Freud e Winnicott
Transcrição
Freud e Winnicott
Ana Lila Lejarraga Freud e Winnicott: do apaixonamento à capacidade de amar A proposta deste artigo é comparar alguns aspectos da teoria freudiana do amor com a concepção de Winnicott sobre a capacidade de amar. A teorização de Freud, baseada no modelo do amor romântico, ressalta seu caráter repetitivo e narcísico, enquanto a perspectiva winnicottiana aborda outras dimensões do fenômeno amoroso que não derivam da idealização passional. Palavras-chave >Palavras-chave Palavras-chave: Amor, apaixonamento, amor romântico, narcisismo, ternura pulsional > revista de psicanálise > artigos> p. 42-49 ano XV, n. 164, dez./2002 - ano XVI, n. 165, jan./2003 This article presents a comparison between aspects of Freud’s theory of love and Winnicott’s conception of the capacity to love. Freud’s theory, based on the model of romantic love, emphasizes its repetitive and narcissistic feature, in opposition to Winnicott’s approach, which analyses other dimensions of the loving phenomena, not caused by the idealization of falling in love. Key words >Key words: Love, falling in love, romantic love, narcissism, tenderness >42 É comum, na psicanálise, fazer-se referência à teoria freudiana do amor, como se existisse o “amor”, eterno e imutável, como o cantam os poetas. No entanto, os amores variam, como as outras paixões humanas, dependendo das culturas e das épocas históricas. No final do século passado, a imagem do amor era indissociável do amor romântico, e nessa imagem se fundiam a paixão, a idealização sentimental, a ternura e o desejo erótico. No contexto cultural freudiano, os dois movimentos dominantes eram o romantismo e o neo-iluminismo. Freud partici- pa do confronto entre essas correntes de pensamento, alternando e integrando ambas perspectivas numa tensão incessante. Desse modo, suas teorias sobre o amor não escaparão desse embate cultural, sendo predominantemente românticas – como era o modelo amoroso hegemônico na época –, mas atravessadas pelo ideal cientificista de encontrar um fundamento material e objetivo de todos os fenômenos. Freud recorre ao mito de Narciso – uma história de amor que culmina em morte – para falar do amor. A dinâmica amorosa parecem sofrer de um desencontro radical: para amar é necessário preservar a integridade do corpo da pessoa amada, mas só é possível gozar despedaçando o corpo desejado. Assim, a paixão amorosa, porque aspira a uma unidade impossível, está fadada ao fracasso. O apaixonamento tem então um caráter ilusório em, ao menos, três sentidos: primeiro, porque projeta no objeto os próprios ideais narcísicos conferindo-lhe perfeições inexistentes; segundo, porque os objetos escolhidos serão sempre meros substitutos dos objetos incestuosos primordiais; e, terceiro, porque acena imaginariamente com uma completude irrealizável. A metapsicologia do amor centrada no narcisismo enfatiza o caráter impossível e ilusório da plena realização amorosa, constituindo uma magistral metáfora da paixão romântica. Entretanto, pensamos que essa teorização apresenta alguns impasses, dos quais pretendemos destacar certos aspectos. Antes de tudo, vemos que o amor na teoria freudiana tem um caráter conservador e repetitivo, aspirando a restabelecer um estado anterior. Todos os amores são fiéis ao passado: procuram restaurar uma plenitude amorosa perdida e são guiados pelas marcas inconscientes dos primeiros objetos. Como Freud dizia, “... todo encontro amoroso é um reencontro” (Freud, 1905, p. 202). Assim, a metapsicologia freudiana do amor enfatiza seu caráter regressivo e repetitivo, não prestando atenção ao que este poderia trazer de novo, nem a sua dimensão criativa. Acreditamos que o pensamento de D. Winnicott, com sua original concepção da criatividade, da ilusão e da transicionali- pulsional > revista de psicanálise > artigos ano XV, n. 164, dez./2002 - ano XVI, n. 165, jan./2003 se compreende em torno dos processos de idealização e das tentativas de restauração do estado narcísico. O estar apaixonado consiste num transbordar da libido narcisista sobre o objeto, tendo a virtude de cancelar repressões e restabelecer perversões (Freud, 1914). O objeto sexual é elevado ao nível do ideal, já que possui o que falta ao eu para alcançar seu próprio ideal. O apaixonamento representa, assim, uma via imediata de acesso ao ideal e à onipotência narcísica. O investimento libidinal do objeto amado torna o eu apaixonado frágil e dependente do amado. O trabalho de idealização outorga ao objeto virtudes e perfeições imaginárias, deixando “cego” o eu apaixonado. E na medida em que o objeto é colocado no lugar do ideal, o amante tornase um humilde servo do objeto idealizado. Por meio da idealização do objeto de amor, e da aspiração de união com ele, o eu pretende a fusão narcísica, a completude. O amor, por sua natureza narcísica, aspira a um reencontro com os primeiros objetos, perdidos para sempre, e a uma plenitude impossível. A paixão amorosa nasce de um eu constituído como uma unidade, de um corpo imaginariamente unificado, e aspira à fusão com o objeto amado, também imagem totalizada, corpo completo e ideal. Essa fusão é irrealizável já que, no apogeu do encontro amoroso, na união dos corpos, desvanece-se a miragem dessas totalizações imaginárias e desmorona-se a possibilidade que dois conformem uma unidade. E a pessoa amada, que precisa ser total na ilusão do amor, dispersa-se em mil sensações e prazeres parciais. Deste modo, os caminhos da realização da aspiração amorosa e da satisfação sensual >43 pulsional > revista de psicanálise > artigos ano XV, n. 164, dez./2002 - ano XVI, n. 165, jan./2003 >44 dade, constitui uma perspectiva enriquecedora para abordar essa dimensão, pouco explorada por Freud, do amor como criação. A concepção de Winnicott do impulso criativo remete à noção da criatividade primária, experiência pela qual o bebê tem a ilusão de que existe uma realidade externa correspondente a sua própria capacidade de criar. Essa ilusão é propiciada pela mãe quando, no estágio da dependência absoluta, oferece o seio real ao bebê no momento em que ele o alucina, ocorrendo uma sobreposição entre o que é “objetivamente percebido” e o que é “subjetivamente concebido” (Winnicott, 1951, p. 402). Cria-se, assim, um momento de ilusão no bebê, já que a realidade coincide com sua fantasia, enriquecendo-a. A experiência da ilusão e da onipotência é proporcionada pelos cuidados de uma mãe devotada, permitindo ao bebê afirmar seu impulso interno criativo e acreditar na realidade externa, condições para a renúncia gradual posterior a essa onipotência infantil. A partir dessa experiência inicial, se desenvolvem os objetos e fenômenos transicionais, marcados pelo paradoxo, que se continuam no brincar, na arte e na cultura. A experiência da transicionalidade constitui uma área intermediária entre o dentro e o fora, entre a realidade interna e a externa, entre o subjetivo e o objetivo, “mistura” do impulso criativo interno e do “achado” externo. Não se trata de um dado automático, mas de um processo, raiz do simbolismo e das relações objetais, que depende das condições do meio ambiente para se constituir. A experiência da transicionalidade se prolonga ao longo da vida como um espaço de não integração, de “recreio”, imprescindível para a expressão do gesto espontâneo e da criatividade. Para Winnicott, a criatividade constitui um impulso espontâneo natural do indivíduo, relacionado ao estar vivo e ao sentir-se real. Esse gesto espontâneo, no estágio inicial da dependência absoluta, é agressivo e implacável. Contudo, essa agressividade não tem uma conotação destrutiva ou violenta, sendo quase equivalente de atividade. O bebê é agressivo ou “cruel” com as pessoas que ama porque ainda, no estágio da não integração, não se sente responsável pelas suas ações nem percebe que o objeto atacado é o mesmo que o amado. A agressividade, expressão do verdadeiro self e da força vital, “faz parte da expressão primitiva do amor” (Winnicott, 1950, p. 289). Entretanto, se essa agressividade espontânea é reprimida, seja por invasão ou por omissão, haverá perda da espontaneidade e da capacidade de amar. Aos poucos, a criança vai integrando a mãe objeto de seus estados excitados e a mãe ambiente que cuida e propicia os estados tranqüilos, desenvolvendo a capacidade de concernimento com os possíveis danos feitos à pessoa amada. Se a mãe sobrevive à espontaneidade agressiva do bebê, e aceita seu concernimento e reparação, a criança aprende a dar e reparar estabelecendo-se um ciclo benigno, de destruir e rep achucar e curar, etc. (Winnicott, 1954). A criança passa a ter confiança no ambiente, que propicia e reafirma sua criatividade. Por outro lado, a mãe suficientemente boa, que na dependência absoluta espera-se que tenha uma adaptação perfeita às necessidades psíquicas do bebê, em rica entre essas dimensões do fenômeno amoroso. Curiosamente, a diferença entre o amor e o apaixonamento, aceita e reconhecida na linguagem ordinária, foi pouco tematizada pela psicanálise. Foi P. Aulagnier uma das poucas psicanalistas que apontaram uma diferença qualitativa entre ambos os fenômenos (Aulagnier, 1985). Ela considera que a paixão é o protótipo da relação de assimetria, não compartilhada, caracterizada pela supremacia da vivência do sofrimento, enquanto o amor seria uma relação simétrica e recíproca, que pressupõe a ilusão de uma partilha. Como excederia os limites do presente trabalho abordar toda a riqueza de sua teorização, só tomaremos, para fins deste estudo, a diferença entre o investimento exclusivo no objeto da paixão e o investimento privilegiado no objeto do amor. A paixão amorosa é um estado extraordinário em que há um investimento exclusivo no objeto amado, o que significa uma concentração de pensamentos e imagens no objeto, não sendo possível deixar de pensar nele. Esse investimento exclusivo corresponde a um tipo de idealização maciça e absoluta do objeto; corresponde à projeção no objeto do eu ideal. Assim, na paixão, o outro seria pleno, completo, idealizando a possibilidade do objeto proporcionar a completude. Em função disso, quando a paixão amorosa é correspondida vive-se imaginariamente a plenitude, a ilusão de uma felicidade sem falhas, a sensação da onipotência narcísica restaurada. Mas a ausência ou separação do objeto da paixão não permite mediações ou outros objetos substitutos, jogando o sujeito na mais completa desolação. pulsional > revista de psicanálise > artigos ano XV, n. 164, dez./2002 - ano XVI, n. 165, jan./2003 um momento posterior espera-se que falhe nesta adaptação, frustrando-o parcialmente. A agressividade precisa encontrar oposição para poder ser experimentada e satisfeita, para poder ser direcionada para os objetos e vivida como raiva. Desse modo, com uma medida adequada de frustração da realidade, a criança pode experimentar sua agressividade afirmando seu verdadeiro self e seu impulso criativo, reparando no ciclo benigno os danos causados. Quando o ciclo benigno é rompido (seja porque o ambiente não sobrevive aos ataques, seja porque não aceita a reparação, porque frustra excessivamente ou nunca frustra, etc.) a capacidade de amar e ter raiva será inibida, inibindo-se o impulso espontâneo criativo (Winnicott, 1963). O amor consiste, assim, na possibilidade de expressar o self verdadeiro na relação com o outro, aceitando sua diferença, sua própria espontaneidade e criatividade. O amor não é ilusório no sentido freudiano (tentativa ilusória de restituir uma plenitude perdida), mas no sentido da experiência da ilusão winnicottiana, já que o objeto amado é criado subjetivamente, resulta do impulso espontâneo, sendo ao mesmo tempo objetivo e externo. Desse modo, o amor é um fenômeno transicional, uma experiência paradoxal onde as dicotomias do dentro e fora, subjetivo e objetivo, etc. se diluem, e onde o sujeito pode se sentir real e criativo. Um outro impasse na teoria freudiana do amor consiste na indistinção entre as noções de amor e de apaixonamento. Como no amor romântico se integram a idealização passional, o amor e a sexualidade, Freud constrói a metapsicologia do amor sem estabelecer uma clara distinção teó- >45 pulsional > revista de psicanálise > artigos ano XV, n. 164, dez./2002 - ano XVI, n. 165, jan./2003 >46 No amor, no regime do ideal do eu, haveria um investimento privilegiado no objeto amado, o que significa que o objeto ocupa um lugar privilegiado como fonte de prazer. Mas esse privilégio permite outros investimentos, não implicando uma concentração desejante na figura do amado. O amor aponta para o reconhecimento do outro, percebendo sua existência como sujeito autônomo, enquanto que na paixão o outro é só imagem especular. O amor mitiga a aspiração narcísica, aceitando sua impossibilidade radical e criando outras fontes de prazer. O apaixonamento é um processo transitório cuja característica é a transformação, já que o tempo impede o absoluto e a infinitude o êxtase amoroso. O amor implica uma experiência da decepção, de sentir na própria carne a impossibilidade de viver em êxtase ou de atingir a plenitude narcísica. Diferente da paixão, que é vivida como uma irrupção súbita, o amor é longamente construído. Inicia-se a desidealização do objeto amado porque esse objeto não é mais promessa de uma felicidade plena. O fascínio perde intensidade porque o objeto perdeu o brilho de representar o ideal sem falhas, mostrando seus limites como garantia de plenitude. O amor é concebido, assim, como contrapartida do modelo do apaixonamento, como uma forma mitigada de aspiração narcísica. O amor pressupõe a mediação e o recalque, a atenuação de um prazer absoluto e mortífero. Entendemos que as contribuições de Winnicott podem nos ajudar a pensar o amor sem partir do modelo do apaixonamento, e sem que o amor constitua uma forma menor ou atenuada do gozo passional. Winnicott explora terrenos não desenvolvidos por Freud, valorizando o amor nas primeiras trocas entre o bebê e o meio ambiente, tanto da perspectiva dos indispensáveis cuidados amorosos do ambiente quanto do desenvolvimento da capacidade de amar no sujeito. A expressão primitiva do amor inclui a agressividade, que é quase um equivalente da atividade ou da motilidade da força vital. Como nesse momento inicial ainda não existe integração nem organização egóicas, os impulsos amorosos coexistem com os impulsos ativos e impiedosos que não tem consideração com o objeto. Devemos diferenciar, nesse estágio inicial, o amor primitivo da criança da devoção amorosa materna, condição indispensável para a experiência dos estados de tranqüilidade, a confiança no ambiente e a própria constituição subjetiva. A ênfase de Winnicott reside nos cuidados amorosos que o ambiente pode brindar, já que o amor infantil não poderia ser definido muito além da total dependência do bebê e de seu impulso vital criativo. Nesse estágio inicial, o fundamental é o processo silencioso da integração, personalização e adaptação à realidade que realiza o bebê, sustentado pela provisão do amor materno, e condição de possibilidade das conquistas posteriores (Winnicott, 1945). No estágio intermediário, a criança, em condições favoráveis, desenvolve a capacidade de se preocupar, reparar e construir uma relação afetiva. A criança se torna responsável e preocupada com o objeto amado, integrando a frustração e a raiva no sentimento amoroso. A criança passa a reconhecer o outro como uma pessoa total e aprende a cuidar dele, o que constitui a base das relações amorosas. Entendemos que o amor uma concepção da ternura e das relações objetais precoces irredutíveis ao pulsional. Considera ele que devemos distinguir o desenvolvimento pulsional, que diz respeito às pulsões parciais auto-eróticas, e o desenvolvimento relacional, que diz respeito às relações de objeto amorosas (Balint, p. 52). Para Balint, os modos de amar não dependem dos objetivos e fontes das pulsões parciais, já que se trata de processos diferentes. Uma coisa seria, para o autor, o desenvolvimento do erotismo e outra, o desenvolvimento do amor. A criança apresenta, inicialmente, na teoria balintiana, um desejo passivo de ternura, ou desejo de ser amada, cuja satisfação é uma sensação calma e tranqüila de bemestar. Esse desejo de ternura passivo, que Balint denomina também de amor de objeto passivo ou de amor primário, consiste no desejo de ser amado e cuidado sempre, de ser atendido em todos os desejos, interesses e necessidades, de forma incondicional, sem ter que dar nada em troca. O fato de se tratar de um “desejo passivo de ternura” (Ibid, p. 62) não significa que o mesmo seja exprimido de forma atenuada ou passiva. A demanda infantil de ternura tem um caráter apaixonado, e a reação à ausência de gratificação dessa demanda suscita respostas passionais e agressivas. Balint considera que embora Freud tenha apontado duas facetas da ternura – como a corrente mais antiga e como sexualidade inibida quanto ao alvo – ele só se preocupa em teorizar a segunda faceta. Da perspectiva balintiana, temos duas formas de ternura: a ternura ativa dos adultos e a ternura passiva infantil. A ternura adulta se refere àquela que surge quando o adulto deseja amar sensualmente, pulsional > revista de psicanálise > artigos ano XV, n. 164, dez./2002 - ano XVI, n. 165, jan./2003 pode ser concebido como a capacidade de reconhecer o outro, de cuidar do outro, e permanecer, ao mesmo tempo, espontâneo e criativo. Nesse sentido, a noção de amor não remeteria a uma inibição ou recalque de uma aspiração narcísica absoluta, nem derivaria de uma idealização passional. O amor ou a capacidade amorosa surge de um longo processo de trocas entre o indivíduo e seu ambiente, como uma afirmação do gesto criativo conjuntamente com a descoberta do outro. Uma outra questão que gostaríamos de destacar, na releitura da metapsicologia do amor, concerne ao estatuto da ternura. A noção de ternura, ingrediente fundamental do apaixonamento, segundo Freud, é definida como uma pulsão sexual de alvo inibido, derivada da interdição da sexualidade. Entretanto, em 1912, Freud definia a ternura como a corrente mais antiga e originária, anterior à sensualidade. Como explicar freudianamente que a ternura seja uma pulsão de alvo inibido – o que pressupõe uma restrição do alvo direto e, portanto, alguma forma de interdição – e a existência da ternura na infância, desde as origens? Frente a esse impasse, sucessores de Freud, como Ferenczi, Balint e Winnicott, desenvolveram uma noção de ternura que não decorria da inibição do funcionamento pulsional. Ferenczi, com sua noção de linguagem da ternura contraposta à linguagem da paixão nos ajuda a pensar a ternura positivamente, como uma modalidade da vida erótica infantil, diferente do erotismo passional adulto, sem a conotação de inibição ou frustração da concepção freudiana (Ferenczi, 1933). Balint, discípulo de Ferenczi, desenvolve >47 pulsional > revista de psicanálise > artigos ano XV, n. 164, dez./2002 - ano XVI, n. 165, jan./2003 >48 mas não podendo atingir seu objetivo se contenta com aproximações do mesmo, com o alvo inibido. A ternura adulta não existiria antes do recalque. Entretanto, a ternura infantil existe durante toda a vida, sendo um componente imprescindível de toda relação amorosa. Em Winnicott a ternura também é positivada como uma modalidade de troca precoce entre o bebê e a mãe, não derivando da inibição do pulsional. No estágio da dependência absoluta convivem os estados tranqüilos e excitados do bebê, que correspondem a duas funções de mãe: a mãe-ambiente, amada pelos cuidados que propicia e a mãe-objeto, atacada pela excitação pulsional. Aos poucos o bebê vai reconhecendo que a mãe dos estados calmos; a mãe do amor calmo ou da ternura, e a mãe dos estados excitados; a mãe do amor excitado ou da paixão (O’Dwyer de Macedo, p. 56), são uma mesma pessoa. Se a mãe for suficientemente boa e sobreviver a seus impulsos eróticos e impiedosos, o bebê irá integrando, num processo, suas experiências pulsionais e suas experiências amorosas ternas. Winnicott valoriza, assim, as experiências de ternura, bem-estar e tranqüilidade, que são de início independentes da lógica das pulsões parciais, na constituição da capacidade amorosa do sujeito. Resumindo, abordamos alguns impasses na metapsicologia freudiana do amor, que seriam: o caráter repetitivo do amor, a indistinção entre as noções do apaixonamento e amor, e a noção da ternura como originária e como inibição do pulsional. Cremos que o pensamento winnicottiano contribui para refletir sobre o caráter criativo do amor, para pensar o amor como uma experiência transicional, um processo de reconhecimento e consideração do objeto amado que não implica necessariamente idealização alienante ou cega e, finalmente, para conceber o amor terno como uma modalidade originária de laço com o outro que não pode ser reduzido ao funcionamento das pulsões sexuais auto-eróticas. Vários autores enfatizaram o caráter radicalmente inovador da releitura metapsicológica de Winnicott, que substitui, nas palavras de Loparic, o paradigma da psicanálise tradicional por um novo, concebendo a constituição subjetiva como um processo de maturação cujo modelo não é o complexo edípico e no qual o peso do recalque é relativizado. Em relação à teoria sobre o amor, entendemos que Winnicott explora terrenos não tocados por Freud. Não poderíamos dizer que se trata de duas perspectivas teóricas opostas do fenômeno amoroso, mas de duas leituras complementares desse fenômeno. Enquanto Freud, mergulhado no romantismo sombrio alemão, teorizava sobre os apaixonamentos impossíveis e trágicos, Winnicott, com outras influências teóricas, aborda a construção positiva da capacidade de amar no sujeito, permitindonos vislumbrar novas modalidades amorosas, talvez ternas e possíveis. Referências AULAGNIER, P. Os destinos do prazer. Rio de Janeiro: Imago, 1985. BALINT, M. Remarques critiques concernant la théorie des organisations prégénitales de la libido. In: Amour primaire et technique psychanalytique. Paris: Payot, 1972. FERENCZI, S. (1933). Confusão de língua entre os adultos e as crianças. In: Escritos psicanalíticos. Rio de Janeiro: Taurus, 1989. Artigo recebido em junho/2002 Aprovado para publicação em novembro/2002 Venha conferir as novidades de Psiquiatria e Filosofia na Livraria Pulsional Rua Dr. Homem de Mello, 446 05007-001 São Paulo, SP Fonefax: 3672-8345 / 3865-8950 / 3675-1190 e-mail: [email protected] Os 10 mais vendidos em outubro de 2002 1o Espinosa, filosofia prática Gilles Deleuze 2o Angústia Vera Lopes Besset 3o Dos benefícios da depressão Pierre Fédida 4o O lugar dos pais na psicanálise de crianças Ana Maria Sigal (org.) 5o Diálogos Gilles Deleuze e Claire Parnet 6o Os gregos e o irracional E. R. Dodds 7o Narcisismo de vida, narcisismo de morte André Green 8o Superego Marta Rezende Cardoso 9o Psicanálise e educação. Questões do cotidiano Renate Meyer Sanches 10o Educação para o futuro Maria Cristina Kupfer pulsional > revista de psicanálise > artigos ano XV, n. 164, dez./2002 - ano XVI, n. 165, jan./2003 FREUD, S. (1905). Tres ensayos de teoria sexual. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1988. v. VII. _____ (1914). Introducción del narcisismo. Op. cit. v. XIV. _____ (1921). Psicología de las masas y análisis del yo. Op. cit. v. XVIII. LOPARIC, Z. Winnicott: uma psicanálise não-edipiana. In: Percurso, Revista de Psicanálise, ano IX, n. 17, 2o semestre de 1996. O’DWYER de MACEDO, H. Do amor ao pensamento. São Paulo: Via Lettera, 1999. WINNICOTT, D. W. (1945). Desenvolvimento emocional primitivo. In: Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2000. _____ (1950). A agressividade em relação ao desenvolvimento emocional. Op. cit. _____ (1951). Objetos transicionais e fenômenos transicionais. Op. cit. _____ (1954). A posição depressiva no desenvolvimento emocional normal. Op. cit. _____ (1963). O desenvolvimento da capacidade de se preocupar. In: O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. >49