O desastre no Golfo do México: uma chaga no mundo “Falem com

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O desastre no Golfo do México: uma chaga no mundo “Falem com
O desastre no Golfo do México: uma chaga no mundo
“Falem com eles, como querem que eles falem com vocês”, repetiu mais uma vez o
organizador da reunião, antes de abrir a sessão de consultas do auditório.
E de fato, no começo, a multidão, a maioria pescadora e famílias de pescadores,
comportaram-se exemplarmente. Ouviram pacientemente a fala de Larry Thomas,
relações públicas da BP, cheio de trejeitos, dizer-lhes que estava empenhado em fazer
“nosso melhor” para dar andamento aos pedidos de reembolso por lucros cessantes – e
imediatamente passou a palavra a um terceirizado, com cara de bem menos amigos.
Todos ouviram o representante da Agência de Proteção ao Meio Ambiente, que
informou que, diferente do que todos ouviram, sobre o produto ter sido proibido na GrãBretanha, o dispersante químico que está sendo lançado sobre o petróleo é
perfeitamente seguro. (…)
Mas a paciência começou a acabar quando, pela terceira vez, Ed Stanton, capitão da
Guarda Costeira, subiu até o microfone para repetir que “a Guarda Costeira obrigará a
BP a limpar tudo.”
“Escreva e assine!”, alguém gritou. Mas o ar condicionado parou de funcionar e o
estoque de Budweiser estava acabando. Um pescador de camarões, Matt O’Brien, andou
até o microfone. “Não precisamos continuar a ouvir isso”, disse ele, mãos na cintura.
Explicou aos convidados que de nada adiantavam as garantias que tivessem a oferecer,
“porque ninguém aqui confia em vocês.” A frase provocou ovação tão repentina e
decidida, que foi como se os “Petroleiros” (infeliz nome do time de futebol do colégio)
tivessem marcado um touchdown.
Mas foi manifestação só catártica, mais nada. Há semanas aquelas pessoas estão sob
ataque de uma onda de diz-que-diz e de promessas as mais alucinadas, vindas de
Washington, Houston e Londres. Cada vez que ligam os aparelhos de TV, lá está o
presidente da BP, Tony Hayward, prometendo, sob palavra de honra, que “fará a coisa
certa”. Ou então é o presidente Obama, manifestando absoluta certeza de que seu
governo “deixará a Costa do Golfo em melhor forma do que antes”, e repetindo que “as
coisas ficarão mais fortes do que antes dessa crise.”
Tudo muito bonito. Mas para pessoas que vivem em íntimo contato com a delicada
química do delta, tudo soa completamente absurdo. Quando o petróleo cobre a base da
vegetação do delta, como já cobriu a poucos quilômetros dali, não há máquina ou
mistura química milagrosa que o arranque, sem arrancar toda a vegetação. Pode-se
recolher o petróleo com peneira da superfície da água e pode-se varrê-lo com a areia da
superfície das praias, mas o delta coberto de petróleo não tem salvação: lá fica,
morrendo morte lenta. Tudo morre. As larvas e ovas de incontáveis espécies para as
quais o delta é local de desova e incubadora – camarões, caranguejos, ostras e peixes –
todas estão sendo envenenadas.
Já está acontecendo. Naquele dia, pela manhã, viajei pelas áreas próximas do delta, num
bote raso. Os peixes estão saltando à tona d’água, em anéis de espuma escura, entre as
tiras de algodão grosso e papel que a BP está usando para retirar o petróleo da
superfície. Era como se o material absorvente se enrolasse em torno dos peixes, como
uma corda de forca. A morte sobe pelos veios do junco: é como se os pássaros
pousassem sobre um bastão de dinamite cujo pavio está aceso, queimando rápido.
E há também o capim, “Roseau cane”, como se chama aquele capim de lâmina alta,
afiada. Se o óleo entrar muito profundamente no delta, não apenas mapa o capim da
superfície, mas também as raízes. São aquelas raízes que mantém costurada a vegetação
do delta, impedindo que a terra verde despenque no rio Mississipi e no Golfo do
México. Por isso, não são só os pesqueiros de vilas como Plaquemines Parish que estão
ameaçados, mas quase toda a barreira física, que perde resistência no caso de
tempestades ferozes, como o furacão Katrina. Tudo, ali, estará perdido.
Quanto tempo demorará para que o ecossistema devastado a tal ponto seja “restaurado e
reconstituído”, como o secretário do Interior de Obama prometeu? Não se sabe sequer
se será algum dia restaurado, não em tempo previsível, uma, duas, várias gerações. Os
pesqueiros do Alasca ainda não se recuperaram completamente do vazamento, em 1989,
do petroleiro Exxon Valdez; algumas espécies ainda não reapareceram.
Cientistas do governo estimam que quantidade equivalente a um petroleiro Valdez de
petróleo vaza, a cada quatro dias, nas águas do Golfo do México. O prognóstico é ainda
pior, se se considera o vazamento de 1991, na Guerra do Golfo, quando se estima que
11 milhões de barris de petróleo foram lançados no Golfo Persa – até agora, o maior
vazamento jamais ocorrido. A comparação não é perfeita, porque se limpou área tão
pequena, mas estudo feito 12 anos depois do desastre do Golfo Persa mostrou que cerca
de 90% da vegetação litorânea e de mangue ainda exibia sinais de envenenamento.
O que se sabe é que, longe de algum dia poder ser reconstituída, a costa do Golfo, isso
sim, será reduzida. Suas ricas águas e céus carregados de aves serão, no futuro, menos
vivas do que foram e ainda são. O espaço físico que muitas comunidades ocupam no
mapa também encolherá, por causa da erosão. E a legendária cultura daquele litoral
encolherá com o território. As famílias de pescadores que vivem ali, não vivem só de
pescar. São elos de uma intrincada rede que inclui tradições familiares, cozinha, música,
arte, idiomas minoritários ameaçados – e tudo isso, como as raízes do capim do delta,
mantém coesa a terra naquela área. Sem a pesca, aquelas culturas perdem contato com o
sistema radicular, que desce até o fundo do chão sobre o qual construíram a vida. (A
BP, aliás, sabe bem dos limites da recuperação. O “ Plano Regional de Reação ao
Vazamento de Petróleo no Golfo do México” que a empresa elaborou inclui instruções
claras para que os funcionários não prometam “plena recuperação e volta à normalidade
em itens que tenham a ver com questões de propriedade, ecologia etc.” Motivo pelo
qual, é claro, os funcionários usam termos vagos como “fazer a coisa certa”.)
Se o Katrina arrancou a cortina que escondia o racismo, o desastre da BP está expondo
algo muito mais ocultado: o quanto temos, mesmo as grandes empresas e os mais
destacados especialistas, pouco controle sobre as muito intrincadamente conectadas
forças naturais ante as quais nos comportamos tão levianamente. A BP não sabe o
suficiente, para cavar uma chaga na Terra, como cavou. Obama não tem poder para
ordenar que os pelicanos não se extingam (por mais traseiros que se ponha a chutar).
Não importa quanto dinheiro se gaste – nem os $20 bilhões que a BP oferece, nem se
fossem $100 bilhões. Não há dinheiro suficiente para reconstituir uma cultura que tenha
perdido as raízes. E enquanto os políticos e representantes de corporações insistem em
não ver essa verdade mais evidente, as pessoas, cujos ar, água e vida foram
contaminados p erdem rapidamente as últimas ilusões.
“Tudo está morrendo”, diz uma mulher, quando a reunião na escola aproximava-se do
final. “E vocês vêm dizer aqui, agora, que nosso golfo é resistente e se recuperará? É
porque vocês não têm nem ideia do que acontecerá ao nosso golfo. Sentam-se aí, com ar
sério e falam como se soubessem. Mas vocês não sabem.”
A crise do litoral do Golfo é crise de várias coisas – da corrupção, da desregulação, da
privatização, da dependência doentia de combustíveis fósseis. Mas, por trás de tudo
isso, é crise clara da arrogância de nossa cultura, que supõe ter perfeita compreensão e
comando sobre a natureza de modo a poder tudo manipular radicalmente e re-manipular
e fazer re-engenharias sem risco, dos sistemas naturais que nos mantêm vivos.
Como o desastre da BP mostrou, a natureza jamais é tão previsível quanto supõem e
fazem crer os mais sofisticados modelos matemáticos e geológicos. Em recente
depoimento ao Congresso, Hayward disse que “Os melhores cérebros e a mais avançada
expertise estão sendo convocados” para enfrentar a crise, e que “com exceção talvez do
programa espacial dos anos 1960s, difícil imaginar equipe maior e mas tecnicamente
qualificada, reunida num local só, em tempo de paz.” Mesmo assim, ante o que o
geólogo Jill Schneiderman descreveu como “um poço de Pandora”, estão todos como
aquele especialista, ante aquela multidão de cidadãos: sentados, sérios e falando como
se soubessem; mas não sabem.
A missão declarada da British Petroleum
No arco da história humana, a noção de que a natureza é máquina que aí está para ser
objeto de reengenharia ao bel prazer do engenheiro é conceito relativamente recente.
Em livro seminal de 1980, The Death of Nature, Carolyn Merchant, historiadora das
ciências do meio ambiente, lembra os leitores de que, até os anos 1600s, a terra era viva,
quase sempre sob a forma de uma mãe. Os europeus – como todos os povos nativos em
todo o planeta – acreditavam que o planeta fosse ser vivo, cheio de potências de vida e
de terríveis tempestades. Por isso havia tabus que impediam ações que deformassem e
violassem “a mãe”, entre os quais a mineração.
A metáfora mudou, quando se desvelaram alguns (mas nem de longe todos) dos
mistérios da natureza durante a Revolução Científica dos anos 1600s. Com a natureza
passando a ser descrita como máquina, sem mistérios ou divindades, suas partes
constituintes passaram a poder ser partidas, extraídas e remontadas em plena
impunidade. A natureza às vezes ainda é pintada como mulher, mas mulher facilmente
dominável e subordinável. Em 1623, Sir Francis Bacon deu forma final ao novo ethos,
ao escrever, em De Dignitate et Augmentis Scientiarum, que a natureza existe para ser
“contida, modelada e renovada pela mão e pela arte do homem.”
São palavras que bem poderiam aparecer na declaração da missão corporativa da British
Petroleum. Plenamente instalada no que a empresa chamou de “fronteira da energia”,
dedicou-se a produzir micróbios sintéticos que produzem metano e anunciou “uma nova
era de investigações”: a geo-engenharia. Anunciou também, no relatório de prospecção
do Golfo do México, que cavaria “o mais profundo poço jamais perfurado pela indústria
de gás e petróleo” – tão profundo, no fundo do oceano quanto, no céu, voam os grandes
jatos.
A prontidão para o caso de que algo não desse certo nesses planos ocupou espaço
mínimo da imaginação corporativa. Como logo se descobriu, depois da explosão na
plataforma Horizonte de Águas Profundas, a empresa não tinha qualquer plano para
enfrentar aquele tipo de emergência. Ao explicar por que não tinham nenhuma cúpula
de contenção em área próxima, de reserva, o porta-voz da BP, Steve Rinehart, disse que
“acho que ninguém jamais previu o caso que enfrentamos aqui.”
Aparentemente, todos ‘sabiam’ que a válvula de contenção de emergência jamais
falharia. Assim sendo, por que se preparar?
Esse recusar-se a prever o fracasso vem, muito evidentemente, de cima para baixo. Há
um ano, Hayward disse a um grupo de alunos da Stanford University que tem sobre a
mesa uma placa em que se lê: “Se você soubesse que não falharia, o que tentaria?” Esse
não é slogan inspiracional benigno. De fato, é perfeita tradução de como a BP e
empresas concorrentes agem no mundo real. Em recente audiência no Capitólio o
congressista Ed Markey de Massachusetts interrogou representantes das principais
corporações de gás e petróleo sobre como alocam seus recursos. Ao longo de três anos,
gastaram “$39 bilhões para explorar novas fontes de gás e petróleo. No mesmo período,
o investimento médio em pesquisa e desenvolvimento de prevenção de acidentes,
melhoria da segurança e ações de resposta emergencial em vazamentos mal chegou a mí
seros $20 milhões anuais.”
Essas prioridades explicam muito de por que o “Plano de Exploração Inicial” que a BP
apresentou ao governo para o mal fadado poço Horizonte de Águas Profundas é peça
que mais parece tragédia grega sobre a hubris. A expressão “baixo risco” aparece cinco
vezes. Ainda que haja vazamento, a BP prevê (sob condições de confidencialidade) que,
graças a “equipamento e tecnologia já testados” só haverá efeitos adversos mínimos.
Pintando a natureza como parceiro júnior, previsível e manso (ou, talvez, como empresa
terceirizada), o plano levianamente explica que, em caso de vazamento, “as correntes e
a degradação micronial removerão o petróleo da coluna de água ou diluirão os
constituintes até os níveis anteriores.” Efeitos sobre a vida marinha, por sua vez, “serão
sub letais”, graças “à capacidade de peixes adultos e crustáceos para evitar áreas de
vazamentos e para metabolizar hidrocarbonetos.” (Na narrativa da BP, em vez de ser
ameaça mortal, um vazamento é como um banquete de coisas-que-você-pode-comer
para a vida marinha.)
O melhor de tudo é que, caso ocorra vazamento de grandes proporções, há “pequeno
risco de contato ou impacto sobre a linha costeira” porque a empresa tem projeto para
resposta rápida (!), e considerada “a [grande] distância [do poço] à costa” – cerca de
cem quilômetros. Essa é a parte mais espantosa. Num golfo em que são freqüentes as
tempestades violentas, ventos muito fortes, para nem falar dos furacões, a BP respeita
tão pouco a capacidade de condução das marés, que não previu a hipótese de o petróleo
vazado viajar menos cem quilômetros. (Em meados de junho, um caco da válvula que
explodiu no poço Horizonte de Águas Profundas apareceu numa praia da Florida, a
quase 300 quilômetros do local da explosão.)
Nada disso teria passado sem críticas, se a BP não apresentasse suas previsões a uma
classe política que deseja crer que a natureza já está dominada. Alguns, como a
Republicana Lisa Murkowski, deseja ainda mais que os outros. Senadora pelo Alaska,
falava como se a perfuração de poços em mar profundo já atingisse os píncaros da
artificialidade controlada. “É melhor que a Disneyland, em matéria de pegar as
tecnologias e ir em busca de um recurso que está aí há milhares de anos e fazê-lo de
modo ambientalmente confiável” – disse ela, há sete meses, à Comissão de Energia do
Senado.
Perfurar sem pensar é, é claro, política do Partido Republicano desde maio de 2008.
Com os preços do gás disparando a alturas jamais vistas, o líder conservador Newt
Gingrich criou o slogan “Drill Here, Drill Now, Pay Less” [Perfure aqui, perfure já e
pague menos], com ênfase no “já”. A campanha caríssima, furiosamente difundida, foi
clamou contra qualquer cautela, qualquer pesquisa, qualquer ação ponderada. Na
narrativa de Gingrich, perfurar em casa, onde o petróleo e o gás ‘tem de estar’ –
escondido nas Montanhas Rochosas, no Parque Nacional de Vida Selvagem no Ártico
ou em águas oceânicas profundas – seria meio garantido para fazer cair os preços nas
bombas, criar empregos e chutar traseiros árabes de uma vez por todas. Ante esse triplo
sucesso, a atenção ao meio ambiente seria coisa para maricones. Como disse o senador
Mitch McConnell: “No Alabama e no Mississippi e na Louisiana e no Texas, todos
acham lindas as torres de perfuração.” Quando surgiu o infame slogan “Drill, Baby,
Drill” [Perfure, baby, perfure] na Convenção Nacional do Partido Republicano, a base
do Partido vivia em tal estado de frenesi por combustíveis fósseis ‘made in USA’, que
todos aceitariam enterrar-se no subsolo da convenção, se alguém aparecesse com
perfuradora suficientemente grande.
Obama cedeu, como faz invariavelmente. Com azar cósmico, apenas três semanas antes
de o poço Horizonte explodir o presidente anunciou que liberaria para pesquisa e
exploração de petróleo no mar áreas do país até então protegidas. Não havia perigo,
explicou, como pensava antes. “Atualmente praticamente já não há vazamentos. As
tecnologias avançaram muito.” Nem isso bastou para Sarah Palin, que vasculhou os
planos do governo Obama, para exigir mais estudos, antes de perfurar algumas áreas.
“Santo deus, pessoal, essas áreas já estão secas de tanto serem estudadas!” – disse ela na
Conferência das Lideranças Sulistas do Partido Republicano em New Orleans, apenas
onze dias antes da explosão. “Perfurem, baby, perfurem! Chega de estude, baby,
estude!” Foi tonitroantemente aplaudida.
Em seu depoimento ao Congresso, Hayward disse que “Nós e toda a indústria
aprenderemos desse terrível evento.” E bem se deveria imaginar que uma catástrofe
dessa magnitude instilasse alguma humildade nos executivos da BP e no pessoal do
“Perfure já”. Mas ainda não se veem nem sinais disso. A resposta ao desastre – das
corporações e do governo – veio carregada do mesmo tipo de arrogância e risonhas
‘previsões’ que, em primeiro lugar, geraram a tragédia.
O oceano é grande; ele agüenta, foi o que se ouviu de Hayward nos primeiros dias,
enquanto o porta-voz insistia em que micróbios insaciáveis devorariam todo o petróleo
que aparecesse na água, porque “a natureza tem seus meios para contribuir”. Mas a
natureza não estava para piadas. A explosão fez voar cabeças e chapéus de altos
executivos, além de cúpulas de contenção e frases-lixo. Os ventos e correntes oceânicos
reduziram a farrapos as soluções peso-leve que a BP encontrou para absorver o petróleo.
“Nós dissemos a eles”, conta Byron Encalade, presidente da Associação Louisiana de
Pescadores de Ostras. “O petróleo vai passar, ou por cima ou por baixo dessas
barreiras”. Foi o que aconteceu. O biólogo marinho Rick Steiner, que acompanha de
perto a limpeza, estima que “70, 80% das barreiras servem para absolutamente nada.”
E há também a questão dos controvertidos dispersantes químicos: mais de 1,3 milhões
de galões já desperdiçados, todos com a marca-atitude “O que poderá dar errado?” da
BP. Como disseram furiosos moradores de Plaquemines Parish na reunião, houve
poucos testes, e praticamente nenhuma pesquisa sobre os efeitos dessa quantidade sem
precedentes de petróleo e dispersante, sobre a vida marinha. E não há como extrair a
mistura tóxica de petróleo e dispersantes que se deposita no fundo do mar. Ah, sim, há
os micróbios de reprodução rápida que, sim, devoram o petróleo submarino – mas o
processo também consome oxigênio da água e é, portanto, nova ameaça à vida animal.
A BP atreveu-se, até, a supor que impediria que imagens ‘perigosas’ de praias cobertas
de petróleo e de pássaros agonizantes escapassem da zona do desastre. Quando eu
estava no mar com uma equipe de televisão, por exemplo, fomos abordados por outro
barco, cujo capitão perguntou “Todos aí são empregados da BP?” Quando respondi que
não, a resposta – em mar alto – foi “Então, não podem ficar aí.” Claro que essas táticas
linha-dura, como as demais, falharam. Fato é que há petróleo demais, aparecendo em
lugares demais. “Ninguém pode ensinar o vento a andar para um lado ou outro, nem se
manda nas águas de Deus”, disse-me Debra Ramirez. É lição que aprendeu de viver em
Mossville, Louisiana, cercada por 14 fábricas que expelem poluentes petroquímicos,
vendo as doenças passarem de casa a casa, de vizinho a vizinho .
A limitação humana tem sido presença constante nessa catástrofe. Passados já dois
meses, ninguém sabe quanto petróleo está vazando ou quando parará. A empresa diz
que os poços de desvio estarão completados no final de agosto – frase que Obama
repetiu em fala de 15/6, do Salão Oval. Para muitos cientistas, é blefe. É procedimento
arriscado e pode falhar. Há risco real de que o petróleo continue a vazar por muitos
anos.
O fluxo de negadores da realidade, por sua vez, tampouco dá sinais de amainar.
Políticos da Louisiana fazem furiosa oposição à suspensão temporária de perfurações
em águas profundas, acusando Obama de estar matando a única grande indústria que
restou, depois da crise da indústria da pesca e do turismo. Palin prega, pelo Facebook,
que “nenhum trabalho humano jamais será sem riscos”. No Texas, o Republicano John
Culberson descreveu o desastre como “uma anomalia estatística”. Mas a reação mais
claramente sociopatológica veio do veterano jornalista-comentarista de Washington
Llewellyn King: em vez de temer os riscos da grande engenharia, deveríamos festejar,
por sermos capazes de construir máquinas tão fantásticas, que arrancaram a tampa do
fundo do mundo.”
Deter a hemorragia
Felizmente, outros estão aprendendo outras lições do desastre. (…)
John Wathen, militante conservacionista da Aliança Guardiães da Água [ing.
Waterkeeper Alliance], foi dos poucos observadores independentes que viajou para o
local do vazamento nos primeiros dias.
Depois de filmar as imensas manchas vermelhas que a Guarda Costeira polidamente
chama de “luzes do arco-íris”, disse o que muitos sentiam: “É como se o golfo estivesse
sangrando.” A imagem vai e volta. Monique Harden, advogada que trabalha com
Direito Ambiental em New Orleans, não fala em “vazamento”, mas em “hemorragia de
petróleo”. Outros falam da necessidade de “deter a hemorragia”.
Pessoalmente, me impressionou, voando em avião da Guarda Costeira sobre a parte do
oceano onde a plataforma afundou, que o petróleo na superfície faz as ondas parecerem
pintadas, como se exibissem figuras desenhadas em cavernas; vi uma ave emp lumada,
lutando para respirar, olhos arregalados para o céu, uma ave pré-histórica. Mensagens
das profundezas.
Vivemos a passagem mais espantosa da saga da Costa do Golfo: como se acontecesse
para nos fazer lembrar que a Terra nunca foi máquina. 400 anos depois de declarada
morta, e cercada de tanta morte, a Terra está voltando à vida.
Acompanhar o progresso do petróleo pelo ecossistema é uma espécie de aula-catástrofe
de ecologia profunda. Todos os dias há novas lições de o que parece ser problema
terrível numa parte do mundo revela-se, noutra parte, como surpresa e descoberta. Nem
sempre. Um dia ouvimos que o petróleo pode chegar a Cuba – depois, à Europa. Dia
seguinte, ouvimos que pescadores da Ilha Prince Edward, do outro lado do mundo, no
Canadá, estão preocupados porque os peixes que pescam nascem a milhares de
quilômetros de lá, exatamente naquelas águas hoje manchadas de petróleo. E descobrese que, para muitas aves, os alagados da Costa do Golfo são como pista de pouso e
decolagem de alto tráfego – há locais demarcados para todos: por ali passam 110
espécies de aves canoras migratórias e 75% de todas as aves migratórias de todos os
EUA.
Uma coisa é algum impenetrável teórico da teoria do caos ensinar que uma ave bate
asas no Brasil e provoca um tornado no Texas. Outra coisa é ver o próprio caos
acontecendo ante seus olhos. Nas palavras de Carolyn Merchant, a lição é a seguinte:
“O problema que a BP trágica e atrasadamente descobriu é que a natureza é foca ativa
que não pode ser confinada.” São raros os acidentes previsíveis em sistemas ecológicos,
mas “acidentes não previsíveis, caóticos, são freqüentes.” Caso alguém ainda não tenha
entendido: um raio atingiu recentemente um dos barcos da BP, como um ponto de
exclamação, obrigando a empresa a suspender temporariamente os trabalhos de
contenção. E, isso, sem falar do que pode acontecer, se a sopa tóxica da BP for agitada
por um furacão.
Há, é preciso não esquecer, algo de perverso nessa via especial de aprendizado. Há
quem diga que os EUA descobrem onde há outros países no mundo, bombardeando o
que não conhecem. Agora parece que todos estamos aprendendo onde estão as veias do
sistema circulatório da natureza, envenenando-as.
No final dos anos 90s um grupo isolado de indígenas colombianos ganhou as manchetes
do mundo, por causa de um conflito Avatariano. De seu lar remoto nas florestas de
nuvens eternas no alto da cordilheira dos Andes, os U’wa comunicaram ao mundo que,
caso a empresa Occidental Petroleum insistisse na tentativa de perfurar para extrair
petróleo de suas terras, a tribo cometeria suicídio coletivo ritual, saltando de um
penhasco. Os anciãos da tribo explicaram que o petróleo é ruiria, “o sangue da Mãe
Terra”. Os U’wa crêem que toda a vida, inclusive a deles, flui dessa ruiria. Arrancar da
terra o petróleo é destruir tudo. (A Occidental Petroleum acabou por abandonar a região.
Disseram que não havia petróleo suficiente. Que a prospecção inicia l estava errada.)
Praticamente todas as culturas indígenas têm mitos em que narram a vida de deuses e
espíritos do mundo natural – que vivem em rochas, montanhas, glaciares, florestas –
exatamente como os europeus, antes da Revolução Científica. Katja Neves, antropóloga
da Concordia University, entende que a prática serve a objetivos práticos. Declarar a
Terra “sagrada” é um dos meios que há de expressar humildade ante forças que não se
compreende completamente. Ante algo sagrado, recomenda-se proceder com cautela.
Mesmo, com reverência e medo.
Se aprendermos essa lição, por tarde que seja, pode haver implicações profundas. O
apoio governamental à perfuração oceânica diminuiu 22% em relação ao pico, na época
do frenesi do “Perfure já!”. Mas a questão não está encerrada: é questão de tempo, e o
governo Obama anunciará que, graças a fantásticas novas tecnologias, e sob regulação
rígida, a perfuração oceânica é perfeitamente segura, mesmo no Ártico, onde qualquer
procedimento de limpeza sob o gelo seria infinitamente mais complexa do que se está
vendo no Golfo. Mas talvez, então, não nos deixaremos convencer tão facilmente, não
seremos tão rápidos ao jogar com a vida de uns poucos últimos paraísos protegidos. (…)
Talvez, da próxima vez, escolhamos não admitir experimentos com a física e química
da Terra, talvez escolhamos reduzir nosso consumo, escolhamos mudar para fontes
renováveis de energia, as quais têm a virtude de, quando desabam, não causar
catástrofes. Como ensina o comediante Bill Maher: “Sabem o que acontece quando um
moinho de vento cai no mar? Uma marolinha.”
O resultado mais positivo que se pode esperar desse desastre será não só a aceleração
das pesquisas de fontes de energia renovável, como a energia eólia, mas, sobretudo, que
adotemos, plenamente, o princípio de precaução na ciência. Ao contrário do lema de
Hayward, do credo de esperar nunca falhar, o princípio da precaução na ciência ensina
que “quando, numa atividade, há risco de dano ao meio ambiente ou à saúde humana”, é
preciso proceder com cuidado, como se o fracasso fosse sempre possível e altamente
provável.
Talvez devamos comprar outra placa para a mesa de Hayward, no quartel general da
British Petroleum, que ele lerá enquanto assina cheques de indenizações: “Você age
como se soubesse, mas você não sabe.”
Fonte Carta Maior
artigo é de Naomi Klein