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22 22 Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 154, 22-30 O trabalho entre resistência e desistência: uma contribuição da psicanálise sobre o medo do trabalhador na empresa neoliberal Eduardo Rozenthal O artigo reconhece o alto grau de sofrimento de que padece o trabalhador na empresa neoliberal. O modelo gerencial, imposto pelo capitalismo flexível, tende a impedir a resistência dos funcionários – submetidos a um estado de desestabilização psíquica – pela produção e manipulação do medo. O referencial teórico da psicanálise será utilizado para a compreensão dos mecanismos subjetivos que levam o trabalhador ao comportamento de repetição sintomática que atende aos interesses da gestão empresarial. A hipótese do artigo se completa pelo entendimento de uma outra espécie de medo como condição de possibilidade para a emancipação libidinal do sujeito pela via da criação de si. Palavras-chave: Empresa neoliberal, medo, psicanálise, criação T he article admits that the neoliberal company’s worker is seized by a high degree of suffering. The flexible capitalism imposes an administration model that intends to avoid the worker’s resistance - submitted to a psychical instability state - because of the production and manipulation of fear. The theoretical referential of psychoanalysis will be used to the understanding of the subjective mechanisms that lead the worker to the symptomatic behavior of repetition according to the company’s management purposes. The hypothesis of the article’s complement is the understanding of another kind of fear as a condition of possibility to the libidinal emancipation of the subject as creation of himself. Key words: Neoliberal company, fear, psychoanalysis, creation. Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 154, fev. 2002 O trabalho entre resistência e desistência... NEOLIBERALISMO E SOFRIMENTO NO TRABALHO V ivemos hoje numa nova “onda” da história que se convencionou denominar de neoliberalismo ou pós-modernismo. Quando mudanças significativas abarcam e interligam um grande conjunto de saberes e artes, os autores sentemse justificados ao identificar tal configuração a uma onda ou ao “advento de uma nova civilização”1. O que caracteriza uma nova onda corresponde, então, a um nível de modificação qualitativo no movimento cultural. Após o grande período agrário ou rural, e passados duzentos anos da organização industrial, a sociedade neoliberal se inscreve no novo paradigma contemporâneo. Do ponto de vista social, um individualismo crescente introduz a “cultura do narcisismo” que favorece a emergência de um senso estético como parâmetro de valor. A economia, por sua vez, investe em larga escala no setor terciário, e os serviços prevalecem grandemente sobre os bens materiais na composição do produto interno. O conhecimento teórico, a ciência e a informação ocupam o papel central que já pertenceu à propriedade e à produção manufatureira (De Masi, 1997, introdução). No interior desse novo contexto nascem empresas cujas características se coadunam ao contorno geral acima delineado. O novo capitalismo liberal se constitui 23 como um mercado global estruturado pelas avançadas tecnologias contemporâneas, com destaque para a ciência dos computadores e a informação digitalizada. Nesse contorno, o tempo adquire um significado radicalmente diferenciado. No mercado neoliberal hiperdinâmico, o “capital impaciente”2 exige mudanças constantes da empresa que sejam compatíveis com a necessidade de retorno rápido. Podemos dizer mesmo que, em nenhum outro momento da história, a produção foi tão intensa e exclusivamente motivada pelo consumidor, demandando um esforço de adaptação constante por parte da empresa e de seus funcionários. Por outro lado, o capital especulativo tende a conceder enormes benefícios aos velozes rendimentos financeiros, enquanto não são adequadamente valorizados os rendimentos oriundos do trabalho propriamente dito (Dejours, 2000, cap. 3). Por essas razões, as instituições empresariais neoliberais sofrem reprojeções ininterruptas, buscando atender às reivindicações de uma economia de curtíssimo prazo. Para dar conta da mobilidade necessária, a arquitetura dessas organizações não se dispõe mais num esquema piramidal hierarquizado, como na indústria, passando a ser desenhada como redes móveis que não cessam de redefinir sua configuração. O trabalho em equipe é a dinâmica proposta para a operação das redes na empresa do “capitalismo 1. Braudel, citado por De Masi (1997, p. 15). 2. Harrison, citado por Sennett (2000, p. 22). Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 154, fev. 2002 24 Eduardo Rozenthal flexível”. Essa modalidade de trabalho implica um gerente que deixa de ser o representante da diretoria para colocarse “ao lado” do trabalhador. Nessa topografia, que introduz uma simetria ilusória, o gerente é aquele que supostamente dá condições, multiplicando as possibilidades do trabalhador e não mais o exigente fiscal, delegado dos diretores. Com esse procedimento, as relações de poder tornam-se ilegíveis e a dominação do alto perde a forma nas organizações empresariais neoliberais. Essa situação acarreta uma maior concentração do poder na empresa, posto que sua estratégia descentralizadora permite que o controle se faça sentir – e seus mandos cumprir – ao mesmo tempo que impede que seja identificado como tal (Sennett, 2000, cap. 3). Como conseqüência dessas estratégias, esvaziam-se as discussões referentes ao trabalho na nova empresa. O trabalhador não mais encontra amparo para suas reivindicações profissionais nos sindicatos enfraquecidos nem, amplamente, na sociedade como um todo. Não é mais o trabalho ou as condições da produção que ocupam o centro do interesse empresarial. Para além do objetivo prioritário do lucro, esse deslocamento vai dar relevo às discussões acerca das técnicas de gestão para a otimização da organização administrativa da empresa. A decorrência dessa reviravolta é um quadro de desqualificação das questões referentes ao trabalho e ao trabalhador da empresa neoliberal cujos interesses econômicos, sociais ou profissionais decrescem em importância para a sociedade. Em resumo, o tempo do imediato, a necessidade de adaptação à demanda variável do consumidor e a ilegibilidade do poder, associados à ausência de interesse social pelo trabalho, irão requerer um novo perfil psicológico do trabalhador integrante da empresa no neoliberalismo. O que dele se exige é que seja “flexível”, sendo capaz de ação rápida, de abertura às variações constantes do mercado e de uma prontidão para assumir os riscos da contínua mudança (Ibid.). Assim, não é difícil compreender o nível de sofrimento que acomete o trabalhador na contemporaneidade. Ansiedade, confusão, ausência de ligação estável com os colegas, caracterizam o sofrimento diário desse funcionário que se sente degradado, impossibilitado de compreender suas próprias emoções. As tarefas na empresa são fáceis de cumprir, porém escondem uma estrutura lógica profunda e indiscernível. Tudo parece semelhante na superfície das relações empresariais (sociedade sem classes, moda, jargão, comum visão de mundo), mas há um plano sutil que esconde as diferenças, pressentidas a cada instante, no mesmo momento em que se dissimulam (Sennett, 2000, cap. 4). Há, ainda, a convivência diária com o risco que dificulta a tomada de decisões pessoais, estabelecendo um nível de insegurança insuportável. Por último, a ausência da autoridade cria um vazio que tende a ocultar a imposição do poder que, invisível, dilata sua potência de coerção sem, no entanto, oferecer ao trabalhador o conforto da responsabilidade reasseguradora da autoridade. Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 154, fev. 2002 O trabalho entre resistência e desistência... Assim, o modelo gerencial imposto pelo capitalismo neoliberal irá causar uma profunda desestabilização psíquica do trabalhador. Podemos dizer que a integridade da identidade do funcionário encontra-se inexoravelmente atingida pelos métodos de gestão utilizados, compatíveis com a dinâmica atual do capital. Uma política de ameaças que, com freqüência não se explicitam, associada a um sentimento de desamparo incompreensível, não poderia menos que induzir a produção de um estado genérico e global de medo. Ao medo genérico e generalizado vem acrescentar-se o medo objetivo que invade o trabalhador diante dos artifícios da chamada “reengenharia”, rubrica sob a qual as demissões em massa são administradas pela empresa (Sennett, 2000, cap. 3). Confrontados com essa análise das condições psicológicas do trabalhador, no interior do capitalismo atual, pode-se, com justa razão, empreender um questionamento a respeito da estabilidade do novo sistema empresarial. Qual será a estratégia neoliberal capaz de manter as empresas funcionando de acordo com a nova lógica do trabalho, uma vez que o trabalhador se encontra tão fortemente penalizado? Qual o mecanismo que protege a dinâmica da empresa contra a resistência dos seus funcionários, subme- 25 tidos a condições psicológicas gravemente aversivas? Segundo Dejours (2000), a defesa da economia atual se faz pela via da sedação do medo que, por sua vez, decorre da “banalização da injustiça”. A seguir, empreenderemos uma interpretação desse “mecanismo de defesa”, introduzindo, ainda, uma discriminação quanto às possíveis modalidades do medo. Tal discussão nos parece relevante para uma possibilidade de compreensão mais ampla a respeito da estratégia de proteção, mantenedora da estabilidade na nova empresa, bem como para o pensamento da reapropriação do trabalho como prazer. Dejours (2000, cap. 1) argumenta que a “banalização” opera pela dissociação entre injustiça e sofrimento. Quando o sofrimento com o qual nos deparamos não remete para a associação com a injustiça, tendemos a atribuir ao sistema, à economia ou mesmo ao destino, a causa daquele infortúnio ou do desafortunado. Isso porque diante do, digamos, sofrimento do desempregado, o trabalhador empregado não se sentirá invadido pelo sentimento moral da culpa. A disjunção entre os elementos do par sofrimento/injustiça terá como conseqüência a evasão da responsabilidade pessoal do trabalhador.3 A banalização se implementa, finalmente, pelo recurso à virilidade, compreen- 3. Para a operação do complexo mecanismo da banalização pelas práticas de gerência empresarial tais como a “distorção comunicacional”, com o manejo da “mentira” e da “publicidade”, bem como o “apagamento dos vestígios”, remeto o leitor a Dejours (2000, cap. 4). Para o que interessa a esse ensaio, cabe apenas explicitar os movimentos subjetivos envolvidos no processo que configura a base psicológica desse mecanismo protetor. Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 154, fev. 2002 26 Eduardo Rozenthal dida como a capacidade de cometer violência contra os dominados, em nome do exercício do poder. A virilidade será apreciada no interior da empresa contemporânea como a verdadeira virtude da coragem, recebendo da diretoria – e, já como efeito da defesa, dos próprios trabalhadores – um extremo reconhecimento moral e pecuniário (Dejours, 2000, cap. 5). Não nos parece exagerado considerar a virilidade como um atributo diferencial da moral neoliberal. Valorizada como ideal que se associa à coragem, a virilidade se opõe ao medo, o qual, por sua vez, se articula à covardia e à fuga.4 A banalização como mecanismo de defesa da empresa neoliberal terá na valorização da virilidade a sua condição de possibilidade correspondendo, então, à defesa individual contra o “sofrimento moral”. Porém, eis o mais importante, pela atuação do quadro moral articulado à banalização da injustiça e do sofrimento – próprio e do outro –, o medo, causa de transtornos ao cumprimento das tarefas empresariais impostas, tenderá ao desaparecimento.5 De acordo com Dejours (2000, cap. 3), há um limite a partir do qual o medo, “bem administrado”, será indutor de disciplina e de obediência, concorrendo para uma maior eficiência do trabalho, tornando-se paralisia das organizações e das empresas. O excesso de ordem, gerado pela radicalização do medo, impede a mobilização da inteligência individual, atributo decisivo para o sucesso do desempenho funcional. A banalização, como defesa contra o sofrimento, funciona, assim, como regulador do medo pela neutralização do excesso paralisante. A QUESTÃO DO MEDO SOB O PONTO DE VISTA DA PSICANÁLISE Na tentativa de clarificar as estratégias de administração do medo, para colocálo a serviço da empresa do novo capital, utilizaremos o referencial teórico psicanalítico. A hipótese da psicanálise é de que o medo excessivo e desprazeroso desaparece do domínio da percepçãoconsciência somente se puder reaparecer sob a forma de quantum de afeto que investe uma representação de desejo. De acordo com o pensamento de Freud, o desejo corresponde à realidade psíquica, e a figuração (mais ou menos deformada) de sua satisfação pelo fantasma constitui o conteúdo de um segundo domínio do psiquismo que se denomina, propriamente, inconsciente (Freud, 1900[1899]). Para os enunciados de Freud, o recalque é o mecanismo cujo objetivo principal é neutralizar o aumento do investimento afetivo, causador de 4. Para um estudo detalhado do medo e, particularmente, para a apreciação da relação entre o medo e a moral, remeto o leitor ao interessante texto de Delumeau (1989, introdução). 5. O desaparecimento do medo, contudo, não será capaz de eliminar o sofrimento, o qual reaparecerá associado, então, ao mal-estar indiscriminado, ao estresse, à depressão ou à psicastenia. Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 154, fev. 2002 O trabalho entre resistência e desistência... desprazer. Sua dinâmica consiste em desligar o investimento libidinal da representação (pré-) consciente que lhe corresponde, a qual, sem força para manter-se, será recalcada, tornando-se inconsciente (Freud, 1915). O medo excessivo que invade o trabalhador será, assim, pelo recalque, desligado dos motivos representados (pré-) conscientemente, os quais deixarão de ser notados pela percepção. Porém, o conteúdo recalcado não é neutro. Ao contrário, a economia do desejo associa-se, necessariamente, à realidade da percepção, abrindo espaço para o comportamento repetitivo que se denomina sintoma6. Dessa forma, o referencial teórico da psicanálise possibilita afirmar que o excesso de medo, causador de sofrimento, se esquiva da vida (pré-) consciente para ser o motor inconsciente do sintoma cuja operação atende, em última análise, aos interesses da gerência empresarial.7 De acordo com essa compreensão, podemos supor que a ausência de resistência ao cumprimento das propostas gerenciais se deve à tendência à repetição, introduzida pelo comportamento sintomático. Contudo, há um excesso afetivo, que Freud irá distinguir do medo pela sua capacidade de surpreender o funcionamento psíquico, deixando-o, por assim 27 dizer, inoperante. Trata-se da angústia automática que se origina de situações pulsionais extremas que não liberam qualquer espécie de sinal que permita o reconhecimento do perigo por parte do psiquismo. Esse outro afeto, compatível com o sentimento de horror, inviabiliza a ação defensiva do sujeito pelo recalque, expressando-se sob a forma de pânico e imobilidade (Freud, 1926[1925]). Contra a angústia traumática, a banalização como defesa não serve de nada. Contudo, essa situação-limite tampouco será capaz de gerar qualquer forma de resistência às imposições da gestão gerencial, uma vez que qualquer atividade do sujeito encontra-se inviabilizada. A esses casos correspondem as patologias graves do trabalhador, tais como a irrupção de surtos psicóticos ou a prática do suicídio. Nossa hipótese virá complementar o quadro acima pela suposição de uma outra espécie de medo. Ao contrário das modalidades de medo e angústia descritas, essa nova categoria de medo inscreve a possibilidade da criação do sujeito – o que ele produz, mas também a produção de si mesmo. Á medida que criação opõe-se à repetição, esse medo introduz a condição subjetiva da resistência – pela ação no trabalho – às práticas defensivas da empresa neoliberal. Já vimos que as 6. A ação sintomática se opõe aos processos criativos que não emanam do recalque, mas são introduzidos pelo funcionamento do dispositivo da sublimação (Freud, 1914). 7. A rigor, não se pode falar de “medo inconsciente”, mas de quantum de afeto que investe uma representação inconsciente. Denominamos, assim, o investimento inconsciente por sua referência ao afeto (pré-) consciente que deu origem ao recalque (Freud, 1915). Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 154, fev. 2002 28 Eduardo Rozenthal defesas estratégicas da organização associam-se às prescrições determinadas pelas relações de poder que estimulam a repetição pela submissão aos regulamentos. No entanto, quando agir é sinônimo de criar – diferente do acting out repetitivo do sintoma –, o sujeito afirma suas decisões sem apelar para qualquer espécie de álibi ou garantia. Sem referências que permitam a comparação ou identidades que franqueiem a avaliação, decidir será equivalente à suspensão de todo o saber que possa afiançar a escolha. Decidir sem tributar a alguém ou a algo o suporte para a ação corresponde a não buscar culpados (nem em si mesmo) pelas conseqüências da decisão. Somente a responsabilidade pelo desejo inconsciente poderá configurar a tradução radical da condição de possibilidade de uma ação inédita. Contudo, para que a ação se marque pelo caráter do novo, será preciso que o sujeito desinvista o território sintomático e repetitivo do qual extrai o gozo (Valas, 2001). Somente pela via de uma violência que, num primeiro momento, toma o corpo do próprio sujeito como objeto, a atitude de emancipação poderá conduzir a um novo mapeamento dos investimentos libidinais. Slavoj Zizek (2001) apresenta como exemplo de “violência emancipadora” o caso de Andrea Yates, a modelar mãe americana que, um dia, após a saída do marido para o trabalho, afoga seus cinco filhos pequenos na banheira de casa. A análise de Zizek aponta, primeiramente, a pobreza da discussão psiquiátrica do caso e a redundância das razões que as feministas, os teóricos da “sociedade de risco” ou os conservadores poderiam apresentar. A seguir, irá propor as linhas de força de uma compreensão que exibe um quadro dilemático, interno ao contexto ideológico. Não se trata, portanto, para a análise do filósofo, de um conflito entre uma ideologia severa e a reação oposta por parte do sujeito. Tudo se passa na ordem do dilema que é proposto ao sujeito pelas próprias injunções ideológicas. “Seja feliz e encontre sua realização dentro do inferno de sua casa ...” traduz bem o contorno de uma prescrição impossível de cumprir. Porém, eis o brilho do argumento encontrado, a falta de alternativa se coloca para o sujeito a partir da sua adesão libidinal à lógica hegemônica do sistema. Somente a violência cega, num primeiro momento, será capaz de retirar o sujeito do campo de trocas libidinais que o inclui e se abastece de seus investimentos. A “libertação da prisão ideológica”, esta última geradora de gozo perverso, terá na violência contra o corpo próprio – dor – e na coação psíquica – medo – a condição de possibilidade para a emancipação libidinal do sujeito. Nessa mesma linha argumentativa, Deleuze (1983) opõe sadismo a masoquismo para mostrar que não se trata de qualquer relação de contrários, mas de um combate entre duas diferentes lógicas. Com seu comportamento de autoflagelação, o masoquista impõe à testemunha sádica, um sentimento de frustração, despojando-a de sua capacidade Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 154, fev. 2002 O trabalho entre resistência e desistência... de infligir dor e medo. Dessa maneira, o masoquista não se institui como vítima do sádico, tornando-o meramente espectador de uma cena que não lhe pertence, coadjuvante menor da tragédia cujo protagonista é ele próprio. Já a lógica do sadismo é outra, baseada na relação de poder ou de dominação sobre a vítima. O carrasco e sua vítima estão aí implicados numa relação cujo formato assimétrico encobre uma simetria libidinal à medida que ambos irão usufruir dos gozos respectivos de seus sintomas perversos diferenciados. Somente pelo masoquismo,8 compreendido na vertente de uma violência necessária, será possível desmantelar a organização libidinal, no sentido da emancipação do sujeito e, conseqüentemente, da resistência no trabalho. O momento da ruptura com o quadro libidinal e com o correlato contexto ideológico hegemônico tem como condição subjetiva de possibilidade a dor e o medo. Na verdade, medo e dor são expressões de um grau de violência primária, necessária para a resistência ao sistema, na relação a si (Foucault, 1984). Nessa direção, a responsabilidade irrestrita pelas escolhas no âmbito do trabalho inscreve a afirmação radical do medo e da dor na correlação com a responsabilidade pelo desejo inconsciente. Reintroduzir o medo e a dor, pelo viés da responsabilidade extrema por um lugar va- 29 zio onde nada se sabe de si, equivale a resistir à banalização da injustiça. Nesse novo contexto, o sujeito será responsável por toda e qualquer ação que efetuar ou pela totalidade das decisões que vier a tomar, sem possibilidade de recurso ao comportamento repetitivo do sintoma ou à alienação psíquica apassivadora da psicose. A ausência radical de garantia ou de referência para a ação constitui a base da lógica do processo de criação que irá produzir a resistência às ameaças neoliberais. O desejo recalcado, marca da defesa inconsciente diante da demanda insuportável e que funda seu potencial operativo sobre a impotência, dará lugar ao desejo como criação ou produção de si e como resistência à manipulação pelas estratégias de defesa do controle empresarial. Criar, finalmente, pressupõe a ausência de garantia para a ação, a carência de fundamento ou de segurança do acerto do que se empreende. Nem mesmo os fins propostos poderão justificar as decisões criativas. Assim, aquele que trabalha deverá estar preparado para sofrer as conseqüências de suas escolhas. A crítica, o fracasso e o erro são decorrências possíveis para o trabalhador que se responsabiliza pelo que faz. A responsabilidade substitui a garantia que não há. Somente a capacidade de sentir medo e afirmar a dor poderá sustentar uma ação 8. Trata-se do “masoquismo primário” ou “erógeno”. Para maiores esclarecimentos, remetemos a Freud (1924). Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 154, fev. 2002 30 Eduardo Rozenthal que, pela ausência de qualquer álibi que a avalize, torna-se sinônimo de criação. Trabalhar é também sentir medo ou resistir, sem desistir, na contramão da repetição inconsciente e submissa ou do desequilíbrio alienante da loucura. REFERÊNCIAS DEJOURS, Christophe. A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: FGV, 2000. DELEUZE, Gilles. Apresentação de SacherMasoch: o frio e o cruel. Rio de Janeiro: Taurus, 1983. DELUMEAU , Jean. História do medo no Ocidente: 1300 – 1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. DE MASI, Domenico. A emoção e a regra: os grupos criativos na Europa de 1850 a 1950. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1984. FREUD, Sigmund (1900[1899]). 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