FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS ESCOLA DE
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FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS ESCOLA DE
FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO DE EMPRESAS DE SÃO PAULO LUCIANO EDUARDO MALUF PATAH POR QUE 90%? Uma análise das taxas de cesárea em serviços hospitalares privados do município de São Paulo SÃO PAULO 2008 LUCIANO EDUARDO MALUF PATAH POR QUE 90%? Uma análise das taxas de cesárea em serviços hospitalares privados do município de São Paulo Tese de Doutorado apresentada à Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, como requisito para obtenção do título de Doutor em Administração de Empresas. Campo do Conhecimento: Administração Hospitalar e Gestão de Sistemas de Saúde Orientadora: Profa. Drª. Ana Maria Malik SÃO PAULO 2008 LUCIANO EDUARDO MALUF PATAH POR QUE 90%? Uma análise das taxas de cesárea em serviços hospitalares privados do município de São Paulo Tese de Doutorado apresentada à Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, como requisito para obtenção do título de Doutor em Administração de Empresas. Campo do Conhecimento: Administração Hospitalar e Gestão de Sistemas de Saúde DATA DE APROVAÇÃO: ______/________/_____ BANCA EXAMINADORA _________________________________ Profa. Drª. Ana Maria Malik (orientadora) FGV-EAESP Profa. Drª. Hilegonda Maria Ditilh Novaes FMUSP Prof. Dr. Álvaro Escrivão Júnior FGV-EAESP Prof. Dr. Edmund Chada Baracat FMUSP _________________________________ Prof. Dr. Wladimir Taborda UNIFESP Aos meus pais, Eduardo e Célia, pelo estímulo e exemplo de caráter sempre presentes. À minha família, em especial à minha esposa Karen, pelo amor, carinho e dedicação, mantendo a harmonia e a ordem em nossa família e permitindo que eu pudesse me dedicar nesse trabalho. Às minhas filhas Giovanna e Gabriela, diamantes que iluminam nossas vidas. AGRADECIMENTOS À minha orientadora, Professora Doutora Ana Maria Malik, sempre presente durante essa jornada, oferecendo, mais do que apenas orientações desse trabalho, motivação, amizade e exemplo de perseverança. Ao Professor Doutor José Manoel de Camargo Teixeira, pelos incentivos, amizade e exemplo no campo profissional. Ao Professor Doutor Álvaro Escrivão Júnior, responsável por iniciar e fomentar as discussões sobre esse tema da Tese, agradeço também pelos incentivos dados ao longo de todo o curso. Ao Professor Djair Picchiai pelos ensinamentos durante a pós-graduação. Aos colegas da pós-graduação e pós-graduados do GV Saúde pelo companheirismo e auxílio nas horas difíceis. Aos funcionários da FGV-EAESP, em especial a Sra. Leila Dall’Aqua, pela competência, dedicação e carinho aos alunos dessa instituição. Ao Professor Doutor Corintio Mariani Neto, pelos ensinamentos e pelo exemplo de vocação na administração de serviço público de saúde. Ao Professor Doutor Valdir Tadini, pelos incentivos no início da trajetória pela Administração Hospitalar. Ao colega Manoel Carlos Sampaio, epidemiologista que forneceu seu conhecimentos na análise estatística dos dados. À Professora Doutora Denise Schout pelos incentivos e auxílios na pesquisa. À CAPES e à GV Pesquisa, pelo auxílio financeiro por meio da concessão da bolsa de estudos durante a pós-graduação. Aos médicos e pacientes que prontamente aceitaram participar desse trabalho. À todos aqueles que, por ventura deixei de mencionar, mas que de alguma forma participaram e me auxiliaram, meus mais sinceros agradecimentos. “A vida é breve e a arte é longa; só há portanto um meio de atenuar essa desvantagem inerente à condição humana: o de utilizar inteligentemente o tempo que nos cumpre viver.” Hipócrates, 460-377 aC RESUMO As taxas de cesárea têm apresentado elevação progressiva nos últimos vinte anos em diversos países, inclusive no Brasil. Esse fato, considerado um problema de saúde pública, tem suscitado questionamentos sobre os fatores envolvidos na decisão do tipo de parto. O presente estudo teve como objetivo analisar os fatores associados à escolha pela cesárea no sistema privado de saúde brasileiro, que apresenta as maiores taxas do mundo desse procedimento. Partiu-se da premissa de que a forma de organização da prática obstétrica nesse modelo privado de assistência, envolvendo fatores sócio-culturais e econômicos das gestantes e dos médicos, propiciaria essa situação. Esta análise foi feita por meio de entrevistas com 250 mulheres após o parto e com 122 médicos que prestaram assistência a essas pacientes. Os resultados demonstraram associação significativa entre a realização de cesáreas, maior nível de escolaridade, renda superior a 10 salários mínimos e emprego entre as mulheres, que foram submetidas a essa cirurgia em 88% dos partos realizados. Essas pacientes demonstraram elevado poder de negociação com os médicos, com quem desenvolvem estreito relacionamento médico-paciente, observando-se a participação de 80% delas na escolha do tipo de parto e acima de 95% de satisfação com o parto realizado. Dentre os fatores envolvidos na decisão pela cesariana para as pacientes, a praticidade em agendar o parto foi o mais relevante. Constatou-se que, numa parcela considerável das mulheres, houve mudança de opinião quanto ao tipo de parto desejado durante a gravidez, particularmente entre aquelas que desejavam parto normal no início e que optaram por uma cesariana no final da gestação. Para os médicos, os principais fatores associados à realização da cirurgia foram a insegurança materna pelo parto vaginal, a solicitação de cesárea pela gestante, a forma de remuneração pelo procedimento e a formação médica atual. Ao perguntar para as médicas que tipo de parto desejariam ter se estivessem grávidas, 40% delas disseram optar pela cesariana. Apesar dessa preferência, a taxa de cesárea encontrada entre as médicas e esposas dos médicos foi menor em relação à taxa desse procedimento na amostra de pacientes entrevistadas. Observamos a percepção de que a cesárea é uma forma segura de parto, tanto para as pacientes, como para os médicos. Concluímos, a partir da percepção de dois agentes dessa cadeia de assistência, que as taxas de cesárea atingem cifras ao redor de 90% em decorrência da forma de organização da prática obstétrica inserida no modelo privado de saúde brasileiro, das características sócio-culturais das mulheres assistidas por esse sistema de saúde e da formação dos profissionais de medicina. ABSTRACT The rates of cesarean section have shown a progressive growth in the last twenty years in several countries, including Brazil. Such fact, considered a public health problem, has raised questions about the factors involved in deciding the type of delivery. This study aimed to analyze the factors associated with the choice for cesarean sections in the Brazilian private health system, which has the highest rates in the world for this procedure. It was assumed that the way the obstetric practice is organized in this private health insurance system, which involves socio-cultural and economic factors of both pregnant women and doctors, would favor this situation. This analysis was carried out through interviews with 250 women who had given birth and with 171 doctors who had provided care to these patients. Results have shown a meaningful association between cesarean sections and a higher level of education, income greater than 10 minimum wages and employment among the women who were subjected to surgical procedures in 88% of the deliveries made. These patients showed high negotiation power with doctors, with whom they develop a close doctorpatient relationship: 80% of them considered they were participants in the decision making regarding the type of delivery and above 95% of satisfaction with the delivery made was found. Among the factors involved in the decision for a cesarean section by the patients, the possibility to schedule the delivery was the most relevant one. It was found that a considerable number of women changed their minds as to the type of delivery desired during the pregnancy, particularly among those who wanted normal delivery at the beginning and finally chose a cesarean section at the end of the gestation. For the doctors, main factors associated with the surgery were maternal insecurity regarding vaginal delivery, request for caesarean section made by pregnant women, form of remuneration for this kind of procedure and current medical training. When women doctors were asked what kind of delivery they would like to have if they were pregnant, 40% said they would choose the cesarean section. In spite of this preference, the cesarean section rate found among women doctors and doctors’ wives was lower when compared to the rate of this procedure among interviewed patients. We have noticed that a cesarean section is perceived as a safe means of birth both by the patients and the doctors. We have concluded, from the perception of two players within this health care chain, that the cesarean section rates reach figures around 90% due to the organization way of the obstetric practice inserted in the Brazilian private health care model, the socio-cultural characteristics of women assisted by this health system and the educational background of physicians. LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1– Taxas de cesárea (percentual por 100 nascidos-vivos) dos países da OECD ..................................................................................................................37 Gráfico 2– Evolução das taxas de cesárea (percentual por 100 nascimentos), 1990 à 2002 ....................................................................................................................38 Gráfico 3– Taxas de cesárea em regiões urbanas e rurais de países da África e América Latina ....................................................................................................39 Gráfico 4– Evolução das taxas de cesárea nos EUA ................................................46 Gráfico 5 – Evolução das Taxas de cesárea no Brasil, de 1996 a 2005 ...................77 Gráfico 6 - Proporção de Cesarianas, segundo sistemas de saúde - Gráfico comparativo entre taxas de cesárea do Setor Suplementar e taxa de cesárea total (sistema público e privado) – Brasil.............................................................78 Gráfico 7– Evolução das taxas de cesárea no SUS, Brasil, 1995-2005....................81 LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Distribuição da população brasileira, por região e sexo, Brasil 2000 .....75 Quadro 2 – Proporção de Partos Cesáreos no Brasil, segundo regiões da federação, 2005 ....................................................................................................................76 Quadro 3 – Conjunto de variáveis utilizadas no questionário para entrevistas com as pacientes selecionadas .....................................................................................122 Quadro 4– Conjunto de variáveis utilizadas no questionário para entrevistas com as médicos selecionados .......................................................................................123 Quadro 5 – Partos realizados nas principais maternidades do município de São Paulo, segundo tipo de parto.............................................................................124 Quadro 6 – Número e proporção de mulheres e de gestantes entre 40 e 49 anos e percentual de cesáreas, Brasil 2005. ................................................................133 LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Características sócio-culturais das pacientes (n=250), Hospital, 2007. 135 Tabela 2 – Características das pacientes com relação aos antecedentes obstétricos (n=250), Hospital, 2007 .....................................................................................138 Tabela 3 – Taxas de cesárea segundo características sócio-econômicas, Hospital, 2007 ..................................................................................................................140 Tabela 4 – Quantidade de Consultas e Informações Recebidas na Assistência Prénatal, segundo o tipo de parto, Hospital, 2007 ..................................................142 Tabela 5 - Informações obtidas sobre o parto segundo sobre tipo parto, Hospital, 2007 ..................................................................................................................143 Tabela 6 – Associação entre o desejo materno no início da gestação e eventual mudança de opinião e o tipo de parto realizado, Hospital, 2007 .......................144 Tabela 7 – Associação entre grau de participação materna na decisão do tipo de parto e tipo parto realizado, Hospital, 2007 ......................................................145 Tabela 8 – Fatores que estariam associados à decisão sobre o tipo de parto, em relação ao tipo parto realizado, Hospital Santa Catarina, 2007.........................149 Tabela 9– Satisfação das pacientes em relação ao tipo de parto realizado (n=250), Hospital, 2007 ...................................................................................................153 Tabela 10 – Relação entre o tipo de parto realizado nas mães das pacientes e o tipo de parto realizado nas pacientes (n=250), Hospital, 2007. ...............................154 Tabela 11 – Comentários feitos pelas mães das pacientes sobre os diferentes tipos de parto (n=250), Hospital, 2007.......................................................................154 Tabela 12 – Escolha do tipo de parto numa futura gestação segundo tipo de parto (n=250), Hospital, 2007 .....................................................................................156 Tabela 13 – Desejo das mulheres em relação a uma eventual futura gravidez, excluindo pacientes que não desejam outra gravidez ou não sabem referir, segundo tipo de parto, Hospital, 2007...............................................................156 Tabela 14– Grau de importância para as mulheres das questões relacionadas à perda de elasticidade vaginal e a problemas de bexiga decorrentes do parto normal e sua associação com o tipo de parto realizado, Hospital, 2007...........157 Tabela 15 – Concordância com a prática de fazer pré-natal com um médico e dar à luz com outro, segundo tipo de parto, Hospital, 2007. .....................................158 Tabela 16– Proporção de mulheres satisfeitas com o resultado do parto segundo tipo de parto e variáveis sócio-culturais, Hospital, 2007 .........................................159 Tabela 17– Proporção de mulheres que apontam o “medo das dores após parto cesáreo” como fator que influenciou a decisão pelo o tipo de parto, segundo tipo de parto e número de partos anteriores, Hospital, 2007 ..................................160 Tabela 18 - Proporção de mulheres que apontam o “medo das dores após parto cesáreo” como fator que influenciou a decisão sobre o tipo de parto, segundo tipo de parto e variáveis sócio-culturais, Hospital, 2007...................................160 Tabela 19– Proporção de mulheres que apontam o “desejo da praticidade de agendar o parto” como fator que influenciou a decisão sobre o tipo de parto, segundo tipo de parto e número de partos anteriores, Hospital, 2007 .............161 Tabela 20 – Proporção de mulheres que apontam o “desejo da praticidade de agendar o parto”como fator que influenciou a decisão sobre o tipo de parto, segundo tipo de parto e variáveis sócio-culturais, Hospital, 2007 ....................161 Tabela 21- Características dos médicos entrevistados (n=122), Hospital, 2007....163 Tabela 22 - Atividades profissionais além do consultório (n=70), Hospital, 2007....164 Tabela 23 – Quantidade e tipo de partos realizados pelos médicos entrevistados (n=122), Hospital, 2007 .....................................................................................165 Tabela 24 – Opinião dos médicos sobre as maiores dificuldades para realizar o parto normal, Hospital, 2007 ......................................................................................165 Tabela 25 - Opinião dos médicos sobre a atuação das enfermeiras obstetras, Hospital, 2007 ...................................................................................................167 Tabela 26 – Proporção de médicos que possui seguro contra má prática, Hospital, 2007 ..................................................................................................................167 Tabela 27 – Proporção de médicos que acreditam que ações judiciais são responsáveis por realização de cesáreas, Hospital, 2007 ................................168 Tabela 28 – Atitude do obstetra frente a uma solicitação de cesárea eletiva pela paciente em gestação sem complicações, Hospital, 2007 ................................168 Tabela 29 - Percepção dos médicos sobre as taxas de cesáreas em serviços hospitalares privados do município de São Paulo, Hospital, 2007 ....................169 Tabela 30 – Opinião dos médicos sobre a relação do tipo de parto com a mortalidade materna e/ou perinatal, Hospital, 2007 ..........................................169 Tabela 31– Concordância dos médicos sobre a mudança nas taxas de cesárea decorrente da remuneração diferenciada para o parto normal na medicina privada em São Paulo, Hospital, 2007 ..............................................................172 Tabela 32– Proporção de médicos que acredita que a formação atual na área de obstetrícia influencia na taxa de cesárea do município de São Paulo, Hospital, 2007 ..................................................................................................................173 Tabela 33– Opinião dos médicos sobre a relação entre uso de fórcipe no parto vaginal e taxa de cesárea, Hospital, 2007.........................................................173 Tabela 34– Opinião dos médicos sobre a importância das questões culturais relativas à sexualidade feminina na escolha do tipo de parto, Hospital, 2007...174 Tabela 35 – Tipo de parto preferido pelas médicas obstetras caso estivessem grávidas.............................................................................................................174 Tabela 36 – Tipo de parto realizados em médicas e esposas de médicos, Hospital, 2007 ..................................................................................................................175 Tabela 37 – Tipo de parto realizados nas paciente segundo tipo de parto realizado em médicas e esposas de médicos (n=76), Hospital, 2007 .............................175 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ACOG - American College of Obstetrics and Gynecology AMB - Associação Médica Brasileira ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar CDC - Centers for Disease Control and Prevention CEINFO - Coordenação de Epidemiologia e Informação da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo CEP - Comitê de Ética em Pesquisa CFM - Conselho Federal de Medicina CID - Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde COFEN - Conselho Federal de Enfermagem CREMESP - Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo DATASUS - Departamento de Informação e Informática do SUS ELAC - Estudo Latino-Americano de Cesáreas EUA - Estados Unidos da América FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo FIGO - Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia gl - Graus de Liberdade IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IC 95% - Intervalo de 95% de Confiança IDB - Indicadores e Dados Básicos ILH - Índice de Letalidade Hospitalar INPS - Instituto Nacional de Previdência Social MS - Ministério da Saúde NIH - National Institute of Health OECD - Organisation for Economic Co-operation and Development OMS - Organização Mundial da Saúde ONU - Organização das Nações Unidas OSS - Organização Social de Saúde PAISM - Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher PHPN - Programa de Humanização no Pré-Natal e no Nascimento PMI - Programa Materno-Infantil PNHAH - Programa Nacional de Humanização na Assistência Hospitalar RIPSA - Rede Interagencial de Informações para a Saúde SEADE - Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados SES - Secretaria de Estado da Saúde SINASC - Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos SM - Salário Mínimo SUS - Sistema Único de Saúde TCLE - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido WHO - World Health Organisation SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO – A MAGNITUDE DA QUESTÃO DA CESÁREA ..........................16 2 OBJETIVOS DA TESE ...........................................................................................24 2.1 Pergunta Principal ............................................................................................24 2.2 Premissa ..........................................................................................................24 2.3 Objetivos ..........................................................................................................24 3 DESENVOLVIMENTO DO REFERENCIAL TEÓRICO..........................................26 3.1 Evolução e História da Obstetrícia, do Parto e da Cesárea .............................26 3.2 Dogmas e Recomendações Universais sobre as Taxas de Cesárea...............33 3.3 Taxas Ideais de Cesárea existem? ..................................................................37 3.4 Cenário Mundial da Organização da Assistência ao Parto...............................40 3.4.1 Cesárea a Pedido ou Por Solicitação Materna...........................................42 3.4.2 Modelos Assistenciais ................................................................................44 3.4.3 Fatores Associados ao Médico Influenciando a Decisão do Tipo de Parto 61 3.5 Cenário da Organização da Assistência ao Parto no Brasil .............................65 3.5.1 Histórico da Saúde da Mulher no Brasil .....................................................65 3.5.2 Sistemas de Saúde do Brasil .....................................................................70 3.5.3 Taxas de Cesárea no Brasil - Evolução, Diferenças Regionais, Locais e entre os Sistemas de Saúde ...............................................................................74 3.5.4 Ações Governamentais e Não Governamentais para Reduzir as Taxas de Cesárea...............................................................................................................79 3.5.5 A Organização do Trabalho na Assistência ao Parto .................................82 3.5.6 Fatores Associados a Decisão do Parto Cesáreo no Brasil .....................107 4 METODOLOGIA...................................................................................................119 4.1 Área de Interesse ...........................................................................................119 4.2 Referencial Teórico ........................................................................................119 4.3 Tipo de Pesquisa............................................................................................120 4.4 Etapas da Investigação ..................................................................................121 4.4.1 Seleção de Variáveis e Construção do Instrumento de Pesquisa ............121 4.4.2 Trabalho de Campo..................................................................................123 4.4.3 Compilação dos Dados ............................................................................128 4.4.4 Tratamento Estatístico dos Dados............................................................128 4.4.5 Problemas Metodológicos Encontrados e Limitações do Estudo .............129 5 RESULTADOS E DISCUSSÃO............................................................................130 5.1 Aspectos Relacionados à Pesquisa de Campo..............................................130 5.2 Resultados das Entrevistas com as Pacientes e Discussão ..........................133 5.3 Resultados das Entrevistas com os Médicos e Discussão.............................162 6 CONCLUSÕES ....................................................................................................178 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................183 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................185 ANEXOS ...............................................................................................................................213 16 1 INTRODUÇÃO – A MAGNITUDE DA QUESTÃO DA CESÁREA Gravidez e parto são eventos marcantes na vida das mulheres e de suas famílias. Embora o parto seja reconhecido como um fenômeno de natureza fisiológica, em nenhuma sociedade ele é tratado apenas sob este prisma. Pelo contrario, ele é visto como um evento bio-psico-social, cercado de valores culturais, sociais, emocionais e afetivos (DOMINGUES; SANTOS; LEAL, 2004). Ao longo das últimas duas décadas, tem havido debates sobre a assistência ao parto. Diversas análises realizadas, que tentam retratar a complexidade dos fatores que cercam o parto e sua assistência, têm suscitado uma série de questionamentos, envolvendo desde a qualidade da atenção obstétrica até a construção do significado da experiência do nascimento para as mulheres (BARBOSA et al., 2003). Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o objetivo da assistência ao parto é obter como resultado mulheres e recém-nascidos sadios, com o mínimo de intervenções médicas, compatível com a segurança de ambos (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2005). Dessa maneira, independentemente de ocorrer por parto vaginal ou por cesárea, essa entidade orienta que o profissional de saúde deve intervir somente quando necessário. Apesar dessa orientação, observa-se crescente incidência do parto cesáreo em diversos países, sendo, por isso, motivo de análise em muitos estudos internacionais e nacionais. Cesáreas são intervenções cirúrgicas originalmente concebidas para reduzir o risco de complicações maternas e/ou fetais durante a gravidez e o trabalho de parto. Por sua vez, essas intervenções não são isentas de risco (REZENDE, 1969). A evolução da operação cesariana pode ser considerada um destaque entre os avanços obtidos na qualidade da assistência obstétrica por meio da ciência e da tecnologia nesse campo do conhecimento. De um procedimento antes só realizado em mulheres mortas, para salvar a vida do feto, passou a proporcionar segurança à vida, salvando a gestante e seu filho em algumas situações de maior complexidade (CASTRO; CLAPIS, 2005). Essa evolução, ocorrida ao longo do século XX, época em que os 17 inúmeros avanços da medicina transformaram a cesariana numa alternativa segura ao parto vaginal quando há possibilidade de problema para a mulher ou para o feto, tornou necessário ou, pelo menos conveniente, que o parto deixasse o âmbito domiciliar e adentrasse o hospital. Entretanto, desde a década de 70, as indicações de cesariana vêm crescendo indiscriminadamente. Esta cirurgia tem sido utilizada de forma considerada abusiva em vários países (FAÚNDES; CECCATTI, 1991; KORST; GORNBEIN; GREGOTY, 2005). No período de vinte anos compreendido entre 1970 e 1990, o grande aumento das taxas de cesariana em todo o mundo se tornou foco de discussão, chamando a atenção para riscos da morbimortalidade materna e perinatal e para custos associados com esse procedimento (SHEARER, 1983; WAGNER, 2000; ENGLAND DEPARTMENT OF HEALTH, 2001; BOST, 2003). Se para algumas mulheres há excesso de intervenções, observam-se, em outras situações, dificuldades de acesso à serviços de saúde de qualidade, levando à mortes que poderiam ter sido evitadas com a realização de procedimentos adequados. Em algumas regiões da África estima-se que uma a cada 12 mulheres morre por causas obstétricas, possivelmente por restrição de acesso à assistência médico hospitalar (OKONOFUA, 2001). As taxas de cesárea no mundo, e em especial no Brasil, têm sido motivo de muito debate nos últimos anos. Este assunto tem se mostrado relevante em muitas análises, com foco em saúde pública e em fatores econômicos, porém sem que se verificasse consenso entre os teóricos dos diversos campos do conhecimento. Os estudos que abordam este tema, em geral, não consideram de modo articulado os diversos aspectos relacionados com o aumento dessas taxas, ocorrido desde os anos de 1970. Portanto, apresentam resultados divergentes sobre as possíveis complicações para a saúde, sobre os fatores que motivam este procedimento e sobre a análise de custos relacionados às diferentes formas de parto. Verifica-se a existência de trabalhos avaliando práticas obstétricas e abordagens sobre a autonomia e a satisfação das mulheres durante a assistência à gestação e ao parto, realizados em contextos sócio-culturais e assistenciais diversos do brasileiro, 18 dificultando a extrapolação de seus resultados para a nossa realidade (DOMINGUES; SANTOS; LEAL, 2004). Temas relacionados à maternidade têm extrema relevância no Brasil, onde a principal causa de internação hospitalar, nas redes pública e privada, refere-se aos diagnósticos inclusos na denominação Gravidez-Parto-Puerpério, do Código Internacional de Doenças (CID). O Brasil tem apresentado elevadas taxas de cesárea, ainda crescentes no decorrer dos anos: 38,89 em 2000, 39,3 em 2001, 39,71% em 2002, 41,02 em 2003, 42,72 em 2004, e finalmente 43,2% em 2005, último dado disponível (DATASUS, acesso em: 05/01/2008). Vigora no Brasil um modelo de atenção ao parto definido como evento médico ou tecnológico: a gestante é tratada como paciente, os nascimentos são, em sua maioria, hospitalares e o médico é o profissional responsável pela sua execução (DOMINGUES; SANTOS; LEAL, 2004). Esse modelo tem sido comparado com o de outros países, principalmente aqueles com baixas taxas de cesárea, como Holanda, onde grande parte dos partos é realizada por parteiras. No Brasil, há mais de cem anos, a primeira parteira diplomada do país, Maria Josefina Matilde Durocher, publicou um trabalho de grande repercussão intitulado “Deve ou não haver parteiras?”. Esta pergunta mantém sua atualidade, apesar das transformações ocorridas no sistema de saúde e na assistência obstétrica no século XX. Atualmente, quase um quarto dos nascimentos do Brasil ocorre nos serviços hospitalares privados, sendo que as taxas de cesárea no sistema da saúde privado atingem cifras ao redor de 80% (ANS, acessado em 25 de março de 2007). Não obstante o movimento denominado “humanização da assistência ao parto e ao nascimento”, endossado inclusive pelo Ministério da Saúde (DOMINGUES; SANTOS; LEAL, 2004), observam-se, recentemente, críticas ao modelo assistencial obstétrico brasileiro, tanto em trabalhos científicos como em instrumentos de comunicação de massa. O “Wall Street Journal” publicou, em 2001, reportagem ressaltando a popularidade da cesárea como cirurgia rotineira entre as mulheres brasileiras, ocorrendo em 80 a 90% dos partos em hospitais privados (JORDAN, 2001) O autor ressaltou a cultura enraizada na população, num país em que se 19 interrompe a programação da televisão para anunciar o nascimento da filha de uma celebridade nacional – Xuxa - por meio de uma cesariana. Em uma revista nacional de fácil acesso à população, especialmente mulheres grávidas, publicou-se um artigo em março de 2004 sobre o medo das mulheres brasileiras em ter parto vaginal. Em “Você tem medo de quê?“, título dessa publicação, há comparação entre os índices de cesárea de nosso país e de outros, como Estados Unidos, Canadá, Inglaterra e Holanda, que apresentam, além de diferentes taxas desse procedimento, modelos de assistência obstétrica também diversos do nosso (KANAREK, 2004). A revista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) de junho de 2006 publicou artigo intitulado “Escolha Errada”, cujo enfoque é a cesariana a pedido. Nesse artigo, relata-se a “cultura nacional da cesárea, onde as mães acreditam ser esse o tipo de parto mais seguro para a criança”, enfatizando a necessidade de implantar mecanismos para informar adequadamente as mulheres sobre os riscos e benefícios desse procedimento (ZORZETTO, 2006). A Folha de São Paulo trouxe diversas vezes reportagens sobre a questão das cesáreas. Em janeiro e em setembro de 2006, esse jornal reforça o Brasil como recordista mundial de cesáreas na rede privada de saúde, destacando em sua manchete: “Fisioterapeuta não acha quem faça parto natural” (COLLUCCI, 2006). Mais recentemente, ainda para a comunidade leiga brasileira, a revista “Pais e Filhos”, de março de 2007, publica reportagem incentivando as mulheres a contratar serviços de uma “doula”1, pessoa que oferece apoio emocional e físico às gestantes durante o trabalho de parto, referindo que, com isso, teríamos 50% a menos de cesárea (TREVIZAN, 2007). Aspectos relacionados à presença de “doulas” em maternidades, aos partos domiciliares, à instalação de Casas de Parto e à execução de partos sem a presença de médicos têm causado muitas discussões entre as entidades de profissionais da saúde. O Conselho Federal de Medicina busca a regulamentação da profissão 1 O termo “doula” tem sido usado para denominar pessoas, em geral do sexo feminino, que acompanham a gestante durante o seu período gestacional e durante o trabalho de parto, incentivando o parto natural. 20 médica e a definição de quais procedimentos são exclusivos do exercício da Medicina, denominados Atos Médicos. Estão incluídos nesse rol a assistência ao trabalho de parto e ao parto, que devem ser, portanto, executados ou supervisionados por esses profissionais (JORNAL DA FEBRASGO, 2002). Reforçando o posicionamento das entidades médicas sobre a questão ato médico e parto, há opiniões de representantes institucionais, como o Presidente da Associação Médica Brasileira, Dr. José Luiz Gomes do Amaral, que relatou: “Não conheço nenhuma enfermeira desse país que tendo a possibilidade de ser assistida por equipe multiprofissional, (...), deixe de fazê-lo, ainda que em gravidez de baixo risco, para ser assistida numa Casa de Parto.” Ainda, na mesma reportagem, a Sra. Marília Barbosa, Presidente da Unidas, entidade que congrega em nível nacional as operadoras de auto-gestão em saúde, declarou: “Como administradora de um programa de saúde, não credenciaria qualquer prestador de serviço que não tivesse médico para atender meus pacientes. Principalmente no momento do parto…” (JORNAL DO CFM, jul. 2006). Há, portanto, no Brasil, movimentações a favor de e contrárias à presença do médico na assistência obstétrica, à realização do parto em ambiente hospitalar e à realização de cesáreas. Para buscar um consenso entre os diferentes interessados no assunto, o Ministério Público Federal Regional São Paulo convocou, em 26 de setembro de 2007, uma Audiência Pública. Foi um encontro de entidades representativas das sociedades médica e civil, envolvendo dirigentes de hospitais privados e públicos e de entidades de classe (CREMESP, COFEN, Federação Nacional dos Hospitais, entre outros), representantes do Ministério da Saúde, da Agência Nacional de Saúde Suplementar, Organizações Não Governamentais e cidadãos interessados no tema tipo de parto. A audiência decorreu do ingresso de uma ação civil pública no Ministério Público Federal, movida por pessoas pertencentes a Organizações Não Governamentais favoráveis ao parto natural, como a entidade “Parto do Princípio”, liderada por doulas que trabalham nesse mercado assistencial. Nessa ação, invocam-se como motivadores dos elevados índices de cesárea a participação dos médicos e a falta de regulamentação e fiscalização da ANS sobre o modelo de atendimento ao parto no setor de saúde suplementar. 21 Taxas diferentes de cesárea em pacientes de serviços públicos e privados no Brasil e em outros países sugerem que fatores não relacionados às indicações clínicas ou obstétricas, como ganhos econômicos e pressões da prática médica privada, motivariam médicos a executar partos cirúrgicos. Para Lee et al. (2005), pesquisas envolvendo o modo de nascimento e suas correlações, bem como o entendimento dos fatores que afetam a incidência de cesárea, poderiam auxiliar na identificação das características maternas e dos provedores de cuidados de saúde que demandam esse procedimento, para que políticas públicas possam ter maior efetividade em suas ações. Para Berguella et al. (2005), a elevação da incidência do parto cesáreo decorre de motivos médicos clínicos como o aumento da incidência das gestações múltiplas, a redução dos partos vaginais em mulheres com cesárea anterior ou em partos de apresentação pélvica (situação em que o feto se posiciona com as nádegas mais próximas da pelve materna do que a cabeça) e, mais recentemente, motivos não médicos, como a solicitação de realização de cesáreas pelas mulheres, que percebem nesse procedimento menor número de complicações. Ainda nessa última categoria de motivação para a execução da cesárea, outros autores indicam o aumento do uso de tecnologias para o parto, medo de litígio em ações judiciais por má prática médica, incentivos financeiros, preferências dos médicos e formação médica (GAMBLE; HEALTH; CREEDY, 2000). Há, em nosso país, trabalhos que agrupam os fatores que influenciam a opção por um parto cesáreo (BARBOSA et al., 2003) em: • Organização da atenção obstétrica, pautada pela conveniência de uma intervenção programada e pela insegurança do médico frente à gama de variações que ocorrem durante o desenrolar de um parto vaginal, decorrente de treinamento insuficiente; • Fatores institucionais ligados à forma de pagamento para equipe médica e hospitais e à exclusão de pagamento para anestesia para partos vaginais pelo Sistema Único de Saúde (SUS), situação revista pelo Ministério da Saúde (MS) em 1998, mas não modificada em todos os hospitais; • Esterilização cirúrgica, realizada freqüentemente durante as cesáreas eletivas; • Fatores sócio-culturais, como medo da dor, medo de lesões anatômicas e fisiológicas da vagina e crença de que o parto vaginal é mais arriscado, que 22 levariam à preferência, por parte das mulheres e de profissionais de saúde, por parto cirúrgico. Como mulheres e obstetras concluem que os riscos para tentar um parto vaginal são tão elevados? Porque algumas mulheres buscam a medicalização do parto? (BÉHAGUE; VICTORA; BARROS, 2002). Para Hotimsky et al. (2002), os discursos feministas de direitos da mulher à escolha, visando a melhoria da qualidade da assistência e a construção da cidadania, vêm sendo apropriados para justificar a “cesárea a pedido”, porém a aparente liberdade de escolha vem acompanhada de assimetria de informações. Para Massoneto e Porto (1998) a argumentação para realização da cesariana, no sistema privado brasileiro, baseada em má remuneração por parte dos convênios médicos, falta de tempo para acompanhar o trabalho de parto e “segurança” do parto previsto, com hora marcada, sem transtornos para o médico e para a gestante, deve passar por uma reflexão profunda e por uma mudança, no sentido de uma assistência ao parto mais ativa e moderna, com maior segurança para a gestante, seu filho e o obstetra. A polêmica questão da cesariana ronda todos os meios, inclusive as academias de Medicina e Obstetrícia. Na seção Debate da Revista Ser Médico do CREMESP, em setembro de 2004 (CESÁREA A PEDIDO, 2004) os dois Professores Titulares de Obstetrícia de duas das mais respeitadas universidades do país debateram sobre o tema “Cesárea a Pedido: Aceitar ou Não”. Refere-se o tema à realização da cesárea na ausência de indicação médica, de forma eletiva e por desejo da paciente. O Professor Doutor Marcelo Zugaib, da Universidade de São Paulo, declarou: “Os tempos são outros e as pessoas que defendem a via de parto vaginal se valem de estatísticas ultrapassadas”, referindo-se a trabalhos com metodologia enviesada e conclusões questionáveis sobre os resultados na saúde materna e neonatal. Segundo o Professor Doutor Luiz Camano, da Universidade Federal de São Paulo Escola Paulista de Medicina, não há consenso sobre o tema e “a Universidade tem a obrigação de responder a perguntas sobre as vantagens e desvantagens da cesárea a pedido”. Cada vez mais tem sido preconizada a necessidade de identificação de fatores associados ao parto cesáreo para a formulação de políticas com vistas a reduzir as 23 elevadas taxas presentes em vários países (VAN ROSSMALEN, 1995). Essa preocupação tem se tornado relevante a ponto de, em 2002, o editor-chefe da revista Obstetrics and Gynecology fazer a seguinte declaração: o uso aparentemente excessivo da cesárea em quase todos os países do mundo tem gerado um estado de ‘estarmos em uma era dedicada a reduzir as taxas de cesárea’ (SCOTT, 2002, p.967, tradução nossa). Essa conclusão, vinda de um formador de opinião no meio médico obstétrico, reforça a relevância mundial do tema. Em nosso país, ao observarmos grande disparidade regional na realização dessa cirurgia (Norte e Nordeste apresentaram em 2005 taxas de cesárea na ordem de 32,35% e 31,98% respectivamente, enquanto Centro-Oeste, Sudeste e Sul realizaram 49,35%, 50,46% e 48,22% desse procedimento (DATASUS, acessado em 05/01/2008)), devemos refletir sobre como compreender esta diversidade. Em função de todas essas observações, entendemos relevante e necessária a análise das taxas de cesárea nos serviços privados do município de São Paulo, em torno de 90%, certamente as maiores do mundo, suscitando profundas reflexões sobre essa prática. 24 2 OBJETIVOS DA TESE Área de interesse da tese – As taxas de cesárea em serviços hospitalares privados do município de São Paulo. 2.1 Pergunta Principal Considerando-se as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO) e as taxas de cesárea no SUS, em torno de 27%, por que as taxas de cesárea atingem 90% na assistência médica suplementar do município de São Paulo? 2.2 Premissa A premissa da qual partimos é que as taxas de cesárea dos serviços hospitalares privados do município de São Paulo estão relacionadas à forma de organização da prática obstétrica, com enfoque no modelo de assistência ao parto desenvolvido na medicina suplementar e envolvendo fatores sociais, culturais, econômicos e jurídicos das gestantes e dos médicos. 2.3 Objetivos Objetivo Geral: Identificar os fatores associados à decisão pelo tipo de parto, levando as taxas de cesárea a atingirem 90% na assistência médica suplementar do município de São Paulo. 25 Objetivos Específicos: • Identificar a percepção de pacientes e médicos sobre este fenômeno; • Identificar, sob o ponto de vista das gestantes, os fatores associados que determinam a escolha do tipo de parto; • Analisar, pela percepção do médico, os motivos que determinam o desejo das gestantes em relação ao tipo de parto; • Analisar o desejo das gestantes em relação ao tipo de parto durante o pré-natal e sua realização após o parto; • Analisar a satisfação das gestantes em relação ao tipo de parto realizado; • Analisar o grau de participação das gestantes na decisão do tipo de parto; • Analisar o grau de concordância das pacientes em realizar o parto com um profissional diferente daquele que fez seu pré-natal; • Analisar os fatores que influenciam os médicos na decisão pelo tipo de parto; • Identificar o grau de aceitação dos médicos a uma solicitação de cesárea pela paciente; • Analisar o tipo de parto desejado pelas médicas em caso de uma gestação sem complicações; • Analisar o tipo de parto realizado nas médicas e nas esposas dos médicos entrevistados e comparar essa incidência àquela da amostra de pacientes desse estudo. 26 3 DESENVOLVIMENTO DO REFERENCIAL TEÓRICO Neste capítulo, abordam-se os temas de relevância para o presente trabalho, fornecendo embasamento teórico para fundamentar a pesquisa empírica, a análise dos dados do trabalho de campo e o desenvolvimento da discussão baseada nos resultados obtidos. Procurou-se estabelecer uma contextualização do assunto em estudo utilizando literatura brasileira e internacional, sem a pretensão de cobrir todos os temas exaustivamente. 3.1 Evolução e História da Obstetrícia, do Parto e da Cesárea O vocábulo obstetrícia foi usado pela primeira vez em 1812 por Osiander, da Universidade de Gottingen. Vem do verbo latino obstare que significa “estar ao lado”, prática comum e necessária da parteira que, ao assistir à parturiente, permanecia literalmente ao seu lado para auxiliá-la. (DELASCIO; GUARIENTO, 1987). Como sinônimo temos a tocologia, do grego tocos – parto, logos – tratado. Cesárea, parto cesáreo, cesariana, talho cesáreo ou tomotócia é o ato cirúrgico que consiste em incisar o abdome e o útero para libertar o concepto aí desenvolvido (REZENDE, 1969). Em todos os mamíferos quadrúpedes, o parto se realiza com o novo ser nascendo inicialmente pelas nádegas e por último desprendendo-se a cabeça, denominado parto em apresentação pélvica. Há cerca de 5 milhões de anos, o ser humano passa a ter postura ereta, tornando-se bípede, com decorrente modificação na pelve (bacia) feminina e alteração no mecanismo de nascimento de sua prole. Essa mudança levou à inversão na ordem das primeiras estruturas a nascer: o parto passou a ocorrer inicialmente pela cabeça e depois pelas nádegas, tornando o processo de nascimento mais difícil no homem que nos demais mamíferos (SILVA, 2007). 27 A mulher, a partir dessa postura bípede, sempre buscou instintivamente posições verticalizadas na hora do parto, ilustradas em hieróglifos egípcios e esculturas da Antiguidade. Engelmann2 (1882 apud SILVA et al., 2007), famoso historiador do século XIX, descreveu as técnicas e práticas utilizadas com ênfase nas diversas movimentações e posições de mulheres primitivas na hora de parir, ressaltando a preferência da parturiente por posições diversas da horizontal. Este autor defendia a idéia de que, quanto mais primitivos fossem os povos, maior facilidade teriam durante a parturição, em decorrência da maior atividade física das mulheres reforçando as estruturas musculares e da menor miscigenação de raças, propiciando a formação de casais por pessoas do mesmo grupo, gerando fetos proporcionais à bacia da mulher. O temor e a apreensão em relação ao parto existiam, para esse autor, apenas entre as mulheres “civilizadas”, para quem o sedentarismo provocado pelo seu estilo de vida tornaria esse momento mais doloroso, demorado e difícil. Historicamente, a assistência ao parto foi exercida por parteiras, mulheres de confiança da gestante ou de experiência reconhecida pela comunidade, preferidas por razões psicológicas, humanitárias e devido ao tabu de mostrar os genitais a homens. Até o século XVI, o atendimento ao nascimento era atividade desvalorizada e, portanto, poderia ser deixado aos cuidados dessas mulheres, pois não estava à altura do cirurgião – o homem da arte (NAGAHAMA; SANTIAGO, 2005). Hipócrates, pai da Medicina (460 aC), doutrinava que a conduta obstétrica era confiar na parteira, salvo em caso de complicações. Assim, durante muitos séculos, a obstetrícia permaneceu nas mãos dessas mulheres, sendo o médico chamado apenas em casos graves, onde o óbito materno ou fetal era quase inevitável. Com isso, as parturientes evitavam o médico e este, sem a observação direta dos partos, não tinham como melhorar a técnica obstétrica (DELASCIO; GUARIENTO, 1987). O processo de horizontalização do parto se processou simultaneamente à medicalização do nascimento, com o aparecimento dos cirurgiões obstétricos. Foi sob a influência da escola francesa, liderada por François Mauriceau, no século XVII, que o parto horizontal foi introduzido. Mauriceau, com grande influência na corte 2 ENGELMANN, G.L. Labor among primitive peoples. JH Chambers: St. Louis, 1882. 28 francesa de Luis XIV, ao assistir o parto da rainha, o fez numa cama de parto, para que o rei também pudesse assistir (SILVA, 2007). Assim, com o progresso da obstetrícia, as ajudantes, parentes e amigas, mulheres que auxiliavam a mulher durante a parturição, foram substituídas por médicos que, com o auxílio da cadeira obstétrica, inauguraram uma nova forma de partejar (ENGELMANN2 ,1882 apud SILVA et al., 2007). Esse tipo especial de cadeira, utilizada para ajudar o parto mantendo a parturiente na posição semi-sentada, um dos primeiros símbolos da medicalização da assistência ao parto, foi idealizada na Grécia Antiga, caindo no esquecimento nos primeiros séculos da era cristã. Seu uso retornou à Europa do século XVII ao XIX, quando a posição de decúbito dorsal (com a mulher deitada na cama) passou a ser adotada naquele continente. A posição horizontal e o uso do fórcipe, instrumento criado por Chamberlein no século XVII, facilitavam as intervenções médicas, marginalizando o saber empírico e a prática das parteiras a partir do século XVIII (SILVA, 2007). Com isso, a profissão da parteira sofre declínio e a obstetrícia passa a ser aceita como uma disciplina técnica, científica e dominada por homens. Portanto, o uso do fórcipe permitiu a intervenção masculina e a substituição do paradigma não intervencionista pela idéia do parto como um ato controlado pelo homem. Paralelamente, a Igreja e o Estado regulamentam a prática, exigindo que as parteiras chamassem cirurgiões para auxiliá-las, centralizando o saber acerca da cura das doenças nas Universidades, criadas durante o Renascimento (NAGAHAMA; SANTIAGO, 2005). Com o capitalismo industrial, consolida-se a prática da assistência ao parto exercida pelo médico. O discurso médico relativo à obstetrícia no século XIX caracterizou-se pela defesa da hospitalização do parto e pela criação de maternidades, onde o nascimento deixou de ser evento privado, íntimo e feminino, passando a ser vivido de maneira pública, com interferência de outros atores sociais (NAGAHAMA; SANTIAGO, 2005). Em 1920, De Lee3 (1920 apud SILVA et al., 2007), reforçando a preponderância médica na assistência à parturiente, postulou que “os partos em primíparas (mulheres que nunca tiveram partos) deveriam ser realizados por um especialista 3 DE LEE, J.B. The prophylactic forceps operation. American Journal of Obstetrics and Gynecology, 1920, n. 1, p. 34-44. 29 em obstetrícia sob o sono crepuscular da anestesia geral, com o auxílio de um fórcipe eletivo e episiotomia” (corte cirúrgico na musculatura da vagina e vulva realizado no momento do nascimento). Para Delascio e Guariento (1987, p.1), “o atraso em que ficou a especialidade da obstetrícia é justificado pelo fato de haver sido exercida, durante cerca de dois milênios, por profissionais incultas, embora inteligentes e devotadas”, já que somente a partir do início do século XIX admitiam-se médicos na Maternidade de Paris. No século XX presenciamos a evolução da medicina e das noções de assepsia e controle de infecções, compreendendo-se melhor a importância médico-social da obstetrícia. “Ao obstetra, permanece a tarefa de assegurar a vida materna e a do recém-nascido, utilizando, para isso, seus conhecimentos médicos e praticando, quando necessário, o parto cesáreo” (DELASCIO; GUARIENTO, 1987, p.1). Historicamente, observamos que este procedimento cirúrgico teve, em diferentes épocas, motivos diversos para sua execução. Na Idade Antiga, a indicação para realização do “talho cesáreo” seria somente na mulher morta em estado de gravidez. Um texto de Hamurabi da Babilônia (1795-1750 aC) parece ser a mais antiga evidência documentada de uma cesárea, realizada em uma grávida após sua morte (JARCHO4, 1934, apud SILVA, et al. 2007). Na mitologia, o parto cesáreo relacionava-se a uma glorificação onde, se o recém-nascido sobrevivesse, o destino teria uma intenção para esta pessoa (LURIE, 2005). A primeira referência jurídica sobre a cesárea baseia-se numa lei romana. Trata-se da Lex Regia, a lei dos reis, anunciada por Numa Pompílio, antigo rei de Roma (716673 aC). Esta lei ordenava a abertura do ventre de mulheres mortas em estado de gravidez, com a intenção de salvar seu filho ou de enterrá-los separadamente (REZENDE, 1969, p. 952; LURIE, 2005). 4 JARCHO, J. Postures and practices during labor among primitive peoples. New York: Paul Hoeber, 1934. 30 Apesar de ser um procedimento antigo, a denominação de cesárea ou cesariana é controversa. Alguns a atribuem a Plinius, associando-a ao nome do imperador Júlio César, que teria assim nascido. Porém, como sua mãe Aurélia permaneceu viva após seu nascimento, possivelmente esse imperador não nasceu por cesariana colocando em dúvida essa associação de nomes (REZENDE, 1969, p.953). Outros atribuem essa denominação ao jesuíta Teófilo Raynaudus, no século XVII, derivando do latim sectio caesarea, cujo significado seria cortar (REZENDE, 1969, p 954). Na Idade Média, a Igreja Católica manteve a determinação da Lex Regia, já na época chamada Lex Caesarea, adotando-a como recurso para que, em casos de mulheres grávidas moribundas ou mortas, membros do clero tivessem autorização para realizar a cesárea a fim de batizar o nascituro, salvando-lhe a alma (LURIE, 2005). Houve, na época, questionamentos sobre a necessidade de apressar a morte de mulheres grávidas para praticar nelas o parto cesáreo. São Tomás de Aquino (1225-1274 dC) posicionou-se contrário a esta medida, ressaltando que a mulher não deveria ser morta com o objetivo de batizar a criança (LURIE, 2005). Portanto, no período medieval, a cesárea não era um ato médico, mas um evento culturalreligioso com a finalidade de salvar o feto e, se possível, batizá-lo. O objetivo para realizar essa operação se modificou radicalmente no Renascimento e na Idade Moderna. Em 1500, na Suíça, um castrador de porcos chamado Jacques Nuffer, desesperado com a ineficácia da assistência prestada por muitas parteiras à sua mulher, que estava há vários dias em trabalho de parto, resolveu agir. Após licença prévia das autoridades locais e utilizando instrumentos de seu ofício, realiza a primeira cesariana da história na qual a mulher e o recém nascido sobreviveram à cirurgia. Além de sobreviver, sua mulher engravidou outras seis vezes, tendo filhos por partos normais (REZENDE, 1969, p.955). Após essa ocorrência e com a publicação da primeira obra científica que descreve a cesárea, por Francis Rousset em 1581, a história desse procedimento tomou outro rumo, passando a ser usado para salvar a mulher em dificuldades para parir. Assim, no Renascimento e na Idade Moderna, o parto cesáreo emerge como um procedimento médico. 31 Chega-se ao século XX com a assistência obstétrica assistida por médicos, dividida entre cesáreas executadas em ambiente hospitalar e partos vaginais domiciliares, realizados sob anestesia geral, com o intuito de “apagar” as experiências dolorosas das mulheres das elites sociais da Europa e Estados Unidos (parto sob o sono crepuscular ou “twilight sleep”). O modelo de assistência acima descrito, de sedação completa associada ao parto instrumental, com freqüência realizado em ambiente domiciliar e iniciado em 1910, foi abandonado após várias décadas, devido à elevada morbimortalidade materna e perinatal (DINIZ, 2005). Inicialmente restrito às elites e às indigentes que acorriam às maternidades-escola, o modelo hospitalar se expandiu como padrão da assistência nas áreas urbanas. Na metade do século XX, o processo de hospitalização do parto estava instalado em muitos países. Segundo Diniz (2005), mesmo sem que tivesse havido qualquer evidência científica consistente de que fosse mais seguro que o parto domiciliar ou em casas de parto, em alguns países a obstetrícia não-médica, leiga ou “culta”, tornou-se ilegal, assim como o parto não-hospitalizado. Nesse século, a medicina caminhou a passos largos e as indicações de cesariana baseavam-se em motivos médicos relacionados a problemas com a mãe, o feto ou o trabalho de parto. Melhorias nas técnicas cirúrgicas, medidas de prevenção contra infecção e transfusões sanguíneas permitiram indicar o procedimento também para a satisfação dos anseios da mãe e/ou da família (LURIE; GLEZERMAN, 2003; LURIE, 2005). Esses avanços, desenvolvidos principalmente na segunda metade do século XX, trouxeram modificações no cenário mundial, com grande elevação das taxas de cesárea em países desenvolvidos e em desenvolvimento. A obstetrícia “arte”, conhecida pelas manobras e intervenções ousadas, potencialmente traumáticas para a mãe e para o feto, transforma-se na obstetrícia “ciência”, baseada nos conhecimentos e na tecnologia recém desenvolvidos (CAMANO et al., 2001). Para MINKOFF (2006), a era do “parto vaginal heróico” chega ao seu final. No Brasil, a primeira cesárea foi realizada em 1822 por José Correa Picanço, o Barão de Goiana. Alguns anos antes, em 1809, o português Joaquim da Rocha Mazarén, vindo com a corte de D. João VI, foi o primeiro “professor de Partos” da Escola Médico-Cirúrgica do Rio de Janeiro (BRENES, 1991). Porém somente após 32 os trabalhos de Fernando de Magalhães em 1915 esse procedimento passou a ter maior relevância no país (REZENDE, 1969, p.965). Esse professor do início do século XX foi criticado na época pelo lançamento de uma “profecia”, que dizia que o parto do futuro seria natural ou cesáreo, ressaltando que “a natureza não podendo seguir seu destino, a arte traçará seu rumo”, por meio da operação cesariana, prevendo assim que os partos vaginais cirúrgicos, como o fórcipe, deixariam de ocorrer (BELFORT, 2000). O balanço entre os benefícios e os riscos associados aos resultados do parto cesáreo mudou dramaticamente durante o século XX. Com o advento de antibióticos eficazes, bancos de sangue, avanços na anestesia e outras tecnologias, as restrições para essa e outras cirurgias foram drasticamente reduzidas. Para Rezende (1969), a cesárea atingiu na segunda metade do século XX o ápice de seu aperfeiçoamento técnico, onde os riscos da intervenção se amenizam dia a dia, manifestos em resultados que se igualam ou superam os de qualquer outra grande cirurgia. O mesmo autor referiu em 2002 que a ciência obstétrica pode ser considerada um dos ganhos da civilização moderna, sendo responsável por importantes reduções na mortalidade materna e neonatal. Essa segurança proporcionada à cesárea permitiu o aumento da sua utilização nos últimos anos (REZENDE, 2002). A partir do entendimento de que a gravidez fosse um processo fisiológico na vida normal das mulheres, passamos para definições feitas por Mauriceau no século XVII, inalteradas nos séculos seguintes, sobre os riscos e a necessidade de o parto ser feito por médicos. Magalhães5 (1917, apud REZENDE, 1969) manteve a percepção patológica do nascimento, reforçando que o papel do médico seria de amparar e proteger a gestante para “atingir o seu termo na luta entre o instinto de conservação do indivíduo e o da espécie”. O grande avanço e a incorporação de novas tecnologias na Medicina a partir de 1950 trouxeram questões médicas e éticas a serem debatidas. A preocupação com a elevação progressiva da incidência de cesárea em diversos países do mundo 5 MAGALHÃES, F. Lições de clínica obstétrica. Rio de Janeiro: Castilho, 1917. 33 culminou com a ação de entidades internacionais, no sentido de orientar instituições de saúde e médicos com relação às indicações e riscos do parto operatório. Esses questionamentos, em especial, o direito das mulheres na escolha pelo tipo de parto e os fatores associados à decisão pela cesárea, estão na pauta de discussão no início do século XXI. 3.2 Dogmas e Recomendações Universais sobre as Taxas de Cesárea Na história da Medicina, observam-se determinados conceitos que, em algumas circunstâncias, tornam-se dogmas e se perpetuam por muitos anos, mesmo que haja grande evolução dos conhecimentos médicos. Um exemplo é a recomendação de Craigin, de 1916, para repetir a cesárea sempre que a paciente tiver sido submetida a esse procedimento em gestação anterior. Embora extremamente correta para as condições da época, quando a técnica operatória era diferente da executada nos dias atuais, acarretando maiores riscos para o parto normal após uma cesariana, esta recomendação tem sido questionada em função da evolução da Medicina. Kerr6 em 1926 (KERR, 1926, apud LURIE, 2005) introduziu uma nova técnica operatória para a cesárea, derrubando o postulado de Craigin e propiciando maior segurança a partos vaginais após uma cesariana. Iniciou-se, no final da década de 1970 e inicio da seguinte, uma colaboração internacional para avaliar a assistência ao parto, culminando, em 1985, com a realização de uma “Conferência sobre Tecnologia Apropriada para o Parto” coordenada pela OMS. Esse encontro foi um marco na saúde pública e na defesa de direitos das mulheres, assim como a resultante Carta de Fortaleza (WHO, 1985), texto que teve a capacidade de inspirar muitas ações de mudança. Recomendava a participação das mulheres no desenho e na avaliação dos programas, a liberdade de posições maternas no parto, a presença de acompanhantes, o fim de certas medidas assistenciais durante o trabalho de parto como uso rotineiro da episiotomia e da indução medicamentosa do parto, dentre outras. Argumentava que as menores 6 KERR, J.M.M. The technique of cesarean section, with special reference to the lower uterine segment incision. American Journal of Obstetrics and Gynecology, 1926, n. 12, p. 729-734. 34 taxas de mortalidade perinatal estão nos países que mantêm o índice de cesárea abaixo de 10%, afirmando que nada justifica índices superiores a 10%-15% (WHO, 1985). Publicada na revista médica Lancet, esta recomendação, em que a OMS definiu a taxa ideal de parto cesáreo para o mundo, pode ser criticada em virtude de não diferenciar países e regiões com características culturais e sistemas de saúde diversos. Ela tampouco foi atualizada até 2007, apesar das novas tecnologias disponíveis e de mudanças comportamentais ocorridas no período. A OMS, acompanhando uma tendência mundial de resgatar a qualidade e a humanização da assistência ao nascimento e parto, elaborou em 1996 uma série de recomendações descritas no documento "Care in Normal Birth: A Practical Guide" (OMS, 1996). Segundo esta publicação, o objetivo principal da assistência ao parto normal deve ser o de ter uma mãe e uma criança saudáveis, com o menor nível de intervenção compatível com a segurança e que qualquer intervenção deve estar respaldada por uma razão válida e fundamentada. Neste contexto, o profissional de saúde deve estar preparado para dar apoio à mulher, ao seu parceiro e à sua família durante o trabalho de parto, no momento do nascimento e no pós-parto. Ainda nessa publicação, aborda-se mais de duzentas práticas de assistência perinatal quanto à sua efetividade e segurança, sem menções às taxas ideais de cesárea. Essas recomendações foram adaptadas e publicadas no Brasil pelo Ministério da Saúde, em 2000, sob o título Assistência ao Parto Normal – Um Guia Prático, e enviadas aos ginecologistas-obstetras e enfermeiras obstetrizes do país, com o objetivo de conscientizar os profissionais de saúde a respeito da humanização da assistência ao parto e reduzir as intervenções médicas executadas sem justificativa técnica durante essa assistência (DINIZ, 2005). O Comitê para Aspectos Éticos da Reprodução Humana e Saúde da Mulher da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO), em 1999, declarou não haver evidências científicas favoráveis à realização de cesárea por razões não médicas. Para a FIGO, há grande preocupação das entidades médicas com a elevação das taxas de cesárea por diversos fatores, como temor de médicos por litígios desencadeados contra eles por pacientes, além de aspectos psicológicos e sócio-culturais das gestantes e incentivos financeiros para os médicos (FIGO,1999). 35 Em contraste com a orientação da FIGO, o Colégio Americano de Ginecologia e Obstetrícia (ACOG) recomendou que na ausência de dados significativos sobre os riscos e benefícios do parto cesáreo (....), se o médico acredita que a cesárea promoverá maior saúde e bem-estar à mulher e ao feto do que o parto vaginal, ele estará eticamente justificado em realizar o parto cesáreo (ACOG 2003 p.1105, tradução nossa). Por outro lado, esse órgão orienta o médico a que não realize o procedimento caso não concorde com a solicitação da paciente e não consiga convencê-la do contrário, encaminhando-a a outro profissional (ACOG, 2003). Em outro momento, o ACOG emitiu nova recomendação, aprovando eticamente a realização de cesárea a pedido materno (ACOG 2005). Apesar dessas recomendações da OMS e da FIGO, tem se observado uma ampliação da utilização deste tipo de parto no mundo, e em especial no Brasil, sendo motivo de questionamentos a freqüência com que é praticada, suas repercussões sobre a saúde da mulher e do recém-nascido, o maior consumo de recursos hospitalares e financeiros e a taxa ideal desse procedimento. Da mesma forma que em outros países, houve no Brasil uma elevação importante na incidência de partos cesárea desde 1980. Ao mesmo tempo, observou-se uma virtual universalização da hospitalização na assistência ao parto, passando-se de 95% de parto hospitalar em 1973/1974 para 99% em 1984/1985. Nesse período, houve aumento expressivo na taxa de cesáreas, de 25,3% para 47,8% dos partos. Observa-se, a partir daí, uma estabilização da taxa de cesárea em valores próximos a 50% (RATTNER, 1996). Isso motivou entidades representativas nacionais a recomendar o controle da incidência de cesárea nos hospitais. No Estado de São Paulo, a Secretaria de Estado da Saúde (SES) definiu em 30% o limite de aceitabilidade para taxa de cesárea (GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 1989), limitando a remuneração dos hospitais conveniados ao SUS com taxas acima desse parâmetro. Esta restrição financeira possivelmente acarretou distorção nas informações encaminhadas à SES. Seguindo esse mesmo raciocínio, a Secretaria determina, em seu Contrato de Gestão com as entidades envolvidas em parcerias público-privadas, conhecidas como Organizações Sociais de Saúde 36 (OSS), limites percentuais de 30% de partos cesáreos sobre o total de nascidos vivos (IBANEZ et al., 2001). O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP) afirma que as cesáreas realizadas sem consistência na indicação podem ser encaradas como procedimentos desnecessários, aumentando os riscos de mortalidade e morbidade maternas. Reafirma que o obstetra deve estar qualificado para assistir ao trabalho de parto com toda a segurança para o bem estar materno e fetal e para terminá-lo de forma conveniente, evitando a realização da cesárea por insegurança nas suas capacitações em realizar o parto vaginal (CREMESP, 2002a). Nesse sentido, o CREMESP tem procurado investigar o perfil dos médicos do Estado e reforçar questões éticas na execução de certos procedimentos, de acordo com o artigo 42 do Código de Ética Médica: “Art. 42, Cap. III – Da Responsabilidade Profissional - é vedado ao médico praticar ou indicar atos médicos desnecessários ou proibidos pela Legislação do País (CREMESP, 2007b, p.11)”. A Agencia Nacional de Saúde Suplementar (ANS), por sua vez, iniciou campanha em 2006 junto às operadoras de planos de saúde a fim de estimular a redução da incidência da cesariana nos hospitais privados, responsáveis pelas maiores taxas de cesárea do país e do mundo. Essa agência publicou em setembro de 2007 o Programa de Qualificação da Saúde Suplementar. Entre as iniciativas da ANS estão a mudança nas regras exigidas no registro de novos planos de saúde, que serão obrigados a apresentar estrutura adequada para a realização de partos normais na sua rede assistencial e a qualificação das operadoras de planos de saúde, incluindo as taxas de cesárea como um dos critérios de sua avaliação. Assim, as operadoras de planos de saúde compartilharão com sua rede assistencial a responsabilidade de garantir o cumprimento das metas de qualidade estabelecidas nesse programa, buscando estimular sua clientela a realizar o parto normal (ESCRIVÃO JÚNIOR; KOYAMA, 2007). 37 3.3 Taxas Ideais de Cesárea existem? Embora a OMS recomende, desde 1985, que as taxas de cesárea não ultrapassem cifras entre 10 e15% observamos, no gráfico abaixo, publicado no relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD) do Paises Europeus, que em quase todas as nações as taxas são maiores que a recomendação (OECD, HEALTH AT GLANCE 2005). Gráfico 1– Taxas de cesárea (percentual por 100 nascidos-vivos) dos países da OECD Fonte: HEALTH AT GLANCE, 2005, p. 61. Notas: 1. Em Portugal, estão incluídos apenas partos em hospitais públicos, portanto os resultados poderão ser superestimados. 2. Dados de 2001. 3. Os dados de OECD correspondem à média dos principais países desse grupo. Ainda nesse relatório (OECD, HEALTH AT GLANCE 2005), todos os países apresentaram aumento de suas taxas de cesárea desde 1990, demonstrando uma tendência mundial desse fato. 38 Gráfico 2– Evolução das taxas de cesárea (percentual por 100 nascimentos), 1990 à 2002 Fonte: HEALTH AT GLANCE, 2005, p. 61. Notas: 1. Em Portugal, estão incluídos apenas partos em hospitais públicos, portanto os resultados poderão ser superestimados. 2. Dados de 2001. 3. Dados de 1997. Essa tendência mundial estende-se a países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, conforme se observa no Relatório Mundial de Saúde de 2005 da OMS (2005). 39 Gráfico 3– Taxas de cesárea em regiões urbanas e rurais de países da África e América Latina Fonte: OMS, Relatório Mundial de Saúde, 2005. Observamos que países africanos muito pobres têm baixos índices de cesárea. Porém esse fato é decorrente de falta de disponibilidade de assistência médicohospitalar e barreiras de acesso à população, caracterizando, inclusive, a redução ou a manutenção do número desses procedimentos entre 1993 e 2003. Essa elevação das taxas de cesárea, bem como as diferenças observadas entre os países, devem ser contextualizadas em função das características sócio-culturais de cada sociedade, bem como do modelo de saúde praticado em cada local, levando a fatores associados à escolha pelos diversos tipos de parto. Para muitos autores, as taxas ideais propostas pela OMS (1985) são meramente referenciais e não um objetivo normativo para os diversos países. O coordenador, de saúde da família e da comunidade da OMS, Dr. José Villar, declarou em 2001 que a recomendação da Organização (OMS, 1985) era bastante razoável e estava 40 baseada nas opiniões de especialistas e no conhecimento médico daquela época. Ele relata que há países com populações de alto risco que necessitariam de maior número de operações cesarianas do que recebem hoje e outras regiões, com populações de baixo risco, que abusam das cesáreas, necessitando-se identificar localmente a taxa ideal dessa intervenção (LAZLO, 2001). Rezende declarou que mais importante que as taxas de cesárea seria o resultado dessa prática na saúde materna e neonatal (REZENDE, 2002). Esse emérito professor de obstetrícia publicou há cerca de quatro décadas que não há que se negar que a incidência de cesárea aumenta, o que alarma alguns partidários da obstetrícia tradicional, mas não sensibiliza os tocólogos de boa linhagem: conceito fundamental hoje não é a percentagem arbitrária da incidência da operação, mas qual o melhor método para a mãe e filho quando há doença intercorrente ou surge complicação obstétrica (REZENDE, 1969). Chou et al. (2006) sugerem utilizar informações sobre como os médicos usam a cesárea para si e seus familiares como referência de taxa ideal de cesárea para a população em geral de um país ou região, em virtude da dificuldade de aplicar-se uma mesma taxa para todos, devido à heterogeneidade na sociedade, cultura, desenvolvimento médico e sistemas de saúde de cada local. Conclui-se que como não houve, após as recomendações de 1985 da OMS, outras manifestações desta entidade nem de outras relevantes no meio médico sobre as taxas ideais de cesárea, seria inviável padronizar uma taxa ideal de parto cesáreo, provavelmente por que os modelos assistenciais são diferentes nos vários países, tornando difícil a sua determinação. 3.4 Cenário Mundial da Organização da Assistência ao Parto Em quase todo o mundo observamos a realização cada vez mais freqüente do parto cesáreo. As principais justificativas encontradas na literatura internacional para este fato são fatores sociais, demográficos, culturais e econômicos das gestantes, 41 associados à solicitação materna pelo tipo de parto e fatores relacionados ao modelo assistencial desenvolvido nesses países, envolvendo aspectos do trabalho médico e de outros profissionais, preferências médicas e interesses econômicos dos diferentes atores desse processo. Neme (1995) resumiu os mais importantes fatores para a elevação da incidência de cesariana no mundo em: • Condições que propiciaram menor risco e maior segurança materna (antimicrobianos, transfusão de sangue, técnicas anestésicas, etc.); • Maior valorização da vida e de sua qualidade (evitar seqüelas para os conceptos); • Maior risco de processos legais por má prática; • Maior incidência de primigestas idosas e adolescentes; • Diagnóstico mais apurado e precoce de anomalias e sofrimento fetal; • Interferência da paciente sob a forma de “cesárea a pedido” ou de solicitação de ligadura tubárea feita no momento do parto cesáreo; • Condição econômica da paciente, associando maior incidência de cesariana à clínica privada do que ao serviço público; • Conveniência para o obstetra, pelo maior tempo necessário para a assistência ao parto normal; • Repetição de cesárea em mulheres com esse procedimento em gestação anterior. Os fatores clínicos determinantes da cesárea estão relacionados às condições patológicas de saúde maternas e fetais, que não diferem substancialmente nas diversas regiões do mundo. Por opção do autor, não iremos abordar as indicações clínicas para a realização da cesárea, enfocando-se apenas os fatores não clínicos associados à essa decisão. Observa-se, em diferentes países, características peculiares quanto à forma como se organiza a assistência à saúde, relacionadas às prioridades em saúde pública, ao modelo político estabelecido e ao grau de intervenção e participação do Estado nos diversos níveis de assistência. Diferenças nas condições sociais, educacionais e 42 econômicas da sociedade também são relevantes. A organização da assistência à gestante se molda a essas características, determinando o modelo de atendimento ao parto e influenciando as taxas nacionais de cesárea. O modelo de assistência ao parto, baseado no atendimento hospitalar e com intervenções médicas, nem sempre aceitas pelos estudiosos do assunto, sofre críticas originadas na sociedade e na comunidade acadêmica, com questionamentos contundentes no campo da obstetrícia. Partindo-se da premissa de que modelos diferentes de assistência ao parto, associados aos fatores que determinam a escolha pelo tipo de parto, definiriam a forma de organização da prática médica estabelecida nos diversos países, intimamente associada à incidência de cesárea nesses locais, analisaremos essa organização da assistência obstétrica discorrendo sobre os modelos assistenciais praticados em alguns países, envolvendo fatores sócio-culturais de pacientes e médicos e citando suas taxas de cesárea nos últimos anos. Iniciaremos definindo a questão da cesárea a pedido ou por desejo materno e, posteriormente, abordaremos questões relacionadas ao comportamento médico perante os riscos de processos por má prática e aos aspectos econômicos envolvidos na escolha do tipo de parto. 3.4.1 Cesárea a Pedido ou Por Solicitação Materna Cesárea por escolha ou solicitação da paciente, cesárea por demanda e cesárea a pedido são sinônimos de parto cesáreo eletivo na ausência de indicação médica. Trata-se de assunto extremamente polêmico, sendo considerado um dos grandes fatores associados ao aumento das cesáreas, envolvendo aspectos relacionados aos direitos e à autonomia de pacientes, fornecimento adequado de informações e tipo de relacionamento médico-paciente. Esse conceito foi introduzido na literatura mundial por Feldman e al., em 1985. Estimulados por casos de litígio médico-legal devido a problemas neurológicos no recém-nascido, esses autores publicaram um artigo intitulado “Prophylactic cesarean at term?” (FELDMAN; FREIMAN, 1985). A partir daí, a indicação médica e a aceitação pelo médico da cesárea a pedido têm sido amplamente estudadas em diversos países, em particular nos Estados Unidos 43 (EUA), devido ao aumento de suas taxas desde 1970. Um levantamento em 16 estados americanos demonstrou aumento de 42% nas cesáreas a pedido da gestante entre 1999 e 2002 (HEALTH GRADES, 2004). As estatísticas desse tipo de indicação podem variar em diferentes países ou estudos. Em alguns estudos, cesáreas a pedido correspondem entre 4 e 18% de todas as cesáreas realizadas, devido ao medo do parto vaginal, ao receio de lesões ao recém-nascido ou ao temor por possíveis alterações nos seus órgãos genitais. Em outros estudos, sua incidência está entre 14 e 22% de todos os procedimentos eletivos (SCHINDL; BIRNER; REINGRABNER, et al., 2003; TRANQUILLI; GIANNUBILO, 2004). Essa indicação médica apresenta-se, na literatura internacional, com percentuais muito variáveis, justificados por diferenças de amostragem e de conceituação do termo “por demanda” (HABIBA et al., 2006; MEIKLE et al., 2005). Há, eventualmente, inclusão de casos onde havia outras indicações para a realização desse procedimento, ou ainda, o registro em prontuário de uma indicação médica para a cesárea ao invés de declarar a sua execução por desejo materno (HABIBA, et al., 2006). Land et al. (2001) analisaram, do ponto de vista do médico, os motivos pelos quais suas pacientes solicitaram o parto cirúrgico, encontrando como motivos mais alegados para a escolha pela cesárea: • medo do nascimento por parto vaginal (27% dos médicos), • lesões na região genital (80-93% dos médicos), • lesões fetais (24-39% dos médicos), • lesões anais (83% dos médicos), • alterações urinárias (81% dos médicos), • disfunção sexual (58-59% dos médicos), • conveniência materna (17-39% dos médicos), • melhor controle do parto (39% dos médicos); • medo da dor do parto vaginal (7% dos médicos) 44 Em outro estudo, realizado com mulheres que já tinham dado à luz, a solicitação de cesárea ocorreu, em perticular, devido a experiências anteriores ruins com o parto vaginal (WAX et al., 2004). A cesárea a pedido está diretamente relacionada à elevação das taxas de cesárea e imbricada no modelo assistencial em vigor em cada localidade. 3.4.2 Modelos Assistenciais O grau de intervenção nos processos saúde-doença está intimamente relacionado com o modelo de atenção à saúde. Segundo Wagner (2001), existem três modelos de atenção ao parto praticados no mundo: • o modelo altamente medicalizado, com uso de alta tecnologia e pouca participação de obstetrizes, encontrado nos EUA, Irlanda, Rússia, República Tcheca, França, Bélgica e regiões urbanas do Brasil; • o modelo menos medicalizado, chamado “humanizado” pela autora, com maior participação de obstetrizes e menor freqüência de intervenções, encontrado na Holanda, Nova Zelândia e países escandinavos; • o modelo intermediário, encontrado na Grã-Bretanha, Canadá, Alemanha, Japão e Austrália. A autora não incluiu países subdesenvolvidos nessa classificação, possivelmente pela existência de barreiras de acesso à assistência obstétrica nesses locais. Tampouco foi abordado o Chile, recordista mundial em cesáreas até o ano 2000, país em vias de desenvolvimento. Em cada um desses modelos e países, com sistemas de saúde semelhantes ou não, há comportamentos médicos e sociais diferentes e conseqüentemente, taxas de cesárea diversas. Utilizaremos a classificação de Wagner (2001) para analisar, em alguns países selecionados, aspectos do modelo assistencial, os fatores determinantes das cesáreas - ressaltando as preferências médicas e de pacientes e as taxas de realização desse procedimento. 45 No grupo de países com modelo de atenção altamente medicalizado, os EUA são onde mais se estuda a questão da incidência de cesarianas, uma vez que essas correspondem ao procedimento cirúrgico mais comum entre as mulheres. Nesse país, a taxa de cesárea aumentou progressivamente de 1970 até meados da década de 1980, quando atingiu pico de 25%. Após esse pico, houve redução para 22,6% em 1991 e para 20,7% em 1996, determinada pelo incremento dos partos vaginais em mulheres com cesárea anterior, incentivada por programas governamentais. A partir desse ano as taxas voltaram a crescer, devido ao aumento da freqüência do procedimento em mulheres sem cesárea anterior (cesárea primária) e redução de parto vaginal em mulheres com cesárea previa. Em 2000 atingiram a cifra de 22,9% (MENACKER, 2001) e em 2002, 26,1%. Houve novo aumento na percentagem desses procedimentos entre as americanas em 2003, chegando a 27,6% dos partos - mais de um milhão de procedimentos no ano (CDC NATIONAL VITAL STATISTICS, 2003) e em 2004, quando 1,2 milhão de mulheres tiveram seu parto realizado por cesárea, representando 29,1% de todos os nascimentos (MENACKER; DECLERCQ; MACDORMAN, 2006). Os estudos norte-americanos atribuem esse fato às questões médico-legais por má prática e à escolha do tipo de parto pela paciente (FLAMM, 2004). Os últimos dados acessíveis estimam que, em 2005, ocorreu um novo recorde de cesáreas, com taxa de 30,2 para cada 100 nascimentos (CDC NATIONAL VITAL STATISTICS, 2005). 46 Gráfico 4– Evolução das taxas de cesárea nos EUA Fonte: MENACKER; DECLERCQ; MACDORMAN, 2006. Notas: 1. VBAC: parto vaginal após uma cesárea anterior; 2. Total cesarean: percentual de cesáreas incluindo as cesáreas primárias e as repetidas; 3. Primary cesarean: cesárea realizada em mulher que nunca se submeteu a esse procedimento. Nesse país, de maneira semelhante ao que acontece na Bélgica e no Brasil, o modelo de assistência se caracteriza pela atuação de obstetras nos cuidados da maternidade, incluindo o acompanhamento pré-natal e a realização do parto normal e/ou cesáreo, realizados em ambiente intra-hospitalar. Enquanto as pacientes de serviços privados são atendidas por médicos de sua escolha, aquelas dos serviços públicos o são pelo obstetra de plantão nas maternidades. Nesse modelo, a incidência de cesáreas em pacientes privadas pode ser devida à conveniência médica (WAGNER, 2000), seja pela falta de tempo e gerenciamento da agenda, seja pelo modelo de remuneração. Há melhor remuneração para o médico que atende mulheres com seguros privados, condição em que se realizam mais cesáreas, do que para aquele que presta assistência pelo Medicaid (GRANT, 2005). Analisando a incidência de cesárea nos EUA, Grant classificou os fatores determinantes, de forma detalhada, em cinco grupos: • Fatores clínicos relacionados à gestante e/ou feto: apresentação pélvica, sofrimento fetal, falha de progressão do trabalho de parto, alterações na placenta e idade materna; • Características individuais não clínicas: educação materna, raça, rendimentos; 47 • Fatores relacionados à relação médico-paciente; • Modelo de remuneração do procedimento; • “Estilo da prática” do médico, isto é, preferência médica pelo tipo de parto. Ainda segundo este autor, os fatores não são independentes: mulheres de nível econômico elevado, com seguros privados ou particulares, tendem a engravidar em idade mais avançada e, por isso, têm mais complicações médicas e são submetidas mais amiúde à cesariana. Também refere associação positiva entre taxas de cesárea por desejo materno e maior grau de educação materna, raça branca e renda elevada. Kabir et al. (2004) analisaram gestantes da Louisiana, em primeira gestação ou com uma cesárea prévia, e encontraram maiores taxas de cesárea do que de partos vaginais em mulheres da raça branca, quando comparadas com mulheres nãobrancas, fato anteriormente demonstrado por Butcher et al. (1997). Essa relação também ocorre em mulheres americanas com elevado grau de instrução e idade mais avançada. (MENACKER, 2001). A cesárea por desejo materno tem sido ressaltada nos estudos como importante causa para a realização desse procedimento. Em seu artigo, Wagner (2000) critica o modelo americano de assistência ao parto ressaltando o grau de aceitação da sociedade para com a escolha materna pela cesárea e para com o comprometimento médico na fraude ao sistema de saúde: Com uma cesárea agendada, você e seu médico acordaram a hora em que você entrará no hospital de forma tranqüila e vagarosa, e ele retirará seu bebê por meio de uma pequena incisão acima dos seus pêlos pubianos. Há muitas razões para agendar uma cesárea – há mulheres que desejam a cesárea para manter o tônus vaginal de uma adolescente e seus médicos encontrarão uma justificativa médica para os planos de saúde (WAGNER, 2000, tradução nossa). Apesar do aumento de 42% de cesáreas a pedido nos EUA (HEALTH GRADES, 2004) e da argumentação de Wagner (2000), observou-se, por meio de uma pesquisa com mulheres de diversos estados dos EUA, pequeno interesse no parto 48 por cesárea: apenas 6% das mulheres primíparas desejavam esse tipo de parto (DECLERCQ et al., 2002). Ainda nos EUA, Thurman et al. (2004) entrevistaram mulheres não grávidas em busca de respostas sobre preferência pelo tipo de parto numa possível gravidez futura, encontrando apenas 13,3% de mulheres que desejariam cesárea. Para os autores, ao entrevistar mulheres fora do período de gestação, pode se evitar quadros de ansiedade antes do parto, experiências ruins após o parto, dores após o parto e outros fatores que poderiam influenciar as respostas das entrevistadas. Em função da questão da cesárea por solicitação da gestante, o Instituto Nacional de Saúde (NIH) dos EUA publicou o resultado de uma conferência sobre esse tema, analisando riscos CONFERENCE e benefícios STATEMENT - dessa prática CESAREAN (STATE-OF-THE-SCIENCE- DELIVERY ON MATERNAL REQUEST, 2006). Os conferencistas declararam que: • Há insuficientes evidências para avaliar riscos e benefícios de cesárea a pedido materno quando comparada ao parto vaginal; • Qualquer decisão para realizar cesárea a pedido deve ser cuidadosamente individualizada e contemplar princípios éticos; • Devido aos riscos de placenta prévia e acreta (alterações na localização e na aderência da placenta no interior do útero durante a gestação), a cesárea a pedido não é recomendada para mulheres que desejam muitos filhos; • Cesárea a pedido não deve ser realizada antes de 39 semanas de gestação ou sem verificação da maturidade pulmonar. McCandlish publicou, em revista direcionada a enfermeiras obstetras, críticas às conclusões dessa conferência, demonstrando conflito de interesses em diferentes grupos profissionais. Para a autora, além de a cesárea não ser uma intervenção isenta de riscos, o resultado dessa conferência induz à consideração de que o parto cesáreo é o parto normal (McCANDISH, 2006, tradução nossa). Também contrariando o resultado da Conferência do NIH, Leeman e Plante (2006) declararam que a pressão crescente para o parto cesáreo na ausência de indicação médica 49 pode levar as mulheres a não ter outra opção para o nascimento, influenciadas pela cultura médica e submetidas à assimetria de informações. Alguns estudos foram realizados para avaliar se há influência da cultura médica na cesárea a pedido, pelo tipo de parto para si ou para alguma familiar, bem como o grau de aceitação desses profissionais frente a uma solicitação de cesárea pela gestante. No trabalho de Wax et al. (2005), 21,1% dos obstetras americanos, situados no Estado de Maine, desejariam para si ou para seus parentes um parto cesáreo, numa situação de gravidez não complicada. Sua justificativa seria, na maioria das respostas, a prevenção de disfunções gênito-urinárias ou sexuais. Esses autores observaram ainda que 84,5% dos médicos aceitariam a solicitação da cesárea a pedido da gestante, não havendo diferenças nas respostas entre obstetras homens e mulheres. Uma outra pesquisa, ainda naquele país, foi realizada com obstetras de 15 estados americanos e alguns territórios canadenses, durante um encontro regional do Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas (ACOG). Nesta, foi detectado que 46,2% desses médicos optariam por cesárea para si ou seus familiares, subindo esse percentual para 70% na hipótese de feto com peso estimado acima de 4000 gramas (GABBE; HOLZMAN, 2001). Em 2004, o próprio ACOG realizou pesquisa com 301 mulheres obstetras americanas durante o congresso da especialidade, onde 36% das mesmas afirmaram que não realizariam cesárea a pedido da gestante (ACOG, 2004). Guetti et al. (2004) realizaram estudo com obstetras de Oregon, apresentando dezessete cenários hipotéticos em uma possível gravidez de 9 meses e avaliando a disposição dos médicos em realizar uma cesárea na presença e na ausência de indicações obstétricas. Os autores observaram elevada aceitação de cesárea em casos de indicação médica clara (68 a 98%, dependendo do caso) e baixíssima nos casos sem indicação (2 a 9%), contrariando estudos anteriores. Ressalta-se que no estudo de Guetti et al. (2004) as mulheres foram mais resistentes do que os homens em aceitar a cesárea a pedido. Na tentativa de reduzir a incidência de cesáreas, algumas políticas de saúde pública vêm sendo desenvolvidas nos EUA nos últimos 25 anos. Como exemplo, no programa “Healthy People Year 2010”, um dos objetivos é reduzir a taxa desse tipo 50 de parto em mulheres com gestação de baixo risco, para 15% em mulheres sem cesárea anterior e para 63% em mulheres com uma cesárea anterior (MENACKER, 2005). Para isso, será necessária uma redução total de 36% e 29%, respectivamente, das taxas de 2003 até 2010. Na Europa, observamos que muitos países têm apresentado elevação das taxas de cesárea nos últimos vinte anos, desencadeando discussões sobre suas causas e conseqüências. O modelo assistencial nesses países não é homogêneo. Há países onde a assistência ao parto, de caráter privado, é realizada pelo médico obstetra escolhido pela paciente e remunerado por procedimentos, enquanto em outros o modelo de saúde é estatal e a assistência é realizada por profissionais, médicos ou parteiras, remunerados de forma assalariada. Na Europa há regulamentação própria para o trabalho e autonomia das parteiras (EUROPEAN PARLIAMENT EUROPEAN COUNCIL, 2005), cuja aceitação não é igual em todos os países. Em 1996, um Comitê Europeu de Regulamentação das Parteiras (EUROPEAN MIDWIVES LIAISON COMMITTEE, 1996) definiu sua autonomia, incluindo a execução de cuidados durante o parto para mulheres saudáveis. A Holanda e a Grã-Bretanha aceitam bem essa posição das parteiras, enquanto na Bélgica, essas profissionais lutam para alcançar um mínimo de atividades autorizadas por lei (MEAD; BOGAERTS; REYNS, 2006). Paradoxalmente, as taxas de cesárea na Grã-Bretanha são maiores do que as belgas. Na Bélgica, um dos países classificados por Wagner como medicalizados, a organização do sistema de saúde oferece incentivos financeiros que encorajam obstetras a realizar os partos, remunerando-os por procedimento. Estas atividades poderiam ser executadas por parteiras, oficialmente habilitadas para esse trabalho (MEAD; BOGAERTS; REYNS, 2006). Nesse país, 94% dos partos são executados ou supervisionados por médicos obstetras (MEAD; BOGAERTS; REYNS, 2006). Apesar de suas baixas taxas de cesárea, estas passaram de 10,5% em 1990 para 15,9% em 1999 (HEALTH AT A GLANCE, 2005). Enquanto poucos médicos belgas (em torno de 2%) desejariam cesárea para si ou seus familiares (DOES VAN DER; ROOSMALEN VAN, 2001), 30% dos obstetras realizariam o procedimento por solicitação da gestante (JACQUEMYN; AHANKOUR; MARTENS, 2003). 51 A Irlanda, outro país citado por Wagner como medicalizado, também apresentou elevação das taxas de cesárea nos últimos 15 anos. Lá havia 10,5% desse procedimento em 1990 e em 2002, 23,4% (HEALTH AT A GLANCE, 2005), embora somente 7% das médicas irlandesas desejassem cesárea para si ou familiares (MC GURGAN; COULTER-SMITH; O’DONOVAN, 2001). Observa-se na França, cuja assistência à saúde é garantida pelo Estado, o mesmo fenômeno de crescimento, embora em menor velocidade. Em 1999, apresentava taxas de cesárea em 16,1%. Passou a 17,1%, 17,9%, 18,7% e 18,8% nos anos de 2000, 2001, 2002 e 2003, respectivamente (WORLD HEALTH STATISTICS, 2007). Dentre os países com menor intervenção médica na atenção ao parto, a Holanda é destaque por sua reduzida taxa de cesáreas dentre os países desenvolvidos. Nesse país, onde a freqüência de intervenções médicas é pequena e cerca de 30% dos partos de baixo risco ocorre no domicílio da gestante, a assistência obstétrica é realizada por parteiras que, quando suspeitam de que poderá haver complicações no parto, encaminham a parturiente para o hospital. O modelo holandês tem sido usado para demonstrar que a assistência ao parto fora do hospital e por parteiras traz bons resultados (KWEE et al., 2004). Porém, também na Holanda observa-se aumento das taxas de cesárea, passando de 7,4% em 1990 para 13,5% em 2002 (HEALTH AT A GLANCE, 2005). Em um estudo realizado sobre a aceitação de cesáreas a pedido, poucos médicos, em especial os mais experientes, estariam propensos a realizá-las sem indicação médica (KWEE et al., 2004). Além disso, apenas 1,4% das médicas holandesas (DOES VAN DER; ROOSMALEN VAN, 2001) desejariam para si esse modo de nascimento numa situação hipotética de gravidez. A Suécia, pais cujas taxas de cesáreas também são baixas, tem seu modelo assistencial caracterizado pelo atendimento por parteiras e por pouca intervenção médica no parto. Como na Holanda, porém, verificou-se aumento nas taxas de cesárea, de 10,8% em 1990 para 16,4% em 2002 (HEALTH AT A GLANCE, 2005), atingindo, em certos hospitais de Estocolmo, taxas de 22-23% (COUNTY COUNCIL OF STOCKHOLM, 2004), atribuídas a alterações nas características sócio-culturais da população e nas práticas clínicas (ODLIND et al., 2003; KWEE et al., 2004; KÁLLEN et al., 2005). Além dos motivos tradicionais, como apresentação pélvica e idade materna, nesse país o índice de massa corpórea elevado é relatado como 52 importante causa de indicação de cesárea (KWEE et al., 2004). Encontra-se nas estatísticas de saúde suecas a inserção do diagnóstico de “indicação psico-social” para realização da cesárea, que inclui os medos da gestante, a conveniência da gestante e do médico e outros fatores. Esta é a principal indicação de cesárea eletiva na Suécia (HILDINGSSON, 2006), sendo que, dentre todas foi a que mais cresceu entre 1992 e 2002 nos partos de gestação de baixo risco (KÁLLEN et al., 2005). Em estudo de Hildingsson et al. (2002), apenas 8% das mulheres suecas, quando questionadas no início de gestação, preferiam parto cesárea. Os autores encontraram correlação entre essa preferência e algumas características demográficas e comportamentais, como idade maior de 35 anos, mulheres solteiras, fumantes e que apresentavam uma gravidez não planejada. Embora sem relação direta de causa e efeito, provavelmente essa complexa mistura de fatores sociais, demográficos e culturais estaria associada a esses resultados. O aumento de 50% nas taxas de cesárea entre 1990 e 2002, motivou novo estudo de Hildingsson, envolvendo quase três mil mulheres, para tentar compreender se o modo idealizado pelas suecas para o nascimento influenciaria a decisão pelo tipo de parto. Das 236 mulheres que desejavam ter parto cesáreo no início da gestação, 30,5% deram à luz por cesárea eletiva e 15% tiveram cesárea de urgência: a preferência da gestante pode ter importante papel no tipo de parto realizado (HILDINGSSON, 2006). Kolas et al. (2003) identificaram as principais indicações médicas de cesáreas na Noruega: apresentação pélvica, repetição de cesárea após cesárea prévia, suspeita de sofrimento fetal e falha na tentativa de parto vaginal. Nesse país, onde a taxa de cesáreas é relativamente baixa (16,1% em 2002, segundo a OECD), poucos médicos desejariam esse tipo de parto para si ou seus parentes, sendo que estudos demonstraram que somente 2% das médicas norueguesas (BACKE; SALVESEN; SVIGGUM, 2002) desejariam esse modo de nascimento numa situação hipotética de gravidez. Entre os obstetras dinamarqueses, 37,6% concordam que a mulher tem o direito de solicitar a cesárea para o nascimento de seu filho (BERGHOLT et al. 2004). A Dinamarca apresentou 17,6% desse tipo de parto em 2002 (HEALTH AT A GLANCE, 2005). 53 Dentre os países caracterizados por um modelo intermediário entre o uso intensivo de tecnologia médica e a assistência pouco intervencionista, Grã-Bretanha, Canadá e Austrália vêm analisando a incidência de cesáreas e suas causas. Nesses países, o modelo assistencial se baseia na participação de parteiras e médicos generalistas no atendimento à gestante, porém com menor tendência ao deslocamento do parto para o ambiente domiciliar que na Holanda e na Escandinávia. Wilkinson et al. (1998) identificaram que as principais indicações médicas de cesáreas eletivas, em 8098 casos de gestantes inglesas, foram apresentação pélvica e repetição de cesárea após cesárea prévia, enquanto as cesáreas de urgência e emergência foram devidas à suspeitas de sofrimento fetal e falha de progressão de trabalho de parto. Além dessas indicações clínicas há, na Inglaterra, estudos que sugerem a solicitação materna como uma das maiores causas para indicações de cesárea (COTZIAS; PATERSON-BROWN; FISK, 2001). Há pesquisadores ingleses que criticam a realização deste tipo de parto por desejo da mulher, afirmando que esta pode ser influenciada por falta de informações médicas. Para eles, esta aparente “liberdade de escolha” é, na prática, freqüentemente induzida pela manipulação das informações prestadas sobre os riscos envolvidos nos procedimentos do parto (AMU; RAJENDRAN; BOLAJI, 1998). Não se trata de preocupação recente entre os britânicos: em 1993, o governo lançou um documento chamado “Changing Childbirth” (Modificando o Nascimento), com o objetivo de motivar a gestante a buscar todas as informações necessárias antes de escolher seu tipo de parto (DEPARTMENT OF HEALTH, 1993). O primeiro trabalho internacional a relatar a preferência das médicas obstetras pela via de parto, caso estivessem grávidas, foi feito em 1996 na Inglaterra, por Al-Mufti et al. (1996). A partir daí, surgiram outros estudos, em diversos paises, com resultados controversos, sobre a preferência dos médicos. Esse estudo chamou a atenção da comunidade médica atenta à questão das cesarianas, causando grande polêmica. Al-Mufti et al. (1996) relataram que 31% das mulheres obstetras escolheriam para si o parto cesárea eletivo, mesmo na ausência de indicações formais. Em 1997, os mesmos autores publicaram artigo sobre uma pesquisa com médicos trainees em obstetrícia e ginecologia na Grã-Bretanha, relatando que 17% do total dos entrevistados e 31% das médicas obstetras escolheriam a cesárea para 54 si ou seus parentes se estivessem grávidas, sendo essa decisão baseada no receio de distúrbios urinários ou sexuais decorrentes do parto vaginal (AL-MUFTI; MCCARTHY; FISK, 1997). No mesmo país, Groom et al. (2002) relataram que apenas 15% de obstetras, independentemente do sexo, escolheriam cesárea para si ou para parentes, mesmo percentual encontrado em 2001 por Wright et al. (2001), porém entre médicas inglesas trainees. Na Escócia, onde também 15% das médicas participantes de uma pesquisa escolheriam a cesárea para o nascimento de seu filho, observou-se que, dentre aquelas que experimentaram o parto vaginal em gestação anterior, nenhuma desejaria outro tipo de parto (MACDONALD; PINION; MACLEOD, 2002). Com relação à aceitação do obstetra em relação ao pedido de cesárea pela paciente, cerca de 69% dos médicos ingleses (COTZIAS; PATERSON-BROWN, FISK, 2001) aceitariam a solicitação de cesárea por medo de processos judiciais e pressões das pacientes. A Inglaterra também tem acompanhado de perto a evolução da incidência da cesariana. Entre as inglesas, observou-se que a taxa dessa cirurgia passou de 11,3% em 1989-1990, para 15,4% em 1994-1995 e para 17% em 19971998 (QUINLIVAN,1999). Em 2001 observa-se duplicação da taxa de cesárea desde 1989, atingindo 22% (DEPARTMENT OF HEALTH, 2002). Esse aumento pode ser atribuído à conduta médica defensiva pelo receio de litígio por má prática, ao aumento da idade materna (CAESAREAN, 2000) e à melhora do nível sócioeconômico da população (ALVES; SHEIKH, 2005). Nova elevação da incidência de cesáreas foi observada em 2004, quando 22,7% das inglesas tiveram o nascimento de seus filhos por esse tipo de parto (GOVERNMENT STATISTICAL SERVICE, 2005). O Canadá, país onde o modelo de assistência ao parto foi classificado como intermediário, apresenta um sistema de saúde público que assiste a toda a população. Lá, os partos são realizados por médicos e parteiras e financiados pelo governo. Estudo mostra que os médicos optariam por cesárea para si, para seus familiares e para seus pacientes se houvesse indícios de necessidade de uso do fórcipe no auxílio ao parto vaginal (FARREL; BASKETT; FARREL, 2005). Ainda nesse estudo, 23% dos médicos aceitariam a solicitação da gestante, acreditando no seu direito de escolha, principalmente médicos canadenses do sexo masculino. Esta 55 diferença entre os sexos se justifica, segundo os autores, pela provável crença das médicas de que o parto vaginal tenha papel fundamental na experiência de ser mulher. Ali havia, em 1995, 17,5% de cesáreas, passando para 20,9% em 2000 e 23,4% em 2002. Preocupado com essa elevação, em 2000, o Conselho de Saúde da Mulher de Ontário organizou o Grupo de Trabalho de Cesárea, identificando 12 fatores críticos de sucesso para reduzir essas taxas, entre os quais questões relacionadas à mudança de cultura, reforçando a idéia de parto normal ser fisiológico, a trabalho em equipe multidisciplinar e a mudança das práticas obstétricas (CAESAREAN SECTION WORKING GROUP, 2000). A Austrália também vem apresentando elevação na incidência de cesárea, que passou de 17,5% em 1990 para 23,3% em 2000 (AUSTRALIAN INSTITUTE OF HEALTH AND WELFARE, 2000), elevando-se para 26,5% em 2002. Quinllivan et al. (1999) analisaram as causas para o aumento nas taxas de cesárea entre 1990 e 1997 na Austrália, identificando o medo do obstetra perante o litígio, o aumento no uso de monitoramento fetal levando a diagnóstico falso-positivo de sofrimento fetal, a persistência do paradigma de Craigin do início do século XX (“uma vez cesárea, sempre cesárea”), apresentação pélvica e vontade materna. Nesse estudo, com 1624 mulheres submetidas a cesárea em um hospital público australiano, o desejo das pacientes foi a principal indicação das cesáreas eletivas, por recusa à tentativa de parto vaginal após cesárea anterior. A percepção de risco na gravidez e parto tem ajudado a aumentar a incidência deste procedimento, apontando para o fato de que o incremento da cesárea a pedido é complexo e multifatorial. Walker et al. (2004), em estudo realizado enviando questionários a mulheres sete semanas após o parto, demonstraram que as australianas, independentemente de variáveis sóciodemográficas, concordam com a percepção de que a cesárea representa um tipo de parto mais fácil e conveniente para o nascimento, reforçando a cultura favorável a esse procedimento. Essa conclusão contraria estudo anterior, de Gamble e Creedy (2000), que fizeram uma revisão na literatura de trabalhos sobre cesárea a pedido, identificando que poucas mulheres solicitariam cesárea na ausência de complicações obstétricas atuais ou prévias. Para essas autoras, ligadas à Faculdade de Enfermagem de Brisbane, Austrália, os trabalhos, em geral, têm resultados enviesados pois, se os obstetras se sentirem pressionados a justificar os altos índices de cesárea, transfeririam o ônus dessa responsabilidade para as mulheres. 56 Analisando os trabalhos, as autoras relataram falhas metodológicas ou não registro de questões relevantes, como nível de informação médica recebida pelas pacientes, motivos do desejo pela cesárea, incluindo medos ou traumas psicológicos, inclusão de pacientes com cesárea anterior e a execução das entrevistas pelo time assistencial, ao invés de um pesquisador mais isento, que minimizaria interpretações distorcidas das respostas. No Japão, há mais de 300 casas de parto dirigidas por enfermeiras obstetras, fornecendo atenção no pré-natal, parto e puerpério a aproximadamente 20% das mulheres (d’ORSI et al., 2005). Esse modelo de assistência favorece a realização de maior número de partos vaginais, culturalmente aceitos pelas gestantes e pela sociedade. Tradicionalmente as japonesas recebem os cuidados pré-natais em seu domicílio e a prática de parto domiciliar permaneceu até alguns anos após a Segunda Guerra Mundial, quando passou a ser executada em instituições oficiais como hospitais e casas de parto. No Japão, essas instituições governamentais não prestam assistência gratuita na área de obstetrícia pelo fato de gravidez e parto não serem considerados doença (HOGA, 2005). A Alemanha tem apresentado aumento nas taxas de cesárea, partindo de 19,8% em 1999, passando para 20,88% em 2000, 21,99% em 2001, 23,6% em 2002, aumentando para 24,8% em 2003, chegando a 25,9% em 2004 (WHO REGIONAL OFFICE FOR EUROPE, 2006). Nesse país, desenvolvido economicamente, o sistema de saúde é assegurado pelo Estado, por meio de fundos de contribuição (fundos de doença) que garantem o seguro saúde à população. O financiamento e provisão de serviços de saúde estão baseados em contratos entre os fundos de doença e as organizações de provedores médicos. Outros países, não descritos por Wagner em sua classificação, também vêm apresentando questionamentos em relação ao aumento das cesáreas. Temos o caso de Israel, onde os serviços médicos são providos pelo Estado de forma gratuita e os partos normais ocorrem em ambiente hospitalar, sendo realizados, em sua grande maioria, por enfermeiras sob supervisão médica. Gonen et al. (2002) entrevistaram médicos israelenses sobre suas preferências quanto ao tipo de parto, encontrando 91% de obstetras que acreditam que o parto vaginal é o mais indicado 57 para gestações não complicadas. No entanto, ao serem questionados sobre sua aceitação com relação à cesárea a pedido, cerca de 50% dos israelenses declararam-se a favor da sua realização por solicitação da gestante, por respeito à autonomia da paciente. Israel apresentou 17,4% de cesarianas em 2003 (WORLD HEALTH STATISTICS, 2007). Na Itália, é previsto em lei o direito de a mulher participar da escolha do tipo de parto a que será submetida. Esta medida elevou em 4% a taxa de cesárea entre mulheres com gestação não complicada (TRANQUILLI; GARZETTI, 1997). A Itália é um dos países europeus com maior taxa de cesáreas: em 1999, 32,4%; em 2000, 33,3%; em 2001, 34,8%; em 2002, 36,2% e em 2003, 36,4% (WHO REGIONAL OFFICE FOR EUROPE, 2006). Em estudos realizados nesse país (ZANETTA et al., 1999) e na América Latina (NUTTALL, 2000; BÉHAGUE; VICTORA; BARROS, 2002), há referências sobre a disseminação, na comunidade, da cultura pela maior aceitação da cesárea como tipo de parto. Há um grande estudo analisando as taxas de cesárea em dezenove países da América Latina (BELIZAN, et al., 1999). Dentre esses, sete países apresentaram taxas de cesarianas abaixo de 15% (Haiti, Guatemala, Bolívia, Peru, Paraguai, Honduras e El Salvador). No entanto, nos outros doze países do continente, onde ocorreram 81% de todos os partos da América Latina, as taxas variavam de 16,8% a 40%, sendo que alguns apresentaram taxas mais altas, como o Chile (40,0%), o Brasil (27,1%), a República Dominicana (25,9%) e a Argentina (25,4%), e outras taxas menores, como Colômbia (16,8%), Panamá (18,2%) e Equador (18,5%). O Chile disputa com o Brasil as mais elevadas taxas de cesárea do mundo. Em 2000, 40% dos seus partos foram realizados por cesariana, fato decorrente, segundo Murray (2005), de maiores incentivos econômicos para os médicos ao realizar esse procedimento. No continente asiático, a China, relevante entre outros aspectos pelo tamanho de sua população, também se encontra entre os países que vêm apresentando crescimento das taxas de cesárea. O sistema de saúde chinês está dividido em assistência pública subsidiada pelo governo, seguros de saúde ligados ao empregador e assistência privada particular, que corresponderam, respectivamente, 58 a 17%, 27,1% e 55,9% dos gastos em saúde em 2004 naquele país (TANG; LI; WU, 2006). Ao analisar as taxas de parto cesáreo, Tang et al. (2006) identificaram uma tendência de crescimento, passando de 18,16% no período 1990-1992 para 24,05% entre 1996-1997 e daí para 39,51% em 1998-2002. Esses autores analisaram os fatores motivadores das cesáreas em primigestas na China, encontrando forte associação entre elevado nível educacional e idade mais avançada e incidência elevada de partos cesáreos. Em Taiwan, as taxas de cesárea na última década ficaram estáveis em torno de 32,9% (HU; HUANG, 2005). Alguns acreditam que aquelas mulheres que preferem cesárea pelo medo de alterações gênito-urinárias e sexuais, ocasionalmente associadas ao parto vaginal (YOUNG, 2003), poderiam perder esse medo, evitando uma cirurgia, se tivessem informação adequada. Para avaliar se a diferença de informações influenciaria a decisão pelo tipo de parto, Chou et al. (2006) analisaram a incidência de cesáreas em três grupos de mulheres: médicas obstetras, mulheres parentes de médicos e mulheres de alto nível sócio-econômico de Taiwan. A premissa era que a melhor informação sobre os riscos associados ao parto cesáreo, supostamente presente nos grupos das médicas e das gestantes parentes de médicos, traria redução na sua utilização. Ao analisar mais de 800.000 nascimentos, Chou et al. (2006) encontraram incidência de 31,8% e 33,7% de cesáreas em médicas e parentes de médicos, respectivamente, resultado menor do que o encontrado nas mulheres de alto nível sócio-econômico (35,4%). Eles concluíram que essa diferença decorreu do maior acesso ou melhor compreensão das informações médicas. Os autores ressaltaram que sua escolha metodológica de analisar o tipo de parto efetivamente realizado em gestantes médicas ou em parentes de médicos reflete de forma mais fiel a verdadeira preferência desses profissionais pela cesariana, quando comparada com os resultados de outros estudos que utilizam questionários com casos hipotéticos de gestação não complicada. Em outro estudo realizado em Taiwan, autores analisaram a prática da cesárea sob a ótica dos movimentos de mercado, com base na lei de oferta e demanda. Para eles, um dos fatores de demanda seria a expectativa materna: as gestantes que buscam maior acesso à tecnologia dirigir-se-iam a grandes hospitais, onde há 59 maiores taxas de cesárea. Outro fator de demanda seria a religião chinesa. A cultura tradicional na Ásia Oriental traz a crença de que a hora de nascimento determinará o destino e a fortuna do indivíduo (HU; HUANG, 2005). Assim, muitas pessoas escolhem a hora para seus filhos nascerem, tornando a cesárea com hora marcada muito popular nesse país (LO, 2003). Para avaliar os motivos de solicitação de cesárea pelas pacientes foi realizado um estudo com 160 mulheres em Cingapura, onde 60% delas declararam que as maiores causas para terem solicitado a realização de cesárea foram a rejeição pelo trabalho de parto e a tentativa de minimizar o sofrimento fetal. Houve, nesse estudo, menos de 10% de mulheres que justificavam a cesárea como melhor e mais moderna ou padrão ouro para o nascimento em mulheres ricas (CHONG; MONGELLI, 2003, tradução nossa). Na Coréia do Sul, antes de 1980, período caracterizado por baixas taxas de cesárea, os partos cirúrgicos eram considerados, dentre os cuidados de saúde, os mais modernos e mais caros, dos quais somente mulheres com elevada posição sócio-econômica poderiam se beneficiar (LEE; KHANG; YUN; JO, 2005). Dessa forma, a combinação “maior renda e maior educação” relacionava-se ao acesso a esses cuidados. Nesse país foi observada elevação, em nove vezes, das taxas de cesárea a partir de 1980, passando de 4,4% em 1982 para 37,7% em 2000, ocorrendo uma estabilização a partir de 2001 na faixa de 39% (LEE; KHANG; YUN; JO, 2005) e 39,2% em 2002 (HEALTH AT A GLANCE, 2005). Esse aumento ocorreu devido ao incremento na renda da população, ao deslocamento dos partos domiciliares para dentro dos hospitais e à melhora de atendimento pré-natal, estreitando o relacionamento médico-paciente e facilitando a negociação do tipo de parto. Porém, segundo Lee et al. (2005), as taxas de cesárea atingiram um plateau e não deverão aumentar nem diminuir nos próximos anos. Há quem entenda que a solicitação da cesárea pode ser encarada como um fenômeno mundial, decorrente do modelo da economia moderna, direitos humanos e cidadania, bem como da emancipação feminina, onde a mulher tenha o papel decisivo na escolha pelo tipo de parto. Por outro lado, há autores que sugerem a existência de relação entre a aceitação da solicitação materna e a preferência dos 60 médicos frente a um modelo de parto que consideram ideal para si e seus familiares. A proporção de médicas obstetras que desejam parto cesáreo para si próprias ou seus parentes reflete sua percepção de segurança ou outras vantagens desse tipo de procedimento em relação ao parto vaginal. Como conseqüência desse comportamento médico, haveria crescente aceitação desse profissional pela execução de cesárea a pedido, sem indicações clínicas (HABIBA et al., 2006). Assim, sob a chancela da preferência médica, ocorreriam a aceitação e a realização da cesárea a pedido da paciente (COTZIAS; PATERSON-BROWN; FISK, 2001; LAND et al., 2001; MACDONALD; PINION; MACLEOD, 2002; GONEN; TAMIR; DEGANI, 2002). Para analisar a atitude médica perante a solicitação de cesárea pela gestante na ausência de razões clínicas, relacionando-a à sua preferência pelo tipo de parto, Habiba et al. (2006) entrevistaram 1530 médicos obstetras europeus em maternidades de oito países (França, Alemanha, Itália, Luxemburgo, Holanda, Espanha, Suécia e Grã-Bretanha). Em todos os países, exceto em Luxemburgo, a maioria dos médicos trabalha em tempo integral dentro do hospital, atendendo pacientes institucionais e, eventualmente, de sua clínica privada. Os resultados variaram de acordo com os países analisados: obstetras da Espanha, França e Holanda declararam-se pouco favoráveis à realização de cesárea a pedido, enquanto que os ingleses e alemães foram os mais favoráveis a esse procedimento. Essas diferenças não puderam ser explicadas por variações profissionais ou demográficas das maternidades analisadas, mas sim por fatores culturais e por diferentes modelos nacionais de atenção pré-natal e ao parto (HABIBA et al., 2006). Na Holanda, por exemplo, a baixíssima taxa de cesárea (WHO REGIONAL OFFICE FOR EUROPE, 2006) está relacionada ao modelo de assistência ao pré-natal e ao parto em gestantes de baixo risco por parteiras e médicos generalistas (“general practioners”), reforçando a característica médica de não aceitação da solicitação de cesárea sem indicações clínicas (KWEE et al., 2004). Porém, a relação entre a aceitação da cesárea a pedido e o aumento das taxas desse procedimento não foi encontrada no estudo de Habiba et al. (2006). Na Espanha, onde foi baixa a aceitação médica pela cesárea a pedido, há a segunda maior taxa de cesárea da Europa, com 22,1% em 2001 (HEALTH AT A GLANCE, 2005), abaixo apenas da Itália (WHO REGIONAL OFFICE FOR EUROPE, 2006); na Grã-Bretanha, cuja taxa de cesárea é a quarta dentre os países europeus, observou- 61 se elevada aceitação médica por essa prática, enquanto, na Holanda, tanto a taxa de cesárea quanto a concordância médica são baixas (FEINMANN, 2002; HABIBA et al., 2006). 3.4.3 Fatores Associados ao Médico Influenciando a Decisão do Tipo de Parto As questões relacionadas ao comportamento médico perante os incentivos econômicos e riscos de processos judiciais por má prática, que podem estar envolvidos na escolha do tipo de parto, fazem parte da análise da forma de organização da prática no campo da assistência ao parto. Entende-se, aqui, por aspectos relacionados a interesses econômicos as formas de remuneração que incentivariam a execução de determinado tipo de procedimento e a conveniência médica influenciando as decisões desses profissionais em benefício próprio. Em países onde os partos são conduzidos por médicos e não por parteiras, a cesárea eletiva pode ser mais conveniente e, talvez, economicamente mais interessante, sendo difícil distinguir se a cesárea ocorreu por desejo materno ou médico (WAGNER, 2000). Na ausência de controles de utilização, diferenças no pagamento podem influenciar os tipos de cuidado à paciente (DE JAEGHER; JEGERS, 2000; TURCOTTE; ROBST; POLACHEK, 2005). Favoráveis à argumentação de incentivos financeiros, Keller e Brodie (1993) diziam que esses incentivos econômicos levavam a um número excessivo de cesáreas, enquanto Gruber e Owings (1996) observaram aumento na incidência desse procedimento de 240%, entre 1970 e 1982, devido a condições econômicas favoráveis para os médicos. Seguindo o raciocínio da relação utilizaçãoremuneração, Currie e Gruber (1997) observaram que havia menor demanda médico-induzida para procedimentos como a cesárea em pacientes do Sistema Medicaid e em pacientes sem seguros médicos em relação às pacientes particulares, devido a diferenças na remuneração médica nos EUA. 62 Contrariando o argumento de que esse procedimento é mais comum para mulheres por cuja assistência os médicos recebem maiores valores de reembolso, Turcotte et al. (2005) analisaram a relação entre intervenções médicas e cobertura por um sistema de saúde nos EUA, não encontrando diferenças significativas nas taxas de cesárea entre mulheres com seguros privados e mulheres do Sistema Medicaid ou não seguradas. Grant (2005) tampouco encontrou relação entre remuneração e incidência de cesáreas nos EUA. Para Grant, incentivos econômicos de forma isolada não foram significativamente responsáveis pelo aumento na taxa desse tipo de parto no seu país, afirmando que alterações nesses incentivos não reduziriam de forma substancial a incidência desse procedimento. A autora sugeriu que os índices de cesárea poderiam ser reduzidos se houvesse mudança na assistência obstétrica, modificando a forma de pensar e agir dos profissionais que realizam o pré-natal e o parto. Habiba et al. (2006) ratificaram a conclusão de Grant (2005), de que incentivos financeiros pessoais não influenciariam as decisões médicas com relação à realização de cesárea a pedido, pelo menos na Europa, ao observarem menor grau de aceitação dessas solicitações entre médicos que tinham atividade em clinica privada e se beneficiariam desse procedimento. No modelo assistencial chinês, Tang et al. (2006) sugeriram que, devido ao modelo perverso de financiamento baseado em pagamento por serviços naquele país, obstetras ignorariam critérios médicos para realização de cesárea para gerar maiores rendimentos para os hospitais, já que estes rendimentos seriam convertidos em pagamentos de bônus para os próprios médicos. Tsai e Hu (2002) já haviam relatado que fatores econômicos e a cobertura pelo Sistema Nacional de Seguro Saúde, implantado em Taiwan em 1995, estiveram fortemente associados à incidência de cesárea, que foi 4 a 5 vezes maior em mulheres com seguro saúde do que naquelas sem esse benefício. Sob o prisma da análise de mercado, Hu e Huang (2005) dividiram os fatores de tomada de decisão pela cesárea, em Taiwan, em dois pilares: o lado da oferta e o da demanda. Com relação à oferta, esses autores incluíram questões de pagamento médico e faturamento hospitalar, enquanto que a demanda seria influenciada por aspectos associados à religião, renda per capita regional e o sistema nacional de seguro saúde. A incidência de cesárea no país é sempre maior em hospitais 63 públicos do que em privados. Nos hospitais públicos, o salário médico é misto, com uma parte fixa pequena somada a um pagamento por performance. Assim, os médicos têm incentivos para aumentar seu salário pelo seu desempenho, realizando maior número de cesáreas (HU; HUANG, 2005). Faz-se necessária uma reflexão sobre os efeitos gerenciais, como aspectos de recompensas do sistema ou dos agentes, geralmente negligenciados na questão da decisão pelo tipo de parto. O valor pago para os hospitais, pelo Instituto Nacional de Seguro Saúde, é 84% maior em casos de cesárea em relação ao pagamento do parto vaginal, diferença que faz com que os gestores hospitalares incentivem os médicos a realizar o procedimento cirúrgico. Esse incentivo ocorre por meio de remuneração 77% maior para os obstetras que assistem ao parto por cesariana ao invés de fazê-lo por via vaginal (HU; HUANG, 2005). No Chile, um dos maiores líderes em cesarianas no mundo, Murray e Elston (2005) relataram que a motivação principal era a remuneração médica pelo sistema de saúde chileno e a praticidade da realização do parto com horário previamente definido, propiciando ao médico a oportunidade de organizar melhor sua agenda. Observa-se, portanto, que trabalhos que buscam analisar a relação entre interesses econômicos dos médicos e as taxas de cesárea apresentam resultados controversos, dependendo, dentre outros fatores, do modelo assistencial de cada país. Outro aspecto a ser discutido é o comportamento médico perante os riscos de processos jurídicos por má prática médica e sua relação com as taxas de cesárea. A prática obstétrica tem sido percebida freqüentemente como uma “atividade de risco” já que os litígios nessa especialidade têm aumentado nos países ocidentais. Diferentemente de outras especialidades médicas, onde com freqüência as doenças se apresentam de forma mais agressiva e com evidente comprometimento do estado geral do paciente, na obstetrícia os insucessos geralmente são vistos como falha na execução do tratamento médico (GENTILE; LOPES; CUNHA, 2000). O aumento de reclamações por má prática e o conseqüente temor por processos fizeram com que muitos ginecologistas-obstetras excluíssem a obstetrícia de sua prática ou evitassem 64 realizar procedimentos de maior risco (CHANDRAHARAN; ARULKUMARAN, 2006). Um aspecto peculiar da obstetrícia é a presença do feto, que causa dificuldades no processo decisório no momento de avaliar riscos e benefícios para o binômio mãefeto. Isso pode resultar em atraso na tomada de decisão ou em tratamento inadequado, levando ao aumento dos riscos judiciais. Sabe-se que a maior parte dos casos de litígio é devida a resultados ruins ou inesperados e não necessariamente a má prática, mas isso não evita as ações judiciais (CHANDRAHARAN; ARULKUMARAN, 2006). Wagner (2000) chama este fenômeno de “obstetrícia defensiva”; no entanto, assumindo que a ação do medico deveria sempre ser em beneficio do paciente, se o médico realiza a cesárea com medo de processos ou dos custos por indenizações, ele não estará praticando a boa medicina. Já em 1993, uma pesquisa britânica mostrava que 42% dos obstetras locais consideravam que a razão do aumento das cesáreas seria o medo de ações médicolegais por alegações de má-prática médica (SAVAGE,1993). Mais recentemente, Habiba et al. (2006) relataram que os médicos europeus aceitavam a solicitação materna de cesárea por temor de litígio em casos de complicações durante o parto vaginal, enquanto em países com baixo índice de processos médico-judiciais, como Suécia e Holanda, o medo por litígio foi pouco significante na decisão pela realização da cesárea a pedido nesse estudo. O litígio em obstetrícia é uma realidade mundial. Entre 1990 e 1998, ocorreu na Irlanda um aumento de 450% em reclamações por negligência médica, sendo quase metade referente a casos de ginecologia e obstetrícia (BIRCHARD, 1999). O custo de litígio na Grã-Bretanha para todas as especialidades médicas é de aproximadamente 400 milhões de libras esterlinas anualmente, sendo que os serviços de maternidade representam 26% dos processos judiciais e respondem por 60 a 70% do total dos pagamentos indenizatórios. As conseqüências disso são drásticas: menor procura após a graduação médica pela especialidade, causando uma crise no recrutamento de obstetras; aumento de procedimentos para “proteção” e aumento dos custos dos procedimentos, sobrecarregando o orçamento o sistema de saúde (CHANDRAHARAN; ARULKUMARAN, 2006). 65 Para Chandraharan e Arulkumaran (2006), o parto pode ser comparado à mais perigosa jornada que devemos realizar em toda a nossa vida, já que no pequeno trajeto de aproximadamente 30 centímetros em que o feto deverá “viajar” para poder nascer ocorre, paradoxalmente, o maior número de ações judiciais da obstetrícia e da medicina, decorrentes de qualquer contratempo nesse curto caminho. 3.5 Cenário da Organização da Assistência ao Parto no Brasil Para analisarmos o cenário brasileiro da organização da assistência ao parto, desenvolveremos, de maneira breve, aspectos relacionados ao histórico da saúde da mulher em nosso país, ao desenvolvimento do sistema de saúde brasileiro, público e privado, as taxas de cesárea e a forma como a organização do trabalho nessa assistência à gestante se estabeleceu em nosso meio, envolvendo questões de formação e treinamento médico, cenário atual do trabalho médico e reserva de mercado na assistência ao parto. 3.5.1 Histórico da Saúde da Mulher no Brasil A partir do final do século XIX e no início do século XX observa-se pouco desenvolvimento da ciência e das técnicas em saúde no Brasil, onde as instituições governamentais restringem sua atuação a fiscalização e regulamentação das condições sanitárias do meio. A população recorria diretamente a médicos, cirurgiões, curandeiros, parteiras e curiosas, sendo que os pobres eram assistidos por iniciativas filantrópicas (SINGER7, 1998, apud MANDU, 2002). A assistência ao parto era feita no domicílio. No século XX, ocorreram expressivas mudanças na interpretação e efetivação dos direitos em saúde, nos conhecimentos médicos e nos modelos e práticas 7 SINGER, P., CAMPOS, O., OLIVEIRA, E.M. Prevenir e curar: o controle social através dos serviços de saúde. Rio de Janeiro: Forense-Unversitária; 1988. 66 assistenciais, que influenciaram toda a assistência à saúde no Brasil e no mundo (MANDU, 2002). Observamos iniciativas estratégicas de organização da saúde pelo governo federal, a partir do começo desse século. Na década de 1920, desenvolve-se a base inicial da atenção médico-previdenciária no Brasil, dirigida a trabalhadores inseridos no mercado de trabalho urbano e direcionada aos processos de cura mediante serviços médicos específicos, diferentemente dos serviços governamentais voltados para o controle de doenças via medidas de higiene e educação sanitária, chamada atenção médico-sanitária (COHN8, 1995, apud MANDU, 2002). Progressivamente, entre 1930 e 1945, a atenção previdenciária projeta-se, favorecida pelo financiamento do Estado, inicialmente mediante auxílios e subvenções, e depois pela compra de serviços, inclusive com a expansão significativa de serviços hospitalares públicos e privados (COHN, 1995 apud MANDU, 2002). Ocorre o desenvolvimento dos diversos setores da saúde pública e privada, simultaneamente à criação de institutos e departamentos governamentais para organizar a atenção médica em áreas específicas, como a de saúde materno-infantil. Em 1937, foi criada a Diretoria de Proteção à Maternidade e Infância para fornecer apoio técnico e financeiro às instituições públicas e privadas voltadas a essa área (CANESQUI9, 1987, apud MANDU, 2002). Depois de meados da década de 40, essa atividade de assistência firma-se, apoiada no Departamento Nacional da Criança, criado para normatizar e planejar programas integrados de proteção pública e privada à maternidade, infância e adolescência (NAGAHAMA; SANTIAGO, 2005). Assim, na primeira metade do século XX, assentam-se as bases de uma responsabilidade governamental com a maternidade, em consonância com a importância dada ao seu controle para o desenvolvimento econômico-social do Brasil, ligada à preocupação com a saúde infantil (MANDU, 2002). Buscava-se garantir crianças saudáveis para se tornarem mão-de-obra eficiente visando ao crescimento do país. Na segunda metade do século XX, observa-se avanço da industrialização nacional e fortalecimento dos movimentos e forças sociais, incorporação de políticas 8 COHN, A. Mudanças econômicas e políticas de saúde no Brasil. In: Laurell A.C., organizadora. Estado e políticas sociais no neoliberalismo. São Paulo: Cortez; 1995, p. 225-244. 9 CANESQUI, A.M. Assistência médica e a saúde e reprodução humana. Campinas: Núcleo de Estudos de População -NEPO/UNICAMP; 1987. 67 específicas e prioritárias para a saúde pública e privada no país. Em 1953, foi criado o Ministério da Saúde, que coordenou, em nível nacional, a assistência maternoinfantil, cujas diretrizes tinham o cunho nacionalista: “dever imperioso de defender de maneira eficaz a criança brasileira, em verdade, ainda o melhor elemento a salvaguardar o futuro da nacionalidade” (NAGAHAMA; SANTIAGO, 2005). A institucionalização da assistência médica individual tem marco significativo com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) em 1967 (MORAES; GOLDENBERG, 2001). Durante a década de 70, observa-se demandas crescentes por atenção médica e uma crise financeira da Previdência Social, suscitando medidas governamentais. Ocorre, então, ampliação da cobertura assistencial, observando-se também um aumento no numero de cesarianas, que dobraram entre 1970 e 1980 (MORAES; GOLDENBERG, 2001). Pagando as cesáreas de forma diferenciada em comparação ao parto normal, a Previdência acabou estimulando a generalização dessa prática (MORAES; GOLDENBERG, 2001). Em 1974/1975, o Ministério da Saúde reformula as diretrizes gerais da assistência à saúde. No campo materno-infantil, lança o Programa Materno-Infantil (PMI), formalizando ações de assistência a gravidez, parto e puerpério, de estimulo à amamentação e outras práticas (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1975). Concomitante a isso, nos anos 70, inúmeras clínicas e maternidades são construídas no Brasil, crescendo o número de leitos públicos e privados para o cuidado aos problemas relacionados ao ciclo gravídico-puerperal. O trabalho das parteiras/obstetrizes, até então valorizado, é praticamente substituído pelo trabalho de profissionais especializados, médicos obstetras, que buscam maiores rendimentos com a assistência ao parto (MANDU, 2002). Respondendo à expansão das taxas de cesáreas, não só no setor privado como também nas instituições conveniadas e públicas, a Previdência, que subsidiava as cesáreas pagando mais por elas do que pelo parto normal, passou a fazê-lo de forma igual para todos os tipos de parto a partir de 1979, porém sem conseguir modificar essa realidade (MORAES; GOLDENBERG, 2001). Simultaneamente a essas ocorrências na saúde pública brasileira, há movimentos internacionais direcionados aos direitos humanos e à “humanização” da assistência à saúde, abrindo espaço para discussões mais profundas sobre que tipo de 68 assistência à saúde, inclusive durante a gestação e o parto, a mulher deseja ter. A Declaração Universal dos Direitos do Homem se funda nas noção de dignidade e igualdade de todos os seres humanos (ONU, 1948. Disponível em: <www.who.int/entity/genomic/elsi/en>). A partir de então, diversos eventos ocorrem pelo mundo sob essa ótica. No caso em estudo, trata-se dos direitos da mulher, tendo em 1975 e 1985 ocorrido a I e a II Conferência Internacional da Mulher. Como decorrência, realiza-se, em Brasília, em 1986 a Primeira Conferência Nacional de Direitos da Mulher, para debater políticas e propostas assistenciais mais amplas, lançadas pelo Ministério da Saúde em 1983/1984, por meio do Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM) (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1984). Ocorreram, no Brasil, fóruns de amplitude internacional para a discussão das questões ligadas à atenção ao parto e ao uso de tecnologias (DESLANDES, 2005). Fortaleza foi sede de duas conferências internacionais promovidas pela OMS para discutir propostas de uma nova cultura de atenção ao parto (WHO, 1985; UMENAI et al., 2001). Nesta segunda conferência, onde estavam presentes mais de 23 países, a UNICEF e a OMS, o conceito de humanização no atendimento ao paciente foi reformulado, como significando um processo de comunicação e cuidado entre pessoas, levando à autotransformação e compreensão do espírito de vida, podendo ser aplicado a qualquer tipo de cuidado à saúde, não somente ao parto (UMENAI et al., 2001). Seria um meio para encorajar e dar poder aos indivíduos e grupos, devendo ser um conceito-chave para o desenvolvimento de uma sociedade sustentável no século XXI. Conclamaram-se todos os governos, entidades participantes da ONU, organizações internacionais e não-governamentais (ONGs) a desenvolver ações para promover a humanização (UMENAI et al., 2001). Como reflexo dessas conferências, e em virtude da realidade brasileira com elevada taxa de mortalidade materna e infantil e abuso da utilização da cesariana, alguns países e ONGs iniciaram projetos em nosso país para tentar modificar esse cenário. Em 1996, a Agencia de Cooperação Internacional do Japão (JAICA), responsável pela implementação de programas e projetos de cooperação técnica com países em desenvolvimento, iniciou projeto de colaboração para incentivar o parto humanizado em parceria com o Estado do Ceará. Esse programa, chamado Projeto Luz, que buscava introduzir uma série de condutas e políticas para melhorar a assistência ao 69 parto no Ceará, foi mantido até 2001 (UMENAI, 2001). Como resultado, houve redução da mortalidade infantil e maior capacitação de não médicos para o atendimento ao parto. Outro projeto que segue a linha de assistência humanizada no parto é o Projeto “Midwifery”, desenvolvido em Natal/RN em 1997, tendo como parceiros a Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Projeto Pró-Natal, Secretaria Municipal de Saúde de Natal e University of the West of England – Bristol, baseado em conceitos e habilidades em atenção à saúde da gestante, parturiente e puérpera, tanto em nível institucional quanto das ações básicas de saúde. Estas reflexões, que até então faziam parte de questionamentos internos ao campo da saúde e à prática de seus profissionais, são incorporadas como um conjunto de diretrizes que constituirão o escopo de diversos programas e políticas de saúde no Brasil a partir da década de 1990. Tanto que no âmbito do governo também houve reflexos dos movimentos internacionais. Respondendo a essa pressão social, com foco na saúde materno-infantil mas com ampliação do olhar sobre os direitos humanos, na década de 1990, o conceito de humanização foi estabelecido como princípio de dois programas de saúde no setor público brasileiro. O Ministério da Saúde lançou o Programa de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH) (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001) e o Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento (PHPN) (MINISTÉRIO DA SAÚDE 2002). Trata-se de um conjunto de ações que visa à integralidade da assistência obstétrica e à afirmação dos direitos da mulher (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002). O PHPN não pode ser visto sem que se considere sua relação com o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), implantado em 1984 (VAITSMAN; ANDRADE, 2005). Esse programa não entrou em detalhes sobre o modelo de parto humanizado – objeto de disputa política e ideológica – mas estabeleceu alguns princípios e recomendou uma série de procedimentos aceitos dentro de uma plataforma mais geral, como número mínimo de consultas e exames no pré-natal e puerpério, o direito da gestante saber previamente em que maternidade será realizado o seu parto e ter assegurado o acesso a ela, além da assistência humanizada e segura à mulher e ao recém-nascido no decorrer da gestação, parto e puerpério (VAITSMAN; ANDRADE, 2005). 70 O PNHAH surge como uma tentativa de enfrentar os problemas relativos à qualidade nas várias áreas do atendimento hospitalar, voltando-se para as necessidades de usuários e profissionais. Incentiva o acolhimento das pessoas, a promoção de uma cultura de respeito e valorização humana no cuidado aos usuários e a ampliação da qualidade técnica da assistência (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001). O PNHAH foi substituído, posteriormente, pela Política Nacional de Humanização – Humaniza SUS, em 2004 (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003). Por meio dessas ações, o governo federal buscou adaptar-se aos anseios da sociedade, objetivando melhorar a assistência à saúde fortalecendo as relações entre o prestador e o usuário dos serviços de saúde. Apesar desses esforços, não se observa modificação, em nosso país, da elevada utilização das tecnologias médicas, em especial da cesariana, na assistência ao parto. 3.5.2 Sistemas de Saúde do Brasil No Brasil, desde 1990, têm ocorrido modificações no perfil do Sistema de Saúde, inclusive com a sua normatização definida pela Constituição de 1988. No entanto, o modelo de saúde brasileiro apresenta deficiências relacionadas à qualidade, suficiência e equidade da atenção prestada, com problemas de ordem financeira e gerencial cuja resolução é muito complexa. Pensar o gerenciamento da saúde no Brasil requer identificar e analisar dois grandes blocos de assistência presentes: o atendimento privado e o público. Ambos se apresentam, na maioria das vezes, como um sistema fragmentado e não articulado. No âmbito público, em 1986, foi criado o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS). Com a Constituição de 1988 surge o Sistema Único de Saúde, que representou a unificação formal da assistência à saúde no país (BRASIL, 1988). O SUS incorporou os hospitais universitários do Ministério da Educação e as redes públicas e privadas conveniadas de saúde nos Estados e Municípios, formando um sistema de abrangência nacional. 71 O Sistema Único de Saúde (SUS) é, por definição constitucional, um sistema público de saúde, nacional e de caráter universal, baseado na concepção de saúde como direito de cidadania, na noção de unicidade e ao mesmo tempo na diretriz organizativa de descentralização com comando único em cada esfera de governo, entre outras. Tem como diretrizes a eqüidade, a universalidade, a integralidade e o controle social (BRASIL, 1988). A Carta Magna define que a saúde é um “direito de cidadania” que deve ser garantido por políticas sociais e econômicas. O aprofundamento do processo de descentralização deveria enfatizar a regionalização e o aumento da eqüidade, buscando a organização de sistemas de saúde funcionais que envolvessem todos os níveis de atenção, formando redes de assistência regionalizadas e resolutivas. Há problemas em qualquer sistema de saúde, não sendo diferente para o nosso sistema público. Para Riesco e Fonseca (2002), a concepção do SUS, cabível num Estado com políticas públicas condizentes às necessidades sociais, opera com incompatibilidades de ordem estrutural, sendo que na área da saúde da mulher, não obstante o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher e programas correlatos, sua construção e sua implementação vêm sendo regidas por uma lógica que privilegia grupos prestadores de serviços, em disputa por um mercado constituído de usuárias com cidadania restrita. Além disso, o SUS depara-se com financiamento insuficiente e burocratização no nível das instâncias de decisão, dificultando o cumprimento de seus princípios (RIESGO; FONSECA, 2002). Se por um lado temos esse grande sistema público de saúde com suas dificuldades e seus avanços, por outro observamos a presença do sistema privado de saúde, denominado Saúde Suplementar. Esse sistema não é recente, tendo se desenvolvido desde a década de 1950. Historicamente, alguns dos atuais esquemas de assistência privada à saúde, baseados na captação de recursos de empresas empregadoras e de seus empregados, foram criados nos anos 40 e 50. Como por exemplo, temos a implantação da Caixa de Assistência aos Funcionários do Banco do Brasil (Cassi) e a assistência patronal para os servidores do Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários (atual Geap) e, mais tarde, a inclusão da assistência médico-hospitalar entre os benefícios oferecidos aos empregados das recém-criadas empresas estatais, fato similar ocorrido também entre as empresas 72 privadas, como na indústria automobilística, particularmente das montadoras estrangeiras (KORNIS; CAETANO, 2002). A partir de meados da década de 60, as relações entre financiadores e provedores de serviços foram substancialmente modificadas. Os denominados convênios médicos entre empresas empregadoras e empresas médicas (cooperativas médicas e empresas de medicina de grupo), mediados pela Previdência Social, contando inicialmente com suas redes próprias, ganharam força na organização dos prestadores de serviços, em detrimento da prática médica liberal e da autonomia de cada estabelecimento hospitalar. As medicinas de grupo organizaram-se, inicialmente, em torno de proprietários e/ou acionistas de hospitais. Tais empresas, especializadas na comercialização de planos de saúde, logo ampliaram suas redes de serviços, formando suas redes assistenciais próprias. Mas, em virtude da presença de poderoso financiador de serviços, a Previdência Social, e diante da resistência médica à perda de autonomia, tornaram-se compradoras de consultas realizadas pelos médicos em seus próprios consultórios e de serviços, por meio do credenciamento de profissionais, laboratórios e hospitais. O sistema Unimed surge como alternativa, estruturando uma rede de consultórios e serviços médicos na forma de cooperativa de trabalho, complementada por meio de credenciamento de hospitais e laboratórios. As décadas de 60 e 70 foram marcadas pela constituição de redes de serviços privados, contratadas pelo Estado e por instituições privadas. Vigoravam, ainda, regimes diferenciados de atendimento onde, em um mesmo hospital, poderia haver acomodações diferenciadas para trabalhadores urbanos e rurais, destinando quartos particulares, e acompanhamento de médicos escolhidos pelos clientes, para os que efetuassem pagamento suplementar. No final da década de 80, revelou-se a existência de razoável mercado de planos de saúde. Ao mesmo tempo em que se observa baixos investimentos setoriais e conseqüente queda da qualidade dos serviços públicos, ocorre uma progressiva migração dos indivíduos de classe média para os planos e seguros privados (MALTA et al., 2004). Com isso, há intensificação da comercialização de planos individuais, a entrada de grandes seguradoras no ramo da saúde, a adesão de novos grupos de 73 trabalhadores à assistência médica supletiva e a vinculação de empresas privadas ao financiamento da assistência médica suplementar. Ocorre uma re-organização da rede assistencial, onde um hospital, conveniado, simultaneamente, com o SUS e com empresas de assistência suplementar, podia tornar-se, também, empresa de plano de saúde. Com o plano real, em 1994, a perspectiva de aumento do poder de compra de expressivo contingente populacional e a informalidade do mercado de trabalho estimularam a comercialização de planos individuais, por intermédio de hospitais filantrópicos e empresas médicas. Foi elevada a expansão do modelo no país, chegando a cobrir cerca de 24% da população com algum tipo de atendimento privado (IBGE, 2005). Conforme dados da ANS de junho de 2006, o setor de saúde suplementar cobre cerca de 43 milhões de beneficiários assistidos por mais de 2.000 empresas operadoras de planos de saúde, milhares de médicos, dentistas e outros profissionais, hospitais, laboratórios e clínicas (SAUDE BRASIL, 2006; ESCRIVÃO JUNIOR; KOYAMA, 2007). Esses números expressam as profundas alterações que a prestação dos serviços de saúde veio sofrendo ao longo dos anos, havendo a necessidade do estabelecimento de um ordenamento jurídico legal para o setor pelo governo, que incorpore a regulamentação desse mercado privado e a definição das suas responsabilidades. No setor privado, a regulamentação e o controle do sistema de saúde foram praticamente iniciados com a Lei 9656/98 (BRASIL, 1998a) e com a criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), vinculada ao Ministério da Saúde, pela Lei 9961/00, em 2000 (BRASIL, 2000a). A ANS trabalha para promover o equilíbrio nas relações entre as operadoras setoriais, prestadores e consumidores, cuja missão é promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, para construir, em parceria com a sociedade, um mercado sólido, equilibrado e socialmente justo. Essa regulamentação começou em 1998, mas ainda existe um grande percurso para sua consolidação (BRASIL, 1998a). Convive-se com uma grande heterogeneidade nos padrões de qualidade do setor, fragmentação e descontinuidade da atenção, que comprometem a efetividade e a eficiência do sistema como um todo, atingindo 74 as redes de cuidados básicos, especializados e hospitalares, que atendem a clientela de planos de saúde. Em função disso, a ANS vem trabalhando essa questão por meio de um plano de qualificação da assistência médica suplementar no país. A população brasileira sofre, com muita freqüência, as desigualdades existentes entre os sistemas público e privado de saúde. Em um estudo qualitativo sobre a adesão ao sistema suplementar, Farias (2001) identificou três dimensões analíticas que levam os entrevistados a identificar superioridade dos planos de saúde em relação ao SUS: qualidade da atenção, condições de acesso e segurança na assistência. No mesmo estudo, há a constatação de que os médicos do SUS não diferem dos médicos dos planos de saúde em relação à competência técnica já que, na opinião dos sujeitos da pesquisa, muitos profissionais trabalham em ambos os sistemas, o que é constatado também em alguns estudos e pesquisas nacionais (MACAHDO, 1995; CREMESP, 2002). 3.5.3 Taxas de Cesárea no Brasil - Evolução, Diferenças Regionais, Locais e entre os Sistemas de Saúde Nosso país, de dimensões continentais, apresenta enormes diferenças regionais com relação à assistência à saúde. Há preocupações em localizar a problemática assistencial do ponto de vista geográfico, que induz à análise do quadro epidemiológico com base na distribuição espacial dos recursos de saúde e torna pouco explícitos os determinantes de ordem política, demográfica e sócioeconômica. As diferenças entre a assistência ao parto em São Paulo e no restante do país salientam diversidades em recursos, cultura e acesso a serviços de saúde. Apesar dos problemas na assistência obstétrica – mortes maternas, cesarianas, intervenções desnecessárias, partos à mercê do poder médico – serem de âmbito nacional, as soluções parecem ser absolutamente localizadas, em função dos recursos disponíveis, sugerindo limitações para estabelecer propostas abrangentes para realidades diferenciadas (RIESCO; FONSECA, 2002). Interessa-nos descrever sucintamente essas diferenças regionais sob o prisma da assistência ao parto. 75 A população brasileira no ano 2000 tinha a seguinte distribuição geográfica (Quadro 1): Território (Km²) extensão % População Número % (milhões) Norte Nordeste Sudeste Sul Centro Oeste 3.829 1.531 936 681 1.531 12,9 47,8 72,4 25,1 11,6 Brasil 8.509.11 Região 45 18 11 8 18 169,8 8 28 42 15 7 Homens Mulheres 6,5 23,4 35,4 12,4 5,8 6,4 24,4 37,0 12,7 5,8 83,5 86,3 Quadro 1 – Distribuição da população brasileira, por região e sexo, Brasil 2000 Fonte: IBGE. Contagem populacional e projeções demográficas preliminares A ocupação das regiões é desproporcional quando comparada com a sua extensão territorial. Por exemplo, a Região Sudeste possui extensão correspondente a 11% do país e abriga 42% da população total (concentração), enquanto que a Região Norte, com 45% do território, possui o equivalente a 8% da população nacional. Há, no país, grande diferença de cobertura populacional de acordo com o sistema de saúde. Observa-se em 2005 que cerca de 18% da população apresentava planos privados de saúde, correspondendo a aproximadamente 37 milhões de brasileiros, enquanto que os 82% restantes são atendidos pelo sistema público de saúde. Cada um desses grupos, distribuídos de forma desigual pelo país, apresenta suas próprias características sócio-demográficas e de utilização de recursos em saúde, havendo, também, diferenças nas taxas de cesárea regionais. Há coberturas populacionais de planos de saúde heterogêneas pelas unidades federativas do país, com maior concentração nos estados das regiões Sudeste e Sul do país e no Distrito Federal. O Estado de São Paulo apresentava 38,48% de sua população assistida pela saúde 76 suplementar em 2005, enquanto em Roraima apenas 2,28% das pessoas tinham esse benefício (IDB, 2006, acessado em 10 dezembro 2007). Quando observamos a assistência à saúde sob o prisma do modelo assistencial, percebe-se que a organização da prática da assistência ao parto se estabeleceu de maneira diversa no sistema público e no privado. Dessa maneira, haverá grande variabilidade nas taxas de cesárea dependendo das unidades de análise: regiões de federação, estados, municípios, bairros ou regiões municipais e hospitais (BARBOSA et al., 2003). Além disso, numa mesma cidade, há grandes discrepâncias entre o número de cesáreas entre hospitais, especialmente quando comparamos hospitais públicos e privados. As maternidades públicas no Brasil geralmente atendem a maior parte das mulheres que não têm condições de consumir os serviços oferecidos pelas instituições privadas de saúde. A assistência ao parto nesses serviços é particularmente perversa porque pode anular de diversas formas a possibilidade de a mulher e sua família vivenciarem os aspectos agradáveis desse momento (DIAS; DOMINGUES, 2005). Analisando o país por regiões, observa-se variação importante na incidência de cesáreas, sendo as maiores taxas encontradas nas regiões Sudeste, Sul e CentroOeste, destacando-se os estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro que responderam por 45% de todas as cesáreas do país em 2004 (IDB 2006, acessado em 10 de dezembro de 2007), possivelmente relacionadas às condições sócioeconômicas e à maior cobertura pela medicina suplementar nessas regiões. Região Região Norte Região Nordeste Região Sudeste Região Sul Região CentroOeste Total 2000 29,58 26,68 46,92 42,38 2001 29,74 27,69 47,43 43,45 2002 30,34 28,11 47,94 44,29 2003 31,85 29,64 49,12 46,07 2004 33,22 31,51 50,46 48,22 Média 30,97 28,72 48,34 44,8 43,68 38,89 44,32 39,3 44,46 39,71 45,97 41,02 47,61 42,72 45,2 40,31 Quadro 2 – Proporção de Partos Cesáreos no Brasil, segundo regiões da federação, 2005 Fonte: IDB 2006. Acesso em: 10 de dez. de 2007. 77 60,0 50,0 40,0 % 30,0 20,0 10,0 0,0 1996 1997 1998 Brasil 1999' Norte 2000' 2001' Nordeste Sudeste 2002' Sul 2003' 2004' 2005* Centro-Oeste Gráfico 5 – Evolução das Taxas de cesárea no Brasil, de 1996 a 2005 Fonte: SINASC/MS. Dados do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Saúde Suplementar mostram um total de 41,02% de cesáreas no país em 2003 (Gráfico 5). Observamos marcante diferença entre esses índices dependendo do sistema de saúde, sendo que no sistema público de saúde as taxas foram, em 2003, de 26,39% e em 2004 de 27,53% enquanto que na rede de saúde suplementar atingiram cifras maiores de 80% em 2004 (Gráfico 6). Há, atualmente, hospitais privados que realizam 90% de cesáreas. 78 90 80 70 Partos* 100 Total decesarianas/Total de Proporção de Cesarianas 60 50 40 30 83,95 82,63 81,69 SINASC 41,75 39,95 Saúde Suplem entar 20 10 0 2003 2004 2005 Ano Gráfico 6 - Proporção de Cesarianas, segundo sistemas de saúde - Gráfico comparativo entre taxas de cesárea do Setor Suplementar e taxa de cesárea total (sistema público e privado - SINASC) – Brasil Fonte: Dados do SINASC – DATASUS/SINASC. Dados da Saúde Suplementar – SIP/ANS Embora as medidas governamentais federais e/ou estaduais tenham buscado a redução da incidência de partos cesáreos no sistema público de saúde, a organização da assistência obstétrica no sistema privado vem contribuindo para a elevação das taxas desse procedimento. A Região Sudeste tem, percentualmente, o maior número de habitantes, apresentando também a maior cobertura populacional de planos de saúde do país. O Estado de São Paulo apresenta uma população estimada, para dezembro de 2007, de 41,2 milhões de habitantes (FUNDAÇÃO SEADE, acessado em 10 de dezembro de 2007, disponível em http://www.seade.gov.br), dos quais mais de 10,6 milhões situam-se na capital paulista. O município de São Paulo apresentou, em 2006, 52% dos seus partos por cesariana (PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, SAÚDE, BOLETIM CEInfo 2006, acesso em 10 de dez. de 2007, disponível em: <http://ww2.prefeitura.sp.gov.br//arquivos/secretarias/saude/publicacoes/0004/Boleti mCEInfo07-07.pdf>), certamente a localidade com a maior taxa desse procedimento no país. Observamos, ainda nesse boletim, diferenças nas taxas de cesárea entre as diversas regiões da cidade, variando de 72,2% na região da Lapa/Pinheiros à 39,4% em Cidade Tiradentes, econômicas da população. possivelmente justificáveis pelas diferenças sócio- 79 3.5.4 Ações Governamentais e Não Governamentais para Reduzir as Taxas de Cesárea Em função da incidência de parto cesáreo no Brasil como um todo e nos seus estados, algumas medidas foram tomadas para tentar reverter esse quadro. Historicamente, a fim de responder à expansão das taxas de cesáreas, não só no setor privado como também nas instituições conveniadas e públicas, a Previdência Social, que subsidiava as cesáreas pagando mais por elas do que pelo parto normal, passou a fazê-lo de forma igual para todos os tipos de parto, a partir de 1979 (MORAES; GOLDENBERG, 2001). Apesar disso, permaneceram no Brasil e, em especial, nos estados do Sudeste, taxas acima de 30%. Com o intuito de reduzí-las, a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, por meio da Resolução SS-143 de 18/08/1989 (SÃO PAULO, 1989) e da Deliberação CIS/SP 39/90 (SÃO PAULO, 1990), estabeleceu que nenhum hospital próprio, conveniado ou contratado pelo SUS, poderia apresentar proporções de cesarianas acima de 30%, sob pena de ter revisadas suas contas referentes à assistência obstétrica. Apesar da intenção política não propiciar os resultados desejados, estimulando inclusive possíveis fraudes no sistema, essas medidas regulatórias fomentaram a implantação do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC), importante mecanismo de controle que passou a monitorar a realização de todos os partos no âmbito estadual (MORAES & GOLDENBERG, 2001). Algumas entidades de classe vêm apresentando iniciativas, em conjunto com órgãos governamentais, para conscientizar a população sobre riscos das cesáreas. Em 1997, o Conselho Federal de Medicina iniciou campanha de incentivo ao parto normal, intitulada “Natural é parto Normal”, sendo um dos fatores que motivou o Ministério da Saúde à intensificação do Programa de Assistência à Saúde da Mulher (JORNAL CFM 2007). O Conselho Federal de Enfermagem, em 1999, por meio da resolução 223, buscou incentivar a participação dos profissionais de enfermagem obstétrica (enfermeiros com especialização em obstetrícia) no acompanhamento ao pré-natal e parto de gestantes de baixo risco (COFEN, 1999; BRASIL, 2000c). Essa 80 prática se desenvolveria nos serviços públicos, com intensidade variável segundo as regiões do país (ÂNGULO-TUESTA et al., 2003). Ainda em 1998, o Governo Federal, por meio da Portaria 2816 de 29/05/98 e sua redefinição pela Portaria 865 de 03/07/99, publicadas pelo Ministério da Saúde (BRASIL, 1998b; 1999), traçou um conjunto de medidas para melhorar a qualidade da assistência ao parto no SUS. Dentre as medidas, ressalta-se: • Aumento no valor da remuneração pelo parto normal. • Introdução do pagamento de analgesia para parto normal. • Introdução de pagamento do parto realizado por enfermeira obstétrica. • Definição de percentual máximo de 40% de cesáreas para o 2º. semestre de 1998, com reduções progressivas chegando a 30% no 1º. semestre de 2000. Procedimentos realizados acima do limite estabelecido não seriam pagos. Após essas ações, observou-se redução nas taxas de cesárea nos hospitais do SUS, a partir de 1998, com nova tendência de elevação nos anos subseqüentes, conforme Gráfico 7. 81 Taxas de Cesárea no SUS - 1995-2005 - Brasil e Regiões 50 45 40 35 30 25 20 15 10 5 0 1995 1996 1997 BRASIL 1998 NORTE 1999 NORDESTE 2000 2001 SUDESTE 2002 SUL 2003 2004 2005 CENTRO-OESTE Gráfico 7– Evolução das taxas de cesárea no SUS, Brasil, 1995-2005 Para Cecatti10 (CECATTI, 2002, apud TEDESCO et al., 2004) o Brasil, que era o líder mundial na realização de cesáreas, pôde comemorar a perda desse recorde para o Chile em 2000 em função dos resultados advindos da decisão da Portaria 2816 de 29/05/98 de não pagar a conta hospitalar dos partos acima do limite acordado. Em 2000, nova portaria do Ministério da Saúde (BRASIL, 2000b, Portaria n.466 de 14/6/2000) institui um Pacto para Redução das Taxas de Cesarianas, firmado entre o Governo Federal e os estados e o Distrito Federal. Este pacto estabelece limite percentual máximo para cada estado/DF, isto é, taxas diferentes para cada região, de acordo com suas características locais. Porém todos deveriam garantir uma redução gradativa das taxas de cesárea, chegando a 25% até 2007. Em breve, saberemos qual foi o resultado dessa medida. 10 CECATTI, J.G. Brasil comemora perda de um recorde: o de cesarianas. Jornal da UNICAMP 2002 set 2-8;n. 188, p. 9. 82 O fato de 23% das internações hospitalares pagas pelo SUS em 2005 corresponderem ao diagnóstico de gravidez, parto e puerpério, tratando-se portanto de importante fonte de gastos em saúde, reforça a relevância do monitoramento dessas internações pelo Governo (IDB, 2006). Por outro lado, como os dados demográficos têm mostrado redução da taxa de fecundidade no Brasil (YAZAKI, 2003), o número de “clientes” grávidas do SUS será menor a cada ano, permitindo que os serviços possam aprimorar e aumentar a qualidade do atendimento. Além disso, poderá haver mais recursos possibilitando melhor remuneração para os procedimentos. De acordo com Rattner (1996), no Brasil, muitas cesáreas poderiam ser evitadas e os recursos públicos utilizados para esse fim, que são escassos, poderiam ser melhor aplicados. Uma relação custo-benefício mais adequada é obtida com início precoce do pré-natal, além de melhores condições educacionais e de higiene para a população, cabendo à sociedade o questionamento sobre qual modelo de assistência lhe convém. Para Rattner (1996), a melhor atenção nos cuidados pré-natais e as melhores práticas de parto e cuidados neonatais devem estar na pauta dos legisladores e atores envolvidos no processo de tomada de decisão a fim de obter reduções de morbidade materna e neonatal com a melhor relação custo- efetividade e qualidade. 3.5.5 A Organização do Trabalho na Assistência ao Parto A forma como se organizou o trabalho na assistência à gestante no Brasil foi influenciada de maneira relevante pelas características da formação médica, tanto na faculdade como na residência, bem como pelo mercado de trabalho médico, que se modificou no final do século XX. Associadas a isso há questões de poder e disputa de mercado do obstetra com outros profissionais de saúde, levando a um cenário conturbado na organização da prática obstétrica. 1. Formação Médica Geral e em Ginecologia e Obstetrícia 83 Os homens, ansiosos por explicar os fenômenos que os cercavam e por elaborar e expressar aquilo que não conheciam, criaram e se utilizaram de mitos, explicações mágicas ou sobrenaturais, que constituíram os primórdios do conhecimento sobre eles próprios e o mundo. Assim ocorreu também em relação à medicina e ao que seriam saúde e doença, estabelecendo analogias entre corpo e natureza e seus processos (CASTOLDI11, 1996 apud GILBERT; CARDOSO; WUILLAUME, 2006). É a partir de Hipócrates de Cós que a medicina ganha contornos mais científicos e menos mágicos no que se refere ao entendimento das doenças. Os conceitos gregos sobre saúde e doença são ampliados por Galeno, no século II, e permanecem dogmáticos por cerca de 14 séculos (CASTOLDI, 1996 apud GILBERT; CARDOSO; WUILLAUME, 2006). No final do séc. XVIII, dois grandes temas associados ao exercício da Medicina se estabelecem: o do poder médico, equivalente ao poder clerical, e o da eliminação da doença, resultado de uma sociedade cujo controle médico ajudou a organizar (FOUCAULT12, 2003 apud GILBERT; CARDOSO; WUILLAUME, 2006). Com base nesses dois tópicos, estabelecem-se a Medicina contemporânea e o ensino médico. A formação médica tem sido objeto de estudo da antropologia desde a década de 1960 (HOWARD BECKER et al.13, (2002), apud HOTIMSKY; SCHRAIBER, 2005), sendo considerada um dos mais longos ritos de passagem. A aprendizagem do exercício da medicina é analisada por estes autores não apenas como processo de aquisição de conhecimentos científicos e aptidões técnicas, mas também como iniciação a um novo status. Segundo Good e Good14 (1993 apud HOTIMSKY; SCHRAIBER, 2005), a cultura médica nos EUA, à semelhança do Brasil, é caracterizada por uma ideologia baseada em duas dimensões. Uma delas, por eles denominada “competência”, refere-se ao conhecimento técnico e científico e se expressa na linguagem das ciências básicas; a outra, o “cuidado”, refere-se à 11 CASTOLDI, M.A. Tornar-se pediatra: o desenvolvimento do raciocínio clínico na residência médica do IFF. Dissertação (Mestrado) – Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro. 1996. 12 FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária. 2003. 13 BECKER, H.S. et al. Boys in white: student culture in medical school. Transaction Publishers, New Brinswick. Publicado originalmente em 1961 pela University of Chicago Press. 2002. 14 GOOD, B.J.; GOOD, M.D. Learning medicine: the construction of medical knowledge at Harvard Medical School, 1993,p. 87-101. In: S. Lindenbaum & M. Lock (orgs). Knowledge, power and practice: the anthropology of medicine and everyday life. University of California Press, Berckley. 84 dimensão intersubjetiva, isto é, às interações entre os sujeitos em relação ao ato assistencial, que se expressa na linguagem de valores, atitudes e emoções. Essas duas dimensões gozam de valorização desigual não só no ensino (GOOD; GOOD, 1993), como também no exercício do trabalho médico (HOTIMSKY; SCHRAIBER, 2005), à medida que se privilegia o desempenho técnico científico, enquanto a dimensão intersubjetiva tende a ser tratada como aspecto secundário do trabalho e da socialização em medicina. Esta valorização se dá tanto do ponto de vista dos próprios profissionais de saúde quanto da sociedade de modo geral. (SCHRAIBER, 1997). Em virtude dessa dicotomia entre o técnico e o humanístico, vários estudos têm apontado para a necessidade de mudanças no ensino da medicina e sugerem a busca de novas perspectivas de se relacionar com o paciente. Alguns propõem a introdução do ensino de humanidades (CARSON, 2000) e da Bioética, de forma a ampliar o olhar do estudante (RODRIGUEZ et al., 2004; SIQUEIRA; EISELE, 2000). Para Gilbert et al. (2006), talvez a questão seja mais profunda do que o acréscimo de informação. Eventualmente falte abrir arenas de discussão, não apenas para aprender sobre novas tecnologias diagnósticas e terapêuticas, mas para refletir sobre o processo de construção de identidade profissional do médico. Nesse processo, encontram-se inseridos o desenvolvimento da competência narrativa, a importância da sensibilidade no aprimoramento do raciocínio clínico, as dúvidas e inseguranças inerentes à transição entre aluno e profissional e, principalmente, as teias de relações nas quais se encontram envolvidos médicos e pacientes em um contexto cultural específico, compartilhando valores, conceitos, padrões que estão presentes e atuantes, ainda que de forma subliminar, no momento da consulta (GILBERT; CARDOSO; WUILLAUME, 2006). A questão das mudanças no ensino médico passa pelos valores e posturas dos professores universitários. Talvez a variação na grade curricular seja expressão do valor da autonomia universitária e, mais especificamente, da autonomia de que gozam professores e/ou colegiados dos departamentos, no desenvolvimento dos seus programas na escola médica (HOTIMSKY; SCHRAIBER, 2005). Nesse contexto dicotômico forma-se o médico, seguindo em sua especialização na residência médica. Esta é uma fase de intensas modificações na cultura e no 85 comportamento do profissional da medicina. É, portanto, um período de construção da identidade profissional, conjugando informação e experiência. Além disso, a atual dificuldade de absorção dos profissionais médicos pelo mercado de trabalho no Brasil, aliada ao aumento do número de cursos de graduação de qualidade duvidosa, estabelece a residência médica como um diferencial na profissão (GILBERT; CARDOSO; WUILLAUME, 2006). Importante ressaltar que, embora a residência médica tenha papel fundamental na formação do médico nos dias atuais, não há falta de vagas no país. Das 26.991 vagas disponíveis, somente 16.483 estavam ocupadas em 2007. Em entrevista para o Jornal da Associação Médica Brasileira, Lopes (2007) relata que há uma má distribuição de médicos, que procuram os grandes centros, buscando tecnologia de ponta, acreditando que sem essa tecnologia a residência não será adequada. A formação médica deve integrar na faculdade ou na residência, além dos aspectos técnico-científicos, aspectos humanísticos, fundamentais na relação entre o médico e a paciente a qual experimenta durante a gestação momentos de intensas modificações físicas e emocionais. A questão das cesarianas passa fundamentalmente pela experiência, pelos ensinamentos e valores oferecidos ao residente de obstetrícia. O papel das escolas médicas é fundamental na revisão dos conceitos sobre a assistência ao parto, considerando as normas da OMS e as evidências, que devem embasar o uso de intervenções, lembrando que, para essa entidade, as intervenções médicas devem ser mínimas, assegurando a saúde da mãe e seu filho (WHO, 1996). Nesse sentido, a introdução dessas normas deveria ser de competência dos professores durante os estágios e residência médica em obstetrícia. Porém, alguns estudos mostram resultados que comprometem essas ações. Moraes e Goldenberg (2001), em seu trabalho, observaram que havia entre os docentes da Faculdade de Medicina entrevistados a valorização das cesáreas, desconsiderando os riscos associados a essa prática. Da mesma maneira, residentes e alunos entrevistados nesse trabalho relataram que, embora valorizassem formalmente o parto normal, estavam convencidos, ao término de sua formação, da inviabilidade de sua realização na vida prática. 86 Dias e Deslandes (2004) entrevistaram duas gerações de médicos com uma diferença de 20 anos de formação, identificando que nesse período ocorreu o abandono das técnicas de operatória obstétrica transpélvica (por exemplo o uso de fórcipe) e sua substituição, na resolução das complicações do trabalho de parto, pela cesariana. O ensino e a prática destas técnicas usadas no parto vaginal difícil foram praticamente extintos, deixando os novos profissionais pouco capacitados para enfrentar situações em que sua utilização evitaria a cesariana. A insegurança na realização destas manobras, associada ao receio de um processo judicial, faz com que sua utilização esteja reservada às situações desesperadoras, quando não há mais a possibilidade de realizar uma cesariana e portanto com grandes chances de um mau resultado neonatal. Como na análise dos dados neonatais desfavoráveis, resultantes dos partos vaginais, levanta-se quase sempre a possibilidade de que uma cesariana poderia ter evitado o desfecho negativo sem avaliar possíveis complicações maternas ou fetais decorrentes desse procedimento, reitera-se a impressão de que é mais seguro realizar a cirurgia. Para Faúndes e Silva (1998), a preparação dos alunos para a boa assistência ao parto tem sido falha, formando de maneira inadequada seus obstetras. Tedesco et al. (2004) acreditam ser essencial a quebra da resistência cultural nas escolas médicas, começando pela mudança na formação do estudante de Medicina, ajustando sua conduta aos imperativos da ética médica e boas práticas clínicas. Para Dias e Deslandes (2004), a própria deficiência na formação obstétrica serve como justificativa para ampliar as indicações de cesariana, já que, havendo muitas cesarianas indicadas, não existe a possibilidade de que um residente não tenha a oportunidade de realizar várias destas cirurgias durante o seu programa de residência. Por outro lado, as manobras obstétricas de assistência ao parto pélvico, ao parto gemelar ou mesmo a aplicação de fórcipe são realizadas raramente, fazendo com que os residentes e os próprios médicos obstetras tenham cada vez menos a oportunidade de praticá-las (DIAS; DESLANDES, 2004). Este círculo vicioso faz com que as manobras de operatória obstétrica e o parto fórcipe sejam utilizados com menor freqüência. Com o passar do tempo, um número menor de profissionais estará treinado para realizá-las e conseqüentemente ensiná-las aos novos obstetras. 87 2. Cenário Atual do Trabalho Médico no Brasil A atuação de intermediários no trabalho médico, a mercantilização da profissão, a transformação do exercício liberal da Medicina, as deficiências no ensino médico, a abertura desenfreada de novos cursos de Medicina, a concentração de profissionais nos grandes centros, as dificuldades do Sistema Único de Saúde e as falhas de regulamentação dos planos privados de saúde são alguns dos fatores que compõem um complexo cenário que repercute, não só na oferta de empregos, mas também nas condições dignas de trabalho e de remuneração dos médicos no Brasil (CREMESP, 2002b). O caráter tradicionalmente liberal da Medicina tem sido alterado significativamente nos últimos tempos. Em nosso país, boa parte dos mais de 260 mil médicos que atuam na profissão médica alia trabalho assalariado e prática autônoma em consultórios e organizações hospitalares, numa jornada em que chega-se a acumular três ou mais empregos. Enquanto nos hospitais da rede pública predomina a contratação de médicos de forma assalariada, no setor privado prevalece a vinculação desses profissionais como autônomos ou como prestadores de serviços terceirizados, por meio de cooperativas ou empresas médicas (CREMESP, 2002b). O trabalho médico está sujeito às leis gerais de mercado, que estabelecem as relações de oferta e demanda, considerando-se como oferta a totalidade de indivíduos que trabalham ou que buscam trabalho num determinado setor e como demanda os postos de trabalho, ocupados ou não, naquele setor (MACIEL FILHO; PIERANTONI, 2004). Há dois fatores institucionais que determinam o mercado de mão de obra para o médico: o sistema de ensino, que pode limitar a oferta de trabalho regulando o número de vagas e o modelo de atenção à saúde, que atua sobre a demanda e a composição da força de trabalho. Tanto a estrutura quanto o volume de oferta são regulados pelo sistema formador, sendo pressionados por demandas sociais, demográficas, político-ideológicas e econômicas. O volume e a estrutura da demanda refletem as formas de organização da assistência à saúde, afetadas pelo direcionamento de políticas sociais e pelas mudanças tecnológicas no setor (MACIEL FILHO; PIERANTONI, 2004). No Brasil, diferentemente do que 88 ocorre em outros países, não há uma política de regulação de vagas de acordo com a demanda, seja para a formação, seja para a especialização de profissionais. Maciel Filho e Pierantoni (2004) relatam que, desde a segunda metade do século XX, além dessas leis gerais de mercado, a força de trabalho na área da saúde vem subordinada às especificidades do mercado de saúde. Dos anos 1960 a meados da década de 1980, a ação estatal fomentou e financiou o desenvolvimento de um complexo médico-industrial de produção de insumos e serviços, por meio de contratos com a rede privada, organizando a prática médica em moldes essencialmente capitalistas. Houve grande expansão da rede hospitalar privada, correspondendo esse setor a 81% da rede de serviços hospitalares do país em 1979. O crescimento do setor privado com fins lucrativos contribuiu para transformar o profissional médico num trabalhador assalariado, fixando padrões de compra e venda de força de trabalho e de serviços. Desde essa época, devido à queda de salários reais dos médicos, a prática do multi-emprego foi estimulada, comprometendo a motivação e a dedicação da categoria médica em relação às suas atividades profissionais. Surgem os planos de saúde na intermediação desse mercado de saúde, fazendo com que o modelo hegemônico da prática médica, baseado na relação individualizada entre médicos e pacientes, sem intermediários que estipulassem tempo, forma ou valor da consulta, fosse substituído por relações intermediadas e mais complexas no exercício da atividade profissional (MACIEL FILHO; PIERANTONI, 2004). Com essas modificações, no final do século XX percebeu-se a necessidade de estudar o trabalho e o perfil do médico, figura central na assistência médica que viu seu papel, aos poucos, se modificar. O primeiro grande trabalho nacional, intitulado “Perfil dos Médicos do Brasil”, foi realizado em 1995, pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Recursos Humanos em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública em parceria com Conselho Federal de Medicina (CFM), Federação Nacional dos Médicos, Associação Médica Brasileira (AMB) e Ministério da Saúde (MS). Em nível estadual, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP) realizou, em 2000, por meio do instituto Datafolha, pesquisa com médicos paulistas. Esse trabalho foi ampliado pelo CREMESP, em parceria com o Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Minas Gerais (NESCON), com o 89 apoio da Organização Pan-americana de Saúde. Seu produto foi o estudo “Mercado de Trabalho Médico no Estado de São Paulo” (CREMESP, 2002b) que, devido a características estruturais e de grandeza, o tornam um dos maiores e mais complexos mercados de trabalho do mundo. Esse trabalho foi finalizado em 2002. Em 2004, o Conselho Federal de Medicina elaborou novo estudo nacional, “O Médico e seu Trabalho”. Com esses trabalhos, é possível avaliar as mudanças pelas quais o mercado de saúde passou em uma década e inferir algumas tendências para os próximos anos. Mais recentemente, temos pesquisa do CREMESP sobre o perfil dos médicos em 2007. Também há um trabalho de Pinto et al. (2003) que analisa especificamente o mercado de trabalho dos obstetras e ginecologistas. O trabalho “Perfil dos Médicos do Brasil” (MACHADO, 1995) identificou algumas características dos médicos brasileiros (na época 183.052 profissionais) em nível nacional e por estados. Alguns números do Brasil e do Estado de São Paulo, em 1995: • Apenas 1,7% dos médicos do país abandonaram a profissão sendo que, em São Paulo, apenas 0,2% o fizeram; • O sexo masculino era preponderante, com 67,3% de homens médicos no país; • A distribuição dos médicos no país não acompanhava, na mesma proporção, a distribuição populacional, pois enquanto apenas 24,0% da população residia nas capitais, nesses locais exerciam a profissão cerca de 65,9% dos médicos, numa relação de 3,28 médicos para cada 1000 habitantes, enquanto que, no interior, a relação era de 0,53 médicos para cada 1000 habitantes; • O estado de São Paulo concentrava o maior número de médicos do país, distribuídos de forma semelhante entre capital e interior; • A maioria dos médicos brasileiros (63,8%) tinha menos de 45 anos e, entre os paulistas, esse percentual chegava a 75%, como conseqüência do boom das escolas médicas nas décadas de 70 e 80; • Altos índices de parentesco entre médicos sugeriam uma linhagem médica familiar: 48,2% possuíam parentes diretos (pai, irmãos ou filhos) que também eram médicos; entre os paulistas, essa taxa era de 46,9%; • Dentre as especialidades, a ginecologia e obstetrícia foi a segunda mais procurada, com 11,8% no país, o mesmo ocorrendo no estado de São Paulo; 90 • 75,6% dos médicos brasileiros tinham até três atividades profissionais e 24,4% tinham quatro ou mais atividades, demonstrando o multi-emprego, comportamento observado em todas as regiões do Brasil; • Os consultórios destacaram-se como a modalidade de trabalho que mais se aproximava da condição de profissional liberal (70 a 85% dos médicos realizavam essa atividade); 75 a 90% desses profissionais declararam depender diretamente dos convênios com empresas de saúde, medicina de grupo, cooperativas médicas, entre outros, para a manutenção de seu consultório; em São Paulo, 82% dos médicos do interior e 74% da capital tinham consultório, igualmente dependentes das operadoras de saúde; • 50% dos médicos paulistas faziam plantão e mais de 50% não se consideravam profissionais liberais; • Quanto ao rendimento mensal proveniente do trabalho médico, a moda nacional era de 1.280 dólares; • Na análise nacional, 74,1% dos médicos fizeram residência médica e 40,7% algum curso de especialização, semelhante ao observado no contexto paulista; • Com a franca deterioração dos rendimentos médicos, houve redução da sua participação em encontros científicos e no acesso às inovações técnicocientíficas, através de publicações (somente 13,7% tinham acesso a publicações internacionais); • A maioria dos médicos (80%), em todas as regiões, considerou a profissão desgastante e menos de 20% eram otimistas com relação ao futuro da atividade médica. Dentre as conclusões dos coordenadores desse estudo, observa-se que os médicos estavam insatisfeitos com o mercado, com o salário e com as condições de trabalho, bem como inseguros com a pressão da sociedade. Apesar disso, 80% dos médicos declararam gostar da atividade profissional que executavam. Em 2000 o Instituto Datafolha executou, para o CREMESP, pesquisa de opinião para verificar a percepção dos médicos sobre a atuação do Conselho e para analisar o seu perfil (CREMESP 2002b). Com relação à pesquisa nacional, os dados são 91 muito semelhantes. Dentre as conclusões, a maioria (53%) dos médicos estava parcialmente satisfeita e apenas 34% totalmente satisfeita com a profissão. Havia ainda predomínio masculino no Estado, com 64% de homens exercendo a profissão. A média de idade era de 41,5 anos, com 16 anos de atuação na área médica e 46% dos médicos com renda familiar mensal superior a R$ 7.550,00 (incluindo outras fontes de renda da família). Comparando-se os dados da pesquisa nacional de 1995 e essa de 2000, a atividade médica em consultório foi reduzida em torno de 20% no estado de São Paulo e houve aumento de 9% da atividade médica no setor público, principalmente no interior do estado. Para os pesquisadores, essa retração foi causada, provavelmente, pelo descredenciamento de médicos, promovido pelos planos de saúde no final da década de 1990, e pela inviabilidade crescente da atividade liberal devida a essa intermediação na relação médico-paciente. Em 2002, publicou-se o estudo do CREMESP com o NESCON, também com enfoque no Estado de São Paulo. Cerca de 30% de todos os médicos do país, estimados naquele ano em 260 mil profissionais, atuavam no Estado. Observou-se a elevada participação da administração pública no estoque de empregos médicos (60,9% em São Paulo), com alta prevalência de vínculos estatutários (vínculo empregatício de funcionários públicos com regime jurídico e estatuto próprios, diferente da CLT) nesse mercado, demonstrando a forma hegemônica de contratação do setor público para o emprego formal assalariado. Os resultados desse estudo corroboram os anteriores, confirmando que menos de 20% dos profissionais do Estado exerciam apenas uma atividade. A remuneração média por vínculo trabalhista era de R$2.585,79, com ampla variação (de R$1.554,81 a R$5.750,52 dependendo do tipo de atividade exercida) (CREMESP, 2002b). Em nível nacional, novo trabalho foi desenvolvido pelo Conselho Federal de Medicina em 2003 e divulgado em 2004, ratificando algumas tendências do trabalho médico no Brasil observadas no estudo de Machado (1995). Trata-se do estudo “O Médico e seu Trabalho” (CFM, 2004): • Total de médicos no Brasil passou de 197.557 em 1995 para 234.554 em 2003 (incremento de 18,7%); 92 • Ampliou-se o exercício profissional baseado em múltiplos vínculos, passando de 24,4% em 1995 para 28,2% em 2003 a porcentagem de médicos com mais de três atividades profissionais; • Houve redução do número de médicos que atuam em consultório, de 74,7% para 67%, bem como daqueles que atuam no setor privado, de 59,3% para 53,8%, permanecendo inalterada a percentagem daqueles no setor público (69,7%), o qual passa a ocupar o primeiro lugar como empregador em 2003; • Aumento do percentual de médicos que trabalham em regime de plantão, passando de 48,9% em 1995 para 51,8% em 2003; • Mantiveram-se inalterados os percentuais de atuação médica predominantemente hospitalar, a constituição etária, principalmente jovem, desses profissionais e a tendência de aumento de ingressos femininos na profissão médica. Em 2007 o CREMESP divulgou a mais recente pesquisa sobre o perfil dos médicos do Estado de São Paulo (JORNAL DO CREMESP, out. 2007, p.6). Este trabalho declara que, pela primeira vez, o número de mulheres superou o de homens em novos registros no mercado médico estadual. Formaram-se 3.030 médicos em 2006, dos quais 1.568 (51,75%) mulheres, apesar de que, no conjunto total de 92.558 médicos atuantes, 61,65% ainda são do sexo masculino. Observa-se uma concentração de médicos em São Paulo, atraídos de outras localidades do país: 38% dos médicos formaram-se em outros estados. Outros dados observados nesse estudo: • número de profissionais médicos cresce mais que a população, isto é, de 1980 a 2006 a população cresceu 63,94% enquanto o número de médicos aumentou 247,41%. Assim, enquanto em 1980 havia 1,06 médicos para cada 1.000 habitantes, em 2006 esse índice passou a 2,3 médicos para cada 1.000 habitantes; • algumas cidades apresentam taxas elevadas de médicos por habitante, como Botucatu, com 6,1 e São Paulo com 3,96 médicos para cada 1.000 habitantes; • menos de 40% dos médicos no Estado cursaram Residência Médica; 93 • médicos jovens são cada vez mais freqüentes, com 28,7% formados há nove anos ou menos. Quando procuramos estudos sobre o mercado de trabalho em determinadas especialidades, encontramos dificuldades. Em 2003, foi publicado trabalho de Pinto et al. (2003) intitulado “O Mercado de Trabalho dos Médicos Gineco-Obstetras no Brasil”. Trata-se de uma análise utilizando três bases de dados secundárias, desenvolvidas por entidades diferentes: a primeira é o já mencionado trabalho de Machado de 1997, um levantamento amostral de dados nacional, com dados projetados para o ano 2000 a partir de informações disponibilizadas pelo Conselho Federal de Medicina; a segunda é a “Pesquisa de Assistência Médico-Sanitária” produzida pelo IBGE em 1999, de natureza censitária, fornecendo dados de recursos físicos e humanos do sistema de saúde; a terceira é o Sistema Nacional de Informações coordenado pelo Ministério da Saúde e que forneceu dados de remuneração dos prestadores de serviço no ano de 2000. Esse trabalho estimou que havia, em 2000, 28.500 profissionais médicos ginecologistas e obstetras no Brasil, representando a segunda maior especialidade, com 12% do total de 223.000 médicos brasileiros. Desses gineco-obstetras, 60,6% moram nas capitais e 60,9% são do sexo masculino. Quase 50% tem menos de 40 anos de idade, ou seja, menos de 15 anos de formado. Igualmente ao resultado de outros estudos, o parentesco médico é outra característica marcante, sendo o número médio de parentes na profissão igual a dois. Além disso, semelhante às outras especialidades, os gineco-obstetras atuam em três atividades em média, combinando o consultório médico (87,3%), a prática no setor público (74,5%) e a atuação no privado (60,1%). Noventa por cento dos médicos que atuam em consultório dependem dos convênios com operadoras de planos de saúde. Até os 40 anos de idade, 60% dos gineco-obstetras realizam plantões em instituições públicas ou privadas. A renda mensal média desses profissionais era de 2.853 dólares em 2000. Foi realizada nesse estudo (PINTO et al., 2003) análise do acesso ao médico ginecologista e obstetra pela população. A distância média a ser percorrida por um habitante até encontrar uma unidade de saúde com disponibilidade de cuidado por 94 esse profissional varia, de acordo com o tamanho da cidade, desde 22-23 quilômetros para localidades com menos de 20.000 habitantes até 2 quilômetros para grandes cidades. Isso demonstra a distribuição desigual de médicos dessa especialidade no país. De maneira geral, os estabelecimentos públicos são os maiores empregadores desses especialistas no Brasil, exceção feita às cidades com mais de 200.000 habitantes, onde o maior empregador são os estabelecimentos exclusivamente privados, não conveniados ao SUS. A análise do mercado de trabalho médico não deve estar descolada da reflexão sobre a formação médica e o aumento da oferta de mão de obra a esse mercado. Os dados revelam uma ampliação dos cursos e das vagas de graduação em medicina, observando-se de 1995 a 2001 a criação de 21 novos cursos, com incremento de quase 37% na disponibilidade de vagas, principalmente no setor privado de ensino (VIEIRA et al., 2004). Além da expansão houve distribuição heterogênea das escolas de Medicina. Dados da Associação Brasileira de Educação Médica demonstram que, em 2003, havia 112 escolas médicas no Brasil, das quais 68% estavam concentradas nas regiões Sudeste e Sul (VIEIRA et al., 2004). Embora exista uma oferta substancial de egressos de Medicina no país, identifica-se uma desproporção quantitativa de profissionais por habitante nas diferentes regiões, concentrando-se em grandes centros urbanos (VIEIRA et al., 2004). Aliada à proliferação de escolas, primordialmente privadas, e à massificação do ensino, segundo Vieira et al. (2004), verifica-se uma queda na qualidade do ensino médico, sendo que nem sempre as escolas criadas apresentam capacidade técnica e instalações adequadas às necessidades dessas formações, que exigem importantes laboratórios, tecnologia e infra-estrutura. A falta de articulação histórica entre o setor educacional e o da saúde, refletida na crescente autorização de funcionamento de cursos de graduação em Medicina em instituições vinculadas ao setor privado da educação, e a baixa capacidade regulatória do Estado na política de formação de especialistas, merecem ser revistas pelos setores saúde e educação em conjunto com a sociedade (MACIEL FILHO; PIERANTONI, 2004). 95 Transcorridas quase duas décadas da implantação do SUS, os principais obstáculos à garantia de universalização e equidade da atenção à saúde continuam sendo os desequilíbrios econômicos, regionais e institucionais que caracterizam o setor saúde e que compõem o quadro geral de desigualdades da sociedade desde seus primórdios (MACIEL FILHO; PIERANTONI, 2004). Dessa maneira, ao se caracterizar o mercado de trabalho médico no Brasil no Estado de São Paulo e o mercado nacional para ginecologistas e obstetras, poderemos analisar melhor as condições da organização do trabalho e o modelo assistencial em nosso país. 3. Modelo Assistencial Obstétrico no Brasil Hotimsky et al. (2002) identificam que as taxas de cesárea apresentam como forte componente desencadeador a forma como se organizou a assistência obstétrica em nosso sistema de saúde, público e privado, onde se observam duas realidades bem distintas, cada uma com seu modelo característico de assistência ao parto. Há uma parcela pequena da população, de nível sócio-econômico privilegiado, que possui planos ou seguros de saúde e, por isso, pode escolher os profissionais médicos que desejar e negociar com eles o tipo de assistência médica que lhe convém. Essa clientela, assistida pelo Sistema de Saúde Suplementar, geralmente é atendida pelo mesmo médico tanto no pré-natal como durante o parto, mantendo estreito relacionamento médico-paciente. Na clínica privada, é freqüente o acompanhamento minucioso do pré-natal pelo médico que vai realizar o parto. Entretanto, para Hotimsky et al. (2002), a sobrecarga na jornada de trabalho do obstetra, que inclui atividades em consultório particular, plantão em hospitais públicos, atendimento ao parto em hospitais privados e, às vezes, atividades de ensino e pesquisa dificulta ou até inviabiliza o acompanhamento do trabalho de parto, favorecendo a decisão pela cesariana. No modelo privado, predominante nos hospitais particulares, a decisão sobre o tipo de parto depende do obstetra e da mulher, sofrendo pouca ou nenhuma influência do hospital, que não estabelece normas ou rotinas a serem seguidas, fornecendo apenas a estrutura para a qual médicos trazem suas pacientes particulares para serem atendidas durante o parto. Existe um obstetra de plantão, mas a maioria dos partos é realizada por obstetras externos que vêm ao hospital privado somente para acompanhar suas pacientes 96 particulares. O atendimento é pago pela mulher, seja diretamente ou por meio de seguros-saúde aceitos pelo hospital. O modelo de assistência médica privada baseia-se na estreita relação médico-paciente na população mais rica, favorecendo a realização da cesárea eletiva, supondo-se que isso garantiria à paciente a execução do seu parto assistido pelo seu médico (GOMES et al., 1999). Essa clientela, em geral, não aceita ser assistida por outro profissional no momento do parto. A outra parte da população brasileira, bem maior que a primeira, é atendida pelo Sistema Único de Saúde, que presta serviços de assistência médica pelo serviço público, ambulatorial e hospitalar. Hotimsky et al. (2002) entendem que gestantes sem acesso a convênios médicos ou serviços particulares freqüentemente não têm a chance de escolher o médico que irá assisti-las e, provavelmente, não terão poder de negociação sobre o tipo de parto de sua preferência ou a forma de atendimento que desejam. De maneira corriqueira, o parto é feito por um profissional médico diferente daquele que fez o pré-natal. Essa desvinculação entre o pré-natal e o parto no serviço público pode ser considerada fator contribuinte para a realização de cesáreas, em função da ausência de informações, no momento do parto, sobre a gestação atual e anteriores. Além disso esse médico, geralmente de plantão nos hospitais que atendem o SUS, não estabelece uma relação médico-paciente adequada por não ter conhecido previamente a gestante (HOTIMSKY; RATTNER; VENANCIO; BOGUS; MIRANDA, 2002). Há relatos de que em alguns hospitais públicos não se permite que parturientes permaneçam em evolução de trabalho de parto entre um turno de plantão e outro, prevalecendo a conduta de que todos os casos devem “ser resolvidos” no próprio plantão (FREITAS15, 1999, apud d’ORSI 2003). No modelo público, o atendimento é gratuito e existem normatizações e propostas de melhoria da qualidade e humanização da assistência ao parto. Geralmente há uma coordenação ou gerência que busca regular a prática obstétrica de acordo com as diretrizes propostas pelo hospital e pelo SUS, envolvendo inclusive a realização de cesarianas (HOTIMSKY; RATTNER; VENANCIO; BOGUS; MIRANDA, 2002). 15 FREITAS, P.F. The epidemic of caesarean sections in Brazil, factors influencing type of delivery in Florianópolis, South Brazil. Phd (Thesis) - London School of Hygiene and Tropical Medicine. 1999. 97 Assim, a realização desse procedimento cirúrgico segue lógicas próprias a depender do contexto em que se encontram médico e gestante. Observa-se que clientelas atendidas em diferentes modelos assistenciais poderão desfrutar de formas diversas referentes ao relacionamento médico-paciente, fator que pode influenciar a decisão pelo tipo de parto. A relação médico-paciente foi classificada por Emanuel e Emanuel (1992) em quatro tipos: paternalístico, informativo, interpretativo e deliberativo. Cada um desses modelos assume diferentes tipos de comunicação. O modelo paternalista, raramente aplicado na medicina atual, determina que o médico pode reconhecer e aplicar valores e fatos, facultando pequena autonomia ao paciente. Nesse caso, o médico decide e age, independente de qualquer autorização do paciente. Do lado oposto, temos o modelo informativo, onde o médico, provido de informações técnicas e objetivas, relata apenas os riscos e benefícios e o paciente assume e toma as devidas decisões no cuidado de sua saúde. O paciente tem completo controle sobre as decisões terapêuticas. Nesse modelo, como não há interferência das recomendações ou opiniões medicas, não há parceria entre médico e paciente no processo de tomada de decisão. No modelo interpretativo, o médico assiste ao paciente, integrando os valores do mesmo ao planejamento dos cuidados. Já o modelo deliberativo permite ao médico guiar o paciente para a escolha das melhores intervenções de acordo com seus valores. Esse modelo é semelhante ao interpretativo, porém há mais comunicação ao paciente sobre os valores do próprio médico. No aconselhamento para a decisão pelo tipo de parto, o modelo deliberativo seria o mais adequado. O médico forneceria informações sobre as vantagens e desvantagens da cesárea para a mãe e para o feto, com o cuidado de evitar qualquer coerção nessa relação, reconhecendo que os seus valores não necessariamente são os mesmos de sua paciente (MINKOFF, 2006). Dessa forma, o autor define que a paciente teria o direito de escolher seu tipo de parto e o médico, de acordo com sua consciência e seus conhecimentos técnicos, de aceitar ou rejeitar o seu pedido. Dependendo do modelo de relação médico-paciente empregado, diferentes princípios éticos emergem como relevantes na tomada de 98 decisão (ACOG, 2003). Os princípios éticos que norteiam essas relações são a autonomia (após devidamente informada sobre os riscos e benefícios, a paciente tem o direito a escolher, aceitar ou recusar procedimentos médicos), beneficência (obrigação médica em promover a saúde e o bem estar do paciente), nãomaleficência (obrigação médica em não prejudicar o paciente), justiça (dentre outras definições, implica em considerar os pedidos dos pacientes para procedimentos eletivos como qualquer outro pedido de pacientes e alocar recursos da maneira mais racional para a sociedade) e veracidade (falar a verdade de acordo com os preceitos e o conhecimento da prática médica) (ACOG, 2003). Apesar de o princípio da autonomia requerer informação adequada para a mulher poder exercer esse direito, observa-se uma assimetria de informações, levando a uma hegemonia de poder e respeito pelas decisões médicas praticamente sem contestações. Na medida em que o saber se dissemina, perde-se a hegemonia e inicia-se a discussão sobre qual tipo de assistência é melhor para a paciente. Obviamente, esse fato também gera iniqüidades, a partir do fato de que o acesso às informações não é homogêneo para todas as classes sociais. Essa diferença é mais um fator que traz comportamentos e relacionamentos diferenciados entre os modelos de assistência à saúde. Nesse mesmo olhar, em um trabalho com médicos residentes de ginecologia e obstetrícia, para todos os entrevistados, o poder, além de sua articulação com o saber, vincula-se à capacidade de “convencimento” da paciente da veracidade desse saber, por parte do médico, garantindo a boa relação entre eles. O poder de convencer é proporcional à capacidade de elaborar uma boa relação médicopaciente, vista como condição sine qua non para atingir o não-questionamento e a concordância (GILBERT; CARDOSO; WUILLAUME, 2006). Em alguns relatos, as relações entre saber e poder também se refletem nas afirmações acerca das responsabilidades do médico no setor público e no privado. No primeiro, elas são consideradas mais diluídas do que no segundo, em função da existência de uma relação não muito próxima com a paciente, e também em razão do desnível sóciocultural assumido como fato. Na clínica privada, a noção geral é de que a cobrança é sistemática, inclusive, implicando uma prática da medicina cada vez mais defensiva 99 por receio da industria dos processos médico-legais (GILBERT; CARDOSO; WUILLAUME, 2006). No sistema privado de saúde, em decorrência da interposição dos planos de saúde intermediando as relações contratuais entre cliente e médico, bem como de movimentos de aumento de cidadania e busca de direitos humanos pela sociedade civil, observam-se mudanças na relação médico-paciente. O maior acesso às informações por parte dessa clientela privada também interferiu de maneira marcante nesse relacionamento, tornando-o mais complexo. Anos atrás, os pacientes apresentavam seus sintomas aos médicos e estes estabeleciam o diagnóstico e então recomendavam o tratamento. Usualmente, as recomendações eram aceitas pelas pacientes sem maiores questionamentos. As decisões eram delegadas apenas à equipe médica. Em contraste, atualmente, na primeira visita pré-natal, abre-se discussão sobre o planejamento do nascimento, incluindo preferências pela anestesia, episiotomia, uso de fórcipe, parto cesáreo, amamentação e outros aspectos relevantes para a cliente, que hoje dispõe de acesso a essas informações (ACOG, 2003). Mesmo com realidades distintas, os dois modelos assistenciais presentes em nosso país apresentam elevadas taxas de cesárea. Observa-se que, no setor público de saúde, embora o atendimento seja em sua maioria realizado pelo médico, este modelo é semelhante ao de muitos países europeus, pois o parto é realizado por um profissional vinculado à instituição hospitalar, sendo remunerado por carga de trabalho e não por produção de serviços (exceto em alguns casos onde há pagamento por produtividade). Apesar dessa semelhança, nossas taxas de cesárea são muito diferentes das européias. Dias e Deslandes (2004) definem como paradoxal a relação entre as taxas de cesárea em serviços públicos do Rio de Janeiro e a organização da prática obstétrica nesse sistema. Nestas maternidades o atendimento é gratuito e a remuneração dos profissionais não varia de acordo com o tipo de parto; os médicos trabalham em equipe onde, teoricamente, as limitações técnicas de um poderiam ser compensadas pela expertise de outro plantonista, reduzindo a probabilidade de se optar por não realizar parto vaginal devido a limitações na sua formação profissional. Também o tempo de evolução do trabalho de parto não deveria pressionar os profissionais no sentido de acelerar o 100 nascimento, já que os mesmos trabalham em regime de plantão, com horários determinados e os cuidados com a paciente serão continuados por uma nova equipe ao fim de sua jornada de trabalho. As hipóteses, para esses autores, foram que as taxas de cesarianas das maternidades públicas são maiores do que as esperadas porque as indicações cirúrgicas são também regidas por questões ligadas à formação médica e às tendências culturais da assistência. Trabalho em equipe médica foi analisado em 1999-2000, na América Latina, por meio do Estudo Latino-Americano de Cesáreas (ELAC), envolvendo 40 hospitais de cinco países, Argentina, Brasil, Cuba, Guatemala e México. Um de seus objetivos foi testar a estratégia de segunda opinião médica como intervenção para reduzir a incidência de cesáreas (OSIS et al., 2006). Basicamente, o médico que estivesse atendendo a uma parturiente consultaria outro profissional de igual ou maior hierarquia, dito consultor, frente à decisão de realizar uma cesárea, eletiva ou de emergência. Então, ambos analisariam a situação e tomariam a decisão com base em parâmetros e critérios de protocolos previamente elaborados para facilitar a conduta. Osis et al. (2006) entrevistaram médicos que participaram desse trabalho no Brasil, realizado apenas em hospitais públicos do estado de São Paulo e da cidade de Recife, concluindo que a estratégia da segunda opinião médica seria capaz de reduzir as taxas de cesárea em instituições públicas e universitárias, porém não seria factível em serviços privados, onde os médicos não aceitariam a interferência de outro colega sobre sua decisão de realizar uma cesárea. Uma das tentativas de mudar a forma de organização assistencial tem sido a proposta do Ministério da Saúde e de várias secretarias estaduais e municipais de saúde de introduzir profissionais não médicos na realização dos partos, por meio de financiamento de cursos de especialização em enfermagem obstétrica e portarias ministeriais, para inclusão do parto normal assistido por enfermeira obstétrica na tabela de pagamentos do SUS (RIESCO; FONSECA, 2002). Para Bonadio et al. (1999), devido à progressiva incorporação da tecnologia e à elevação das taxas de cesarianas, ocorreu ao longo dos anos um impacto negativo sobre as oportunidades de capacitação e atuação das enfermeiras obstétricas no parto, levando à limitação número de profissionais qualificadas pelas escolas de enfermagem do Brasil. 101 Essa ação de estimular a participação das enfermeiras obstétricas é apoiada por Caron e Silva (2002) que consideram que a atuação dessa profissional nas maternidades públicas e privadas reduziria os índices de mortalidade e morbidade perinatal e materna e diminuiria o número de intervenções cirúrgicas no parto. Em sua tese de doutorado, Osava (1997) defende a participação de não médicos na assistência ao parto, como uma estratégia para a transformação do atual modelo assistencial e redução das intervenções médicas no nascimento. Riesco e Fonseca (2002) identificaram que a escassez e a heterogeneidade de recursos humanos para atendimento ao parto foi uma tônica na maioria das entrevistas realizadas com médicos e enfermeiros. Segundo os depoentes, tanto nas cidades como na zona rural há auxiliares de enfermagem e parteiras assistindo aos partos, além das iniciativas governamentais para que os agentes de saúde possam realizar essa assistência. Essas auxiliares, parteiras e agentes atuam nos serviços de saúde, ao lado de um número reduzido de obstetrizes, enfermeiras e enfermeiras obstétricas, realizam partos à margem da legislação e assumem, por vezes, a responsabilidade de médicos mantidos em “plantão à distância”. Essa situação pode produzir conseqüências assistenciais e legais, como atendimento precário à parturiente e processos jurídicos por exercício ilegal da medicina. Para Riesco e Fonseca (2002), essa mobilização a favor da mudança do modelo assistencial brasileiro com a participação da enfermeira obstetra ou parteira (embora haja diferenças conceituais, ambas são profissionais não médicos que atuariam na assistência ao parto) na assistência ao parto não é aceita de forma homogênea por todos os stakeholders desse processo. Para os médicos obstetras, essa profissional poderia ser uma ajudante, que permaneceria ao lado da parturiente durante as horas de trabalho de parto, para que o próprio médico pudesse cuidar de outros afazeres, até que o período de dilatação chegasse ao final ou enquanto não surgissem complicações; para os técnicos em planejamento, poderia ser alguém que integrasse a equipe de saúde, com baixo custo e disponibilidade de se manter em regiões de carência de recursos; para a enfermeira obstétrica, poderia ser a especialista que, depois do curso de graduação em enfermagem, galgaria a carreira no nível de pósgraduação e poderia adquirir competências e autonomia para assistir à mulher de forma integral. Para outros, profissionais ou não, essa é uma interrogação a ser estudada frente às condições concretas de mudança, como parte da proposta de um 102 modelo assistencial, em que a mulher e a família possam ser sujeitos no processo de nascimento de um filho, com dignidade e direito de acesso aos serviços de saúde. Porém deve ser perguntado para a gestante que tipo de profissional ela deseja na assistência ao parto. Diversos estudos demonstraram que o trabalho em equipe multi-profissional era complexo e de difícil implantação nos serviços públicos (RIESCO; FONSECA, 2002; ÂNGULO-TUESTA; GIFFIN; GAMA; CHOR; d’ORSI; et al., 2003; CASTRO; CLAPIS, 2005). Deslandes (2005), em seu trabalho com gestores de saúde, observou em relação ao trabalho em equipe que, se em algumas maternidades esta prática era bem incorporada nas suas relações e na divisão do trabalho, noutras constituía arena de embates sutis ou abertos. Como confirmam Riesco e Tsunechiro (2002) e Deslandes (2005), este é um tema bastante complexo, que envolve disputas de saber científico, status profissional, atribuições de responsabilidades técnicoinstitucionais e jurídicas, posição hierárquica e mercado de trabalho. Seja como for, há resistência à atuação da enfermagem na assistência ao parto. Com o objetivo de vencer os obstáculos e otimizar resultados maternos e perinatais, a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES/SP), por meio da Coordenadoria de Saúde da Região Metropolitana da Grande São Paulo, a partir de maio de 2000, implementou em quatro maternidades estaduais o projeto "Inserção da Enfermeira Obstétrica na Assistência ao Parto na Secretaria de Estado da Saúde", vinculado à diretriz política do Ministério da Saúde para a área de saúde da mulher e ao Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher, confirmando a existência de muitas situações a serem superadas, entre elas o relacionamento interno na equipe obstétrica. Embora a prática da assistência obstétrica no sistema privado de saúde tenha se organizado de maneira distinta à do modelo público, também há resistência à participação de outros profissionais na realização do parto. Os médicos que trabalham para os convênios médicos, bem como aqueles que prestam atendimento a pacientes particulares, têm interesse em dominar totalmente esse mercado de trabalho em função da lógica de remuneração. Nesse modelo, o pagamento decorre do serviço prestado, sendo, na maioria das vezes, de valor semelhante para parto 103 vaginal ou cesáreo. Verifica-se a presença de enfermeiras obstétricas de plantão em muitas maternidades, que atendem à parturiente até a chegada do médico obstetra. Riesco e Fonseca (2002) acreditam que o excesso de cesarianas está associado ao modelo de remuneração médica, à limitação da experiência em assistir ao parto vaginal e à falta de disponibilidade do médico para acompanhar o trabalho de parto, levando à programação da cesariana de forma eletiva e atendendo interesse próprio, da família da gestante, da própria gestante ou da instituição. Para Massoneto e Porto (1998) as maternidades, em especial as que atendem pacientes do sistema privado de saúde, deveriam desenvolver programas de assistência obstétrica ativa do trabalho de parto. Dessa maneira, o médico se sentiria mais seguro se sua paciente esperasse por ele internada, aguardando um parto normal, acompanhada por uma enfermeira obstétrica e monitorizada por equipamentos e exames subsidiários, reduzindo os riscos da especialidade. Esse modelo de trabalho em equipe, se bem estruturado, poderia, segundo os autores, aumentar a qualidade e reduzir o custo da assistência ao parto em nosso país. Pela legislação profissional de enfermagem, os não-médicos que podem realizar o parto normal são a enfermeira e a obstetriz/enfermeira obstétrica, assim como a parteira titulada no Brasil até 1959 ou portadora de diploma/certificado estrangeiro, reconhecido ou revalidado até 1988 (BRASIL, 1986). Em contrapartida, o Conselho Federal de Medicina, que busca a regulamentação da profissão médica por meio do projeto de Lei 7703/06 em trâmite na Câmara dos Deputados, determina que a assistência ao parto é um ato médico, só podendo ser realizado por esse profissional (CFM, Projeto de Lei sobre o Ato Médico n. 7703/06; CFM, Resolução sobre Ato Médico n. 1627/01 de 23/10/2001). O CREMESP, em sua resolução n. 111 de 23 de novembro de 2004, veda ao médico exercer atividades nas Casas de Parto, locais autorizados pelo Ministério da Saúde a funcionar independente da presença de médicos. O Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (CREMERJ) pronunciou-se, em função da inserção da enfermeira obstétrica para assistir ao parto na cidade do Rio de Janeiro, com a publicação de resolução que colocava sob responsabilidade do profissional médico toda a assistência praticada dentro do hospital, inclusive aquela praticada por enfermeira na assistência ao parto de baixo risco (CREMERJ, Resolução n.160/2000). Na mesma resolução colocava também a 104 obrigatoriedade da informação, aos usuários do serviço de saúde, de que na instituição os partos eram assistidos tanto por médicos quanto por enfermeiros. Estas medidas têm o objetivo claro de, em última instância, pressionar o médico para que ele não abra espaço na assistência ao parto de baixo risco para a enfermeira obstetra (DIAS; DOMINGUES, 2005). Alguns entrevistados no trabalho de Riesco e Fonseca (2002) colocaram em evidência os interesses econômicos e corporativos que perpassam a relação médico/não-médico na assistência ao parto. Embora seja apresentada de forma bastante determinante em certas falas, essa questão é muitas vezes omitida nas discussões. Os autores concluíram que, com a remuneração pela assistência ao parto sob forma de pagamento por procedimento, médicos e enfermeiras passariam a disputar sua realização. Essa situação seria exacerbada na medida em que o médico depende cada vez mais do trabalho assalariado e da vinculação a convênios, pois os sistemas de saúde não pagam, no modelo atual, para que médico fique à distância, na retaguarda dos partos assistidos pela parteira. Riesco e Fonseca (2002) identificaram ainda questionamentos sobre quais mulheres aceitariam ser atendidas por profissionais não médicos, devido à resistência das mulheres, em particular de camada sócio-econômica mais elevada, em serem assistidas por uma pessoa diferente daquela que realizou seu pré-natal. Por outro lado, há a defesa de uma demanda indiscriminada do ponto de vista social, sendo que a expansão do parto assistido por não médicos somente na rede pública poderia gerar, segundo esses autores, a idéia de ser uma “assistência para pobres”. Para Hotimsky e Schraiber (2005), há uma desvalorização da enfermeira obstétrica, que enfrenta dificuldades para conquistar um espaço próprio e ser reconhecida na comunidade como profissional capaz. Essa desvalorização é observada por essas autoras nos comentários dos alunos de medicina sobre um Curso de Obstetrícia da Zona Leste a ser inaugurado, questionando sua validade. Trata-se de um curso para obstetrizes que enfrenta resistências dos médicos pois, como declarou recentemente o presidente da FEBRASGO: “Somos contra o nome desse curso. Obstetrícia é uma especialidade médica” (FOLHA DE SÃO PAULO, 13 de março de 2005). Hotimsky e Schraiber (2005) observaram conflitos com relação ao posicionamento da enfermeira 105 obstétrica no contexto de assistência ao parto. Quanto ao papel desempenhado pela enfermeira obstetra na atenção ao parto, os alunos de medicina entendem que a atuação de não médicos representaria um cerceamento de seu campo de atuação e de sua autonomia profissional, uma vez que apenas alguns procedimentos da assistência continuariam sendo atribuição médica. O fato de este estar fora da “cena de parto” quando o procedimento é normal, é contrastado com a organização da assistência no Hospital-Escola, onde geralmente os partos são realizados por médicos ou por internos com supervisão de um médico responsável. Para alguns pesquisadores, certas ações realizadas durante a assistência ao parto serviriam para manter o médico em seu papel central nesse processo. Assim, a prática de analgesia de rotina seria um elemento para garantir a permanência do parto dentro do hospital e sob cuidados médicos, além de incorporar à equipe de atenção ao parto normal um profissional (o anestesista) não incluso na proposta ministerial nacional. Entretanto a proposta da analgesia esbarraria em outra dificuldade: o seu emprego no parto estaria associado à tendência a estacionar o trabalho de parto, tornando-se, por vezes, necessário o uso de fórcipe. Como seu manejo é pouco treinado em muitas faculdades de medicina, motivo pelo qual os obstetras freqüentemente manifestam insegurança em utilizá-lo, esta poderia se tornar uma alegação freqüente para a indicação da cesárea (DIAS; DESLANDES, 2004). Outro profissional não médico, a doula, pessoa que acompanha as parturientes, dando-lhes apoio físico e psicológico, vem buscando sua inserção nesse processo de nascimento, justificada pelo fato de que, em maternidades com grande número de leitos, dificilmente há profissionais não médicos ou de enfermagem que forneçam suporte emocional e físico durante o pré-parto. Além disso, a falta de privacidade nas enfermarias de pré-parto, com muitas gestantes no mesmo local, torna impeditivo, em algumas maternidades, tanto públicas como privadas, a presença de acompanhantes do sexo masculino, excluindo assim a presença do pai (d’ORSI et al., 2005). Dessa maneira, sob a ótica de seus incentivadores, sua presença seria importante para a mulher, reduzindo inclusive a incidência de cesáreas ao incentivar a parturiente a tentar o parto vaginal. 106 Nessa disputa de mercado da assistência obstétrica entre médicos e não médicos, argumenta-se que a inserção desses outros profissionais traria para a gestante um tipo de atendimento menos intervencionista, mais “humanizado”. Na assistência ao parto, o termo humanizar é utilizado há muitas décadas, com sentidos os mais diversos. Fernando Magalhães (1916 apud REZENDE, 1969), o Pai da Obstetrícia Brasileira, e o Professor Jorge de Rezende (1969) já o utilizaram, respectivamente no início e na segunda metade do século XX. Ambos defendiam que a narcose e o uso de fórcipe vieram “humanizar” a assistência aos partos. Esses conceitos eram difundidos por autoridades em obstetrícia no cenário internacional. A obstetrícia passa a reivindicar seu papel de resgatar as mulheres, trazendo, desde 1916, “uma preocupação humanitária de resolver o problema da parturição sem dor, revogando assim a sentença do Paraíso, iníqua e inverídica, com que há longos séculos a tradição vem atribulando a hora bendita da maternidade” (MAGALHÃES, 1916, apud REZENDE, 1969). Revisão bibliográfica de Cascate e Correa (2005) revela a existência de artigos produzidos no âmbito da saúde, especialmente da enfermagem, desde os fins da década de 1950. Os principais sentidos atribuídos à humanização do atendimento vão desde uma perspectiva caritativa, messiânica de “doar-se ao próximo”, até a integração mais recente, a partir dos anos 90, do discurso dos direitos do cidadão em ter acesso a uma atenção de qualidade, inserindo-se no contexto de um projeto político para a Saúde Pública (DESLANDES, 2005). O Movimento pela Humanização do Parto e do Nascimento é um desdobramento recente do que se chama “Ideário do Parto sem Dor”, iniciado nos anos 1950 com as idéias de Dick-Read e Lamaze, obstetras de vanguarda preocupados em minimizar as dores do parto e transformá-lo em um evento mais prazeroso, propondo para isso o uso de técnicas comportamentais de controle da dor (TORNQUIST, 2002). Para Castro e Clapis (2005), embora não se possa negar que as taxas de cesariana são evidências do processo de medicalização da mulher no momento do nascimento, diminuí-las não significará tornar humanizado o parto, pois para isso será necessário haver mudanças de paradigmas. Para esses autores, a inserção da enfermagem no processo de humanização se deu por imposição política governamental com o objetivo de reduzir as taxas de cesárea e a melhorar a assistência à mulher. Dias e Domingues (2005) acreditam que o grande desafio para 107 todos os profissionais de saúde que atendem ao parto deve ser o de minimizar o sofrimento das parturientes, tornando o momento do nascimento uma experiência agradável. Percebe-se que a questão não é simples, pois há atores e interesses diversos nesse cenário de assistência à gestante. Para d’Orsi et al. (2005) e Tornquist (2002), é necessário rever a forma de organização da prática obstétrica para que ocorram mudanças na assistência ao parto, buscando respeitar a fisiologia da mulher e ir de encontro aos interesses de todos os envolvidos. 3.5.6 Fatores Associados à Decisão do Parto Cesáreo no Brasil O aumento das taxas de cesariana no Brasil, observado predominantemente a partir de 1970, ressalta a importância de se identificar e estudar os fatores associados à decisão do tipo de parto. Na cadeia de assistência ao parto há diversos agentes, interessados e atuantes, influenciando todo o processo assistencial. Esses múltiplos atores, incluindo médicos, pacientes e seguradoras (seguros de saúde para pacientes e seguros para médicos contra processos por má-prática médica), além dos hospitais e do governo, por meio de políticas em saúde, determinam a utilização de procedimentos médicos, sendo necessário identificar a motivação de cada ator e seu efeito sobre esse uso (TURCOTTE; ROBST; POLACHEK, 2005). Existem ainda nesse contexto questões culturais disseminadas entre a comunidade influenciando na decisão pelo tipo de parto e profissionais não médicos buscando sua participação nessa cadeia assistencial. Há diversas classificações para as indicações de um parto cesáreo. Boisselier et. al. (1997) classifica-as em três grupos: absolutas que impossibilitam o parto vaginal; de prudência, onde o parto por via baixa é possível, mas pode implicar em um risco materno-fetal aumentado; e de necessidade, o parto vaginal também é possível, a depender do tratamento e correção da condição prévia que levou à indicação. Em função da constatação de que apenas as indicações clínico-obstétricas não poderiam justificar o aumento da incidência de cesáreas nos últimos vinte anos, passou-se a categorizá-las em indicações médicas e não médicas, como fatores 108 psico-sociais, aspectos sócio-econômicos, preocupações ético-legais e características culturais de pacientes e médicos (CURY; TEDESCO, 2003). Nessa tese, definimos como motivos que determinam a escolha pelo tipo de parto fatores clínicos, sócio-culturais e relacionados ao modelo assistencial. Com a exceção dos fatores clínicos, que não serão abordados nesse trabalho, os demais serão analisados sob a perspectiva das pacientes e dos médicos. 1. Fatores Sócio-culturais Características demográficas, como idade e raça, sociais como nível sócioeconômico e características culturais relacionadas à preferência pelo tipo de parto, aos temores com relação à dor e às alterações sexuais integram, neste trabalho, o grupo de fatores sócio-culturais. Os fatores demográficos e sociais freqüentemente se imbricam, havendo correlação entre populações femininas de raça branca com maior nível educacional e maior poder aquisitivo e a incidência de cesáreas. No Brasil, as taxas de cesariana são mais altas entre as mulheres com melhores condições socioeconômicas, de raça branca e aquelas atendidas em hospitais privados. Além disso, mudanças comportamentais têm ocorrido nas sociedades ocidentais nos últimos anos, aonde a mulher busca desenvolvimento da carreira profissional em detrimento da maternidade. Na ânsia de manter suas conquistas profissionais e de evoluir no seu trabalho, as mulheres têm adiado cada vez mais a maternidade, fato que implica em maiores riscos na gravidez e em dificuldades para engravidar (SOUEN, 2003). Como conseqüência, observa-se em regiões mais desenvolvidas redução progressiva da fecundidade, havendo menor número de gestações, que ocorrem em idade mais avançada. Modificações na economia e no sistema produtivo, seguidas de intenso processo de assalariamento da população, têm sido apontadas como substrato estrutural dessa queda da fecundidade em diversos países, inclusive no Brasil, associadas ao uso de métodos contraceptivos (MORAES; GOLDENBERG, 2001). Por outro lado, regiões com populações de menor nível educacional e menor poder aquisitivo apresentam maior número de gestações e menor acesso ao parto cesáreo. 109 Essa desigualdade sócio-demográfica e correspondente taxa de cesárea tem sido descrita há mais de vinte anos. Em 1983, Camano e Mattar (1983) encontraram incidência mais elevada desse tipo de parto em mulheres que não dependiam do serviço público. Barros et al. (1986) observaram entre 7 mil mulheres de Pelotas, Rio Grande do Sul, incidência muito maior de cesáreas em mulheres de baixo risco e elevada renda familiar. Resultados semelhantes foram encontrados posteriormente por Yazlle et al. (2001) em Ribeirão Preto, interior do Estado de São Paulo, que observaram incidência total de cesáreas na ordem de 48,8%, havendo um gradiente crescente desse tipo de parto à medida que se eleva o nível social das pacientes: 32,1% em mulheres com partos financiados pelo SUS, 77,9% para mulheres que dispunham de convênios e planos de saúde e 81,8% em pacientes particulares. Béhague et al. (2002) e Silveira e Santos (2004) também encontraram associação entre renda e taxa de cesárea. Freitas et al. (2005) observou, em primíparas do Rio Grande do Sul, correlação entre a ocorrência de cesárea e o nível de desenvolvimento regional, sendo maior a incidência em regiões mais ricas e com melhores indicadores de saúde. Para Osava (1997), essas diferenças ocorrem, não somente pelas distâncias sóciodemográficas, mas também pelas diversas representações do parto estruturadas pelos sujeitos de acordo com a classe social da clientela, estando mais relacionadas a um ato “instintivo” para as mulheres das classes populares, e mais relacionadas a um ato “cultural” para as mulheres das classes mais elevadas. Um estudo ecológico sobre a incidência e as implicações das cesarianas na América Latina realizado por Belizan et al. (1999) apontou uma correlação positiva e significativa entre o produto nacional bruto per capita por país e as taxas de cesariana, sendo que taxas maiores da cirurgia foram encontradas em hospitais privados do que em hospitais públicos. No Brasil, Rattner (1996) analisou as taxas de cesárea do Estado de São Paulo, identificando uma associação positiva entre as altas taxas desse procedimento e elevado nível econômico regional, aferido pelo potencial de consumo da cidade e pelo número de agencias bancárias per capita, considerando o parto cesáreo um bem de consumo, disponível para aqueles que detêm maior poder aquisitivo. Essa constatação já havia sido feita por Faúndes e 110 Cecatti (1991), que relataram maior incidência de cesáreas, de 1970 a 1980, nas capitais, nas macrorregiões mais ricas do País e entre as famílias de renda mais elevada. Essa associação entre classificação sócio-econômica e tipo de parto, para alguns autores, poderia decorrer da percepção das mulheres de que a assistência ao parto por meio de uma cesariana seria a mais adequada para ela e seu filho. Assim, baseadas em uma “cultura” da cesárea, construída a partir de fatores sócio-culturais e da organização da prática obstétrica (MELLO e SOUZA, 1994; MORAES; GOLDENBERG, 2001), mulheres acreditariam nos benefícios desse tipo de parto, solicitando-o ao seu médico. Para a parturiente e sua família, a cesariana significaria acesso a atendimento médico diferenciado (parto sem dor, ausência de riscos ao nascimento, sexualidade preservada). Para o obstetra, significaria maior controle do ato médico e de seu horário de trabalho, influenciando assim a decisão pelo tipo de parto (FREITAS et al., 2005). Assim, mulheres com menores condições socioeconômicas e, conseqüentemente, maior risco de complicações no parto, teriam menor probabilidade de cesariana do que aquelas com baixo risco obstétrico e alto poder aquisitivo. Mulheres com maior renda solicitam e conseguem se submeter à cesariana, que passa a simbolizar qualidade de atendimento. Essa clientela teria o direito de definir a via de parto de sua preferência, cabendo ao médico aceitar ou não essa decisão (COTZIAS, PATERSON-BROWN, FISK, 2001). Para as mulheres mais pobres, isso pode ser interpretado como discriminação no atendimento, por não conseguirem pagar pela cirurgia (FREITAS et al., 2005). Embora se diga que o princípio do direito da mulher ao poder e controle sobre o próprio corpo foi apropriada por médicos para justificar a prática de cesárea desnecessária, então denominada cesárea a pedido (MELLO e SOUZA, 1994), o que se observa são taxas atuais de cesárea em cifras de 40% em nosso país e falta de consenso sobre esse assunto. Béhague et al. (2002) identificaram que 40% das mulheres, antes de chegar ao hospital, tinham o desejo de ter um parto cesáreo, justificado pela crença de que o parto vaginal traria maiores riscos enquanto a cesárea representaria o melhor em qualidade de cuidado. Além disso, na tentativa de evitar parto vaginal, mulheres que não têm condições de pagar uma cesárea, buscaram métodos indiretos para interferir na fisiologia do nascimento, como ir ao 111 hospital muito precocemente no trabalho de parto para pressionar os médicos a realizar a intervenção, ir mais vezes ao hospital para conhecer a equipe médica, entre outros. Resultado semelhante já havia sido encontrado por Moraes e Goldenberg (2001), em cuja pesquisa 41,1% das mulheres assumiram ter solicitado a cesariana em um município do interior do Estado de São Paulo. Contrariamente a esses resultados observa-se, em outros estudos brasileiros, maior preferência materna por parto vaginal. Hopkins (2000) realizou um estudo nas cidades de Porto Alegre (Rio Grande do Sul) e Natal (Rio Grande do Norte), cujos resultados demonstram que a maioria das primíparas referiu preferir o parto vaginal enquanto que, entre aquelas com cesárea anterior, cerca de 75% (maternidade privada) e 80% (maternidade pública) afirmaram que não queriam que seu parto tivesse sido cesáreo. Potter et al. (2001) relataram que 70-80% das gestantes de serviços público e privado entrevistadas desejavam parto vaginal, sendo que essa cifra se reduzia em mulheres com cesariana prévia, concluindo que a motivação para o parto vaginal diminuía devido a experiência cirúrgica anterior, especialmente se esta tivesse sido satisfatória (58% desejavam repetir a cirurgia). Em maternidades públicas do Rio de Janeiro, Barbosa et al. (2003) encontraram que 75,5% das mulheres não desejavam fazer cesárea, inclusive aquelas submetidas a esse tipo de parto. A preferência pelo parto vaginal foi encontrada também em estudos de FaisalCury e Menezes (2006) em sua clínica privada. No estudo de Barbosa et al. (2003), para aquelas que desejavam o parto cesáreo, as justificativas foram a dor e a expectativa de sofrimento durante o trabalho de parto, o desejo por laqueadura e a experiência prévia de cesárea, enquanto Tedesco et al. (2004) observaram que 90% de mulheres com preferência pelo parto vaginal o desejavam pela maior praticidade e para evitar a dor após o parto cesáreo. Hopkins (2000) e Osis et al. (2001) já haviam observado que as mulheres atendidas no serviço público diferenciavam a dor durante o trabalho de parto do parto vaginal da dor após o parto cesáreo. Perante esses dois tipos de dor, pareceu nesses estudos ser mais fácil para a mulher tolerar a dor do parto vaginal, permitindo o retorno às suas atividades mais brevemente do que a dor pós-operatória, mais persistente e incapacitante por um período maior. 112 A questão do medo da dor do parto observada nos trabalhos tem papel importante na escolha pelo tipo de parto. Existe forte associação entre a sensação ou expectativa de dor do parto e questões sócio-culturais e religiosas femininas, acrescida de relevantes alterações psicológicas durante a gestação, influenciando diretamente a escolha pelo tipo de parto. A gravidez é um período no qual a mulher experimenta alterações biológicas, psicológicas e sociais. No início da gestação, o parto costuma ser vivido como realidade distante. Nos últimos meses a maioria das mulheres relata aumento do medo e ansiedade, não só por se tratar de situação irreversível e certa, mas também pela ansiedade pela chegada do bebê e de todas as mudanças e adaptações que traz consigo (CONSONNI et al., 2003). O temor de que algo ruim aconteça a si própria e ao filho é universal e manifesta-se em intensidades variadas. Com a proximidade do parto, o nível de ansiedade tende a elevar-se, sendo especialmente intenso nos dias que antecedem a data prevista do parto. Os sentimentos são contraditórios: a vontade de ter o filho e terminar a gravidez ao lado do desejo de prolongá-la e adiar a necessidade de novas adaptações decorrentes da vinda do bebê. Em meio às incertezas, a gestante vivencia crises de ansiedade nas quais expressa o temor à morte, à dor, ao parto traumático e à saúde do filho A ambivalência materna é experimentada de várias formas, coexistindo sentimentos de aceitação e rejeição, de amor e ódio (CONSONNI et al., 2003). Para Parker (1997), a ambivalência, produto das grandes mudanças físicas, sociais e psíquicas que implicam perdas e ganhos, não é por si só um problema. Para ele, a questão principal é o modo como a mãe administra a culpa e a angústia provocadas por essa ambivalência. No aspecto emocional, a própria ansiedade pode gerar o embotamento da percepção (CONSONNI et al., 2003). Para avaliar se houve mudança de preferência do tipo de parto durante a gestação, Potter et al. (2001) apresentam um estudo prospectivo realizado em quatro capitais brasileiras (Porto Alegre, Belo Horizonte, Natal e São Paulo), com mulheres atendidas nos setores público e privado em três momentos do ciclo gravídicopuerperal: no início da gravidez, um mês antes do parto e com um mês de pós-parto. Os autores mostraram que, apesar das diferenças existentes nas taxas de cesárea entre o setor público e o privado, a preferência da maioria das mulheres (70% a 80%) antes do nascimento era pelo parto vaginal. 113 Embora a dor de parto seja motivo de preocupação, é possível que essa sensação seja concebida como algo inerente ao processo de nascimento, onde as dores são consideradas parte da experiência de amadurecimento da mulher. Trata-se de um processo de “naturalização” do sofrimento associado à forma como ocorre a construção social de gênero prevalente entre as camadas populares brasileiras (DINIZ, 2005). Se, socialmente, a dor do parto está relacionada à condição feminina e à construção de sua identidade, por outro lado é a dor o símbolo do descaso na assistência obstétrica. O trabalho brasileiro de Mello e Souza (1994) buscou contribuir para a compreensão do processo de legitimação social do parto cesáreo, tanto pelos médicos como pelas pacientes, como um tipo de parto que propicia segurança, ausência de dor, modernidade tecnológica, enfim ideal para qualquer grávida. Há destaque pela forma na qual valores culturais referentes à dor do parto vaginal, à imagem corporal feminina e ao fascínio pela tecnologia foram manipulados pela biomedicina a fim de acomodar essa prática dentro da orientação geral da medicina ocidental. Assim, o medo da dor passa a ser rotulado de “falta de preparo psicológico para o trabalho de parto”, transformando-se em justificativa médica para a cesárea. A inclusão, na tabela de remuneração do SUS, da anestesia para o parto normal objetivou reduzir a influência da dor na escolha do tipo de parto a ser executado (BRASIL, 2000d, Portaria MS/GM no 572 de 01/06/00). Ressalta-se que a OMS recomenda apenas práticas não farmacológicas e não invasivas para alívio da dor, como massagens e técnicas de relaxamento (WHO, 1996) o que, eventualmente, pode não ser suficiente para a comodidade da mulher durante o nascimento por via vaginal. Potter et al. (2001), ao questionar mulheres que preferiam cesárea, identificaram como um dos motivos a preocupação com a preservação da função sexual, resultado já observado por Faúndes et al. (1993). Em ambos os estudos, a obtenção da ligadura de tubas para esterilização feminina também esteve presente entre os motivos para a escolha da cesárea. As questões relacionadas à função sexual também foram observadas entre os profissionais médicos. Hotimsky e Schraiber 114 (2005) observaram que, em sala de aula e em plantões, vários médicos assistentes sugeriram que uma desvantagem do parto normal seria a possibilidade de afetar o tônus do períneo ou a elasticidade da vagina, reforçando, particularmente entre as alunas de medicina, receios em relação à vida sexual. Essa preferência pessoal e profissional pela “via alta” (jargão obstétrico significando parto por cesárea) entre profissionais da área, aparentemente comum, exerce, sem dúvida, grande influência entre os alunos, no sentido de considerá-la um procedimento seguro (DIAS; DESLANDES, 2004). Para Wagner (2000), a ausência de dor como benefício para a mãe é uma falsa promessa, sendo o agendamento da cesárea apenas uma conveniência para a mulher e sua família. Apesar de vários países estarem trabalhando para reduzir os temores pelo parto vaginal, tem-se observado crescente elevação das taxas de cesárea no mundo, sugerindo que este esforço não tem trazido os resultados esperados. Um exemplo é o uso de fórcipe nos partos, temido ainda por muitas mulheres. Esse temor advém da percepção de que o uso do fórcipe seria responsável por seqüelas nas crianças. Há gestantes que optariam por cesárea, caso tivessem que se submeter ao parto fórcipe, pois, para elas este tipo de parto associa-se a riscos maiores do que os de uma cesariana (HOTMINSKY; RATTNER; VENANCIO; BOGUS; MIRANDA, 2002). Educação, fundamental no comportamento social de uma mulher, pode ter diferentes significados em contextos e tempos diversos. Elevado nível de educação não é somente relevante para ajudar a obter melhores empregos e maior renda, mas também se relaciona com maior obtenção de informações sobre riscos e benefícios de saúde. Béhague et al. (2002) entendem que, apesar das tentativas da saúde pública no Brasil de aumentar a educação das pessoas com relação ao processo de nascimento e riscos da cesárea, essas não serão suficientes, pois não abrangem as razões pelas preferências maternas nem as variáveis biológicas, institucionais e sociais que interferem na execução da cesariana. Observa-se, portanto, diferenças nos resultados dos trabalhos, sugerindo a reflexão de que a questão da cesárea é complexa, multifatorial e dependente do modelo assistencial e de interesses dos diversos agentes da cadeia de assistência ao parto. 2. Fatores Relacionados ao Modelo Assistencial Brasileiro 115 O modelo assistencial dominante em uma região ou sociedade, que apresenta variáveis como formas de remuneração, constituição de equipe assistencial, local de realização, conflito de interesses em reserva de mercado de trabalho, entre outras, exerce papel preponderante na escolha pelo tipo de parto. Portanto, entendemos que o modelo de assistência obstétrica definido por um determinado país, estado, região ou financiador será fator de extrema relevância na relação médico-paciente, nos incentivos econômicos, na utilização de tecnologia médica e na realização de parto cesáreo. Os aspectos relacionados aos processos judiciais por má prática médica e a percepção dos médicos sobre o desejo materno pelo tipo de parto também fazem parte da organização da prática médica. Sob o enfoque dos interesses médicos influenciando a decisão pela cesárea, há poucos trabalhos abordando aspectos econômicos e incentivos médicos que devem ser analisados contextualmente sobre o modelo de assistência médica e as formas de remuneração dessa prestação de serviços em determinado país, região ou clientela atendida. Yazle e al. (1985) não encontraram diferenças na incidência de cesárea no período de 1978 a 1981, época em que se igualou o valor de pagamento, pelo sistema previdenciário, para parto normal e cesáreo, sugerindo a presença de outros fatores envolvidos na gênese dessa questão. Comparando os partos ocorridos em nove maternidades privadas do Rio de Janeiro, entre 1968 e 1993, Gentile et al. (1997) verificaram que houve aumento significativo de cesáreas, apesar de terem sido igualados naquele período os honorários médicos para o parto por cesárea e por via vaginal, sugerindo que a escolha do tipo de parto estaria relacionada ao tipo de “contrato” que se estabelece entre a paciente e o médico e não aos incentivos econômicos. Por isso, esses autores sugeriram evitar o reducionismo na formulação de hipóteses ao privilegiar apenas uma teoria de cunho predominantemente econômico, uma vez que a remuneração do parto não determinou, de forma isolada, a prevalência de cesarianas observada nesse estudo. Contrariando esses estudos, alguns trabalhos brasileiros (POTTER et al., 2001) e chilenos (MURRAY; ELSTON, 2005) relacionaram o aumento das taxas de cesárea por desejo materno à maior conveniência dos prestadores médicos que realizaram cesariana sem uma clara indicação médica. Para esses autores, em países onde a 116 remuneração ao profissional de saúde é feita com base na produtividade, fica difícil distinguir se a indicação da cesárea foi devida à solicitação da gestante ou ao interesse médico. Em outro estudo, os autores sugerem que o medo do parto vaginal e a segurança superestimada da cesárea percebida pelas gestantes seriam induzidos pelos obstetras em favor de seus próprios interesses, já que a maioria das gestantes desejava ter parto normal e foram submetidas a cesárea (HOPKINS, 2000). Nesse mesmo sentido, outros autores sugeriram que esse convencimento médico seria facilitado pela assimetria de informações, levando a risco moral e a tratamento eventualmente desnecessário (HU; HUANG, 2005). Em modelos assistenciais baseados na assistência individualizada e remunerada por execução de serviços ou procedimentos, particularmente em situações onde o médico assiste aos partos e recebe por eles, a cesárea eletiva pode ser mais conveniente e, talvez, economicamente mais interessante (WAGNER, 2000). Potter et al. (2001) ao entrevistar mulheres atendidas nos sistemas público e privado de saúde, durante o pré-natal e após o parto, abordando seu desejo com relação ao tipo de parto, concluíram que as discrepâncias entre as taxas de cesárea em ambos tipos de serviço poderiam ser decorrentes da maior conveniência das cesáreas agendadas, propiciando otimização do tempo ao evitar o trabalho de parto. Em seu trabalho, Hotimsky e Schraiber (2005) relataram a conclusão de uma professora de faculdade de medicina, de que a maior responsabilidade pela disseminação das cesáreas sem indicações cientificamente fundadas recairia sobre os próprios médicos, configurando uma crise ética justificada pela comodidade de planejar o parto, pela concepção (que qualifica de fantasiosa) de que o parto vaginal afrouxa a vagina, prejudicando a vida sexual futura, e pela concepção de que o parto cesáreo é menos estressante, exigindo menos preparo emocional e possibilitando maior controle da situação, com mais segurança para o bebê. Faúndes et al. (2004) sugeriram que as altas prevalências de cesárea poderiam ser justificadas pela maior conveniência em função da necessidade de um tempo menor para realizar a cesárea em relação ao parto normal e devido ao temor por acusações sobre inabilidade técnica em casos de partos vaginais complicados. Como os casos em que há necessidade de utilizar o fórcipe ou de realizar procedimentos vaginais estão geralmente associados a maior risco materno ou fetal, muitas vezes opta-se 117 pela realização da cesárea, evitando esses riscos e a possibilidade de o médico envolver-se em processos judiciais (DIAS; DESLANDES, 2004). Portanto, o movimento dos processos judiciais contra médicos deve estar na pauta da discussão sobre as taxas de cesárea no mundo e no Brasil. Em nosso país, observa-se um crescente na quantidade de médicos indiciados e processados por erros médicos, sendo a especialidade de ginecologia e obstetrícia uma das mais envolvidas nesses processos judiciais. No entanto, a “indústria das indenizações por má prática”, comum em muitos países, ainda não se instalou no Brasil. Há estudos brasileiros que abordam a percepção do médico sobre o desejo e a satisfação das pacientes sobre o tipo de parto, porém sem abordar a preferência de cesárea do obstetra para si ou para seus parentes. O relatório da Pesquisa sobre Saúde Reprodutiva e Práticas Obstétricas no Brasil reportou que 89% dos médicos entrevistados em São Paulo e no Rio Grande do Sul achavam que as mulheres preferiam o parto cirúrgico (NÚCLEO DE ESTUDOS DE POPULAÇÃO, 1996 apud BARBOSA et al., 2003). Mais recentemente, Faúndes et al. (2004) analisaram a opinião de médicos e mulheres brasileiros sobre as preferências da via de parto, encontrando um contraste entre o que os médicos declararam perceber como sendo a opinião das gestantes e o que as próprias manifestaram como suas preferências. Para os médicos, a questão do medo ao parto vaginal e à dor durante o parto pelas gestantes figurou preponderantemente, entendendo que por isso elas preferissem a cesárea, enquanto que o que mais preocupava as mulheres era a dor após a cesariana. Quando questionados sobre qual o grau de satisfação das mulheres após uma cesárea, quase 50% dos médicos achavam que as mulheres ficavam satisfeitas, sendo que os principais motivos para essa satisfação seriam, na percepção dos médicos, evitar as dores do parto e aceitar culturalmente que a cesárea traria um risco menor para o recém-nascido. Esse estudo demonstrou incompatibilidade na percepção das gestantes e dos médicos sobre essa questão. Dias e Deslandes (2004) estudaram a percepção dos riscos da cesárea entre médicos obstetras plantonistas e residentes de obstetrícia de uma maternidade 118 pública do Rio de Janeiro, cuja taxa de cesárea naquele ano foi de 31,5%. A percepção reinante sobre cesarianas entre os profissionais estudados, técnicos treinados que as executam dezenas de vezes, é de que são cirurgias seguras, rápidas e sem complicações, melhores para as mulheres, para os bebês e também para os médicos. Os médicos, principalmente os obstetras do quadro, minimizam os riscos das cesarianas, uma vez que os mesmos, na maior parte, não acompanham o pós-operatório das pacientes que operaram durante o plantão ou para as quais indicaram a cirurgia. Dessa maneira, percebe-se por meio desses estudos que haveria interesses médicos, caracterizados por uma “cultura médica pela cesárea”, desencadeando o convencimento da sociedade sobre o tipo de parto ideal. Assim, sob a percepção médica, as mulheres desejariam a cesariana e estariam satisfeitas com os resultados. No entanto, seria simplista apenas responsabilizar a decisão medica pelas elevadas taxas de cesárea, ignorando aspectos do relacionamento médico-paciente, bem como aspectos do contexto social e do atual modelo assistencial, público e privado, em vigor no país (OSIS; PADUA; DUARTE; SOUZA; FAÚNDES, 2001). Portanto, a análise das taxas de cesárea em qualquer unidade de análise necessitará dessa contextualização sócio-cultural e econômica da população estudada, avaliando os interesses de todos os envolvidos nessa cadeia assistencial, evitando resultados contraditórios ou irreais. 119 4 METODOLOGIA 4.1 Área de Interesse A tese aborda a questão dos fatores que levam à realização de cesáreas em taxa considerada muito acima da esperada nas mulheres assistidas pelo sistema de saúde suplementar no município de São Paulo. Esta preocupação faz parte dos discursos das entidades governamentais, representadas pelo Ministério da Saúde e Agência Nacional de Saúde Suplementar. O município de São Paulo é a capital brasileira com a maior taxa de cesárea do país: certos hospitais privados aí existentes atingem proporção de 90% desse procedimento, cifra não observada em outros locais. Para o desenvolvimento da tese, foi construída uma pesquisa com base na delimitação dos objetivos definidos, considerando alguns dos elementos pertinentes para responder a questão formulada e a exeqüibilidade do estudo. 4.2 Referencial Teórico Para o desenvolvimento do referencial teórico realizou-se levantamento bibliográfico em literatura nacional e internacional de publicações relacionadas ao assunto, junto às bases de dados CAPES e Proquest, compreendendo o período 1999-2007. Alguns trabalhos, considerados relevantes pelo pesquisador e anteriores ao período definido, foram incluídos para alicerçar a base conceitual. No levantamento bibliográfico foram identificadas as seguintes palavras-chave ou temas: “cesárea”; “parto”, “taxas de cesárea”, “modelo de saúde”, “modelos assistenciais”, “fatores decisórios”, “fatores determinantes”, “poder e obstetrícia”. A partir dessas palavras-chave, fez-se a revisão teórica sobre o assunto, aprofundando 120 os conhecimentos sobre o assunto e fornecendo subsídios para o delineamento da pesquisa e a construção do instrumento de entrevistas. Este referencial teórico confirmou ao pesquisador a relevância do assunto proposto para estudo, sob diversas óticas. Por meio dessas diferentes análises, o pesquisador construiu os alicerces da tese, dividindo-a em tópicos com assuntos afins. Assim, partiu-se para a pesquisa de campo para obtenção de dados necessários para responder à questão formulada. 4.3 Tipo de Pesquisa As pesquisas podem ser bibliográficas, descritivas e experimentais. Pesquisas descritivas são investigações cuja finalidade é delinear ou analisar fenômenos, avaliar programas ou isolar variáveis-chave. Estas parecem as mais adequadas para o melhor entendimento a respeito do comportamento de vários fatores e elementos que influenciam determinados fenômenos. O estudo descritivo pode utilizar abordagem quantitativa, que estabelece proporções e correlações entre variáveis observadas, procurando elementos que permitam a comprovação de hipóteses, ou qualitativa, que não emprega dados estatísticos como centro do processo de análise de um problema (OLIVEIRA, 2004). Pesquisas quantitativas baseiam-se na idéia básica do positivismo, segundo o qual o mundo social existe externamente ao homem e suas propriedades devem ser medidas utilizando métodos objetivos. Em estudos quantitativos, o pesquisador conduz seu trabalho a partir de um plano pré-estabelecido, com hipóteses claramente especificadas e variáveis operacionalmente definidas, preocupando-se com a medição objetiva e com a quantificação dos resultados (GODOY, 1995). Trata-se de um método para comparação de grupos, pois busca verificar resultados a partir de objetivos previamente definidos por meio de estabelecimento de relações entre variáveis (MINAYO, ASSIS; SOUZA, 2005). 121 Com o intuito de atingir os objetivos propostos, o campo da presente tese se caracterizou por um estudo do tipo descritivo, utilizando ferramentas de análise quantitativa, baseado na busca da identificação e análise, pela ótica de pacientes e médicos, dos fatores associados às decisões do tipo de parto. Não foi abordada a visão de outros atores da cadeia produtiva nessa assistência, como diretores ou donos de hospitais, representantes de convênios e de governo etc. 4.4 Etapas da Investigação 4.4.1 Seleção de Variáveis e Construção do Instrumento de Pesquisa Para atingir os objetivos propostos neste estudo, construiu-se um instrumento de pesquisa para entrevistar pacientes e médicos nos hospitais selecionados. Para tanto, após a revisão bibliográfica na qual se verificou os atributos mais freqüentemente analisados nos estudos sobre o tema, procedeu-se à elaboração de um roteiro de atributos a serem pesquisados, separadamente para pacientes e médicos, em que se procuraram dados relacionados a dois pilares básicos: os fatores sócio-culturais e o modelo assistencial em obstetrícia. Inseriu-se no atributo fatores sócio-culturais os seguintes grupos de variáveis: • variáveis sócio-demográficas das pacientes e dos médicos; • variáveis relacionadas à preferência materna e médica pelo tipo de parto; • variáveis relacionadas ao nível de informações obtidas pela paciente; • variáveis relacionadas aos fatores motivadores na escolha pelo tipo de parto; • variáveis relacionadas à satisfação com o tipo de parto. Com relação ao atributo modelo assistencial, inserimos as seguintes variáveis: • variáveis relacionadas ao relacionamento médico-paciente; • variáveis relacionadas ao treinamento e experiência médica; • variáveis relacionadas à organização do trabalho médico; 122 • variáveis relacionadas a questões de processos judiciais por má prática médica. No processo de construção do questionário, as posições e conceitos do pesquisador foram importantes na identificação de atributos e na formatação do modelo final de análise, resultando em dois instrumentos de pesquisa, um para os pacientes e outro para os médicos. VARIÁVEIS UTILIZADAS NO QUESTIONÁRIO PARA PACIENTES Grupo de Atributo variáveis variáveis idade raça variáveis socioescolaridade demográficas trabalho atual Variáveis relacionadas à preferência materna pelo tipo de parto Fatores sócioculturais Variáveis relacionadas ao nível de informações da paciente Questão 2 3 4 5 renda familiar número de partos anteriores 6 tipo de parto anterior 8 7 grau de satisfação do parto anterior tipo de parto desejado participação na decisão 15,16,17 número de consultas pré-natal 10 tipo de informação quantidade de informações influências da mãe da paciente 9 19, 20 11 12,13,14 23,24,25 Variáveis relacionadas aos fatores motivadores da escolha materna fatores envolvidos na decisão 21, 27 Variáveis relacionadas à satisfação materna grau de satisfação do parto atual 22, 26 Fatores envolvidos no modelo Relacionamento médicoassistencial paciente 28 Quadro 3 – Conjunto de variáveis utilizadas no questionário para entrevistas com as pacientes selecionadas Fonte: Elaboração própria. 123 VARIÁVEIS UTILIZADAS NO QUESTIONÁRIO PARA MÉDICOS grupo de Atributo variáveis Questão variáveis idade 2 3 variáveis socio- sexo demográficas caracterização da 6, 7 produção médica fatores sócio-culturais aceitação da 10 variáveis relacionadas solicitação materna às preferências dos 11, 17, médicos percepção médica 18, 19, 20 tempo de formação 4 variáveis relacionadas médica a formação e nível de formação experiência médica 15, 16 médica 5 fatores envolvidos no variáveis relacionadas multi-emprego modelo assistencial a do organização do fatores de decisão 8,12, 14, trabalho médico equipe de trabalho 9 variáveis relacionadas 13, 14 a questões de processos judiciais Quadro 4– Conjunto de variáveis utilizadas no questionário para entrevistas com as médicos selecionados Fonte: Elaboração própria. 4.4.2 Trabalho de Campo Para realização do trabalho de campo definiu-se como unidade amostral o evento “parto” em instituições privadas no município de São Paulo. Com base nessa definição, buscou-se a identificação do universo e da amostra a serem estudados. Para identificar o universo, analisaram-se as bases de dados disponíveis sobre nascidos vivos no município de São Paulo, nos bancos de dados do Boletim CEInfo 2006 e do SINASC. De acordo com essa base de dados, há registro de 166.277 nascidos vivos nessa cidade em 2006, dos quais 52% ocorreram pelo parto cesáreo. Observando-se a base de dados do SINASC, da prefeitura municipal de São Paulo, identificamos um total de 104 hospitais que realizaram pelo menos um parto em 2006 (BOLETIM CEInfo, 2006, disponível em: 124 <http://ww2.prefeitura.sp.gov.br//arquivos/secretarias/saude/publicacoes/0004/Boleti mCEInfo07-07.pdf>, acesso em: 12 de março de 2007). Este estudo teve como recorte a análise dos partos realizados em instituições privadas do município de São Paulo. Por isso, excluímos os hospitais públicos e os hospitais privados conveniados com o SUS, por meio de consulta ao banco de dados do Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde (CNES), restando 45 instituições. Estes 45 hospitais realizaram, em 2006, 60.826 partos, ou seja, 36,6% de todos os nascimentos ocorridos no município nesse ano, e apresentaram em conjunto uma taxa de cesárea de 82,6%. Procurou-se selecionar uma amostra dentre este grupo de hospitais privados que, em conjunto, representasse o universo de hospitais que atendem às gestantes do sistema privado de saúde no município de São Paulo, com número significativo de partos e elevada taxa de cesárea. Identificamos cinco hospitais que realizaram, em conjunto, 40% de todos os partos do setor suplementar em São Paulo no ano de 2006 (Quadro 5). Cada um desses hospitais apresentou em 2006 taxas de cesárea superiores às do conjunto de hospitais privados do município de São Paulo no mesmo ano (82,6%), realizando médias mensais superiores à 280 partos. Esse grupo de hospitais, composto em decorrência do interesse do estudo e da viabilidade da execução, detém qualificações pertinentes aos elementos buscados na pesquisa, possibilitando a validação ou negação da premissa principal e a resposta aos objetivos propostos. Hospital Tipo de Parto Vaginal SANTA JOANA HOSPITAL E MAT SAO LUIZ HOSP E MAT PRO MATRE PAULISTA S A SANTA MARINA HOSP E MATERNIDADE SANTA CATARINA HOSPITAL Cesário Ignorado Total taxa de cesárea (%) media mensal de partos 533 649 675 7113 5539 4793 2 0 0 7648 6188 5468 93,0 89,5 87,7 637,3 515,7 455,7 460 4133 0 4593 90,0 382,8 259 3120 0 3379 92,3 281,6 Quadro 5 – Partos realizados nas principais maternidades do município de São Paulo, segundo tipo de parto Fonte: Elaboração própria. 125 A fim de atender a resolução número 196/96 do Conselho Nacional de Saúde e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), que regulamenta pesquisas com seres humanos, o projeto deste estudo e seus instrumentos para obtenção de dados foram encaminhados para a Comissão de Ética em Pesquisa (CEP) do Hospital Santa Catarina, pela maior facilidade do pesquisador em estar freqüentemente presente nessa instituição, para sua análise e aprovação. Esta Comissão entendeu que este estudo preenchia os requisitos necessários, aprovando-o na íntegra e autorizando, portanto, a sua execução. Após a aprovação pelo CEP e a seleção do grupo de hospitais, encaminhou-se solicitação formal conhecimento do às Diretorias trabalho e daqueles autorização nosocômios das selecionados entrevistas. Para para melhor esclarecimento, o pesquisador apresentou pessoalmente aos diretores destas instituições os objetivos do estudo, a proposta metodológica e a garantia de confidencialidade das informações, as quais seriam utilizadas apenas para essa pesquisa. O pesquisador esclareceu aos diretores que o método a ser adotado seria identificar e entrevistar as pacientes internadas, no segundo dia após o parto, após o devido entendimento do termo de consentimento livre e esclarecido pelas mesmas. Durante a aplicação do questionário, identificaríamos o médico que assistiu ao parto para que, numa segunda fase da pesquisa de campo, ele fosse entrevistado. Essa proposta visava a analisar as percepções sobre o mesmo parto vistas sob ângulos diferentes. Diretores de três hospitais não autorizaram a execução das entrevistas de acordo com a proposta metodológica de contatar inicialmente as pacientes e após aplicar o questionário ao seu médico assistente. Seria apenas oferecida, segundo os diretores, a possibilidade de contato com pacientes após a autorização do seu médico. O pesquisador entendeu que esse fato poderia gerar viés de seleção da amostra, já que somente haveria acesso às pacientes indicadas pelo médico assistente. Apenas um hospital selecionado forneceu a autorização para o pesquisador realizar a pesquisa conforme a metodologia desenhada. Um segundo hospital forneceu a autorização somente quando já haviam sido entrevistadas todas as pacientes da amostra preliminarmente proposta, não tendo sido portanto utilizado no trabalho de campo. 126 O pesquisador, por ser médico obstetra, optou por não realizar as entrevistas ele próprio, a fim de evitar qualquer constrangimento com o médico da paciente. Contratou-se uma empresa especializada em pesquisa de campo na área da saúde, o Centro de Estudos Augusto Leopoldo Ayrosa Galvão (CEALAG), para realizar as entrevistas. Três pessoas, todas do sexo feminino, para evitar qualquer embaraço com as pacientes, foram escaladas para realizar as entrevistas. Houve três reuniões com as entrevistadoras para ajustes conceituais e melhor entendimento da proposta do estudo. Para confirmação deste entendimento e para ajustar o instrumento, foram realizadas quatro entrevistas na forma de pré-teste, para médicos e pacientes voluntários, que não participariam da pesquisa, cujo resultado demonstrou a compreensão das entrevistadoras e dos entrevistados e a adequação do questionário aos propósitos propostos para o trabalho. Definiu-se que, inicialmente, seriam entrevistadas, pessoalmente no hospital, todas as pacientes que deram à luz naquele período, independentemente do tipo de parto. A partir das pacientes entrevistadas, identificou-se os médicos responsáveis pela assistência ao parto. Esses médicos foram então convidados a participar da pesquisa, por meio de entrevista por telefone, a fim de comparar suas perspectivas com as de suas clientes. A todas as mulheres em estudo, foi explicado que seus dados seriam utilizados anonimamente em uma pesquisa sobre a assistência ao parto, sendo facultada às mesmas a possibilidade de não participar da investigação. Foi-lhes assegurada a confidencialidade e o anonimato das informações. Todos os contatos com as pacientes foram precedidos por uma extensa explicação feita pelas entrevistadoras sobre os objetivos do estudo, ressaltando a não divulgação individualizada das informações fornecidas, seguida da assinatura voluntária do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, no qual se mostravam de acordo em participar da pesquisa, seguindo as recomendações da legislação brasileira (Resolução número 196/96 do Conselho Nacional de <http://www.conselho.saude.gov.br/docs/Reso196.doc>) Saúde, e disponível da em: legislação internacional – Declaração de Helsinque (1964, reformulada em 1975, 1983, 1989, 127 1966 e 2000, disponível em: <http://www.unifesp.br/reitoria/orgaos/comites/etica/Helsinque.doc>). A aplicação dos questionários com as pacientes foi realizada pessoalmente no próprio hospital, no segundo dia após o parto, a fim de evitar maiores transtornos a elas e seus familiares. Todas as pacientes que davam à luz eram previamente informadas e questionadas pela enfermeira supervisora da Maternidade sobre a possibilidade de uma entrevistadora ir ao seu apartamento para convidá-la a participar de uma pesquisa. Essa comunicação prévia pela enfermagem aumentou a receptividade das pacientes à entrevistadora, facilitando o trabalho. As entrevistas com as pacientes ocorreram no período de 24 de março de 2007 a 09 de maio de 2007. Procurou-se não realizar entrevistas durante a semana onde houve feriados nacionais, já que há uma prática corrente de realizar partos cesáreos em maior quantidade nas vésperas destes dias. Foram incluídas mulheres que tiveram partos normais, fórcipe ou cesáreos, ocorridos em todos os dias da semana a fim de evitar possíveis distorções de escolha do tipo de parto de acordo com preferências por dias da semana. O tamanho da amostra de pacientes foi calculado ajustando-se à possibilidade de realizar entrevistas em apenas um hospital, considerando-se uma proporção de partos cesáreos esperada na amostra de 80%, uma precisão desejada de 5%, um nível de confiança de 95% e um efeito de desenho de 1, através do software EPIINFO for Windows versão 3.4.1 de julho de 2007, gerando um número de 246 pacientes. Optou-se por realizar entrevistas com 250 pacientes. Todas as respostas foram registradas por escrito nos questionários e anexadas ao TCLE com a devida autorização e assinatura das pacientes. A partir desta amostra de 250 pacientes participantes, obteve-se 171 médicos responsáveis pelos partos realizados, já que alguns destes profissionais realizaram mais de um parto nessa amostra de pacientes. Em virtude do modelo de trabalho do médico na atualidade e da sua falta de tempo para diversas atividades, optou-se por realizar as entrevistas por telefone. Para isso, 128 a relação de médicos obtida a partir da amostra de pacientes foi entregue à secretária da Diretoria Clínica do hospital participante. Esta secretária foi encarregada de realizar contato telefônico com o médico, informando-o e indagando sobre a possibilidade de participar de uma pesquisa, solicitando ao mesmo a permissão para fornecer seu número telefônico a uma entrevistadora. Pretendia-se, por meio desse contato prévio, facilitar o acesso da entrevistadora ao médico, na medida em que esse profissional, ao saber do estudo, informava seu interesse ou não em participar, bem como o número do telefone disponível e o melhor dia e horário para ser entrevistado. 4.4.3 Compilação dos Dados Os dados coletados foram digitados e inseridos em um banco de dados Epi-Info e transportados para uma planilha no formato EXCELL. Essas informações foram então submetidas à analise estatística para consolidação e discussão dos resultados obtidos 4.4.4 Tratamento Estatístico dos Dados Após a realização do trabalho de campo e da compilação das informações em banco de dados, procedeu-se à análise estatística dos mesmos. Iniciou-se com uma análise descritiva das variáveis estudadas para avaliar as características das amostras de pacientes e médicos entrevistados. Realizou-se uma análise estatística uni e bivariada, estabelecendo-se um nível de significância (alfa) de 0,05 e utilizando-se o teste do Qui-quadrado, o teste do qui-quadrado com correção de Yates e o teste Exato de Fisher. Além disso, calculou-se para todas as estimativas relevantes um intervalo de confiança de 95%. Algumas variáveis demonstraram significância estatística. Para estas, procedeu-se uma análise estatística estratificada, tendo sido realizados testes do Qui-quadrado para avaliação da existência de interação. 129 Todas as análises estatísticas dos dados obtidos nos questionários realizados com pacientes e médicos foram realizadas por meio do programa EPI-INFO for Windows versão 3.4.1 de julho de 2007. 4.4.5 Problemas Metodológicos Encontrados e Limitações do Estudo Esse estudo apresentou algumas limitações ou situações de dificuldade que devem ser explicitadas. A primeira delas foi a impossibilidade de executar a entrevista com as pacientes em mais de uma instituição hospitalar. Embora a clientela que utiliza os serviços do hospital em que se realizou o estudo seja sócio-demograficamente semelhante à dos demais hospitais selecionados, fazendo com que os resultados encontrados possam refletir a realidade que ocorre em outras instituições hospitalares privadas, em particular na capital paulista, o pesquisador entende que a limitação de acesso para a investigação a outros hospitais possa trazer dificuldades na extrapolação dos resultados para outros hospitais. A segunda limitação refere-se à execução das entrevistas com médicos por telefone. Esse fato poderia, em algumas questões, trazer distorções nas respostas por falta de entendimento adequado da pergunta formulada ou por respostas automáticas devido à maior demora na realização da entrevista. Outra questão relevante refere-se ao fato de a entrevista com a paciente ocorrer no segundo dia após o parto. Isso poderia trazer um viés em algumas respostas, como por exemplo, o grau de satisfação em relação ao parto, em que a respondente poderia estar satisfeita com o resultado final e com a saúde de seu recém-nascido, independentemente de sua satisfação com o tipo de parto realizado. O dia da aplicação do questionário fez parte do desenho da investigação, portanto esta limitação era conhecida desde o início. A consideração desses limites metodológicos, no entanto, não invalida os resultados obtidos nesse estudo. 130 5 RESULTADOS E DISCUSSÃO Nesta parte do trabalho apresentamos e discutimos os resultados da aplicação dos questionários nas amostras selecionadas. A discussão dos resultados foi conduzida de forma a apresentá-los separadamente, para pacientes e médicos. 5.1 Aspectos Relacionados à Pesquisa de Campo Ao analisar o cenário da assistência ao parto no ano de 2006 no município de São Paulo, observamos que, no sistema de saúde suplementar, 52% dos nascimentos ocorreram pelo parto cesáreo. Esse dado tem grande relevância, principalmente quando associado à informação do percentual de cobertura dos planos de saúde. Dos mais de 37 milhões de brasileiros com o benefício da medicina suplementar em dezembro de 2006, 6,6 milhões eram residentes no município de São Paulo, (ANS, 2006, disponível em: <http://anstabnetans.gov.br/tabcgi.exe?dados/TABNET_02.DEF>, acesso em: 10 de dez. de 2006), correspondendo a 59,80% da população dessa capital (IDB, 2006, disponível em <http://tabnetdatasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?idb2006/f16.def>, acesso em 10 de dez. de 2007). O município de São Paulo pode ser considerado um local adequado para estudo sobre taxas de cesárea em serviços privados de assistência ao parto. Apenas 45 instituições hospitalares no município de São Paulo, onde foi realizado ao menos um parto em 2006, caracterizavam-se como exclusivamente privadas, sem qualquer relacionamento com o SUS sob o ponto de vista de financiamento. Destas, seguindo os critérios estabelecidos para inclusão, selecionou-se cinco hospitais para realizar a pesquisa de campo. Estes hospitais apresentavam taxas de cesárea semelhantes, ao redor de 90%, índice superior ao divulgado pela ANS sobre as taxas desse procedimento no setor suplementar no Brasil em 2006 (80,47%) (BRASIL, 2007). 131 Algumas características de clientela e de organização do trabalho médico são semelhantes, nesses hospitais. Trata-se de instituições privadas, com ou sem fins lucrativos, de grande porte, caracterizadas por terem a capacidade de atender a gestantes de alto risco materno e neonatal. Recebem uma clientela oriunda de planos de saúde ou particular e, portanto, com características sócio-culturais semelhantes. Além disso, são instituições tradicionais em São Paulo, cujo Corpo Clínico é aberto (qualquer profissional médico habilitado, com a autorização do diretor clínico, pode ali exercer sua profissão e atender seus clientes). Como a maioria dos médicos em São Paulo atua em mais de uma instituição hospitalar privada, possivelmente os obstetras entrevistados em uma instituição também exercem suas atividades nos outros hospitais da amostra. Apesar de essas características não definirem os critérios de inclusão na escolha dos hospitais conforme descrito na metodologia, elas permitem acreditar que o único hospital utilizado no trabalho de campo seja representativo das demais instituições. As entrevistadoras contratadas tiveram seus encontros com 250 pacientes, no segundo dia após o parto, no período de 24 de março a 09 de maio de 2007, tempo necessário para atingir a amostra proposta. Inicialmente identificadas e informadas pelas enfermeiras supervisoras da maternidade sobre a execução da pesquisa, as pacientes declaravam sua aceitação ou não em receber a entrevistadora. Obtida a permissão para receber a entrevistadora, esta se apresentava à paciente e solicitava-lhe a participação na pesquisa, informando-lhe seus direitos, entre os quais o de não participar, o de declinar de qualquer pergunta e o de interromper o questionário a qualquer momento, além da confidencialidade das respostas. As entrevistas foram realizadas depois da leitura, aceitação e assinatura do TCLE. Após a informação da enfermeira supervisora, 40 pacientes se recusaram a receber a entrevistadora e apenas uma se recusou a participar da pesquisa após receber a entrevistadora e ler o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Não foram obtidas informações sobre os motivos dessas recusas na participação da pesquisa. A partir da amostra de 250 pacientes, obtivemos 171 médicos responsáveis pela assistência ao parto das mesmas, já que um profissional pode ter feito dois ou mais partos dessa amostra. Coube à secretária da Diretoria Clínica do hospital participante da pesquisa solicitar a esses profissionais a autorização para 132 fornecimento do seu número do telefone para que a entrevistadora entrasse em contato, informando-lhes sobre a entrevista por telefone. Dos 171 médicos relacionados, a secretária da Diretora Clínica somente conseguiu contatar 157, pois os demais não estavam com o cadastro atualizado ou não responderam a mensagem deixada em caixa postal telefônica. Dezessete médicos se recusaram a receber o telefonema da entrevistadora, informando à secretária não ter interesse em participar. Os 140 médicos restantes foram contatados pelas entrevistadoras. Ao ligar para o médico, a entrevistadora informava os objetivos da pesquisa e solicitava autorização para realização da mesma, declarando que esta seria gravada. Após esse esclarecimento, ressaltando o expresso compromisso de confidencialidade e sigilo das respostas dos entrevistados, 12 médicos se recusaram a participar e três informaram não terem tempo disponível para responder. Outros três médicos informaram às entrevistadoras que somente responderiam por e-mail, sendo por isso excluídos da amostra, evitando inserir respostas obtidas por meio de procedimentos de coleta diferentes. Desta maneira, obtivemos uma amostra de 122 médicos participantes da pesquisa, correspondendo a 71,34% do número de médicos que realizaram o parto das 250 pacientes. Apesar da aceitação em participar da pesquisa, o contato com os médicos foi muito difícil, em virtude da falta de tempo disponível dos mesmos. Foram necessários, em média, oito contatos telefônicos por médico até conseguir realizar a entrevista. As entrevistas foram realizadas no período de 17 de maio a 10 de julho de 2007, em função das dificuldades de agendamento. O tempo de aplicação de cada questionário foi de aproximadamente 12 minutos, sendo que todas as entrevistas foram gravadas e as respostas foram posteriormente registradas para construção do banco de dados. Apesar de ter sido assegurado o direito de declinar de responder a qualquer das questões formuladas ou de interromper a entrevista a qualquer momento, em nenhuma vez esse direito foi exercido, seja por médicos ou por pacientes. 133 5.2 Resultados das Entrevistas com as Pacientes e Discussão A amostra de pacientes entrevistadas apresentava características sócio-culturais específicas de uma sociedade de níveis sócio-econômico e educacional elevados (Tabela 1). Cerca de 63% das pacientes apresentava idade maior ou igual a 30 anos, chamando a atenção a quantidade de gestantes acima dos 40 anos (6,8%). Esse dado demonstra dois fatos relevantes: primeiramente, as características das mulheres atendidas nessa instituição se assemelham àquelas descritas na literatura sobre a mulher do século XXI, que prioriza suas atividades profissionais em relação à maternidade, freqüentemente adiada. Além disso, gestações acima dos 40 anos são consideradas de alto risco, elevando a probabilidade de realização de cesariana. Segundo estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2005, 11% da população feminina do país e 13,2% do município de São Paulo estavam na faixa etária compreendida entre 40 e 49 anos. Nesse ano, em nosso país, houve 3.035.096 nascidos vivos, dos quais 62.226 nasceram de mulheres entre 40 e 49 anos, correspondendo a 2% das gestantes (IBGE/DATASUS/MS, 2005 disponível em: <http://tabnetdatasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sinasc/cnv/nvuf.def>, acesso em: 20 de setembro de 2007). A taxa de cesárea no Brasil em 2005 para o grupo entre 40 e 49 anos foi de 53,17%. Já no município de São Paulo, no mesmo ano, observamos 179.025 nascidos vivos, dos quais 5.005 (2,8%) em gestantes entre 40 e 49 anos, sendo nesse grupo 68% o índice de cesariana (Quadro 6). população total estimada população feminina estimada população feminina de 40 a 49 anos gestantes de 40 a 49 anos parto cesáreo em mulheres com 40 a 49 anos (%) Brasil 184.184.074 93.513.055 Município de São Paulo 10.927.985 5.720.007 10762879 62.226 7.594.451 5.005 53,17 68 Quadro 6 – Número e proporção de mulheres e de gestantes entre 40 e 49 anos e percentual de cesáreas, Brasil 2005. Fonte: IBGE/ Datasus/MS, 2005. 134 Além das características demográficas, observamos em nossos resultados que três quartos da amostra apresentavam elevado nível de escolaridade (mulheres com ensino superior completo ou incompleto). Ainda é possível observar que 5,6% das pacientes tinham pós-graduação, dado que demonstra uma população que possivelmente priorizou suas conquistas profissionais em relação à maternidade. Essas características, associadas ao fato de quase 80% das pacientes estarem empregadas (variável “trabalha fora de casa”), leva-nos à suposição de se tratar de uma parcela da população com elevado grau de autonomia e discernimento das informações necessárias para o exercício de sua cidadania e escolha pelo tipo de assistência à saúde que deseja. A amostra dessa pesquisa apresenta-se ainda formada por 82% de mulheres brancas, cuja renda familiar, na sua maioria (55%), está acima de dez salários mínimos. Ao compararmos este resultado com os dados da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) realizada pelo IBGE, segundo a qual o rendimento familiar mensal em nosso país gira em torno de R$1.800,00, (IBGE, Pesquisa de Orçamento Familiar, 2003, disponível em: <http://www.sidra.ibge.gov.br/bda/Tabela/protabl.asp?z=t&o=20&i=P>, acesso em: 10 de dezembro de 2007) concluímos que essa amostra está inserida em um grupo sócio-econômico favorecido. 135 Tabela 1 – Características sócio-culturais das pacientes (n=250), Hospital, 2007. Variáveis Freqüência Absoluta % 17-29 92 36,8 30-39 141 56,4 40 e + 17 6,8 Até 2º Grau Completo 64 25,6 3º Grau e + 186 74,4 Branca 205 82,0 Parda 23 9,2 Negra 6 2,4 Amarela 12 4,8 Ignorada 4 1,6 Sim 199 79,6 Não 51 20,4 10 SM ou menos 109 45,0 Mais de 10 SM 133 55,0 Faixa Etária (1) Escolaridade Cor/Raça Trabalha Fora Renda Familiar (1) Idade: Média=31,4, DP=5,3, mínimo=17 e máximo=47 Nota: SM – salário-mínimo A inter-relação dos aspectos demográficos, sociais e econômicos, descrita por Butcher et al. (1997), Menacker e Curtin (2001) e Kabir et al. (2004), entre outros, onde mulheres brancas geralmente têm maior renda e escolaridade e estão relacionadas à realização de cesarianas, também foi encontrada em nossa amostra, formada em sua maioria por mulheres de cor branca, com taxa de cesárea de 88,4% (Tabela 2). Esse padrão sócio-cultural, associado ao fato de essas mulheres serem atendidas no modelo assistencial privado, favorece o estreitamento na relação médico-paciente, onde o poder de negociação e de realização de escolhas pode ser exercido com maior intensidade. Conforme observado na Tabela 2, quase 60% das mulheres dessa amostra estavam na sua primeira gestação. Entre as que já haviam tido filhos, estes nasceram por parto cesáreo em 76,2% dos casos. Esse dado, associado à média de idade, ao 136 redor de 31 anos, corrobora uma das características da mulher moderna, também presente em nossa amostra, o adiamento da primeira gestação em função de outras prioridades pessoais. O grau de satisfação com o parto anterior é muito elevado, independentemente do tipo de parto realizado (Tabela 2). Das 101 mulheres que tiveram um ou mais partos anteriores, 90,8% daquelas que tiveram cesárea e 79,2% das que tiveram parto vaginal, ficaram satisfeitas, não havendo diferenças estatisticamente significantes quanto ao tipo de parto (Qui-quadrado=2,33; 1 grau de liberdade; p=0,13). Existem vários modelos que medem a satisfação do paciente, mas todos têm como pressupostos as percepções do paciente em relação às suas expectativas, valores e desejos (LINDER-PELZ, 1982; WILLIAMS, 1994). Linder-Pelz (1982) definiu satisfação do paciente como as avaliações positivas individuais de distintas dimensões do cuidado à saúde. Com Donabedian (1990), a noção de satisfação do paciente tornou-se um dos elementos da avaliação da qualidade em serviços de saúde, premissa relevante no contexto atual. O atributo satisfação do paciente passa a incorporar o conceito de qualidade, tornando-se um objetivo em si e não apenas um meio de produzir a adesão do paciente ao tratamento (VAITSMANN; ANDRADE, 2005). A discussão sobre a influência da experiência anterior sobre a escolha do tipo de parto é muito polêmica. Há estudos que demonstram que o nível de satisfação da mulher é maior na cesárea eletiva do que no parto vaginal (SCHINDL et al., 2003), enquanto em outros o resultado é oposto (TEDESCO et al., 2004; FAÚNDES et al., 2004). Essas análises devem estar contextualizadas ao modelo do sistema de saúde em prática para aquela população estudada. Satisfação é um conceito difícil de medir e interpretar, sendo influenciado pelo tipo de atendimento recebido no prénatal e no parto e fortemente dependente dos resultados adversos, maternos e neonatais (FAISAL-CURY; MENEZES, 2006), questões que podem ou não ser lembradas pelas pacientes. No trabalho de Waldenström (2003) avaliando a memória das mulheres sobre o parto, comparando sua opinião dois meses e doze meses após o nascimento, 60% das mulheres mantiveram sua opinião, fosse ela positiva ou negativa, mesmo um 137 ano após o evento, enquanto que 24% das mulheres passaram de opinião positiva para negativa. Essa mudança poderia ser justificada pela sensação de término do parto ou pela euforia com o nascimento de um bebê saudável, tornando sua opinião positiva. Para Waldenström (2003), depois de doze meses, a mulher estaria mais preparada para encarar aspectos negativos do seu parto, como trabalho de parto longo, lembrança das dores, intervenções médicas indesejadas ou insatisfação com a equipe que assistiu ao parto. Para identificar os motivos de mudança de opinião, o mesmo autor realizou outro trabalho, observando que as dores e as complicações de parto foram mais comuns entre as mulheres que mudaram de opinião positiva para negativa do que entre aquelas cuja opinião não se modificou, concluindo que as percepções intra-parto da mulher são importantes para a memória de longo prazo (WALDENSTRÖM, 2004). Em nosso trabalho, fizemos uma análise pontual da satisfação em relação ao parto anterior, não avaliando possíveis mudanças de opinião ao longo do tempo. O pesquisador buscou apenas obter a percepção e o grau de satisfação das pacientes que tiveram parto anterior, em sua maioria do tipo cesáreo, supondo que as que ficaram satisfeitas desejariam o mesmo tipo de parto na gestação atual, enquanto as insatisfeitas solicitariam outro tipo de parto. No entanto, em virtude do pequeno grupo formado por pacientes insatisfeitas com o parto anterior, não foi possível demonstrar essa associação por meio das análises estatísticas. A maioria dos partos estudados na amostra analisada foi cesariana (88,4%), taxa essa similar às cifras observadas em 2006 nos hospitais selecionados, refletindo a possibilidade de extrapolação da amostra para o universo de mulheres atendidas no sistema privado de saúde do município de São Paulo. Observa-se, ainda na Tabela 2, que não houve diferença estatisticamente significante na taxa de cesárea entre mulheres que não tinham partos anteriores e aquelas com um ou mais partos anteriores, 89,0% 87,1%, respectivamente (Qui-quadrado=0,21, 1 gl, p=0,34) 138 Tabela 2 – Características das pacientes com relação aos antecedentes obstétricos (n=250), Hospital, 2007 Variáveis Freqüência absoluta % Nenhum 146 59,1 Um ou mais 101 40,9 Vaginal 24 23,8 Cesárea 77 76,2 Satisfeita 88 88,0 Insatisfeita 12 12,0 Cesárea 221 88,4 Vaginal 29 11,6 Partos Anteriores Tipo de Parto Anterior Satisfação com Partos Anteriores (1) Tipo de Parto Atual (2) (1) Satisfação: IC95%: 80,0-93,6% (2) Cesárea: IC95%: 83,8-92,1% Como em nossa amostra somente duas mulheres deram à luz por parto fórcipe, essas foram agrupadas àquelas que tiveram parto normal, sendo então classificadas como parto vaginal. O outro grupo foi chamado de pacientes que tiveram cesárea. Agrupamos as pacientes de acordo com o tipo de parto realizado na gestação em estudo, denominado evento-chave, e analisamos as variáveis em cada grupo, com o intuito de encontrar fatores associados à realização de determinado tipo de parto. Separamos as pacientes em três faixas etárias, conforme Tabela 3, e analisamos o tipo de parto realizado. Embora em nossa amostra houvesse 63,2% de mulheres com 30 anos ou mais, caracterizando uma população de mulheres maduras, levando à expectativa de maior número de cesáreas entre essas pacientes, não encontramos diferenças estatisticamente significantes entre o tipo de parto e as faixas etárias definidas. Nas três faixas etárias, as taxas de cesárea foram superiores a 84% (Tabela 3). Buscou-se analisar a associação entre o tipo de parto realizado e o grau de escolaridade. Observa-se diferença estatisticamente significante entre essas 139 variáveis: o grupo de mulheres com nível educacional a partir de superior apresentou maior associação com realização de cesáreas, enquanto que aquelas com nível educacional até segundo grau completo tiveram mais partos vaginais (Tabela 3). As demais variáveis sócio-culturais também foram analisadas em relação ao eventochave. Além da maior prevalência de parto cesárea em mulheres de maior nível educacional, houve diferença estatisticamente significante entre o tipo de parto e o trabalho fora do lar. Aquelas pacientes que trabalham fora de casa tiveram mais partos cesáreos, enquanto as que não tinham trabalho fora de casa tiveram mais partos vaginais. Isso pode ser explicado por uma eventual praticidade e conveniência para a paciente que trabalha fora em agendar seu parto, adaptando sua vida profissional à pessoal. Observamos ainda maior prevalência de cesáreas entre as mulheres com renda familiar maior de 10 salários-mínimos (SM). Ao analisarmos as pacientes que tiveram parto vaginal, observamos forte associação entre esse tipo de parto e renda familiar inferior a essa cifra, definida como ponto de corte, sugerindo que essa clientela, embora inclusa no modelo de saúde privado, tivesse um comportamento diverso do restante da amostra. Em todas as raças houve predomínio de cesáreas em relação a parto normal. Porém mulheres da raça amarela tiveram, de forma estatisticamente significante, maior incidência de partos vaginais (Tabela 3). Embora haja estudos que sugerem diferenças entre o nível de tolerância à dor em determinados grupos populacionais, não foi encontrada, no referencial teórico, justificativa para tal resultado. Uma explicação possível seria a característica cultural de mulheres de raça amarela em tolerar mais facilmente as sensações dolorosas, favorecendo a tentativa de parto vaginal. 140 Tabela 3 – Taxas de cesárea segundo características sócio-econômicas, Hospital, 2007 Variáveis Cesárea Vaginal % % 17-29 anos 84,8 15,2 30-39 anos 90,8 9,2 40 anos ou mais 88,2 11,8 Até 2º Grau Completo 79,7 20,3 3º Grau e mais 91,4 8,6 Branca 90,2 9,8 Negra/Parda 89,7 10,3 Amarela 66,7 33,3 Sim 90,5 9,5 Não 80,4 19,6 10 SM ou menos 81,7 18,3 Mais de 10 SM 93,2 6,8 Qui-quadrado; gl (3); p Faixa Etária 1,95;2; 0,377 Escolaridade 6,37; 1; 0,012 (2) Cor/Raça (1) p=0,031 Trabalha Fora 4,01;1;0,045 (2) Renda 7,62; 1; 0,006 (2) (1) Comparando-se taxa de cesárea de mulheres da raça amarela com outras encontramos uma diferença estatisticamente significante (p=0,031 pelo Teste Exato de Fisher) (2) Testes com significância estatística (3) gl. = graus de liberdade Na Tabela 4 detalhamos as variáveis relacionadas à quantidade de consultas realizadas no pré-natal e às informações obtidas durante essa assistência, buscando associá-las ao tipo de parto realizado. Observando a amostra como um todo (coluna Geral % da Tabela 4), identificamos que 93,6% das pacientes realizou mais de 7 consultas pré-natal, demonstrando adequação da assistência nessa fase da gravidez, visto ser consenso publicado pelo Ministério de Saúde que um total de seis ou mais consultas caracteriza assistência pré-natal completa favorecendo, juntamente com outros quesitos fundamentais dessa assistência, a preservação da saúde da mãe e do seu feto (BRASIL, 2000c). Em relação a esta variável não houve associação entre tipo de parto e número de consultas maior ou menor a 7. Alguns trabalhos da literatura relatam que a quantidade de consultas de pré-natal atua como fator de risco para a realização da cesariana. Cabral (2003) identificou que pré-natal 141 inadequado, caracterizado por um número de consultas inferior a 6, propiciou maior incidência de parto cesáreo em uma maternidade pública. Hernandez et al. (2000), estudando assistência obstétrica em serviço privado, não constataram relação entre essa variável e o tipo de parto realizado. Possivelmente, devido a diferenças entre as clientelas dos sistemas público e privado, não seja factível estabelecer uma regra para essa associação sem levar em consideração o modelo assistencial oferecido. As demais variáveis descritas na Tabela 4 referem-se a algumas informações que poderiam ser fornecidas no pré-natal e que poderiam influenciar na escolha pelo tipo de parto. Não houve diferenças significativas entre o tipo de parto e as variáveis informações recebidas sobre anestesia para parto normal, informações sobre dores do trabalho de parto e sintomas após o parto normal e informações sobre os riscos para os dois tipos de parto. Essas informações em geral permeiam o imaginário das mulheres durante a gestação levando, eventualmente, a escolhas ou preferências por determinado tipo de parto. No entanto, os resultados demonstraram que, do ponto de vista da paciente, as informações recebidas ou compreendidas por elas para esclarecer eventuais dúvidas que ocorrem durante a gestação foram semelhantes nos dois grupos de mulheres. Algumas informações recebidas durante o pré-natal apresentaram-se de forma diferente entre os grupos de pacientes nos diferentes tipos de parto. Embora os testes estatísticos não tenham demonstrado significância, o nível de informação recebida sobre os tipos de parto parece estar associado ao tipo de parto realizado, em especial entre aquelas que se submeteram à cesariana. Observa-se, no entanto, que o grupo de mulheres que tiveram cesárea recebeu de forma significativa mais informações sobre a anestesia nesse tipo de parto e sobre os sintomas após o parto cirúrgico. A reflexão sobre esses resultados não traz uma resposta definitiva. Uma possível explicação seria que, para esse grupo, previamente interessado em realizar essa cirurgia, algumas informações referentes à cesárea fossem primordiais e necessárias para sua escolha, e por isso essas pacientes as teriam buscado de forma intencional (Tabela 4). 142 Tabela 4 – Quantidade de Consultas e Informações Recebidas na Assistência Prénatal, segundo o tipo de parto, Hospital, 2007 Variáveis Cesárea Vaginal Geral % % % Até 7 consultas 6,8 3,4 6,4 Mais de 7 93,2 96,6 93,6 Sim 90,5 79,3 89,2 Não 9,5 20,7 10,8 Sim 59,3 55,2 58,8 Não 40,7 44,8 41,2 Sim 69,2 48,3 66,8 Não 30,8 51,7 33,2 Sim 56,1 48,3 55,2 Não 43,9 51,7 44,8 Sim 49,3 48,3 49,2 Não 50,7 51,7 50,8 Sim 64,3 41,4 61,6 Não 35,7 58,6 38,4 Sim 44,3 34,5 43,2 Não 55,7 65,5 56,8 Sim 50,2 37,9 48,8 Não 49,8 62,1 51,2 Qui-quadrado; gl; p Consultas pré-natal (n=249) 0,48; 1; 0,487 Informações sobre: Tipo de parto 3,33; 1; 0,068 Anestesia parto normal 0,018; 1; 0,673 Anestesia parto cesárea 5,07; 1; 0,024 (1) Dores trabalho de parto 0,63; 1; 0,425 Sintomas após parto normal 0,01; 1; 0,915 Sintomas após parto cesárea 5,67; 1; 0,017 (1) Riscos parto normal 1,01; 1; 0,313 Riscos parto cesárea 1,55;1; 0,213 (1) Testes com significância estatística Embora Hotimsky et al. (2002) tenham relatado que a abordagem médico-cirúrgica do parto tenderia a superestimar os riscos inerentes ao processo fisiológico do parto normal, levando à gestante a percepção de que não há riscos no parto cesáreo, observa-se na presente pesquisa que as mulheres relataram ter recebido informações sobre os riscos de ambos os tipos de parto. Os resultados 143 apresentados na Tabela 5 confirmam essa afirmação, uma vez que, do ponto de vista das pacientes, o nível de informação recebida no pré-natal foi considerado suficiente nos dois grupos estudados. Apesar de a maioria das mulheres não ter realizado curso de gestante, programa oferecido pelas grandes maternidades para essa clientela, elas obtiveram informações por meio de outras fontes às quais tinham acesso, como revistas, internet etc. (Tabela 5). Esse fato realça a relevância dos fatores sócio-culturais dessas gestantes, refletindo seu elevado nível educacional e a possibilidade de acesso a diversos meios de informação. Tabela 5 - Informações obtidas sobre o parto segundo sobre tipo parto, Hospital, 2007 Variáveis Cesárea Vaginal Geral (1) % % % Suficiente 91,3 96,4 91,9 Insuficiente 8,7 3,6 8,1 Sim 17,3 13,8 16,9 Não 82,7 86,2 83,1 Sim 81,0 75,9 80,4 Não 19,0 24,1 19,6 Qui-quadrado; gl; p Nível de informação sobre tipos de partos 0,87;1; 0,348 Curso durante gravidez 0,22; 1; 0,638 Outras fontes informação 0,429; 1; 0,512 (1) Inclui toda a amostra de pacientes. Vários estudos brasileiros e internacionais estudaram a preferência das mulheres sobre o tipo de parto (FAUNDES, 2004; WAX et al., 2004; FAISAY-CURY; MENEZES, 2006). Em nosso estudo, 54% das mulheres desejavam ter parto normal no início da gestação, enquanto 34% desejavam cesárea. Quando observamos o tipo de parto realizado em relação ao desejo no inicio da gestação, vemos que, das que tiveram parto normal, 76% desejavam esse tipo de parto desde o início. Esse fato corrobora o estudo sueco de Hildingsson (2006), que demonstrou a influência do desejo materno no tipo de parto realizado. Por outro lado, 51% das mulheres que foram submetidas à cesariana tinham, inicialmente, desejo pelo parto normal (Tabela 144 6), fato que sugere mudança de opinião materna durante a gravidez, excetuando-se os casos onde o médico tomou a decisão independentemente da vontade materna. Analisou-se, então as mudanças de opinião das gestantes após o recebimento de informações no decorrer da gestação. Observa-se que, tanto entre as mulheres que tiveram parto normal, quanto entre aquelas que tiveram cesárea, apenas 18% mudaram de opinião. No entanto, ao observarmos somente as pacientes que mudaram de opinião durante a gestação, associando esta mudança ao tipo de parto realizado, identificamos uma diferença estatisticamente significante. Vinte e quatro por cento das mulheres que desejavam parto normal no inicio mudaram de opinião no decorrer da gestação, enquanto apenas 7,1% das que desejavam cesárea mudaram seu desejo (Qui-quadrado=10,81, 1 gl, p=0,001) (Tabela 6). Esses resultados demonstram que há fatores associados à dinâmica da assistência obstétrica que influenciam as decisões pelo tipo de parto, como por exemplo oscilações psicológicas e/ou emocionais maternas durante a gravidez, adaptações ou conveniência da mulher, da família ou do médico, dentre outros. Tabela 6 – Associação entre o desejo materno no início da gestação e eventual mudança de opinião e o tipo de parto realizado, Hospital, 2007 Variáveis Cesárea Vaginal Geral % % % Parto normal 51,4 75,9 54,2 Parto cesárea 36,4 17,2 34,1 Indiferente 12,2 6,9 11,7 Sim 19,1 13,8 18,4 Não 80,9 86,2 81,6 Qui-quadrado; gl; p Desejo início gestação (n=249) 6,22; 2; 0,045 (1) Mudou com informações (n=244) 0,47; 1; 0,491 (1) teste com significância estatística Notas: 1. 54,2% das mulheres desejavam parto normal no início da gestação (IC95%: 47,8-60,5%) A maioria das pacientes da amostra desse estudo disse ter participado da decisão pelo tipo de parto. Somente 20,8% delas declararam que não influenciaram na escolha, enquanto 79,2% percebe ter participado de maneira integral (a escolha dependeu apenas do seu desejo) ou parcial (a escolha foi feita em conjunto com o médico). Com relação ao tipo de parto, houve diferenças estatisticamente 145 significantes na participação materna: 100% das mulheres que tiveram parto vaginal dizem ter participado da decisão, sendo que na maioria dos casos (82,8%) essa participação foi considerada por elas como integral (Tabela 7). Tabela 7 – Associação entre grau de participação materna na decisão do tipo de parto e tipo parto realizado, Hospital, 2007 Variáveis Cesárea Vaginal Geral % % % Integral 35,7 82,8 41,2 Parcial 40,7 17,2 38,0 Nenhuma 23,6 - 20,8 Início 38,8 79,4 44,5 Final gestação 40,6 10,4 36,3 Após internação 10,3 3,4 9,3 8 3,4 7,4 2,3 3,4 2,5 Participação Qui-quadrado; gl; p 24,3; 2 <0,001 (1) Momento da decisão (2) (n=204) Após informação médico Após informações outras fonte 16,1; 1; <0,001(1) (1) testes com significância estatística. (2) Para essa análise, unimos os resultados de final de gestação, após a internação, após a informação do médico e de outras fontes, comparando-os aos dados do início da gestação. Esses resultados corroboram o poder de negociação de mulheres com o perfil sóciocultural encontrado atendidas no sistema privado de saúde. Como pudemos observar em nossa amostra, há mulheres de faixa etária mais elevada, com alto grau de instrução e que consideram satisfatório o nível de informações obtidas durante a gestação. Essas características, associadas ao modelo assistencial privado de nosso país, levam a um relacionamento médico-paciente propício para possíveis negociações sobre escolhas referentes ao tipo de assistência obstétrica desejado. A análise dos fatores motivadores para o tipo de parto deve ser realizada sob ótica interdisciplinar, onde as relações de poder e dominação do corpo da mulher por meio da práxis obstétrica estão intimamente associadas aos desejos e necessidades dos personagens desse “jogo”, a gestante e seu médico, que negociam alternativas, independentemente do que propõem as normas de boa conduta técnica, numa relação de poder (GENTILE; LOPES; CUNHA, 2000). Para as mulheres atendidas no modelo privado de saúde, há possibilidade de escolhas, inclusive do profissional 146 que irá atendê-las, o qual, frequentemente, realizará o seu pré-natal e o parto. Assim, estabelece-se um contrato tácito entre as partes, cujas decisões e condutas muitas vezes permeiam a relação médico-paciente e necessitam ser consensuais. Para essas mulheres encaixa-se a definição de consumidor ou cliente, termos que começaram a ser usados de maneira mais freqüente a partir dos anos 1990, paralelamente à de paciente e usuário. Sitzia e Wood (1997) defendem a idéia de que o termo consumidor confere maior autonomia ao relacionamento profissionalpaciente, ao contrário do tradicional termo “paciente”, que estaria associado à falta de poder e dependência em relação ao médico. Alguns autores associam o termo consumidor a um indivíduo racional, consciente de suas escolhas e capaz de defender seus direitos. Esta visão seria a do “bom consumidor” – aquele que faz escolhas e assimila informações, para cumprir seu papel. Ou seja, sujeito de desejo, vontade, informação e direitos. Para Dinsdale et al.16 (2000, apud VAITSMANN; ANDRADE, 2005), também é preciso levar em conta algumas diferenças relevantes quando se avaliam serviços públicos e privados. No setor público, o usuário pode se colocar ora como consumidor, avaliando os serviços do ponto de vista de seus ganhos individuais, ora como cidadão, avaliando os serviços ao levar em conta a sociedade como um todo. Como consumidor, ele pode desejar um tempo de espera menor para a consulta e atendimento mais ágil mas, como cidadão, pode querer que todas as pessoas sejam atendidas, implicando em um tempo de espera maior. Para esses autores, no que se refere à escolha, no setor privado, o cliente pode procurar outro serviço ou outro profissional, enquanto no setor público essa possibilidade é limitada, quando não impossível. Portanto, podemos entender que as pacientes da amostra exerceram seu papel de consumidoras, assumindo o direito de escolha do tipo de parto. Para Hotimsky et al. (2002), dentre as explicações para as taxas de cesárea no Brasil estão a organização da assistência obstétrica e a demanda por cesarianas pelas parturientes, considerada por essas demandantes uma prática segura. 16 DINSDALE, G.B., MANSON, D.B., SCHMIDT F., STRICKLAND, T. Metodologia para medir a satisfação do usuário no Canadá: desfazendo mitos e redesenhando roteiros. Brasília, ENAP, 2000, n. 20. 147 Dentre os resultados apresentados na Tabela 7, há aqueles relacionados ao momento da decisão das pacientes que participaram na escolha do tipo de parto e sua relação com o parto realizado. Entre as mulheres que tiveram parto vaginal e participaram dessa escolha, essa decisão ocorreu predominantemente no início da gestação, enquanto que a maioria das mulheres submetidas à cesariana tomou essa decisão no final da gravidez. Esse resultado, analisado em conjunto com aquele apresentado sobre a mudança de opinião do tipo de parto desejado (Tabela 6), demonstra que algo possivelmente ocorre durante a gravidez, levando à decisão pela cesárea. Ao longo de nove meses ocorrem grandes transformações no corpo e na vida emocional da mulher. Cada gestante vivencia essas transformações à sua maneira. Surpresas, dúvidas, medos, alegrias e angústias, ou seja, uma diversidade de estados e sentimentos que vão da plenitude total à angústia e pânico, permeiam essa experiência, seja ela vivida pela primeira vez ou não (CONSONNI et al., 2003). Szejer e Stewart17 (1997, apud CONSONNI et al., 2003) concluem que, do ponto de vista psíquico, o final da gestação é um período atormentado. A perspectiva de separar-se do filho reaviva na futura mãe suas experiências anteriores de separação. Muitas não se sentem preparadas e vivem dolorosas angústias. Para Szejer e Stewart (1997 apud CONSONNI et al., 2003), existiria a possibilidade de um convencimento do médico de que um determinado tipo de parto seria “melhor” para a mãe e seu feto. Em nosso estudo, partindo da premissa de que a mudança do tipo de parto não ocorreu por motivos clínico-obstétricos e sim por alterações no desejo materno, suspeita-se que esta tenha sido devida às alterações emocionais ou psicológicas da gestante ou à maior conveniência para a família e/ou para o médico. Em função do aspecto psicológico influenciando a escolha pelo tipo de parto, muitos estudos sugerem a necessidade de os serviços de saúde se empenharem na conscientização da sociedade sobre os riscos do parto cirúrgico, buscando reduzir os receios do parto vaginal. Numa revisão sistemática do Instituto Cochrane sobre essas iniciativas, avaliando trabalhos publicados sobre as informações fornecidas à gestante sobre parto cesáreo, Horey et al. (2004) encontraram apenas dois estudos randomizados e controlados, um norte-americano e um finlandês, envolvendo, ao 17 SZEJER, M., STEWART, R. Nove meses na vida da mulher: uma abordagem psicanalítica da gravidez e do nascimento. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1997. 148 todo, 1451 mulheres. Ambos trabalhos almejavam reduzir as taxas de cesárea encorajando as mulheres a tentar o parto vaginal, por meio de programas de prénatal ou terapias cognitivas para reduzir o medo. No entanto, esses programas não surtiram efeito na redução do parto cesáreo. Os resultados apresentados na Tabela 8 buscaram definir os motivos que influenciaram a decisão materna sobre o tipo de parto escolhido. Contrariando muitos estudos (LAND, 2001; CONSONNI et al., 2003), não foi observada diferença estatisticamente significante entre motivos como ansiedade pelo término da gestação, medo das dores do parto normal, receio de problemas sexuais após o parto vaginal ou temores sobre eventuais problemas com o recém-nascido, decorrentes de um ou outro tipo de parto e o tipo de parto realizado. No entanto, a variável medo das dores após o parto cesáreo foi estatisticamente significante entre mulheres submetidas ao parto vaginal, demonstrando que essas pacientes distinguiam claramente a dor do trabalho de parto daquela após a cirurgia, optando pela primeira, conforme já demonstrado nos trabalhos de Hopkins (2000), Osis et al. (2001) e Tedesco et al. (2004). Por outro lado, a praticidade de agendar o parto foi extremamente relevante para a escolha do parto cesáreo. 149 Tabela 8 – Fatores que estariam associados à decisão sobre o tipo de parto, em relação ao tipo parto realizado, Hospital Santa Catarina, 2007 Fatores Cesárea Vaginal Geral % % % Sim 39,3 51,7 41,1 Não 60,7 48,3 58,9 Sim 37,6 24,1 35,7 Não 62,4 75,9 64,3 Sim 30,7 55,2 34,1 Não 69,3 44,8 65,9 Sim 7,4 3,4 6,8 Não 92,6 96,6 93,2 Sim 36,0 6,9 31,9 Não 64,0 93,1 68,1 Sim 13,6 17,2 14,1 Não 86,4 82,8 85,9 Sim 22,2 17,2 21,5 Não 77,8 82,8 78,5 Sim 9,0 - 7,7 Não 91,0 100,0 92,3 Qui-quadrado; gl; p Ansiedade ao término gestação (n=207) 1,58;1; 0,208 Medo da dor parto normal (n=207) 1,97;1;0,159 Medo da dor após parto cesárea (n=208) 6,63;1;0,010 (1) Medo de problemas de sexualidade após parto normal (n=205) 0,61; 1; 0,436 Praticidade de agendar parto (n=207) 9,69; 1; 0,002 (1) Medo de problemas recém-nascido devido à cesárea (n=205) 0,391(1) Medo problemas recém-nascido devido ao parto normal (n=200) 0,364; 1; 0,546 Realização ligadura de tubas (n=195) (1) testes com significância estatística (2) Teste Exato de Fisher 0,089(2) 150 Observa-se que essa população representada na amostra de pacientes, além de participar integral ou parcialmente nas escolhas pelo tipo de parto, de ter elevado grau de escolaridade e de trabalhar fora, opta pelo parto cesáreo possivelmente por ele ser mais conveniente para si, já que o agendamento do parto pode ser muito prático na organização da vida profissional. As questões relacionadas à sexualidade, também apresentadas na Tabela 14, são freqüentemente discutidas como um dos fatores fortemente associados à escolha pela cesárea (FAÚNDES; CECATTI, 1991; HOTIMSKY; SCHRAIBER, 2005). No entanto, esse aspecto não apresentou importância para a amostra em geral, nem esteve associado ao tipo de parto realizado. Da mesma maneira, essas mulheres da amostra não relataram, em sua maioria, medo de problemas com o recém-nascido decorrentes do parto, em ambos os tipos analisados. Provavelmente, o maior acesso às informações e o seu entendimento propiciaram esses resultados, tornando as mulheres mais confiantes e seguras. Outro fator envolvido nessa sensação de segurança materna quanto aos resultados neonatais está na forma de relacionamento médico-paciente, que ocorre de maneira estreita no modelo assistencial privado. A mulher escolhe seu obstetra para realizar seu pré-natal, confiando-lhe a responsabilidade de realizar seu parto. Alguns autores relataram que a ligadura das tubas uterinas para a esterilização feminina definitiva tem sido uma das grandes causas de cesárea em nosso país (FAÚNDES; CECATTI, 1991, HOPKINS, 2000). De certa maneira, essa relação de causa e efeito faz sentido quando, no serviço público de saúde, observamos as dificuldades de acesso a métodos contraceptivos. Em contrapartida, para mulheres assistidas no sistema privado, onde geralmente há acesso a esses métodos, ocorre outro fato que favoreceria a realização da cesárea para execução da ligadura das tubas: ausência de cobertura da maioria dos planos de saúde para a realização desse procedimento. Ou seja, uma vez que os planos de saúde não dão cobertura para realização da esterilização definitiva, masculina ou feminina, a mulher necessitaria internar-se em uma unidade hospitalar e arcar com os custos médicos e hospitalares desse procedimento. Assim, para evitar esse desembolso, a paciente utilizaria a internação hospitalar para dar à luz, realizando durante uma cesariana a ligadura das tubas uterinas. Em nossa amostra, no entanto, essa relação de causa e 151 efeito não foi evidenciada, uma vez que somente quatro em 221 mulheres (1,8%) executaram esse procedimento durante a cirurgia. (Tabela 8). Domingues et al. (2004), em estudo brasileiro avaliando a satisfação de 246 puérperas de parto vaginal de um serviço público, identificaram aproximadamente 33% de mulheres com algum grau de insatisfação, o que é expressivo, pois foram excluídos da amostra os casos de resultados neonatais negativos, como óbitos. Suas queixas baseavam-se principalmente no sofrimento durante o parto, na demora do parto e na precária atenção da equipe. O relacionamento da mulher com a equipe dos profissionais de saúde é tido como um dos fatores que mais afetam a memória das mulheres em relação à experiência do parto, influenciando o grau de satisfação. Consta que as gestantes (como aliás boa parte dos pacientes hospitalizados) valorizam conforto físico, suporte psicológico, cuidado personalizado, privacidade e cuidado fornecido por um número pequeno de profissionais que respondam as suas perguntas e reconheçam suas necessidades (MURRAY; WILCOCK; KOBAYASHI, 1996). Pode-se associar a valorização do atendimento recebido e seu grau de satisfação ao tipo de contato que o paciente tem com o profissional de saúde. Embora o modelo assistencial público de saúde possa fornecer assistência aos seus usuários de maneira personalizada, com o conforto e os cuidados desejados por esses, a forma de organização da prática obstétrica no modelo privado tem maiores condições de viabilizar esse tipo de atendimento, onde a usuária tem a possibilidade de escolher o profissional que deseja e que forneça os cuidados mencionados, havendo maior probabilidade de ficar satisfeita. Cohen (2005) demonstrou correlação entre o nível de satisfação das pacientes com os cuidados pré-natais e o índice de cesáreas. Nesse estudo, embora declarada pelo próprio autor a limitação da relação de causa e efeito entre essas variáveis, observou-se que os profissionais que tinham menor índice de cesáreas eram aqueles que apresentavam os maiores níveis de satisfação durante o pré-natal das suas pacientes. 152 Há muitas iniciativas internacionais para conhecer as percepções das mulheres a respeito da assistência obstétrica e suas experiências individuais com a maternidade. O Canadá realizou uma grande Pesquisa Nacional sobre a Experiência da Maternidade. Em 2002/2003, esse país realizou um teste piloto para validar o instrumento de pesquisa e para ajustar a metodologia. Observou-se 65% de mulheres muito satisfeitas e 23% de mulheres satisfeitas com a assistência ao parto (DZAKPASU; CHALMERS, 2005). O estudo completo, com mais de 6500 mulheres, foi realizado em 2005 e será divulgado provavelmente em 2008. Domingues et al. (2004) retratam as dificuldades, relatadas na literatura, com relação à complexidade de avaliar a satisfação das mulheres em relação à assistência ao parto. As pacientes, em geral, têm dificuldade em criticar o serviço de saúde e os profissionais que as atenderam. Além disso, as mulheres tendem a se sentir aliviadas, agradecidas e com sentimentos positivos após o nascimento de uma criança saudável, compensando qualquer experiência negativa durante o atendimento. Porém os estudos geralmente abordam mulheres assistidas pelo sistema público de saúde. Membros de classes sociais distintas relacionam-se de forma diferenciada com os cuidados de saúde, seja pela percepção de suas necessidades, pelas expectativas que alimentam ou pelos recursos de que dispõem (FARIAS, 2001). Embora possa haver dúvidas na relação entre satisfação após a cesárea e a preferência sobre esse tipo de parto, pois poderia haver uma aceitação da paciente perante os motivos dados pelo médico para a realização deste procedimento ou sentimentos de agradecimento, consideramos que as mulheres da amostra em nossa pesquisa, caracterizadas por elevado nível sócio-cultural e autonomia, não desempenhariam um papel passivo nessa avaliação de satisfação. No presente estudo observamos que, independentemente do tipo de parto realizado, o grau de satisfação das mulheres com a assistência foi elevadíssimo, acima de 96% (Tabela 9). 153 Tabela 9– Satisfação das pacientes em relação ao tipo de parto realizado (n=250), Hospital, 2007 Tipo de Parto Satisfação IC95% % Cesárea 97,3 94,2-99,0 Vaginal 96,6 82,2-99,9 Geral 97,2 94,3-98,9 Qui-quadrado= 0,05, 1gl, p=0,822 O envolvimento no processo decisório e no controle da situação tem sido apontado como quesito fundamental para a satisfação das mulheres com os serviços ou profissionais que realizam seus partos (MURRAY; WILCOCK; KOBAYASHI, 1996). Nossos resultados corroboram estes achados, uma vez que também se verificou elevado grau de participação na decisão. Além disso, ao analisar o grau de satisfação das pacientes em função do tipo de parto desejado no início da gestação, não houve diferença estatisticamente significante entre essas variáveis (p>0,05), apesar de parte das mulheres da amostra terem desejado um tipo de parto no início da gestação e sido submetidas a outro. Antes dos anos 1980 era comum as mulheres terem maior número de filhos, a maioria nascendo por parto vaginal, sendo a primeira gestação em idades abaixo dos 30 anos e, eventualmente, como se observa até hoje, freqüentemente durante a adolescência. Durante esta pesquisa analisamos a história obstétrica das mulheres dessa geração anterior, ou seja, das mães das pacientes entrevistadas. Identificamos que 73,2% das mães das pacientes tiveram três ou mais filhos, sendo que somente 22% delas tiveram todos os seus partos por cesárea, confirmando uma mudança comportamental ocorrida em nossa sociedade no período. Buscamos identificar se pessoas próximas à gestante, em particular sua mãe, influenciaram na escolha do tipo de parto. Partindo-se da premissa de que a experiência prévia e as opiniões que suas mães tinham em relação aos tipos de parto teriam elevado peso sobre as decisões tomadas pelas gestantes, realizou-se análises estatísticas para estudar essas associações. No entanto, não encontramos diferenças estatisticamente significantes entre os tipos de parto das parturientes e de suas 154 mães (Tabela 10). Segundo as pacientes, suas mães não teceram comentários sobre sua experiência no parto em 32,4% das vezes, enquanto 32% se manifestaram sobre as desvantagens da cesárea e vantagens do parto normal. Somente 16,8% das mulheres referiram que suas mães abordaram vantagens da cesariana e desvantagens do parto normal (Tabela 11). Possivelmente, em função do índice de cesáreas em nosso trabalho, as experiências vividas pelas mães das pacientes de nossa amostra não influenciaram nas escolhas pelo tipo de parto. Tabela 10 – Relação entre o tipo de parto realizado nas mães das pacientes e o tipo de parto realizado nas pacientes (n=250), Hospital, 2007. Tipo de parto da mãe Cesárea Vaginal % % Cesárea 85,7 14,3 Vaginal 94,5 5,5 Variado 87,2 12,8 Fórceps(1) 100,0 - Qui-quadrado; gl; p 2,83; 2 gl; 0,242 (1) Apenas 2 mulheres Tabela 11 – Comentários feitos pelas mães das pacientes sobre os diferentes tipos de parto (n=250), Hospital, 2007 Dificuldade (1) % IC95% Nunca comentou 32,4 26,6-38,6 Vantagens do parto normal 22,0 17,0-27,7 Desvantagens do parto cesárea 10,0 6,6-14,4 Desvantagens do parto normal 9,6 6,2-13,9 Vantagens e desvantagens de ambos 8,8 5,6-13,0 Vantagens do parto cesárea 7,2 4,3-11,1 Não me lembro 1,6 0,4-4,0 Nota: (1) As categorias não são excludentes, possibilitando a cada respondente escolher mais de uma alternativa. Podemos entender que, na época em que as mães dessas pacientes deram à luz, as questões relativas à utilização de tecnologia,à disponibilidade de informação, ao modelo assistencial baseado em planos de saúde, entre outras, eram diversas das do momento atual. Essas mudanças de comportamento podem estar associadas ainda à emancipação feminina e inserção da mulher no mercado de trabalho, à ampliação da utilização de métodos contraceptivos, por exemplo. Observamos, nas 155 palavras de um dos maiores professores de obstetrícia do país a mudança comportamental das pacientes e dos médicos nos últimos anos: “No domínio das indicações, há preconceitos a erradicar. A cesárea é ainda considerada por alguns como o “último recurso” ou o malogro da assistência obstétrica, quando deveria ser encarada como uma das duas grandes ‘vias’ do parto e ser realizada sem grande demora quando o tirocínio e a sagacidade do obstetra assim o decidam. Servir-se do ‘talho cesáreo’ como último recurso é obter ominosa constante: baixa incidência de cesárea e alta mortalidade perinatal. A filosofia de que todo parto vaginal é vitória da arte obstétrica é perigosa atitude” (REZENDE, 1969, p.984). Observa-se uma mudança de comportamento médico acadêmico, transitando da década de 1950 quando se evitava ao máximo procedimentos cirúrgicos, aos dias atuais, onde a tecnologia médica favorece melhores resultados (ABOUZAHR; WARDLAW, 2001; VADNAIS; SACHS, 2006). “Não é surpreendente que se ampliem as indicações, aumentando a incidência de cesarianas, pois ambas caminham paralelamente com os avanços da tecnologia e com a progressiva redução da mortalidade materna e perinatal” (REZENDE, 1969). Na Tabela 12 relatamos o desejo por tipo de parto numa eventual gravidez futura. A maioria das mulheres entrevistadas (64,8%) não deseja outra gestação ou não sabe se terá mais filhos, fato compreensível em virtude do momento de realização da pesquisa. Logo após o nascimento, ainda na maternidade, é pouco provável que a mulher pense em nova gestação. Na análise estatística, não observamos diferença significativa entre o desejo por tipo de parto em futura gravidez e o parto realizado. Independentemente do tipo de parto a que a paciente se submeteu, 22% de mulheres (Intervalo de Confiança de 95%: 17,0-27,7%) desejariam ter o mesmo parto numa eventual futura gestação, enquanto 13,2% (Intervalo de Confiança de 95%: 9,3-18,0%) prefeririam outro tipo (Qui-quadrado=4,44, 3 gl, p=0,218). 156 Tabela 12 – Escolha do tipo de parto numa futura gestação segundo tipo de parto (n=250), Hospital, 2007 Tipo de parto Cesárea Vaginal Total % % % Mesmo 20,8 31,0 22,0 Outro 14,5 3,5 13,2 Não deseja outra gestação 37,1 44,8 38,0 Não sabe 27,6 20,7 26,8 Nota: Qui-quadrado=4,44, 3 gl, p=0,218 Fizemos uma outra análise sobre esses dados, excluindo as pacientes que relataram não desejar outra gestação ou não saber que tipo de parto desejarão, com o objetivo de verificar o tipo de parto desejado em eventual futura gravidez de acordo com o tipo de parto realizado. Pudemos observar que 90% das mulheres que tiveram parto vaginal desejariam realizar o mesmo tipo de parto, e que 41% das que fizeram cesárea desejariam ter parto vaginal em eventual futura gravidez, embora sem significância estatística (p>0,05), conforme ilustrado na Tabela 13. Esse achado demonstra que, embora as pacientes tenham ficado, em sua maioria, satisfeitas com o tipo de parto, a satisfação é algo extremamente complexo, que envolve não só o resultado final da prestação de serviço mas todo o rol de eventos e comportamentos ocorridos durante a assistência obstétrica, necessitando de análises em maior profundidade para o seu real entendimento. Tabela 13 – Desejo das mulheres em relação a uma eventual futura gravidez, excluindo pacientes que não desejam outra gravidez ou não sabem referir, segundo tipo de parto, Hospital, 2007 Desejo Cesárea Vaginal Teste Exato de % % Fisher – p Realizar o mesmo tipo de parto 59,0 90,0 0,052 Realizar outro tipo de parto 41,0 10,0 Faúndes e Cecatti (1991) declararam que um dos motivos para o desejo materno pela cesárea seria o temor das mulheres por problemas de ordem sexual ou urinária decorrentes do parto vaginal, resultados confirmados em outros estudos (AL-MUFTI et al., 1997; LAND, 2001). Perguntando às pacientes da amostra sobre o grau de importância que teriam questões relativas à perda da elasticidade vaginal ou 157 problemas de bexiga decorrentes de parto normal na decisão pelo tipo de parto, embora quase 65% das mulheres achem essas questões importantes, verificamos que estas não serviriam de base para a tomada de decisão pelo tipo de parto. Somente 9,6% das mulheres submetidas à cesárea declararam que essas preocupações seriam decisivas na escolha. Cerca de 35% (IC 95%: 29,2-41,4%) das mulheres entrevistadas acham que questões em relação à perda de elasticidade vaginal e a problemas de bexiga decorrentes do parto normal não são importantes na decisão pelo tipo de parto. Tabela 14– Grau de importância para as mulheres das questões relacionadas à perda de elasticidade vaginal e a problemas de bexiga decorrentes do parto normal e sua associação com o tipo de parto realizado, Hospital, 2007 Dúvidas Cesárea Vaginal Total % % % São importantes e definem parto cesárea 9,6 13,8 10,1 São importantes, mas não definem parto 56,6 41,4 54,8 33,8 44,8 35,1 cesárea Não são importantes Nota: Qui-quadrado=2,42, 2 gl, p=0,298 A medicina pode ser entendida como prática técnica baseada na produção de serviços de saúde subordinada à mediação de um conjunto de relações interpessoais (MACIEL FILHO; PIERANTONI, 2004). Essas relações dependem dos tipos diferentes do processo de trabalho médico, quais sejam trabalho autônomo, associado às praticas liberais, trabalho assalariado público ou privado. O modelo assistencial privado em nosso país caracteriza-se por apresentar estreito relacionamento obstetra-gestante, reforçado durante o pré-natal, garantindo à mulher maior segurança em saber que esse profissional, já conhecido por ela, fará a assistência ao seu parto. Isso pode ser visualizado nos resultados apresentados na Tabela 15, sobre a concordância das pacientes em ter o seu parto assistido por um profissional médico diferente daquele que realizou seu pré-natal. Observamos que, de forma estatisticamente significante (Qui-quadrado=8,97, 2 gl, p=0,011), 73,6% (IC 95%: 67,7-79,0%) das entrevistadas não aceitariam essa prática, comum no sistema público de saúde nacional e em muitos países europeus. Analisando essa variável concordância segundo o tipo de parto realizado, pode-se observar que 76,5% das 158 mulheres que se submeteram a cesárea e 51,7% das que tiveram parto vaginal não concordariam de fazer seu parto com outro profissional. Tabela 15 – Concordância com a prática de fazer pré-natal com um médico e dar à luz com outro, segundo tipo de parto, Hospital, 2007. Concordância Cesárea Vaginal Total % % % Concorda 20,4 37,9 22,4 Indiferente 3,1 10,4 4,0 Discorda 76,5 51,7 73,6 Nota: Qui-quadrado=8,97, 2 gl, p=0,011 Com o objetivo de aprofundar as análises das informações obtidas nas entrevistas com as pacientes, selecionamos algumas variáveis de interesse, analisando-as em conjunto no sentido de identificar possíveis interações entre elas. Dizemos que há interação entre variáveis quando o efeito simultâneo de duas ou mais variáveis é diferente da soma de seus efeitos separados (MALHOTRA, 2006, p. 230). Os resultados obtidos nas entrevistas mostram que a maioria das mulheres participantes deste estudo, de elevado nível sócio-cultural, participou na decisão pelo tipo de parto e ficou satisfeita com a assistência recebida, em função do relacionamento estreito existente entre elas e seus médicos. Ao mesmo tempo, a maioria (88,4%) dos partos foi por cesárea. Isto pode sugerir que esse modelo assistencial é percebido pelas mulheres como adequado à sua necessidade. Para verificar se este raciocínio está correto, procuramos extrair informações que permitissem essa análise. Decidiu-se incluir a satisfação com o parto realizado e os fatores associados à decisão pela cesárea na percepção das pacientes que tiveram significância estatística nessa análise. O grau de satisfação das pacientes com relação ao parto realizado demonstraria que a forma de organização da prática obstétrica no modelo privado de saúde, embora caracterizado por taxas de cesárea acima de 80%, é percebida como adequada pela cliente. Segmentamos então a parte da amostra que ficou satisfeita com o parto e procuramos identificar se havia diferenças no comportamento de algumas variáveis sócio-culturais. Havia dúvidas se o nível de instrução e a renda da mulher influenciariam o seu grau de satisfação após o parto, supondo que aquelas com 159 nível sócio-cultural mais elevado teriam maior probabilidade de obter informações e elevado poder de negociação com o médico. Para essa análise, estratificamos a amostra segundo essas variáveis e observamos que não houve interação. Esse resultado sugere que o comportamento da variável satisfação em função do tipo de parto realizado foi semelhante nos diversos estratos de renda e de escolaridade da amostra (Tabela 16). Tabela 16– Proporção de mulheres satisfeitas com o resultado do parto segundo tipo de parto e variáveis sócio-culturais, Hospital, 2007 Variáveis Cesárea Vaginal Teste Exato de Fisher – % % p Até 10 S.M. (n=109) 97,8 100,0 0,665 10 S.M. ou mais (n=133) 96,8 88,9 0,299 Até 2º grau completo (n=64) 100,0 92,3 0,203 3º grau ou + (n=186) 96,5 100,0 0,578 Renda (1) Escolaridade (1) Nota: (1) Não houve interação Dentre os fatores apontados pelas pacientes que estariam associados à decisão pelo tipo de parto (Tabela 8) com significância estatística, identifica-se a variável “medo das dores do parto cesáreo”. Isolamos as pacientes que referiram esse fator como relevante na escolha pelo tipo de parto e procuramos verificar se essa variável se comportava de maneira diferente dependendo de a mulher já ter tido filhos ou não. Imagina-se que esse temor à dor após a cesariana deveria ser mais freqüente em mulheres que nunca tiveram filhos, enquanto que nas demais esse fator poderia não ser tão relevante. Essa mesma análise foi feita utilizando algumas variáveis sócio-culturais, supondo que a análise conjunta dessas variáveis poderia explicar melhor o comportamento da variável “medo de parto cesáreo”. O medo das dores de parto cesáreo foi identificado como um fator importante na decisão pelo tipo de parto, particularmente entre as mulheres que tiveram um ou mais partos anteriores, entre aquelas com características sócio-culturais de menor renda e maior escolaridade e entre aquelas que trabalham fora (Tabelas 17 e 18). No entanto, identificou-se que a variável “medo das dores do parto cesáreo” não 160 sofreu nenhuma interação com variável “número de partos anteriores”, independentemente do tipo de parto realizado (Tabela 17). Também observamos que não houve interação entre as variáveis sócio-culturais e o medo das dores da cesárea (Tabela 18). Portanto, a estratificação da amostra por meio das variáveis selecionadas não agregou informações relevantes à análise desse fator associado à decisão pelo tipo de parto, sugerindo que o comportamento da variável “medo das dores após o parto cesáreo” em função do tipo de parto realizado foi semelhante para mulheres que tiveram partos anteriores ou não, sendo também semelhante para os diversos extratos de renda, escolaridade e emprego. Tabela 17– Proporção de mulheres que apontam o “medo das dores após parto cesáreo” como fator que influenciou a decisão pelo o tipo de parto, segundo tipo de parto e número de partos anteriores, Hospital, 2007 Partos anteriores Cesárea Vaginal Teste Exato de Fisher – % % p Um ou mais (n=88) 25,3 61,5 0,013 Nenhum (n=118) 34,3 50,0 0,174 Nota: Não houve interação Tabela 18 - Proporção de mulheres que apontam o “medo das dores após parto cesáreo” como fator que influenciou a decisão sobre o tipo de parto, segundo tipo de parto e variáveis sócio-culturais, Hospital, 2007 Variáveis Cesárea Vaginal Teste Exato de Fisher – % % p Até 10 S.M. (n=91) 31,0 60,0 0,018 10 S.M. ou mais (n=112) 30,1 44,4 0,294 Até 2º grau comp. (n=55) 16,7 30,8 0,232 3º grau ou + (n=153) 35,0 75,0 0,003 Sim (n=164) 31,0 63,2 0,007 Não (n=44) 29,4 40,0 0,393 Renda (1) Escolaridade (1) Trabalha (1) Nota: (1) Não houve interação Outro fator relevante associado à decisão pelo tipo de parto identificado no questionário das pacientes é a praticidade de agendar o parto. Procedeu-se, então, 161 a análises estatísticas associando os resultados dessa variável aos das variáveis sócio-culturais selecionadas e ao número de partos anteriores. Não encontramos interação em nenhuma das duas análises, o que pode ser visualizada nas Tabelas 19 e 20, sugerindo que o comportamento da variável praticidade de agendar o parto em função do tipo de parto realizado foi semelhante nos diferentes estratos analisados. Tabela 19– Proporção de mulheres que apontam o “desejo da praticidade de agendar o parto” como fator que influenciou a decisão sobre o tipo de parto, segundo tipo de parto e número de partos anteriores, Hospital, 2007 Número de Partos Anteriores Cesárea Vaginal Teste Exato de Fisher – % % p Um ou mais (n=88) 34,7 7,7 0,045 Nenhum (n=117) 37,6 6,3 0,009 Nota: Não houve interação Tabela 20 – Proporção de mulheres que apontam o “desejo da praticidade de agendar o parto”como fator que influenciou a decisão sobre o tipo de parto, segundo tipo de parto e variáveis sócio-culturais, Hospital, 2007 Variáveis Cesárea Vaginal Teste Exato de Fisher – % % p Até 10 S.M. (n=90) 32,9 5,0 0,008 10 S.M. ou mais (n=112) 37,9 11,1 0,103 Até 2º grau completo (n=54) 39,0 7,7 0,031 3º grau ou + (n=153) 35,0 6,3 0,014 Sim (n=164) 36,6 10,5 0,017 Não (n=44) 33,0 - 0,034 Renda (1) Escolaridade (1) Trabalha (1) Nota: (1) Não houve interação Fizemos ainda uma análise mais aprofundada das mulheres que mudaram de opinião sobre o tipo de parto desejado durante a gravidez, buscando avaliar se características de renda familiar e nível de escolaridade mudariam o comportamento daquela variável, trazendo maiores explicações. No entanto, não houve associação estatisticamente significante entre renda e escolaridade e mudança do desejo sobre 162 o tipo de parto durante a gravidez (Qui-quadrado de 0,565 e 0,807 com valores de p 0,452 e 0,369, respectivamente). Devido à elevação da incidência de cesáreas no mundo e no Brasil, decorrentes da solicitação materna por esse tipo de procedimento, Barbosa et al. (2003) em seu trabalho refletiram sobre as seguintes questões: • Se o fato de uma gestante pedir uma cesárea indicaria que ela realmente acredita que esse procedimento é melhor do que um parto vaginal? • Se as mulheres a solicitam, em que contexto e por que o fazem? • Esse pedido poderia estar relacionado às condições do atendimento prestado às mulheres nos serviços de saúde, ao desejo de laqueadura ou significa a noção de que o parto cesáreo é a melhor opção? Freitas (1999 apud d’ORSI, 2003), em seu trabalho realizado no Sul do Brasil, demonstrou que apenas uma minoria das mulheres solicitou uma cesárea durante o trabalho de parto. Nesse estudo, os obstetras raramente se colocaram como responsáveis pelas altas taxas de cesárea e, quando o fizeram, dividiram a responsabilidade com a organização dos serviços de saúde. Isso nos leva a analisar a percepção médica sobre essa e outras questões envolvidas nessa organização. 5.3 Resultados das Entrevistas com os Médicos e Discussão Para analisar a participação médica na decisão pelo tipo de parto e sua percepção sobre a forma de organização da prática obstétrica, discutiremos os resultados obtidos a partir das entrevistas com estes profissionais. Conforme já mencionado, dos 171 médicos responsáveis pelos partos das 250 pacientes da amostra, obtivemos a participação, após consentimento informado, de 122 médicos. Os demais não participaram, por não terem sido localizados, por não terem interesse ou por terem se recusado a participar da pesquisa. 163 Para caracterizar a amostra dos médicos respondentes desse estudo, comparamos suas características com aquelas encontradas nos estudos de perfil dos médicos no Brasil e no Estado de São Paulo, abordadas no referencial teórico. Na Tabela 21, podemos observar que há predominância do sexo masculino (68,9%), coincidindo com a prevalência de gênero encontrada em nosso país e no Estado. A amostra contou com médicos com idade média em torno de 46,8 +/- 7,3 anos, portanto mais avançada em comparação à idade média desses profissionais no Brasil. Apenas 15,6% (IC 95%: 9,6-23,2%) dos médicos a quem foi aplicado o questionário tinham menos de 39 anos. A média em anos após a formação profissional mostra, aparentemente, que a amostra foi composta de profissionais experientes, com 22 anos em média de atividade profissional, sendo que apenas 5,7% (IC 95%: 2,5-11,9%) dos médicos tinham tempo de formação inferior a 10 anos. Essa característica certamente influencia as decisões pelo tipo de parto, já que a falta de experiência em partos vaginais, assunto abordado na literatura nacional (FAÚNDES; SILVA, 1998; DIAS; DESLANDES, 2004), provavelmente não ocorre no grupo analisado. Tabela 21- Características dos médicos entrevistados (n=122), Hospital, 2007 Variáveis Freqüência absoluta % Masculino 84 68,9 Feminino 38 31,1 Sexo Idade Média 46,8 Desvio Padrão 7,3 Mín.-Máx. 29-70 Tempo de Formação Média 22,1 Desvio Padrão 6,8 Mín.-Máx. 6-40 Número de empregos Apenas consultório 52 42,6 Consultório + um emprego 57 46,7 Consultório + dois empregos 13 10,7 164 No Brasil, têm ocorrido mudanças na profissão médica e no cenário do mercado de trabalho nos últimos anos, caracterizadas por perda de autonomia e assalariamento médico, levando o médico a assumir muitos empregos. Ou seja, esse profissional foi gradativamente deixando de viver apenas do consultório privado e passou a depender de outros empregadores, públicos e privados, aumentando assim sua carga horária de trabalho (MACIEL FILHO; PIERANTONI, 2004). Com relação a essa questão presente no modelo assistencial brasileiro, 42,6% (IC 95%:31,851,9%) dos médicos da amostra desse estudo, trabalha apenas em seu consultório particular (Tabela 21). Dentre aqueles que têm outros empregos, há predomínio do serviço público como maior empregador dos médicos (Tabela 22), dado já mencionado nos estudos nacionais de Machado (1995). Tabela 22 - Atividades profissionais além do consultório (n=70), Hospital, 2007 Emprego público diarista 19,7% Emprego público plantão 21,3% Emprego CLT 15,6% Para caracterizar os médicos da amostra em função de sua atividade obstétrica, buscou-se pesquisar a quantidade de partos realizada e a porcentagem de cesárea realizada mensalmente pelos profissionais entrevistados. Observa-se que 67,2% (IC 95%:58,1-75,4%) dos obstetras entrevistados realiza de 1 a 5 partos por mês, enquanto que um terço assiste a mais de 6 partos no mesmo período. Eles referiram executar o parto cirúrgico com grande freqüência, já que quase 80% (IC 95%: 71,381,3%) dos entrevistados realizaram acima de 60% de cesáreas nos últimos seis meses (Tabela 23). Esta informação, associada à predominância de profissionais que só trabalham em consultório com prática liberal, demonstra uma prática obstétrica com parto cirúrgico altamente prevalente nesse modelo assistencial. 165 Tabela 23 – Quantidade e tipo de partos realizados pelos médicos entrevistados (n=122), Hospital, 2007 Quantidade e tipos de parto realizados Frequência % 1a5 82 67,2 6 ou mais 40 32,8 1-5 cesáreas 25 20,5 6 ou mais cesáreas 97 79,5 Número de partos por mês Proporção média de parto cesáreo a cada 10 partos realizados nos últimos 6 meses No presente estudo (Tabela 24), dois terços dos médicos declararam que a vontade materna ou a insegurança da paciente com relação ao parto normal representa uma das maiores dificuldades para realizar o parto normal em sua clientela. Essa informação confere com o resultado encontrado nas entrevistas com as pacientes onde, embora 54% das mulheres desejassem parto vaginal no início da gestação, 24,4% delas mudaram de opinião durante a gravidez. Tabela 24 – Opinião dos médicos sobre as maiores dificuldades para realizar o parto normal, Hospital, 2007 Dificuldades Concorda Indiferente Discorda % % % 66,9 19,1 14,0 Dificuldades de locomoção em São Paulo. (n=121) 44,6 15,7 39,7 Imprevisibilidade no momento do trabalho de parto. 43,4 23,0 33,6 Remuneração pelo procedimento. (n=122) 41,8 19,7 38,5 Falta de tempo para acompanhar o trabalho de parto. 36,1 24,6 39,3 Imprevisibilidade do resultado neonatal (n=122) 29,5 29,5 41,0 Temor de ações judiciais originadas pela paciente. 27,9 18,0 54,1 20,0 20,8 59,2 13,9 12,3 73,8 Vontade materna ou insegurança da paciente pelo parto normal.(n=121) (n=122) (n=122) (n=122) Insegurança quanto ao acompanhamento no préparto pela enfermeira. (n=120) Falta de estrutura física hospitalar para a execução do parto normal. (n=122) 166 Na Tabela 24 vê-se que pouco menos da metade dos médicos entrevistados (44,3%) concordam que as dificuldades de locomoção em uma metrópole como São Paulo representaria uma dificuldade para a realização do parto normal. As grandes maternidades do município, em sua maioria, estão localizadas em regiões centrais, locais de grande concentração de consultórios médicos. Mas em uma cidade como essa metrópole em que, nos horários de maior trânsito, curtas distâncias são percorridas em longos intervalos de tempo, supõe-se que haveria necessidade de uma organização da prática médica favorável para a realização dos partos normais. Assim, uma vez internada a gestante em trabalho de parto, a maternidade forneceria condições físicas e pessoas com habilitação necessária para o adequado acompanhamento dessa parturiente até que o médico assistente conseguisse chegar a esse estabelecimento. Para que isso ocorra, o trabalho em equipe multiprofissional deveria estar alinhado às necessidades da gestante e do obstetra. Para analisar a percepção dos médicos sobre as condições necessárias, indagamos sua opinião sobre a atuação da enfermagem obstétrica nessas maternidades. Com relação ao trabalho de acompanhamento de enfermagem durante o trabalho de parto e a infra-estrutura hospitalar, os médicos foram afirmativos no sentido de que esses aspectos estariam adequados nos hospitais em que atuam para a execução do parto normal (Tabela 24). No modelo assistencial, onde os médicos realizam o pré-natal e fazem os partos, necessitando organizar sua agenda, a participação das enfermeiras no processo seria fundamental. Ângulo-Tuesta et al. (2003) observaram em seu trabalho que, embora se proclame a introdução de profissionais não médicos para a assistência ao parto, houve relatos de que os médicos não reconhecem o trabalho das enfermeiras, excluindo-as desse processo. Segundo esses autores, para a construção do trabalho em equipe é necessário o aprimoramento da capacitação técnica das enfermeiras, fortalecendo a autonomia profissional, aumentando o reconhecimento de seu trabalho pelos médicos, reduzindo os conflitos e as tensões e garantindo benefícios para as pacientes (ÂNGULO-TUESTA et al., 2003). Em nossa pesquisa, para os médicos entrevistados, a atuação dessas profissionais foi avaliada como excelente ou boa em 74,6% das vezes, fazendo crer que eles se sintam seguros com o acompanhamento de suas pacientes por elas no pré-parto (Tabelas 24 e 25). 167 Tabela 25 - Opinião dos médicos sobre a atuação das enfermeiras obstetras, Hospital, 2007 Freqüência Opinião absoluta % Indiferente-ruim 31 25,4(1) Excelente-boa 91 74,6 Total 122 100,0 Nota: (1) IC95%:17,7-33,1% Outra constatação em nossos resultados foi a discordância dos médicos em relação à influência do temor de ações judiciais originadas pelas pacientes quando da execução do parto normal. Apenas 27,9% dos profissionais acredita que o litígio judicial por má prática influenciaria sua decisão pelo tipo de parto (Tabela 24). Ressalta-se que a “indústria” dos processos médico-legais, muito presente em países como os EUA e Inglaterra, não apresenta a mesma pressão em nosso país. Os resultados apresentados na Tabela 26 mostram que 75,4% dos profissionais não têm contratos com seguradoras contra processos por má prática médica, demonstrando que a maioria desses obstetras não considera fundamental esse tipo de seguro para exercer sua atividade médica. Por outro lado, metade dos entrevistados (50,8% com IC 95%: 41,9-59,7%) acredita que a execução da cesariana possa ocorrer por medo de ações judiciais, prática denominada “medicina defensiva” (Tabela 27). Esse resultado é corroborado pelas constatações de trabalhos internacionais que alegam como um dos motivos para o aumento de cesarianas o temor de ações judiciais (CHANDRAHARAN; ARULKUMARAN, 2006; HABIBA et al., 2006) Tabela 26 – Proporção de médicos que possui seguro contra má prática, Hospital, 2007 Possui seguro Freqüência absoluta % Sim 30 24,6(1) Não 92 75,4 Total 122 100,0 Nota: (1)IC95%:16,9-32,2% 168 Tabela 27 – Proporção de médicos que acreditam que ações judiciais são responsáveis por realização de cesáreas, Hospital, 2007 Freqüência absoluta % Sim 62 50,8(1) Não 60 49,2 Total 122 100,0 Acredita Nota: (1)IC95%: 41,9-59,7% Vários estudos têm relatado a aceitação dos médicos frente à solicitação da cesárea pela paciente. Esses trabalhos apresentam freqüências variadas, dependendo do país ou do modelo assistencial em vigor (SCHINDL et al., 2003; HABIBA et al., 2006). Outros autores discutem que a aceitação depende do tempo de formação profissional, sendo que os médicos mais experientes têm maior tendência a aceitar essa solicitação (KWEE et al., 2004). Na amostra de médicos entrevistados para esta tese, caracterizada por elevado tempo de formação profissional, 88,5% (IC95%: 82,7-94,2%) dos profissionais declararam aceitar o pedido materno para realizar uma cesariana sem indicação clínico-obstétrica (Tabela 28) corroborando achados de estudos europeus. Tabela 28 – Atitude do obstetra frente a uma solicitação de cesárea eletiva pela paciente em gestação sem complicações, Hospital, 2007 Aceitaria a Solicitação Freqüência absoluta % Sim 108 88,5(1) Não 14 11,5 Total 122 100,0 Nota: (1) IC95%:82,7-94,2% Perguntou-se aos médicos sobre sua percepção a respeito das taxas de cesárea em serviços hospitalares privados do município de São Paulo. A maioria dos entrevistados (51,6%) relatou acreditar que essas taxas são muito elevadas, sendo necessários esforços para reduzí-las (Tabela 29). 169 Tabela 29 - Percepção dos médicos sobre as taxas de cesáreas em serviços hospitalares privados do município de São Paulo, Hospital, 2007 Freqüência Percepção As taxas são muito elevadas e deve haver esforços para reduzí-las. As taxas são muito elevadas, porém não há motivos para reduzí-las. As taxas são adequadas para o modelo de assistência à saúde no município O médico é indiferente às taxas. Total absoluta % 63 51,6 19 15,6 23 18,9 17 13,9 122 100,0 Este resultado pode sugerir que realmente haja preocupação dos profissionais entrevistados ou que as respostas apresentadas tiveram um viés de declarações “politicamente corretas”. A segunda hipótese pode ser reforçada por meio da análise dos resultados apresentados na Tabela 30, onde somente 27% (IC 95%:19,6-36,0%) dos profissionais entrevistados concorda com a afirmação de que o parto cesáreo aumenta a mortalidade materna e/ou perinatal. Talvez, para os entrevistados, a percepção da necessidade de redução das taxas de cesárea no município não esteja ligada ao modelo assistencial privado, mas sim a todos os atendimentos públicos e privados às gestantes em nosso país, enquanto que as respostas sobre a mortalidade estejam relacionadas à sua prática assistencial privada. Tabela 30 – Opinião dos médicos sobre a relação do tipo de parto com a mortalidade materna e/ou perinatal, Hospital, 2007 Relação tipo de parto x mortalidade Parto cesárea aumenta a mortalidade Concorda Indiferente Discorda % % % 27,0(1) 14,8 58,2 34,7(2) 25,6 39,7 materna e/ou perinatal Parto vaginal reduz a mortalidade materna e/ou perinatal Notas: (1)IC95%: 19,6-36,0% (2)IC95%: 26,4-44,0% 170 A mortalidade materna é determinada por uma série de fatores, desde a dificuldade de acesso à educação e aos serviços de saúde, abrange questões étnico-raciais e envolve falhas de atendimento propriamente ditas (COMITÊ DE MORTALIDADE MATERNA, 2002). A OMS considera como aceitável uma Razão de Mortalidade Materna em torno de 20 mortes maternas para cada 100.000 nascidos vivos. Em 2006, a FIGO lançou o Relatório Mundial da Saúde da Mulher, determinando como meta para 2015 a redução de três quartos da mortalidade materna global (WORLD REPORT ON WOMEN’S HEALTH, 2007). Desde 2003, a morte materna em nosso país é evento de notificação compulsória: seu registro e comunicação aos órgãos competentes são obrigatórios (Portaria Ministerial 653 de 28/05/2003). O último dado oficial, obtido pelo acesso aos indicadores da RIPSA/IDB 2006, indica que houve, no Brasil em 2000, 52,36 mortes maternas para cada 100.000 nascidos vivos (IDB, 2006), estando nosso país classificado abaixo de alguns países da América Latina, como o Chile, que apresentou no mesmo ano 17,3 casos. No entanto, a questão da mortalidade materna deve ser analisada sob o contexto social-demográfico e de acordo com o modelo assistencial da população estudada. Para os médicos entrevistados neste trabalho, a mortalidade materna e neonatal estava vinculada à população paulistana e à sua experiência pessoal na assistência obstétrica, lembrando que boa parte dos médicos da amostra trabalham apenas em seu consultório, sob o modelo privado de assistência à saúde. A prefeitura do município de São Paulo analisa, por meio do Comitê de Mortalidade Materna, os casos de óbito de mulheres em período gestacional. Esse comitê, que iniciou suas atividades em 1992, recentemente publicou um relatório compilado de 10 anos de atividades (COMITÊ DE MORTALIDADE MATERNA, 2002), no qual se observa uma média de 31,8 mortes maternas por causa direta (mortes resultantes de complicações obstétricas do estado gestacional, de intervenções, omissões ou tratamentos incorretos) para cada 100 mil nascidos vivos, e 23,1 mortes maternas por causas indiretas (resultantes de doença pré-existente ou que se desenvolve durante a gravidez, não devidas a causas diretas mas agravadas pelos efeitos fisiológicos da gravidez) para cada 100.000 nascidos vivos. Esse predomínio das causas diretas é característico de países em desenvolvimento, pois trata-se de óbitos devidos a causas relacionadas à condição de gestação. Essas mortes poderiam ser evitadas com maior aporte de recursos. 171 Para avaliar se há diferenças nesses indicadores dependendo do tipo de esfera administrativa do hospital, esse comitê tem efetuado cálculo de Índice de Letalidade Hospitalar (ILH). O ILH é resultado da divisão do numero de casos de mortes maternas por causas diretas e indiretas de um determinado hospital pelo número de nascidos vivos naquele hospital (sendo aplicado o fator de ajuste de 100.000 à semelhança da Razão de Morte Materna). Em 2002, o ILH dos hospitais privados foi de 14,6, enquanto que nos hospitais municipais e estaduais foram respectivamente 105,8 e 67,1 (COMITÊ DE MORTALIDADE MATERNA, 2002). Embora não haja intenção, nesta tese, de abordar as causas de mortalidade materna ou neonatal, nem tampouco de buscar explicações sobre essas diferenças de razão de mortalidade materna entre os diferentes tipos hospital, o fato de o ILH de 2002 nos hospitais privados ter sido menor em relação às demais instituições hospitalares do município reforçaria a hipótese de que os médicos entrevistados, embora tenham respondido que as taxas de cesárea devem ser reduzidas, não acreditem que o parto cesáreo aumente a mortalidade materna e/ou perinatal. Possivelmente, a percepção dos médicos a respeito dos riscos maternos e neonatais perante os diversos tipos de parto esteja vinculada ao cenário observado em São Paulo nas unidades hospitalares privadas nas quais eles atuam. Embora 41,8% dos médicos entrevistados achem que a remuneração pela assistência ao parto normal seja uma das dificuldades para sua realização (Tabela 24), 68,3% (IC 95%: 60,01- 76,7%) acreditam que, se houvesse remuneração diferenciada para este tipo de parto, haveria mudanças nas taxas de cesárea (Tabela 31). No modelo assistencial privado brasileiro, em geral, o pagamento médico é realizado por serviços, comumente chamado de fee for service. Os médicos se dividem entre muitos empregos e necessitam adequar melhor sua agenda. Uma vez que os valores pagos pelas operadoras de planos de saúde são iguais para qualquer tipo de parto, torna-se mais conveniente realizar uma cesariana ao invés de aguardar um parto vaginal, já que, segundo esses médicos, essa cirurgia não traz aumento de riscos para a mulher. As tabelas de referência para remuneração dos procedimentos médicos praticadas pela maioria dos convênios médicos no sistema de saúde suplementar brasileiro, confeccionadas na década de 1990, definem pagamento igual para parto normal e cesariana, embora haja uma 172 intensa mobilização das entidades médicas em implantar uma nova Tabela, chamada Classificação Brasileira Hierarquizada de Procedimentos Médicos (CBHPM), que remunera o parto vaginal e as horas de assistência médica durante o trabalho de parto, incentivando dessa maneira a execução desse tipo de parto. Tabela 31– Concordância dos médicos sobre a mudança nas taxas de cesárea decorrente da remuneração diferenciada para o parto normal na medicina privada em São Paulo, Hospital, 2007 Freqüência Concordância absoluta % Sim 82 68,3(1) Não 38 31,7 Total 120 100,0 Nota: IC95%: 60,01- 76,7% Questionados quanto à formação atual dos médicos na faculdade de medicina, residência/especialização médica na área de obstetrícia e sua relação com as taxas de cesárea, 53,7% (IC 95%: 44,4-62,8%) dos médicos acreditam que a falta de preparo profissional pode estar relacionada a essa incidência (Tabela 32). Além disso, os entrevistados, em sua maioria (65,6%), acreditam que a falta de treinamento médico adequado em utilizar o fórcipe poderia aumentar o número de cesarianas (Tabela 33). Em 2002 foi publicado em revista da Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) artigo de uma das celebridades nacionais no campo do conhecimento obstétrico, Jorge de Rezende (2002). Nesse artigo, o professor declara “sou cesarianista convicto”, reforçando sua opinião com base na sua visão da formação médica recente, onde a “geração atual de obstetras (...) nos últimos trinta anos, desaprendeu ou nunca se adestrou nas operações transpelvinas”, referindo-se à habilidade em executar manobras obstétricas e ao uso de fórcipe. O parto fórcipe é considerado por muitas mulheres como um fator de risco para os recém-nascidos. Segundo os médicos entrevistados, 57,4% (IC 95%: 48,1-66,2%) acreditam que esse temor da gestante poderia levar ao aumento no número de cesáreas no momento da decisão pelo tipo de parto (Tabela 33). 173 Tabela 32– Proporção de médicos que acredita que a formação atual na área de obstetrícia influencia na taxa de cesárea do município de São Paulo, Hospital, 2007 Freqüência absoluta % Sim 65 53,7(1) Não 56 46,3 Total 121 100,0 Acredita Nota: (1)IC 95%: 44,4-62,8% Tabela 33– Opinião dos médicos sobre a relação entre uso de fórcipe no parto vaginal e taxa de cesárea, Hospital, 2007 Relação parto fórcipe e tipo de parto Aumento da taxa de cesárea devido ao temor da Concorda Indiferente Discorda % % % 57,4(1) 18,0 24,6 65,6(2) 18,0 16,4 25,4(3) 23,0 51,6 gestante quanto ao uso ao fórcipe. Aumento da taxa de cesárea devido à falta de treinamento médico em utilizar adequadamente o fórcipe. Não interferem na decisão pelo tipo de parto a ser realizado. Notas: (1)IC95%: 48,1-66,2% (2)IC95%: 56,4-73,8% (3)IC95%: 18,2-34,2% Outros temores maternos relatados em estudos brasileiros (FAÚNDES; CECATTI, 1991; HOTIMSKY; SCHRAIBER, 2005) e internacionais (LAND, 2001) que influenciariam a escolha da cesárea são relacionados ao medo das mulheres em relação a alterações na elasticidade vaginal comprometendo sua sexualidade. Na opinião dos médicos entrevistados, somente 17,2% (IC 95%: 11,0-25,1%) acreditam que essa questão seja determinante na escolha pela cesárea, enquanto que 63,1% (IC 95%: 53,9-71,7%) entendem ser ela importante mas não fundamental nessa decisão (Tabela 34). A opinião dos médicos coincide com a das mulheres entrevistadas, onde a minoria acredita que a preservação da função sexual levaria à não execução do parto vaginal (Tabela 14). 174 Tabela 34– Opinião dos médicos sobre a importância das questões culturais relativas à sexualidade feminina na escolha do tipo de parto, Hospital, 2007 Freqüência Opinião dos médicos sobre a crença das pacientes absoluta % 21 17,2(1) As crenças são importantes e determinantes do tipo de parto As crenças são importantes, mas não fundamentais 77 63,1(2) As crenças não são importantes para as pacientes 24 19,7 Total 122 100,0 na escolha do tipo de parto Notas: (1)IC95%: 11,0-25,1% (2)IC95%: 53,9-71,7% A preferência médica sobre os tipos de parto é freqüentemente citada como relevante nas decisões pela cesariana em suas pacientes. Em nosso trabalho, procuramos saber a preferência das médicas obstetras sobre o tipo de parto que desejariam ter se estivessem grávidas na ausência de complicações. Na Tabela 35, observamos que para 40,5% (IC 95%: 24,80-57,9%) das médicas entrevistadas, a cesárea seria o tipo de parto preferido por elas, resultado concordante com alguns estudos internacionais (AL-MUFTI et al., 1996; 1997; GROMM et al., 2002; MACDONALD et al., 2002). Tabela 35 – Tipo de parto preferido pelas médicas obstetras caso estivessem grávidas Tipo de parto Freqüência absoluta % Vaginal 16 43,2 Cesárea 15 40,5(1) Deixaria à critério do médico 6 16,2 Total 37 100,0 Nota: (1)IC 95%: 24,80-57,9% Buscamos então analisar que tipo de parto efetivamente tinha sido realizado entre as médicas e esposas de médicos entrevistados que tinham filhos, com o intuito de relacionar esses dados às taxas de cesárea das pacientes entrevistadas. Podemos observar na Tabela 36 que, entre as 29 médicas que tinham filhos, 72,4% delas só tiveram parto cesáreo, enquanto entre as esposas dos obstetras essa taxa foi de 175 68,4%. Podemos identificar diferença estatisticamente significante entre a taxa de cesárea nas pacientes da amostra nessa tese (88,4%) e as taxas dessa cirurgia encontradas nas médicas e nas esposas de médicos (qui-quadrado com correção de Yates de 4,47, 1 gl, p=0,034 e 17,09, 1 gl, p<0,001, respectivamente). Esse resultado pode sugerir que outros fatores além das preferências médicas devem influenciar a decisão pela cesariana na população em geral. Tabela 36 – Tipo de parto realizados em médicas e esposas de médicos, Hospital, 2007 Tipo de parto Médicas Freqüência absoluta Normal 8 Cesáreo 21 Total 29 Nota: Qui-quadrado =0,160, 1 gl, p=0,691 % Esposas Freqüência absoluta % 27,6 72,4 100,0 24 52 76 31,6 68,4 100,0 Para entendermos melhor essa diferença entre o tipo de parto realizado nas médicas e nas esposas dos médicos e a prática desses profissionais em suas pacientes, procuramos realizar um cruzamento dos dados, identificando o tipo de parto realizado nas pacientes da amostra e os partos de seus respectivos médicos (Tabela 37). Tabela 37 – Tipo de parto realizados nas paciente segundo tipo de parto realizado em médicas e esposas de médicos (n=76), Hospital, 2007 Tipo de parto nas Pacientes Tipo de parto nas médicas e esposas dos médicos Normal Cesáreo % % Normal 25,0 75,0 Cesáreo 13,5 86,5 Nota: Qui-quadrado =1,54, 1 gl, p=0,214 Embora não se possa demonstrar diferença estatisticamente significante entre o tipo de parto que os médicos realizam e aquele ao qual se submetem ou aceitam em seus familiares, podemos observar que para 75% das pacientes que tiveram parto normal, sua obstetra ou a esposa do seu médico se submeteram a cesariana em sua gestação. Esse resultado pode ser um reflexo da multi-causalidade envolvida no processo decisório pelo tipo de parto realizado. A análise superficial pode levar a erros de interpretação sobre os fatores associados à realização da cesariana, que 176 não deve estar descolada da abrangência da organização da prática obstétrica articulada e inserida no modelo assistencial privado de saúde em nosso país. Esses resultados demonstram que a existência de uma preferência materna pelo tipo de parto, no início desejado como parto normal (54% das mulheres), porém que se modificou no decorrer da gestação, junto com a elevada participação das mulheres nesse processo decisório, esteve associada à realização de quase 89% de partos cesáreos nessa amostra. Além disso, é possível identificar a associação entre cesariana e a variável praticidade de agendar o parto bem como alto grau de satisfação dessas mulheres. Essas condições, associadas ao modelo de trabalho médico atual e à aceitação dos profissionais em realizar uma cesárea por solicitação da paciente na ausência de complicações, representam alguns dos fatores que propiciaram a realização dessa proporção de procedimentos cirúrgicos. Esses achados corroboram a proposição de Ângulo-Testa et al. (2003), onde sempre que houver uma abordagem da assistência ao parto, essa deva ser realizada de maneira multidimensional, contextualizada socialmente por um sistema complexo de valores e envolvendo interações entre grupos sociais e interesses de todos os agentes da cadeia assistencial. Nessa contextualização temos o modelo assistencial privado brasileiro, onde, segundo Moraes e Goldenberg (2001) a predominância de cesáreas reflete sua valorização e conveniência em meio à ordem de trabalho médico, regida pela lógica da produtividade na organização empresarial e no atendimento de massa. Por outro lado, temos os aspectos sócio-culturais, poder aquisitivo e relacionamento médicopaciente, influenciando o desejo da mulher pelo tipo de parto. Nos dias atuais, o indivíduo possui um espaço de liberdade na orientação de suas ações e seus desejos, garantido pela ordem dos direitos individuais. Com isso, os principais mecanismos nas tomadas de decisão, além da lógica organizacional, são as escolhas pessoais e as normas sociais (FARIAS, 2001), fatores inseridos também na escolha pela cesárea. Percebe-se que a polêmica questão da realização da cesárea a pedido da paciente, colocada em evidência como causa relevante da elevação das taxas de cesárea no 177 mundo e no Brasil (DINIZ, 2005), é proveniente de questões complexas, envolvendo a percepção médica e materna sobre vantagens e riscos desse procedimento. Também devem ser lembrados os interesses e a conveniência dos médicos, além dos temores por processos envolvendo má prática médica. Por que não reconhecer que há inadequadas evidências para suportar ou refutar a cesárea eletiva e iniciar estudos apropriadamente desenhados? (SCOTT, 2002, tradução nossa). Com essa declaração, o editor-chefe da prestigiosa revista Obstetrics and Gynecology reforça a necessidade de estudos que avaliem essas questões em profundidade, com adequada metodologia, evitando resultados duvidosos. Estas considerações põem em relevo a propriedade de levar em conta não só a interação entre variáveis que pinçam isoladamente facetas de uma realidade complexa - a realização da cesárea - mas a necessidade de realizar futuros trabalhos articulando essas variáveis associadas à decisão pelo tipo de parto, contextualizados ao modelo assistencial privado de saúde em nosso país e às características sócio-culturais da população analisada. 178 6 CONCLUSÕES O presente trabalho teve como objetivo geral identificar os fatores associados à decisão pelo tipo de parto, levando as taxas de cesárea a atingirem cifras ao redor de 90% em serviços privados hospitalares do município de São Paulo. Sob essa ótica, estabeleceram-se alguns objetivos específicos, detalhados no capítulo “Objetivos da Tese”, a serem analisados nesse trabalho. A abordagem escolhida foi fazer uma análise de dois agentes chave dessa cadeia assistencial, as gestantes e os médicos. Para isso, procedeu-se ao trabalho de campo, realizado por meio de questionário estruturado e de entrevistas realizadas com mulheres dois dias após o parto e com os obstetras responsáveis por seus partos. Para a análise dos resultados e seu devido entendimento, foi necessária a caracterização sócio-cultural das mulheres atendidas no sistema de saúde suplementar. Identificamos que a amostra entrevistada pertencia a uma parcela da população feminina caracterizada por idade materna, em sua maioria, na faixa de 30 a 40 anos, com elevado nível educacional, de cor branca e que trabalha atualmente fora de suas casas. Essas particularidades permitem presumir que esse grupo de mulheres faz parte de uma população que tem como prioridade o seu desenvolvimento profissional, em detrimento de maternidade. Outra característica observada é o exercício de autonomia e a possibilidade de escolha do tipo de parto a ser realizado por essas mulheres, em função do elevado nível educacional e amplo acesso às informações necessárias para essa finalidade. Neste trabalho evidenciou-se elevada taxa de cesárea, freqüentemente associada ao maior desenvolvimento sócio-cultural da população atendida. Em relação aos objetivos específicos, foi possível chegar a algumas respostas. Perguntou-se aos médicos e às pacientes sobre sua percepção a respeito das taxas de cesárea em serviços hospitalares privados na capital paulista e suas considerações sobre os riscos desse procedimento. A maioria dos médicos relatou 179 acreditar que as taxas são muito elevadas e que deveria haver esforços para reduzílas. No entanto, esses profissionais não percebem aumento dos riscos maternos e neonatais decorrentes do parto cesáreo. Nas entrevistas com as mulheres não foi detectado, de forma significante, medo de problemas com o recém-nascido provenientes do parto normal ou da cesariana, demonstrando que para essa clientela há percepção de segurança em ambos tipos de parto. Conclui-se, portanto, que para os dois agentes estudados, o parto cesáreo é percebido como uma forma segura de nascimento, tanto quanto o parto vaginal. Buscou-se identificar os principais fatores associados à escolha pelo tipo de parto. Foi possível demonstrar uma forte associação entre características sócio-culturais das mulheres e o tipo de parto realizado, caracterizada pela realização mais freqüente de cesáreas entre aquelas com maior nível educacional e que trabalham fora de casa. Para as pacientes entrevistadas, um dos principais fatores para a escolha do procedimento cirúrgico foi a praticidade de agendar o parto. É possível concluir que a adequação da vida profissional da gestante está diretamente relacionada à escolha pela cesariana. Como fator decisivo para a escolha pelo parto normal observamos que a questão do medo da dor após a cesariana foi relevante para essa clientela. Embora, para as mulheres entrevistadas, a ansiedade ou os medos não tenham influenciado na decisão pelo parto cesáreo, na percepção dos médicos uma das maiores dificuldades para a realização do parto normal encontrase na insegurança materna do parto vaginal e/ou na vontade materna pelo procedimento cirúrgico. Para os profissionais, o temor da gestante com relação ao uso do fórcipe estimularia também a realização de cesariana. Não obstante haver referências sobre a preocupação das mulheres com relação a problemas de elasticidade vaginal interferindo nas funções sexuais e urinárias decorrentes do parto normal, não observamos neste trabalho esses fatores associados à escolha do tipo de parto, nem sob o ponto de vista das pacientes nem sob a percepção dos médicos. Analisou-se o desejo das gestantes em relação ao tipo de parto durante o pré-natal e sua realização após o parto. Percebeu-se que, embora apenas um terço das mulheres desejasse parto cesáreo no início da gravidez, parte significativa da amostra entrevistada mudou de opinião no decorrer do pré-natal, passando a 180 desejar o procedimento cirúrgico. Isso também se identifica na verificação de que mais da metade das mulheres que tiveram seu parto pela cesárea desejavam outro tipo de parto no início da gestação. Esses resultados demonstram que ocorrem mudanças substanciais na percepção da gestante durante a gravidez. Essas mudanças mereceriam ser analisadas em maior profundidade. Observamos elevado grau de satisfação das mulheres após o nascimento, independente do tipo de parto realizado. Essa satisfação também ocorreu com os partos anteriores, entre as mulheres que já tiveram filhos. Um desdobramento desse objetivo foi a análise da satisfação nos casos em que houve mudança entre o tipo de parto desejado no início da gestação e o parto realizado. Observamos que as mulheres ficaram satisfeitas, independentemente de eventual discordância entre o tipo de parto desejado e o realizado. No entanto, embora o grau de satisfação tenha sido muito elevado, identificamos que quase todas as mulheres que tiveram parto vaginal desejariam o mesmo tipo de parto em eventual futura gravidez, fato que não seguiu a mesma preferência entre aquelas que se submeteram a uma cesariana. Isso demonstra a complexidade do tema satisfação após o parto, havendo necessidade de análises em maior profundidade sobre essa questão. O grau de participação das mulheres na decisão do tipo de parto também fazia parte dos objetivos específicos. Observamos que a grande maioria das mulheres exerceu seu direito de escolha, ao declararem que participaram integral ou parcialmente na escolha do parto. Outra constatação é que todas as mulheres que tiveram parto vaginal disseram ter participado integralmente nessa decisão. Isso demonstra o elevado poder de negociação das mulheres atendidas no sistema privado de saúde, baseado no estreito relacionamento médico-paciente. Com relação ao grau de concordância das pacientes em realizar o parto com um profissional diferente daquele que fez seu pré-natal, observou-se que, de forma significativa, as mulheres não aceitariam essa prática. Fica assim demonstrada uma das características mais relevantes da assistência obstétrica no sistema privado de saúde, o estreito relacionamento médico-paciente. 181 Analisaram-se os fatores que influenciam os médicos na decisão pelo tipo de parto. Para essa amostra de médicos, caracterizada pela prevalência do sexo masculino, com muitos anos de experiência e maturidade profissional, identificamos que, com exceção da vontade materna pela cesárea e da insegurança da gestante em relação ao parto vaginal, a remuneração e o receio por processos judiciais decorrentes de má prática médica têm importância no momento da decisão. Em função da forma de organização da prática obstétrica e da necessidade de múltiplos empregos, uma remuneração diferenciada para o parto vaginal, segundo os obstetras, faria com que houvesse uma redução das taxas de cesárea no sistema privado de saúde. Outros fatores associados à realização de cesarianas seriam a deficiência atual na formação dos médicos especialistas e a falta de prática nas manobras obstétricas, como o uso do fórcipe, para o parto vaginal difícil. Conforme relatado anteriormente nesta tese, alguns renomados professores de obstetrícia vieram, ao longo dos anos, mudando sua postura com relação à execução da cesariana, declarando publicamente que a opção pelo parto cirúrgico poderia ser mais benéfica para a gestante e seu feto em função do despreparo médico. A prática da cesárea associada ao temor por ações judiciais decorrentes de má prática médica advém, em grande parte, dessa deficiência na formação, procedendo-se a medicina “defensiva”. Com relação à aceitação dos médicos perante uma solicitação de cesárea pela gestante, observamos que elevado percentual de obstetras aceitaria realizar a cesárea a pedido. Buscou-se analisar o tipo de parto desejado pelas mulheres obstetras em eventual gestação sem complicações. Observou-se que quase a metade delas desejaria se submeter a uma cesariana, proporção semelhante àquelas que desejariam parto vaginal. Procurou-se então identificar o tipo de parto realizado nas médicas e nas esposas dos médicos dessa amostra, comparando a incidência de cesárea desse grupo e da amostra de pacientes estudada. Observou-se uma taxa de cesárea entre as médicas e as esposas dos médicos, embora elevada (69,5%), inferior à taxa observada entre as pacientes (88,4%). Essa diferença, estatisticamente significante, sugere que há múltiplos fatores, além das preferências médicas, associados à decisão pelo tipo de parto. 182 Com base nesses resultados, esta tese permite concluir que as taxas de cesárea na assistência médica suplementar do município de São Paulo atingem cifras ao redor de 90% em decorrência da forma de organização da prática obstétrica inserida nesse modelo assistencial e da característica da clientela assistida por esse modelo, capaz de negociar e decidir o tipo de parto a ser realizado. Associa-se a essas as questões relacionadas à formação médica geral e obstétrica, tornando mais complexa essas relações. 183 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS A elevação das taxas de cesárea é um fenômeno mundial desde os anos 1980. Concomitantemente a isso, um número significativo de trabalhos acadêmicos e análises não acadêmicas tem sido publicado freqüentemente, analisando essa questão sob diferentes pontos de vista. Observa-se também que esses estudos estão vinculados a contextualizações localizadas, que se baseiam particularmente no modelo assistencial obstétrico e nas características sócio-culturais das mulheres assistidas nesses locais. Antes da finalização desta tese ocorreram duas publicações interessantes. A Folha de São Paulo publicou em 24 de janeiro de 2008 uma reportagem sobre a “Cesárea Humanizada”. Trata-se de uma forma encontrada por alguns obstetras de tornar o momento da cirurgia “mais natural”. Isso demonstra uma movimentação no sentido de modificar não o tipo de parto mas sim a forma de realizá-lo. Outra publicação relevante, cujo impacto ainda não está claro, foi a resolução normativa n. 167 da ANS de 10 de janeiro de 2008 ampliando o rol de procedimentos que devem ser cobertos e assegurados pelas operadoras de planos de saúde. Nessa resolução, a agência determina que os convênios deverão remunerar os partos normais assistidos por enfermeiros obstetras. Essa ação, aparentemente desenvolvida no intuito de reduzir as taxas de cesárea no sistema de saúde privado brasileiro, trará certamente muita discussão sobre o mercado de assistência obstétrica e as disputas profissionais que nele se encontram. Não há evidências claras sobre a taxa “adequada” de cesáreas. Certamente no Brasil e em muitos locais do mundo essas taxas são superiores à preconizada pela OMS. Porém, o “bom parto”, seja ele vaginal ou cesáreo, deve ser aquele possível para cada mulher e que assegure o bem-estar da mãe e do recém-nascido. Com certeza, as decisões pelo tipo de parto devem considerar as preferências das gestantes, desde que elas tenham domínio das informações sobre esses procedimentos. Além disso, as análises das taxas de cesárea não devem estar 184 descoladas do modelo assistencial em vigor, tampouco das características sociais e culturais de determinada sociedade. Com base em conceitos identificados e resultados obtidos nessa tese, este trabalho trouxe contribuições para uma melhor compreensão de como se estabeleceu a prática obstétrica privada no município de São Paulo. Não obstante os desafios e obstáculos que levaram a limitações encontrados nesse trabalho, certamente foi possível identificar resultados relevantes para uma reflexão sobre o atual modelo da assistência ao parto, levantando novas e maiores possibilidades de estudo de questões e abrindo o campo para maiores discussões. 185 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABOUZAHR, C.; WARDLAW, T. Maternal mortality at the end of decade: a sign of progress? Bulletin of the World Health Organization, 2001, n. 79, a. 6, p. 561-573. AL-MUFTI, R.; MCCARTHY, A.; FISK, N.M. Obstetricians' personal choice and mode of delivery. Lancet, 1996, n. 347, p. 544. AL-MUFTI, R.; MCCARTHY, A.;FISK, N.M. Survey of obstetricians' personal preference and discretionary practice. European Journal of Obstetrics and Gynaecology and Reprodutive Biology, 1997, n. 73, p. 1-4. ALVES, B.; SHEIKH, A. Investigating the relationship between affluence and elective caesarean sections. 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( ) 1 a 2 salários mínimos (R$350,00 a R$700,00) a. ( ) 2 a 3 salários mínimos (R$700,00 a R$1050,00) a. ( ) 3 a 5 salários mínimos (R$1050,00 a R$1750,00) a. ( ) 5 a 10 salários mínimos (R$1750,00 a R$3500,00) a. ( ) 10 a 15 salários mínimos (R$3500,00 a R$5250,00) a. ( ) 15 a 20 salários mínimos (R$5250,00 a 7000,00) a. ( ) acima de 20 salários mínimos (mais de R$7000,00) 7. Quantos partos já teve? a. ( ) nenhum, este é o primeiro a. ( ) um a. ( ) dois a. ( ) três ou mais 8. Os partos anteriores a esse foram: (colocar o número de partos normais, fórcipe e cesáreas) Partos Normais (nº) Partos Fórcipes (nº) Partos Cesárias (nº) 219 9. Com relação ao seu(s) parto(s) anterior(es), a sra. ficou: Totalmente satisfeita Satisfeita Nem satisfeita nem insatisfeita Insatisfeita Totalmente insatisfeita 10. Número de consultas durante esse pré-natal: a. ( ) até 3 consultas b. ( ) 4 a 7 consultas c. ( ) mais de 7 consultas 11. Durante o pré-natal, quais informações lhe foram transmitidas: (múltipla escolha) a. ( ) informações sobre os tipos de parto b. ( ) informações sobre a anestesia em parto normal c. ( ) informações sobre anestesia em cesárea d. ( ) informações sobre dores durante o trabalho de parto e. ( ) informações sobre os sintomas após o parto normal f. ( ) informações sobre os sintomas após o parto cesárea g. ( ) informações sobre os riscos para a mãe e para o recém-nascido devido ao parto normal h. ( ) informações sobre os riscos para a mãe e para o recém-nascido devido ao parto cesárea 12. Na sua opinião, o nível de informação sobre os tipos de parto obtido durante o pré-natal foi: Totalmente suficiente para decisão do tipo de parto Suficiente para decisão do tipo de parto Nem suficiente nem insuficiente Insuficiente 13. A sra. fez cursos de gestante durante a gravidez? ( ) Sim Totalmente insuficiente para decisão do tipo de parto ( ) Não 14. A senhora teve acesso a outras fontes de informação sobre os tipos de parto (revistas, internet, amigos, TV, etc.)? a. Sim ( ) Quais?____________________________________________________________ b. Não ( ) 15.Qual era seu desejo com relação ao tipo de parto no início da gestação? a. ( ) gostaria de ter parto normal b. ( ) gostaria de ter parto cesárea 220 c. ( ) não tinha nenhuma preferência 16.Com as informações obtidas com as consultas de pré-natal e outras fontes (cursos de gestantes, revistas, internet etc.), esse desejo pelo parto mudou durante a gravidez? a. ( ) Sim b. ( ) Não 17.Por quê? _______________________________________________________________ __________________________________________________________________________ 18. O parto realizado foi: ( ) Normal ( ) Fórcipe ( ) Cesárea 19. Qual sua participação na decisão pelo tipo de parto realizado? Participei integralmente na decisão (a paciente decidiu e o médico aceitou) Participei parcialmente (paciente e médico concordaram com a decisão) Não participei na decisão (não opinou na decisão) Participei mas meu medico me convenceu que estava errada Discordei totalmente do médico, mas prevaleceu sua decisão 20. Caso a sra. tenha participado da decisão pelo tipo de parto, em que momento essa decisão foi tomada? a. ( ) no início da gravidez b. ( ) após as orientações recebidas pelo meu médico c. ( ) após as informações obtidas por outras fontes (cursos de gestante, revistas, internet, programas de televisão etc) d. ( ) no final da gestação e. ( ) após a internação no hospital 21. Caso a sra. tenha participado da decisão pelo tipo de parto, qual a importância dos fatores abaixo para motivar essa decisão? Concordo totalmente Estava ansiosa para terminar a gestação Estava com medo das dores do parto normal Estava com medo das dores após o parto cesáreo Tinha medo com relação a problemas de sexualidade decorrentes do parto normal desejo de praticidade para agendar o parto Concordo Não concordo nem discordo Discordo Discordo totalmente 221 medo de problemas para o recém-nascido decorrentes da cesárea medo de problemas para o recém-nascido decorrentes do parto normal realização de laqueadura das trompas durante a cesárea a. outras razões para decisão do tipo de parto : _________________________________ _______________________________________________________________________ 22. Com relação à sua satisfação em relação ao tipo de parto realizado, a sra.: Totalmente satisfeita Satisfeita Nem satisfeita nem insatisfeita Insatisfeita Totalmente insatisfeita 23. Sua mãe teve quantos partos? a. ( ) um b. ( ) dois c. ( ) três ou mais 24. Esses partos foram: a. ( ) todos normais b. ( ) todos cesárea c. ( ) um ou mais fórcipe d. ( ) mix (escrever o número) ___P Normal ___ P Fórcipe ____P Cesárea 25. Sua mãe costumava comentar com a sra. sobre as dificuldades dos partos que teve? a. ( ) Nunca comentou muito b. ( ) Gostava de comentar sobre as desvantagens do parto normal c. ( ) Gostava de comentar sobre as vantagens do parto normal d. ( ) Gostava de comentar sobre as desvantagens do parto cesárea e. ( ) Gostava de comentar sobre as vantagens do parto cesárea f. ( ) Falava igualmente sobre as vantagens e desvantagens dos dois tipos de parto g. ( ) Não me lembro h. ( ) Não procede 26. Numa eventual gravidez futura, a sra. gostaria de: a. ( ) realizar o mesmo tipo de parto b. ( ) realizar outro tipo de parto 222 c. ( ) não deseja outra gestação d. ( ) não sabe 27. Existem dúvidas relacionadas com o parto normal, como a perda da elasticidade vaginal comprometendo a sexualidade feminina, a possibilidade futura de problemas de bexiga etc. A sra. acha que essas questões: a. ( ) são muito importantes e por isso muitas mulheres desejam parto cesárea b. ( ) são importantes, mas não fundamentais na escolha pelo tipo de parto pela gestante c. ( ) não são importantes 28. Em alguns países desenvolvidos, existe a prática de a mulher fazer o pré-natal com um médico e dar à luz com outro médico, geralmente de plantão no hospital. Com relação a essa prática, a Sra.: Concordaria totalmente Concordaria Não concordaria nem discordaria Discordaria Discordaria totalmente 223 INSTRUMENTO PARA QUESTIONÁRIO DE PESQUISA PARA MÉDICOS 1. Nome: __________________________________________________ 2. Idade (anos): ________ 3. Sexo: ( ) M ()F 4. Tempo de formação médica (anos): _______ 5. Atividades Profissionais além do Consultório: a. ( ) emprego público diarista b. ( ) emprego público plantão c. ( ) emprego CLT (carteira assinada) d. ( ) emprego autônomo 6. Quantidade média de partos por mês: a. ( ) 1 a 5 partos b. ( ) 6 a 10 partos c. ( ) 11 a 15 partos d. ( ) mais de 15 partos 7. De cada 10 partos realizados nos últimos 6 meses, qual seu percentual de partos cesárea em média? _____ 8. Em relação à execução de parto normal, qual sua percepção sobre os fatores que possam criar dificuldades para realiza-lo: Concordo Concordo Não concordo Discordo Discordo nem discordo totalmente totalmente Remuneração não diferenciada pelo procedimento imprevisibilidade do resultado neonatal imprevisibilidade do momento do trabalho de parto temor de ações judiciais originadas pela paciente dificuldades de locomoção em São Paulo (trânsito, riscos de violência, etc) falta de tempo para 224 acompanhar o trabalho de parto (outras atividades profissionais) falta de estrutura física hospitalar para execução do parto normal insegurança quanto ao acompanhamento no pré-parto pela enfermeira obstétrica vontade materna ou insegurança da paciente pelo parto normal 9. Em sua opinião, a atuação das enfermeiras obstetras nos hospitais privados atualmente tem sido: a. ( ) excelente b. ( ) boa c. ( ) indiferente d. ( ) ruim e. ( ) péssima 10. O sr. aceita o desejo materno como indicação de cesárea em gestações de baixo risco? a. ( ) S Porque? _________________________________________ b. ( ) N Porque? _________________________________________ 11. Partindo-se do fato de haver cerca de 80% de cesárea em serviços hospitalares privados do município de São Paulo, qual sua percepção sobre esta taxa de cesárea? a. ( ) é muito elevada e deve haver esforços para reduzi-la b. ( ) é muito elevada, porém não há motivos para reduzi-la c. ( ) é adequada para o modelo de assistência a saúde no município d. ( ) sou indiferente a esta taxa 12. Se houvesse remuneração diferenciada para parto normal, o sr. acredita que haveria mudanças nas atuais taxas de cesárea na medicina privada em São Paulo? ()S ()N 13. O Sr. possui seguro de responsabilidade médica (seguro feito por médicos para “proteção” contra ações judiciais)? ()S ()N 225 14. O sr. acredita que o medo de ações judiciais pode ser um motivo relevante para a realização do parto cesárea no município de São Paulo? ()S ()N 15. O sr. acredita que a formação atual dos médicos na faculdade e na residência/especialização na área de obstetrícia é um motivo relevante para justificar as taxas de cesárea no município de São Paulo? ()S ()N 16. O Sr. acredita que a possibilidade de haver necessidade de utilizar o fórcipe para realizar o parto vaginal pode: Concordo Concordo Não concordo Discordo Discordo totalmente nem discordo totalmente aumentar a taxa de cesárea pelo temor das gestantes quanto ao uso do fórcipe aumentar a taxa de cesárea pela falta de treinamento médico em utilizar adequadamente o fórcipe não interfere na decisão pelo tipo de parto a ser realizado 17. Há muita discussão sobre os malefícios que o parto cesárea, sem indicação médica absoluta, poderia trazer à mãe e ao recém-nascido. Na sua experiência profissional, atendendo pacientes particulares e de convênios: Concordo totalmente o parto cesárea aumenta a morbi-mortalidade materna e/ou perinatal o parto cesárea não interfere na morbi-mortalidade materna e/ou perinatal o parto vaginal reduz a morbimortalidade materna e/ou perinatal concordo Não concordo nem discordo discordo Discordo totalmente 226 18. Em sua experiência profissional, questões culturais, como a perda da elasticidade vaginal após parto vaginal, comprometendo a sexualidade feminina: a. ( ) são muito importantes para a maioria das gestantes, e por isso desejam parto cesárea b. ( ) são importantes para a maioria das gestantes, mas não fundamentais na escolha pelo tipo de parto c. ( ) não são importantes para a maioria das gestantes 19. Somente para médicas: a. Paridade: ____Gesta ____ Parto Vaginal _____ Parto Cesárea se a senhora estivesse grávida, a sua preferência seria realizar: i. ( ) parto vaginal ii. ( ) parto cesárea iii. ( ) deixaria a critério do médico obstetra 20. Somente para médicos: a. Quantos filhos o sr. tem? ________ b. Quantos nasceram por parto vaginal? _______ c. O Sr. participou na decisão do tipo de parto de sua esposa? iv. ( )S v. ( )N Por que? ______________________________________