira parte desse trabalho aparece, com clareza, a
patologia da intersubjetividade, no original conceito de Introjeção
Extrativa. Parece-me importante sublinhar três aspectos que a abordagem
de Bollas sugere: Identificação Projetiva, Introjeção Extrativa e Ação do
Outro.
A Identificação Projetiva, como todos sabem, trata-se de um primitivo
mecanismo de defesa, descrito por Melanie Klein (1946), que ocorre quando o bebê/sujeito necessita esvaziar partes do seu self que resultam intoleráveis dentro de sua mente, e as coloca, violentamente, no interior da mente de outro sujeito. Esse sujeito poderá sentir um vazio dentro de si, um
esvaziamento de seu próprio estado mental. Haverá também um estado de
fusão e confusão narcísica entre o sujeito que identifica projetivamente (o
“autor” da ação) e o sujeito aqui chamado de objeto, ou seja, aquele que
recebe essa identificação. Estou me referindo ao que Bion posteriormente
chamou de Identificação Projetiva patológica, que coloca destaque no aspecto violento e intrusivo desse mecanismo, que nisso se diferencia da
Identificação Projetiva normal ou para fins de comunicação, em que o su360 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 347-368, 2005
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jeito introduz no objeto – outro sujeito – um estado mental, como meio de
comunicação, com a finalidade de ser entendido e contido.
A fundamental contribuição kleiniana não se ocupou, em seu momento, das repercussões ocorridas na mente do receptor, e é nesse ponto que
vemos o ingresso das idéias desenvolvidas por Bollas. O sujeito que é receptor sente-se inundado, passa a carregar um mundo interno alheio, que
lhe traz caos, desorganização e vazio. Se observarmos a relação pai/mãefilho e, devido ao desamparo do último, bem como ao aspecto violento
dessa intrusão, podemos pensar no alto potencial traumático dessa relação.
A ação violenta exercida pelo outro é fundamental para compreendermos
alguns estados da patologia do vazio.
Bollas postula que cada introjeção extrativa é acompanhada de alguma identificação projetiva correspondente. Ele diz que, “quando uma pessoa tira de outra a psique – Introjeção Extrativa –, deixa em seu lugar um
espaço ou um vácuo. Lá deposita seu desespero e vazio em troca daquilo
que roubou” (1987, p.203). Bollas também alerta para a necessidade de
discriminação, em patologias severas de vazio conseqüentes a atos de expulsão e intrusão exercidos no outro, ou conseqüentes a atos de extração
violenta exercidos pelo outro. Ambas, por sua violência, têm caráter traumático.
Neste momento, podemos fazer uma conexão entre Bollas e Haydeé
Faimberg, com sua famosa “telescopagem de gerações” e “identificação
narcisista inconsciente alienante” – esta última abreviada e popularizada
como “identificação alienante”.
A importante contribuição de Haydeé Faimberg, psicanalista argentina radicada em Paris há várias décadas, qualificou, detalhou, especificou,
enriqueceu e colocou esta questão definitivamente no campo da
intersubjetividade e da importância do outro.
O conceito de Identificação Alienante, no meu entender, está apoiado
no de Identificação Projetiva por: (a) realizar-se pela expulsão de conteúdos mentais com o conseqüente uso de outra mente; (b) ser um mecanismo
IDENTIFICAÇÕES TRAUMÁTICAS,
CONGELAMENTO E TRANSGERACIONALIDADE
inconsciente; e (c) ser narcisista e promover a fantasia de fusão entre dois
sujeitos.
Faimberg integra, com brilhantismo, sua formação na escola argentina
à influência da escola francesa, especialmente Piera Aulagnier – matriz de
muitos pensadores daquele país – e André Green. Foi especialmente original ao descrever a identificação alienante vinculada à importância do outro
no psiquismo do sujeito e, especialmente, num movimento que ocorre entre as gerações: a telescopagem, ou seja, o encaixe de gerações.
Podemos discutir se, no material que Mayra coloca tão bem, há uma
clínica da transgeracionalidade ou não, se há transmissão patológica de
conteúdos psíquicos não elaborados, tais como segredos, situações traumáticas, lutos, crimes hediondos, vergonhas, violências exercidas ou sofridas, etc., através das gerações.
Na sua acepção clássica, para falarmos em transgeracional, necessitamos de pelo menos três gerações, que manifestarão de diferentes maneiras
essa passagem violenta do trauma não elaborado de uma geração a outra,
sucessivamente.
Os núcleos traumáticos precoces transgeracionais, como diz
Konicheckis (2005, p.31-32), “caracterizam-se pelo fato de que a criança
não os experimentou diretamente. [...] Tal como nuvens contaminadas pela
radioatividade evocadas por Y. Gampel (2003), os efeitos desses traumas
ignoram as limitações tópicas e as fronteiras entre gerações”.
No caso apresentado, temos fortes elementos para pensar que, na préhistória de Júnior, em duas gerações, há introjeção extrativa e identificação
alienante; portanto, identificações traumáticas e de importantes conseqüências no psiquismo indefeso desse bebê. Júnior não teve acesso ao uso da
Identificação Projetiva normal ou comunicacional para ser entendido
empaticamente e assim poder utilizar o direito que todos os bebês têm:
experimentar, usufruir e se beneficiar da capacidade de rêverie parental.
Sua história nos mostra que, ao contrário, ele foi depositário de uma parte
da angústia do pai numa completa inversão da linha geracional ou rêverie
invertida. Júnior foi obrigado a “conter” a violência desse pai, em vez de
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Ana Rosa Chait Trachtenberg,
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ser contido na sua violência primitiva, comum a todos os bebês. O exemplo disso são os contos do pai e o jogo do filho. Não aparece no jogo inicialmente, e sim quando uma capacidade simbólica incipiente aparece, depois de ter percorrido uma longa e exitosa trajetória de trabalho analítico.
Pode, então, iniciar um processo de descongelamento, representabilidade e
liberação desse pedaço da mente paterna metido em sua mente.
Entendo que o tema da violência e do trauma, em seu espectro mais
amplo – entre indivíduos, entre gerações, nas convulsões sociais, nos
holocaustos, nas ditaduras, nas violências de Estado, etc. –, é central para a
Psicanálise. Aliás, os estudos da transgeracionalidade iniciaram com observações clínicas dos descendentes de sobreviventes do holocausto, da
Shoa. Em várias partes do mundo – Judith Kertenberg, nos Estados Unidos, Yolanda Gampel, em Israel, Faimberg, na França, e Abraham e Torok,
também na França, entre outros, – avaliaram o “impacto radioativo”
(Gampel apud PUGET, 2005) dos lutos não-realizados das situações-limite dos genocídios, talvez inelaboráveis, nas gerações seguintes.
O tema das repercussões da violência social através das gerações é
também de nosso interesse, devido aos “holocaustos” da América Latina.
O tema dos desaparecidos, por exemplo, tem sido amplamente estudado
por psicanalistas da Argentina e do Uruguai. Essas temáticas, surpreendentes e traumáticas, ocorrem na realidade social e na sua interface com os
nossos consultórios. O material clínico-literário da primeira parte do presente trabalho, pela surpresa e perplexidade que despertam na
contratransferência, e nas contratransferências, num sentido mais amplo,
pode e deve ser entendido enquanto potencial traumático para o analista.
Via de regra, estão relacionadas a zonas de não-representação psíquica, de
vazio mental, de congelamentos, a zonas atingidas por identificações traumáticas, alienantes, introjeções extrativas, etc.
Esse trauma contratransferencial abre dois caminhos possíveis: um
deles é o da confusão e da paralisia, de onde não surge elaboração, nem
para o analista nem para o paciente, gerando um bolsão de estagnação no
processo analítico. Outro caminho possível é o da transformação desse
IDENTIFICAÇÕES TRAUMÁTICAS,
CONGELAMENTO E TRANSGERACIONALIDADE
trauma contratransferencial potencial, desse espanto e perplexidade, em
curiosidade e desejo de investigar. Parece-me que Júnior e Mayra estão
nessa fértil jornada.
Considerações Finais
Os processos intersubjetivos da introjeção extrativa de Bollas e da
identificação narcisista inconsciente alienante da Faimberg são formas denominadas por nós de identificações traumáticas e estão inseridas no contrato narcisista de Aulagnier.
José Carlos desenvolveu um caráter obsessivo, através do qual tentava controlar “suas feras pulsionais”, as intensas agressões e crueldades;
parece, entretanto, não ter sido suficiente. Através dos contos, tenta liberar
as “feras” aprisionadas em sua jaula neurótica.
O filho, por sua vez, estava pré-destinado a colocar em cena partes
dessa hostilidade e violência cindidas e contidas no psiquismo paterno.
Mas que relação tem tudo isso com o congelamento do psiquismo
de Júnior?
Um pai que não discrimina ele e o filho mantém as portas entre eles
permanentemente abertas... compelindo elementos de sua vida psíquica a
se alojarem no inconsciente do menino, passando a habitá-lo como um
“fantasma”.
José Carlos, dono de um mundo interno com partes tão terroríficas,
passou a usar o filho como depositário e ator de parte de sua pulsão de
morte e de seu sadismo; como uma forma, portanto, de livrar-se de uma
porção indesejada de si mesmo.
Estamos diante de uma importante vertente transgeracional que denuncia a atividade de um outro tempo, incrustado na mente dessa criança.
Esse tipo de transmissão geracional patológica – transgeracional – tem
efeitos traumáticos, deixando nesse paciente profundas cicatrizes emocionais, uma vez que gerou um trabalho psíquico precoce, num tempo em que
não possuía defesas. Júnior ficou impossibilitado de significar certos acontecimentos, de modo tal que não pôde habilitar outras interpretações cau364 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 347-368, 2005
ÚLTIMA CENA: “Eu estava caminhando num morro perto da minha
casa quando vi um lagarto se mexendo. Fiquei apavorado, corri para
casa chorando. Ele parecia muito perigoso. Achei que ele ia botar
veneno em mim, me espetar e me comer. Mas pensando... pensando
melhor... lagarto não come humano. Foi só um grande susto! As crianças têm medos, adultos não. Vou desenhar ele para ti... depois, vamos
brincar!?”
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 365
Ana Rosa Chait Trachtenberg,
Mayra Dornelles Lorenzoni
sais em busca de sentido para a construção de seu ego. Essas vivências
adquiriram, assim, um valor patógeno.
Ao focalizarmos a atenção para a relação existente entre narcisismo
parental e identificações, consideramos que o pai interno de Júnior está
inscrito no psiquismo desse filho como um pai que o considera parte de si
mesmo. Essas identificações constituem um vínculo entre gerações e se
opõem a toda representação.
Foram transmissões abusivas, violentas, que bordaram o limite do
representável, sem dar acesso a uma história pessoal e a uma temporalidade
de acordo com as necessidades do psiquismo dessa criança. Conseqüentemente, ficou impedida de um maior nível de simbolização, sublimação e
potencialidade para um viver mais criativo.
Podemos pensar numa captura identificatória. Júnior está identificado, inconscientemente, com esse “pai-filho-silencioso” frente a uma família escassamente estruturada e com partes adoecidas, partes mortas (avós
com doenças degenerativas), aquele “maldito lado morto! meio pela metade!”
Tudo levaria a crer que as identificações traumáticas tenderiam a congelar o psiquismo em um “sempre”.
O desafio está lançado! O analista terá de ajudar o paciente a romper
com essas identificações defeituosas, traumáticas, pois isso possibilitará
inseri-lo em uma nova temporalidade, descongelando o psiquismo e dando
início ao processo de historização, consagrado na descoberta do seu próprio desejo e na perspectiva da construção do seu sentimento de identidade
e de sua singularidade.
IDENTIFICAÇÕES TRAUMÁTICAS,
CONGELAMENTO E TRANSGERACIONALIDADE
Resumo
O trabalho apresenta uma íntima correlação entre o material de sessões analíticas de um menino com diagnóstico inicial de Autismo Atípico e os contos
literários escritos e editados por seu pai, sobre os quais o menino não tinha conhecimento antes ou durante o tratamento. Considerações são tecidas a respeito das
transmissões psíquicas transgeracionais, ou seja, as identificações traumáticas: o
impacto sobre a vida emocional desse pequeno paciente e o seu congelamento
psíquico. Embasam este estudo, teoricamente, os conceitos de Introjeção Extrativa
de Cristopher Bollas, de Contrato Narcisista de Piera Aulagnier e de Identificação
Narcisista Inconsciente Alienante de Haydée Faimberg. Por fim, abordam-se as
repercussões contratransferenciais nas identificações traumáticas.
Palavras-chave
Autismo. Identificação Projetiva. Transgeracional. Transmissão. Trauma.
Rêverie.
Abstract
Trauma Identifications, Freezing and Transgenerationality
This paper highlights the very close relationship between psychoanalytic
materials gathered in sessions with a boy presenting with a diagnosis of atypical
autism and short stories written by his father of which the boy had no knowledge
before or throughout the treatment period. The authors reflect on these issues the
transgerational pathological transmissions – traumatic identifications – and their
subsequent impact on his emotional life, and his psychic frozen. This psychic
phenomenology is presented vis-a-vis the theoretical concepts of Cristopher Bollas’
Extractive Identification, Piera Aulagnier’s Narcisistic Contract and Haydée
Faimberg’s Alienating Unconscious Narcisistic Identification. Finally, they
approach the countertransference repercussions in traumatic identifications.
Key-words
Autism. Projective Identification. Transgerational. Trasmission. Trauma.
Reverie.
366 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 347-368, 2005
Identificaciones Traumáticas, Congelamiento y Transgeneracionalidad
El trabajo presenta una intima relación entre el material de sesiones de analisis
de un niño con diagnóstico inicial de Autismo Atípico y los cuentos literarios
escritos y publicados de su padre, acerca de los cuales el niño no tenia conocimiento
antes ó durante el tratamiento. Se tejen consideraciones acerca de la importancia
de las transmisiones psíquicas transgeracionales – identificaciones traumáticas –
y el impacto sobre la vida emocional del paciente, con su congelamiento psíquico. Esta trabajado teóricamente en base a los conceptos de Introjección Extrativa
de Christopher Bollas, Contrato Narcisista de Piera Aulagnier e Identificación
Alienante de Haydée Faimberg. Finalmente abordan las repercusiones
contratransferenciales en las identificaciones traumáticas.
Palabras-llave
Autismo. Identificación Proyectiva. Transgeneracional. Transmisión. Trauma. Rêverie.
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KONICHECKIS, A. Núcleos traumáticos precoces e transgeracionalidade. Psi-
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 367
Ana Rosa Chait Trachtenberg,
Mayra Dornelles Lorenzoni
Resumen
IDENTIFICAÇÕES TRAUMÁTICAS,
CONGELAMENTO E TRANSGERACIONALIDADE
canálise: revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, Porto
Alegre, v.7, n.1, p.19-40, 2005.
LORENZONI, M.D. A Falha da Função Materna: impacto no psiquismo infantil. 2003. Não publicado.
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uma transformação possível. In: TRACHTENBERG, A. R. C. et al. Transgeracionalidade: de escaravo a herdeiro – um destino entre gerações. São Paulo: Casa
do Psicólogo, 2005.
Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Dra. Ana Rosa Chait Trachtenberg
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368 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 347-368, 2005
Aline Baümer
Psicóloga.
Ana Rosa Chait
Trachtenberg
Médica Psicanalista; Membro
Titular em função Didática da
Sociedade Brasileira de Psicanálise
de Porto Alegre; Membro
Associado da Asociación
Psicanalítica de Buenos Aires.
Maria Luíza
Furtado Kahl
Psicóloga; Psicanalista; Professora
do Departamento de Psicologia
da Universidade Federal de Santa
Maria; Mestre em Filosofia e
Doutora em Comunicação e
Cultura.
A questão da transmissão da
herança psíquica entre gerações é
um assunto bastante recorrente na
psicanálise contemporânea. A
transgeracionalidade, transmissão
da herança psíquica de maneira patológica, mais especificamente, é o
viés que este trabalho pretende
abordar.
Salvador Dalí, em sua obra Le
Cabinet Antropomorfique, utilizou
gavetas inseridas em um corpo humano para simbolizar as teorias da
psicanálise de Freud. Disse, certa
vez, que
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 369
Aline Baümer, Ana Rosa Chait
Trachtenberg, Maria Luíza Furtado Kahl
Transgeracionalidade: a
patologia da
transmissão
psíquica entre
gerações
TRANSGERACIONALIDADE:
A PATOLOGIA DA
TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES
a única diferença entre a Grécia imortal e a época contemporânea era
Freud, que descobriu que o corpo humano, puramente neoplatônico à
época dos gregos, era repleto de gavetas secretas que somente a psicanálise seria capaz de abrir. (DALÍ apud SILVA, 2003, p.19).
Tais gavetas são representações dos conteúdos secretos da psique de
cada sujeito, recheadas de conteúdos que foram produzidos pelo próprio
indivíduo e também por conteúdos passados a ele através das gerações, por
meio da cultura, das tradições.
A escultura de Dalí, assim, possibilita uma metáfora da transmissão
psíquica, pois mostra um corpo sem rosto, sem identidade, repleto de gavetas, de compartimentos secretos, de criptas. 1 Uma figura humana
seccionada, que nos convida a pensar nos conteúdos que são transmitidos
entre e através das gerações, bem como na maneira como essa transmissão
psíquica pode influir no psiquismo dos sujeitos.
Se, como disse Dalí, é à luz da psicanálise que se podem investigar os
conteúdos secretos das gavetas de cada um, é através de novas leituras
acerca da transmissão psíquica, principalmente da transgeracionalidade,
que podemos obter novas concepções sobre as doenças psíquicas.
Antecedentes Freudianos para a Compreensão da
Transgeracionalidade
Em Estudos sobre a Histeria, Freud nos aponta que não apenas os
caracteres genéticos são passíveis de ser transmitidos, mas também os psíquicos poderiam ser perpassados.
Partindo do princípio de que existe um contexto subjetivo em que o
herdado tem papel fundamental, Freud, através de Totem e Tabu (1913),
nos apresenta importantes pontos que corroboram para o entendimento da
transgeracionalidade.
Através do tabu, código de leis – não escrito – mais antigo da humanidade que detinha todas as regras sociais vigentes, das quais evoluíram as
1
Conceito que será abordado mais adiante.
370 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 369-394, 2005
2
As questões relativas à identificação serão tratadas adiante.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 371
Aline Baümer, Ana Rosa Chait
Trachtenberg, Maria Luíza Furtado Kahl
atuais, e do maná, poder a ele atribuído, podemos perceber que questões
como sagrado versus impuro e proibição versus violação atuaram, entre
outras, como agentes constituintes da psique humana.
Todos os que violassem os códigos do tabu eram castigados e acabavam, eles mesmos, se tornando um tabu, pois representavam a própria
transgressão realizada. O medo e a necessidade de apaziguamento dos fantasmas, ou seja, dos mortos da mesma tribo ou de tribos inimigas, demonstram a ambivalência de sentimentos, pois o temor da vingança do fantasma
se coloca independentemente da relação com o morto. Ainda, o poder de
contágio e destruição atribuído ao totem, capaz de adoecer ou até mesmo
matar aquele que o tocasse, remete a um tipo de transmissão pelo qual os
espaços psíquicos são abolidos, fazendo, assim, com que o tabu funcione
como um intermediário entre indivíduos.
Dessa maneira, existem duas vias de transmissão: uma passa pela cultura e pela tradição, e seu suporte é o aparelho cultural e social que garante
a continuidade de geração a geração; a outra é formada pela “parte ‘orgânica’ da vida psíquica das gerações ulteriores” (FREUD, 1913), na qual as
proibições passam a ser parte integrante do inconsciente. Nas últimas páginas de Totem e Tabu, Freud levanta a hipótese de que essas duas vias se
encontram para formar a extensão psíquica da cultura e a inclusão social na
psique.
Em Sobre o Narcisismo: uma introdução, Freud articula o conceito de
identificação, fundamental para a compreensão da transgeracionalidade,
pois, para haver transmissão, existe a necessidade de haver identificação
entre os envolvidos.2 A questão da influência do psiquismo dos pais sobre
a constituição do psiquismo infantil e da transferência do narcisismo infantil dos pais ao bebê num ato de reivindicação ao filho, que carrega a suposta obrigação de realizar em nome dos pais os desejos a que tiveram de
renunciar, demonstram essa questão. A transferência se organiza a partir
do que falta e falha: o narcisismo da criança apóia-se sobre o que falta na
realização dos “sonhos de desejo” dos pais. Freud coloca, também, que o
TRANSGERACIONALIDADE:
A PATOLOGIA DA
TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES
indivíduo é, em si mesmo, seu próprio fim, mas se encontra vinculado a
uma corrente geracional, como elo de transmissão, sendo beneficiário e
herdeiro da mesma.
O indivíduo leva realmente uma existência dúplice: uma para servir às
suas próprias finalidades e a outra como um elo numa corrente, que ele
serve contra sua vontade ou pelo menos involuntariamente. (FREUD,
1914).
Em Luto e Melancolia, Freud segue os estudos acerca do conceito de
identificação, e nos aponta para a identificação narcísica como centro das
estruturações narcisistas.
A melancolia é tida como resultante de um luto por uma perda de
objeto escolhido em base narcísica e ambivalentemente amado. Existe uma
relação de identificação narcísica com o objeto perdido, e daí a falta desse
ser tão dolorosa. A libido, antes investida em objetos, agora é direcionada
ao próprio ego, gerando auto-acusações e sentimentos de menos-valia. Esse
entendimento é importante para o estudo da transgeracionalidade, pois a
questão é tratada no âmbito da perda de um objeto escolhido em base
narcísica e ambivalentemente amado, o que geraria a necessidade de ativar
o mecanismo da incorporação para negar a mesma, através de um luto indizível.3
O fenômeno de uma “mente grupal”, apresentado em Psicologia das
Massas e Análise do Ego, é trazido por Freud como decorrente de algo
comum entre indivíduos, em um nível de reciprocidade tal que o grupo é
capacitado a induzir emoções em um grau que dificilmente seria atingido
individualmente. A idéia de contágio, antes referida em Totem e Tabu,
retorna para explicar como as emoções são transmitidas aos membros do
grupo, contagiando-os um a um, como se uma compulsão a fazer o mesmo
que os outros integrantes se impusesse, sob pena de quebrar a harmonia do
todo. Esse contágio emocional que conduz à imitação é provocado pela
3
Essa questão será analisada adiante.
372 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 369-394, 2005
O problema pareceria ainda mais difícil se tivéssemos razões para admitir a existência de impulsos mentais que pudessem ser tão completamente suprimidos que deles não restasse nenhum traço. Mas isso não
existe. Por mais forte que seja a supressão, uma tendência jamais desaparece a ponto de não deixar atrás de si um substituto qualquer que,
por sua vez, torna-se o ponto de partida de certas reações. É lícito,
portanto, supor que não existe processo psíquico mais ou menos importante que uma geração seja capaz de ocultar àquela que a segue.
(FREUD, 1913).
Freud, portanto, introduz a idéia de uma formação do inconsciente na
própria transmissão do recalcamento, e não apenas dos conteúdos
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 373
Aline Baümer, Ana Rosa Chait
Trachtenberg, Maria Luíza Furtado Kahl
influência sugestiva do grupo. Laços de amor e de identificação com o
líder e com os outros membros do grupo funcionam também como base de
sustentação para a influência sugestiva grupal. Esses pontos auxiliam na
compreensão da transmissão psíquica, pois abarcam tanto a questão da
idéia de transmissão por contágio como a questão do grupo e de como é
difícil para um integrante do mesmo, principalmente se em posição de
menos poder, ir contra o que o mesmo determina, seja por identificação,
seja por desamparo, seja por submissão.
Retrocedendo um pouco, lembremos do artigo de 1914, em que Freud
fala da transferência do narcisismo infantil dos pais ao bebê. A família
funciona como um grupo, logo, a questão dos laços de amor e de identificação com o líder também se coloca. O pai ou a mãe funcionam como líderes,
e cabe à criança não quebrar a harmonia grupal, familiar, restando a ela
receber o narcisismo infantil dos pais. O vínculo emocional e o desamparo
da criança frente aos seus genitores parecem constituir, para Freud, os fundamentos mais primitivos dos processos de identificação, dos quais emanam as transmissões inconscientes de um indivíduo para outro e de geração para geração, formando a base para o funcionamento intrapsíquico.
Ainda em Totem e Tabu, nos perguntamos sobre o que se transmite, e
temos a resposta: o crime e a culpa pelo assassinato:
TRANSGERACIONALIDADE:
A PATOLOGIA DA
TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES
recalcados. O que se transmite é um traço, mas não só um traço. Lacan, no
Seminário sobre a Carta Roubada (1966 apud KAËS et. al., 2001, p.56),
retomou essa idéia: a carta sempre chega a seu destinatário. Não há nada
que seja abolido e que não apareça, algumas gerações depois, como estigma, como impensado, ou seja, como signo do que não pôde ser transmitido
na ordem simbólica. Nada do que foi retido permanece totalmente inacessível para a geração seguinte ou para aquela que a esta se segue. Deixará
traços, pelo menos em sintomas, que continuarão a ligar gerações entre si,
num sofrimento cuja motivação, mantida, lhes será desconhecida. No entanto, ainda resta a questão de compreender os agenciamentos psíquicos
que fazem com que um sujeito determinado, e não qualquer um, se constitua seu portador e fixe nesse lugar, com o acordo inconsciente dos outros,
as amarras de seu destino e seu próprio fim. A carta sempre chega a seu
destinatário, mesmo que este não tenha sido constituído como tal por seu
remetente: o traço, a marca segue seu caminho através dos outros até que
um destinatário se reconheça como tal.
Com Moisés e o Monoteísmo, Freud (1939) diz que
a herança arcaica do homem não engloba apenas disposições, mas também conteúdos, traços mnêmicos do que foi vivenciado por gerações
anteriores. Dessa maneira, tanto a extensão como a importância da
herança arcaica seriam significativamente ampliadas.
Fica claro, desse modo, que a questão da transmissão da herança psíquica transversalizou a obra freudiana, principalmente através de sua teoria de herança filogenética, a qual ele não abandonou em nenhum momento de seus escritos. O sujeito é entendido como herdeiro genético e também
como herdeiro psíquico de sua linhagem parental, e desde cedo sofre influências dessas duas ordens, concomitantemente à sua formação egóica.
Como essas duas vertentes vão se conciliar, a priori não se sabe, mas se
julga que o resultado de sua união e de sua mútua construção, e a elaboração através de seus intermediários, irão formar o sujeito. A relação desse
374 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 369-394, 2005
Introdução aos Conceitos (Pertinentes à
Transgeracionalidade) de Abraham e Torok
Após breve percurso por alguns textos freudianos a fim de se obter
entendimento sobre o modo como Freud pensava a questão da herança psíquica e de sua transmissibilidade, chega o momento da introdução de alguns conceitos da obra de Nicolas Abraham e Maria Torok, psicanalistas
húngaros que elaboraram conceitos-chave na clínica psicanalítica contemporânea, tais como os efeitos dos segredos de família atravessando gerações (clínica do fantasma ou assombração), o luto impossível de uma pessoa significativa (tornando-se patológico) e o enterro intrapsíquico de uma
vivência vergonhosa e indizível (cripta5 ). (CORREA, 2000)
Ferenczi é a raiz mais importante da obra de Abraham e Torok, principalmente pelos conceitos de introjeção e incorporação, fundamentais para
o entendimento da questão da cripta que se aloja no seio do Ego e pela
concepção de trauma.6
4
GOETHE. Fausto. [s.d.] Parte I, cena I.
Para Derrida, criptar é cifrar, operação simbólica ou semiótica que consiste em manipular um
código secreto (apud LANDA, 1999, p.300).
6
O conceito de trauma para Ferenczi está implicado na sua idéia da “máquina de calcular”. A
hipótese dessa máquina se torna a resposta à questão de como um desprazer pode receber um sim:
“se o reconhecimento do ambiente hostil representa um desprazer, seu não reconhecimento comporta geralmente ainda mais desprazer, o menos desprazeroso se torna então relativamente
prazeroso e pode ser afirmado como tal” (1974 apud LANDA, 1999, p.203). Ainda a noção de
identificação com o agressor, a noção de clivagem e a negação pelos adultos da palavra da criança
são fundamentais para a questão do trauma na concepção ferencziana (LANDA, 1999, p.215).
5
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 375
Aline Baümer, Ana Rosa Chait
Trachtenberg, Maria Luíza Furtado Kahl
com os meios social, familiar, cultural e biológico irá adicionar-se como
mais um constituinte e, assim, mais um determinante na sua história como
indivíduo, delimitando suas estruturas de defesa. Se esse indivíduo é o destinatário da carta enviada por um antepassado, podemos pensar que algo na
regulação de suas instâncias psíquicas falhou, não reconheceu como nãoseu ou identificou-se com o conteúdo da carta. “Aquilo que herdaste de
teus pais, conquista-o para fazê-lo teu” (GOETHE apud SILVA, 2003,
p.25).4
TRANSGERACIONALIDADE:
A PATOLOGIA DA
TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES
Quanto à introjeção,7 sabe-se que é essencial para o problema do luto.
Segundo Ferenczi, ela é um mecanismo que permite “estender ao mundo
exterior os interesses primitivamente auto-eróticos, incluindo os objetos
do mundo exterior no Ego” (FERENCZI, 1909 apud ABRAHAM; TOROK,
1987, p.221), concebendo, com isso, que todo amor objetal (ou toda transferência) se dá como um alargamento do Ego, ou seja, como uma
introjeção.
Sendo a “doença do luto” um tema muito recorrente em Abraham e
Torok, a diferenciação entre introjeção e incorporação se faz pertinente.
Introjeção, por conseguinte, se define como um processo de inclusão
– a propósito de um “comércio” objetal – do Inconsciente com o Ego. A
perda do objeto não seria capaz de acabar com esse processo, posto que a
aspiração da introjeção não é da ordem da compensação, mas da ordem do
crescimento, buscando introduzir no Ego a libido inconsciente, anônima
ou recalcada, alargando, enriquecendo o Ego. “Não se trata puramente de
introjetar o objeto, e sim do conjunto das pulsões e de suas vicissitudes,
cujo objeto é o próprio contexto e mediador” (ABRAHAM; TOROK, 1987,
p.222).
A maior parte das características atribuídas à introjeção valem, no entanto, para a incorporação – mecanismo que supõe, para entrar em ação, a
perda de um objeto. Tal mecanismo, contudo, deve entrar em ação antes
mesmo que os desejos que o concernem tenham sido liberados.
Como forma de compensação do prazer perdido e da introjeção ausente, ocorre a instalação do objeto proibido no interior do Ego. Essa é a incorporação propriamente dita, que pode operar no modo da representação, do
afeto ou de algum estado do corpo, ou utilizar dois ou três modos simultaneamente. Independentemente do instrumento, ela se distingue sempre da
introjeção, processo progressivo, em nome de seu caráter instantâneo e
mágico (da ordem da fantasia), no qual, na ausência do objeto-prazer, obedece ao princípio do prazer e opera por processos semelhantes ao da realização alucinatória.
7
Ferenczi é tido como o pai do conceito de introjeção (1909).
376 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 369-394, 2005
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 377
Aline Baümer, Ana Rosa Chait
Trachtenberg, Maria Luíza Furtado Kahl
O objetivo, no final das contas, é o de recuperar, através de um modo
mágico e oculto, o objeto que, por qualquer razão, não cumpriu sua missão: mediatizar a introjeção do desejo. Uma vez recusado o veredicto do
objeto e da realidade, a incorporação, bem como o desejo de introjetar dissimulado, deve escapar a todo olhar estranho, inclusive o do próprio Ego.
Para sua sobrevivência, o segredo é obrigatório, o que consta como uma
diferença a mais com relação à introjeção, que opera às claras.
Enquanto a introjeção das pulsões põe fim à dependência objetal, a
incorporação do objeto cria ou reforça a situação oposta; o objeto incorporado exatamente no lugar do objeto perdido lembrará sempre (em nome da
sua existência e pela alusão de seu conteúdo) alguma outra coisa perdida,
ou seja, o desejo atendido por recalcamento. “Monumento comemorativo,
o objeto incorporado marca o lugar, a data, as circunstâncias em que tal
desejo foi banido da introjeção: quantos túmulos na vida do Ego”
(ABRAHAM; TOROK, 1987, p.223).
A questão da incorporação, tão importante para o conceito da cripta,
faz-nos pensar que não poderia ser outro o processo responsável por colocar a cripta no seio do Ego, por assim dizer, pois é justamente ela o mecanismo mais primitivo de manutenção egóica. Ligada à questão oral, ao alimento, às representações pré-verbais, é lógico pensarmos ser esse o mecanismo que atua quando acontecimentos traumáticos, perdas, lutos, vergonhas, enfim, questões não passíveis de serem verbalizadas pelo sujeito,
negadas antes mesmo da liberação de seus afetos, acontecem.
São as perdas narcísicas que têm a incorporação como destino – perdas que não podem, por alguma razão, se confessar enquanto perdas. Nesse
caso, a impossibilidade de introjeção, com sua recusa de luto, chega a proibir até que se faça uma linguagem, que se signifique que se está
inconsolável. Na falta desse recurso, a única opção possível é a de fingir
que nada aconteceu, que nada se perdeu. Assim, todas as palavras que não
puderam ser ditas, todas as cenas que não puderam ser rememoradas, serão
engolidas, assim como, ao mesmo tempo, o traumatismo, causa da perda.
TRANSGERACIONALIDADE:
A PATOLOGIA DA
TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES
“Engolidos e postos em conserva” (ABRAHAM; TOROK, 1987, p.249). O
luto indizível instala no interior do sujeito uma sepultura secreta.
Na furna repousa, vivo, reconstruído a partir de lembranças de palavras, de imagens e de afetos, o correlato objetal da perda, enquanto
pessoa completa, com sua própria tópica, bem como os momentos traumáticos – efetivos ou supostos – que haviam tornado a introjeção impraticável. Criou-se, assim, todo um mundo fantasístico inconsciente
que leva uma vida separada e oculta. Acontece, entretanto, que, por
ocasião das realizações libidinais, “à meia-noite”, o fantasma da cripta
vem assombrar o guardião do cemitério, fazendo-lhe sinais estranhos e
incompreensíveis, obrigando-o a realizar atos insólitos, infligindo-lhe
sensações inesperadas. (ABRAHAM; TOROK, 1987, p.249).
A hipótese de Abraham e Torok a respeito da cripta inicia, então, pelo
fato de que, cada vez que uma incorporação é evidenciada, ela deve ser
atribuída a um luto vergonhoso que, aliás, apenas ocorreria depois de um
estado de ego acuado, depois de uma experiência objetal vergonhosa, traumática, ou seja, depois de um fato acontecido, de um desejo realizado
(contrariamente à histeria). É isso que a cripta perpetua. Não existe cripta
que não tenha sido precedida por um segredo partilhado. Na clivagem que
se segue a um choque, as partes se desenvolvem independentemente, “uma
entre elas fazendo-o sob a égide do segredo, o que nas considerações de
Nicolas Abraham e de Maria Torok será a característica mesma da incorporação” (LANDA, 1999, p.208). Ao sujeito criptófaro,8 trata-se de guardar
seu segredo, de cobrir sua vergonha. A solução do sujeito criptófaro será
anular o efeito da vergonha, assumindo às ocultas ou às claras a significação própria das palavras da vergonha (lembremos do artigo de Freud de
1914 e da questão do desamparo da criança frente aos pais, e de sua posição perante agressores, identificando-se com tais para restabelecer sua posição de ternura).
8
A palavra criptófaro não é encontrada facilmente nos dicionários, é integrada pela raiz cripta que
significa o que está velado. Criptófaro é aquele que porta em si uma cripta, uma sepultura
(CORREA, 2000, p.10).
378 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 369-394, 2005
No criptófaro, é um desejo já realizado e sem desvios que se encontra
enterrado, tão incapaz que ele é de cair no esquecimento. Nada poderia
ser feito para que ele não se realize e que a lembrança se apague dessa
realização. O passado é, pois, presente no sujeito; como um bloco de
realidade, ele é visado como tal nas denegações e retratações. Se essa
realidade não pode morrer, ela tampouco pode pretender voltar à vida.
O cortejo de personagens internas está lá para impedi-lo (ABRAHAM;
TOROK, 1987 apud LANDA, 1999, p.200).
Para Derrida, a cripta se constrói na violência, através de golpes silenciosos e de traumas pré-verbais. A cena traumática, assim, seria encriptada
com todas as suas forças libidinais,
com sua contradição que, pela oposição mesma dessas forças, como
dos pilares, das vigas, das travessas, dos muros de sustentação, escora
a resistência interna do jazigo, com seus poderes de sofrimento intolerável apoiados em um gozo indizível, interdito, em um lugar que não é
simplesmente o inconsciente, mas o ego (DERRIDA apud LANDA,
1999, p.273).
9
O fantasma, objeto incorporado, poderia, na verdade, ser chamado de zumbi, pois sua característica é a de um morto-vivo: “é preciso guardar vivo aquilo mesmo que provoca o pior sofrimento
[...] o recalcamento instala no inconsciente o que tem para o ego o aspecto de um cadáver delicioso” (DERRIDA apud LANDA, 1999, p.298).
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Aline Baümer, Ana Rosa Chait
Trachtenberg, Maria Luíza Furtado Kahl
A incorporação, contudo, não passa de uma fantasia que tem por objetivo dar segurança ao ego, quando a realidade psíquica, no entanto, é completamente outra. As palavras, as frases indizíveis e ligadas a lembranças
de grande valor libidinal e narcísico não se acomodam à sua exclusão. As
palavras indizíveis postas em cripta não cessam de tentar voltar à tona.
Pode-se sustentar, portanto, que toda fantasística advinda da incorporação
do fantasma9 (o objeto incorporado) busca reparar uma ferida real que afetou o objeto ideal, tentando fazer com que nenhum trauma tenha ocorrido
ou que nenhum trauma tivesse o que abalar.
TRANSGERACIONALIDADE:
A PATOLOGIA DA
TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES
Cabe, também, esclarecer o conceito de Realidade10 para Abraham e
Torok. Para eles, o conceito metapsicológico de Realidade remete, no aparelho psíquico, ao lugar onde o segredo está escondido, enterrado. Assim,
ela se define como o que é recusado, mascarado, denegado como realidade,
como o que não deve ser conhecido. Em suma, em uma palavra, definida
como um segredo (LANDA, 1999, p.217).
Considerando os trabalhos de Ferenczi sobre o trauma, a “máquina de
calcular” sofre uma pane. O choque da perda não permite mais contar o
mundo nem contar com o mundo. A magia incorporativa restabelece a lei
do tudo ou nada: tudo permanece sem mudança porque nada aconteceu.
Essas considerações permitem pontuar algumas precisões no conceito
de cripta:
Na tópica, esta cripta corresponde a um lugar definido. Não é nem o
Inconsciente dinâmico nem o ego da introjeção. Seria antes como que
um enclave entre os dois, espécie de Inconsciente artificial, localizado
no seio do ego. A existência de tal tumba tem por efeito obturar as
paredes semipermeáveis do Inconsciente dinâmico. Nada deve filtrar
para o mundo exterior. (ABRAHAM; TOROK, 1987 apud LANDA,
1999, p.218).
Derrida auxilia:
A cripta não é, pois, um lugar natural, mas a história marcante de um
artifício, uma arquitetura, um artefato: de um lugar compreendido em
um outro, mas rigorosamente separado dele, isolado do espaço geral
por tabiques, muros, enclave. Para lhe substituir a coisa. Construindo
um sistema de paredes, com suas faces interna e externa, o enclave
críptico produz uma clivagem do espaço geral, no sistema reunido de
seus lugares, na arquitetônica de sua praça aberta em seu interior e ela
mesma limitada por uma parede geral, em seu foro. No interior desse
foro, praça de livre circulação para as trocas de discurso e de objetos,
10
Escrito com letra maiúscula por ser um conceito metapsicológico, diferenciando-a da realidade
de senso comum.
380 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 369-394, 2005
A condição para que o mecanismo de incorporação se realize e instaure, então, a cripta no seio do Ego,11 pode ser esclarecida a partir de duas
questões: “como as palavras da introjeção chegam a faltar?” e “por que
essa urgência que as chama?”. Segundo Abraham e Torok, “só pode se
tratar da perda súbita de um objeto narcisicamente indispensável, quando
então essa perda interdita a comunicação. Em qualquer outro caso, a incorporação não teria razão de ser” (ABRAHAM; TOROK, 1987 apud LANDA,
1999, p.227), já que, como dito anteriormente, a incorporação, para
Abraham e Torok, surge como um recurso mágico que tem por finalidade
negar a situação traumática na sua totalidade. É nos casos de lutos indizíveis, inomináveis, que as tumbas, as criptas se colocam, secretamente, no
interior do ego, como esperança de restauração psíquica.
Somado a isso, a questão de que a cripta indica ou que um desejo foi
realizado, ou que um trauma realmente aconteceu, ou que a vergonha realmente precisa ser acobertada (ou todos esses exemplos juntos) aponta para
11
Segundo Derrida (apud Landa, 1999, p. 299), o Ego é o guardião do cemitério. A cripta é
encerrada nele, porém como um lugar estranho, interdito, excluído. Ele não é o proprietário daquilo que ele tem a guarda. Ele faz apenas o papel de proprietário. Anda ao redor e sobretudo
emprega todo o seu conhecimento dos lugares para desviar os visitantes. “Ele se mantém plantado
lá para vigiar as idas e vindas da família próxima que pretende – por diferentes razões – ter acesso
à tumba. Se ele consente introduzir os curiosos, os detetives, será para melhor lhes arrumar falsas
pistas e tumbas fictícias” (Abraham, 1972, apud Landa, 1999, p.229).
Segundo os autores Abraham e Torok, a cripta localiza-se no sistema pré-consciente – consciente.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 381
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Trachtenberg, Maria Luíza Furtado Kahl
a cripta constrói um outro foro: fechado, porém no interior de si mesmo, interior secreto no interior da grande praça, mas ao mesmo tempo
exterior a ela, exterior no interior. Qualquer coisa que se escreva sobre
elas, as superfícies parietais da cripta não separam simplesmente um
foro interior de um foro exterior. Elas fazem do foro interior um foro
excluído no interior do de dentro. Tal é a condição, tal o estratagema
para que o enclave críptico possa isolar, proteger, disfarçar, manter ao
abrigo de toda penetração, de tudo o que de fora possa se infiltrar com
o ar, a luz ou o ruído, o olhar ou a escuta, o gesto ou a palavra.
(DERRIDA apud LANDA, 1999, p.272).
TRANSGERACIONALIDADE:
A PATOLOGIA DA
TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES
a fragilidade real do ego, que necessitaria de uma profunda restauração,
caso o material encriptado, o fantasma, assim não estivesse guardado, assim não estivesse escondido. A clivagem ocorre porque o trauma é forte
demais para o sujeito, mas a cripta não fica para sempre escondida. Remetendo ao capítulo anterior, não há nada que uma geração consiga esconder
completamente daquela que a ela sucede (FREUD, 1913).
Transgeracionalidade
Após deixarmos claras as principais raízes da transgeracionalidade,
através de Freud e de Abraham e Torok, partimos, delineando-nos em determinados autores12 e remontando aos capítulos anteriores, para a questão
propriamente dita.
O primeiro ponto é deixar clara a diferença entre intergeracionalidade
e transgeracionalidade, duas modalidades de transmissão de herança psíquica de uma geração para outra.
A intergeracionalidade é a transmissão psíquica que acontece entre
gerações, havendo uma distância mantida e o respeito aos espaços psíquicos de cada indivíduo, o que permite, assim, que haja uma transformação
do material que é transmitido e que a subjetividade dos sujeitos seja respeitada.
Na intergeracionalidade, o sujeito não é tido como um “escravo”, pois
ele tem meios para, pelo trabalho psíquico, elaborar o material recebido
através da transmissão, de modo a conduzi-lo a uma transformação e a uma
diferenciação, a “uma evolução entre o que é transmitido e o que é herdado” (TRACHTENBERG, 2002). Isso permite que cada geração possa situar-se em relação às outras com identidade própria, sendo um elo entre outras gerações, e não a pura repetição do traumático de uma. A frase de
12
Os autores utilizados para a compreensão da transgeracionalidade, nesse trabalho, são:
Trachtenberg, Faimberg, Aulagnier, Kaës, Granjon, além dos clássicos Freud, Abraham, Torok e
Ferenczi, que, embora não tenham falado sobre transgeracionalidade, precisam ser reportados a
fim de que possamos compreender os antecedentes da questão, bem como os conceitos a ela
ligados.
382 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 369-394, 2005
13
Ler Freud, Luto e Melancolia (1917), ou revisar primeira parte deste trabalho.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 383
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Trachtenberg, Maria Luíza Furtado Kahl
Goethe, citada por Freud em Totem e Tabu, ilustra bem a intergeracionalidade: “Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu”, ou
seja, recebe a herança psíquica e dá a ela características e trabalho psíquicos teus para que ela seja tua. Assim, concebe-se que a intergeracionalidade é uma transmissão psíquica estruturante, a partir da qual o sujeito pode,
através de fantasias, identificações, etc., organizar sua “história familiar,
um relato mítico, do qual cada indivíduo pode tomar os elementos necessários para a constituição de sua novela individual neurótica” (TRACHTENBERG, 2002).
A transgeracionalidade, objeto principal deste trabalho, em
contrapartida, é a patologia da transmissão psíquica entre gerações, pois
acontece através dos sujeitos e das gerações, não respeitando subjetividades e espaços psíquicos, impondo ao receptor o seu material psíquico em
estado bruto, encriptado.
Segundo Abraham e Torok, em situações em que um trauma real aconteceu, e o sujeito, através do mecanismo da incorporação, criou uma cripta
em seu interior, existe a necessidade, por parte do mesmo, de livrar-se desse material, como meio de livrar-se dos fantasmas da cripta, que, como dito
no capítulo anterior, assombram o indivíduo.
A transgeracionalidade pode, para alguns estudiosos, tais como Kaës
e Silva, ser entendida como a transmissão da cripta, detentora do material
bruto, dos afetos, das fantasias do trauma ocorrido e que se encontram nela
enquistados. O indivíduo expulsa de dentro de si seu próprio fardo, bem
como as partes alienadas de si mesmo, e as coloca em alguém
narcisicamente selecionado da geração seguinte.13
É através do mecanismo de identificação projetiva que a geração precedente irá transmitir a cripta. A geração receptora, no entanto, precisa
identificar-se com a que a precede, a fim de que receba esse material. A
geração que transmite “liberta-se” através da identificação projetiva, enquanto que a receptora é como que escravizada, pois esta, vivendo uma
história que ao menos em parte não é sua, acaba por ter parte de seu próprio
TRANSGERACIONALIDADE:
A PATOLOGIA DA
TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES
psiquismo alienado. Haydée Faimberg (2001, p.131) intitula esse fenômeno de telescopagem de gerações, o qual ela exemplifica com o modelo das
bonecas russas, em que uma cabe dentro da outra, representando o material
psíquico que habita o interior de outro ser que não o seu dono original. A
questão das identificações alienantes, de Piera Aulagnier (apud KAËS,
2001, p.36), corrobora ainda com a questão da transgeracionalidade, posto
que o material transmitido, por ser do sujeito que o transmite, aliena, da sua
própria psique, o receptor.
Na transmissão alienante, os pais perdem a função de fiadores, para a
criança, do valor de investigação das verdades psíquicas e ocupam seu
lugar. A criança, assim, fica sujeita ao que os pais dizem ou calam,
passando a depender, de maneira paradoxal, para sua própria sobrevivência psíquica, dessa versão narcísica fundadora que é mantida em
silêncio pelos pais, perdendo assim o livre acesso à interpretação de
seu próprio psiquismo. (FAIMBERG, 2001, p.136).
Freud, em 1921, citava o amor e a hipnose como resultantes da idealização do objeto, quando a libido narcísica transborda para o objeto, passando a ser um sucedâneo de algum inatingido de nós mesmos, fazendo
prevalecer uma sujeição humilde ao objeto amado. No amor, há uma identificação com o objeto com cujas propriedades o ego pode enriquecer-se,
pois o introjetou em si. Entretanto, na fascinação, ou servidão, tanto como
na hipnose, o ego empobreceu-se, substituiu o seu constituinte mais importante pelo objeto. A hipnose conta com um elemento fundamental para o
seu êxito: a paralisia – derivada da relação entre alguém com poderes e
alguém que está sem poderes e desamparado. O vínculo emocional e o
desamparo da criança frente aos seus genitores parecem, assim, para Freud,
constituir os fundamentos mais primitivos dos processos de identificação,
de onde emanam as transmissões inconscientes de um indivíduo para outro
e de geração para geração, formando a base para o funcionamento
intrapsíquico. (TRACHTENBERG, 2002).
Assim, através dos conceitos de identificação projetiva, identificação
384 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 369-394, 2005
Na geração receptora, encontramos o impensável, o negativo, o processo de segredar, os restos insensatos, os passados em silêncio, as
histórias vazias. Estará fundada, dessa forma, a cadeia traumática
transgeracional. (TRACHTENBERG, 2002)
A questão da transmissão psíquica, assim, torna-se central no grupo
familiar e diz respeito a cada um e ao conjunto das relações geracionais
grupais, já que a existência de cada um no grupo familiar está fundada no
lugar oferecido e ocupado na cadeia das gerações (GRANJON apud
CORREA, 2000).
Remontando a Ferenczi (apud TRACHTENBERG, 2001), este descreve a posição infantil de submissão da criança ao adulto, justificando o fato
de que ela se encontra altamente sugestionável.15 Como a criança não pode
abrir mão da ternura, se identifica mesmo em situações de agressão. Frente
a situações traumáticas, então, a criança não se defende. Sua personalidade
fracamente desenvolvida não permite a defesa, e sua proteção passa a ser a
identificação, tomando a realidade dura, exterior, como sua, tornando-a
parte de seu próprio psiquismo. Por isso ela aceita a cripta, submissa que
14
15
Anteriormente citado mencionando Freud e Ferenczi.
Ainda, Freud nos artigos de 1914 e 1921.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 385
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Trachtenberg, Maria Luíza Furtado Kahl
e cripta, passa-se a compreender como funciona o mecanismo da transgeracionalidade: o portador da cripta tem necessidade de livrar-se dela. Para
tanto, através da identificação projetiva, transmite seu legado traumático e
não elaborado ao receptor, que, devido à identificação, dependência, desamparo e posição de submissão inerente ao ser humano infantil, recebe o
material como meio de manter a harmonia familiar, grupal, não indo contra
o líder, detentor do poder e emissor, assumindo o papel a ele designado
para restabelecer sua posição de ternura infantil.14
A transgeracionalidade, assim, impele as gerações a um sintoma de
repetição, pois o mesmo material não elaborado, indizível, irá assombrar
mais de uma geração, gerando sintomas.
TRANSGERACIONALIDADE:
A PATOLOGIA DA
TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES
está em relação ao adulto bem como identificada com o mesmo. A necessidade de ocupar o lugar oferecido na cadeia das gerações se faz presente.
A patologia da transmissão, portanto, insere a geração receptora no
traumático da geração precedente, fazendo com que se cumpram, para ela,
várias funções, tais como ocupar o lugar dos mortos, identificando-se com
eles, para satisfazer a mãe, por exemplo, ou servindo de continente para as
angústias excessivas do adulto, invertendo as posições na linha geracional,
transformando-se – outro exemplo – em pai de seus pais.
Fica claro, nesse momento, o quão pode a patologia ser alienante.
Kaës (2001) coloca que a questão da fundação do inconsciente do sujeito
se dá através da intersubjetividade, do desejo do outro. Desse modo, podese pensar que o lugar que esse outro concede é o único lugar a ser ocupado
pelo sujeito que está se constituindo, ou que, ao menos, é praticamente
impossível não ocupá-lo.
Aponta ainda que os conteúdos passíveis de serem transmitidos são as
configurações de objetos, ou seja, os afetos, as representações e as fantasias; objetos providos de seus enlaces e que incluem sistemas de relações
de objeto transmitidos através da transmissão transpsíquica,16 que não respeita os limites e os espaços subjetivos, predominando, assim, apenas as
exigências narcísicas do transmissor.17 Convém pontuar que Totem e Tabu
traz, na idéia de transmissão por contágio, do Maná, um exemplo de transmissão transpsíquica, posto que limites e espaços psíquicos não são respeitados.
Trachtenberg (2001) coloca que, ao pensarmos numa linha geracional,
observamos que, através da transmissão transpsíquica de um segredo, de
16
Convém dizer que transgeracionalidade é a patologia da transmissão da herança psíquica entre
gerações, enquanto que a transmissão transpsíquica é transmissão entre sujeitos, supondo a abolição dos limites e dos espaços subjetivos.
17
Kaës distingue duas formas de transmissão: a já citada transpsíquica e a intersubjetiva, que
aponta para conteúdos que podem ser transpostos e transformados de um indivíduo a outro ou de
geração a geração, sendo um tipo de transmissão que transita num espaço subjetivo, em que são
respeitados os espaços individuais e enunciadas as proibições fundamentais, possibilitando a cada
sujeito do grupo familiar a atividade de representação, como o Complexo de Édipo (KAËS apud
TRACHTENBERG, 2001).
386 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 369-394, 2005
Ao invadir a mente de seu filho, o progenitor [geração precedente]
parasita-o ativamente com sua própria dolorosa e clivada história, tornando-o cativo de uma história que, pelo menos em parte, não é sua.
Estamos falando de um cativeiro (clivagem, alienação e organização
psíquica em torno do não-seu) que produz uma pobreza e um esvaziamento psíquicos e em que há, paradoxalmente, um “demasiado-cheio”,
um objeto que jamais se ausenta. O representante dessa geraçãoreceptora de um ato psíquico que não é seu termina por se alienar de
seu próprio psiquismo. (TRACHTENBERG, 2001)
A patologia da transmissão, assim, embora afete um sujeito em sua
singularidade, não pode por definição ser um atributo seu, mas, sim, uma
formação que adquire função em uma dupla economia psíquica, pois é
mantida e transmitida no processo psíquico do sujeito singular e no processo psíquico do conjunto intersubjetivo (KAËS, 2001). Coloca o sujeito,
parafraseando Freud, no artigo de 1914, em lugar de indivíduo enquanto
fim para si mesmo mas também enquanto elo entre gerações; contudo, enquanto alguém que cumpre variadas funções em nome da geração precedente. Os traços daquilo que se passou com a geração anterior e que por ela
não pôde ser pensado, “com seu cortejo de terror, vergonha e interditos”
(GRANJON apud CORREA, 2000, p.25), é o que constitui a transgeracionalidade, modalidade de transmissão psíquica imposta, que atravessa gerações, acarretando a alienação do sujeito que se encontra encarregado de
uma parte não-explícita e não-acessível da história de um outro, como se o
sujeito passasse a ser o “suplente narcísico” (GRANJON apud CORREA,
2000, p.26) desse outro.
Concluindo, quando um acontecimento com potencialidade traumáti18
Lembrar do Complexo de Édipo, que é o exemplo mais claro da transmissão psíquica envolvendo pelo menos três gerações, embora não se trate de transmissão transpsíquica, como já citado.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 387
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uma situação não vivenciada afetivamente, verbalizada ou não, uma vez
que essa verbalização pode não dar conta de todas as representações e afetos envolvidos no trauma, três gerações18 estão envolvidas.
TRANSGERACIONALIDADE:
A PATOLOGIA DA
TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES
ca (nascimentos, mortes, partidas, e, a fortiori, os acontecimentos traumáticos, etc.) vem perturbar ou impedir um processo de integração harmônica, ele cria lacunas, inclusões, criptas na psique em questão. Esses “passados em silêncio”, ou “mantidos em segredo”, esses “restos insensatos” de
um acontecimento inaceitável estão fora de um trabalho psíquico, mas vão
obstruir a psique do sujeito e do grupo, permanecendo em estado bruto,
consagrados à repetição e oferecidos às identificações da criança, geração
sucessora, com a secreta esperança de que esta, herdeira e suplente
narcísico, possa realizar o trabalho fracassado. É possível estabelecer, ainda, que transmitir é mais importante que aquilo que é transmitido, e o que
será encontrado na descendência é o indizível, o impensável, o processo do
segredo mais do que seu conteúdo (GRANJON apud CORREA, 2000).
Conclusão
A questão da herança, daquilo que é adquirido ou daquilo que é imposto pela transmissão, no cerne da vida psíquica familiar e individual está,
desde o momento originário, inscrito nas fundações e nos fundamentos da
psique de cada um de seus membros e do grupo.
A transmissão psíquica, entre e pelas gerações, tem a ver com a continuidade e com a evolução de cada indivíduo e do conjunto da sociedade.
Tradições e culturas asseguram, parcialmente, a continuidade de uma geração para a outra. A isso se soma a transmissão psíquica, que pontua a idéia
de que não somente o genético, em seu sentido restrito, mas também componentes psíquicos são passíveis de ser transmitidos.
Os processos da transmissão implicam ligações com e entre diferentes
níveis intrapsíquicos e intersubjetivos intermediadas pelo grupo e pelos
seus agenciamentos e relações, favorecendo transformações e conduzindo
a uma diferenciação, uma evolução entre o que é transmitido e o que é
adquirido. Esse trabalho permite a cada geração situar-se em relação às
outras, inscrevendo cada sujeito em uma cadeia e em um grupo (ou grupos), permitindo a fundação de sua própria subjetividade, constituindo sua
388 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 369-394, 2005
19
Contrato narcísico de Piera Aulagnier. Indica que existe um pré-investimento dos pais em relação ao bebê, ao qual reservam um lugar legítimo. A criança demanda ao grupo o reconhecimento
de que ela lhe pertence, enquanto o grupo lhe demanda a preservação de seus valores e leis,
previamente estabelecidos (AULAGNIER apud TRACHTENBERG, 2005).
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 389
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história e tornando-o proprietário de sua herança: essa é a modalidade “normal” da transmissão psíquica, a intergeracionalidade.
É quando esse trabalho falha, então, que a intergeracionalidade dá lugar à patológica transgeracionalidade, fazendo com que a transmissão psíquica possa ser alienante em vez de estruturante, já que, ao atravessar gerações e se colocar de maneira não elaborada, em estado bruto na psique do
indivíduo que a recebe, não permite metabolização ou trabalho psíquico,
fazendo com que o sujeito realize tarefas para a geração precedente, como
se fosse um suplente narcísico da mesma. O dano é que, vivendo uma história que não é integralmente sua, o indivíduo parte para uma lenta morte
psíquica, pois suas próprias questões acabam ficando em segundo plano.
A transgeracionalidade, modalidade da transmissão psíquica que, ao
se impor aos indivíduos através das gerações, não respeita subjetividades e
espaços psíquicos, se trata de um dispositivo patológico e não universal.
A transmissão forçada, imposta desde o nascimento (pode ser
intergeracional ou transgeracional, pois as duas modalidades acabam sendo impostas, porém, permitem ao indivíduo enlaces subjetivos completamente diferentes), faz da criança elo de uma cadeia geracional e a destina a
um lugar que lhe é oferecido pelo grupo que a acolhe.
Herdeira daquilo que se teceu e daquilo que calou de seus pais, a criança, que se beneficia do investimento narcísico desses, assegura a continuidade do conjunto e adquire a possibilidade de sua própria subjetividade. É
a esse preço que ela poderá existir, constituir-se psiquicamente como sujeito do inconsciente e sujeito do grupo. O que é oferecido à criança, nos
termos do contrato de vida19 que lhe é proposto, é um lugar a ocupar e uma
carga a assumir, permitindo-lhe adquirir esse lugar que a funda.
Como são os pactos inconscientes do grupo familiar que permeiam o
que deve ser interdito, não dito ou dito, a criança encontra-se à mercê dessa
TRANSGERACIONALIDADE:
A PATOLOGIA DA
TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES
teia familiar, e tende a assumir o que esperam dela, como meio de fazer
parte dessa teia. No entanto, a criança corre o risco de assumir-se como o
próprio conteúdo secreto, e pode ser pega pelo irrepresentável familiar através da transgeracionalidade.
Assim, de herdeira da “Caixa de Pandora”,20 ou das gavetas da escultura de Salvador Dalí,21 a criança passa a ser, ela mesma, o seu conteúdo;
passa a ser o negativo, o segredo, a amnésia, o silêncio, o não dito, passando a alienar-se da sua psique e a viver em função da psique de um outro.
As doenças chamadas limítrofes (borderlines), a psicose e o autismo,
podem, através da transgeracionalidade, ter novas leituras, posto que esta
tem por fato a alienação psíquica (ao menos em parte) daquele que recebe
seu material, podendo, assim, ser possível pensarmos novos dispositivos
que poderiam auxiliar a responder às perguntas de como e por que tais
estruturas se instalam nos indivíduos. Poderiam ser essas estruturas casos
extremos de transgeracionalidade?
A psicossomatização, tanto em crianças como em adultos, também
poderia ser estudada pelo viés transgeracional. Em se tratando de crianças,
principalmente, a questão da psicossomática pode ser estudada como modo
de repetir o sintoma do outro, da geração precedente, ou de tentar dar vazão
ao material psíquico recebido através da via corpórea por não ter recursos
psíquicos para lidar com o não-elaborado legado geracional.
Além do mais, a transgeracionalidade pode ser caminho para estudos
sobre as conseqüências psíquicas das situações de traumas reais, que não
são reconhecidas ou querem ser banidas da memória pela sociedade ou
instituições como a família, já que contribuem para a formação de criptas
no sujeito, à medida que exigem que não se fale de certos fatos que acabam, assim, tornando-se impensáveis.
Assim, a questão da transgeracionalidade se coloca como um caminho
vasto para as investigações da psicanálise contemporânea, tamanha sua
20
A Caixa de Pandora faz parte dos mitos gregos. Trata-se de uma caixa detentora de todos os
segredos e males do mundo, a qual não poderia nunca ser aberta. No entanto, Pandora, a primeira
mulher (tal como Eva para a Bíblia) a abriu.
21
Referência à escultura de Salvador Dalí citada na introdução.
390 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 369-394, 2005
Resumo
A questão da transmissão da herança psíquica entre gerações é um assunto
bastante recorrente na psicanálise contemporânea. A transgeracionalidade, transmissão da herança psíquica de maneira patológica, no entanto, é o viés que este
trabalho pretende abordar.
O primeiro capítulo deste trabalho busca na obra de Freud os antecedentes
da questão da transmissão da herança psíquica, enquanto o segundo apresenta
conceitos fundamentais para o entendimento da transgeracionalidade, através dos
autores Nicolas Abraham e Maria Torok, que, apesar de nunca terem falado em
tal, possibilitaram, através de seus conceitos, que autores contemporâneos pudessem dar continuidade aos seus estudos e lançar a idéia de que a cripta pode ser
transmitida.
A terceira parte pontua o que é a transgeracionalidade e a diferencia da
intergeracionalidade, que se trata do processo normal da transmissão psíquica,
trazendo alguns dos mais importantes autores que estudam tal questão, tais como
Kaës, Faimberg, Aulagnier e Granjon. Coloca também que a transmissão psíquica patológica entre gerações pode promover a alienação psíquica do sujeito. É
através da transmissão (geração precedente) e recepção (geração seguinte) de um
material psíquico em estado bruto, um trauma não elaborado, que podemos observar esses fenômenos.
Palavras-chave
Transgeracional. Introjeção. Incorporação. Trauma. Identificação Projetiva.
Abstract
Transgenerationality: the pathology of the psychic transmission among
generations
The issue of psychic inherited transmission is a well recurrent matter in
contemporary psychoanalysis. The transgenerationality, a pathologic form of psycho
inherited transmission, however, is the guideline for the approach of this work.
In the first chapter, the research was based on Freud’s work, on the records
of psychic inherited transmission matter; meanwhile, on the second chapter the
focus was on basic concepts to understand transgenerationality based on some
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 391
Aline Baümer, Ana Rosa Chait
Trachtenberg, Maria Luíza Furtado Kahl
possibilidade de gerar novas leituras sobre antigas e inquietantes questões,
abrindo caminhos para novas perguntas e novas hipóteses.
TRANSGERACIONALIDADE:
A PATOLOGIA DA
TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES
authors such as Nicolas Abraham and Maria Torok, who, despite the fact that they
have never talked about this subject, they have opened the ground for contemporary
authors to keep their studies based on their concepts, and they have launched the
idea that the crypt can be transmitted.
The third part of this study points out the definition for transgenerationality,
and establishes the difference from intergenerationality, which is a normal process
of psychic transmission, bringing about one of the most important authors who
discuss this issue, such as Kaës, Faimberg, Aulagnier, and Granjon. It also shows
that the pathological psychic transmission among generations can lead to the subject
psychic alienation. It is through transmission (ancestors), and reception
(descendants) of a gross psychic material, a non-worked trauma, that one can
observe these phenomena.
Key-words
Transgenerational. Introjection. Incorporation. Trauma. Projective
Identification.
Resumen
Transgeneracionalidad: la patología de la transmisión psíquica entre
generaciones
La cuestión de la transmisión de la herencia psíquica entre generaciones es
un asunto bastante recurrente en el psicoanálisis contemporáneo. La
transgeracionalidad, transmisión de la herencia psíquica de manera patológica,
sin embargo, es el aspecto más importante que este trabajo pretende abordar.
El primer capítulo de este trabajo busca en la obra de Freud los antecedentes
de la cuestión de la transmisión de la herencia psíquica, mientras el segundo
presenta conceptos fundamentales para el entendimiento de la
transgeneracionalidad, a través de los autores Nicolas Abraham y Maria Torok
que, a pesar de nunca haber hablado en tal, posibilitaron, a través de sus conceptos,
que autores contemporáneos pudieran da continuidad a sus estudios y lanzar la
idea de que la cripta puede ser transmitida.
La tercera parte muestra lo que es la transgeneracionalidad y la diferencia de
la intergeneracionalidad, que se trata del proceso normal de la transmisión psíquica, trayendo algunos de los más importantes autores que estudian tal cuestión,
tales como Kaës, Faimberg, Aulagnier y Granjon. Coloca también que la
transmisión psíquica patológica entre generaciones puede promover la alienación
psíquica del sujeto. Es a través de la transmisión (generación precedente) y
392 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 369-394, 2005
Palabras-llave
Transgeneracional. Introyección. Incorporación. Trauma. Identificación
Proyectiva.
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KAËS, R. et. al. Transmissão da Vida Psíquica entre Gerações. São Paulo:
Casa do Psicólogo, 2001.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 393
Aline Baümer, Ana Rosa Chait
Trachtenberg, Maria Luíza Furtado Kahl
recepción (generación siguiente) de un material psíquico en estado bruto, un trauma no elaborado que podemos observar esos fenómenos.
TRANSGERACIONALIDADE:
A PATOLOGIA DA
TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES
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Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Artigo adaptado do Trabalho de Conclusão do Curso de Psicologia na
Universidade Federal de Santa Maria, apresentado em nov. 2004. Orientado
por Maria Luíza Furtado Kahl e co-orientado por Ana Rosa Chait Trachtenberg,
com autorização da Universidade Federal de Santa Maria.
Dra. Aline Baumer
Av Fernando Ferrari, nº 820 apto 302
Bairro Nossa senhora de Lourdes
97050-800 Santa Maria – RS – Brasil
E-mail: [email protected]
Dra. Ana Rosa Chait Trachtenberg
Rua Florêncio Ygartua, 391/ 404
91330-120 Porto Alegre – RS – Brasil
Fone/fax: (0xx51) 33306453
E-mail: [email protected]
Dra. Maria Luiza Furtado Kahl
Av. Presidente Vargas, 1945 ap. 802
Bairro: Centro
97015-513 Santa Maria – RS – Brasil
E-mail: [email protected]
394 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 369-394, 2005
Antonino Ferro
Membro Titular da Sociedade
Psicanalítica Italiana.
O grande problema, na origem
do narcisismo, é o da falta de “care
givers” capazes de se colocar como
suficientemente confiáveis e introjetáveis. É uma situação comparável à de uma pequena cidade na qual
começam focos de incêndio, no início de proporções reduzidas; esse
lugar, no entanto, não possui um
corpo de bombeiros suficiente ou
uma proteção civil. Por isso, os habitantes inventam métodos, os melhores possíveis (mas freqüentemente inadequados) para controlar
esses fogos, que se tornam, cada vez
mais, verdadeiros incêndios (emocionais).
Proto-emoções, proto-necessidades, excessos de sensorialidade,
quando não acolhidos e não trans-
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 395
Antonino Ferro
Narcisismo e
Trauma: a
atualidade e
a história
NARCISISMO
E
TRAUMA:
A ATUALIDADE E A HISTÓRIA
formados em “pensáveis”, aos poucos são liofilizados, desafetivizados,
negados, cindidos, e assim por diante, de tal forma que, mesmo com um
empobrecimento às vezes muito grande, uma parte da “old town” é salva.
Dizer que o paciente narcisista nega qualquer dependência é até banal;
certamente ele se salvou (pelo menos em parte) graças a isso: arregaçou as
mangas e tentou desesperadamente se virar sozinho. Estamos, dessa maneira, no campo dos traumatismos por ausência ou inadequação, no melhor
dos casos; no pior, o paciente teve também que se salvar de um objeto
perturbador e invasivo, criando barreiras protetoras.
Portanto, é conseqüência dessa situação o fato de um paciente com
estrutura narcísica não ter nenhuma confiança no objeto, e o novo objetoanalista ter de conquistar a confiança no campo, operando por longo tempo, como um corpo de bombeiros ou de proteção civil de uma pequena
cidade próxima que, na ocasião, é colocado à disposição.
Gostaria agora de utilizar um caso clínico, ao mostrar o longo caminho realizado com Marcello para chegar a uma possibilidade de pensar as
emoções e os afetos.
A teorização de referência está constantemente subentendida ao trabalho clínico e é reconhecível em uma interseção entre o pensamento de Bion
(1962, 1963, 1965) e alguns desenvolvimentos (FERRO, 2002a, 2002b,
2002c, 2003, 2005a) do conceito de campo, como o descrito pelos Baranger
(1961-1962, 1992), retomado e desenvolvido por muitos autores da América Latina (LEWKOVICZ; FLECHNER, 2005), entre os quais, recentemente, Cláudio Eizirik (2005), no 44º Congresso Internacional de Psicanálise (Rio de Janeiro, 2005).
Em Direção a uma Possibilidade de Sofrer a Dor
Marcello é um paciente com estrutura fortemente narcísica que sempre negou qualquer dependência afetiva: por longo tempo, colocou-se
como autônomo, auto-suficiente, brilhante no trabalho, mas sem nenhuma
necessidade emocional.
Por ocasião das nossas separações de rotina (Natal, Páscoa, verão) e
396 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 395-411, 2005
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 397
Antonino Ferro
circunstanciais (ausência por impossibilidade dele ou minha), ele progressivamente introduziu no nosso campo algum tipo de “dor” física, muito
marginal e não facilmente reconduzível a um significado compartilhável.
Por ocasião de seu afastamento seu por causa de um Congresso, sinalizou
“uma dor num pé”; por ocasião de umas férias, “uma dor de dente”; outras
vezes, “uma dor no joelho”, e assim por diante, sem que nunca fosse possível qualquer interpretação, ainda que cautelosa, sobre separação – interpretação que, certamente, teria soado inadequada e capaz de romper aquele
tênue fio de confiança que a minha escuta respeitosa, inclusive de seu texto
manifesto, ia construindo.
Por longo tempo, as minhas intervenções foram mais comentários
insaturados sobre aquilo que ele me dizia (mesmo que eu mantivesse, dentro de mim, sempre aceso o fio do possível significado relacional do que
ele me dizia, com as relativas interpretações de transferência – fio esse que,
mesmo não expresso, ajudava-me a fazer intervenções de acordo com sua
situação emocional). Lentamente, Marcello dá sinais de ir aos poucos se
tornando permeável às próprias emoções, até então sempre ignoradas ou,
no melhor dos casos, negadas.
Nesse ponto, estou indeciso sobre como utilizar suas narrações: se
renuncio o interpretar, percebo em mim, por um lado, uma vivência de
perda da possibilidade de comunicar aspectos importantes, mas,
freqüentemente, por outro, percebo que toda a atividade interpretativa que
não seja ainda subliminar e alusiva pode levar a novos enrijecimentos.
Encontro-me, num certo momento, comunicando a Marcello, em rápida seqüência, a data das férias de Páscoa e, a seu pedido, também as de
verão.
No dia seguinte, após ter-me dito que estava com uma forte dor de
cabeça, fez os seguintes relatos: esteve em uma comunidade de pacientes
psiquiátricos, na Alemanha, acompanhando a esposa, psicóloga, e um dos
pacientes lhe roubou, por trás, o bife que ele tinha no prato. Um outro
paciente, visivelmente deprimido, andava em círculo, batendo com os punhos na cabeça. Depois conta que, durante o plantão da noite, no setor de
NARCISISMO
E
TRAUMA:
A ATUALIDADE E A HISTÓRIA
medicina de urgência em que trabalha, um paciente perdeu os sentidos,
caindo no chão. Relata ainda sobre uma paciente que tinha fantasias de
suicídio, dizendo que a mãe era uma “puta”. Finalmente, fala de um amigo,
Nando, desesperado pela traição da esposa em quem não consegue dar nem
um tapa. Eu sinto que o máximo que posso fazer é segui-lo em seu texto, a
cada vez iluminando, focalizando as diversas emoções que o relato comporta, renunciando, por ora, a qualquer evidente (para mim!) significado
transferencial.
Na sessão seguinte, Marcello traz dois sonhos: no primeiro, fotografava pessoas em vários andares de um prédio, possuía também uma mochila
cheia de pilhas Duracell, muitas das quais vazias; no segundo, o funeral da
mãe, que ele seguia junto de quatro mulheres (quatro são, também, as sessões de Marcello), mas não conseguia chorar; depois, repentinamente, pensou que não comeria mais os pratos sicilianos que a mãe lhe preparava,
como as orecchiette1, e desatou – no sonho – a chorar desesperadamente.
Nesse ponto, digo a mim mesmo que o trabalho feito pelo sonho torna
próximas emoções antes negadas e impossíveis de serem aproximadas. E
digo-lhe que me parecia que havia adquirido uma capacidade de viver os
lutos, as perdas e as emoções correspondentes. Depois, através da descrição mais geral, como quando fotografada do alto, “experimento” colocar
em relação o segundo sonho também com a perda, em relação a mim, causada pela dupla separação das férias de Páscoa e de verão.
Marcello fica em silêncio, mas de uma forma que me parece atento.
Então prossigo, referindo-me ao primeiro sonho, dizendo que ele me parecia interessado em fotografar diversos níveis, diversos andares de seu sentir emocional.
Parece, digo, que o sonho cozinhou juntos tantos ingredientes antes
cozidos separadamente, em diferentes panelinhas: o bife roubado, o paciente que bate na própria cabeça (a dor de cabeça!), a história da traição de
Nando e a perda dos sentidos, o desespero e a raiva dos dois pacientes,
1
Tipo de macarrão típico da região da Sicília. (NT)
398 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 395-411, 2005
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 399
Antonino Ferro
retomando, assim, mais de perto, as emoções das quais havíamos falado no
dia anterior. Marcello, num primeiro momento, fica em silêncio. Pareceme um silêncio digestivo e espero que essa minha “interpretação” possa ter
sido acolhida.
Após alguns minutos, Marcello toma a palavra, contando, com ar distante e indiferente, que na noite anterior havia brincado com prazer com
seu filho, Marcello, de quatro anos; depois a brincadeira tinha se tornado
violenta, e, assim, ele havia pressionado o estômago do menino, que vomitou tudo aquilo que havia comido, tossiu, ficando irritado e não querendo
mais comer.
Nesse ponto, sinto uma profunda desilusão e abatimento, percebendo
que tudo – não me importa quem seja Marcello na sessão – fora de qualquer forma “evacuado”, e temo que tenha sido, inclusive, perdido.
Não interpreto essa comunicação e me detenho em uma escuta receptiva do que o paciente me fala em relação a acontecimentos aparentemente
externos e ao seu pouco interesse em assistir ao seminário da escola de
especialização.
Dou por perdido aquilo que eu havia comunicado e fico surpreso quando, na sessão seguinte, o paciente relata que “o outro filho, Luigi”, de poucos meses, havia chorado muito pela ausência da mãe, queria o leite e não
se conformava com o que ele podia lhe dar, visto que era amamentado ao
seio.
Digo que, às vezes, as mães são indispensáveis às crianças e, com o ar
de quem faz uma brincadeira, acrescento que, além da inveja do pênis,
parece existir uma inveja do seio! Marcello responde dizendo que, de fato,
“a mulher dispõe de uma aparelhagem” que ele não tem. Evito qualquer
interpretação de transferência e, nesse ponto, entra na sessão um “duplo”:
uma paciente que Marcello freqüentemente encontra na rua e que pensa se
tratar da paciente “que vem antes dele”. Vê-a quando entra na igreja e, por
longo tempo, pensa: “eu não estou tão mal como esta moça”, que seguidamente lhe parece triste e sofrida. Depois fica curioso: “Quais serão as emoções que esta moça vive? Será que sofre pela separação?” Eu faço somente
NARCISISMO
E
TRAUMA:
A ATUALIDADE E A HISTÓRIA
intervenções enzimáticas, tomando cuidado para não interpretar a paciente
como uma parte dele que “sente” emoções. Continua, depois, o relato, dizendo que um amigo psicanalista havia lhe dito viver fortes sentimentos
quando os pacientes terminavam a análise. Comento que parece que, mesmo nas análises, podem circular emoções vivas. E, aqui, Marcello me surpreende, pois retoma, agora que não havia mais pressões interpretativas,
aquilo que eu considerei evacuado irremediavelmente, isto é, a fala do dia
anterior, e diz: “Ontem o senhor teve uma parte ativa, ao me falar do sonho,
e percebi que, para me orientar, preciso de sua ajuda”. A sessão prossegue
com a retomada das próprias emoções ligadas à separação.
Confesso que me senti profundamente comovido pelas palavras de
Marcello que constituem a primeira oficialização de um vínculo importante entre nós.
Quando o Trauma se Repete
Alguns meses depois, na hora da sessão de Marcello, estou mentalmente “fora de uso” (como aqueles elevadores com o cartaz: “fora de uso
para manutenção”), porque fui invadido e tomado pela paciente psicótica
da hora que, naquele dia, antecedia a sessão de Marcello, e que tinha tido
uma série de atuações violentas na sessão.
De fato, na sessão de Marcello, estou mentalmente ausente.
Na sessão do dia seguinte, Marcello me conta dois episódios: o primeiro, a respeito de uma moça que tinha tido ataques de pânico depois que
sua mãe, sentada no banco de trás, morrera quando um caminhão batera
por trás no carro, ao passo que ela e seu filho, sentados na frente, não tinham se machucado; o segundo episódio refere-se ao amigo Amedeo, que
ficou muito desiludido com a mulher (que tinha recém-saído de uma relação extraconjugal), que havia lhe dito que iria a um determinado lugar a
trabalho e, controlando a quilometragem feita em seu carro, verificara que
ela não fora onde deveria ter ido. Quando descoberta, ela lhe dissera ter se
encontrado, às suas costas (escondido), com o ex-amante, em virtude de
um pedido urgente por parte dele.
400 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 395-411, 2005
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 401
Antonino Ferro
Durante a sessão, de fato, eu nego a mim mesmo o que havia acontecido na sessão anterior com Marcello (minha menor presença mental) e faço
intervenções de rotina, sem espessura emocional, que Marcello, novamente distante e autárquico, aceita por complacência. Mas é no “fora da sessão” que posso encontrar a realidade emocional da própria sessão e dizerme que, por parte de Marcello, houve uma precisa descrição do meu não
estar na sessão (do meu ter sido atropelado pela paciente da hora anterior e
da minha traição em não ter ido “ao lugar de trabalho” com Marcello, mas
de ter clandestinamente continuado a estar com a paciente da hora precedente).
Quando posso entrar em contato com isso, em profundidade, comigo
mesmo, salta aos meus olhos uma profunda raiz do narcisismo de Marcello:
a relação com a mãe, com traços ausentes mentalmente, porque invadida
pelos próprios estados emocionais, fazendo com que Marcello precisasse
fazer uso das pilhas Duracell (que, já no sonho mencionado, estavam prestes a acabar) ou do autogerador elétrico (surgido num sonho em que, quando em uma sala de cirurgia faltava luz, entrava em funcionamento um gerador autônomo de eletricidade que depois, de fato, tomara o lugar da energia
normal de rede, considerada pouco confiável). A partir daqui, ganha vida
um intenso, partícipe discurso reconstrutivo da sua história infantil, no qual
aparece uma mãe, pessoa doce e muito afetiva, mas emigrada com o marido para um país estrangeiro do qual não conhecia a língua; mãe que oferecia uma presença descontínua e que tinha freqüentes períodos em que era
tomada pela angústia, durante os quais não respondia, ausentava-se mentalmente, e era como se não estivesse lá; portanto, necessitava virar-se por
conta própria. Era necessário também que se virasse por conta própria na
escola, com o alemão, língua que em casa ninguém falava (alemão que,
depois, será possível interpretar como a língua das emoções profundas e
intensas – como o Jovem Werter, de Goethe –, para as quais ninguém na
família tinha espaço, estando todos tomados por sérios problemas de sobrevivência).
NARCISISMO
E
TRAUMA:
A ATUALIDADE E A HISTÓRIA
O Trauma em Forma Reduzida
Entramos em um período de bom trabalho, no qual abordamos novas
emoções que vão florescendo e em que Marcello demonstra estar cada vez
mais em condições de administrar, numa espécie de contracanto em relação a um funcionamento desafetivizado, quando, durante uma sessão, minha capacidade de atenção é raptada por um cigano que toca gaita exatamente embaixo da janela do meu consultório.
Aos poucos, vou me tornando incapaz de qualquer tipo de escuta, enquanto o paciente continua falando ininterruptamente.
Num certo ponto, como em um flash, entendo o que está acontecendo
e tenho condições de lhe dizer que estamos vivendo diretamente a sua forma de colocar as Duracell. Quando me percebe mentalmente distante, coloca as pilhas da completa autonomia, e isso o impede de afundar na angústia do abandono. O paciente ri, aliviado, exclamando: recebido! Esse episódio passa a fazer parte dos momentos significativos da análise, permitindo uma ulterior ponte entre o nosso aqui e agora e o lá e então da sua
infância.
Naturalmente, reflito também, dentro de mim, a respeito da música
desesperada do cigano com a gaita: talvez também uma parte cindida do
paciente que, no momento em que “desabrocha” da situação liofilizada em
que havia, por longo tempo, permanecido, ativa angústias que me invadem, mas esta é também a forma para me/nos colocar em contato com suas
partes (funcionamentos) sem pátria (um dos problemas de Marcello havia
sido o de não saber qual nacionalidade viver como própria) que inundam
com a música das suas emoções, e dão assim um sinal forte da sua existência, além de ser um desesperado SOS.
O Posterior evidenciar-se do “Duplo”
Muito importante e precursor de férteis desenvolvimentos é quando o
intrapsíquico torna-se relacional, porque nesse ponto há uma maior possibilidade de desembaraçar as fantasmatizações que, de outro modo, se desenvolveriam sempre da mesma forma.
402 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 395-411, 2005
A Receptividade de Marcello
Anos se passaram desde o inicio da análise de Marcello, mesmo assim, qualquer aproximação interpretativa excessiva ainda pode, às vezes,
causar angústias homossexuais (um conteúdo que força um continente não
disponível, isto é, um outro conteúdo que pede, ao contrário, uma
receptividade do analista para poder se aliviar:
que pede ← ).
Um dia após uma série de boas sessões, ouço o som do interfone na
hora de Marcello e aperto o botão que abre a porta (meu consultório é no
terceiro andar, sem elevador). Tenho a nítida percepção de que não seja
Marcello a subir as escadas, mas uma mulher que produz um típico barulho
de salto sobre os degraus. Tenho progressivamente a certeza. (Isto é, tenho
uma rêverie acústico-visual.) Ouço o barulho da campainha da porta. Abro
e, com espanto, vejo que é Marcello. Encaminho-me, seguindo-o na sala de
análise, e me pergunto, dessa vez imediatamente, sobre a rêverie que eu
havia tido (com tão intensa característica perceptiva).
Entendo, bastante rapidamente, que aquela era a forma com a qual eu
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 403
Antonino Ferro
No início de uma sessão, enquanto sigo Marcello da sala de espera
para a sala de análise, me encontro – de forma (acreditem em mim!) completamente fora do habitual – pensando “que belo traseiro proeminente”.
Essa fantasia sai de cena e, somente após o término da sessão, percebo ter
“abusado” o tempo todo do paciente com interpretações intrusivas, violentas e precoces.
Terminada a sessão, chama minha atenção o curso da mesma e reflito
o quanto eu havia “fantasmatizado” e depois “personificado” aquela parte
violenta e intrusiva de Marcello, pela qual ele mesmo se sentia
freqüentemente “prevaricado”, até o medo de ser homossexual pela tolerância que sentia em relação às pessoas das quais tinha medo. Reaparece
assim uma parte esquecida das lembranças infantis de Marcello, na qual
ele havia, de um lado, sido um adolescente prevaricador e violento e, de
outro, vivido insinuações homossexuais, às quais não fora capaz de se esquivar.
NARCISISMO
E
TRAUMA:
A ATUALIDADE E A HISTÓRIA
captava uma nova capacidade receptiva de Marcello. Nesse ponto, no curso da sessão, faço uma série de interpretações de transferência que são
todas aceitas e “bem-recebidas” e utilizadas para desenvolver novos percursos associativos.
Nesse ponto (eis o assumir e o levar em conta, de minha parte, daquilo
que era um resíduo de incontinência de Marcello), acrescento “e não vá me
dizer amanhã que seu filho teve alergia!”, referindo-me ao que, por longo
tempo, viera em seguida às minhas anteriores aproximações
interpretativas. Rindo, o paciente diz: “mas o senhor não deve prevenir os
meus movimentos!”
No dia seguinte, me conta de um colega que, por causa da prepotência
do médico-chefe, quase havia se demitido; depois, fala do próprio filho e
do fato de que sua mulher temera que tivesse engolido alguns alfinetes e
que o haviam levado ao pronto-socorro; e, por fim, do médico-chefe, que
aumentara, de forma excessiva, as terapias de um paciente, sem levar em
conta os efeitos colaterais.
Nesse ponto, teria podido interpretar tudo isso como uma resposta à
minha incontinência interpretativa, mas preferi ajustar a distância e meu
timing interpretativo.
Quando as Emoções podem ser Cozidas
Passaram-se alguns anos, Marcello está mais capaz de ter um lugar
para as próprias emoções e de vivê-las. Há uma breve separação, que coincide com um momento de perda de contato emocional, justamente na última sessão. Ao retomar as sessões, inicia falando da sua filha caçula, de
dois anos, que fora dormir na cama dos pais e depois, ao acordar de manhã,
vira papai e mamãe abraçados e se levantara silenciosamente, indo para o
próprio quarto. O paciente seguira a menina em silêncio e a vira sentada no
tapete, com ar desolado. Depois ela havia pegado a chupeta e olhava à sua
volta, com ar perdido. O paciente então interveio, tomando-a no colo, captando seu sofrimento e trazendo-a de volta à cama de casal onde ela, depois
de um pouco, abandonara o ar aflito e fizera um grande sorriso.
404 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 395-411, 2005
Capacidade de Viver as Emoções e de Manter o Vínculo
Marcello agora é capaz, de uma forma estável, de aceitar e de utilizar
também minha atividade interpretativa explícita, contanto que modulada
por uma contemporânea função de tampão, operada pelas transformações
narrativas: uma espécie de oscilação entre registro interpretativo
decodificatório e registro assimilativo transformador, usando o registro do
plano manifesto.
Por ocasião da aproximação da última interrupção de Natal, particularmente longa, diz ter comprado um tipo de panela que continua a mexer a
polenta, ainda que não se esteja constantemente presente para fazê-lo; depois fala do desejo de comprar um tipo particular de walkie-talkie que permita manter contato mesmo à distância; e de ter comprado também quatro
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 405
Antonino Ferro
Logo depois, relata um sonho da noite anterior: tinha ido a uma festa,
mas um amigo, Tonio (!), se afastava, deixando-o sozinho. Tomado por
sentimentos de raiva e de exclusão, além do mais, em um clima de outono,
com as folhas caindo, encontrava um casal feliz que ia em direção à própria
casa, enquanto ele ficava na chuva. Em seguida, Tonio voltava, mas ele
mesmo não sabia como se comportar, se manifestava alegria pela volta ou
ficava bravo. Por fim, prevalecia o afeto pelo amigo. Depois, em seguida
ao sonho, relata ter telefonado na noite anterior ao pai, que não havia respondido, talvez porque estivesse dormindo. Havia insistido e, finalmente,
o pai respondera, muito contente de ouvi-lo.
Marcello tornou-se, agora, mais capaz de viver as próprias emoções e
de narrá-las, e narrá-las novamente, inclusive tecendo-as em três diferentes
cenários: o da filha, o do sonho, o de seu pai.
Havia se sentido excluído, colocado de lado com a breve separação,
mas também porque, na última sessão, antes da breve separação, houvera
uma perda de contato emocional, o que havia lhe provocado raiva, ciúme,
um isolamento e depois uma nova possibilidade de reaproximação, a capacidade de viver as emoções e a capacidade de não perder o vínculo comigo.
NARCISISMO
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TRAUMA:
A ATUALIDADE E A HISTÓRIA
caixas de laranjas que deveriam ser suficientes para todo o período das
férias.
Sinto que posso lhe dizer que me parecem distantes os tempos nos
quais, por ocasião das nossas separações, colocava as Duracell e que agora
pode se aparelhar para as férias, dispondo de uma série de instrumentos
que permitem manter o contato, o vínculo, e que ao mesmo tempo possui a
capacidade de fazer reservas. Parece aceitar de bom grado essa proposta
interpretativa, mas começa a falar da sogra que, freqüentemente, lhe é antipática, que teve a ousadia de entrar, não autorizada, na sua (dele) cantina e
destampar algumas garrafas de vinho (o significado ainda não pode ser
destampado!) e, além do mais, o importunar com longos discursos, justamente quando a mulher estava trabalhando (outra declinação do analista
que interpreta?), impedindo-o de ocupar-se das crianças que choravam por
querer a mãe.
Captar seu desconforto pela presença intrusiva “da sogra”, de forma
narrativa, renunciando à interpretação possível sobre o analista-sogra que
destampa significados, permite que entre em cena sua mãe, que lhe telefona de forma afetiva. O caminho ainda não terminou!
Creio que, para Marcello, o problema de acontecimentos traumáticos
possa ser visto sob dois ângulos: de um lado, a história de um menino e
depois de um adolescente que era abusado por emoções intensas demais
para poder administrá-las sozinho; e, depois, o quanto esse “estar sozinho”
corresponde a uma carência da função materna/paterna de rêverie (FERRO, 2005b; OGDEN, 1997) em relação às suas proto-emoções. A análise
representa aquele lugar onde há o máximo de cautela com o paciente para
que não seja, por sua vez, fonte de traumatismo intolerável; mas o problema da carência dos objetos, de sua inadequação deve ser vivido, ainda que
de forma reduzida e contida, na sala de análise, para que o que ainda não
pôde ser pensado possa vir a ser vivido e pensado. O campo deve, portanto,
adoecer de forma mais leve da doença do paciente, para depois sarar, permitindo ao paciente a introjeção estável daquele instrumento para pensar
que é a fonte da nossa saúde mental.
406 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 395-411, 2005
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 407
Antonino Ferro
Para que isso seja possível, creio que é central um uso constante da
capacidade de rêverie na sessão, a capacidade de estar no mesmo comprimento de onda do paciente e a permeabilidade para suas identificações
projetivas, assim como, por longo tempo, o respeito pelos seus conteúdos
manifestos. Para fazer interpretações, é necessário antes construir com o
paciente um lugar onde ele possa contê-las. Também creio que é de extrema utilidade técnica utilizar as respostas do paciente como indicações que
ele nos fornece para que possamos alcançá-lo, sem excessivos traumas e
cada vez mais em profundidade.
Bion falava do paciente como “melhor colega”; de minha parte, penso
sempre naquele belíssimo relato de Conrad, O Companheiro Secreto, no
qual há o clandestino, por longo tempo aceito a bordo pelo capitão, que em
proximidade da costa se lança do navio e que, quando percebe que a embarcação está prestes a bater contra uma rocha, joga o próprio chapéu para
sinalizar o perigo, permitindo assim que o capitão evite o naufrágio. Penso
que é fundamental essa função do paciente que, a cada momento, nos lança
o chapéu para nos sinalizar como estamos nos movimentando. Essa é, no
fundo, a única maneira que temos para estarmos realmente em contato com
o paciente – e insisto sobre o conceito de uníssono –, em vez de estarmos
em contato com nossas teorias, ou acabamos fazendo uma espécie de cena
primária com as teorias, excluindo o paciente.
Concluo com um relato de sonho recente de Marcello que creio não
necessite comentários: “Ia até Veneza, entrava em um cinema para ver um
filme. Num certo momento, alguém me dava a oportunidade de alcançar
algo escondido e secreto: uma espécie de alçapão... um acesso a um subterrâneo onde viviam homens e mulheres, ou melhor, homenzinhos não desenvolvidos, baixos, atarracados, alguns disformes, alguns em um barril,
outros no cocô, abandonados, na miséria, segregados, sem ar, sujos... Em
cima havia outro plano, máscaras de nobres... espadachins... em trajes de
1600 já sem sentido... Eu saía impressionado e via uma espécie de carrasco
guardião, com foice e martelo, que se encaminhava para sedar com o ma-
NARCISISMO
E
TRAUMA:
A ATUALIDADE E A HISTÓRIA
lho o surgirmento de qualquer grito ou necessidade... Eu saía... estava em
Veneza, procurava minha mulher, abraçava-a”.
Resumo
O autor, através do relato do desenrolar de um caso clínico, compara a origem do narcisismo com uma pequena cidade onde começam alguns incêndios, de
proporções reduzidas inicialmente, mas que não possui um corpo de bombeiros
suficiente ou uma proteção civil.
Por isso, os habitantes inventam métodos, os melhores possíveis (mas
freqüentemente inadequados) para controlar estes fogos que tornam-se cada vez
mais verdadeiros incêndios (emocionais).
Segue, afirmando que o paciente narcisista arregaça as mangas e tenta desesperadamente se virar sozinho. E dessa forma, estamos no campo dos
traumatismos por ausência ou inadequação do objeto, no melhor dos casos; no
pior, o paciente tem que se salvar de um objeto perturbador e invasivo, criando
barreiras protetoras.
Como conseqüência dessa situação, o paciente com estrutura narcísica não
tem nenhuma confiança no objeto, e o novo objeto-analista deve conquistar a
confiança através do campo, operando por um longo tempo como um novo corpo
de bombeiros ou como uma proteção civil de uma pequena cidade, pondo-se inteiramente à disposição.
Palavras-chave
Narcisismo. Trauma. Campo Analítico. Reconstrução.
Abstract
Narcissism and Trauma: nowadays and history
The author, through the report of the development a clinical case, compares
the origins of narcissism to a small town where fires of small proportions, initially,
start taking place, but which does not have a suitable fire department or civil
defense.
As a response, the residents invent methods, the best possible ones but usually
inadequate, to control those fires which progressively become more like true
(emotional) fires.
The author goes on to state that the narcissistic patient gets down to business
and desperately tries to do everything by him or herself. Thus we are in the field
408 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 395-411, 2005
Key-words
Narcissism. Trauma. Analytic Field. Reconstruction.
Resumen
Narcisismo y Trauma: la actualidad y la historia
El autor, a través del relato del desarrollo de un caso clínico, compara el
origen del narcisismo a una pequeña ciudad donde empiezan algunos incendios,
de proporciones reducidas inicialmente, pero no posee un cuerpo de bomberos
suficiente o una protección civil.
Por eso, los habitantes inventan métodos, los mejores posibles (pero
frecuentemente inadecuados) para controlar estos fuegos que se vuelven cada vez
más verdaderos incendios (emocionales).
Sigue, afirmando que el paciente narcisista arregaza las mangas e intenta
desesperadamente arreglárselas solo. Y de esa forma, estamos en el campo de los
traumatismos por ausencia o inadecuación del objeto, en el mejor de los casos; en
lo peor, el paciente tiene que salvarse de un objeto perturbador e invasor, creando
barreras protectoras.
Como consecuencia de esta situación, el paciente con estructura narcísica,
no tiene ninguna confianza en el objeto, y el nuevo objeto-analista debe conquistar la confianza en el campo, operando por un largo tiempo como un nuevo cuerpo
de bomberos o de una protección civil de una pequeña ciudad, poniéndose
enteramente a disposición.
Palabras-llave
Narcisismo. Trauma. Campo Analítico. Reconstruccion.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 409
Antonino Ferro
of traumatisms by object’s absence or inadequacy, at best, or, in the worst case;
the patient has to save him or herself from a disturbing or invasive object, building
protective barriers.
As a consequence of that situation, the patient with a narcissistic structure
has no confidence in the object, and the new therapist-object must first gain the
confidence through the field, functioning for a long time as small town new fire
department or civil defense, making him or herself absolutely available.
NARCISISMO
E
TRAUMA:
A ATUALIDADE E A HISTÓRIA
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410 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 395-411, 2005
Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Tradução: Marta Petricciani
Dr. Antonino Ferro
Via Cardano, 77
27100 – Pavia – Itália
Fone: 390382 – 304190
E-mail: [email protected]
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 411
Antonino Ferro
LEWKOWICZ, D.; FLECHNER, S. (ed.). Truth, Reality, and the Psychoanalyst:
Latin American contributions to psychoanalysis. London: IPA, 2005.
OGDEN, T.H. Reverie and interpretation. Psychoanalytic Quarterly, New York,
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A ATUALIDADE E A HISTÓRIA
412 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 395-411, 2005
Introdução
Augusta G. Heller
Psicóloga; Psicanalista; Membro
Associado da Sociedade Brasileira
de Psicanálise de Porto Alegre.
Magda Beatriz Martins
Costa
Psicóloga; Candidato do Instituto
de Psicanálise da Sociedade
Brasileira de Psicanálise
de Porto Alegre.
Ao abordarmos o tema do trauma, devemos, inicialmente, diferenciar verdade material de verdade
histórica. Entende-se verdade material como a verdade da coisa em si,
incognoscível e não apreensível.
Essa percepção da realidade irá
marcar o aparelho psíquico através
de representações do objeto objetivamente percebido. Posteriormente,
essas representações irão constituir
o registro simbólico, estabelecendo
a subjetividade do objeto, sendo
isso a verdade histórica, que, por
sua vez, consiste na verdade dos
acontecimentos tal qual foram
vivenciados pelo sujeito na ocasião
dada. Freud (1895) definiu a verda-
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 413
Augusta G. Heller,
Magda Beatriz Martins Costa
A Vivência
do Trauma
no Analista:
da dor ao
ato criativo
A VIVÊNCIA
DO
TRAUMA
NO
ANALISTA:
DA DOR AO ATO CRIATIVO
de histórica pela maneira como o pólo perceptual irá perceber os diferentes
aspectos da realidade externa. Segundo Piera Aulagnier (1994), Willy
Baranger e Eduardo Luque, um acontecimento somente se transforma em
acontecimento psíquico quando tem o poder de afetar a psique, de ser fonte
de prazer ou de sofrimento. Esse encontro entre a psique e a ocorrência
externa vem exigir uma modificação no investimento que deverá sofrer
correções no processo identificatório, na economia narcisista e na organização do próprio espaço relacional. Para Botella e Botella (2003), só o
psiquicamente elaborável merece o qualificativo de traumático.
O analisando espera encontrar na figura do analista um continente para
suas angústias. Essa função só poderá ser exercida pelo analista à medida
que este tenha podido elaborar os conflitos relativos à configuração edípica
em sua análise pessoal. Nesses casos, acreditamos que a atitude da pessoa
real do analista marque diferentes destinos a partir do reconhecimento dos
seus próprios limites. Para Raquel Zak de Goldstein, ser analista não é uma
qualidade definitivamente adquirida. “É saber um pouco mais do que acontece com a gente, é ser capaz de permanecer na incerteza, ‘com sua
correlativa possibilidade de criatividade’” (2004, p.57).
Sobre o Traumático
[...] é bem natural que nossos instintos trabalhem contra nossos instintos, que quase nossos contra-instintos trabalhem em vez de nossos instintos, e ainda mais, em seu lugar – assim falei espirituosamente, caso
isso possa ser chamado de espirituoso, isto é, caso a verdade nua e
deplorável possa ser chamada de espirituosa (KERTÉSZ, 1995, p.7).
Essa citação é de Imre Kertész, sobrevivente do campo de Auschwitz,
para onde foi levado aos 15 anos. No livro Kadish1 para uma Criança Não
Nascida, o autor aborda as terríveis lembranças do holocausto no cotidiano
daqueles que sobreviveram; a “dificuldade de sobreviver o sobreviver”,
1
Kadish é a designação dada no ritual judaico à oração fúnebre – reza dos mortos.
414 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 413-427, 2005
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 415
Augusta G. Heller,
Magda Beatriz Martins Costa
introduzindo, assim, uma nova visão do que foi considerado um dos maiores traumas da história contemporânea.
Podemos definir o trauma como a invasão de estímulos de tal magnitude que ultrapassam determinado umbral, impossibilitando a permanência de ligações entre as diferentes representações no aparelho psíquico. A
conseqüência desse fenômeno é a ruptura das barreiras de contato ou conexões entre as representações, fazendo com que o aparelho psíquico seja
tomado por intensidades tensionais, gerando ansiedade e sofrimento. Esses
estímulos não metabolizados psiquicamente constituem o irrepresentável
na mente humana.
A reação ao traumático, à medida que rompe as ligações, incide direta
e imediatamente sobre a consciência e sobre as fronteiras entre as instâncias psíquicas (ponto de vista econômico, dinâmico e estrutural). A ruptura
promovida pelo trauma questiona dolorosamente no sujeito a continuidade
do si mesmo, a organização de suas identificações e ideais, o emprego dos
mecanismos de defesa, a coerência de sua forma pessoal de sentir, de atuar
e de pensar.
Freud (1926) irá centralizar a questão do trauma em seus aspectos
subjetivos, como nas diversas experiências de perda – da mãe, do amor da
mãe, do amor dos objetos, do amor do superego –, situações essas que
levam o sujeito a um estado de desvalimento, de impotência psíquica frente a irrupções de estímulos. Sendo assim, podemos observar que, para
Freud, em um determinado momento de sua obra, parece não haver grande
diferença entre os efeitos traumáticos, sejam eles de origem interna ou externa.
De acordo com Kaës, o sentimento subjetivo de ruptura na continuidade entre o meio externo e o si mesmo encontra suas raízes naquilo que
foi experimentado na ocasião das primeiras rupturas sofridas pelo sujeito.
Essas primeiras ansiedades, à medida que, como dissemos anteriormente,
rompem as ligações necessárias entre diferentes representações psíquicas,
irão constituir um vazio no interior do sujeito. Assim, qualquer palavra que
se tente dizer no intuito de dar sentido ao irrepresentável poderá ser
A VIVÊNCIA
DO
TRAUMA
NO
ANALISTA:
DA DOR AO ATO CRIATIVO
vivenciada como incremento de angústia, não possível de ser contida no
psiquismo. Torna-se uma tensão em busca de representação, marcando o
desamparo um dia vivido.
O fenômeno de ruptura se assemelha ao processo do luto, definido por
Freud como “a reação frente à perda de uma pessoa amada ou abstração
que a ela se assemelha, como a pátria, a liberdade, um ideal [...] devendo
ser retirada toda a libido de seus enlaces com esse objeto” (1917, p.241).
Diferenciou-o da melancolia, ao referir que esta
se singulariza no psíquico por uma indisposição profundamente dolorosa, um cancelamento do interesse pelo exterior, perda da capacidade
de amar, inibição de toda produtividade e uma diminuição no sentimento do si mesmo que se exterioriza através de autocensuras e
autodifamações, podendo chegar ao extremo de uma atitude delirante
de castigo (1917, p.242).
Pensamos que a diferença básica entre luto e melancolia resida na repercussão que a situação da perda ou a força do traumático irão causar no
psiquismo, considerando-se o momento da ocorrência, história de vida,
vínculos objetais e conquistas anteriores. No caso da melancolia, o sentimento de perda se relaciona ao fato de o sujeito saber quem (ele) perdeu,
mas não o que perdeu do objeto. Nesse sentido, a perda do objeto foi subtraída, retirada da consciência, diferentemente do luto, em que não há nada
inconsciente no que diz respeito à perda.
Segundo Willy e Madeleine Baranger e Jorge Mario Mom (1988), um
trauma psíquico começa a ter existência em uma análise quando é reconhecido como tal, seja por parte do analisando, seja por parte do analista. Adquire pleno estatuto quando ambos se dão conta de que isso, antes não
nomeado, não datado, não explicitado, teve papel etiológico determinante
em uma série de acontecimentos e de transtornos anteriores. O trauma original leva a uma ruptura do processo psicossexual em desenvolvimento,
gerando, quando não superado, o roubo de um tempo da história que não
poderá jamais ser recuperado. Por esse motivo, a teoria freudiana do trau416 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 413-427, 2005
[...] la historización analítica, que opera en un movimiento retroactivo,
tiende a sustituir esta historia falsa por una historia más verdadera, al
mismo tiempo que a reabrir la temporalidad con sus dimensiones de
futuro, presente y pasado interactuando dialécticamente (1988, p.179).
Jaime Szpilka (2002) refere que a palavra não diz toda a verdade da
coisa; deve ser diferenciada em seu conteúdo manifesto e latente daquilo
que a palavra representa. Afirma também que, racionalmente, somos atraídos pelo conteúdo manifesto de um discurso, a partir do qual privilegiamos tal ou qual ocorrência traumática, atribuindo uma determinada reciprocidade entre causa e efeito. Dessa maneira, formam-se conexões que
parecem pertinentes, armando-se uma rede compreensível, comparável à
elaboração dos sonhos. Entretanto, podem estabelecer-se falsas conexões,
que alcançam a consciência através de um determinado derivado que pôde
ultrapassar a barreira da repressão. Isso não quer dizer que tivemos acesso
ao conteúdo latente, pois, nesse caso, pode tratar-se de um “sem sentido”,
algo não representável, uma palavra vazia.
Por essas questões, podemos pensar que o psicanalista não seria um
intérprete como o músico, que executa a música a partir da leitura das notas
musicais em uma partitura, nem poderia ser comparado com um tradutor,
que escolhe a palavra que melhor se aplica a um conceito escrito em outra
língua; o psicanalista tem de aprender pela sua curiosidade a respeito de si
mesmo, através de um dicionário no qual as referências estão ausentes
(SZPILKA, 2002). Ali onde falta a palavra correspondente a uma representação reprimida, o analista buscará um sentido, porque se trata da representação da pulsão que permaneceu no inconsciente, sem palavra, em busca de
sentido.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 417
Augusta G. Heller,
Magda Beatriz Martins Costa
ma “em dois tempos” torna-o inseparável do processo de historização analítica, processo que permite vincular ambos os tempos.
Para esses autores:
A VIVÊNCIA
DO
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ANALISTA:
DA DOR AO ATO CRIATIVO
Sobre o Setting Analítico
[...] a palavra, que articula a jubilosa maravilha com a complicada desgraça, é a que se pode assumir como luto pela verdade como impossível, sendo que o conteúdo latente que através da livre-associação abre
o caminho ao sentido e ao sem sentido, implica justamente o re-corrido que destitui do manifesto a idéia de uma unidade do ser, do saber e
da verdade (SZPILKA, 2002, p.67).
Segundo René Kaës, a situação psicanalítica compreende um enquadre específico do qual fazem parte o papel do analista, o conjunto de fatores que afetam o espaço e o tempo e a técnica (horários, pontualidade, honorários, interrupções).
Sabemos que o encontro analítico é sustentado, por um lado, pelo desejo do analista associado a sua prática baseada no tripé da formação analítica e, por outro, pelo desejo do analisando de saber de seu sofrimento.
Ambos estão protegidos pela neutralidade e pela abstinência, possibilitando, através da regra fundamental – associação livre/atenção flutuante – a
comunicação entre duas subjetividades por meio da transferência e da
contratransferência. Cabe ao psicanalista ter um conhecimento suficiente
de seu funcionamento psíquico para poder distinguir os fenômenos que
interferem em sua capacidade analítica e diferenciá-los dos que nascem de
identificações projetivas originadas no analisando, dos fenômenos suscitados pelos seus próprios complexos.
É importante que a elaboração da experiência da ruptura devida ao
traumático se fundamente sobre o estabelecimento e a manutenção do enquadre psicanalítico. A não-manutenção do enquadre poderá provocar perigosos efeitos na segurança e identidade do analisando, que poderá
vivenciá-la como um ataque à integridade do Eu, num momento em que
este não dispõe dos mecanismos de defesa suficientes para lutar contra a
angústia catastrófica.
O que pensar, então, quando uma situação traumática é vivida pelo
analista, provocando o afastamento temporário de suas atividades e um
transtorno do setting analítico?
418 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 413-427, 2005
Arte é também canalizar em ato produtivo o que poderia ser aniquilamento (LUFT, 1986, p.133).
Cada ser humano e nenhum em particular carrega em si o trauma do
desamparo. Não é porque escolhemos ser psicólogos ou médicos que
estamos imunes à dor promovida pelo inusitado, que invade o psiquismo
devastando as barreiras de contato e rompendo, temporariamente, qualquer
possibilidade de representação. Talvez justamente por termos vivenciado
essa experiência de desamparo de forma intensa é que tenhamos escolhido
essas profissões. Todavia, frente ao excesso, a grandes quantidades de estímulos externos que irrompem no psiquismo, a capacidade de adaptação
dependerá dos caminhos anteriormente percorridos no trabalho de ligação
e dependerá, também, dos destinos possíveis das forças pulsionais. Através de nossas próprias análises vamos pouco a pouco adquirindo condições de reordenamento representacional que irão estabelecer registros pulsionais necessários ao estabelecimento de processos simbólicos na mente
do analista. É na presença e companhia do analisando que utilizamos a
função psicanalítica da mente, ao interpretarmos um ato falho, sonho, sintoma, ou ao fazermos uma construção, no sentido que tomou Freud em
1937.
A psicanálise contemporânea tratou de resgatar importantes contribuições de Ferenczi (1997) na compreensão de processos dinâmicos que se
estabelecem na relação entre analista e analisando. Dizia esse autor que a
psicanálise era um “ofício impossível”, pelo fato de os psicanalistas serem
“os produtos da imperfeição de sua prática”.
Dentro do contexto abordado por nós, o trauma sofrido pelo analista
derrama sobre sua pessoa os efeitos dessa ocorrência. Como manter diante
de situações de intenso sofrimento a estrutura necessária que sustente a
capacidade analítica invadida por ocorrências traumáticas reais?
Os efeitos que o trauma causa em sua pessoa poderão ou não interferir
na demanda do paciente, pois, como menciona Marucco, a pessoa real do
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Sobre o Psicanalista
A VIVÊNCIA
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DA DOR AO ATO CRIATIVO
analista é um aspecto inerente à tarefa que não pode ser deixada de lado e
que atuará como um “disparador” de algumas transferências do paciente.
Nesse encontro, no campo da experiência analítica, se produz um descobrimento que “é histórico, construção da recordação, e presente, à medida que
é motor e veículo para as transferências”. Dessa forma, aquilo que diz respeito a sua história pessoal, sua vivência e ideologia, “aporta à neurose de
transferência um componente único, irrepetível e original que permite organizar novamente os capítulos daquela velha trama” (1995, p.732-733).
Caberia aqui uma pequena vinheta no sentido de ilustrar esses processos disruptivos:
Um analista, frente a uma situação de perda importante, afasta-se
abruptamente de suas atividades profissionais, avisando a seus pacientes
que se ausentará por uma semana. Tomado pelo impacto da dor, questionase a respeito de quando se sentirá em condições de retomar suas atividades,
se o tempo comunicado aos pacientes será suficiente para recompor-se.
Sente muitas dúvidas, naquele momento, quanto à sua capacidade analítica
– poderá escutar o analisando se está tomado por sua própria dor? Passado
o período previsto do seu afastamento, recebe uma chamada telefônica. Ao
saber de que se trata de um analisando, começa a ouvi-lo. Este queixa-se
do atendimento recebido pelo médico que lhe faz o acompanhamento
psicofarmacológico, dizendo que não lhe prestava o devido cuidado, que
fazia uma semana tentava comunicar-se com o médico, que não lhe respondia, sentindo-se, em conseqüência, descuidado, perdido, sem saber se
seguia ou não a medicação. À medida que o analista passa a escutar seu
paciente, percebe que era deles dois de quem falava, o que desencadeou no
analista a lembrança da história de seu paciente. O analista se deu conta de
que o paciente experimentava velhos e conhecidos sentimentos de desamparo. Simultaneamente, o analista percebe que, ao poder escutar o analisando, sua própria dor havia sido suspensa, passando para um outro tempo
e espaço, constituído pela demanda do analisando. Assim, sente-se em condições de retomar seu trabalho e o campo analítico.
Dessa forma, sai de foco a realidade da dor, passando ao ato criativo e
420 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 413-427, 2005
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 421
Augusta G. Heller,
Magda Beatriz Martins Costa
dando lugar a uma relação transferencial, que Nasio (1999) denomina “o
vínculo da análise”. Esse afastamento da dor psíquica provocada pela demanda do analisando resgata a função analítica da mente e contribui para a
elaboração do processo de luto no analista. Nasio, lembrando Spinoza, coloca que “ser afetado é ser capaz, ter o poder de; ter o poder não apenas de
agir sobre os outros, mas de ser permeável à ação dos outros.” (1999, p.42).
Considera que esse é um dos critérios de analisabilidade.
Pensamos ficar clara a impossibilidade da aplicação do método
terapêutico baseado na análise da transferência em que o analista não tenha
passado por uma experiência de análise pessoal. Sem essa experiência, incorrer-se-ia no risco de atribuir ao paciente o incômodo representado pelo
incremento de suas ansiedades pessoais. Cabe ao analista, além de analisar
o analisando, buscar uma compreensão do que se passa com ele mesmo e
do que foi gerado pelo paciente. Para Marucco (1995), no setting, aquilo
que parte do analista como pessoa é fonte de mal-estar, na medida em que
não possa tornar-se consciente no âmbito da tarefa analítica. Será, então, a
partir do enfrentamento do mal-estar gerado que poderá surgir a riqueza de
nossa prática analítica, visando dar sentido ao sem-sentido, considerando
os riscos que a singularidade real poderá levar ao mais além da função
analítica.
A psicanálise está longe de ser uma ciência exata, e essa é sua virtude.
É na impossibilidade de as palavras revelarem todo seu significado e na
inexatidão dos sentidos que irão se manifestar os fenômenos do inconsciente. É nessas imperfeições que se revela o ser humano. Possivelmente,
não sejam elas um obstáculo; poderão ser, bem mais, um “auxiliador específico” para o avanço do processo, quando podem ser reconhecidos os limites do analisável dentro de um espaço e tempo dados, aplicados igualmente para o analisando e o analista. Diferentemente da idealização do
analisando, o analista tem uma vida própria e passa pelas intercorrências
da vida. A impressão do mundo exterior e a demanda deste criam marcas,
as primeiras inscrições constituintes do aparelho de memória. Piera
Aulagnier afirma que a ação do Eu se manifesta pela possibilidade de
A VIVÊNCIA
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ANALISTA:
DA DOR AO ATO CRIATIVO
metabolizar os roteiros pictográficos e as fantasias “em representações relacionais, pelo seu trabalho de sublimação e ou pela sua ação recalcadora”
(1989, p.227).
Com relação à realidade da situação analítica, Robert Caper sugere
que o analista tenha “uma mente própria”, através de uma relação de paixão com seus objetos internos que exclua o paciente, “caso ele queira ajudar o paciente a sair da fusão esquizoparanóide, narcísica e entrar num
contato depressivo realista com ele (analista) como um objeto propriamente dito” (2002, p.178). Para esse autor, uma das tarefas do analista é não se
identificar com o paciente, a não ser de forma limitada e circunscrita. Através da manutenção de sua “mente própria” – relações com seus objetos
internos que excluem o paciente –, ele está em posição de auxiliar o paciente a não se identificar com ele, o que permite que esse paciente se
identifique consigo mesmo e tenha uma relação com seus próprios objetos
internos, em vez de uma identificação com o analista.
Sobre a Capacidade de Sublimação
De acordo com Maria Rita Kehl, o conceito psicanalítico de maior
alcance ético é o da sublimação, justamente porque permite o
enfrentamento do problema, aparentemente incontornável, da relação do
sujeito com a pulsão de morte, pulsão por excelência. Esta produz efeitos
destrutivos e desorganizadores ao criar resistências para ser dominada pela
pulsão de vida, que está sempre buscando um objeto a que se ligar. “As
pulsões de vida apontam sempre para onde estão os outros”, segundo a
autora (2002, p.163). O alcance da sublimação contempla a todos que se
interessam pelo processo analítico, através do qual se torna possível suportar o vazio e fazer algo a partir dele diferente de uma reação violenta de
pânico.
A sublimação como um destino possível da pulsão e como re-elaboração permite enfrentar a vivência, por mais traumática que seja. Pensamos
que mais vale a representação da castração, da falta do pênis, caminho necessário para elaborar a dor da perda, do desinvestimento no objeto, reco422 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 413-427, 2005
Considerações Finais
Baseadas no que discorremos ao longo deste trabalho, entendemos
que, entre as particularidades do campo analítico, uma delas diz respeito à
presença do analista como pessoa real e como função analítica. Esta deverá
manter-se preservada para que a comunicação entre inconscientes, à luz da
transferência-contratransferência, não sofra distorções. Uma dessas
distorções se assemelharia ao que Raquel Goldstein (1997) intitula demanda de dependência revertida, situação em que o analisando trataria de cuidar ilusoriamente do analista.
Na situação de trauma do analista, pensamos que poderá haver uma
identificação do analisando com aspectos deprimidos do analista,
revivendo, dessa forma, o desamparo. Todavia, esse sentimento re-atualizado segue a sua própria história de vida e o curso do seu desenvolvimento,
despertado a partir da pessoa real do analista.
O grande diferencial reside no fato de que ao analista não caberá usar
seu analisando para recuperar a perda temporária de sua capacidade de pensar, pois isso colocará em risco todo o processo analítico. Decorrentes do
processo de luto do analista poderão ocorrer distorções na sua capacidade
de escuta, já que estará preso a sua própria dor. Entretanto, poderá ocorrer
que o analista encontre condições para manter sua capacidade de escutar a
dor do paciente reutilizando sua própria vivência de falta em um espaço
potencial, o espaço analítico. Promoverá, assim, crescimento em ambos,
uma vez que sabemos que só é possível crescer na falta. Será a partir da
dimensão do próprio desejo que se permitirá enfrentar a falta, através de
uma nova criação.
Quando os espaços mentais do analista e do analisando se mantêm
como dois espaços em separado, e o analista reconhece o momento e o
processo pelos quais passa, e preserva sua escuta, poderá manter intacta a
função analítica. Nesse sentido, cada analista irá com a análise de seu anaSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 423
Augusta G. Heller,
Magda Beatriz Martins Costa
nhecimento do interdito, que a saída narcisista da falta de investimento do
sujeito no objeto.
A VIVÊNCIA
DO
TRAUMA
NO
ANALISTA:
DA DOR AO ATO CRIATIVO
lisando somente até onde foi com sua própria análise, como defendeu
Freud em muitos de seus artigos técnicos.
Pensamos, então, que a singularidade de cada analisando, no encontro
com a singularidade do analista, constituirá uma demanda e uma capacidade criativa para cada par em particular.
Resumo
Nosso objetivo é abordar algumas questões suscitadas pela vivência
de um trauma real no analista e suas repercussões na prática clínica. Entende-se que a particularidade do campo analítico diz respeito à figura do analista como pessoa real e ocorre através de uma escuta que chamamos escuta analítica. Esta remete a uma função da mente – função analítica – que
deverá buscar um distanciamento emocional mínimo para preservar a comunicação entre inconscientes. O processo de transferênciacontratransferência assim poderá ser mantido com poucas distorções. Desenvolvemos, ainda, a questão da importância da análise pessoal e da supervisão como forma de estabelecer um espaço entre mente do analistamente do analisando, onde os fenômenos representacionais possam ser
compreendidos.
Palavras-chave
Trauma. Campo analítico. Sublimação.
Abstract
The Existence of Trauma in the Analyst: from the pain to the creative
act
Our objetive is to deal with some questions raised by the existence of a real
trauma in the analyst and its repercussions in the clinical practice. It’s understood
that the particularity of the analytical field concerns the character of the analyst as
a real person and occurs through a hearing that we call analytical hearing. This
hearing refers to a function of the mind – analytical function – that shall look for
a minimum emotional distance to keep the communication between the
unconscious. This way, the transference-countertransference process can be kept
424 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 413-427, 2005
Key-words
Trauma. Analytic field. Sublimation.
Resumen
La Vivencia del Trauma en el Analista: del dolor al acto creativo
Nuestro objetivo es abordar algunas cuestiones suscitadas por la vivencia de
un trauma real en el analista y sus repercusiones en la práctica clínica. Se entiende
que la particularidad del campo analítico dice respecto a la figura del analista
como persona real y ocurre a través de una escucha que llamamos escucha analítica. Esta remete a una función de la mente – función analítica – que deberá buscar un distanciamiento emocional mínimo para preservar la comunicación entre
inconscientes. El proceso de transferencia-contratransferencia así podrá ser
mantenido con pocas distorsiones. Aún, desarrollamos la cuestión de la importancia
del análisis personal y de la supervisión como forma de establecer un espacio
entre mente del analista-mente del analizando, donde los fenómenos
representacionales puedan ser comprendidos.
Palabras-llave
Trauma. Campo analítico. Sublimación.
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 425
Augusta G. Heller,
Magda Beatriz Martins Costa
with little distorsions. We also develop the question of the importance of personal
analysis and supervision as a way to stablish a space between analyst’s mindpatient’s mind, where the representational phenomenons can be understood.
A VIVÊNCIA
DO
TRAUMA
NO
ANALISTA:
DA DOR AO ATO CRIATIVO
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426 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 413-427, 2005
Artigo
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 427
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Magda Beatriz Martins Costa
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A VIVÊNCIA
DO
TRAUMA
NO
ANALISTA:
DA DOR AO ATO CRIATIVO
428 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 413-427, 2005
Carlos F. L. Pires Leal
Membro Efetivo da Sociedade
Brasileira de Psicanálise do
Rio de Janeiro.
A reflexão sobre as possibilidades de articulação entre a experiência traumática e a literatura ilumina, potencialmente, tanto o campo da teoria psicanalítica quanto os
domínios da arte e da criação artística.
Este trabalho, após uma breve
delimitação dos conceitos de trauma e repetição, tomará a literatura
de testemunho – na qual a situação
traumática incide a partir da realidade externa – e a narrativa literária
representada pelo romance e pela
ficção – na qual o trauma incide a
partir da vida fantasmática – como
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 429
Carlos F. L. Pires Leal
Trauma e
Literatura:
repetição e
criação na
Literatura e na
Psicanálise
TRAUMA
CRIAÇÃO NA
LITERATURA: REPETIÇÃO E
LITERATURA E NA PSICANÁLISE
E
produções a partir das quais será analisado o processo de criação.
Entre outras, serão utilizadas imagens literárias de autores como
Proust, Borges e Celan para ilustrar formas possíveis de dizer e representar
a realidade interna-externa em suas figurações múltiplas, característica da
atividade criadora. Especial ênfase será dada aos limites da representação e
da linguagem que, simultaneamente, nutrem-se de aspectos restauradores e
destrutivos (em Fedro, Platão denominou o ato de escrever de phármacon,
que, a um só tempo, significa remédio e veneno).
Finalmente, o texto procurará demonstrar que a repetição, no terreno
da estética literária, não é obrigatoriamente sinônimo de monotonia, silêncio traumático ou reprodução obtusa do mesmo. Pelo contrário, pode indicar o esforço da elaboração psíquica convertendo-se em uma pré-condição
da própria obra artística pela abertura que enseja à polifonia.
Trauma: revisão do conceito
A teoria do trauma incide do começo ao fim na produção de Freud. Ela
se transforma junto à história da própria psicanálise, figurando como uma
espécie de mito de origem do saber psicanalítico. Nos primeiros tempos da
história da psicanálise, a compreensão etiológica da neurose teve no trauma seu fator central. Trauma sendo sinônimo de acontecimento factual e
biográfico datável, subjetivamente relevante pelos afetos desagradáveis
que desencadeia (PONTALIS; LAPLANCHE, 1983).
Dentro da referência metapsicológica (em sua vertente econômica),
trauma significa intensidade. Intensidade que implica, por um lado, incidência de excitação sobre o psiquismo e, por outro, impossibilidade de ele
atenuar o impacto sofrido através do trabalho de elaboração psíquica.
Com o abandono relativo da teoria da sedução infantil, a fantasia toma
o lugar do fato. Agora é ela que vem para frente do palco, tornando-se
protagonista na produção do trauma. Nas Conferências Introdutórias
(1916-1917), Freud volta a falar sobre a possibilidade de a realidade externa atingir o psiquismo, não dando a ele chance de defesa – para preservar o
princípio da constância. Os protótipos dessas situações são a neurose de
430 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 429-443, 2005
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 431
Carlos F. L. Pires Leal
guerra e a neurose traumática. Cerca de três anos depois (em Além do Princípio do Prazer, 1920), Freud retoma a definição econômica do trauma,
afirmando que o afluxo excessivo de excitação exige, como pré-condição
para a descarga, a ligação das excitações às representações por meio de
laços associativos – mesmo ignorando o princípio do prazer. A compulsão
à repetição seria uma estratégia de dominação da situação traumática.
A origem do trauma, na parte final dos escritos freudianos (FREUD,
1937), compatibiliza o interno com o externo (etiologia mista da origem
das neuroses): o fundamental passa a ser a intensidade dos estímulos que
incidem sobre o psiquismo e a incapacidade deste de proteger-se, devido
ao rompimento da barreira de proteção. Uma das conseqüências fundamentais é o impedimento do processo de simbolização e pensamento.
Repetição das necessidades ou necessidade de repetição? A pergunta
foi formulada por D. Lagache, que questiona se a necessidade de repetição
pelo psiquismo não seria ainda mais fundamental que a repetição das necessidades. Longe de representar um simples jogo de palavras, a pergunta
encerra uma direção para compreendermos o caminho da dissolução do
trauma. O exemplo clássico seria o jogo do carretel, no qual a repetição
tem a função, através da dramatização e da intermediação da linguagem, de
administrar a situação traumática deflagrada pelo desaparecimento da mãe.
Trata-se, portanto – e é este aspecto que desejo salientar neste trabalho –,
de uma repetição, dando ensejo ao fato criador. O sujeito implicado nessa
experiência não sucumbe passivamente à angústia traumática de separação: cria, ativamente, um jogo para tentar suportá-la.
M’uzan (1965) nos diz que o que é representado em situações como a
descrita acima não é nem o agradável nem o real, mas uma situação de um
ser de desejo que, em si, constitui uma nova realidade. A ela seria ligado o
esforço de toda a criação: desde a invenção de um jogo simples, como o do
carretel, até a obra artística mais elevada. O autor nos convida a prestar
atenção ao fato de que essas formas de expressão são particularmente importantes por revelar um traço de espírito que parece ter estado presente no
momento mesmo em que elas nasceram e a que poderíamos denominar
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E
inspiração. Quando assim concebida, ela representa uma função egóica
buscando a restituição da situação anterior ao trauma. Nessa perspectiva, a
repetição estaria a serviço do ego, diferindo da alternativa na qual o ego
permanece sob o domínio da compulsão à repetição, sem que haja a resolução da tensão interna (BIBRING, 1943).
A inspiração, conforme a interessante concepção de M’uzan (1965),
articula repetição e criatividade, jogando por terra a idéia tantas vezes
propalada de que repetir é sinônimo de esvaziamento imaginativo ou de
enfadonha monotonia. Pelo contrário, ela pode estar na base dos processos
criativos. Mas, para que isso ocorra, é necessário que se cumpra um processo. Esquematicamente, ele constaria das seguintes fases: num primeiro
momento, há a inundação energética do psiquismo (situação traumática);
em seguida, o silêncio é restabelecido graças à encenação dramática da
situação (a experiência adquire um valor positivo); o processo se reinicia,
cada etapa suscitando uma nova experiência de ruptura – de um modo geral menos dramática que a primeira. E qual seria a primeira? Rank e
Groddeck diriam que é o trauma do nascimento que permanece, indelével,
inscrito na psique do indivíduo – que vida afora procura esquecê-lo e
retomá-lo. Daí a necessidade de repetição indicada no subtítulo acima.
Estabelecidos os elos que interconectam – como num jogo – repetição
e criação, vejamos, a seguir, como essa dinâmica surge na criação literária,
na qual o trauma determinará os limites da escrita e as fronteiras do dizível.
Trauma e Criação Literária
Com o objetivo de examinar formas possíveis de articulação entre a
vivência traumática e a criação literária, escolhi dois tipos de narrativas
literárias nas quais a incidência do trauma se dá de formas diversas: a literatura de testemunho – na qual o trauma incide a partir da realidade externa
–, e o romance ou a ficção – em que as vivências traumáticas (e o fenômeno
da repetição) incidem a partir da interioridade e da subjetividade do autor.
Na literatura de testemunho, o estímulo que dá partida à escritura é a
experiência-limite, algo de excepcional que exige ser relatado e que se en432 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 429-443, 2005
sempre irei encontrar, em minha própria repetição, apenas o último
reflexo de uma fala ausente na escrita, o escândalo do silêncio deles e
do meu silêncio [...] A lembrança deles está morta na escrita; a escrita
é a lembrança de sua morte e a afirmação de minha vida.
Vemos nesse pronunciamento o jogo dialético entre presença-ausência, dizível-indizível, representável-irrepresentável. A obra literária, ao dizer, deixa algo de fora. A escrita não dá conta do excesso da experiência
que a desencadeia: deixa um resto que a linguagem jamais poderá conter.
Esta nunca será mais do que um reflexo, uma miragem do vivido. É curioso, no entanto, que a literatura de testemunho precisará narrar o vivido – no
caso, a barbárie do nazismo –, utilizando-se da narrativa de ficção para
torná-la verossímil aos olhos do leitor. Um dos piores sentimentos experimentados pelos sobreviventes de campos de concentração foi o descrédito
que seus relatos provocavam naqueles que os ouviam (ou liam). Passavam
por inventores. A estética da ficção passou a ser necessária como forma de
recuperar a credibilidade do testemunho dos que sentiram o hálito da morte, deflagrando uma compreensível premência de falar por si e pelos que
foram silenciados para sempre.
Paul Celan (pseudônimo de Paul Antschel) é outro escritor clássico da
literatura de testemunho. Enaltecido como um dos maiores poetas de lín-
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 433
Carlos F. L. Pires Leal
contra no limite do dizível. Georges Perec (1995) inverte a lógica mais
comumente aplicada a essas situações ao dizer que “o indizível não está
escondido na escrita, é aquilo que muito antes a desencadeou”.
O escritor-testemunha “se relaciona de um modo excepcional com a
linguagem: ele desfaz os lacres da linguagem que tentavam encobrir o ‘indizível’, que a sustenta” (SELIGMANN-SILVA, 2001). Perec sabia do que
falava: seus pais foram covardemente assassinados pelos nazistas, deixando nele uma falta com a qual procurou se haver através de seus escritos –
mas que também a desencadeou. Voltemos a ele, citado novamente por
Seligmann-Silva (2001):
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E
gua alemã do pós-guerra, registrou em sua obra o terror do nazismo. A
desolação pela perda dos pais, mortos em um campo de extermínio do qual
fugiria, o fez produzir um texto denso, vigoroso e envolto em silêncio e
dor. Sua escrita, por vezes considerada obscura e hermética, desmentiu a
declaração de que, “depois de Auschwitz, não haveria mais lugar para a
poesia no mundo”. Celan foi um dos primeiros a provar o contrário: sua
genialidade artística permitiu que extraísse poesia da escuridão traumática
do terror inominável. Segundo Carone (1973), Celan arrancou “do miolo
das palavras um vigor germinal”, fazendo sair “pelas frestas do idioma
fraturado fragmentos liberados de um cortejo irracional e verdadeiro [...]
tudo jogado numa rede pródiga de repetições e variações”. Novamente o
contraponto entre a repetição e a criação.
Paul Celan, num ato de fé, depositava na palavra uma propriedade de
redenção e resgate. Preservou a língua como condição para recriar-se. Mas
não deixava de nela também entrever um potencial assassino:
Accesible, próxima y no perdida, quedaba en medio de todo lo que
había sido necesario dejar atrás, esta única cosa: la lengua. La lengua,
sí, no estaba, a pesar de todo, perdida. Pero hubo de pasar por sus
propias ausencias de respuesta, pasar por un terrible mutismo, pasar
por las mil espesas tinieblas de una palabra asesina. Pasó sin explicarse
con palabras lo que había sucedido. Pero pasó por el lugar del
Acontecimiento. Pasó y pudo de nuevo volver a la luz, enriquecida de
todo ello. Es en ese lenguaje, durante esos años y los años que
siguieron, en el que he intentado escribir poemas: para hablar, para
orientarme y conocer en qué lugar me encontraba, adónde debía ir, y
crearme así una realidad (BLANCHOT et al. citados por ANDRÉ,
2002).
Em abril de 1970, Celan suicidou-se no Rio Sena. A esperança criativa ruiu; as palavras não puderam mais conter o excesso (de dor) que marcaram indelevelmente sua vida. A repetição sucumbiu ao ato criativo.
Vejamos agora como a vivência traumática e o fenômeno da repetição
434 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 429-443, 2005
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 435
Carlos F. L. Pires Leal
incidem a partir do mundo interno e de que forma determinam a produção
literária.
Em Proust, a incidência do trauma pode ser inferida em conjugação
com a experiência do tempo e da temporalidade. A vivência traumática
experimentada como vivência do instante em sua reverberação catastrófica
não deixa que se estruture uma temporalidade psíquica. Como evidenciam
as neuroses traumáticas, o trauma é sempre atual. Nelas as representações
não podem ser substituídas por outras; não formam séries associáveis.
González (2001) nos diz que “ciertas configuraciones traumáticas tienen
este poder de destruir el tiempo en las imágenes, de expulsar a un sujeto
fuera del tiempo, y de crear imágenes inmóviles que lo miran”.
A busca proustiana do tempo perdido (PROUST, 2002) implica a recriação de experiências vividas por meio do recurso literário. Não se trata
da rememoração do já-vivido. Ainda que o narrador nos induza, através da
aparente concatenação lógica e racional de fatos e eventos, a pensar o contrário. O personagem não é real; real é a experiência estética que fruímos
ao entrar em contato com ele através da narrativa literária. A consciência
não contém em si o vivido que, como Freud nos indicou, funciona tãosomente como traço mnésico. De tempos em tempos, ele sofre uma reorganização, reinscrevendo-se no psiquismo. A rememoração torna-se, assim,
uma reinterpretação que tem a propriedade de afugentar para um passado
imaginário as exigências da realidade presente. Dessa forma, aquilo que
foi vivido em um tempo anterior, e não podendo (devido ao caráter traumático) integrar-se num contexto significativo, encontra agora uma possibilidade de representação.
Proust não teria escrito Em Busca do Tempo Perdido “para ‘contar sua
vida’, seu tempo, seu mundo, mas para contar precisas obsessões, precisos
nós, precisas dobradiças. A Busca torna ‘sua história’, ‘seu mundo’, ‘seu
tempo’, artifícios, coberturas, estetizações em volta de um núcleo denso de
pura repetição” (CALDAS, 2001a). Segundo o autor, a escrita proustiana
seria uma espécie de vegetação textual luxuriante que prolifera em torno
dessa repetição tão obsessiva quanto indizível. O esforço de dizer e narrar
TRAUMA
CRIAÇÃO NA
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mobiliza, no próprio ato de fazê-lo, elementos que, de uma forma não voluntariosa, apresentam-se à consciência do escritor distraído. Distração,
aqui, implicando a qualidade involuntária da evocação de algo esquecido
(caído para fora, como nos ensina a etimologia). O que foi esquecido e
ressurge através da produção literária é, na realidade, uma espécie de
prototexto que até aquele momento não podia ser formulado através da
escrita apta a ser publicada.
Antes de escrever sua obra, Proust, como qualquer outro criador literário, precisou passar pelo processo de ler sua própria vida desejante, “amputando, deslocando, denegando partes do texto primeiro, em sucessivas
reformulações, até chegar ao texto final, àquele que o leitor convencional
encontra pronto na edição finalizada da obra” (FREIRE, 2001). Em A Fugitiva, Proust diz: “O tempo passa, e pouco a pouco todas as nossas palavras
mentirosas se tornam verdadeiras”. Em outro trecho: “Os momentos do
passado não são imóveis, guardam em nossa memória o movimento que os
arrastava para o futuro, um futuro que também se tornou passado, arrastando-nos também a nós”.
No fragmento a seguir, Proust fala com clareza sobre a forma como as
vivências traumáticas – indizíveis, incrustadas no corpo – transmutam-se
em palavras: “a partir de certa idade, nossos amores e nossas amantes são
filhos de nossa angústia; nosso passado e as lesões físicas em que ele se
inscreveu determinam nosso futuro”.
Passado e futuro influenciam-se, como vemos abaixo, de uma forma
não linear exigindo-nos sua decifração através de uma leitura-escrita que
lhes dá (ou restitui) sentido e significação.
Por isso não se deve temer no amor, como na vida habitual, tão-somente o futuro, mas também o passado, o qual não se realiza para nós
muitas vezes senão depois do futuro, e não falamos apenas do passado
que só se revela mais tarde, mas daquele que conservamos há muito
tempo em nós e que de repente aprendemos a ler.
436 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 429-443, 2005
Algo que não se satisfaz com um-dizer; não se define com uma aparição; não aparece com uma descrição; não se completa numa estilística;
não pode obedecer a uma gramática, a uma sintaxe. E esse algo repeti-
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 437
Carlos F. L. Pires Leal
O passado que conservamos em nós exige, para ser lido, uma experiência posterior que lhe abra caminho para a significação. No caso dos
escritores, ela passa pela elaboração do registro escrito impregnado de qualidade estética. O que é elaborado, no entanto, não se confunde com fatos
biográficos – não coincidindo com o tempo que o cronômetro registra. Trata-se de um “tempo em estado puro, alcançado pelo exercício da arte [...] o
extemporâneo. Dá-se pelas impressões, pela memória involuntária, pelo
ardil do esquecimento, pela manifestação do inconsciente, pelos signos artísticos [...] é o tempo para criar” (FREIRE, 2001).
A própria criação de Em Busca do Tempo Perdido ilustra o processo
descrito acima: a obra se anunciou em Contre Sainte-Beuve (1908-9); o
primeiro e o sétimo – e último – volumes (No Caminho de Swan e O Tempo
Redescoberto, respectivamente) foram escritos quase ao mesmo tempo
(1910-11). Entre eles foram enxertados textos escritos em momentos diversos. Como nos diz Freire (2001), “a obra criou seu próprio tempo”. Uma
temporalidade própria, original, móvel. Exatamente o oposto do que se dá
no registro do trauma, no qual o sujeito é atirado fora do tempo: no espaço
da repetição, da imobilidade e da monotonia no qual reina o a priori: “esa
respusta masiva sin pregunta planteada” (GONZÁLEZ, 2001).
Vejamos agora como um outro autor genial lidou com a repetição e, a
partir dela, construiu obras de arte. Refiro-me ao poeta e escritor argentino
Jorge Luis Borges. Tomarei duas imagens – espelhos e labirintos – recorrentes na sua obra, como eixos para compreender de que forma a repetição
e a criação se articulam na produção da sua arte.
O espelho para Borges ou, mais propriamente, os jogos de espelhos,
indicam o jogo incessante entre o real e o virtual, a imagem e a coisa-em-si,
o mesmo repetido – e diferindo – infinitamente:
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do não é, normalmente, simplesmente uma repetição, mas um complexo em suas várias arestas (CALDAS, 2001b).
A repetição de um texto, uma imagem, uma idéia nunca ocorre da
mesma maneira. Cada vez que a revemos alguma nuance inédita se apresenta. Ou será que, ao revê-la, nós é que já não somos mais os mesmos
leitores?
Em A Biblioteca de Babel, Borges (1941) escreve sobre a “biblioteca
total” que conteria todos os livros, em todos os idiomas, sobre todos os
assuntos de todos os tempos...
Tudo: a história minuciosa do futuro, as autobiografias dos arcanjos, o
catálogo fiel da Biblioteca, milhares e milhares de catálogos falsos, a
demonstração da falácia desses catálogos, a demonstração da falácia
do catálogo verdadeiro, o evangelho gnóstico de Basilides, o comentário desse evangelho, o comentário do comentário desse evangelho, o
relato verídico de tua morte, a versão de cada livro em todas as línguas,
as interpelações de cada livro em todos os livros; o tratado que Beda
pôde escrever (e não escreveu) sobre a mitologia dos saxões, os livros
perdidos de Tácito.
Todos os livros, no entanto, são compostos por elementos iguais: o
espaço, o ponto, a vírgula, as vinte e duas letras do alfabeto. A imagem do
labirinto metaforiza o desafio de encontrar o diferente no igual: sendo um
lugar fechado, acabado, onde teoricamente todas as possibilidades de escolha (todas as direções a serem tomadas) já foram previstas, o labirinto propõe a quem quer sair dele – ou atingir o coração do enigma – uma atitude
criativa e diligente, sem sucumbir à tentação de tentar o caminho já percorrido do óbvio – que a tantos faz sucumbir.
Borges atravessa caminhos literários percorridos (por outros autores)
quando conta histórias já contadas. Apesar da aparente falsidade da empreitada, ele crê que a literatura nunca se esgota: ela depende muito mais
do leitor do que do autor das obras literárias. Enquanto leitores, não lemos
438 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 429-443, 2005
Trauma, Criação e Repetição
Nem tudo se escreve... O limite do representável na escrita literária
aponta para “o ponto de indizibilidade no coração da linguagem” (CARVALHO, 2001). Quando falamos sobre a literatura de testemunho (cf. acima),
vimos que, no momento em que deixou de encontrar nas palavras uma
possibilidade de redenção, Paul Celan desistiu da vida. O phármacon plaSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 439
Carlos F. L. Pires Leal
estritamente o que está escrito, mas o que a nossa subjetividade possibilita.
“Numa época em que tudo já foi dito, como ser original?” – indaga o poeta
argentino. Nada do que já foi dito jamais poderá ser lido da mesma maneira
como foi dito um dia, ou seja, todo texto lido será sempre, absoluta, necessária e, irrevogavelmente, original.
Através do personagem-escritor Pièrre Menard, Borges reinventa
Dom Quixote, pois nunca poderá saber o que Cervantes realmente escreveu; ele só poderá saber o que Menard lê. A originalidade é, para Borges,
“uma espécie de prisão no tempo; uma limitação humana; uma condenação. A originalidade é que é o limite; o limite do sujeito em si mesmo, a
inacessibilidade ao Outro, o irreversível solipsismo” (FERREIRA, 2004).
Por isso, utiliza-se, reiteradamente, das imagens de labirintos, da duplicação possibilitada pelos espelhos e do mistério terrificante ou fascinante dos
tigres.
Em A Biblioteca de Babel, os espelhos reduplicam as imagens dos
livros, criando a aparência de um infinito saber, ao mesmo tempo que a
denuncia: “Os homens costumam inferir desse espelho que a Biblioteca
não é infinita (se o fosse realmente, para que essa duplicação ilusória?),
prefiro sonhar que as superfícies polidas representam e prometem o infinito”. O autor ora angustia-se com a dimensão daquele repositório inesgotável do saber – que demanda um leitor impossível – ora se deleita com essa
possibilidade, entregando-se a uma extravagante felicidade. Por outro
lado, assevera que “a certeza de que tudo está escrito nos anula ou nos
fantasmagoriza”. É preciso não sucumbir ante o temor da inutilidade do
dizer, dos limites da escrita...
TRAUMA
CRIAÇÃO NA
LITERATURA: REPETIÇÃO E
LITERATURA E NA PSICANÁLISE
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tônico pendeu para o pólo destrutivo, envenenando (ou deixando de
desintoxicar) o escritor. Nesse momento, ainda seguindo Carvalho (2001),
“a morte real do autor [torna-se], num mesmo golpe, inscrição, representação e limite”. Estamos no registro do trauma que, em seu excesso,
extrapola a capacidade de contenção, atenuação e transformação através da
linguagem. Nesses casos, a palavra não representa, apresenta; a metáfora
sai de cena, entra a metonímia; a descarga prevalece sobre o pensamento.
A criação literária se vale, muitas vezes, do fracasso da representação
para produzir efeitos estéticos. Nem toda literatura é sublime, mesmo sendo criativa e – eventualmente – bela. Escreve-se muitas vezes na tentativa
de destituir o que de mais ignóbil abrigamos dentro de nós de seu caráter
destrutivo e mortífero. Louise DeSalvo (1998) examinou a obra de escritores que usaram a palavra como arma, o romance para humilhar e
conspurcar suas vítimas, enfim, a literatura transformada em “poderosa e
duradoura forma de retaliação”. Nessa obra, examina textos de autores
(Leonard e Virgínia Woolf, D. H. Lawrence, Djuna Barnes e Henry Miller)
que tiveram na vingança a motivação para as suas produções. Fazendo coro
com John Gardner, afirmaria que “nenhuma motivação é demasiado vil
para a arte”.
A qualidade artística, na literatura, advém da capacidade dos escritores de transformar o excesso traumático – proveniente das excitações pulsionais –, de modo a tornar possível sua descarga através da escrita. Mas,
como acabamos de ver, essa transformação tem limites. O texto pode tornar-se um continente insuficiente, pois a linguagem é precária e a rede
simbólica insuficiente para suturar o abismo que se interpõe entre a pulsão
e a simbolização. Foi o que Silvia Plath genialmente descreveu, quando
afirmou que a inundação não poderia ser inteiramente contida pelo “polegar da palavra no buraco do dique”.
A repetição relaciona-se com a criatividade – incluindo a criação literária –, não obrigatoriamente como algo que a impede, mas como a condição que a torna possível. Repetir significando a insistência para a inscrição
e representação do excesso na cadeia significativa da linguagem, fazendo
440 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 429-443, 2005
Resumo
O trabalho propõe a reflexão sobre a articulação entre literatura e trauma,
este último considerado à luz da teoria psicanalítica. Recorrendo à obra de escritores como Proust, Borges e Celan, situa a repetição não somente como falha da
representação, mas como origem da elaboração estética das obras literárias.
Palavras-chave
Trauma. Literatura. Compulsão à Repetição. Criação Artística. Representação. Elaboração.
Abstract
Trauma and Literature: repetition and creation in Literature and
Psychoanalysis
The paper proposes reflecting on the articulation between literature and trauma, the latter considered from the viewpoint of the psychoanalytical theory. By
resorting to the work of writers such as Proust, Borges, and Celan, it situates
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Carlos F. L. Pires Leal
“com que pontos do texto entrem em relação com outros pontos, com nós,
com laços, com nervuras, com dobradiças: aparecências e funduras: se
correlacionem, redimensionem arejando, com específicos ‘buracos de coelho’, o texto inteiro, abrindo-o a inesperados sentidos, dimensões, rotações” (CALDAS, 2001b).
Vimos, ao longo deste trabalho, que a criatividade se reveste sempre
de um caráter dramático. Dramático pela incerteza implicada nas tentativas, sempre falhas, de apreender o real, cuja irrupção desfaz a paz econômica e ameaça o ideal mítico do narcisismo primário. A Biblioteca de Babel
de Borges exemplifica bem a aspiração inalcançável de tudo-saber e tudodizer. A criação literária tem uma função libertadora (e um valor estético),
à medida que, ao reconhecer esse limite, abdica da compulsão de “tentar
deter no tempo o movimento errático da vida podendo criar, a partir de sua
falta-a-ser, uma ficção mais imprecisa, cheia de elipses. Que suporte os
enigmas em vez de tentar esclarecê-los todos” (KEHL, 2001).
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repetition not only as a flaw in representation, but also as the origin of the esthetic
elaboration of literary works.
Key-words
Trauma. Literature. Repetition Compulsion. Creativity. Representation.
Working through.
Resumen
Trauma y Literatura: repetición y creación en la Literatura y en el Psicoanálisis
El trabajo propone la reflexión sobre la articulación entre literatura y trauma, este último considerado a la luz de la teoría psicoanalítica. Recorriendo a la
obra de escritores como Proust, Borges y Celan, sitúa la repetición no solamente
como falla de la representación, sino como origen de la elaboración estética de las
obras literarias.
Palabras-llave
Trauma. Literatura. Compulsión a la Repetición. Creación artística.
Representación. Elaboración.
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442 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 429-443, 2005
Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Trabalho apresentado no 44º Congresso da Associação Psicanalítica
Internacional. Rio de Janeiro, 28-31 de julho de 2005.
Dr. Carlos F. L. Pires Leal
Rua Monte Líbano, 55/201 – Centro
28610-460 Nova Friburgo – RJ – Brasil
Fones: (0xx24) 2523-1526/2522-7462
E-mail: [email protected]
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 443
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444 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 429-443, 2005
David Léo Levisky
Psicanalista Didata da Sociedade
Brasileira de Psicanálise de São
Paulo; Psiquiatra da Infância e da
Adolescência; Doutor em História
Social pelo Departamento de
História da FFLCH da USP; Vicepresidente do Instituto São Paulo
Contra a Violência.
A metapsicologia freudiana
nos permite compreender grande
parte dos traumas psíquicos detectados na atualidade. Variantes kleinianas, bionianas, winnicottianas,
kohutianas, entre outras, não anulam, só acrescentam conceitos e
percepções que ampliam novas
compreensões a respeito de diferentes formas de sofrimento mental que
ferem a economia, a estrutura e a
dinâmica psíquica do sujeito.
Fatores múltiplos e complexos,
endógenos e exógenos, participam
da constituição dos agentes
organizacionais e traumáticos do
funcionamento mental consciente e,
principalmente, inconsciente, onde
o biológico, o psicológico, o social
e a cultura se encontram. Situações
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David Léo Levisky
Trauma e
Adolescência
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ADOLESCÊNCIA
estressantes, conflitos exacerbados entre instâncias psíquicas, perturbações
narcísicas, auto-estima comprometida, fragmentações, dissociações, não
integrações de componentes do self são traumáticas à medida que interferem na homeostase psíquica; conceito difícil de ser explicitado, quando se
pensa que a dor psíquica também pode fazer parte do acervo mental como
valor de penitência e de amor a Deus. Parece que o trauma psíquico está
num sentimento de algo insuportável e não-sincrônico que se estabelece
nas relações inconscientes do sujeito com ele mesmo e com sua cultura. Na
atualidade, o trauma e a dor mental estão presentes quando o insuportável
afeta a espontaneidade e a autonomia do sujeito – valores prezados pela
pós-modernidade. As manifestações da dor psíquica e dos seus efeitos traumáticos inconscientes são mutáveis e dependem das construções das subjetividades (MEZAN, 2002).
Pude, através de um estudo profundo, levantar hipóteses que contrariam as teses de Ariès (1978) e Le Goff (1995) sobre a vida familiar e a
inexistência da adolescência na Idade Média. A análise histórico-psicanalítica da narrativa de Guibert de Nogent (1055-1125?) permitiu-me colocar
em evidência e sugerir, ainda que seja apenas um único documento, que
todos os jovens no período de transição da infância para a vida adulta passam pela adolescência. “O que varia é a forma de vivenciá-la e de
manifestá-la, inclusive o tempo de duração, devido aos valores da cultura
incorporados durante o desenvolvimento do sujeito psíquico”.
A adolescência é uma manifestação do desenvolvimento humano que
repercute na mentalidade1 vivenciada e expressa segundo as conjunturas
provenientes do imaginário de cada cultura e seus subgrupos. Representa o
conjunto de elementos psíquicos inconscientes e conscientes que caracteri1
A mentalidade vista pela interface histórico-psicanalítica pode ser extraída do conceito proposto
por Franco Júnior (2001, p.149-150): “Indica o primado psicológico nos seus aspectos mais profundos e permanentes, mas sempre manifestados historicamente, dentro e em função de um determinado contexto social, que por sua vez passa a agir a longo prazo sobre aquele conjunto de
elementos psíquicos coletivos [...] os significantes (palavras, símbolos, representações) que o
imaginário utiliza [e que] alteram os significados (conteúdos essenciais) da mentalidade, decorrendo disso a dinâmica dela”.
446 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 445-463, 2005
2
Parte-se da idéia de que o ego, o superego e o self num suposto momento inicial são
indiscriminados e/ou mal discriminados e/ou se confundem, diferenciando-se durante o processo
de desenvolvimento evolutivo.
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David Léo Levisky
zam o sentir, o pensar e o agir observáveis através dos tipos de raciocínio,
de manejo da sexualidade, dos conceitos das palavras, dos signos, dos significados das relações temporais e espaciais que se preservam no longo
tempo da história, tão longo que podem parecer permanentes. O imaginário, por sua vez, sofre transformações variáveis e progressivas na sua
transmissibilidade, resultantes das ações recíprocas existentes entre o sujeito, o grupo social, a tecnologia e a cultura.
Como psicanalistas, conhecemos bem as características psicológicas
e comportamentais, umas constantes e outras mutáveis, dos adolescentes,
que buscam na realidade exterior novos modelos identificatórios que expressem sua realidade interna. A vulnerabilidade egóica do adolescente
decorre dos desinvestimentos do corpo, das imagos pessoais e parentais da
infância e re-investimentos de novos objetos e potencialidades. Durante
esse processo, há a emergência de mecanismos e de vivências primitivas
inconscientes que entram em confronto com as novas aquisições provenientes das experiências e transformações biológicas integradas ao meio
psicológico, social e cultural. São características conflitivas que envolvem
o self,2 o ego e o superego durante a re-elaboração dos conflitos vinculares
e edípicos nessa que é a segunda grande oportunidade na vida de estruturar
e re-estruturar aspectos centrais da personalidade e da identidade.
Na adolescência, mecanismos como onipotência, ambivalência, negação da realidade, cisão, tendência a descargas não elaboradas na busca do
prazer imediato e concreto estão presentes nos acting out, provenientes das
transformações decorrentes da sexualidade emergente e urgente. São experiências emocionais e potencialidades estimuladas pelas fantasias inconscientes – moldadas por imaginários conscientes e inconscientes que sofrem influências da cultura na qual o jovem está inserido. Cultura que reflete as projeções inconscientes num fluxo contínuo e recíproco de influências. São processos estruturais, dinâmicos e econômicos do aparelho psí-
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quico provenientes das resultantes biológicas e das inscrições lingüísticas
resultantes das interações com a realidade externa, plena de heranças presentes nas memórias históricas pessoais e do contexto.
Nessa fase da vida, o processo de identificação está em plena reestruturação; os conteúdos internalizados são metabolizados e re-constroem a “matriz identificatória”, na concepção de Grinberg, com base em
mecanismos inconscientes de seleção, inclusão, eliminação, identificação
projetiva, projeções, etc., de elementos provenientes dos objetos externos,
dos objetos internos e de partes do próprio self.3
A mentalidade adolescente – em sua transição para a sociedade adulta
caracterizada por um conjunto de expectativas, ideais e valores – enfrenta
desafios, ritos de passagem, evidentes ou diluídos na cultura, que configuram a inserção dos jovens nesse segmento social. Considera-se que a adolescência em todas as sociedades representa sua parte mais ativa. Quando
estas oferecem condições de continência, de holding, o adolescer – geralmente tenso e turbulento – permite que as pulsões sejam processadas e reconfiguradas dentro de enquadramentos melhor definidos, e os indivíduos
têm maiores possibilidades de encontrar seus sistemas internos de equilíbrio e interação social.
Uma sociedade que não tem claras as definições de papéis, de funções, de valores, não cumpre a função organizadora e o adolescente tornase agente e vítima desse processo.
Nesse mundo globalizado, adolescentes e os demais segmentos sociais vivem e sofrem impotentes as “globarbaridades”4 – que, freqüentemente, são estimuladas por setores da mídia e dos poderes econômicos
3
Identificação: “O conceito de identificação é central e básico para a compreensão do desenvolvimento e organização da personalidade. Intervém como processo fundamental do ego, do superego
e do ideal de ego, do caráter e da identidade, sendo por sua vez uma constante no contínuo
interjogo da relação entre o sujeito e os objetos. Tal como o sustentou Freud, constitui a forma
mais primitiva de ligação afetiva com outra pessoa. O primeiro comportamento da criança em
relação a um objeto desejado é querer incorporá-lo, isto é, ‘consumi-lo e recriá-lo no ego’. Esta é
a base da identificação” (GRINBERG, 1976, p.7).
4
Expressão utilizada pelo compositor Tom Zé em seu CD Pagode.
448 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 445-463, 2005
Quando ocorre uma privação, em termos de um rompimento do lar,
especialmente se houver uma desavença entre os pais, ocorre uma coisa muito séria na organização mental da criança. De repente, suas
idéias e seus impulsos agressivos tornam-se inseguros. Penso que imediatamente a criança assume o controle que acabou de ser perdido e
identifica-se com o novo quadro de referência familiar. Resultado: a
criança perde sua própria impulsividade e espontaneidade. O nível de
ansiedade é tão alto que o ato de experimentar, que poderia fazê-la
chegar a um acordo com a própria agressividade, torna-se impossível
[...] A tendência anti-social faz com que o menino se redescubra sempre que sinta alguma esperança de retorno da segurança, o que significa uma redescoberta da própria agressividade.
Ódio, amor, coragem, medo, sexualidade, conflito edipiano e vincular
estão sempre presentes nos sentimentos humanos, mas a forma de senti-los
e de expressá-los varia de acordo com os sistemas repressores desenvolvidos pelos controles sociais ao significar e re-significar as manifestações
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David Léo Levisky
isentos de responsabilidade psico-social, e contam com o beneplácito da
sociedade que, silenciosa, assiste o desenrolar da tragicomédia.
Cresce o número de jovens violentos, delinqüentes, prostituídos, drogados, deprimidos, desesperançados, suicidas, angustiados, anoréxicos,
obesos, adoecidos. Enquanto o sofrimento psíquico de uns indica a apatia
ou a indiferença, para outros pode ser a expressão e a fonte de inspiração de
ações transformadoras que tentam reverter o status quo e influenciar a
moral, a ética, a comunicação, o contexto psíquico, histórico e social do
seu grupamento.
A violência não é questão apenas de segurança pública e de repressão.
Ela está presente nas ruas, dentro das casas, nas escolas, nas empresas, nas
instituições, nos meios de comunicação. Crimes hediondos cada vez são
mais freqüentes e outras formas mais tênues de violência, como a falta de
cidadania, perda da solidariedade, desvalorização do próximo, ocorrem e se
banalizam, sem que se dê conta de que se está menosprezando a si mesmo.
Diz Winnicott (1967, p.74):
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pulsionais. A expressividade dessas manifestações varia de cultura para
cultura, e dentro de uma mesma cultura de época para época, na dependência das mentalidades5 e dos imaginários representativos de suas utopias,
crenças, ideologias, formas de pensamentos, anseios, temores e mecanismos defensivos coletivos e singulares predominantes de uma dada cultura.
São significados e significantes simbólicos que impregnam o contexto, presentes nas entrelinhas dos textos, como ícones culturais que se manifestam
através da linguagem das instituições. Linguagem que se faz representar
nas formas de estruturação e exercício do poder, no conteúdo dos valores
éticos e morais – influenciados pelas tecnologias – transmitidos através da
memória histórica de curta, longa e longuíssima duração. Enquanto numa
dada cultura certos aspectos pulsionais são liberados, noutra eles podem
ser reprimidos ou recalcados no inconsciente individual e/ou coletivo daquele contexto (FOUCAULT, 1998; GUIRADO, 1995).
Se o desrespeito aos pais já foi considerado pecado – motivo de penitências –, denunciá-lo também já foi enaltecido como prova de amor ao
povo e à ideologia. No mundo das “globarbaridades”, onde se colocar? Eis
a questão!
O poeta já havia assinalado que “a questão não é saber, pois, se um
homem é forte ou fraco, mas se pode aturar a medida de sofrimento, moral
ou físico, não importa, que lhe é imposta”.6
O adolescente de hoje vive num mundo, e em particular no Brasil, de
resquícios de uma mentalidade colonizadora e opressiva da ditadura, hoje
imposta pelo predomínio do capital, do uso da propaganda ilusória, da
corrupção manifesta que expressa um estado crônico de abandonos e de
5
Franco Júnior (2003) sugere como elementos básicos da mentalidade: 1 – a interseção entre o
biológico e o social; 2 – a relação entre as emoções primitivas e uma forma específica de racionalidade, por exemplo o predomínio do pensamento analógico na Idade Média; 3 - a abrangência
caracterizada pelo conjunto de automatismos, de comportamentos espontâneos, de heranças culturais profundamente enraizadas, de sentimentos e formas de pensamento comuns a todos os indivíduos, independentemente de suas condições sociais, políticas, econômicas e culturais, sendo a
mentalidade a instância que abarca a totalidade humana.
6
GOETHE. Os Sofrimentos do Jovem Werther, 177l.
450 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 445-463, 2005
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lutas vazias pelo poder em benefício de minorias. A democracia e as instituições democráticas em nosso meio são frágeis, afirma Angelina Peralva
(2001). As barbáries dos genocídios humanos se repetem nas guerras, nas
fomes, nas lutas religiosas, nas injustiças sociais que pipocam pelo mundo,
representando para uns o bem, enquanto, para outros, a mesma ação ou
pensamento é expressão do mal.
A vulnerabilidade ética varia rápida e intensamente, na dependência
de um conjunto cada vez maior de fatores que se interatuam, num movimento dinâmico, intenso e por vezes traumático, à medida que geram aumento de tensões, fragmentações e dissociações psíquicas. Vive-se com
maior liberdade de expressão aspectos particulares e singulares do self. Em
contrapartida, sente-se maior insegurança, incerteza e imprevisibilidade.
São condições de vida que dificultam a construção de parâmetros internos,
da organização da subjetividade, com repercussões no self, no ego, no superego, na identidade. Hiper ou hipo-estimulação, dificuldades na discriminação e escolha dos objetos libidinais, nas relações entre o virtual e o
concreto, o público e o privado, o particular e o singular, são estados geradores de confusão, tensão, inércia afetiva, e que interferem na elaboração
psíquica e na definição da identidade em seus múltiplos aspectos.
Nos adolescentes, os mecanismos defensivos podem sofrer exacerbações, distorções, fragmentações, como formas protetoras de um ego normalmente frágil devido ao processo de transição para a vida adulta, variável em intensidade e duração na dependência das características de cada
cultura – como a da globalização, que amplifica a livre expressão do self e
das particularidades e singularidades, mas que, em contrapartida, libera e
fomenta a expressão dos aspectos narcísicos, psicopáticos, perversos,
psicóticos, neuróticos e deficitários dos sujeitos. Esse processo é
incrementado pelas pressões externas que, quando altamente conflitantes e
geradoras de dissociações, tende a perturbar ou mesmo quebrar o equilíbrio egóico.
Vem aumentando o número de jovens que usa álcool e drogas, como
tranqüilizantes ou estimulantes, “pra ficar numa boa”. Não agüentam os
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estados de tensão ou a monotonia em que se encontram e buscam prazeres
imediatos. A sociedade “adulta” sabe disso e fomenta o seu uso pela omissão, negação ou vista grossa, e ainda estimula o uso através de sistemas de
propaganda subliminares ou mesmo explícitas, como ocorre em nosso
meio. Em relação ao tabaco, agora se tomou alguma providência, não pela
consciência de sua nocividade, mas e principalmente devido à relação custo/benefício, uma vez que pesados desembolsos eram feitos pelas companhias seguradoras para cobrir danos de seus assegurados e altas penalidades vêm sendo impostas às empresas fabricantes, que, conscientemente,
manipulam as informações.
A violência dos agentes traumáticos está na força que transgride os
limites dos seres humanos, na sua realidade física e psíquica, e no campo
de suas realizações sociais, éticas, estéticas, políticas e religiosas. É uma
força que desrespeita os direitos fundamentais do ser humano, sem os quais
o homem deixa de ser considerado sujeito de direitos e de deveres, e passa
a ser olhado como um puro e simples objeto, em todas as suas formas de
manifestação (ROCHA, 1996).
Esse conceito de violência está diretamente relacionado à compreensão dos agentes e fenômenos traumáticos internos e externos, que geram
pressões sobre o funcionamento mental, de modo que ele seja insuficiente
na continência e elaboração secundária decorrente de tais pressões, variáveis em cada cultura – hoje tendendo à homogeneização devido à difusão
midiática – e que agem sobre a estruturação e funcionalidade das atividades simbólicas e operacionais inconscientes do ego e do superego. Agem
de forma mitigada e contínua ou abrupta e avassaladora, de modo a interferir no desenvolvimento da subjetividade em vários níveis: individual,
interpessoal e transcultural. Essas forças psíquicas intoleráveis ferem os
princípios de constância e de realidade, e podem gerar mecanismos defensivos contra ansiedades neuróticas, psicóticas e de caráter. As descargas
podem se direcionar contra o próprio sujeito por meio de auto-agressões,
somatizações, exacerbação e regressões dos mecanismos defensivos do
452 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 445-463, 2005
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ego, paradas do desenvolvimento libidinal, acting out, regidas pelo princípio do prazer.
O adolescente – sensibilizado pela fragilidade egóica e pelas pressões
primitivas que invadem o ego em conflito e na busca de novos modelos
identificatórios – vive suas experiências afetivas e potencialidades construtivas, destrutivas, reparadoras e de auto-afirmação pressionado por forças internas e externas que acabam por gerar cicatrizes profundas na autoestima, quanto mais grave e perturbada tiver sido sua primeira infância.
Quando o jovem encontra um ambiente acolhedor, aberto e continente
a suas experiências e transformações criativas e que o valorize, ele se torna
sujeito e cidadão, solidário e participativo. Nossas experiências desenvolvidas no projeto Abrace seu Bairro – de incentivo ao protagonismo juvenil
no meio escolar, integrado e articulado com o bairro onde o jovem vive ou
estuda, com vistas à melhoria da qualidade de vida e prevenção à violência
– resultam em ações sociais edificantes para ele e para toda a comunidade.
O jovem se sente útil e sua auto-estima se eleva. Caso contrário, surgem a
delinqüência e outros desvios comportamentais que expressam não apenas
as tensões e turbulências inerentes ao adolescer, mas um incremento agressivo ou libidinal desmesurado, distorções egóicas que refletem o sofrimento psíquico e cujo significado latente precisa ser decodificado.
Na Idade Média Central vivia-se sob a égide do pavor do Juízo Final;
na contemporaneidade, vive-se o terror de sair às ruas devido à violência
que nos assombra. O encontro da paz não está na promessa de alcançá-la
no Além, como era no medievo ocidental, mas no aconchego que os inocentes encontram por detrás das grades e muros em que se enclausuram
para se livrar do perigo gerado por aqueles que andam livres e impunes
pelas ruas, caracterizado tão bem pela psicanalista Inaura Carneiro Leão no
poema Rio Cidade Maravilhosa: grades, grades, grades....
O psiquismo humano carrega, ao longo de sua história, um sentimento
de impotência e de desamparo em sua luta eterna para desenvolver processos adaptativos e ser continente do conjunto de pressões internas e externas
na busca da felicidade – que uns dizem encontrar na espiritualidade, em
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ADOLESCÊNCIA
Deus; outros, no consumo. A busca da felicidade parece ser a utopia que
nos auxilia a viver, que dá um sentido ao tempo vital presente na generosidade humana quando o sujeito tenta equilibrar realidades internas e externas nesse caleidoscópio que é a mente, cujas imagens se constroem e
descontroem em maior ou menor velocidade no encontro de vivências suportáveis. São fenômenos que decorrem das fantasias conscientes e inconscientes, das partes conflitantes e antagônicas do self, parcialmente
projetadas no mundo exterior, em seus confrontos com as realidades externas e objetivas, das quais somos vítimas e agentes.
Nesse mundo complexo e de incertezas, os adolescentes têm de se
desenvolver e construir mecanismos defensivos e condutas adaptativas que
possibilitem a auto-afirmação do self projetado na sociedade.
Cada vez mais a depressão, o suicídio, as doenças psicossomáticas, a
violência tomam conta de crianças e adolescentes. Explora-se o sexo, adultos molestam crianças, as doenças sexualmente transmissíveis aumentam e
atingem um número cada vez maior de jovens.
Vive-se numa sociedade carente de pai e mãe. Faltam limites e critérios norteadores, continentes das ansiedades cotidianas que se exacerbam.
Pretende-se a liberdade edificante, mas juntamente produz-se a liberalidade frustrante. Fatos que levam a sugerir que o analista e seu paciente precisam tornar-se cônscios não somente do mundo interno, mas também da
biografia, do contexto histórico pessoal e cultural de cada um para que
possam melhor alcançar as linguagens e os códigos internos, conflitantes
entre si e com o meio exterior na constituição de suas subjetividades.
Na Idade Média Central, início do pensamento ocidental moderno,
pretendeu-se controlar a vida pulsional por meio da teocracia da Igreja. A
partir daquele imaginário, acreditavam que a paz e a felicidade estavam na
submissão às palavras de Deus e o destino da alma dependia do julgamento
na hora do Juízo Final. Violências, prova do ordálio, inquisições, massacres foram cometidos por homens que, em nome de Deus, da fé e da Igreja,
controlavam e propagavam o encontro da felicidade e da paz no Além. A
Igreja submetia o sujeito às suas filosofias maniqueístas, manipuladoras,
454 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 445-463, 2005
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 455
David Léo Levisky
repletas de simonias e de interferências na vida social em suas diversas
formas, no intuito de preservar poderes terrenos e celestiais, numa visão
imperialista de universalização de seus princípios.
O adolescer medieval era carregado e conflituoso, porém os agentes
traumáticos internos e externos tinham características próprias do medievo,
ainda que o processo de transição para a vida adulta fosse essencialmente o
mesmo. Os recursos egóicos e superegóicos eram outros, a predominância
dos mecanismos defensivos também, mas o conflito entre o primitivo e o
atual decorrente dos des-investimentos infantis e re-investimentos da vida
adulta estavam lá (LEVISKY, 2004).
Esse passado-presente equivale ou pouco difere em sua essência daquele que se observa na atualidade: religiosos fanáticos ou países que se
intitulam defensores da democracia e que empregam formas de propaganda, de submissão, de manipulação e de convencimento em suas tentativas
de impor controles, valores e princípios como forma de sobrevivência ou
de expansão das áreas de influência. Vive-se uma revolução ética.
Acompanhamos as constantes ameaças dos perigos atômicos, da
volatilidade econômica, que interferem direta e indiretamente nos contextos, nas mentalidades, nos imaginários, nas construções dos vários níveis
de subjetividade.
A construção do sujeito psíquico sofre interferências conscientes e
inconscientes nas configurações das várias linguagens que nele se inscrevem e que escrevem os direcionamentos da vida inconsciente, do mais primitivo e remoto às suas memórias mais recentes.
As questões ambientais refletidas no acordo de Kioto, as organizações
que buscam a paz, como a ONU, são exemplos de esforços extraordinários
para contrabalançar as forças destrutivas humanas, exacerbadas pelas características da vida contemporânea globalizada, cujos valores e tecnologia
se transformam em velocidades incríveis, diante das quais cada um de nós
é co-responsável pelos benefícios e traumas que acompanham o processo
de construção do sujeito psíquico.
Há, principalmente entre os jovens, sentimentos generalizados de im-
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ADOLESCÊNCIA
potência, desesperança, descrença, desconfiança que tendem a se cronificar
e se tornar um valor da cultura, como é a banalização do crime, do sexo, da
violência. São estados mentais que ferem a auto-estima individual e coletiva, condições geradoras de insegurança e de incerteza.
Não se pode negar a presença e a expansão dos movimentos sociais,
comunitários, das ONGs, que através de suas redes incentivam o
protagonismo juvenil e tendem a amenizar os aspectos destrutivos do contexto e gerar esperança na busca de novos rumos. Mas há um sentimento de
que tais iniciativas em nosso meio, e talvez no mundo, sejam gotas d’água
num oceano agitado; que passado o momento de ação e emoção se diluem
frente às novas situações e vivências que afogam a iniciativa anterior. Mesmo assim, acredito que é preciso prosseguir, pois o vetor resultante depende das ações das diferentes pressões que agem na relação sujeito/sociedade/cultura no encontro de melhores estados de equilíbrio entre a
estruturação da natureza humana e suas capacidades adaptativas e de sobrevivência e as pressões que surgem em decorrência da própria evolução
humana. Vê-se que a qualidade do equilíbrio mental humano é dinâmica e
instável, oscila com a cultura e com as transformações tecnológicas e históricas que agem sobre a vida pulsional e simbólica do homem.
Temos a experiência de crianças e adolescentes que sofrem um verdadeiro “genocídio de almas”. As relações afetivas primárias estão extremamente deturpadas pela ausência ou má qualidade dos vínculos primários,
cujas resultantes comprometem e deixam feridas profundas na auto-estima, no desenvolvimento das potencialidades afetivas, cognitivas,
conativas, criativas e reparadoras.
Nesses jovens há um comprometimento do objeto e do espaço
transicional, das funções simbólicas, dos processos perceptivos e
discriminatórios, da organização das relações self/objeto primitivo. É só
acompanhar de perto o ensino público e a maneira como são tratados os
jovens, geralmente como depositários de um saber e limitada capacidade
crítico-analítica. Vivem estados de abandono, salvo alguns diretores abnegados que conseguem se envolver para atenuar as dificuldades existentes, e
456 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 445-463, 2005
7
Falhas na vida relacional primitiva comprometem capacidades básicas, tais como a “busca de
objeto” expressa no ato de roubar, bem como a capacidade de “experimentar pesar e desesperança” (Winnicott). Comprometem a organização do self primitivo e o descobrimento dos potenciais
e das relações entre construtividade, destrutividade e criatividade, a noção dos limites internos e
sociais e, portanto, da própria liberdade. Submissão e apatia são atitudes comportamentais que
geralmente antecedem as manifestações anti-sociais. Os fracassos sucessivos das relações iniciais
podem deixar marcas profundas que afetam o desenvolvimento estrutural e funcional dos aspectos
egóicos primitivos e sua evolução posterior (LEVISKY, 1997).
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David Léo Levisky
que são enormes. Aqueles que estão em confronto com a lei e encaminhados à FEBEM (Fundação do Bem-Estar do Menor) para serem re-integrados à sociedade são submetidos a condições sub-humanas de tratamento.
Prevalece o clima prisional ou de campo de concentração nazista. Emprega-se a psicologia do medo, da agressão, e assim pretende-se re-integrá-los
à sociedade na base da violência, em ambiente de profunda corrupção e
carência de recursos devido à omissão do Estado e ao silêncio da sociedade.
Os adolescentes e crianças, em plena fase de desenvolvimento, vulneráveis às influências do meio na constituição do aparelho psíquico e suas
potencialidades, necessitam encontrar na realidade exterior nutrientes
identificatórios, afetivos, cognitivos, vivenciais, valores a serem incorporados na construção das subjetividades. A psicanálise possui toda uma série de teorias do desenvolvimento da vida inconsciente e não pode se furtar
de participar dessa luta contra traumas precoces, que tendem a aniquilar as
capacidades do sujeito psíquico. A experiência mostra que, em sua maioria, quando tais crianças e jovens encontram carinho, consideração, continuidade nas relações e nas comunicações, ressurgem a esperança e a vitalidade. Caso contrário, saem para a vida aprimorados no crime, uma vez que
já foram violentados em sua dignidade.
Winnicott afirma que: “Tudo começa em Casa”, isso se considerarmos a casa como a primeira célula representativa da sociedade. Porém,
muitos nascem nas ruas ou com casas perversamente destruídas pelo processo social. São almas sem vida ou que precocemente serão deturpadas
pelo meio do qual se nutrem. São crianças e jovens que não têm a oportunidade de viver suas potencialidades criativas, voltadas para sua integração
pessoal e social.7
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É preciso um esforço hercúleo e de todas as nações para atenuar os
problemas psicológicos e sociais que atingem milhões de jovens desde o
nascimento – crianças ou jovens que, em grande parte, são frutos da própria sociedade. Muitos querem vê-los mortos, ainda que de forma inconsciente, diante da negação inconsciente que existe ao se encararem as questões de co-responsabilidade nos processos de construção das intra, inter e
transubjetividades que dependem das relações com a cultura.
A sociedade e o Estado pouco se envolvem e fazem para atenuar a
quantidade de problemas que se avolumam. Direta e indiretamente contribuímos para a geração da delinqüência juvenil, que pode ser a última tentativa, ainda que inconsciente, dos jovens de serem ouvidos e existirem.
Poucos são os jovens delinqüentes cuja perturbação mental tem origem em doenças mentais irreversíveis. Geralmente elas se cronificam pelo
abandono e omissão, com cristalização das estruturas psíquicas, de vivências e imaginários de caráter primitivo auto e hetero-destrutivos, e que são
valores de suas culturas. Há muitas situações de desagregação familiar com
maus tratos, abusos físicos e psicológicos, alcoolismo, drogas, prostituição
infantil, exploração do menor e abandono. Situações que atingem pobres e
ricos sem exceção.
A menina de 12 anos que se prostitui é estimulada pela mãe, que implora para que se entregue a americanos, holandeses, alemães, italianos,
franceses que vêm com dinheiro para cá para fazer turismo sexual. Em
troca de um prato de comida, irmãos doentes, pai alcoólatra, a menina angustiada se vê coagida, agredida e culpabilizada pela mãe, que a considera
ingrata e egoísta ao negar-se submeter ao peso e à penetração daqueles que
deixarão dentro dela o fruto de sua diversão. São meninas que têm sua
infância violada, violentada. A auto-estima destruída pelos pais, pela realidade social, política, econômica, historicamente organizada, pela penetração da riqueza perversa da superioridade econômica, daquele que troca o
prazer da carne pela carne do prazer. É a vida por um prato de comida.
Ninguém é responsável. Dirão uns que a menina é malcriada, responsável
por desobedecer a seus pais, por não saber dizer não às tentações, pecado458 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 445-463, 2005
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ra. Só lhe resta a delinqüência como grito de desespero diante da surdez da
sociedade, das autoridades públicas, que a excluem como fruto do mal. Seu
fim é a reclusão numa instituição tipo FEBEM.
Lá, é tratada como vadia, puta ou doente mental. Reclusa, vive em
condições sub-humanas. Apanha, com vistas a alcançar a re-integração
sócio-educativa. Nesse meio tempo, tem de aprender a conviver com as
máfias das benesses, das drogas, da prostituição existente nesse submundo,
cuja autoridade máxima é a corrupção e a desfaçatez. A rebelião e a fuga
podem ser uma das únicas formas de serem percebidas e ouvidas, não importando a que preço. Já foi agredida e agrediu tanto na vida que fica
anestesiada diante de novas situações. Winnicott já havia salientado que a
delinqüência pode conter, em meio ao ódio, um grito, um clamor, uma esperança de o adolescente ser ouvido e poder sentir-se existir, ser alguém e
não uma coisa.
O jovem infrator busca, através do ato delinqüencial, a presença dos
pais, da família, da lei, de substitutos institucionais equivalentes aos pais e
à família que deveria ter tido, capazes de modular a vida pulsional e de
poderem introjetar valores que dêem a ele um re-significado à vida. Frustrado pela cronicidade da exclusão, sem perspectivas, aprimora–se no crime, na violência, na indiferença, como um câncer que se alastra na malha
social. Sofre com o fato de que o pai simbólico não está internalizado. A
função materna representada pela capacidade de continência institucional
ou da sociedade está ausente. A instituição que o acolhe representa a sua
família. A aplicação da lei se constitui na criação de um espaço simbólico
dinâmico e aceitável pela sociedade, semelhante ao que ocorre dentro de
casa, nas relações familiares, onde necessitaria encontrar os limites desejáveis, definidos pelos pais e pela sociedade. Do confronto dos filhos na relação parental nascem as relações estruturantes.
Quando amados, considerados e tratados com dignidade, em sua
maioria recuperam a auto-estima e retornam à sociedade de forma
participativa e generosa. Os sentimentos de gratidão e reparação re-nascem
de uma relação que se sustenta em vínculos de confiança, capazes de su-
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portar descargas agressivas e amorosas, até se transformarem em sentimentos mais elaborados e pensamentos. Caso contrário, a repressão e o
confinamento como meios educacionais apenas incrementam o ódio, a desconfiança e o desejo de vingança.
É necessário apresentar ao jovem condições que limitem e modulem a
vazão de sua impulsividade, mas que, ao mesmo tempo, lhes ofereçam
meios alternativos e estruturantes para transformar seus impulsos agressivos, libidinais e criativos em ações sociais suportáveis. As práticas esportivas, artísticas, comunitárias, educativas e profissionalizantes são fundamentais para a construção do jovem e sua integração psico-social. A Paidéa
já demonstrou isso há muitos séculos, mas vivemos em uma “Torre de
Babel”.
A Psicanálise, com suas teorias sobre o desenvolvimento humano e
formação das subjetividades, tem o dever e a responsabilidade de intervir
nas práticas sociais e contribuir para a re-construção de novos parâmetros
éticos que possibilitem a convivência entre as diferenças, particularidades
e singularidades em meio a semelhanças.
Ao Estado – com a colaboração da sociedade – compete organizar,
gerenciar, preservar e fiscalizar condições de bem-estar para o desenvolvimento de suas crianças e jovens. Não basta apenas a lei – o Estatuto da
Criança e do Adolescente –, se as ações do Estado e da Sociedade não
correspondem ao que a Lei preconiza. O discurso fica esquizofrênico. Não
bastam apenas prédios bem edificados para a recuperação do menor infrator nem reduzir a idade de responsabilidade penal, se não houver uma
metodologia que respeite a importância dos vínculos afetivos e cuja comunicação não utilize um discurso de aparências e conveniências, mas que
conduza a um encontro sincero, realista e de esperança, conjunto difícil de
ser desenvolvido.
Birman (1994) salienta que o discurso freudiano se articula de maneira indissolúvel com a categoria de sujeito, com os registros da significação
e da história, e considera impossível a separação de sujeito, sentido e
historicidade. Concepções que possibilitam a construção do conceito de
460 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 445-463, 2005
Resumo
O autor apresenta, neste trabalho, fatores múltiplos e complexos, endógenos
e exógenos, que participam da constituição dos agentes organizacionais e traumáticos do funcionamento mental consciente e principalmente inconsciente, em que
o biológico, o psicológico, o social e a cultura se encontram. Situa a criança e o
adolescente neste contexto e enfatiza, entre outros aspectos, o processo de identificação na construção do sujeito psíquico.
Palavras-chave
Trauma. Adolescência. Subjetividade. Exclusão. Identificação.
Abstract
Trauma and Adolescence
The author presents in this work multiple and complex factors, both
endogenous and exogenous, that have a part in making up the organizational and
traumatic agents in the conscious and mainly unconscious mental functions where
biological, psychological, social, and cultural factors all come together. It sets the
child and adolescent in this context and focuses on, among other aspects, the
identification process in the continuation of the psychic being.
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David Léo Levisky
inconsciente, cujos sentidos inscritos nos sintomas e na vida simbólica precisam ser decodificados, uma vez que estão fora do campo da consciência.
Diante da oportunidade que me foi dada de comunicar aos colegas
minha compreensão histórico-psicanalítica da relação trauma-adolescência na cultura atual, clamo à comunidade nacional e internacional que se
manifestem contra os maus tratos, as ações traumáticas decorrentes das
“globarbaridades”, os “genocídios de mentes” que se expandem pelo mundo. Clamo, pois o espectro do Juízo Final da Modernidade nos ameaça com
a desconstrução ética – arma das guerras pós-modernas – que atinge pobres
e ricos. A psicanálise precisa estar presente nas práticas sociais para contribuir com sua teoria e técnicas na re-construção da esperança e de novos
rumos. Assim, nossos jovens, filhos e netos poderão se orgulhar de si e
também de seus pais e avós.
TRAUMA
E
ADOLESCÊNCIA
Key-words
Trauma. Adolescence. Subjectivity. Exclusion. Identification.
Resumen
Trauma y Adolescencia
El autor presenta en este trabajo factores múltiples y complejos, endógenos
y exógenos que participan de la constitución de los agentes organizacionales y
traumáticos del funcionamiento mental consciente y principalmente inconsciente, donde lo biológico, lo psicológico, lo social y la cultura se encuentran. Sitúa al
niño y al adolescente en este contexto y enfatiza, entre otros aspectos, el proceso
de identificación en la continuación del sujeto psíquico.
Palabras-llave
Trauma. Adolescencia. Subjetividad. Exclusión. Identificación.
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462 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 445-463, 2005
Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Trabalho apresentado no 44º Congresso Internacional de
Psicanálise da IPA. Rio de Janeiro, 2005.
Dr. David Léo Levisky
Rua Bruno Lobo, 218 - Butantã
05578-020 – São Paulo – SP – Brasil
Fone: (11) 37221654
E-mail: [email protected]
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 463
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TRAUMA
E
ADOLESCÊNCIA
464 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 445-463, 2005
Introdução
Laura Ward da Rosa
Médica; Psicanalista; Membro
Associado da Sociedade
Brasileira de Psicanálise de
Porto Alegre.
O encontro com o Outro representa para o ser humano, que nasce
imaturo, bem mais do que a aquisição de alimento e garantia de sobrevivência. Através da interação entre
esses dois seres, constrói-se também a vida imaginativa e a capacidade simbólica, que ultrapassa a
realidade material e possibilita a ascensão à realidade psíquica, condição indispensável para a sua
maturação. Segundo as condições
em que esse encontro se dá, resultará maior ou menor vivência de trauma, descrito como um excesso de
excitações para as quais o aparelho
psíquico ainda não se encontra preparado. A condição de imaturidade
do bebê humano, nascendo num
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 465
Laura Ward da Rosa
Trauma e
Construção do
Imaginário
TRAUMA
E
CONSTRUÇÃO
DO IMAGINÁRIO
momento anterior à capacidade de entender o significado das sensações
captadas pelo sistema perceptivo, favorece a vivência traumática por parte
do infans. Nesse sentido, podemos deduzir que a experiência do trauma é
inerente ao desenvolvimento, sendo ele, na dimensão temporal, sempre
precoce, e na dimensão econômica, sempre excessivo. Por outro lado,
Freud descreveu o trauma como um desdobramento em dois tempos: só
num segundo tempo, no a posteriori (nachtraglichkeit), é que a primeira
cena, que originara as primeiras inscrições no inconsciente, ganha o seu
caráter patogênico. Daí a afirmação de Freud de que os histéricos sofrem
de reminiscências.
Breve Histórico do Conceito de Trauma em Freud
Falar de trauma em psicanálise significa reportar-se às origens, lá mesmo quando Freud ouvira o relato de Breuer do caso Anna O. (atendida por
este entre 1880 e 1882) e quando viajara a Paris para estudar com Charcot,
na Salpetrière, no ano de 1885. O mestre francês, que grande impressão
causara em Freud, já descrevera um caso de paciente do sexo masculino,
portador do que chamou “histeria traumática”. Tratava-se da ocorrência de
sintomas histéricos em paciente considerado antes não-neurótico, que passara a apresentar tais manifestações após sofrer um acidente ferroviário.
Freud descobre que as manifestações clínicas coincidem com as das pacientes que observara, do sexo feminino, portadoras de histeria. Numa carta a Breuer, em 1892, nos esboços para a Comunicação Preliminar, Freud
explicita como fatores indispensáveis para a histeria – a necessidade do
splitting, o elemento constante de um retorno a um estado psíquico que o
paciente já experimentara antes, portanto, a uma lembrança traumática –,
acrescentando: “o grande trauma isolado pode ser substituído por uma série de traumas menores que se interrelacionam por sua semelhança ou pelo
fato de fazerem parte de uma história penosa”. Na publicação conjunta dos
Estudos sobre a Histeria (1893-1895), concluem que os sintomas histéricos resultam de traumas psíquicos em que um conflito reprimido se expressava por um afeto dissociado e convertido no corpo. Freud, dedicando466 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 465-482, 2005
Assim, um evento sexual ocorrido numa fase determinada atua sobre a
fase seguinte como se fosse um evento atual e, por conseguinte, não é
passível de inibição. O que determina a defesa patológica – a repressão
–, portanto, é a natureza sexual do evento e sua ocorrência numa fase
anterior.
Em agosto de 1897, na carta 67, Freud confessa-se atormentado por
dúvidas quanto à sua teoria das neuroses e, já em setembro do mesmo ano,
na carta 69, comunica a Fliess o seu grande segredo: “Não acredito mais
em minha neurótica”, referindo-se ao abandono da teoria da sedução, e
acrescenta seus motivos: conclusões de sua auto-análise, da impossibilidade de responsabilizar todos os pais, o seu inclusive, como perversos, o que
levaria a perversão a ser mais freqüente do que a histeria, a ausência de
êxito no tratamento das histéricas, a deserção de muitas pacientes e, finalmente, a descoberta da fantasia sexual relacionada aos pais e a verdade da
realidade psíquica. Completava-se aqui, então, a trajetória do neurologista
e iniciava a caminhada do psicanalista, enveredando pelos labirintos da
verdade do inconsciente e da vida fantasmática, rompendo com o
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 467
Laura Ward da Rosa
se a uma escuta diferenciada, detecta que os traumas psíquicos referiam-se
a experiências da infância e ligavam-se à vida sexual dos pacientes, vividas
como cenas de sedução por parte de um adulto, principalmente do pai.
Surge aqui a idéia do trauma correlacionado a um agente, a um outro significativo causador da experiência traumática. Na carta 52 a Fliess (1896),
dedica-se a examinar a questão da memória, estabelecendo que os traços
de memória, de tempos em tempos, sofrem retranscrições, rearranjos, construindo-se o aparelho psíquico por estratificação. Quanto mais as lembranças retornam, mais são inibidas na produção de prazer. Somente os eventos
sexuais não sofrem diminuição e seguem se comportando como eventos
atuais, devido às magnitudes de excitações que tendem a se incrementar
após a puberdade. Afirma Freud:
TRAUMA
E
CONSTRUÇÃO
DO IMAGINÁRIO
paradigma da consciência e da racionalidade do pensamento psicológico e
filosófico-científico do século XIX.
A idéia do trauma segue sendo objeto de estudo por Freud. Assim, em
Além do Princípio do Prazer (1920), referindo-se às neuroses traumáticas,
Freud estabelece como traumáticas as excitações provindas de fora que
rompem a barreira, antes eficaz, contra estímulos, ao que chama de “escudo protetor”, salientando que o excesso de energia inunda o aparelho psíquico, pondo fora de ação o princípio do prazer. As manifestações de
compulsão à repetição teriam um caráter pulsional, opondo-se ao princípio
do prazer, e funcionariam à semelhança de forças “demoníacas”. Os traços
de memória recalcados das experiências traumáticas da infância encontram-se em estado não-ligado, por isso funcionam segundo o processo primário. Justamente esse não-ligado, incapaz de obedecer ao processo secundário, é que determina a compulsão à repetição na transferência ao analista das experiências primárias da infância e que, por ser móvel , conjugase aos restos diurnos para formar as fantasias de desejo nos sonhos.
O Imaginário em Freud
O mundo imaginário em Freud tem por característica transitar tanto
pelo sistema consciente como pelo inconsciente. Inicialmente, trabalhando
com as histéricas, buscava a reprodução das cenas originárias de produção
do trauma. Assim, no Rascunho L., a Fliess, de maio de 1897, intitulado
Arquitetura da Histeria, Freud escreve:
O objetivo consiste em chegar às cenas primárias, o que em alguns
casos se consegue diretamente, porém em outros somente através de
longos rodeios pela fantasia. As fantasias são, efetivamente,
antepórticos erigidos para bloquear o acesso a essas recordações. Ao
mesmo tempo, as fantasias servem à tendência de refinar as recordações, de sublimá-las. Estão construídas de coisas ouvidas e somente
depois aplicadas, de maneira que combinam o vivenciado com o ouvido, o passado (da história dos pais e antecessores) com o presenciado
pelo próprio sujeito.
468 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 465-482, 2005
Elas (as fantasias) são, por outro lado, altamente organizadas, nãocontraditórias, aproveitam todas as vantagens do sistema Cs, e o nosso
discernimento teria dificuldade para distingui-las das formações desse
sistema; por outro lado, são inconscientes e incapazes de se tornarem
conscientes. É a sua origem (inconsciente) que é decisiva para o seu
destino.
O que é importante na fantasia é a presença do outro ou de outros
como personagens em cenas que se repetem e que são relatadas pelo analisando com um roteiro de caráter enigmático, que necessita ser decifrado ao
longo do tratamento. A realidade objetiva perde terreno frente às manifestações do desejo inconsciente, expressos pela fantasia. Todo o tratamento
analítico passa, dessa forma, pela busca da fantasia subjacente às formações do inconsciente, como os sintomas, os sonhos, os atos falhos, os
chistes, bem como pelo acting-out e comportamentos de repetição, sendo
detectável pela fala em livre associação ou por atos do analisando e pela
transferência, cenário de reedição das fantasias infantis relacionadas às figuras parentais. O sujeito está sempre presente, nessas cenas, como vítima
ou espectador de um roteiro perverso, uma vez que o conteúdo recalcado
está ligado à sexualidade infantil, havendo um caráter enigmático que mobiliza o paciente como algo que lhe é imposto de fora. Sabemos que a
representação recalcada pode servir de pólo de atração para outras repreSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 469
Laura Ward da Rosa
Vemos aqui que Freud utiliza o termo fantasia (phantasie) como equivalente a sonhos diurnos ou devaneios conscientes, relacionados a cenas,
episódios, lembranças, que a histérica criaria como característica da riqueza da sua imaginação. Já no capítulo 7 de A Interpretação dos Sonhos,
porém, irá correlacionar mais claramente a fantasia no sentido tópico de
nível inconsciente, considerando-a como expressão de um desejo que desencadearia todo o processo de formação do sonho. Segundo Laplanche e
Pontalis (1994), Freud não explicita, mas utiliza o termo em diferentes níveis, consciente ou inconsciente, sendo que nos dá uma definição
metapsicológica mais abrangente na seguinte afirmação:
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CONSTRUÇÃO
DO IMAGINÁRIO
sentações insuportáveis, mantenedoras de um contra-investimento que
mobiliza o desejo inconsciente em busca de satisfação. Enquanto o sintoma é o elemento que aparece de entrada na análise e é falado pelo analisando, a fantasia é algo a ser buscado pelo psicanalista, como obtendo o paciente, com ela, um prazer secreto que evita revelar. Freud mesmo, ao
considerá-la um “sonho diurno”, admitia a fantasia como uma produção
imaginária que proporcionava um certo grau de consolação, de prazer, ao
contrário do sintoma, expressão do desprazer.
O Imaginário em M. Klein
A escola kleiniana caracteriza-se pela valorização da fantasia
(phantasy) e do mundo intrapsíquico. Melanie Klein, em seu trabalho Nosso Mundo Adulto e suas Raízes na Infância (1963), citando Susan Isaacs,
reafirma: “A fantasia é o corolário mental, a representação psíquica do instinto. Não há impulso, nem pressão ou resposta instintiva que não se experimentem como fantasia inconsciente”. Discordando de Freud, acrescenta:
As fantasias inconscientes não são o mesmo que devaneios (embora a
eles estejam vinculadas), mas uma atividade da mente que ocorre em
níveis inconscientes profundos e acompanha todo impulso experimentado pela criança.
Logo após o nascimento, na relação de objeto parcial com o seio, a
criança já desenvolveria fantasias conectadas aos mecanismos introjetivos
e projetivos, defendendo-se da ansiedade persecutória, sendo elas os fatores indispensáveis à constituição do mundo interno, como um reflexo do
mundo externo.
O Imaginário em Lacan
Devemos a Jacques Lacan o uso da palavra “imaginário”, como substantivo, bem como a valorização do conceito que antes, por vezes, se confundia com o “ilusório”, algo fruto da imaginação ou fora da realidade.
470 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 465-482, 2005
Basta compreender o estádio do espelho como uma identificação, no
sentido pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem – cuja
predestinação para esse efeito de fase é suficientemente indicada pelo
uso, na teoria do antigo termo imago.
A função do estádio do espelho seria estabelecer uma relação do
Innenwelt com o Umwelt, isto é, integrar o eu interior sob ameaça de fragmentação (corps morcelé) com o mundo externo, através da identificação
com o outro especular, que proporciona a integração, uma espécie de
prótese na progressiva construção da auto-imagem. Constatamos aqui uma
identidade alienante presente nas relações imaginárias, característica dos
processos narcísicos, em que o sujeito permanece alienado na imagem do
outro especular, que na verdade é seu duplo, seu alter ego. Se, por um lado,
a imagem de si é formada a partir da identificação com o outro que garante
o reconhecimento do eu, ela está em permanente ameaça de fragmentação.
Na clínica, constatamos a necessidade de muitos pacientes, capturados no
eixo imaginário, de fazerem sintomas ou marcas no corpo como a busca de
uma imagem que confirme a sua existência, devido a angústias determina-
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 471
Laura Ward da Rosa
Para Lacan, o imaginário é a base da constituição do EU (moi) no Estádio
do Espelho e tem um poderoso efeito no psiquismo, a ponto de incluí-lo, a
partir de 1953, no seu esquema triplo dos três registros: o real, o imaginário
e o simbólico. O imaginário, longe de ser de importância menor em relação
ao simbólico, é, pelo contrário, estruturado pela ordem simbólica. Lacan
fala numa “matriz simbólica” em que o Eu se precipitaria antes da identificação com o outro. Em seu trabalho de 1949, O Estádio do Espelho como
Formador da Função do Eu, Lacan nos dá uma magnífica descrição da
construção imaginária através “do espetáculo cativante do bebê diante do
espelho”, a partir dos seis meses de vida, ainda precisando ser sustentado
por alguém. Diz-nos textualmente:
TRAUMA
E
CONSTRUÇÃO
DO IMAGINÁRIO
das pela ameaça de fragmentação, marcas corporais essas que funcionam
como defesas narcísicas frente à ameaça de desmantelamento do eu.
O esquema L estabelece bem a distinção entre a ordem imaginária e a
ordem simbólica, correspondente à distinção entre o Eu (Moi) e o Sujeito
(Je) do inconsciente. O esquema R introduz o campo das experiências da
realidade entre os dois triângulos invertidos. Nele se representa a imagem
do corpo, elemento ilusório e enganador, que vem a ser o fundamento essencial de referência do sujeito à realidade, razão pela qual o eu é originalmente paranóico. Também nesse campo se encontram as primeiras identificações e o ideal do eu.
Esquema L
Esquema R
472 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 465-482, 2005
Lacan critica o conceito freudiano e kleiniano de fantasia, considerando que ele funciona como uma “parada na imagem”, isto é, está restrito ao
imaginário, como uma defesa contra o traumático da castração. Passa, então, a usar a palavra fantasma, derivada do grego, para designar a fantasia
dentro de uma estrutura significante, isto é, simbólica. Concebe uma fórmula, a que chama matema, para o fantasma e o insere em sua representação gráfica do desejo, a que denomina grafo. O matema expressa, no grafo
do desejo, a relação lógica de sujeição ao Outro, onde se formula a pergunta: “Che vuoi?” – Que queres? –, nunca respondida. O fantasma tem uma
estrutura própria e se inscreve numa relação não-simétrica, numa sujeição
originária no desejo do Outro. O sujeito barrado é dividido pelo significante
que o constitui.
Lê-se: sujeito barrado (por efeito do significante) punção do objeto a.
Punção significa: todas as relações possíveis, menos a igualdade. Logo
podemos entender que a fórmula expressa: sujeito do inconsciente em relação assimétrica com o objeto-causa do desejo.
O Objeto pequeno a é conceituado por Roudinesco e Plon, no Dicionário de Psicanálise (1998), como:
Termo introduzido por Jacques Lacan, em 1960, para designar o objeto desejado pelo sujeito e que se furta a ele a ponto de ser nãorepresentável, ou de se tornar um ‘resto’ não simbolizável. Nessas condições, ele aparece apenas como uma ‘falha-a-ser’, ou então de forma
fragmentada, através de quatro objetos parciais, desligados do corpo:
seio, fezes, a voz e o olhar, objetos do próprio desejo.
Para Lacan, o objeto a, que considerava sua contribuição efetiva à
psicanálise, define-se como simultaneamente real, simbólico e imaginário.
Ele será real enquanto impossível de simbolizar – como um furo; será simSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 473
Laura Ward da Rosa
Distinção entre Fantasia e Fantasma
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DO IMAGINÁRIO
bólico, enquanto contingencial, passível de substituição – por exemplo, o
carretel substituindo a mãe, no brinquedo do fort-da; será imaginário no
plano do fantasma – por exemplo, o fetiche, na perversão, ou como representação recalcada e denegada (verneinung), na neurose (como afirmava
Freud, a neurose como negativo da perversão). Lacan e Granoff, em
Fetichismo: o simbólico, o imaginário e o real (1956) acentuam a importância da verleugnung ou renegação da idéia reprimida como mecanismo
que lança o sujeito no campo do significado em detrimento do significante,
obrigando-o a permanecer capturado na imagem e a dar realidade ao imaginário, criando o fetiche, em vez de imaginarizar o símbolo (falo). Somente
podemos decifrar o imaginário se o traduzirmos em símbolos. Nesse sentido, o fetichista não o faz e, por isso, constrói um objeto fetiche que expressa, no real, o imaginário.
O fantasma não é, portanto, obra de alguém, mas o efeito, ao mesmo
tempo, da ação do objeto a e do corte do significante. O motor do fantasma
é, assim, o objeto pequeno a, causa do desejo, aquele resto não-simbolizável, furo na estrutura. A encenação fantasmática se organiza em torno desse furo que funciona como lugar do gozo. Afirma Lacan, no Seminário 11
(1985):
O sujeito é um aparelho. Esse aparelho é algo de lacunar e é na lacuna
que o sujeito instaura a função de um certo objeto, enquanto objeto
perdido. É o estatuto do objeto a, enquanto presente na pulsão. No
fantasma, o sujeito é despercebido, mas ele está sempre lá, quer seja
no sonho, no devaneio [...] O sujeito se situa a si mesmo como determinado pelo fantasma. O fantasma é a sustentação do desejo, não é o
objeto que é a sustentação do desejo.
Aqui penso ser muito ilustrativo o exemplo de Freud em seu relato do
Homem dos Ratos. O paciente relata o seu fantasma: “Toda a vez que desejo ver uma mulher nua, meu pai deverá morrer”. Detectamos todos os elementos essenciais da estrutura fantasmática: a pulsão escópica, o desejo, a
mulher, o pai (e o pai morto) e, por certo, o sujeito. Para Freud, apresenta474 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 465-482, 2005
Grafo do Desejo
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 475
Laura Ward da Rosa
se um excepcional cenário edípico em Paul Lorenz, núcleo da neurose obsessiva. Então, o analisando conta uma de suas lembranças da infância,
quando uma governanta, jovem e bonita, permitira a Paul enfiar-se por
baixo de suas saias, com a condição de não contar para ninguém, permitindo que a tocasse nos genitais, onde o menino encontrou algo “curioso”.
Desde então, o rapaz viveu atormentado pelo desejo de olhar corpos femininos nus. O significante “curioso” leva, então, Freud a identificar o curioso no relato: o paciente chamava a governanta pelo sobrenome masculino,
o que não era habitual na burguesia de Viena, deduzindo, então, que isso se
conectava à falta de pênis na mulher. Na transferência, o paciente passa a
incluir Freud no seu fantasma perverso anal sádico, o da tortura com os
ratos, colocando Freud no papel de torturador – numa ocasião o chama de
“ Capitão”. Freud trata de fugir desse lugar, recusando-se a desempenhar
tal personagem. Na verdade, diz Lacan, o analista ocupa o lugar do objeto
a e dele não se pode furtar.
TRAUMA
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CONSTRUÇÃO
DO IMAGINÁRIO
Distinção entre Imaginário e Fantasma
Embora coincidentes, a ordem do imaginário e a ordem do fantasma
não se superpõem. Enquanto que no fantasma há uma cena imaginária na
qual o sujeito figura sob diversas formas, o registro do imaginário está
marcado pela presença da imagem do semelhante. É em função dessa relação com a imagem do outro (mas que é semelhante) que o registro do imaginário implica imagem e campo da ilusão. Aqui encontramos uma aproximação com o que Winnicott postulou como fenômenos e objetos
transicionais, que se desenvolvem na área de ilusão que resulta da
superposição entre o que a mãe é capaz de oferecer e o que o bebê é capaz
de conceber.
É no registro do imaginário que se estabelecem a trama das identificações, bem como as fantasias da novela familiar do neurótico. Contrariamente ao imaginário do animal, construído sem brechas, o imaginário do
sujeito psíquico constitui-se com uma falta real: a não-inscrição da diferença sexual, considerada como uma falha ôntica no inconsciente. Essa falta
original determinaria a instauração do imaginário em torno da sexualidade.
A partir da falta da inscrição da diferença sexual a criança elabora, seguindo Freud, suas teorias sexuais infantis, tentativas de entendimento dos
enigmas das origens, da sexualidade dos pais e da diferença sexual. Vemos
que a fórmula do fantasma expressa a relação desejante entre o sujeito e o
objeto causa do desejo, originariamente faltoso e perdido para sempre. O
fantasma corresponde, assim, à própria realidade psíquica do sujeito. É
importante aqui diferenciarmos a realidade do real. Se o real é o que não
pode ser simbolizado, o que é imutável, o fantasma é a possibilidade de
inserção na realidade pela mediação do simbólico através da linguagem,
amortecedor do choque com o real. A realidade é mutável, constituindo-se
duma trama de imagens e palavras. Para Lacan, o fantasma funciona como
uma máquina que transforma o gozo em prazer, visto que o gozo em movimento produz desprazer. A eficácia da análise é determinada pela travessia
do fantasma, com um reposicionamento em relação às defesas e ao gozo.
476 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 465-482, 2005
Freud, em Além do Princípio do Prazer (1920), ao observar seu neto
no jogo do carretel, fornece-nos uma excelente observação do nascimento
simbólico e de como a criança elabora a ausência da mãe, fazendo desaparecer e trazendo de volta o carretel, emitindo as primeiras palavras: fort
(fora) e da (aqui). A perda do objeto é o fator que constitui o símbolo e a
capacidade de imaginarizar a ausência, desprendendo-se da mãe real, para
tê-la simbolicamente através da fala. A aquisição da palavra representa o
momento de inserção do sujeito na cadeia significante, que preexiste na
ordem simbólica da cultura. Uma vez incluído o sujeito no universo de
significantes, o objeto real estará perdido para sempre.
Na atualidade, encontramos com freqüência pacientes que não contam com recursos simbólicos, manejando-se ainda muito no registro do
real, como a demandar outros modos de expressão, como atos ou condutas
de ação, para confirmar sua existência. São casos de difícil acesso para o
psicanalista, como nos distúrbios psicossomáticos, nos estados fronteiriços e psicóticos. Enquanto nos neuróticos lidamos com o imaginário da
sexualidade movido pela libido, alimentando o circuito do desejo inconsciente, nos pacientes mais regressivos lidamos com o vazio representacional, onde o real do corpo está sempre procurando uma imagem que confirme sua forma, levado pelo ímpeto da compulsão à repetição. Nasio
(1993b), baseado em Lacan, descreve três tipos de fenômenos, que chama
“formações do objeto a”: a lesão de órgão (da patologia psicossomática), a
alucinação e a passagem ao ato. Nesses casos, como não houve a inserção
do sujeito na cadeia significante, por forclusão do Nome do Pai, não há
capacidade fantasmática, há uma permanência no real do corpo e do ato ou
ação.
Desse modo, Peter, um campeão de motocross de vinte e cinco anos,
busca o tratamento por apresentar problemas no trabalho, como caixa de
um banco, onde vem cometendo erros de cálculo. O curioso em seu relato
é o fato de já haver sofrido trinta e dois acidentes de moto ao disputar
campeonatos e exibir suas cicatrizes como troféus. Quando lhe assinalo
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 477
Laura Ward da Rosa
A Capacidade Simbólica e a Aptidão Fantasmática
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DO IMAGINÁRIO
sua expressão de satisfação ao me fazer o relato, faz-me a seguinte revelação: “Claro, é dessa maneira que sinto ter braços e pernas. Preciso dessas
fraturas para saber que estou vivo, que tenho um corpo”. Vê-se que faltou a
Peter uma integração da imagem corporal no estágio do espelho, razão pela
qual permanece na ameaça do corpo fragmentado, na falta de um outro que
o confirmasse diante de sua imagem especular.
Assim também com Mariana a repetição na colocação de piercings e
tatuagens preocupou sua mãe, que a trouxe para tratamento aos quinze
anos. Vem apresentando distúrbio de conduta, acompanha-se de amigos
que integram uma gangue, falta à escola e não obedece a limites. Recebo
uma adolescente toda vestida de preto, com cabelo curto pintado de três
cores e com diversos piercings nas orelhas, supercílios e língua. Conta que
também os usa nos mamilos e no umbigo. Também tem tatuagens nos braços e tornozelos. Essa necessidade de marcas corporais iniciou com a separação dos pais, há dois anos. Relacionava-se melhor com o pai do que com
a mãe e sentiu muito quando ele se mudou para outra casa. Porém, dois
meses após, o encontrou à noite trocando carícias com um amigo. A indignação por descobrir a homossexualidade do pai a transtornou de tal modo
que nunca mais usou roupas “normais”, está sempre de preto, e seu corpo
passou a expressar as marcas, como a demandar uma inscrição simbólica
de uma função paterna até então ausente, no sentido de romper a alienação
imaginária.
Nas estruturas neuróticas contamos com a aptidão fantasmática resultante da presença do símbolo e da imaginarização, tornando o tratamento
psicanalítico exitoso pelo entendimento e pelo atravessamento dos fantasmas, em direção à cura, enquanto que nos quadros narcísicos e patologias
borderline nos deparamos com a dureza do real que se expressa, no concreto, em ato e no corpo, a demandar do psicanalista um longo trabalho na
tentativa da aquisição simbólica.
478 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 465-482, 2005
A importância do conceito de trauma segue merecendo atenção, não
só pelo seu caráter fundante, mas como fator determinante do avanço da
pesquisa nos campos teórico e clínico da psicanálise, propiciando que hoje
possamos atender a uma demanda de pacientes que antes estavam à margem da ajuda psicanalítica. A constituição do imaginário, por Lacan, ampliou e enriqueceu o nosso trabalho clínico, a ponto de ele declarar, já na
fase final de seu ensino, em 1975: “O imaginário é o lugar onde toda a
verdade se enuncia”, querendo expressar que o sujeito fala do lugar do
Outro, lugar dos significantes, mas com seu Eu situado e constituído na
relação imaginária com o semelhante. Não basta afirmar a primazia do simbólico, mas de como este se conjuga com o imaginário.
Resumo
Este trabalho tem por objetivo estudar a evolução do conceito de trauma em
psicanálise e a sua importância para a construção do imaginário. Partimos de
Freud, desde suas pesquisas iniciais, em que considerava a teoria da sedução ou a
existência de um trauma real na gênese das neuroses até o momento em que,
abandonando a sua “neurótica”, passa à concepção da fantasia e do mundo imaginário como verdade do sujeito psíquico. Seguimos com os aportes de Melanie
Klein, abordando-se a ênfase que o conceito ganhou na escola kleiniana, e concluímos com Jacques Lacan, para quem o imaginário é conceituado no substantivo, vindo a integrar os três registros: o real, o imaginário e o simbólico, e a fantasia ganha outro lugar, passando a integrar a própria estrutura do sujeito, denominando-se fantasma.
Palavras-chave
Trauma. Imaginário. Simbólico. Fantasia. Fantasma.
Abstract
Trauma and the Construction of the Imaginary
This work seeks to study the evolution of the concept of trauma in
psychoanalysis and its importance in constructing the imaginary. We start with
Freud and his initial research that considered the theory of seduction or the existence
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 479
Laura Ward da Rosa
Considerações Finais
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of a real trauma in the creation of neuroses up to the time when, abandoning his
“neurotics”, he moves to the conception of fantasy and the imaginary world as the
truth of the psychic subject. We move on to the approaches of Melanie Klein and
the emphasis the concept was given in the Kleinian school, and conclude with
Jacques Lacan, where the imaginary is conceptualized in the substantive, bringing
together the three registers: the real, the imaginary and the symbolic, with fantasy
gaining another place, becoming part of the structure of the subject itself,
denominated phantasm.
Key-words
Trauma. Imaginary. Symbolic. Fantasy. Phantasm.
Resumen
Trauma y Construcción del Imaginario
Este trabajo tiene por objetivo estudiar la evolución del concepto de trauma
en psicoanálisis y su importancia para la construcción del imaginario. Partimos
de Freud, desde sus investigaciones iniciales en las que consideraba la teoría de la
seducción o la existencia de un trauma real en la génesis de las neurosis hasta el
momento en que, abandonando a su «neurótica», pasa a la concepción de la fantasía
y del mundo imaginario como verdad del sujeto psíquico. Seguimos con los aportes
de Melanie Klein y del énfasis que el concepto ganó en la escuela kleiniana y
concluimos con Jacques Lacan, donde al imaginario se lo conceptúa en el
sustantivo, integrando los tres registros: lo real, lo imaginario y lo simbólico y la
fantasía gana otro lugar, pasando a integrar la propia estructura al sujeto,
denominándose fantasma.
Pallabras-llave
Trauma. Imaginário. Simbólico. Fantasia. Fantasma.
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Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Dra. Laura Ward da Rosa
Rua Av. Plínio Brasil Milano, 143/408
90520-002 Porto Alegre – RS – Brasil
E-mail: [email protected]
482 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 465-482, 2005
Leonardo A.
Francischelli
Membro Titular em função
Didática da Sociedade Brasileira
de Psicanálise de Porto Alegre.
Na história da psicanálise, a sedução ocupa um lugar privilegiado,
ou, ao menos, um ponto de virada
na construção da teoria segundo a
qual a realidade fáctica deu lugar ao
imaginário, ao fantasmático. É só
lembrar a famosa frase: “Yo no creo
más en mi neurótica” (p.301),
lançada ao mar por Freud em 21 de
setembro de 1897.
Por outro lado, não podemos
esquecer a colocação freudiana de
que a sedução compõe, junto ao comércio sexual dos pais, a castração
e o retorno ao seio (ventre) materno,
as chamadas “fantasias primordiais” (FREUD, 1915, p.269) que
seriam, segundo expressão do próprio Freud (1915-16, p.338), “um
patrimônio psicogenético”.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 483
Leonardo A. Francischelli
Sedutopatia:
um ensaio
SEDUTOPATIA:
UM ENSAIO
O exame detalhado dessas questões entre acontecimentos e fantasias,
ou seja, a diferença entre realidade psíquica e realidade material, acrescentada ainda a idéia forte do “patrimônio psicogenético”, mereceriam um
maior cuidado e aprofundamento, entretanto, não o faremos neste trabalho,
visto que vamos explorar o conceito de sedução em um sentido muito particular, como veremos mais adiante.
Também é explícita a relação entre sedução e trauma:
A palavra sedução remete, antes de mais nada, à idéia de uma cena
sexual em que um sujeito, geralmente adulto, vale-se de seu poder real ou
imaginário para abusar de outro sujeito, reduzido a uma posição passiva:
uma criança ou uma mulher de modo geral. Em essência, a palavra sedução
é carregada de todo o peso de um ato baseado na violência moral e física
[...] Foi exatamente dessa representação de coerção que Freud partiu, ao
construir, entre 1895 e 1897, sua teoria da sedução. (ROUDINESCO;
PLON, 1998, p.696).
Ignorávamos que essas idéias já haviam nascido com os gregos. Senão, vejamos:
Como assinala Clemence Ramnoux – “os gregos conheciam três maneiras de se impor: pela violência (bía), pela persuasão (peithó) e pela sedução”. Esta última é função das Kharites, Graças, sequazes-irmãs das
musas, e a estreita conexão entre ambos os grupos se revela também na
homonímia (Thalia – Thalia) e proximidade onomástica (Euterpe –
Euphrosyne) entre indivíduos de um e outro grupo. (HESÍODO, 2003,
p.34).
A idéia de se impor ao outro, seja pela violência, seja pela persuasão,
seja pela sedução, está plenamente contemplada na premissa de se tratar de
“um ato baseado na violência moral ou física”.
Tudo isso pode ficar melhor configurado, convocando-se o histórico e
famoso caso Emma, colocado em circulação por Freud em 1895 (p.448),
no qual o abuso de um primeiro ato, quando Emma tinha 8 anos, é retomado a partir do segundo ato, aos 12 anos, criando sentidos ao primeiro, quando ela foi abusada por um adulto. A sedução é um acontecimento material
484 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 483-487, 2005
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 485
Leonardo A. Francischelli
no primeiro ato, mas o segundo trabalha já como uma realidade psíquica.
De qualquer forma, recorremos a essa história de Emma para destacar a
temporalidade na construção dos eventos sedutores-traumáticos, nos quais
o segundo ato vai re-significar o primeiro, que permanecia como traço de
memória, e se faz trauma.
Antes de concluir esse pequeno recorte histórico das vicissitudes da
sedução e do traumático, destacaremos onde nasceria o verdadeiramente
traumático para Freud (1923, p.56) dos últimos trabalhos: “Então acredita
na seriedade do que ouviu e vivencia, ao cair sob a influência do complexo
de castração, o trauma mais intenso de sua jovem vida”, que, de alguma
forma, articula, mais uma vez, com o conceito de fantasias originais, em
que a castração é uma delas, portanto com um pé no “patrimônio
psicogenético”.
Hoje, a idéia de sedução é re-visitada, entre outros, por Laplanche
(1988), através de seu profundo trabalho sobre “a teoria da sedução generalizada”, que permite perceber toda a atualidade que a sedução mantém à
teoria e à clínica do nosso tempo.
Deixaremos agora esse caminho para investigar outro ângulo da sedução, já não no terreno da clínica ou teoria, mas talvez no da psicopatologia.
Em nossa cultura do sucesso a qualquer preço, a sedução é uma arma poderosa na conquista do poder sobre os outros.
Como dissemos, os gregos conheciam a sedução como um meio de
imposição. Esse instrumento continua vigente em todos os vínculos
societários que organizam a comunidade humana. Se olharmos a política, a
vida das nossas instituições, constatamos que muitas vezes a sedução poderia ser confundida com a hipocrisia ou mesmo com a psicopatia.
Sem ir muito longe, em nosso próprio meio, às vezes, nossas discussões teórico-clínicas, nas quais o elogio fácil campeia, enquanto a crítica
construtiva, o comprometimento com a tarefa de uma discussão profunda
com as questões que nos envolvem, sempre se vê postergada. A sedução
domina a cena. E, dramaticamente, essa prática ocupa todos os espaços
SEDUTOPATIA:
UM ENSAIO
sociais. Nesse sentido poderiam-se caracterizar as patologias das instituições.
A esse proceder sedutor dominante nos vínculos intersubjetivos explorando a sedução como um meio de conquistar o outro sem cuidados
com sua alteridade, isto é, sem olhar verdadeiramente para esse outro, só
valendo o êxito pessoal, no qual a moeda de troca é o narcisismo pessoal, a
esse comportamento chamaríamos de “sedutopatia”. Nessa categoria, o
outro não é reconhecido como tal. Não existiria responsabilidade pelo outro.
Por outro lado, sem a sedução nossa de cada dia ninguém sobreviveria. É fundamental uma pitada de artimanhas sedutoras, semelhantes ao
devaneio, que precisamos exercitar para lidar melhor com a realidade material.
Contudo, na sedutopatia encontramos uma marca diferente. A
sedutopatia, expressão que construo aqui para designar a manifestação de
um fenômeno que nos perturba: a sedução como meio de prestígio social,
político e profissional.
Na sociopatia já conhecemos o destino da culpa: ela não existe. Para
alguns autores, a culpa não existiria, visto que, apoiados na colocação de
Freud (1940, p.189), “existem dois caminhos pelos quais os conteúdos do
id podem penetrar no eu: um é direto, o outro passa através do ideal do eu”.
Sendo esse caminho direto aquele empregado pela sociopatia; o outro, pois,
sofre a intervenção do ideal do eu, fonte da culpabilidade.
Haveria culpa na sedutopatia? Somos tentados a sustentar que sim.
Entretanto, pararemos por aqui, visto que nossa intenção era realizar uma
primeira apresentação dessa nova entidade nosográfica que, partindo da
idéia de sedução, a batizamos de “sedutopatia”.
Referências
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Amorrortu, 1976. v.1.
______. (1915). Un Caso de Paranóia que Contradice la Teoría Psicanalítica. In:
486 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 483-487, 2005
Ensaio
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 487
Leonardo A. Francischelli
______. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1976. v.14.
______. (1915-16). 23ª Conferencia: los caminos de la formación de síntoma. In:
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SEDUTOPATIA:
UM ENSAIO
488 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 483-487, 2005
Mauro Manica
Membro Associado da
Sociedade Psicanalítica Italiana.
Às vezes encontramos pacientes que nos levam a explorar as
fronteiras da psicanálise como instrumento para a cura e como método de compreensão dos sofrimentos
mentais graves.
Criam-se, nesses lugares, situações “extremas” entre paciente e
analista que, ao longo das diretrizes
da transferência e da contratransferência, individualizam áreas da experiência inconsciente que não podem nem emergir em formas narrativas nem ser recordadas em sentido
autobiográfico, senão sob a forma
de rompimento ou de medos de
rompimento (WINNICOTT, 1963).
Podem ser revividas concretamente,
em campo, com os aspectos de uma
experiência atual, capaz de envolver
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 489
Mauro Manica
Contratransferência em
Situações
”
“Extremas”
CONTRATRANSFERÊNCIA
EM
SITUAÇÕES “EXTREMAS”
a pessoa do analista: ainda quando, na realidade, seja a reprodução de uma
quebra já ocorrida e que envolveu a relação com os objetos primários.
Portanto, se assiste e se vê arrastado a experimentar “agonias”, mais
do que angústias primitivas, pertencentes a uma área de experiências não
simbolizadas e não verbalizadas – experiências que se podem converter em
pensáveis e predispostas a uma transformação somente dentro da mente do
analista.
Nesses casos, estamos frente a um fracasso dos processos simbólicos
e representativos. E, então, o conceito de agonia primitiva, de Winnicott,
oferece uma perspectiva que permite dramatizar o significado afetivo da
experiência traumática originária. A agonia faz referência à idéia de um
sofrimento mental avassalador e comporta a idéia da confrontação com
uma situação extrema, com a possibilidade de uma morte psíquica.
Alinhado às formulações freudianas sobre a angústia traumática, poder-se-ia dizer que, talvez por meio do conceito de agonia, Winnicott quis
indicar quão extensa e profunda foi a fratura do sistema de paraexcitação, o
que provocou então uma dor mental tão intensa, de modo a impedir a realização de processos de contracatexia psíquica que pudessem delimitar a
extensão da fratura ou das feridas do Si mesmo. Também Winnicott
reconduziu esse fracasso dos processos psíquicos de defesa à extrema imaturidade do Eu no momento das experiências cataclísmicas. Trata-se, então, de experiências originárias que envolvem a formação do Si mesmo em
épocas em que sua organização não é capaz de opor resistência, não é capaz de fazer nada, até o limite de não poder sequer ficar presente na experiência.
O modo no qual as partes infantis do Si mesmo se retirarão da experiência agônica poderá ser substancialmente representado mediante uma
“contracarga protetora” (ROUSSILLON, 1999). Por exemplo, se a agonia
está suscitada pela experiência de ser-deixados-cair-ao-infinito, a defesa
será a autocontenção; se tem a ver com estar-desorientados, com a perda do
sentido da realidade, a defesa poderá ser o uso do narcisismo primário; ou,
também, se a experiência agônica levou à perda das capacidades para esta490 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 489-512, 2005
1
Paul-Claude Racamier (1995) parece-me ser o psicanalista que mais conseguiu atrever-se, de
uma maneira imaginativa, à exploração das soluções solipsísticas, criando a figura clínica do
Antiédipo e estudando a área dos fenômenos e dos objetos incestuais (com potencialidade incestuosa).
A constelação antiedípica – segundo Racamier – põe-se em uma relação de complementaridade
com a edípica nos destinos mais favoráveis e naturais, enquanto que entra em competição com o
Édipo nas variantes mais traumáticas. O Antiédipo é filho de uma sedução narcisística materna, de
objetos que fazem enlouquecer; trata-se de um conflito nas origens que contrapõe as forças tendentes ao uníssono narcisístico com a mãe primária às outras forças opostas que aspiram à separação e à autonomia.
Seu fantasma essencial (ou melhor dito: seu fantasma-não-fantasma), sua específica configuração é a de ser gerador de sua própria vida: o gerador de si próprio. Seria essa a via aberta para a
psicose e, nos resultados mais dramáticos, para a esquizofrenia.
Porém, se é a função “umbral” da organização de complexos antiedípicos a se derrubar, então cai
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 491
Mauro Manica
belecer uma relação com os objetos, a defesa será o autismo ou o ataque ao
vínculo.
Em todos esses casos, que a clínica nos devolve em diversas combinações, a defesa consiste, em última análise, tirar a catexia da relação objetal
para pôr em prática uma solução solipsística.1
Outras vezes, como nos ensinou Roussillon, tratar-se-á mais de um
modo de se retirar da dor mental, estruturando “defesas paradoxais”,
centradas essencialmente no revirar passivo/ativo, em um desesperado
movimento defensivo que já Ferenczi (1932) havia vislumbrado frente a
essas carências traumáticas do ambiente familiar que conduzem a “uma
confusão de linguagens entre adultos e crianças” e à necessidade de se identificar com o agressor e com as modalidades próprias da agressão.
Nessa articulação dramática de defesas, que não quer ser uma descrição clínica exaustiva, identifica-se imediatamente um traço comum: tratase de defesas extremas frente a experiências traumáticas extremas, aquelas
para as quais Freud (1910) parece haver escrito: “é mortificante pensar que
um Deus justo ou uma Providência benévola não nos proteja melhor de
semelhantes influências no período mais indefeso de nossa vida”.
Por outro lado, trata-se de defesas permanentes e paradoxais nas quais
pode ser reconhecida, como traço genético comum, a condição de nãopensabilidade ou insuficiente pensabilidade dos eventos traumáticos que,
CONTRATRANSFERÊNCIA
EM
SITUAÇÕES “EXTREMAS”
no máximo, permite armazená-los nas partes psicóticas da personalidade,
como ideogramas difíceis de decifrar (BION, 1963), a utilizar sucessivamente para a evacuação ou para desesperadas tentativas de comunicação.
E se as articulações fenomenológicas da agonia primitiva a definem
como extrema, sem fim (os organizadores temporais constituíram-se com
labilidade), sem limites (conduz a uma desorganização), a mente da criança não dispõe, de imediato, de outros recursos que não sejam retrair-se na
tentativa de evitar a ameaça de uma morte psíquica ou cindir as partes do Si
mesmo que foram, principalmente, investidas pela onda de choque, encerrando-as em um objeto interno (“claustrum”) ou em um refúgio, ou
ainda em um limbo psíquico colocado fora do Si mesmo e dos objetos
internos.
Então, o fato de que se experimente a agonia em dimensões não
verbalizáveis e não simbolizáveis não implica que essa experiência não
esteja gravada na personalidade e não deixe marcas internas. O trauma segue inelaborável e incontível, o sujeito retira-se da experiência e deixa-a,
assim, que se desenvolva “sem ele” (ROUSSILLON, 1999), porém a defesa
cria um estado de estruturação da mente que faz com que a marca da agonia
esteja sempre presente, sob a forma de uma ausência de vida. Em outras
palavras, a defesa despotencializa o sofrimento e o trauma, porém a
estruturação do Si mesmo leva o sinal do mesmo. E esse sinal, essa marca
não é dinamizável e não se pode processar senão através do processo
(terapêutico) psicanalítico, que pode ativar a esperança de permitir a repea função do Antiédipo como organizador interior e social. Assim como para o Édipo o limite é o
tabu do incesto, para o Antiédipo seu tabu é o da indiferenciação dos seres: o que não permite a
confusão entre sujeito e objeto, entre os gêneros (masculino – feminino) e entre as gerações.
Então, se infringimos o tabu antiedípico, as expectativas narcisísticas maternas prevalecem sobre
as expectativas narcisísticas da criança, a mãe seduz o filho e se realiza um desvio irrefreável nas
potencialidades incestuosas (incestuais). A criança converte-se em objeto-fetiche de uma figura
materna que não tolera nem autonomia nem separação; inverte-se a função continente-conteúdo e
a criança, invadida pelas angústias maternas, se encontra fixada na posição de objeto-não-objeto,
herdeira de um destino que passa através de gerações, que não é seu destino e, no entanto, condena o obrigado a realizá-lo mais além da morte de quem obriga, até os confins do mundo, mais além
dos limites de uma vida.
492 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 489-512, 2005
Material Clínico
Hermes (assim chamarei o paciente) sempre teve de recorrer a defesas
centradas no funcionamento de uma organização autárquica e protética que
o obrigava a produzir seqüelas de elementos “balfa” 2 (FERRO, 2002), ou
2
Com a denominação evocativa de balfa, Antonino Ferro desenvolve, de maneira original, o
conceito de Bion de “fatos não digeridos”: impressões sensoriais, turbulências traumáticas, emoções confusas e não-expressadas (elementos beta, no sentido bioniano) que não podem ser transformadas inteiramente por meio da função alfa em símbolos e pensamentos.
Os fracassos dessa transformação fundamental – mediada no desenvolvimento infantil pelo funSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 493
Mauro Manica
tição, o working through, e finalmente a construção de uma nova forma de
lembrança.
Então, talvez, devamos resseqüenciar o percurso indicado por Freud
(1914): não lembrar, repetir e reelaborar, mas também repetir, elaborar progressivamente, para poder recuperar as partes do Si mesmo, agonizantes e
afásicas, mediante o trabalho de co-construção, de simbolização e de
reafetivização levado a cabo na relação analítica.
Em outros termos, sempre para usar os conceitos rabdomânticos e
quase premonitórios de Freud (1925), se a profundidade e a extensão da
fratura do sistema de paraexcitação fizeram que a “angústia traumática”
não se pudesse transformar em “angústia sinal”, não é sequer possível o
trabalho simbólico da repressão. A experiência agônica precipita, assim,
em um inconsciente não reprimido: não é acessível a uma memória autobiográfica, como intuiu Mancia (2002), se a relega à memória implícita e
às dimensões implícitas da mente da criança.
Somente na transferência é possível sua reatualização, por meio das
articulações pictóricas do sonho ou dos elementos musicais da comunicação (o timbre, o ritmo, a tonalidade, o volume da voz), antes que por meio
de seus conteúdos, e só – segundo os ensinamentos de Winnicott – se o
paciente estiver suficientemente seguro de poder experimentar o trauma
originário, a agonia primitiva, nesse contexto analítico específico e na relação com o analista, como terapeuta e, principalmente, como pessoa.
CONTRATRANSFERÊNCIA
EM
SITUAÇÕES “EXTREMAS”
elementos que, nesse caso, seriam melhor definidos como não-alfa-e-nãobeta, experiências emotivas aparentemente boas, porém, em realidade,
contaminadas por núcleos angustiantes e destrutivos que não podem ser
pensados.
A que aparece de maneira fulminante na transferência é uma mãe
afetivamente não responsiva, uma mãe “morta”, no sentido indicado por
André Green (1980), emotivamente incapaz de aderir às necessidades e aos
pedidos da criança. Uma mãe órfã de pai que, oferecendo ao filho um pai
igualmente ausente, lhe confia uma parte de um destino próprio. Entregalhe um mandato hereditário que endivida as partes infantis de sua personalidade, dando a essas, como única alternativa, a ilusão de uma autogeração
onipotente e desesperada (e Hermes torna-se autodidata, um leitor onívoro,
caótico e voraz) ou a proteção que promete um encarceramento até o fim
da vida (e Hermes freqüenta o seminário durante alguns anos, obrigado
pela mãe a tratar de se fazer sacerdote: talvez para ser confiado a um pai
eterno e imortal, talvez para recuperar, para a mãe, uma figura paterna da
qual se havia sentido abandonada).
Então, como eleger um caminho próprio na vida? Como se dar uma
identidade que possa permitir a localização dentro de uma boa família interna?
Depois de haver caído em um alcoolismo com traços essencialmente
dipsomaníacos, depois de repetidos naufrágios sentimentais e existenciais,
depois da dependência de drogas de um filho, depois de várias tentativas
psicoterapêuticas abortadas, Hermes, no limiar dos cinqüenta anos, cínico
e esvaziado, “como alternativa a uma solução suicida”, aporta na última
praia de uma psicanálise.
A estréia é impiedosa, porém do corpo-a-corpo cerrado e sem exclusão de golpes, com o transcorrer dos meses, se vislumbra um fio de esperança.
cionamento mental materno – fazem, então, que os agregados alfa constituam a defesa primária
frente a qualquer patologia e se proponham como fatores prioritários da transferência.
494 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 489-512, 2005
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 495
Mauro Manica
Assim, depois de sonhos que o vêem emboscado em um “claustrum”
retal, no qual aparece um pai-analista depreciado e desvalorizado, traz, às
sessões, material onírico que mostra as defesas, as fantasias e as angústias
que vive na transferência, porém que, talvez, também deixa entrever o esboço de um percurso terapêutico.
No sonho, tem de comprar carne de cavalo e encontra o pai, a quem
pede que o acompanhe. É ele, porém, que indica o caminho a percorrer:
ainda melhor, conhece um atalho que os leva a percorrer becos cada vez
mais estreitos e escuros, até que se vislumbra, à distância, a rua iluminada
onde está o açougue.
Nas associações do sonho diz que: 1) não sabe se o pai o aconselhará,
ou estará atento à compra da carne de cavalo; 2) os becos escuros lhe fazem
pensar no intestino e nas interpretações do “claustrum”, que apareceu em
sonhos precedentes; 3) a carne eqüina remete-o à decisão, depois do alarme pela “vaca louca”, de não mais comer carne bovina; 4) lembra logo que
o médico de seu povo de origem receitava a carne de cavalo e a propunha
como remédio empírico para as crianças “anêmicas” – talvez a mãe, em
alguma ocasião, havia seguido o conselho do médico e a havia cozinhado;
5) sorrindo, fala da necessidade de esperar que a carne eqüina que poderá
comprar não seja de “cavalo louco” e lembra que Crazy Horse era um chefe índio que o havia fascinado, nas leituras de sua infância, por suas aventuras de “herói rebelde”.
Faz-se evidente, como aparece no sonho, a necessidade de ativar as
defesas narcisistas frente ao terror e à angústia suscitados pela relação de
suas partes infantis com uma mãe-vaca louca (uma mãe que identifica
projetivamente sua depressão, sua orfandade e sua visão cínica da vida) e
intensificados pela ausência de um pai, de uma função paterna que pudesse
protegê-lo, sanar a relação mãe-filho, e oferecer apoio à mãe, para que pudesse transformar em alimento nutritivo a própria “loucura”.
A organização narcisista não pode aceitar a dependência do analista
(ainda que comece a aceitar sua companhia): deve eleger por si próprio,
CONTRATRANSFERÊNCIA
EM
SITUAÇÕES “EXTREMAS”
autarquicamente, o caminho a percorrer, e melhor; deve tomar atalhos
(como o álcool do qual abusa), porquanto o conduzam em um espaço retal.
Certo, o percurso analítico poderia conduzir a uma relação nutritiva
na qual há um pai que se tornaria capaz de desempenhar uma função de
vigilância e, talvez, um açougueiro capaz de vender carne boa que, com
diferença do vinho, faz realmente “bom sangue” para prover suas partes
infantis “anêmicas”.
No entanto, o risco é que sua organização afetiva não lhe permita nem
tolerar a dependência nem se entregar ao vínculo com o analista-açougueiro: existe o temor de que lhe forneça “cavalo louco”, alimento aparentemente bom, porém, em realidade, contaminado e perigoso.
Ao mesmo tempo, o risco está constituído pela fascinação de que a
parte satânica de sua personalidade o subjugue e o seduza, como Crazy
Horse, com a falsa promessa de ser seu herói rebelde, o vingador que, armando-o com álcool, lhe permite, entre uma sessão e outra, desembaraçarse do trabalho feito comigo na “análise”.
Assim, o “cavalo louco” constitui-se na representação de um elemento não-alfa-e-não-beta: um híbrido, um elemento contaminado que permite atacar o vínculo com o analista, preservar as partes infantis
traumatizadas pela dependência de objetos experimentados como não-confiáveis. Um elemento, no entanto, que ao mesmo tempo testemunha um
fracasso dos processos de simbolização e do sofrimento gerado pelo
desfalecimento (defaillance) da função alfa, da contenção, da capacidade
de rêverie materna na relação primária.
Dado que todos os indivíduos entram e saem de estados narcisistas da
mente, e dispõem de um “idioma pessoal” – um núcleo inconsciente do Si
mesmo, como disse Mancia (2003), está constituído pela sedimentação, na
memória implícita, de experiências pré-verbais e pré-simbólicas convertidas em realidade mediante a relação primária mãe-filho –, Bollas (2000)
sentiu a necessidade de destacar como se converte em realidade o que definimos “patológico”, quando não é possível subtrair-se ao encantamento de
uma “fixação”.
496 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 489-512, 2005
Onde falta a nova transcrição, a excitação se produzirá segundo as leis
psicológicas válidas para a precedente época psíquica e ao longo das
vias disponíveis nesse momento. Assim, nos encontramos diante de
um anacronismo: em uma província particular [...] sobrevivem refugos
do passado.3
Desse modo, se quiséssemos aproximar a visões “pós-clássicas”
(LOCH, 1975) a idéia originária de Freud, relativa a províncias do aparelho
psíquico em que podem sobreviver os refugos de partes do Si mesmo do
passado, poderíamos assimilar o conceito de fixação aos “claustruns”
3
Freud, em realidade, em Construções em Psicanálise (1937), aproximou-se novamente à possibilidade de supor um “inconsciente não reprimido”, quando se viu obrigado a reconhecer que, em
algumas situações, construções que pareciam acertadas evocavam: “nos pacientes um fenômeno
estranho e a princípio incompreensível. Provocaram-lhes vivas recordações [überdeutlich =
ultraclaros] [...]; porém, o que recordaram não foi o sucesso que constituía o objeto da construção,
mas detalhes relacionados com aquele”. E Freud fala de um paciente em cujo sonho aparecem
rostos, com anormal clareza, o quarto ou os móveis desse quarto, “de cuja construção não tinha,
naturalmente, nenhuma possibilidade de conhecimento”; faz, então, a hipótese de que seria plausível considerar esses pormenores como o produto de um compromisso psíquico entre o empuxo
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 497
Mauro Manica
Fixierung é o termo adotado por Freud (1905, 1909, 1915-17, 1920),
ainda que com articulações descritivas diferentes, para indicar o fato de
que a libido fica fortemente ligada a pessoas (objetos) ou a imagens,
repropondo um determinado modo de compensação e se organizando segundo a estrutura característica de suas fases evolutivas (oral, anal,
genital).
Com certeza, o conceito freudiano de fixação poderia revelar-se
desgastado pelo tempo, por estar demasiadamente ancorado ao modelo de
uma teoria determinista das pulsões e ligado a uma concepção genética que
implica um processo excessivamente ordenado da libido. Isto porque Freud
não tivera ainda a possibilidade de chegar a hipnotizar um inconsciente
não-reprimido, ainda que, já em 1896, escrevesse a Fliess, a propósito da
possibilidade de entender a fixação como transcrição de marcas de sistemas mnemônicos:
CONTRATRANSFERÊNCIA
EM
SITUAÇÕES “EXTREMAS”
meltzerianos (MELTZER, 1992), aos “refúgios” de Steiner (1993), ou, inclusive, às “criptonimias” (ABRAHAM; TOROK, 1976) que, recuperando
a natureza traumática da fixação, voltam a levá-la a uma constelação de
relações internas tão traumáticas que não podem ser pensadas e as quais se
devem esconder (kryptós), ou não se pode dar-lhes um nome (ónyma).
Então, o que não tem nome, que não alcança o nível de significação
lingüística (MANCIA, 2002), que não se pode devolver em forma de narração ou novela autobiográfica, se encomenda àquelas modalidades defensivas de base – como a cisão, a negação e a identificação projetiva – que a
criança teve de pôr em funcionamento para reduzir suas angústias de perda
e fragmentação do Si mesmo, conectadas à fratura do sentimento de existir.
E, principalmente, a identificação projetiva se ativará como modalidade
filogeneticamente pré-humana e ontologicamente pré-verbal, segundo a
definição de Money-Kyrle (1968), para exemplificar a evacuação e, eventualmente, a comunicação das experiências mais traumáticas.
Com efeito, na relação psicanalítica com os casos graves, são justamente as identificações projetivas (interpessoais e intrapsíquicas) que se
manifestam maciçamente no sonho, as que atuam em sessão e se ocultam
no setting, fazendo o analista viver emoções intensas e catastróficas.
Assim, depois de um encontro particularmente dramático com
Hermes, marcado pelo surgimento de angústias psicóticas profundas, encontro-me tendo um sonho igualmente psicótico e que se poderia definir de
contratransferência dolorosamente participada.
No drama do sonho encontro um antigo companheiro de colégio que
ascensional do inconsciente e a tendência regressiva de outras instâncias psíquicas que deslocam
“as marcas mnemônicas importantes [...] de objetos adjacentes de importância menor”.
A intuição mais genial de Freud é a de propor que nesses pormenores possa reaparecer “algo
experimentado na infância e depois esquecido, algo que a criança viu ou ouviu em uma época em
que mal sabia falar e que agora forja seu caminho até a consciência”.
Com essas lembranças-detalhes, Freud parece confrontar-se com alguns conteúdos da área préverbal não suscetíveis de repressão; para tentar decifrá-los, deve-se pensar que sua persistência e
composição derivem de ações psíquicas mais radicais e precoces, as quais – por exemplo – representadas por movimentos de cisão.
498 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 489-512, 2005
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Mauro Manica
sempre me havia comovido e perturbado devido à sua grave invalidez produzida por uma poliomielite infantil. Não me surpreende o encontro, como
tampouco o fato de que me comunique que deve morrer: por outro lado, a
mim não fica claro se se trata de um desejo seu ou de um destino inelutável.
Trata-se, no entanto, de enfrentar uma espécie de jogo, a variante original
de uma “roleta russa”: ele deve desafiar a sorte primeiro e, logo após, eu. A
atmosfera do sonho torna-se inquietante. Na realidade, sou eu que devo
interpretar o papel de ambos os jogadores e, portanto, disparar em mim, em
seu lugar, quando é seu turno, e fazer o mesmo no momento em que isso
me toque. Então, inicia-se o jogo: como seu substituto, tomo o cano da
pistola entre os lábios e disparo. Observo uma dor dilacerante, é como se
sentisse e visse o projétil penetrar minhas estruturas cerebrais, uma luz
ardente, logo o mundo se converte em nada. Implodindo, meus pensamentos convertem-se em nada e, finalmente, anula-se meu sentimento de existir. Tudo se desenvolve com uma rapidez terrível, imediatamente vejo que
devo repetir o jogo porque é meu turno. De novo observo o estrondo do
disparo, a dor, a sensação de anulação, porém me dou conta de que ainda
estou “vivo”. No entanto, ao alívio segue-se imediatamente uma perplexidade inquietante: onde estará o projétil? Onde se depositou a ameaça constante que leva com ele? Temo que possa haver se alojado perto de uma
estrutura vital e que possa destruí-la a qualquer momento. Inesperadamente encontro minha esposa e, angustiado, conto-lhe o sucedido. Escuta-me
atenta e preocupada, porém sem se assustar. Sinto-a próxima à minha angústia, porém capaz de acalmar-me. Sua proposta de me acompanhar ao
hospital para realizar investigações radiográficas que localizem o projétil,
permitindo sua extração, esfuma meu terror e me devolve a confiança e a
esperança.
Mais além das sugestões oferecidas por um trabalho auto-analítico, o
dramatismo desse sonho leva diretamente a considerar o funcionamento
das identificações projetivas na clínica e na relação em situações extremas.
Com efeito, a particular intensidade dos movimentos identificadores e
projetivos fez com que o paciente se desembaraçasse de elementos
CONTRATRANSFERÊNCIA
EM
SITUAÇÕES “EXTREMAS”
impensáveis e não pensados em sua sessão anterior ao sonho, introduzindo-os violentamente na mente do analista. Elementos cindidos na personalidade do paciente, tão destrutivos e tão mortíferos, como para poder ser
somente evacuados; tão densos e tão opacos, como para paralisar a capacidade do analista de captar seu trânsito na imediatez do encontro.
A sessão, de fato, havia estado caracterizada pela reproposição, por
parte do analisando, de um enésimo ataque de raiva com respeito à mãe,
que nessa ocasião havia se manifestado ausente e distante, por sofrer de
uma grave enfermidade cardíaca. O fio das interpretações havia seguido ao
surgimento das angústias abandonantes e à assimilação do analista a uma
mãe ausente, distraída e não-disponível. Porém, o que se havia escapado,
mascarado pela intensidade da raiva e do rancor, era a diferente orientação
das pulsões agressivas do paciente: o temor de morrer no abandono, de ser
morto por uma privação afetiva, começava, talvez, a estar acompanhado de
um movimento integrador, pela preocupação e pela melancolia por uma
mãe que podia morrer. E a melancolia asfixiava o Si mesmo do paciente,
visto que, ao se haverem atenuados os mecanismos projetivos no curso do
tratamento, não pôde ser expulsa imediatamente. O terror de ser morto havia se convertido no terror suscitado pela evocação de uma situação suicida
como única possibilidade de tratar uma angústia persecutória que se estava
transformando em angústia depressiva. Tudo o que o paciente havia expulsado, então, intensificando as identificações projetivas, constituía-se produto de uma elaboração incompleta e “em curto circuito”: uma necessidade de morrer que não podia ser tolerada e representada.
O sonho do analista registrava, assim, o trânsito desse elemento incompleto, um elemento não-alfa-não-beta composto por uma preocupação excessivamente solícita pelo objeto que gerava, de todos os modos,
uma dor difusa e intolerável (uma “comoção” e uma “perturbação” que não
podiam ser contidas, mentalizadas pelo paciente). Com efeito, era tanto
função como responsabilidade do analista tomá-lo, submetê-lo a um trabalho de rêverie e fazê-lo suportável. O que não havia sucedido na incandescência emotiva da sessão sucedia no sonho de contratransferência, onde
500 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 489-512, 2005
Considerações Técnicas
Quando se desce aos abismos do coração de pacientes como Hermes,
de pacientes com áreas precocemente traumatizadas a ponto de distorcer
seu próprio sentimento ou sua própria consciência de existir? De quais
instrumentos é necessário dotar-se para conseguir reanimar as partes
hipóxicas e cianóticas do Si mesmo desses pacientes, para assim encaminhar esses processos reparadores – também “paradoxais” (MEOTTI, 1998)
– que podem restituir o sentido de beleza e airosidade da vida?
Muito provavelmente aqueles de quem me ocupei nas páginas precedentes são pacientes com os quais nos movemos sobre a linha do horizonte, no limite das fronteiras da analisabilidade; ou talvez mais além desse
limite. E estamos obrigados a tornar a pensar nas potencialidades próprias
dos instrumentos analíticos e a reconsiderar os critérios que definem quem
é analisável e quem não é, que pacientes são analisáveis e quais não. Talvez
nos encontremos em uma área extrema da clínica e das possibilidades terapêuticas da psicanálise, na qual pode dar-se que o único critério de
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 501
Mauro Manica
aquilo que havia sido identificado projetivamente, e que sacudira a ordem
mental do analista, encontrava novamente uma possibilidade de ser representado e pensado. O aparecimento depois de minha esposa – o médico, na
realidade da vigília – vinha simbolizar a presença de um objeto interno
confiável, um objeto materno capaz de rêverie, porém também o referente
de uma função analítica da mente do analista.
Certamente, o Si mesmo infantil do paciente devia cindir, atuar e identificar projetivamente as próprias partes traumatizadas e destrutivas. E teve
de recorrer a drásticas modalidades defensivas, ao menos tanto como havia
sido invadido na relação primária pelas identificações projetivas de uma
mãe esmagada, quando o filho tinha dois anos, por um luto inelaborável
pela morte do marido. Uma mãe que assim havia exposto o próprio filho a
uma experiência lutuosa combinada e superposta: ao vazio, à falta de uma
função paterna, se havia agregado, no paciente, o luto-de-uma-mãe-de-luto,
por sua vez agonizante e moribunda.
CONTRATRANSFERÊNCIA
EM
SITUAÇÕES “EXTREMAS”
analisabilidade adotável esteja definido pela capacidade do analista de reconhecer se está ou não em condições de assumir a responsabilidade de
manter um setting com esse paciente específico. E por “responsabilidade
de manter o setting” não entendo simplesmente a conservação dos aspectos
formais do marco terapêutico, mas também a capacidade de tolerar, de
compartilhar e de conter, no sentido de ter dentro de si, e em alguns momentos sobre si, o sofrimento do paciente.
Tenho a impressão de que uma tal responsabilidade necessita de cuidados e disciplina; o cuidado é algo que tem em si sentimentos de consideração, de empatia, de valor e de respeito pela alteridade do objeto.
O cuidado pela vida – escreveu Bion (1992) – não quer dizer somente
o desejo de não matar, ainda que esse seja seu significado de base.
Quer dizer cuidado de um objeto, justamente porque esse objeto tem a
qualidade de estar vivo [...] Quer dizer ter curiosidade por aquelas qualidades que constituem o que nós reconhecemos como “vida” e ter um
intenso desejo de compreendê-las [...] Finalmente, cuidado pela vida
quer dizer que uma pessoa deve ter respeito por si própria em sua qualidade de objeto vivo. A falta de cuidado implica uma falta de respeito
por si próprio e, a fortiori 4 pelos demais, coisa fundamental e de relevância proporcionalmente grave para a análise.
Parece-me que o discurso bioniano, quase no limite de uma mística
psicanalítica, expressa-se em termos muito similares aos usados por Martin
Heidegger (1927), quando pensou em um cuidado que pudesse ser um
anticipare liberando, no sentido ao menos de
essa possibilidade de cuidar que, em vez de se pôr no lugar dos Outros,
os pressupõe em seu poder-ser existencial, já não para lhes tirar o “cuidado”, mas também para inseri-los autenticamente neste. Essa forma
de ter cuidado, que concerne essencialmente ao cuidado autêntico, ou
seja, à existência dos Outros e não a algo que esses cuidem, ajuda os
Outros a se tornarem conscientes e livres para o próprio cuidado.
4
A fortiori = com maior razão. (NT = nota da tradução)
502 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 489-512, 2005
5
Stefano Bolognini (2002) distingue o conceito de contratransferência do de empatia. O primeiro, de derivação kleiniana, baseia-se em identificações “complementares” com o objeto projetado
pelo paciente sobre o analista; o segundo, de derivação kohutiana, implica uma ordem mental do
analista baseada em identificações “concordantes” com a vivência egossintônica do paciente e
tem finalidades coesivas do Si mesmo. Como articulação entre os dois conceitos, Bolognini proSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 503
Mauro Manica
Isso é ainda muito similar ao que Winnicott (1962) havia intuído, ao
apresentar esse concern, essa “preocupação” entendida como uma capacidade a desenvolver para chegar a uma maturidade autêntica, nos mostrando como se fosse uma capacidade que necessita de um ambiente suficientemente bom para poder realizar-se, além de solicitar o compromisso de
tolerar nossa destrutividade e assumir a responsabilidade de suas conseqüências.
De fato, é necessário aceitar perder-se – perder o próprio Si mesmo e
os objetos – para se poder encontrar mais além de uma mudança que tem
todas as características de uma catástrofe. E perder-se, aqui, é perder-se
realmente e não pode não gerar terror tanto (e sem dúvida) no paciente
como no analista.
Assim, é justamente o inevitável surgimento do medo de se perder nas
fronteiras de um mundo conhecido o que enfatiza a particular relevância de
duas funções da mente do analista: a da contratransferência e a da cultura,
entendida principalmente como cultura do encontro, função poética e
onírica da teoria.
Recentemente, Richard Lucas (2003) observou que, se os sonhos são
a via principal para se aproximar ao inconsciente nas neuroses, então a
contratransferência pode representar a “via real” (via regia) para a compreensão das experiências esquizofrênicas. E, por extensão, creio que a relevância da contratransferência, no encontro com as personalidades
psicóticas, pode ser transportada naquelas situações que defini extremas,
principalmente quando se atribua importância a esse movimento dos processos contratransferenciais que se integra a uma orientação analítica
empática.5
Então, se a empatia pode ser considerada a capacidade de pensar e
CONTRATRANSFERÊNCIA
EM
SITUAÇÕES “EXTREMAS”
sentir-se a si próprio na vida interior de outra pessoa (KOHUT, 1971), a
contratransferência deve converter-se na capacidade de pensar e sentir a
outra pessoa na própria vida interior.
Isso é substancialmente o que se apresenta no filme The Cell-La Célula, onde a psicoterapeuta Catherine Deane – a atriz Jennifer López – recebe, como encargo do FBI, a tarefa de entrar na mente de um assassino
serial, em coma profundo, para descobrir onde escondeu a última vítima.
Vestindo um macacão cibernético, a psiquiatra se aventura no mundo interno do criminoso, onde encontra uma criança (o Si mesmo infantil do paciente) que coabita com um personagem monstruoso e capaz de infâmias
aterrorizantes, em um lugar transfigurado, no sentido alucinatório, dominado por horrores e alienações (a combinação de uma organização narcisista maligna, de um “claustrum” perverso e do mundo de um sistema
delirante). Catherine toma, assim, contato com o terror e pode conhecer as
arquiteturas de uma realidade devastada; para chegar a recuperar a inocência violada pelo monstro, no entanto, deve decidir-se a fazer entrar o Si
mesmo infantil traumatizado e o aberrante aparelho defensivo do assassino
serial dentro de sua própria mente, invertendo o habitual fluxo do macacão
cibernético.
Então, não só o contato empático, mas também uma contratransferência dolorosamente participada é o que nos leva aos abismos do coração
dos pacientes em situações extremas. E, simetricamente, nos arrasta aos
abismos da contratransferência, onde somos conduzidos a experimentar
sentimentos atormentadores,6 que freqüentemente nos levam a nos pergun-
põe considerar um percurso cognitivo e de experiência, do qual a contratransferência representa
uma etapa e a empatia o resultado final, uma empatia como: “contato progressivo, compartilhado
e profundo com a complementaridade objetal. Com o Eu defensivo e as partes cindidas do outro,
não menos que com subjetividade egodistônica”.
6
Sempre mais intensamente me encontro a pensar que, ainda que seja importante para qualquer
relação terapêutica, para o paciente grave chega a ser essencial e necessário tornar a escrever uma
psicanálise das experiências emocionais extremas e, talvez, chegar a teorizar uma metapsicologia
dos afetos além da metapsicologia das pulsões. Talvez essa necessidade já estivesse implícita na
504 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 489-512, 2005
Não é só questão de análise pessoal feita em seu momento [...] de análise sucessiva, de supervisões, de training, de leituras e “horas de vôo”;
é também questão de “material de base” e de vida vivida, ou melhor,
das modalidades com que essa foi vivida: como um apêndice do trabalho, em uma negação da própria subjetividade ou com uma intensidade
emotiva, ao qual permita uma autêntica disponibilidade para o paciente, não somente do “saber” do analista, mas também do “ser” do analista.
Estou cada vez mais convencido de que na análise conta cada vez mais
o que “fazemos” do que o que dizemos. Por “fazer” não entendo, naturalmente, um atuar, mas todas aquelas operações mentais que cumpriconceitualização dos vínculos de Bion e nos permitiria chegar a formular uma psico(pato)logia
psicanalítica em termos clínicos deste tipo: ± L (Love) y/o ± H (Hate) e, por conseqüência, ± K
(Knowledge). (N. da T.: Do ingl., Love, Amor; Hate, Ódio; Knowledge, Conhecimento).
Não creio que seja por acaso que os psicanalistas italianos, muito empenhados em situações extremas, reflexionem sobre a função da “fé” e da “confiança” em seu trabalho analítico (NERI, 2005),
ou então falem de uma “linguagem da ternura” (GABURRI, 2004). E, outra vez, não por acaso,
me parece que Racamier (1995) tenha dedicado atenção à “ternura” como sentimento primário,
com funções protetoras, para desvios narcisísticos negativos ou incestuosos.
Em particular, creio que a ternura (T ) possa constituir um fator terapêutico específico (fator T ) ,
porque as experiências extremas nos ensinam que, freqüentemente, foi também a impossibilidade
originária de vivenciar a ternura de um continente que ajude a se individuar o que alterou a evolução do sujeito.
Os pacientes graves, freqüentemente, não estão em condições de criar um significado subjetivo
(sujetivo) sobre o qual reflexionar no hic et nunc da sessão. Então, o trabalho terapêutico deve
desenvolver-se em uma área de experiência intermediária ou, inclusive, interna à mente do analista, área que possa conseguir oxigênio de um fator T, considerando-o como o substrato emocional
essencial de uma contratransferência apaixonada e inspirada por bons objetos internos. Porque,
uma vez mais, nas situações extremas devemos voltar a pôr em jogo a essência mais arcaica da
vida mental, isto é, a vida afetiva. Então, junto à necessidade de estar o mais aberto possível para
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 505
Mauro Manica
tar até que ponto é lícito fazer reviver no paciente uma dor e um sofrimento
que parecem estar no limite das possibilidades de ser tolerados.
Uma contratransferência no limite também para o analista, ou talvez
mais além de margens mais freqüentadas, nesse mais além das possibilidades contratransferenciais do próprio analista no que, como diz Ferro
(2002a):
CONTRATRANSFERÊNCIA
EM
SITUAÇÕES “EXTREMAS”
mos na presença do paciente: algumas conhecemos (como recebemos
ou não suas identificações projetivas, como as elaboramos, como as
restituímos, quais rêveries ativamos, quão capazes somos de modular
nossas intervenções segundo as capacidades assuntivas que o paciente
nos aponta...), porém seguramente são muitas mais aquelas operações
mentais que fazemos, inclusive na inconsciência de fazê-las, e cuja
descrição e “descobrimento” constituirão os resultados das futuras investigações em psicanálise.
Creio que, junto às operações inconscientes e novas das quais Ferro
fala, os pacientes em situações extremas nos levam a repensar e a criar
novos significados também para operações mentais mais experimentadas e
conhecidas, tanto em suas qualidades como em suas distorções.
Ao longo dessa diretriz, penso que à função de uma contratransferência dolorosamente participada entrecruza-se a função da teoria: claro, de
captar cada elemento do paciente, a condição indispensável para que o analista alcance uma autêntica compreensão de seu paciente está dada pelo carinho (fator T) que ele consiga realmente
sentir por aquele paciente, qual função derivada do código materno.
No fundo, isso corresponde ao que Harold Searles (1959) intuiu, com antecipação, em sua
genialidade sem preconceitos: isto é, a importância de que o analista seja consciente de seus
sentimentos de carinho para com o paciente e a importância de que os expresse abertamente. E isto
a fim de que cada paciente (seja neurótico ou psicótico) possa receber, de nossa parte (a fim de
sanar suas próprias áreas traumatizadas), já não a frustração de suas necessidades afetivas, não a
repressão de seus desejos, tampouco uma sedutividade atuada, não a negação de seus valores
pessoais (assim como os vivenciou em sua relação com as figuras primárias), mas a máxima compreensão, de nossa parte, dos sentimentos que nascem em nós como resposta às suas experiências
emocionais. Isso – nos ensina Searles – faz com que o paciente possa emergir da situação terapêutica, assim como a criança sai da situação edípica: isto é, que a criança descubra que os pais
queridos correspondem ao seu amor, reagem para ele como pessoa que vale e é capaz de ser
amado.
Essa experiência reforça o Eu e o paciente que, como a criança, irá adiante, com um self mais
estável propriamente, por estar seguro de que seu amor, ainda que seja irrealizável, é
correspondido; também será mais estável dando-se conta de que está vivendo em um mundo no
qual os sentimentos de cada indivíduo estão inseridos em uma realidade muito mais ampla do que
a sua, ou a de sua própria relação com seu analista, porém toda essa compreensão dá-se graças ao
fator T, à ternura de seu analista.
506 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 489-512, 2005
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Mauro Manica
uma teoria entendida principalmente como cultura do encontro (e sobre o
encontro) entre paciente e analista.
Inclusive, recentemente, alguém (DE MASI, 2002) sustentou que, na
psicanálise dos casos graves, desde as fases iniciais do tratamento, é necessário dotar-se de uma hipótese teórica sobre o paciente, ou seja, dispor de
uma teoria a partir da qual se guiar, ainda que criticamente. Bem, creio que
assim o psicanalista se expõe ao risco de perder o paciente dentro da própria teoria, visualizando apenas a teoria que adotou e vinculou ao paciente,
desconhecendo-o, desse modo, como pessoa portadora de uma irredutível
subjetividade. Em essência, o risco é fazer um uso defensivo da estrutura
teórica, transformando-a de religião da mente (MANCIA, 1987) – capacidade de criar vínculos e conexões – em religião do analista, que dessa maneira conserva demasiada memória e demasiado desejo, sem poder desenvolver suficientes capacidades negativas (BION, 1970).
Por outro lado, é inevitável que, em certa medida e principalmente
com os pacientes graves, o analista busque uma referência e uma contenção nas próprias teorias, que, em resumo, se dirija a elas como se pode
dirigir-se a um bom objeto interno. Claro, é essencial que se trate de um
autêntico objeto interno e não de um ídolo, para que se possa chegar a uma
teorização livremente flutuante, a uma relação livre e inspirada com teorias
que se dêem como metáforas vivas.
Nesse sentido, creio que se pode falar de uma função onírica da teoria. Ou seja, de uma teoria sobre o paciente que se vá criando com a evolução da relação e que se possa considerar no mesmo nível que um sonho
feito com e sobre esse paciente e, no fundo, evocado e solicitado justamente por esse paciente. Então, enquanto sonho, a teorização do analista pode
submeter-se a um trabalho associativo e interpretativo – um trabalho autoanalítico de personalização da teoria – que poderia, também, permitir um
desenvolvimento tanto da análise pessoal do analista quanto das capacidades criativas da dupla analítica.
Talvez uma função onírica, e poderíamos agregar poética, da teoria
seja assimilável ao que, no campo da poiesis artística, é a vontade-de-dar-
CONTRATRANSFERÊNCIA
EM
SITUAÇÕES “EXTREMAS”
forma, é esse movimento que leva com ele o impulso para a integração e a
transcendência criativa.
A teoria, essa teoria específica sobre esse paciente específico, poderia,
então, ser entendida como um processo imaginativo e empático necessário
para acolher suas partes cindidas mais incompletas e traumatizadas. Até
agora, funções contratransferenciais e funções inspiradas da teoria encontram uma possível conexão: aqui, paciente e analista podem criar algo juntos, pondo em contato diferentes partes da experiência e podendo sintetizar, de novas maneiras, coisas que talvez já estavam ali, porém pela primeira vez dessa maneira.
Rochelle Kainer (1999) usou o conceito de “empatia imaginativa”
para descrever a sintonia do terapeuta com uma patologia que se tornou
parte da estrutura do caráter e da visão pessoal do mundo que o paciente
deseja transcender e, além disso, definiu-a como a capacidade do terapeuta
para dar espaço à identificação projetiva e, por meio de tal experiência,
liberá-la do núcleo patológico de que se origina. Bem, eu penso que um
psicanalista que queira tentar ser empático e criativo não pode ter a hybris
de querer curar todos os núcleos de patologia, porque sabe que não pode
pretender cicatrizar todas essas feridas que, às vezes, leva também em si.
Talvez possa modulá-las, talvez possa transformá-las; certamente, pode
tratar de levá-las a um pensamento que consiga fazer-se sonho ou poesia.
Creio que esse é o desafio que toda psicanálise deveria lançar às formas
mais dilacerantes de sofrimento mental: não a celebração da dor ou a ênfase nas dimensões inefáveis de qualquer experiência extrema, mas a busca
constante e apaixonada de um encontro, de uma integração que possa criar
as premissas para uma poética da relação.
Loewald (1975) disse que um fragmento de bom trabalho analítico é
uma criação artística realizada pelo paciente e analista. E, freqüentemente,
o paciente grave chega até nós como um poeta que perdeu todo contato
com a capacidade simbólica e com a função imaginativa da própria poesia
(MANICA, 1999). Poderia, então, ser um dos intentos essenciais da relação
terapêutica o reanimar tanto a dimensão poética do encontro como a pre508 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 489-512, 2005
Resumo
O autor explora, neste trabalho, a contratransferência como instrumento de
compreensão do sofrimento mental grave. Algumas situações extremas que não
podem nem ser recordadas nem simbolizadas são revividas na sessão analítica
como uma experiência atual. No processo terapêutico, através da repetição na
transferência e na contratransferência dolorosamente participada, é possível uma
elaboração e uma construção de uma forma de lembrança.
Palavras-chave
Contratransferência. Vivência Traumática. Aflição.
Abstract
Countertransference in “Extreme” Situations
In this paper the author explores countertransference as an instrument for
understanding serious mental suffering. Some extreme situations that can be neither
remembered nor symbolized are relived in the analytic session as a current
experience. In the therapeutic process, through repetition in the painfully shared
transference and countertransference, it is possible to make and build a mode of
remembrance.
Key-words
Countertransference. Traumatic Experience. Distress.
Resumen
Contratransferencia en Situaciones “Extremas”
El autor explora, en este trabajo, la contratransferencia como instrumento de
comprensión del sufrimiento mental grave. Algunas situaciones extremas que no
pueden ser recordadas, ni simbolizadas, se reviven en la sesión analítica como
una experiencia actual. En el proceso terapéutico, a través de la repetición en la
transferencia y en la contratransferencia dolorosamente participada, es posible
una elaboración y una construcción de una forma de recuerdo.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 509
Mauro Manica
sunção da existência de um mundo poético complementar ao destino desse
momento...
CONTRATRANSFERÊNCIA
EM
SITUAÇÕES “EXTREMAS”
Palabras-llave
Contratransferencia. Vivencia traumática. Aflicción.
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Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Somente depois de concluir este trabalho cheguei a conhecer que Bruno Bettelheim
(1968) já adotou a definição de “situação extrema” para indicar essas condições nas quais
uma perene ameaça de morte espreita o indivíduo, provocando a queda simultânea de
seus habituais mecanismos de defesa e pondo em perigo sua própria capacidade para
sobreviver. Segundo Bettelheim, é o caráter de inexorabilidade de uma imprevisível
ameaça que expõe o indivíduo a um estado de absoluta impotência, a qual põe em perigo
de morte sua integridade psíquica.
Porém, minha definição de “situação extrema” refere-se a uma perspectiva completamente diferente. Com efeito, Bettelheim parecia pensar em uma situação catastrófica, exterior,
objetiva, que pode arrastar o indivíduo em qualquer fase de sua vida. Eu, ao contrário,
penso em uma situação interior e fantasmagórica que se realiza em um acontecimento
traumático originário e que se perpetua, seja em uma experiência de grave sofrimento
psíquico, seja no reproduzir-se na relação paciente-analista.
Tradução: Maria Lucia Meregalli
Revisão: Maria Regina Lucena Borges
Dr. Mauro Manica
Via Porta 3
28100 – Novara – Itália
Fone: (39) 0321 399544
E-mail: [email protected]
512 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 489-512, 2005
Introdução
Paola Marion
Membro Associado da
Sociedade Psicanalítica Italiana.
A questão do trauma, sua existência tanto em termos reais quanto
em termos psíquicos e seu papel na
patologia têm acompanhado os processos psicanalíticos desde a época
de Freud até hoje. É bem sabido que
a psicanálise começou com a teoria
do trauma e que Freud nunca se cansou de reportar-se a esse conceito
em seus textos, reexaminando-os e
corrigindo-os constantemente – o
trauma estava fortemente entrelaçado com o desenvolvimento global
de sua teoria e de sua construção
metapsicológica. Realmente, todo o
trabalho de Freud pode ser lido
como o processamento desse ponto
de partida, que estava para continuar a “operar” em sua mente (GO-
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 513
Paola Marion
Trauma e
Interpretação
TRAUMA
E INTERPRETAÇÃO
RETTI, 1997), sendo constantemente modificado com relação às formula-
ções primitivas e à interpretação que lhe fora dada.
A complexidade da teoria do trauma que acompanhou o desenvolvimento posterior da psicanálise, bem como a amplidão de sua literatura,
torna difícil apresentar um contexto sintético (MARION, 1999). Como revela o artigo clássico de Baranger e Mom (1987), as vicissitudes do conceito de trauma não refletem somente as modificações que Freud trouxe ao
edifício teórico da psicanálise (do início à segunda topografia; do trauma
sexual infantil ao abandono da teoria de sedução; de uma concepção econômica do trauma ao conceito de situação traumática após Inibições, Sintomas e Ansiedade); elas também refletem o debate psicanalítico entre os
fatores psíquicos e ambientais que se foram desenvolvendo com os vários
autores que repetidamente adotaram os termos da formulação de Freud,
porém com a ênfase depositada em um senso ou no outro. Conforme alguns autores pós-freudianos, as relações primárias e o objeto como
organizador psíquico foram admitidos como tendo um papel importante e
dominante na formação do trauma. Essas considerações deslocam a atenção do trauma do Ego para o conceito de trauma de desenvolvimento dentro da relação mãe-filho, com envolvimento, em um nível psicopatológico,
das áreas primitivas e dos níveis narcisísticos. Além disso, é impossível
separar qualquer tratamento, do trauma do Nachträglichkeit, um conceito
que introduz a idéia da causalidade não-linear e do tempo circular, e postula a possibilidade da ação terapêutica específica da psicanálise
(BARANGER e MOM, 1987).
O efeito traumático de um evento real que ocorre fora da possível área
de controle do sujeito e que escapa à sua interpretação, o impacto sobre a
organização interna dos processos psíquicos e os problemas que sua interpretação produz no interior do processo analítico – esses são os temas que
este artigo oferece para reflexão. O trauma resulta em trauma porque, depois de uma experiência à qual o sujeito é totalmente incapaz de dar sentido e integrar a sua própria realidade psíquica, são desencadeados processos
de negação maciça que se refletem sobre sua própria realidade psíquica.
514 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 513-536, 2005
1
De modo similar, examinando sucintamente o conceito de interpretação sob um ponto de vista
histórico, Etchegoyen (1986, p.407) também declarou que, como analistas, devemos nos preocupar com a realidade interna e como o indivíduo assimilou a experiência. Na medida em que deixamos o paciente perceber como ele incorporou a experiência, estamos de fato estabelecendo uma
contraposição entre a realidade psíquica e a realidade factual.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 515
Paola Marion
Uma situação de desconexão e “alienação do self proveniente do self”
(BONAMINIO; DI RENZO, 2000, p.3) compromete a possibilidade e a capacidade do indivíduo de comunicar-se com sua própria realidade psíquica
e, conseqüentemente, com o mundo exterior.
Winnicott (1971) afirma que a comunicação verbal na análise de adultos é uma área criativa que corresponde aos jogos das crianças. Quando a
comunicação é substituída por uma pseudo ou falsa comunicação, é um
sinal de que essa área de subjetividade e o espaço psíquico pessoal foram
comprometidos. O colapso do mundo subjetivo interno, manifestado como
paralisia da comunicação ou ausência de substancialidade psíquica, informa que algo violentamente traumático ocorreu, algo incapaz de encontrar
refreamento significativo na relação ou representação, comprometendo assim, radicalmente, não só a capacidade do psiquismo para perceber, conter,
representar e investir a experiência, mas também a estruturação completa
da psique. O problema é se existe ou não um espaço psíquico no qual a
experiência possa ser representada e, portanto, ponderada; conseqüentemente, a tarefa do trabalho analítico consistirá em sustentar esse processo
de restabelecimento da comunicação do paciente com ele próprio e, dessa
maneira, com o outro.
Parsons (1999) postula que a realidade psíquica é o meio através do
qual somos capazes de representar nossas experiências para nós mesmos, e
grande parte do trabalho psicanalítico baseia-se em ajudar o paciente a representar suas próprias experiências para si, de modo que a transformação
psíquica dessa experiência possa tornar-se uma possibilidade. Parsons continua, acrescentando que essa tarefa psicanalítica (que representa nossas
próprias experiências para nós mesmos) coincide com o auxílio ao paciente para criar a realidade psíquica além da realidade material.1 Em minha
TRAUMA
E INTERPRETAÇÃO
opinião, a postulação de Parsons contém uma diferença dupla em relação à
lição de Freud e capta os últimos desenvolvimentos do pensamento psicanalítico depois de Freud. Em lugar de referir-se a fantasias que “possuem
uma realidade psíquica em contraste à realidade material” (FREUD, 1915),
ela chama a atenção, por um lado, para o espaço psíquico em que as fantasias – juntamente com as experiências físicas, excitamento, prazeres, dores, emoções – podem deter-se e residir; por outro lado, alude ao trabalho
psíquico de representação, e isso se refere a situações em que a responsabilidade pessoal voltada para a própria experiência foi comprometida e a
capacidade para seu processamento, paralisada.
O Mundo Interno e sua Interpretação
Com pouco mais de um ano, desde o início de sua análise, Ginevra
trouxe-me um sonho ou, como ela colocou, “um pesadelo”.
Eu dirigia para o interior de um túnel. Atrás de mim, havia um caminhão e na minha frente muito tráfego, além de alguma coisa semelhante a
fumaça. Pensei: isso está ficando realmente perigoso. Parecia-me que havia um nevoeiro espesso e pensei que não podia ver absolutamente nada.
Tive a impressão de que havia uma saída à direita e que era minha última
possibilidade de sair dali. Subitamente, a estrada estreitou-se e fui de encontro a uma parede. Tive a sensação de colidir com ela e morrer, e senti
uma ansiedade terrível. Quando acordei, percebi que tinha estado face a
face com minha morte.
O “pesadelo” de Ginevra representa uma leitura e uma descrição muito precisa do que a paciente fez de si própria e de seu ambiente interior
após os primeiros meses de nosso trabalho psicanalítico, durante o qual eu
era confrontada com sua condição mental e emotiva particular. Imediatamente depois que ela me contou seu pesadelo, minha mente chegou à vívida sensação da contratransferência que acompanhara o primeiro longo período de análise com essa paciente, o qual eu podia definir como um bloqueio mental violento, e dentro do qual eu estava tentando com empenho
encontrar espaço para pensamento e afetos. Às vezes, essa sensação com a
516 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 513-536, 2005
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qual eu estava lutando para dar um sentido tinha sido tão violenta, que me
fazia sentir cada vez mais apreensiva quanto à ausência de um local para
colocar alguma coisa afetiva e significantemente viva entre mim e a paciente: sentia como se avançasse contra uma parede de desesperança. Realmente, os primeiros meses da análise tinham sido caracterizados pela maneira particular da paciente se relacionar comigo, e isso também emergia
nas associações oníricas que o próprio sonho agora começava a indicar: ela
me disse que na noite anterior, em um jantar, sentira-se excluída e que uma
parede havia sido construída em seu interior, ao mesmo tempo em que ela
ignorava o convidado ao seu lado. Nessa época, o trabalho com Ginevra
freqüentemente me dava a impressão de que eu estava falando com uma
parede, com nossas palavras chocando-se contra ela, sem produzir qualquer repercussão.
A necessidade de Ginevra quanto à análise foi expressa de uma forma
muito especial, que eu chamaria de possessão concreta da sessão. Durante
esse encontro, fui tornada o objeto de um intenso bombardeamento de comunicações concretas, na forma de histórias muito detalhadas e confusas
sobre tudo o que acontecia em sua vida real (coisas que ela havia feito ou
tinha de fazer, organizado ou tinha de organizar), e essa troca tendia a se
tornar um contínuo vaivém; de vez em quando, isso me fazia pensar em um
jogo de pingue-pongue. Apesar do fato de emoções violentas estarem no
ar, referindo-se principalmente ao aspecto persecutório e geralmente expressas como experiências de abandono e queixa recriminatória, a comunicação da paciente carecia totalmente de qualquer reflexão sobre seu self e
de contato com suas emoções. Esse tipo de alienação separada/separação,
que faz o analista sentir-se alienado de si próprio, torna-se óbvio na
contratransferência do analista, o qual se descobre preso em uma atmosfera
pesada, seus pensamentos agrilhoados e ancorados a uma superfície plana,
monótona. Essa sensação é acompanhada, muitas vezes, de um sentido de
confusão e sentimentos de falta de confiança e desamparo. Em situações
como essas, o analista parece chegar muito perto, e muito diretamente, da
impossibilidade de representar a “confusão de afetos que não mais se rela-
TRAUMA
E INTERPRETAÇÃO
ciona a representações, mas à irrepresentabilidade”, e que revela a ausência de “formações intermediárias” (GREEN, 1999, p.295).
Gradualmente, à medida que o trabalho analítico prosseguia, fui impressionada por dois aspectos que influenciaram a imagem que eu estava
formando de minha paciente: por um lado, como a falta de contato com ela
própria a privava dos instrumentos do pensamento, deixando-a totalmente
confusa; por outro lado, e ligado a esse primeiro aspecto, havia uma necessidade escrupulosa de relatar todos os diminutos detalhes de sua vida exterior (um fim de semana, a organização de um jantar, etc.). Era como se o
fato de ser capaz de contar tudo lhe desse uma satisfação especial. Quanto
a mim, era deixada com a sensação oposta de frustração e preocupação
com algo que parecia estar faltando. Como diz Winnicott (1945), nesses
casos, a impressão do analista é a de que nenhum trabalho analítico foi
feito. Muito tempo se passou antes que eu percebesse que havia realmente
uma operação sofisticada e complexa acontecendo sob a superfície, a qual
servia para indicar e comunicar algo relacionado a uma necessidade básica
da paciente, a necessidade – jamais satisfeita anteriormente e relacionada
com o problema de espelhamento (mirroring) e integração – “de ser conhecida em sua completa miscelânea por uma pessoa, o analista”
(WINNICOTT, 1945). Refletindo sobre o que aconteceu antes que “a criança se conheça (e, portanto, conheça os outros) como a pessoa inteira que
ela é (e que eles são)”, Winnicott sustenta que o processo de integração
precede a personalização e a aquisição do senso de realidade, e o que ocorre nesse nível é de “importância vital” para o que acontece depois. Realmente, no caso de Ginevra, esse conjunto de problemas foi expresso não
tanto por meio do conteúdo de suas comunicações, mas através de seu especial modo de comunicação comigo, criando uma situação de
engessamento sufocante e rígida, que excluía qualquer possibilidade de
criar uma distância mental entre nós, na sessão.
Entretanto, por meio do pesadelo, a paciente foi capaz de entrar em
contato com o seu self e sonhar com a existência deste, fornecendo-me
uma descrição de sua condição mental e da estrutura de suas defesas, po518 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 513-536, 2005
2
Do latim, claustrum, limite ou barreira. (NT)
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 519
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rém com algo extra, com relação aos sonhos que vinha trazendo para mim,
naquela época. A presença de ansiedade como um estado afetivo funciona
como “indicador” de que alguma coisa pode começar a emergir do inconsciente da paciente. De fato, Ginevra não apenas estava descrevendo simplesmente, em termos do congestionamento do tráfego no túnel, sua sensação claustrofóbica de sufocação e bloqueio que caracterizava a condição
de sua mente (bloqueio mental) e que se projetava externamente como um
claustrum2 em sua relação com os outros e em sua recusa da dependência,
mas estava experimentando diretamente a morte psíquica. Isso a invadia
sempre que se sentia obrigada a ativar seu mecanismo projetivo, delegando
ao outro (p. ex., a analista-motorista do caminhão atrás dela) a função de
pensar e sentir em seu interesse (havia algo como uma névoa espessa e
pensei que não podia ver absolutamente nada).
O mecanismo de “delegar” seus próprios desejos e pensamentos, por
um lado, está ameaçando esmagá-la como o caminhão, fazendo-a sentir-se
uma vítima de claustrofobia e perseguição; por outro lado, isso a obriga a
se confrontar com seu próprio vácuo interno – a ausência de um espaço
pessoal e de um nível simbólico e metafórico, que ela agora é capaz de
experimentar pela primeira vez, por meio de uma experiência angustiante
(tive a sensação de colidir com ela e morrer). A paciente associa a direita
(a saída à direita) com as idéias políticas de sua mãe, as quais despreza e
combate. Entretanto, a saída à direita, a via para a salvação (sua última
possibilidade), também me faz pensar em um meio de fuga, uma fantasia
de ser capaz de recuperar os antigos modos de relacionamento, nos quais
existe uma mãe que pensa por ela, em vez de levar em conta o seu mundo
interno e as memórias de sua infância, às quais, até esse momento, a paciente fizera somente referência muito escassa e vaga. Por meio do espaço
analítico e da relação de transferência, Ginevra começou a perceber uma
possibilidade de enfrentar o problema de seu próprio mundo interno, sem
maniacamente o negar e fugir dele.
A sensação de bloqueio mental e a falta de espaço para comunicação
TRAUMA
E INTERPRETAÇÃO
parecem referir-se a uma forma particular em que o “trabalho negativo”
pode manifestar-se durante a cura. Tanto as considerações de Green (1993,
2002) sobre esse tema como o trabalho de Botella e Botella (2001) sobre o
problema da “representação psíquica” enfatizam a maneira como o pensamento do “negativo” se refere ao desenvolvimento da teoria freudiana após
1920 e à evolução do conceito de trauma e “neurose traumática” em seu
trabalho, ainda que o ponto de vista apresentado por Luto e Melancolia
examine condições que causam deficiência na capacidade para investir e
representar o objeto.3
O trabalho negativo que caracteriza o aparelho psíquico em suas manifestações extremas parece remover o corpo e a substância do próprio
objeto sobre o qual o trabalho de análise é realizado – a realidade psíquica,
como é expressa e manifestada dentro da relação analítica. Nesses casos, a
comparação que Freud usa em seu artigo de 1937 (p.55) é especialmente
apropriada: “Dá a impressão não tanto de trabalhar com argila, mas, ao
contrário, de escrever em água”. Em situações em que a capacidade para a
representação não foi desenvolvida ou entrou em colapso, o problema para
a análise é ser procurada em um nível primitivo básico, que se refere ao
estágio de integração, bem como à possibilidade de estruturação para e
com o paciente, da experiência de uma realidade psíquica.
No caso da minha paciente, assim como com outros pacientes que
conheci ao longo dos anos, essas manifestações do negativo jazem ocultas
atrás de uma normalidade aparente em seu comportamento exteriorizado, e
este freqüentemente acompanha as afirmações de sucesso profissional e
uma capacidade de administrar suas próprias vidas de uma determinada
maneira eficiente. Pelo menos esse é o caminho que existia para Ginevra.
3
A propósito da teoria estrutural, o pensamento freudiano abriu perspectivas que se estendem
além da teoria da representação baseada essencialmente no modelo da interpretação dos sonhos.
Essa modificação no centro de gravidade em relação à elaboração da primeira topografia relaciona-se à expansão progressiva dos limites da realidade psíquica, a partir da atenção substancialmente dada ao conflito psíquico até ao reconhecimento da relação com a realidade, e abre o caminho para o rumo tomado pela psicanálise depois de Freud e ao espaço designado progressivamente para a relação de objeto e suas vicissitudes.
520 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 513-536, 2005
O Núcleo Traumático
Retornando a Ginevra, o núcleo traumático que se encontra na base
das defesas da paciente, e que esta tentou tenazmente evitar, forma parte da
sua história pessoal que fui descobrir somente através de abordagens progressivas no decurso da análise.
Ginevra era a primeira filha de pais que haviam se casado tarde; sua
mãe tinha aproximadamente 40 anos quando minha paciente nasceu. Alguns meses após o nascimento de Ginevra, a mãe engravidou novamente,
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 521
Paola Marion
No entanto, atrás da fachada imaculada se esconde um bloqueio interno
que impede o trabalho da livre associação e que é manifestado na
contratransferência, pela sensação da analista de perder continuamente o
fio do relato, de sentir-se confusa, em um nevoeiro, de estar exposta a um
bombardeio caótico de “fatos” e “atualidades” que muitas vezes são difíceis de organizar como uma seqüência lógica de eventos ou como memórias. Nessas situações, “a livre associação, que revela um tema coerente, já
está afetada pela ansiedade, e a coesão de idéias é uma organização de
defesa” (WINNICOTT, 1971). Em situações como essa, a regra fundamental é uma conquista, não o ponto de partida.
De fato, o trabalho dessa aglomeração de associações era preencher
ou esconder o vazio que havia sido criado após o processo de negação
(erradicação e apagamento) de sua própria realidade interna. Como escreve
Green (2000a), esses pacientes sentem-se ameaçados pelo fluxo de pensamento espontâneo ou pela tentativa de estabelecer uma rede de vínculos e
conexões importantes que poderiam realmente levá-los a reassumir o contato com a parte da realidade interna que havia sido apagada ou erradicada.
É esse evacuar-se da representação que causa a desconexão da realidade
interna. O que é revelado no material clínico “é a morte da representação
da mãe que não aparece ou do seio que não aplaca a fome, mas aumenta a
excitação. Subseqüentemente, o sujeito que realiza isso nega a existência
de sua própria realidade psíquica” (2000a, p.436). A negação dessa realidade psíquica conduz a uma forma de vazio ou depressão (2000a, p.437).
TRAUMA
E INTERPRETAÇÃO
mas dessa vez deparou-se com graves dificuldades (problemas cardíacos),
que tornaram essa segunda gravidez extremamente arriscada; muitas vezes
sua mãe precisou ser hospitalizada e permanecer acamada durante longos
períodos. Tal situação continuou depois do nascimento do irmão de
Ginevra, e aqui minha idéia era a de que esse novo estado de coisas representou, para a minha paciente, uma ruptura traumática no sentido da continuidade de sua própria existência, ao mesmo tempo em que a “preocupação materna primária” era substituída pela demanda da mãe para satisfazer
suas necessidades narcisísticas através da filhinha.
Menciono o núcleo traumático não casualmente, porque o colapso no
sentido de continuidade ocorreu em um período muito precoce de sua vida,
na área da relação primária na qual a criança ainda se encontra em estado
de “dependência absoluta” do objeto externo, o qual não é reconhecido
como tal, mas se conserva contido dentro da esfera da onipotência infantil.
Em termos winnicottianos, estamos na área do “objeto subjetivo”, a qual,
se comprometida, resulta em uma alteração da sensação de existir e da
consciência de que se é real (WINNICOTT, 1971). A paciente descrevia
sua mãe como uma bela mulher, competente e resoluta em tudo o que empreendia, e era vista com admiração e respeito por todos que a conheciam.
O pai aparecia como uma figura obscura e não parece ter preenchido nem
um papel separativo nem a função de terceiro quanto ao par mãe-filha,
facilitando desse modo o desdobramento do complexo de Édipo. Desta
forma, Ginevra foi sobrecarregada com uma mãe e um pai que eram incapazes de colaborar no desenvolvimento de seus filhos: o irmãozinho, cujo
nascimento tivera conseqüências tão graves para a saúde de sua mãe, tornou-se uma criança extremamente exigente e difícil. Porém, enquanto o
irmão se identificava com esses aspectos infantis e exigentes, minha paciente assumia o papel do adulto, uma irmã mais velha responsável, uma
“vice-mãe”.
O dilema em que Ginevra se encontrava parecia ser representado, por
um lado, pela identificação com uma mãe fálica, que precisava triunfar
sobre os homens e se apresentava, em um sonho, como uma “alemã aria522 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 513-536, 2005
Defesa Maníaca
Mudando o foco de atenção para a relação com o “ambiente”,
Winnicott pondera sobre os efeitos desorganizadores de experiências particularmente – e precocemente – traumáticas sobre a psique. Seus conceitos
de defesa maníaca (1935) e falsa reparação (1948) parecem-me extremamente úteis, ao focalizarem um tipo específico de condição patológica em
que a estruturação do espaço intrapsíquico foi violentamente danificada.
Ao contrário da elaboração de Melanie Klein (1935) sobre o conceito de
defesa maníaca, Winnicott considera esses mecanismos de defesa como
associados a um sentimento de alguém se tornar alienado de seu próprio
mundo interno. À luz do conceito da falsa reparação, isso pode ser explicado como não tendo conexão alguma com a culpa do paciente, mas estando certamente ligado a uma de suas identificações com a depressão materna. As fantasias onipotentes são vistas como um meio de distanciar-se da
realidade interna – uma defesa contra a sua aceitação –, e não da realidade
propriamente. A influência dominante da defesa maníaca indica que ocorrera um colapso do mundo interno do sujeito em uma fase de desenvolviSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 523
Paola Marion
na”; por outro lado, pela necessidade de recuperar a parte dissociada que,
no mesmo sonho, aparecia sob a forma do “judeu torturado” e coincidia
com os aspectos primitivos ligados a aspectos instintivos e agressivos,
irreconhecíveis ao seu ambiente e relacionados à área de identificação primária, que Winnicott (1971) define como “talvez a mais simples de todas
as experiências, a experiência de existir”. A re-atividade maníaca que geralmente caracterizou sua vida e que foi apresentada claramente em seu
modo de comunicação na análise parecia consistir em meio de fuga de seu
mundo interno, rumo à realidade percebida e experimentada em termos
concretos: um “estado de unidade ou um estado de integração de espaçotempo, no qual existe um self contendo tudo”, parecia ser substituído por
uma condição em que “predominam os elementos dissociados que existem
em compartimentos ou estão dispersos por toda parte e largados descuidadamente” (WINNICOTT, 1971).
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E INTERPRETAÇÃO
mento muito precoce, sendo então substituído por um estado de alienação e
contra-senso organizado (WINNICOTT, 1971); ao mesmo tempo, foi
danificada sua capacidade de conceder reconhecimento e sentido à sua própria realidade interna e aos objetos ali alojados, bem como às relações entre eles. Essa questão foi compreendida e desenvolvida nas considerações
de André Green sobre a mãe morta (1980), assim como em seu estudo da
função desobjetalizante (1993, 2004). Na situação à qual Green se refere, o
verdadeiro caráter da vida psíquica é mantido sob controle, e “não é apenas
a relação com o objeto que está sujeita a ataque, mas todos os seus substitutos, terminando com o próprio Ego” (2004). O risco da não-representação confirma o caráter impotente e traumático do processo real, pois –
como salientam Botella e Botella (2001, p.27) – a perda da apresentação
“causa um autêntico vazio que tem um efeito implosivo”; ainda mais devastadora é a experiência do não-representável de sua própria ausência aos
olhos do outro (BOTELLA e BOTELLA, 2001; FABOZZI, 2003).
No caso de minha paciente, esses problemas resultaram na impossibilidade de “sentir-se real e ter uma vida interna em que pudesse retrair-se e
relaxar” (WINNICOTT, 1971, p.199). Eu só estava muito consciente de
tudo isso na contratransferência por causa da minha dificuldade de manter
um contato empático com ela. Muitas vezes eu sentia que tinha errado o
ponto ou esbarrado no tom errado, tornando-me confusa e desorientada.
Minhas próprias comunicações pareciam-me apáticas, correndo o risco de
se tornarem pedagógicas ou explanatórias. Ginevra lembrava-me uma daquelas crianças eternamente agitadas que, incapazes de brincar, estavam
continuamente em busca de algum estímulo ao qual reagir. Essa situação
suscitou uma questão específica, relativa ao uso das comunicações no decurso das sessões. Darei aqui dois exemplos extraídos de uma fase avançada da análise. Durante o trabalho analítico, tornou-se firmemente mais claro como sua dificuldade de manipular O. – a filhinha que o casal havia
adotado – e o seu próprio problema de criança difícil colocavam-na em
contato com seus aspectos dissociados. Em uma sessão (a segunda da semana), aproximadamente no terceiro ano de análise, a paciente me disse
524 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 513-536, 2005
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que havia tido um sonho, mas que não podia mais lembrá-lo. Eu me lembrei dele por algum tempo, mas depois o esqueci. Ela continuou a me contar que no dia anterior tivera problemas com sua filha: Sofri o problema da
loucura (era sobre isso, realmente, que tínhamos falado na sessão anterior,
mas a paciente não fez a conexão) e nós tivemos uma briga horrível. Eu
achei que ia ficar louca. O. tornou-se agressiva e começou a me atacar.
(Ginevra caiu em silêncio, como se suspensa.) Estou confusa. Não consigo
recordar o que aconteceu.
Sem lhe explicar nada, penso que Ginevra havia me falado, na sessão
anterior, sobre sua mãe, que tinha feito sua filha adolescente tingir o cabelo
por não gostar de sua cor natural. Creio que agora ela está em contato com
uma mãe louca, uma mãe que desconecta e erradica os pensamentos durante a lembrança do sonho, e o que aconteceu foi evacuado. Com isso, simultaneamente, a capacidade de perceber “o seu próprio interior” também foi
evacuada. Mas também penso no pequeno propósito que há em oferecer
interpretação nessa freqüência, arriscando fazê-la sentir-se “esmagada” sob
sua impotência. Assim, tudo que lhe digo é: “Talvez você não se lembre do
que aconteceu, mas pode recordar como você se sentiu”. Ginevra desencadeou uma descrição de sua agitação, de como ela se sentiu no auge da raiva
e não sabia como lidar com O. Eu estava fora de mim. O. recusava-se a
comer. Ninguém dizia uma palavra à mesa. O. disse: “Tudo isso é tão
triste!”, depois ela me deu um colar que ela havia feito para ela mesma,
com um bilhete anexado: “Eu te amo”. Mas para mim era difícil aceitá-lo.
Eu estava em um tal estado... literalmente fora de mim.
Também associo sua raiva à ansiedade que sente com a minha rejeição, quando me presenteia sua confusão e seu sentimento de não estar à
altura de seu papel de mãe. Talvez ela tenha medo de estar me despistando,
quando me presenteia sua criança difícil e acha que preciso mantê-la à distância.
Nesse momento, Ginevra foi capaz de começar a recuperar algumas
de suas idéias sobre o que havíamos conversado nas sessões anteriores.
Quando digo a Ginevra que ela está preocupada com a possibilidade
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E INTERPRETAÇÃO
de eu rejeitá-la, por um lado, estou consciente do seu medo por ter em seu
interior a loucura de uma mãe que não aceita nem maneja, e que, realmente, correspondia à realidade com os problemas suscitados por seu irmão
mais jovem; por outro, estou referindo-me aos meus sentimentos, na
contratransferência, causados pela deficiência da rêverie e de minha capacidade para transformar as emoções despertadas pela relação em elementos
de pensamento que possam ser compartilhados e comunicados. Além disso, se “o objetivo da interpretação deve incluir a sensação, por parte do
analista, de que uma comunicação foi feita e requer reconhecimento”
(WINNICOTT, 1948), é precisamente essa impossibilidade de reconhecer e
aceitar o ‘gesto’, como ocorreu com o colar de O., que tem caracterizado,
desde o início, meu diálogo com Ginevra. Enfatizando o compartilhamento
de uma experiência, e não o que realmente aconteceu, inicialmente meus
comentários destinaram-se a sustentar a emergência do espaço interno da
paciente; portanto, de um espaço que se colocasse entre nós, no qual o
‘gesto’ pudesse encontrar reconhecimento e aceitação.
O desenvolvimento do processo é descrito em uma sessão, alguns
meses depois da que acabei de relatar. Estávamos no momento da interrupção de verão, e Ginevra me disse que estivera pensando em me pedir para
reduzir o número de sessões após as férias. Freqüentar quatro sessões semanais era realmente demasiado para ela. Ficou calada por alguns minutos, depois começou a falar sobre a filha, que lhe dissera ter se sentido
muito ferida em um delicado lugarzinho dentro dela, pela falta de compreensão que ela encontrava em casa e entre seus colegas da escola. Eu lhe
disse que era exatamente desse delicado “lugarzinho” dentro dela e das
emoções que ele contém que ela precisava me falar; ela necessitava de
mim para compreender que, quando isso a assustava, ela precisava cancelálo, como no caso das sessões. Um silêncio momentâneo, depois ela continua:
P.: Para mim, é muito trabalho pensar que tenho medo da separação.
A.: Provavelmente não é da separação que você tem medo, mas dos
sentimentos que ela lhe desperta.
526 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 513-536, 2005
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Ginevra fica silenciosa durante um período muito mais longo, o que
absolutamente não lhe é usual. Quando ela fala novamente, sua voz é muito calma e ponderada.
P.: Pode ser que eu esteja curiosa sobre esses sentimentos enquanto
estou aqui. Mas trarei o assunto de reduzir as sessões novamente, quando
eu voltar, apenas para lhe mostrar que não dependo delas. Agora estou me
sentindo triste. Talvez seja porque eu não tenha tido esses sentimentos antes, como quando eu era criança. Eu fazia praticamente tudo para atrair a
atenção de minha mãe.
A.: É como se você estivesse dizendo que se sentia forçada a fazer
isso a fim de obter sua atenção.
P.: É, assim ela gostaria de mim.
A.: Forçada a fazer, talvez sem se permitir sentir o que você estava
experimentando ou o que você sentia. (Enquanto digo isso, penso comigo
mesma na diferença entre “fazer” e “ser”.)
P.: Tenho falado muito mais com O. Ela tem um jeito de falar abertamente, ela tem sofrido muito mais do que eu.
O “delicado lugarzinho” que a paciente menciona na sessão pareceme o primeiro sinal de um espaço interno potencial, uma área ainda delicada, mas que já pode começar a representar uma base para o self e o sentido
de existir. A capacidade de desenvolver uma dimensão interna e usar os
mecanismos de introjeção e projeção agora envolverá um afrouxamento do
seu controle sobre a realidade externa, que a impedia de fazer contato com
(sua dimensão subjetiva e seus sonhos) a dimensão da subjetividade e do
sonho (BOLLAS, 1999).
Entretanto, foi apenas mais tarde, no decurso da análise, que o significado do primeiro sonho pôde vir à luz e revelar o profundo sentido da
defesa maníaca que a paciente adotou. No início do sexto ano de análise, a
mãe da paciente adoeceu gravemente em conseqüência de uma cirurgia.
Ginevra foi chamada a ajudá-la e, embora se recuperasse, até certo ponto
sua mãe permanecia em condição muito precária; do ponto de vista psicológico, confusa e diminuída. No entanto, essa situação dolorosa ofereceu-
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nos uma oportunidade para dar mais um passo adiante na análise. Através
dessa experiência da doença, Ginevra veio a reconhecer uma representação
da mãe que provavelmente tinha sido “morta” em botão, por ser dolorosa
demais; isto é, uma mãe frágil, em perigo de vida (a mãe da sua infância
mais remota), contra a qual ela reagia, substituindo-a por outra imagem, a
da mãe triunfante.
Essa imagem de sua mãe agora podia ser representada em um sonho,
por meio do qual o processo de luto podia começar e com ele terminar a
análise.
Eu estava no sonho, e minha mãe também estava. Eu estava parada
atrás de uma tela de vidro. Você sabe, aquelas telas que têm aonde você vai
para olhar os bebês recém-nascidos, no berçário. Mas dentro não havia
caminhas de criança, apenas pessoas deitadas. Entrei e vi que minha mãe
estava lá dentro também. Eu não sei se ela estava morta, porque elas estavam todas deitadas ali, bastante quietas, como se estivessem dormindo. Eu
me sentei e meditei. Eu me senti bem lá dentro.
Agora, digo-lhe que, por meio da meditação-análise, ela parece estar
apta a encarar os sentimentos relacionados ao luto pela mãe moribunda,
além de seus próprios sentimentos pelos filhos que jamais tivera e pelo
nascimento de seu irmão mais jovem. A análise parece tê-la levado além da
tela de vidro de suas defesas, ajudando-a a construir um lugar em seu interior (meditação) e a dar uma representação ao núcleo traumático e aos seus
sentimentos.
As razões para suas reações e sua onipotência maníaca, que eu agora
era capaz de conectar à imagem de uma mãe doente e moribunda, e que
tinham servido para defendê-la das ansiedades da morte, adquiriam então
uma profundidade e uma substância que me fora impossível ver até aquele
momento. Meus pensamentos retornaram ao primeiro sonho, à “saída à
direita” que a paciente havia associado às idéias políticas de sua mãe, ao
passo que eu, particularmente, percebia-a como um meio de fuga e um
recurso para antigas formas de relacionamento. À luz do que agora eu estava descobrindo, as palavras da paciente (Tive a sensação de que era minha
528 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 513-536, 2005
O Trabalho de Interpretação
Como tentei mostrar através do exemplo clínico, a experiência de extrema ansiedade, suscitada pela ausência do objeto, adquire sua qualidade
traumática logo após o colapso da função de investimento do outro – uma
função que age como rêverie e dá sentido à experiência. O sujeito
desinvestido está à mercê de emoções inomináveis, e ao próprio processo
de integração, a base para a construção de um espaço psíquico pessoal,
dentro do qual sua própria experiência pode ser ponderada e representada,
está comprometido. A presença de um self interpretador (OGDEN, 1985) e
o papel implícito e explícito de dar sentido, desempenhado pelo outro, são
decisivos para a criação do espaço potencial como uma área hipotética
criada na fase de negação do objeto, a fim de sustentar o objeto não-eu. A
existência ou a falta de um espaço psíquico pessoal – “um espaço em que a
criatividade possa se tornar possível” (OGDEN, 1985) – são mediadas por
um self que interpreta, assumindo o papel do terceiro, o qual Green (2004)
propõe denominar de o outro do objeto, enfatizando, desse modo, seu caráter simbólico intimamente correlacionado à atitude mental da mãe.
No caso de Ginevra, como em outras situações similares, o
irrepresentável, o inconcebível, a coisa que violenta a existência do sujeito
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 529
Paola Marion
última possibilidade de sair) também pareciam referir-se à experiência
traumática de “uma mudança repentina, transformando literalmente a imagem da mãe” (GREEN, 1993, p.274), depois da qual não havia chance ulterior de salvação. A morte que a paciente mencionou no sonho podia, presentemente, ser interpretada como a transformação repentina na vida
psíquica, à época do desinvestimento da mãe, registrada como uma autêntica morte pessoal. Essa transformação na vida psíquica era “experimentada pela criança como uma catástrofe”. Realmente, nessas situações, juntamente com o que é sentido como uma perda de amor, há “a perda de sentido que priva a criança do acesso a qualquer explanação que possa ajudá-la
a compreender o que aconteceu” (GREEN, 1993, p.275). O que permanece
acessível, entretanto, é a profunda identificação com a mãe morta.
TRAUMA
E INTERPRETAÇÃO
é a identificação primária com a depressão materna, que se torna um objeto
psiquicamente morto para a criança (GREEN, 1980; BONAMINIO; DI
RENZO, 20004). A defesa maníaca é um meio de negar o luto e a desesperança resultantes da experiência da “mãe morta”, mas é também um meio
de tentar mantê-la viva e preencher o vazio, e ao mesmo tempo manter-se
viva. O mundo interno é ocupado por constantes ação e reação, que simultaneamente indicam a negação do objeto morto e de sua representação.
Através dessa contínua insistência para “começar a trabalhar”, o que podemos conectar com o conceito de falsa reparação, o sujeito permanece “animado”, em uma tentativa de preencher o vazio e dar sentido à sua existência, enquanto o sentido de alienação separada é retomado e indicado por
meio da contratransferência do analista. As experiências depressivas negadas dão surgimento a um programa vitalizante, baseado em “fazer”, no
lugar de “ser”, em um “ser reativo em um meio reflexivo” (OGDEN, 1985).
Isso pode ser atualizado (atuado) na contratransferência, através de
ativismo na interpretação. São pacientes que, para se sentir e conservar
vivos, tendem a sair correndo para procurar estímulos aos quais eles possam reagir; e as comunicações também podem ser percebidas como objetos ou ações que servem para comunicar e solicitar respostas ou reações.
Os símbolos são experimentados concretamente e, portanto, não são disponíveis para a troca e o compartilhamento de experiências, tanto
intrapsíquicas quanto interpessoais (KAHN, 1974). Esse mecanismo de
funcionamento deixa o paciente com um vazio de idéias que o obriga a
funcionar de uma maneira concreta direta, evitando toda metáfora e perpetuando, desse modo, sua necessidade de um contêiner (continente) externo
4
Conforme Bonaminio e Di Renzo (2000, p.4) explicam, a idéia básica de dissociação da personalidade está subentendida no conceito de defesa maníaca. O que está envolvido aqui é a dissociação, não a repressão ou a separação: esse é um ponto essencial, pois enquanto a repressão e a
separação implicam a existência de um ego “em atividade” (p.10), a dissociação impede o desenvolvimento da criança e bloqueia a integração. Somente quando tenha ocorrido essa passagem é
que podem ser dados o sentido completo à realidade interna e o reconhecimento aos objetos que
residem em seu próprio mundo interno e às relações entre eles.
530 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 513-536, 2005
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 531
Paola Marion
(o analista, um membro da família, seu ambiente profissional, um amigo)
que possa fazer as reflexões por ele.
Sob essas condições, o analista é chamado a assumir a função do self
interpretador, do qual o paciente é incapaz de se beneficiar durante o seu
desenvolvimento. Aqui, o papel e a função da interpretação não estão tão
relacionados com o conteúdo contribuído pelo analisando, mas mais exatamente com o auxílio para que ele revele o espaço subjetivo de sua realidade
interna e, dentro da comunicação em análise, crie o espaço potencial para
pôr em andamento a cadeia de associações e as conexões entre os processos primário e secundário, a fim de que o processo analítico aconteça. Defini as interpretações amplamente usadas nessas situações como interpretações concordantes (MARION, 2003), no sentido de que elas funcionam
como um espelho para confirmar e reforçar os estados psicológico e emocional do paciente, ou como “um derivativo complexo da face que reflete o
que existe para ser visto” (WINNICOTT, 1971), favorecendo, assim, o estabelecimento das bases do self. Mediante esse trabalho realizado à beira
do conteúdo comunicado, a atenção do analista é focalizada na obtenção de
elementos favoráveis à personalização e à capacidade de auto-análise. As
comunicações do analista podem representar, nos termos de Winnicott, os
“objetos subjetivos” oferecidos ao paciente, e não “decifrações” de sua
vida inconsciente. Somente quando o paciente percebe seu funcionamento
psíquico refletido no analista, ou na mente do analista em atividade, é que
ele pode começar a transformar seus bloqueios e inibições, reconhecer o
que pode fazer com suas forças psíquicas que estão em jogo, recriar uma
circulação muito mais livre de afetos e representações pertencentes ao passado e ao presente (GREEN) e construir uma capacidade de auto-reflexão.
Tudo isso foi muito bem expressado por Ginevra, que declarou: Eu não
poderia ser pior na interpretação... É sempre tão difícil imaginar o que
está acontecendo internamente... Realmente, eu jamais poderia aprender
filosofia. Tenho de tomá-la emprestada a outras pessoas, meu próprio raciocínio é passivo. De fato, trabalhar com ela era um estímulo poderoso
para essas considerações.
TRAUMA
E INTERPRETAÇÃO
Conseqüentemente, esses casos exigirão um longo percurso de análise
realizado às margens da comunicação, embora relegando os conteúdos e o
sentido a um nível secundário, antes de termos esperança de alterar essa
sensação de achatamento devastador, que Green denomina de ausência de
“formações intermediárias”, e também antes de existir alguma indicação
de uma capacidade para refletir e sustentar uma ativa troca de comunicação
com o outro. Nesse trabalho às margens da comunicação, a tarefa de interpretação deixa de ser relacionada com a decodificação de significados, nem
é relacionada com a “construção” de novos significados ou com a
reconceitualização de eventos psíquicos e suas conexões. Nessas situações,
a interpretação deve primeiramente desempenhar um trabalho preliminar
que diz respeito ao lugar no qual os eventos psíquicos (emoções, afetos,
representações) podem ocorrer e onde as interpretações podem acontecer,
a fim de ajudar o paciente a criar uma realidade psíquica além da realidade
material. A palavra, a interpretação – antes “desenvolvendo novos sistemas de conhecimento, para assumir perspectivas mais adequadas, capazes
de fornecer um sentido mais rico e menos automutilante à existência, ou
reorganizar experiências limitadoras ou fragmentárias”, como escreve
Bordi (2004) – deve estar engajada na construção do psíquico, para usar a
expressão de Green (2004) com relação à obra de Bion. Utilizando a função do terceiro, a interpretação deve visar à tarefa de fornecer forma para o
lugar, o contêiner, o espaço em que pode acontecer todo o trabalho posterior de livre associação e representação por meio da linguagem, uma vez
que esse espaço interno parece ocorrer no ponto de colapso, e o representacional parece ter aberto caminho para o perceptivo (MARION, 2004).
Como me aproximo da conclusão, estou pensando que a linguagem e
a função de interpretação desempenham papel fundamental na constituição
da psique humana; por meio do diálogo, embora não só através desse, construímos a experiência da relação; é através da comunicação com o outro
que nosso discurso é transformado, e com isso a percepção que temos de
nós próprios, do outro e dos nossos limites é igualmente transformada.
Green (2004, p.103) escreve que, “a fim de construir o psíquico, Bion con532 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 513-536, 2005
Resumo
A autora através da apresentação de um exemplo clínico traz a questão sobre
o núcleo traumático. Demonstra baseando-se nas teorias de Winnicott, Green,
Botella e outros que o mesmo ocorre num período muito precoce, cuja dependência do sujeito do objeto ainda é absoluta e ocorre também em conseqüência da
falta de investimento desse sobre o sujeito.
Palavras-chave
Trauma. Investimento Objetal. Interpretação Mutativa.
Abstract
Trauma and Interpretation
The author brings the issue of traumatic nucleus through the presentation of
a clinical example. Based on the theories of Winnicott, Green, Botella and others,
she demonstrates that the traumatic nucleus occurs at a very early period, when
the subject’s dependency on the object is still absolute, and it also occurs as a
consequence of the lack of investment of the latter on the subject.
Key-words
Trauma. Object’s Investiment. Mutative Interpretation.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 533
Paola Marion
siderava que não faria explanação alguma em termos de seio bom, seio
mau; era necessário algo mais, pertencente à própria psique, que era indispensável à sua criação.” Ele assim postulava a existência da função alfa.
Green concluiu formulando que é uma ilusão acreditar que se consiga entender a natureza da mente humana em todos os seus aspectos, sem esse
“terceiro elemento”, que inevitavelmente carrega uma dimensão metafórica.
A atividade interpretativa envolve cada organismo vivo pertencente à
espécie humana, e na ausência dessa atividade o ser humano não consegue
sobreviver. Realmente, na ausência de interpretação nos encontramos face
a face com a morte psíquica.
TRAUMA
E INTERPRETAÇÃO
Resumen
Trauma y Interpretación
La autora a través de la presentación de un ejemplo clínico trae la cuestión
sobre el núcleo traumático. Demuestra basándose en las teorías de Winnicott,
Green, Botella y otros que lo mismo ocurre en un período muy precoz, cuya
dependencia del sujeto del objeto todavía es absoluta y ocurre también en
consecuencia de la falta de inversión de este sobre el sujeto.
Palabras-llave
Trauma. Investidura del Objeto. Interpretación Mutativa.
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Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Trabalho apresentado no 44º Congresso da IPA: Novos Desenvolvimentos em
Psicanálise do Trauma. Rio de Janeiro, 28-31 de julho de 2005.
Tradução: Maria Regina Lucena Borges
Dra. Paola Marion
Via Pasubio, 4
00195 Roma – Itália
Fone: 39063223596
E-mail: [email protected]
536 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 513-536, 2005
Seus sentidos estão fechados
Porém seus olhos estão abertos
Macbeth, Shakespeare
Deus é como um círculo, cuja circunferência está em todas as partes e o centro em nenhuma.
Nicolau de Cusa
Rafael E. López-Corvo
Analista Didata da Associação
Venezuelana de Psicanálise e da
Sociedade Canadense de
Psicanálise.
O trauma pré-verbal representa
a fenomenologia de uma estrutura
interna, sempre presente na transferência e à qual me refiro como o
“objeto surdo-mudo”: espécie de
cesura ou síntese de uma interação
entre o self atual, adulto, e a expe-
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 537
Rafael E. López-Corvo
O Objeto “SurdoMudo” e o Trauma
Pré-Conceitual:
com o uso do
conceito de
“Cesura” de
W. Bion
O OBJETO “SURDO-MUDO”
E O
COM O USO DO CONCEITO DE
TRAUMA PRÉ-CONCEITUAL:
“CESURA” DE W. BION
riência traumática real, acontecida durante a infância. Constitui um objeto
que, no presente, controla o pensamento desses pacientes e é responsável
por sua incapacidade para aprender com a experiência ou de encontrar uma
saída para a dor mental crônica. O “objeto surdo-mudo” reúne uma série de
características que poderiam resumir-se da seguinte forma: a) devido ao
que ocorre em um momento em que ainda não existe o pensamento verbal,
o trauma apresenta grande dificuldade para ser conhecido e compreendido
– trauma só pode ser reconstruído por meio das dimensões transferênciacontratransferência e é caracterizado por emoções incompreensíveis, tais
como fobias, angústia crônica, conteúdos oníricos ou tiques; b) é uma forma de defesa em que o ego fragmenta a experiência traumática e a projeta
no mundo externo, juntamente com a parte da mente (e do corpo) que o
trauma contém; a este último se deve que qualquer tentativa de reconstrução do trauma se torne muito difícil. A conseqüência imediata de sua ausência é a necessidade de utilizar a mente do analista e o desejo de que seja
o analista que, por si só, se encarregue da cura; c) o evento traumático
converte-se em uma estrutura inconsciente narcisista, sumamente cruel e
poderosa, que persegue, ataca e submete invejosamente tanto os objetos
dentro do self como no exterior, em tal sentido que, por exemplo, o paciente ouve a interpretação, mas não a escuta – é uma forma de “surdez”;
tampouco pode aprender com a experiência – o material tratado na sessão
não é utilizado ou pensado, como se também existisse uma forma de “mudez” interna. É apresentado um caso clínico com o propósito de ilustrar a
teoria formulada.
A Cesura do Tempo
A palavra mystes (μυστισ), de onde deriva “mistério”, foi usada pelos
antigos gregos durante as celebrações dos chamados “Mistérios Eleusinos”
e significava “iniciado”, “adepto” ou “aqueles cujos lábios permaneciam
em silêncio”. O ritual consistia na experiência de uma só noite, quando
cerca de 3.000 “mistes” se reuniam todos os anos, no início do inverno.
Celebrado por mais de 1.400 anos, estava relacionado aos mistérios da deu538 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 537-560, 2005
uma vez pintou um quadro sobre um pedaço de vidro que podia ser
visto de um ou do outro lado [...] e as mulheres são penetradas por
dentro durante o parto e por fora no momento do coito: [...] Investiga a
cesura; não o analista; não o analisando; não o inconsciente; não o
sadio; não o insano. Senão a cesura, o vínculo, a sinapse, a
(contra)transferência, o humor transitivo-intransitivo.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 539
Rafael E. López-Corvo
sa Perséfone e seu retorno da superfície da terra até as profundidades do
inferno, para se reunir com Hades, seu esposo, senhor do baixo mundo. O
que sucedia exatamente durante essa única noite, assistida ao longo dos
anos pelos mais ilustres gregos e romanos, permaneceu sendo um segredo
até recentemente, quando, nos anos sessenta, Karl Kerenyi (1997), um suíço especialista em mitos, descobriu que o kikeon (κψκεον), uma combinação de cereais e aveia, única bebida consumida durante o ritual, estava
contaminada com LSD. A reação tóxica alucinatória que freqüentemente
se observa em quem consome alucinógenos é algo tão particular, que teve
de ser absolutamente impossível para os gregos daquela época compartilhar uma experiência que não compreendiam, sendo, portanto, essa ignorância que pode garantir que o segredo da experiência fosse preservado
durante tantos anos: era absolutamente impossível obter um consenso sobre algo tão particular como uma experiência alucinógena, quando ainda
não existia uma linguagem conceitual para compreendê-la. A privacidade
e a absoluta impossibilidade de compartilhar a experiência fizeram do
evento uma história jamais contada ou um verdadeiro mistério.
Em Inibições, Sintomas e Ansiedade, Freud (1926, p.138) estabelece
que “existe muito mais continuidade entre a vida intra-uterina e a primeira
infância do que a impressionante cesura do ato do nascimento nos faz crer”.
Bion, por outro lado, ampliou a metáfora da cesura para incluir a presença
de um limiar que une/separa dimensões diferentes, como o intra/extra-uterino, dia/noite ou pensamentos pré/verbais (1987, p.298). A cesura pode
ser penetrada a partir de uma ou outra dimensão, tal como as culturas ocidentais e orientais se influenciam entre elas. Picasso, refere Bion (1987,
p.56)
O OBJETO “SURDO-MUDO”
E O
COM O USO DO CONCEITO DE
TRAUMA PRÉ-CONCEITUAL:
“CESURA” DE W. BION
Impossível de ser simbolizada, a experiência traumática penetra a
cesura do tempo, da dimensão primitiva pré-conceitual à dimensão adulta
atual; constitui um anacronismo que perdeu o vínculo, como alguém que
não pode compreender os movimentos planetários porque ainda não foi
criado o cálculo infinitesimal. Bion (1987, p.308) diz:
Depois de tudo se os anatomistas disseram que detectam uma cauda
vestigial e se os cirurgiões, da mesma forma, dizem que conseguem
tumores que derivam da fenda branquial, então por que não podem
existir vestígios mentais, ou elementos arcaicos que ainda sejam funcionais, de tal maneira que alarmem e preocupem, porque atravessam
a superfície bela e tranqüila que concebemos comumente como expressão de uma conduta sadia e racional.
O problema da análise é poder penetrar a cesura do verbal ao préverbal, de tal forma que o paciente finalmente possa agarrar e conhecer o
“espectro”, para assim contê-lo, em lugar de ser contido por ele. Bion sugeriu a existência de certas condições que, em um dado momento, parecessem tão efêmeras e imperceptíveis, que poderíamos não estar em absoluto
conscientes delas; elas logo se convertem em algo tão real que podem chegar a destruir-nos, sem chegarem jamais a ser conscientes (LÓPEZ-CORVO, 2003, p.152).
A Experiência Traumática
Em relação ao trauma pré-verbal, existem pelo menos duas complicações importantes: a) a dificuldade de ser conhecido o elemento traumático;
b) a fragmentação e a projeção da experiência traumática junto à mente que
a contém. Detalhadamente as revisaremos.
Anteriormente, referi-me ( LÓPEZ-CORVO , 1995) ao “segredo
esquizóide” como uma forma de experiência observada em pacientes que
não podem lembrar-se de fatos significativos que ocorreram durante as fases pré-verbais ou pré-conceituais de seu desenvolvimento, isto é, acontecimentos que não podem ser conhecidos ou tornar-se conscientes esponta540 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 537-560, 2005
1
Uma paciente que lutava com lembranças muito dolorosas, relacionadas com o divórcio de seus
pais quando ainda era muito jovem, apresentou o seguinte sonho: Via uma barata enorme, que
mata, e do inseto morto saem milhares de baratinhas.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 541
Rafael E. López-Corvo
neamente, porque ainda não havia um pensamento verbal ou um aparelho
mental suficientemente maduro para analisá-los, expressá-los e contê-los.
A palavra falada representa uma separação/união com o objeto original,
necessitando-se de um processo de luto que permitiria a mudança da posição esquizoparanóide para a depressiva, e esta última constituindo a capacidade de simbolizar o vínculo e conseguir a representação na sua ausência. A identificação projetiva, por outro lado, constitui um mecanismo da
mente para se livrar da dor contínua induzida pelo trauma e representa uma
linguagem de ação, uma ausência de luto diante da separação do objeto;
Segal (1957) designa-a “a equação simbólica”. Esses acontecimentos traumáticos precoces constituem material para fabricar sonhos, descargas
motoras (FRANK, 1969; PINES, 1980; AKHTAR, 1994), emoções, sensações, linguagem somática; atos incompreensíveis similares a ideogramas
ou outras expressões apenas detectáveis na dimensão transferênciacontratransferência. A conseqüência dessa condição é a criação de uma
estrutura interna que designei como “objeto surdo-mudo”, o qual controla
a mente verbal do adulto e é responsável por sua incapacidade de aprender
com a experiência e obter uma saída efetiva do sofrimento.
O segundo aspecto refere-se ao mecanismo de defesa continuamente
utilizado para lutar com a dor mental produzida pela experiência traumática, que consiste em uma fragmentação diminuta da mesma e sua projeção
no mundo externo, com o objetivo de se livrar dela, de tal forma que os
fragmentos ocupam muitos dos espaços da vida cotidiana do paciente e
dali exercem seu poder ameaçador que, em geral, se manifestam como angústias persecutórias.1 A origem ou fonte do trauma é obstinadamente reprimida, constituindo a presença de uma ausência que poderia se resumir
no apotegma de Cusa, sobre a existência de Deus como “um círculo cuja
circunferência está em todas as partes e seu centro em nenhuma”.
O OBJETO “SURDO-MUDO”
E O
COM O USO DO CONCEITO DE
TRAUMA PRÉ-CONCEITUAL:
“CESURA” DE W. BION
Uma complicação crucial é a expulsão, junto aos fragmentos projetados, da mente que os contém, a qual, paradoxalmente, é absolutamente
essencial para a reversão e resolução do conflito, espécie de armadilha,
porquanto a mente projetada é absolutamente essencial para resolver o problema. Essa dinâmica pode provocar pelo menos três complicações: a) a
necessidade do paciente de depender da mente do analista, o qual Lacan
resumiu como “o lugar do suposto saber”; b) o terror de reintrojetar o projetado, ou seja, reverter a direção da identificação projetiva; c) a mudança
catastrófica. Nesse sentido, Bion (1967, p.62-63) disse: “esses objetos que
foram expelidos via identificação projetiva se tornam infinitamente piores
do que eram antes de ser expulsos; o paciente sente-se violado, assaltado e
torturado por essa reincorporação, ainda que a deseje”.
Uma paciente apresentou um sonho em que falava tranqüilamente
com sua mãe e, além delas, havia um homem que escutava tranqüilamente,
mas que ela não conseguia reconhecer. O homem saiu, porém regressou em
pouco tempo completamente transformado, estava alterado, despenteado,
sujo, com os dedos manchados de nicotina e sinais de se haver drogado,
muito barulhento e interrompendo continuamente a conversa com sua mãe.
Disse-lhe que o homem representava elementos desterrados de sua mente,
os quais agora ela sentia que tentavam fazê-los regressar, piores do que
antes, ajudados por minhas interpretações. Muito freqüentemente, as partes projetadas são sentidas como fezes que regressam para atacar e destruir
os bons objetos internos. A terceira complicação refere-se ao que Bion chamou de “mudança catastrófica”, uma dificuldade que aparece quando a
análise obtém algum êxito e representa os efeitos secundários à
reintrojeção. Manifesta-se tanto no paciente quanto nos seus familiares,
que experimentam as mudanças do paciente como uma ameaça.
542 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 537-560, 2005
a) Surdo-mudez
Os sintomas mais freqüentes que levam esses pacientes a consultar se
relacionam com altos níveis de ansiedade, preocupações ou sintomas
fóbicos, inibição da motivação e depressão. Uma característica relevante
durante o processo analítico, comum a todos os casos, é a discrepância
existente entre a motivação para se envolver na investigação analítica, além
de uma compreensão razoável da interpretação, versus uma recorrente obstinação para manter o status quo. Parece que o paciente luta com a “presença de uma ausência” que se recusa a ser contida, como um cirurgião incapaz de cobrir um ferimento porque a pele não o alcança.
Na transferência, assomam sentimentos de resignação, desesperança,
sensação de estar preso e sem saída, assim como dor ante a necessidade de
ser ajudado, curado ou cuidado. Ainda que essas emoções, experimentadas
na contratransferência, possam ser reconhecidas intelectualmente como
algo diretamente relacionado com o trauma, o paciente não consegue estabelecer um vínculo emocional significativo entre uma situação e a outra.
Durante uma parte significativa do processo, a análise pode apresentar as
características de uma reação terapêutica negativa.
Em geral, os pacientes compreendem o que é interpretado e freqüentemente acrescentam algo à hipótese apresentada pelo analista; no entanto,
na próxima sessão, o discurso pode mostrar-se obstinadamente similar ao
da sessão anterior. Minha impressão é a de que o paciente escuta mas não
ouve ou não assimila o que é introduzido pela interpretação, como se estivéssemos lutando com um “objeto surdo”. Ao mesmo tempo, o material
discutido em sessão não é usado pelo paciente, como se aquele se desvanecesse entre as sessões, ou este não fosse capaz de utilizá-lo a posteriori
para falar com ele próprio a respeito do discutido na hora analítica. Parece
que o paciente não é capaz de falar a si próprio, isto é, lutamos não só com
um objeto interno “surdo”, mas também “mudo”.
Um corolário importante é a discrepância entre o modelo elaborado
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Rafael E. López-Corvo
Duas Qualidades Importantes na Fenomenologia
do “Objeto Traumático”
O OBJETO “SURDO-MUDO”
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TRAUMA PRÉ-CONCEITUAL:
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progressivamente pelo analista, de acordo com a compreensão da transferência, de como aconteceu o trauma e quais as emoções que ele induziu,
por um lado, e o que o paciente mostra compulsivamente em seu discurso,
pelo outro. São modelos que correm paralelos, sem se tocar,
exemplificando o conceito de Bion sobre a “reversão da perspectiva”. O
paciente considera que as tentativas do analista para compreendê-lo são as
“teorias do analista”. Em um dado momento, um paciente me fez o comentário de que eu era como um cachorro pit bull, que quando mordia não
soltava, referindo-se ao modo reiterativo de minha interpretação, que buscava relacionar sua sintomatologia com a fenomenologia do trauma, sem o
conseguir. Sentia que era minha interpretação, não o trauma, que incessantemente o “mordia”.
b) Aspecto sádico do objeto “surdo-mudo”
Uma característica importante do “objeto traumático” é a crueldade e
o sadismo contra outros objetos do self. No caso de traumas relacionados
com patologias somáticas, o corpo é sentido como marcado e ferido, gerando sentimentos de perseguição e vergonha. Um sonho apresentado por
Irene, paciente que nasceu com uma malformação congênita à qual me
referirei mais adiante, é o seguinte: Corria, perseguida por homens maus
que se exibiam como mendigos, sujos e malcheirosos. Corria por uma casa
que não era a sua, a qual se assemelhava a um labirinto; com ela ia uma
garotinha órfã que, no final, conseguia sair da casa e esconder-se atrás de
uns arbustos; ela começa, porém, a fazer ruídos e teme ser descoberta
pelos homens que as perseguem. Depois se encontra em seu banheiro, mas
o piso está completamente coberto de fezes, além disso tem a sensação de
que alguém se encontra dentro dele, talvez a mãe da garotinha, e se sente
muito envergonhada e com uma intensa necessidade de se desculpar. Diz
sentir-se muito envergonhada de falar dessas coisas sujas. Pergunto-lhe se
ela sujava sua roupa íntima antes de ser operada, ela diz não recordar.
A inveja dos irmãos, experimentada como sentimentos de rivalidade,
estende-se às outras pessoas sentidas como sãs e livres dos efeitos do trau544 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 537-560, 2005
Um Caso
Selecionei uma paciente como paradigma de vários casos que apresentam experiências traumáticas pré-verbais similares, e que por isso se
mostravam impedidos de verbalizar o impacto emocional de seus traumas.
Pacientes que pareciam lutar com um “terror sem nome” induzido pela
ausência extrema de uma presença. Por exemplo, um de meus pacientes
tinha o sentimento de que havia estudado medicina com o propósito inconsciente de se assegurar de não saber o que tanto o atemorizava saber.
Um elemento comum revela-se ser a presença de irmãos livres do trauma,
que se convertem em objeto de invejas intensas, como se um aspecto importante do trauma se baseasse na relatividade do contraste, ao compararse com eles. Ao mesmo tempo, esses irmãos, paradoxalmente, sentem
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ma. O objeto traumático é um elemento superegóico, sádico, cruel e perseguidor, que induz a um sentimento de imperfeição vergonhosa, a qual contrasta com um elemento idealizado fragmentado e projetado em outros,
que logo é atacado invejosamente, com o propósito de inverter a relação. A
condição sádica é estimulada pelo pensamento inconsciente de que os sentimentos de bem-estar, se experimentados, induzirão à fúria do objeto traumático, e toda a ameaça e a angústia associadas com a experiência do trauma voltarão a ser experimentadas. O sofrimento converte-se em um salvoconduto ou proteção que neutraliza a crueldade do objeto traumático e induz a uma fragmentação significativa da personalidade. A conjunção formada por um objeto traumático sádico e perverso junto à ingenuidade do
elemento egóico, livre de conflito, que se submete, constitui uma combinação letal paralisante. A fragmentação, presente na condição traumática, é
determinante no desenlace da análise. Ao mesmo tempo em que existe uma
motivação significativa do paciente para o tratamento, buscando assim livrar-se da dor mental crônica, também existem ameaças sádicas do objeto
traumático, de que tentar livrar-se da angústia implicará risco de que a experiência dolorosa do trauma se faça presente novamente. Essa condição
explica, em parte, a dinâmica do objeto “surdo-mudo”.
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muita inveja do irmão traumatizado, pois interpretam a preocupação dos
pais como expressão de um privilégio para com o irmão enfermo.
O Caso de Irene
Irene é uma mulher de 25 anos, solteira, inteligente, fisicamente atraente, co-gêmea não-idêntica, que recém-terminou seu treinamento em desenho e procura trabalho. Diagnosticada ao nascer com “espinha bífida
oculta”, teve de sofrer uma série de exames médicos e, finalmente, uma
intervenção cirúrgica, com aproximadamente 6 ou 7 anos. Consultou por
sentimentos de angústia fóbica e crise de pânico, pelo qual já havia tentado, anteriormente, psicoterapia e medicação ansiolítica durante uns dois
anos, com poucos resultados. Como sucede com pacientes que sofreram
traumas precoces, Irene havia dado pouca importância ao fato de sua intervenção, o qual se tornou óbvio, à medida que a análise foi progredindo. No
início de nossos encontros, para ela revelava-se difícil e doloroso falar sobre sua doença e sua posterior cirurgia. Esse episódio havia sido fragmentado em forma diminuta e projetado como defesa, resultando-lhe ameaçadora qualquer tentativa de reintrojetar a experiência traumática. À medida
que a análise progredia, Irene foi aceitando com menos resistência as interpretações, que apontavam para o relevante do trauma. Sentia, em suas fantasias, que havia sido torturada e investigada em sua intimidade, em seus
próprios genitais, por homens mascarados que atuavam com o consentimento de sua mãe. Com respeito à cicatriz nas costas, vivia-a como algo
feio que marcava seu corpo, fazendo-a sentir-se disforme, impura, suja e
ferida. Assustava-a expor seu corpo e preferia sempre usar calças longas,
roupas de cor escura, as camisas bem abotoadas até ao pescoço, mesmo no
verão, como um escudo diante da ameaça mental de sofrer novas manipulações traumáticas. Na transferência, as interpretações eram recebidas com
receio e desconfiança, gerando como resposta, freqüentemente, uma proteção excessiva frente à possibilidade de ser invadida e investigada em sua
intimidade.
A inveja de quem Irene considerava “normal” era muito significativa,
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principalmente de sua irmã, a ponto de se evitarem mutuamente ou incorrerem em terríveis brigas e discussões. Em geral, Irene iniciava as sessões
fazendo fortes críticas a essa irmã, aos pais e aos amigos, como se escolhesse atacá-los invejosamente e assim vingar-se do rechaço; depois de
tudo, eles também a haviam destruído. Não compreendendo a verdadeira
natureza do conflito, a irmã reagia igualmente com inveja, porquanto sentia que havia sido excluída da especial atenção que, durante anos, Irene
recebera de seus pais.
Algumas mudanças começaram a aparecer: terminou seus estudos e
iniciou uma relação amorosa com B., um colega de aula; além disso, tornou-se menos difícil conversar sobre a situação do trauma, que já não produzia o mal-estar e a ansiedade de antes. Em algum momento, me fez saber
que seus pais haviam viajado no fim de semana e que ela havia ficado em
casa sozinha com B. Sua irmã chegou tarde da noite e bateu em seu quarto
para lhe dizer que ela também havia trazido seu namorado e que não se
aterrorizasse, no caso de encontrá-lo. Explica que sempre lhe dá muito
medo pensar que alguém possa entrar quando está sozinha e lhe fazer mal,
que por isso pediu ao seu amigo que ficasse com ela. “Quando me olho no
espelho, aterroriza-me ver alguém atrás de mim que possa me atacar.”
Digo-lhe que ela deseja que eu reintroduza sua parte “espinha bífida” projetada em sua mente, de tal forma que não a aterrorize, como costuma ocorrer-lhe, quando fantasia que sua parte “espinha bífida” ataca-a por trás (as
cicatrizes da operação estão na parte inferior de suas costas). Lembra então
de um sonho: Encontra-se com um velho amigo que era totalmente louco.
Era agradável, mas se tornava muito agressivo quando sentia que o rejeitavam, “eu tinha medo dele”. Digo-lhe que, aparentemente, esse sonho
poderia estar nos dizendo que ignorar o assunto da espinha bífida poderia
torná-la perigosa e totalmente louca, mas que lembrar e conter a dor relacionada com essas memórias poderia torná-la amistosa. Sente que falar
livremente sobre o que sofreu quando pequena seria como esquecer as coisas espantosas que experimentou, como a raiva e os desejos de vingança, a
frustração ou a impotência. (Penso que esse mecanismo podia ser respon-
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sável pela passividade que, com freqüência, se observa em pacientes que
sofreram traumas graves precoces.) Diz sentir-se marcada, como uma mercadoria quebrada que ninguém quer e, portanto, não tem direito a nada,
como pedir dinheiro a seus pais para pagar sua terapia ou encontrar um
trabalho decente. Não tem um lugar próprio, sente-se culpada de estar viva,
ocupando um espaço, culpada de respirar e de existir. Então lhe digo:
“Como se sentisses que é necessário transformar-te em teu próprio trauma
para poder existir”.
Na sessão seguinte, Irene diz que deseja compreender o que lhe falei
na sessão anterior sobre recordar sua operação; algo que ela tenta, porém
não consegue fazer. Há um silêncio. “Lembro que uma vez, quando tinha 6
ou 7 anos, fui com minha mãe e minha irmã a uma feira. Como ganhei em
um dos jogos, podia escolher qualquer dos prêmios, e gostei de um bicho
de pelúcia, era um gato preto enorme, mas minha mãe e minha irmã disseram que era horrível e que devia escolher outra coisa; terminei aceitando a
troca, ainda que não quisesse nenhuma outra coisa mais que o gato.” Disselhe então que um “objeto interno mãe-irmã” também a convencia de que a
operação era como um gato preto horrível demais para ser lembrada.
“Sim”, respondeu Irene, “era assim porque minha mãe é dessas pessoas
que não quer que tu penses em algo que não seja agradável, e ela não queria
que eu pensasse sobre a operação porque era horrível e, além disso, já havia passado”. “Mas o conflito continua”, eu lhe disse, “não pensar nele
porque uma mãe interna te proíbe fazê-lo tampouco ajuda a te livrares de
suas terríveis conseqüências.” Fala sobre seus dois gatos, um amigável,
que com freqüência sai de casa e ela teme que possam roubá-lo, e outro
medroso que permanece, literalmente, dentro do closet. Diz sentir-se de
forma parecida em relação à sua irmã, que sai continuamente sem jamais
sentir medo; recém-regressou de férias no Caribe, dizendo que passou
muito bem com seu novo namorado. “Ela viaja e troca de namorados sem
maior dificuldade, muito diferente de mim.” Digo-lhe: “Como teus gatos”.
“Sim”, responde, “uma vez fui às Bahamas e não conseguia sair do aeroporto porque estava em pânico.” Lembra de um sonho: Está em uma festa,
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em uma casa muito grande, e há muitos atores conhecidos que viu na TV.
Começam a subir uma escada e um deles lhe acaricia as costas e lhe dá
uma palmada nas nádegas, algo que sente como falta de respeito, porém
dá volta e não diz nada. O ambiente lhe agrada muito, porém acredita que
é similar a alguns lugares que tem visitado quando busca trabalho, “são
um montão de manipuladores e mentirosos”. Os atores são de um programa de televisão sobre detetives, que ela vê regularmente e acha o ator principal bastante atraente. Não produz mais associações e lhe digo que parecera que, no sonho, existisse uma dissociação entre uma parte “espinha
bífida” desvalorizada e outro elemento idealizado, “atores de TV”. Pareceria que sonha com aquilo de que sente falta, porém teme, como uma situação que só fosse acessível para sua irmã e outros personagens privilegiados
como os atores de TV, que estariam livres da cicatriz terrível que ela tem
nas costas. No sonho, não se queixa quando o ator lhe acaricia as costas e
lhe dá uma palmada nas nádegas, o que implicaria agradar-lhe ser desejada
por alguém tão idealizado como esse ator de que ela gosta: no entanto,
imediatamente ataca e desqualifica essa possibilidade, quando diz que “são
manipuladores e mentirosos”. Quando comento essas idéias, ela contesta:
“Devo encontrar-me a mim mesma”.
Algum tempo mais tarde, Irene diz, rindo, que falou para seu namorado trocar os lençóis da cama, porque já estão lá há mais de um ano. Após
uma pausa, diz que estava comendo com seus pais, e o pai, ao comer, fazia
uma série de ruídos estranhos, enquanto sua mãe também fazia ruídos
quando respirava, devido a fumar continuamente, pelo que, depois de um
momento, decide afastar-se da sala de jantar. Fala a respeito da próxima
sexta-feira, quando irá ao norte com seu namorado, por uns quatro dias.
Está incomodada com ele e sente vontade de maltratá-lo, porque, segundo
ela, não é suficientemente forte e não dá mostras de ter iniciativa alguma.
“Sei o que você vai dizer, que meu namorado é um homem que agrada a
uma parte minha e a outra não, mas que eu necessito dele para ter alguém
com que brigar, pois ele representa a minha parte preguiçosa.” Digo-lhe
que talvez ela se sinta com direito a algo melhor, como um lençol limpo, e
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também se sente cansada de permanecer dentro do ânus de seus pais, ouvindo o ruído de suas tripas, e que gostaria de ter alguém que a resgatasse.
Recorda-se de um sonho: Encontra-se no supermercado com um carrinho,
comprando comida saudável, e não como seu namorado e sua família, que
comem comidas rápidas e insalubres. Depois que termina de comprar, deixa o carrinho abandonado e alguém o leva, e então tem de buscar outro e
começar de novo, o que a incomoda muitíssimo. Em seguida, deseja comprar milho tenro, porém quando o agarra dá-se conta de que está mole e
murcho, e decide não o levar. Esclarece que lhe parecia estranho que o
milho estivesse mole, porque sempre é duro. Depois de uma pausa, digolhe que ela vem à sessão para comprar algo “saudável” que possa levar
com ela em sua viagem de fim de semana, mas que a parte “espinha bífida”,
por inveja, rouba-lhe a comida, ou o peito saudável que eu lhe proporciono; no entanto, acrescento que outra parte nela está aprendendo a se defender e, ainda que lhe resulte muito desagradável, faz a compra novamente.
Também sente que o pênis2 de seu namorado, e talvez o de seu pai e o meu,
não são o suficientemente duros, são frouxos e não a resgatam de sentir-se
perdida dentro do ânus de seus pais. Depois de tudo, digo-lhe, recordando
algo dito anteriormente por ela, que seu pai nunca esteve presente durante
a investigação e intervenção de sua espinha bífida.
Alguns dias depois, apresenta outro sonho: Encontra-se com seu namorado, procurando resgatar uma garotinha que havia sido seqüestrada
por malfeitores, no entanto, cada vez que tenta libertá-la, a menina fica
menor; Irene sente que, se não conseguir libertá-la rapidamente, a menina
terminará por desaparecer. Também há o fato de que, cada vez que se
encontram com a garotinha, no processo de resgatá-la, ela nunca os reconhece. Identifica esse sonho com sua própria luta com a espinha bífida.
Acrescento-lhe que seu namorado, no sonho, poderia estar relacionado comigo e que a crueldade da espinha bífida poderia estar com os malfeitores.
2
A associação do pênis com o milho pode sustentar-se no fato de que, diferentemente de outros
alimentos (vegetais) de forma similar, o milho se come de maneira semelhante a como se realiza a
felação.
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Também pareceu, digo-lhe, que tenta pensar de maneira diferente, ser menos surda sobre o que ela e eu tratamos, sobre essas associações que relacionam seus temores à experiência traumática e sua tentativa de resgatar,
nela, a parte evasiva e assustada da menina boa. A resistência de “conter” a
ameaça do trauma também se observa na tendência da garotinha do sonho
de se fazer menor e nunca reconhecer seus resgatadores. Talvez essa tendência represente o caráter evasivo do trauma pré-verbal, a dificuldade de
poder agarrá-lo, compreendê-lo, reconhecê-lo e nomeá-lo, o que geralmente se traduz na transferência, como um aspecto “surdo-mudo” que invejosamente obstrui e dificulta a posterior utilização da interpretação, a qual
não lembra e termina por desaparecer.
Uma semana mais tarde, apresenta um sonho que mostra dois aspectos muito importantes: a) defesas novas que apontam para uma “mudança
catastrófica”, ou a presença de elementos acusatórios para possíveis efeitos
indesejáveis produzidos pela análise; e b) aspectos invejosos muito cruéis
do “objeto traumático”, que ameaçam e nela induzem o sofrimento ou a
necessidade de se sentir morta, em lugar de se sentir bem e viva. Anda
sozinha por um caminho, muito perto da borda de um precipício, quando,
de repente, uma caminhonete muito moderna, de tração dupla e cor prateada, aparece e se detém a sua frente. Da caminhonete sai uma menininha
que começa a atacá-la, tentando apunhalá-la, e ela, ao retroceder, cai pelo
precipício e permanece imóvel, se faz de morta para impedir que a menina
a assassine, mas está incômoda; move-se e, então, a menininha arremete
novamente contra ela, que, no entanto, consegue prover-se de uma estaca,
que se transforma em um lápis com o qual fere e mata a menininha. Então,
consegue subir e vê que da caminhonete, que ainda está ali, alguém abre a
porta e a convida a subir. Dentro havia como que uma família e outras
menininhas prontas para atacar outras pessoas, mas, por terminarem mortas, as trocavam pela pessoa que tinham atacado, como havia acontecido
com ela.
Associa a caminhonete comigo, pelo “cabelo prateado”, mas se pergunta pelo aspecto moderno do carro. Digo-lhe que eu “atualizei” nela o
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assunto da espinha bífida e a fiz consciente de sua importância. Esse elemento ataca-a internamente só se ela estiver viva, e não o fará se estiver
“como morta”; é uma parte extremamente invejosa de sua própria vitalidade, tem de mostrar-se morta, isto é, sofrendo continuamente, sem nenhum
direito de passar bem, e permanecendo confinada dentro da casa-ânus de
seus pais.
Diz que hoje, quando vinha para a consulta, repentinamente sentiu-se
diferente das outras vezes, menos atenta às pessoas ao seu redor; sentiu-se
bem, embora fosse somente por poucos minutos. Sempre está alerta a respeito dos outros, sente-os diferentes, como de outro planeta e ameaçadores, o que a amedronta. Digo-lhe que tudo dependerá de ela conseguir lutar
com a ameaça do elemento “espinha bífida”, o que lhe permitirá sentir-se
com direito a estar viva e igual aos demais. Se conseguir conter esse elemento, se sentirá como parte de minha família, irá em meu carro prateado,
ajudando outros com problemas semelhantes. Também lhe digo que ela
teme aquelas pessoas livres da espinha bífida, porque, em sua mente, os
atacou com sua inveja e agora teme a retaliação da parte deles, o que a
impede de aventurar-se a sair sem sentir pânico.
Algum tempo depois, como algo muito incomum, chega bastante tarde e explica que teve de auxiliar seu pai a transportar alguns pertences de
sua irmã, que se muda para uma cidade próxima, a fim de seguir os estudos
universitários. “A eles não importava meu compromisso”, diz, “ainda que
lhes tenha dito claramente a hora que teria de estar de volta. A minha irmã,
nada importa, antes de ir embora me atirou algumas coisas, dizendo que
eram minhas e que as havia tomado emprestado, entre elas uma calça, que
havia alterado para que lhe servisse, e que agora eu tenho de descosturar.”
Digo-lhe que tenta descoser-se de sua irmã gêmea para encontrar sua própria pele. Diz lembrar de um sonho: Estava em uma balsa com alguém.
Havia muitíssimos tubarões dando voltas e alguém lança à água um cachorro, que imediatamente é atacado pelos tubarões. Diz: “Os cachorros
não me agradam, são imprevisíveis, muito agressivos e perigosos”. Digolhe que o cachorro é uma parte agressiva e perigosa dela, enquanto que os
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tubarões representam a parte “espinha bífida” que ataca e destrói sua parte
agressiva, da qual necessita para exercer seu sentimento de “direito” que
lhe permita enfrentar os outros, seu pai e sua irmã. Também lhe digo que
penso que veio tarde porque tenta encontrar uma saída para o dilema entre
permitir que a parte espinha bífida destrua sua agressão e, assim, permanecer para sempre costurada à sua irmã, ou soltar sua agressão e enfrentar o
perigo de se tornar imprevisível e perigosa. Recorda de outro sonho: Encontra-se caminhando, à noite, com um ator dos anos oitenta. É uma cidade grande que não reconhece. Pode ver as luzes e lhe parece uma cidade
espetacular. Há somente uma rua que sobe e desce. Então, se dá conta de
que tem uma fissura no braço esquerdo, que não transpassa o braço, mas
que logo piora e todo o braço torna-se oco e pode ver as veias dentro dele.
Vai consultar uma doutora, que lhe diz que é um quisto e que estará bem se
não se espetar os tendões. Não dá associações, mas quando lhe formulo
que os anos oitenta possivelmente coincidem com a época de sua operação
da espinha bífida, ela concorda. Diz não saber que coisa é um quisto, porém o associa aos tumores dos seios. Não consegue associar o do braço e
lhe pergunto se poderia representar o que ela teria pensado que podia ser
sua lesão na coluna, porquanto a espinha bífida oculta geralmente se mostra como um quisto, mas que ela não podia vê-lo, porque estava nas costas.
Já estávamos na hora e, ao sair, disse, pensativa, que a rua solitária que
subia e descia, no sonho, a faz pensar em sua coluna.
Na próxima sessão, chega na hora e diz que teve uma entrevista para
um trabalho e que foi muito bem, que vinha fazendo algumas investigações
a respeito de onde fazer contatos e conseguiu com essa gente, que lhe pareceu muito boa. Sente-se com muito entusiasmo, ainda que um pouco assustada. Fala de um amigo a quem não via há algum tempo porque pensava
estivesse aborrecido por algo que ela dissera. Chamou-o por telefone, por
esses dias e, para sua surpresa, ele lhe respondeu carinhosamente. Ela diz
que o suposto mal-entendido esteve, todo esse tempo, em sua imaginação.
“Estou sempre lançando o cachorro aos tubarões”, disse, referindo-se ao
sonho anterior. Fala sobre seus dois gatos, tenta ajudar o “medroso” a sair
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de casa, tira-o e o acaricia e busca, mediante recompensas, que fique fora o
maior tempo. Já conseguiu que se mantenha fora por mais de uma hora, o
que lhe dá muita alegria. Depois de uma pausa, diz que recorda do sonho
da sessão anterior, sobre o “braço oco”: “estive pensando sobre esse sonho:
a cidade que via com uma única rua que sobe e desce, pensei que representa a minha coluna – é o que falamos aqui, que eu encontro a espinha bífida
em toda parte... O doutor,3 no sonho, diz que não espete os tendões em
lugar das veias, que era o que eu via; no entanto, meus pais me disseram
alguma vez e ainda o dizem hoje em dia que a operação era para cortar uns
tendões que não me deixavam crescer e que, durante a operação em que
cortaram essas cordas, eu cresci como que uma polegada e meia”.
Há coisas muito importantes quanto a uma mudança em suas relações
de objeto. O sonho do braço representa uma tentativa para recordar a realidade, a forma como aconteceram os fatos, o que sucedeu em torno da operação. Há uma bela metáfora quando recria uma cidade “espetacular” atravessada pela sua coluna, como forma de representar uma operação que está
em todas as partes. Outras mudanças estão relacionadas com a busca séria
de um trabalho, o descobrimento de suas projeções em relação aos seus
sentimentos com o velho amigo e seu entusiasmo por ajudar um de seus
gatos a lidar com o medo. São todos reflexos de uma nova distribuição nas
relações de seus objetos internos. O sonho do “braço oco” constitui um
aspecto relevante, porquanto, penso, represente uma tentativa de reparar,
assim como de falar com ela própria, o modo como, na verdade, foram os
acontecimentos do trauma. Também o aspecto de ter continuado depois a
pensar nele, quando traz hipóteses novas na sessão seguinte, como se a
mudez interna estivesse cedendo e, pela primeira vez, tentasse um diálogo
com ela própria. Outro aspecto importante está representado no ato de “lançar o cachorro aos tubarões” no sonho da balsa; penso que esse elemento
simboliza um aspecto egóico defensivo de que ela precisa para poder conter seu terror, assim como a capacidade de lutar por seu direito a estar bem.
3
No original: el doctor en el sueño, embora anteriormente tenha se referido a una doctora. (NT)
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Pós-escrito
Em uma manhã, muito cedo, um dinossauro de duas patas caminha
lentamente pela borda do que agora conhecemos como o rio Connecticut,
perto do povoado de South Hadley, no Estado de Massachusetts, talvez
buscando saciar a sede, tomar um banho ou ambas as coisas. Cento e oitenta milhões de anos mais tarde, em 1802, para ser mais exato, um menino,
com o original nome de Plinio Moody, enquanto arava a terra na granja de
seu pai, encontra uma pedra achatada com as pegadas daquele dinossauro
sedento, que concebem, então, erroneamente, como um pássaro gigante e
celestial ao qual dão o nome de “o corvo de Noé”.
Aproximar-se do rio pode representar, para o dinossauro, um ato banal
repetido regularmente, sem maior transcendência; entretanto, nessa manhã
especial, uma série de variáveis se fez presente e contribuiu, em uníssono,
para preservar suas pegadas para sempre. Talvez o enorme peso do animal,
assim como a qualidade da areia, ou o pântano, junto a condições atmosféricas, como a umidade e o calor, se conjuraram para salvaguardar as pisadas, o que significa, em última instância, que agora, quando os dinossauros
já desapareceram da face da terra, suas pegadas, produzidas em apenas um
instante, foram preservadas para a eternidade. Em outras palavras, o que
deveria ter sido um fato temporal converteu-se em uma condição perma-
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Bion (1967, p.47, grifo nosso) expressou que, “como conseqüência dessas
fragmentações, todos esses traços da personalidade, que, em algum momento, haveriam de proporcionar as bases para uma compreensão intuitiva tanto do self como dos outros, são colocados em perigo”.
Para finalizar, os eventos traumáticos produzem um imenso terror à
realidade, assim como a necessidade de buscar livrar-se da mente, como
órgão que a percebe, mediante fragmentação diminuta e projeção dessas
partículas ao exterior. Uma das complicações desse mecanismo é constituída pelo fato de que a mente projetada, como o cachorro do sonho, é também indispensável para a “compreensão intuitiva do self e dos outros”.
O OBJETO “SURDO-MUDO”
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nente; uma ausência esmagadora tornou-se uma significativa e poderosa
presença.
Similarmente a uma roda que corre em uma via, a realidade toca somente um ponto, descansa sobre um instante, o presente, ao tempo que
incessantemente flui do passado para o futuro em um ritmo análogo ao rio
de Heráclito. Se a realidade representa um evento temporal circunscrito a
um instante, poderíamos então perguntar-nos: que obscuridade de circunstâncias, similar a essas circunstâncias que proporcionaram eternidade às
pegadas do dinossauro, haveria de se implementar para que aquilo que devia ser um momento transitório na vida de uma pessoa se convertesse em
uma presença permanente? Existem, portanto, condições que, por sua própria natureza, fraturam a “barreira protetora” de Freud e não chegam, segundo Bion, a ser contidas pela função rêverie da mãe. Tais condições convertem-se em “marcas permanentes”, em substância que compõe a transferência e a contratransferência, e buscam conhecer sua própria história para
conseguirem ser esquecidas. Representam “pensamentos silvestres” (wild
thoughts) à busca de um pensador que os contenha, de uma mente que lhes
adjudique um significado. A mente “viva”, diferente das pegadas “inanimadas” dos dinossauros, proporciona vida às marcas traumáticas, de modo
similar ao “membro fantasma” dos amputados. Tal “élan vital” poderia ser
considerado análogo ao “instinto de domínio” (instinct to master –
Hendrick, 1942), uma espécie de busca implacável pela verdade que
Grotstein (2004) – considerando a intensidade com a qual um pensamento
silvestre solicita um pensador – recentemente considerou como um autêntico “instinto da verdade”.
Aproximadamente um ano depois da última sessão referida, Irene conseguiu uma ocupação estável. Chega pontualmente e inicia a sessão dizendo que, em comparação ao seu trabalho anterior, o atual significa uma queda em seu status: “em meus novos crachás, sou ‘desenhista’; nos anteriores, era ‘diretora de arte’ ”. Diz, no entanto, sentir-se melhor, porque agora
seus companheiros de trabalho são mais agradáveis. Digo-lhe que parecia
não estar segura de seu verdadeiro status e que necessita de um crachá para
556 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 537-560, 2005
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 557
Rafael E. López-Corvo
sabê-lo. Após uma pausa, diz: “Há algo muito importante que queria dizerlhe. Minha mãe insiste que sou bulímica, que me ouviu vomitar no banheiro, o que é absolutamente falso e o neguei, mas ela insistiu e disse ao meu
pai, que acreditou nela, ainda que eu insistisse que era mentira. Preocupame, porque sei que ela me obrigará a fazer algo”. Parece preocupada. Pergunto-lhe: “E esse ‘fazer algo’, o que significa?” – “Bom, que me obrigue
a consultar alguém, como um médico”. Digo-lhe, então, que parecia que
ela estava lutando com várias confusões em sua mente. Que parecia estar
batalhando com uma mãe arbitrária e cruel que a ameaça e que não lhe
parece claro se essa mãe está fora ou dentro de sua mente; também, sente
que se torna impossível chegar a um acordo sensato com ela e que o médico que, segundo ela, teria de ver, seria também, do mesmo modo que sua
mãe, igualmente insensato e arbitrário, como se fosse uma extensão dessa
mãe poderosa e perigosa. “Bom”, responde, “minha mãe pode me expulsar
de casa como fez com meu irmão”. Por um momento, permanece em silêncio e diz que se lembra de uma cena de quando estava no hospital para ser
operada. É de noite e se encontra dentro de uma banheira muito alta, o que
a faz pensar que teria entre 5 ou 6 anos. A mãe lava-lhe o cabelo, ou lhe dá
banho. “Eu me sentia como se tivesse tocado fundo, era um sentimento de
grande vazio, de total desesperança, o qual também sinto agora. Devia ter
sido depois da operação.” Digo-lhe, então, que, mais exatamente, pode ter
sido antes, que talvez a banhavam para prepará-la para a operação e que ela
pode ter perguntado à mãe, nesse momento, quando talvez a sentisse amorosa enquanto a banhava, se poderia ir com ela para casa, e ela pode ter-lhe
dito que não, que teria de ficar para a intervenção no dia seguinte, o que
destruía todas as suas esperanças de evitar o que viria e que tanto a atemorizava; havia tocado fundo, como um condenado à morte que esgotou todos os recursos de perdão e se prepara para a execução. Talvez deseje também que eu a proteja e impeça que esses sentimentos de vazio e desesperança deixem de persegui-la de uma vez por todas. O maior problema parecia ser o grande poder e a crueldade que ela sentia provir de um “objeto
mãe”, que podia ser induzido por um ataque bulímico invejoso, ao contrá-
O OBJETO “SURDO-MUDO”
E O
COM O USO DO CONCEITO DE
TRAUMA PRÉ-CONCEITUAL:
“CESURA” DE W. BION
rio da harmonia entre seus pais – uma dinâmica que ajudava que um acontecimento ocorrido 19 anos atrás se tivesse tornado permanente. Espécie
de pegada imperecível que não muda e que a captura, como se ela ainda
fosse essa menina desamparada, paralisada e inútil, que ainda não consegue decidir por si própria.
Resumo
O ego luta com o trauma pré-conceitual por meio de sua fragmentação diminuta e projeção no mundo externo, junto à mente que contém a experiência. Posteriormente, o trauma penetra na cesura do tempo e se apresenta como um objeto
interno cruel, controlador e ameaçador, que rouba ao ego seu direito ao bem-estar.
Na transferência, é percebido como uma poderosa resistência para absorver a
interpretação.
Palavras-chave
Trauma Psíquico Precoce. Objeto Interno. Pensamento Arcaico. Resistência. Transferência. Reconstrução.
Abstract
The “Deaf-Mute” Object and the Pre-Conceptual Trauma: with the use
of Bion’s “Caesura” concept
Ego fights against the pre-conceptual trauma by way of its tiny fragmentation
and projection onto the external world, inside the mind that contains the experience.
Later, trauma penetrates time’s caesura and presents itself as a cruel, controlling,
and threatening internal object, which deprives ego of its right to well-being. In
transference, it is perceived as a powerful resistance to absorb interpretation.
Key-words
Early Psychic Trauma. Internal Object. Archaic Thoughts. Resistance.
Transference. Reconstruction.
558 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 537-560, 2005
El Objeto “Sordomudo” y el Trauma Preconceptual: con el uso del
concepto de “Cesura” de W. Bion
El yo lidia con el trauma pre-conceptual mediante su fragmentación diminuta y proyección en el mundo externo, junto a la mente que contiene la experiencia.
Posteriormente el trauma penetra la cesura del tiempo y se presenta como un
objeto interno cruel, controlador y amenazante el cual roba al yo su derecho al
bienestar. En la transferencia es percibido como una poderosa resistencia a utilizar la interpretación.
Palabras-llave
Trauma Psíquico Temprano. Objeto Interno. Pensamiento Arcaico.
Resistencia. Transferencia. Reconstrucción.
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New York: Jason Aronson, 1977.
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 559
Rafael E. López-Corvo
Resumen
O OBJETO “SURDO-MUDO”
E O
COM O USO DO CONCEITO DE
TRAUMA PRÉ-CONCEITUAL:
“CESURA” DE W. BION
transference and countertransference. International Journal of Psychoanalysis,
London, v.61, p.315-323, 1980.
SCOTT, W.C.M. Self-Envy and Envy of Dreams and Dreaming. International
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SEGAL, A. Notes on Symbol Formation. International Journal of
Psychoanalysis, London, v.38, p.39, 1957.
Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Tradução: Maria Regina Lucena Borges
Revisão: Maria Lucia Meregalli
Dr. Rafael E. López-Corvo
186 St. Clair Avenue East, Apt. 3
Toronto Ont. M4T1N8
E-mail: [email protected]
560 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 537-560, 2005
Regina Lúcia
Braga Mota
Membro Titular e Analista
Didata da Sociedade de
Psicanálise de Brasília.
Penso no trauma não só como
o estrondo da tsunami, mas também
como o registro interno de dores silenciosas e imperceptíveis – sem representação –, que vão corroendo o
tecido psíquico com o tempo, até
que produzem gritos no corpo ou na
fala, em princípio inexplicáveis e
incompreensíveis. Entendo a família como cenário de dores traumáticas que constroem o psiquismo, do
nascimento à morte e, ao mesmo
tempo, principal campo de impacto
da estruturação psíquica.
À primeira, a de nascer, vão se
sucedendo outras dores traumáticas,
relativas ao crescimento: a descoberta da mãe como ser separado, o
desmame, o nascimento de um ir-
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Regina Lúcia Braga Mota
Trauma:
impacto da
família na
estruturação
psíquica
TRAUMA:
IMPACTO DA FAMÍLIA NA ESTRUTURAÇÃO PSÍQUICA
mão, a primeira escola, mudanças de casa, as primeiras doenças infantis, a
adolescência, as separações, as formaturas e a saída da casa dos pais para
constituir seu próprio lar. Permeando todas essas dores, a inexorável dor do
Édipo e da castração, fundantes de estruturas psíquicas, presentes nas famílias que vamos constituindo ao longo da vida, após a família original.
Todas as conquistas implicam perdas que, além de sentidas, necessitam ser sofridas, pois quem “não sofre a dor, falha ao sofrer prazer”, afirma
Bion (1970). O sofrimento doloroso tem que encontrar refúgio psíquico,
pois, havendo representação da situação traumática, não haverá repetição
nem somatização. As pessoas que não fazem lutos mantêm na mente grandes quantidades de afetos dolorosos. Quando não é possível a evocação do
sentimento doloroso pelo pensamento, a compulsão à repetição arma o retorno a uma cena traumática através de sintomas para conciliar as partes
cindidas pelo trauma, propõe Kreiselman de Mosner (2004).
Neste trabalho, não pretendo me deter nas nuances entre dor e trauma,
mesmo porque encontramos diversos outros campos de interseção. Às vezes, as dores ficam situadas na fronteira entre o corpo e a mente, como
sugere Betty Joseph (1981), ao falar em “dor psíquica”, que o paciente N.
define adiante apropriadamente como seu “corpo emocional gritando”. Dor
indefinível, quase física, ocorre quando a identificação projetiva sucumbe
e as defesas estão ameaçadas, gerando sentimentos persecutórios intensos,
experimentados como violentos traumatismos.
“Sentido é dor?”, indaga uma menininha, infante, quase ainda sem
fala, às voltas com sensações, sentimentos e palavras. A mãe falava para a
tia: “Fulano está muito sentido”, e a menina pedia para a mãe nomear o que
era físico e o que era psíquico, mas certamente ela já sabia o que era dor!
Representação de um objeto perdido e sempre procurado, ferida produzida no psiquismo, no caso da psicanálise, dor e trauma se situam na
relação com o outro, produzindo frustração e desamparo. Referentes a um
trauma antigo, traumas cumulativos se seguem, necessitando de um trabalho de luto que vai fazer o paciente reexperimentar na transferência a perda
e reconstruir seu mundo interno, apropriando-se de sua história.
562 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 561-572, 2005
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 563
Regina Lúcia Braga Mota
Instituição de transmissão de valores e tradições que recebemos ao
nascer, espaço inaugural de construção do eu, palco de múltiplas identificações e da estruturação psíquica, a família nos antecede e nos recebe com
um nome e sobrenome, uma filiação, ponto de origem do qual temos que
nos apropriar para construir nossa história pessoal de angústias e defesas. É
um eixo que nos protege do risco da loucura e da deriva (PASSOS, 2003),
mas que também pode fazer enlouquecer. História que ancora nossas vidas,
conjunto de vivências e narrativas dos pais, constitui-se através de palavras
ouvidas, contadas e recontadas, posteriormente, ressignificadas na análise.
Winnicott (1979) enfatiza que o crescimento mental da criança se
constitui a partir de um intercâmbio contínuo entre as realidades interna e
externa, na jornada da dependência à independência em relação à família,
até encontrar sua identidade como sujeito nascido de um drama, marcado e
modelado por ele.
O trauma “inventado”, no “romance familiar” de Freud (1909), é um
recurso edípico do imaginário em que é fantasiada uma família que não
corresponde à sua realidade, tecendo-se uma trama digna de folhetim: são
filhos adotados, mães com amantes secretos, irmãos bastardos, etc., estranhos numa família ilegítima. Funciona como uma defesa enganosa contra
o incesto, já que não haveria por que recriminar os desejos sexuais da criança em relação aos pais ou irmãos, se não possuem o mesmo sangue. Constituindo-se de fantasias referentes a cenas recalcadas, o “romance familiar”
aparece ainda como manifestação do desejo de humilhar ou exaltar os pais
e de nutrir rivalidade fraterna.
Intrigam-me as conseqüências da adoção para o psiquismo da criança
que foi adotada, que vive um verdadeiro romance familiar, e que não estaria protegida contra desejos incestuosos. Além disso, vemos uma busca
obsessiva pelos pais biológicos, que afinal a rejeitaram. Haveria algum tipo
de cisão interna em decorrência de dois registros coexistindo no inconsciente: rejeitada e aceita ao mesmo tempo?
Se, até a Idade Média, a criança era um fardo a se desembaraçar, criada por amas, longe dos pais, sendo consideradas família as pessoas que
TRAUMA:
IMPACTO DA FAMÍLIA NA ESTRUTURAÇÃO PSÍQUICA
habitavam em uma mesma propriedade indivisível, com o Renascimento,
forma-se a família patriarcal, a partir da divisão de propriedades, em que
amamentação, higiene e cuidados com a criança se impõem
(BANDAROVSKY; BRAZ, 1996). Com o capitalismo, houve um retrocesso, em que as crianças tinham que trabalhar e lutar nas guerras, até chegar
à época da “criança majestade” de Rousseau (séc. XVIII), boa por natureza
e corrompida pela sociedade, à qual Freud (1905) contrapõe a criança por
natureza perversa polimorfa. Mas a criança da Psicanálise está sujeita às
projeções dos pais, e, assim como estes, todos os adultos abrigam internamente a criança que foram.
Da mesma forma que a família, as casas em que vivemos são marcos
do nosso trânsito pelo viver, afirma Vida de Prego (1976). Nascemos de
uma casa-ventre, nutrimo-nos numa casa-seio, crescemos envolvidos por
uma moldura determinante que implica a constante perda de objetos ideais,
os quais estaremos sempre procurando reencontrar. A casa que não protege
é um buraco gerador de profundas angústias. Essas casas, continentes de
lembranças e do esquecido, palco do romance familiar e de dramas
inolvidáveis que se repetem na análise, aparecem em sonhos, fundindo
passado e presente, ao longo do trajeto analítico, como o quarto sem tranca
da casa de Dora (FREUD, 1905).
As casas que o paciente G. traz constantemente para a análise representaram um divisor de águas na estruturação de sua personalidade: a
primeira, grande e farta, o paraíso, com uma babá carinhosa que lhe
secava os cabelos. Mas o bebê lindo e gordinho é subitamente arremessado ao vestíbulo do inferno, antecipando as dores que iria sofrer
na vida, quando o pai, alcoólatra, começou a perder tudo no jogo, inclusive a própria casa, iniciando a derrocada da família numerosa.
Enquanto se construía o casebre onde iriam morar, G. fica temporariamente na casa da babá, um barraco num beco infecto. Como numa
cena de realismo fantástico, a chegada do marido dela, tarde da noite,
era anunciada por uma matilha de cães que uivava, cercando o bêbado
desde o início da rua, acordando a todos. Quando finalmente mudaram
564 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 561-572, 2005
Se a família não acolhe a dor de existir, a dor faz parte da análise,
campo onde batalhas transferenciais são travadas para que se possa fazer
emergir e recriar o caminho em direção à genuína posição depressiva.
Depois de uma sessão muito mobilizante, o paciente N. escreve seu
primeiro conto e me traz. Relata uma batalha sangrenta contra a morte,
que se desenrola na própria casa onde viveu e onde os pais moram até
hoje, e mais precisamente no quarto dos pais! Começa descrevendo
em detalhes o sobrado antigo: “Há um clima de oração, com velas queimando, cheiro de flores e de frutas. Mulheres se comunicando com
sinais, gestos e olhares quase imperceptíveis, tipo de diálogo que passou a adotar. Sentia tudo, mas não definia. O que faria com tanto sentimento? Sentimentos em blocos desorganizados como trouxa de
roupa suja, que, depois de lavadas, eram guardadas. Pena não poder fazer o mesmo com seus sentimentos. Sentir e não querer sofrer;
sentir e não querer rir, pois sabia que tornaria a sofrer e a sorrir, e esse
círculo era comum, enfadonho. Para que viver, se iria morrer? Não
era hora de se questionar, afinal, a passagem, como se costuma dizer, é
um momento bastante tumultuado, com pouco espaço ao exercício da
reflexão [...]Deve ter sido muito complicado para ele, pois a existência
exige muitas coisas, exige estar adequadamente aparelhado para viver.
Exige resistência física e emocional, exige vontade e conhecimento de
seus desejos e exige boa capacidade para expressá-los. Quem só sabe
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 565
Regina Lúcia Braga Mota
para o casebre “daquele bairro”, a decadência do pai se acentuou, chegando a perder a roupa do corpo: retornava sempre bêbado, quebrando
tudo, e a mãe iniciava uma discussão que varava a madrugada. G., o
filho caçula, resolveu ocupar o lugar do pai sempre ausente, tentando
colocar ordem no recinto desde muito pequeno. Começou a trabalhar
muito cedo, em todo tipo de biscates, e assim conseguiu se formar, por
sua própria conta sempre. Cuidou do pai até a sua morte por cirrose
hepática. Inteligente e sedutor, desenvolveu muito precocemente defesas extraordinárias para sobreviver. Entretanto, sempre sofreu de muita solidão. Até hoje, não consegue ir direto do trabalho para sua casa;
para não ficar sozinho, tem que passar no bar, como o pai.
TRAUMA:
IMPACTO DA FAMÍLIA NA ESTRUTURAÇÃO PSÍQUICA
sentir, sente um turbilhão de coisas ao mesmo tempo que imobilizam,
assustam. Era seu corpo emocional gritando”. E finaliza: “Na tentativa de salvar aquela vida, o médico pôs-se a fazer de tudo que sabia.
Havia barulho de costelas envergando. Gritos surdos de dor e orações.
Mantas, lençóis, trapos e até as paredes do quarto estavam ensangüentadas. Era o final de mais um episódio do quotidiano, era só mais um
acontecimento da existência, que para ele era a sua experiência mais
forte. Sua vida mudaria radicalmente, nas dimensões do mundo físico
e espiritual. Nada mais seria como antes. Como levar toda aquela pureza austera que bem conhecia para um outro mundo? Depois de todo
aquele esforço conjunto, acabou sucumbindo e respirando com força.
Momentos depois, veio do quarto um choro alto que podia se ouvir
desde a distante cozinha... por fim, havia nascido! Talvez sua primeira
derrota registrada”.
Para alguém ensimesmado, sem palavras para seu sofrimento, N. evoluiu muito, produzindo um impactante relato da dor de nascer! Quando a
dor de nascer deixa marcas indeléveis, o convite à vida não suscita um
interesse maior do que o de voltar ao inanimado ou de não ser nada. Embora para N. sofrer a vida seja o mesmo que sofrer a morte, vemos descrita a
derrota da pulsão de morte pela pulsão de vida.
A tragédia do bebê – seu desamparo físico e psíquico ao ser confrontado com um mundo sentido como hostil, não tendo um aparelho psíquico
desenvolvido – depende da função continente dos pais para ser elaborada,
tolerando e absorvendo a agressão inata do filho. Quando essa função falha, podem surgir estados depressivos na criança, já que a hostilidade não
canalizada se volta para ela própria.
De acordo com B. Joseph (1981), a dor psíquica reflete uma sensação
de confusão, “sentimentos em blocos desorganizados como trouxa de roupa”. Segundo N., um aglomerado de estágios (nascimento, oral e edípico),
relativos aos primórdios da dor, quando a fragmentação imperava, embora
os pacientes que a sentem não sejam necessariamente psicóticos.
Para Ferenczi (1933), traumático é não poder nomear a experiência e
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 567
Regina Lúcia Braga Mota
vê-la desqualificada por algum adulto confiável, pois, nesses casos, a
simbolização falha, restando a concretude do episódio traumático. Somente a palavra recupera a cisão entre o que a criança compreendeu e o que lhe
disseram (HAYNAL, 1989) para dar sentido à situação dolorosa. Se a palavra da criança é desconsiderada como sendo apenas “coisa de criança” e se
a mesma não tem acesso a nenhuma palavra verdadeira, pode encontrar no
sintoma uma possibilidade de expressão. O sintoma é um véu que esconde
o acontecimento perturbador ou o texto original e entra no lugar das palavras que faltam, sempre incluindo o indivíduo e o outro.
A criança aprende a emudecer face à repressão do adulto que anula o
discurso e elimina a possibilidade de reagir espontaneamente. A dependência do amor dos pais impede que os traumas infantis, ocasionados por eles,
sejam reconhecidos, pois permanecem ocultos por idealizações.
A violência encoberta é um fator tão traumático quanto a primitiva
violência física, mas é tolerada com submissão pela criança vulnerável.
Em suas formas sutis, vemos o descaso, a humilhação, a coerção, a insensibilidade ante o sofrimento e a apropriação do outro, gerando traumas inconscientes mudos e podendo se manifestar mais tarde através de sintomas
sadomasoquistas. Alkolombre e Petronacci de Hacker (2004) mostram que
o poder do adulto aí se revela, coexistindo com cuidados e modelos
educativos, que nem sequer são mencionados nas entrevistas preliminares,
por serem egossintônicos.
Simone, uma paciente, relata que ficava desesperada quando os pais e
irmãos faziam uma “brincadeira”, comunicando-se numa língua inventada, através da qual fingiam se entender entre si, excluindo-a. Ignorar a
criança, como represália à sua agressividade, pode ser tão traumático quanto uma surra.
A violência sobre a criança apaga a subjetividade e é exercida sobre
alguém que não pode ser reconhecido como diferente (ALKOLOMBRE;
PETRONACCI DE HACKER, 2004). Pais narcísicos reagem violentamente
à autonomia do filho, transmitindo uma história que vai se repetindo
transgeracionalmente: pais que maltratam porque foram crianças maltrata-
TRAUMA:
IMPACTO DA FAMÍLIA NA ESTRUTURAÇÃO PSÍQUICA
das, e assim por diante. Lembramos, no entanto, que limites e proibições
também são necessários à estruturação do superego e que a permissividade
é nociva.
Leclaire (1977) ressalta que, logo ao nascermos, temos de começar a
fazer o luto da criança maravilhosa ou terrível que fomos nos sonhos dos
nossos pais. Essa “representação narcísica primária” inconsciente, “sua
majestade o bebê”, começará a falar e a desejar, e nesse momento dar-se-á
o início da constituição do seu “eu”.
Mannoni (1987) afirma que todo estudo da criança implica o adulto,
sendo que a constituição da criança como sujeito depende do desejo dos
pais de deixá-lo nascer. “A criança, nos seus esforços para se constituir
como indivíduo reencontra o que no inconsciente dos pais é obstáculo ao
surgimento do seu ser.”
A criança de Freud, perversa polimorfa, é a que está no adulto, buscando o prazer do passado que foi proporcionado pela mãe, investindo em
novos objetos. É a palavra do adulto que vai modificá-la ou se inserir no
seu inconsciente. Assim, a doença da criança revela a doença dos pais. A
queixa dos pais em relação ao sintoma do filho pode se referir a um sonho
irrealizado, a um ideal perdido, à falta que há no adulto e à expectativa de
que essa falta será preenchida pela criança.
Os conflitos se desenvolvem em torno da palavra veiculada, pois o
discurso do passado permanece inscrito no inconsciente. A criança entra
na ordem simbólica através do Édipo e da castração, do terceiro, da lei e da
cultura. O que foi dito ou não dito pode refletir a dificuldade do casal parental, e ordens contraditórias podem perturbar os processos identificatórios de construção da subjetividade do filho. Há que também desvendar a
palavra do pai no discurso da mãe.
O sintoma da criança surge indiretamente na sua relação com os pais,
representando o lugar da angústia destes. Prosseguindo nesse ponto de vista, Mannoni (1987) pergunta: “Para quem a criança deve permanecer o
louco que não é, já que está sujeita à loucura do adulto?”. Quando nasce
uma criança organicamente “defeituosa”, interessa-nos saber como a doen568 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 561-572, 2005
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Regina Lúcia Braga Mota
ça real é vivida por ela e pela família. Às vezes, a melhora da criança pode
produzir nos pais crises somáticas e psíquicas. Em casos mais graves, a
mãe pode adoecer o filho e mantê-lo doente.
“Procura-se introduzir um meio ambiente melhor, sem pensar que o
meio é antes de tudo o discurso coletivo em que o sujeito se acha preso”,
ressalta Mannoni (1987). O discurso paterno explica o que na criança não
pode ser dito – a distância entre a palavra de um e de outro –, um malentendido que se dissipa quando se ouve o conjunto da criança e dos pais.
Teríamos um meio ambiente “imaterial”, efeito das palavras, ouvidas ou
não, da família.
Como é esperada pela família a criança antes do nascimento? O que
vai representar como projeção dos pais? Como a situação real é vivida
simbolicamente pela criança? O que na palavra adulta marcou a criança? O
que representa a criança no mundo fantasmático dos pais e na transferência
com o analista? Uma paciente minha sonha que está ameaçada por ladrões
e usa seu bebê, o filho caçula, falo da mãe, como escudo.
Ao contrário do exemplo acima, o papel do analista assemelha-se ao
da boa mãe, que deve funcionar como estímulo, escudo e filtro protetor.
Sua verbalização e compreensão servem para elaborar o trauma.
Além do exposto acima, a Psicanálise atual tem que dar conta das
novas formas de famílias contemporâneas, a partir das quais sugiro algumas questões para reflexão:
1) Tenho curiosidade de saber, por exemplo: como se apresenta a rede
identificatória e o tabu do incesto na criança em novas estruturações familiares, em que coabitam “os meus, os seus e os nossos” filhos?
2) Numa época de provetas e ameaça de clonagem, preocupo-me com
a nova geração de bebês criados por mães que dispensam os homens, recorrendo a bancos de sêmen. Como ficaria a função paterna nesses casos?
3) Pares de homossexuais, tanto masculinos quanto femininos, adotam crianças que terão dois pais ou duas mães, em vez de um casal. Do
ponto de vista identificatório, isso dependeria apenas de uma boa definição
dos papéis materno e paterno na dupla?
TRAUMA:
IMPACTO DA FAMÍLIA NA ESTRUTURAÇÃO PSÍQUICA
Ficam as perguntas, por enquanto sem respostas, como sugestões para
a pesquisa psicanalítica, já que a família contemporânea não é mais igual à
da época de Freud, mesmo que consideremos universais e atemporais os
mitos em que o pai da Psicanálise se baseou para construir suas teorias.
Trauma, acolhimento e identificações sempre haverão de existir no seio
das famílias e o impacto dessas novas constelações familiares requerem
um estudo sério e aprofundado para a Psicanálise desses novos tempos.
Resumo
A autora discorre sobre a família como o cenário de dores traumáticas, desde o nascimento até a morte, permeadas pela dor do Édipo e da castração, mas
também campo de impacto para a estruturação psíquica e constituição da subjetividade. Ilustra com um breve relato de dois casos clínicos em que a família e a
casa são retratadas como moldura nem sempre satisfatória para o sofrimento
mental, acrescentando uma descrição literária feita por um paciente. Apresenta o
ponto de vista teórico de autores kleinianos e não-kleinianos, revelando a opinião
desses últimos quanto à análise da criança ser indissociável do relato dos pais. Ao
final, algumas questões são formuladas para que se possa refletir a respeito do
impacto das novas configurações familiares contemporâneas.
Palavras-chave
Trauma. Estrutura Familiar. Subjetividade. Representação. Elaboração.
Abstract
Trauma: the impact of family on psychic structuring
The author discourses on family as the scenario of traumatic pain, from birth
until death, permeated by Oedipus pain and the pain of castration, but also as an
impact field for psychic structuring and the constitution of subjectivity. She
illustrates it with a brief account of two clinical cases in which the family and the
house are depicted as a not always satisfactory frame for mental suffering, adding
a literary description made by a patient. She presents the theoretical viewpoint of
Kleinian and non-Kleinian authors, revealing the opinion of the latter as to child
analysis being inseparable from the parents’ account. Finally, some questions are
570 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 561-572, 2005
Key-words
Trauma. Family Structure. Subjectivity. Representation. Working-through.
Resumen
Trauma: impacto de la familia en la estructuración psíquica
La autora discurre sobre la familia como el escenario de dolores traumáticos, desde el nacimiento hasta la muerte, penetradas por el dolor de Édipo y de la
castración, sino también campo de impacto para la estructuración psíquica y
constitución de la subjetividad. Ilustra con un breve relato de dos casos clínicos
en que la familia y la casa se retratan como moldura y no siempre satisfactorias
para el sufrimiento mental, añadiendo una descripción literaria hecha por un paciente. Presenta el punto de vista teórico de autores kleinianos y no kleinianos,
revelando la opinión de estos últimos en lo que se refiere al análisis de que el niño
sea indisociable del relato de sus padres. Al final, algunas cuestiones se formulan
para que se pueda pensar sobre el impacto de las nuevas configuraciones familiares contemporáneas.
Palabras-llave
Trauma. Estructura Familiar. Subjetividad. Representación. Elaboración.
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 571
Regina Lúcia Braga Mota
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configurations.
TRAUMA:
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Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Trabalho apresentado na Conferência Nacional de Psicanálise.
Recife, PE, 14-16 de abril de 2005.
Dra. Regina Lúcia Braga Mota
SHIS QI9, Lote E, Bloco I, sala 209, Lago Sul
71625-009 Brasília – DF – Brasil
Fone: (0xx61) 248-6216
E-mail: [email protected]
572 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 561-572, 2005
Introdução
Rosane Muller Costa
Candidata do Núcleo de
Fortaleza, ligado à Sociedade
Psicanalítica de Recife.
Na natureza, o dado primeiro é
a observação de ciclos; a existência
consiste em movimento e mudança.
Sendo a transformação intrínseca
aos seres viventes, as ciências que
os estudam se debruçam na investigação desse grande enigma. No que
se refere à mente humana, não é diferente, pois, mesmo que Freud não
tenha dedicado um trabalho especificamente à noção de mudança psíquica, toda a sua obra pode ser focalizada a partir desse ângulo, desde o
seu mais precoce início. Com efeito, a invenção da Psicanálise decorre do esforço do seu criador para
operar mudanças no interior do aparelho psíquico. Foi assim que, no
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 573
Rosane Muller Costa
Mudança
Psíquica e
Crescimento
Emocional
MUDANÇA PSÍQUICA
E
CRESCIMENTO EMOCIONAL
tratamento das pacientes histéricas, Freud chegou à descoberta da realidade psíquica e da eficácia da sexualidade infantil atuante no adulto. Vislumbrar o infantil como determinante das manifestações psíquicas mais elementares da vida adulta, não só dos sintomas, inspirou a criação de conceitos como inconsciente, repressão e transferência, entre outros, que convergem às grandes descobertas da Psicanálise. Ficou, então, aberto o caminho
para a investigação do ponto de vista genético da metapsicologia. A presente comunicação visa abordar, mais especificamente, a evolução do
narcisismo às relações de objeto na perspectiva de Freud, Ferenczi e Klein,
focalizando a contribuição do objeto nesse percurso. Ilustraremos as idéias
apresentadas com o conto de fadas A Bela e a Fera, que tão bem expressa
a feição mágica das transformações e os ingredientes necessários para produzi-las.
Considerações sobre a Mudança Psíquica e a
Estruturação do Sujeito
Os estados mentais são dotados de grande mobilidade, mesmo no que
concerne à passagem de um estado mais saudável para outro mais patológico, como se vê no seguinte trecho de Freud (1907, p.50): “o limite entre o
que se descreve como estado mental normal e como patológico é tão convencional e variável, que é provável que cada um de nós o transponha muitas vezes no decurso de um dia”. A esse fenômeno convencionou-se chamar de mudança psíquica, e a sua investigação conduz à questão de como o
aparelho mental realiza mudanças mais duradouras, de como evolui ao longo do tempo.
Em linhas gerais, a metapsicologia mostra uma tendência no sentido
de uma crescente complexificação das estruturas psíquicas que acompanha
as transformações na organização defensiva do sujeito em relação à sua
vida pulsional (BLEICHMAR, 1993). O desenvolvimento do aparelho psíquico tende para formas superiores de organização, o que está associado,
na concepção de autores diferentes, à noção de diferenciação (Spitz e os
organizadores da psique), de vir a ser mais o que se é (Winnicott e o verda574 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 573-593, 2005
A Bela e a Fera
A noção de crescimento psíquico como uma transformação, em que a
importância do objeto é, sobremaneira, evidente, foi magnificamente retratada no conto A Bela e a Fera. Os contos de fadas, assim como os mitos e
as lendas, transmitem uma verdade universal, impregnada de sentimentos
atemporais e comuns a toda a humanidade. Conferem expressão de modo
metafórico, tanto quanto os sonhos e os sintomas, a um saber do incons-
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 575
Rosane Muller Costa
deiro self) ou de desenvolvimento do senso de identidade (Mahler e o processo de separação-individuação).
Freud considerava o desenvolvimento emocional como uma decorrência do crescimento psíquico e este como um processo natural, que acontecia de acordo com os sucessivos rearranjos da relação pulsional com os
objetos organizados em fases. Deve-se a Karl Abraham, segundo Roudinesco e Plon (1998), a introdução da idéia de que as atividades do sujeito
são moldadas pelos próprios objetos, mais precisamente, pela maneira
como o sujeito se constrói na relação com os objetos parciais vinculados às
pulsões orais, anais e uretrais. Abraham também estava interessado em
demonstrar como se articula a atividade de fantasia na criança, conforme
os tipos de relações objetais alcançados, tema que foi extensamente desenvolvido por Klein, cujo trabalho incide no modo como se constrói e se
modifica a fantasia inconsciente no contexto das relações de objeto. Para
Klein, o crescimento psíquico decorre sempre do desenvolvimento emocional e, embora resultante de um processo natural, precisa ser alcançado
pelo sujeito, haja vista inúmeras forças que se opõem a ele desde os primórdios da existência.
Há registros de que o movimento psicanalítico da segunda metade do
século XX em diante dedicou-se à reflexão sobre a maneira pela qual o
sujeito humano constrói sua personalidade na relação com o meio social,
sobretudo com o outro significativo, não qualquer outro, mas aquele cuja
ligação é mediada pelos investimentos pulsionais do sujeito.
MUDANÇA PSÍQUICA
E
CRESCIMENTO EMOCIONAL
ciente, passível de ser captado em seus múltiplos significados pela mente
consciente, pré-consciente e inconsciente.
Como todas as manifestações do id, os contos de fadas têm um
surgimento aparentemente espontâneo. Ninguém sabe de onde vieram,
qual a sua origem ou as leis que regem o seu aparecimento. Supõe-se que
tais leis existam e possam ser formuladas, pois há semelhanças nos contos
encontrados nas mais longínquas regiões do planeta (NISSENBAUN;
LEVY, 1998). Os contos tiveram início como parte de uma tradição oral
preservada por sucessivas gerações de contadores até que, na França, na
segunda metade do século XVII, Charles Perrault (1628-1703), entre outros escritores, contribuiu para sua divulgação como literatura, gênero bastante apreciado desde então. Em função dessa característica – o anonimato
da autoria do conto e a existência de um trabalho psíquico coletivo sobre
este – é que não importa de quem é a versão relatada, pois todas são igualmente relevantes, desde a última da Disney encenada no teatro e levada
para o cinema de animação até as primeiras e mais remotas.
O resumo de A Bela e a Fera apresentado a seguir foi baseado na
narrativa de Marianne Mayer, cuja versão para o inglês, editada em 1978,
baseia-se na escrita por Madame Leprince de Beaumont, de 1757, que, por
sua vez, remete à versão francesa original, elaborada por Madame de
Villeneuve em 1740. Segundo Bettelheim (1980), esse é o relato mais popular do conto.
Era uma vez ... uma assustadora fera que vivia sozinha em seu castelo
numa floresta distante. Um dia, um homem bateu em sua porta tendo
se perdido em meio a uma noite escura e tenebrosa. Fera o recebeu
com a mesa posta e um quarto aquecido, porém, como de hábito, nada
quis com aquele visitante, até que, quando já ia indo embora, o homem
arrancou uma das rosas do seu jardim. Furioso, Fera apareceu e falou:
“Eu lhe dou comida e abrigo e você me agradece roubando. Prepare-se
para morrer por sua ousadia”. O homem, então, contou sua história.
Tinha sido um mercador rico, mas perdeu suas posses na tempestade
que naufragou seus navios, tendo então que se mudar com a família
576 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 573-593, 2005
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 577
Rosane Muller Costa
para o campo. Tinha seis filhos, três mulheres e três homens, que passaram a sofrer com o trabalho duro, à exceção de Bela, das filhas a
mais nova e a mais ligada a ele. Recentemente, teve a notícia de que
um de seus navios retornou ao cais e fez essa viagem para ver se recuperava algo, mas em vão, nada havia restado da rica carga de outrora.
Essa rosa que ele colhera do seu jardim tinha sido um pedido de Bela a
ele, o único que podia atender, já que o pedido das outras filhas tinha a
ver com ricos presentes. Fera, ouvindo isso, teve uma idéia e disse: “Se
sua filha ama você o bastante para vir aqui em seu lugar, eu a tomarei
em vez de você; mas, se ela recusar, você deverá voltar ao castelo para
ser punido”. O mercador protestou, mas Fera determinou que deveria
ser escolha da jovem. Desolado, o homem partiu levando também os
tesouros que Fera lhe presenteara.Chegando em casa, contou o ocorrido, e Bela, apreensiva, rumou para o castelo. Lá foi recebida pelo anfitrião, que lhe comunicou as regras: “Tudo aqui lhe pertence, mas você
não poderá jamais deixar o castelo”. Dito e feito. Os dias foram se
passando, e ela encontrava tudo de que necessitava num passe de mágica; numa torre descobriu muitos livros e se entretinha lendo. Via
Fera apenas no jantar, quando este lhe contava histórias de países e
povos estrangeiros e, invariavelmente, antes de se retirar, perguntava
se Bela queria casar com ele. Ela sempre recusava, mas, com o tempo,
passou a esperar por esses encontros. Também passou a querer saber
mais sobre Fera, que nada lhe contava de si mesmo. Ela, então, começou a ter sonhos nos quais via um jovem que dizia ter sido vão e orgulhoso, até que, tendo recusado comida a uma mendiga, esta, na verdade uma feiticeira, o condenou a vagar sozinho, encanto que só seria
quebrado se alguém nele visse alguma beleza.O tempo passou mais
um pouco até que Bela foi novamente surpreendida pela descoberta de
um espelho. Neste viu seu pai muito doente e seus familiares pranteando à sua volta. Aflita, Bela comunicou o ocorrido a Fera, que confirmou que o espelho dizia a verdade. Aí a jovem implorou para visitar o
pai, ao que Fera relutante concordou, desde que ela retornasse em três
semanas. Em casa, seu pai recuperou-se com a visão da filha, mas uma
armadilha a aguardava. As irmãs invejosas da boa aparência da caçula
a convenceram a ficar; certamente Fera entenderia que o pai precisava
mais dela do que ele. Assim, Bela não voltou ao castelo no tempo com-
MUDANÇA PSÍQUICA
E
CRESCIMENTO EMOCIONAL
binado e, quando olhou novamente o espelho, foi Fera quem ela viu,
dessa vez era ele quem estava desfalecido e parecendo muito doente.
Ela, então, regressou apressada ao castelo e, encontrando Fera como
na visão do espelho, não se conteve e disse “Eu te amo, Fera”. Nesse
momento, a aparência animalesca desapareceu e em seu lugar surgiu
um príncipe, o palácio voltou a ter vida, e uma grande festa foi realizada para celebrar o casamento de ambos. Eles, assim, viveram com amor
e alegria para todo o sempre.
A essência do conto é a passagem de uma existência biológica para
outra, humana, transformação efetuada mediante a presença do objeto no
contexto de uma relação prenhe de significado. Essa travessia, que é o destino da cria humana, se opera sob uma lei que se funda na linguagem e no
simbólico. Na ordem humanizante, existem trocas – os bens, a linguagem –
e se estabelecem valores morais e éticos.
Barthes (1991, p.102) comenta o aspecto transformador do simbólico
e seu caráter essencialmente humano, atentando para o fato de que Fera
espera receber a palavra cujo efeito a livrará do encantamento. Diz ele:
A Fera – que foi encontrada na sua feiúra – ama a Bela; a Bela, evidentemente, não ama a Fera, mas, no final, vencida (pouco importa por
quê; digamos: pelas conversas que tem com a Fera), lhe diz a palavra
mágica: “Eu te amo, Fera”; e, imediatamente, através do rasgo suntuoso de um acorde de harpa, aparece um novo sujeito.
Muito cedo, em seu trabalho, Freud descobriu o poder mutativo da
palavra e dele fez nascer a psicoterapia, desde que o que transita entre os
seus participantes é tão-somente o verbo. No artigo Tratamento Psíquico
(ou Mental) (FREUD,1905a, p.306), ele afirma:
Agora, também, começamos a compreender a mágica das palavras. As
palavras são o mais importante meio pelo qual um homem busca influenciar outro; as palavras são um bom método de produzir mudanças
mentais na pessoa a quem são dirigidas! Nada mais existe de enigmá578 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 573-593, 2005
O conto evoca, de forma mais imediata, a mudança que acontece numa
relação amorosa e, por alusão, aproxima-se da transformação presente no
processo de crescimento e na que acontece por intermédio da Psicanálise.
Ao longo desta exposição, abordaremos esses três tipos de mudança e os
aspectos de intersecção destas. As personagens do conto – Bela, o pai e
Fera – constituem uma tríade, o que é sugestivo da compreensão que a
psicanálise tem do crescimento mental no que se refere à importância da
triangulação edípica, porém, até que se tenha chegado a esse ponto, algumas transformações devem ocorrer.
Freud e o Ponto de Vista Genético
A fera representa a cria humana em vias de humanizar-se, já que o
homem em status nascendi nada tem de civilizado. Freud fez várias referências em seus textos à proximidade entre as crianças, os animais e os
homens primitivos. Nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade
(1905b), ele se refere à criança como “o perverso polimorfo”, meio animal,
meio homem primitivo, para falar da pulsão em seu estado original, entregue ao seu curso, dominada pela excitação sexual e pela urgência do prazer, pelo sadismo, que, eventualmente, transborda no comportamento infantil. Assinala que a disposição para a perversão da pulsão sexual humana
é um dado primário e universal.
Na infância, encontramos a criança entregue ao prazer pulsional, mas
isso, deve-se ressaltar, é bem diferente da perversão sexual, mais tarde encontrada no adulto. No caso da criança, uma renúncia acontece, à medida
que as repressões vão sendo construídas e a luta entre as forças que visam
ao prazer de modo irrestrito cedem lugar àquelas que o limitam. Assim, a
fera, o perverso polimorfo, é o tempo da infância, quando estão se formando as forças restritivas da pulsão. Nos Três Ensaios..., Freud menciona a
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 579
Rosane Muller Costa
tico, portanto, na afirmativa de que a mágica das palavras pode eliminar os sintomas das doenças, e especialmente daquelas que se fundam
em estados mentais.
MUDANÇA PSÍQUICA
E
CRESCIMENTO EMOCIONAL
vergonha, a repugnância, a piedade e as concepções de normalidade,
edificadas socialmente. O princípio da realidade instala-se muito lentamente, sendo os aspectos aspectos fera progressivamente empurrados para os
domínios do inconsciente.
A infância é o tempo de estruturação do aparelho psíquico, exatamente porque o inconsciente não existe desde as origens do indivíduo, sendo
produto de relações humanizantes. Em Freud, a origem do inconsciente
define-se em relação à sexualidade infantil, que encontra o clímax no drama edípico, mas é inicialmente auto-erótica e pré-genital, ligada a um corpo fragmentado e a uma personalidade em formação. A pulsão em si só vai
em busca da descarga, sendo que aquilo que se torna um obstáculo a essa
descarga leva a mudanças nas defesas mentais, o que vai culminar nos processos fundantes da tópica psíquica. Acontece uma clivagem, o surgimento
de uma ordem consciente e outra inconsciente pelo efeito do recalcamento,
sendo que o infantil passa a ser a sexualidade reprimida, recalcada, que
está na origem da estruturação do aparelho psíquico. O infantil em Freud,
portanto, é o próprio inconsciente.
A fera, como o infantil resultante do recalcamento, é o animal que
continua à espreita, uma condição situada na área do conflito psíquico. Sua
aparência assustadora no conto remete ao surgimento da angústia diante de
figuras que evocam o recalcado, uma menção de Freud no texto O Estranho (1919) quanto às representações figuradas da castração, a fantasia do
duplo e o movimento do autômato encontrados nas histórias de ficção.
O animal lembra o desejo humano insatisfeito, que cobra realização,
mas que permanece proibido. Foi, contudo, essa proibição que organizou a
psique, lhe deu uma forma, uma direção e gerou a capacidade de produzir
sentido. É a tensão entre o desejo e a sua interdição que funda o simbólico,
sendo por amor ao objeto que a criança renuncia aos seus impulsos agressivos e sexuais imediatos.
Bela, como contrapartida da fera, é o tempo do narcisismo, representado pelo isolamento num castelo onde todos os desejos se tornam realidade, onde não há falta, o que dá ensejo ao sentimento de ter um poder ilimi580 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 573-593, 2005
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 581
Rosane Muller Costa
tado, corolário da onipotência de pensamentos. A ilusão de onipotência é
necessária nos primórdios da existência, e o narcisismo daí advindo é
narcisismo de vida. Uma tal ilusão acontecendo num momento evolutivo
de total passividade, depende de uma mãe – metaforizada também por Bela
– que ali está para atender incondicionalmente ao filho. Ela mantém a situação de isolamento, refletindo no seu rosto – esse espelho que só diz a
verdade – os sentimentos e estados da criança, como sugere Winnicott
(1975). A função da mãe para Bion (1988) depende da rêverie materna,
que é a capacidade de captar os estados infantis com sua própria mente,
significá-los e devolvê-los à criança num contexto atenuado onde ela parece dizer: “O que você tem é isso, mas esteja tranqüila”. Essa capacidade
materna torna as experiências infantis dotadas de significado e, em conseqüência, toleráveis, constituindo uma comunicação extremamente poderosa, enquanto troca estabelecida muito antes que as palavras adquiram significado e sejam usadas como forma prioritária de expressão.
A cria humana, entretanto, para desenvolver sua personalidade, precisa caminhar para além do narcisismo primário. Assim, o mundo onde tudo
é concedido de imediato, num passe de mágica, torna-se monótono e vazio,
e Bela passa a esperar – esse signo do desejo – os encontros com Fera.
Chega um tempo em que self e objeto se separam. A mãe passa a existir
para o bebê como um outro que se interpõe ao seu desejo, que frustra, não
estando onde deveria, nem fazendo o que seria preciso, e por isso desperta
a ira da criança.
Em Sobre o Narcisismo: uma Introdução, Freud (1914) afirma existir
uma relação inversa entre a libido, que é dirigida a si mesmo – libido
narcísica – e a libido objetal ou a libido dirigida a outrem: “a libido objetal
é uma antítese da libido narcísica”, o que quer dizer que, quando a primeira
está em alta como na paixão, a libido narcísica está em baixa. Se a libido
narcísica predomina, como na megalomania, é o investimento no mundo
dos objetos e das coisas que fica deficitário.
No conto, o principezinho recusa comida à mendiga, e esta põe Narciso diante de outro espelho, onde ele descobre sua imperfeição, sua feiúra: a
MUDANÇA PSÍQUICA
E
CRESCIMENTO EMOCIONAL
alteridade quebra a ilusão de onipotência, interrogando o sujeito, e ele se
dá conta da falta. Isso que falta toma a forma de ser o reconhecimento, a
aprovação ou o amor do outro, o qual passa a ser aspirado com fervor como
modo de recuperar o narcisismo perdido. Em estreita relação com esse aspecto, o indivíduo passa a desenvolver um modelo interno, como padrões
de conduta e qualidades, ao qual busca se conformar. Esse modelo, uma
mescla do narcisismo infantil perdido, dos ditames parentais e de seus representantes sociais, é a instância psíquica denominada ideal do ego, o qual
determina que o amor-próprio seja pautado em qualidades que o indivíduo
realisticamente possui e possam ser expressas em ações que acontecem no
mundo compartilhado. Acentuando o aspecto em que o ideal do ego é imposto a partir de fora, no conto, a velha feiticeira decreta que o jovem permanecerá fera e, nesse caso, feio, até que alguém veja beleza nele. Essa
passagem traduz a dependência que o amor a si tem do olhar do objeto e a
idéia de que o narcisismo – no conto, a beleza – possa ser recuperado por
esse olhar.
O objeto amado, como Freud observou, é elevado às alturas da idealização, de maneira que a pessoa que ama é sempre humilde, e não ser
correspondido em seu amor provoca grande sofrimento. Já a ameaça de
perder o amor do objeto é fonte, por excelência, da experiência de angústia
(FREUD, 1926). O fato é que os investimentos objetais são sempre um
risco para o sujeito, pois “o estar apaixonado consiste num fluir da libido
do ego em direção ao objeto”, uma espécie de hemorragia. Ao investir os
objetos, coisas e pessoas do mundo, o ego torna-se empobrecido em benefício desses investimentos e se enriquece mais uma vez a partir da satisfação que obtém de volta. O movimento incessante das relações com os
objetos afeta muito particularmente a vida psíquica, tendo repercussões em
campos em que sua influência não é evidente.
O vislumbre da importância do objeto para o sujeito pode remeter determinado tipo de pessoa a sentimentos dolorosos de humilhação, e com
isso impedir a libido de investir as representações dos objetos, paralisando
trocas potencialmente significativas com o mundo. Essa condição, quando
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Algumas Considerações sobre o Objeto do Desejo
Nasio (1997) tem idéias interessantes sobre o que em psicanálise se
denomina desejo. Diz ele que o desejo pode ser compreendido como o
estado de tensão próprio do funcionamento do aparelho psíquico, que se
expressa para o sujeito como um estado de insatisfação perene. Essa insatisfação é associada ao objeto, pois a sua existência determina, por natureza, um estado de carência no sujeito, daí por que ele é motivo de queixas e
acusações, ao mesmo tempo que é visualizado como tendo o poder de nos
satisfazer e finalmente nos conduzir ao prazer absoluto que acreditamos
existir. Ele é, portanto, aquele que garante uma insatisfação necessária para
viver. Nas palavras de Barthes (1991) “se queres saber onde se encontra o
teu desejo, basta proibi-lo um pouco”.
O objeto de amor dá um estatuto ao desejo, resultando ser um elemento organizador do mundo mental. O seu papel no seio do inconsciente é
ocupar “o buraco de (uma) insatisfação interior, como se a carência fosse
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 583
Rosane Muller Costa
tornada crônica, revela o estado de adoecimento e tem relação com o sentimento de isolamento presente nos mais diversos tipos de patologia. A fera
sozinha no seu castelo é a pessoa que sofre pela impossibilidade de se relacionar.
Ainda no texto Sobre o Narcisismo, Freud (1914, p.118) faz uma diferenciação entre a escolha de objeto narcísica, quando amamos uma representação de nós mesmos reencontrada no objeto, e o tipo anaclítico (ou de
ligação) de escolha objetal, onde “o estar apaixonado ocorre em virtude da
realização das condições infantis para amar”. Assim, amamos pessoas que
satisfazem nossa necessidade de proteção e cuidados e, com isso, reproduzimos nossa ligação com os objetos primários. Pensamos, contudo, que
essa diferenciação é arbitrária, pois o objeto eleito contém tanto aspectos
do sujeito quanto dos primeiros objetos de amor. A questão que surge a
essa altura é sobre a especificidade da pessoa que escolhemos como objeto
de amor, a pessoa a quem destinamos a importante missão de dizer a palavra que nos transformará.
MUDANÇA PSÍQUICA
E
CRESCIMENTO EMOCIONAL
finalmente um lugar vacante, sucessivamente ocupado pelos raros seres e
coisas exteriores que consideramos insubstituíveis e cujo luto deveríamos
realizar caso desaparecessem” (NASIO, 1997, p.36).
O desejo que se define em relação à falta pode ser assim formulado:
desejo é “desejo do desejo do outro”. Isso quer dizer: desejo de ser amado,
situação expressa no pedido que Fera, noite após noite, faz a Bela. O amor
leva à presença em fantasia do(da) amado(a) no inconsciente. Amamos
sempre um ser que é constituído pela pessoa real e viva do outro e pela sua
presença fantasiada e inconsciente em nós mesmos. Das duas presenças, a
real e a fantasiada, a segunda é mais importante como organizadora do
mundo mental, se bem que é a existência viva do objeto que sustenta a
fantasia inconsciente, que não se mantém quando este desaparece além de
um certo tempo.
É difícil distinguir que força é essa emanada do corpo e do inconsciente daquele que elegemos como objeto de amor e que o torna único, diferente. A percepção dessa diferença é o primeiro sinal manifesto de uma relação objetal em curso e pode ser observado já aos 8 meses de idade, na
reação de angústia da criança diante de pessoas estranhas (SPITZ, 1987),
angústia sempre associada ao medo de perder ou de ter perdido o objeto.
Existe algo, definitivamente, inconsciente que permeia nossa ligação com
este e que leva a marca do constitutivo.
A Perspectiva de Ferenczi
As colocações de Nasio sobre a existência inconsciente do objeto no
nosso mundo mental encontram ressonância no pensamento pioneiro de
Ferenczi (1991, p.182), fecundo em reflexões sobre esse tema. Para ele, a
noção de investimento no objeto corresponde à idéia de introjeção, pois
“amar a outrem equivale a integrar esse outrem no seu próprio ego. [...] É
essa união entre os objetos amados e nós mesmos, essa fusão desses objetos com o nosso ego, que designamos por introjeção e – repito-o – acho que
o mecanismo dinâmico de todo amor objetal e de toda transferência para
um objeto é uma extensão do ego, uma introjeção” . Dessa maneira, todo
584 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 573-593, 2005
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 585
Rosane Muller Costa
investimento objetal é de natureza narcísica, sendo o objeto incluído no eu
a partir do deslocamento para ele de sensações, sentimentos e afetos do
próprio sujeito. É sempre de acordo com uma lógica afetiva que a relação
do sujeito com o objeto é construída e mantida.
Na concepção de Ferenczi, conforme a revisão efetuada por Mezan
(2002), o movimento de inclusão dos objetos no eu acontece mediado pela
sexualidade, a partir da ampliação dos interesses auto-eróticos do sujeito
para incluir o mundo exterior, ocorrendo uma “objetalização do auto-erotismo primitivo”. Esse pensamento está de acordo com a teoria das pulsões
expressa por Freud no texto de 1914 sobre o narcisismo, citada há pouco.
Podemos deduzir também que a transferência erótica, freqüente nos processos analíticos, não faz mais do que reproduzir o percurso pelo qual o eu
investe o mundo dos objetos, isto é, a sexualização da relação com o analista é parte natural do processo de investimento no mundo.
Ferenczi sustenta o argumento de que o estado inicial de
indiferenciação é modificado muito lentamente, contando para isso o
desprazer decorrente da percepção de que não basta a onipotência de pensamento para satisfazer as necessidades e desejos, ou seja, a frustração é o
móvel por excelência da constituição do psiquismo, e o trajeto em direção
à tolerância da realidade deixa marcas profundas na vida mental.
Numa etapa precoce da existência mediante o choro, a criança traz o
adulto para perto, e este elimina a sensação de desconforto. Nesse momento, os movimentos do seu corpo parecem ter produzido a satisfação, por
isso são vivenciados como “gestos mágicos”. As sensações agradáveis proporcionadas pelos cuidados maternos vão sendo introjetadas e constituem
as etapas iniciais da introjeção do objeto. O movimento de cisão que vai
fazer surgir um eu e um mundo externo acontece mediado pela frustração
mais prolongada. Nesse momento, a criança vê-se forçada a representar o
exterior e o faz com as qualidades descobertas em si mesma; essa é a fase
“animista”, em que as coisas parecem dotadas de vontade, vida e poder.
Ferenczi acredita que, nesse estágio, a criança encontra seus órgãos e
o funcionamento destes no mundo externo. Do auto-erotismo de onde par-
MUDANÇA PSÍQUICA
E
CRESCIMENTO EMOCIONAL
te, só se interessa pelo seu corpo e pela satisfação que pode obter do funcionamento pulsional relacionado às atividades de excreção, sucção, alimentação, toque dos genitais. Com efeito, o que a atrai no mundo são as
coisas que a fazem lembrar de suas experiências com esse corpo. Resulta
que relações profundas se estabelecem entre o corpo humano e o mundo
dos objetos, relações que têm a qualidade de ser simbólicas. O símbolo,
portanto, aparece na etapa animista e como conseqüência do processo de
introjeção dos objetos. Com a formação do símbolo, a criança é introduzida
numa nova modalidade de existência.
Seguindo-se aos “gestos mágicos”, à medida que a criança adquire os
rudimentos da linguagem, vem a etapa das “palavras e pensamentos mágicos”. Nesse período, a linguagem assume uma função evocativa, sendo
esta a essência da magia: “fazer ser o que não é por meio da palavra”. Essa
função da linguagem está presente na sessão analítica, onde a palavra mais
parece evocar do que denominar as coisas. Esse enfoque torna a transferência diferente de um deslocamento de afetos e a concebe como uma atividade produtiva, na qual a linguagem transforma o analista nisso ou naquilo,
segundo a fantasia predominante. Acrescentamos que a faculdade
evocativa da palavra na análise é potencializada, haja vista um contexto
onde os limites entre a fantasia e a realidade estão meio confusos, residindo nisso um dos móveis pelos quais as mudanças psíquicas se tornam efetivas para a dupla analítica. Essa abordagem do poder mutativo da análise a
aproxima da hipnose e da sugestão, perigo já advertido por Freud, mas,
muito além disso, tem algo de mais profundo nessa questão, pois a transferência, como Ferenczi observou, é um caso particular de introjeção, não só
de projeção ou deslocamento, com o analista desempenhando um papel
largamente inconsciente no mundo mental do analisando.
Analisanda de Ferenczi, Melanie Klein absorveu muito de suas idéias,
tendo construído um sistema teórico no qual centra suas concepções sobre
a mudança psíquica na evolução da relação de objeto.
586 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 573-593, 2005
Klein assinala que a relação que a criança estabelece com um outro
significativo e a fantasia inconsciente que perpassa essa relação constituem as unidades organizadoras da vida psíquica. Tais relações são iniciadas muito cedo pelos processos de projeção e introjeção ligados às emoções e angústias. Em virtude do estado de não-integração mental de onde
começa, a criança vai se relacionar com partes do objeto, sendo seus impulsos e ansiedades cindidos e absolutos. A criança verá a mãe, ou mais
precisamente o seio materno, como um objeto inteiramente mau e perseguidor, se estiver imersa em raiva e frustração e, ao contrário, a sentirá
como um objeto extremamente bom, caso seu humor seja de contentamento. Não existe ausência ou terceiros, além da díade mãe-criança nesse primeiro vínculo.
A relação diádica original caracteriza-se por uma ligação em que o
objeto é visado apenas como possibilidade de satisfazer necessidades e
desejos. Esse é o chamado objeto parcial, alvo das identificações-projetivas
do sujeito. Tal como esclarece Joseph (1992, p.174): “Nas suas formas
iniciais, a identificação-projetiva não tem consideração pelo objeto e, na
verdade, freqüentemente ela é anticonsideração, quando se destina a dominar, independentemente do custo para o objeto”. Voltando ao conto, Fera
torna o pai e depois Bela cativos da sua vontade. Bela pode compartilhar
do seu poder desde que submeta sua liberdade a ele.
Comentando esse aspecto das relações objetais na posição esquizoparanóide – a tirania –, Kristeva (2002) a encontra como parte da relação
com o objeto idealizado. Assinala que a idealização depende mais da angústia persecutória do que da capacidade de amar e decorre de uma fantasia
inata referente à existência de um objeto cuja bondade seria total e ilimitada, um objeto que tudo satisfaria. Esse objeto, o seio idealizado, é fundamental como esteio do crescimento mental, pois sem ele a criança ficaria
entregue ao inferno do ódio e da perseguição. Se por um lado, entretanto,
ele mitiga as angústias persecutórias, por outro ele é, igualmente, um objeto perseguidor, pois, sendo a criança imperativa nesse momento, seu objeto
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 587
Rosane Muller Costa
A Perspectiva de Melanie Klein
MUDANÇA PSÍQUICA
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CRESCIMENTO EMOCIONAL
idealizado também refletirá esse aspecto de si mesma, o controle e a dominação.
Klein, citada por Kristeva, 2002, p.123 diz que “o seio ideal é o complemento do seio devorador”; “as crianças dotadas de uma forte capacidade de amor”, no entanto, sentem menos a necessidade de uma idealização
excessiva, a qual “indica que a perseguição constitui a principal força pulsional”. Indagamo-nos até que ponto a circunstância em que o estado amoroso é visado com a força de uma compulsão não estaria melhor revelando
uma organização mental dominada pela hostilidade e pela perseguição
mais do que uma psicologia verdadeiramente amorosa, já que este, o estado amoroso, pode amenizar os males da alma ao menos por certo tempo.
A crescente integração do psiquismo na criança com o crescimento
vai capacitando-a a perceber que o objeto que frustra e o que satisfaz são
uma só e mesma pessoa. Assim ela chega a compreender que o seu objeto
de amor é também objeto de ódio. O passo seguinte no desenvolvimento
consiste na instalação da posição depressiva e depende da possibilidade do
amor que o sujeito sente pelo objeto sobreviver ao seu ódio, passo que só
poderá ser dado se a criança for capaz de tolerar frustração. Se isso acontecer, um objeto interno bom poderá ser estabelecido, emanando dele o sentimento de segurança interior e o gosto pela vida. Resulta dessa mudança
uma nova maneira de ser e relacionar-se com o mundo e com as pessoas, a
ampliação para relações triangulares e a emergência da constelação edípica.
A Fera, que tiranizou o pai por haver se sentido atacado no episódio da
rosa, com as conversas que tem com Bela e com o tempo, modifica-se ao
ponto de expressar consideração, permitindo que a jovem se afaste para
visitar o pai, mesmo arriscando-se a perdê-la. Depois, quando acredita que
ela não vai voltar, Fera, contradizendo a postura violenta e ameaçadora do
princípio da narração, fica muito triste, pensa que a perdeu definitivamente
e com isso perde a motivação para viver.
Os impulsos agressivos dirigidos ao objeto de amor dão origem a sentimentos de culpa, os quais são a base do medo de perder a pessoa amada,
mas também dos sentimentos de consideração por esta. A partir daí, a cons588 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 573-593, 2005
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 589
Rosane Muller Costa
ciência da separação entre o self e o objeto é firmemente estabelecida, e o
sujeito torna-se capaz de enfrentar o doloroso fato de que o objeto mantém
relações com outros objetos das quais ele está excluído. O medo de perder
o amor intensifica-o, mas também faz com que o sujeito se afaste até certo
ponto da pessoa amada, uma fuga parcial, já que ele tentará reencontrá-la
em cada nova pessoa, projeto ou atividade que realizar. Uma tal disposição
torna possível o alargamento do espaço psíquico, a simbolização dos conflitos e a mitigação das angústias.
A teoria de Klein (1937, p.347) sobre o simbolismo diz que “a criança
introjeta e simboliza o corpo da mãe e essa mãe internalizada é deslocada
para o mundo externo [...] Através de um processo gradual, tudo aquilo que
parece emanar bondade e beleza e que provoca prazer e satisfação num
sentido físico ou mais amplo pode tomar o lugar desse seio generoso ou da
mãe total na mente inconsciente”. Isso faz com que todo objeto de amor do
presente ocupe na mente inconsciente o lugar do primeiro objeto, sendo
com ele resgatada a relação dual de colorido esquizo-paranóide.
Se para Ferenczi a criança redescobre o seu corpo no mundo externo
que passa a representá-lo, para Klein é o objeto que é buscado e reencontrado por meio do símbolo e um registro primitivo de prazer é atualizado
sempre que uma nova relação é capaz de evocar a primeira. O modelo de
relação triangular, próprio da posição depressiva, só se sustenta sob essa
fundação, a capacidade da mente para cindir, excluir terceiros e fusionar-se
de maneira a que na Bela possa haver algo de Fera e vice-versa.
A relação da criança com as pessoas da sua infância interfere na escolha objetal da vida adulta, já o disse Klein. O objeto eleito retira sua força
de atração de impressões arcaicas, tendo sido o desejo articulado num tempo muito antigo. Apesar disso, os novos relacionamentos não são meras
repetições, contêm elementos das circunstâncias atuais e da personalidade
das pessoas em questão. É assim ainda no caso da transferência (KLEIN,
1952), em que está em pauta a projeção na pessoa do analista de sentimentos, objetos internalizados e situações vivenciadas. A transferência, mesmo atravessada por fantasias, contém elementos da experiência real com o
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E
CRESCIMENTO EMOCIONAL
analista, uma vez que o desejo é despertado e mantido pela narração em
processo da dupla e não por algo, unicamente, pré-concebido. Essa talvez
seja a magia da linguagem de que as teorias suspeitem, havendo algo de
indizível na comunicação de dois sujeitos, algo na linha do sexual que perpassa sempre que dois se põem a falar.
O casamento de Bela e Fera, a própria transformação, expressa a tendência à integração do psiquismo para onde caminha o crescimento mental
e emocional, se as pulsões de vida vencerem as pulsões de morte, se houver
uma conciliação entre o amor e o ódio; as partes boas e más do self; o id, o
ego e o superego. Poder-se-ia pensar que uma pessoa que atingisse esse
ponto viveria, definitivamente, com amor e alegria, mas não é assim. Há
um trabalho psíquico eternamente em curso, porque a realidade, mais cedo
ou mais tarde, vai impor-se ao desejo, havendo sempre o recurso da regressão às cisões até que o perseguidor e o ideal possam ser novamente conciliados para formar o bom. Nisso, a sombra do objeto pode ser edificante a
partir de uma construção, onde contam tanto as potencialidades do sujeito
quanto as do objeto.
Resumo
Têm sido objeto da investigação dos grandes pensadores da psicanálise os
processos pelos quais mudanças mais duradouras acontecem no aparelho psíquico, tanto pelos seus desdobramentos clínicos quanto teóricos, na elaboração do
ponto de vista genético da metapsicologia. Nesse campo, o movimento psicanalítico da segunda metade do século XX em diante tem destacado a participação
fundamental do objeto, atentando para a importância das relações humanas de
grande significação emocional no contexto das quais o poder transformador da
palavra pode se revelar e o sujeito ser inserido no universo de intercâmbios simbólicos. No presente estudo, o conto de fadas A Bela e a Fera é usado como
analogia ao processo de mudança psíquica e crescimento emocional, relacionando-se a tipificação das personagens e sua evolução dentro do conto aos processos
de transformação do humano, seja por intermédio das relações no início da vida,
seja das relações amorosas ou como resultado da psicanálise. As reflexões e análises efetuadas basearam-se, sobretudo, nos textos de Freud, Ferenczi e Klein.
590 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 573-593, 2005
Desenvolvimento Emocional. Narcisismo. Relações Objetais. Psicanálise
Aplicada. Simbolização.
Abstract
Psychic Change and Emotional Growth
It has been the object of investigation of the great thinkers of psychoanalysis,
the processes through which more durable changes occur in the psychic apparratus,
due to their clinical, as well as their theoretical unfoldments in the elaboration of
the genetic point of view of metapsychology. In this field the psychoanalytic
movement of the second half of the twentieth century onwards has pointed out the
fundamental participation of the object paying attention to the importance of human
relationships of great emotional significance in the context of which the
transforming power of the word can reveal itself and the subject can be inserted in
the universe of symbolic exchanges. In the present study the fairy tale Beauty and
the Beast is used as an analogy to the process of psychic change and emotional
growth, relating itself to the typification of the characters and its evolution within
the tale towards the processes of transformation of the human being, through the
relationships at the beginning of life, or through the loving relationships or as a
result of psychoanalysis. The reflections and analyses made were based, above
all, on the texts of Freud, Ferenczi and Klein.
Key-words
Emotional Growth. Narcisismus. Object Relations. Applied Psychoanalysis.
Simbolization.
Resumen
Cambio Psíquico y Crecimiento Emocional
Ha sido objeto de la investigación de los grandes pensadores del psicoanálisis los procesos por los cuales cambios más duraderos ocurren en el aparato psíquico, tanto por sus consecuencias clínicas como teóricas, en la elaboración del
punto de vista genético de la metapsicología. En ese campo, el movimiento
psicoanalítico de la segunda mitad del siglo XX en adelante ha destacado la
participación fundamental del objeto atentando para la importancia de las relaciones humanas de gran significado emocional en el contexto de las cuales el poder
transformador de la palabra puede revelarse y el sujeto ser insertado en el univerSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 591
Rosane Muller Costa
Palavras-chave
MUDANÇA PSÍQUICA
E
CRESCIMENTO EMOCIONAL
so de intercambios simbólicos. En el presente estudio, el cuento de hadas La
Bella y la Bestia se usa como analogía la proceso de cambio psíquico y crecimiento emocional, relacionándose la tipificación de los personajes y su evolución
dentro del cuento a los procesos de transformación del humano, sea por intermedio
de las relaciones al inicio de la via, sea de la relaciones amorosas o como resultado del psicoanálisis. Las reflexiones y análisis efectuados se basaron, sobre todo,
en los textos de Freud, Ferenczi y Klein.
Palabras-llave
Desarrollo Emocional. Narcisismo. Relaciones Objetales. Psicoanálisis Aplicada. Simbolización.
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Artigo
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MUDANÇA PSÍQUICA
E
CRESCIMENTO EMOCIONAL
594 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 573-593, 2005
Introdução
Sebastião Abrão Salim
Psicanalista Didata da Sociedade
Psicanalítica do Rio de Janeiro e
Núcleo Psicanalítico de Belo
Horizonte; Membro Titular da
Associação Brasileira de
Psiquiatria.
O paciente considerado atípico
é, também, denominado paciente de
difícil manejo clínico ou paciente
borderline. Essas são designações
imprecisas, indefinidas e sem uma
conceituação científica definida.
Isso ocorre porque esse paciente
apresenta uma sintomatologia diversa e antagônica, por vezes acompanhada de sintomas psicóticos,
quando então podem receber o diagnóstico de Esquizofrenia (EF) ou de
Transtorno do Humor Bipolar
(THB), estas psicoses não orgânicas.
Para complicar, os estudos desenvolvidos a partir de 1980 sobre o
Transtorno de Estresse Pós-Trau-
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 595
Sebastião Abrão Salim
O Trauma, a
Psicose e o
Transtorno de
Estresse PósTraumático
O TRAUMA, A PSICOSE E O TRANSTORNO
DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO
mático (TEPT) vêm mostrando a existência nesta entidade clínica de
sintomatologia semelhante que pode vir acompanhada de sintomas
psicóticos.
Esse fato tem um entendimento difícil, mas requer um exame pela
presença desse paciente na clínica psicanalítica atual.
Esse paciente atípico apresenta resposta terapêutica pouco satisfatória,
do ponto de vista psicológico e farmacológico, como é de se esperar, devido ao desconhecimento da etiologia dessas manifestações indefinidas pelos psiquiatras e psicanalistas.
As ciências afins procuram por um marcador biológico, seja um
substrato químico, uma área específica do cérebro ou uma alteração genética para estabelecer de modo mais científico a etiologia, o diagnóstico e o
tratamento do mesmo.
Mesmo entre as psicoses tem sido destacada a dificuldade para se fazer o diagnóstico diferencial entre elas. Shirakawa (2004) cita o trabalho
feito por Cooper, em 1970, nesse sentido. O autor “compara protocolos de
diagnósticos de Esquizofrenia nos Estados Unidos e na Inglaterra. Verifica
que, nos Estados Unidos, havia uma tendência maior em descrever a
Esquizofrenia e, na Inglaterra, o Transtorno do Humor Bipolar. Então, comparando os protocolos de pacientes diagnosticados em Londres e Nova
York, Cooper troca os protocolos e verifica que aqueles que em Londres
eram diagnosticados como maníaco-depressivos, quando vistos pelos psiquiatras americanos transformavam-se em pacientes esquizofrênicos, e
vice-versa”.
Shirakawa complementa:
Esse trabalho de Cooper levou a comunidade psiquiátrica a rever os
diagnósticos existentes em Psiquiatria, isto é, que haveria necessidade
de uma linguagem internacional e que houvesse um consenso a respeito do diagnóstico”. Conclui que essas dificuldades de diagnóstico passam “pela dificuldade de encontrar um marcador biológico que identifique o transtorno como tal.
596 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 595-624, 2005
É possível que existam várias formas intermediárias de psicose com
sintomas de humor ou que os dois diagnósticos clássicos de
Esquizofrenia e Transtorno de Humor Bipolar representem um espectro da mesma doença, ou um tipo de expressão fenotípica incompleta
de uma única doença, sem necessariamente implicar resposta a tratamentos diferentes. Hoje, por exemplo, a importância do uso precoce e
continuado de antipsicóticos é reforçada, independentemente do tipo
de diagnóstico categórico da psicose (Esquizofrenia ou Transtorno do
Humor Bipolar com sintomas psicóticos).
Essa imprecisão diagnóstica referente às psicoses agrava-se, a meu
ver, quando se considera o TEPT, que pode apresentar sintomas psicóticos
(FIGUEIRA; MENDLOVICZ, 2003).
Conforme Berlim et al. (2003):
Uma vez diagnosticado o Transtorno do Estresse Pós-Traumático
(TEPT), há necessidade de serem examinadas as comorbidades, já que
ao menos um transtorno psiquiátrico foi encontrado em aproximadamente 80% dos indivíduos com TEPT [...] A prevalência ao longo da
vida para transtornos comórbidos com o TEPT foi de aproximadamente 48% para a Depressão Maior.
Este trabalho é produto do meu empenho em estudar essa complexa
inter-relação, mediante uma articulação da Psicanálise com a Psiquiatria, a
Neurociência e a Psicologia Experimental. Venho priorizando o estudo do
trauma e estendendo-o ao TEPT, às psicoses e ao paciente atípico.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 597
Sebastião Abrão Salim
Outros autores têm destacado essa mesma dificuldade diagnóstica.
Daker (2004) escreve: “Não há qualquer dado consistente que nos leve a
definir os limites precisos da Esquizofrenia, por exemplo, com os limites
dos Transtornos de Humor, haja vista os transtornos esquizoafetivos
(DAKER, 2004), bem como os limites de depressão na esquizofrenia
(ALVARENGA; TEIXEIRA JÚNIOR, 2002)”.
Segundo Martins et al. (2004):
O TRAUMA, A PSICOSE E O TRANSTORNO
DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO
Formulei a partir, desses estudos, o conceito de Desconexão, que se
tem mostrado útil na minha prática clínica para entender esse ‘paciente de
muitas faces’.
Sugiro e comento, ainda, a hipótese de que a variada e antagônica
sintomatologia desse paciente tem sua etiologia relacionada ao trauma, ao
retraimento autístico e ao estresse resultante.
O TEPT
O quadro clínico do TEPT foi descrito inicialmente por Freud (1919)
com o nome de Neuroses Traumáticas e atualmente encontra-se definido
no DSM-IV (APA, 1994), de forma mais precisa. Segundo este, o TEPT
tem três dimensões de sintomas:
1 – o re-experimentar o evento traumático sob a forma de imagens e
memórias intrusivas (flash-backs) ou de sonhos repetitivos;
2 – a evitação dos estímulos que podem conduzir à lembrança do trauma;
3 – a presença contínua de sintomas de hiperestimulação autonômica.
Essa sintomatologia pode estar associada a sintomas depressivos, maníacos, fóbicos, psicossomáticos e psicóticos.
Como veremos adiante, seguindo as contribuições de Tustin (1972,
1990), proponho que essa sintomatologia tem característica autística e deriva de uma matriz psíquica inicial, que Ogden (1989) denominou posição
autista-contígua.
A essa sintomatologia se associa uma outra, derivada de matrizes psíquicas posteriores, com predomínio dos sentimentos de culpa e de inferioridade decorrentes das cobranças que esse paciente e seus acompanhantes
fazem pela insuficiência e incapacidade que apresentam para os atos da
vida social, profissional, familiar e sexual.
Recentemente, escrevi dois trabalhos (SALIM, 2004b, 2005) baseados
em minha experiência clínica como psicanalista clínico, supervisor e psiquiatra. Tenho observado que esse paciente passa por diversos tratamentos
psicológicos e por diversos tratamentos psiquiátricos, com mudança suces598 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 595-624, 2005
As neuroses traumáticas não são, em sua essência, a mesma coisa que
as neuroses espontâneas que estamos acostumados a investigar e tratar
pela análise; até agora, não conseguimos harmonizá-las com nosso
ponto de vista, e espero, em alguma época, poder explicar-lhes a razão
dessa limitação.
Talvez, por essa insuficiência, tenha explicado os sintomas pós-traumáticos apresentados pelos soldados como benefícios secundários para
escaparem do retorno aos campos de batalha. Ficou-nos devendo a explicação etiopatogênica, possivelmente porque estivesse voltado ao estudo da
conciliação das suas teorias então emergentes, como a teoria do narcisismo
e a reformulação da teoria dos instintos, com a técnica psicanalítica.
Em 1938, escreveu:
É possível que aquelas que são descritas como neuroses traumáticas
(devidas a um susto excessivo ou graves choques somáticos, como desastres ferroviários, soterramentos, etc.) constituam exceção a isso;
seus determinantes na infância até aqui fugiram à investigação.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 599
Sebastião Abrão Salim
siva da medicação antipsicótica e até uso da eletroconvulsoterapia, que se
mostram insuficientes para o seu controle físico e psíquico.
O trauma na posição autista-contígua (OGDEN, 1989) do desenvolvimento psíquico seria o elemento etiológico básico e, devido a fatores ainda
desconhecidos, seus portadores desenvolvem uma sintomatologia mais
característica de EF ou de THB ou de TEPT, com sintomas psicóticos ou
um quadro clínico indiferenciado com manifestações dessas três entidades.
O Trauma
Freud preocupou-se com o estudo do trauma em 1918 e 1919, época
da realização do simpósio A Psicanálise das Neuroses de Guerra, relacionado à Primeira Guerra Mundial, que lhe trouxe e a seus contemporâneos
sofrimentos múltiplos.
Naquela época, Freud escreveu:
O TRAUMA, A PSICOSE E O TRANSTORNO
DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO
Conclui-se que Freud não adentrou esse estudo.
Os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, envolvendo o
World Trade Center e o Pentágono, têm originado uma retomada dos estudos sobre o trauma, como se pode ver acompanhando as recentes publicações psiquiátricas americanas.
Penso que ressaltar a importância de estudar o trauma em função das
grandes catástrofes é uma visão reducionista de seu valor clínico, desde
que um atropelamento leve ou uma violência sexual pode ter para suas
vítimas dimensão caótica. O próprio Freud (1919) disse: “a neurose traumática não está relacionada somente à guerra”.
Meus estudos, do ponto de vista psicanalítico, foram baseados em
Winnicott (1962), Bick (1968), Tustin (1972, 1990) e Ogden (1989, 1994).
No entanto, esses autores não consideraram o conceito de trauma como o
faço neste trabalho. Segundo o DSM-IV (APA, 1994), um evento só é considerado traumático quando a vítima ou testemunha tem um sentimento
consistente de morte. Também aqueles autores não levaram em conta a
classificação do trauma de acordo com a natureza desse evento, isto é, se
físico ou psíquico, sua relação com sua ocorrência em uma etapa inicial do
desenvolvimento psíquico de traumas anteriores, sua etiopatogenia e a
sistematização da sintomatologia resultante. Este trabalho apresenta-se singular nesse sentido.
Os psiquiatras e os neurocientistas, por sua vez, têm se preocupado
apenas com o diagnóstico clínico, a epidemiologia e as manifestações
neurobiológicas ligadas ao trauma. Eles não têm comunicação com a Psicanálise, como nós não temos com eles. Perdem eles, nós e os pacientes.
Há poucos anos alguns representantes dessas áreas comuns perceberam a
importância desse estudo conjunto, e daí surgiu a Associação Internacional
de Neurociência e Psicanálise, com encontros constantes e contribuições
cientificas importantes, como aquelas apresentadas por ocasião do IV Congresso Internacional de Neuro-Psicanálise, em 2005.
600 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 595-624, 2005
Descrevi o conceito de Desconexão (SALIM, 2004b) como um movimento reflexo da vítima de um trauma físico ou psíquico em busca do estado autístico inicial, no qual há uma regularidade do ritmo das funções vitais que dá ao ser emergente a noção de estar existindo com os processos
evolutivos e de adaptação acontecendo simultaneamente, tudo registrado
pela memória procedural (KANDEL, 2003) incipiente.
No dizer de Tustin (1972), é uma “procura pelo próprio corpo”, quando as condições do meio se tornam adversas em busca de preservação e
serenidade.
Ao recorrer à Desconexão, seu portador se modifica, por vezes, radicalmente, não se reconhecendo mais. Fica ausente de si mesmo.
Metamorfoseia-se.
Franz Kafka (1915) escreveu um fantasmagórico conto da literatura
universal que denominou de A Metamorfose. Escrevi um ensaio literáriopsicanalítico sobre esse conto, tanto para entendê-lo como para ilustrar clinicamente esse meu conceito (SALIM, 2004a). É sintomático como Kafka
descreve a metamorfose de Gregor Samsa em uma barata, um animal. O
personagem central vive como um inseto, mas pensa como um ser humano, com funções cognitivas preservadas. Esse conto reproduz nossa condição de homem e animal.
O portador de Desconexão está imerso em seu mundo animal primitivo. Passa parte do tempo deitado, imóvel, vivendo entre a vida e a
semivida, à borda, somente com o mínimo necessário. Não deseja ser incomodado.
Rilke (1922), em Elegias a Duíno, descreve com leveza e fidelidade o
sentir do indivíduo nesse estado. Segue um trecho:
Certamente é estranho não mais habitar a terra,
não mais praticar costumes apenas apreendidos,
não mais dar destino humano às rosas e a outras coisas promissoras;
não mais ser aquilo que se era, entre mãos infindamente angustiadas,
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Sebastião Abrão Salim
O Conceito de Desconexão
O TRAUMA, A PSICOSE E O TRANSTORNO
DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO
e esquecer, até, o próprio nome e largá-lo como um brinquedo
quebrado.
Estranho, não mais desejar os desejos.
Estranho ver, flutuando no espaço, tudo que estava relacionado.
E o estar-morto é penoso e pleno de tentativas para chegar a sentir,
enfim, um pouco de eternidade.
Essa preciosa descrição poética do viver autístico destaca o valor das
artes e dos artistas, para expressar as formas mais excêntricas, esdrúxulas e
sensíveis do experimento humano, quase todo ele originado da trama entre
o Ser animal e o Ser homem, entre o mundo dos vivos e o mundo dos
semivivos, entre o mundo orgânico e o mundo inorgânico, entre o mundo
animado e o mundo inanimado e entre as estruturas neurais subcorticais e
as corticais.
Essa trama está no paciente à espera da nossa leitura afetiva. Não intelectual. Ele se sente desamparado, só, vazio, sem vida, sem massa, sem
calor, sem cheiro, sem desejo e sem uma pele protetora. Subjuga-se à sonolência, à apatia, à fadiga, ao imobilismo. Torna-se insuficiente para falar,
caminhar ou se sustentar em pé. Aterroriza-se ante o medo de se desfazer,
que o leva a manter ativados os sistemas de alarme existentes em suas
estruturas neurais (SIDARTA, 2003), relacionados ao risco da sobrevivência, como um sistema antivírus para o computador.
Ao tentar sentir segurança e calma por meio da Desconexão, fica, paradoxalmente, mais próximo da morte. Em decorrência, mantém de forma
dialética uma exaltação dos sentidos e do pensamento que impedem o sono
tranqüilo e prolongado. O paciente relata a vontade de ficar só, quase todo
o tempo deitado, sem, no entanto, conseguir dormir. Esse estado é alternado a momentos de sensação de morte iminente, de aflição, de dor no coração, de taquicardia e de sudorese. Torna-se vulnerável para tolerar estímulos sensoriais mais intensos, sejam eles térmicos, olfativos, visuais,
gustativos, táteis e sinestésicos. Outro trauma de natureza física (maustratos, cirurgia, seqüestro e outros) ou psíquica (separação, perda, acusação
602 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 595-624, 2005
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Sebastião Abrão Salim
e outros) pode ser desastroso. Foi pior recorrer ao estado de retraimento
autístico.
A Desconexão psicológica descrita tem um correlato biológico que
Panksepp (2005), importante neurofisiologista, chamou de Síndrome de
Desconexão. Nesta há uma desvinculação da articulação entre as estruturas
subcorticais e corticais com o lobo orbito-frontal. Para ele, essa
Desconexão é responsável pela psicose.
O estado de Desconexão é presidido pelo Sistema Nervoso Autônomo, e a sensação sensorial é o seu elemento mais importante. Além de
fazê-lo sentir vivo, ainda lhe possibilita desenvolver a noção de lugar (onde
está) e de como é (está sendo).
A importância da sensação sensorial pode ser destacada em nossa vida
diária pela procura das mesmas. Por exemplo, as pessoas se coçam, esfregam as mãos, apertam objetos duros nas mãos ou na boca (chaves, canetas,
unhas), ficam enrolando os cabelos com as pontas dos dedos ou dedilham
as contas de um terço. São atos repetitivos e praticados de forma sempre
rítmica que lhes conferem um sentimento de inteireza e de coesão, contrários ao sentimento de estarem-se desfazendo. Não há participação do pensamento, isto é, “não são feitos de cabeça”. Buscam-se, também, sensações
de natureza olfativa, auditiva, visual, gustativa ou sinestésica. O universo
sensorial foi descrito por Tustin (1990) como o universo dos objetos
autistas e das formas autistas.
O trauma responsável pela Desconexão produz em sua vítima uma
vivência consistente de morte. Dependendo da gravidade do perigo, das
experiências anteriores e do desenvolvimento das estruturas neurais, apresenta movimentos de reação ou de imobilidade, como acontece nos animais.
A angústia de morte resultante, se não finalizada, gera uma
sintomatologia psicótica representada por sensações de decomposição física, de perda de fezes e de urina, de queda ininterrupta no espaço em busca
de algo para agarrar-se sem o conseguir; verificam-se, também, sensações
de perda ou de paralisação de membros, além da ocorrência de sintomas
O TRAUMA, A PSICOSE E O TRANSTORNO
DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO
persecutórios. Estes últimos são por mim compreendidos de uma maneira
diferente do referencial clássico, conforme mostrarei adiante.
O conceito de Desconexão tem-me auxiliado no entendimento e tratamento psicanalítico desse mal compreendido paciente.
O paciente nos procura para tratamento, devido ao sofrimento e à insuficiência para o exercício de suas atividades adultas. Sua vida profissional, social, familiar e sexual torna-se precária, porque fica entregue aos
seus recursos biológicos e psicológicos do estado autístico, diante de um
mundo externo, com demandas crescentes de atividades para sobreviver,
somada às próprias cobranças superegóicas, sempre acentuadas nesse paciente que se sente culpado e inferior.
Segundo Selye (1936), o pai dos estudos sobre estresse, esse esforço a
mais e continuado gera um estado de desgaste, como acontece com um
motor ajustado para uma tarefa que demande dele mais potência. Esse
estresse exaure seu portador, que passa a desejar a própria morte. Essa é
uma causa de suicídio, mais sob a forma de deixar-se morrer, porque talvez
lhe falte forças para o ato final concreto.
Estresse é um termo de múltiplos significados. Neste trabalho, porém,
ele é empregado com essa referencia de Selye e envolve, como o trauma,
uma proximidade com o sentimento de morte.
O Retorno à Biologia
Freud desejou a Psicanálise fundamentada na Biologia, mas se distanciou desta, e seus seguidores, com poucas exceções, se distanciaram mais
ainda.
A propósito, Andrade (2003) nos diz: “Após a morte de Freud, os
conhecimentos psicológicos, considerados por ele como provisórios, foram assumidos como definitivos pela maioria de seus seguidores, de forma
a apartá-los completamente das raízes biológicas”. Kandel (2003), representante da Neurobiologia, também pensa assim.
Entre os psicanalistas há uma concordância de que as psicoses estão
relacionadas a falhas no desenvolvimento psíquico inicial, ou seja, falhas
604 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 595-624, 2005
O dano causado ao ego pelas suas primeiras experiências nos parece
desproporcionadamente grande; basta, porém, tomar como analogia a
diferença existente nos resultados produzidos pela picada de uma agulha em uma massa de células durante o processo de divisão celular [...]
e em um animal adulto plenamente desenvolvido a partir delas. Nenhum ser humano está isento de tais experiências traumáticas; nada
escapa às manifestações que resultam delas.
O registro psíquico do trauma precoce é ratificado por Wilheim
(2004), uma estudiosa do psiquismo inicial. Diz ela: “Todas as experiências biológicas ocorridas com o ser, desde a formação de cada uma das
células básicas componentes – espermatozóide e óvulo – até o momento do
nascimento, ficam inscritas em uma matriz básica por meio de uma memória celular, proporcionando a matéria-prima para a produção das fantasias
inconscientes. Assim, as fantasias são, de fato, memórias: correspondem
às representações dos imprints de nossas impressões sensoriais iniciais,
que ficam armazenadas como matéria-prima para a produção de pensamentos nos quais mais tarde irão se transformar, quando um aparelho mental suficientemente desenvolvido estará disponível”.
Ogden (1989), no meu entendimento, contribuiu com este conhecimento, quando postulou a existência de uma posição autista-contígua no
início do desenvolvimento psíquico, segundo ele, anterior à posição
esquizoparanóide de Klein (1946) e do falso self de Winnicott (1962). Diz
ele:
Conservei a palavra autística para designar a mais primitiva organização psicológica [...] a palavra contígua é particularmente adequada favorecendo a nomeação dessa organização, uma vez que a experiência
de haver superfícies que se tocam [...] provê a antítese necessária à
conotação de isolamento e desconexão contida na palavra autística.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 605
Sebastião Abrão Salim
no desenvolvimento do ego. Freud (1938) enfatizou a importância dessas
falhas iniciais, embora não estivesse se referindo às psicoses especificamente nem ao trauma, como conceituado neste trabalho. Diz ele:
O TRAUMA, A PSICOSE E O TRANSTORNO
DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO
Ogden acredita na existência de uma matriz psíquica com produção
mental característica desse período do desenvolvimento, que vai do período fetal até logo após o nascimento, corroborando as afirmações de Tustin
(1972) a respeito.
Pela importância da fundamentação desse fato para a psicopatologia e
para a clínica, isto é, uma matriz psíquica nesse período específico do desenvolvimento capaz de gerar elementos psíquicos, procurei fontes para
confirmá-lo.
Encontrei-as na Psicologia Experimental, com as experiências de
Harlow (1958) com macacos recém nascidos e suas respostas ao trauma da
separação de todos os outros macacos até dez dias após o nascimento. Esses macacos têm uma resposta de isolamento e retraimento, quando aos
seis meses de idade são colocados de novo em seu ambiente inicial. Permanecem retraídos e isolados, não se misturando aos demais macacos. A mesma resposta não acontece com macacos que são isolados com mais de dez
dias de vida pós-parto. Depois a confirmei com as experiências de Levine
(1962) com ratos recém nascidos e com observações idênticas àquelas de
Harlow.
Com essas contribuições mostrando que existe uma diferença quando
o trauma ocorre em períodos diferentes do desenvolvimento psíquico e biológico, associadas à minha experiência clínica atual, julgo procedente a
proposição de Ogden da existência da matriz psíquica autista-contígua nesse período, responsável por uma sintomatologia específica, que denomino
autística, quando ocorre um trauma.
Pode-se conjeturar, assim, que um trauma nesse período tem efeitos
psicopatogênicos diferentes e mais graves do que quando ocorre em época
posterior, seguindo a observação clínica de que quanto mais precoce o dano
mais grave é a doença. Tentei expor em outro trabalho (SALIM, 2004b) a
relação da etiologia do TEPT com o trauma no período autístico.
Talvez seja procedente estender às psicoses essa hipótese da relação
do TEPT com esse trauma inicial, mais dentro de um enfoque biológico, e
conjeturar que o desenvolvimento de uma psicose está relacionado à ocor606 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 595-624, 2005
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Sebastião Abrão Salim
rência de trauma naquele período. Desse modo, poderíamos substituir “falhas no desenvolvimento” por “traumas no desenvolvimento”, agravados
por falhas ambientais após o nascimento.
Corroboram essa hipótese os fatos apontados da dificuldade de diagnóstico diferencial entre essas três entidades com alguns pacientes, devido
à diversidade e ao antagonismo da sintomatologia e ao habitual tratamento
psicofarmacológico idêntico para essas entidades, quando o TEPT vem
acompanhado de sintomas psicóticos – embora tratamento idêntico não
signifique certeza de diagnóstico e etiologia.
Uma dedução clínica relevante é de que se torna mais compreensível
entender os sintomas psicóticos como expressões do estado de desamparo
do seu portador em busca de proteção pela sua insuficiência para o viver,
do que como produtos da matriz psíquica esquizoparanóide de gerar elementos psíquicos, principalmente os persecutórios. Essa proposição já foi
exposta por mim (SALIM, 2002).
Outra dedução, tema para outro trabalho, não menos importante, é a
possibilidade de estabelecerem-se as bases psicobiológicas da atenção flutuante de Freud (1912) e a condição “sem memória e sem desejo” de Bion
(1962). Basta considerarmos que os movimentos de taquipsiquismo e
bradipsiquismo do portador do trauma podem contaminar de forma sensorial a escuta psicanalítica, impedindo as condições necessárias para obter o
estado de mente para as escutas citadas.
Para substanciar a hipótese deste trabalho – o trauma como elemento
central na psicopatologia desse paciente – e ilustrar as considerações feitas
sobre a sintomatologia e o diagnóstico, apresento o relato do tratamento de
M., cujo diagnóstico inicial foi de EF ou THB, segundo parâmetros clássicos da Psiquiatria, e depois foi se caracterizando como TEPT acompanhado de sintomas psicóticos. Seu tratamento foi conduzido com alguns
aportes iniciais do conceito de Desconexão. Finalizo com a revisão desse
caso clínico à luz desse conceito, agora mais definido.
O TRAUMA, A PSICOSE E O TRANSTORNO
DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO
Material Clínico
M. era uma empresária voltada para si, pouco afetiva, empreendedora,
inteligente, dotada de acentuada censura moral, econômica e desconfiada
em relação a dinheiro. Deixou de confiar no banco, onde deixava o mínimo
de dinheiro possível.
Os primeiros sintomas de doença foram tremores dos dedos das mãos,
espasmos ocasionais da musculatura estriada da face, quedas ao solo e sintomas de depressão sem antecedentes na história pessoal. Foi feito um
diagnóstico inicial por um médico clínico de doença de Parkinson e recebeu medicação antidepressiva com resultado terapêutico insignificante e
transitório.
Como persistiram esses sintomas, foi encaminhada a um neurologista,
e, na propedêutica realizada, foi descoberta a existência de hematoma
extradural na região occipital como resultado dessas quedas no solo. Foi
submetida à craniotomia para a retirada do mesmo.
Dias depois, houve um agravamento de seus sintomas. Passou a dormir mal, conversar pouco, tornou-se repetitiva, sem apetite e mostrava-se
ora prostrada, ora agitada. Distanciou-se afetivamente daqueles que a cercavam. Deixou de sair para passear, não conseguia mais assinar cheques,
tinha dificuldade para evacuar e continuava sofrendo quedas sucessivas ao
solo, embora mantivesse total consciência da ocorrência das mesmas. Levantava-se à noite, indo de quarto em quarto e voltando à cama. M. se
tornara uma paciente de difícil manejo a tumultuar seu ambiente familiar.
Fui solicitado a atendê-la, quando foi contada essa história clínica pelos familiares.
Dirigi-me ao quarto de M. Encontrei-a semideitada. Recebeu-me com
cortesia e acolhimento. Demonstrou que eu era aguardado. Logo, começou
a contar a história da cirurgia em detalhes. Parecia assustada em relação à
mesma e relatou-a duas vezes quase igualmente. Entendi essa repetição,
pelos estudos iniciados, como remendo para acalmar-se, provavelmente
porque tivera vivência de morte em decorrência dessa cirurgia. Esse en-
608 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 595-624, 2005
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Sebastião Abrão Salim
tendimento auxiliou-me a ter paciência e tolerância para continuar
ouvindo.
Prosseguiu falando da cirurgia e, em determinado momento, falou das
quedas ao solo. Indagada, descreveu-as como perda momentânea da força
muscular, semelhante a um desfalecimento com preservação da consciência. Esta, porém, não era suficiente para evitá-la. Faltava-lhe força física
para se sustentar em pé.
Logo voltou ao relato da cirurgia e prolongou-se até o fim do atendimento. Foi preciso interrompê-la com a promessa de que voltaria para continuarmos a conversa. Surpreendeu-me seu vigor físico para se levantar da
cama, seu olhar fixo e contínuo voltado para mim e o convite para conhecer a casa. Chamou minha atenção essa súbita manifestação de intimidade
e disposição física, a qual senti como incômoda em um primeiro momento,
mas aceitei o convite. Depois, retornamos ao quarto e nos despedimos.
Ao sair, seu marido me contou que M. andava esquisita. Dizia que via
e ouvia soldados andando em volta da casa. Isso acontecia algumas vezes
ao dia. Alterava sua vida diurna e noturna, com perturbações dos hábitos
de higiene, de alimentação e de dormir. Perambulava inquieta pela casa,
deitava-se tarde e acordava cedo. Alternava esse comportamento com outros de prostração. Não conseguia mais administrar a parte doméstica da
casa, emagreceu pela dificuldade para alimentar-se e evacuar; era como se
perdesse as forças física e psíquica. O mau funcionamento intestinal a incomodava. Obrigava-a ao uso de laxantes, utilizados sem resultado. Estava
utilizando antidepressivo. Temia a possibilidade de M. não se recuperar.
Julguei oportuna uma avaliação por um colega psiquiatra. Este concordou com meu diagnóstico entre a EF e o THB e sugeriu uma medicação
(Olanzapina 10 mg ao dia).
Diante da receptividade da paciente, iniciei a Psicoterapia Analítica
com uma sessão por semana, pela dificuldade de atendê-la em sua casa.
Combinei com M. meu retorno para a semana seguinte, no mesmo dia
e no mesmo horário. Nessa época, estava convencido de que, mesmo de
uma forma espaçada, esse paciente requer regularidade e constância de
O TRAUMA, A PSICOSE E O TRANSTORNO
DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO
horário, de acordo com a constância do ritmo das funções vitais, garantindo-lhe uma previsibilidade sem a qual são incertas as melhoras, mesmo
bem medicado. É como se o corpo registrasse essa regularidade, como se
pensasse com o corpo, sem participação da racionalidade, independente do
intervalo de tempo entre os encontros. Tudo isso aconteceu em uma quartafeira.
Na segunda-feira seguinte, o marido fez contato por telefone. Disse
que M. apresentara uma melhora significativa, mas estava preocupado com
o diagnóstico de Parkinson. Disse-lhe que não havia atentado a esse detalhe e que, naquele momento, o mais importante era tratar do quadro psíquico. Ele concordou comigo.
Ocorrência do Surto Psicótico
Na terça-feira, por volta de vinte e uma horas, o marido voltou a telefonar à procura de orientação. M. estava agitada e havia dificuldade para
contê-la. Queria medicá-la, mas ela dizia que só tomaria o remédio com o
marido. No entanto, olhava-o e referia-se a ele, assim que saíra, como um
homem estranho que havia entrado em seu quarto. Lá o homem permanecera, incomodando-a com sua presença, em busca de um contato sexual.
M. exigia que chamassem a polícia para retirá-lo. O marido pedia orientação.
Certamente, não era recomendável medida de força. Disse-lhe que, se
não conseguisse medicá-la com o tranqüilizante, fizesse novo contato. Para
mim, esse surto seria transitório diante das melhoras apresentadas, mas não
o entendi de imediato.
No dia seguinte, na quarta-feira, já em sua casa, seu marido me disse
que conseguira dar a medicação e que M. acordara menos confusa e menos
agitada. Agora dormia. Havia passado bem toda a semana, dormindo sem
sobressaltos, com o quadro alucinatório dos soldados ocorrendo discreto
pelas manhãs. Alimentava-se melhor, o funcionamento intestinal melhorara e já conseguia redigir e assinar cheques, embora com alguma dificulda-
610 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 595-624, 2005
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de. Contou-me que, no dia anterior ao surto, M. levantara bem, sem apresentar sintomas delirantes.
O marido desejava esclarecimentos sobre a ocorrência do surto. Na
ausência de uma resposta adequada, respondi-lhe que, de alguma forma,
estava relacionado às melhoras apresentadas. Para mim mesmo relacionei
o surto à revitalização de M., agora mais fortalecida física e psiquicamente.
Voltava ao mundo dos vivos, daqueles que podem ter desejos, em oposição
ao mundo dos semivivos. O surto erótico deveria estar relacionado a mim
por ter ocorrido à véspera de nosso encontro. Entendi que M. se sentia
seduzida por mim, e isso podia ser considerado um sinal de melhora.
Tal entendimento remeteu-me à lembrança do incômodo que senti ao
final do primeiro atendimento. Considerei-o, então, um fato analítico. Tinha a ver com o surto. Eu estava me sentido seduzido por ela, também,
devido ao modo jovial com que se levantou da cama, pelo seu olhar fixo e
contínuo voltado para mim e ao convite para me mostrar a casa.
Pude, então, sentir-me mais relaxado quando a encontrei no quarto,
após a conversa com os familiares. M. acabara de acordar. Cumprimentoume de forma amistosa e pediu licença para ir ao banheiro. Quando voltou,
desejou falar sobre o acontecimento recente. Contou, com absoluta certeza
do que estava falando, da entrada do homem no quarto em busca de sexo, o
qual se teria aproveitado da saída do marido, para ficar com a filha no
hospital, naquela noite. O homem havia-se deitado a seu lado na cama. Por
várias vezes, fez questão de mencionar que não houve consumação de qualquer contato físico. Estava aliviada, porque os familiares compreenderam
o sucedido sem lhe fazer nenhuma reprovação. Esse relato foi longo e ouvido em silêncio, sem perguntas ou demonstração de qualquer discordância
ou concordância em relação ao absurdo do mesmo.
M. manifestava a existência de um vínculo erótico comigo, devido à
admiração e à confiança em minha pessoa. Disse-lhe que a entendia e que
não havia coisa alguma a temer, porque eu e seus familiares estávamos a
seu lado. Ouviu-me calada, e nos despedimos em seguida.
O TRAUMA, A PSICOSE E O TRANSTORNO
DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO
Interpretando o Delírio à Época
À época do atendimento dessa paciente, orientava-me pelos conceitos
clássicos da Psicanálise e da Psiquiatria sobre as psicoses. Foi com esse
referencial clássico que me conduzi no primeiro momento. Interpretei a
alucinação com os soldados como produto da rigidez de M., ditada por
conceitos religiosos, morais e éticos característicos de sua personalidade
autoritária e obsessiva compulsiva, além de suas identificações projetivas
persecutórias. Assim, também entendia as desconfianças da paciente em
relação ao dinheiro, o que colocava todos sob suspeita.
Era produto de objetos internos sempre em prontidão para evitar a
transgressão relacionada a impulsos incestuosos; era resultado da presença
de um superego rígido que se instalara a partir de introjeções de objetos
externos idênticos aos existentes ao longo de sua formação pessoal.
O segundo delírio, o qual envolvia um intruso, representava o desejo
de ter relações com ele naquela noite e, para tanto, M. imaginou que enviara o marido ao hospital a fim de auxiliar no tratamento da filha lá hospitalizada. Ocorreu-lhe, provavelmente, o desejo de manter um relacionamento sexual com o intruso. No entanto, reprimiu esse desejo e passou a ver o
homem à sua frente como um ser indesejável, ficando inquieta e agressiva
com sua presença e exigindo que os parentes o expulsassem. O surto resultaria da existência de desejos edipícos reprimidos, voltados a minha pessoa: era significativo o fato de o delírio ter ocorrido na noite anterior a
minha ida para a sessão semanal. Associei essa possibilidade com o entendimento do incômodo sentido no final da primeira sessão, relacionado às
tentativas de sedução de M. Tal associação tornou mais fácil chegar ao
entendimento do delírio. A relação estava sendo presidida pelo terceiro
sujeito analítico de Ogden (1996), no caso o sujeito sedutor, o pai edípico e
a filha edípica. Não neguei que estava ocorrendo um envolvimento recíproco.
Esses entendimentos facilitaram o contato com M. O mesmo não
aconteceu a ela. Em função da rigidez moral e da exacerbação dos impulsos sexuais incestuosos reprimidos, M. fez o acting out.
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Evolução Clínica
Após dois meses de uso do antipsicótico, o mesmo foi suspenso, devido às apreciáveis melhoras da paciente, que se mantiveram por um ano.
Passou a beijar os filhos na entrada e na saída de casa. Voltou a sair acompanhada do marido e a fazer caminhada com ele. Não mais caiu ao solo.
Fez uma viagem de férias por dez dias. Sua vida retornava à regularidade.
Como estabelecido, em uma quarta-feira, voltei à sua casa. Fui recebido com cordialidade. M. levou-me até a sala de visitas, ao contrário de
antes, quando me recebia na ante-sala e onde nos sentávamos. Comentava,
então, objetivamente, como vinha se sentindo; em geral, falava da sua saúde física e a sua trajetória profissional. Só uma vez mencionou um sonho,
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Sebastião Abrão Salim
Eu começava a desenvolver o conceito de Desconexão, baseado no
estudo do trauma e no estado de desamparo da vítima. Sob a luz daqueles
incipientes estudos, houve uma mudança importante na compreensão desses delírios no momento seguinte.
Passei a interpretar o sentimento persecutório em relação aos soldados
e ao estranho como uma necessidade de ser encontrada por eles que, paradoxalmente, a protegeriam do medo caótico de se desfazer. Esse medo era,
literalmente, representado pelas consecutivas quedas ao solo em decorrência da falta de força física.
Pude, então, deixar de ver a manifestação erótica como sexualidade
perversa relacionada à repressão e talvez ao Édipo, para ser entendida como
necessidade de M. me sentir como uma segunda pele (BICK, 1968), devido
ao seu medo de se desfazer.
Esse juízo me levou a compreender sua relação comigo como vital.
Contudo, ainda não possuía a dimensão real da minha importância pessoal para ela, como se verá adiante.
Tais entendimentos parciais foram importantes para o êxito da continuidade do tratamento pela tranqüilidade e espontaneidade que me propiciaram preservar a regularidade do setting, garantida pelo tom de voz, o
olhar e o cumprimento de mãos, todos elementos sensoriais.
O TRAUMA, A PSICOSE E O TRANSTORNO
DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO
sem valorizá-lo, e, algumas vezes, falou de si como pessoa, citando alguns
dados familiares, embora soubesse estar em Psicoterapia.
Naquele dia, começou a exibir vários livros de arte, presentes de amigos. Delongava-se no relato das histórias destas amizades. Próximo do final da sessão, convidou-me de forma pouco audível para tomar café com
ela, e ela o repetiu de modo mais explícito. O inusitado do convite deixoume embaraçado. Pensei na neutralidade analítica e disse-lhe, atrapalhado,
que o aceitaria na outra quarta-feira. Não me ocorreu, nem mesmo, uma só
desculpa razoável. Não aceitar o convite foi desastroso.
Na sexta-feira, à noite, dois dias depois, seu marido me telefonou para
comunicar a mudança de M. Estava ora inquieta, ora prostrada e não dormia. Desejavam saber, apenas, sobre a medicação indicada para acalmá-la.
Não queriam atrapalhar meu fim de semana. Ainda assim, disse-lhes que
iria vê-la. Não concordaram, e, assim, foi recomendada uma medicação
sedativa. Porém, a reação de preocupação permaneceu. Na segunda-feira,
cedo, o marido solicitou a antecipação da sessão.
Ao chegar, encontrei-a assentada, prostrada, cabisbaixa, quase imóvel. Com um olhar sem brilho, não conseguia levantar nem a cabeça para
cumprimentar ou fazer uma saudação. Estava desfeita. Seu estado deixoume apreensivo. Havia ocorrido uma metamorfose.
Relacionei essa piora a minha recusa ao seu convite para tomar café
com ela. Senti-me mal por não tê-lo aceitado e não havê-la assistido, pessoalmente, na sexta-feira, no sábado ou no domingo. O estado físico de M.
requeria cuidado e avaliação de alguma intercorrência clínica, pois ela era
diabética. Concluí com os familiares a necessidade de ser avaliada por um
clínico e por um neurologista.
A piora deixou-me incomodado. M. sentira-se indesejada e desamparada após a recusa ao convite, sentindo-se não apreciada. Isso não
correspondia à realidade, pois era grande meu zelo por ela. Depois, com a
piora, fez-me sentir incompetente para tratá-la e a outros pacientes com os
quais vinha obtendo êxitos que indicavam a procedência de meu novo
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referencial e a senti-la como fraca por ter se desfeito. Estava, também,
modificado.
Fiquei subjugado por esse sujeito incompetente naquele momento
crucial para ela, quando mais precisava da minha convicção de que poderia
ajudá-la, mesmo com o clínico e o neurologista a ditarem seu tratamento.
Continuei a vê-la, mas já não mais levava o setting analítico comigo.
Já não mais sustentava minhas convicções anteriores.
Enquanto hospitalizada, M. foi submetida a inúmeros exames radiológicos e laboratoriais invasivos. Dois dias depois, saiu do quadro de prostração e passou a apresentar agitação. Tornou-se agressiva com aqueles que
queriam contê-la fisicamente para a realização de exames e para tomar a
medicação prescrita. Foi preciso proceder à sedação com o auxílio do mesmo colega psiquiatra. Este lhe prescreveu Haldol 5 mg duas vezes ao dia e
25 mg de Amplictil ao deitar-se. Ainda assim, apresentou poucas melhoras. Os exames realizados não revelaram a existência de qualquer causa
orgânica. M. retornou para casa, e o clínico e o neurologista afastaram-se.
Voltei a pensar nos fatos analíticos: o fato de M. ter-me julgado distante e ter-me feito sentir que meu tratamento lhe era insuficiente. Foi incômodo me admitir o causador de sua transformação e a improcedência da
avaliação de julgá-la fraca por ter-se desfeito. Voltei a pensar nos impulsos
sexuais da paciente como uma segunda pele e sua relação com a delicada
reação que tivera ao recusar seu convite. Pude considerar, então, minha
recusa como traumática. Produziu-lhe uma ruptura do seu sentimento de
continuidade, ruptura esta por onde vazou tudo que havíamos conseguido
em termos de confiança e segurança. Desfez-se, como descreve Rosenfeld
(1980), ao comparar esse quadro a uma hemorragia, um sangramento.
Voltei a acreditar em meus estudos. Convenci-me de que M. apresentava um quadro de hiperestimulação (exaltação), alternado com
hipoestimulação (imobilismo), sintomas antagônicos, sugerindo transtorno do humor bipolar acompanhado de sintomas esquizóides, mas que podiam ser oscilações antagônicas decorrentes do trauma.
Passei o atendimento psicoterápico para duas sessões por semana. Ela
O TRAUMA, A PSICOSE E O TRANSTORNO
DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO
melhorou e voltou a apresentar momentos de choro e afetividade com os
filhos. Parecia se recuperar.
Semanas depois, apresentou outro delírio. Insistia no desejo de voltar
à casa antiga e precisou ser contida. O portão da casa teve de ser trancado
com cadeado. Compreendi esse delírio como expressão do desejo de voltar
a sentir tão confiante em mim como antes. Temi, então, pelo fato de M.
haver perdido de vez sua confiança em mim. Esse delírio perdurou por
algum tempo e desapareceu espontaneamente para dar lugar a uma outra
manifestação clínica.
Andava de modo diferente a cada dia. Curvava-se, rígida, para frente
num dia; em outro, curvava-se para trás; em outro, para a direita; e, em
outro, para a esquerda. Era muito estranho vê-la caminhar daquele modo
sem poder aliviá-la.
Procurei entendê-la, segundo Tustin (1990) e sua teoria dos objetos
autistas. Essa rigidez muscular era um objeto autista. M. fazia do próprio
corpo um instrumento gerador de sensações para sentir coesão. Era um
arranjo dramático para se sentir viva.
Intensifiquei minha atenção para com M. Acompanhava-a para o café
e para ouvir música clássica que outrora apreciara. Notei poucos progressos.
Certo dia, M. recebeu a visita de um sobrinho médico que lhe fez nova
prescrição de remédios. A partir do dia seguinte, inexplicavelmente, começou a melhorar e me vi afastado dela. Esse fato atestava a importância para
o tratamento de M. do elemento afetivo.
Um mês depois, seu marido me telefonou para avisar que M. falecera
de forma tranqüila, quando se sentava para tomar o café da manhã. Certamente seu sobrinho médico a desapontou em algum momento.
Revisitando M. segundo o Conceito de Desconexão
Seguem alguns comentários sobre o caso clínico em questão, à luz do
conceito de Desconexão, agora mais definido.
A aposentadoria precoce de M. lhe foi traumática. Seu trabalho profis616 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 595-624, 2005
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 617
Sebastião Abrão Salim
sional bem-sucedido e ininterrupto funcionava como seu olhar fixo e contínuo. O olhar era uma emenda para manter seu sentimento de coesão física
e psíquica. Constituía uma segunda pele, assim como os seguidos êxitos
profissionais. É como a dedicação desmesurada à ginástica em busca do
fortalecimento da musculatura estriada. No caso de M., pode ser aqui citada a manutenção criteriosa e extremada da escrita financeira, um outro remendo protetor.
Outro trauma foi a craniotomia, à qual a paciente se referiu em detalhes na data do primeiro atendimento. A cirurgia, provavelmente, a levou
ao quadro psicótico persecutório com os soldados. Sobre este mantenho o
mesmo entendimento da época. M. procurava serenar-se das angústias catastróficas de desfazer-se, embora isso pareça paradoxal.
A história de traumas precoces ou anteriores normalmente não é detectada pela narrativa do próprio paciente, que se esquiva da sua lembrança
ou de qualquer indicativo que possa levar a ela. Há um movimento de esquiva em relação à lembrança do trauma.
Em oposição a esse movimento, há um outro oposto caracterizado pela
presença de imagens e lembranças sob a forma de flash-backs que ocorrem
independente da vontade consciente do portador do trauma de esquecê-las.
Aqui se repete o que acontece em relação ao antagonismo da
sintomatologia.
Existe, ainda, o recurso dos sonhos para se chegar a esses traumas,
pela relação desses com a memória procedural. Os sonhos tornam-se
repetitivos e continuam até a idade adulta ou senil.
No entanto, o meio mais importante é a presença da sintomatologia
autística, como já citado. Por ela, podemos afirmar que houve um trauma
precoce, embora não possamos reconhecer qual foi e o que determina o
modo de ser do seu portador por toda a vida. Uma tendência para o
imobilismo e a lentidão, observada desde a infância até a vida senil, pode
indicar que houve um traumatismo significativo do parto ou no período
fetal.
O TRAUMA, A PSICOSE E O TRANSTORNO
DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO
Nesse sentido, considero muito útil para a prática clínica o conhecimento da psicopatologia autística.
Do ponto de vista terapêutico, é importante considerar o corpo do analista tendo cor, cheiro, forma, acrescido de outros elementos sensoriais,
tais como o timbre da voz, a tensão do aperto de mãos, o modo de andar e
olhar, a indumentária e outros, que funcionam como uma sutura para uma
ferida sangrando.
É freqüente o paciente explicitar preocupação com a saúde física do
analista, em especial o paciente grave. Sempre chega à sessão perguntando
como estamos. Qualquer fragilidade física nossa é motivo de medo para
ele, como se fôssemos um esparadrapo fraco no qual não pode confiar para
auxiliá-lo, de forma incondicional e constante, no tratamento de suas feridas.
Esse fato não é fortuito. O remendo tem uma natureza psíquica e física, como já expus (SALIM, 2002). Esse tem inúmeros elementos sensoriais
e elementos cognitivos.
Ogden (1994) propõe a hipótese de que, na ausência da mãe, o recémnascido volta-se para o próprio corpo, para a regularidade do ritmo das
funções vitais. Isso é o mesmo que dizer que seu corpo se torna sua mãe e
que necessita de ambos, de seu corpo e de sua mãe, como um Band-aid,
enquanto está nessa etapa inicial do desenvolvimento. Depois a mãe vai ter
outro papel de grande importância para o desenvolvimento pleno dos processos cognitivos e de maturação do recém-nascido.
M. respondeu nesses termos à minha recusa. Decompôs-se na ausência da colagem executada pelos movimentos da sexualidade. Melhor teria
sido aceitar o convite.
Para além do manto do impulso sexual de natureza edípica ou não,
está o impulso voltado para a sua preservação, como observamos em presos e animais confinados que desenvolvem vários tipos de perversões sexuais quando têm a sobrevivência ameaçada.
Se o paciente mantém conosco, seu psicanalista, um vínculo tido
como simbiótico ou erótico, por muitos considerados indesejáveis, é preci618 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 595-624, 2005
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 619
Sebastião Abrão Salim
so responder a eles com empatia, sem ficar dominado pelo medo de transgressão às regras da técnica. A relação não pode ser presidida pelo desamparo e pelo medo. Esse paciente necessita de nossa presença física concreta
de forma saudável para obter a segurança, através dos estímulos sensoriais,
de estar existindo. Aceitar o convite de M. para o café não caracterizaria
transgressão técnica.
Quanto mais grave o paciente, maior tem de ser nossa disponibilidade
para a empatia e até mesmo para o contato físico pela sua demanda de uma
segunda pele.
Considero M. portadora de TEPT com sintomas psicóticos. O desconhecimento da sua etiologia e do seu diagnóstico favorece o caráter precário dos tratamentos clínicos existentes e a evolução crônica do mesmo,
assim como das psicoses mencionadas.
Os psicanalistas estão mais aptos para valorizar a sensação de desamparo diante da angústia de morte física e da loucura em decorrência do
trauma e para manter a regularidade do setting terapêutico, elemento necessário para restabelecer o sentimento de segurança. Isso se torna possível
pela sua consciência da existência dos fenômenos de transferência,
contratransferência, da intersubjetividade e da empatia.
Diante do exposto, considero pertinente prosseguir estudando a hipótese desenvolvida neste trabalho. A clínica psicanalítica atual apresenta um
número crescente desses pacientes, devido às mudanças sociais, culturais e
econômicas de nossos dias, que elevam o índice da ocorrência da violência
física e psíquica.
Para finalizar, algumas indagações:
A – Considerando correta a hipótese de que os pacientes atípicos têm
como elemento etiológico comum o trauma, o retraimento autístico e o
estresse, esses pacientes não poderiam ser reunidos sob uma só denominação?
B – Considerando meus estudos sobre o trauma e o estresse, indago se
o aprofundamento dos mesmos não pode vir favorecer o encontro do
O TRAUMA, A PSICOSE E O TRANSTORNO
DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO
marcador biológico para as entidades clínicas citadas, procurado pelas ciências biológicas?
C – Seria oportuno, nesse sentido, o estudo da relação entre o trauma,
o sonho e a psicose sob a ótica atual da Neurobiologia?
D – A expressão “núcleo psicótico”, utilizada por alguns autores psicanalíticos de forma indefinida e imprecisa, não poderia ser substituída
com mais propriedade por “núcleo traumático”, entendido como resíduo
do trauma?
E – Como a teoria do narcisismo primitivo, largamente divulgada e
defendida pelos psicanalistas, tem a ver com a teoria da posição autistacontígua, não seria recomendável uma melhor avaliação dessa teoria do
narcisismo sob a ótica do trauma na posição autista-contígua?
Resumo
Existe, na clínica, um paciente atípico, também denominado de difícil manejo clínico ou de paciente borderline. Costuma-se, ainda, diagnosticá-lo como
portador de Esquizofrenia (EF) ou de Transtorno do Humor Bipolar (THB) e ou
de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) com sintomas psicóticos. Isso
ocorre porque esse paciente tem uma sintomatologia diversa, antagônica e complexa. É um paciente presente na clínica atual. Neste trabalho, discuto a hipótese
de que a etiologia dessa sintomatologia está relacionada ao trauma, à retirada
autística e ao estresse resultante, baseado em meus estudos psicanalíticos e recentes trabalhos da Psiquiatria e da Neurociência. A partir deles, formulei o conceito
de Desconexão. Ilustro, clinicamente, essa hipótese com o relato do tratamento
de M., cujo diagnóstico inicial foi de EF ou de THB, segundo parâmetros clássicos da Psiquiatria, e depois foi se caracterizando como TEPT, acompanhado de
sintomas psicóticos. No final do trabalho faço uma revisão desse caso clínico
com o enfoque atual do conceito de Desconexão, cujo desenvolvimento coincidiu
com o início do tratamento de M. Finalizo com indagações pertinentes ao tema
tratado para futuros estudos.
Palavras-chave
Psicose. Trauma. Estresse. Autístico. Desconexão. Etiologia. Tratamento.
620 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 595-624, 2005
Trauma, Psychosis and Posttraumatic Stress Disorder
In our actual clinical practice there is a patient named as an atypical patient
or a difficult clinic care patient or a borderline patient. He or she can be diagnosed
also as having in one moment a Squizophrenia (SF), in another moment a Bipolar
Mood Disorder (BMD) and in another moment a Posttraumatic Stress Disorder
(PTSD) with psychotic symptoms. This happens because this patient presents a
multiple and antagonic symptomatology. In this work I discuss the hypothesis
that the etiology of this symptomatology seems to be related to the trauma, the
autistic retreat and the stress based in my psychoanalytical studies and recent
psychiatric and neuroscientific publications. Through them I formulated the
Disconnection Concept. In order to illustrate this hypothesis, I present the clinical
case of M, which was initially diagnosed as a psychotic patient diagnosed as SF
or a MBD, according to classical psychiatric diagnostic references. Nowadays I
consider M as a PTSD patient with psychotic symptoms. I end up this work with
a review of this clinical case under the actual references of the Disconnection
concept, which development started when I was beginning M’s treatment and
some questions related to the theme of this work for future studies.
Key-words
Psychosis. Trauma. Stress. Autistic. Disconnection. Etiology. Treatment.
Resumen
El Trauma, la Psicosis y el Trastorno de Estrés Postraumático
Existe en la clínica un paciente atípico, también, denominado de difícil manejo clínico o de paciente borderline. Se suele decir, también, diagnosticarlo como
portador de Esquizofrenia (EF) o de Trastorno del humor bipolar (THB) y o de
Trastorno de estrés postraumático (TEPT) con síntomas psicóticos. Esto ocurre
porque este paciente tiene una sintomatología diversa, antagónica y compleja. Es
un paciente presente en la clínica actual. En este trabajo discuto la hipótesis de
que la etiología de esta sintomatología está relacionada al trauma, a la retirada
autística y al estrés resultante basado en mis estudios psicoanalíticos y recientes
trabajos de la Psiquiatría y de la Neurociencia. A partir de ellos formulé el concepto
de Desconexión. Ilustro, clínicamente, esta hipótesis con el informe del tratamiento de M, cuyo diagnóstico inicial fue de EF o de THB, según parámetros
clásicos de la Psiquiatría y después se fue caracterizando como TEPT acompañado
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 621
Sebastião Abrão Salim
Abstract
O TRAUMA, A PSICOSE E O TRANSTORNO
DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO
de síntomas psicóticos. Al final del trabajo hago una revisión de este caso clínico
con el enfoque actual del concepto de Desconexión, cuyo desarrollo coincidió
con o inicio del tratamiento de M. Finalizo con indagaciones pertinentes al tema
tratado para futuros estudios.
Palabras-llave
Psicosis. Trauma. Estrés. Autístico. Desconexión. Etiología. Tratamiento.
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Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Dr. Sebastião Abrão Salim
Rua do Ouro, 104/904
30220-000 Belo Horizonte – MG – Brasil
Fone: (0xx31) 3223-3786
Fax: (0xx31) 31-3291-8189
E-mail: [email protected]
624 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 595-624, 2005
Virginia Ungar
Psicanalista, Membro titular da
Associação Psicanalítica de
Buenos Aires.
Escrever ou apresentar um texto sobre um tema que foi solicitado
constitui um desafio interessante.
Em primeiro lugar, obriga a pensar
sobre um assunto que talvez não
constitua o interesse do momento.
No entanto, de outra parte, obriga a
percorrer caminhos e, ao se chegar a
um determinado ponto, surgem novas interrogações, aberturas para os
terrenos teóricos a seguir.
Nesse sentido, agradeço à Sociedade Brasileira de Psicanálise de
Porto Alegre (SBPdePA) este convite, que me fez ler e reler textos
que, como costuma acontecer, reve-
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 625
Virginia Ungar
O Traumático na
Constituição do
Psiquismo:
as contribuições
de W.R. Bion e
Donald Meltzer
O TRAUMÁTICO
NA
AS CONTRIBUIÇÕES DE
CONSTITUIÇÃO DO PSIQUISMO:
W.R. BION E DONALD MELTZER
lam facetas ainda não percebidas.
Antes de abordar as contribuições de Bion e Meltzer, farei um breve
percurso pelos autores que me interessaram pessoalmente em relação ao
tema do “traumático”.
Aparentemente, todo trabalho psicanalítico deveria começar com uma
referência a Freud, e não farei exceção desta vez. Entretanto, só o referirei
para recordar que, no início, o conceito de trauma ocupou um lugar central
na teoria freudiana, para, em seguida, em 1897, na famosa carta a Fliess,
registrar sua célebre frase: “Já não creio mais em minha neurótica”.
Essa guinada na teoria promoveu uma mudança radical na concepção
da relação entre a psique e a realidade externa. Na primeira teoria traumática da histeria, recordarão que postula dois tempos: o de início, infantil,
que continha a realização de um fato concreto de índole sexual, sem significação como tal, porém com registro dos estímulos; e o segundo tempo, no
qual uma situação que podia até ser banal atuava como desencadeante em
um corpo capacitado para a genitalidade, atuando retroativamente sobre a
situação inicial.
Com o abandono da teoria da sedução, gera-se uma nova estrutura
teórica, produzindo conceitos básicos para a Psicanálise, como realidade
psíquica, sexualidade infantil, protofantasias, complexo de Édipo e inconsciente dinâmico, entre outros.
Essa mudança teórica provocou a relativização do conceito de trauma
na obra freudiana, embora retomado nas concepções acerca da compulsão
de repetição, em Mais Além do Princípio do Prazer, em Moisés e o
Monoteísmo e, sem dúvida alguma, em suas histórias clínicas, das quais o
célebre Homem dos Lobos revela-se paradigmático.
Na década de 1960, Jean Laplanche retoma a teoria do traumatismo
para destacar que a teoria da sedução mostra que todo traumatismo vem ao
mesmo tempo do exterior e do interior, é simultaneamente exógeno e
endógeno. Diz Laplanche:
626 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 625-636, 2005
Penso que essas contribuições são centrais, ao considerar o tema que
nos ocupa hoje, que é o do papel do trauma na constituição subjetiva, dado
que nos remete ao lugar do Outro na estruturação do psiquismo. Essa estrutura psíquica será sempre singular, e de sua constituição e modo de funcionamento dependerão seus possíveis futuros conflitos e sintomas.
Passemos agora à teoria kleiniana, antes de entrar nos avanços póskleinianos. Sabemos que Melanie Klein não outorga um lugar explícito ao
trauma em sua teoria. De qualquer modo, penso que se possa tentar uma
abordagem à questão, a partir da relação entre a realidade psíquica e o
mundo externo.
Melanie Klein centraliza sua tarefa de construção da noção do mundo
interno nos artigos sobre o luto, que culminam com o de 1940. A idéia de
realidade psíquica freudiana adquire vida concreta nesse mundo povoado
de objetos com existência, com vida própria, que podem personificar-se e
até exteriorizar-se, por exemplo, na transferência analítica.
Em 1946, em seu artigo Nota sobre Alguns Mecanismos Esquizóides,
Klein apresenta a posição esquizoparanóide e o mecanismo de Identificação Projetiva. Lembremos que Klein formula a Identificação Projetiva
como um mecanismo e, ao mesmo tempo, como uma fantasia onipotente,
em que partes não desejadas da personalidade e dos objetos internos podem ser dissociadas e projetadas nos objetos. Essa operação, descrita como
de natureza agressiva e baseada em mecanismos anais, tem como conseqüência que as partes más e destrutivas do self tentam ferir, controlar e
possuir o objeto.
De qualquer modo, seguindo-se atentamente o desenvolvimento da
teoria kleiniana, é possível rastrear os antecedentes do mecanismo quase
desde o início de suas publicações. Sua genial descoberta sobre a relação
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 627
Virginia Ungar
Do exterior, porque é do outro que chega a sexualidade ao sujeito; do
interior, porque brota desse externo interiorizado, dessa ‘reminiscência’, da qual, segundo uma esplêndida fórmula, sofrem os histéricos,
da qual já reconhecemos a fantasia.
O TRAUMÁTICO
NA
AS CONTRIBUIÇÕES DE
CONSTITUIÇÃO DO PSIQUISMO:
W.R. BION E DONALD MELTZER
do bebê com o interior do corpo da mãe, já presente em seu primeiro artigo
sobre o Édipo precoce, de 1928, é certamente um antecedente crucial no
desenvolvimento da noção de Identificação Projetiva. Para Melanie Klein,
a criança estabelece uma relação inicial com o seio, representante do que é
o mundo para ela, isto é, sua mãe. Diferentemente do Édipo freudiano, seus
impulsos logo se dirigem para o interior do corpo da mãe, no qual, em sua
fantasia, se encontra tudo o que é desejável: o leite, os excrementos, a urina, os bebês e o pênis do pai. Na etapa em que o bebê se dirige ao interior
do corpo materno e se identifica com ele, Melanie Klein denomina-a de
fase feminina. A relação com o interior do corpo materno, além de ser uma
descoberta transcendental que inaugura a noção de espaços psíquicos,
interioridade dos objetos e do self, proporciona o que se poderia chamar de
cenário do conflito edípico – em realidade, o da fantasia inconsciente.
Posteriormente, em seu trabalho On Identification (1955), Melanie
Klein inclui a noção de Identificação Projetiva relacionada à projeção de
partes boas do self que, em conseqüência, se transforma em um mecanismo
central para o estabelecimento das boas relações de objeto.
De minha parte, tenho pensado que, acompanhando-se com atenção o
desenvolvimento da teoria kleiniana, a noção de Identificação Projetiva
aparece em um momento em que se fazia necessária a articulação, dentro
de uma teoria das relações objetais, com o objeto externo. Até esse momento, Klein concentrou-se em construir a noção de mundo interno. Isso
não quer dizer, em absoluto, que não prestava atenção às relações do sujeito com o mundo externo. Para desmentir tal idéia, basta se ler qualquer dos
exemplos clínicos que permeiam seus artigos; a questão está na prevalência
que deu à realidade interna, ao seu peso, até tal ponto que, a partir de uma
óptica kleiniana, a relação com o ambiente vai estar colorida e, ainda mais,
determinada pelas qualidades das relações entre o self e os objetos no mundo interno.
Esse pode ser o ponto de partida da apresentação das idéias de Bion
em relação ao traumático. Esse autor não dedica cláusula alguma específica de sua obra ao conceito de trauma, porém se refere à situação de trauma
628 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 625-636, 2005
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 629
Virginia Ungar
bélico e suas conseqüências, sobretudo em sua autobiografia O Longo Fim
de Semana, na qual relata suas experiências durante quatro anos como psiquiatra no corpo de tanques de guerra, na Segunda Guerra Mundial.
Também se refere ao trauma de nascimento, que considera uma experiência de travessia da cesura na passagem da vida intra-uterina para a vida
pós-natal, e o faz principalmente em seu artigo A Cesura.
Creio que podemos encontrar um lugar no pensamento de Bion para a
noção do traumático na estruturação psíquica, se considerarmos sua extensão do conceito kleiniano de Identificação Projetiva (IP). Na década de
1950, é Bion que amplia o espectro de ação do mecanismo de IP, ao lhe
atribuir uma função essencial, qual seja, a da comunicação primitiva entre
o bebê e a mãe.
Bion propõe um modelo segundo o qual, quando o bebê se sente angustiado por sentimentos e ansiedades que o ultrapassam, concebe a fantasia de poder evacuar esses estados de ânimo, “uma parte de sua psique”,
diz Bion, na mãe (um seio bom), a qual, se for capaz de “conter” o projetado sem se perturbar demasiadamente, poderá “devolver” à criança esses
sentimentos, de maneira que sejam mais aptos a poder manejá-los dentro
dela. A esse mecanismo denominou Identificação Projetiva realística.
Desse modelo abstrai a idéia de um continente (o objeto que recebe) e de
um conteúdo (o projetado). A seguir, esclarece que o continente e o conteúdo são suscetíveis a serem impregnados de emoção e, se isso ocorrer, se
dará o crescimento por meio da experiência.
Esse modelo apresentado por Bion que se refere à capacidade de
rêverie ou ao devaneio da mãe parece-me crucial em relação ao tema do
traumático na estruturação psíquica. No meu entender, enfatiza e amplia o
valor do mecanismo de IP kleiniana, já que a partir dessas idéias não se
pode pensar ser possível o desenvolvimento psíquico fora da relação com
outro humano.
Temos de recordar que, para Bion, a mente constrói a si própria, por
meio do processo de pensar acerca das experiências emocionais. Nessa
concepção, a emoção é o centro do significado e a mente se desenvolve
O TRAUMÁTICO
NA
AS CONTRIBUIÇÕES DE
CONSTITUIÇÃO DO PSIQUISMO:
W.R. BION E DONALD MELTZER
alimentada pela verdade, na área das relações íntimas. Bion propõe uma
nova teoria dos afetos e fala de amor, ódio e desejo de conhecer (L, H e K),
em oposição à parte mentirosa da personalidade com –L, -H e –K.
A partir dessa perspectiva, a função alfa opera sobre os dados obtidos
pela percepção e transforma elementos beta, inassimiláveis, em elementos
alfa, uma espécie de ladrilhos dos pensamentos oníricos, bases para formar
símbolos.
A mãe, nessa concepção bioniana, atua como primeiro amortizador do
impacto do externo traumático. Se essa função for cumprida de maneira
adequada, a mãe colocará à disposição do bebê sua própria função alfa,
com a qual a criança mais adiante se poderá identificar e, assim, dar andamento ao seu próprio processo de pensamento.
É outro o curso dos fatos, se falhar a precoce função rêverie. Os intensos sentimentos de angústia, ao não poderem ser metabolizados, permanecerão na categoria do “terror sem nome”, na própria denominação de Bion.
Com relação ao processo de formação de símbolos, podem apresentar-se
perturbações em sua gênese, tal como apresenta Melanie Klein no caso
Dick, até a destruição parcial ou total do aparelho simbólico, como postula
Bion suceder-se na esquizofrenia.
Nesse ponto, podemos dar entrada às idéias de Donald Meltzer, autor
psicanalítico que também pode ser enquadrado na linha pós-kleiniana. Lamentavelmente, faleceu em Oxford, na madrugada de 13 de agosto de
2004, às vésperas do seu 82º aniversário.
Não é este o momento de fazer um memorial, pois temos de nos concentrar no tema “trauma e estruturação psíquica”; gostaria, ao menos, de
transmitir algo da impressão que deixou nas pessoas que o conheceram.
Ter mantido contato com Meltzer e sua obra de maneira constante
provocou efeitos não só na maneira de pensar e trabalhar em Psicanálise,
mas também na visão do mundo e da vida para os que foram seus seguidores – cremos que a palavra discípulos não seria do seu gosto.
Foi generoso na transmissão de suas idéias, ofereceu um estímulo permanente aos jovens analistas, estimulou para que, na tarefa analítica, se
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 631
Virginia Ungar
realizasse um monitoramento contínuo sobre um tratamento, para se detectar se estava se mantendo em contato com o paciente – nos limites da relação transferência-contratransferência. Como analista, Meltzer teve sempre
um compromisso total com seus pacientes, com uma incomparável capacidade para compreender e interpretar os estratos mais profundos do inconsciente. Mostrava uma capacidade de captação imediata, singular, aguda e
precisa.
Foi muito modesto, talvez em excesso, ao dizer que não trouxe novas
idéias à Psicanálise, mas sim que recorreu a seus antecessores, em uma
linha Freud-Abraham-Klein-Bion, para pensá-los em termos de modelos.
É assim que Meltzer chama o modelo freudiano neurofisiológico ou
hidrostático, já que Freud criou sua obra no clímax da ciência moderna,
época em que a termodinâmica clássica, de processos reversíveis e em
equilíbrio, constituía o paradigma científico.
No modelo kleiniano, privilegia-se a “geografia” da fantasia em termos de espaços na mente e nos objetos. Ao cindir-se e cindir seus objetos,
um mundo de imagos que, com o desenvolvimento da teoria, se tornarão
objetos internos e conformarão o “mundo interno”, a partir de 1934. Nesse
modelo, o desenvolvimento mental parte de um caos inicial com predomínio do impulso de morte, que traz intensas ansiedades de aniquilamento,
figuras superegóicas extremamente sádicas e defesas do Ego de igual teor.
Esse mundo interno tem uma realidade tão concreta como o externo;
esses objetos que podem ser personificados amam, odeiam e sofrem. Com
a evolução do desenvolvimento, o self manterá um vínculo de dependência
de caráter introjetivo, que substitui o predomínio do uso da IP como mecanismo de defesa. Tal concepção motiva Meltzer a chamar modelo teológico
da mente ao modelo kleiniano. Esse se baseia na idéia de que as pessoas
têm algo como uma “religião”, na qual seus objetos internos cumprem o
papel de “deuses”, com funções reguladoras no mundo interno.
Depois dos modelos neurofisiológico freudiano e teológico kleiniano,
o terceiro modelo que Meltzer explora é o de Bion, ao qual denomina
epistemológico, por ter relação com o conhecimento e o pensar.
O TRAUMÁTICO
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AS CONTRIBUIÇÕES DE
CONSTITUIÇÃO DO PSIQUISMO:
W.R. BION E DONALD MELTZER
A meu ver, um dos aportes fundamentais de Meltzer é o de nos ter
ajudado a compreender melhor a obra de Bion, desde seus escritos, como o
terceiro volume de Desarrollos Kleinianos ou seus livros escritos a partir
de 1984, ano em que publica Vida Onírica, ou, de 1986, La Metapsicología
Ampliada: aplicaciones clínicas de las ideas de Bion, ou, de 1988, La
Aprehensión de la Belleza.
Esses três últimos livros podem ser tomados em conjunto, por meio de
um conceito unificador: a emoção. Meltzer (seguindo Bion) localiza-a no
centro do desenvolvimento humano e da psicanálise. O pensamento e a
evolução têm a ver com dar significados às experiências emocionais que
começam já no útero. Inclusive, o momento do parto é concebido não como
uma situação predominantemente traumática, mas como uma experiência
emocional à qual se deve dar um sentido, isto é, que requer ser pensada.
A noção meltzeriana de conflito estético é que permite articular, de
alguma maneira, a noção do traumático com o desenvolvimento psíquico
prematuro, sem que isso tenha sido explicitado em sua obra. Para Meltzer,
a saída ao mundo exterior é uma experiência impressionante que põe o
bebê em contato com a beleza do mundo externo por intermédio de seu
primeiro representante, a mãe, especialmente seu rosto, seus olhos e o seio.
Esse primeiro encontro faz desenvolver-se o que Meltzer denominou conflito estético, ao propor que o mesmo se produz entre o exterior visível e o
interior misterioso do objeto presente, já que, ao ser opaca a mente da mãe
para o bebê, este não pode ter certeza acerca da reciprocidade do amor.
Recorrendo à poesia, a isso chamou “a agonia da dúvida”.
O enfoque psicanalítico da estética tem uma longa tradição. Seguramente todos conhecemos o interesse de Freud pelo tema da produção artística, tanto no terreno das motivações do criador como no efeito que a obra
de arte produz no espectador. Basta mencionar obras como A Interpretação
dos Sonhos, A Gradiva de Jensen, O Moisés de Miguelângelo ou Uma
Recordação Infantil de Leonardo da Vinci. No entanto, talvez a obra que
tenha maior relação específica com o tema de hoje seja O Sinistro, de 1919.
Freud retoma aí um caminho de expansão do âmbito da Estética, já inicia632 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 625-636, 2005
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 633
Virginia Ungar
da por Kant na Crítica do Juízo, em que se estendem os limites de uma
estética baseada na Beleza como harmonia, proporção e limite. A partir
dessa volta, o sentimento do Sublime pode ser despertado por objetos caóticos, sem forma, incomensuráveis e até infinitos (a visão do oceano, a
tormenta, o deserto). O contato com a Beleza será um caminho para o sinistro, que sempre se mostra velado. Freud designa, nesse artigo, o sinistro
unheimlich como aquela situação de estranheza que afeta as coisas familiares.
O Belo seria sempre essencialmente conflituoso, pois é máscara que
sugere, que revela sem deixar de esconder. A Beleza é um véu através do
qual se pode pressentir o caos. Para conseguir efeito estético, o sinistro
deve estar oculto por um véu, sugerido.
Depois de Freud, autores de diferentes correntes psicanalíticas, tais
como E. Jones, E. Kris, Ella Sharpe, Hanna Segal, Money Kyrle, Bion e
Lacan, fizeram importantes aportes, que permitem avaliar que a psicanálise deu um lugar à questão estética.
A nota distintiva da contribuição de Meltzer localiza o problema em
uma posição central na questão do desenvolvimento da mente. Por outro
lado, sua proposta contrasta fortemente com os pressupostos filosóficos da
Estética, em que esse tipo de experiência corresponde a um dos níveis mais
elevados a serem alcançados.
Essas idéias sobre o desenvolvimento psíquico precoce têm sua base
no trabalho com casos de processos analíticos de crianças autistas. Suas
primeiras descobertas foram publicadas em 1975, no livro Exploração do
Autismo, no qual, juntamente com um grupo de analistas de crianças e
psicoterapeutas, estudaram-se esses casos durante dez anos. Descreveram
suas descobertas de que essas crianças mostravam um fracasso na formação de um objeto que contivesse um espaço para ser usado para o desenvolvimento. A partir disso, Meltzer realiza uma conjetura imaginativa a respeito do desenvolvimento mental precoce, o que o leva a formular o conflito estético, mais de dez anos após o livro sobre o autismo, em La
Aprehensión de la Belleza. Passamos a descrever sua proposta: nesta, o
O TRAUMÁTICO
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AS CONTRIBUIÇÕES DE
CONSTITUIÇÃO DO PSIQUISMO:
W.R. BION E DONALD MELTZER
encontro inicial, mítico, com o seio da mãe como representante da beleza
do mundo, coloca, para começar, o bebê em uma situação de conflito. As
emoções postas em jogo ante o impacto da beleza o ultrapassam e espantam. A essência do conflito estético é que não existe impacto da beleza sem
conflito e esse se dá entre o exterior belo, que pode ser percebido, e o
interior, que não é observável, é desconhecido, enigmático, misterioso, somente conjeturável, convertendo-se, daí em diante, em fonte atormentadora de toda ansiedade.
O poder que tem para provocar emocionalidade somente é igualado
por sua capacidade de gerar dúvida, incerteza e desconfiança. É como se
nesse instante se instalasse uma pergunta acerca de se esse interior seria tão
belo como o exterior, que os órgãos dos sentidos captam. A partir daí, a
opção para o desenvolvimento mental estaria dada pela possibilidade de
tolerar essa pergunta sem resposta. Isto é, ser capaz de suportar a lenta
construção da noção do mistério essencial do interior de outra pessoa, que
comporta a idéia do mistério do mundo.
O conflito estético faz surgir uma combinação conflituosa de paixão e
antipaixão, o que leva o autista, ao não poder tolerar a turbulência emocional, a desmantelar a integração da experiência emocional e assim se
desmentalizar. Meltzer diz que a criança autista representa a tragédia do
fracasso do espírito humano.
A criança autista, ao não tolerar esse conflito e ao desmantelar sua
resposta emocional não concebendo um objeto com interior, não pode usar
a IP para iniciar a seqüência de seu desenvolvimento. Recorre ao que
Meltzer, seguindo E. Bick, chama identificação adesiva, e fica aderido à
superfície do objeto, como suspenso dos atributos sensoriais.
Meltzer lida com um conceito de verdade que tem três componentes:
a) a idéia de Bion acerca da verdade como alimento necessário à mente para se desenvolver;
b) a idéia, que em si mesma já é estética, de que a verdade é enigma: é
iminência de revelação, porém não é revelação.
Unindo essas duas idéias, poderia sustentar-se que a possibilidade de
634 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 625-636, 2005
Conclusões
Tive por intenção trazer-lhes as idéias da escola inglesa e, principalmente, a dos autores pós-kleinianos. Como síntese, diria que mesmo quando Klein não tomou a situação traumática de maneira explícita, em termos
do desenvolvimento, vemos, nos casos clínicos que apresenta, um olhar
aguçado sobre a realidade externa do paciente.
De qualquer forma, como já disse ao iniciar, ela estava muito centrada,
na primeira parte de suas obras até 1934, na construção da noção de mundo
interno, que culmina com sua postulação do processo de luto e com o
surgimento do objeto interno bom, núcleo do Eu.
Também insisti em que postulou o mecanismo de IP em 1946 e, no
meu entender, o fez ao necessitar articular, em sua teoria, a relação do sujeito com o mundo externo. Para ela, esse mecanismo é patológico, baseaSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 635
Virginia Ungar
desenvolvimento ou, nos termos de nosso tema, de estruturação do
psiquismo se desdobra no terreno da capacidade de tolerar o enigma que
considera o encontro com um objeto opaco, não-transparente;
c) o amor à verdade está ligado à capacidade de apreciar a beleza do
objeto. Esse é o conceito de verdade que Meltzer traz, citando o poeta
Keats, que havia dito que beleza e verdade se equiparam.
Considerando os três pontos anteriores, resulta então que a beleza implica o contato com a inacessibilidade do objeto estético. O paradigma estético consistiria assim em que a verdade é beleza enquanto se tolere o
enigma inapreensível e exista capacidade para suportá-la.
Retomando as idéias a respeito da estruturação psíquica, como vimos,
Meltzer pensa nos momentos inaugurais como conflituosos, inquietantes.
O bebê não tem certeza sobre o amor da mãe e, para superar esse momento
conflituoso, deve contar com que nela se desenvolva um conflito paralelo,
ao qual Meltzer chama reciprocidade estética.
Diz de uma maneira muito sensível que, para a mamãe, a essência de
seu bebê também lhe é desconhecida. Fala-nos de que o bebê tem uma
“bebetude” que se converte em enigma e mistério para ela.
O TRAUMÁTICO
NA
AS CONTRIBUIÇÕES DE
CONSTITUIÇÃO DO PSIQUISMO:
W.R. BION E DONALD MELTZER
do em mecanismos anais e na necessidade do aparelho psíquico de evacuar
parte das emoções do self e dos objetos internos.
Bion segue esse caminho ao apresentar o mecanismo de IP de maneira
realística, como o modo primitivo de comunicação de um bebê com sua
mãe, e a função rêverie como necessária para uma estruturação psíquica na
linha do que poderia se pensar como normalidade.
Meltzer postula o nascimento da psique como um momento mítico de
encontro do bebê com sua mãe, representante da beleza do mundo, instante
no qual entra em um conflito que denomina estético. Daí em diante, o desenvolvimento vai consistir em se recuperar desse conflito.
Ensaio
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Tradução: Maria Regina Lucena Borges
Revisão: Maria Lucia Meregalli
Dra. Virginia Ungar
Billinghurst 2533 3º
1425 Buenos Aires – Argentina
E-mail: [email protected]
636 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 625-636, 2005
Conferência na SBPdePA
Miguel Leivi
Membro Titular e Didata da
Associação Psicanalítica de
Buenos Aires.
O tema desta conferência é “O
traumático na constituição do
psiquismo em Lacan”. Vou falar, no
entanto, mais sobre Freud, basicamente porque a articulação entre
ambos é o terreno que mais me interessa e no qual me movimento de
forma mais confortável.
Acredito que Lacan é um autor
muito rico e interessante para ampliar a leitura de Freud, e não somente no que diz respeito ao conceito de trauma. Pessoalmente, acho
que esse é um conceito psicanalítico importante e interessante de se
considerar, que tem longa história
em Freud e na psicanálise. Lacan
não trabalhou muito, pelo que conheço, no tema do trauma, abordan-
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 639
Miguel Leivi
O Traumático
na Constituição
do Psiquismo
em Lacan
O TRAUMÁTICO
NA
CONSTITUIÇÃO
DO
PSIQUISMO
EM
LACAN
do-o desde outros ângulos, como o da repetição, que para ele é um conceito
fundamental. Mas, de todas as formas, creio que o que ele pensa em relação à problemática do trauma se encaixa e se articula muito bem com o
desenvolvido por Freud.
Para tomar a noção de trauma em Freud, é importante lembrar que
esse foi o primeiro conceito com que ele pensou a patologia psíquica, montando a primeira teoria pré-psicanalítica: a teoria traumática. Embora a
mesma tenha sido logo abandonada, o conceito de trauma nunca desapareceu. Se consultássemos, por exemplo, o índice analítico de conceitos em
Freud, que está na Standard Edition de Strachey e também em outras versões, ficaria claro como o conceito de trauma aparece muito nos seus primeiros escritos e depois quase desaparece, reaparecendo no final. Ou seja,
é um conceito no qual continuou trabalhando e, no meu entendimento, dando-lhe um caráter mais propriamente psicanalítico; a noção de trauma em
si veio, antes de mais nada, da medicina e via Charcot, um dos, ou talvez o
primeiro, mestre de Freud na psiquiatria.
Para que fique claro o que significou essa teoria traumática no seu
momento, temos de considerar que, à época, as teorias sobre patologia
mental davam ênfase à constituição, à herança, à degeneração; esses eram
os conceitos dominantes. A experiência do sujeito, o que havia acontecido
na sua vida, não era significativo. Nesse aspecto, a importância de Charcot,
destacada por Freud, foi que ele falou de dois quadros totalmente insólitos
para a época: por um lado, a histeria masculina; por outro, a histeria traumática. Freud falava com humor que os alemães, à época, se opuseram
muito à histeria masculina. Em sua Autobiografia, ele conta que um professor vienense veio dizer-lhe que histeria derivava de hysteron, que quer
dizer útero em grego. Era, portanto, caracteristicamente feminina. Falar de
histeria masculina, dessa forma, era um disparate; entretanto, rompeu-se
com a concepção que entendia histeria como uma forma particular de patologia mental relacionada aos órgãos sexuais.
Quanto à histeria traumática, ela se opunha às teorias
constitucionalistas hereditárias, porque hierarquizava algo da experiência
640 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 639-662, 2005
Vocês encontram em Jeannet uma teoria da histeria que levou em consideração as doutrinas prevalecentes na França sobre o papel da herança e da degeneração. Segundo ele, a histeria é uma forma de alteração
degenerativa do sistema nervoso que se dá a conhecer mediante uma
fragilidade inata da síntese psíquica. Sustenta que os doentes de histeria são, desde o início, incapazes de colecionar, em uma unidade, a
diversidade dos processos anímicos; inclinam-se, por isso, à dissociação anímica.
Essa é a teoria de Jeannet, que segue a de Charcot, e que é possível
encontrar nos primeiros desenvolvimentos de Freud, também. Nos Estudos sobre a Histeria, ele mostra um pouco disso, por exemplo, com as
histerias hipnóides. Mas certamente já não em 1909. Nessa segunda conferência, Freud continua com um comentário irônico sobre Jeannet e diz:
Se me permitem vocês uma analogia simples, a histeria de Jeannet
lembra uma frágil senhora que saiu para fazer compras e volta para
casa carregada de pacotes. Seus dois braços e as mãos não conseguem
dominar todo o montante, então cai um pacote, ela se agacha para
recolhê-lo, e cai outro pelo outro lado, etc..
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 641
Miguel Leivi
do sujeito, relacionando-a à patologia. Esse é o valor de Charcot, que
hierarquizava os traumas, embora não lhes desse valor etiológico, ou seja,
não os colocasse como causa central da patologia, e sim como causas acidentais, agentes provocadores que desencadeavam uma disposição. Essa
linha de Charcot foi seguida por Pierre Jeannet, contemporâneo de Freud e
opositor às suas idéias.
Jeannet foi muito importante na França, e o fato de que ele e Freud não
se entendiam muito bem foi uma das razões pelas quais a psicanálise na
França se desenvolveu relativamente tarde. Freud diz, por exemplo, na segunda das Cinco Conferências, de 1909:
O TRAUMÁTICO
NA
CONSTITUIÇÃO
DO
PSIQUISMO
EM
LACAN
Freud critica Jeannet, mas ele esteve inicialmente em uma linha parecida. Em 1888 tem um artigo sobre a histeria escrito numa enciclopédia, no
qual diz:
Histeria é um estado, uma disposição nervosa que produz crises de
tempos em tempos. A etiologia do estado histérico deve ser procurada
inteiramente na herança, inclusive nos homens, que a recebem de suas
mães. Todos os outros fatores, comparados à herança, têm uma importância secundária, são somente causas incidentais.
Essa era uma velha postura de Freud totalmente de acordo com
Charcot e Jeannet.
Em tudo isso, então, qual foi a contribuição de Freud e Breuer? Foi
passar a considerar o trauma como um fator etiológico. Em 1893, no Manuscrito B, ele diz: “Toda histeria que não for hereditária é traumática”, ou
seja, coloca as duas formas no mesmo nível, a traumática e a hereditária.
Ele apresenta aqui uma oposição entre trauma e herança que depois será
relativizada. Em 1917, na Conferência 23, ele diz: “As disposições constitucionais, ou seja, hereditárias, são certamente as seqüelas que deixaram as
vivências de nossos antepassados; elas também foram adquiridas alguma
vez: sem tal aquisição não haveria nenhuma herança”. A herança repete,
assim, experiências passadas, só que não do próprio sujeito, mas dos antepassados.
Observem que aqui há uma noção de herança que tem pouco a ver
com a biologia, pois está se referindo à herança dos caracteres adquiridos,
como na teoria de Lamark, atualmente desacreditada. A biologia atual não
aceita a herança dos caracteres adquiridos. Freud usa mais o conceito jurídico de herança, que se refere antes à organização simbólica que à biologia.
A questão é que ele, embora hierarquize o valor etiológico do trauma
e o coloque no mesmo nível da herança, vai enfatizando cada vez mais o
aspecto traumático. Em 1893, em Sobre o Mecanismo Psíquico dos Fenômenos Histéricos, diz:
642 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 639-662, 2005
Ou seja, generaliza o trauma como a etiologia de toda histeria. “Em
todos os casos, temos de enfrentar a noção de traumas psíquicos, os que
determinam a natureza dos sintomas que aparecem.” Quer dizer, o trauma
não só é o fato etiológico principal como também determina o tipo de sintomas que aparecem. Essa é agora a etiologia específica da histeria; diz, em
1896, nos Novos Comentários sobre as Neuropsicoses de Defesa: os traumas sexuais da infância precoce são vividos passivamente na histeria em
contraposição aos traumas sexuais exercidos ativamente, causa da etiologia das neuroses obsessivas.
Isso em 1895/1896. Em 1905, em Dora, operadas algumas alterações
no seu pensamento, vai dizer outra coisa; algo mudou. E ele diz em Dora
que “o trauma biográfico por nós conhecido resulta inútil para explicar as
especificidades dos sintomas para determiná-los”. Ou seja, diz o contrário
do que dizia antes: o trauma já não é o fator etiológico dominante, nem
determina por si só a forma dos sintomas.
Em suma, nesses poucos anos dos primeiros desenvolvimentos de
Freud, podemos reconhecer vários momentos no que diz respeito ao trauma. Há o momento prévio à teoria traumática, no qual, de acordo com as
teorias da época, a histeria é hereditária e a experiência não conta. Depois
aparece a teoria traumática, segundo a qual toda histeria e, por extensão,
toda psiconeurose são traumáticas; em um terceiro momento, ele abandona
essa teoria traumática e começa a desenvolver a noção da sexualidade infantil e o valor da fantasia. Aí o trauma parece perder importância em relação aos outros fatores. E, em uma última etapa, todo o resto da obra de
Freud que acho que aponta para uma complexização da noção de trauma e
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 643
Miguel Leivi
Há uma completa analogia entre a paralisia traumática e a histeria comum, não-traumática (ou seja, nessa época, hereditária). É lícito, então, conceber os fenômenos da histeria comum seguindo o mesmo esquema válido para a histeria traumática; toda histeria pode ser, portanto, considerada histeria traumática.
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DO
PSIQUISMO
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para uma localização especificamente psicanalítica da mesma, assim como
para uma articulação do trauma com a fantasia.
Mas o que é trauma a todas essas? Eu dizia que, tal como é visto por
Freud no princípio, é um conceito médico que tem a ver com todo um ramo
da medicina, que é a traumatologia. O termo trauma, do grego “ferida com
ruptura”, deriva de um verbo que quer dizer penetrar, ferir, atravessar. Uma
definição médica que encontrei foi: “ferida ou lesão ocasionada diretamente por causas externas ao corpo, por violência, acidente, fratura de origem
externa”. Isso é o que caracteriza o trauma do ponto de vista médico. E a
questão é que o primeiro conceito de trauma que Freud usa na teoria traumática está praticamente modelado sobre esse conceito médico. Freud o
diz explicitamente, nessa segunda conferência, em 1909: “O trauma psíquico é considerado sobre o modelo do trauma corporal”.
O trauma tem várias características, e acho importante não as perder
de vista, para depois considerar como isso foi se continuando. Por um lado,
tem o valor de um acontecimento real, ou seja, de algo que realmente aconteceu, que se pode localizar no tempo e no espaço e na experiência do
sujeito – algo que aconteceu em algum momento de sua vida. Uma questão
central, nesse sentido, é que Freud acredita na realidade da situação traumática; se ele desenvolveu a teoria traumática como a etiologia da histeria,
é porque acreditava no que lhe contavam, à diferença da medicina, que não
acreditava nas histéricas. À medicina importava apenas, na histeria, que as
histéricas mentem, simulam qualquer doença e levam, assim, a uma complicação para os médicos. A histeria está caracterizada pela mentira. E
Freud partiu do pólo oposto, de acreditar nelas. Se vinha uma histérica
dizer-lhe que o pai a havia seduzido, ele tomava o que parecia ser uma
recordação ao pé da letra. Então, é um acontecimento real, ou seja, que
aconteceu efetivamente na vida do sujeito; é também, portanto, acidental,
quer dizer, poderia não ter acontecido. Se um pai seduziu sua filha, poderia
não ter feito isso. Digamos que o fato em si mesmo é puramente contingente e acidental.
Outra característica é a de produzir um impacto violento – idéia que
644 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 639-662, 2005
Descrevemos como traumáticas as excitações que vêm de fora, o suficientemente poderosas em intensidade para abrir caminho através do
escudo protetor [...] (para abrir) uma brecha (ou seja, o aspecto de
fratura, de ruptura) em uma barreira contra os estímulos que em outras
circunstâncias é eficaz. (Isso) produz uma ampla perturbação no funcionamento da energia do organismo.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 645
Miguel Leivi
também vem da medicina. O fator de intensidade, o aspecto econômico do
trauma que se destaca é sempre muito grande e produz ruptura. Na medicina, fica claro que algo se rompe, enquanto no campo psíquico é mais difícil
saber o que é que se rompe. Por isso Freud fala de uma ruptura da barreira
protetora contra os estímulos, conceito esse que aparece seguidamente em
sua obra, embora nem sempre seja muito claro a que se refere quando fala
nessa barreira protetora. Há, além disso, uma incapacidade de resposta adequada, e isso é importante, porque marca outro aspecto, um aspecto relativo, algo que não tem a ver diretamente, exclusivamente, com a intensidade
absoluta do trauma, mas se refere a alguma capacidade de resposta: é traumática alguma coisa diante da qual nós não temos capacidade de responder, de certa forma, mais além de sua intensidade objetiva. E se lembrarem
da teoria traumática: ela punha toda a ênfase no fato de que o trauma não
foi descarregado, e era isso que produzia a patologia. Toda essa situação
leva a um transtorno geral do aparelho, com conseqüências duradouras sobre o conjunto da organização. E, por último, algo que é mais específico,
uma idéia mais difícil de relacionar ao conceito médico de trauma, é o que
Freud diz: o trauma psíquico é sempre sexual. Aqui já há uma
especificidade que vai se conservar na psicanálise, que não tem a ver diretamente com a medicina.
A questão que se propôs é uma etiologia, ou seja, a causa da patologia
psíquica, como sendo devida a um ou mais traumas. A abordagem terapêutica, por sua vez, consiste de descarregar a energia retida, a energia não
descarregada do trauma. Em Mais Além do Princípio do Prazer, ou seja,
bem mais tarde, Freud retoma muitas dessas posições, definindo trauma da
seguinte maneira:
O TRAUMÁTICO
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CONSTITUIÇÃO
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PSIQUISMO
EM
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Eu teria interesse em destacar duas ou três coisas a esse respeito: primeira, a noção de trauma está completamente no terreno da causa, postulase como uma noção etiológica. Quando se trata de teorizar a causa da doença mental, é exatamente aí que aparece a noção de trauma na teoria mental.
Isso vai ficar cada vez mais complexo, mas de qualquer maneira vai permanecer. O trauma aponta ao terreno da causa da patologia, uma causa
real. O que é valorizado, como eu dizia antes, e acho que isso é fundamental, é a experiência, e isso é algo que na psicanálise não se abandonou nunca. Enfatizo a idéia de real porque em torno disso há algumas das questões
que levaram Lacan a ter de desenvolver o conceito de real como diferente
do conceito de realidade. Se Lacan tomou o conceito de trauma, é como
conceito que tem a ver com o real, e para ele o real é algo que tem um lugar
fundamental na psicanálise. No Seminário 11, que se chama Os Quatro
Conceitos Fundamentais da Psicanálise, Lacan toma o conceito de trauma
pelo viés da repetição, que, esse sim, é um conceito fundamental. Ele ali
diz: “Não é relevante que, na origem da experiência analítica, o real tenha
se apresentado sob forma de trauma, determinando toda a sua sucessão,
impondo-lhe uma origem na aparência acidental?”. Ou seja, esse é o lugar
que Lacan quer levantar: o fato de que, na origem da experiência analítica,
aparece o real sob a forma da noção de trauma. A valorização da experiência do sujeito é algo que tampouco vai se perder na análise. E a dimensão
de repetição, que é, digamos, o fenômeno principal do traumático, será a
marca traumática que se caracteriza porque dá lugar ao lançamento
repetitivo. Em Mais Além do Princípio do Prazer, as neuroses e os sonhos
traumáticos são a principal razão de Freud para incorporar como conceito a
compulsão à repetição. Ele o diz explicitamente: “Os sonhos traumáticos
são os exemplos menos duvidosos da operação da compulsão à repetição”.
Há também alguns aspectos específicos fundamentais para destacar.
Um deles é que o trauma é sempre sexual. Freud atribui esse fator às características da sexualidade humana: prematura e precoce. Essas características não se referem necessariamente à idéia de localização cronológica; não
é que necessariamente tenhamos de buscá-las nos primeiros anos de vida,
646 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 639-662, 2005
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 647
Miguel Leivi
ainda que, na verdade, a maioria das situações traumáticas ocorra nesses
primeiros anos, mas pode haver experiências traumáticas em qualquer
momento da vida. Então, essas experiências traumáticas sempre são prematuras e precoces em relação a quê? Em relação à possibilidade de
compreendê-las e de reagir diante delas. Por que a maioria ocorre na primeira infância? Porque se caracteriza pela situação indefesa em que se encontra o bebê humano, isso faz com que não possa reagir diante de nada; ou
seja, tudo é potencialmente traumático e precoce para ele. Está antecipado
em relação às suas possibilidades de compreender e reagir de alguma maneira.
A outra questão importante que Freud destaca, e que também é especificamente psicanalítica, é a função da lembrança da experiência. Algo que
marca, de entrada, uma diferença fundamental com o conceito médico de
trauma. Na medicina, o trauma é um fato em si: se cai uma coisa na cabeça
de alguém e produz um traumatismo de crânio, esse é o trauma. Mas na
psicanálise não é assim: acontece algo e no momento não produz nada, o
que se torna traumática é a lembrança dessa experiência. Lembrem da frase
de Freud que diz que “histéricos sofrem de reminiscências”. Isso quer dizer: não sofrem de sedução, na realidade padecem da lembrança de algo
que aconteceu ou, ainda, que não aconteceu, não importa, mas que fica
registrado como se tivesse acontecido e padecido. E o padecimento não
vem com o acontecimento, e sim com a lembrança do mesmo.
Nenhum desses aspectos relativos ao trauma desaparece, ainda que a
teoria traumática em si mesma seja abandonada e tudo isso vá percorrer
diferentes caminhos, continuando como aspectos fundamentais.
Bem, vocês têm então a teoria traumática e a famosa Carta 69, na qual
Freud diz que não acredita mais nessa teoria, e já começa a colocá-la em
dúvida: não pode ser verdade que haja tantos pais sedutores; seu próprio
pai teria de ter sido um perverso; há uma série de argumentos na qual a
teoria não se sustenta. E disse outra coisa: “No inconsciente não há nenhum sinal de realidade [...] não se pode distinguir a verdade da ficção
investida com afeto”; ou seja, não há nenhum elemento no inconsciente
O TRAUMÁTICO
NA
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PSIQUISMO
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que permita determinar o que realmente aconteceu, que poderia ser também uma fantasia vivida como real.
Essas razões levaram o papel do trauma a um segundo plano, ao desenvolvimento do conceito de sexualidade infantil e a descobrir a importância da fantasia. Em torno de 1900, Freud já tinha totalmente montada a
sua teoria da sexualidade infantil, publicando-a somente em 1905, porque
temia que pudessem matá-lo, caso dissesse que as crianças tinham sexualidade.
Então, o trauma de sedução ficou convertido em fantasia de sedução, e
essa mudança é fundamental, porque o abandono da teoria traumática marca a origem da psicanálise. Contudo, há versões da velha teoria traumática,
do velho modelo próximo à medicina que seguem aparecendo, nas quais
noções sobre trauma precoce seguem exatamente o modelo do trauma em
medicina. Nessa mesma linha está o modelo de Otto Rank do trauma do
nascimento, que Freud criticava justamente por essas razões, uma vez que
Rank levava as coisas cada vez mais para trás, e, obviamente, o quanto
mais para atrás se pode ir, quanto à experiência de um sujeito, do que com
o nascimento? Com isso, colocava a coisa num plano muito diferente, porque, como todos nós nascemos com o trauma do nascimento, isso não é
algo acidental, mas totalmente estrutural. Mas o trauma de nascimento era
pensado por Rank à maneira da medicina, por isso é que ele colocava a
necessidade de chegar até ele e produzir sua ab-reação, coisa com que
Freud não concordava. Ele dizia em Inibição, Sintoma e Angústia: “Não
sabemos o que significa ab-reação do trauma [...] Eu abandonei essa teoria
que tinha papel tão destacado no meu método catártico porque se contradizia com os fatos”.
O conceito de trauma, já disse várias vezes, não desaparece, torna-se
mais complexo, mais especificamente analítico, e articula-se com a fantasia. O que cai é o modelo do trauma baseado no modelo médico, esse sim
abandonado. A fantasia não desloca o trauma; passar do trauma da sedução
à fantasia da sedução não faz com que desapareça a questão do traumático.
O conceito psicanalítico de trauma como causa já não se refere a um
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acontecimento único, como na medicina: saio à rua, um carro me atropela
e não precisa mais nada para que eu tenha um traumatismo de qualquer
tipo. Na psicanálise não é assim, há dois fatos pelo menos, ou seja, há o
desdobramento da causa no plano do trauma. Não é que seja um somatório,
mas são dois acontecimentos diferentes, em diferentes lugares e com funções diferentes e articulados entre si. Sem essa complexa articulação não
há trauma, no sentido psicanalítico.
No caso Emma, Freud descreve uma paciente que se trata porque tem
fobia em relação a lojas: não pode entrar sozinha em nenhuma delas, sempre tem de estar acompanhada de alguém, porque se não entra em pânico,
embora essa companhia possa ser uma criança pequena. Isso quer dizer
que não precisa haver nenhuma proteção real do acompanhante. Freud começa a trabalhar com seu método e aparece algo que aconteceu com essa
mulher na época da puberdade, aos 12 anos, e que aí começou todo o
desencadeante da patologia. Quando tinha 12 anos, entrou sozinha numa
loja para comprar algo e havia dois empregados que estavam falando entre
eles e rindo. Ela interpretou que estavam rindo dela, particularmente de sua
roupa. Então, teve uma crise de pânico e saiu rapidamente, e, a partir daí,
nunca mais pôde entrar sozinha numa loja. Além disso, acrescentou que
um dos empregados a atraía sexualmente. Freud diz que isso não explica
nada, é uma situação totalmente inocente. Por que, a partir desse momento,
vai se instalar uma fobia que a limita e não permite que entre sozinha numa
loja? Continua procurando e encontra uma segunda cena anterior, quando
tinha 8 anos e entrou também numa loja sozinha para comprar alguma coisa. O senhor mais velho a pegou, a levou para trás do balcão e começou a
tocar em seus genitais através da roupa. Ela lembrava um trejeito desse
senhor; foi embora, não disse nada, não aconteceu nada. Depois, voltou
outra vez à loja, o mesmo aconteceu, e depois não voltou mais. E todo esse
episódio ficou esquecido. Quando ocorreu a segunda cena, aos 12 anos,
não lembrava da primeira experiência. Freud diz que aqui há algo que nenhuma das duas cenas sozinhas explica, mas que há relação entre elas e
isso sim nos traz algo: “Só nos faz falta uma conexão associativa entre
O TRAUMÁTICO
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PSIQUISMO
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ambas”. No início, há muitos elementos em comum, digamos, elementos
associativos entre as duas situações: o riso dos dois empregados, a associação com o trejeito do homem que a tocou; eles rindo dela, de sua roupa, e
lembrem que o homem a tocava através da roupa. O elemento de entrar
sozinha numa loja está muito relacionado às duas cenas. E Freud se pergunta qual é o trauma aqui. Na primeira cena há uma sedução real: efetivamente o homem a tocou, mas não produziu nada, nenhum efeito. Esse momento foi totalmente esquecido e passou justamente despercebido: falta
algo que é tão importante no trauma e que aí não aparece – o elemento de
intensidade. A cena é sexual, mas na menina não há desenvolvimento de
excitação nem significado sexual. Deve ser tomado em consideração que, à
época da teoria traumática, ou seja, antes do descobrimento da sexualidade
infantil, para Freud, a sexualidade se desenvolvia na puberdade. Então,
essa menina, aos 8 anos, não tinha sexualidade ainda, a sexualidade era do
homem que a estava tocando, mas ela não tinha maneira de compreendê-la;
e aí vem o aspecto da precocidade, algo que sobrevém antes do tempo,
antes de ela poder compreender, antes de ela poder reagir. Tudo isso está
marcado nesse primeiro momento. E se essa primeira cena vai interferir,
vai fazê-lo somente depois, como lembrança; no momento, não produziu
nenhuma reação. Algo vai reacender essa lembrança depois, e aí se tornará
traumático. Ou seja, age de dentro e não de fora. Então, a questão é que: se
o trauma é algo que vem de fora, aqui há algo estranho, porque efetivamente há algo que veio de fora, que aconteceu, mas que depois se inscreveu e
atuou desde dentro. Por tudo isso, a primeira cena carece de elementos para
ser caracterizada como traumática. E, na segunda, faltam ainda mais elementos, porque em si mesma não há nada, é totalmente inocente, nada
aconteceu, só dois rapazes rindo, só. Mas produz uma reação enorme em
relação ao que está acontecendo. Aqui sim está presente o aspecto da intensidade, mas não há nada que tenha ocorrido que dê conta da mesma. A
segunda cena tampouco é traumática, nem por seu conteúdo nem pelo que
possa ter acontecido nesse momento. Ou seja: no sentido médico, nenhuma das duas é traumática; o único que dá valor de trauma a toda essa cons650 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 639-662, 2005
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trução é a relação entre as duas situações. E isso, creio, passa a dar conta do
trauma, no seu sentido mais especificamente psicanalítico, esse desdobramento da causa.
A puberdade aparece nessa primeira versão aportando a sexualidade
que, no momento da primeira cena, ainda não tinha se desenvolvido. E
Freud diz no Projeto, com relação a esse caso de Emma: “Esse caso é típico
da repressão na histeria. Encontramos invariavelmente que uma lembrança
reprimida se torna trauma nachträglich”. Essa última é uma palavra difícil
de se traduzir. Esse conceito, considerado muito importante, muitos o traduzem como efeito diferido; no meu julgamento, no entanto, essa não é
uma boa tradução, porque efeito diferido entra muito bem num trauma
médico. Suponhamos um traumatismo de crânio: pode haver efeitos imediatos, desde desmaiar até morrer; efeitos um pouco tardios, por exemplo,
um hematoma extradural que pode produzir sintomas nas 24 horas, ou efeitos, como no caso de um hematoma subdural, de efeitos mais lentos. Aí há
efeitos diferidos, mas a causa é sempre a mesma. Na psicanálise, não há
propriamente um diferimento dos efeitos, e sim um desdobramento da causa. Há uma dupla causalidade, na qual o primeiro é causa do segundo, digamos, essa primeira cena causa a segunda, se não a segunda cena seria totalmente inocente. Mas a segunda também tem efeito causal sobre a primeira,
que retroage: esse nachträglichkeit é a retroação do posterior sobre o anterior. O fato é que o anterior determina e hierarquiza o posterior, mas o
posterior também retroage sobre o anterior.
Essa organização temporal especificamente psicanalítica está muito
implicada na função de trauma, e Freud diz isso no Projeto, em plena teoria
traumática: “uma lembrança reprimida se torna retroativamente um trauma”. A causa desse estado de coisas é o retardamento da puberdade. Lacan
diz algo muito similar no Seminário 1, Os Escritos Técnicos de Freud,
falando do Homem dos Lobos, de quando sua fobia surge efetivamente.
Lembrem que a história do Homem dos Lobos é a análise de uma fobia
infantil. Como em Emma, em que a fobia aparece aos 12 anos, no Homem
dos Lobos vai aparecer depois do sonho dos lobos, aos 4 anos. Mas esse
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surge efetivamente aos 2 anos e meio, depois da suposta observação do
coito dos pais, e “adquire (nesse momento do sonho) o valor de trauma [...]
O trauma, enquanto cumpre uma ação repressora, intervém a posteriori,
nachträglich”, e intervém retroativamente.
Então, na primeira cena, não há resposta, porque não há aí nem excitação nem significação sexual. Não há nesse momento maneira de entender
de que se trata, mas há registro, há uma inscrição. Temos de falar de Lacan:
eu diria, então, que isso é quase uma definição de uma inscrição
significante. Algo capaz de significação, mas que, em si, não consiste de
significação, e que, além do mais, é uma inscrição significante de algo que
nesse momento não significa nada, mas que estará aberto a todos os encadeamentos significativos possíveis. Por isso que o trauma é sempre precoce; sempre se produz antes que possa significar. A significação sempre
requer um outro acontecimento. No primeiro momento, sobretudo em relação àquilo que é uma espécie de primeira inscrição, não há elementos para
entender do que se trata. Em termos gerais, compreende tudo o que se pode
incluir em algo que já está estruturado previamente e que remete a uma
experiência anterior; em troca, o que aparece como uma espécie de primeira vez, que não remete a nada anterior, resulta sempre precoce, porque não
se tem maneira de compreendê-lo.
Nesse ponto, a primeira inscrição é em Inibição, Sintoma e Angústia,
quando Freud desenvolve a segunda teoria da angústia. Ficará localizada a
“angústia automática”, “angústia traumática” – automática justamente porque não há forma de reagir. Em troca, a “angústia sinal” é já um segundo
momento: já houve uma inscrição prévia, e surge a angústia como sinal de
perigo para evitar novo desenvolvimento da angústia traumática.
Isso quanto à primeira cena, à primeira inscrição. A segunda cena, em
si mesma, é totalmente intranscendente. O que faz é aportar significação e
excitação sexual à lembrança da primeira. Aí sim, pode-se dizer: Emma
fugiu da loja, mas já era tarde. Responder à lembrança não é a mesma coisa
que responder ao fato: esse já passou, a resposta resulta tardia. Isso terá
relação com a dimensão repetitiva dos traumas, pela qual todas as insistên652 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 639-662, 2005
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cias posteriores das inscrições traumáticas geram respostas, mas nenhuma
resposta é suficiente, nem consegue evitar o que já aconteceu ou apagar a
inscrição do trauma. Esse é um dos fundamentos da compulsão à repetição:
só o que se pode fazer é repetir ou evitar.
Em um de seus últimos trabalhos, Moisés e o Monoteísmo, Freud retoma e dá muita importância à noção de trauma. Fala que as únicas alternativas que ficam abertas são as repetições ou as evitações compulsivas. Há
algo irremediável, algo que está dentro do perdido, do que já aconteceu; é
impossível voltar a ele, é impossível evitá-lo.
Essa mesma estrutura é a que se vê na fobia infantil do Homem dos
Lobos. Temos a segunda cena, que seria o sonho dos lobos, aos 4 anos. Isso
é mais insólito ainda, porque nem sequer é algo que aconteceu, um fato – é
somente um sonho. Freud, entretanto, diz ter esse sonho valor traumático.
E a primeira cena nem sequer pode ser recordada, o que abre toda a questão
das construções na psicanálise: como se pode resgatar aquilo que, por estrutura, não pode ser lembrado? Essa primeira cena da visualização do coito dos pais foi construída por Freud. As considerações são as mesmas:
nessa primeira cena, ele diz que não há excitação nem significação sexual,
pelo menos não a significação sexual genital. Freud teoriza dizendo ter
havido uma resposta anal. Ele deve ter respondido a essa cena evacuando,
mas não é uma significação genital.
E a segunda cena, que é só um sonho e vem de fora, aporta a excitação
e a significação sexual às recordações da primeira. A noção de trauma aqui
também se desdobra: a segunda cena é um sonho, e Freud diz que revalida
retrospectivamente – nachträglichkeit. Observe-se como, nesse terreno,
insiste em tal conceito: “Revalida retrospectivamente a observação do coito, realizada há um ano e meio [...] A ativação dessa imagem agora pode
ser compreendida devido ao desenvolvimento intelectual”. E, apesar de
não ser um acontecimento, porque é um sonho, não é nada que tenha acontecido em sentido positivo; nada ocorreu na realidade. Diz Freud que “operou não somente como um novo acontecimento, mas como um novo trauma, como uma interferência de fora análoga à sedução”. Observe-se que
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essa característica, vinculada ao trauma, que era algo que vinha de fora,
fica totalmente relativizada: aqui há algo que nem aconteceu nem vem de
fora, é um sonho, no entanto tem valor traumático.
A primeira cena não pode ser recordada, é construída, e Freud nem
sequer está certo de sua construção. Ele diz que o menino tem de ter observado um coito nessas condições, mas depois acrescenta: “Talvez não tivesse observado nada, mas montou essa cena a partir de diferentes coisas que
observou”. Como o Homem dos Lobos era de uma família aristocrática,
que possuía campos nos quais passava muito tempo, deve ter tido muitas
oportunidades de ver ovelhas em coito. A partir daí construiu a cena, esse
coito dos pais, talvez a partir de ver os pais simplesmente dormindo numa
tarde de verão.
Por decorrência, fica totalmente perdido e deslocado a respeito do que
realmente aconteceu; o caráter de acontecimento real se relativiza. Lacan
diz algo a esse respeito, no seu Seminário 1:
Em O Homem dos Lobos, Freud faz a pergunta: O que é o trauma? E se
dá conta de que o trauma é uma noção tremendamente ambígua, já
que, de acordo com a evidência clínica, sua dimensão fantasmática é
infinitamente mais importante do que sua dimensão de acontecimento,
o qual passa, então, a segundo plano [...] Ao contrário, a data do trauma continua sendo para ele um problema que convém conservar a qualquer preço [...] Quem saberá o que viu? Mas, tenha visto ou não, somente o poderia ter feito em data precisa, nem sequer um ano depois.
Há, portanto, uma localização temporal, uma localização numa cronologia organizada simbolicamente; é impossível, no entanto, se saber exatamente o que viu. Freud nos dirá que algo viu, mas não se pode saber exatamente o quê. Por isso é que a psicanálise, como método de investigação
judicial, se quiséssemos investigar os pontos tais como foram, não serviria
para nada. Não há forma de se saber o que realmente viu. Pode-se, sim,
localizar o que tenha visto, em algum momento, por uma série de elementos, de indícios.
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Essa estrutura Freud vai conservar todo o tempo até o Moisés e a aplica tanto à patologia quanto ao surgimento de estruturas culturais. Moisés e
o Monoteísmo é um artigo que fala do surgimento da religião e das tradições, e aplica ali o mesmo modelo: o de um primeiro acontecimento, depois um período de latência, como ele chama, e logo um retorno do esquecido, do reprimido. Além do mais, faz uma equiparação entre o que é o
desenvolvimento de um sujeito – sexualidade infantil, latência e desenvolvimento puberal – e o que é para ele, por exemplo, a religião monoteísta,
que surge também em dois tempos. Há um primeiro surgimento, um
declínio desse primeiro surgimento, logo um longo período de latência, e
um ressurgimento posterior. E diz, em Moisés, que os traumas são “impressões experimentadas precocemente e logo depois esquecidas, às quais
damos grande importância na etiologia das neuroses. Nem sempre é possível descobri-las”, ou seja, recordá-las. O que lhes dá o caráter traumático é
essa carga retroativa, ou seja, é desde o sintoma que o trauma fica
ressignificado; nunca se sabe exatamente o que é que vai ter valor traumático, a não ser que partamos dos seus efeitos, ou seja, do sintoma. Lacan
coloca, no Seminário 8, intitulado A Transferência, que “não é trauma simplesmente o que irrompe num momento determinado, e rompendo em algum lugar uma estrutura que se imaginava total. O trauma é quando certos
acontecimentos se situam num certo lugar nessa estrutura”. Lembro o Homem dos Lobos: se aconteceu, tem de ter acontecido num determinado
lugar e em um determinado momento. A estrutura fixa determinados lugares e certos acontecimentos, ocupando-os; “tomam o valor significante de
traumas que estão ligados a um sujeito determinado. Isso é o que constitui
o valor traumático de um acontecimento”.
Freud fala, como vem falando desde o princípio, que constituem traumas as experiências no corpo e as sensopercepções; em Construções em
Psicanálise, entretanto, diz que também pode estar em jogo “algo experimentado na infância e logo esquecido, algo que o menino viu ou ouviu em
uma época em que apenas começava a falar”. Ou seja, pelo que ouvimos
também se veiculam traumas. O que ouvimos é linguagem, e não só produz
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inscrição como também é traumática. Através da linguagem também se
veiculam esses traumas ancestrais, herdados – por exemplo, os que se
transmitem entre gerações numa família. Uma herança da qual, como vimos, a biologia não dá conta mas a linguagem sim, e que permitiria algo
assim como a transmissão do traumático, do adquirido, entre as gerações.
Tenho um pequeno exemplo da minha clínica pessoal que acho que
faz sentido com o que estamos falando. Sobre um paciente que tive há
anos, à época com trinta e tantos anos, digamos entre 35 e 40, não importa,
tampouco importa muito o que acontecia com ele naquele momento, mas
sim alguns elementos da sua história. Esse rapaz era filho de um casal que
sobrevivera a um campo de concentração. Cada um deles possuíra uma
família. O pai fora casado e tivera duas filhas; a mãe fora casada e tivera
um filho. Estiveram em campos diferentes, não se conheceram à época. O
pai perdera a mulher e as duas filhas, a mãe perdera o marido; ou seja,
sobreviveram, o pai sozinho e a mãe com o seu filho. Eles eram da Polônia,
acho que se conheceram no campo de refugiados na França e formaram um
novo casal. Desse novo casal nasceu o rapaz, meu paciente, criado em condições que não tiveram nada a ver com a experiência pela qual haviam
passado seus pais e seu irmão. Ele era considerado francês e o chamaram
Pièrre. Mudaram-se para a Argentina quando ele era muito pequeno, e a
família, apesar de não estar em boas condições financeiras, o colocou em
uma escola francesa cara, porque ele era francês, ou seja, já estava, digamos, excluído da experiência da família, que, além do mais, não tinha sido
uma experiência pessoal dele; ele não tinha passado por aquilo. Era um
rapaz com muitas complicações, que na adolescência fora muito alto e
magro. Conta que, naquele período, quando ia a determinado clube fazer
esporte e ia ao vestiário tomar banho, os outros, que não o conheciam e não
sabiam nada a seu respeito, olhavam-no e diziam: como tu és magro, saíste
de um campo de concentração? Era impressionante, uma vez que sentia
isso como uma inscrição traumática que não havia sido de sua própria experiência, mas que vinha de seus pais.
A questão é que tudo isso faz com que a linguagem veicule inscrições
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traumáticas, e, mais além, ela em si mesma é traumática. Pensem em como
é a aquisição da linguagem: aprendem-se coisas as quais não se sabe o que
querem dizer. Ouvem-se palavras, o “banho de linguagem” em que estamos
imersos, como diz Lacan; contudo, até que se consiga adquirir mais ou
menos o uso da linguagem, não se entende nada; ou seja, há uma série de
inflexões que não se pode entender, a que não se pode responder nem reagir – algo característico das inscrições traumáticas. E também a sexualidade é traumática em si mesma, uma vez que também nós, enquanto bebês,
estamos abertos à sexualidade dos adultos.
Freud, quando retoma a questão da fantasia da sedução em A Feminilidade, artigo de 1932, diz que “a fantasia da sedução toca o chão da realidade” – ou seja, não é mais pura fantasia, puro produto da imaginação: toca
o chão da realidade “porque foi realmente a mãe quem, através de suas
atividades em torno da higiene corporal da criança, estimulou inevitavelmente e, quem sabe, despertou pela primeira vez sensações prazerosas nos
genitais da criança”. Há então uma condição de estrutura que faz com que
a sexualidade em si mesma seja traumática.
Vou falar rapidamente sobre algo que me interessa destacar, que é a
articulação entre trauma e fantasia. O conceito de fantasia deslocou o de
trauma e, no entanto, nunca o eliminou; há uma articulação necessária entre trauma e fantasia, já que a fantasia não é puro produto da livre imaginação. Lacan diz, no Seminário 11, que “a fantasia é sempre a tela que disfarça algo totalmente primeiro, determinante da função da repetição”. Esse
primeiro e determinante é a inscrição traumática, “o primeiro encontro, o
real que está detrás da fantasia”; ou seja, o trauma é um componente da
fantasia. Freud diz, em O Homem dos Lobos, que “a criança, assim como o
adulto, só pode produzir fantasias com material que adquiriu em algum
lugar”. As fantasias, em sua estrutura, são universais. A fantasia de sedução, por exemplo, é universal. Cada um monta, entretanto, suas próprias
fantasias com os pequenos acontecimentos que tem à disposição. E aí estão
as inscrições traumáticas. O componente traumático é o que dá a configuração singular à fantasia. Para Lacan, o trauma é o real da fantasia, aquilo
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que dá sustentação real à mesma. Ele diz, também no Seminário 11: “É em
relação ao real que funciona o plano da fantasia. O real a sustenta, e ela
protege o real”. Ou seja, tratando-se da fantasia, há algo real que aconteceu.
Freud diz, inclusive, em relação ao delírio, em Construções em Psicanálise, que há algo de real no delírio, “um fragmento de verdade históricovivencial” – ou seja, que há também o trauma, algo que marca certa sustentação real. Isso é muito importante – que pena que vou ter de dizer com
pressa, porque já é tarde –, mas essa é uma diferença fundamental entre
Freud e Jung, e um dos temas que os separaram. Para Jung, a fantasia não
tinha nenhuma sustentação real, por isso impugnava a sexualidade infantil.
Para ele, as recordações infantis eram fantasias elaboradas à época da puberdade e projetadas retroativamente, sem nenhuma relação com acontecimentos, com algo real. A relação que ele fazia era com os arquétipos inconscientes, mas aí temos outra versão do hereditário, totalmente independente da experiência do sujeito. Para Freud, isso não é assim, e ele escreveu O Homem dos Lobos justamente em plena polêmica com Jung sobre
isso. Por isso é que a pergunta que retorna quase obsessivamente nesse
relato: o que ele viu, o que aconteceu?. Freud não tem dúvida de que ele
viu algo; há fatos reais que dão forma concreta a essa fantasia.
De qualquer maneira, lhes dizia antes que por aqui também temos
algo que levou Lacan a elaborar a noção de real como diferente e oposta à
realidade, porque a realidade na qual nos movemos está totalmente
entremeada de fantasias, já está totalmente armada com as lembranças que
nós temos. Como Freud diz: “todas as lembranças são encobridoras” – ou
seja, já estão totalmente armadas, articuladas e organizadas a partir da fantasia. Se possível fosse descolar, tirar toda a cobertura de fantasia e chegar
a esse ponto real, aí sim chegaríamos no conceito de trauma para Lacan.
Trauma, para ele, não está do lado da realidade, mas do lado do real. Nesse
sentido, ele considera que “nenhuma praxis mais que a análise está orientada para o que no coração da experiência é o núcleo do real [...] que se
apresenta, antes de mais nada, sob a forma do trauma”. Mas não é possível
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eliminar a fantasia – por isso diz que “o real é o impossível”. Podemos
teorizar, mas eliminarmos o campo da fantasia é impossível.
Há um exemplo clínico que não é de Lacan, mas que ele trabalha no
Seminário 3, As Psicoses, que acho interessante para dar conta de onde ele
colocaria o trauma e como ele se articula no conjunto da patologia. É o
caso de um psicanalista húngaro, logo depois da Primeira Guerra, apresentado como um caso de histeria traumática. O paciente era um senhor que
vendia bilhetes nos bondes, esse era o seu trabalho. Um dia, ao descer do
bonde, cai, o bonde o arrasta um pouco, ele se machuca, se bate e fica com
um galo na cabeça. É levado ao hospital, revisado de ponta a ponta, fazem
muitos raios-X, e não encontram nada. Fazem uma pequena sutura no couro cabeludo, ele vai para casa. Um dia de repouso, pronto, passou, não
aconteceu nada. Pouco tempo depois, começa a ter sintomas, a sentir dor
na altura da primeira costela que se difunde, um mal-estar crescente. Deitase sobre o lado esquerdo, abraçado a um travesseiro, e perde a consciência;
ou seja, tudo começa a crescer. Tornam a interná-lo no hospital, revisam
tudo, não encontram nada novamente, e o mandam a um psicanalista, com
diagnóstico de histeria traumática. O artigo, muito bom, é o relato clínico
do tratamento desse senhor, e Lacan faz uma série de considerações sobre
esse artigo que não vem ao caso agora. O que nos interessa é que ele diz
que aí, evidentemente, há um trauma: caiu, se machucou, e o analista conseguiu continuar por essa linha da histeria traumática. O trauma foi a queda, mas a análise começa a encontrar cenas infantis. Por exemplo, quando
ele estava começando a engatinhar, um dia a mãe pisou no seu polegar.
Começam a aparecer, enfim, pequenas cenas hierarquizadas a partir disso,
que era considerado um trauma. Mas Lacan diz que há um pequeno inconveniente, porque, à medida que se vai apresentando o material clínico, se
observa que o decisivo na descompensação da neurose não foi o acidente,
mas foram os exames radiológicos. O sujeito desencadeia suas crises durante os exames, que o submetem à ação de misteriosos instrumentos que o
perscrutam por dentro, e essas crises, seu sentido, sua periodicidade, seu
estilo, se apresentam muito evidentemente como vinculadas ao fantasma
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de uma gravidez. De fato, o próprio analista apresenta o caso centrado na
fantasia de gravidez. Surge, então, uma coisa totalmente diferente. A partir
da configuração do sintoma, o que aparece hierarquizado como inscrições
traumáticas é outro tipo de coisa: aparece, por exemplo, uma cena infantil
na qual ele estava escondido, olhando uma mulher que se queixava, gemia
e estava em trabalho de parto. Como ninguém viu, ele presenciou todo o
parto, que foi traumático, porque a criança nasceu morta e tiveram de tirála aos pedaços. À parte os detalhes, o que importa é o fato de que sempre o
trauma é designado a partir dos sintomas. Se o tomarmos no sentido convencional, médico, o trauma foi a queda do bonde; na configuração sintomática, no entanto, o que resultou, o que produziu efeito, foi a radiografia,
porque ele estava intrigado com o que se passava no interior do corpo onde
poderia crescer uma criança.
Eu dizia que Lacan articula o trauma com a repetição, o que é um dos
seus conceitos fundamentais em psicanálise. O trauma é o lugar do encontro com o real que está por trás da fantasia: o que há de real, o que sustenta
a fantasia, já que a fantasia não é pura imaginação. Poderia ser para Jung,
mas não o é para Freud e não o é para Lacan. Ele diz que a fantasia não é
uma espécie de “a vida é um sonho”; o trauma está além do retorno, é a
causa real da repetição. O traumático é esse primeiro encontro com o real,
essa primeira inscrição que sempre é essencialmente um encontro falido,
porque nós nunca reagimos adequadamente. “A fantasia é sempre somente
a tela que disfarça algo totalmente anterior, determinante na função da repetição [...] Aí está o real que governa mais do que qualquer outra coisa
nossas atividades. E a psicanálise é quem designa isso.”1
Lacan discorda de Melanie Klein sobre a função da fantasia. Ele diz
que não é a fantasia o motor do desenvolvimento psíquico, mas o traumático que está articulado a ela; não é a fantasia em si mesma, mas ela, de
alguma maneira, articula um ponto do traumático que insiste repetidamente, e isso tem a ver com o desenvolvimento psíquico. Não é a mera repeti-
1
Lacan em Seminário 11.
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 661
Miguel Leivi
ção pela repetição que demanda algo novo. Na repetição se procura algo
que não ocorreu, e se repete indefinidamente um encontro sempre falido,
porque – como dissemos – já é tarde para corrigi-lo ou evitá-lo. Além disso, a repetição não se esgota em nenhuma satisfação, porque a satisfação é
impossível – por isso, há uma espécie de permanente abertura ao novo.
Freud articula o traumático e a repetição com o jogo infantil a partir dessa
idéia. Lembrem-se que o “fort-da”, a maior teoria de Freud sobre jogo infantil, está totalmente articulado com a repetição – um dos fundamentos de
Mais Além do Princípio do Prazer – e com o traumático, pela desaparição
da mãe; é, no entanto, o estímulo para que o netinho comece a brincar e crie
a base para todo o seu desenvolvimento. Assim, não é a fantasia o verdadeiro motor do desenvolvimento, e sim o núcleo real, traumático, encoberto pela fantasia, que insiste uma e outra vez, demandando sempre o novo.
Lacan trabalha essa questão no Seminário 11, em relação ao sonho
que Freud relata no começo do capítulo 7 de A Interpretação dos Sonhos.
Trata-se de um pai cujo filho morrera de febre e estava sendo velado. O pai
vai dormir no quarto ao lado e sonha que o filho está parado ao lado dele, o
pega pelo braço e lhe diz: “Pai, não vês que estou ardendo?”. O pai se
acorda, e uma vela havia caído sobre a cama e estava incendiando os lençóis em que estava o cadáver do filho.
Lacan diz que Freud coloca esse sonho no princípio do capítulo 7, no
qual fala do sonho como a realização de desejos: de certa forma, era a
realização do desejo do pai de seguir dormindo para ver um pouquinho
mais o filho vivo. Mas se isso fosse tudo, ele continuaria dormindo, não
despertaria. Se houvesse somente realização de desejo, continuaria dormindo, poderia usar todo o tempo que quisesse para ver o filho vivo. Então,
por que acorda? Lacan, sobre isso, diz que “o sonho não é somente uma
fantasia que realiza um desejo”. Esse é o aspecto do sonho que está ligado
ao princípio do prazer; há, porém, um mais além desse aspecto: o que o
desperta é a realidade, mas qual realidade?
Há, por um lado, a realidade do fogo, seu resplendor percebido através
das pálpebras. Mas há uma outra realidade, muito mais forte, na dimensão
O TRAUMÁTICO
NA
CONSTITUIÇÃO
DO
PSIQUISMO
EM
LACAN
do traumático, que é a que ele vê nas palavras do filho no sonho: “Pai, não
vês que estou ardendo?”. Essas palavras devem ser palavras reais, palavras
ouvidas; essa é uma idéia geral de Freud: tudo o que aparece como palavras
no sonho são palavras ouvidas. Isso deve ter sido algo que o filho disse ao
pai em algum momento da doença: “Pai, estou ardendo em febre”, e o pai
nada pôde fazer para remediar, e o filho morreu. Há aí algum encontro real
falido, diante do qual o pai não conseguira fazer nada, e as palavras do filho
ficaram inscritas nele como marca traumática desse encontro real falido,
como inscrição que volta a aparecer no sonho. E o pai acorda pela ação
combinada dessas duas realidades e pôde fazer algo com uma delas – ou
seja, pôde apagar o fogo que ameaçava o cadáver. Com a outra realidade, a
realidade psíquica que se manifesta no sonho, no entanto, nada pôde fazer:
o filho morrera – isso não teria remédio, era tarde e para sempre. Todo
encontro possível com esse filho morto será para sempre um encontro falido, como o foi desde aquele momento em que o filho lhe reclamou que
fizesse algo, e ele nada pôde fazer. Somente no sonho pôde realizar-se,
como desejo, por um instante, esse encontro. Mas no sonho voltará uma e
outra vez essa reclamação do filho, diante da qual ele poderá acordar outra
vez, mas não a tempo de fazer algo.
Muito obrigado.
Conferência
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Tradução: Beatriz Afonso Neves
Revisão: Heloisa P. Fetter
Dr. Miguel Leivi
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1.
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Congressos, Simpósios, Mesas Redondas, ou Boletins de circulação interna
b.
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de Sociedades Psicanalíticas; exceções serão consideradas);
O trabalho não pode infringir nenhuma norma ética e todos os esforços devem
ser feitos de modo a proteger a identidade dos pacientes mencionados em
relatos clínicos;
d.
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ofensivo ou difamatório;
f.
O trabalho não deve conter nenhum material que possa ser considerado
O autor deve estar ciente que ao publicar o trabalho na Revista da Sociedade
Brasileira de Psicanálise de Por to Alegr e ele está transferindo
automaticamente o “copyright” para essa, salvo as exceções previstas pela
lei;
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publicação sem o conhecimento explícito e confirmado por escrito do
Conselho Editorial. A Revista normalmente não colocará obstáculos a
divulgação do artigo em outra publicação, desde que informada previamente.
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responsabilidade exclusiva do autor.
* Baseado na Revista Brasileira de Psicanálise da Associação Brasileira de Psicanálise.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 663
2.
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3.
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4.
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Alegre, cujo endereço é Quintino Bocaiúva, 1362. Em três vias e cópia em
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ilustrações não deverá exceder ¼ do espaço ocupado pelo artigo; exceções
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duplo em papel formato A4. Cada linha deve conter 70 toques e cada página
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Os ensaios e reflexões deverão obedecer a seguinte estrutura: título, nome
do autor, titulação do autor, tex to, palavras-chave (em português, Inglês e
O resumo deverá conter em torno de 150 palavras e ser capaz de transmitir
ao leitor os pontos principais que o autor deseja expressar.
As seguintes normas estão baseadas nas publicadas pelo International
Journal of Phychoanalysis e na Revista Brasileira de Psicanálise.
As referências deverão incluir somente trabalhos estritamente relevantes e
necessários, não se deve acumular uma vasta bibliografia. As referências no
decorrer do tex to serão dadas citando-se o nome do autor seguido do ano
de publicação entre parênteses, por exemplo, Freud (1918) ou (Freud, 1918).
664 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 663-666, 2005
Se dois co-autores são citados, os dois nomes deverão ser mencionados,
por exemplo Marty , de M’Uzan (1963) ou (Marty, de M’Uzan, 1963). Se
houver mais de dois autores, a referência no tex to indicará o primeiro, por
exemplo: Rodrigues et al.(1983) ou (Rodrigues et al.,1983).
A referência completa das obras citadas figurará na lista das referências
bibliográficas, colocada no final do artigo, lista essa que deverá corresponder
exatamente às obras citadas, sem referências suplementares.
Os autores são mencionados em ordem alfabética e suas obras pela ordem
cronológica de publicação.
(para as obras de Freud, as datas correspondentes são indicadas entre
parênteses na Standard Edition).
Se várias obras foram publicadas no mesmo ano, deve-se acrescentar à
data de publicação, as letras a, b, c etc. Quando um autor é citado
individualmente e também como co-autor, serão citadas antes as obras onde
ele é o único autor, seguidas das publicações em que ele é o co-autor. Os
nomes dos autores não serão repetidos, mas indicados por um traço.
Os títulos dos livros grifados, sendo que as palavras mais importantes serão
escritas em letras maiúsculas, o lugar da publicação e o nome do editor
serão igualmente indicados. Se uma referência é dada a partir de outra edição
que a original, a data da edição utilizada deverá figurar no final da referência.
Nos títulos dos artigos (e igualmente nas obras de Freud) somente a primeira
palavra figurará em letra maiúscula. O título do ar tigo será seguido da
abreviação grifada da revista, do número do volume, e dos números da
primeira e da última página. Para as abreviações dos títulos das revistas,
poder-se-ão consultar os números que já foram mencionados ou no caso de
dúvida, citar o nome por ex tenso.
Nos exemplos seguintes, podem-se obser var a utilização das letras
maiúsculas, a pontuação, os dados e sua ordem de apresentação.
6.
Procedimentos de Avaliação:
a.
Todo ar tigo entregue para publicação será avaliado através de critérios
padronizados por três avaliadores membros do Conselho Editorial da Revista
da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre;
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 665
b.
O avaliador será mantido em sigilo pela Revista, recomendando-se que o
c.
mesmo seja mantido pelo próprio avaliador.
d.
editorial estabelecido;
Sendo o artigo recomendado pela maioria dos avaliadores, será considerado,
em princípio, aprovado para publicação. A decisão final quanto à data de
sua publicação dependerá do número de artigos aprovados e do programa
Artigos que não forem publicados em 6 (seis) meses, a partir da data de sua
aprovação serão oferecidos de volta ao seu autor, para que esse tenha
liberdade de enviá-lo a uma outra publicação.
PS. Para mais detalhes consultar revistas.
666 Psicanálise v. 7, n. 2, p. 663-666, 2005

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