Tirania da Contingência - Tirania da Contingencia

Transcrição

Tirania da Contingência - Tirania da Contingencia
TIRANIA DA
CONTINGÊNCIA
E. M. Pastore
Copyright © 2015 by E. M. Pastore
Todos os direitos desta edição estão reservados a
E.M. Pastore.
Capa
Elder Galvão
Revisor de cena
Oswaldo Pullen
“Algumas pessoas têm sorte, outras não. Toda biografia é uma questão de
chance e, a partir do momento da concepção, a sorte – a tirania da contingência –
comanda tudo”.
Philip Roth, Nêmesis.
Índice
ÍNDICE
PARTE I - ANTES
RETORNO
SETE. OU OITO. OU NOVE.
RESSACA
TU AMOR ES UN PERIÓDICO DE AYER
CORPORAÇÃO
PARTE II - DURANTE
IDA
VÉSPERA
DIA 1
OVOS MEXIDOS
APLICATIVO
DESCABELADA
RODA DA FORTUNA
RECONQUISTA
O SOM DA LOUCURA
PÔR-DO-SOL
OBRIGADO, SÃO PAULO
MICHAEL DOUGLAS
DIA 2
SEU MADRUGA WILL GO ON
CICLONES NASCENDO NO AR
LONGA VIAGEM NOITE ADENTRO
DESAPEGO
COMBINADO
RODA PUNK
BUDA ESTÁ ACENANDO DO OUTRO LADO
CAMAROTE
ESCURO
DIA 3
FORA DE ÓRBITA
ITACARÉ
CAMARÃO
PARADISE
PETISCO DE PEIXE
PISTA DE CORRIDA
ACASO
ADIANTE
VOLTA
PARTE III - DEPOIS
MUNDO REAL
SOCOS NO CÉU
PERGUNTAS OU COMENTÁRIOS?
AGRADECIMENTOS
Erros. Plural. Uma sequência de decisões defeituosas. Não dá pra falar que foi
por acaso. Roberto Salvatore teve pleno juízo sobre seu desregramento recente.
Expôs-se ao risco de uma maneira indefensável. Poderia estar morto.
Inclusive deveria procurar, neste exato momento, o pronto-socorro do festival.
A segunda vez em três dias. Quem sabe a enfermeira não se recorda dele. Uma graça.
“Oi, lembra de mim? Não, dessa vez não estou vomitando os bagos. É meu
joelho. Vai estourar.”
A dor pungente o faz mancar. Por que não foi examinar logo após a solada que
tomou do Gerson?
Salvatore sente raiva do filho da puta, vontade de esmagar o cara. Mas só o que
conseguiu foi fugir.
Se não foi ver o joelho antes, agora é que não vai ser. Ele continua correndo,
desesperado. Salvatore avança pela multidão.
Desvia como pode das pessoas. Esbarra, tropeça, pisa em alguém. A multidão
vai adensando na medida em que o palco principal se aproxima. Luzes pulsam, lá na
frente. No telão, em preto e branco, Eddie Vedder grita “do the evolution, baby.”
Salvatore não apenas expôs a si mesmo. Machucou a pessoa que mais ama.
Não uma vez, nem duas. Algo irreversível.
Ele corre, em seu limite. O som de uma guitarra distorcida rompe a noite de
São Paulo.
PARTE I - ANTES
RETORNO
Quinta-feira, 21 de março, 17h00.
Pelo alto-falante, soam os últimos acordes de Blue Skies.
Roberto Salvatore espera a música acabar. É um jeito de criar coragem. Adiar
por mais alguns minutos a missão. Ele a escolheu enquanto chegava, um toque de
classe. Faz tempo desde a última vez em que esteve naquele prédio.
Discutindo, para variar.
A canção acaba.
Quem sabe um gole de vinho?
Pega a garrafa do Syrah argentino. O favorito dela. Ainda gelada.
Ela proíbe vinho no congelador. “Pode acabar com o equilíbrio.” Exagero. Tudo
bem, ela o ensinou a apreciar a bebida, assim como o ensinou a distinguir uvas.
Então Salvatore se dá conta de que já está na faixa seguinte e desliga o som.
Confere a sacola. Arroz arbóreo, azeite Colavita, pecorino da Toscana, coração de
alcachofra e manjericão fresco.
Ah, a porra do manjericão.
Não podia ser algo menos autoritário? Uma salsinha, ou até um tomilho.
Impossível. “Risoto tem que ser manjericão.”
Ok. Ela também melhorou a experiência culinária de Salvatore. Antes do
namoro, e faz tempo isso, sobram registros de aventuras no melecão da UnB. Não
chegam a dar saudade.
Não é momento para discórdias, principalmente culinárias. Em sua memória, a
derrocada do último jantar começou na harmonização de farofa com estrogonofe. A
campeã de exageros advogou que os russos invadiriam o flat se soubessem da mistura.
Eles não sabem o que é uma farofa de ovos. Manteiga Aviação.
Salvatore arregala os olhos ao se lembrar da manteiga. Revira a sacola em vão.
E aquele é o tipo de item ausente na geladeira dela.
Pega o celular, já são cinco horas. Arriscado voltar ao mercado. As quintas, ela
tem orientação de mestrado, pode acabar mais cedo.
Talvez haja margarina. Ele se lembra de ver um pote esquecido no fundo da
prateleira, antes do carnaval. Seria bom checar a validade, antes mesmo de invadir o
flat.
Ligar pra ela, fora de cogitação. Em primeiro lugar, estragaria a surpresa. E
também não daria certo interromper um silêncio daqueles com um diálogo do tipo “oi,
tudo bem? Será que aquela margarina ainda presta? Por que não te liguei antes?
Escuta, só me responde o que perguntei”.
Salvatore não tem certeza sobre o tipo de diálogo que eles terão. Na verdade,
nem pensou muito nas consequências da sua surpresa, além da cama, disparada como
a melhor das hipóteses.
O importante é o significado do ato. Uma ponte, um retorno. Ele sabe que
errou. Está disposto a admitir isso (não tanto) para seguir adiante.
Mas a realidade se impõe na frente de Salvatore. Não há chance de seguir
adiante sem uma baita DR. Não depois da merda. Ela não merecia aquilo. Talvez, muito
provavelmente, venha a demitir Salvatore. Ele pediu. Mas que seja olhando em seus
olhos.
Salvatore nunca foi demitido de um relacionamento. Não gosta de pensar na
sensação. E, pensando bem, é possível contornar as coisas. Reconciliar. Botar os pingos
nos is, mesmo que tenha que passar por uma eventual choradeira.
Foco. Gelar o vinho, fazer o risoto, ignorar o manjericão. E a margarina? Ainda
presta?
Salvatore então decide que, diferente dos relacionamentos, a margarina não
estraga.
Valentina levanta da cama, veste a calcinha e caminha pra fora do quarto. Para
quando ouve a voz áspera, “aonde você pensa que vai?”
Ela se vira. “Tenho que pedir licença pra ir ao banheiro, professor?”
“Chamar um homem nu de professor é blasfêmia.”
“Emérito professor doutor?”
Um riso raspa a garganta do homem. Ele se inclina e pega a taça de vinho no
criado mudo. “Ibrahim está bom”, e dá um gole. “Obrigado pelo almoço. Foi a melhor
coisa da semana.”
Estica a taça para Valentina. Ela não sabe como responder ao ‘foi a melhor
coisa da semana’.
Quem é esse cara?
Seu professor de mestrado está à espera de uma resposta, lhe ofertando a
dose. Na dúvida, Valentina agarra a taça e bebe. O líquido desce áspero. É melhor frear
as coisas, antes que comecem a surgir ideias para um novo encontro. “Acho que já
bebemos demais.”
“Você está bêbada com duas taças de vinho?”
“Tá mais pra duas garrafas.”
“Não exagera.”
“Uma no restaurante, outra aqui.”
“A culpa é sua.”
“Foi você que disse que preferia continuar bebendo a ir pra reunião do
departamento.”
“E foi você que disse que tinha vinho em casa.”
Valentina nota o professor mirando seus seios. Sente-se desprotegida e pega a
camisa no chão. “Bom, agora já foi”, diz ela, não escondendo o fatalismo.
“Foi mesmo”, diz Ibrahim, coçando o saco. Ela quer sair do seu próprio quarto.
“Preciso de um banho.”
O professor afunda a cabeça no travesseiro. “E eu preciso de um cochilo. Se
você não se importar.”
“Não ronque.”
Valentina tranca a porta e se olha no espelho. Suas bochechas estão
avermelhadas, fios de cabelo se prendem na testa suada.
Aquele jeito é como fica quando tem uma boa transa. Artigo raro. Meia dúzia
desde a virada do ano. E, no máximo, poderia classificá-las como transas protocolares.
Chegou a conversar com Sara a respeito. “Se estamos assim agora, imagina
depois?”
“Já tem data pra casar?”, perguntou a irmã.
“Um plano vago pro ano que vem. Mas tá estranho.”
“O sexo?”
“Mais que isso. Tem um mês que a gente não se vê. E antes disso era só briga.
Sexo, então, mais difícil que picolé premiado.”
“Nem te conto. Achei um palito premiado, lá em Ubatuba.”
“Tá vendo?”
“Isso passa, Vali. Vocês não chegaram tão longe à toa.”
Valentina volta a si e se pergunta como foi chegar àquele ponto. Acabara de ter
uma transa com um tiozinho, que agora ronca do outro lado da parede.
Nem o conhece direito. A relação entre os dois, até então, não passara do ritual
acadêmico. Talvez, se ela não aceitasse o convite pra almoço depois da orientação,
Ibrahim não estivesse estirado na sua cama com aquela barriga cheia de pelos. Pelos
demais.
Roberto Salvatore tenta encaixar a chave. Fechadura enjoada. Coloca as
compras no chão, mira e, enfim, consegue girar.
Para seu espanto, a porta não está trancada. Entra no apartamento, se
perguntando o que está acontecendo. Aquilo não é normal. Resolve checar se tem
alguém em casa. “Vali?”
Não há resposta. Salvatore deixa a sacola de compras na bancada da cozinha.
Há uma garrafa de vinho aberta. Carménère chileno, não tão bom quanto sua arma
secreta. “Vali?”, pergunta mais alto.
Resolve explorar o flat. Nada que demore dez segundos. Além da cozinha
americana e a sala, há o corredor, o banheiro e o quarto.
Salvatore desaprova aquele espaço minúsculo. Já deixou claro que ela deveria
pegar um lugar maior, talvez na Asa Norte. E então Valentina perguntou se iriam morar
juntos, no que ele desconversou. Disse que continuaria com a mãe até passar num
concurso melhor. No fim ela o espinafrou, o acusando de infantil por ter vinte e nove
anos e ainda morar com a mãe. E que, se ele não fosse dividir o aluguel, não precisava
dividir suas opiniões.
Em menos de oito passos Salvatore alcança o banheiro e vê que a porta está
fechada. Bate suavemente. “Oi, linda, você está aí?”
Sem resposta. Aproxima a orelha, chuveiro ligado. Arrombar o banheiro parece
bom, inusitado. Mas pode causar acidentes, gritaria, agito na vizinhança.
Talvez ligar uma música, tirar a roupa, deitar na cama e esperá-la.
Salvatore adentra o quarto e escuta o ronco de um trator. O barulho é emitido
por um homem estirado na cama, de barriga para cima. Está nu, é largo e gordo. A
barriga, cheia de pelos.
Valentina curte a água tocando o rosto.
O banho quente renova o torpor do vinho e da sensação pós-sexo. O que não
significa achar bom encarar o professor Ibrahim, que poderia desaparecer, ou, quem
sabe, virar uma pizza calabresa.
Algo é estranho naquilo. Falta quarenta por cento do sexo, talvez cinquenta,
dependendo do dia. Justamente o após. Quando ela encosta-se ao corpo do seu
namorado e sente o seu calor. Os dois ofegam juntos, até a respiração se normalizar.
Ela normalmente faz um carinho no cabelo dele.
Valentina dissipa aquela lembrança ao ouvir um grito. A mensagem é clara.
“Que porra é essa?”
Um novo grito, a voz abafada de um homem com raiva. “Quem é você e o que
está fazendo aqui?”
Valentina ouve algum sussurro, outra pessoa.
A adrenalina se espalha pelo seu corpo, o coração dispara. Ela desliga o
chuveiro. Sem o som da água, pode ouvir com mais clareza. “Calma, rapaz.”
“O que você tá fazendo na cama da minha namorada?”
“Você entrou no apartamento errado.”
Valentina entra em pânico. Nunca pensou que Salvatore pudesse ir ao seu flat
em plena tarde de quinta, sem avisá-la.
“Porra nenhuma.”
“Veja bem, eu posso explicar.”
“Quem tá no banheiro?”
“É uma amiga. De Valentina.”
Valentina vê uma luz na saída do professor.
“Ela nos emprestou o apartamento dela.”
“Caralho.”
“Não precisa se exaltar.”
Então Valentina ouve passos firmes se aproximando, seguidos de murros na
porta do banheiro. “Quem tá aí? Que merda tá acontecendo?”
Valentina sente as pernas enfraquecerem. Ela responde com a voz fraca. “Oi.”
Os passos se afastam. Uns poucos instantes de silêncio ao lado de fora. “Escuta
aqui, mermão, se é uma amiga dela que está aí, o que a bolsa dela tá fazendo aqui?”
Novas pancadas na porta. “Vali, você tá aí? Por que esse cara tá pelado na sua
cama?”
Ela ouve a outra voz.
“Rapaz, se acalme.”
“Já falei pra tu ir embora. Senão vou enfiar tua cabeça pelo rabo.”
Valentina escuta a porta do apartamento se abrindo. Novos murros na porta do
banheiro.
“Vali, será que você pode me explicar? Não tô acreditando.”
Ela esboça uma resposta. “Calma.”
Senta no chão do box, lágrimas.
Silêncio. Um som resignado trespassa a parede. “Não acredito que você fez isso
comigo.”
Pisadas se afastam do banheiro.
Valentina cria coragem, se levanta. Enxuga o rosto e o corpo do jeito que pode
e saí enrolada na toalha.
Ninguém no apartamento. Porta entreaberta. Apenas vê uma sacola de
compras em cima da bancada. Ao lado da garrafa aberta de Carménère chileno, uma
garrafa fechada de Syrah, Bodega Cavas de Don Arturo.
SETE. OU OITO. OU NOVE.
Quinta, 18h00.
‘Quinta-feira é igual calcinha. Não é o que queremos, mas
está perto.’
Magrão apaga a mensagem que recebeu pelo WhatsApp. As pessoas lhe
mandam quilos de lixo digital todos os dias.
Mas existe um fundo naquela piada, reflete Magrão. O poder gravitacional da
sexta invade o fim do expediente da quinta. De fato, as apostas para a próxima noite já
começaram a ser discutidas, também no WhatsApp.
Festa do Balaco (caro demais, playboy demais. E mulher demais, nice), Homem
da Marreta (ruim ou bom, roleta russa), Sambão do MRE (não se sabe por que alguém
vai lá) ou, em última hipótese, a velha e boa Play. As mesmas pessoas, as mesmas
músicas, fumaça de cigarro no talo e shots de Jägermeister, ou Jeguerê, na linguagem
do submundo das baladas. Diversão desmedida até seis da manhã.
E fazer planos para a próxima sexta só não é melhor que fazer planos para a
sexta da próxima semana. Dia de festival. O clássico e prazeroso roteiro: olhar as
atrações, horários, palcos, e se entorpecer sob o sol.
Magrão caminha na brita, pensando que uma happy hour cairia bem, pesar as
possibilidades que surgem no horizonte. Hora de uma gelada.
Antes que possa chegar ao carro seu celular toca. Na tela um sujeito com cara
de cachorro louco.
Aquela conversa é um ritual entre os dois, toda quinta fim de expediente. O sol
ainda se fazendo valer. “Fala, Salva”, atende Magrão.
“Cadê você?”
“Saindo do trampo. Que voz é essa, bicho? Te enrabaram?”
“Aconteceu uma merda.”
Valentina não concatena a torrente de ideias. Todas têm a firmeza de um
mingau.
Não vou ligar pela vigésima vez.
Talvez a mãe dele? Isso não é assunto dela.
Além do mais, falar o quê? Oi, dona Gisele, é que eu tô procurando o Salva pra
gente conversar sobre uma coisinha, e ele não me atende.
Ir até a casa dele?
Deve estar no boteco, se entupindo.
Valentina anda pelo apartamento. Não gosta de se sentir insegura. Quer as
coisas sob controle, resolver tudo pra agora, do seu jeito.
Mas ali, naquele instante, vê um castelo desmoronando na areia. Pega o celular
e liga pela vigésima primeira vez para Roberto Salvatore.
Magrão faz uma proposta ao amigo descrente. “Uma Original?”
O olhar de Salvatore está vazio. “Ou uma Guinness?”, tenta Magrão,
novamente. Salvatore suspira, sacode a cabeça e enfim dá um soco na mesa. “Não
acredito, cara.”
“Bom, há coisas piores.”
“Duvido.”
“Kaiser, por exemplo.”
O comentário dissipa a fúria de Salvatore. Enfim, ele se engaja no diálogo.
“Preciso de algo mais forte.”
“Quer encher o rabo de catuaba?”
Salvatore pensa um pouco. O garçom aguarda, impassível, ao lado deles.
Segura um bloco de papel amassado e uma Bic.
O amigo pega o cardápio, pula da seção de cervejas para a de destilados.
Magrão já conhece as opções. Bacardi, Velho Barreiro, Seleta, Smirnoff e Red Label.
Em geral, nomes distantes no resto do ano, mas necessários para aquela noite.
Magrão o deixa à vontade.
Que grande merda ser corneado.
Mais uma prova de quão boa é a vida sem cobranças. Não é hora, todavia, de
vender este modelo ao amigo. A única coisa a ser feita é oferecer os ouvidos.
A sua visão é atraída para a tela de LCD pendurada no teto. O Spicy bar pode
ter a cerveja mais gelada de Brasília, mas provavelmente só tem um DVD, repetido
incansavelmente: Red Hot Chili Peppers, ao vivo de Slane Castle.
E o pior é que é não tem som. É esquisito ver TV sem som. A trilha sonora é o
ruído anárquico das mesas ao redor.
Sobre a massa de conversas se sobressai um sujeito falando alto sobre a vitória
do Corinthians no próximo campeonato. Talheres combatem os pratos. Uma garota ri
nervosa.
Magrão observa a dona da risada. Nariz bem feito numa morena de cabelo
curto. Cruza as coxas. Grossas.
Bom mergulho.
É possível que Salvatore também apreciasse as coxas, mas neste momento não
consegue pensar claramente sobre mulheres.
O garçom se mexe ao lado, inquieto. “Volto mais tarde.”
“Peraí, chefe”, Magrão o impede de se afastar.
Diante da indecisão de Salvatore, Magrão põe fim à espera do garçom.
“Parceiro, me traz duas Seletas e uma Guinness, pra começar.”
“Algo mais?”
“Será que não rola de botar no jogo do Palmeiras e Ituano?”
Salvatore vira o sexto copo de Seleta e limpa a boca com a manga da camisa.
Em seguida entorna a cerveja, que ajuda a diluir o rasgo do destilado.
“Salva, vai queimar a largada”, adverte Magrão.
“Cara, já tô fodido.”
“Não anima de pegar uma balada? Um Calaf, quem sabe? Para lembrar dos
velhos tempos.”
“Vumbora.”
Aquele ‘vumbora’ tem a imperatividade de um bêbado. O que significa que não
acontecerá. Salvatore já passou para o outro lado. Sua visão se perde na atmosfera
escura do bar.
Magrão chama a sua atenção. “Olha a mensagem que o Nariz mandou.”
Salvatore tenta ler, mas as letras dançam na tela do aparelho. Ele fecha o olho
esquerdo, enfim as palavras se estabilizam.
‘Magrela, comprei meus ingressos pro Lolla. Dá um jeito
de trazer o Salva.’
Por um instante, Salvatore se esquece de tudo e dá um sorriso. “Porra. Saudade
daquela nariga.”
“É um corno, ladrão de oxigênio.”
Salvatore ri, mais leve. “Tem falado com ele?”
“Disse que virou DJ. Ganha pouco e gasta tudo com bala, bebida e mulher.”
“Carajo, bitcho. Sem futuro. Mesmo assim, é melhor que ser escravo do
banco.”
Magrão franze a sobrancelha. “Sei lá, Salva, não topo viver daquele jeito.
Pesado.”
“Ele largou a coca?”
“Deu um tempo. Ficou mal por três dias depois duma noitada em Maresias.
Agora é só na bala.”
Salvatore nunca tomou extasy, ou cheirou cocaína ou sequer maconha. Prefere
se concentrar na bebida e na fumaça árabe.
Ele tenta arrancar mais alguma gota de cachaça, raspando a língua pelas bordas
do copo. Chama o garçom, ergue o copo com uma mão e com a outra faz um ‘V’.
“Mais duas, comandante”, então solta um pensamento sombrio. “Caralho.”
“Tá pensando no caralho do cara?”, pergunta Magrão.
“Vá se foder.”
Magrão tenta desconversar. “Agora que você tá liberado, bora Lollapalooza?”
“Semana que vem?”
“Claro que é, porra.”
“Não sei.”
“Vai fazer o que na semana santa?”
“O plano era fazer as pazes e viajar com a Vali.”
“Pois é. Você ia viajar.”
O garçom traz à mesa os copos de cachaça. “Maravilha”, diz Magrão. “Vai rolar
de pôr o jogo?”
O garçom se afasta com o rosto derretido de tédio. Salvatore propõe um
brinde. “Ao meu chifre.”
“Ao nosso. Todos seremos cornos, um dia.”
Os dois emborcam a bebida. Magrão apenas dá um gole, enquanto o copo de
Salvatore fica pela metade. “E vem cá, a Lilica já te traiu?”, diz ele.
“Nós nunca namoramos. Tecnicamente, ela não pode me trair.”
“E tu não tem ciúme?”
“Namoro com a vida.”
“Quanto tempo vocês tão juntos?”
“A gente se pega há uns dois anos.”
“Tu é um viado mesmo.”
Magrão ri.
“Preciso de uma relação dessas”, concluí Salvatore, melancólico. Dá uma
olhada ao redor. As pessoas parecem se divertir umas com as outras. A bebida ajuda.
“A Lilica vai pro Lolla?”, pergunta Salvatore.
“Vai. Com uma amiga. Carol. Produtora de um dos caras que vai tocar no
festival.”
“Bom começo.”
“Essa é top, Salva.”
Roberto Salvatore toma o resto da cachaça. A bebida faz um buraco em seu
estômago. “Só consigo pensar nessa merda de hoje, cara. A cena vai e volta, vai e
volta.”
“Isso passa. Bebe mais.”
É hora de parar com a bebida.
“Sabe o que mais incomoda?”
“A piroca do cara?”
“Ele não tava pelado, tava num lençol.”
“Ah, assim não tem problema.”
“O pior é imaginar ela transando com aquele filho da puta. Aquele turco por
cima dela. Me dá nojo.”
“Será que rolou um fio terra?”
“Como é que vou saber?”, pergunta Salvatore.
“Ela fazia contigo?”
“Claro que não.”
“Talvez ela queira viver novas experiências”, ri Magrão.
Salvatore tem um chilique, balança a cabeça, se levanta e grita. “Filha da puta.”
Em seguida, cai sentado. Magrão tenta acalmar as coisas. “Ainda bem que você
deu o flagra. Senão ia trepar com o turco por tabela.”
“Vida de merda.”
“Bem por aí.”
Salvatore vê o garçom dançando pelas mesas. Pede mais uma dose.
“Salva, vamos para o Lolla. Esquecer disso”, diz Magrão. “Tem quanto tempo
que você não viaja solteiro?”
“Teve o carnaval, lá em Diamantina.”
“Lá você não estava solteiro. Só que tava.”
“Porra, será que ela soube de algo?”
Magrão não responde. A dúvida se instala na cabeça de Salvatore. Trata-se de
uma vingança?
“Como ela poderia saber de algo?”
“Não sei, Facebook?”
“Você postou alguma coisa?”
“Tá louco, Salva?”
A nova dose chega. Salvatore contrasta o copo de cachaça cheio com os vazios.
Tenta contar quantos copos há na mesa, e chega a um número perto de sete. Ou oito.
Ou nove.
“Será que foi aquela carioca?”
“Do domingo?”
“Lembra da amiga dela, postou umas fotos e marcou você no Face?”
“Desmarquei no mesmo dia. Puta merda. Não é possível.”
“Um clássico da vida contemporânea.”
Magrão muda o rumo da conversa. “Agora já foi. Olha pra frente. Porra,
imagina as possibilidades. Eu, você e Nariz no Lollapalooza.”
“Talvez.”
“Você consegue matar o trampo na quinta?”
Salvatore ainda formula hipóteses em sua mente ébria. “Difícil.”
“Fala com teu chefe.”
“Ele não deixa. Não gosta de vagabundo.”
“Não mata ninguém.”
“O cara é um tarado. Acha que a melhor coisa foi ter passado a vida naquele
banco.”
“Velho, que se foda. Faz hora extra, ou dá um perdido.”
“Tô meio sem grana.”
“Ao contrário, agora é que você tem grana. Nada de casamento.”
Salvatore soluça, sem ânimo.
“Seguinte, cara, deixa que eu cuido dos ingressos. Vou passar no cartão, depois
a gente acerta”, afirma Magrão.
Salvatore vira o copo renovado de cachaça. “Faz como você quiser.”
“Finalmente”, diz Magrão, olhando satisfeito para a televisão. Salvatore vê um
campo de futebol na tela, onde uniformes coloridos correm vertiginosamente.
RESSACA
Sexta-feira, 22 de março, 8h50.
Pelo painel, Salvatore descobre que são quase nove da manhã. Suas pálpebras
pesam, olhos ressecados. Ajeita-se no banco, o pescoço dói. Provavelmente arranjou
um torcicolo.
Mas este é o menor de seus males.
Nada comparado à sua mãe, batendo na janela do carro. Ele boceja. Uma
mistura intragável de cachaça, cerveja e mandioca frita. Salvatore abre a porta e é
engolido por sua mãe em chamas. “O que é isso, Beto?”
“Bom dia, dona Gisele.”
“Dormiu no carro?”
Com a voz estridente, está prestes a lhe arrancar do banco. “Achei que você
havia dormido na Valentina.”
“Nós não...”
“Onde já se viu?”
Salvatore tenta sair do carro, cambaleia. Sua mãe se afasta, sem deixar de lhe
golpear com as palavras. “Que história é essa de encher a cara?”
Ele não consegue forças para dialogar com a mãe. O que lhe resta é apenas o
suficiente para se amparar no teto do seu Golf. Ele sua frio, a cabeça em ebulição.
“Não precisa ir trabalhar, não?”
“Sim. E preciso de água também.”
“Claro. Bêbado feito um porco.”
“Mãe, dá um tempo.”
“Não te criei pra isso.”
“Estou com problemas.”
Sua mãe balança a cabeça. “Sua vida é tão difícil, né querido?”
“Umas brigas com a Vali.”
“Você devia casar logo, antes que ela te largue.”
“Obrigado.”
“Caia na real, Beto. Você ganha pouco e parou de estudar. Acha que a Vali te
aguenta muito tempo?”
Dona Gisele sabe ser letal. Ele faz olhar de paisagem.
“E daí vira desculpa pra entornar todas e dormir na garagem? E o pior, você
veio dirigindo até aqui.”
Fato. Roberto Salvatore não tem a mais vaga lembrança do trajeto de volta, e
se espanta com o fato de ter conseguido estacionar. “Numa coisa concordo com a
senhora. Meu emprego é um lixo. Não quero passar mil anos naquele lugar.”
“Enquanto não estuda, é o que terá.”
Então Salvatore recorda que o chefe está esperando um relatório. Deveria
chegar mais cedo, pois à tarde haverá reunião com investidores. Poderia ter acabado
ontem, mas resolveu sair mais cedo para o jantar surpresa de reconciliação do amor.
A mãe o fita, raivosa.
Ele emenda no assunto. “Mãe, aquele banco é uma perda de tempo. É como
estar enterrado vivo.”
“E você quer fazer o quê da vida?”
Ele nunca pensou a sério sobre o ponto. “Estou pensando em algumas coisas.
Por exemplo, quero voltar a estudar piano, estudar música de verdade.”
“Músico?”, o riso cínico ecoa pela garagem.
“Qual é o problema?”
“O problema é que você tem quase trinta anos e ainda mora com a sua mãe.
Agora quer ser pianista? O que mais?”
“Posso escrever também. Talvez o meu blog dê dinheiro. Lá fora isso dá certo.”
“Não seja ridículo.”
Salvatore perde o debate. Sua mãe abre a bolsa e a revira, nervosamente.
“O que foi?”, diz ele.
A raiva a deixa vermelha. “Você não tem o direito de fazer isso comigo. Beber
desse jeito e sair dirigindo.”
“Desculpa.”
“Vou embora.”
Ela entra em seu carro, dá a partida e aciona o portão da garagem. Salvatore,
ressaqueado, entra em casa. Sente o celular vibrando no bolso. É do trabalho, e ele
não atende.
TU AMOR ES UN PERIÓDICO DE AYER
Sábado, 23 de março, 4h30.
>>Comentário
Prezado Salvatore, gosto do seu blog. Mas você poderia
respeitar um pouco os leitores. Acho que valeria a pena
pesquisar um pouco as informações das músicas, dos artistas.
Tá tudo na Internet, mesmo. Não leva a mal, cara.
E a Lana não é loira. É ruiva.
cadu.martins
Salvatore quer tacar o notebook na parede. Como assim, quem é esse Cadu
para lhe dizer como o blog deve ser escrito?
Cadu, meu cu.
Tudo bem, Salvatore deixou a peteca cair quando chamou Lana Del Rey de
‘loira dos sonhos’. Tirando esse deslize, e alguns outros, o propósito do blog segue fiel.
Nada do emplastro habitual das reportagens de música que se multiplicam nas revistas
e páginas da web.
Noventa e três por cento lixo pasteurizado. Repetidores de aluguel.
O mundo do rock precisa de algo fresco, uma visão nova e urgente. Salvatore
está cansado de apenas ler o que se passava em cima do palco. Quer transmitir o que
se passa à frente do palco.
São as pessoas que dão sentido às canções. E a sua missão é captar o exato
momento em que a música atinge a multidão.
Começa a digitar uma resposta ao Cadu. Mas é paralisado por um pensamento.
Não é bom se entrevar com um dos onze leitores do seu blog. É possível
imaginar que uma resposta gere uma revolta, e todos resolvam publicar comentários
ensandecidos. O que não seria ruim, tendo em vista a sua média de 0,5 comentários
por post.
Mas o mais provável é que os leitores comecem a rarear, rarear, até o ponto
em que Roberto Salvatore se torne o único leitor de suas ruminações.
Ele tem sérias dúvidas do retorno daquilo. Gasta um tempo enorme ouvindo
músicas de artistas desconhecidos, pesquisando coisas obscuras, fabricadas em porões
europeus, asiáticos e americanos. Às vezes, se rende ao produto nacional. Só às vezes.
Não que escrever lhe dê satisfação. A interação é que é divertida. Os amigos
mandam coisas novas, alguns até mandam parágrafos para serem postados junto das
músicas. Os demais xingam.
E é normal Salvatore passar madrugadas se dedicando àquela atividade.
Poderia estudar para algum concurso melhor, coisa lembrada por sua mãe toda
semana.
Mas se não teve estômago para estudar nos últimos dois anos, não é agora que
se matriculará num cursinho noturno. Talvez depois. Ou nunca.
Por ora, ao desenrolar da madrugada, decide que vai continuar gastando seu
tempo entre as teclas.
Seu dia já foi improdutivo o suficiente. Basta ter perdido o encontro com os
diretores de um fundo de pensão. O chefe deixou uma mensagem de voz nervosa,
perguntando sobre a apresentação que ele deveria ter montado.
Poderia também atender o convite do Magrão para pegar a Play, mas ainda
está de ressaca. Passou o dia na cama, com o estômago revolto, adoecido. A chegada
dos trinta é primeiro anunciada pelo fígado.
Hora de fazer algo útil. E este post vai refletir o seu momento. Ainda que ele
não queira dar nome aos bois. Ela com certeza vai ler o blog, então ele quer deixar
uma mensagem clara.
Decide não se render às coisas óbvias. Talvez salsa. Não é clichê, tem pegada
boa.
Até já tem uma candidata. Tu amor es un periódico de ayer, o hino definitivo de
Hector Lavoe. Ele aperta o play, ouve a introdução, mas a ideia perde força.
Precisa de algo menos carnavalesco. Volta a abrir o YouTube. Youth, Daughter.
É sublime. Então começa a preencher o espaço em branco do Word.
>> Um fim
Publicado: março 22, 2013 em Tirania da Contingência
A cantora triste, falando sobre o fim da juventude. Tudo
que lembra de sua relação é do começo promissor e do apito
final. O resto foi tragado pela raiva e decepção.
Daughter, Youth, para quem quiser saber do que estou
falando.
Ela poderia ter experimentado algo bonito e tranquilo.
Envelhecer
com
seu
amante,
criar
manias
e
rugas,
e,
eventualmente, se apegar a elas.
Os dois passariam por problemas. Por exemplo, escolher o
nome do primeiro filho. Ficariam num impasse tectônico,
enquanto a barriga seguia virando uma azeitona e depois um
tonel.
Até
que,
com
o
nascimento,
fossem
definitivamente
obrigados a resolver o conflito. Ainda no hospital, ela
prepararia uma lista com vinte nomes, e o cara teria de fazer a
escolha final.
A única imposição dele, pra participar do jogo, seria
proibir qualquer combinação sinistra de inglês com português.
Sei lá, algo como Westerley Rilderson. Sem ofensas, leitor,
caso se chame assim, mas, se realmente tem esse nome, você se
fodeu.
Então chega um dia e o futuro desaparece. Pela vagarosa
desconstrução do afeto, ou por um motivo tão abrupto quanto a
violação do leito nupcial.
Direitos são perdidos. O direito de conversar sobre como
foi o dia, o direito de planejar uma viagem ou de escolher o
nome do filho.
Em vez do futuro, alguém prefere o ralo.
A cantora triste, falando sobre o fim da juventude. Ela
canta por nós.
::
Roberto Salvatore
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Valentina lê pela décima vez o post confessional de Salvatore.
Mania.
Abrir a vida por meio de palavras, ao som de alguma trilha sonora.
Deve estar se sentindo o traído da década. E deve estar gostando.
Eles conversaram sobre essa exposição. Certa vez, Salvatore escreveu uma
carta à ex-colega de banco com um título ‘Vai tarde’, e alguma música agressiva do
Rage Against the Machine. Ou Metallica. Tanto faz.
Valentina lhe advertiu sobre colocar na Internet questões pessoais. Textos que
nunca serão apagados. “Blog não é literatura, Salva. O que você bota na Internet, lá
fica.”
“É meu jeito de expressão.”
“Qualquer idiota pode fazer um blog.”
Chamá-lo de idiota não foi a melhor maneira de dizer que ele devia tomar
cuidado. Mas o turrão se recusa a discutir qualquer coisa. “Não converso sobre minhas
inspirações.”
E agora ele escreveu sobre a tragédia. Ou então a consequência da tragédia, o
que lhe relegou o posto de ex-namorada. Ele prefere escrever a atender às ligações.
Um jeito de dar o troco. Sendo que a tragédia foi troco do carnaval animado e
da subsequente ausência dele. E que lixo de relação é aquela que estava funcionando
à base de troco?
Valentina clica play no vídeo.
Uma garota dedilha a guitarra. Preto e branco. A música é especialmente triste.
Escolhida a dedo para o momento.
Valentina pega o celular. Nenhum retorno. Resolve fazer contato pelo canal
institucional de Roberto Salvatore.
>>Comentário
Você prefere chafurdar no ralo ou conversar como um
adulto?
valentina.borges
Provavelmente ele não vai responder. Mas vai entender o recado.
Cansa de ficar em casa, sozinha. Precisa falar com alguém. Disca um número.
Por um momento, se sente insegura com o barulho, tum, tum. É o único som que tem
ouvido ultimamente, o que a leva a uma sensação de incompletude.
Então alguém atende do outro lado. É a voz de Sara. “Oi, mana. Tudo bem?”
CORPORAÇÃO
Segunda, 25 de março, 9h30.
“Bom dia, Salvatore.”
“Oi, Ritinha.”
“O doutor Ruiz está lhe chamando. Na sala dele.”
Doutor o meu cacete.
“Estou indo.”
Coloca o ramal no gancho, se levanta e o telefone toca novamente. Sente uma
raiva profunda de aparelhos fixos. Nunca é boa coisa. “Alô.”
“Salva?”
É seu subordinado, vizinho de baia. “Fala, Afonso.”
“Melhorou, cara?”
“Ok.”
“Já falou com o chefe?”
“Ainda não.”
“Ele tava meio louco na sexta. Se tu aparecesse aqui, ele te jogava da janela.”
“Não tive culpa.”
“Salva, me faz um favor?”
Salvatore já sabe do que se trata. “De novo, Afonso?”
“É que saí ontem. Fui pra putaria.”
“Velho, te vira.”
“Devia vir com a gente. A Valentina não precisa ficar sabendo.”
“Nós acabamos.”
“Sério? Achei que vocês iam casar.”
“Eu também.”
“Que merda. Então ela tá livre?”
“Não sei, porra.”
“Entendo. Cara, quebra esse galho pra mim?”
Salvatore se inquieta, dança na baia. “Melhor não. Isso já tá dando merda por
aí.”
“Qualé, Salva? Só dessa vez.”
Ele pensa um pouco, desaprova aquilo e enfim topa. “É a última.”
Salvatore desliga o telefone, sente uma pitada de remorso. Abre o ponto
eletrônico em sua tela e digita a senha do Afonso.
Dirige-se à sala do chefe. Passa pela secretária, Ritinha. Sua filha pequena está
sentada ao lado, mexendo num tablet. Salvatore dá um sorriso. “Oi, Alice, veio
trabalhar hoje?”
“Tô jogando Flappy Bird”, diz a pequena, embaralhando o inglês. “Trabalhar é
muito chato. Quero ser rica”, completa, sem tirar os olhos da tela. “Todo mundo tem
que trabalhar, Alice”, responde a mãe.
Salvatore ri. “Ela matou a charada, aos cinco anos.”
“Salva, te prepara viu. O negócio pegou fogo na sexta”, fala Rita.
“Ele devia sumir com aquele cinto de castidade da dona Hilda.”
“Tá guardando tudo pra você, garanhão”, diz ela, rindo. Salvatore força a
têmpora com os dedos.
“Ó, quarta é aniversário do Afonso”, recorda Ritinha.
“É verdade.”
“Traz alguma coisa. Bolo, pão de queijo. Chega cedo, que é surpresa.”
“Que horas?”
“Às nove.”
“Pódeixar.”
Salvatore fecha a porta atrás de si. O chefe tamborila no computador. Pelo
visto, aparou a barba. “Opa, chefe.”
“Puxa uma cadeira.”
Lá vem.
Salvatore se senta e aguarda. O chefe continua batendo no teclado. Salvatore
tenta imitar o ritmo no encosto da cadeira. Pega o Correio Braziliense e passa os olhos
nas manchetes. Mortes, acidentes, corrupção. O tipo de manchete que vicia.
“Doutor Ruiz, viu que o Ituano ganhou do Palmeiras?”
O chefe responde, incrédulo. “Não.”
“Pois é”, Salvatore não faz a menor ideia de onde é o Ituano e o que o time
faria com a vitória, de modo que não sabe como continuar a conversa.
Finalmente o chefe levanta os olhos para ele. “Salvatore, o que aconteceu na
sexta-feira?”
“Fiquei muito mal”, diz ele, a mão no estômago.
Doutor Ruiz se mantém quieto.
“Acho que foi um camarão que comi na rua.”
“E por que não ligou?”
“Mal conseguia me levantar. Dei conta depois do meio dia. Liguei pra Rita após
a reunião.”
“Da próxima, avisa. Quase que o superintendente cancela o encontro por causa
da apresentação. No fim, fizemos só no gogó. Mas ele não gostou.”
Definitivamente, o chefe aparou a barba. Parece grama.
“Salvatore.”
Vai começar
“A questão não é a sua falta. Todo mundo fica doente.”
“Certo.”
“A questão é o comprometimento. O Banco pode lhe abrir muitas portas”, o
chefe fala banco com B maiúsculo.
“Claro.”
“Eu fiz minha carreira aqui. A única coisa que o Banco lhe pede é o
compromisso. Em troca, você vai crescer, ganhar bem. Essas coisas.”
Caralho.
“Você é novo. Tem um longo caminho.”
Miséria.
“Mas tem que pegar mais firme. Agarrar o touro pelo chifre.”
“Sei como é.”
Roberto Salvatore sente a bunda quente. “Você está desmotivado com algo?”,
pergunta doutor Ruiz.
“Não, acho que não.”
“Já estou aqui há vinte e oito anos”, o chefe faz uma boca de satisfação. “É um
bom lugar.”
Eu me enforco bem antes disso, cara. Pode ter certeza.
“Entendi”, responde Salvatore.
“Então, da próxima vez, dê um jeito. Não dá pra furar em cima da bucha,
deixando a gente na mão.”
Roberto Salvatore olha para baixo. “Era isso”, o chefe volta a olhar para o
computador. Salvatore se levanta.
“Ah, tem outra coisa.”
Ele fica paralisado no curto espaço entre a cadeira e a mesa, olhando a grama
nas bochechas do dr. Ruiz.
“A controladoria anda pressionando as chefias. Negócio de ponto eletrônico
dos funcionários. Tão querendo moralizar a turma.”
O sangue de Salvatore gela. Tenta fingir desconhecimento absoluto daquilo.
“Não brinca.”
“Essa coisa do pessoal bater o ponto pros outros. Pode dar processo
administrativo, até demissão. Cuida do teu pessoal.”
Salvatore sente o machado rodando acima de sua cabeça. “Pode deixar, chefe”,
pensando que ele mesmo é um péssimo chefe.
Caminha resignado para sua sala. Para surpresa de Salvatore, Afonso o
cumprimenta. “E aí Salva!”
“O que tá fazendo aqui, Afonso?”
“Resolvi vir mais cedo. E aí, como foi lá?”, diz o colega, voz rouca.
“Ele quer que eu passe vinte e oito anos nesse buraco”, responde Salvatore.
“Li um cientista falando que nossa geração vai se aposentar com noventa
anos.”
“Bate o ponto e morre, com a cara no teclado”, diz Salvatore, sentando em sua
cadeira. “Cara, se você ia chegar cedo, pra que me pediu pra bater o ponto?”
“Você bateu?”
“Cacete. Você também?”
“Talvez”, diz Afonso, arqueando a sobrancelha.
“Porra, Afonso. Não dá mole.”
“Relaxa, cumpadi.”
Salvatore não relaxa.
Valentina observa as pessoas. Ao redor, estudantes com notebooks e fones se
aproveitam do Wi-fi do Fran’s Café. Duas garotas, numa mesma mesa, mexem
avidamente nos celulares, sem trocar palavra.
O silêncio é bem vindo quando as pessoas estão conectadas. Não é o silêncio
de Valentina. Ela não tem gostado de estar a sós com seus pensamentos. Tudo bem, a
irmã tentou ajudá-la.
Mas o âmbito de sua ajuda é pequeno, a mil quilômetros. O máximo foi insistir
que Valentina fosse a São Paulo na Páscoa.
Não é má ideia. Mas, por enquanto, ela quer guardar o feriado para uma
possível reaproximação.
“Já foi atendida?”, pergunta a garçonete de avental.
“Vou querer uma jarra de limonada suíça.”
“Mais alguma coisa?”
“Por enquanto não. Traz dois copos com gelo, por favor.”
A garçonete se afasta. Valentina poderia pedir uma torta de banana, com boa
chance de acerto. Mas não sabe o tipo de expectativa que aquele encontro pode ter
provocado, portanto, melhor uma limonada que não ofenda expectativas.
Olha a hora. Já se passaram vinte minutos, nada. Já é hora de retornar ao
tribunal, para o batente vespertino.
Mensagem no celular.
Deve ser ela, avisando que não vai vir.
‘Valentina, ainda não tivemos chance de conversar. Espero
que esteja tudo tranquilo. Depois de quinta, tive muitos
compromissos de trabalho e familiares. Também não quis me
intrometer no seu espaço. Em todo caso, temos que voltar a
trabalhar em sua tese. Aguardo teu contato, Ibrahim.’
Valentina digita uma resposta.
‘Prezado professor, aguardo a sua extinção.’
Então descarta a mensagem.
Ela foi longe demais para desistir da tese, coisa que não tem cabeça para o
momento. Mas sempre é possível trocar de orientador. Aquela é uma das únicas
certezas do seu futuro.
Pelo canto do olho vê uma mulher se aproximando. “Oi, Vali. Desculpe a
demora.”
Ela lhe beija a testa. Valentina, assustada, nem consegue se levantar. “Oi, dona
Gisele. Imagina.”
A ex-sogra se acomoda à sua frente. Elegante, como sempre. Envelheceu bem.
Mulher madura e respeitável. Às vezes, Valentina não entende como Salvatore pode
ser tão moleque.
“Obrigada por ter vindo”, diz Valentina. “Não sabia mais o que fazer.”
“Vamos lá. O que tá acontecendo?”
Magrão, após muita pesquisa, consegue uma opção aceitável. Vinte mil milhas.
Caro para o trecho Brasília – São Paulo. Mas está em cima, e a tendência é aumentar.
É o que temos.
Liga para Salvatore. “E aí, Salva.”
“Aloha.”
“Conseguiu trampar na sexta?”
“Não. Tomei uma catracada do chefe.”
“Inventa uma mentira, fala que tomou um corno.”
“Falei que comi camarão estragado.”
“Cara, consegui as passagens.”
Silêncio.
“Alô, Salva. Tá me ouvindo?”
“Não sei se vou.”
“Vinte mil milhas. Saindo próxima quinta, cedo. Voltando segunda, perto do
almoço.”
“Magrão, tô na dúvida.”
“Não tenho tempo pra veadagem.”
“Meu chefe tá meio louco comigo.”
“Isso é estresse. Apresenta a Valentina pra ele. Ela curte um cara mais
maduro.”
“Vou ficar em Brasília.”
Magrão gira a caneta na mão, impaciente. Após todo aquele trabalho, ainda
tem que ouvir asneira.
“Tudo bem, Salva. Perdoo a sua condição de idiota chifrado. Só pede pra
alguém bater seu ponto aí, e fica livre.”
“Nem pensar.”
“Salva, faz o seguinte”, diz Magrão, sem saber o que comandar.
“Não vou fazer nada.”
“Sabe o que você tem mais que eu?”
“O que?”, pergunta Salvatore.
“Tem mais é que se foder.”
“Cara, tô ocupado. Falou”, Salvatore desliga.
Magrão bate na tecla ‘espaço’ com a caneta. Quanta panaquice.
Salvatore insere uma ficha na máquina de café expresso, provavelmente o
melhor artefato que existe naquele prédio. Uma das únicas coisas que genuinamente
lhe dão prazer. Ao redor, um deserto de monotonia. As salas, os corredores, as caras e
roupas das pessoas.
Todos os dias são iguais. Ele acorda com o puto do galo berrando no celular. Dá
um salto na academia, pra puxar peso. Algo que uma mula de carga faria melhor.
Em seguida, larga o carro em direção ao trabalho. No trajeto, disputa com
velhas lentas e tarados sobre rodas. Às vezes se cansa, os deixa passar. No restante do
tempo briga feito louco raivoso.
Tanta violência pra frearmos todos juntos no semáforo vermelho, encrostado de
pardais. Então a luz fica verde, e começamos novo.
Depois da batalha no tráfego, Salvatore bate o ponto na baia. Às vezes, alguém
pede para ele bater. Ele já pediu isso também, antes de ser chefe. Então teve que
entrar na linha. Salvatore não tem sido um excelente chefe, algo que o doutor Ruiz
esperava dele.
Gasta as melhores horas do dia sentado numa cadeira quadrada, preenchendo
planilhas e relatórios sobre problemas alheios.
Acho engraçado quando algum idiota usa a palavra “gasto”, e em seguida
corrige, falando “gasto não, invisto”.
A matemática, na Universidade de Brasília, não lhe serviu de nada. Talvez um
pouco de raciocínio. Eles o pagam para usar o cérebro em números e projeções.
Produto descartável.
Então participa de reuniões horríveis e inacabáveis, e, no fim, as decisões são
tomadas por uma pessoa que não leu coisa alguma e sequer participou das reuniões
horríveis e inacabáveis.
A humanidade se confinou dentro desses prédios. Um exército de zumbis
pilotando bancos.
A ideia de passar os próximos vinte e oito anos com a bunda naquela cadeira
lhe assusta. Em algum momento entrou ali, e não sabe como sair.
Salvatore enxerga as coisas e as agrupa em dois conjuntos. Um grupo é
formado pelas coisas brilhantes. Por exemplo, ganhar dinheiro, ou, então, virar um
roqueiro, impressionar garotas, arrancar elogios. Ele queria alcançá-las. A vida parecia
valer a pena.
O outro conjunto é formado por coisas opacas. Coisas que nunca quis ter e não
sabia por que alguém as colocara lá. O despertador com barulho de galo. Os pardais.
Ou a sua paralisia com as mulheres.
Salvatore descobriu que a maior parte das opções oferecidas pela vida é uma
cesta básica de itens opacos. Pouquíssimas e efêmeras opções brilhantes.
E, dessa maneira, me transformei num babaca. Que vaga por um mundo ao
qual não pertence. Os dias correm, e eu passo pelas coisas. Eu atravesso o real como se
não houvesse substância.
Restaram poucos prazeres. Tocar piano, mal, escrever num blog de onze
leitores. E homenagear as mulheres com quem não trepa.
O celular apita. Magrão.
‘Ingressos e passagens comprados. Não tem volta.’
>>Trilhas de todos os tempos: Into the Wild
Publicado: março 27, 2013 em Tirania da Contingência
Lá fora, o arfar das folhas. Aqui dentro do quarto, na TV,
passa Into the Wild, dublado.
“Eu não entendo nada do mar. Mas sei que quando estou
perto dele, me sinto vivo”.
Essa foi uma frase da dublagem de Into the Wild. Nesta
cena, o garoto está viajando com aquele casal de hippies, você
sabe. E a mulher fica triste da vida porque o garoto lhe faz
lembrar seu filho, de quem não tem notícias há dois anos.
Bem, o protagonista está na praia, conversando com o
hippie de bigode, e vendo a mulher andando pela areia, sendo
beijada pela espuma das ondas. Já disse que a versão era
dublada. O bigode fala assim, na versão em português: “nós
hippies não estamos bem.”
Mas não caí nessa.
Lembro-me exatamente dessa frase, e possivelmente é a
única frase que lembro da versão em inglês. É assim: “nem tudo
vai bem no front hippie.”
Percebe a diferença? Um abismo.
Em português ou em inglês, Into the Wild é um filme que
faz a diferença. Você acaba de vê-lo e fica pensando e
pensando. É um filme livro, o qual você poderá deixar na
cabeceira, e voltar diversas vezes – sempre haverá algo novo.
Ver pela segunda vez te deixa claro alguns detalhes: há o
Alasca e há o road movie. No Alasca, o menino, Alexander
Supertramp, fica o tempo inteiro cavoucando um furo a mais no
cinto de couro.
O filme passa, e ele, morando no Magic Bus, vai fazendo
furos no cinto, porque o desgraçado não para de emagrecer. O
que o leva à morte por inanição, que nem gosto de lembrar.
Então você entende só no final que o cinto não é qualquer
cinto. O último parceiro da aventura de Supertramp, um militar
aposentado, artesão e gravador de couro, o ensinou a fazer
aquele cinto.
Então o menino escreve toda a história de sua viagem no
couro. E morre de cinto.
Outros detalhes: o tempo todo passam aviões, deixando
rastros no céu. Um rastro da sociedade, que ele aos poucos se
livra.
“Sociedade!”, e o menino grita de novo “sociedade!”, com
aquele homem louco que o emprega nas colheitadeiras de trigo.
O homem é louco o suficiente para beijar a garçonete que se
aproxima, sem avisá-la. E depois é preso, mijando ao ar livre,
pelo FBI.
Depois o garoto lhe escreve uma carta. “Por que um homem
livre como você tem que ficar preso?”
Por não pagar impostos à sociedade.
Sociedade, sua raça de loucos, espero que você não se
sinta sozinha sem mim, escreve Eddie Vedder em uma das
músicas mais bonitas do filme. E toma-lhe rumo ao Alasca.
O Alasca é triste. Então não ficarei, hoje, com essa
música.
Prefiro, nesta madrugada insone, com o vento batendo lá
fora e o sol ameaçando nascer, o road movie ao Alasca.
Supertramp queima seus últimos dólares, perde o carro
numa enchente, desce sem autorização e sem capacete as
corredeiras do cânion, não transa com uma garota linda que
fica só de calcinha na sua cama e faz o velho gravador de couro
subir uma montanha. “Vai ficar aí parado, esquentando o rabo?”
E nós aqui esquentando os nossos rabos, cheios de regras
e explicações. A vida está predeterminada, eles já escolheram
os nossos destinos, nossas carreiras e nossos impostos, até o
fim.
É só isso?
Faça um favor a si mesmo. Pense sobre a questão
escutando Hard Sun, Eddie Vedder, com a janela do carro aberta,
a mil por hora. O volume tocando na Lua, para sentir bem o
vento rasgando no rosto e bagunçando o cabelo. Essa é a trilha
do road movie.
::
Roberto Salvatore
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Valentina já está se acostumando. Os processos vão transformando a mesa
numa trincheira.
Ela mesma quem cavou aquilo. Trabalhando até não poder mais, conseguiu o
cargo de assessora do Ministro.
Seria bom arremessar os processos no chão. Papelada cinematográfica
espalhando-se pelo ar, o Ministro entrando na sala. Espanto nos meandros do poder.
Sem saco, Valentina abre o Facebook.
Há um ícone vermelho sobre a imagem do globo terrestre. Mensagem de Sara.
‘Mana, decidiu algo? Não pensa muito, vem pra cá. Bj’
Desliza o cursor pela linha do tempo. Fotos de gente na praia, gente tomando
coquetéis no Caribe e gente com pratos de comida. Nada de Salvatore. Talvez a tenha
bloqueado.
Valentina entra no perfil dele. Sem muitas novidades, além de uma mensagem
do Magrão falando algo sobre ingressos e passagens.
O que indica que o perfil de Salvatore não está bloqueado à Valentina. Pode ser
um sinal de que existe um canal aberto para diálogo. Ao menos não se trata de total
rejeição.
De outro lado, nenhuma manifestação direta. Ante o silêncio de Salvatore, ela
se limitou a acompanhá-lo a distância.
Salvatore se tornou mais assíduo no blog. Mais selvagem também. Não que ela
se interesse por resenhas de músicas. Mas aquilo que ele escrevia Valentina gostava.
Salvatore desperta. O som de um galo desesperado ricocheteia no teto.
Automaticamente, ele toca na tela do telefone e o quarto fica em silêncio. Ouve o
barulho da água. É março, e ainda chove na Capital da República.
Ele tenta se levantar, mas o travesseiro o impede. A escuridão ganha volume, e
ele perde a noção do espaço e do tempo. O galo grita novamente. Nos últimos dias,
aquela cena se repetiu com frequência. Salvatore não se levanta na primeira vez que o
galo toca.
Com esforço, se senta na cama.
Cansado, com a sensação de que está atrasado. Confere as horas, e descobre
que realmente está atrasado.
Na cabeceira, a luz do abajur acesa e um livro de Kurt Vonnegut no chão,
aberto. Páginas viradas para baixo.
Não lembra a última coisa que havia lido. Pega o livro.
“Dwayne ficou em seu terreno por um tempo. Ligou o rádio. Todas as
estações da cidade de Midland estavam dormindo, mas Dwayne sintonizou
uma estação de música country da Virgínia Ocidental, que lhe ofereceu dez
tipos diferentes de arbustos floridos e cinco árvores frutíferas por seis
dólares, com pagamento na entrega.
– Para mim está bom – disse Dwayne.”
Guarda o livro na estante, veste o chinelo e se encaminha para a cozinha. A
boca seca, gosto amargo de fumaça de narguilé.
Bebe três copos cheios d’água e senta-se à mesa do café da manhã.
Leu no Correio Braziliense que fumar uma hora de narguilé é o equivalente a
inalar cem cigarros.
Salvatore enche a xícara de café, monta um misto frio e pensa um pouco. Em
suas contas, havia fumado quatrocentos cigarros na última madrugada, enquanto
escrevia pro blog.
Passos no corredor, sua mãe surge na cozinha. “Bom dia, Beto”, sua voz não
esconde austeridade.
O que mais agora?
“Oi, mãe.”
“Você fez as compras que eu lhe pedi?”
As alfaces.
“Ontem não deu, mãe.”
“Ótimo.”
“Fiquei no computador.”
“Noite em claro, de novo?”
“Exagero.”
Dona Gisele puxa uma cadeira. “Conversei com a Valentina.”
Salvatore troca o foco do misto para sua mãe. “Escuta, Beto. Não vou me
intrometer em sua vida.”
Ele toma café.
“Não gosto de ver você assim. E vocês formam um ótimo casal”, diz dona
Gisele.
Ele não responde.
“Ela quer muito te ver. Uma chance pra conversar com calma.”
“Não tenho nada pra falar com ela”, Salvatore morde o sanduíche.
“Ela falou que te ama muito”, Gisele fala o olhando séria. “A Vali é uma garota
de ouro. Pensa nisso. Ela me disse que vocês dois erraram, mas quer passar por cima.
Não pensa em se casar com outro homem.”
“Nós dois erramos?”, retruca Salvatore. “Mãe, a senhora não sabe o que ela
fez. Cada um que arque com suas consequências. E eu não tenho que ficar me
explicando.”
Então algo macio e rápido passa pela perna de Salvatore. Ele se abaixa para
tentar pegar a cachorra, mas só alcança o rabo. Ela se apoia na cadeira de dona Gisele
e pede colo.
Ainda bem que você apareceu Lila.
“Quem é que está precisando de um banho, hein?”, diz a mãe. “Você a deixa no
petshop?”
Salvatore sabe que aquilo vai lhe render um atraso no trabalho. Outra vez. Mas
não se importa, como não tem se importado com o trabalho nos últimos tempos.
“Para mim está bom”, responde.
Seu Golf é uma das poucas coisas das quais se orgulha ultimamente. Teve de
juntar dez meses de salário para dar entrada no carro, e comprou-o sob protesto de
Valentina. Ela alegou que ele deveria pensar no futuro deles, comprar um
apartamento.
Ele gosta do Golf e gosta de Lila. Passa a mão pelo torso dela.
Agora não tem mais porra de apartamento nenhum.
Dá partida, o som se liga por conta própria. As caixas disparam Falling Down,
Oasis.
Pega o caminho até o petshop. Gotas oleosas da chuva se esparramam no parabrisa. A cachorra se apoia na janela. Este é o sinal, ela quer a janela aberta.
Coloca o focinho pra fora. O vento inunda seu faro, as orelhas voam e fica difícil
manter os olhos abertos. A chuva invade o carro, o ar sopra quente.
“Você vai tomar banho agora.”
Ela não está nem aí para o que ele fala.
Salvatore passa por uma quadra comercial, enxerga uma padaria, e se lembra
que deveria levar um bolo para o trabalho hoje. Aniversário do Afonso. Freia
bruscamente o carro. Fila dupla.
Corre, pega um bolo na prateleira e vai até o caixa. “Moça, tô atrasado.”
Salvatore aguarda a funcionária arrastar a máquina para que ele possa digitar a
senha e ir embora. Escuta uma longa buzinada. Descobre que está bloqueando a saída
de um carro estacionado. A caixa chama sua atenção. “Senha, por favor.”
Uma nova buzinada, seguida de um latido abafado. A funcionária o despacha.
“Obrigada.”
Salvatore agarra a sacola com o bolo, corre em direção a seu carro. O motorista
do carro bloqueado o vê, buzina novamente, mais estridente.
Esboça uma desculpa com a mão e balbucia. “Desculpe, desculpe.”
Ele abre a porta do passageiro, o carro apita incessantemente. A cachorra, em
pé, late contra o caos urbano. Salvatore coloca o bolo no banco do passageiro e tenta
acalmar Lila.
Ele dá a volta no veículo e se senta. Engata a primeira marcha e cai na rua.
Então a cachorra ataca o bolo.
Salvatore estaciona o carro na sede do banco, perto do Eixo Monumental, uma
das avenidas principais do Plano Piloto.
O joelho dói, por causa do esforço na embreagem após um trânsito de
quarenta minutos. Normalmente, a dor desaparece em poucos segundos. Dessa vez
ela se instalou.
Preciso ver um médico e perder três horas da minha vida num hospital. Ótima
bosta.
Ele observa a rua de dentro do seu Golf. Lá fora chove, apesar do calor.
As pessoas culpam a chuva pelo engarrafamento. A culpa é delas mesmo,
dirigindo por aí, entupidas de medo.
Salvatore pega o bolo no banco ao lado. O pacote está estraçalhado, após o
ataque. Sobrou apenas a farofa.
Quem não quiser, não come.
Ele corre em direção à portaria. A chuva quente molha seu rosto, misturandose ao suor que exala ressaca de narguilé.
Enquanto atravessa as ruas do estacionamento, mal vê um carro vindo em
direção oposta. O motorista passa por uma enxurrada que corre no meio fio, e lhe
respinga água suja na roupa social.
Dez e meia. Apesar de não estar em seu momento mais inspirado
profissionalmente, ele se sente oprimido pelo atraso. A sociedade lhe ensinou a se
sentir assim.
O tempo dos outros.
Na sala do departamento não há qualquer sombra da celebração de
aniversário. Ele se dirige à Ritinha. “Oi, Ritinha. E o aniversário?”
Ela olha para a farofa de bolo. “O doutor Ruiz mandou cancelar.”
“E o Afonso? Cadê?”
“O chefe está lhe aguardando”, a expressão dela é grave.
As evidências são ruins. Salvatore tenta fazer alguma piada pra Ritinha. “Trouxe
um cuscuz.”
Ela não move um centímetro dos lábios.
Salvatore entra na sala do chefe. “O senhor aceita um pedaço?”
Nervoso, abre o pacote e começa a roubar farelos. O chefe observa a suja
operação, com desapontamento nos olhos. “Roberto, vou ser direto.”
“Pois não.”
“Na segunda, eu lhe disse que a corregedoria estava checando as folhas de
ponto.”
As veias e artérias de Salvatore resfriam de vez. “O ponto do Afonso foi batido
duas vezes na segunda-feira, em menos de vinte minutos”, diz o doutor Ruiz.
O bolo trava na garganta, impedindo a respiração. “Perdão?”
“Na primeira vez, o ponto foi batido no seu computador.”
O chefe engole saliva. “E na segunda, foi batido no computador dele.”
Salvatore percebe que a situação já foi deflagrada. O melhor é assumir o erro.
“Bem, podemos conversar a respeito.”
“Não tem conversa, Salvatore. Tive reunião ontem com a corregedora. O
Afonso está demitido.”
Salvatore se espanta de verdade. Ajeita a coluna no encosto. Enfim toma
alguma coragem. “Não é um pouco exagerado?”
“Querem usá-lo de exemplo.”
Salvatore tenta rebater. “Todo mundo faz isso por aqui. E vão demitir o Afonso?
Por causa de um dia?”
“Já deram entrada no processo disciplinar.”
Doutor Ruiz se levanta da cadeira. Parece que vai sacar uma vara de bambu e
sentar na cabeça de Roberto Salvatore. Sem reação, Salvatore apenas pega mais farelo
de bolo.
Doutor Ruiz assume uma posição de negociação. “Vou lhe dar uma opção,
Salvatore”, faz uma pausa, ajeita a calça. “Se descobrir quem está acobertando essa
merda toda, eu não demito o Afonso.”
As coisas parecem melhorar. “E o que acontecerá com ele?”
“Será exonerado do nível de analista, vai voltar a ser escriturário.”
“E quanto à pessoa que o ajudou?”
“A mesma coisa”, o chefe volta a se sentar. “Você tem até hoje à noite pra
descobrir.”
Salvatore, em menos de dez segundos, resolve jogar aquele cargo de chefe de
divisão na privada. “Doutor Ruiz, eu bati o ponto do Afonso.”
O chefe o mira nos olhos em silêncio. No lugar da confiança que havia entre os
dois, há um vácuo. “Estou desapontado, Salvatore.”
“Posso entender.”
“Querendo safar alguém?”
“Isso é minha responsabilidade.”
“Você será exonerado da chefia. Vai voltar a ser escriturário.”
“Aguento.”
“E vai voltar pra agência.”
Salvatore engole em seco. Agência é foda.
“Arrume suas coisas. Alguém deve te ligar.”
“Sem problemas.”
“É só isso.”
A última ação de Salvatore na diretoria é guardar os poucos itens na mochila.
Nada de porta retratos, plantas, badulaques turísticos, ou algo que lembre que um ser
humano trabalhe ali.
Os quatro anos de análises financeiras couberam no pen drive. Não foi pouco.
Exercer a chefia da divisão por dois anos, também não foi pouco. A raiva que sentia do
trabalho cede espaço para um sentimento de incompetência. E insegurança.
Agora é tarde.
Pode ser a oportunidade para mudar de rumo. Ou pra virar um fodido pelo
resto da vida. Trabalhador medíocre, sem mulher por perto.
Os pensamentos vêm e vão enquanto Salvatore fecha a mochila.
Uma ligação no telefone fixo. Número interno do banco. Ignora. Terá de
começar tudo de novo. Atendendo o povão numa agência da perifa.
Deveria ter estudado antes, um emprego melhor.
O plano agora é fugir daquele banco, de casa e de sua ex-namorada. A cidade
está lhe sugando a alma. O jeito é cair fora.
Quem sabe não voltar?
Outra ligação, no celular. Também do banco. Ele deixa tocar até que surge uma
mensagem de voz. O resquício de identidade corporativa lhe faz ouvir o recado.
‘Roberto, aqui é Isabela, da agência do Gilberto Salomão.
Fui informada que você virá trabalhar conosco. Gostaria de
fazer uma reunião contigo. Pode ser hoje?’
Valentina checa as horas. A manhã se prolonga, junto com a ausência de
vontade. Tomou três cafés, leu dois jornais, o Correio e a Folha, e ouviu sem ânimo o
discurso da secretária do gabinete sobre hormônios no frango.
Por ora, tenta superar o título de um processo. TERCEIRIZAÇÃO TRABALHISTA
NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. ART. 71, § 1º , DA LEI Nº 8.666/93 E
RESPONSABILIDADE
SUBSIDIÁRIA
DO
ENTE
PÚBLICO
PELAS
OBRIGAÇÕES
TRABALHISTAS DO EMPREGADOR CONTRATADO.
Então, uma luz azul pisca em seu celular. Atualização no Facebook. Mais gente
com pratos de comida. Mesmo assim, Valentina abre o aplicativo.
‘Roberto Salvatore compartilhou a foto de um evento.’
Acima da foto, uma frase.
‘Lollapalooza, Brasil! Cobertura ao vivo da Tirania da
Contingência.’
Parte II - Durante
IDA
Quinta, 28 de março, 11h30.
Ótima sensação. Largar as responsabilidades para trás, abaixo das nuvens.
Imagens de um fim de semana intenso pipocando à frente. Magrão reclina a poltrona,
satisfeito.
Sexta, sábado e domingo, não há o que ser conversado. Acordar, combater a
ressaca, talvez pagar fiança pro Nariz sair da cadeia. E se imbuir de espírito
festivalesco.
Para a noite de quinta, perspectiva de encontro com a Lilica. Não que vá fazer
parte da contabilidade geral, mas é garantido. Ela marcou num pub irlandês. Uma
banda barulhenta, pessoas recém-saídas do trabalho, o escuro e a inhaca de cerveja
podre.
Sensacional.
Ideia da amiga paulistana de Lilica, Carol, que é toda a promessa de um jardim
florido. Como ele mesmo está fora do páreo, ao menos vai fazer um esforço para tirar
Salvatore do pântano.
No cômputo, a viagem vai fazer bem ao amigo. O ar poluído de São Paulo, dar
uma boa sacada em todas aquelas roqueiras, se lambuzar na liberdade, direito
inalienável a um macho de trinta anos.
Existe a franca possibilidade de Salvatore ter acessos de saudosismo romântico,
fruto da separação. Coisa que Magrão está pronto para rechaçar.
Ele liga o celular em modo avião, e carrega um jogo gratuito.
Salvatore acorda com um esbarrão. Olha em volta, tomado pelos vestígios de
um sonho esquisito. A aeromoça, no corredor, sorri e lhe estica um saco de amendoim.
“Aceita bebida?”
Salvatore leva alguns segundos para responder, se conectando à realidade.
Imagens soltas do sonho correm na memória. Uma mistura de dinâmica de grupos
com uma cerimônia do Oscar.
Magrão, do outro lado, atravessa a vez. “Tem Heineken?”, pergunta ele à
aeromoça.
“Temos Pepsi e suco de manga light.”
“Minha nossa. Nem uma Xingu?”
“Infelizmente não.”
“Vou então de manga light.”
Magrão instala o copo na mesa e futuca o celular. Salvatore observa a bunda da
aeromoça, enquanto ela se afasta.
Nota que Magrão está desesperado no aparelho eletrônico, passando o
indicador sobre a tela. “Tá bolinando o celular?”, pergunta Salvatore.
“Jogo novo. Vence quem desenrolar o papel higiênico no menor tempo.”
Aquilo não soa bem para um despertar aéreo.
“Quer tentar?”, pergunta Magrão.
Salvatore, sem empolgação, pega o aparelho. A tela dispara o cronômetro do
jogo. Então começa a imitar os movimentos do Magrão, esfregando o dedo pela tela.
Quando o papel higiênico chega ao fim, Salvatore devolve o telefone ao
Magrão, que confere. “Um minuto e nove segundos?”
“É o que temos pra hoje.”
“Meu recorde é doze segundos.”
“O seu e o do Barrichello.”
“Você vai ver.”
Magrão inicia uma nova partida. Então o sonho de Salvatore surge na
lembrança.
“Magrão, você me deve um pedido de desculpas.”
“Por ser melhor que você?”
“Por ter invadido a porra do meu sonho.”
“Que que há, seu invertido? Anda sonhando comigo?”
“Tu gastou uma porra de sonho inteiro com seus problemas sem sentido. Eu
poderia sonhar com sexo explícito, mas fui sonhar com você.”
Magrão não dá a menor bola. Engata uma partida após a outra no jogo do
papel higiênico, e responde a Salvatore no automático. “Você teve um sonho de
sacanagem comigo?”
“Nem que você tivesse o corpo da Pamela Anderson.”
“Ela ainda dá um caldo.”
“Presta atenção, cacete. Sonhei que nós estávamos em uma dinâmica de
recursos humanos.”
“Quanto mau gosto.”
“Pois é, foi um horror. O nome da dinâmica era ‘ser humano extraordinário’.”
“Muito bonito.”
“Não tem nada bonito.”
“Vindo da sua cabeça, foi surpreendente.”
“Cala a boca e escuta. Nós estávamos lá, vestindo smoking, numa espécie de
cerimônia de Oscar. A plateia era formada pelos participantes da dinâmica. Todos
vestiam smoking.”
“Não tinha mulheres?”
“Não.”
“Nem a Pamela Anderson?”
“Não tem a Pamela.”
“Podia ter.”
“Então, nós estávamos lá sentados, e o coordenador da dinâmica chamou você
pelo microfone. No palco, tinha um cartaz gigante, com uma caricatura sua. Você
levantou e foi até lá.”
“De fato, eu sou extraordinário.”
“Não conte com isso”, Salvatore começa a rir. “O coordenador lhe fez ajoelhar,
botou a mão em sua cabeça e predisse: no futuro, você vai ser careca. Vai ter careca e
barriga de lama.”
Magrão larga o celular.
“Careca? Meu futuro é ser careca?”
“É o que ele previu.”
“Esse é o seu futuro. Olha essa sua cabeça de motel.”
Salvatore o olha, sem conhecer a piada.
“Tem a entrada, a saída, e em cima está tudo fodido”, diz Magrão, rindo.
“Tô tomando finasterida.”
“Então seu futuro é ficar brocha.”
“Bem, não falaram nada disso no sonho.”
“O cara só viu o meu futuro?”
“Sim. Você será um ser humano extraordinário. Careca e com barriga de lama.”
“E o que isso tem a ver com recursos humanos?”
“Sei lá. Talvez o sonho esteja dizendo que nossa carreira não será brilhante.”
“Alguém ainda almeja isso?”
“Cara, pensa bem. Gastamos boa parte de nossa grana, tempo e energia com
essas músicas e festivais. Não vamos a lugar algum com isso. Por que não investimos
em uma carreira de verdade?”
“Tá parecendo uma moça, com esse papo. Bicho, você só precisa garantir o
emprego pra lhe pagar a cerveja e os ingressos. O resto é firula.”
“Mas vamos ficar a vida trampando com algo que não gostamos?”
“Cara, você tá chateado com o lance do banco. Mas você não foi pra rua. Só
saiu da chefia.”
“Tomei uma bela mijada na testa”, diz Salvatore, melancólico.
“Exatamente do que estou precisando. Mijar.”
Magrão se levanta e vai ao banheiro. Salvatore se arrepende de ter chutado o
balde no emprego. Evaporou, simplesmente. Nem ao menos retornou a ligação para a
nova chefe.
Magrão precisa fazer algo. Aquele não é um bom começo de viagem. Retorna à
poltrona, se senta e aperta o cinto.
“Salva, escuta só. Já pensou em ganhar dinheiro com aquele seu blog?”
“Mais fácil vender maconha na esquina.”
“Quantos acessos tem o site?”
“Onze por semana.”
Magrão não esconde o riso. “É muita gente cara. Você podia vender alguma
coisa lá.”
“Tipo finasterida?”
“Li sobre um cara que viaja e escreve artigos a respeito dos lugares que ele
conhece. De alguma maneira ele ganha dinheiro com isso.”
“Ele deve roubar padaria.”
“Porra, você tem que tentar cara. Essa gente acessa o seu site para ler o que
você escreve. Alguém se importa com isso, e nem se preocupam se você faz aquilo
enquanto vai ao banheiro.”
“O conteúdo é uma merda mesmo.”
“E daí? Onze pessoas querem ler o que você coloca lá, toda semana. Pense
sobre isso. Você pode ser escritor de verdade.”
“Um blogueiro não pode ser um escritor de verdade, por definição.”
“O que importa é ganhar dinheiro. Pensa nisso. Vou ser seu sócio.”
Magrão dá um tapa no ombro de Salvatore e volta a pegar o celular, para uma
nova partida de papel higiênico.
Salvatore sabe que o Magrão não acredita naquela ideia estúpida, mas gostou
da tentativa do amigo de animá-lo.
Ele observa as nuvens correndo pela janela. O sol bate em seu rosto. Seria bom
não ter que voltar a uma baia do banco.
Ele precisa começar a cobertura do Lollapalooza. Ele pega o celular e digita.
>> Nota sobre o futuro
Publicado: março 28, 2013 em Tirania da Contingência
Uma morena bonita canta o refrão, ao meu lado. Olhos de
mel, o cabelo cuidadosamente desgrenhado. Um pequeno dread
escorrega pela sua nuca.
Do outro lado, um barbudo filma o show. Não larga o
celular. A luz da tela compõe o cenário da plateia. Ele me nota
e nossos olhos se cruzam, por três segundos.
É isso. Nós três, todos contribuintes da Receita Federal.
Checo à volta. Outras dezenas de pessoas fazem como o
barbudo, e filmam a apresentação com os celulares. A luz da
tela bate no rosto das pessoas. Jovens, adultos, velhos.
Alguém ali conseguiu um emprego, outro tomou um pé na
bunda. Uma mulher com um câncer no pâncreas. Um adolescente
que perdeu o pai cedo demais.
Tudo isso perde o sentido no exato momento em que o The
Killers toca o refrão de Mr. Brightside. É bom esquecer a
tormenta lá fora.
A morena canta junto, sílaba por sílaba.
::
Roberto Salvatore
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Valentina espreme os olhos. O avião pousa aos trancos. Ela segura firme na
poltrona. Detesta aterrissagens. Alguns pilotos simplesmente ignoram o conforto dos
passageiros, e aterrissam feito um marreco em fúria.
Enquanto o piloto taxia, Valentina aspira e solta o ar, compassadamente. Sua
mãe a ensinou a controlar a ânsia de estômago desde garotinha, mas não é um
procedimento garantido.
Pega o saco pendurado na poltrona da frente, e o abre. A senhora ao seu lado
se remexe. “Tá mal, menina?”
Por vezes, Valentina gostaria de não participar das conversas. O mundo poderia
lhe deixar em paz. Principalmente às vésperas de uma golfada.
A senhora, novamente, faz uma tentativa de conversa. “Escute, se preferir, vá
ao toalete.”
Existe a hipótese de enfiar a cabeça da velha no saco.
Enfim, ela consegue tranquilizar a ânsia. Está no controle do corpo novamente.
Então responde à sua vizinha. “Obrigada pela preocupação.”
“Minha filha também passa mal.”
Valentina repara no xale prateado que a senhora usa, e decide que não quer
ficar velha.
“Ela se parece um pouco com você. Acabou de casar, na semana passada”,
continua a senhora.
Então ela não se parece comigo.
“Coisa boa.”
“Foi lindo. Ela tava tão feliz.”
“Imagino.”
“E você, é casada?”
Valentina percebe que a senhora observa sua mão. Um singelo anel prateado,
circundado por um fio de ouro branco. Salvatore lhe deu em Itacaré.
A senhora continua à espera de uma resposta. Valentina precisa sair daquela,
sem derrapar. “Ainda não temos data.”
Para alívio de Valentina, o avião estanca e os passageiros se ejetam de uma vez
só.
Ela se pergunta se não é melhor arrancar aquilo do dedo. E se pergunta,
também, se sabia direito o que fazer em São Paulo.
VÉSPERA
QUINTA, 14H30.
“Não há reserva em seu nome.”
Salvatore pensa que foi necessário muito gel para eriçar o cabelo do
recepcionista. Algo que dá um toque ainda mais decadente ao saguão do hotel. No
chão, um tapete persa carrega a atmosfera de pó. Quadros abstratos despencam pelas
paredes.
Ao lado, três roqueiros fazem o check-in. São gordos e barbudos. Uma gostosa
lhes atende, sem causar problemas.
“Mas eu fiz a reserva ontem”, declara Magrão, ao atendente afundando em gel.
“Não consta no sistema.”
“É impossível.”
A exaltação não melhora o humor sombrio do recepcionista.
Salvatore não quer brigar. Tenta outra saída. “Magrão, deixa que eu resolvo.
Amigo, você não consegue nada por aí?”
Magrão se afasta, resmungando. O recepcionista não esconde o tédio. “Só um
instante.”
Salvatore se apoia no balcão e dá uma sacada no Facebook.
Mais uma pessoa curtiu o anúncio sobre o Lollapalooza. Outras pessoas haviam
feito o mesmo, em geral, homens de sua faixa etária. Mas dessa vez foi uma garota
chamada Tati Gagliasso. Ela ainda deixou um comentário.
‘Oi Salva, tudo bem? Quanto tempo! Você já tá em Sampa?
Vamos nos encontrar lá no festival! Me liga: 11 9$%&*-xxxx. Bjs’
Quem diria. Quanto tempo? Cinco, talvez oito anos.
Num ímpeto, ele toca no número na tela. O aparelho automaticamente faz a
ligação. Toca, toca. Ninguém. Ele grava o número na memória, pra mais tarde.
Sente-se bem. Quase pode ouvir o vento soprando em sua orelha ‘de volta ao
jogo’.
Vê Magrão imerso no jornal em cima da mesa e resolve aquecer a expectativa
para a noitada. “E aí, qual a boa pra hoje?”
“Vamos encontrar a Lilica. Vai levar aquela amiga.”
“Boa. Onde?”
“Num pub.”
O recepcionista lhes chama. “Senhor, temos um cancelamento.”
“Ótimo.”
“Quarto com cama de casal.”
Magrão e Salvatore estão na fila do O’Malley’s. Lá dentro, um som abafado. A
banda toca Amy Winehouse.
“Magrão, esse lugar tá apinhado de playboy”, diz Salvatore, com a voz tensa.
“Está cheio de gatas, olhe só essa fila.”
“Os caras tão usando blazer. E sapato social.”
Magrão olha para Salvatore, trajando seu uniforme. All-Star sujo e camiseta
preta. Pra ganhar alguém naquele pub, o papo tem que ser muito bom.
“Um bando de frouxos. Concentre-se nas mulheres”, diz Magrão. “E na
Guinness.”
“Cara, você sabe quanto é a entrada?”
“Relaxa. Uns cinquenta paus.”
“E a Lilica?”
“Chegando.”
“E a amiga? E se for mala?”
“Tá podendo escolher? Certo. Você e o Charlie Sheen.”
“Posso abrir uma exceção.”
“Vamos nos afogar em cerveja irlandesa, o que vier depois disso é lucro. E já te
falei, a Carol é um foguete.”
Chega a vez dos dois. Um segurança gordo, com o terno apertado, faz sinal para
se aproximarem.
O segurança exagera na revista de Salvatore. Magrão ri.
Salvatore se embrenha pelo ambiente sombrio e esfumaçado. Luzes amarelas
estão espalhadas pelo salão cheio de gente, jovens adultos descolados. O som da
banda encobre todo o ambiente. A cantora esgoela You Know I’m No Good.
“Magrão, o segurança também apertou o seu saco?”, pergunta Salvatore.
“Ele gostou de você.”
O soul empresta ao pub uma atmosfera de boas promessas. Eletricidade
intensa, vidas agitadas. O frenético das coisas importantes acontecendo na cidade.
Os dois vão até o balcão atrás do cardápio de cervejas importadas.
“E aí, bora de Guinness?” pergunta Magrão.
“De novo?”, Salvatore reclama.
“Eu gosto.”
“Algo diferente. Essa Honey Dew?”
“Dezenove pilas, o pint, tá louco?”
“A Guinness é vinte.”
“Vale a pena.”
“Vamos lá, Magrão, tenta algo novo. Tem essa London Pride.”
Magrão chama a bartender com a mão, e cutuca Salvatore. “Veja só. É assim
que se faz. A grande dica sobre sedução é o sorriso.”
A garçonete chega perto deles e Magrão lhe sorri. “Olá, boa noite” diz ele.
“Estamos com uma dúvida sobre cervejas. Você pode nos ajudar?”
“Claro”, ela responde sorrindo.
“Pedimos a Honey Dew ou a London Pride?”
“Estão procurando algo extremamente amargo?”
“Não necessariamente.”
“Então peçam a London Pride.”
“Você é quem manda.”
A garçonete sai alegre, Magrão comemora. “É, ela gostou de mim.”
“Ela só quer vender cerveja.”
“Salva, aprende uma coisa. Você tá solteiro agora.”
“Solteiro e sozinho.”
“Tu vai sair dessa, e entender qual é o sentido da vida.”
“Achava que era fazer planilhas pro banco.”
“Não, cara. O sentido da vida é ganhar dinheiro, e gastá-lo todo com mulheres.”
“Mulheres”, Salvatore olha ao longe e depois mira o ambiente ao redor. Grupos
de garotas circulam por ali, rindo afetadas. Morenas, nerds, loiras, sorridentes,
gorduchas, malhadas. “Cara, acho que tô fora de forma.”
A garçonete volta com as cervejas e entrega aos dois. Magrão agradece. “Se a
cerveja for ruim, vou atrás de você.”
Ela apenas ri e atende outro cliente com a comanda esticada.
“É, ela gostou de mim”, Magrão propõe um brinde a Salvatore. “Salva, hoje a
noite é nossa.”
Magrão se vira quando chamam seu nome. “A Lilica.”
Salvatore observa Magrão indo ao encontro de uma garota pequena, cabelo
curto e liso.
Lilica dá um abraço em Salvatore. “E aí, Salva da Bahia! Tudo beleza? Essa é a
Carol”, diz Lilica, em baianês.
Ela observa os dois trocando um beijo desajeitado. “Salva, cadê a Vali?”
Salvatore engasga.
“Eles acabaram”, se antecipa Magrão.
“Como assim, você acabou com minha amiga?”
Salvatore suspira, faz um bico e ergue a sobrancelha. “Pois então.”
“Achei que vocês iam casar.”
“Já me falaram isso.”
“Você não tinha o direito de acabar. Todo mundo anda se divorciando.
Ninguém se ama.”
“Amiga, você não sabe se ele está mal. Larga de ser insensível”, se pronuncia
Carol, pela primeira vez.
Lilica observa como Salvatore admira Carol. Embasbacado. E, pelo jeito, Magrão
também. Então dá um jeito de roubar o copo de Magrão para roubar-lhe a mira.
“Vamos sair dessa bad, Salva”. Lilica toma um gole. “Delícia. Experimenta,
Carol. Salva, tá preparado pros shows?”
“Acho que não.”
“Vou pedir uma cerveja dessas”, diz Carol.
“É a London Pride”, se prontifica Magrão. “Posso ir com você.”
“Você fica aqui”, diz Lilica. “Carol, pede uma pra mim também.”
Carol se afasta. Lilica puxa novamente a atenção pra si. “Salva, e aquele blogão
do mal?”
“Tá lá.”
“O Salva já tem onze leitores”, Magrão ironiza.
“Parabéns.”
“Tirando o próprio Salva, dez.”
“Sempre leio aquela coisa. Gosto das músicas”, diz Lilica a Salvatore.
“Aliás, tenho que lhe agradecer por ter mandado aquela do The Kooks”,
responde Salvatore.
“Não é cockies, é cócks.”
Magrão rouba o copo das mãos de Lilica. “The Cocks, tipo ‘os pintos’?”,
pergunta ele.
Carol se aproxima com as duas cervejas, entrega uma à amiga baixinha, que
não para de falar e se agitar. A última palavra que Carol pescou foi ‘pintos’.
“O que têm os pintos?”
“Estamos caçando leitores pro blog do Salva”, responde Lilica.
“E sobre o que é o seu blog?”, pergunta Carol a Salvatore.
Lilica é mais rápida. “É de fofoca musical. Inclusive eu que indico as músicas,
sou bem melhor que ele.”
Carol observa Salvatore rindo da amiga pequena. Simpático.
“Salva, a Carol é produtora. Ela tá organizando a vinda de um DJ de hip hop pro
Lollapalooza. Como é o nome dele mesmo?”, diz Lilica.
“Dave Narrow.”
“De onde?”, pergunta Salvatore.
“Califórnia.”
“Nunca ouvi. Quando ele toca?”
“No primeiro dia”, responde.
“Tá na minha agenda”, fala Magrão, espremido entre Lilica e a parede repleta
de apetrechos irlandeses.
Lilica continua agitada, quase não deixa o namorado falar. Namorado, peguete,
pretendente. Qualquer coisa assim.
“Então, Salva, a Carol entende tudo de rap. Podia indicar umas coisas.”
“Poxa, eu ia gostar”, Carol arregala os olhos.
Salvatore passa a mão pelo cabelo, sem jeito, hipnotizado. Uma leve sombra
contrasta com a íris verde, valorizada pelo rímel. É difícil mirar diretamente nos olhos
de Carol.
“Qual o nome do blog?”, ela pergunta, chegando mais perto de Salvatore.
Salvatore observa Lilica e Magrão discutindo sobre Amy Winehouse.
“Alo-ou”, diz Carol.
“Oi? Tirania-da-contingência-ponto-com.”
“De onde saiu isso?”
“É uma frase do Philip Roth.”
“E o que significa?”
“Não faço a menor ideia.”
Carol espreme os olhos. “E você aceita hip hop?”
“Pra falar a verdade, não.”
Carol se indigna. “Quanta discriminação.”
“Não sou conhecedor do assunto”, diz Salvatore.
Ele não pode confessar que prefere trilha de novela à esbórnia sonora de um
sujeito deslumbrado.
A garota faz um bico. Pega o celular da bolsa e aproxima da orelha dele. “Olha,
você tem que escutar essa música aqui do Dave. Já ouviu?"
Salvatore prega o ouvido no aparelho.
Escuta por alguns segundos. Batidas eletrônicas se perdem no pub, a essa
altura claustrofóbico. Pessoas se acotovelam, em um esforço permanente para cruzar
de um lado ao outro.
Salvatore escuta apenas ruído no celular. Alguém imitando um pica-pau.
“Excelente”, ele ri.
“É muito bom”, diz ela, com o rosto próximo do seu.
Salvatore engole mais cevada, deixando um vácuo de assunto entre os dois.
Ao lado, Lilica tenta morder o nariz de Magrão. Acuado, ele apenas ergue a
cabeça, fugindo das dentadas da pequena elétrica.
Nada surge na mente vazia de Salvatore. Uma chance está ali, em sua frente,
exuberante, cabelos cacheados. Quase loira, mais tendente pro castanho. Ela olha para
os lados. Começa a prestar atenção no cover de Amy Winehouse. Balança a cabeça e
sacode os braços, tentando agitar a noite.
Trabalha com música, cuida de artistas. A sorte se impõe a um palmo de seu
nariz, e, apesar disso, Salvatore, afobado, se concentra em sorver um pint inteiro de
uma cerveja que foi feita para ser degustada.
Quando acaba, enfim cria coragem para falar com ela. “Quer mais cerveja?”
Ela olha seu próprio copo, quase transbordando. “Daqui a pouco. Obrigada.”
Salvatore vai até ao balcão e pede outro pint. Mais um e estará aquecido, a
conversa fluirá naturalmente.
Quando volta, Carol está conversando com um sujeito de blazer. Jeito de
garotão bem-sucedido da capital paulista. Os dois se conhecem. Ela ri dos comentários
dele.
O ajeitado pub, meticulosamente adornado com motivos irlandeses, quadros
de Dublin, trevos verdes e uma forçada ode futebolesca, ainda que repleto de gente,
se torna um antro de solidão.
O cara de blazer, descolado, com um braço segura as costas de Carol, e, com o
outro, aponta para o andar de cima. Ela faz que sim.
Salvatore observa a parelha andando em direção às escadas.
Antes de fechar e enviar o post, Salvatore revisa o texto rapidamente. Poderia
ser maior, mas e daí?
>> A Canção do Amor
Publicado: março 29, 2013 em Tirania da Contingência
Atravesso a saída. Por trás das portas, fantasmas em
frenesi.
Um lugar pequeno, tanta gente, sem ninguém. Frases
ensurdecedoras, vazias.
Uma rotina desgastante, dum esforço consciente de
sorrir, falar com desconhecidos e se lembrar do nome das
pessoas.
Que não faz sentido, só o sagrado convite, a engolir uma
dinamite, e pedir o fogo ao pedestre.
Criolo está certo. Não Existe Amor em SP.
::
Roberto Salvatore
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Dia 1
OVOS MEXIDOS
Sexta-feira, 29 de março, 10h00.
“Você podia ter me contado.”
Lilica observa o farelo no canto da boca de Magrão. Um vagaroso mastigar.
“Não deu tempo”, responde Magrão.
“Você me racha a cara. Por que eles acabaram?”
Magrão fica sem jeito. Para de mastigar.
“Ele ou ela que acabou?”, Lilica piora as coisas.
“Foi uma merda generalizada.”
“Ele a traiu?”
“Só que ao contrário.”
“A Vali?”, Lilica se assusta. “Não acredito.”
Sorve café. O líquido quente lhe cai bem. “Sabe, da última vez, ela me falou que
eles tavam em crise. O Salva não ligava mais. E depois brigaram por causa daquele
carnavalzinho de vocês.”
Magrão se levanta, “vou pegar mais torrada.”
Lilica o observa fugindo em direção ao bufê. Valentina lhe disse que Salvatore
não avisou nada sobre o carnaval.
Absurdo.
O Magrão, por sua vez, também não consultou Lilica. Apenas comunicou que ia
a Diamantina, após ela sondar se ele não topava um pulo na Chapada dos Veadeiros.
Aquela situação é estranha. O Magrão não arreda o pé, prefere deixar as coisas
como estão. De maneira que possa ir e vir sem dar satisfação.
Apesar do pouco contato com Vali, elas são amigas. Melhor investigar por
conta própria.
Magrão pega um pouco de ovo mexido, a obra-prima da indústria hoteleira.
Não está a fim de dar explicações sobre o crime de Valentina, até porque ele mesmo
só conhece a versão do diretor, Roberto Salvatore, corno e testemunha ocular ainda
por cima.
Corno. Que palavra. Prefere não imaginá-la acima de sua própria cabeça. Fato é
que Salvatore e Valentina estavam em uma espécie de interregno da relação, e ambos
procuraram usufruir do vácuo jurídico. A rigor, foi o próprio amigo quem deu o
primeiro passo.
“E aí, Magrones”, soa a voz do amigo, atrás de si.
“Opa, Salva. Pronto?”
“Preciso de café. Dormiu onde?”, diz Salvatore, com cara de travesseiro.
“No quarto da Lilica, ela se hospedou aqui.”
“Maravilha. Agora tenho um quarto só pra mim.”
“Não conte com isso.”
Os dois se se sentam à mesa com Lilica, que digita alguma mensagem. Ela
cumprimenta Salvatore sem desviar os olhos do celular. “Bom dia, Salva. Dormiu
sozinho?”
Magrão acha graça. Salvatore também.
“Fiz amor comigo mesmo.”
“Sei como é.”
“Ficaram até tarde ontem?”
“Você foi embora muito cedo. Não curtiu o O’Malley’s?”
“Tava muito cansado.”
Magrão acha que, na verdade, Salvatore não teve colhão pra chegar na Carol.
“Ô, Salva, e a Carol? Nada?”, pergunta Lilica.
“Ela sumiu com um camarada.”
“Acho que era um amigo dela”, diz Lilica. “De toda forma, você devia ter
insistido mais. Ela requer muita atenção.”
“Vou escrever uma poesia.”
“Frouxo”, diz Magrão.
“Ela vai hoje?”, pergunta Salvatore à Lilica, que mastiga uma melancia.
“Sim, mas vai ficar por conta do show do Dave, o rapper que ela está
produzindo. Falando nisso, que horas nós vamos?”, pergunta Lilica.
“Marquei às três com uma amiga”, diz Salvatore.
“Conheço?”, pergunta Magrão, entusiasmado.
“Da época da faculdade. O nome dela é Tati. Um espetáculo, virou jornalista de
uma rádio de trânsito. Anda de helicóptero pra lá e pra cá, falando sobre os
engarrafamentos.”
“Estou ficando excitado, cara.”
APLICATIVO
SEXTA, 13H30.
Aos trinta e um, Valentina se sente velha. Percebe sua paciência vazia diante de
uma fila quilométrica. A ideia de passar as próximas dez horas com aquela horda de
jovens a deixa em pânico.
Sua irmã, à frente, esparrama batom nos lábios. O cabelo negro, contido num
rabo de cavalo, deixa à mostra a nova tatuagem. Um pequeno par de borboletas.
“Sara, por que todas as garotas têm que usar batom vermelho?”
“Tá na moda.”
“E não dá pra ser verde?”
“A vocalista do Copacabana Club só canta de batom cor de sangue.”
“E daí?”
“Daí que ela vai tocar agora no começo da tarde. E daí que ela é hype.”
Valentina quer perguntar o que significa ser hype, mas não quer se deslocar
mais do que já está.
A fila permanece estacionada. As pessoas se aglomeram do jeito que podem,
mas parecem não ligar para o assunto, ou então disfarçam muito bem. Não há
qualquer sombra de diversão e todos ficam ali, animados, tagarelando, prestes a pegar
o passaporte da euforia.
“Mana, essa fila que não anda! Quanto tempo vamos ficar em pé?”
“O dia inteiro.”
“Está louca? Não vou aguentar. Não com esses tamancos.”
“Falei pra você vir de tênis. Se chover, aí dentro vira um lamaçal.”
Valentina enxerga nuvens cinzentas no céu da capital paulista. Além dos pés, o
penteado está em risco. Saiu correndo do café da manhã. O pai reclamou. “Você fica o
ano inteiro longe e agora vai ficar aí arrumando esse cabelo?”. Valentina escapou e
disse que eles podiam sair pra jantar.
Então se pôs a manusear escova e secador. Cinquenta minutos que podem ir
por água abaixo.
Sara tenta acalmá-la. “Relaxa, vai. Tem um lounge com uns pufes lá dentro.
Ajuda com as varizes.”
“Chuva, lama, tamanco, barulho, multidão, varizes. Estou ótima.”
O celular de Sara toca. Enquanto a irmã fala ao telefone, Valentina nota o trio
de moleques na frente delas. Eles conversam agitadamente, empolgados com os
shows. Falam bobagens e riem alto. Assim como a maioria dos homens da idade de sua
irmã, vestem camisetas ruins estampadas com o nome de alguma banda.
Um deles segura uma garrafa de vodca Balalaika e passa pra um dos amigos
após tomar um gole generoso.
Ela tenta se distrair, olhando alguma novidade no mundo dos aplicativos.
Facebook, Whatsapp, blog, nenhum sinal de Roberto Salvatore. Apenas uma
mensagem de Lilica.
‘Oi Vali! Pensei que ia te encontrar aqui em São Paulo. O
Magrão contou que vocês terminaram. Tá tudo bem? Conta
comigo, tá? Bjs.’
Lilica não era propriamente uma amiga íntima, mas foi simpático da parte dela
mandar aquela mensagem. Mais do que simpático, poderia ser de boa ajuda.
Sara segura o cotovelo de Valentina. “Quer beber alguma coisa agora?”
“Acho que não.”
“Lá dentro é caro, hein.”
“Não sei se é uma boa ideia ficar que nem esse guri aí da frente. Ele vai vomitar
daqui a trinta minutos.”
“Bom, vê se tenta aproveitar um pouco. Gastou uma nota pra vir.”
“Setecentos reais. Por trecho.”
“Isso que dá vir de última hora.”
“Nem me fala.”
“Fora os ingressos. Pagou inteira ou meia?”
“Inteira. Perdi minha carteirinha estudantil.”
“Carteirinha, Vali? Ninguém pede isso. É só mostrar um guardanapo.”
“Não me sinto bem enganando os outros.”
“Larga de ser besta, mulher. Eles é que te enganam cobrando trezentos reais
por dia.”
“Deixa pra lá. Agora já tô aqui.”
“Já decidiu o que quer assistir hoje?”
“Ainda não vi a programação.”
“Então eu decido. Vamos ver The Killers, Cake e DeadMau5. E Copacabana
Club.”
“Tá bom pra mim.”
“Anima, Vali! Olha só. Cheio de roqueiro bonitinho.”
“Que nem esse?”
Valentina aponta o jovem à frente. Brincos nas duas orelhas e olhar vago. Com
uma mão dá uma bocada em um cachorro quente, e, com a outra, emborca
novamente a botelha. Dessa vez com mais fervor. Sacode a cabeça e as argolas
prateadas, sob efeito do destilado. Solta um grunhido bárbaro, então nota que as duas
vizinhas o observam.
“Oi, meninas, aceitam um gole?”, diz ele, ofertando o frasco.
“Não, obrigada”, dizem as irmãs, em uníssono.
“Ou querem cachorro quente?”, continua, invertendo as mãos.
Os outros amigos continuam conversando, alheios à empreitada salsichesca.
“E vocês são daqui de São Paulo?”
“Não”, diz Valentina.
“Sim”, diz Sara.
“Eita”, diz o rapaz. Dá um passo à frente, intentando acalorar o debate. Mas
perde o controle do sistema digestivo e é tomado por um refluxo. Apoia-se em uma
grade e golfa no asfalto ao lado da fila.
Sara protesta. “Que nojo.”
Valentina ri da cena. Sorri pela primeira vez no dia. Por um instante, sente um
alívio. Esquece-se do objetivo que a levou até aquela fila desnecessária.
Salvatore adentra o vagão. Grupos de roqueiros e hedonistas em geral se
amontoam pelo metrô vazio naquele início da tarde.
Agarra-se ao ferrolho dependurado. Após o tranco da partida, ele observa a
estação nova em folha desaparecendo pela janela.
O casal de amigos está sentado em um banco. Lilica tenta dormir com a cabeça
tombada no vidro, e Magrão gasta toda a concentração operando o smartphone.
Ao lado, um grupo de cinco garotas emana ondas de frescor. São jovens e
estão empolgadas com o festival. Elas lembram Salvatore sobre as boas possibilidades
de se estar solteiro.
As garotas conversam sobre os shows. The Killers, Passion Pit, Dave,
DeadMau5.
Ao barulho do deslocamento do metrô se soma uma voz metálica, que sai pelos
intestinos do sistema de som. “Próxima estação, Vergueiro.”
A voz do maquinista está arrastada, rouca. Salvatore tenta tirar Magrão de sua
concentração budista. “Ei, Magrones. Notou que o maquinista está bêbado?”
“Que maquinista, porra? É um robô”, responde Magrão.
Salvatore se sente besta e insiste em algum tipo de contato. “O que tá pegando
aí?”
Ele observa uma foto de uma mulher nua, sentada na beira de uma mesa de
madeira. Logo atrás dela há um quadro negro. Ela usa óculos e suas pernas estão
escancaradas.
“Política econômica?”
“Sou um cara informado”, responde Magrão.
“Esse WhatsApp vai acabar te matando.”
“É o melhor aplicativo pra comunicação rápida.”
“Pra distribuição de pornografia também.”
“É só por isso que me comunico.”
Novamente, a voz metálica dispara dos alto-falantes. “Próxima estação, But...”,
um estampido abafado corta o ar.
Magrão ri daquela interrupção abrupta. “O robô bateu a cabeça no microfone.”
As pessoas olham ao redor, preocupadas. “Deveria ter bafômetro no metrô”,
diz Salvatore.
Então a voz anuncia. “Próxima estação, Butantã.”
Todos se aglomeram em frente à porta. O carro desacelera e estaciona rente à
plataforma.
“Hoje é feriado. Até o robô vai ficar bêbado.”
Os três saem da estação e se juntam ao afluente de pessoas, que corre
desordenado. Ambulantes tentam vender água, capa de chuva, chocolate e cerveja
quente. Alguns sobem em bancos de madeira e emergem em meio à correnteza.
Lilica, já totalmente desperta do cochilo, fala com Magrão sobre algum tópico
efusivo. Gira as mãos pelo ar, esbarrando nas pessoas ao redor, sem a menor
preocupação.
Salvatore observa a tensão dos peregrinos. Todos seguem na mesma direção,
depressa. Ninguém quer ser ultrapassado. Chegam a invadir a rua, fazendo um
motorista refém do tráfego de pedestres.
Os três freiam diante do semáforo. Magrão titubeia, Salvatore também. O
motorista tenta avançar, sem sucesso. Lilica puxa os dois pela mão. Ela é um dínamo.
“Lilica, que horas é o brother da Califórnia?”
“De noite. Você quer ver?”
“Não é meu esporte favorito.”
“A gente vai junto. Te pago uma cerveja. E depois você fala pra Carol que
gostou.”
Salvatore gosta daquele incentivo. “Ela vai ter um tempo?”
“Talvez amanhã.”
Eles dobram a esquina e avistam o Jockey Club. Uma estrutura enorme
circundada por muros. Lá de fora é possível avistar os palcos e ouvir sons disformes,
algum artista passando do primeiro turno.
Filas se formam em todas as direções. Portaria, retirada do bilhete, menores de
dezoito anos, ingresso no cartão de crédito.
Lilica se desgarra do grupo, aborda um homem com uma camisa ‘posso
ajudar?’. Pergunta qual é a fila pra quem só quer entrar no festival.
Magrão aproveita a deixa e provoca Salvatore. “Hora de começar os trabalhos.”
Os dois abordam o ambulante mais próximo. Salvatore sente o bolso vibrando.
“Segura essa aí pra mim”, fala ao Magrão, se afastando.
“Alô”, diz ele. Ruído do outro lado. Da mesma natureza em que ele se encontra
naquele momento. Ninguém responde, a ligação cai.
Magrão se aproxima com duas cervejas e um copo com um líquido marrom,
cheio de gelo. “Que porra é essa?”, inquire Salvatore.
“Raspadinha de cachaça com mel. O famoso pinguel.”
Magrão lhe oferece, Salvatore não nega. O telefone vibra novamente. “Alô?”,
diz ele, enquanto toma a mistura ora refrigério, ora arrependimento.
“É o Salva?”
“Sim.”
“Pera aí que eu vou passar para a Tati. Sou amiga dela.”
Salvatore sente um fluxo de sangue correndo direto para a sua cabeça. “Salva?
É a Tati.”
Magrão repara nas bochechas inflamadas dele. “Salva, acho que esse pinguel
não está lhe fazendo bem.”
Salvatore não dá atenção ao amigo. Sua mente está completamente
concentrada em uma linha de telefone. “Tati? Oi, Tati!”, de tanta empolgação, sua voz
desafina.
“Você já tá no show?”
“Eu te liguei um monte, garota.”
“Meu celular ficou no trabalho. Desde quinta.”
“Acho que não acredito.”
“Cadê você?”
“Na frente do portão. E você?”
“Estamos no metrô. Tá lotado, uma bagunça.”
“Um monte de adolescentes vestindo camisetas pretas?”
“Isso. Todos com cara de tristeza.”
“Não os deixe se suicidarem.”
“Você fez alguma programação pros shows de hoje?”
“Vamos ver o Copacabana Club, daqui a pouco.”
“Não conheço. Quero ver o The Killers.”
“Eu também quero. Podíamos ver juntos.”
Salvatore espera uma resposta, mas não ouve. Magrão, em sua frente, vira
outro copo de cerveja. Salvatore grita no telefone. “Alô?”
E continua sem ouvir resposta. Tira o telefone da orelha. Ligação encerrada.
“E aí, será que vai tirar o dedo do cu hoje?”, pergunta Magrão.
Aquela expressão deixa Salvatore confuso, não sabe se cai na conversa do
Magrão ou tenta ligar de novo para a Tati.
“De onde?”
“Do cu.”
O telefone toca novamente. “Salva?”
“Oi.”
“Caiu a ligação.”
“Pois é.”
“O que você disse, mesmo?”
“Perguntei se...”, Salvatore é tomado de sua insegurança habitual e começa a
engasgar no telefone, repetindo as mesmas palavras. “Perguntei se...”
Magrão vê a cena e decide dar um empurrão no amigo.
“Larga de ser frouxo, caralho, marca logo um encontro com a guria.”
Salvatore ouve a voz do outro lado. “Salva? Alô?”
“Sugeri que a gente podia ver juntos o The Killers.”
“Ótimo!”
“Vamos marcar perto do segundo palco?”
“Minha amiga quer ver esse Copacabana Club. Podemos nos encontrar lá.”
“É o palco alternativo. Lá pelas 16h00.”
“Marcado. Ao lado do telão esquerdo. Um beijo!”
“Beijo.”
Lilica se aproxima de Magrão e Salvatore. “Já tão bebendo?”
“Um esquenta”, responde Magrão.
“Simbora pra fila”, ordena ela.
Enquanto caminha, Salvatore se lembra de sua missão quixotesca. Fazer a
cobertura do festival. Ao vivo, a única opção é fazer flashposts pelo Facebook. Do hotel
fará um post mais elaborado, com fotos e impressões agudas. Claro, se não estiver
bêbado demais.
DESCABELADA
15H30.
A capa de chuva não protege seu cabelo. A essa altura, o penteado não passa
de uma confusão de cobras enlouquecidas pelo vento.
Valentina tem dificuldade para andar. O tamanco semienterrado na lama. Nas
unhas do pé, esmalte cor de terra.
Com muito custo consegue carregar o Facebook. Na página de Salvatore, o
aviso.
‘#LollaSP#Indiebrasil #GirlPower: Copacabana Club, faça
chuva ácida, faça sol.’
Sara lhe faz um pedido. “Mana, será que a gente não pode ficar quieta num
canto? Já andamos demais.”
Valentina não quer desistir. Fica na ponta dos pés e tira uma panorâmica da
paisagem. Difícil reconhecer alguém, e a plateia não é das maiores. Valentina nota que
aquele é o menor palco da arena. Lá na frente, do outro lado do Jockey, fica um palco
vermelho. Atrás, um palco verde, aparentemente o maior de todos.
A tarde segue adiante. De noite será impossível localizar alguém. “Aqui tá
bom”, diz Valentina, a contragosto.
“Ufa. Vou comprar uma cerveja”, comenta Sara.
“Traz uma pra mim também.”
Diante do horizonte de cabeças, Valentina decide usar sua última carta.
Lilica se surpreende quando a mulher tira a blusa, lá em cima do palco. Ousada,
sensual, ela pode. O sutiã parece armazenar dois foguetes. A barriga, pichada com
batom vermelho.
'Mais felicidade, menos Feliciano.'
Lilica admira a cantora. É um símbolo de independência e poder. Deixa o seu
recado, e ainda diverte os outros.
Apesar da boa vibração ao redor, Lilica se sente sozinha. Seria bom ter uma
companhia feminina. Nada a reclamar de Magrão. Talvez falte um pouco de
intimidade. Os dois costumam ficar apenas em baladas, na presença de amigos. Nada
da argamassa trazida por jantares e viagens a sós.
Salvatore é divertido. Fala pouco. Nesse exato instante não está falando nada,
pois desapareceu. Falou ‘já volto’ e saiu andando.
De resto, o show é bom, pessoas ensaiando dancinhas, se beijando. Casais de
mulheres, casais de homens, enfim, casais. É possível sentir, junto à percepção de que
ninguém é de ninguém, um clima de que as coisas estão mudando. Duas garotas se
beijando na frente de todos já não gera tanta estranheza. Os homens até aplaudem.
Ou sempre aplaudiram.
De qualquer forma, é bom participar daquilo. Quebra de valores. Cada um
escolhe como ser feliz.
Por outro lado, seria bom, ela, Lilica, experimentar um pouco de segurança.
Firmeza no relacionamento. Algo tão próximo quanto ela, Lilica, subir no palco e tirar a
blusa.
Magrão lhe entrega o telefone. Ele pode não ser um namorado, mas ao menos
carrega sua bolsa.
"Tá tocando."
Lilica sorri, agradecendo. Número começando com 61. Brasília.
"Alô."
"Oi Lilica."
"Oi", a ligação está um inferno.
"É a Valentina."
"Oi, Vali, tudo bem? Tá ruim de ouvir."
"É que eu tô no meio dum show."
"Sério? Eu também. Aqui no Lolla."
"Tô aqui. Seria bom te ver."
"Vamos nos encontrar. Tô aqui no palco alternativo, perto do telão esquerdo.
Show do Copacabana Club."
"Legal, tô chegando."
Lilica entrega o celular pro Magrão. "Quem era?", pergunta ele.
A atenção dos dois é desviada pela chegada de Salvatore. Ao seu lado, uma
garota produzida, morena, peitão. "Galera, essa é a Tati."
A garota os cumprimenta, sorrindo. Lilica antevê uma tragédia anunciada.
"Era só uma amiga", responde ao Magrão.
Valentina é uma mulher perdida, deslocada no turbilhão. Nitidamente, não
pertence àquele lugar, naquele instante. O ambiente é hostil. Uma horda de bárbaros
empenhada em se embriagar. Músicos empenhados em ensurdecer.
Mas nada disso a incomoda tanto quanto a imagem de um homem e uma
garota conversando a alguma distância. Eles estão muito próximos. Colados. Ele fala
algo, ela ri e joga o cabelo para trás da orelha.
Devem ter se conhecido agora. E a piranha toda oferecida.
Os dois seguem nesse diálogo, se divertindo tanto que nem prestam atenção ao
palco.
“Vali”, a voz de Sara arranca Valentina de seu telescópio, onde brilha uma
constelação de raiva e ciúmes. “O que acha de ver outra banda?”
“Banda? Que banda?”
“Sei lá. Vamos andar por aí.”
“Pra quê?”
“Tem coisa melhor tocando.”
“Não era essa que você queria?”
“Já tô satisfeita”, Sara abre a programação. “Temper Trap. Palco Verde.”
Valentina ignora sua irmã. Pouco importa ver um peruano tocando Elvis ou o
próprio Elvis fantasiado de peruano.
“Vali, ficar aqui não vai ser legal. Sério.”
“Tá tudo bem.”
“Claro. Tô ouvindo a chuva evaporando na sua testa.”
“Eu vim até aqui. Não vou fugir.”
“E qual é o plano?”
“Sara, compra uma cerveja pra mim. Quero uma bem cheia. Quantas fichas
precisa?”
“Duas.”
Valentina pega quatro fichas e entrega para a irmã. “Uma não. Me traz duas.”
“Uow. Assim que se fala.”
“Vai logo.”
“Depois a gente vai pro outro palco?”
“Tá bom, tá bom.”
Sara se afasta. Valentina não sabe o que vai fazer, mas decide fazer algo.
Caminha em direção ao casal. A garota está com a mão no ombro dele, girando a outra
mão. A franja em sua testa lhe empresta futilidade.
Tá contando das aventuras no outlet em Miami.
É óbvio que ele apenas está aturando aquela conversinha. Ele finge interesse, e
ri de vez em quando, mas não é aquela risada espontânea que ela conhece.
E ela nem é bonita. No máximo, bonitinha. Baranga arrumada. Os peitos
explodem pelo decote. Valentina olha os próprios peitos, não têm a metade do
volume.
Nada que um silicone não resolva. Sugestão velha, de Salvatore. Se isso
acontecer, um dia, não será ele que vai desfrutar.
Então ele segura o cotovelo da garota, e sussurra algo demorado. Aponta para
o palco.
Está despejando sua conversa acadêmica sobre bandas obscuras. Algumas
garotas gostam.
Valentina gostava disso.
Não do conteúdo, um monte de informações prescindíveis. Mas ela gostava de
ouvi-lo falar. Seu jeito de mostrar atenção. É quando a cabeça de Salvatore funciona a
todo vapor. Quando ele fica mais vivo.
Ela se desligava, apenas escutando o som grave de sua voz.
Valentina caminha em direção aos dois, sem ter ideia do que vai fazer.
Lilica pensa que, em alguns momentos, ser pequena é bom. Por exemplo, é
mais fácil andar rápido por uma plateia. Rápido o suficiente para impedir que
Valentina atropele Salvatore.
“Oi, Vali.”
Ela se assusta, demora a cair a ficha. “Oi”, responde, no automático.
“Nossa, quanto tempo." Lilica se esforça para atrair a atenção de Valentina, que
fica se esgueirando para ver o que está acontecendo lá na frente.
“Tá sozinha?”
“Tô com a minha irmã.”
“Lembro dela, Marina, né?”
“Sara.”
“É verdade. O Magrão tá logo ali”, diz Lilica, a arrastando.
Magrão tenta quebrar o gelo. “Oi, Vali, que bom te encontrar.”
“Magrão, quem é aquela gorda?”, Valentina aponta para o casal.
Há um conjunto de tetas se esfregando em Roberto Salvatore. Nas contas de
Magrão, esta é a primeira vez, desde o fatídico, que Valentina revê o ex-namorado.
O cretino não atendeu uma ligação dela, o mesmo que provocar um vulcão da
Indonésia. Agora, o vulcão vai explodir bem ali, no dia mundial da bagaceira. Lilica se
esconde atrás de Magrão.
“Nunca vi a gorda. Belos peitos.”
Valentina foca o casal. “Banha pura.”
Roberto Salvatore beija a garota. Os braços se entrelaçam e começa o vale
tudo. Ele a segura firme, os dois colidem a pélvis. A temperatura esquenta e eles
permanecem alheios ao ambiente.
Magrão não sabe o que fazer. “E você, Vali, não estava saindo com um cara?”
Comentário infeliz. Valentina fecha o semblante. Por sorte, uma menina bonita,
recém-saída da adolescência, aparece com dois chopes. “Oi, pessoal.”
É familiar. “Você não é o Magrão?”, diz a garota.
“O próprio”, responde. Uma pena Lilica estar por ali. Ela sai de seu esconderijo
e dá um alô.
“Oi, lembro de você também”, diz Sara à Lilica.
“Aquele dia no Pôr do Sol.”
“Um bar sujo, né? Vali, seu chope.”
Valentina pega o copo, e o vira. Sara grita, entusiasmada. “Agora, sim. Vamos
começar o nosso festival.”
Valentina limpa a boca. “Me dá esse outro copo.”
Magrão não sabia que ela era capaz de virar um chope com tanta rapidez.
Comparava-se às façanhas da faculdade, quando ele e Salvatore inventavam
campeonatos insólitos.
Valentina, provida do outro chope, dispara em direção ao casal, cuja situação
se agrava.
A garota levanta a perna e a trança por trás de Salvatore, segurando-se apenas
numa perna. Ele a sustenta pela bunda. Parece que vão tirar a roupa ali mesmo.
Magrão, enfim, vê um bom motivo para utilizar a palavra ‘petardo’.
Salvatore fica orgulhoso de si mesmo. Primeira tarde de festival, bola dentro.
Contato verdadeiro com uma garota, após oito anos de monogamia.
Aquilo do carnaval não valeu tanto.
Em Diamantina, Salvatore ficou tão inundado de suco gammy que restou
apenas um vago registro da carioca. A bem da verdade, toda a iniciativa foi dela. Ele
não tinha condições morais, tão pouco físicas.
Quando sua língua começa a ficar dormente da luta com Tati, eis que surge um
fantasma em sua frente. “Oi, Salva.”
Salvatore descola os lábios de Tati. A ex-namorada, descabelada, segura um
copo transbordando de chope. Não é muito do seu gosto. Ela prefere vinho.
“Valentina?”
Valentina se pergunta o que exatamente ela quer ali com Salvatore. Foi até
aquele festival sujo atrás de um flashback? Pagar caro pelos ingressos, aguentar filas
imensas e se sujar de lama até o tímpano por uma transada? Seria melhor se entupir
com um ovo de Páscoa.
O flashback nunca vem sozinho. A promessa de sexo sem compromisso com
alguém que você amou e conviveu tanto tempo é tão vazia quanto a mente da tetuda.
É apenas um rompante de prazer físico, seguido de uma avalanche sentimental. Coisas
ruins e guardadas num abismo profundo emergem à tona, espalhando lágrimas por
todos os lados. Lágrimas sempre dela.
Ou queria voltar com o namoro?
Por que eu fico chorando por esse cara?
Definitivamente, ela não agiu certo, indo pra cama com seu orientador.
Ao redor, o show segue seu destino. Uma mistura de eletrônico com rock
distorcido.
Barulheira dos infernos.
Por outro lado, Salvatore praticamente largou o relacionamento, sem ao menos
comunicá-la. Poderiam ter conversado, mas ele preferiu se esbaldar num carnaval
cheio de adolescentes. E agora está enroscado numa cadela.
“Oi, Salva.”
Salvatore descola os lábios da garota.
“Valentina?”
Ela joga cerveja em cima dos dois. A peituda grita. Pessoas ao redor se
espantam.
“Vão todos tomar nos seus cus”, diz Valentina. E vai embora.
RODA DA FORTUNA
16H10.
Tati junta a cabeleira e torce, como um pano de chão. A água jorra do cabelo.
Salvatore, sem jeito, derrama mais água mineral no cabelo dela.
Ela o rechaça. “Sai.”
Esse foi o jeito que Salvatore encontrou para arrumar a bagunça. Uma garrafa
de água mineral. A garoa é capaz de encharcar o ânimo, mas não de lavar uma bruta
cervejada na cara.
Magrão se lembra da excelente cena, não controla a risada. Um verdadeiro
barraco suburbano em pleno festival da classe média cult. Não sabia que Valentina
tinha tanto potencial.
Lilica o cutuca. “Porra, Magrão, para. Não tem graça.”
“Como assim? Foi a melhor cena da década.”
Salvatore lava o próprio rosto com água mineral. Lilica oferece ajuda a Tati.
“Trouxe um pouco de papel higiênico na bolsa. Pega um pouco.”
Tati faz careta. Garota mimada, pensa Magrão. Deve morar no Morumbi com
os pais. Acostumada a toalhas com fios egípcios. A situação vai ficando cada vez mais
circense. Por fim, ela acaba aceitando o papel higiênico.
Salvatore enxuga o rosto com um pouco do papel. “E agora pessoal? Qual o
próximo show?”
Valentina sente o puxão de Sara.
“Vamos andar”, diz a irmã.
É o terceiro palco que elas visitam. A banda continua com a balbúrdia. Um
sujeito de chapéu de caubói berra ao microfone, enquanto uma mulher androide mexe
no computador.
“Quer comprar alguma coisa? Um sanduíche?”, pergunta Sara.
“Não.”
“Vali, você me deixa orgulhosa.”
Sara sorri. Valentina não resiste ao sorriso largo da caçula, e ri, sentindo
lágrimas correndo pelas bochechas.
A irmã a abraça. É bom sentir o seu amparo, a única alma que lhe compreende
no meio de milhares de pessoas.
“Tá sendo barra.”
“Vai passar. Espera um pouco.”
“Eu só queria conversar com o Salva. Vim aqui pra isso. Ele não me deu
nenhuma chance.”
“Você ainda não me falou o que aconteceu pro Salva ficar tão nervoso. Ele é
tranquilo.”
“Eu transei com um cara. Foi isso.”
“Mas eu pensei que vocês tinham dado um tempo.”
“Não sei como ele entendeu. A verdade é que a gente não conversou. Fiquei
puta da cara com a história de Diamantina.”
“Pra mim aquilo não tinha volta. Eu mandava ele pastar.”
“Era o que eu tava achando. Mas ele apareceu de repente, e daí teve a
bagunça.”
Valentina enxuga o rosto. Recompõe-se. “Ele foi ao flat, ia fazer um jantar
surpresa pra mim. Acho que era um pedido de desculpas.”
“Faz a merda e depois vem com o rabo entre as pernas”, Sara gesticula.
“Eu sei. Não agiu bem. Mas depois daquilo senti que a gente podia passar por
cima. Dar uma chance.”
Sara recebe uma ligação, mas não atende. “Continua.”
“Pode atender.”
“Depois eu ligo. São as meninas. Devem ter chegado.”
“Vê-lo se esfregando com aquelas tetas, não me segurei.”
“Também quero jogar cerveja em alguém.”
Valentina ri um pouco, mais calma. “Não pelo mesmo motivo, espero.”
A irmã lhe segura as mãos. “Agora vamos curtir.”
Valentina faz muxoxo.
“Anima, Vali. As gurias tão chegando, e elas parecem um trio elétrico”, insiste
Sara.
“Vai ser divertido. Prometo.”
Valentina observa as pessoas ao redor. É uma micareta de rock. Gente
bebendo, gente se beijando. A micareta de Salvatore. Todos na ladeira, até o fundo.
“Sara, pra mim esse lugar já deu. Vou pra casa.”
Salvatore, absorto, pensa sobre a roda. A roda da fortuna de Ignacius Reilly.
Quando a roda começa a girar pra baixo, é melhor se esconder antes que os tolos lhe
destruam.
Para piorar, a banda não coopera. Sendo que ele tinha alta expectativa sobre o
Temper Trap. Isso que dá escutar só uma música. Obra-prima, diga-se de passagem.
Mas aquela é só uma, dentro de uma hora de show. O resto é um desfile de
pop brega, um melaço latino. O desgraçado ainda usa camisa havaiana, com as mangas
curtas dobradas. Salvatore agradece a Valentina por lhe proibir de usar camisa
havaiana.
Tati, ao lado, emburrada. Não tira os olhos do celular.
"Esperando alguém?"
"Tô tentando falar com minha amiga."
"Quer uma cerveja?"
"Não."
Salvatore vê passando um sujeito de dreadlock. Carrega uma mochila-tanque.
Distribuição capilarizada de cerveja. Ótima invenção, aqueles homens-tanque.
Economizam a caminhada até o bar.
"Magrão, Lilica, querem cerveja?"
"Tá com sede, hein campeão?", alfineta Lilica.
"O sol tá quente”, responde Salvatore.
“Tá chovendo há três horas.”
“Eu quero chope”, diz Magrão.
Salvatore se afasta do casal. No céu, a chuva faz uma trégua, deixando ao vento
o trabalho de gelar a plateia. Há bastante lama por todos os lados. Um cheiro forte
emana do solo.
Salvatore compra dois chopes do homem-tanque, e vira o primeiro. Já não se
lembra de quantos tomou. O que não faz a menor diferença. A chance de reanimar
Tati é tão minguada quanto o show brega do Temper Trap.
E aquela aparição da Valentina? O que foi aquilo? Ela nem gosta das bandas.
Não faz sentido.
E o lance da cerveja? Clara demonstração de carência, embalada de fúria
desmedida. Salvatore fez por onde. Ignorou todos os pedidos de contato de Valentina,
inclusive seu comentário ridículo no post.
E como ela o encontrou no meio de tanta gente?
Salvatore deveria sentir raiva. Valentina estragou a chance com a Tati. Mas a
raiva dá lugar à curiosidade. Ela com certeza foi até São Paulo querendo algo. E estava
linda, arrumada para combate. Meio descabelada, mas deu pra reparar no tamanco e
na maquiagem. Quem vai de tamanco pra festival de rock?
Quem sabe não é hora pra uma conversa?
O que também podia ficar pra depois. Ao menos ele curte o festival em paz.
Talvez não haja depois.
Ele vira o segundo copo, o chope do Magrão, afogando todas aquelas questões.
“Amigo, manda mais dois”, diz Salvatore ao homem-tanque.
RECONQUISTA
18H30.
Sai do banheiro masculino trocando as pernas. Tenta desviar das poças em
volta das cabines químicas, sem muito sucesso. O gosto ácido ainda queima sua
garganta. Lembra-se de não ter bebido um só copo de água durante aquelas horas de
festival, em contrapartida aos cento e vinte reais que já gastara em chope.
Esforça-se para lembrar onde Tati lhe esperaria. Na porta do banheiro
feminino? Em frente ao bar? Perto do poste?
Ele observa o gigantesco holofote iluminando o centro do Jockey Club. A luz
artificial se mistura ao restante da luz natural, deixando a atmosfera em lusco-fusco.
Ideias confusas se acotovelam na mente dele.
Reconquistar Tati? Talvez forçar um romantismo? Forçar é bem a palavra,
porque, desde a aparição de Valentina, o frágil otimismo que havia entre ele e Tati se
foi por água abaixo. Cerveja abaixo.
Salvatore bebeu demais, o autocentrismo alimentou a preguiça de tentar
reconstruir uma chance com a paulistana.
Idiota.
Enfim ele percebe que o cavalo passou à sua frente, selado, e ele o deixou
escapar. Ao redor, nenhum sinal dela.
Abre a programação. No Butantã, Cake. No Alternativo, Crystal Castles.
Salvatore decide que a melhor trilha para a reconquista de Tati é Cake.
Ele poderia segurar sua mão, levá-la para mais perto do palco e abraçá-la por
trás. Beijaria seu pescoço, ela fecharia os olhos e então ele viraria seu rosto e a
beijaria.
Salvatore anda um pouco pelos arredores, procura por Tati, mas não a
encontra. Então se pergunta como vai fazer para disfarçar o sabor do vômito.
Pensa que talvez seja melhor comprar uma água. Caminha morto-vivo atrás de
um vendedor.
Procura, não acha. Percebe que sua única opção será o bar do evento. Ele se
aproxima e enfia a mão no bolso, só encontra comprovantes de pagamento e alguns
trocados.
Tenta convencer a atendente a lhe vender a água. “Moça, é dinheiro, não é?”,
sua voz cambaleia.
“É.”
“Pois então, me dá essa água.”
“Não posso. Você tem que comprar uma ficha.”
“Por favor”, Salvatore diz, tentando jogar charme para a atendente, e solta um
soluço, mais parecido com um arroto.
“Só aceitamos ficha.”
Salvatore resmunga e vai para o caixa do bar, onde uma pequena fila se forma.
Já não se lembra de quanto tempo se passou desde que se separou da Tati.
Os dois haviam se separado de Magrão e Lilica. Tati queria ir ao banheiro.
Salvatore demora na fila até chegar sua vez. Tira o dinheiro do bolso e conta as
notas em sua mão. Encontra um Trident de hortelã no meio das notas, compra a ficha
de uma garrafa de água e a retira no balcão do bar. O chiclete e água serão sua melhor
saída. Estará pronto para Tati.
Volta-se para o palco e percebe que perdeu um pouco da noção espacial,
andou mais do que imaginava. Apenas enxerga o palco vermelho lá ao fundo. Decide
se aproximar.
Salvatore ziguezagueia, soluçando a cada três passos. Foi muito chope, ele
conclui. Sente a ânsia de vômito embrulhar novamente seu estômago. Tenta a todo
custo abrir o pacote de chiclete, e é impedido pela vertigem. Então, apoia-se no poste
de luz no meio do gramado, e golfa o pouco que havia para ser expelido.
Entende que está à beira do colapso. Mas as coisas haviam de melhorar, de um
jeito ou de outro. Ele só precisa recuperar o fôlego, tomar água e disfarçar com um
Trident de hortelã.
Cambaleia até um lugar menos movimentado. Tenta se sentar lentamente, mas
acaba desabando na grama cheia de terra suja e água. Endireita-se, abre a garrafa de
água com dificuldade e toma um gole. O estômago dói e ele faz uma careta. Por
instinto, encosta a cabeça na grama, aquilo faz seu estômago esfriar, mas o mundo ao
redor fica fora do eixo.
Olha para o palco. Luzes brilham no telão, como uma máquina fotográfica
disparada rente ao seu rosto.
Deitado na grama, Roberto Salvatore fecha as pálpebras e perde o controle do
corpo e da mente.
Magrão guarda o telefone no bolso. “Era o Salva?”, pergunta Lilica.
“Era o Nariz.”
Os dois tentam escutar a banda, mas, àquela distância, não é possível distinguir
a música do Cake do ruído ambiente. Em algum momento, o vocalista, usando um
boné do exército, reclama do som.
“Tá meio ruim o som, né?”, diz Lilica.
“Lixo. Como é que fazem um palco que não funciona?”
“Tô preocupada com o Salva. Ele tava muito mal.”
“Disse que ia vir nesse banheiro.”
“Não quer olhar lá dentro?”
“De novo?”
“Ele é um moleque, precisa de cuidados.”
“Uma hora ele aparece.”
O SOM DA LOUCURA
20h20.
Um ambiente claro, desprovido de algazarra. Alguém, cabelos compridos. Uma
garota. Não a reconhece.
“Moço, está melhor?”, diz ela.
Aos poucos, seu cérebro começa a processar as dores. Cabeça e estômago.
“Você entrou em coma alcoólico. Nós lhe demos uma injeção de glicose. E
soro.”
Em seu braço, uma agulha sob o esparadrapo se conecta a um tubo que leva ao
soro. Tenta se levantar, mas a tontura se impõe. A mulher, de uniforme, põe a mão em
seu peito. “Espere mais um pouco.”
A desconhecida lhe vira as costas. Há outro homem precisando de ajuda na
maca ao lado. Salvatore apaga.
A visão continua enevoada. Sente-se mal pelo apagão, e por ter acordado na
enfermaria. Sente-se mal por ter perdido a Tati. E também por ter esnobado a
Valentina. Em vez de lhe dizer ao menos um ‘oi’, não conseguiu falar algo melhor do
que ‘Valentina?’.
Permanece inerte, sozinho, vendo quem passa. Fica surdo à bagunça das
guitarras distorcidas e gritos rolando pelo ar.
A aflição por assistir à maior quantidade de shows cede lugar à alienação. Não
se importa mais com a programação. Tanto faz assistir ao show do Passion Pit, que
toca naquele exato momento, ou a um monge em chamas.
A única percepção ativa em Salvatore é a ausência de mulheres. E,
paradoxalmente, há dúzias de garotas andando ao redor. Apesar da lama e da chuva,
elas cheiram sensualidade. Seguem depressa, rindo com as amigas, correndo para ver
algum ídolo. Quanto mais triste ou mais louco ou mais hype, melhor o ídolo. Roberto
Salvatore não é um ídolo do rock.
Algumas das garotas têm tatuagem. Salvatore se lembra de Hank Moody, em
algum episódio de Californication. “Tatuagem é a marca da devassidão.”
Salvatore tem medo de tatuagem. Pensa no que seria a vida olhando para
algum hype-depressor. Mas o que mais importa, neste momento, é a rejeição. Há
garotas demais por ali. Imagina-se solitário até o fim da vida.
Pega o celular e resolve fazer um post no blog.
>> Outro Fim
Publicado: março 29, 2013 em Tirania da Contingência
Se fosse para escrever um roteiro fuleiro sobre a minha
vida, seria assim: no final tudo dava errado, um cara arruinado
perderia a mulher, o emprego, e lhe restaria ficar bebendo no
balcão de um bar imundo, vestindo um chapéu miserável.
Na volta para casa, dormiria ao volante e seria esmagado
por uma britadeira.
Para trilha, Band of Horses, The Funeral.
::
Roberto Salvatore
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Salvatore, satisfeito, envia o post ao blog. Escrever lhe aplacava a angústia.
Encosta-se à cerca e observa a extensa pista que circunda o Jockey. Beberica a Coca,
conselho da enfermeira. A bebida faz cócegas no céu da boca, e, milagrosamente, vai
lhe acalmando a queimação.
Checa o celular, mensagens de WhatsApp, todas atrasadas. Há três ligações
perdidas, Magrão. E há um torpedo, dessa vez do Nariz.
‘Estamos te esperando em frente ao telão direito, no show
do Passion Pit. Salva, tu é importante neste show.’
Salvatore precisa se agarrar à única coisa que está ao seu alcance.
Num ímpeto, ele se dirige ao palco alternativo, onde vibram teclados
eletrônicos. Salvatore hesita por um instante. A ideia de se misturar na multidão em
frenesi lhe assusta o corpo, que manda sinais de arrego. Melhor seria ir para o hotel,
dormir, e largar aquele dia por todo o sempre.
Caralho, Passion Pit. Caralho, Nariz.
Cria coragem e se atira no paredão de pessoas.
As garotas reclamam de serem pisadas. Esbarra com vontade num marmanjo.
“Qué isso, mano? Vai empurrar tua mãe”, grita o sujeito.
Salvatore ergue a mão rente à cabeça, num gesto de desprezo e segue adiante.
O show está no auge. Lá do palco, homens barbudos tocam alguma canção
desconhecida. A luz prata satura o terreno, ao ritmo da bateria.
Então Salvatore encontra uma clareira no meio do público. Dali, pode ter uma
ampla visão do palco e do telão direito. Uma barreira invisível impede as pessoas de se
aproximarem mais do palco.
Do outro lado, imagens pipocam, revezando ângulos do vocalista e dos três
tecladistas da banda. Ele escuta a música, seu pé começa a dançar. Ele fica dividido
entre curtir aquele show, aguardado, e a árdua tarefa de encontrar alguém naquele
minhocário.
A iluminação e a fumaça que saem do palco ofuscam. Mal vê o rosto das
pessoas do lado de cá da clareira. Ninguém é distinguível ante o breu e a miríade de
cores artificiais.
Checa o celular novamente, apenas por nervosismo. Não há novas mensagens,
claro. Seus amigos já haviam dito onde estariam.
Porra, de que adianta marcar lugar?
A música vai lhe seduzindo mais. A plateia dança, se aperta para não ter que
invadir o espaço da clareira. Alguém o empurra para frente. Salvatore sente algo
errado com o solo.
Sem chance de circundar, muito apertado.
Que se foda.
Ele resolve subestimar o solo e dá um passo à frente. Testa o chão. Pé ante pé,
patina num mar de lama. É um terreno movediço, um pântano. A plateia deixou de se
chegar no palco em função desse pântano.
Confiante, ganha velocidade. Então, no centro, sua perna direita afunda até o
tornozelo. A banda encerra a música, seguida por gritinhos e palmas alegres.
Aquele tinha tudo para ser o melhor show da sexta-feira. E era para ser ao lado
de dois caras de foder. E Salvatore está atolado num pântano.
Tenta tirar o pé. O sapato é sugado pelo solo voraz. Seu pé balança no ar, a
meia é lama pura. Por um instante perde o equilíbrio, se recupera, e fica em um pé só.
Custava por um tatame na grama?
O Passion Pit começa a tocar uma sequência de acordes conhecida para
Salvatore. A plateia sacode os braços. É uma das mais conhecidas. It's not my fault, I’m
Happy.
A canção já foi pauta no Tiraniadacontingência.com. Afinal, Passion Pit foi o
começo de toda a história sobre querer escrever sobre música.
Ali de um pé só, Salvatore se diverte com o fato de que havia feito uma
comparação esculachada entre a música original e um cover de umas americanas
catequistas, bibliotecárias ou de sei lá o que. Elas eram branquelas e cantavam com a
voz angelical de quem enfia o dedo no cu. Tinham até uma espécie fajuta de vibrafone
para o refrão.
Salvatore não perdoou nem o nome, algo como Erato. Erato, errato, errado.
Tudo errado naquela banda.
Não tinham nada, absolutamente nada a ver com o som perturbador que sai
dos sintetizadores do palco. Essa música só pode ter sido construída por mentes
doentias, cheias de tristeza e luxúria. É o som da loucura.
Salvatore se diverte por um breve minuto, o que não altera o fato de ele ainda
estar afundando na lama em solidão.
PÔR DO SOL
No passado.
Salvatore pega a mochila de narguilé e fecha o carro, com um toque no alarme.
Atravessa a rua, em meio ao tráfego vagaroso. Motoristas observam o
movimento. Na calçada, dá a volta em um grupo barulhento, universitários em pé.
Embrenha-se no furdunço para chegar ao fundo do bar, onde os amigos
provavelmente estão.
Junta-se à poluição rotineira uma atmosfera caótica. Cheiro hostil. Mistura de
suor, cigarro, farinha e ovo. Calouros impregnados de tinta, alguns de cabelo raspado.
Ele não é mais universitário. É recém-formado, e recém-desempregado.
Estudante de concurso público, à força. Vive de mesada.
O bar preferido dos universitários. Cerveja barata e quente. Para pedir algo
você precisa fazer uma acrobacia ou acender uma fogueira na mesa. É difícil chamar a
atenção dos garçons, todos estressados.
Uma algazarra faz as pessoas se movimentarem. Batem palmas e gritam.
Salvatore para por um instante.
Em dia de trote, como aquele, o bar se torna ainda pior. A molecada perde o
escrúpulo. Um cabeleira black power segura uma cachaça de péssima qualidade.
Circula aquela porra de boca em boca. Uma garota, enlameada de tinta, diz que não
quer beber, mas o grupo insiste, aos urros. Então ela é obrigada a beber.
O black power derrama cachaça na goela da garota.
Salvatore se deprime com a cena e segue adiante. Chega ao fundo do bar,
avista Nariz e Magrão. Estão olhando pra bunda de uma universitária em pé.
Ele se aproxima por trás do Nariz, e lhe dá uma boa esfregada no cocuruto.
“Cacete, bitcho”, reclama Nariz.
“Oi, amigas. Tirem o olho daquela bunda. Ela é minha.”
“Falou o encoleirado.”
“Encoleirado, porém vivo.”
“Qualé, não vai rolar um fumacê?”, diz Magrão.
“Tá aqui”, diz Salvatore. Põe a mochila em cima da mesa e começa o ritual para
acender a máquina árabe. Água, essência de limão e menta, papel alumínio, ferragens
e carvão de caroço de azeitona.
Magrão serve um copo virgem para Salvatore, e completa os outros. “Um
brinde ao Nariz. Porra, por favor, coma muitas paulistanas por mim.”
“Como diria o velho”, Nariz levanta o copo. “Não se pode comer todas. Mas há
que se fazer um esforço.”
“Que velho disse isso?”, pergunta Magrão.
“O Nelson Rodrigues.”
Salvatore intervém. “Nelson Rodrigues o meu ovo esquerdo. Foi o Jorge
Amado.”
“São todos velhos e tarados”, diz Nariz.
“Quando for velho também vou ser tarado”, contrapõe Magrão.
“Aí, Salva, não foi a Valentina que levou uma cantada do orientador?”,
pergunta Nariz.
“O puto chamou a Vali pra jantar.”
“E ela?”
“Não aceitou. Claro.”
“Se eu chamar a Valentina pra jantar, acho que ela aceita”, fala Nariz.
“Certo. Você e esse nariz de meio metro.”
“As minas gostam de nariz grande. Sabe como é, nariz grande, mão grande,
pau...”
Salvatore puxa uma longa baforada. A fumaça quente lhe enche os pulmões, o
tabaco faz seu trabalho, aliviando o caos do mundo. Um vapor doce paira sobre a mesa
do bar. “Nariga, o melhor jeito de traçar uma garota é arrumar um narguilé.”
“É verdade”, confere Magrão. “Lembra, Salva, lá na Colômbia? Era só armar o
troço no albergue que as gringas voavam na nossa mesa. É um para-raio de
louquetes.”
“Principalmente, Narigola, você que vai morar sozinho. Chama a garota para
fumar e escutar uma música”, completa Salvatore.
“Putaquemepariu. Essa ideia é boa”, admite Nariz.
Salvatore emborca sua cerveja. “A música tem que ser boa, cara. Sem Mister
Catra.”
“Esse cara foderia até minha vó.”
“Cara, a garota precisa ouvir algo mais agressivo. Com mais pegada. As
paulistas entendem de música.”
“Hip hop é top da balada”, defende Magrão.
“Para ficar claro, não enquadro em hip hop questões vanguardistas, como TV
on The Radio.”
“Tem que ser gringo agora?”
“Tem o Rappa. Na gringa tem o Manu Chao, Rage Against, Thievery
Corporation, Gogol Bordello, Danger Mouse, Will.i.am e mais uma legião de caras
explosivos, que sabem o que estão fazendo.”
"Mas tudo envolve hip hop", inquire Magrão.
"É, mas é diferente."
"Diferente de que?"
"Sei lá, cara, tem uma parada que soa hip hop puro, é um massacre, soa
violento, tem gosto de cano de revólver."
"Rock também é assim."
“E Calcinha Preta, pode?”, pergunta Nariz.
Salvatore gosta da banda brega.
“Calcinha Preta só depois da primeira trepada. Antes você precisa impressionar
a garota.”
“Ok, DJ.”
Salvatore pega o Iphone do bolso. “Já escutou isso? É infernal.”
Seleciona uma música e aperta play. O som estridente que sai do aparelho se
perde na barulheira do bar. Nariz puxa o Iphone para perto do ouvido. “Música boa.
Que banda é essa?”
“Passion Pit. Coisa nova.”
“Gostei. Meio destemperado, meio doido. Onde descobriu isso?”
“No blog do Lúcio.”
“Porra, é do caralho. Salva, tá contratado como meu consultor musical.”
“Ah, vá se foder”, reclama Salvatore.
“É sério, cara. Porra, faz um blog vagabundo aí qualquer, e coloca umas coisas
lá. Eu e Magrão seremos seus leitores.”
“Diga por si mesmo”, interpõe Magrão.
Salvatore fica pensando na hipótese. Magrão pega a mangueira de Salvatore,
traga e declara seu incentivo. “É mesmo, Salva. Pode até colocar umas críticas, essas
merdas que você fala pra gente.”
Salvatore se anima, abre um sorriso. “É, pode ser.”
Nariz o instiga ainda mais. “Porra, caráleo, Salva. Boa ideia. Pode até colocar o
Jack Johnson.”
Os olhos de Roberto Salvatore se tornam menos opacos. Desde que entrou
nessa de concurso público, afora ficar com sua namorada, não fazia nada que lhe desse
prazer.
Salvatore traga uma vez mais o narguilé, o terceiro da noite. A conversa é inútil
e voa junto com as horas. Aqueles papos ótimos serão extirpados com a ida de Nariz
para São Paulo.
O blog pode ser um bom jeito para manter contato com o Nariz. Pensa no
amigo.
O futuro dele é incerto com esse negócio de virar DJ em São Paulo. Não dá pra
prever o salário. Mas, no curto prazo, é mais promissor do que estudar direito
administrativo e passar os finais de semana nos mesmos bares escrotos.
Tão pouco o futuro de Salvatore é certo.
Por uns instantes, permanece calado. Está condenado a ser um bêbado médio
de Brasília. Cidade dura, de gente solitária. As pessoas bebem demais. É o jeito de
aguentar o tranco. As pessoas estudam, arrumam empregos, bebem e alugam
quitinetes pra trepar.
Salvatore esquece do futuro e decide abrir o blog naquela mesma noite. Pauta,
Passion Pit.
OBRIGADO, SÃO PAULO
No presente, 20h45.
Salvatore observa o palco. A banda avança. Precisa encontrar Nariz e Magrão.
Eles têm que ver aquele show juntos. Pelo sentido histórico.
Ele veste o tênis, pesado de tanta lama. Segue em frente, pé ante pé. O
homem, barro puro, antes do sopro divino.
Merda dos pés à cabeça.
Chega até o outro lado da clareira, onde a gente se aperta em frente ao telão. A
música acaba e as luzes se acendem. A plateia se agita, feito bola de vermes. A banda
começa a agradecer, em sotaque carregado.
“Obrigado, São Paulo.”
Obrigado é o cacete.
Ele pega o celular. Há uma mensagem. Nariz outra vez.
‘Cadê você? Estamos aqui, porra!’
Então os músicos saem do palco, um a um. Salvatore observa ao redor. Sequer
um rosto conhecido. O show acabou. E ele não os encontrara. A cabeça dói. Olha para
cima. Apenas um céu escuro e nublado.
Tudo errado. Vontade de desaparecer. Se livrar do festival imundo, daquela
náusea de bebida e barulho. Então, por instinto, ele abaixa a cabeça, a tempo de ver
dois vultos se jogarem sobre seu corpo.
Os dois seguram copos de cerveja e pulam sobre os ombros de Roberto
Salvatore, dando voltas. Cai cerveja em sua cabeça e em sua roupa. Ele começa a rir, e
então é abraçado por um deles, um sujeito de barriga proeminente. Pega-lhe pelas
pernas e levanta Salvatore do chão. Dá um giro, festejando seu saco de batatas.
Aquele é o melhor momento do dia. Talvez de muito tempo.
Nariz o põe no chão e o abraça. “Salva, seu fela da puta. Em primeiro lugar,
putaquemepariu, onde você estava?”
MICHAEL DOUGLAS
21h15.
O grupo corre para o palco Butantã, que brilha vermelho no horizonte. Passam
por grupos indo em todas as direções, ou até mesmo parados. Passam em frente ao
bar, banheiro, lounge e pista de patinação. Cheia.
Magrão analisa a pista. Tem sua própria trilha sonora. Ele grita para Salvatore.
“Ei, Salva, quer dar uma patinada?”
“Quatro ou seis rodas?”, responde Salvatore.
“Quatro.”
“Tô fora. Quem é louco de patinar em quatro rodas?”
“Psicodelia pura. Nariz?”
“Com certeza, cara. Com toda a certeza”, grita Nariz, dando pulos.
A pequena Lilica puxa Magrão, energética. O casal começa a despontar à frente
dos outros dois, que não param de conversar.
Magrão gostaria de participar daquela conversa, mas Lilica insiste que eles têm
de pegar o resto do Deadmau5. Ninguém se opôs, é a melhor opção mesmo. E estar
sob efeito dos cristais do Nariz aumenta a favorabilidade do Deadmau5 em dez vezes.
Ele vira para trás e não enxerga mais Salvatore e Nariz. Freia Lilica. “Perdemos
eles.”
“Lerdeza”, se agita a pequena. Quer seguir adiante.
Os amigos aparecem por entre as pessoas. Lilica pega Nariz pela mão. “Salva,
segura na mão do Nariz. A gente tem que correr.”
A corrente dos quatro parte em disparada.
Magrão observa, maravilhado, o palco. Um homem veste uma cabeça enorme
de rato. Comandante de pickups. As luzes dançam conforme a batida. House. O House
é a pista de patinação para quem usa cristais.
Magrão decide agradecer Nariz, por introduzi-lo. Ele o abraça.“Sensacional,
Nariga.”
“O que é isso que vocês tomaram?”, pergunta Salvatore, curioso.
“Salva, já experimentou?”, pergunta Nariz. Tira do bolso um pequeno saco. “É a
melhor coisa que o homem já produziu.”
Salvatore pega o pequeno saco plástico. Fecho a vácuo, para proteger da
umidade. Lá dentro, apesar da escuridão, Magrão distingue cristais minúsculos. As
pedrinhas brilham. Salva mexe no plástico.
Magrão faz um balanço tortuoso do dia do amigo.
1. Valentina aparece como um fantasma e lhe taca cerveja; 2. Bebe demais e
perde a noção; 3. Vomita os bagos; 4. Destrói a melhor oportunidade que teve com a
paulistana Tati; 5. Não vê a maior parte do Passion Pit; 6.Tem lama até o ouvido; 7. E
agora, vai engolir uma droga de que nunca ouviu falar.
Talvez aquele não seja o melhor dia de Salvatore para novas experiências,
conclui Magrão. “Salva, deixa pra amanhã. Tu já tá no limite.”
“Larga a censura, Magrela”, grita Nariz. “Puta chatice.”
Salvatore observa os cristais. Faz sentido tomar o bagulho?
Assim, fazendo as contas, percebe que a perspectiva é rasa. Engolir os cristais
talvez até melhorasse as coisas.
Magrão está tentando lhe proteger, mas o próprio não esconde o prazer que
sente. Nariz, alucinado, grita em sua orelha. “É só molhar o dedo e lamber. Bebe com
um pouco de água. É uma beleza.”
“Como chama mesmo?”
“Michael Douglas.”
Salvatore sabe quem é Michael Douglas, mas não sabe o que é Michael
Douglas.
“E o que isso faz?”
Salvatore se surpreende com suas próprias dúvidas conservadoras, após
tamanha devassidão alcoólica da tarde. Magrão e Lilica estão curtindo a música
eletrônica, junto com o resto da plateia.
Nariz volta a gritar em seu ouvido. Dessa vez cospe saliva. “Cara, a gente já deu
uma boa golada. Dá nada. É só a parte boa da bala. Não tem anfetamina. Daí a gente
fica só amoroso, sem agitação. Dando abraço e beijando.”
Salvatore percebe que os três estão realmente letárgicos. Magrão e Lilica se
agarram loucamente.
“Beijando?”
“Acho que vou te beijar, cara”, fala Nariz, lhe dando um estalo na bochecha.
“Quanto tempo pra bater?”
“Meia horinha. Bebe logo. Curtir a loucura desse ratão aí tocando”, Nariz
aponta os dois indicadores para o Deadmau5. O palco é uma avenida de luzes.
Salvatore observa o DJ. A apresentação é comandada apenas por ele, no centro
daquela estrutura enorme. Ele está num altar, que tem a forma de um cubo mágico.
Luzes coloridas se alternam nas paredes do altar e nele mesmo.
As luzes também saem de seu capacete, uma cabeça de rato gigante. Um
Mickey Mouse sombrio. E há luzes saindo de canhões do palco e dos telões, de
maneira que toda aquela mistura infernal de imagens se torne um ótimo convite à
imersão lisérgica.
Salvatore lambe a ponta do dedo, enfia no saco. Alguns cristais grudam no
indicador. Então lambe a falange, dá um gole na garrafa de água. O amigo solta um
urro de aprovação. “Dá-lhe, Salva.”
Pronto. Essa seria a nova vida de Roberto Salvatore. De bêbado sem mulheres a
drogado em ladeira abaixo.
Por algum motivo, não combina com ele. Nunca combinou. Talvez fossem as
aulas de religião da escola. Talvez o escotismo.
Salvatore bem que se esforça para sentir o ânimo do amigo. Aquele momento
deveria ser especial. Havia significado. Havia importância. Era o tipo de fraternidade
que leva amigos a gastarem uma boa grana em festivais. Experimentar um momento
de alegria e loucura compartilhada.
Mas aquilo simplesmente não funciona. Já não há euforia. Apenas – pensa –
ressaca.
A cena é artificial. A emoção é artificial.
Quem sabe em algum outro momento. Então, ele aponta a cabeça para cima e
esguicha o Michael Douglas.
Curiosamente, Salvatore vê a cena em câmera lenta. A água jorra de sua boca,
ao som da trilha minimalista. Ele gostaria de ouvir a música depois, mas não sabe o seu
nome. As gotas de água brilham com o estroboscópio pulsante. Aquela porra de cena
deveria aparecer no telão do show.
Salvatore ouve o grito histérico de Nariz. Provavelmente vai arrancar sua
cabeça. “Porra. Que merda você fez, cara? Tá louco? Tá louco, caralho?”
Salvatore não sabe o que falar. Limpa a boca com o antebraço.
“Sabe quanto essa merda me custou? Caralho, Salva, vai te foder.”
“Relaxa, Nariga. Foi só um pouco.”
“Esse saco me custou duzentas pilas. E tu me cospe fora?”
“Foi mal.”
“Era pra tu ficar bem, cara. Mas você vem e me lasca tudo”, Nariz gesticula
como um javali.
“Depois eu compro mais, vai Narigola.”
“Acabou com o festival.”
Salvatore conhece a impulsividade de Nariz. Explosivo, brigão. A música, ao
fundo, é boa. Salvatore resolve aliviar a tensão, “Nariz, que música é essa?”
O Nariz olha pra ele, confuso, puto da vida. Não consegue se aquietar. “Que
diferença faz?”
“É boa pra caceta.”
Mais uma frase artificial. Ao menos, o amigo está respirando, voltando ao
normal. “É boa pra caralho. Boa pra curtir com os brothers. Vou comprar uma cerveja”,
fala Nariz.
Nariz se perde na multidão. O rato-homem permanece no palco, comandando
sua ratoeira. Salvatore estranha o silêncio após aquele esporro. A horda de pessoas se
dedica a um protocolo burocrático de pular e agitar os braços.
Além daquele ponto, nada mais. A noite é um retalho plástico de tempo, sem
sentido e nem emoção. Salvatore resolve se mandar.
Lilica vê Salvatore andando resoluto. Se apressa e lhe pega pelo braço. "Salva,
vai comprar alguma coisa?"
"Vou embora."
"Sério?"
"Cansei."
"Ainda tem o The Killers."
Salvatore respira fundo. "Preciso de cama."
Aquela frase soa bem aos ouvidos de Lilica. A bota aperta seus pés. Sente-se
empapuçada pela cerveja e hambúrgueres. A perspectiva de um bom banho e uma
noite de sono parece tão agradável que perder o The Killers não seria impossível.
Melhor ainda se fosse acompanhada de Magrão. "Vou com você", diz ela a Salvatore.
Aquilo deixa Salvatore um pouco surpreso. Ele esboça alguma resposta, mas
Lilica lhe dá as costas e vai falar com Magrão, que está em alguma dimensão longe dali.
Ela pega em sua cabeça e balança. "Acorda, cana."
"Não é possível, não é possível."
"Tô indo embora, junto com o Salva."
Enfim ele desperta, fala em seu ouvido. "Já? Ainda tem o The Killers", contraria
Magrão. A voz dele, gasta com um dia de show. De fato é hora de ir embora.
"Vou passar. Quer vir embora?", diz Lilica.
"Não era o meu plano."
"A gente pode tomar um banho, dormir juntos", Lilica sorri e coloca o indicador
na boca.
Magrão pensa um pouco, mas só um pouco. "Acho que quero ficar."
"Então tchau”, ela se despede, sem esperar resposta.
Pega Salvatore pela mão. "Vambora."
Lilica sente o frio abafado da noite paulista. Ela e Salvatore se distanciam do
frenesi eletrônico. A batida vai se tornando difusa, se misturando aos sons dos outros
palcos. Vai ser bom dar o fora. Mas há uma última missão. "Salva, ainda preciso fazer
uma coisa."
"Banheiro?"
"Não, a gente tem que passar no show do Dave."
"Quem é Dave?"
"O DJ que a Carol está produzindo."
Salvatore geme, desanimado. "Poxa Lilica, acho que não tô a fim."
"É rapidinho."
"Te espero aqui."
"Não, vamos juntos."
"Rap não dá. A essa hora da noite e sóbrio, nem matando."
Lilica está perdendo. Apenas uma coisa pode atrair a atenção de um homem
moribundo, e ela não se importa em exagerar alguma informação.
"Sabe que a Carol te achou joinha?", diz isso fazendo um polegar pra cima, uma
curtida no Facebook.
Repentinamente, o olhar de um zumbi ganha vida. "Ah é?"
"E prometi que a gente ia dar uma passada no show."
Salvatore passa a mão pelo cabelo, examina a situação. "Mas ela nem vai nos
ver. Que diferença faz?"
"Amanhã ela quer me encontrar. E daí que você já podia puxar um papo, tipo,
que ‘show sensacional, Carol’. Sacou?"
Ele segura o cabelo. "Tudo bem. Mas é rapidinho, tá?"
Os homens são muito baratos.
Salvatore percebe que está diante do ápice de um dia, e que não o perde por
pouco.
Um homem negro, forte, vestindo uma regata branca e uma corrente de prata,
se mexe com desenvoltura a dois metros do chão. Com uma das mãos, ele segura um
microfone de viés. Com a outra, provoca a plateia. As pessoas reagem, socando o ar,
todas juntas.
Dave, o DJ da Califórnia, dispara palavras incompreensíveis. São firmes e com
uma melodia sensível. Salvatore nunca ouviu um hip hop como aquele. A harmonia
não é agressiva, mas empolgante. Nada daquele sentimento de violência e tensão.
Parece poesia, talvez até seja. O ritmo na poesia real, Rhythm And Poetry.
Salvatore tem plena noção de que sua visão sobre rap é preconceituosa. Mas
seu filtro para música é tão simples quanto o paladar. Tinha uma frase pronta pra isso.
Bom gosto não se discute. Ou você tem, ou morre sem.
Então, pela primeira vez, Salvatore rompe aquele paradigma. Dave soa puro e
poético. Salvatore sente a música com seu umbigo, com seu peito. Aquilo é a
experiência plena, o sangue borbulha, as têmporas ficam em ebulição. Ele se abandona
em frente à caixa de som.
Carol comenta o visual do amigo. “Tá demais.”
"Resolvi valorizar a amizade com seu gringo. Ele tá mandando muito, né
amiga?", responde ele.
Carol sorri para o amigo. "Tá o máximo."
"Carol, tá muito justa?", pergunta o rapaz, olhando para a própria calça. Ele gira
em torno de si mesmo. Carol pensa que ele vai ficar estéril com aquele cavalo tão
apertado.
"Linda."
Não sabe ao certo qual tipo de expectativa que ele tem, mas gastou algo como
novecentos reais naquela peça. Implorou para Carol lhe arrumar uma vaga no
camarote.
Ela observa a plateia, do alto do camarote da produção. As pessoas vibram.
Admira o poder de atração que Dave exerce na plateia. Ele é uma torrente de
sensualidade. Poderia escolher qualquer garota da plateia. As disponíveis, ao menos. E
os homens também.
Ali do camarote, Carol se prende na visão de um sujeito estático, à frente da
caixa de som. O coitado vai ficar surdo, mas não se importa com isso. Ao lado dele,
uma baixinha tira foto de Dave. Carol reconhece Lilica e sorri.
Salvatore e Lilica saltam do táxi e entram pelo saguão do hotel. “302 e 405”, diz
ao recepcionista.
“Pois não”, responde o rapaz, torcendo o nariz. É o mesmo funcionário do
check in. Cabelo derretendo. O rapaz entrega ambas as chaves à Lilica. “Tenham um
bom descanso.”
Eles pegam o elevador. Salvatore se vê no espelho e percebe que realmente
está precisando de descanso. Rosto inchado.
Ele aproxima a face do espelho e examina as olheiras, que estão acentuadas.
Olhos avermelhados. Sopra uma baforada no espelho.
O vidro se condensa, e ele sente seu hálito azedo. Dezenas de litros de chope,
pinguel com batata frita e chiclete. “Urgh”, Salvatore arrota.
Lilica protesta. “Cruzes.”
O elevador para no terceiro, Lilica lhe dá boa noite e salta.
Cacete, seria bom escovar os dentes. Seria bom tomar um banho e escovar os
dentes.
Salvatore abre o quarto, acende a luz e se depara com a antessala. Sofá,
frigobar, roupas jogadas. Mais adiante, a cama de casal limpa e arrumada.
Tira o tênis imundo, o arremessa para o centro da sala. Entra na ducha e sente
o peso do dia sobre os ombros. O vapor quente relaxa os músculos e tendões tensos,
exaustos.
Ele se lembra das férias em Itacaré, com Valentina. A primeira viagem só deles.
Os dois chegavam de um dia cansativo de praia e tomavam banho juntos. Ela,
com cuidado, lhe esfregava as costas, o peito e as pernas.
O casal ia para a cama e ele passava o hidrante de papaia no corpo dela.
Transavam e pegavam no sono, abraçados.
Salvatore sai da ducha e dá uma volta pelo quarto, enquanto escova os dentes.
Não há nenhuma garota disponível na cama, nem no sofá, nem em um raio de cem
quilômetros.
Vai até a varanda e observa as luzes da cidade.
Um som distante, um carro passando lá embaixo. Funk. Lembra das batidas do
rap de Dave.
Salvatore deita na cama. Um convite inegável para entrar debaixo do cobertor.
Ele se senta, apoia-se na cabeceira e abre o notebook.
Digita no título ‘Longa Viagem Noite Adentro’.
Dia 2
SEU MADRUGA WILL GO ON
Sábado, 30 de março, 09h30.
"Não vou", diz Valentina a Sara.
"Vamos. Please."
"Não vou, não vou e não vou."
"Vai ser melhor hoje. Prometo."
"Sara, sua irmã decide", diz a mãe das garotas, tentando aplacar o embate com
a voz serena.
"É que hoje tem um bando de coisa boa, mãe. E eu fico com saudade dela o ano
inteiro", Sara agarra Valentina pelo pescoço.
Valentina se livra da irmã. Folheia uma revista de decoração de interiores,
estirada no sofá largo. Não se compromete com nenhuma reportagem.
Como é bom ficar em casa.
"Nós também ficamos com saudade dela, então vamos dividi-la."
"Podemos almoçar no mercadão", salta a vozeira do pai lá da cozinha.
"Ótima ideia, pai. Divide um pastel de bacalhau comigo?"
"Desculpe filha, mas eu como um sozinho."
A mãe, regando o jardim de inverno, não perde a oportunidade. "E essa barriga,
Álvaro?"
"O doutor liberou no sábado."
"Quantos sábados têm na tua semana?"
“Dois. Talvez três.”
“Vai ter um treco.”
"Ó a boca, mami", diz Sara, dando duas pancadinhas na mesa de centro. "O
importante é a Vali dar uma animada."
"É mesmo, Valentina. Tô te achando meio tristinha. O que foi?"
Valentina faz uma careta com a boca.
"Brigou com o Salvatore?", pergunta a mãe, em seu costumeiro chute infalível.
"Por aí."
Ela se aproxima de Valentina e pega em sua mão. "Faz o que você preferir, nós
só queremos que você fique bem."
“Ela vai comigo. Hoje vai um amigo gatinho, o Tato”, diz Sara.
"Como assim, Sara? Uma briga não significa sair por aí, ficando com os outros."
"Hoje em dia é diferente, mãe. Tá tudo liberado."
"Como é, Sara?", novamente o pai.
Dessa vez ele aparece na porta da cozinha, de avental e luvas amarelas.
"Pai, você tem que ler aquele livro sobre amores líquidos."
"Aqui em casa não tem nada líquido. Quero tudo concreto. E você só me
apareça aqui com um namorado firme. Porque o último, vou te contar."
Valentina se diverte com o ciúme paterno. Quando conheceu Salvatore, o pai
fez um inquérito sobre sua vida pregressa, imbuído do faro de advogado bemsucedido. Só no terceiro encontro é que começou a falar de futebol. Salvatore não
entende de futebol, coisa que, para o pai, denota fraqueza de caráter.
A ideia de voltar para aquele lamaçal passa longe da cabeça de Valentina.
Quanto mais encontrar Salvatore de novo.
Ela sente vergonha pelo exagero do dia anterior. Jogar cerveja na cara dele não
foi a melhor estratégia de reaproximação. Tudo bem, ele mereceu, por se jogar nos
braços de uma rapariga.
Mereceu?
Foi ela que foi pra cama com outro cara. Ele apenas cancelou o contato com
Valentina. Mas teve o carnaval. Enfim, seria tão mais fácil perdoar tudo, passar por
cima. Perdão depende de diálogo.
Diálogo depende de encontro e, pra isso, teria que convencer Salvatore. E,
consequentemente, ela tinha que se expor, mesmo se sentindo particularmente frágil.
A repulsão se acotovela com o magnetismo, deixando Valentina exasperada.
Detesta a sensação de insegurança. Ela gosta de ter controle sobre a situação,
aprendeu com o pai.
Ela abre o celular e relê o último post de Salvatore. Resolve se arriscar. É a
última chance.
Salvatore não dorme por causa do ronco. O barulho não é linear. Engasgado.
Olha para o corpanzil no sofá. O mais curioso é a posição. Nariz, deitado de
bruços, a cabeça voltada pra baixo, com o nariz enterrado no travesseiro.
A bem da verdade, o próprio fato do Nariz estar no sofá já é curioso o
suficiente.
Magrão, no outro lado da cama, aparentemente dormindo. Há uma vassoura
encostada na cabeceira.
Vassoura?
A luz da manhã atravessa a cortina. Salvatore sente que não dormiu o
suficiente.
Checa a hora no celular e conclui que tem um passivo de aproximadamente
duas horas de sono. Repara também o sinal de que alguém deixou um comentário em
seu novo post.
A curiosidade de saber a repercussão do texto é interrompida por um trovão,
disparado das profundezas do sofá. Ele tenta algum diálogo amistoso. “Nariz.”
Sem resposta.
“Nariga, para de roncar, cacete.”
Nada.
“Que barulho dos infernos.”
A voz de Magrão soa ao lado. “Dormiu com as anjas, Salva?”
“Dormi contigo, pelo visto.”
“Não tinha alternativa.”
“E a Lilica?”
“Não atendeu a campainha.”
Salvatore se remexe. “Porra, Magrão, como é que o filho da puta não acorda
com a própria barulheira? E ainda dorme com o nariz enfiado no travesseiro?”
“Já peguei a moral do ronco.”
Magrão segura a vassoura, caminha até perto do sofá.
“De onde saiu essa vassoura?”
“Ele roubou das arrumadeiras.”
Magrão cutuca a barriga de Nariz. O cabo afunda na gordura mole. Nariz se
mexe e vira de barriga pra cima, sem abrir os olhos. Magrão fica em pé observando.
Quando Salvatore pensa que a paz está finalmente estabelecida, Nariz pega o
travesseiro debaixo da nuca e o posiciona bem acima do rosto. O nariz fica enterrado
novamente, em pouco tempo ele volta a roncar.
“Bela moral do ronco”, diz Salvatore.
“A gente pode quebrar a vassoura na cabeça dele”, responde Magrão. “Daí ele
apaga de vez.”
Um estrondo preenche todo o ar do quarto, seguido de um remelexo no sofá.
“Caralho. Preciso dormir”, reclama alto Salvatore.
“Não reclama. Você saiu cedo. E perdeu o show do The Killers. Animalesco.”
“Tava morrendo de sono. Ainda tô. Magrão, o que é que esse bicho tá fazendo
aqui? Por que não foi pra casa dele?”
“Disse que precisava fumar um bagulho antes de dormir. E eu disse que tinha
um pouco.”
“Brilhante. E o cara da recepção deixou ele entrar?”
“O Nariz entrou no saguão e falou em espanhol com ele. Depois tentou
interagir com umas garotas que chegaram da rua. Ele as convidou pra uma sauna aqui
no quarto.”
“E elas vieram?”
“Em seguida chegou a mãe delas. Ficou horrorizada e levou as filhas em
silêncio. Ele se despediu, abençoando aquelas bundas em voz alta.”
“Bicho escroto. Vocês dois. Depois daquela cerveja toda, Michael Douglas, e
vocês ainda atocharam um?”
“Ele deu um tapa na brenfa, tomou uma golada do Bala doze e despencou de
cara no sofá.”
“Bala doze?”
“Ele roubou uma garrafinha do frigobar.”
Salvatore vê no chão uma minigarrafa de Ballantines doze anos, jogada.
Magrão continua. “Assim como os amendoins. Parecia um viking, pilhando e
arrebatando tudo que via pela frente.”
“Esse cara não tem fronteira.”
“A fronteira dele é a sepultura.”
Magrão se levanta e pega o telefone. “Olha a música que ele tava ouvindo
quando foi dormir.”
Salvatore olha o display.
“Botou no repeat, a todo volume.”
Uma canção chamada ‘Seu Madruga Will Go On’ aparece no vídeo.
“Vamos acordar o puto”, diz Salvatore.
Ele pega o telefone do Magrão, se agacha ao lado do sofá e coloca o altofalante no máximo.
Um estouro de guitarra distorcida, seguido de um bombardeio. Da tela,
imagens mixadas do seriado mexicano se sucedem a flashes e pipocos coloridos. O
som eletrônico deixa o ambiente nervoso.
“Ca-rá-le-o. De onde saiu essa merda?”, pergunta Salvatore.
“Essa música é a essência da vida do Nariz. Uma miríade de cores, e uma
mistura aleatória de barulhos, que não levam a lugar algum.”
Um som gutural emerge do sofá. O hálito tóxico de Nariz invade os pulmões de
Salvatore.
“Desliga isso ae, meu”, grita Nariz.
“Agora você quer dormir, né, veado? Depois de roncar feito uma porca no cio.”
“Não ronco.”
O bafo é tão forte que Salvatore é obrigado a se afastar. “Minha nossa, Nariga.
Comeu um urubu ontem?”
“Castanhas de caju, urubu e um cu.”
“De quem?”
“De alguém que tava estirado aí na cama.”
Magrão ri.
“Mas queria ter comido aquela mina da recepção”, continua Nariz.
“Que mina? O recepcionista é homem.”
“Comia também.”
De um salto, Nariz se levanta e coça a barriga, branca e já avançada aos trinta
anos. “E aí, tomaram café?”
“Não”, responde Magrão.
“Qual é o plano?”
“Comer e ir pro festival”, Magrão bate uma palma e depois aponta para frente
com uma mão. “Foco.”
“Beleza, café de hotel. Alguém me paga, tô sem cash.”
Magrão e Salvatore ficam em silêncio.
“Cambada de murrinha.”
“Te empresto”, fala Magrão.
Nariz corre três ou quatro passos e se atira em cima de Magrão, que faz de
tudo para se encolher, mas some debaixo do corpanzil. Nariz o abraça e fala roçando a
barba no rosto do amigo.
“Valeu, parceiro.”
“Cornudo. Você vai pagar o café e a conta do frigobar.”
Salvatore ri de Magrão. Prensado e sendo extorquido pela bafagem. Enfim ele
consegue empurrar o corpanzil que cai no chão e fica.
Magrão se levanta e afasta a cortina. Olha para o longe, analisando o andar das
nuvens. Faz um estranho cálculo. “Acho que vou de calça.”
“Tá louco, meu?”, se indigna Nariz. “Calça em festival? Nunca.”
CICLONES NASCENDO NO AR
13h30.
Alguns grupos passam, conversando alto e bebendo a primeira cerveja da
tarde.
Magrão se sente bem por estar ali com o pessoal. Apesar de estarem na cauda
de uma fila descomunal.
Por alguma sorte, eles não tiveram de esperar o banho de duas horas da Lilica.
Ela o enxotou, dizendo que se encontravam depois. Talvez estivesse meio brava da
noite anterior.
Para disfarçar a inércia, Magrão decide planejar o dia e saca o panfleto do
bolso. “Pela frente, temos Franz Ferdinand, Planet Hemp e Black Keys. A primeira do
dia é Two Doors Cinema Club.”
“Black Keys. É o píncaro desse festival”, diz Salvatore.
“Píncaro”, diz Nariz.
“E tem o Franz, também, picarex. Não perde isso, Salvaralho, que nem fez no
The Killers”, adverte Magrão.
Nariz ruge novamente. “Píncaro.”
Salvatore aguarda a centopeia parar. Suas pernas são duas patas da enorme
centopeia-fila. Centofila. Vira-se para Magrão. “O Franz vai tocar no palco verde ou no
vermelho?”
“Vermelho.”
“Aquele palco é...”, Salvatore faz um gesto gourmet, estalando os dedos na
boca. “Uma bosta.”
Nariz se agita. “Como é que alguém consegue montar uma porra do tamanho
de um prédio que não sai som?”
A centopeia volta a caminhar e Nariz empurra Salvatore. Ele quase esbarra no
casal à frente, duas garotas, uma magra e outra gorducha, ambas carregadas de
maquiagem.
As pessoas começam a andar mais rápido, a centopeia ganha vida, para apenas
frear bruscamente. Há uma árvore bem no trajeto em direção à entrada.
O corpo da centopeia se contorce na barreira, formando um calombo. Adiante
da árvore, o gomo da fila que já passou pela barreira acelera novamente.
Salvatore vê que à frente do calombo há uma grade que divide as pessoas em
dois grupos. Ali é a peneira dos bilhetes da meia entrada e da inteira. Seguranças com
um boné vermelho e ridículo fazem o controle. Checam os comprovantes de matrícula
dos estudantes.
Salvatore consegue sair do calombo, a centopeia humana se junta. Porém se dá
conta de que, ao lado das garotas, há um casal de penetras.
Os óculos do homem chamam a atenção de Salvatore, é branco e com lentes
enormes. Usa uma camisa de botão apertada, mostrando o tórax definido. O seu
cabelo, reluzente, espetado pra cima. Tem tatuagem e um colar de prata. É um
autêntico leite pasteurizado, produto da era Facebook.
Ao seu lado, uma mulher. Bunda maravilhosa, calça socada e top mostrando o
umbigo. Aquela calça é uma pele de tanto que entra pelo rego, dá pra ver que não tem
rombo de celulite.
Salvatore se divide entre a irritação de aceitar o penetra e o prazer de ficar
olhando aquela bunda. A fila para a cinco metros do ponto de checagem. Magrão lhe
diz algo às suas costas.
“Salva, esqueci a carterinha.”
“Não fode.”
“Sério. Lá no hotel.”
Então, um tiozinho do rock, atrás deles, demonstra a sua irritação com o casal
de furões. “Ôrra meu, o cara furou na maior.”
Salvatore resolve pegar embalo e se mete. “Camarada, o fim é ali atrás”.
O furão se volta para Salvatore. “Qualé, mano? Esse troço tá gigante.”
“Todo mundo aqui teve que encarar a fila.”
Ele aponta um dedo para Salvatore. “Fica na tua.”
Salvatore sente-se ameaçado e cala a boca. A centopeia volta a andar. O
tiozinho do rock esbraveja novamente. “Saí daí, ô espertão. Puta folga.”
Salvatore toma as dores. “Cara, não rola de você ficar aqui.”
“E tu vai fazer o quê?”, diz o furão, peitoral inflado, se virando para Salvatore.
Salvatore lembra-se de um filme. Na porta de um bar, havia uma placa.
‘Here we don’t dial 911.’
A placa tinha o formato de uma espingarda cano duplo. Salvatore tem vontade
de dizer algo desse tipo, eu não vou chamar o 190, ainda que a tradução não tenha o
mesmo impacto. Mas a centopeia anda novamente e eles, enfim, chegam ao controle
da carteira de estudante.
O furão passa para o corredor de inteira, Salvatore se sente diminuído.
O segurança de boné checa a carteira de Salvatore. Passa sem problema. Olha
para trás e vê que Magrão está encrencado.
Magrão procura os dois amigos. Ao redor, filas se formando em vários pontos.
São ciclones nascendo no ar. Criados para toda e qualquer finalidade. Para mijar,
comer, beber, pagar impostos e até para morrer. Aquilo é a maior marca do mundo
civilizado.
Eles estão na fila do chope. Magrão decide que vai aderir ao lance de furar. A
rigor, pegar carona com um amigo é furar fila, mas as pessoas toleram. O mundo
civilizado aceita a corrupção, contanto que seja democrática.
Sai correndo e dá um tranco em Nariz, que voa longe.
“E aí, Magrão, como é que passou?”, pergunta Salvatore.
“Dez pilas na mão do segurança.”
“Corrupto.”
“Dá nada.”
“Não sei o que é mais corrupto. Pagar dez pilas ou falsificar a carteira de
estudante”, reflete Salvatore.
“Salva, o mais corrupto é quem me cobra trezentos reais por dia”, responde
Magrão.
Mais perto do balcão de chope, Magrão observa homens vestidos de verde,
sem cueca e maquiados de verde, com certeza até o rabo.
Eles distribuem chicletes a um grupo de garotas. “O Trident é de graça”,
comenta Magrão.
“E nos obrigam a ver a sua geba verde, por trás daquele colã”, responde
Salvatore.
“Não existe almoço de graça, nem chiclete.”
“Magrão, sabe quem escreveu no blog do Salva?”, provoca Nariz, que se
aproxima, checando o celular. Salvatore faz um bico.
“A dona encrenca”, ri Nariz. “Dá-lhe chuva de cerveja.”
“Porra, Magrão, já saiu fofocando pro Nariz?”, inquire Salvatore.
“Cara, aquela cena é utilidade pública. Devia ter filmado e colocado no
YouTube”, responde Magrão, rindo também. “Mas e aí, o que ela disse?”
“Fez um trocadilho com o título do post, um lance de distância.”
“E você respondeu, Salva?”
“Claro”, grita Nariz, sem dar chance a Salvatore. “Você acha que o senhor
coleira vai rejeitar outra cervejada na fuça?”
Salvatore pensa sobre a resposta ao comentário de Valentina. Ela atacou. Em
vez de contra-atacar, ele resolveu lançar uma ponte. Uma ponte passando por cima do
abismo da traição.
Tudo bem, pensa Salvatore. Hora de ver o que há do outro lado desse abismo.
LONGA VIAGEM NOITE ADENTRO
14h20.
Valentina não esperava receber aquela mensagem. Uma resposta ao
comentário que deixou no último post de Salvatore. Enquanto o pai corre no trânsito,
Valentina lê e relê o comentário e a resposta.
>>Comentário
‘O quão distante ainda estaríamos, Salva?’
valentina.borges
>>Resposta
‘Nem estamos tão longe assim. Achei que você estaria ao
menos a mil quilômetros daqui. Você vai ver o show do Franz?’
roberto.salvatore
À tarde, até então, jurava ser um passeio ameno com os pais. Almoço
carregado de frituras, seguido de strudel com sorvete de creme.
A fome cai por terra com aquela resposta, dando lugar a um mar revolto de
expectativas. Alheia ao embate que se trava no banco da frente, digita uma resposta
correndo. O site demora a carregar. A Internet 3G num país subdesenvolvido.
Aquela resposta é um claro indício de um encontro, segundo a gramática de
Salvatore. Algo não direto, apenas uma chamada, um teste, um código Morse.
‘Vou sim. E você?’
valentina.borges
Sua mãe se vira. “Não é Vali?”
“É o que, mãe?”
“Não acha que seria bom fazer uma viagem, só nós quatro, como
antigamente.”
“Duvido a Sara topar”, diz o pai, cético, vestindo óculos de aviador.
“Eu topo”, responde Valentina, sem saber direito a pauta.
“A gente paga tudo, ela só vai. Quem sabe Galápagos?”, a mãe se empolga.
“Está louca? Preciso de um garçom, não de uma iguana”, reclama o pai.
“Como você é conservador, Álvaro. Não pode mudar uma vírgula?”
Valentina atualiza a página e vê uma resposta. Não esperava algo tão rápido.
>>Resposta
‘Vou. Quer assistir comigo? (=’
roberto.salvatore
O pai continua o embate. “Já que a pauta é Caribe, por que não Porto Rico?”.
“Por que não Cuba?”
“Só se for pro enterro do Fidel.”
“E Jamaica?”
Valentina ouve o desfile das praias, nomes perdidos num atlas. Apenas se
concentra em digitar.
>>Resposta
‘Quero! Marcamos na da barraca de hambúrguer, perto do
palco vermelho, às 17h00?’
valentina.borges
A mãe de Valentina pede sua ajuda. “Vali, por favor, você que é isenta. Prefere
Cancun ou algo mais exótico, tipo Los Roques?”
“Mãe, pai? Será que vocês podem me levar até o Jockey Club?”
Salvatore mira o homem sozinho no palco. Seu cabelo longo, armado em
dreadlocks, cobre o paletó caro. Um cheiro de estrume toma conta da atmosfera ao
redor do palco alternativo. Estrume equino.
Nariz parado, coçando a cabeça, olhar fixo no dreadlock. “Nunca vi um show
começar direto no solo de guitarra.”
“Tem que ter colhão pra fazer isso”, comenta Salvatore. Nariz, inconformado,
gira a cabeça de um lado para o outro. “Quem é esse aí, Magrón?”
Magrão consulta o programa. “Um cara chamado Gary Clark Júnior.”
Nariz vira o chope e joga o copo no chão. “Vamos começar o dia. Vamos
começar a porra do dia.”
“Lá vem”, diz Magrão, resignado.
Nariz tira uma uisqueira do bolso. “Absinto?”, pergunta Salvatore. Nariz
responde em portunhol selvagem. "Para todo mal, mezcal, y para todo bien también”.
Vira um bom gole. Faz careta, sacode as bochechas. Entrega a garrafa ao
Magrão e dá pulos de um lado para o outro.
Salvatore acha graça. “O que esse desgraçado trouxe aí?”, pergunta a Magrão,
que cheira o líquido. “Etanol com pólvora”, responde.
Nariz para ao lado deles. “Porra, vocês têm que experimentar esse lance. Uma
grande loucura. Os índios mexicanos bebiam pra falar com os mortos.”
Ele pega a garrafa e tenta virar na boca de Magrão. “Sai, Nariga. Não quero ver
morto a essa hora da manhã”, reclama Magrão.
Nariz bebe mais um gole e solta um grito. “Tô arrepiado até os pentelhos do
cu.”
Então parte para Salvatore, que bebe, sem chance de negar. A bebida quente
lhe rasga o estômago. Observa Nariz se distanciando, partindo para órbita.
“Salva, esse cheiro tá me fodendo. Você quer ficar aqui?”, diz Magrão.
O cheiro de estrume vai se instalando nas narinas de Salvatore. “Esse ano o
lance tá meio avacalhado.”
“Avacalhado não, porque seria bosta de vaca. Acavalhado é melhor.”
“Trocadilho de merda.”
“De fato. Dá uma olhada naquilo”, Magrão aponta para dois trabalhadores.
Eles estão à frente do palco. Um deles segura um carrinho cheio de areia e o
outro, com uma pá, joga no chão. Uma mistura intragável de lama, areia e bosta de
cavalo.
Salvatore observa o movimento contínuo dos trabalhadores. Nota a miséria de
um garoto, no epicentro da lama, hambúrguer numa mão e refrigerante noutra. Em
meio ao gás tóxico, tenta engolir a refeição festivalesca.
Magrão olha no relógio. “Cara, vou encontrar a Lilica. Volto pra cá. Vê se não
perde o Nariz.”
Salvatore, sozinho, se desanima.
Além do mais, é um solteiro sem colhão. Com nada à vista em termos de
novidade, decidiu raspar o fundo do aquário, marcando um encontro com Valentina.
Pra se distrair, resolve escrever no blog.
>> A Lição
Publicado: março 30, 2013 em Tirania da Contingência
‘Ingresso, 175. Dez chopes, 80. Hambúrguer gelado, 12. Fora
táxi, viagem e mais um monte de troco que vai se esvaindo da
carteira. Por que é que venho pra esses festivais?
Talvez porque aprenda algo, não sei bem o quê. O
importante é que a lição não seja clara.
::
Roberto Salvatore
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Um bólido choca-se com ele, derrubando o celular. Nariz lhe agarra pela
camisa. “Salva, descobri algo inenarrável.”
Salvatore olha para Nariz, assustado. Ele continua falando, cuspindo saliva.
“Tem que ver isso cara. Um punhado de garotas zeradas. Pensa em todas as
possibilidades.”
Salvatore limpa o rosto, com nojo. Livra-se de Nariz e pega o telefone do chão,
já cheio de terra.
“Tá vendo. Eu posso ir pra lá, voltar pra cá, falar com elas e não dá em nada.
Essa porra de liberdade vicia. Eu olho pra essas garotas e fico totalmente louco”, diz
Nariz.
“Você nasceu louco.”
“Salva, ser solteiro e ter vinte e nove anos é a melhor coisa que você já fez.”
Nariz o arrasta pelo braço até um grupo cheio de garotas. “Feliz ano novo,
meninas!”, grita Nariz. Salvatore fica nervoso. Não está nada inspirado, não tem a
menor ideia do que fazer. Para surpresa de Salvatore, elas riem do Nariz e respondem.
“Feliz ano novo.”
Nariz não as deixa pensar. “Ei, meninas, este aqui é o embaixador de
Luxemburgo. Ele precisa de ajuda, acabou de se divorciar.”
Salvatore olha para o chão, sorrindo sem graça. É um invasor sem munição.
Uma das garotas, sentada, responde. “Tão novo, já divorciou?”
“O que você está fazendo aí, sentada?”, pergunta Nariz. “Pode cuidar do
embaixador pra mim?”
Nariz joga Salvatore no chão.“E aí? Como é se divorciar?”, pergunta a moça.
Ele se ajeita como pode e dispara a primeira coisa que surge. “Pergunta pra
embaixatriz. Perdi metade da minha conta bancária.”
A garota é uma graça. Nova, flanela xadrez, ruiva, indie, possivelmente
universitária. “Se não tivesse perdido meu palácio, eu te levava para Luxemburgo”, fala
Salvatore.
Ela sorri. Enfim a cabeça dele pega no tranco. “Mas sabe qual é melhor parte da
separação?”
“Ficar solteiro?”, diz a garota.
“É anunciar a novidade pros outros. As pessoas lhe perguntam ‘oi, como tá a
embaixatriz?’ e então você responde ‘a gente se separou’. E a outra pessoa fica ali
parada, com cara de nuvem.”
“É uma merda de constrangimento. Na verdade, a culpa não é das pessoas. É
dos separantes.”
“Não deu certo, acaba. É assim.”
“Eu me sinto péssima. São tantas separações. Agora a gente não pode mais
perguntar pra ninguém, e aí, como tá fulano, e recebe uma paulada dessas.”
“Tá no pacote.”
“Um casal de amigos se separou, depois de um ano e meio. Eu fui madrinha,
gastei a maior nota no presente. E então Puff”, ela gesticula, fazendo um arco com os
dois braços.
“Acho que os noivos deveriam assinar um contrato com os convidados. Caso
acabem antes de sete anos, devolvem os presentes.”
“Ótima ideia. Assim as pessoas se casam menos”, ela ri e mexe no cabelo.
Salvatore enxerga ondas de frescor. “Você é daqui?”
“Sou, mas faço facu em Piracicaba. E você?”
“Brasília.”
“Tá na faculdade?”
“A faculdade já largou de mim.”
Então alguém lhe cutuca no topo da cabeça. Salvatore olha para cima,
imaginando enxergar o Nariz e um pote de mescal, mas vê Magrão. Ao seu lado está
Lilica.
Ele se levanta e beija a pequena companheira do amigo. “E aí, Lilica.”
“E aí, Salva. Vamos ver o Two Doors?”
“Tamo aqui para isso.”
“Então vamos”, diz Lilica, puxando.
Salvatore tranca. “Peraí”.
Leva adiante a conversa com a universitária radiante? Há alguma promessa
real? E o encontro com Valentina? Se botar gasolina neste flerte com a garota de
flanela xadrez, a chance de alguma explosão mais à frente é alta.
O tempo está passando, Lilica insiste, “bora Salva”. A garota lança um olhar e
pergunta. “Já vai embora?”
Não há tempo para divagações. Resolve decidir o que é certo ou errado depois.
Ele se agacha. “Vocês vão ver o show do Two Doors?”, pergunta à garota de flanela.
“Vamos sim.”
“Querem vir com a gente?”
DESAPEGO
16h40.
A música é feita sob medida para colocar uma multidão dançando. O começo
da embriaguez a deixa alegre, solta, pronta para se esquecer da frustração da noite
anterior. Lilica aproveita o embalo e pula junto com a massa.
O vocalista branquelo aparece no telão. Parece estar queimando sob o sol.
Apesar disso, ele está animado e sorridente, tomado pela canção.
Quando Lilica acordou não estava muito disposta a ficar com o Magrão de
novo, mas agora já estão os dois juntos, do jeito que ele gosta. Ou seja, ela sempre
disponível.
Ela não sabe até quando vai sustentar aquilo. Decide esquecer o assunto.
Magrão a abraça por trás, ela gosta da sensação. Ao lado, Salvatore conversa
animado com a menina. É o que ela é, não passa de uma garotinha. Deve ser dez anos
mais nova.
Salvatore se aproxima deles e aponta para o palco. “Esses caras são
excelentes.”
“Te falei”, diz Lilica.
“Não conhecia muito bem.”
“Você tem que ir à Play com a gente”, diz Magrão.
“É verdade, Salva. Lá tá cheio de meninas de dezessete.”
Salvatore se defende. “Ela tem dezenove. E já está no segundo ano de
jornalismo.”
“Uma mulher madura.”
“Estou prospectando novos mercados.”
“Novíssimos”, fala Magrão, rindo.
Salvatore mostra a língua para Lilica e sai de perto. Vai fazer suas acrobacias
para a universitária deslumbrada.
Homens.
Lilica pensa se vai levar adiante aquela campanha entre Salvatore e Carol.
Valentina atualiza ininterruptamente o blog de Salvatore. Alguém encosta nela,
a interrompendo. “Ei, o que há neste telefone que é tão melhor que o show?”
Ela se afasta um pouco. Tato é grudento. “Nada, não.”
“Você está perdendo”, diz o rapaz, fazendo uma dancinha e apontando os dois
indicadores para o alto.
Valentina presta atenção no som ao redor. Realmente, as pessoas estão se
divertindo. É algo que ela deveria estar fazendo. Salvar o dia.
Então se força a curtir o momento e guarda o celular na bolsa, o que merece
uma nota por parte de Tato. “Agora sim. Vamos botar pra quebrar.”
Valentina dá o melhor sorriso que consegue e sai em busca de socorro. Procura
Sara. Está há poucos metros, com um grupo de amigas.
“Sara, de onde saiu esse cara?”
“Amigo das meninas.”
“Ele acabou de falar ‘vamos botar pra quebrar’.”
“Tá tentando te animar. Você fica com essa cara enterrada no telefone,
enquanto rola o maior showzão.”
Valentina suspira e limpa a testa suada. Sara está certa. O rapaz age de boa fé,
apesar de ser péssimo nisso.
A música é boa, as pessoas sorriem, o sol brilha lá em cima. Talvez, se Valentina
tivesse estudado um pouco mais do budismo, se livraria da angústia oriunda daquela
conversa via Internet.
Mas ela não é assim. Não há chance de se livrar das coisas tão rápido quanto
gostaria.
E se dá conta de que, no ímpeto de voltar àquela algazarra, acabou frustrando
os pais.
Então, após permanecer por dois minutos sem segurar o celular, não aguenta.
Tira da bolsa e atualiza, procurando a resposta de Salvatore. Não encontra nada.
COMBINADO
17h30.
Ainda permanece o último ruído da plateia após a saída da banda. É nítido o
som das vozes femininas, um coral só de mulheres, gritando pelo vocalista do Two
Door Cinema Club. Respondem freneticamente a um simples “Obrigado, São Paulo”,
dito em português pelo cantor.
Ao coro, se juntou sua companhia de flanela xadrez.
Boneca.
Cantou o show inteiro. Sabia todas as letras. Tiete indie. Ela pega em sua mão,
enquanto os dois se afastam da plateia. Até o momento, é o maior indício de que um
embate físico será travado num futuro breve. Magrão e Lilica, logo atrás.
Ela caminha mais à frente, puxando-o. Vira-se para um comentário. “Foi tão
legal, né?”
“Sensacional”, ele responde, tirando os olhos de sua bunda.
“Eles são fofos.”
“Visse, se são. Pra onde vamos?”
“Combinei de encontrar as meninas na tenda, com os pufes, sabe?”
“Visse, se sei.”
Uma perspectiva de beijos com gosto de cerveja ao som de Franz Ferdinand. A
imaginação solteira de Salvatore é otimista ao ponto de enxergar sexo selvagem no
hotel San Lucca, com gemidos pós-adolescentes. One night stand, na gíria solteira.
Tudo parece bem, até que o bolso de Salvatore treme. Ele lê a mensagem de
Valentina, então prevê alguma turbulência.
‘Oi, tô aqui te esperando já. Perto da lanchonete. Beijo.’
O que fazer? Cumprir o compromisso? Ou abandonar a ex ao sabor do vento e
agarrar aquele prenúncio de azaração?
Afinal, ele ainda não havia confirmado.
Os dois cruzam a parede invisível da tenda com pufes. A garota procura pelo
seu grupo e avista quatro garotas jogadas em um pufe, caindo pelas suas bordas
molengas. Sua garota de camisa xadrez faz uma saudação ao grupo. “Oi, gatas!”
“Oi, gata. Oi, príncipe”, responde uma delas.
“Oi, meninas”, fala Salvatore, admirando aquele amontoado de libidinagem. “O
Nariz não estava com vocês?”
“Disse que precisava pegar uma encomenda com alguém.”
“Sedex dez?”, pergunta Salvatore.
A garota larga de sua mão e se joga no pufe, esculhambando o frágil equilíbrio
feminino. Gritinhos se dispersam pela tenda e as garotas transbordam do pufe. A
menina de flanela se diverte. “Quer sentar também?”
“Acho que preciso ir ao banheiro”, Salvatore se recusa.
“Tá bem. Te espero aqui.”
“Combinado.”
Ela, sentada no tapume de borracha. De longe, é uma garota qualquer, parece
com todas as outras do festival.
A beleza dela ganha força dia após dia, sorriso após sorriso. Risada alta, rouca.
As bochechas sardentas deixam os olhos quase fechados, dois riscos.
Checa o celular a cada trinta segundos. Procura entediada entre os transeuntes,
pessoas comprando fichas, trocando-as por comida. Tentando aplacar o estômago.
E então volta para o celular.
Salvatore não sabe o que vai dizer, por mais que já tenha repassado a cena toda
vez que seu cérebro fica vazio. No trânsito, no banheiro, na cama. Normalmente,
quando acorda, o nome dela aparece em sua mente, um letreiro vermelho de motel.
Ou, então, pensa no script quando encosta a cabeça ébria no travesseiro, à
noite, o que aconteceu praticamente todas as noites até onde sua memória alcança.
Ensaia frases de impacto. Quanto mais dramática a cena, melhor. Quer provar a
ela o tamanho do estrago provocado pelo deslize.
Aliás, já não tem certeza se foi um mero deslize. Há a hipótese de vingança. E
há a parcela de culpa dele mesmo. Lembra-se de Nelson Rodrigues.
Perdoa-me por me traíres.
Em algum momento, simplesmente deixou o relacionamento no automático,
largou o barco à deriva. Parou de ligar pra ela. Saía com amigos todos os dias do final
de semana. Sem ela, obviamente. Passou a frequentar o Facebook de alguns flertes
antigos. Começou a planejar o carnaval em Diamantina.
Ela me controlava demais.
Roberto Salvatore repassa a última briga que tiveram. Exatamente por causa do
festival. Teria de avisar em algum momento, mas ela acabou descobrindo sem querer.
Num almoço na casa de Salvatore, antes do carnaval, a mãe dele ensaiou uma
conversa sobre feriados. “Queridos, o que acham de irmos a Inhotim no carnaval?”
“Nós reservamos Pirenópolis, dona Gisele”, respondeu Valentina.
“E na Páscoa?"
Salvatore parou de mastigar.
O resto foi uma tentativa trágica de explicar ao mesmo tempo à mãe e à
namorada de que ele iria viajar, mas Valentina não. E ela nem sabia disso até o
momento, mas veja bem, ele iria contar tudo justo naquele dia, o que não era bem
verdade, mas, “mãe, me passe a salada, por favor?”
Assim o almoço se arrastou, desaguando em uma briga homérica no
estacionamento de sua casa.
Ela falou em acabar tudo. Ele se desesperou, o caminho não era esse.
Em qualquer briga, Valentina falava em acabar tudo, então ele já não levava
aquilo tão a sério. Mas sempre ficava meio desesperado. Ela cancelou o carnaval deles
em Pirenópolis. Ele perguntou se ela estava louca. Ela chorou.
Salvatore quis voltar atrás. “Vali, desisto do festival. Ou melhor, você vai
comigo.”
“Por que você quer fazer coisas sem mim?”
“É só uma viagem de amigos. Desculpa, não vou mais marcar viagens sem
consultá-la.”
Valentina aceitou. Mas cancelou o carnaval mesmo assim. “E eu, faço o que?”,
perguntou Salvatore.
“Faz o que você quiser.”
E essa foi a última briga deles. Então eles pararam de brigar, porque, no final
das contas, pararam de se falar também. E assim, em silêncio, Salvatore acabou
aceitando o convite de passar o carnaval em Diamantina com o Magrão, um vespeiro
de universitárias com licença para imoralidade.
Salvatore continua parado, observando ela a distância, sem saber o que falar.
Dentro dele há mil Salvatores se debatendo, um santo, um idiota, um covarde, um
vigarista. Ele não sabe pra quem vai passar o bastão.
Ela bem que poderia vê-lo a distância, se aproximar, começar a conversa,
evitando a ele o desgaste deste início.
A ideia deste início traz consigo a essência de que não é um início de fato, e sim
um recomeço, o que arrastará junto consigo uma corrente de lembranças e
sentimentos. É uma corrente de oito anos, portanto, tem grilhões. A corrente é
pesada.
Em contraparte, a poucos metros dali, há uma janela com todo um novo
horizonte a ser percorrido. Na história do mundo dos casais uma janela sempre foi algo
melhor do que uma corrente.
De modo que Salvatore dá meia volta.
Valentina não entende porque Salvatore saiu apressado. Será que foi lá e não a
viu? Mas ela estava justo onde combinaram.
Barraca de hambúrguer, perto do palco vermelho.
Ela caminha apressada, tenta correr para alcançá-lo, mas é difícil, muita gente
por ali, a sua pequena bolsa bate na perna, o cabelo cai nos olhos.
E pensar que ela o esperou por meia hora.
Ele não deve ter ficado nem três minutos, do contrário ela teria percebido. É
isso mesmo, ele nem se esforçou para procurá-la. Devia estar ocupado bebendo com
os amigos como se o mundo fosse acabar em cerveja.
Ele entra em uma tenda, cheia de pufes. A luz esverdeada dá o tom nas pessoas
que repousam, recuperando a fadiga para continuar a bravata de ficar naquele local
sujo e barulhento.
Aliás, será muito bom sair de lá. É o que ela vai propor para Salvatore, jantar
num italiano bacana, ir para o hotel, tomar um banho. Algo minimamente à altura da
situação. Talvez ele e seu fanatismo não topem. Com certeza não vai topar.
Salvatore para junto a um grupo de garotas barulhentas. Uma delas lhe pega na
mão, sorri e lasca um beijo na bochecha.
Os dois conversam. A cena é tão parecida quanto a do dia anterior. Mas a
garota é diferente, parece mais nova. Usa flanela xadrez.
Magrão e Lilica estão perto, também de mãos dadas. Magrão, do alto de seus
1,90, poderia enxergar Valentina com tranquilidade se não estivesse com um copo
colado nos lábios.
Valentina deveria ir embora. A garota de flanela xadrez se afasta de Salvatore e
do grupo. Valentina deveria ir embora, e se poupar de mais sofrimento. Não é hora de
parar de correr atrás de algo perdido?
É isso. Salvatore é causa perdida, correndo atrás de meninas. Adolescentes
ainda por cima. Valentina sente raiva de suas adversárias. Ela é pior competidora?
Não, não é. Ela é melhor que todas as outras. Porque o que há entre eles tem
consistência. Pode estar adormecido, mas oito anos de história não serão jogados no
lixo por bobagens. E ninguém vai roubar de Valentina o que é dela.
A garota de flanela xadrez se embrenha no forte de plástico. O mais fácil seria
bancar o cão de guarda no pórtico do banheiro. Mas ficar ali é bandeira. Valentina
escolhe segui-la.
Já basta uma ação aberta.
Dessa vez, os bastidores. Valentina procura na primeira fileira. Diversas garotas,
nenhuma de flanela.
Caminha apressada para a próxima fileira. A mesma cena. Garotas, lama e
cubos de plástico. Uma nuvem química e nauseante. Uma porta está se fechando.
Valentinha chega a ver que é a flanelinha.
Pisa firme na lama encharcando a barra da calça, se planta em frente à porta
do banheiro. Indica ocupado, em vermelho.
Belo ataque. Uma garota indefesa, encurralada num lugar tenebroso.
Após instantes, ao primeiro vão que se abre, Valentina não dá chance à garota
desocupar o local, fala o que lhe pipoca na mente. “Oi.”
A garota se espanta. Ela é mais nova do que imaginara.
A que ponto chegamos, hein Salva?
A garota titubeia. “Oi.”
“Tudo bem?”
“Meio fedido aqui.”
“Queria te falar uma coisa.”
“Tá certo.”
“Você tá perto de cometer um engano.”
“Acho que você me confundiu.”
“Escuta, fica longe do meu namorado, tá entendendo?”
“Tá louca?”
“Vali?”, diz uma voz atrás de Valentina.
Lilica decide romper a inércia. O convite é interessante, ver Valentina
aprontando outro barraco. Mas Vali está nitidamente precisando de ajuda. “Vali?”
Valentina se vira, surpreendida. Demora algum tempo para reagir, enquanto
impede a flanelinha de sair da cabine. “Guenta aí, Lilica.”
Lilica vê que a prisioneira se esforça para tirar Valentina da frente, mas não
consegue. Valentina é uma mulher decidida. “Fica longe do meu homem.”
“Preciso ir embora, tchau.”
“Pô, Vali, o que tá acontecendo?”, intercede Lilica novamente.
A garota força a passagem e desta vez Valentina não a impede. Lilica percebe o
constrangimento da amiga. Mas, além disso, enxerga a raiva.
Ela pega em sua mão. “Vali, fala comigo. O que tá acontecendo?”
Valentina odeia mostrar-se insegura. Ali está ela, tendo que se explicar porque
está rastejando em uma pocilga para defender uma propriedade que não é mais sua.
Observa Lilica. Faz tempo que elas não se falam direito.
E vai continuar deste jeito.
“Nada não.”
Valentina se afasta, sem olhar pra trás.
Salvatore pensa que o sentimento de pré-pegação é, de fato, bastante
agradável. Algo que só se experimenta se você está genuinamente solteiro. O mesmo
ato, em face de uma traição, não dispara aquele otimismo ignorante.
Ele não conhece o gosto da boca dela, provavelmente é o mesmo da dele. Mas
será sempre uma novidade. Também não sabe em que momento exato conseguirá
beijá-la, se será ao som de algum rock pancada ou se sentados na lama. Sendo que na
primeira hipótese será fácil de desbravar o território onde costuma se achar um par de
seios. E os dela parecem já completamente desenvolvidos.
Salvatore não sabe de muitas coisas acerca do futuro. E pensar sobre o futuro
apenas aumenta o formigamento causado pelo tesão. Sua testosterona está pra lhe
rasgar as bolas.
Hora de lançar uma cartada. Queens of the Stone Age. A agitação e o empurraempurra, esfregadas garantidas.
Aproxima-se dela, ela o pega na mão. “Oi”, diz a garota de flanela.
“E agora?”, pergunta Salvatore.
Ela ri, doce. “Você não sabe o que aconteceu no banheiro.”
“Prefiro não saber. Vamos pro Queens of Stone Age? Sacudir os esqueletos”,
diz ele sacolejando o próprio corpo.
Ela ri de novo. Ela ri de tudo que ele faz. O caminho está aberto. Se antes era
uma fenda, uma picada na mata fechada, agora é o Eixo Monumental iluminado, seis
pistas de cada lado, verdadeiro veludo de petróleo.
“A gente pode dar uma sacolejada juntos”, ele a aperta contra si. Face contra
face. É possível sentir sua respiração morna.
Ela se afasta um pouco. “Pode ser. Mais tarde vamos pra casa de um amigo,
fazer um sarau. Vai ter violão e uns instrumentos. Você toca?”
“Um pouco de piano.”
“Ótimo. Você podia tocar pra gente.”
“Nem sob a mira de um pelotão.”
“Chato.”
“Essa é a pior invenção da classe média.”
“E o bonitão gosta de quê?”
“Do hedonismo insaciável. Quero mais prazer, e tem que ser pra agora.”
“Tipo festivais?”
“Na essência.”
“Então um sarau também é hedonista.”
“Negativo. O hedonismo é algo que lhe empurra em direção aos céus”,
Salvatore move os braços, eloquente. “Saraus e rodas de violão só existem pra deixar o
mundo mais triste.”
Salvatore mal dá conta do rojão que vem pela lateral. Um ser baixo, short jeans
e maquiagem carregada. O rojão lhe acerta e segura pelo braço. Ser alvo de torpedos
está virando parte de sua rotina. “Salva, preciso falar contigo.”
Salvatore se impacienta com Lilica. “Que foi, baixinha?”
“Você pode vir aqui um instante? É urgente.”
“Puerra Lilica, que zica.”
Lilica se descontrola. “Zica o caralho. Tu tá de putaria com a Valentina, é?”
“O nome dela é Valentina?”, pergunta a garota de flanela.
“Que história é essa”, diz Salvatore, se questionando como aquele nome
aterrissou por ali.
Lilica faz cara de defensora da moral e da ordem. Logo ela, que tem um
relacionamento manteigoso. O que, apesar de ser uma imposição silenciosa de
Magrão, tem a anuência da interessada, com todas as prerrogativas, por sinal.
Salvatore força o tédio em sua voz. “O que é que tem ela?”
“Como é que você tem coragem de fazer uma porra dessas?”
“A porra é da natureza.”
“Administração Salvatore, abrindo filiais por aí? Tão engraçado.”
O nome é bom, pensa ele. Lilica desvia o foco e se dirige à flanela. “Escuta
guria. Esse cara aí tem namorada.”
A garota de flanela xadrez larga de sua mão. O olha ressabiada, dá dois passos
para trás. “Namorada?”
“Você não sabe como a Vali se sente. Vocês têm que se acertar”, diz Lilica a
Salvatore.
“Não tenho nada com isso”, responde Salvatore.
A garota coloca as duas palmas para cima. “Bom, não quero saber de
encrenca”, e se afasta.
“Peraí”, tenta Salvatore.
Mas Lilica lhe segura no pulso. “Salva, é sério. Não seja esse perfeito idiota.
Você precisa falar com ela antes de sair por aí, atrás de adolescentes.”
Salvatore vê a garota se afastando. Ela se junta ao grupo, diz algo e as meninas
evaporam.
RODA PUNK
>> Cinema Mudo
Publicado: março 30, 2013 em Tirania da Contingência
Naquela altura, estamos tão perto do palco que o som
deixa de ser a harmonia entre os instrumentos. O ritmo não é
mais ritmo, a música não é música. O que nocauteia nossos
ouvidos é um tsunami sonoro, um campo de força.
O barulho é tanto que vira rugido, quase silêncio. Um
filme mudo. Não há espaço para delicadezas. Praticamente zero
mulheres.
Todos
pulam
ao
mesmo
tempo,
correm
em
círculo,
acotovelando quem estiver à volta.
Não acho que seja violência em si. Se você já esteve em
uma roda punk, sabe do que estou falando. Especialmente uma
roda transgressiva no show do Queens of the Stone Age.
É uma rendição dos instintos, um retorno à condição
tribal, em que somos mais animais do que humanos.
Celebrando a vida num ritmo frenético, entorpecidos pela
bebida e pelos tambores.
Somos a tribo ancestral, conectados com os deuses num
universo maluco, onde o estase é permanente.
::
Roberto Salvatore
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A roda punk levanta poeira, que cintila ao anoitecer. É possível senti-la
grudando na pele, criando uma pasta com o seu próprio suor.
Caso tivesse chovido, talvez o pó estivesse quieto na grama. Não é o caso. E,
dessa maneira, a furiosa roda punk funciona como um dínamo, turbinando a terra à
frente do palco.
A roda se forma de maneira espontânea, ao refrão da terceira música do
Queens of the Stone Age. Salvatore e Magrão estão à sua beira, se encorajando para
entrar no liquidificador humano.
Magrão tenta falar algo. Salvatore não entende, gesticula, perguntando ‘o quê’
com as mãos e com os ombros.
O amigo desiste da comunicação verbal e aponta com o beiço para frente.
Salvatore, então, tenta localizar o objeto identificado na roda punk. Salvatore vê o
alvo.
Filho da puta.
Aquela é a sua deixa. Ele entra na roda, se protegendo, e vai de encontro ao
furão de fila. O cara que não só furou a linha de entrada, mas também lhe intimidou.
Salvatore não sente os empurrões e ombradas que leva pelo caminho. Sua
mente trava no sujeito a três metros. E sem pensar muito, ao som de algum refrão
violento, Salvatore se joga contra o penetra da fila e o derruba.
O furão cai.
Tenta se levantar, mas tem dificuldade. Ele olha para cima e vê o rosto de seu
algoz. Salvatore encara o sujeito, rindo. E então desaparece por entre os animais ao
seu redor.
BUDA ESTÁ ACENANDO DO OUTRO LADO
21:30.
O vocalista encerra Little Black Submarines com uma frase de blues na guitarra.
Agarra o instrumento com força e o aponta para os céus. O baterista faz uma virada
furiosa, seca. Sua camisa de loja de departamento está empapada. Magrão grita,
saudando o rock potente do Black Keys.
Os holofotes do palco verde se acendem, iluminando milhares de pessoas. A luz
é forte. Magrão desvia o olhar pra cima, e enxerga o universo. Está opaco e sem
estrelas.
Salvatore aponta os dois dedos médios para o alto e grita para a dupla no palco.
“Vão se foder, caralho!”
Seu apelo se perde num turbilhão de gritos, palmas e assovios. A voz está
rouca, de tanto forçá-la. Nariz, vidrado, grita também. Desde que voltou de sua
incursão, ele está mais louco. Parece um bicho descontrolado, e encontra em Salvatore
seu espelho.
Nariz agarra Salvatore pela gola. “Salva, pelo amor de deus, de onde é que
esses caras saíram? É uma marretada na minha cabeça.”
“Você é o único idiota daqui até Plutão que não conhece Black Keys.”
Nariz segura seus próprios cabelos e grita. “Acho que vou fritar. Minha nossa.
Vou fritar aqui mesmo.”
Enfia as mãos no bolso, pega o seu saco plástico a vácuo. Não há sombra dos
cristais. Ele esfrega o dedo lá dentro e o lambe. Magrão ri. “Acabou o mé, Nariga?”
“Cara, o que é que vou fazer agora, com esses caras espancando tudo no palco,
e eu aqui, ficando sóbrio?”
“Eu tenho chope”, Salvatore oferece o copo de chope ao Nariz.
“Prefiro algo ilícito”, responde o amigo narigudo. Mesmo assim, pega o copo e
acaba em um gole só. Aponta o palco, cuspindo líquido. “Aposto que o desgraçado tá
com o rabo cheio de pó.”
“Por quê?”
“O olhar dele, cara. Ele tá vendo o Nirvana, agora. Buda está acenando do outro
lado.”
O guitarrista inicia uma nova música. Seu rosto aparece no telão, virado pra
cima, em êxtase.
“Ei, Magrão, você tem algum daquele bagulhete aí, meu?”, inquere Nariz.
“Você fumou tudo, ontem, junto com o Bala doze.”
“É, eu precisava dormir.”
“Você usa isso todo dia pra dormir?”, pergunta Magrão.
“Meu maracujá. Vai dizer que você é um santo do caralho?”
Salvatore se intromete. “Cara, não dá pra beber e fumar todo dia, Nariga. Tá
louco. E o teu trampo?”
“Salva”, Nariz segura no ombro dele. “Tá vendo aquele cantor barbudo?”
“Que tem?”
“Ele entendeu a vida. Você acha que ele alguma vez já teve que ir a alguma
reunião?”
“Se teve, ele não foi, com certeza.”
“É disso que eu tô falando, porra. A vida pode ser boa.”
Nariz solta do ombro de Salvatore e fica parado, olhando para o vazio da plateia
lotada. Ele se vira para os dois. “É por isso que eu sou DJ.”
Magrão o provoca. “Como vai a sua vida de fama, drogas e sexo sem
compromisso?”
Nariz solta mais um grito. “Estão faltando mulheres. Preciso de alguma, agora
mesmo. Preciso de drogas e mulheres.”
Lilica quer pedir desculpas para Salvatore, mas está sem jeito. Depois da cena
com a garota de flanela xadrez, ele cortou o papo.
Às vezes ela não sabe medir a mão. Intromete-se em assuntos. Agiu num
impulso, tudo bem, mas a intenção era boa. Nunca viu Valentina fazendo barraco,
ainda mais dois dias consecutivos. Foi necessária a intervenção.
Aconteceu que Salvatore apenas deu o fora, e Magrão preferiu segui-lo.
“Depois te encontro”, falou Magrão à Lilica. “Vou segurar a onda dele, senão vai bater
ponto no posto médico.”
Não é tão legal ficar no festival a sós. Mas, com o desaparecimento dos dois,
teve chance de comer, descansar, ver shows de desconhecidos e falar com a Carol. Por
fim encontrou Magrão e Salvatore para o show do Black Keys, junto com o Nariz,
alucinado.
Os meninos estão se divertindo. Salvatore simplesmente a ignora.
Ela precisa criar coragem. Vai ser melhor para todos. Dessa vez é verdade. Algo
que eles não estavam esperando, e provavelmente nunca viveram. Mas eles terão que
abrir mão do festival.
CAMAROTE
22:00.
“Não vai dar.”
“Frescura, Salva”, responde Magrão. Faz o possível para acalmar o ânimo de
Salvatore. Ele mesmo não tem certeza sobre a proposta da Lilica, mas levou fé na
intenção. Sabia que ela queria melhorar as coisas. Certo arrependimento chega junto
com o som distante do Black Keys. A banda está longe, do outro lado do muro do
Jockey Club.
“Cara, nós somos quatro pessoas, só no banco de trás. Cabem duas aí”, diz
Salvatore.
“Três. Foda-se! Tá esperando o quê cara? Já andou num carro desses?”
“Não. Por isso mesmo, gostaria de conforto o suficiente pra aproveitar a
viagem.”
“Nariz, serve leite morno pra esse filho de vó”, grita o Magrão, chacoalhando o
amigo. Nariz acorda. “Partiu?”
Rola no capô do carro, e volta a dormir.
Salvatore não desiste de expressar sua indignação. “E cadê esse DJ do caralho?
Cadê a sua amiga, Lilica? Por que a gente tá aqui, perdendo o melhor show de hoje?”
Magrão concorda, em silêncio, com Salvatore. Reclamar é a melhor maneira de
revidar àquela merda a que havia sido submetido.
“Aí, Salva, agora não reclama. Foi consenso”, fala Lilica.
“Um consenso de bêbados”, revida.
“Você também está bêbado.”
“Fui contra. E já tô ficando sóbrio.”
“Seu cabeçudo, pensa um pouco, por dois segundos”, se intromete Magrão.
“Vamos pra um camarote Vip. Modelos, drogas e espumante. Nunca mais você terá
isso na sua vida pobre.”
Lilica emenda.“A Carol insistiu pra gente ir com eles. Já tão chegando. Ela me
falou que o Dave só ia dar um alô no camarim duns amigos.”
Salvatore chuta uma pedra. Sai pisando firme do estacionamento pago. Chão
de brita, portão enferrujado. Há uma placa na porta, a tinta derretida adverte o valor.
‘Diária: R$150,00’
Na rua, pouco trânsito. Uma ambulância estacionada perto da saída do festival,
a sirene vermelha gira em silêncio. Três policiais conversam, soturnamente.
Do estacionamento onde estão, é possível contar o número de pessoas que
saem pelas catracas. Poucas. Provavelmente, apenas quem está com os bagos pra fora.
Ou quem não tem bom gosto, obviamente.
Ou pra quem vai pra porra de uma boate bem na hora que o Black Keys está
tocando.
Uma canção disforme voa pela rua. Talvez seja Lonely Boy, não dá pra distinguir
àquela distância. Salvatore sai em direção ao primeiro sujeito acoplado a um isopor.
Magrão o segue.
“Uma gelada,” diz Salvatore ao vendedor. Magrão pede outra. “Duas, por favor.
Tá puto, né Salva?”
“Cara, essa foi a pior ideia que a gente teve. Eu vim pro festival pra ver esse
show.”
“Você podia ter ficado.”
“Ficar sozinho é mal.”
“Vai ser bom.”
“Como é que tu sabe?”
O homem do isopor entrega as cervejas aos dois, em troca de uma nota de dez.
Salvatore diz, indignado. “E cadê esse povo?”
“Espera um pouco.”
“Quem vai à boate, hoje em dia?”
“Bora curtir esse camarote. Prevejo mulherada.”
“E você pendurado na Lilica.”
“Não arrancaram meus olhos, muito menos meu pau.”
Lilica aparece no portão do estacionamento e os chama. “Vambora.”
Os dois andam com pressa.
O DJ famoso está pendurado com uma garota de cada lado. Usa uma camisa de
lantejoulas. Do lado esquerdo, Carol, mais bela do que na noite do pub. E do lado
direito, de braços dados com Dave, uma garota capa de Playboy da Noruega.
“Hey guys, are you coming?”, pergunta o DJ, animado.
As garotas sorriem. Dave, o DJ, entra no banco do motorista. Está eufórico. “Let
me check this monster.”
Então o motor ronca, Dave acelera profundamente. Nariz dá um pulo do capô,
Dave solta uma gargalhada. “Come on man, what’a fuck are you waiting for?”
Lilica, Carol, a capa de revista e Nariz vão ocupando os lugares do carro. Dave
liga o som nas alturas. Gringo louco no volante, um Camaro vazando de gente, receita
para a tragédia.
Magrão segura o braço de Salvatore. “E aí, boludo. Quer ficar no show?”
Salvatore se incomoda com a buzina do carro atrás. O barulho invade o interior
do Camaro, parado em frente a uma boate. Dave, o DJ, conversa com um sujeito
vestido de terno e gravata, lá fora.
“Você tomou alguma vez?”, Carol ri. Ela está quase em seu colo, uma perna
sobre a dele. Salvatore se esforça para esconder a ereção.
Ele balança a cabeça. Nunca tomou e também não andou num carro daqueles.
À frente do veículo há um semáforo. Salvatore enxerga dois pontos luminosos,
distorcidos, onde deveria haver um só. Então fecha um dos olhos para sua visão se
normalizar, descobre que a luz do semáforo está verde.
O motorista atrás deles buzina novamente, dessa vez mais forte. Aquilo,
aparentemente, não afeta Dave. Ele conversa sem pressa com o promoter do
estabelecimento.
Dave se senta no banco do motorista do Camaro. Está excitado. “It’s done. The
place is ours”. As pessoas dentro do carro comemoram, agitadas. Ele pega uma caixa
azul no porta-luvas e distribuí pílulas a todos. Em seguida, pega mais um punhado de
pílulas, mete no bolso, e devolve a caixa azul ao porta-luvas.
Salvatore segura o comprimido e observa cada um ingerindo sua quota. Uma
garrafa de vodca circula. Ele desvia o olhar para a rua. O sinal está vermelho.
Ao lado do carro há uma fila de pessoas esperando para entrar em uma porta.
As pessoas estão elegantes. Acima da porta onde as pessoas querem entrar há um
letreiro.
‘Hyper’
Dave solta um português carregado de sotaque. “Vamos nessa.”
Nariz urra, as meninas fazem festa. Magrão gargalha. O DJ tira a chave da
ignição e sai do carro. Os passageiros saltam do carro, restam apenas Carol e Salvatore.
Ela lhe toca no braço. “Vai, Salva. É agora ou nunca.”
“Será?”
“Você vai gostar. Eu prometo.”
O sinal está verde. O Camaro continua no meio da rua, impedindo o tráfego.
Ele joga a pílula em sua boca e toma um gole de vodca. Todos os carros
buzinam. O som desconjuntado se espalha e enche o frio da rua.
Aquela é a primeira vez que Roberto Salvatore ingere um entorpecente ilegal. E
não tem a menor ideia do que vai sentir.
Carol o puxa pela mão, saem do carro. Salvatore sente o frio da noite.
O promoter pega as chaves com Dave e faz com que a população do Camaro
passe à frente da fila. Em seguida, se senta no volante. O carro desaparece na esquina
da Rua Augusta.
“Uma cuba, por favor”, diz Salvatore ao bartender.
“Hein?”
“Cuba libre.”
“Algo mais?”
“Com Havana?”
“O quê?”
“Havana. Eu quero um rum bom. Qualquer coisa que não seja Montilla.”
“Desculpa. Tá difícil de ouvir.”
“Esquece. Vê uma cuba aí.”
Uma multidão empurra Roberto Salvatore contra o balcão. Ele não enxerga
Carol. O lugar é escuro. O ar é abafado. E a música é alta. No pequeno palco montado
na boate há um sujeito solitário, duas pickups. Um fone de meia orelha pendurado na
cabeça do cara. O som é agressivo.
Apesar de Salvatore odiar boates, está se divertindo. Normalmente, ele se
recusaria a participar de uma situação dessas.
A Carol é uma gata. E o DJ, além de ser um cara agradável, pode ser
importante.
O bartender lhe estende o drinque. “Obrigado.”
Ele dá um bom gole no copo, o gosto pronunciado de Montilla com Coca-cola. A
cuba acentua o torpor da substância indômita em seu cérebro. Garotas lindas
circulam. Euforia, vontade de se jogar na pista com os braços abertos.
Carol lhe toca no ombro. Sorri, fala algo em seu ouvido. “Bateu?”
O frescor do seu hálito. Sua voz doce e seus olhos radiantes.
Tesão.
“Acho que já”, diz Salvatore.
“Vamos andando. Preciso entregar isso ao Dave”, mostra uma garrafa de
espumante. Há um pavio amarrado na botelha. Ela pega em sua mão. Os dois fazem o
que podem para sair do aglomerado de pessoas perto do bar.
Enquanto caminha em direção ao camarote da boate, Salvatore sente vontade
de puxar Carol pela mão. Nunca, em sua vida, sentiu confiança para fazer isso com
uma desconhecida. Sua autoestima lhe impedia de arriscar. O medo de levar um não
era um de seus maiores pesadelos.
E, sob efeito da droga, entende que essa confiança é artificial. Então, sua mente
começa a lhe pregar a velha peça da autoestima. O final é previsível, ele acabará a
noite sozinho.
Que se foda minha autoestima.
Num puxão, ela se vira, seu corpo se cola nele. Salvatore a envolve com os
braços e lhe dá um beijo. Ao contrário da expectativa dele, ela não se entrega
completamente, e vira um pouco o rosto, fazendo com que ele beije o canto de sua
boca. Ela afasta a cabeça.
Aquilo é um terremoto na convicção de Salvatore. Carol está com os olhos
fechados. Então coloca as duas mãos no peito dele. Aproxima seus lábios e lhe dá um
beijo suave. Sem língua, sem selvageria.
“Salva...”
“O que foi?”
“Vamos indo. Tenho que trabalhar.”
Carol gosta de seu trabalho. Mas às vezes era obrigada a fazer coisas
deprimentes. Por exemplo, arrumar um espumante com fogo de artifício. Na mesa,
latas de energético, vodca, gelo e um espumante. Há pouco, o espumante queimara o
pavio, soltando estrelas artificiais no camarote.
A balada é artificial. A aparente selvageria é plástica. As pessoas se esforçam
para se comunicar. Nariz tenta chamar atenção da modelo contratada por sua
produtora. Mas ela não vai lhe dar bola. Ele é meio gordo e atabalhoado, falando de
um jeito que acabará cuspindo na modelo.
Como Carol, a modelo também está a trabalho. Só que, neste momento, não
está divertindo seu cliente. Não é culpa dela que a vontade de Dave seja apenas
circular com mulheres bonitas, não conversar com elas. Neste instante, ele está mais
preocupado em fazer uma carreira branca em cima da mesa, com um cartão de
crédito.
O amigo de Carol está lá também. Fez sua parte e conseguiu chamar atenção de
Dave, que lhe convidou para a noitada.
Salvatore, ao lado, está cabisbaixo, olhando para o vazio. Carol não vê Lilica,
nem o namoradinho dela. “Salva, sabe da Lilica?”
Salvatore sai de seu torpor. “Não.”
“Eles te falaram algo?”
“Vi eles se beijando loucamente. Devem ter ido pro hotel.”
Salvatore fala aquilo e se fecha novamente, introspectivo. Talvez seja o efeito
da droga. Carol sente o prazer em suas têmporas, mas aquela não é a sua melhor
experiência. Ver Salvatore daquela maneira, logo depois de tentar beijá-la, a deixa
empática. Carol chega perto dele. “Me conta mais sobre o seu blog.”
“O que você quer saber?”
“Qual o nome mesmo?”
“Tiraniadacontingencia.com.”
Carol vê o celular gigante de Dave em cima da mesa. “Hey Dave, can I use your
mobile?”
“Sure, sweet”, diz ele, seus dentes brilham no escuro.
Carol digita o endereço, demora a carregar. Salvatore, aparentemente, não dá a
menor bola. Ela lê o último post, “Longa Viagem Noite Adentro”, acha engraçado.
Procura o botão de translate do blog, clica ‘English’. Depois fala alto para Dave.
“Dave, you must read this!”
Salvatore se remexe, sem graça. O DJ fala alto e lhe abraça. “Thanks a lot, man.
I loved it.”
“Thank you.”
Nariz fala, do outro lado da mesa. “Hey, Daveman. What do you think about my
friend’s skill?”
“He is good. So, you don’t like rap, Salva?”, diz Dave, embolando a língua para
falar ‘Salva’.
“Actually, I don’t. But you fucked it all.”
Dave ri alto. “It’s such a compliment. I’ll share in my Twitter.”
O DJ digita algo no celular. Salvatore precisa seguir Dave no Twitter. Precisa
retwittar aquilo na sua conta. Quem diria. Dave estende um copo ao céu. “We must
cheers to that”, e coloca três outras carreiras na mesa.
Salvatore admira aquela despreocupação. Dave funga a primeira com uma nota
de cem dólares e oferece para Salvatore, que recusa. Em seguida, oferece a Nariz. Ele
olha a carreira hipnotizado.
“Better don’t”, responde Nariz.
“Come on guys”, Dave segura em Salvatore. “You need to have fun.”
Dave funga as outras duas carreiras. “So, let’s try another stuff”, grita.
O amigo de Carol abre bem os olhos e se aproxima de Dave.
“What do you have there?”
“It’s magic, boy. My magic.”
Dave tira um punhado de pílulas do bolso e joga em cima da mesa. A modelo
recusa. Carol também. Em seu rosto, um misto de diversão e espanto, sem nunca
deixar de ser profissional. Nariz e Salvatore aceitam.
Nariz fala algo na orelha de Dave, que ri alto, novamente. “You can go man.”
“But what about you?”
Dave olha para o amigo de Carol, o rapaz sorri o tempo todo pra ele. “I have
business to solve here. But you know what, take the machine.”
“Sure?”, pergunta Nariz.
“Of course, bro”, afirma Dave, convicto. “Go hunt someone tonight.”
Nariz olha pra Salvatore. “Simbora Salva. Vida loca, mano.”
“Simbora pra onde?”, pergunta Salvatore.
“O Dave liberou o carrão dele cara”, diz Nariz, ingerindo sua pílula com uma
talagada de vodca. “Vamos voar por aí.”
“Nariz, vai sair dirigindo bêbado e drogado?”, pergunta Carol.
Salvatore olha para Carol. Ela já deixou claro. Seu jogo, naquela noite, é
profissional. Tudo bem tomar uma dose, mas nada de se acabar.
Por um lado, ela tem razão. Tomar duas doses, na mesma noite?
A primeira lhe deixou imerso em confusão, a música caleidoscópica, a
autoestima abalada, como se alguém lhe tirasse a energia pelos bagos.
Nariz lhe grita no ouvido. “Tá esperando o que? Vamo ficar loco, mano. Sair
pelas ruas de caranga bala. Prometo que arrumo umas mina.”
Salvatore conclui que não há nada esperando por ele. Ante a colisão, resta
exceder os sentidos. Engole a pílula.
“Já pegou a chave?”, pergunta Salvatore.
ESCURO
01H00.
A padaria é enorme. E está lotada.
“Qual é o seu nome mesmo?”, fala Tato. É a segunda vez no dia que ele
pergunta isso.
“Valentina.”
“Bonito. Parece nome de modelo.”
Puta chatice.
“Obrigada.”
“Quer pizza?”
Valentina balança a cabeça.
“Um hamburgão?”
Valentina pega o cardápio. A lista é imensa. “É tanta coisa. Demais pra essa
hora.”
“E você come o que depois da balada?”
“De preferência um salsichão com dois ovos.”
“Tá louco, meu”, Tato se remexe na cadeira com a resposta. “E eu pensando
que tu era vegetariana.”
Valentina ri da reação dele.
Até que tem potencial.
Apesar do padrão. Nessa idade, todos os garotos parecem iguais. Mesma
roupa, penteado e tatuagem.
“E essa tatuagem?”, Valentina aponta para o ideograma no antebraço do rapaz.
“Japonês?”
“Tailandês.”
“E o que significa?”
“É uma receita. Miojo de galinha caipira.”
Valentina ri novamente. Ela está mais solta. Em vez de fugir, resolveu ficar até o
fim. Espairecer, entupir os ouvidos de barulho e esquecer um pouco das coisas.
Impressionante como Salvatore, apesar de ser mais velho do que aquele guri,
consegue ser mais infantil.
Sara aparece e se se senta à mesa. “Vali, essa padoca é boa né?”
“Sempre assim?”
Valentina olha ao redor, o lugar está abarrotado. Boa parte com pessoas
oriundas do festival. “Todo dia. A gente vem aqui depois da balada”, responde Sara.
“Já ofereci pizza para sua irmã, mas ela quer omelete.”
Valentina se vira para o rapaz e faz uma cara de indignação. “Ainda não decidi”,
diz ela, divertida.
“A Vali é enjoada”, fala Sara, fazendo careta.
“Então tá. Quero um croissant de frango.”
“Meio conservador, mas tá valendo. Vou pedir”, Tato se levanta e vai até o
balcão.
Sara tira o chiclete da boca e amassa num guardanapo. “E aí, Vali. Gostou
dele?”
“Ele é engraçado. Mas meio bobo.”
“Vocês combinam. Ele gosta de estudar, é bacana. Te falei que ele surfa?”
Valentina olha o rapaz se esgueirando no balcão. Chama atenção da atendente.
Ali, naquela padaria, ela está longe do que imaginara no começo do dia. Talvez estaria
melhor, caso não tivesse mudado o plano original. Ficar com os pais, almoço tranquilo,
ler um livro.
Ela pagou caro por sua teimosia. Querer salvar algo perdido. Curiosamente, não
sente mais raiva. Sente que é hora de virar a página.
“Ele surfa?”
Salvatore desperta de seu escuro. Um paredão de água o arrancou de lá, para
sempre. Seu coração está disparado. Tenta olhar ao redor, mas a água escorre pelos
olhos. Só então que ele puxa ar, e passa a mão pelo rosto encharcado.
A luz amarela é suficiente para arder suas pupilas. Consegue distinguir a
imagem de uma garota nua à sua frente. “Agora acordou, né bonitão?”, diz ela.
Ele não entende.
“Vamos, levanta daí. A hora acabou.”
Tenta, mas não consegue sair da cama. Suas calças estão no joelho. Afunda a
cabeça nas mãos. A garota insiste. “Olha, cara. Acabou a festa. Me paga e vai pra casa.
Sua mãezinha vai cuidar de você.”
“Pagar?”
“Quatrocentos.”
“Eu nunca paguei por sexo.”
“Não te preocupa, que não foi dessa vez.”
“Como assim?”
A garota veste a calcinha. Silicone, piercing no umbigo, rabão, pacote completo.
A calcinha mínima, semi transparente, deixa antever o estilo da depilação.
Salvatore, do centro do caos, tenta um espasmo de racionalismo. “Se a gente
não transou e vou ter que pagar, será que não rola de tirar o atraso?”
“O que rola é que tua hora acabou.”
Salvatore procura a carteira na cabeceira. Nada. Tenta se lembrar da carteira,
percebe que não tem memória alguma. A garota pega o vestido e entra no banheiro.
Com dificuldade, ele se levanta, puxando as calças.
Porra, a carteira tá aqui.
Ele pega uma garrafa de água e bebe de uma vez só. Sente a sede aplacar,
apesar da ressaca. Acima do frigobar, há uma garrafa de espumante aberta, pela
metade.
Que desperdício.
A garota sai do banheiro. “Todo jeito, você pode voltar aqui.”
Puta desperdício.
“Tá melhor?”, pergunta ela, simpática.
“Acho que sim.”
“Que bom, preciso ir andando.”
Salvatore pega a carteira no jeans. “Olha, não tenho quatrocentos pila aqui.”
“Pode pagar lá embaixo, no cartão.”
Os dois descem uma escada e atravessam um corredor, protegido por um
homem gordo. Ele veste um terno vagabundo. Um único botão do paletó faz um
esforço heroico para segurar sua banha, que vaza por baixo e por cima.
Por algum motivo, o gordo sorri quando ele passa. “Noitada, hein chefe?”
Eles entram em um salão azulado, luz fria. Mesas minúsculas dispostas ao redor
de um palco. Lá em cima, o pole dance segura o teto. Uma passarela se abre para a
plateia. Alguns poucos homens estão por ali, à espera do próximo show. Salvatore é
reconhecido por um deles. “Ei, parceiro.”
O homem está visivelmente bêbado. Salvatore não o conhece.
“Arrebentou lá?”, diz o homem.
“Na verdade, não”, responde Salvatore.
“Grande performance.”
Que merda é essa?
Ele prefere não continuar o diálogo e segue em frente, até encontrar a garota.
Ela se dirige a um homem que está atrás do balcão. O homem também usa um terno
apertado e vagabundo. “Gerson, ele quer pagar no cartão”, fala ela ao caixa. “Quando
quiser, me procura”, diz a garota de Salvatore, indo embora. Ele observa o seu rebolar,
com uma ponta de frustração.
“Foram dois programas, um Black Label, um espumante e dez energéticos e
uma água”, fala o caixa. Salvatore se volta ao homem no balcão. Acima, um pequeno
letreiro, com o nome do local.
‘Paradise’
O caixa imprime uma conta e entrega a Salvatore. “Deu mil seiscentos e oitenta
e cinco.”
Salvatore fica sem fôlego. “Dois programas?”
“Teve o do seu amigo também. Débito ou crédito?”
“Bom, ele paga o dele. Aliás, nós vamos dividir a conta.”
“Não, senhor, o cara tá no pronto-socorro.”
“Cumé?”
“Saiu daqui em coma alcoólico.”
“Porra, ele tá onde? Em que hospital?”
“Não sei.”
“Só um instante, vou ligar pra ele.”
Salvatore pega seu telefone no bolso. Ao tentar ligar para Nariz, descobre que o
seu aparelho está sem bateria. Não sabe qual das duas notícias lhe preocupa mais.
“Preciso ir vê-lo. Preciso saber se ele tá bem.”
“Sai daqui quando pagar a conta”, diz Gerson, firme. Salvatore olha pra porta.
Dois seguranças.
Todo mundo aqui usa o mesmo terno.
“Tira no crédito.”
O caixa olha pra ele. “Crédito não autorizado”.
Salvatore fica inquieto. Sua um pouco. Passa a mão no rosto. “Débito, então.”
O caixa faz uma nova operação na máquina. “Débito não autorizado.”
“Então como é que vou pagar?”
O homem atrás do balcão lhe observa, em silêncio. “Quer dizer, não consigo lhe
pagar agora. Mas amanhã posso”, insiste Salvatore. Gerson continua quieto. Não há
qualquer expressão em seu rosto, além da barba desenhada. “Vamos combinar desse
jeito. Posso deixar a carteira de motorista. Então, amanhã, eu trago o dinheiro e pego
a minha licença contigo.”
O caixa dá um assovio, que cruza o espaço sombrio do puteiro e encontra seu
destino nos ouvidos do segurança gordo. “Frota, chama o seu Carlão”, diz o caixa, e se
volta para Salvatore. “Tu sabe o que acontece com malandro aqui?”
“O seu Carlão não veio. Mas o filho dele chegou agora pouco”, responde Frota,
dos fundos.
Gerson coça a barba. “Então chama o Júnior aqui”, diz ele, após hesitar.
“Calma, cara. Eu não sou caloteiro”, tenta Salvatore.
“Malandro aqui é bandido.”
Salvatore entra em pânico. “Peraí, parceiro.”
“Não sou teu parceiro.”
Tô fodido.
“Quando a gente pega um bandido, a gente chama a polícia”, completa Gerson.
Polícia. Boa ideia.
“Isso. Chama a polícia.”
Um homem vem lá dos fundos, junto com o Frota. Jovem, camisa de botão
apertada, cabelo espetado pra cima. Um fantasma gela a espinha de Salvatore.
“Fala, Gerson”, diz Júnior, voz ébria. “Logo agora que eu ia ver o show da
caloura. Barriguinha delícia”, ele movimenta o próprio saco. “Qual é o pó aqui?”
“O cara tá quebrado”, diz o caixa.
“Podemos resolver amigavelmente”, se prontifica Salvatore. O jovem olha pra
ele com uma pitada de desconfiança. “Eu te conheço.”
Salvatore acha que sim. “Creio que não”, diz ele, de toda forma. Mas não há
como fingir que aquele não é o furão de fila do festival.
“Ô, Gerson, vamos ligar pro tio Matias”, diz o furão, para o segurança
gorducho. “Tio Matias? Quem é esse?”, pergunta Salvatore. Engole seco.
Tô mais fodido.
O segurança entrega o telefone sem fio para Júnior. “Tá chamando.”
Salvatore, em pânico, avança sobre o balcão. Tenta pegar o telefone. O furão se
esquiva. “Alô, tio?”
Com um resto de suspiro, Salvatore suplica. “Não. Não faz isso, por
misericórdia.”
O furão olha pra ele, perplexo. “Pelo amor de Deus, desliga esse telefone”, diz
Salvatore.
“Então, como é que vai ser?”, pergunta Júnior.
“Me empresta o teu telefone”, Salvatore pede ao furão.
Valentina sente a bolsa vibrar. “Vali?”, diz a voz do outro lado. É familiar. Mas
não é possível. “Valentina, alô?”, diz a pessoa.
“Salvatore?”
“Tudo bem?”
Ela se levanta, deixando Tato e Sara na mesa. “Desculpa por ligar essa hora”, a
voz de Salvatore está trêmula.
“Diga.”
“É que não tinha mais ninguém pra pedir ajuda.”
“O que aconteceu?”
“Caso de vida ou morte.”
“Sei.”
“É que é meio complicado.”
“Se você não fala, não posso ajudar.”
“Eu tava com o Magrão e com o Nariz, lá no festival.”
“Você esqueceu de uma pirralha de flanela xadrez. E eu também tava lá. Te
esperando.”
“Bem, foi uma confusão danada”, suspira, pega fôlego. “Daí a gente foi pra
boate, todo mundo, com um DJ. A pirralha não foi.”
“Curtindo bastante, né?”
“E esse DJ tinha um camarote.”
Valentina olha para a mesa. Tato abana a mão. “E daí Salva? Desenrola.”
“Então esse DJ me deu um comprimido. E lascou tudo.”
“Lascou o que?”
“Esse é o problema. Não sei.”
“Você não lembra do que aconteceu? Esse é o problema?”
“Bem, é uma parte.”
“E qual é a outra?”
Ela ouve um som estranho. Salvatore parece gargarejar. “É que eu vim parar
num lugar, mas não sei como.”
“Que lugar?”
“Aqui na rua Augusta. Chama Paradise.”
“Na boate com o DJ?”
“Não é a mesma boate.”
“Como assim?”
“Mais ou menos.”
“Que papo doido, Salva.”
“Eu tava numa boate, mas agora tô noutra.”
“Não tô entendendo nada.”
“Eu tô numa casa de tolerância, como diziam antigamente.”
Valentina sente ciúme, mas de alguma maneira, também acha graça. “Tu tá
num puteiro?”
“Não é engraçado.”
“E qual é o problema? Ressaca moral?”
Valentina ouve outro ruído estranho.
“O problema é que tô sem grana. Provavelmente vão me matar.”
Valentina ri. “Salva, que merda. Como você se mete nessas coisas?”
“Já te falei. Não me lembro.”
“E o Nariz?”
“Tá no hospital.”
“A coisa é séria?”
“Não sei.”
Valentina sente que caiu numa armadilha. A última que gostaria de cair.
“Bem, isso é outro problema. Resolvo quando sair daqui”, diz Salvatore. “Você
podia passar aqui e pagar a conta?”
“Sabe, acho que não posso te ajudar.”
“Eles vão me matar, Vali.”
“Resolva seus problemas sozinho. Ou peça a outra pessoa. Quem sabe suas
putas não te ajudam? Você está num puteiro, mesmo. Por que você já deixou bem
claro que eu não faço mais parte de sua vida.”
“Não é hora pra discutir relação.”
“Concordo. Se você não quis discutir antes, não vai ser agora. E nem nunca
mais.”
“Prometo que a gente conversa com calma. Amanhã, pode ser?”
“Salva, você teve a covardia de me dar um bolo, enterrando todas as
expectativas que eu tinha”, Valentina percebe que está gritando ao telefone. Algumas
pessoas a observam. Ela quer mandar Salvatore às favas.
“Desculpa, desculpa. Você não tá entendendo, a gente conversa, coloca os
pingos nos is. Só preciso sair daqui com vida.”
“Esquece. Não preciso de conversa nenhuma. Te vira”, Valentina desliga o
telefone.
Salvatore devolve o telefone ao furão, que o observa com atenção. “Você é o
desgraçado lá da fila do show”, seu rosto toma feições de ódio.
“Calma cara, acho que não.”
“Tu me derruba na porra do show, quer dar calote na minha boate e acha que
vai sair barato?”
Salvatore examina sua volta. O local parece uma despensa, uma única lâmpada
no teto. “Esvazia o bolso dele”, diz o furão. Roberto Salvatore resiste o máximo que
pode, o que nada significa para o segurança que lhe segura. “Caralho, Frota. Me larga,
cara.”
“Qual é, malandro? Tá com medo agora?”, diz Frota. Sua banha está maior do
que nunca. “Tu vai aprender a ser honesto, rapá. Vou te dar uma aula, fela da puta.”
O caixa da boate, Gerson, tateia os bolsos de Salvatore. Retira a sua carteira,
seu celular e a chave de um carro.
Mais essa, agora?
Salvatore não lembra daquele volume na calça. O caixa ergue o objeto sob a
lâmpada. É um modelo canivete. “Quer dizer que o playboy tem um carro bacana? O
papai que te deu?”, zomba Gerson.
O furão pega o chaveiro. “É algum modelo top”, aperta o botão que empina a
chave. A luz fraca da despensa brilha no metal. “Não sei porra nenhuma dessa chave”,
se defende Salvatore.
“Responde direito, moleque. Se não a chapa vai esquentar pro teu lado”, fala
Frota, apertando mais os braços. “Eu não sei que chave é essa. Nem sabia que tava no
meu bolso.”
“Você acha que eu tirei ela da onde? Foi do meu bolso? Foi do bolso do Frota?
Ou foi do seu cu?”, diz o caixa.
Roberto Salvatore se preocupa com seu ânus. Precisa usar a inteligência. “Cara,
se tenho carro, então vamos lá fora.”
O furão o observa com os olhos cerrados. “Quero ver essa caranga.”
Agora é sair daqui e gritar por socorro.
“Você vai acreditar nesse cabrito? Acha mesmo que ele não sabe do próprio
carro?”, diz Frota. Mesmo de costas, Salvatore sente seu hálito. É um esgoto. O furão
parece despertar de seu estado de dúvida. “Chega de conversa mole”, abre a porta.
“Na cara não”, diz ele, antes de sair.
Salvatore sente Frota pressionando seus braços. Tenta uma última ideia. “Cara,
pensa bem no que você vai fazer. Meu tio é federal, lá em Brasília.”
Salvatore nunca se sentiu tão fodido. Sozinho com dois selvagens, na despensa
de um puteiro em São Paulo.
Daqui de dentro, ninguém vai me ouvir.
O caixa parece se divertir com a ideia. Mexe os ombros, sorrindo. Os
pensamentos de Roberto Salvatore ficam confusos. O coração dispara, respiração
difícil. “O teu tio não tá aqui, franguinho”, diz Gerson, o caixa. Ele dobra a manga da
camisa e estala os ossos cruzando os dedos.
Passa a língua nos beiços, se deleitando em sadismo. Salvatore dá um tranco
pra trás, em uma última tentativa de se livrar de Frota. Consegue apenas livrar um
braço.
Isso rende uma resposta imediata do Gerson, que entra com a sola em seu
joelho direito. “Fica quieto, porra.”
Salvatore grita com o impacto. Uma dor aguda no miolo do osso.
Então a porta da despensa se abre. É o furão. “Tem alguém procurando ele.”
Dia 3
FORA DE ÓRBITA
Domingo, 31 de março, 10h00.
“Salva? Tá pronto?”
Uma voz distante responde. “Tô saindo do banho. Dez segundos.”
“Anda logo.”
Valentina sabe que a última coisa que Salvatore quer é encontrar com seu pai.
Ela começa a contar em voz alta. “Dez, nove, oito, sete, seis, cinco...”
Salvatore abre a porta, sem camisa, sem sapato, com o cabelo molhado. “Que
pressa! Hoje é domingo.”
“Eles tão esperando.”
“Pra que?”
“Pro café.”
Ele volta para o quarto em silêncio, mancando. Ela fica na porta. A decoração
interior do quarto de hóspedes foi calculada pela mãe, e paga pelo pai. “Dormiu bem?”
“A melhor noite do final de semana.”
“A disputa é feia. Teve até puteiro”, diz ela, em tom cínico.
Ele fica vermelho. “Bem, aquilo”, ele fala, hesitante. Valentina solta uma
gargalhada. “Salva, você precisava ver sua cara ontem.”
“Aqueles caras iam me matar.”
“E o joelho?”
“Doendo menos. O gelo ajudou”, diz ele. Salvatore termina de calçar o tênis
sujo.
“Que bom”, responde Valentina.
“Obrigado. Sério. Te devo essa”, diz ele, pegando em sua mão.
“Não pense que estamos resolvidos”, ela o empurra pra fora do quarto.
Atravessam o corredor, os tacos de madeira rangem. Salvatore estanca no
cume da escada. “Acho que não estou com fome.”
“Tá vivendo de luz, agora?”
“Pra falar a verdade, tô numa baita broca. Vali, será que é uma boa ver sua
família?”
Vali.
Ela gosta quando Salvatore a chama pelo apelido. “Larga de frescura.”
Ele alonga o pescoço, faz uma careta de dor. “É isso ou comer acarajé na feira”,
sugere Valentina.
“Prefiro luz.”
“Ótimo. Vamos lá.”
“Antes, queria te dizer uma coisa.”
“Ah, cala a boca”, diz Valentina. Ela o puxa pela mão, e os dois descem a escada
em direção à sala de jantar.
“O que é que você queria me dizer, Salva?”, pergunta Valentina, de surpresa.
Observa-o constrangido. O segundo misto quente de Salvatore, antes
mastigado com voracidade, se transforma num pedaço de chumbo.
Todos na mesa esperam a resposta de Salvatore. Provavelmente, ele não sabe
o que vai dizer. Coça a garganta, e em seguida se afoga com um gole de café.
“Desculpa. Dizer o quê, quando?”
“Lá em cima.”
“Não lembro.”
Sara se intromete no debate. “E você lembra de algo ontem à noite, Salva?”, diz
a irmã, enquanto passa geleia na torrada. Valentina se diverte com a cena. A mãe das
garotas quebra o anticlímax. “Tava com fome, né rapaz?”
“Pois é”, responde aliviado.
“Aliás, você tá mais magro. Sempre que vier a São Paulo, nos faça uma visita. O
misto é de graça.”
“Obrigado, dona Lúcia”, Salvatore sorri à senhora vistosa que é a mãe das
meninas. Mas não chega nem perto de olhar para o homem que está na cabeceira
oposta da mesa.
“Tô com o pessoal no hotel.”
“Salva, nunca vi você tão divertido. Inventando umas histórias de pílulas,
carrões e celebridades”, diz Sara, rindo.
Roberto Salvatore tenta se esconder atrás da xícara. “Falei isso? Bem. Tava um
pouco...”, ele faz uma pausa. “Disperso.”
“Disperso? Agora disperso é sinônimo de fora de órbita?”, responde Sara.
Então uma voz grave corta o ar por cima da mesa. “Sara, deixe o rapaz tomar o
café da manhã.”
A caçula ri baixo, se concentra na torrada com geleia. “E como vão as coisas,
Roberto?”, fala o pai.
“Tudo bem, seu Álvaro.”
“E o trabalho?”
Valentina percebe que Salvatore faz nova pausa. Dessa vez procura um suco.
“Tudo na mesma.”
“Você está no banco?”
“Isso.”
Sara olha para Valentina. Na noite passada, no carro, ele havia dito algo sobre
jogar o emprego na lata de lixo.
“E dá pra crescer lá dentro? Tipo, virar gerente?”
“Se você se esforçar, pode ganhar bem.”
“E você está lá há quanto tempo? Uns quatro anos?”
“Por aí.”
“Pensa em seguir carreira?”
“Estou reavaliando meus objetivos.”
“Objetivos? Na tua idade eu já sustentava uma família.”
“Os tempos mudam, Álvaro”, interrompe dona Lúcia. “Não adianta fazer algo
que não gosta.”
“Olha, pra mim, nunca teve isso de gostar ou não gostar. Tive que roer muito
osso.”
“Eles têm mais opções, Álvaro.”
“Mas da outra vez o Roberto me falou que estava feliz no banco. Queria virar
gerente. Não é, Roberto?”
“Bem, o trabalho já foi mais empolgante.”
“Brasília é difícil, pai”, diz Valentina.
“Difícil? Aqui em São Paulo é difícil. Concurso público é outra história, bate
ponto, tem férias, ganha bem. Aqui é a selva, um querendo comer o outro.”
“São escolhas de cada um”, Valentina começa a se irritar.
“Mas, veja bem, aqui dá pra fazer riqueza”, diz o senhor Álvaro, dono da ética
do trabalho. Aquela é a sua grande lição de vida às filhas. Construir riqueza.
“Pai, as pessoas têm outros objetivos além da riqueza.”
“Não estou impondo isso. Só quero que vocês sejam felizes. Possam sustentar
os meus netos.”
Silêncio na sala de estar. O lustre se movimenta com uma pequena brisa vinda
do quintal. Lá fora, o jardim verde, um contraponto ao emaranhado de cimento dos
prédios ao redor.
Valentina fica sem resposta. Salvatore também não consegue esboçar qualquer
coisa em língua terrestre. Olha para a mãe, mas ela está distraída, provavelmente
pensando alto. Alguém tem que salvar o dia antes que a palavra ‘netos’ surja de novo.
Para
felicidade
de
Valentina,
Sara
resolve
livrá-los
do
milésimo
constrangimento daquele café da manhã. “E então, pessoal, que horas a gente vai pro
festival?”
“Filha, esse festival é aquele da televisão?”, pergunta o pai.
“É sim, pai”, responde Sara.
“Apaluza?”
“Lollapalooza.”
“Ulapaluza?”
“Lo – lla –pa – loo – za”, diz Sara, perdendo a paciência.
“E não rola muita droga nesses shows?”
Os dois caminham pelo jardim. Valentina coloca um cigarro na boca. “Tá
fumando?”, pergunta Salvatore.
“Neste momento, sim”, responde Valentina. Com o polegar, gira o isqueiro,
fazendo um som arrastado e também uma faísca. Uma chama trêmula, que se apaga
em menos de dois segundos.
“Não combina contigo.”
Ela tenta de novo. Sem sucesso. “Me acalma um pouco.”
Salvatore se aproxima, pega o isqueiro de sua mão e acende o cigarro, fazendo
com a mão uma proteção do vento. Valentina traga a fumaça, sente o calor se
espalhando pelo pulmão. O cérebro vai processando as sensações do alcatrão.
“Seus pais sabem?”
“Tá louco? Uma vez falei pra mãe sobre os seus narguilés. Ela fez um discurso
sobre maconha ser a porta das drogas.”
“A vida é a porta das drogas.”
“Tive de convencê-la que era só tabaco.”
“Você tem mais de trinta anos.”
“Eles não sabem disso.”
“Me sinto assim, também.”
“Eu gosto dos narguilés. Mas dos que você prepara. Os do Magrão são muito
fortes.”
“Posso lhe fazer um, qualquer dia.”
Ela sorri. “Vem, vamos mais pra lá.”
ITACARÉ
No passado.
Valentina abre a porta de uma vez equilibrando um copo de mojito, e reclama.
“Que música alta.”
Ele está na cabeceira da cama, notebook na barriga. Digita com rapidez. “Essa
música não é daquele filme que a gente viu hoje?”, pergunta Valentina.
“É”, Salvatore não tira os olhos da tela. “O Eddie Vedder que fez a trilha.”
“Ele é tudo de bom, né?”
O comentário faz Salvatore olhar pra ela. Ele comprime os olhos. “Tudo de bom
como?”
“Qual o nome da música?”
“Society”, diz Salvatore, diminuindo o som. “Como tava o showzinho na praça?”
Valentina se aproxima da cama e coloca o mojito no criado mudo. “Quando
parava de falar, o cara até cantava umas músicas.”
“Xaropou tanto assim?”
“O ó.”
“Tava cheio?”
“Todos os casais do hotel. Foi até curioso, porque os maridos também foram.”
“Impressionante.”
Valentina franze o nariz. “Bom, acho que é a isso que chamam de viajar junto.”
“Linda, show de hippie na areia é demais pra mim.”
Valentina dá as costas para Salvatore e começa a tirar os brincos. “Além disso,
eu precisava escrever isso aqui”, defende ele.
Ela sente os braços de Salvatore lhe envolverem. Os lábios roçam sua nuca,
fazendo um arrepio lhe correr no dorso. “Vou lhe compensar, baby.”
“Como?”
“Você acaba de ganhar uma massagem com óleo de maracujá e incenso”, diz
Salvatore, imitando o Silvio Santos. Valentina ri. “E desde quando você tem óleo de
maracujá?”
“Subornei o salva-vidas.”
Valentina cola os lábios na boca de Salvatore, e fala. “Então pode começar,
baby.”
Ele a ajuda a tirar o vestido florido, e se deita. “Calcinha nova?”
Salvatore tenta tirar a calcinha, mas Valentina o impede. “Comprei pra viagem.”
“Nunca comprei cueca pra viajar.”
“Por isso elas estão todas furadas.”
“Espera aí que vou buscar o óleo especial de maracujá.”
Salvatore some pela porta do banheiro.
Uma brisa salgada surge da varanda e passeia pelo quarto. Lá fora, as palmeiras
dançam. Valentina, sob o suave efeito do mojito, faz um balanço relâmpago da sua
vida.
Lógico, há muitas dúvidas pela frente.
O mestrado não será fácil. Mas, finalmente, seu namorado arrumou um
emprego. De modo que ela não precisa mais repetir para os pais que Salvatore não é
vagabundo. Agora, pode ver que há um horizonte a ser alcançado.
Casamento, quem sabe?
Não precisa de luxo. Na lua de mel, sim, ela faz questão de algo especial.
Exótico. Indonésia.
De alguma maneira o fato de ela estar na praia a leva a pensar em mais praias
pela frente.
Por que não beber vinho nos Alpes?
Salvatore aparece com as mãos escondidas. Ela lhe alfineta. “Quase dormi.”
“Se dormir perde a massagem. E o meu presente também.”
Aquela palavra soa como uma dose de cafeína. Valentina se apoia nos braços.
“Que presente?”
Ele segura uma pequena caixa de veludo azul. Os olhos de Valentina estão
muito abertos. “Prometo que não é uma cueca furada.”
Um anel prateado repousa no interior aveludado da caixa. Valentina sorri e
bota o dedo no queixo de Salvatore. “Também é fruto do suborno?”
“Digamos que o salva-vidas ganhou dois salários esse mês.”
“É lindo.”
Ela põe o anel. Levanta-se e fica admirando a mão no espelho, fazendo pose.
“Volta aqui, você ainda tem que sofrer uma massagem”, repreende Salvatore.
“É verdade. Posso escolher a música?”
“Não.”
“Jack Johnson.”
“Misericórdia.”
“Cala a boca e faça seu trabalho.”
Ela pega o notebook, põe o álbum In Between Dreams na playlist e se deita
novamente. Salvatore espreme um tubo que realmente cheira a óleo de maracujá.
Esfrega as mãos. “Se vira de bruços.”
Ela já não enxerga o mundo. Agora, só existem os locais onde ele lhe toca.
Sente o óleo se espalhando pelas omoplatas e pela linha da coluna vertebral. Ele
começa pelos ombros, massageando os músculos com os polegares fortes.
Em seguida, escorrega as mãos pelas costas, do topo até a curva. Uma onda de
relaxamento corre pelo corpo de Valentina.
Ela sente as mãos dele percorrendo o comprimento completo da perna direita,
começando pelos pés, massageando os dedos e subindo. A panturrilha, a parte de trás
do joelho e a coxa.
Faz o mesmo com a perna esquerda. Desta vez, ele se prolonga na parte interna
da coxa, ultrapassando a fronteira da calcinha. Por um bom tempo, Valentina sente a
mão firme massageando os glúteos e a base das costas. A sensação é prazerosa, o
sangue dela ferve.
Então ela é subitamente virada. Salvatore a olha, compenetrado. Espalha mais
óleo nas mãos e esfrega sua barriga, fazendo com que um calor suba pelo ventre de
Valentina. Ela respira fundo.
Ele massageia novamente a parte interna das coxas. Este é o momento em que
o prazer encontra o mojito no sangue dela. O desejo entumece o seu corpo. Ela não
resiste. Segura a mão de Salvatore, lhe conduzindo para o espaço entre suas pernas.
Os dois se envolvem. A brisa marinha invade novamente o quarto, enquanto as
palmeiras dançam lá fora.
CAMARÃO
No presente.
O telefone vibra no bolso de Salvatore. Sem ânimo descola a sua mão de
Valentina, reparando que ela está usando o anel de compromisso.
Na bina do aparelho aparece o Nariz. Saber que ele está vivo é bom, porém
num mau momento, pois estava para dar um pega em Valentina.
Desgraçado.
“Quem é?”, pergunta Valentina.
“É o Nariz“, diz ele.
“Que alívio. Pergunta se ele tá bem.”
Salvatore atende. “E aí, Napa.”
“Alô”, diz uma voz rouca, das profundezas de uma ressaca gutural.
“Tá bem, meu velho?”
“Mais ou menos.”
“Você foi pro hospital?”
“É, fui tomar soro. Não vai ser a última vez.”
“Imagino.”
“E aí, como foi lá no puteiro?”
A palavra soa telefone afora, fazendo Valentina fazer uma careta. Salvatore se
levanta da mesa de pedra, num impulso de pudor, e caminha pelo jardim. Continua a
conversa, em tom mais baixo. “Nariz, que treta, cara? Não lembro de porra nenhuma.
Quando vi tava naquela birosca.”
“É, a gente arregaçou na noitada.”
“Como fomos parar lá?”
“Você falou que tava cansado de tomar cortada da mulherada. Daí eu sugeri da
gente pegar umas putas, que elas não iam recusar tua grana.”
“Boa ideia. Se eu tivesse grana. Quando vi, meu cartão tava estourado. Quase
tomei porrada.”
“Teu limite deve ter ido pro prego depois daquelas espumantes no camarote do
Dave. Boate de playboy é caro, patrão.”
“Espumantes?”
“Espumante com fogo. Tu pirou naquela porra. Pagou pra geral do camarim.”
Salvatore sente o coração apertado pela fanfarra monetária.
“Salva, é o seguinte, a Carol me ligou. O Dave tá indo embora, e precisa
devolver o carro pra locadora. Você consegue trazer o camarão aqui em casa?”
“Camarão?”
Valentina o olha, curiosa. “Tudo bem com o Nariz?”
“Foi só tomar soro”, responde Salvatore.
Ela não sabe como falar que quer passar o dia com ele.
“Algum problema?”
“Temos que buscar o carro alugado e devolver para o Dave.”
“O DJ?”
Salvatore faz uma cara triste. “Queria ir junto contigo pro show.”
“Também queria”, diz ela. “Salva, não quero bancar a chata. Mas acho que
mereço um pouco de prioridade.”
“Como fazemos?”
“Nem tô falando de resolver nenhuma guerra civil. Na verdade, tô meio
cansada. Queria apenas curtir um dia leve.”
“Perfeito. Mas não posso largar o Nariz na encrenca. Vou lá e depois te
encontro. Como fazemos?”
Valentina pensa um pouco. “A Lilica vai?”
“Vai junto com o Magrão.”
“Vou ligar pra ela. A gente te espera lá”, diz ela.
“Combinado.”
“Não me decepcione. Por favor”, completa Valentina, olhando com seriedade
pra ele.
“Prometo”, responde Salvatore.
PARADISE
15h00
“Nariga, a sua kit é um brinco.”
Salvatore entra no quarto e sala, desviando de uma mesa de som. É a primeira
vez que entra na pocilga do Nariz. Realmente, não quer aquele estilo de vida. Pelo
chão, se esparramam cuecas, discos e lixo. “Alguma garota já passou mais de cinco
minutos aqui?”, pergunta Salvatore.
“Esse lugar é mágico, cara.”
“Quase um cemitério asteca”, Salvatore pega em cima da mesa uma caixa
lacrada de camisinhas. “Tua mágica tá lacrada”, diz ele, mostrando a caixa ao Nariz.
“Não uso mais camisinha.”
“Já fez exame de aids?”
“Não faço mais exame.”
“Parece razoável.”
“Cara, só se transmite aids pelo cu. A xota molhada não deixa ter atrito. E tem
ácido lá dentro.”
“Nova campanha do governo?”
“Pensa bem, o cu é o maior receptor do organismo. Por que tu acha que as
pessoas injetam cocaína pelo cu?”
“Nunca tentei.”
“Por que tu acha que bota o supositório no rabo?”
“Podemos falar de outra coisa?”, Salvatore tenta desviar o assunto.
“Tá bom. Vamos falar sobre gonorreia.”
Nariz está pálido, com olheiras fundas. Ele pega uma caixa de suco em cima do
balcão. A cheira e retorce o grande nariz. Mesmo assim, vira a caixa pela boca.
“E lá no hospital?”
“Tô melhorando.”
“Você se lembra de ontem à noite?”
“Sensacional. Tu virou um monstro.”
“Acordei com uma puta me jogando água na cara.”
Nariz ri. “Você precisa soltar esse demônio, Salva. Sabe aquela versão dos
infernos do pica-pau?
Salvatore anda pela sala. Vasculha um baú em cima do balcão. Dentro,
pequenos sacos de pílulas, um tablete de maconha e um saco com pó branco. Anda
mais um pouco e pega um CD no chão. Naldo e MC Marcinho.
“Música clássica?”, diz ele, mostrando ao Nariz.
“É o meu trabalho, cara. Tenho que tocar de tudo.”
“Achei que você estivesse produzindo coisas próprias.”
“Toco nos churrascos da rapeize. Preciso comprar o leite das crianças.”
“Leite em pó?”
Nariz abre a geladeira. Pega uma panela com resto de miojo e deglute a
mistura. Salvatore coloca o CD no chão. “O que a Carol falou contigo?”
“Falei que você tava com o carro.”
“Tá maluco?”
“Falei que entregaríamos o carro no hotel.”
“Não tô com a caranga.”
“Tu não lembra, a gente estacionou na rua, em frente ao puteiro. Bebemos pra
caralho, e então você fez um show com duas putas, no pole dance.”
“A gente passou do limite. Foi aquela segunda pílula.”
“Fora a garrafa de mescal, o uísque e o espumante.”
Salvatore levanta, irrequieto. “Bom, velho, e agora?”
“Vamos lá pegar o carro no puteiro.”
“Tem que ser rápido. Tenho que ir pro Lolla daqui a pouco.”
Nariz fica transtornado. “Lolla? Que porra de Lolla, Salva?”
“Marquei encontro com a Vali.”
Nariz se levanta, põe uma camisa. “Tá com a chave do carro aí, né?”
Pelo vão da porta, sai uma cabeça pequena e enrugada. “O que foi?”
Salvatore, ameaçado, observa o que há atrás da senhora de avental. Olha por
cima da cabeça, mesmo estando um degrau abaixo, e enxerga as sombras do balcão.
Ouve novamente a voz à sua frente. “O que há, moleque?”
Salvatore coça a garganta. “Queria falar com o gerente.”
“Deu uma saída.”
Ele continua observando a escuridão lá dentro, pronto pra correr a qualquer
instante. Aquela é exatamente a porta do inferno. “O caixa, então? Ele está aí?”
“Acho que não.”
“Tem alguém aí?”
“Talvez.”
Velha sinistra.
Ele aproxima o rosto da porta e dá um sorriso. Sente o cheiro azedo de uma
boate após a noite. “Qual o seu nome, desculpa?”
“Alzira.”
“Sabe o que é dona Alzira, é que eu esqueci uma coisa aí ontem à noite.”
“Espera aqui.”
A porta bate, quase estourando seus tímpanos. Ele se vira. Uma brisa morna
espalha papéis pela rua. Latas e garrafas se amontanham em lixeiras enferrujadas.
Aquele não é um espaço de comércio diurno. Aberto, apenas o bar da freguesia
local. E dois estacionamentos pagos. Pelos demais prédios, uma miscelânea de neons
pornográficos brilham sob o sol. Acima da porta, o neon da boate.
‘Paradise’
O inferno se chama Paradise.
Há poucos seres vivos por ali. Na maioria, ratos e pombos cumprindo sua
existência. Barulho da porta. Salvatore se prepara. A senhora de olhos cinzentos dera
lugar a um alienígena. Frota é o seu nome. Rolos de gordura lutam por baixo da camisa
preta.
De imediato, Salvatore pensa que vai levar um soco no estômago, fruto de sua
memória recente. Encolhe-se, vira o rosto e fecha os olhos, mas nada acontece. O
gordo solta um enorme bocejo. “Pois não?”
“Opa”, responde Salvatore.
“Ai, que sono”, ele esfrega os olhos, agredidos pela luz do dia. “A dona Alzira
disse que você perdeu algo ontem à noite.”
“Minha chave.”
Como assim, o filho da puta queria me matar a poucas horas, e agora virou um
doce?
“Chave?”, ele esfrega os óculos de grau na camisa engordurada.
“É, a chave do carro.”
O bolo de carne, em silêncio, coloca os óculos. Por um instante, parece um ser
pacífico.
“Não tem chave aqui”, seu tom de voz muda completamente, como se
houvessem mudado o locutor do jogo.
“Tenho certeza que sim. Houve um mal-entendido”, insiste Salvatore.
“Melhor você ir embora”, ameaça.
“Não podemos esquecer o que passou ontem? Resolver de outro jeito?”,
sugere Salvatore. A montanha desce um degrau e fica a cinco centímetros de
Salvatore. “Por que você não procura o teu carro no Mercado Livre?”, diz o gordo. “Tá
aqui o link”, completa Frota, pegando nos bagos com fúria.
“Não, obrigado”, Salvatore desce as escadas, de costas. O gordo tenta colocar a
mão no peito de Salvatore, mas ele dá um salto pra trás. Corre em direção oposta à
Paradise, a tempo de ouvir uma ameaça estrondosa. “Volta aqui e te enfio o pole
dance no rabo.”
Os dois acomodam-se em uma mesa enferrujada. Nariz grita para o fundo da
oficina, onde se encontra uma senhora atrás do balcão. “Moça, me traz uma Antarctica
gelada.”
Salvatore o critica. “Já vai beber?”
“Que horas são?”
“Umas três.”
“Então beleza. Tô liberado após o meio-dia.”
“Quem te liberou?”
“Li num livro. Chama ‘Vida com significado’.”
“Claro”, Salvatore demonstra seu nervosismo e bate na mesa. “Porra, Nariz! A
gente tá completamente fodido, e você tá preocupado em beber?”
“Vamos nos foder tranquilos.”
Salvatore vê uma senhora rotunda, surgida dos fundos do bar, com os lábios
lambuzados de vermelho. Ela se aproxima, coloca a garrafa de cerveja na mesa e em
seguida a abre, com algo que Salvatore percebe ser um falo de madeira com um prego
encurvado.
Ela os serve e deixa o pau em pé na mesa. A cabeça do pau é roxa. Nariz se
espanta, e saúda o artesanato pornô. “Uou, bitcho.”
“Mais alguma coisa, querido?”, pergunta a dona do cafofo.
“Só essa cerveja, por enquanto”, responde. “Esse abridor é do caralho.”
“Nós gostamos de caralhos por aqui”, diz a senhora, beliscando a bochecha
dele. “Se precisar de algo, é só me chamar.”
“Qual a sua graça?”
“Me chamam de Violeta.”
“Brigado, Violeta.”
Salvatore observa a enorme bunda voltando ao balcão. Nariz faz o mesmo,
dando uma boa sacada no bar. “Cara, esse é o melhor bar de zampaulo.”
Salvatore faz um inventário do local. Três prostitutas almoçando. Um travesti
de minissaia, no balcão, bebendo uísque nacional.
“Nariz, seu viado. Te concentra, porra. O Dave vai comer nosso rabo, a Carol vai
comer nosso rabo e você fica aí, peruando?”, fala Salvatore.
Uma voz grave troveja lá do balcão. “Vai ter rabada hoje?”, pergunta o sujeito
de minissaia.
“O meu amigo aqui vai precisar de um KY”, sugere Nariz, fazendo a gargalhada
do boteco inteiro. Ele se aproxima de Salvatore e diz em voz baixa.
“Aí, Salva, fica na manha, ou o travecão ali vai comer o teu rabo também”,
Nariz se acaba na risada. Salvatore atira um palito na testa do parceiro de mesa.
“Ai”, resmunga Nariz.
“Sossega. A gente precisa de um plano.”
“Plano de cu é rola.”
“O que é que a gente vai dizer pro Dave e pra Carol?”
Nariz pensa um pouco, enquanto mata seu copo de cerveja. “Vamos dizer a
verdade.”
“Que a gente perdeu o carro?”
“Que você perdeu a chave no puteiro. E que depois você perdeu o carro.”
Então o telefone de Nariz toca. “Oi, Carol, chegaram?...isso, a gente tá no único
boteco da rua. Boteco da dona Violeta... não se preocupa. Tá tudo certo. Vem aqui e a
gente explica. Beijo.”
Salvatore aproveita a deixa e manda uma mensagem para o Magrão.
‘Magrão, perdemos o Camaro do Dave.
Segura a onda da Vali pra mim.’
A tela do celular mostra atualização no blog. Salvatore entra no blog.
Algo de errado.
O mostrador aponta mil e duzentos acessos de sábado pra domingo.
“What the fuck?”, pergunta Dave.
A empolgação da noite anterior dera lugar a um gringo louco e suado. Do seu
pescoço saltam brotoejas. Ele se levanta da mesa enferrujada, impaciente. Sua mão
está tremendo, o que faz a cerveja jorrar pelas bordas do copo. Ele bebe um gole e
bate o copo na mesa. “What have you done, you pricks?”, sua voz sai desafinada, em
meio a tons hostis.
Salvatore nota Nariz. O amigo, que se divertia largamente antes de Dave e
Carol chegarem, não diz um pio. Observa a cena como quem observa um rinoceronte
no zoológico. Se pudesse, jogaria pepinos ao monstro. Ou couve-flor. Salvatore não
resiste e pergunta. “Nariz, o que você daria de comer a um rinoceronte?”
“Filé Oswaldo Aranha.”
“What are you talking?”, pergunta o DJ.
“E se ele não gostar de alho e correr atrás de você?”
“Só há um jeito de fugir de um rinoceronte. Dê um passo à direita.”
“Por quê?”
“Eles não fazem curva.”
“Can you answer me?”, grita Dave. Carol se assusta. Resta a Salvatore segurar a
besta pelo chifre. “Hey man, take it easy.”
“Take it easy? Fucking easy?”, grita Dave, querendo voar por cima da mesa. Ele
respira fundo. “Did you go to the whorehouse again?”
“Yes, we knocked there, but the security recognized me. He mentioned sticking
the pole dance in my ass.”
“Good idea”, esbraveja Dave. “The same who stopped you yesterday?”
“Yes.”
“How can you be such a chicken?”
“Chicken”, repete Nariz, rindo.
Dave olha pra Nariz, raivoso. “And now I’m fucked because you two losers.”
Salvatore nota que a overreaction do gringo foi demais até pra Carol. Os olhos
da garota estão arregalados. Ela se levanta e o acolhe com os braços. “Sweet, why
don’t you go take a breath outside? I’ll talk to the guys.”
O piercing na sobrancelha de Dave está prestes a voar, um pino de panela de
pressão. Ele passa a mão pelo rosto, saca do maço de Marlboro um cigarro, tenta
acender, mas a mão trêmula não o deixa.
Nariz tenta ajudá-lo, sem sucesso. Dave rouba o isqueiro do seu socorrista, fala
com Carol com o cigarro na boca. “They fuck me, I fuck you. Understand?”
E se retira para a rua.
Carol pensa que aquela cena não faz sentido. Por que Dave iria se estressar
com um roubo de carro alugado? Tudo bem, é desagradável. Pra ela, há algo por trás.
Ela se senta na mesa com os dois.
“Carol, tudo bem que é um carrão caro, e tal. Mas é alugado”, diz Salvatore.
“Bem, acho que esse não é o problema.”
“E, em último caso, se não acharmos o Camaro, a gente paga a franquia do
seguro.”
“A gente quem?”, pergunta Nariz.
“Dinheiro também não é o problema”, afirma Carol, ignorando a pobreza dele.
“Então por que o gringo virou doido furioso?”, pergunta Salvatore.
“Pois é”, emenda Nariz. “Ontem era só curtir a vida adoidado. Agora tá puto
por causa de um camarão alugado?”
Carol demora uns instantes, olha as paredes azuis da espelunca. “Bem, se
lembram daquele estojo azul, ontem à noite?”
Flashes da noite anterior pipocam na mesa. Salvatore tenta dizer algo. “Aquele
cheio de...”, mas é interrompido. O ronco largo de motor v8 irrompe da portícula do
boteco da dona Violeta. O som da aceleração atravessa a rua e é seguida de uma
freada brusca.
Dave pula dentro do bar e corre até a mesa. O cigarro ainda aceso. “Mother
fucker! Unbelievable!”
“What happened, darling?”, pergunta Carol.
“Você tem que chamar ele de darling?”, diz Nariz.
“Do you want to hear me, please?”, Dave lhes pede atenção. “The car just
parked outside.”
PETISCO DE PEIXE
16:45.
O Camaro é uma baleia laranja encalhada no meio fio. Nariz faz sinal com as
mãos para que ele avance. Salvatore fecha os olhos.
Filho da puta. Por que ele mesmo não vai?
A porta da boate está semiaberta, Dave e Carol acabaram de entrar.
Pela fresta, somente silhuetas lá dentro. Uma voz feminina, um riso forçado.
Eles estão ao fundo, não se pode distingui-los direito. Alguém se movimenta e
Salvatore se esconde atrás da porta. O pulso acelera.
Cacete.
Se imbui de coragem e empurra a porta o mais devagar possível. A porta
resiste. Ele insiste. A luz da rua invade o espaço à sua frente, e ele entra rapidamente.
Carol nota o vão da porta se abrindo, a luz entrando. Precisa chamar atenção
do casal. Salvatore lhe disse que o filho do dono da boate havia ficado com a chave do
carro. Um rapaz forte, cabelo espetado. E aquela deve ser sua cafetina. “Vocês têm
que ouvir o CD do Dave. É bom, muito bom”, diz Carol, gesticulando os braços.
Ela enxerga Salvatore entrando, à francesa. Os olhos dela cruzam com os dele.
Carol engasga, o tempo para. Então ele sai andando de gatinhas para trás do balcão.
O dono da boate coça a cabeça com a chave do carro.
A chave.
“O que foi, garota?”, diz ele. Então Carol o cutuca no braço e tenta distrair sua
atenção novamente. “Sexta ele tocou no festival. Tava bombando”, diz Carol.
“Um amigo me falou muito bem dele”, responde o filho do dono da boate.
“Mas e aí, que que ele manda? Tô aqui pra servi-lo.”
Carol dá um sorriso sem graça. “Ele quer conhecer alguma morena bem
brasileira.”
“Veio pro lugar certo”, sorri a cafetina.
Salvatore se abaixa e corre para debaixo do balcão.
Por que todo balcão é à esquerda?
Quando o balcão o encobre, ele fica de quatro. Divide o espaço com um banco
alto, e com um bastão de baseball.
Caralho. Ele vai me matar.
O espaço é o suficiente para um anão, e ele faz o possível para bancar o tal.
Abaixa a cabeça, sua frio. Procura se concentrar no diálogo, lá nos fundos.
A pior ideia que alguém poderia ter tido. Invadir a boate, e enquanto Carol
distraía o furão com uma história babaca de turismo sexual, Salvatore arrumaria um
jeito de pegar a chave.
Mas e depois?
Vai ver que o furão faz jiu-jitsu.
Talvez me amarre no para-choque do Camaro, me arraste pela Augusta. Depois,
viro petisco de peixe no Tietê.
A conversa continua, enquanto Salvatore permanece com sua invasão
paralisada. Observa o que mais há detrás do balcão. Cheiro azedo de uma boate
amanhecida. Há o bar à sua direita e um espelho à esquerda, por onde pode ver a
conversa. Copos de drinques e taças se espalham num armário de vidro. Algumas
garrafas estão penduradas no teto do bar.
“Hey Dave, you have to know my girls”, diz o furão, em inglês cucaracho.
“Nice man.”
“Do you like morenas?”
“What?”
“Brunette”, atende a voz aguda de Carol.
“Oh yeah, man. I love, how do you say, moourenas?”
O furão ri e se vira para a cafetina. “Amor, vamos chamar a Renata?”
“Acho que o Dave vai gostar. É a nossa morena mais bonita. E fala inglês!”
“Pede pra ela vir.”
“Meu celular ficou no carro.”
“Vai lá buscar, baby. Dave, you drink a vodka?”
Pelo espelho do bar, Salvatore vê a cafetina se aproximando do balcão e sair
pela porta. Aquela seria a melhor chance. Atacar a fulana no meio da rua.
Ele olha pra trás. A luz da rua transforma o ambiente da boate em claro escuro.
É possível ver a bunda da cafetina, curvada e com a cabeça enfiada no carro.
Aquela é uma bela cena de se ver, mas é interrompida por passos que vêm em
direção ao balcão. Passos de um homem decidido.
“Dave, you drink cowboy or ice?”
“Some ice, please.”
“Red bull?”
“Just pure vodka.”
“Quer também? Carol, seu nome?”
“Acho que vou aceitar.”
“Você bonita desse jeito, e ele quer uma morena?”
Salvatore se espreme embaixo do balcão. Apavora-se pensando que seu
coração está batendo tão alto que o furão poderia escutá-lo. Ali debaixo, escuta os
ruídos do furão entrando no balcão. Ele anda poucos metros para a direita. Pega uma
garrafa de vodca. Coloca gelo em três copos e entorna a garrafa lentamente.
“It’s a Grey Goose. My favorite”, diz o furão.
Novamente a porta é aberta. A cafetina entra com o celular. “Amor, serve pra
mim também.”
O tilintar de alguma coisa sendo colocada no balcão, acima de sua cabeça, é
animador.
Só pode ser a chave.
“Falou com ela?”, pergunta o furão.
“Ela já tá se arrumando, chega em meia hora”, responde a cafetina.
O furão coloca os copos sobre o balcão. “Um brinde.”
Copos estalam no ar. Suas pernas estão à frente de Salvatore. Ele olha para o
relógio. Gostaria de estar no show com Valentina. Ele a beijaria. Com certeza, ele a
beijaria.
“Carol, você tira uma foto minha com o Dave?”, pergunta o furão.
“Claro.”
“Sensacional. Vou botar na parede.”
Esta é a chance de Salvatore. Ele se levanta lentamente. No tampo do balcão,
na altura de seus olhos, está a chave do Camaro. Há também um par de óculos
brancos. O mesmo que o furão usou no festival. Sem hesitar ele pega os dois itens e se
agacha novamente.
Mira pelo espelho. O grupo está ao fundo, fazendo alguma pose. Carol tira uma
foto.
“Acho que se vocês virarem vai ficar melhor”, diz Carol. Então ela os posiciona
de costas para a porta. “Assim está ótimo.”
É agora.
“Ei, Salva, fiquei bem pra cacete com esses óculos. As mina vão pirar, mano.”
Salvatore olha Nariz ajeitando os óculos, no banco da frente, se mirando pelo
retrovisor. Um gigantesco Raiban branco.
“Salva, tu sabe o melhor jeito de não namorar uma garota?”
Salvatore se remexe no banco de trás. Checa a porta mais uma vez. Ela
permanece estática, pombas cinzentas ciscam à sua frente. “Do que cê está falando?”,
pergunta a Nariz.
O amigo se vira, passa o braço por cima do banco do passageiro. “Tô falando
daquela situação, que você começa a sair com uma perva. Se tu ligar pra ela todo dia,
vai acabar namorando.”
“Caralho”, Salvatore esfrega as têmporas, para aplacar o nervosismo. “Cadê
eles?”
“Eu bolei esse teorema, cara. Pra deixar as mulheres pra sempre no limbo das
expectativas.”
Salvatore olha pelo vidro de trás. Sem trânsito, algumas prostitutas na
espelunca da Violeta. Um guarda de uniforme marrom dobra a esquina, no fim da rua.
“O nome do teorema é catorze-vinte-e-um”, insiste Nariz, com a voz de um
doutor em filosofia.
“Quanto?”
“Catorze-vinte-e-um.”
“Essa demora tá me deixando noiado.”
Impaciente, Salvatore examina o relógio no celular. Não bastasse roubar carro
de um ladrão, agora ele está atrasado pro encontro com a Valentina. Curiosamente, o
número de acessos do blog não para de crescer. Mil e quinhentos e trinta e quatro.
Nariz olha pra cima. E coça o nariz, ajustando os óculos em sua naba
portentosa. Estranhamente, Salvatore se lembra de um antigo humorista. Juca Chaves.
Referia-se ao próprio nariz como apêndice nasal.
“Segundo as leis do teorema, você nunca pode ligar pra uma garota até catorze
dias após o último encontro. Nunca. Essa é a primeira lei”, explica Nariz.
Salvatore olha incrédulo.
E ainda tenho que dar trela pra um apêndice nasal falando sobre
relacionamento.
“A outra lei é que cê não pode passar vinte e um dias sem ligar pra garota.
Sacou?”
“Tô entendendo, cara. Tô entendendo tudo.”
“A garota vai ficar pirada. Não vai criar expectativa a ponto de querer lhe
namorar, mas vai colar na sua, a cada três semanas.”
“Muito bom.”
“É isso.”
“Brilhante, Nariz. Não sei por que você ainda não ganhou a porra do prêmio
Nobel.”
“A minha genialidade é incompreendida.”
Uma sombra passa na janela à esquerda, tapando o sol por um instante. O
guarda de uniforme marrom para ao lado da janela do motorista. Salvatore sente uma
pontada no estômago. “E mais essa agora?”
O guarda faz sinal para que Nariz abaixe a janela.
“O que é isso?”
“Parece que é um guarda.”
“Caralho, nós estamos roubando um carro. Esse cara é da polícia?”
“Abaixa a janela, teu porra.”
Ele abre a janela do Camaro. O vidro é engolido para dentro da porta. “Bom
dia”, diz o guarda, em tom amistoso.
“Bom dia, seu guarda.”
Salvatore lembra de um conselho repetido entre os motoristas bêbados que
arriscam a carteira e a vida dos outros na tolerância zero.
Nunca chame um policial de guarda. Mas esses marronzinhos são policiais?
“O senhor está estacionado em local proibido”, sua voz já não foi tão matinal.
“Mas não foi a gente que estacionou”, responde o Nariz.
“Perdão?”
Salvatore, adivinhando que o Nariz poderia dedurar o roubo do carro, se
interpõe ao diálogo. “Desculpe, senhor. É que estamos esperando um casal de amigos,
eles estão aí na boate”, diz, apontando o local.
O guarda olha para o neon, acima do pórtico.
‘Paradise’
“Senhor, preciso ver sua licença de motorista e documento do veículo.”
“Cumé?”, pergunta Nariz.
E esse filho da puta tem carteira de motorista?
“A carteira de motorista e o licenciamento do carro.”
Nariz passa a mão nas coxas, por cima da calça amassada. Abre a carteira
devagar. Revista o bolo de cartões de visita. Encontra uma nota de dois reais.
Salvatore mete a cara pela janela de motorista. “Senhor, o carro é desse amigo
que tá lá dentro. Ele pediu pra gente esperar. Porque é proibido parar aqui.”
“Isso, é proibido parar aqui”, repete Nariz.
“Então preciso que você o chame.”
“Ah, sim.”
Salvatore encosta no banco traseiro. “Vai lá, Salva. Chama o Dave”, diz Nariz.
Ele desce do carro, pega o celular e justifica para o guarda. “Acho melhor ligar
primeiro. Sabe como é…”, faz um gesto com as sobrancelhas, tentando explicar que
não se entra num puteiro sem anunciar.
Salvatore finge que disca um número e coloca o aparelho na orelha, dando o
melhor de sua atuação. Confiante, pensa que poderia ficar até pelado em cima de um
palco. Algo que provavelmente ocorreu na noite anterior.
Sua atuação é interrompida pela chegada de um táxi. O carro para à frente do
Camaro. A porta de trás se abre, uma coxa musculosa pisa o salto no asfalto.
Ela passa por Salvatore. Sombra, batom vivo e uma vasta cabeleira batendo na
bunda. Seus olhos cruzam os de Salvatore e ela abre um pequeno sorriso. O
nervosismo cessa por um instante, e Salvatore entende o significado da
impermanência budista, do êxtase católico, e de todas as manifestações dos deuses
indianos.
Após o sorriso, ele poderia morrer e deixar para trás todo o perigo e também a
monotonia da vida. A morena empurra a porta e some.
Salvatore retorna vacilante à atuação estonteante ao celular. Novamente, disca
um número falso. Mas, no instante em que o cola à orelha, a porta da boate se abre.
É Carol. O sorriso armado se desfaz em seu rosto. Ela dá mais um passo e então
se paralisa quando vê o guarda de uniforme marrom. Imbuída de coragem, pega
Salvatore pelo braço e o empurra para o carro, junto consigo. “Entra aí.”
O guarda esboça alguma frase, mas é ignorado ao vento da rua suja. Os dois
entram no banco de trás. Carol ordena Nariz para dar a partida, mas sem uma reação.
Em poucos segundos, Dave atravessa a porta. Atrás dele, o furão, confuso,
grita, e o segura pelo braço. “O que que foi, rapá? Onde é que cê tá indo?”
O furão olha a cena acontecendo na rua. Contabiliza o guarda em frente ao
Camaro laranja, onde estão quatro pessoas. “Meu carro!”
O guarda pergunta. “Este carro é do senhor?”
Dave aproveita a dúvida do furão, se desvencilha e voa pra dentro, batendo a
porta. Carol grita com Nariz. “Tá esperando o quê?”
Salvatore vê a paralisia do motorista, e dá um tapa na cabeça do amigo. “Porra,
Nariz, arranca essa porra daqui. Caralho.”
O furão se interpõe à frente e coloca as mãos sobre o capô. O furão nota o
enorme óculos na cara do Nariz. “Meus óculos!”
Nariz afinal descongela. O motor do carro ronca e os pneus fritam no asfalto
quente.
PISTA DE CORRIDA
18h33.
Kaiser Chiefs já era. Agora, The Hives no palco verde. Uma das maiores
promessas do domingo, e, com boa dose de segurança, do festival inteiro. Salvatore
queria ver o vocalista em ação, aclamado por sua loucura. Correrias pelo palco e
escalamento de alambrado.
18h34.
Agora o atraso para encontrar com a Valentina já estourou. Lá fora, as ruas
passam depressa pela janela. Um farol vermelho é furado, uma moto buzina por conta
da imprudência. Nariz cruza a rua que segue da esquerda e dá uma guinada no Camaro
laranja, fazendo os pneus cantarem. Salvatore se segura no banco e olha para a placa
com o nome da rua.
‘R. Avanhandava’
18h35.
O silêncio do carro é quebrado por um grito de Dave.
“Fantastic! Everything here.”
Ele segura o estojo azul, seu porta-drogas. Analisa o conteúdo. Salvatore pensa
que, além de estar num carro em fuga, está num carro cheio de drogas.
Carol, ao seu lado, pega em sua mão. “Tá marcando o cronômetro pra ver em
quanto tempo a gente chega?”
Salvatore força um riso, nervoso. “Bom, se nós não formos pegos nos próximos
cinco minutos, acho que não dá nada.”
Nariz fala algo lá da frente. “O cara pode ter avisado a polícia. Alguma blitz.
Com certeza avisou.”
“What about the police?”, pergunta Dave.
Nariz se vira pra ele. “Hey man, do you have music there?”
“Sure”, responde Dave, e conecta o celular no som do carro. “Carol, do you
think they will reach us?”
“Don’t worry. We just have to deliver the car at the shop”, responde ela, do
banco de trás.
“What that cop can do?”
“He was not a cop. He can only send a penalty to the car rental, and then they
will send it to you.”
“Nice. Do you know?”, Dave fala alto e desafinado. “It was too fucking exciting. I
love you guys.”
O alto-falante do carro cospe o riff clássico de baixo de Killing In The Name, do
Rage Against The Machine.
Nariz grita pela janela como um cão selvagem.
18h37.
Salvatore tenta ligar. Valentina não atende. “Tá ligando pro Magrão?”,
pergunta Carol.
Ele pensa sobre a resposta. É melhor não falar que tem um encontro. “Isso.
Marquei com ele de ver o show do The Hives. Não tá atendendo.”
“E a Vali, Salva? Vai te matar, né?”, diz Nariz.
“Vali?”, pergunta Carol.
“Tá muito longe, Narigas?”, pergunta Salvatore, tentando fugir.
“Vali é a ex-dele. Tá louca pra armar um flashback”, solta Nariz.
“Ah, bom”, diz Carol, hesitante. “Se vocês quiserem, eu levo o carro com o
Dave. Vocês ficam no caminho e pegam um táxi.”
A ideia parece tentadora. “Será?”, pergunta, Salvatore.
“Sério, não tem problema”, Carol insiste. Sua voz mudou.
18h38
Nariz freia no sinal vermelho. Salvatore aproveita. “Que que tu acha Nariz?”
“De quê?”
“Deles levarem o carro, a gente desce aqui e corre pro Lolla.”
“Hoje num vô, Salva. Tô sem ingresso.”
“Não sabia. Você pode levá-los?”
“Na boa. Me and my friend, Dave”, Nariz estende o punho fechado pro DJ, que
dá um soco em cumprimento. “Come’on man, fuck this red light”, diz Dave.
Aquela chance é única. Salvatore chegará atrasado, mas consegue pegar o
festival ainda com luz, o que facilita as coisas. Ele segura no banco do motorista. Olha
para Carol. “Bem, então acho que vou nessa...”, Salvatore percebe a frustração no
semblante de Carol.
“O sinal abriu. Vai saltar, Salva?”, pergunta Nariz.
Ele armou a confusão no puteiro. Com ajuda das drogas. Mas ele também
ajudou a resolver, arriscou o próprio rabo. Sua parte estava feita.
“Salva...”, diz Carol, pegando em sua mão. “Se você ficar, a gente podia sair
depois, só nós dois”, sussurra.
Salvatore está prestes a se arrepender. Aquela oportunidade pode ser única.
Ele toma uma decisão e a anuncia. “Carol, não posso furar, marquei um encontro.”
“Ok”, ela fala nitidamente desapontada, se afastando dele. Salvatore tenta
guardar uma carta. “Nos falamos depois?”
“Acho que não vai dar”, responde ela, fria.
18h40
O Camaro voa longe, pela avenida Tietê. Salvatore chama um táxi e tenta ligar
pela quinta vez. Não responde. Nem sinal de ocupado. Resolve mandar uma
mensagem, com cópia pro Magrão.
‘Vali, pintou um problemão com aquele lance do carro
alugado, mas a gente conseguiu resolver. Tô correndo
praí. Bjo.’
Lilica não acredita que perdeu tanto tempo por nada. “O desgraçado ainda nem
chegou?”
Magrão faz um bico. “Pois é.”
Valentina reforça o coro. “Cara de pau.”
Lilica resolve tomar as rédeas. “Vou embora daqui. Cansei. Quero ver o The
Hives. E ainda tem o Hot Chip. Se dependermos do Salvatore, continuamos nessa
lanchonete até amanhã. Não perco o Pearl Jam por nada.”
“Pearl Jam?”, pergunta Valentina. “Hoje?”
“Vali, quer olhar a programação?”, diz Magrão, lhe oferecendo o folheto. “O
Roberto Carlos vai fechar a noite.”
“Não fala mal do rei”, diz Lilica. “Quem vem comigo?”, ela pega o Magrão pela
mão e sai andando em direção ao palco vermelho. Porém sofre um tranco dum
Magrão ancorado. “Que foi?”, pergunta ela.
“Vamos esperar mais um pouco.”
“Tô indo”, ela larga a mão dele e pega Valentina, que lhe acompanha. As duas
andam, sem olhar para trás.
A certa distância, Lilica resolve tocar no assunto. “Vali, fala sério. Você ainda tá
correndo atrás do Salva?”
“Queria fazer as pazes.”
“Queria ou quer?”
“Oscilo. Neste momento, queria.”
“Sabe, também tô cansada.”
“O que aconteceu?”
“O Magrão só me enrola.”
“Sei como é”, diz Valentina, sem jeito.
“Mas você namorou um tempão. E esses caras só se preocupam com bobagem,
não levam nada a sério.”
Lilica puxa Valentina com força. Quanto mais raiva, mais rápido elas andam.
Salvatore corre. Desvia como pode das pessoas. Esbarra, tropeça, pisa em
alguém. A multidão vai adensando na medida em que o palco principal vai se
aproximando. Já não consegue mais correr, tem que andar para os lados.
Então, vê a saída para a pista de corrida, bruscamente gira noventa graus,
numa tentativa frustrada de curva, mas esbarra em uma garota com um copo cheio de
coca.
“Ai!”
Salvatore vê que a coca molhou a roupa dela. Pede desculpas, sem jeito. Tenta
limpar a menina com a mão, e sem querer encosta nos peitos dela. A garota o repele.
“Poxa, cara. Vai com calma.”
“Desculpa, desculpa, desculpa.”
“Minha camisa do Radiohead.”
A camisa do Radiohead.
“Essa é a camisa do show de 2008? Puta merda.
“Pois é. Paguei uma nota.”
“Desculpa mil vezes. Essa camisa não merecia esse banho de coca. Esse foi o
melhor show que já vi.”
Ela esboça um sorriso, mais complacente.
Jeitosinha. Poderia render algo.
Mas não há tempo. “Escuta, toma a minha blusa.”
Ele tira a camisa, entrega e saí correndo. “Não precisa”, diz a garota.
Enfim cruza a cerca, saí do gramado e ganha a pista de corrida. O chão de areia
batida facilita a aceleração. O vento frio lhe corta. No joelho, a dor lateja. Mesmo
assim, ele insiste. Não há tempo. Talvez, já seja tarde demais.
Naquela perspectiva em velocidade, o palco Cidade Jardim ganha outra
conotação. Os canhões de luz quicam conforme sua cabeça balança. As ondas de som
pulam e se misturam com sua respiração ofegante.
Parece um filme B.
No telão, em preto e branco, Eddie Vedder grita “do the evolution, baby”.
Valentina adora essa música.
Se fosse para ela ir ao Lollapalooza por apenas uma banda, seria pelo Pearl Jam.
Ela e mais setenta mil pessoas. Deu no jornal que aquele é o dia mais cheio do festival.
A audiência se espreme no Cidade Jardim. Uma massa de vermes, pulsante, visceral,
cresce para um lado e cresce para o outro.
Ele não entende aquele fanatismo pela banda.
Tanta gente adora esses caras.
Isso lhe escapa à compreensão. É como se faltasse uma enzima nele, assim
como a enzima do futebol. Simplesmente, nasceu sem a substância que faz com que
as pessoas gastem noventa minutos em frente à televisão, vendo um jogo narrado por
algum tarado, contorcendo as entranhas, gritando e se enfurecendo.
Mas, se do futebol Salvatore já desistiu, sabe que sua ignorância em relação ao
Pearl Jam se trata mais de preguiça do que de enzima. Para falar a verdade, está
gostando do show, enquanto corre. Os caras têm capacidade de levar uma multidão à
loucura.
Alcança o vão da cerca e vira à direita, em direção à área de bares e
lanchonetes.
Novamente, vários grupos. Gente cansada, miseráveis ou azarados dormem no
chão. Teoricamente, ela estaria em frente à barraca de comida.
Salvatore olha ao redor do restaurante. Anda de um lado para o outro. Procura
por mais alguma mensagem no celular. Valentina não está ali.
Ele sente uma puxada no estômago. É domingo à noite, em São Paulo, e uma
plateia ensandecida urra ao final da música.
ACASO
21h15.
É divertido observar o desespero de Salvatore. Visivelmente, ele não sabe o que
fazer. Tenta ligar para alguém, inutilmente. Olha para os lados.
Ele merece.
Magrão esperou aquele tempo todo por Salvatore, algo como duas horas. E
ainda vai lhe render uma provável encrenca com a Lilica.
Mas Magrão sabe que Salvatore está lascado. E que dependia dele para
encontrar a Valentina. No fundo, quer ajudar os dois. Ele se aproxima por trás.
“Pontual como um trem italiano”, diz Magrão, dando uma coça no cuco de Salvatore.
“Porra, Magrão, tava desesperado.”
“Eu vi. Correndo feito uma égua na pista dos cavalos. Resolveu o lance do
Camaro?”
“Quase fui assassinado, mas resolvemos.”
“Roubaram sua camisa?”
“Sabe da Valentina?”
“Elas cansaram de te esperar. Eu também. Filho da puta.”
“Não reclama. Daqui dá pra ver o show. Ao lado da barraca da cerveja.”
“Temos que encontrar as meninas.”
“Te devo essa.”
“Vá se foder.”
Valentina compreende que o som é vibrante. A imagem do vocalista, no telão,
é agradável. Não chove. No ar, um clima alegre de desfecho. Racionalmente, ela
deveria gostar da situação, mas não é algo possível. Graças ao mestre em destruir
expectativas, Salvatore.
Ela pensa sobre o significado da espera. Um relacionamento é esperar o outro.
Os dois combinam algo do tipo ‘vamos ficar juntos até a cova’. E daí é questão de
tempo.
O problema de Salvatore não é combinar. Isso ele sabe fazer. A questão é que
ele não consegue cumprir um simples horário, algo banal. Para depois vomitar uma
avalanche de explicações. E esta é a pura essência da enrolação. Valentina não é a
prioridade na agenda conturbada de Salvatore.
Ponto final.
Lilica lhe chama a atenção, sorrindo. “Tá gostando, Vali? O melhor show do
festival. Esses caras são foda.”
Valentina faz que sim, desanimada.
“Tá empapuçada, né?”, diz Lilica, compreensiva.
“Acho que sim.”
“Que chato, Vali. Te entendo”, Lilica lhe faz um afago. “Vamos deixar os
homens pra lá, se matando sozinhos.”
“Estou tentando. De tanto ele se esforçar, acho que vou conseguir.”
Valentina quer ir embora. Cria coragem para contar isso à Lilica, que volta a se
divertir com a apresentação.
Então alguém toca Valentina no ombro. É Salvatore. Magrão desponta ao lado,
bagunça o cabelo de Lilica. “Sai pra lá, meu penteado”, protesta a pequena amiga. Os
dois se engalfinham, deixando Valentina a sós com Salvatore.
“Oi”, diz ele, com voz de desculpa. Valentina fica em silêncio, olha para baixo.
“Curtindo o Pearl Jam?”, pergunta ele.
Ela suspira. “Veja o lado positivo. Pelo menos um show bom você já viu em
vida. Nada daquele atraso de Djavan”, insiste Salvatore. Valentina fica indignada.
“Quem é você pra falar mal do Djavan?”
“Não vale duzentos reais que a gente pagou.”
“Fui eu que paguei.”
“Por óbvio. Foi até barato. O Djavan ainda deveria pagar milão pra mim.
Aguentei duas horas do show.”
Valentina desaprova. “Ingrato.”
Salvatore sorri. “Adianta pedir desculpas?”
Ela vira a cabeça, deixa a pergunta no ar. “É o mínimo.”
Salvatore tenta lhe abraçar. Valentina o repele. “Não é esse o ponto.”
“Não tive culpa. Tinha que achar o carro.”
“Você não entende. Não é o carro, não é o celular, não é o aquecimento
global.”
“Isso tudo é justo a vida real.”
“A questão, Salva, é que eu sou a tua última prioridade. Se o acaso deixar, você
me encontra.”
“Foi uma contingência.”
“Que exploda.”
“Quanto drama.”
“Um adulto de verdade, quando quer algo, vai lá e faz. Deliberadamente. Não
espera pra ver se o mundo vai permitir.”
“Dá pra ser direta?”
“Você é tão egocêntrico. Vim aqui atrás de você. É disso que tô falando.”
Salvatore fica mudo. Ela se entristece. Ele olha pra cima. “Tudo bem, o que
faço?”
“Tô cansada demais pra pensar por você.”
Ele passa a mão pela barba mal feita. Dá um giro em torno de si e dispara.
“Quer andar de patins?”
Valentina desliza pela pista amarela. Sem dúvida, aquele é o melhor lugar
daquele festival. Enquanto ela corre, quatro rodas em cada pé, Salvatore se trava no
corrimão, com medo.
“Vai ficar aí?”, grita Valentina.
Ele tenta alguns passos. Com alguma firmeza, anda três metros para longe do
corrimão e se desequilibra. Valentina se diverte. Salvatore cai esparramado no chão.
“Não consigo fazer isso.”
Ela se aproxima dele e oferece a mão. “Então pra quê me convidou?”
Salvatore segura na mão dela e a puxa para si. Ela grita e cai em cima dele. “Pra
gente ficar junto”, responde ele.
Valentina se ajeita no chão. “Cadê sua camisa?”
ADIANTE
22h30.
“Salva, tem que usar proteção”, diz Valentina.
“Fala sério.”
“Nem brinca.”
“Tô sem”, Salvatore beija o pescoço dela.
“Também”, diz ela.
“E isso vai ser problema agora?”
“Vai”, ela afasta a cabeça. “Tem um mês que estamos separados.”
Valentina encosta o dedo no nariz de Salvatore. “E ontem, por acaso, o senhor
estava num puteiro.”
“Não aconteceu nada.”
“Claro.”
Salvatore resolve dar um troco. “E você? Vai dizer que não transou com
ninguém esse tempo todo?”
Valentina dá de ombros. “Não tenho que responder. A gente terminou.”
Ela se desvencilha dele e rola para o lado da cama. Salvatore sente o vazio
sobre si. A distância de Valentina o deixa inseguro. O mofo do carpete fica mais
acentuado. Resolve contra-atacar. “E aquele turco?”
“Do que cê tá falando?”
“Aquele com quem você trepou.”
“Como você é babaca.”
“Porra, fui eu que dei pro meu professor?”
Valentina olha para a janela e não responde. Salvatore aprofunda a estocada.
“E pior. A gente ainda tava namorando.”
Salvatore cheira fúria em Valentina. Então, ele mostra toda a sua grosseria.
“Você podia ter esperado pra trepar com aquele idiota.”
Valentina se senta na cama, de costas para Salvatore. Bota os pés no chão,
suspira, e apoia os cotovelos nas pernas. O rosto enterrado entre as mãos.
Neste momento, Salvatore percebe que passou do ponto. Tenta lhe fazer um
carinho. Ela se levanta, e ainda virada veste sua calcinha e seu sutiã.
Salvatore se levanta, desanimado. “Vali, me desculpa.”
Ela se vira, chorando. “Você não tem o direito de falar assim comigo.”
“Droga. Você acha que me senti bem com aquilo?”
“A gente não tava mais junto.”
“Como assim?”
“Você deixou o namoro esfriar. Sumiu.”
“Queria um espaço. Só isso.”
“Você queria um espaço? E não me avisou? Acha que sou uma boneca inflável,
que pode guardar num armário?”
Melhor trabalhar em outro ponto.
“Você não tinha o direito de transar com outro cara.”
Valentina para de chorar. Passa a mão nos olhos. Seu rosto está borrado com a
maquiagem. “Pensa que não sei?”
“Hum?”
Salvatore não entende a pergunta. Parece que sintonizaram em outra estação
de rádio. “Que história é essa?”
“Eu vi no Facebook a foto do seu carnaval.”
Não há escapatória daquele argumento. “Não tô entendendo.”
“Você beijando aquela garota.”
“Não era eu na foto.”
“Nem pra admitir você é homem”, Valentina entra no banheiro.
No espaço dentro do quarto, a cabeça de Roberto Salvatore rola solta. Por
todos os lados é possível sentir o mofo e o rancor. É essa a sequência de vida que o
próprio Salvatore construiu. Entediado, ele conseguiu enrolar o namoro, um carnaval
na putaria, um professor Ibrahim e um mês de silêncio forçado. Então o dique
explodiu. Ele ouve o barulho da descarga.
Talvez haja um ponto positivo aqui. Não sei bem qual. Eu cansei do namoro, fui
pra um carnaval. Daí, ela transou com um cara. É isso. Bola pra frente.
Valentina sai do banheiro, completamente vestida. É a deixa de Salvatore.
“Vali, escuta. Não podemos esquecer tudo, seguir adiante?”
Ela bate a porta do quarto. Salvatore fica a sós no escuro.
VOLTA
Segunda, 1 de abril, 10h00.
“Faz trinta daqui até o aeroporto?”, pergunta Magrão.
“Vamo no pilão”, responde o homem. “Puta ressaca, meu.”
O motorista liga o taxímetro e põe o carro em movimento. As olheiras
profundas do taxista olham pelo retrovisor, de maneira que Salvatore perceba o globo
ocular rachando de vermelho.
Salvatore nota que ele coça os olhos, sem se preocupar com o trânsito. “Cês
tavam nesse festival, é? Peguei umas clientes lá, mano. Bando de gostosa.”
Salvatore, grogue de insônia, percebe o dia se arrastando. Pessoas indo
trabalhar, trânsito agitado.
Magrão puxa assunto, para não deixar o motorista falando sozinho. “Cara, e
esse lance dos taxistas cobrarem cem paus no Lollapalooza?”
“E daí mano? Eu tava cobrando até duzentos.”
Magrão resolve se aquietar. O telefone de Salvatore toca. É um número do
banco. No automático, atende. Do outro lado, uma voz feminina. “Alô, gostaria de falar
com o Roberto Salvatore.”
“Pois não.”
“Roberto, aqui é a Isabela, tudo bem? Sou sua nova chefe.”
“Tudo bem?”
“A gente tava te esperando aqui pra quinta-feira, você não apareceu.”
“É, tive que viajar.”
“Quero fazer uma reunião contigo.”
“Claro.”
“Pode ser nove e meia?”
“Sabe o que é Isabela, ainda tô em viagem, devo chegar aí pelas onze.”
“Assim que você chegar, me liga. Estou lhe esperando.”
“Combinado.”
Salvatore abre a janela. O bafo da semana invade o carro e ele fecha a janela
novamente. A ressaca torna a perspectiva de ter de encarar um novo trabalho ainda
pior. Além da nova chefe lhe esperando, também haverá a sua mãe, sem notícias há
três dias.
Apesar disso, chegar em casa será ótimo. Salvatore lembra com saudade do
banheiro. Lavar aquela calça imunda, o tênis. Ele olha para o chão do carro, vê os tênis
sem qualquer chance de recuperação.
O táxi para no semáforo. “Era do trampo?”, pergunta Magrão.
“Era. Minha nova chefe.”
“Gostosa?”
“Só conheço a voz.”
“Voz de gostosa?”
“Voz de quem tava me esperando quinta-feira.”
“Puta meu, trabalhar hoje vai ser foda”, fala Magrão.” Vou passar o dia olhando
pra tela.”
“Pelo menos você conhece sua chefe. Nem sei no que vou trabalhar.”
“Bicho, depois dum tempo, dá tudo na mesma.”
Salvatore aproveita o celular na mão e olha o número de acessos do seu blog.
Até às seis e meia da manhã, em sua última checagem, havia três mil
novecentas e duas visitas, contando o sábado e o domingo.
Agora o mostrador aponta três mil novecentas e sessenta visitas. Em apenas
uma hora, mais de cinquenta acessos, e ainda está no começo da segunda-feira.
Magrão pergunta. “Que gráfico é esse?”
“Estatísticas do blog.”
“Muita gente? Tipo dezessete?”
“Três mil novecentos e sessenta.”
“Tá de sacanagem.”
“Pior que não.”
“Irado, Salva. Tu devia escrever um livro.”
“Sobre o que?”
“Qualquer merda. Se vira que esse pepino é teu.”
Magrão dá uma suspiro. “Mas vem cá, mudando de pepino. Como foi ontem,
fizeram as pazes?”
“Num foi, deu treta. E vocês?”
“Deu treta também.”
O taxista, sem ser convidado, fala lá da frente. “Mina é tudo treta, mano”, e ri
da sua conclusão.
Uma ciclista passa ao lado do carro. Roupa colã, dry fit, uma beleza. Sem
calcular direito, esbarra no retrovisor da Hilux 4x4 à frente do táxi. O esbarrão ganha
um “eita porra”, do taxista. A ciclista desce da bicicleta, assustada. O motorista da
Hilux também desce. Está de terno e está nervoso. Vocifera contra a ciclista.
O semáforo fica verde, o taxista começa a buzinar. O cara da Hilux, ainda fora
do carro, analisa o retrovisor. O taxista mete a cabeça pra fora. “Se eu tivesse de moto
metia a bicuda nessa porra de retrovisor. Tira essa merda da minha frente.”
O homem de terno não sabe se cuida do retrovisor, se encara o taxista ou se
exige algo da ciclista. Ela sobe na bicicleta e vai embora. Algo que merece novo
comentário do taxista ressaqueado. “Que rabão meu. Essa calça colada nas coxas, ela
vai chegar molhadinha lá na escola.”
Aquele despertar confuso da segunda-feira deixa Salvatore melancólico,
arremessando para longe a alegria genuína experimentada naqueles dias de som e
frenesi. Os alto-falantes se calaram e os holofotes estão desligados, deixando para trás
apenas o zumbido e um déficit de vinte e oito horas sem sono.
Savaltore quase não embarca por causa da lotação. Quando, enfim, lhe
arrumam uma poltrona, ele aceita prevendo o pior, o que de fato aconteceu. Aquela é
a pior cadeira da aviação civil. Meio da fileira, entre um balofo e um executivo com
cheiro de cinzeiro.
Como não havia mais espaço no bagageiro, sua mochila teve de ir nos pés. A
Salvatore restou a liberdade de mexer no ar condicionado, o que não lhe impede de
suar.
E é dessa maneira que Salvatore espera o avião levantar de São Paulo.
Raios de sol atravessam a janela e a sua pálpebra. O executivo cinzeiro não dá o
menor sinal de fechar a persiana de plástico. A claridade descortina o sono que lhe
enevoa a mente.
Pensa nos dias que virão.
Adaptar-se ao novo trabalho. Encarar os mesmos buracos no asfalto. Voltar a
pensar em sua carreira profissional. Essa palavra o assusta.
Carreira.
O cara ao seu lado tem uma carreira, ele usa terno e é largo. Esta, afinal, é a
grande verdade. A sua mãe, os seus professores, o sistema capitalista, os políticos e a
conjuntura econômica vinham tomando as decisões importantes de sua vida, cagando
e andando para o que ele achava daquelas opções.
Primeiro lhe empurraram as matérias do colegial. Gênios da literatura, gênios
das exatas. E então lhe empurraram uma faculdade, carregada de livros pesados, para,
aí sim, lhe empurrarem uma carreira na qual ele poderia ficar o resto da vida.
Salvatore também pensa sobre o que ganhou com o festival, além dos vários
litros de cerveja que ingeriu. Para começar, é hora de botar um pé no freio em tanta
bebida. Sobre as drogas, já bastam de novas experiências.
No mais, foi bom estar com os amigos naquele lugar com tantas bandas.
Saudade de Valentina. Se não fosse seu maldito orgulho, poderiam ter passado a noite
juntos. Mas ele a perdeu.
Perdi?
Talvez eles já tivessem se perdido um do outro há um bom tempo.
Pelo sistema de som a voz metálica da aeromoça. “Durante a decolagem não é
permitido o uso de nenhum equipamento eletrônico. Pela sua atenção, obrigada.”
Salvatore pega o telefone e é acometido pela curiosidade, que passou a ser
vício desde ontem. Ele checa o aplicativo do Wordpress. A tela demora a carregar.
Uma aeromoça vem pelo corredor, verificando se há alguém grudado no celular.
Salvatore clica, o mais rápido que pode, no botão que lhe dá as estatísticas do
blog. A aeromoça para no corredor. “Senhor, precisa desligar o aparelho”, e fica ao
lado, esperando.
A tela carrega, indicando que o site tinha recebido quatro mil visitas no último
final de semana. Salvatore sorri para a aeromoça. “Pode deixar”, e então desliga o
telefone.
Quatro mil acessos. Mais do que os quatrocentos do domingo de manhã. E bem
mais do que os dezessete acessos semanais dos seus onze leitores.
O avião levanta voo.
Em seu pequeno horizonte, além de se adequar ao novo trabalho, ele pode
escrever.
De sua parte, poderia começar de novo e de novo e de novo. Alguém sempre
estará disposto a lhe pagar para ele fazer uma porra de planilha. No resto do tempo,
daria para se concentrar no que ele gostava de verdade.
A voz metálica volta a ressoar na cabine. “A partir de agora, aparelhos que
funcionem em modo avião poderão funcionar exclusivamente neste modo.”
Salvatore se abaixa, abre a mochila em seus pés e pega o notebook.
>> O que resta de nós
Publicado: março 29, 2013 em Tirania da Contingência
Hurt, Johnny Cash.
Ele está velho e enrugado, neste clipe. Rancoroso. Eles
consideram que este vídeo é o seu epitáfio. Depois de sua
morte, eles deram o prêmio de melhor clipe da história.
A música não é dele. É do Nine Inch Nails. Não importa. A
versão deles é meio sinistra, um acorde dissonante ao final das
estrofes. A de Johnny é trágica e bela.
Seu vozeirão está lá. Mais rouco, desgastado, anunciando
cordas vocais de um velho. Só deixa o tom mais nostálgico.
Um velho que se lembra da vida. Ele arrasta os dedos
cansados pelo violão. A tragédia está em seus olhos.
As imagens do velho se misturam a um turbilhão de
imagens de sua vida conturbada. Johnny jovem, cantando para
multidões, prêmios, roubando flores num quintal, chafurdando
nas drogas, fazendo filmes, tocando em presídios. Uma enchente
arrastando uma casa. Imagens de Cristo na cruz.
O refrão versa sobre o que ele acabou virando. É o que ele
pergunta à sua companheira de vida, June. Todos que ele
conheceu se foram.
O cantor despeja o vinho de sua taça no chão, joga fora
seu império de poeira. Se pudesse, começaria de novo, a mil
léguas de distância.
E então o velho se cala. Tudo o que ele viveu e sentiu
deixa de existir. Resta o que ele cantou ao mundo.
::
Roberto Salvatore
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Parte III - Depois
MUNDO REAL
No futuro.
As luzes da cabine se acendem e um estalido acorda a caixa de som. Ao redor,
paira um misto de espanto e resignação.
“Senhoras e senhores, daremos início ao serviço de café da manhã. Teremos
pão com queijo e presunto, salada de frutas, café, leite e suco.”
Uma pausa de dois segundos, então todos se preparam para o pior.
"Ladies and gentlemen, we will begin the breakfast service. We'll have bread
with cheese and ham, fruit salad, coffee, milk and juice. "
Uma voz rouca troveja ao lado de Salvatore. “Nem pra mandar um omelete.”
A atmosfera é infestada pela bafo matinal do sujeito. Um cara alto, negro,
vestido como um rapper do Bronks. Argola dourada na orelha, colar dourado no peito
e calças largas. Suas pernas mal cabem por ali. Até então, não foi possível imaginar que
ele falava português.
Salvatore tira um Trident do bolso, coloca um na boca e oferece outro ao
vizinho, que agradece e volta ao assunto do café. “Da última vez o café veio frio.”
“Posso imaginar.”
“Eles vivem tentando nos foder.”
“Bem, ainda não tiraram o café da manhã.”
“Porra, isso aqui não é a classe econômica.”
O rapper pega o Iphone. “Meu caro, você tá acessando a Internet?”, pergunta
Salvatore.
“De graça”, responde o rapper. “Por enquanto, por enquanto”, ele ri,
sarcástico.
Salvatore pega o notebook e conecta à Internet do avião. Precisa checar o
mundo. Na caixa de e-mails, mensagem da chefe Isabela, Carol, Magrão e Nariz.
Primeira coisa, precisa falar com a chefe. Faz três meses desde que ele saiu de
licença. Ainda que tenha ficado pouco tempo na agência, deu para sacar a Isabela.
Bonita quarentona. Malha todo dia. Belezoca. E gente boa, ainda por cima. Entendeu o
pedido de Salvatore, autorizou a licença. “Contanto que você volte, ok? Precisamos de
você aqui nos investimentos”, disse ela.
Por sua vez, ele garantiu que só precisava de um tempo, fazer umas viagens.
Passou rápido, mas deu pra aproveitar.
‘Oi Isabela, tudo bem?
Mando esta mensagem para lhe lembrar que meu dia para
voltar ao trabalho é amanhã. Mas preciso fazer uma viagem à
São Paulo, antes de acabar a licença.
Queria combinar contigo de aparecer aí na segunda, pode
ser? Prometo que dou um gás quando voltar.
Obrigado por tudo.
Salvatore.’
Por um lado, vai ser bom voltar à rotina. Ter que cumprir horário, encontrar e
conversar com as pessoas no trabalho.
Preciso voltar a malhar também.
A aeromoça esbarra rapidamente a bunda no cotovelo de Salvatore, puxando a
caravana do café da manhã pelo corredor. Ele abre o e-mail da Carol.
‘E aí Salva? Como foi lá com o Dave? Tudo certo com a
cobertura do SXSW? E o Lolla?
Será que vai ter um tempo só pra mim? Tô te esperando.
Manda notícia. Beijos =***’
Salvatore respira fundo.
Mal deu tempo de descansar da pauleira do SXSW, e agora vai encarar dois dias
de Lollapalooza. E, segunda-feira, se apresentar no trampo.
Ele responde a mensagem de Carol.
‘Carolzinha,
Por aqui, tudo ótimo. Dez dias de South by Southwest
(SXSW), e uma alimentação em homenagem ao hambúrguer e à
batata frita. O que ocorria normalmente às cinco da tarde.
Forrar o estômago antes da pauleira.
Conseguia segurar a fome até as cinco, após um farto café
da manhã de ovos, bacon e torradas. Os americanos realmente
sabem se matar.
Foi bom, por dez dias, mas aquilo tem que ter um limite,
antes que você comece a comprar roupas na seção dos rappers.
Deu pra cobrir tudo do palco do Dave, dedicado ao hip hop.
Ele era o anfitrião e é muito reconhecido pelos outros
artistas.
Dave está mais doidão, mas enfim, é muito gente boa.
Pagou classe executiva e tudo o mais. Me chamou para escrever
um livro, uma autobiografia. Ele quer contar sua história com
palavras viscerais. Sei lá o que é isso, mas topei na hora.
Tô com saudades. A gente se vê aí. Beijos, beijos.’
Penúltimo e-mail. Magrão, com cópia para Nariz.
‘E aí Salva cornudo, quando você volta para o mundo real?
Tá onde mesmo? Festivais? E aquele seu blog tá rendendo
alguma grana? Ou ao menos mulheres? Do jeito que você é lerdo,
acho difícil.
Cara, tá tudo certo pro Lolla, né? Já comprei os
ingressos.
E tu Nariz, já comprou? A gente pode ficar na sua
cobertura?
Aliás, Salva, tá sabendo do sucesso da Nariga? Virou
residente de um inferninho na Augusta. E tão cogitando ele pra
tocar na abertura da Copa do Mundo.
A fama do Nariz tá espalhando, ele dá aula de DJ, e outras
coisas. Até a Lilica resolveu virar aluna dele.
Sobre o Lolla, esse ano o festival vai ser num lugar
diferente. Tiraram daquele chiqueiro.
Fiquei sabendo que a Vali tá indo com a Lilica pro
festival, Salva. E andou perguntando se você ia. Te prepara.’
Último e-mail. Nariz, com cópia para Magrão.
‘Prezados bostas, ingressos comprados. Ainda não tenho
cobertura, mas vocês cabem no meu loft. Não vou poder tocar
na abertura da Copa, porque tenho dentista marcado.
Se vocês quiserem pegar aula de DJ, dou desconto pros
amigos.’
Salvatore responde ao Magrão, com cópia para o Nariz.
‘Oi amigas,
A minha licença acabou. A temporada foi boa, o blogão
está bombando de acessos. Fui convidado para escrever um
livro daquele DJ alucinado, o Dave.
Muitos festivais, o último foi o SXSW, mas grana mesmo,
nada. Tô precisando voltar ao banco.
Maravilha terem trocado o lugar do Lolla.
Nariz, parabéns pelo sucesso. Quero ver você tocando. E
obrigado pela hospedagem, mas vou para o hotel. Magrão, quero
um quarto só pra mim.
Saudades de vocês.
Vamos quebrar aquela porra.’
Salvatore entra no Facebook.
Diante do desenho do mundo, aparecem dezessete notificações. Convites para
eventos que ele não iria, curtidas no seu último post sobre o SXSW, inclusa uma
curtida de Valentina.
Bate a vontade de um flashback em Salvatore. Ele abre uma mensagem para
Valentina.
‘Oi Vali, tudo bem? Tá animando de ir pro Lollapalooza?
Vai ter Phoenix! Aquela banda que te apresentei e você gostou.
A gente podia ver juntos, o que acha? Beijos.’
A perspectiva é atraente. Salvatore não viu qualquer menção a algum
namorado no Facebook dela, o que não é indicativo de nada.
A aeromoça para o carrinho ao lado deles. “Bom dia. Aceitam café?”, diz ela,
estendendo o braço com uma caixa colorida.
Salvatore pensa um pouco. Apaga a mensagem e guarda o notebook.
SOCOS NO CÉU
>> Na Entrada
Publicado: abril 6, 2014 em Tirania da Contingência
Às vezes, o início de um festival é melhor do que o
festival em si. Ninguém sabe ao certo se os shows serão bons ou
desafinados, se aparece o sol ou se um tornado vai engolir a
plateia. Mas você sente que algo grande está prestes a
acontecer.
Pessoas chegam por todos os lados. Turbas andando a pé,
invadindo os semáforos, se misturando ao trânsito e às
centenas de vendedores. Gente tentando vender cerveja, água
de torneira, banana frita, ingressos e capas de chuva. As capas
de chuva têm preço volátil, a depender da possibilidade da
chuva, numa curva entre impossível e dilúvio celestino. Os
preços da capa de chuva também acompanham a distância que
você está da porta, assim como os ingressos.
Todo esse comércio começa a sujar as ruas ao redor do
evento,
que
estará
abarrotado
de
lixo
até
o
final
das
atividades, quando bêbados dividirão o espaço com as latas
jogadas ao chão.
Mas no início, tudo parece mais ou menos em ordem, e
espalha-se um sentimento de celebração. Apostas sobre os
melhores
shows.
Grupos
conversam,
animados.
Pessoas
desesperadas para entrar na fila e uns poucos queimando a
largada. Em geral, moleques afoitos virando garrafas de vodca
ou catuaba selvagem.
Garotas circulam, maquiadas, óculos Raiban, short ou
calça apertada, raramente uma saia. Só as garotas já valem o
ingresso. E é bem possível que uma delas seja seu amor antigo.
Clima de otimismo. Amigos juntos, à espera de uma ótima
tarde de loucura. Em poucas horas, as luzes vão jorrar do
palco. O céu, granulado, pairando acima da turba ensandecida e
feliz. De alguma maneira, estar ali nos faz sentir vivos, um
ponto fora do mormaço cotidiano. Uma explosão de energia
sonora e psicotrópicos.
Pegar um festival é mais do que ver uma sucessão de
bandas boas e outras ruins. É uma fraternidade de pessoas
fazendo o que mais gostam, ouvir rock e estourar os tímpanos.
Gritar refrãos, dar socos no céu e tocar solos imaginários de
guitarra.
Algo que no dia seguinte não passa de vapor na memória.
Coisa que a gente não sabe para que serve direito, mas continua
indo.
“O Hemingway ia às touradas e eu vou às corridas de
cavalo. Elas me ajudam a escrever”, disse o Bukowski.
E eu vou aos festivais.
Pessoal, pra esquentar os motores, uma música de ontem.
Lisztomania, Phoenix.
::
Roberto Salvatore
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Salvatore posta a mensagem no blog. É o que basta para aquele despertar de
domingo. Sente fome. Mas é cedo ainda para acordá-la e pegar o café do hotel.
Observa-a em silêncio. Dorme profundamente, de bruços. O lençol, caído, deixa
nua as suas costas. O cabelo se enrola pelo travesseiro. No ar, o perfume do sexo.
Ele lhe faz um carinho. Ela se mexe e geme, reclamando.
Da cama, com o computador no colo, Salvatore tenta ver o tempo lá fora, por
entre as cortinas. É cedo ainda.
Ele observa o céu de São Paulo, faz um estranho cálculo para saber se vai de
calça ou de bermuda. Então fecha o notebook.
FIM.
Perguntas ou Comentários?
Adoraria conhecer sua opinião. No site tiraniadacontingencia.com.br, entre no
campo “Contato”, terei prazer em responder sua mensagem.
Uma última coisa...
Ao virar a página, você terá a oportunidade de ranquear este livro e também
compartilhar seus pensamentos. Se gostou da experiência desta leitura, lhe encorajo a
postar seus comentários, eles podem ajudar outros leitores. Serei muitíssimo grato.
Sinceramente,
E. M. Pastore
Agradecimentos
Ao Elder Galvão, obrigado por me surpreender, sempre. Agradeço também ao
Alexandre Lobão, pelo olhar clínico e pelas sugestões cruciais. Sem elas, este livro seria
diferente.
Ao Oswaldo Pullen, mentor literário, muito obrigado pela história.
Aos amigos, não tenho como agradecer pelas sacadas brilhantes que vocês
têm. Fiz o melhor que pude. Uma menção especial aos que puderam ler o manuscrito
original – valeu, Marcelle.
Tereza, Floriano, Paulo e Tina, obrigado pela paciência e apoio. E à Manu,
obrigado por tudo.