psicanálise - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre

Transcrição

psicanálise - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
v. 17, n. 1, 2015
psicanálise
Revista da Sociedade Brasileira de
Psicanálise de Porto Alegre
Filiada à Associação Psicanalítica
Internacional desde 1992, à FEPAL e à
Federação Brasileira de Psicanálise
A revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre é uma
publicação semestral editada regularmente desde 1999. Encontra-se
indexada na Base de Dados INDEX PSI Periódicos. Tem como finalidade
publicar trabalhos selecionados de psicanalistas brasileiros das Sociedades
Psicanalíticas e Grupos de Estudos filiados à Associação Psicanalítica
Internacional e de autores de notório saber, visando aprofundar, divulgar,
ampliar e atualizar conhecimentos na área da psicanálise. A Revista publica
também artigos originais ou traduções de trabalhos de analistas estrangeiros,
ainda de candidatos em formação do Instituto de Psicanálise. São aceitos
artigos de profissionais ligados a Universidades e articulistas de comprovado
saber, ligados de alguma forma à psicanálise e às ciências humanas.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Psicanálise – Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. Vol. 1, n. 1 (jan/dez. 1999)– . – Porto Alegre: Sociedade Brasileira
de Psicanálise de Porto Alegre, 1999– v. ; 25 cm.
Revista indexada na base de dados INDEX PSI Periódicos.
Periodicidade: semestral a partir de 2001.
ISSN 1518-398x
1. Psicanálise I. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.
CDU 615.851.1
CDU 616.891.7
Bibliotecária Responsável: Adriana Clô Lopes – CRB10/1951
Tiragem: 200 exemplares
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
Praça Dr. Maurício Cardoso, nº 07 / 2º andar – CEP 90570-010
Porto Alegre – RS – Brasil
Tel./Fax 55 51 3330-3845 | 3333-6857
www.sbpdepa.org.br
e-mails: [email protected] | [email protected]
EDITORA
Mara Horta Barbosa
CONSELHO EDITORIAL
Alicia Beatriz Dorado de Lisondo | Ana Rosa C. Trachtenberg | André Green (in memoriam)
| Antonino Ferro | Carmen Médici de Steiner | Cesar Botella | Didier Lauru | Elfriede
Susana Lustig de Ferrer (in memoriam) | Ester Malque Litvin | Franco Borgogno |
François Marty | Gildo Katz | Gley Silva de Pacheco Costa | Helena Ardaiz Surreaux |
Heloísa Helena Poester Fetter | João Baptista Novaes Ferreira França | Laura Ward da
Rosa | Leopold Nosek | Leonardo Wender | Marcelo Viñar | Marco Aurélio Rosa | Maria
Aparecida Quesado Nicoletti | Marta Petricciani | Miguel Leivi | Nilde Parada Franch |
Raquel Zak de Goldstein | Rómulo Lander | Samuel Zysman | Sara Botella | Sara Zac de
Filc | Sebastião Abrão Salim | Stefano Bolognini | Suad Haddad de Andrade
COMISSÃO EDITORIAL
Carmen Lúcia M. Moussalle | Maria Isabel Ribas Pacheco | Patrícia R. Menelli Goldfeld |
Ramon Castro Reis | Rosa Beatriz Santoro Squeff
ORGANIZADORA DESTA EDIÇÃO
Patrícia R. Menelli Goldfeld
ASSISTENTE EDITORIAL E NORMATIZAÇÃO
Adriana Clô Lopes
REVISÃO
Débora Jael Rodrigues
DIAGRAMAÇÃO
Alex Barreto
CAPA E PROJETO GRÁFICO
Marcelo Spalding
SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE
Filiada à Associação Psicanalítica Internacional
DIRETORIA
Presidente
Helena Ardaiz Surreaux
Secretário
Lores Pedro Meller
Tesoureira
Ane Marlise Port Rodrigues
Diretora Científica
Silvia Brandão Skowronsky
Diretora de Comunicação
Mara Horta Barbosa
Diretora de Relações com a Comunidade
Patrícia Rivoire Menelli Goldfeld
Diretora Centro de Atendimento Psicanalítico
Denise Zimpek Pereira
INSTITUTO DE PSICANÁLISE
Diretor
Fernando Linei Kunzler
Secretário
Leonardo Adalberto Francischelli
Coordenadora da Subcomissão de Formação
Augusta Gerchmann
Coordenadora da Subcomissão de Seminários
Laura Ward da Rosa
ASSOCIAÇÃO DE MEMBROS DO INSTITUTO
Presidente
Magda Regina Barbieri Walz
Vice-Presidente
Kellen Gurgel Anchieta
Secretário
Fábio Martins Pereira
Tesoureira
Tamara Barcellos Jansen Ferreira
NÚCLEOS
Núcleo de Infância e Adolescência
Eluza Maria Nardino Enck
Núcleo de Vínculos e Transmissão Geracional
Vera Maria Pereira Homrich de Mello
Núcleo Psicanalítico de Florianópolis
Márcio José Dal-Bó
MEMBROS FUNDADORES
Alberto Abuchaim
Ana Rosa Chait Trachtenberg
Antonio Luiz Bento Mostardeiro
David Zimmermann
Gildo Katz
Gley Silva de Pacheco Costa
Izolina Fanzeres
José Facundo Passos de Oliveira
José Luiz Freda Petrucci
Júlio Roesch de Campos
Leonardo Adalberto Francischelli
Lores Pedro Meller
Luiz Gonzaga Brancher
Marco Aurélio Rosa
Newton Maltchik Aronis
Renato Trachtenberg
Sérgio Dornelles Messias
MEMBRO HONORÁRIO
Dr. David Zimmermann
sumário
Dossiê Temático: Diálogos Psicanalíticos Contemporâneos com Freud
Dez equívocos teóricos na obra de Freud
Abram Josek Eksterman
Mal-estar na cultura hoje: o atual e a atualidade em psicanálise.
Pertinência de nossas ferramentas psicanalíticas freudianas
Adriana Sorrentini
17
47
O contemporâneo na função analítica: medo e paixão
Ane Marlise Port Rodrigues, Augusta Gerchmann, Christiane
Vecchi da Paixão, Kellen Gurgel Anchieta
61
Um pequeno grande Hans em três breves atos
Celso Gutfreind
72
Freud e os pós-freudianos sobre as patologias atuais
Laura Ward da Rosa
84
Mal estar na cultura: diálogo com Freud, Herr Professor
Silvia Skowronsky
94
Possíveis articulações entre narcisismo e pulsão de morte
para a clínica da atualidade
Sissi Vigil Castiel
108
Autoerotismo, desmentida e a cisão do Eu
Celso Halperin
Outras contribuições
Como se originou e se criou a teoria do encapsulamento autista
David Rosenfeld
As diversas faces do desejo nos tratamentos de
reprodução assistida
Katya de Azevedo Araújo, Mara Horta Barbosa, Maria Isabel Pacheco,
Patrícia Mazeron, Renata Viola Vives
Afinal, o que é esse tal enactment?
Roosevelt M. S. Cassorla
118
127
138
147
Interfaces
Cine fórum : construindo um espaço potencial
Denise Zimpek Pereira, José Ricardo Pinto de Abreu
167
Resenha
Metapsicologia: um olhar à luz da pulsão de morte
Christiane Vecchi da Paixão
177
Entrevista
Ricardo Avenburg
183
Orientações aos Colaboradores e Normas para Publicação
193
contents
Thematic Works
Ten psychoanalytical mistakes in Freud’s theory
Abram Josek Eksterman
Discontent in culture today: the present and current events in
psychoanalysis. Pertinence of our freudian psychoanalytical tools
Adriana Sorrentini
17
47
The contemporary in the analytical function: fear and passion
Ane Marlise Port Rodrigues, Augusta Gerchmann, Christiane
Vecchi da Paixão, Kellen Gurgel Anchieta
61
A little big Hans in three short acts
Celso Gutfreind
72
Freud and post-freudians about current pathologies
Laura Ward da Rosa
84
The discontent in culture: dialog with Freud, Herr Professor
Silvia Skowronsky
94
Possible links between narcissisms and death drive for
today’s clinic Sissi Vigil Castiel
108
Self-eroticism, disavowal and splitting of the ego
Celso Halperin
Other contributions
How was the theory of autistic encapsulation originated
and created
David Rosenfeld
118
127
The many faces of desire in assisted reproduction treatment
Katya de Azevedo Araújo, Mara Horta Barbosa, Maria Isabel Pacheco,
Patrícia Mazeron, Renata Viola Vives
138
After all, what is enactment?
Roosevelt M. S. Cassorla
147
Interfaces
Cine Forum: building a potential space
Denise Zimpek Pereira, José Ricardo Pinto de Abreu
167
Book review
Metapsicologia: um olhar a luz da pulsão de morte
Christiane Vecchi da Paixão
177
Interview
Ricardo Avenburg
183
Guidelines for contributors and standards for publication
193
editorial
Palavras da Editora
Queridos leitores,
A Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre com prazer apresentalhes mais uma edição de Psicanálise: Revista da SBPdePA. Estamos trazendo
o número 1 de 2015, volume 17.
Impossível deixar de mencionar que em 2015 a SBPdePA está completando
25 anos! Idade de maturidade. Foi em janeiro de 1990 que, fundado o Movimento
para uma Nova Sociedade Psicanalítica em Porto Alegre, plantou-se uma semente
que germinou e deu frutos. Hoje, passados 25 anos, temos uma história que
se perpetua com a chegada de novos membros, fazendo a Brasileira seguir sua
trajetória. Gostaríamos de agradecer de modo especial aos fundadores que, com
coragem, fé em si e na psicanálise, sonharam, gestaram e criaram a Brasileira.
E lembrar aos membros recém-chegados que são o futuro, e esperamos que se
sirvam dessa história para fazerem parte dela.
Voltando para a Revista, estamos apresentando como eixo temático deste
número Diálogos Psicanalíticos Contemporâneos com Freud. O ano de 2014 foi
marcado pelo Centenário da Metapsicologia − momento em que Freud organiza
os trabalhos considerados pilares de sustentação de sua construção teórica.
Homenageando os Cem Anos de Psicanálise, a SBPdePA organizou em sua
Jornada anual o II Encontro de Estudos sobre a Obra de Sigmund Freud, e trouxe
para o evento o Dr. Ricardo Avenburg, psicanalista da APdeBA de Buenos
Aires e profundo estudioso da obra freudiana. A ideia do encontro foi partir
dos conceitos básicos que fundamentam a psicanálise, postulados por Freud,
e questionar como se articulam com as novas configurações psíquicas que
encontramos na clínica atual. Criou-se um clima fértil de estudo, bastante
descontraído e informal, com troca de ideias e diferentes interpretações do
pensamento freudiano, buscando novos desdobramentos de seus aportes. A
equipe editorial de Psicanálise valeu-se da proposta desse Diálogo para torná-lo
o eixo temático deste número.
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 11
Esta edição tem como organizadora a colega Patrícia Goldfeld, que a apresenta
nas páginas a seguir.
Tenho imenso prazer em fazê-los saber que, a partir desse número, teremos
nossa Revista em formato digital para compra online. E também, a partir desta
edição, contamos com um novo parceiro na editoração, que é a wwlivros −
editora de livros impressos e digitais, dirigida por Marcelo Spalding, escritor e
jornalista.
Finalizo agradecendo aos autores pela confiança e pela oportunidade de
compartilharem suas ideias e seu conhecimento conosco. Àqueles autores que
tiveram seus artigos aceitos mas não contemplados neste número, asseguramos
que ganharão voz na próxima edição. Impossível furtar-me de mencionar a
sintonia dessa querida equipe editorial composta pelas experientes colegas
Carmem Moussalle, Rosa Squeff, Maria Isabel Pacheco, Patricia Goldfeld e
pelo recém-chegado Ramon Castro Reis, que veio enriquecer o trabalho editorial com seu olhar. Menciono também o imprescindível apoio técnico de
nossa equipe administrativa: a vocês agradeço muito a parceria!
E espero que os leitores possam compartilhar conosco o prazer da experiência
de elaborar essa revista, através de sua leitura.
Um afetuoso abraço.
Mara Horta Barbosa
Editora de Psicanálise: Revista da SBPdePA
12 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Palavras da Organizadora
Há poucos meses integrei-me ao corpo editorial da revista da SBPdePA,
da qual me orgulho em participar porque se trata de uma revista que busca
continuamente evoluir, aprimorar seus critérios e modernizar-se, de modo que
possui um alto nível de excelência em suas publicações. A experiência de trabalho
com o grupo de colegas que compõem o corpo editorial, de elevado nível
técnico e científico, tem sido muito desafiadora e estimulante. Nesta presente
edição, que fui convidada a organizar por nossa editora Mara Horta Barbosa,
sinto-me especialmente honrada porque o eixo temático trata de interlocuções
com o fundador da psicanálise, Sigmund Freud. O tema foi inspirado no II
Encontro de Estudos sobre a Obra de Sigmund Freud, ocorrido em novembro
de 2014, na sede da SBPdePA. Esse encontro teve como convidado especial o
psicanalista didata argentino Ricardo Avenbug, que recentemente publicou um
livro denominado Conversaciones com Freud.
É questão indiscutível, para nós psicanalistas, que a obra de Freud encontrase sempre presente em nosso trabalho clínico e em nossos estudos teóricos. Os
desenvolvimentos da teoria e da técnica psicanalítica implicam, em geral, uma
interlocução com alguma afirmação do fundador, tão vasta e abrangente foi a sua
obra. No entanto, a humanidade está em constante evolução, e os psicanalistas se
dedicam a estudar as patologias contemporâneas, buscando desenvolver teorias
e técnicas que nos permitam compreender e tratar essas novas manifestações
clínicas. Estes estudos provocam diálogos e questionamentos à teoria freudiana.
Esta edição da revista visou selecionar algumas das excelentes contribuições
teóricas e clínicas destes estudiosos da atualidade.
Na seção de Eixo Temático, publicamos oito trabalhos apresentados em
ordem alfabética de autor.
O artigo Dez equívocos teóricos na obra de Freud, do psicanalista da SBPRJ e
da APERJ-Rio-4, Abram Josek Eksterman, já foi apresentado no Congresso
Comemorativo do Sesquicentenário do nascimento de Sigmund Freud em
Praga, República Tcheca, em 2006. Neste interessante trabalho, o autor exa-
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 13
mina dez questões que ele considera paradigmáticas na obra de Freud e
que, por terem sido mal compreendidas ou expostas por Freud de uma maneira ambígua, permitiram equívocos técnicos e clínicos com o passar do
tempo.
Adriana Sorrentini, psicanalista da APA, apresenta o tema Mal-estar na cultura
hoje: o atual e a atualidade em psicanálise, pertinência de nossas ferramentas psicanalíticas
freudianas. A autora discute o desafio da psicanálise nos dias atuais, quando
analisamos pessoas com patologias psicossomáticas, transtorno de pânico,
fobias, anorexia, bulimia, compulsões e dependência de drogas e/ou álcool. No
trabalho, a autora examina algumas importantes ferramentas analíticas, como
transferência/contratransferência, interpretação, construção e reconstrução.
Ane Marlise Rodrigues, Augusta Gerchmann, Christiane Vecchi da Paixão
e Kellen Gurgel Anchieta, psicanalistas da SBPdePA, trazem o estudo O
contemporâneo na função analítica: medo e paixão. O trabalho analisa questões ligadas
à ética em psicanálise e aspectos transferenciais na relação analista/analisando
relativos à questão totêmica do incesto, explicitadas nas normas da IPA/
FEBRAPSI.
Celso Gutfriend, escritor, poeta e psicanalista da SBPdePA, propõe uma
releitura da clássica publicação de Sigmund Freud referente ao caso do Pequeno
Hans. Ele conclui com algumas interessantes inferências sobre a relação desse
estudo e as alterações culturais no cuidado infantil ocorridas no último século.
Celso Halperin, psicanalista da SBPdePA, apresenta o estudo original
Autoerotismo, desmentida e a cisão do eu e questiona a existência de uma possível
relação estrutural entre o autoerotismo e os mecanismos como a desmentida e
a cisão do eu.
Laura Ward da Rosa, psicanalista da SBPdePA, traz o artigo Freud e os pósfreudianos: sobre as patologias atuais. A autora relaciona o conceito de neurose atual
de Freud e patologias comumente encontradas na atualidade, como anorexia,
bulimia, adições e doenças psicossomáticas.
Silvia Brandão Skowronsky, psicanalista da SBPdePA, apresenta o ensaio
O mal estar na civilização, no qual desenvolve reflexões sobre os cem anos da
Psicanálise de Freud, e analisa seus reflexos na humanidade e na cultura.
Sissi Vigil Castiel, psicóloga psicanalista, doutora em psicologia pela
Universidade Autônoma de Madri, propõe o trabalho Possíveis articulações entre
narcisismo e pulsão de morte para a clínica da atualidade. Neste texto, ela relaciona as
patologias fundamentadas em problemáticas narcísicas, casos limite e melancolia
com as incidências da destrutividade no funcionamento psíquico direcionadas
ao interior do sujeito.
14 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Na seção Outras Contribuições publicamos três trabalhos.
David Rosenfeld, psicanalista da APdeBA e professor da Universidade
de Buenos Aires, apresenta o ensaio Como se originou e se desenvolveu a teoría do
encapsulamento autista. O autor desenvolve a hipótese de que os mecanismos
de defesa autistas nem sempre promovem patologias mentais, mas o que ele
denomina encapsulamento autista serve para preservar e manter as primeiras
relações infantis e as introjeções.
Katya de Azevedo Araújo, Mara Horta Barbosa, Patrícia Mazeron e Renata
Viola Vives, psicanalistas da SBPdePA, trazem o artigo As diversas faces do desejo
nos tratamentos de reprodução assistida. As autoras analisam as diferentes faces do
desejo e levantam questões sobre uma forma de expressão do desejo que estaria
ligada à gravidez como uma descarga corporal, ligada à libido intrassomática.
Roosevelt M. S. Cassorla, psicanalista da SBPSP, traz o trabalho Afinal, o que é
esse tal enactment? Neste artigo, o autor relata investigações clínicas sobre situações
de enactment e propõe nomear de enactment crônico os conluios duais e de enactment
agudo as situações em que esses conluios são desfeitos.
Na seção Interfaces, apresentamos o trabalho Cine fórum: construindo um espaço
potencial, dos psicanalistas Denise Zimpek Pereira e José Ricardo Pinto de Abreu.
Os autores analisam a atividade Cine Fórum, oferecida à comunidade pela
SBPdePA, e hoje denominada Café Cinema. Entendem que a atividade se realiza
dentro de um espaço potencial criado pelo intercâmbio emocional entre os
organizadores e os participantes, sendo oportunizada uma experiência criativa
compartilhada.
Na seção Por que ler, a psicanalista Christiane Paixão apresenta uma resenha
do livro de Ignácio Paim Filho, psicanalista da SBPdePA: Metapsicologia: um olhar
à luz da pulsão de morte. Segundo ela, Paim cria novas relações conceituais a partir
dos textos freudianos.
Finalizando, na seção Entrevista retornamos ao eixo temático uma entrevista
do professor Ricardo Avenburg, com questões baseadas nas perguntas realizadas
a ele no encontro aqui em nossa sociedade, em novembro de 2014: II Encontro
sobre a Obra de Freud.
Aproveitem a leitura!
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 15
dossiê
temático
Dez equívocos teóricos na
obra de Freud1
Abram Josek Eksterman2
“Know thyself? If I know
myself, I’d run away”
W. J. von Goethe
Resumo: O autor examina dez questões paradigmáticas na obra psicanalítica
de Freud que, com o passar do tempo, foram ou mal compreendidas ou expostas
por Freud de uma maneira ambígua, permitindo equívocos técnicos e clínicos. Tais
equívocos contribuíram para a dispersão da teoria e da técnica psicanalítica. O autor
sugere que o uso frequente do modelo etiológico e fenomenológico da medicina, ao
invés do psicodinâmico, inevitável no tempo da exposição das ideias de Freud, permitiu
tais ambiguidades e suas consequências. Dentro desse contexto foram examinadas: 1)
a busca do inconsciente ao invés de como se forma a consciência; 2) a ênfase no estudo
da patogenicidade derivada de mecanismos de defesa ao invés do estudo desses
mesmos mecanismos como funções protetoras do ego; 3) psicologia unipessoal (o que
leva à neuropsicologia) ao invés da psicologia diádica, ou à psicologia das relações;
4) a repressão compreendida como pressão defensiva ao invés de dissociação entre o
Trabalho selecionado e apresentado no Congresso Comemorativo do Sesquicentenário do
nascimento de Sigmund Freud em Praga, República Tcheca, em 5 de maio de 2006. Esta é
uma versão em português para esta publicação do original em inglês apresentado em Praga.
Mantive aqui citações em inglês e deixo ao leitor a liberdade de traduzi-las.
2
Membro Titular da I.P.A. Funções Didáticas da APERJ–RIO-4. Membro Titular da SBPRJ.
Professor de Psicologia Médica e Antropologia Médica. Membro Honorário da Academia
Nacional de Medicina.
1
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 17
Dez equívocos teóricos na obra de Freud
significante de seu significado; 5) a pré-genitalidade como conduta sexual ao invés de
simbolização da sexualidade; 6) ênfase na conduta sadia ao invés da organização saudável
de uma estrutura simbólica (levando a um ego saudável); 7) ênfase na normalização ao
invés da geração de consciência; 8) modelo científico natural para analisar sintomas
ao invés do modelo cultural a fim de criar um instrumento para a análise estrutural da
vida mental; 9) transferência como reedição histórica ao invés de significantes abertos
para o significado; 10) ênfase na experiência biológica ao invés de ênfase na experiência
existencial.
Palavras-chave: Formação do conceito. Psicanálise. Teoria Freudiana.
Introdução
O longo período em que fui professor e coordenador do Curso Teórico sobre
a obra do criador da psicanálise, Sigmund Freud, no Instituto de Formação
Psicanalítica em minha sociedade, produziu-me a convicção de que muito
além de estudarmos o texto de sua obra, deveríamos dedicar-nos a estudar
seu objeto de estudo. E com essa advertência iniciava a série de seminários.
Seus textos seriam portas de acesso básicas sobre as quais poderíamos erguer
o edifício cognitivo da psicanálise. Insistia em incutir nos alunos liberdade e
autonomia intelectual para que mais que seguidores de um gênio fossem efetivos
continuadores de sua obra, melhor forma de honrarem o legado que recebiam.
Tal sempre me pareceu a missão de um aluno de ciências, diferente daquele
discípulo de verdades acabadas dos mestres religiosos. Nunca efetivamente
entendi que pudessem existir várias psicanálises de acordo com postulados
de alguns renomados autores. Especialmente me era impossível entender
uma psicanálise freudiana, salvo por conta dessa estreiteza intelectual que nos
faz adeptos e não (como deveria ser) continuadores. Nas minhas modestas
contribuições ao estudo da obra de Freud, enfatizo invariavelmente o estudo
crítico de sua exposição, especificamente para depurá-la dos resvalos inevitáveis
a que um gênio de seu porte está sujeito. Penso assim estar contribuindo para o
desenvolvimento de seu estudo e, consequentemente, da prática da psicanálise.
O que chamei dos dez equívocos teóricos na obra de Freud é produto dessa intenção
e tem tudo a ver com minha profunda reverência ao gênio que marcou minha
vida profissional e meu principal objeto de estudo. É a forma que encontro
para expressar minha mais profunda aderência ao seu objeto de estudo, que é
18 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Abram Josek Eksterman
a pesquisa da humanidade do homem. E que, finalmente, permite esse tipo de
atrevimento intelectual. Inspirei-me no notável filósofo americano Adler, de
quem parafraseio o título de sua notável obra Ten philosophical mistakes (1985),
para nomear este trabalho, sabendo, humildemente, que muito me separa da
extraordinária competência desse notável autor, mas muito dele me aproximo
pela admiração que nutro por seu espírito crítico. Devo examinar neste trabalho
os seguintes tópicos:
1) psicanálise não é a busca do inconsciente, mas a busca de como se forma a
consciência;
2) defesa não é só um meio de proteger nossa mente de impulsos inconsci
entes, mas, além disso, um meio de proteger nossa consciência organizada
do inconsciente caótico;
3)psicanálise lida com conhecimento caótico. Assim não há lugar para es
tudos sobre etiologia como se faz na medicina diagnóstica. O estudo
diagnóstico em medicina deriva da biologia e refere-se à doença; psicanálise
deriva da experiência interpessoal e refere-se à existência;
4)portanto, psicanálise não é uma explicação de distúrbios funcionais do
cérebro; antes é uma exposição transcendental de relações humanas, nas
quais a natureza não é o paradigma, mas somente sintaxe e semântica o
são;
5)a pré-genitalidade não é uma forma anterior evolutiva da genitalidade, mas a
expressão da maior ou menor impregnação do processo primário de
pensar nas representações relativas aos fenômenos sexuais;
6) repressão não é contenção de forças instintivas; é a dissociação do significado
de seu significante cuja consequência é a perda de sentido, ou inconsciência;
7) conduta e significado são dimensões epistemológicas diferentes. A psicanálise
está comprometida com o significado e só o está com a conduta na medida
em que significados induzem condutas;
8)em consequência, a psicanálise, como instrumento terapêutico, não
pretende mudança em condutas, mas visa a produzir consciência com a
expansão de seus conteúdos simbólicos;
9) psicanálise não pode ser instrumento de qualificação axiológica, ou mais
precisamente, de discriminação ou orientação moral. A consciência do
vínculo interpessoal é que possibilita a qualidade da relação afetiva;
10)transferência é um fenômeno intermediário de transformação semântica
e não a reedição de pautas de condutas do passado infantil no cenário da
experiência de vínculo adulto. Transferência indica significantes no
processo de se apresentar como significados.
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 19
Dez equívocos teóricos na obra de Freud
Algumas advertências preliminares são indispensáveis. Esse estudo não é
um trabalho exegético no sentido de que esmiucei o texto de Freud e tentei
extrair dele significados esotéricos que, movido por talentos extraordinários
pude compreender o que ninguém antes conseguiu. Longe estou dos notáveis
comentadores de Freud (e foram numerosos e geniais). Freud mesmo foi seu
melhor comentador e realizou algumas tentativas de síntese de sua obra como
no trabalho sobre psicoterapia, nos trabalhos metapsicológicos, nas Lições
introdutórias (1916-17[1915-17), nas Novas lições introdutórias (1932-1936) e no
Esboço (1940[1938]), póstumo. Freud, além do mais, foi um excelente escritor,
claro e preciso, como o são os gênios da cultura alemã. Não acho que alguém
precise ir além de Freud, realizar um trabalho metalinguístico de Freud. Mas
penso que é indispensável continuá-lo e deploro o expurgo de alguns geniais
continuadores que apresentaram novas visões, algumas críticas e importantes,
mas que não foram ortodoxas.
Mas como falar em ortodoxia na psicanálise? Se o próprio Freud até o final
realizava esforços hercúleos para autossuperar-se e tornar-se ainda mais claro
é porque ele próprio desconfiava que deveria ser continuado e que ele tinha
consciência de que havia chegado às portas de um novo conhecimento, divisado
sua imensidão, contemplado, como Moisés o fez do alto do monte Nebo, a terra
prometida do autoconhecimento, máxima realização humana por isso proposto
no pórtico de templo de Delfos – e deixado aos discípulos a missão de conquistar
essa terra e que nos dará novo fôlego para conquista de nossa humanidade.
Não há psicanálise, nem ortodoxa, nem freudiana, nem kleiniana, nem
lacaniana, nem winnicottiana, nem kohutiana, nem bioniana, e nem outras
tantas denominadas existenciais, culturalistas, jungueanas e quantas seitas que se
dispersaram e confundiram-se em pequenas paróquias esquecendo-se da missão
essencial do Gnothi Seauton, legado pelo conhecimento da psicodinâmica criada
por Freud. Há psicanálise, sim, e persiste como método de investigação desse
fantástico (literalmente) software, instrumento por excelência da humanização,
que é a vida mental.
É necessário obviamente conhecer a obra toda de Freud, seus principais
comentadores, suas biografias e, sobretudo, ter vivido uma autêntica análise
pessoal e praticar psicanálise. Sem isso, corre-se o risco de perder-se em
palavras e conceitos, no esmiuçamento de rodapés e textos secretos, enfim, na
arqueologia do saber, numa metapsicanálise, quando o que precisamos saber
está bem exposto, em linguagem clara que mereceu o prêmio Goethe. Freud não
precisa de seguidores; precisa de continuadores.
Em razão disso, a bibliografia deste texto é apenas referencial, não exaustiva,
embora utilize algumas quantas citações específicas. Não vou servir-me da
20 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Abram Josek Eksterman
autoridade de nenhum autor, nem mesmo da de Freud, para corroborar
minhas afirmações. O que direi é produto da reflexão de um estudante e de
um psicanalista. E, confesso, de alguém que se dedica a continuar a pesquisa
que Freud começou. Se puder comover pelo menos um de meus ouvintes, me
sentirei recompensado pelo esforço.
Sucessivamente, vamos examinar os dez equívocos.
1 A busca pelo inconsciente ao invés de como se forma a consciência
Se pudermos deter-nos em um trabalho pouco estudado de Freud sobre
Afasias (1891) poderíamos encontrar ali o germe da psicanálise na concepção
de afasia funcional. Afirmava ele que algo deixa de ser consciente se perde a
conexão com a representação de palavra (wortvorstellung). Daí emergiu a ideia de
repressão – cisão da representação de coisa com a representação de palavra –
necessária para manter uma experiência fora da consciência e em consequência,
a concepção do inconsciente, fundamento da própria psicanálise. Mas, a parte
essencial não foi bem destacada: o fato de que isso se dá só porque a relação
desse conteúdo mental com outras pessoas produziria sofrimento no sujeito
em estudo. Defesa e inconsciência são resultados, portanto, de um processo de
interação; está no âmago mesmo da relação do sujeito com o outro.
Desde esse momento, fica evidente que Freud está estudando a interação
humana e não o que se passa no cérebro, fato que ele próprio nem sempre se deu
conta, ou porque pensava como neurologista, ou porque temia afastar-se demais
dos cânones científicos da época. Se ousasse essa ultrapassagem, poderia passar
para a posteridade não como um cientista que investiga fenômenos naturais, mas
como um filósofo que especula a natureza do encontro humano, a exemplo do
que fez seu mestre em filosofia Brentano ou seu contemporâneo Nietzsche. Sem
falar, obviamente, na noção circulante contida nos três volumes de Hartmann
(1869) sobre o inconsciente, com sua noção de inconsciente relativo, matriz da
consciência psicológica.
Que é afinal o inconsciente, base de toda metapsicologia de Freud?
Depreende-se de seus escritos que inconsciente é a sensopercepção que
ainda não adquiriu significado. Neste sentido, o inconsciente é um fenômeno
da psicologia unipessoal, está estritamente relacionado com os fenômenos
neurofisiológicos, contido nos métodos científico-naturais e compreendido
dentro de relações causais. É um estado no qual os conteúdos sensoperceptivos
ainda não receberam wortvorstellung e permaneceram como Dingwortvorstellung. Por
que dar ao inconsciente palavras? Para produzir consciência. E com isso ego.
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 21
Dez equívocos teóricos na obra de Freud
E com ego, relações. E com relações, espaço de interação social e, portanto,
cultura, estudo comprometido não mais como as ciências que estudam cadeias
causais, mas com sistemas que estudam significados.
É compreensível que Freud tenha insistido em afirmar a existência do
inconsciente através da exposição de seus conteúdos e escassamente através
dos processos que se desenvolvem para tornar esses conteúdos elementos
da consciência. Foi justamente aí que Popper (1959) pôde desenvolver sua
crítica à psicanálise. Na realidade, só podemos afirmar a psicanálise nos
processos que geram consciência ou, mais especificamente, nos processos
que geram ego, de cuja organização dependerá o vínculo necessário com a realidade para dissipar os conflitos neuróticos, promover a organização harmônica
com a realidade ensejando estruturas adaptativas eficazes, e a participação
na vida social e organização mental, além da construção de um destino individual.
A ênfase na necessidade de afirmar a existência do inconsciente levou a prática
psicanalítica a dar prioridade à pesquisa de seus conteúdos ao invés de utilizar
esses conteúdos no esforço clínico de construir um ego saudável e estabelecer os
limites clínicos operacionais, da investigação do inconsciente, cuja investigação
indiscriminada pode liberar forças instintivas de alto poder destrutivo sobre as
estruturas simbólicas e sociais que asseguram o funcionamento saudável do ego.
Podemos perceber que, recuperando-se o objeto terapêutico da psicanálise, qual
seja, o de construir e adequar ego, podemos fazer confluir estudos que foram
banidos da chamada psicanálise ortodoxa, como os da escola culturalista (muito
consentânea com os estudos do cognitivismo atual) e outros estudos vistos com
reservas, como os da psicologia do self.
2 A patologia decorrente de mecanismos de defesa ao invés da função
protetora desses mecanismos relativamente ao ego
Freud, na abertura de seu trabalho metapsicológico sobre o inconsciente,
enfatiza: “We have learnt from psychoanalysis that the essence of the process of
repression lies, not to putting an end to, in annihilating, but in protecting it from
becoming conscious” (1915, p. 166). Desde os primórdios de seus trabalhos até
seu último escrito (Outline), este é o conceito teórico paradigmático da teoria e da
técnica psicanalítica. A prevenção assim realizada é a custa do que ele denominou
mecanismo de defesa, cujo principal mecanismo e primariamente descrito foi o
da repressão, ampliado sucessivamente e sistematizado em 1930 por sua filha
Anna.
22 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Abram Josek Eksterman
Foram descritos um pouco mais de vinte tipos de defesas contra
determinados conteúdos mentais que poderiam tornar-se agentes de sofrimento
se experimentados em nível consciente. Esses conteúdos mentais devem estar
sempre associados a sentimentos. Sentimentos, como sabemos, são estados
afetivos que se tornam conscientes na interação humana e modelam condutas
consequentes entre as pessoas envolvidas.
Ficamos sabendo assim que a percepção de estruturas simbólicas de natureza
afetiva tem a capacidade de gerar sofrimento e que a organização mental, a
exemplo da organização biológica, tem a capacidade de proteger-se com barreiras
simbólicas, que, por sua vez, protegem a vida mental de experiências lesivas. Toda
a ideia metapsicológica de dinâmica mental provém dessa descrição metafórica
de forças oponentes, ora gerando conflito, ora inconsciência, ora sintomas, ora
qualquer tipo de combinação entre eles, ou a totalidade em conjunto desses
processos.
Algumas dessas defesas geram tipos de sintomas que se enquadram no que
Freud designou, dentro de suas taxonomias psicodinâmicas, como neurose. A
solução desse sofrimento, portanto, ficou acessível, demolindo-se as defesas,
conhecendo-se as forças em oposição, ampliando-se a capacidade de elaboração
do ego, e substituindo-se os elementos infantis ou anacrônicos do conflito por
atualizações maduras do comportamento. Como uma espécie de download para
atualizar os sistemas operacionais para os novos inputs. Enfim, uma descrição
paralela ao que é realizado pelo sistema biológico relativamente aos mecanismos
de defesa orgânicos, patrocinados basicamente pela imunidade. Neurose seria,
utilizando o símile biológico, uma doença autoimune, e a psicanálise um esquema
terapêutico dessensibilizante, propiciando a integração dos elementos da vida
mental, agastada por conflitos intrapsíquicos.
Da mesma forma como ocorreu o conhece-te a ti mesmo desenfreado em busca
de segredos do inconsciente, a ponto de tecnicamente confundir-se interpretação com revelação e conteúdo latente como a verdade, dissimulada por
mecanismos de defesa, além de gerar a falsa concepção de que a verdade
é sempre uma verdade oculta e que o que se revela ostensivamente é uma
screen memory, também os mecanismos de defesa, assim reconhecidos como
verdades dissimuladoras do sujeito, foram objeto de anatemização sistemática
e que, portanto, deveriam ser objeto prioritário de abolição dentro do processo
psicanalítico. Em parte, por conta de expressões iniciais utilizadas por Freud
como psiconeuroses de defesa.
A consequência da prática de demolir defesas dessa maneira fundamentalista
foi descaracterizar o paciente como um self, uma identidade, e torná-lo vulnerável a
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 23
Dez equívocos teóricos na obra de Freud
uma neoplasia ideatória e a uma atrofia da capacidade de pensar, gerando discípulos
e sectários de uma ideologia que, não conseguindo construir uma identidade, a
emprestaram de seus analistas. Não é por acaso que os americanos chamaram
seus analistas com a expressão cômica e ao mesmo tempo agressiva (como
toda comicidade contém aspectos afetuosos e agressivos) de headshrinker, ou
simplesmente, shrink. Assim produzindo exatamente o oposto que uma análise
bem conduzida deveria produzir.
Parece-me óbvio que a intolerância conceitual, especialmente desenvolvida
após 1910, foi gerada a partir dessa idealização das verdades inconscientes e sua
concomitante demolição de defesas psicológicas. A psicanálise perdeu com isso
a abertura necessária para um debate crítico e a apreciação de uma torrente de
novas ideias que o nascimento da psicodinâmica gerou.
Mecanismos de defesa, é bom reiterar, significam exatamente o que é enunciado.
Defendem. Defendem a integridade de um sistema mental e a intervenção sobre
esses mecanismos só deve realizar-se para sanar vulnerabilidades geradas por
conflitos ou anacronismos promotores de esquemas neuróticos de viver, ou
quando tivermos à mão esquemas defensivos melhores. Sem essa observância
não vejo como esse notável instrumento terapêutico e de pesquisa que é a
psicanálise não gere, ela própria, outras patologias psíquicas, somáticas ou
sociais, tornando-se um importante agente morbígeno.
3 Psicologia unipessoal (levando à neuropsicologia) ao invés de
psicologia diádica, ou psicologia da relação
Aparentemente, este tópico não poderia estar no rol dos equívocos atribuíveis
a Freud, pois esta discussão ultrapassa de muito os temas por ele abordados.
As ansiedades de separação que deram origem à concepção diádica foram
publicadas por Bowlby a partir de 1957, no documento da WHO e o 1o volume
do livro Attachment and loss, em 1969. Mas deixando de lado questões semânticas,
percebemos desde o início das publicações de Freud que quando menciona o
desvelo com que Charcot se dedica à dissecção da nosografia de seus pacientes histéricos,
o que de fato queria nos fazer entender como nosografia? Nada menos que a biografia,
da mesma forma como podem ser consideradas as minúcias dissecadas nos
sintomas de Anna O. por Breuer. O que de fato é ressaltado não é o sintoma,
mas a história do sintoma e, portanto, a história do paciente. Método que Freud,
a partir daí, adota e perpassa em todos seus estudos de histéricos. Ao dizer que os
histéricos sofrem de reminiscências, o que fica evidente é que os histéricos contam
biografias patogênicas, cuja rememoração os leva a sofrimentos insuportáveis, daí
a necessidade de excluir essas experiências da consciência. O procedimento de
24 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Abram Josek Eksterman
limpeza da chaminé, utilizada por Breuer, através do método hipnótico nada mais
é do que uma tentativa de elaboração da experiência emocional traumática através
do vínculo emocional com o terapeuta, vínculo que Breuer não suportou e que
Freud pôde reconhecer e utilizar chamando-o, no caso Dora, de transferência.
Por que dissecção do sintoma e não dissecção biográfica? Porque biografia
levaria, na época, ao romance, ao contexto moral, como já fora realizado por
Phillippe Pinel, quase cem anos antes. A dissecção do sintoma fazia parte do
contexto científico, do elementarismo causal que daria crédito e méritos hipocráticos
a seu descobridor. Assim procedeu seu mestre Charcot, seu amigo Breuer; assim
recomendaram seus guias científicos Du bois Raymond, Helmholtz e Brücke.
Assim procedeu Freud, deixando para a posteridade o mérito de conceder à
histeria condição médico-terapêutica, embora, toda a psicanálise fundada por
ele seja um estudo historiográfico, ou seja, um estudo crítico da biografia dos
pacientes. Ou como diria em privado Charcot a seu estagiário, o jovem Sigmund
Freud: Sempre há um segredo por baixo da histeria.
Desta forma, o estudo do sintoma histérico tomou o lugar do estudo biográfico
do paciente, e tornou proeminente uma psicologia derivada da neuropatologia
e não uma psicologia derivada das estruturas simbólicas produzidas pela relação
humana. A partir daí, como dizia Perestrello (1945, 1974, 1987), desenharam-se
dois Freuds, um técnico dedicado a nosografias dentro do estrito modelo médico,
e, outro, clínico, que tomou como base a relação médico-paciente, transfigurada
no estudo da transferência e que deu substância a todo procedimento terapêutico.
Para o primeiro, a psicologia unipessoal. Para o segundo, a psicologia da relação
humana, diádica, ou multipessoal.
É interessante observar que todas as formas de psicanálise utilizam com
êxito o segundo modelo, o da relação clínica, com ênfases diferentes em alguns
aspectos dessa mesma relação, inclusive aquelas psicoterapias que excluem o
conhecimento do inconsciente. As divergências surgiram nas concepções
teóricas, nas quais se multiplicaram as psicoterapias, cada qual defendendo seus
respectivos territórios teóricos com a ferocidade de fundamentalistas religiosos.
Dois ingleses, entre muitos outros espalhados pela comunidade internacional,
de maneira diferente, exortaram para algum entendimento: Klauber (1991), que
chamou a atenção para a historicidade do método psicanalítico e Thorner, que
insistia em vermos que aspectos aproximam-nos e com os quais todos nós
podemos concordar. É urgente, portanto, uma reapreciação de nossos modelos
teóricos e que nos debrucemos em maiores reflexões sobre a clínica, realizemos
uma metaclínica, para encontrarmos as bases de uma psicodinâmica geral que
fundamente melhor a prática psicanalítica.
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 25
Dez equívocos teóricos na obra de Freud
4 A repressão compreendida como pressão defensiva ao invés da
função dissociativa entre significante e significado
Repressão e inconsciente são dois conceitos que institucionalizaram a
psicanálise. O inconsciente como fundamento teórico e a repressão como
fundamento clínico. Vale transcrever o conceito de repressão como exposto por
Freud em seu respectivo trabalho metapsicológico:
At some later period, rejection based on judgement (condemnation)
will be found to be a good method to adopt against an instinctual
impulse. Repression is a preliminary stage of condemnation,
something between flight and condemnation. It is a concept which
could not have been formulated before the time of psycho-analytic
studies (1915, p. 146).
Duas dimensões epistemológicas cruzam-se nesse trecho essencial da teoria
de Freud. Um deles trata de um impulso biológico e o outro de uma condenação
moral, psicológica. Poderíamos afirmar que o conhecimento deste cruzamento
poderia iluminar-nos quanto ao lugar preciso em que Descartes buscava sua
conexão entre o res cogitans e o res extensa, o lugar de conexão da alma com o corpo,
que ele, Descartes, localizava na glândula pineal. A pensar pela proximidade
anatômica do eixo hipotálamo-hipofisário, Descartes, no remoto século XVII,
errou por pouco.
Seria, na concepção moderna, o lugar em que a dimensão simbólica, como
concebida por Cassirer (1944), e a dimensão biológica se cruzariam, o lugar
prioritário da pesquisa da neurociência atual (especialmente desde Damásio),
e o lugar da visão psicossomática, necessária à prática médica do século XXI.
Se Descartes errou por pouco, certamente estamos errando por muito quando
tentamos reduzir essa questão essencial mente-corpo, a uma, ou outra dimensão.
Não é difícil entender que o impulso instintivo de Freud é um quase impulso biológico
e a condenação mencionada por ele, é quase uma afirmação psicológica.
A moderna ciência dos computadores pode dar uma resposta mais
aproximada. O quase impulso faz parte de um hardware e a condenação faz parte de
um software. A ação corretiva, ou em termos médicos, os recursos terapêuticos
são completamente diferentes nos dois casos. No primeiro, biológico, usamos
instrumentos e recursos materiais. No segundo, psicológico, usamos programas,
ou seja símbolos, ou seja derivados da interação (relação) humana. Estudos
sobre como fazer interagir esses dois recursos para implementar resultados
terapêuticos mais eficazes ainda são incipientes e padecem de preconceitos
26 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Abram Josek Eksterman
conceituais e grandes interesses institucionais e econômicos que precisam ser
denunciados e eventualmente eliminados.
Obviamente que o termo condenação não foi utilizado como sinônimo de
força física, como algo que se opõe à tensão gerada pelo instinto em favor
de sua realização, ou seja, esgotar-se na satisfação com objetos específicos ou
equivalentes. Como entender que a força psicológica de uma experiência simbólica
pode contrapor-se a uma exigência de mobilização física? Aparentemente, parece
impossível que um ato mental possa desmobilizar um ato material. Isso seria
factível se todos nós pudéssemos matricular-nos na escola de feiticeiros onde
Harry Potter tem cursado como brilhantismo e realizado suas proezas ao lado de
seus companheiros. Sem dúvida, isso soa como mágica: exorcizar forças físicas
e impedir seu fluxo natural. Interromper a sequência de fenômenos naturais
esconjurando seus propósitos. Simplesmente, na expressão de Freud, condenandoos. Lembremo-nos que nós, médicos, apesar de todo conhecimento psicanalítico
desenvolvido no século XX, ainda estamos influenciados por diagnósticos
em que o clínico, diante de exames laboratoriais negativos, afirma ao paciente
que ele não tem nada, é só emocional. Assim, emocional, ainda na visão médica, é
equivalente a não ter nada e, em consequência, recebe a orientação terapêutica
de cure-se por si mesmo de suas mazelas.
Como um abracadabra pode conter um impulso biológico? Respondeu Freud:
tornando-o inconsciente. Em outros termos, perdendo o rumo, dispersando-o na
economia biológica, ora alterando a funcionalidade do sistema biológico, ora
enganando-o com satisfações equivalentes, ora impedindo sua consecução com
rituais dissuasórios e diversificadores, ora encistando-o em condutas sociais de
autoproteção. A necessidade não se extingue jamais, o que ocorre é uma manobra
diversificadora, enganadora. Ou por equivalentes, ou por enganos e ilusões, ou
por proteções institucionalizadas pelo ambiente social.
Freud analisou esse embate entre a biologia e a psicologia, primeiro em um
trabalho mais tímido de 1908 (Moralidade civilizada sexual e a doença nervosa moderna),
depois numa sequência de estudos antropológicos: Totem e Tabu (1913), Malestar na civilização (1930), Futuro de uma Ilusão (1927) e Moisés e a religião monoteísta
(1939). Em todos, não nos deixou alternativa para aspirar o bem-estar senão a
renúncia psicológica e os caminhos da sublimação. Em outros termos, produzir
consciência. Ou melhor ainda: ampliar a capacidade da estrutura simbólica
do ego. Em termos filosóficos, pensando numa ontologia, ampliando a nossa
humanidade.
Não há, portanto, como incluir ideias mecânico-hidráulicas nessa concepção,
equívoco que Freud nos legou tentando traduzir o fenômeno da repressão
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 27
Dez equívocos teóricos na obra de Freud
em metáforas da mecânica física, produzindo traduções como de refoulement
em francês, o que levou filósofos como Marcuse (1955) a propugnar por uma
liberação das forças de contenção social e, equivocadamente, utilizar o conceito
de repressão psicanalítica como um apelo social pela liberação de costumes que
inflamou a juventude da década de 60, virou ao avesso tradições e ajudou a
psicotizar o ambiente social até os dias de hoje, ora em prol da liberação de
drogas, ora em prol da liberação indiscriminada de mensagens e hábitos. Em
grande medida em favor de uma vida em que justamente a consciência está
(psicanaliticamente) reprimida. Paradoxalmente, o grande movimento pela
liberdade tornou-se também o melhor instrumento de repressão, portanto, de
inconsciência. Entendendo-se que só consciência produz liberdade.
5 Pré-genitalidade como conduta sexual ao invés de simbolização da
sexualidade
Ellenberger (1970) em seu alentado estudo sobre A descoberta do inconsciente
assinalou com propriedade que, ao contrário do que se pensava a respeito do
escândalo causado pela publicação dos Três ensaios em 1905, não houve nem
escândalo nem surpresa. A sexualidade infantil já era discutida, assim como
as perversões sexuais, e não havia mais na época uma sociedade vitoriana,
ao contrário, a lubricidade era assunto quotidiano, claro, não com a pletora
pornográfica e a liberação erótica dos dias atuais. Mesmo para a época, o texto
de Freud era bem comportado. Dessa obra, bastante clínica e descritiva, firmouse a ideia de uma evolução da vida sexual em três etapas principais. A primeira
predominantemente autoerótica; a segunda, vinculada a objetos parciais e a
terceira, realizando os objetivos da genitalidade adulta. A primeira e a segunda,
Freud as descreveu como pré-genitais e nelas localizou as perversões, entendidas
como práticas que excluem a relação sexual adulta, designada como genital,
caracteristicamente substituindo a relação adulta, ou pelo autoerotismo, ou por
objetos parciais. Fica claro o objetivo dessa publicação, uma vez que atribuiu aos
desvios sexuais e às vicissitudes de seus impulsos parciais a causa das neuroses,
aliás, de todas as formas conhecidas na época e não apenas da histeria, como
estabeleceu especificamente em 1896.
Sem dúvida, podemos admirar o cuidado clínico com que realizou a obra, e
não é por acaso que passou a ser vista, juntamente com A interpretação dos sonhos
(1900), como um dos dois escritos basilares da psicanálise. Contudo, por que
esse trabalho se revela mais como um texto fenomenológico que comprometido
com a visão psicodinâmica já estabelecida desde o capítulo VII da Interpretação
28 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Abram Josek Eksterman
dos sonhos? Mais uma vez a resposta parece ser bastante evidente. Era a época
de consolidar a concepção etiológica das neuroses e estabelecer a psicanálise
como fator terapêutico específico para essa classe de enfermidade. Psicanálise,
naquele período, era um procedimento terapêutico a ser justificado no ambiente
científico reconhecido, sem o que poderia ser apreciado como um derivado
do mesmerismo, das curas esotéricas estimuladas pelo desenvolvimento do
espiritismo já bastante popular na época, e das sociedades orientalistas das quais
se procurava guardar grande distância, daí os cuidados na tradução para a língua
inglesa da obra de Freud, tentando utilizar vocábulos de maior consistência no
quotidiano científico, como assinalou, por exemplo, Bettelheim (1983) a propósito
da tradução para o inglês da palavra alemã seele (alma) como mind (mente). Assim
como o cuidado que se teve ao tratar de temas como o da telepatia.
Livres que estamos nos dias atuais de legitimar a prática psicanalítica
de preconceitos epistemológicos e, especialmente, médicos, embora ainda
atravessando numerosas crises institucionais e de credibilidade, podemos
retomar o tema da pré-genitalidade, como exposta por Freud, numa apreciação
psicodinâmica crítica, indo possivelmente um pouco além da mera descrição
fenomenológica.
É plenamente reconhecido que Freud ampliou o conceito de sexualidade
para o de representação psíquica da vida sexual. Aliás, pelo desenvolvimento
de seus trabalhos sobre sexualidade, percebemos nitidamente que ele é mestre
na análise de conteúdos psíquicos e extremamente precário no entendimento
da vida sexual. Em outros termos: hábil na compreensão do conteúdo psíquico
e pobre na compreensão da conduta sexual. Sem dúvida, podemos afirmar que
Freud, a rigor, nunca foi um sexólogo, como entendemos essa especialidade nos
dias atuais. Mesmo não dá para compará-lo nesse aspecto, por exemplo, a um
Havelock Ellis.
O cenário da especulação de Freud sobre sexo era o da vida mental. Assim,
podemos concluir que a etiologia da neurose não considerava a prática sexual,
mas a representação psíquica da sexualidade e que as duas neuroses descritas
em seus trabalhos clínicos inicias, a neurastenia e a neurose atual, baseadas
em especulações sobre energia sexual, traduzidas mais tarde como catexis, são
formulações de uma dinâmica muito mais ampla que deveria incluir maior
complexidade, e que essas exposições originais devem conter muito mais
características metafóricas que descrições realistas de uma etiologia. Muita
polêmica já ocorreu por conta dessas designações, e muita especulação teórica
ainda sobrevive, dando margem a outras tantas consequências teóricas e clínicas,
cuja crítica ultrapassaria o objetivo desta exposição.
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 29
Dez equívocos teóricos na obra de Freud
Se aplicarmos a dinâmica transformadora do processo primário para o
processo secundário de pensar, podemos, acredito, ter uma versão, diria, mais
psicanalítica do que fenomenológica, como está nos Três ensaios. Autoerotismo,
no cenário mental, confunde-se com o que descreveu mais tarde como
narcisismo, onde o que se leva em conta não é o estímulo, mas a existência
(ou não) de objeto do impulso. O objeto do narcisismo é o próprio sujeito,
daí os estados mentais autistas e psicóticos graves, nos quais predominam a
exclusão do objeto, substituídos por objetos-fantasmas ou fantasias. O quadro
polimorfoperverso da infância constitui um avanço do processo primário
em busca da realidade sensoperceptual. Os elementos da sensopercepção da
realidade começam progressivamente a constituir-se como uma realidade e seus
componentes jogam com o sujeito num cenário que Winnicott (1958) poderia
designar como de brinquedo. A sexualidade parcial são jogos com objetos
parciais.
Na sexualidade adulta tem-se consciência do objeto e o outro passa a existir.
Tal progressão lembra a grade exposta por Bion (1963) em seus elementos de
pensar e como se produz a consciência da realidade, dependendo dos recursos
estruturados e formadores do ego, em termos atuais, com sistemas mentais
(sofwares) capazes de interagir com a realidade. O balanço entre processo
primário e secundário é que permite a consecução de uma sexualidade do feitio
genital que antes de estar comprometida com os imperativos do genoma, ao
estilo de Schopenhauer, está comprometida com a relação consciente com outra
pessoa. Isso, no meu entender, seria a sexualidade madura, capaz de produzir
a experiência afetiva que costumamos chamar de amor. Longe, portanto,
estamos de um processo evolutivo, da pré-genitalidade para a genitalidade, mas
antes, de um processo transformador dos elementos mentais da sexualidade,
ora impregnados por elementos do processo primário, ora por elementos da
sensopercepção comprometidos com a realidade e mediados pelo processo
secundário.
Desta forma, as chamadas patologias do comportamento sexual cedem espaço
para uma compreensão psicodinâmica dependente do balanço entre fantasia e
realidade e as chamadas perversões teriam mais a ver com a institucionalização
de comportamentos para evitar a irrupção maciça de processo primário e
subsequente destruição maior ou menor da estrutura do ego, produzindo em
consequência um surto psicótico. Tal formulação ficou muito nítida nos textos
de Freud especialmente no caso Schreber. Assim, o estudo da patologia deslocase do comportamento para a dinâmica mental e possivelmente podemos extrair
disso não terapêuticas reformuladoras de condutas, mas recursos psicológicos
30 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Abram Josek Eksterman
para estimular e implementar novas transformações psíquicas, que é, no meu
entender, a essência da intervenção psicanalítica.
6 Ênfase no comportamento saudável ao invés da organização
saudável de significados (levando a um ego saudável)
Freud inicia seu fundamental trabalho Análise terminável e interminável (1937)
com uma advertência do tipo que deveria ser óbvio para todo psicanalista:
“Experience has taught us that psycho-analytic therapy – the freeing of someone
from his neurotic symptoms, inhibitions and abnormalities of character – is
a time-consuming business” (p. 216). É uma observação nitidamente de estilo
médico a respeito do objetivo da terapêutica, qual seja o de restabelecer um
estado considerado saudável, perturbado pela irrupção de anormalidades da vida
mental. Não há nenhuma novidade nisso: toda a obra de Freud trata a clínica
psicanalítica como uma empreitada de cura. Contudo, curiosamente, a palavra
cura está ausente em toda a sua obra. Mesmo no original em alemão, a palavra
da frase citada é Befreiung3 (libertar). Vale lembrar que a conceituação de Freud
de psicanálise era a de um método de investigação, uma teoria e uma prática
terapêutica da vida mental4.
Por que, em uma época de tão acirrada polêmica quanto ao método
psicanalítico, Freud não utilizava a palavra cura ao referir-se à terapêutica? Mais
uma vez, é verdade, em sua autobiografia que desde cedo não tinha vocação para
médico. Ele próprio estava, desde sua autoanálise, como Alice no mundo do
espelho, preso na investigação do imaginário, do sonho, da fantasia, dessa massa
mitológica e mitopoética que é nossa vida mental profunda.
De fato, sua capacidade especulativa é assombrosa. E efetivamente eletrizou a
elite intelectual que o leu e acompanhou, mesmo seus detratores. E produziu, ao
longo de todo século XX, um frêmito de fascínio equivalente ao que produzem
as modernas bandas de música popular. Mesmo hoje, se aparecesse já velhinho,
magro e pequeno, com seus trajes formais, como aparece nas fotografias e com
seu indefectível charuto num palco armado em um parque capaz de abrigar
Erfahrung hat uns gelehrt die psychoanalytische Therapie, die Befreiung eines Menschen von
seinen neurotischen Symptomen, Hemmungen und Charakterabnormitäten, is eine langwierige Arbeit.
4
No artigo para a Enciclopédia Britânica, assinala: “He [Freud] invented the term psychoanalysis, which in the course of time came to have two meanings: (1) a particular method of
treating nervous disorders and (2) the science of unconscious mental processes, which has
also been appropriately described as ‘depth-psychology’” (1926[1925], p. 264).
3
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 31
Dez equívocos teóricos na obra de Freud
um milhão de pessoas, certamente os lugares para vê-lo seriam disputados no
câmbio-negro. É sem dúvida o ícone inconteste do século XX, assim como o foi
Napoleão no século anterior. Tornou-se o desbravador desse mundo fantástico
que é a fantasia humana e percebeu nessas fantasias a origem da patogenia
psicológica. E decidiu, como diria Ricoeur (1965), desilusionar esse ser sofrido
que é o homem de sua autointoxicação pelo imaginário.
Certo ou não, parece-me essa a razão porque, tentando ter uma linguagem
médica, científica, resvalava para a linguagem poética e, tentando ser um
historiador, era preponderantemente um dramaturgo. Criticá-lo por isso é tentar
destituir a psicanálise de seus méritos, é tentar extinguir uma cultura inteira que
se erigiu sobre milhares de trabalhos de observação de seus seguidores sobre a
natureza e comportamento humanos, imitando Scipião ao conclamar os romanos
para destruir Cartago. Delenda psicanálise, poderiam clamar hoje os adeptos de
uma nova ciência baseada na neurofisiologia (afinal, nada nova). Ao contrário,
mais uma vez parece-me a hora de reunirmos as vozes discordantes, os xiitas de
todos as facções psicanalíticas e psicológicas (se isso for possível) e conclamá-los
a unirem-se para entenderem a natureza da vida mental, que era a permanente
ansiedade de Freud.
Teve êxito em sua empreitada terapêutica? Foi efetivamente um curador?
Ao que consta, teve muitos fracassos e os casos que expôs, desde sua adesão
às conclusões otimistas de Breuer sobre a cura realizada em Anna O. e os
subsequentes casos relatados nos Estudos sobre histeria (1893-1895), na apreciação
crítica de Mikkel Borch-Jacobsen em trabalho (Lê médecin imaginaire), incluído
na alentada obra organizada por Catherine Meyer que, provavelmente inspirada
em George Lucas e no seu personagem Darth Vader, a entitulou Lê livre noir de
la psychanalyse, também o foram, assim como o caso do Homem dos lobos (Sergei
Pankelejeff).
J. Allan Hobson, professor de psiquiatria em Harvard, em publicação de
1987 sob o título Psychoanalysis on the couch assinala tal paradoxo e sugere sérias
revisões em suas posturas. Tais críticas sempre me foram úteis para aprimorar
meu trabalho clínico, considerando que sendo menos um pesquisador que um
terapeuta, percebi que Freud era mais um pesquisador que um terapeuta. Bem
mais. E creio que nisso cometeu seu maior equívoco, quando fascinado por
sua pesquisa, precisava provar suas linhas teóricas, e o fez de maneira denodada
ao longo de toda a sua vida. Está fora de questão, como falam seus detratores,
que era um mentiroso, mas apenas alguém mobilizado pela importância de
suas próprias descobertas e escotomizado por elas. Percebi, como professor de
psicanálise em meu Instituto de Formação, do qual cheguei a ser diretor, que o
32 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Abram Josek Eksterman
didata insistia em induzir seu aluno para sua forma de pensar, bem como o aluno
maquiava seus relatórios para o julgamento da Comissão de Ensino. Não creio
que esse tipo de disfarce seja um fenômeno local, mas tem sua origem nesse
modelo herdado do fundador da psicanálise, de precisar provar o afirmado. São
inúmeras as críticas a essa condução perversa de material científico e todas elas
recebem, nesse sentido, meu integral apoio.
Por outro lado, creio que Freud tateava entre uma explicação causal e uma
formulação hermenêutica, que produziu duas linhas de pensamento psicanalítico,
aparentemente antagônicas, uma adotando os princípios estruturais inspirados
em O ego e o id (1923) e outra no modelo topográfico e no princípio da causalidade,
segundo o qual o inconsciente causa os sintomas da patologia mental. Não creio
que Freud, com os recursos da época, poderia formular o problema de maneira
diferente. A reflexão em torno de ciências naturais e do espírito estava começando
no debate epistemológico da filosofia. Mas é incrível que ele próprio tenha
aberto o caminho, sem disso se aperceber, dividindo-se em dois Freuds. Seria
possível atribuir a um conceito imaterial como inconsciente a materialidade de
fonte causal? A solução é conquistada conceitualmente com a teoria de sistemas
e com a teoria posterior do caos que procuram entender complexidades. Por
enquanto, dentro das perspectivas e recursos mais atuais, é possível se pensar o
seguinte, como ações terapêuticas integradas:
a)para os transtornos nos quais se observam vínculos causais, a ação
terapêutica seria mais neurobiológica que psicológica, com exceção para
a dinâmica da histeria, na qual a psicanálise é o instrumento de eleição;
b)para os transtornos de vínculo humano, manifestamente nas relações
interpessoais, a ação terapêutica deveria dar prioridade aos conhecimen
tos psicanalíticos;
c)para os transtornos de natureza simbólica, unipessoal, a intervenção
poderia ser beneficiada pela interpretação psicanalítica e por elementos
do cognitivismo, salvo aquelas alterações nitidamente psicóticas,
marcadamente causadas por distúrbios neurofisiológicos.
E para concluir esse item, algumas observações relativas a comportamento,
cuja natureza é um estudo específico da psicologia geral, da qual justamente
Freud pretendia distanciar a psicanálise. Pergunta-se Freud quando uma análise
pode ser dada como concluída. Responde:
Just [when] the patient shall no longer be suffering from his
symptoms and shall have overcome his anxieties and his inhibitions;
and secondly [when] the analyst shall judge that so much repressed
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 33
Dez equívocos teóricos na obra de Freud
material has been made conscious, so much internal resistance
conquered, that there is no need to fear a repetition of the
pathological processes concerned (1937, p. 219).
Assim entendemos que a ênfase sutilmente recai sobre os resultados no
comportamento e não na avaliação das conquistas sobre a estruturação do ego
e na sua competência em lidar com os desafios da vida sobre as quais pouco
ficamos sabendo. Creio que isso levou muitos bons analistas a confundirem
sucessos sociais, pecuniários, acadêmicos, sexuais como indicadores de êxitos
terapêuticos, diante dos quais um psicanalista de minhas relações comentou:
apenas behaviorismo disfarçado.
7 Ênfase na normalização ao invés de geração de consciência
Existe realmente algo que podemos estabelecer como normal em termos de
vida psicológica? É verdade que com algumas hesitações conseguimos discriminar
distúrbios e sofrimentos. Mas o normal seria o equivalente a não haver distúrbios
ou sofrimentos? Realmente sabemos o que é um ego normal? Em O ego e o
id (1923) esse tema é descurado. No trabalho sobre A realidade na neurose e na
psicose (1924), Freud assinala que: “We call behavior ‘normal’ or helalthy’, if it
combines certain features of both reaction – if it disavows the reality as little
as does a neurosis, but if it then exerts itself, as does a psychosis, to effect an
alteration of that reality” (p. 185). É digno de nota que nesse trecho põe entre
aspas as palavras normal e saudável, enfatizando o relativismo de seus significados
e seu compromisso com o que ocorre na dinâmica da neurose e da psicose.
Efetivamente ficamos sem saber o que é um ego normal, mas entendemos,
justamente em Freud, que uma das funções do ego é estabelecer a partir de uma
administração das relações entre as fantasias instintivas do id e as demandas
da realidade sensoperceptual e da realidade cultural um funcionamento normal
da vida psíquica. A rigor não existe um ego normal, mas uma capacidade de
viver normalmente. O que se revela ao terapeuta não é um ego doente, mas seu
funcionamento precário.
Isso antecipa a análise posteriormente realizada por Hartman em uma
comunicação de 1950 (Comments on the psychoanalytic theory of the ego), incluída em
seus Essays on ego psychology (1964). Em Freud não conseguimos apurar o que
vem a ser uma pessoa normal e um aparelho psíquico saudável, embora todo
procedimento psicanalítico convirja para o restabelecimento de uma normalidade
que não está definida. Contudo, fica-se sabendo como se formam sintomas
34 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Abram Josek Eksterman
neuróticos e esse é o tema central de toda a teoria em Freud. Poderíamos quase
dizer que sua obra é uma vasta exposição da patogenia da neurose, do sofrimento
neurótico, individual, coletivo, antropológico. Ninguém melhor do que Freud
nos fez entender a natureza do conflito psíquico e, certamente, ninguém antes
dele conseguiu pensá-lo, salvo a literatura. Só isso justificaria a reputação e a
reverência que o mundo científico lhe consagra bem como daqueles que se
dedicam ao estudo da vida mental. Mas, salvo esboços, praticamente pouco
sabemos, através dele, como concebia a normalidade para a qual destinava todo
o esforço psicanalítico. Como se essa normalidade fosse um axioma para todos,
assim como a sólida estrutura burguesa do final do século XIX, como acentuou
Ellenberger (1970). Talvez essa seja a razão porque ficou o mito de que todos
somos neuróticos, ou todos doentes, ou todos necessitados de uma psicanálise.
E que, portanto, qualquer pessoa que procure ajuda de um psicanalista deva
ser submetido à análise, uma vez que ela só traria benefícios, propiciando uma
ampliação do autoconhecimento e das capacidades adaptativas do ego. Deixa-se,
assim, de se considerar duas providências indispensáveis da clínica: o diagnóstico
para justificar a indicação de um procedimento terapêutico e a análise teórica das
indicações terapêuticas na pressuposição que a intervenção psicanalítica só pode
ser benéfica, o que a experiência mostra que é falso.
O caminho para a idealização da intervenção psicanalítica estava aberto e
justificado, embora falaciosamente, assim como sua progressiva transformação
em um bem de consumo social, eventualmente elegante e promotor de uma classe
de analisandos que avocavam a si privilégios de mentores, ou de seres especiais
capazes de compreender os segredos esotéricos, profundos, da natureza humana.
O que obviamente facilitou também o progressivo descrédito da psicanálise e
de se suas aplicações. Fazer análise com tal ou qual analista era ostentado como
um elevado bem curricular que garantia ascensão intelectual e benefícios sociais,
notadamente entre as décadas de 70 e 80 do século passado. Naturalmente para
a satisfação dos detratores da psicanálise e do desespero daqueles que conheciam
suas notáveis conquistas e igualmente suas limitações.
Bastaria o alerta de que a psicanálise não produz necessariamente normalidade,
mas consciência. E consciência não é a solução para a normalidade, mas o
instrumento para organizar a estrutura simbólica do ego, fazê-lo funcionar
de forma adequada para administrar os desafios da realidade, para estabelecer
vínculos estáveis com pessoas e orientar as demandas biológicas de acordo com
as possibilidades da existência cultural. Fazer psicanálise não é um passaporte
para a saúde, mas a aquisição de um instrumento especial para administrar a vida
humana que é consagrada pelo uso da consciência.
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 35
Dez equívocos teóricos na obra de Freud
Especialmente a intervenção psicanalítica nas doenças somáticas foi
frequentemente desastrosa. De certa maneira os conceitos de conflito
psíquico como promotor de distúrbios funcionais do corpo, bem como de
lesões somáticas (o que estabeleceu a medicina psicossomática no século XX)
promoveu uma avalanche de tentativas psicanalíticas para tratar etiologicamente
doenças físicas, bem como uma profusão de trabalhos alentadores e otimistas a
indicar que se havia descoberto finalmente a panaceia, esta agora cientificamente
fundamentada.
Evidentemente, a análise crítica dessas tentativas mostrou o quanto
de fantasia terapêutica continha, muito embora tenha contribuído para o
extraordinário enriquecimento da compreensão do doente, portador de doenças,
daí se originando estudos de antropologia médica e de psicologia médica. Ainda
não encontramos nem o lugar, nem a pessoa, nem o remédio que nos livre
definitivamente do sofrimento, ou da patologia. A psicanálise não foi a resposta,
mas ainda é um caminho a ser percorrido em busca de novas respostas.
8 Modelo das ciências naturais analisando sintomas ao invés do
modelo cultural, criando um meio para uma análise estrutural da
vida mental
Discutir a psicanálise dentro de um contexto científico é a tarefa que continua
atual e que os grandes nomes, tanto da epistemologia quanto da psicanálise,
ainda não chegaram a nenhum acordo. Há muitas sugestões, mas o problema
da cientificidade da psicanálise continua em aberto. É interessante o comentário
do próprio Freud em uma carta a Jones, depois de uma visita de Einstein, carta
citada por Hartman (1964):
He has had [referindo-se ao Einstein] the support of a long series
of predecessors from Newton onward, while I have had to hack
every step of my way through a tangled jungle alone. No wonder
that my path is not a very broad one and that I have not got far in it.
Enquanto se discute, nós pobres praticantes ficamos sem saber se o que
estamos ouvindo de nossos pacientes é real ou não, se nosso diálogo com eles é
confiável ou não, se os nossos resultados terapêuticos existem ou não, se, enfim,
somos charlatães ou terapeutas confiáveis? Mais de cem anos se passaram e a
comunidade científica ainda não chegou a uma conclusão se nossa prática pode
receber a benção da credibilidade científica.
36 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Abram Josek Eksterman
Creio que a questão é mais séria e tem a ver com a distância com a qual nós
todos, como seres humanos, protegemo-nos de conhecer a nós mesmos. Não
é por acaso que o produto mais utilizado e de maior circulação no mercado
humano é o alienante. Seja esse alienante álcool, drogas, fumo, ilusões, fantasias
ou distratores de uma maneira geral. Vivemos fugindo de nós mesmos e sem o
conhecimento de nós mesmos ficamos estúpidos, realizamos atos estúpidos, e
acreditamos em coisas estúpidas.
O século XX, marcado pelo esforço da psicanálise em conhecer o homem,
foi ao mesmo tempo o século marcado pela maior onda de realizações estúpidas
que o ser humano conseguiu perpetrar. A realização do diálogo faustiano, entre
consciência e estupidez, ou irracionalidade, mostrou-se em toda sua pujança
dialética e os nossos dias são herdeiros desse encontro titânico. A discussão se a
psicanálise é ou não científica parece-me também estúpida, para desviar-nos do
que é essencial. É essencial sabermos quem somos e o que estamos fazendo. A
partir de Freud sabemos que somos basicamente irracionais, utilizando com maior
ou menor frequência os instrumentos racionais penosamente criados por nossa
cultura, mas frequentemente, apesar disso, continuamos a ser irresponsáveis,
predadores, instintivos, impulsivos, narcisistas, egoístas, e, finalmente, estúpidos.
Ao mesmo tempo, percebemos que com um pouco mais de consciência
podemos descobrir a nossa humanidade e descobrir que a humanidade existe.
Assim, a tarefa é diferente. Não é questionar se a psicanálise é científica, mas qual
ciência (se é que existe) pode conferir credibilidade a esse formidável instrumento
de humanização descoberto por Freud. Através da produção de consciência, que
é o objetivo máximo do ato psicanalítico. E com isso nos tornarmos responsáveis,
cultivadores, racionais, altruístas e, finalmente, aprendermos a amar, palavra que
se tornou banal no mercado das ambições, assim como seu corolário imediato:
a ética.
No início do século XX, vários filósofos, entre os quais W. Dilthey ensaiou
uma distinção entre ciências da natureza, ou ciências físicas, e ciências do homem,
ou ciências culturais. Curiosamente a medicina continua situada entre as ciências
da natureza, como um ramo da biologia. Isso criou particularmente para mim,
que me dedico na Universidade à psicologia médica e à antropologia médica, um
problema curioso. O de precisar convencer meus colegas médicos de que o ser
humano não é só um corpo. Que a existência humana é, sobretudo, cultural e
de que cuidar do ser humano é considerar sua dimensão psicossocial, diferente
de psicossomática, que procura estudar principalmente as relações etiológicas da
patogenia mente/corpo, sem o que o doente no ato médico é descaracterizado
como ser humano.
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 37
Dez equívocos teóricos na obra de Freud
Um grupo sueco classificou a psicanálise dentro das chamadas ciências
hermenêutico-dialéticas, como, por exemplo, a história. Parece-me que a tentativa
de unificar todo o conhecimento dentro de uma mesma metodologia seja um
convite à cama de Procusto e ao farisaísmo intelectual.
Freud repudiava farisaísmos intelectuais e acredito que sua aversão por
digressões filosóficas tinha muito a ver com isso. Sem dúvida, era um pensador
e um especulador, mas, ao mesmo tempo, com repulsa pelo esmiuçamento exegético de textos. É raro, por exemplo, vê-lo citar em sua obra, ou se valer da
autoridade dos mentores do pensamento, dos quais, por outro lado, era também
leitor assíduo.
Com isso perdeu a oportunidade de utilizar os recursos dessa nova reflexão
epistemológica, nascente na época, e renunciar a linha científico-natural com
a qual procurou plasmar a teoria psicanalítica. E deixou para nós a tarefa de
desenvolver uma teoria psicanalítica do vínculo humano, ao invés de uma teoria
psicanalítica das relações mente-corpo.
9 Transferência como reedição histórica ao invés do significante
aberto para o significado
A linguagem emocional decifrada por Freud e descrita por ele como
processo primário de pensar, juntamente com a teoria da transferência que
nos permite avançar no entendimento da dinâmica do vínculo humano, são os
eixos fundamentais da prática e da teoria psicanalíticas. Esses, como eu entendo,
são os personagens centrais de uma variada trama de teorias e afirmações,
algumas tentando confluir, outras se dispersando em escolas de pensamento
psicanalítico, umas quantas expurgadas do cânone, e não se sabe quantas outras
estão para nascer e reivindicar seu posto privilegiado de observação na arena
intelectual dessa imensa complexidade que é a mente humana. Na verdade, com
esses dois eixos teóricos poderíamos realizar a aventura de penetrar no âmago
da experiência humana, ao lado de um companheiro de aventuras, qual Virgílio,
e dizer como Dante, logo no 3o canto da Divina Comédia:
Before me nothing was but things eternal,
and I endure eternally.
Abandon all hopes, you who enter here.
These words, dark in hue, I saw inscribed
over an archway. And then I said:
‘Master, for me their meaning is hard.’
And he, as one who understood:
38 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Abram Josek Eksterman
‘Here you must banish all distrust,
here must all cowardice be slain.
‘We have come to where I said
you would see the miserable sinners
who have lost the good of the intellect5.
Setecentos anos antes de Freud, Dante já havia descoberto o caminho, dentro
da maneira de expressar-se da época e que lhe valeu igualmente o ódio de seus
conterrâneos de Florença, condenando-o ao exílio.
Hoje, revendo as afirmações de Freud, podemos ampliar suas afirmações
quanto ao processo primário de pensar, quanto ao que se refere à transferência,
tentando corrigir os postulados, diria discretos, originais, e que produziram na
prática intervenções apenas tímidas na experiência de relações, base como se viu
de toda prática psicoterápica.
O conceito de processo primário de pensar nasceu da tentativa de decifrar
o significado dos sonhos, tarefa equivalente, senão de muito maior relevância,
ao que Champollion realizou com a pedra de Rosetta, oitenta anos antes. Ainda
hoje estamos impactados com esta descoberta de Freud: a descoberta de nossa
intimidade emocional. Obviamente não foram os segredos da sexualidade
infantil que escandalizaram a comunidade já um tanto lasciva do início do século
XX, mas esse terrível instrumento de pôr a descoberto a hipocrisia, a mentira, o
disfarce, a traição, a bestialidade, e todo o horror de impulsos indignos, pondo
por terra as fantasias de autoidealização e, especialmente, de magnificação da
natureza moral do ser humano, denunciando suas limitações, suas canalhices,
suas baixezas, embora, ao mesmo tempo, destacando sua luta de autosuperação,
seus conflitos morais, sua grandeza criativa, sua busca por consciência, por
aperfeiçoamento moral, por aprimoramento na arte extremamente difícil de
viver uma vida humana. A rigor, Freud reencenou a viagem realizada por Dante,
mostrando que a grandeza só pode ser obtida se a iniciarmos passando pelos
rios Cocito, Aqueronte e Lethe e penetrando fundo no Inferno.
Os sonhos, diz Freud, são formas de pensar os desejos pela imagística do
processo primário. São formas pré-racionais de reclamar realizações, através
de fantasias, ilusões, alucinações, que se expressam na vida consciente como
“Dinanzi a me non fuor cose create / se non etterne, e io etterno duro / Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate / Queste parole di colore oscuro / vid’ io scritte al sommo d’una porta / per
ch’io: “Maestro, il senso lor m’è duro.”/ Ed elli a me, come persona accorta: / “Qui si convien
lasciare ogne sospetto; / ogne viltà convien che qui sia morta. / Noi siam venuti al loco ov’ i’
t’ho detto / che tu vedrai le genti dolorose / c’hanno perduto il ben de l’intelletto”.
5
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 39
Dez equívocos teóricos na obra de Freud
lendas, mitos, ficções, que desde tempos pré-históricos são impressos em
produtos culturais. É o homem recriando a si mesmo, já desprovido de seu
habitat natural, seu paraíso terreno, e obrigado a vestir-se de fantasias e símbolos
para sobreviver.
Desejos são a energia de vínculo e só são compreendidos na experiência de
vínculo. Freud, comprometido com as ciências naturais, qualificou um dos pólos
do desejo como sujeito e o outro como objeto. Aparentemente simples, mas
equivocado. O outro pólo também é um sujeito e ambos formam uma estrutura
interdependente, na verdade um sistema diádico que funciona ele próprio como
nova unidade em novas relações interdependentes. A estrutura diádica não é
mantida já pelo desejo original, mas por organizações simbólicas, capazes de dar
sentido àquela nova unidade. É aí que se forma a consciência, na inter-relação
humana, mercê da trama simbólica que mantém essa unidade. A trama simbólica
é virtual, é o próprio software que compatibiliza os elementos em relação.
Nesse sentido, transferência não é um item de recuperação de memória,
mas representa a emergência de elementos da experiência, precariamente
simbolizados, para a experiência consciente e apresentados em um novo vínculo
para receberem elementos capazes de traduzi-los e convertê-los em partes da
trama simbólica atual. Não é o passado se recriando no presente, causando-o,
mas o passado se insinuando no presente para ser atualizado, elaborado em uma
nova relação. O fenômeno transferencial é o âmago da elaboração psicanalítica
porque ela retira a experiência simbólica do espaço emocional, sendo então
capaz de impelir essa experiência emocional para a consciência através de
uma reencenação do passado na realidade, transformando esses elementos em
conteúdos conscientes capazes de serem elaborados psiquicamente. Como um
significante que adquire significado.
Se pudermos realizar essa tarefa de converter essas urgências mal elaboradas
do passado em conteúdos psíquicos conscientes dentro de um laboratório
terapêutico, creio que teremos realizado nossa tarefa psicanalítica, claro que em
um meio adequado para que esse laboratório terapêutico funcione.
10 Ênfase nas experiências biológicas ao invés das experiências
existenciais
Ao completar 70 anos, Freud escreve a Romain Rolland:
Unforgettable one! By what troubles and sufferings must you have
fought your way up to such a height of humanity as yours! Long
40 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Abram Josek Eksterman
years before I saw you, I had honoured you as an artist, as an
apostle of the love of mankind. I was myself a disciple of the
love of mankind, not from sentimental motives or in pursuit of
an ideal, but for sober, economic reasons, because, our inborn
instincts and the world around us being what they are, I could not
but regard that love is less essential for the survival of the human
race than such things as technology. And when at last I came to
know you personally, I was surprised to find that you can value
strenght and energy so highly and you yourself embody such force
of will. May the next decade bring you nothing but fulfillment
(1927-1931, p. 279).
Que notável contraste entre o conteúdo deste bilhete a um dos expoentes
do humanismo literário do século XX, com os textos habituais de Freud,
enxugados aparentemente de qualquer expressão afetiva, claros, concisos,
mesmo sem serem secos, às vezes contraditórios, mas bem germânicos e contidos, onde não dá para esperar nenhum ponto de exclamação. Aparentemente seu entusiasmo fica oculto pela descrição minuciosa além de
uma exaustiva análise de conteúdo perpassada por um dissecação teórica,
sem qualquer arrebatamento, como convinha a um expositor de ciências naturais.
Não dá para aceitar um viajante caminhando pelos escuros recônditos
da alma, contido e fleumático como um turista britânico educado, como foi
Freud desbravando a intimidade emocional do ser humano e ainda por cima
recomendando neutralidade na interação clínica, como se isso fosse possível.
Nunca acreditei que uma interação humana autêntica (e a interação psicanalítica
para sê-lo só pode ser autentica) pudesse ser neutra. Para Freud, pelo que
depreendemos de sua atitude ao longo de sua vida, a posição diante do paciente
não devia ser neutra, tinha que ser neutra como uma disciplina monástica
para evitar perigosos envolvimentos, produzindo uma lei seca afetiva na prática
psicanalítica, com resultados eventualmente desastrosos como podemos inferir
das cifras divulgadas de envolvimentos sexuais e perversos entre terapeuta e
paciente.
Criou-se para esse envolvimento a expressão contratransferência, impedindose em grande medida, com esse rótulo limitante, de compreenderem-se as
sutilezas da intimidade real da psicodinâmica diádica. É interessante assinalar
que aos transgressores dessa lei seca afetiva só restou impor disciplina rígida no
melhor estilo medieval, ao invés de um estudo aprofundado da trama afetiva que
ocorre na interação terapêutica.
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 41
Dez equívocos teóricos na obra de Freud
Nesse trecho a Romain Rolland revela-se o Freud amante da humanidade,
projetado sobre o grande escritor, da mesma forma como fez sobre Pfister, sobre
Schnitzler e, sobretudo, sobre Thomas Mann. Assim como, num momento de
desespero, o macambúzio e contraído Beethoven se revelou como um grande
amante da humanidade no testamento desesperado de Heiligenstadt.
Será que o amor à humanidade não é um tema merecedor de atenção científica?
Será que o tema mais importante e sagrado de nossa condição humana só pode
ser tratado pela arte, seja pela poesia, pela ficção literária, pela pintura e escultura,
pela música, enfim, através das Musas? Será que o Gnothi Seauton terá que ficar
mesmo fora de conhecimento e tornar-se habitante exclusivo dos domínios da
crença? Freud iniciou essa empresa heróica de maneira sistemática. Cumpre-nos,
como seus discípulos, continuá-lo e saber que ele apenas balbuciou as primeiras
fases desse longo estudo. Como diz Virgílio a Dante: Ogni viltà convien que sia morta
(que toda covardia seja morta).
Numa viagem circunstancial, passando de carro pela Borgonha, vi uma
placa numa estrada secundária com o aviso que estava entrando em Clamecy,
e logo abaixo, cidade natal de Romain Rolland. A emoção foi tal que parei o carro
no acostamento tomado de intensa emoção, como se estivesse entrando num
santuário. E pode ser diferente ao nos reencontrarmos com aqueles expoentes
que marcaram as diretrizes de nossas vidas, impregnaram-nas com os seus ideais
e a elas deram sentido?
Quando Romain Rolland completava 70 anos, Freud homenageou o amigo
com uma carta que ao mesmo tempo é um precioso trabalho que ele intitulou:
Um distúrbio de memória na acrópole. Conta-nos que realizando uma viagem
de férias a Corfu com o irmão mais novo (curiosamente da mesma idade
de Romain Rolland) foi persuadido por um conhecido em Trieste, etapa da
viagem, a aproveitar os dias de férias para ir a Athenas, programa que certamente
os agradaria mais. Após muita relutância resolveram aceitar a sugestão e
embarcaram para a Grécia. Na Acrópole, Freud nos conta que exclamou
(exclamação rara em seus textos): “So all this really does exist, just as we
learned at school!” (1936, p. 241). A continuação desse trabalho desenvolve um
incrível raciocínio sobre essa frase, mostrando o quanto a realidade é importante
sobre o que aparentemente já registramos como conhecimento intelectual. Saber
é viver. Como diria Korzybski (1958): “Mapa não é território”. Athenas existe,
eu existo, o outro existe. A enormidade desta experiência avassalou Freud como
avassala cada um de nós quando vive a realidade da experiência, experiência que
temos chamado de insight. Em termos psicanalíticos, a realidade do encontro
humano.
42 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Abram Josek Eksterman
O ser humano, na experiência psicanalítica, certamente não é o objeto
biológico de estudo de um médico, que examina, faz diagnóstico, trata e pretende
curar. O ser humano, sobretudo na relação psicanalítica, é uma experiência
existencial, exclusiva entre seres dotados de consciência. Esta é a característica
da experiência psicanalítica, ressuscitando a cena da experiência diádica do mito
da Gênese bíblica, no primeiro encontro humano depois do casal original provar
o fruto da árvore do conhecimento.
A relação psicanalítica é precisamente uma relação transformadora da
objetividade biológica para subjetividade humana. Se encontrarmos o método
apropriado, acredito que seja possível submeter essa subjetividade ao rigor
científico e conferir credibilidade a nossos atos terapêuticos regulares. Esse
é o desafio que permanece, desde A interpretação dos sonhos. Vários eminentes
autores tentaram esta difícil travessia do biológico ao existencial, lembrando
Ludwig Binswanger, Meddard Boss, Viktor Frankl, Rollo May, sem falar nos
chamados culturalistas, particularmente Erich Fromm. Obviamente não creio
ser possível misturar todas essas posturas sem correr o risco de desfigurar todas e
descaracterizar a psicanálise. Mas, creio que devemos ter a humildade de estudálas e transcendê-las. E realizar o que Freud desejou, mas contemplou à distância
do alto da Acrópole: a humanidade do homem.
Ten psychoanalytical mistakes in Freud’s theory
Abstract: The author reviews ten paradigmatic questions in Freud’s writings that
along the time were either misunderstood or exposed by Freud in an ambiguous way
leading to technical and clinical mistakes. Such mistakes contributed to dispersions
on psychoanalytical techniques and theories. The author also suggests that the use of
the etiological model of Medicine beyond the frequent use of the phenomenological
diagnosis instead of the psychodynamic one, inevitable at the time when Freud exposed
his ideas, permitted such ambiguities and its consequences. Likewise will be reexamined:
1) the search for the unconscious instead of “how consciousness is formed”; 2) the
pathogenicity originated from defense mechanisms instead of its ego’s aspects regarding
protective functions; 3) one person psychology (which leads to neuropsychology)
instead of diadic psychology, or relationship psychology; 4) repression understood as
a defense pressure instead of the dissociation of the significant from its meaning; 5)
the pregenitality as sexual conduct instead of the symbolism of sexuality; 6) emphasis
on healthy behavior instead of healthy organization of symbolic structure (leading to
a healthy ego); 7) emphasis on normalization instead of generating consciousness; 8)
natural scientific model of analyzing symptoms instead of cultural model so creating
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 43
Dez equívocos teóricos na obra de Freud
a medium for a structural analysis of mental life; 9) transference as historical reedition instead of significants open to meanings; and finally 10) emphasis on biological
experience instead of existential experience.
Keywords: Concept formation. Freudian theory. Psychoanalysis.
Referências
ADLER, J. M. Ten phylosophycal mistakes. New York: Kindle Ed, 1985.
BETTELHEIM, B. Freud and man’s soul. New York: Alfred A. Knopf, 1983.
BION, W. R. Elements of psycho-analysis. London: William HeinemannMedical Books Lt, 1963.
BOWLBY, J. Attachment and loss: attachment. v. 1. New York: Basic Books,
1969.
CASSIRER, E. Antropologia filosófica. São Paulo: Mestre Jou, 1972. Originalmente publicado em 1944.
ELLENBERGER, H. El descubrimiento del inconsciente. Madrid: Gredos,
1976. Originalmente publicado em 1970.
FREUD, A. The ego and the mechanisms of defense. New York: Int Univ.
Press, 1936.
FREUD, S. (1891). La afasia. Buenos Aires: Nueva Visión, 1973.
______. (1893-1895). Studies on hysteria. v. 2. In: The standard edition of the
complete psychological works of Sigmund Freud. London: The Hogarth
Press, 1964.
______. (1900). The interpretation of dreams. v. 4. In: The standard edition
of the complete psychological works of Sigmund Freud. London: The
Hogarth Press, 1964.
______. (1908). Civilized sexual morality and modern nervous illness. v. 9. In:
The standard edition of the complete psychological works of Sigmund
Freud. London: The Hogarth Press, 1964.
______. (1913). Totem and taboo. v. 13 . In: The standard edition of the
complete psychological works of Sigmund Freud. London: The Hogarth
Press, 1964.
44 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Abram Josek Eksterman
______. (1915). The unconscious. v. 14. In: The standard edition of the complete psychological works of Sigmund Freud. London: The Hogarth Press,
1964.
______. (1916-17[1915-1917]). Introductory lectures on psycho-analysis. v. 15.
In: The standard edition of the complete psychological works of Sigmund
Freud. London: The Hogarth Press, 1964.
______. (1924). The loss of reality in neurosis and psychosis. v. 19. In: The
standard edition of the complete psychological works of Sigmund Freud.
London: The Hogarth Press, 1964.
______. (1926[1925]). Psycho-analysis. v. 20. In: The standard edition of the
complete psychological works of Sigmund Freud. London: The Hogarth
Press, 1964.
______. (1927). The future of an illusion. v. 21. In: The standard edition of
the complete psychological works of Sigmund Freud. London: The Hogarth Press, 1964.
______. (1927-1931). Shorter writings. v. 21. In: The standard edition of the
complete psychological works of Sigmund Freud. London: The Hogarth
Press, 1964.
______. (1930). Civilization and its discontents. v. 21. In: The standard edition
of the complete psychological works of Sigmund Freud. London: The
Hogarth Press, 1964.
______. (1932-1936). New introductory lectures on psycho-analysis and other
works. v. 22. In: The standard edition of the complete psychological works
of Sigmund Freud. London: The Hogarth Press, 1964.
______. (1936). A disturbance of memory on the acropolis. v. 22. In: The standard edition of the complete psychological works of Sigmund Freud.
London: The Hogarth Press, 1964.
______. (1937). Analysis terminable and interminable. v. 23. In: The standard
edition of the complete psychological works of Sigmund Freud. London:
The Hogarth Press, 1964.
______. (1939). Moses and monotheism. v. 23. In: The standard edition of
the complete psychological works of Sigmund Freud. London: The Hogarth Press, 1964.
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 45
Dez equívocos teóricos na obra de Freud
HARTMANN, E. The philosophy of the unconscious. London: Routledge,
2002. Originalmente publicado em 1869.
HARTMAN, H. Essays on ego psychology. New York: International Universities Press, 1964.
HOBSON, A. Psychoanalysis on the couch. In: Medical and Health Annual
1987. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1987.
KLAUBER, J. Dificultades en el encuentro analítico. Buenos Aires: Paidos,
1991.
KORZYBSKI, Alfred. Science and sanity. Massachusetts: The Colonial Press,
1958.
MARCUSE, Herbert. Eros and civilization: a philosophical inquiry into Freud.
New York: Vintage Books, 1974. Originalmente publicado em 1955.
PERESTRELLO, D. A psiquiatria atual como psicobiologia. Rio de Janeiro:
Ed. Milone, 1945.
______. A medicina da pessoa. 5. ed. Rio de Janeiro: Atheneu, 2005. Originalmente publicado em 1974.
______. Se Freud estivesse vivo. In: Trabalhos escolhidos. Rio de Janeiro:
Atheneu, 1987.
POPPER, K. R. La lógica de la investigación científica. Madrid: Technos,
1973. Originalmente publicado em 1959.
RICOEUR, P. Freud: una interpretación de la cultura. 2. ed. Mexico: Siglo
Veintuno, 1973. Originalmente publicado em 1965.
WINNICOTT, D. W. Collected papers: through paediatrics to psycho-analysis.
London: Tavistock Publications, 1958.
Abram Josek Eksterman
Rua Visconde de Pirajá, 595
22410-003 Rio de Janeiro – RJ – Brasil
e-mail: [email protected]
46 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Mal-estar na cultura hoje:
O atual e a atualidade em
psicanálise. Pertinência
de nossas ferramentas
psicanalíticas freudianas
Adriana Sorrentini1
Resumo: Consideramos o mal-estar na cultura com as suas manifestações que incidem
fortemente na atitude de reação diante da psicanálise, quer seja em um imaginário
social ou como nos próprios analistas. A sessão psicanalítica estabelece um campo
não espacial e atemporal, contido por um enquadramento abstinente. A abstinência
promove a frustração e instala a transferência e o desenvolvimento trágico-incestuoso,
cujos protagonistas são o analisado e o analista. Consideramos a transferência e a
contratransferência, tanto a intrapsíquica como a transferência na pessoa do analista,
quem passa de ser uma representação a objeto original, sujeito do amor da transferência
e da reação terapêutica negativa, impondo analisar a contratransferência. A intensidade
da transferência de conteúdos sepultados, atuais, com qualidade somática, levam a
pensar em uma transferência atual, vivencial amplia a análise das patologias atuais.
Palavras-chave: Contratransferência. Interpretação. Neurose atual. Psicanálise. Transferência.
Membro Titular e Didata da Associação Psicanalítica Argentina.
1
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 47
Mal-estar na cultura hoje: o atual e a atualidade em psicanálise.
A exigência atual para o tratamento psicanalítico faz lembrar o que Freud
teve que enfrentar em 1926 – Psicanálise. A terapia psicanalítica devia ser cito,
tuto, jucund − rápida, confiável e agradável. Expectativa instalada no espírito
contemporâneo, de ação mais do que reflexão, decidido a conjurar velozmente a
angústia, antes que ter que analisá-la. Enfrentamos assim o consumo desmedido
de álcool ou de droga entre os adolescentes que procuram adormecer os seus
medos diante do encontro com o outro, com a sexualidade, com a diferença.
Situação naturalizada ou banalizada entre os adultos.
Em 1916, a passagem da hipnose para o método psicanalítico obrigou Freud
a explicar porque era conveniente abandonar um método rápido e indolor, tanto
para o paciente passivamente liberado de seu mal-estar como para o analista, que
dessa maneira evitava participar do processo transferencial, submergir-se no seu
inconsciente e reconhecer-se como instrumento da cura.
Hoje, a discussão sobre a psicanálise continua. Dispomos de eficientes
psicofármacos para suprimir os sintomas, curas mágicas através de pessoas
com poderes e variadas terapias alternativas, persistindo a aspiração de eliminar
rapidamente a angústia e todas as suas manifestações, sem analisar, reprimindo
todo saber, que sempre é doloroso.
Desta forma surgem, hoje em dia, propostas inovadoras como o cognitivismo
e o conductismo, devidamente considerados por Freud, sobretudo quando, no
seu Esquema de psicanálise (1938), volta a considerar o somático como o psíquico
autêntico devido a sua qualidade inconsciente.
O consciente, a explicação e as indicações expressas versus a exploração do
inconsciente, a análise e a possível síntese egóica posterior.
A urgência, a imediatez e a vertiginosidade da vida atual, a predominância
da imagem, a realidade virtual que permite a ilusão de ter acesso a tudo e que já
dão conta de uma modalidade estrutural de características pulsionais e de ação,
pouco propensa à reflexão, com um pensamento concreto, metonímico − como
o objeto de desejo − e perda da metáfora como movimento ao discernível, ao
visível, objeto do amor que desenha a cristalização interna do fantasma, segundo
Kristeva (1984).
Atualmente, convive a passividade do Homo videns (SARTORI, 1999) que,
hipnotizado pelas imagens que o deixam alucinado, exige tratamentos que alienam
ao ego submetendo-o a engolir o remédio, com uma realidade externa que avassala
tempo e espaço, onde tudo sucede aqui e agora, impactando traumaticamente em
cada espectador que participa da cena.
Freud continua vigente também no sociológico através do Mal-estar na
cultura (1930). Entre outras coisas, ele cita três lados em que o sofrimento nos
48 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Adriana Sorrentini
ameaça: “Desde o próprio corpo que, destinado à ruína e à dissolução, não pode
prescindir da dor e da angústia como sinais de alarme; desde o mundo exterior
[…], desde os vínculos com outros seres humanos” (p. 76). Para contrabalançar
este sofrimento, a cultura ou a civilização tenta fazer com que o mundo seja mais
hospitaleiro e menos perigoso, e tenta obstruir estas três fontes da infelicidade
humana. Isto implica impor restrições aos indivíduos singulares em prol do bem
comum, fato que, à sua vez, provoca rebeldia e mal-estar. Liberdade irrestrita e
segurança são contraditórias.
A imediatez do efeito da droga ou da vertigem da ação é o privilegiado para
a evasão ou para a descarga da angústia, embora seja evidente o caráter perigoso
e daninho que contém. Mediante certas renúncias e limitações, privilegia-se o
princípio da realidade resignando algo da satisfação desejada. Estabelece-se,
então, o antagonismo entre liberdade e segurança.
O recurso ao técnico e ao científico faz com que o homem se transforme em
um deus-prótese, grandioso quando está conectado aos seus órgãos auxiliares,
e cai na dependência da mesma maneira que com as drogas ou com o álcool.
Basta ver a tecnologia que permanentemente acompanha as crianças, jovens e
adultos, que já não se comunicam a não ser através de mensagens e fotos, algo
que substitui o intercâmbio direto entre as pessoas.
A propósito disto, li que nos Estados Unidos temem que o público cause
danos às coleções nos museus com os extensores das câmaras fotográficas e dos
celulares usados com o fim de obter selfies; a varinha do narcisismo se transformou
em uma arma perigosa e obrigou aos museus regulamentar ou proibir o seu uso
para proteger as obras de um público que acha mais importante mostrar as suas
fotos que ver arte.
Ao edificar-se a cultura sobre a renúncia do pulsional através da repressão,
da sufocação de poderosas pulsões, entendemos a razão da hostilidade contra
a qual é preciso lutar incansavelmente. Freud apresenta como uma transação,
já que para obter a capacidade de viver na cultura nós, os humanos, devemos
renunciar a agir de acordo com os próprios impulsos, urgências e desejos. A
liberdade irrestrita levaria ao caos e a segurança sem liberdade nos levaria à
escravidão. A transação proposta por Freud, em 1929, continua tão vigente e
em tensão, Sicherheit ou Unsicherheit, segurança, proteção, em contraposição à
tão ansiada liberdade com insegurança. Em tempos freudianos o desejo é de
liberdade, atualmente reclama-se segurança. As condições de uma prolongada
incerteza inauguram sensações de ignorância e impotência, ambas humilhantes
(BAUMAN, 2014).
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 49
Mal-estar na cultura hoje: o atual e a atualidade em psicanálise.
Expressões do mal-estar
As denominadas patologias atuais fazem hoje alusão às da atualidade, ao
contemporâneo, e compreendem, em essência, a angústia e seus derivados,
desde o ataque de pânico, fobia, anorexia, bulimia, compulsões e várias adições, até
a naturalizada dependência da droga e ou do álcool. É notável a apresentação
de que sempre existiu como se fosse novidade, talvez pela necessidade de serem
pioneiros, descobridores e não repetidores, penso que é pela dificuldade de
aceitar que podemos dar valiosas contribuições ao que já é conhecido. É uma
ferida narcisista difícil de suportar.
Fica claro que estes padecimentos são vividos como novidade em função das
variações da cultura e, fundamentalmente, das características do psicanalista de
hoje, cujas resistências não resolvidas se articulam em inovações terapêuticas em
função das demandas culturais. Por isso que as denominadas patologias atuais ou
novas patologias são uma criação imaginária que surgem das condições do terapeuta
que as diagnostica.
A estas manifestações se somam os denominados transtornos funcionais:
cardíacos, circulatórios, digestivos, musculares, fadiga crônica, asma, alergias,
distonias neurovegetativas, etc., evidentes manifestações neuróticas com o seu
concomitante somático, ou especificamente a apresentação somática e atual − no
sentido da Aktualneuròse − em que o corpo fala da sua dor sem nome, esperando
ser decodificada, transformada em palavras.
“Não afundes o chapéu sobre as vossas pupilas! Dê palavras à dor, à desgraça
que não fala, murmura no fundo do coração, que não pode mais, até rompê-lo.”
(SHAKESPEARE, 1967, Macbeth, ato IV, cena III). O poeta disse isto antes que
o psicanalista.
O desafio da psicanálise, nos nossos dias, exige que suportemos a
transferência que desde o sepultado investe a pessoa do analista, quem deve pôr o
corpo a estes conteúdos de forte caráter vivencial, com manifestações somáticas,
angústia, letargia, que costumam mexer com ele, através da resistência, a se
afastar da análise buscando outras técnicas ou indicando interconsultas −
como uma tentativa desesperada de convocar a um terceiro − ou a inclusão
de psicofármacos que, em virtude da sua identificação – Einfühlung − com o
paciente, pode chegar inclusive a consumir. Isto é afundar o chapéu na cabeça
para não enxergar.
Os desenvolvimentos originados a partir de uma maior compreensão da
teoria psicanalítica nos permitem ter acesso à análise destas graves doenças sem
que nos afastemos da psicanálise e ampliando, em troca, as suas fronteiras.
50 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Adriana Sorrentini
A sessão
Constitui um âmbito inefável, onde ocorre um encontro singular regido pela
circulação de palavras, afetos e vivências, demarcado por um enquadramento
abstinente que contém e delimita, dando lugar a um campo transferencial, por
cujo eixo transitam as intervenções do analista. É uma unidade em si mesma, é
o elo de uma corrente enquanto cura psicanalítica.
Esse encontro é diferente de qualquer outro entre duas pessoas, mesmo em
termos assistenciais. Consideramos dois parâmetros fundamentais: o espaço e o
tempo em que ocorre, destacando seu caráter original.
O espaço-consultório, um lugar concreto e profano, pertencente à vida secular,
ao mundo dos homens, oposto ao sagrado, que em virtude do enquadramento
que se estabelece como condição sine qua non para que a sessão psicanalítica
possa ser desenvolvida, assume características de espaço virtual sagrado − fano −
um centro − recordemos que centro do mundo, ônfalo, remete ao que Pausarías refere
em Delfos, situado no centro da terra. Varron descreve ônfalo como a sepultura
da serpente sagrada de Delfos, Píton. Considera-se um ponto de intersecção do
mundo dos mortos, dos viventes e dos deuses; uma sepultura pode ser um centro,
um ônfalo da Terra: Mortis et vitae lócus − um centro então, no qual se desenvolve
a cena trágico-incestuosa em todo o seu esplendor ominoso. O ominoso está
dado justamente por esta intersecção de nosso mundo vivente com o sepultado,
os mortos, e com o ideal, os deuses (SORRENTINI, 2000).
O tempo, como periodicidade e eternidade: na magia e na religião periodicidade
significa utilização indefinida de um tempo mítico feito presente. Todos os
rituais têm a qualidade do agora − como o presente atemporal do inconsciente
− onde o tempo mítico em que teve lugar o acontecimento representado, é
sempre atual. Assim, na sessão psicanalítica tudo é atual, original, mesmo que os
tempos verbais do relato estabeleçam um passado que, em função da resistência,
será considerado mais ou menos remoto.
O presente do indicativo é o tempo verbal da sessão em virtude da
sincronização do inconsciente, qualidade vivencial indispensável para a eficácia
terapêutica da psicanálise.
O ritual do enquadramento, enquanto conjunto de regras estabelecidas que
sempre são repetidas, cada vez, unido à periodicidade, à repetição e ao eterno
presente, características do tempo mágico-religioso, instala a dupla psicanalítica no tempo a-histórico, atual, vivencial, onde transcorre a sessão, após a
qual a história pode começar como desenvolvimento temporal (SORRENTINI,
2004).
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 51
Mal-estar na cultura hoje: o atual e a atualidade em psicanálise.
Com as cerimônias mágicas e religiosas, compartilhamos a regra de abstinência,
que deve imperar no enquadramento psicanalítico como condição para a análise
do desejo. Referimo-nos à denegação de satisfazer a demanda, dando lugar à
frustração.
Nos seus desenvolvimentos sobre o amor de transferência, Freud salienta que
a técnica analítica impõe ao médico o mandamento de denegar a satisfação das
demandas do amor ou sexuais, presentes de maneira direta ou deslocadas. Insiste
que a cura deve ser realizada na abstinência, recordando que o analista só poderia
oferecer sub-rogados, malogrando a possibilidade de análise.
Nos caminhos da terapia analítica (1919) destaca outro aspecto da abstinência:
não ceder diante do pedido de intervenção na síntese que o ego realizará devido
à análise, sob pena de ocupar o lugar reitor que pertence aos objetos parentais,
atuando a transferência em lugar de analisá-la. Insiste que na medida do possível, a
cura analítica deve ser executada em um estado de privação − de abstinência − capaz de pôr
em primeiro plano o desejo. É iniludível e compreende a ambos os protagonistas
da cena, mesmo que a indicação seja para o analista.
A frustração fará que subsista necessidade e saudade como forças pulsantes do trabalho
e da alteração; conceitos como necessidade e saudade remetem à descrição que Freud
faz da primeira vivência de satisfação, acompanhada pela percepção do objeto
que satisfaz associada ao vestígio da necessidade que, cada vez que sobrevenha,
investirá essa imagem mnêmica em busca da identidade de percepção; essa
moção constitui o desejo, que na sessão desenvolve as forças pulsionantes presentes
nas manifestações transferenciais, as quais, se não são percebidas e analisadas,
conduzem à atuação.
A proibição, implícita no enquadramento mediante a regra de abstinência,
coloca em primeiro plano o reprimido-sepultado, moção pulsional que exige
peremptoriamente a sua realização-satisfação, agora que enfrenta a frustração
original e que pode ser apalavrada, tornar-se consciente.
Paraxodalmente, a abstinência mantém o enquadramento e que ao mesmo
tempo convoca e permite o desenvolvimento do drama trágico-incestuoso no
real da sessão. O analista sabe que só poderia oferecer sub-rogados a custo da
perda da análise e que deve manter-se dentro das fronteiras que a ética e a técnica
prescrevem, já que trabalha com as forças mais explosivas (FREUD, 1915), que
exigem cautela e escrúpulo.
O enquadramento psicanalítico compreende um aspecto manifesto, formal,
no qual se pactua o lugar físico, a duração da sessão, a frequência, horários e
honorários, aspectos pertencentes ao contrato, que explicita um trato-com um
sujeito que precisa de análise. Mas é do simbólico que a sessão, emoldurada e
52 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Adriana Sorrentini
circunscrita pelo enquadramento sustentado na abstinência, dá lugar à cerimônia
da bruxa metapsicologia.
O enquadramento delimita a sessão e o processo psicanalítico, permitindo o
estabelecimento do campo transferencial, em que o inconsciente se desenvolve,
tanto no expresso pelo discurso do analisado, composto de seu estilo, gramática
e fonética, como dos seus desperfectos lapso, ilogismos, neologismos, etc., ouvidos
como associação livre da atenção livremente flutuante do analista.
A vivência, a angústia, o afeto, o pré-verbal e o irrepresentado devem ser
decifrados como manifestação do atual trágico incestuoso, não unido, carente de
representação e palavra − o infans não a tem − transferido in toto na pessoa do
analista, uma transferência atual (CESIO, 2010).
Transferência – Contratransferência
O lugar especial que o enquadramento psicanalítico, com sua regra de
abstinência, reserva ao analista é fundamentalmente o das imagos primordiais
do analisado, as mais desejadas, ameaçantes e culposas. Para que possamos
reconhecer e suportar tais identificações é necessário ter alcançado, por meio
da análise pessoal, elaboração das resistências ao conhecimento do inconsciente
reprimido e das vivências provenientes do que está sepultado.
A capacidade de autoanálise durante a sessão revela os nossos próprios
dramas inconscientes que denominamos contratransferência, e permite-nos
assumir o protagonismo atribuído na tragédia que se desenrola. O próprio
processo analítico se funde na transferência, isto é, no amor, no desejo, na
sexualidade infantil, e implica que o discurso que ocorre seja interpretado a
partir do borde ou do limite do advento do sujeito e da sua perda que é a
identificação − Einfühlug.
Freud começou a usar Übertragung na Interpretação dos Sonhos (1900) para explicar
que a representação inconsciente é incapaz de ter acesso ao pré-consciente, a
não ser que entre em conexão com uma representação insignificante pertencente
a este sistema, para a qual transfere a sua intensidade. A representação préconsciente pode permanecer intacta ainda que imerecidamente engrandecida ou
pode ser modificada em virtude do que foi transferido para ela. Também utiliza o
termo para descrever o processo descoberto no tratamento psicanalítico, durante
o qual é transferido para um objeto contemporâneo − o analista − sentimentos
que o sujeito conserva no inconsciente por um objeto infantil. Recordamos que
infantil se refere a uma qualidade do material e não é uma referência temporal ou
evolutiva.
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 53
Mal-estar na cultura hoje: o atual e a atualidade em psicanálise.
Devido ao fato de o sintoma neurótico ser constituído pela realização de um
desejo inconsciente e a sua correspondente formação de reagir, constatamos
que na transferência o desejo se cumpre investindo ao analista – enquanto
representação pré-consciente, recente e insignificante − com as catexes
correspondentes ao objeto inconsciente reprimido-sepultado. Tal investidura
difere na sua intensidade até o ponto de procurar uma realização alucinatória de
desejo tão vividamente experimentada, que proporciona convicção na vivência
– Erlebniss − que tem lugar, acompanhada de reações afetivas e neurovegetativas,
o atual, somático, expressando uma transferência diferente, atual (CESIO, 2010),
em que o analista é efetivamente o objeto original.
Permitam-me uma mínima digressão para comentar que o termo vivência é
aquele proposto por Ortega e Gasset para traduzir a palavra alemã Erlebniss, que
indica que algo meramente é vivido, mas não decide se foi um acontecimento
real. Difere claramente de experiência, que sim é feito com algo objetivo, um
objeto da realidade.
Kristeva (1984), seguindo a Freud, defende que a identificação com o pai da
pré-história (os pais indiferenciados) é imediata, direta, e se continua com a da
identificação secundária e mediata com apetências libidinais do primeiro período
sexual que reforçam a primeira.
Toda a matriz simbólica que cobre o vazio está localizada nessa problemática
pré-edípica, propondo a existência de uma transferência imediata – unmittelbare
− do psíquico carregado de libido, mais do que de uma identificação, sobre o
pai-mãe da pré-história individual. É uma situação complexa, mista e imaginária
encarnada pelo analista na sessão.
Transferência intrapsíquica na palavra e nas representações pré-conscientes,
que proporcionam a livre associação no discurso do paciente, o sonho e seu
relato e, por outra parte, a transferência na pessoa do analista como objeto
contemporâneo, suporte do desejo inconsciente reprimido, descrito no epílogo
do caso Dora (1905) e em Pontualizações sobre o amor de transferência (1915), onde
o analista passa a ser o objeto original, antes que o resto diurno − recente e
insignificante − sobre o que se transfere o reprimido do ego, enfrentando a
transferência do trágico-incestuoso que pertence ao sepultado, que jamais
foi consciente e se apresenta irrompendo com qualidade somática e ideias de
morte.
O conceito de contratransferência preocupava a Freud em 1910, como possível
obstáculo na tarefa do psicanalista por sua resistência diante de determinado
material surgido na sessão. Foi elaborado por diversos autores, como Heimann
(1950, 1960) em Londres, e na Argentina por Racker (1949), Cesio (1963) entre
54 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Adriana Sorrentini
outros, e concluímos que, tal como a transferência do analisado, é um elemento
valioso que o analista dispõe para perceber e incluir aquilo que emerge com
qualidade atual, vivencial, carente de representação e palavra ou com expressão
somática, material correspondente ao sepultado, ao núcleo atual, diferente do
reprimido das psiconeuroses de defesa.
Falar da transferência na pessoa do analista implica levar em consideração
não só o da função, da investidura, senão também o sujeito que a sustenta. Dele
se espera que conecte seu inconsciente como um órgão receptor do inconsciente
do analisado, que suspenda a sua atenção e interesse de tudo àquilo que não
provenha do seu paciente; que aceite sustentar o objeto inconsciente transferido
para ele, dando-lhe vida com seu sangue, desentranhando a cena que ocorre no
real da sessão, com toda a intensidade trágico-incestuosa acorde ao fundamento
atual que irrompe.
É nossa tarefa, uma das tarefas impossíveis, aceitar o papel que nos é
atribuído nesse ato cênico, descrevê-lo, colocar palavra e representação onde só
há manifestações atuais como afeto, angústia, letargia, silêncio. Implica renúncia
narcisista e luta contra as resistências.
Recordo um fato que aconteceu com um analista que, aflito pela recente
perda de uma pessoa querida e em pleno luto, enquanto ouvia o seu analisado
falar com voz desvitalizada e monótona sobre as suas carências e dos seus
mortos, caiu repentinamente em uma letargia total. Foi o analisado que tímida e
afetuosamente o despertou, podendo analisar junto o que aconteceu. Diríamos que,
graças à capacidade de reação do analisado e da possibilidade de reconhecimento
do analista de ter sido vítima do morto, puderam analisar proveitosamente este
fato.
A afirmação freudiana de que a análise do paciente transcorre simultaneamente
com a autoanálise do analista, e que se este não for capaz de fazer isso não
está capacitado para analisar, conserva íntegra a sua vigência. Sustentamos essa
simultaneidade desde a assimetria que estabelece o fato de que o psicanalista está
atravessado por uma prolongada análise pessoal, que lhe permitiria manter-se
na abstinência junto ao analisado, e conseguir o seu objetivo ao falar do objeto
transferido sem que a moção em jogo atue.
A transferência na pessoa do analista é preciso inferi-la quase por conta própria,
baseando-se nos mínimos pontos de apoio e evitando cometer arbitrariedades, diz Freud.
Analisar em transferência exige ser suporte do objeto que emerge na cena sexual,
uma atitude analítica de renúncia narcisista e postergação das próprias moções
pulsionais, conscientizadas durante a experiência que está acontecendo na sessão,
imprescindível para dar lugar à cena inconsciente e analisá-la.
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 55
Mal-estar na cultura hoje: o atual e a atualidade em psicanálise.
Tratam-se de vivências intensas, de alta voltagem pulsional, que levam
paciente e analista a resistirem a esse saber inquietante que trazem os demônios
convocados. Aqui também observamos manifestações da cultura imperante, que
não tolera o mal-estar imposto e o interrogar-se em lugar de projetar ou silenciar
isso que insiste recorrendo às drogas, ao álcool e à atuação.
Apoiado nos restos diurnos oferecidos pela realidade em que vive, o analisado
argumentará, para reduzir ou suspender a cura, dificuldades econômicas ou de
horários, de distância, desejo de experimentar sozinho, queixa dos resultados obtidos,
variedade de argumentos resistentes com os quais tenta explicar por que deseja
interromper ou espaçar o tratamento. O analista pode intervir analiticamente ou
simplesmente concordar com a resistência de seu paciente, racionalizando a sua
angústia diante da presença ominosa que deseja afastar.
Já não como analista senão como um simples cidadão, compartilhará o
imaginário consumista cujo mercado do inovador se apoia na desmentida da
castração, do fetichismo da mudança da embalagem e da apresentação dos produtos,
novos nomes para velhas doenças.
A busca contínua de maior e melhor capacidade analítica nos permitirá chegar
além, ter acesso ao padecimento atual, ampliando a fronteira do analisável.
Interpretação – Construção – Reconstrução
A interpretação conserva seu lugar fundamental na teoria e na técnica
psicanalítica. Desde as suas primeiras intelecções sobre os sonhos, Freud confere
o mesmo valor à fantasia ou ao sintoma, ponto de partida para a livre associação
de um paciente no divã. Qualifica o sonho como um hieroglífico em que o
desejo infantil reprimido dá lugar ao relato que se constitui em pré-texto a ser
analisado na sessão.
A neurose, como o sonho, faz uma interpretação ad hoc do real a favor de
satisfações sexuais, pré-genitais, formadoras de sintomas. Também a sessão
transcorre como um sonho cujo relato, o discurso do analisando, descreve
através da livre associação das imagens que representam o desejo transferido
para elas, enquanto o afeto apresenta a força pulsante que a gera. O analista deve
perceber e diferenciar a representação do material psiconeurótico passível de
interpretação, e a apresentação do material atual subjacente que traz a vivência
em ato, tributário da construção.
O termo interpretação leva a traduzir, explicar, entender tomando um ou outro
sentido, conjeturar, pretender, crer, decidir. O analista poderia propor uma
interpretação diferente da que foi feita do ego do analisando em determinada
56 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Adriana Sorrentini
circunstância geradora da alteração neurótica em virtude de estar comandado
pelo vivenciado, isto é, o acidental e atual capaz de exercer alterações na sua
estruturação- permitindo a possibilidade de introduzir uma nova alteração no
ego, esta vez terapêutica.
Atende ao rompimento da coerência associativa no discurso do analisando,
aos desperfectos do ego que o inconsciente capitaliza como conquistas. A construção
se impõe ao analista a partir de uma vivência que irrompe e interrompe a sua
atenção flutuante: uma ideia, sobressalto, ocorrência, uma sensação somática
de diferente característica e intensidade, dor, excitação sexual, angústia, medo,
letargia, são os indícios com os quais o analista, baseado na sua contratransferência,
faz uma construção do atual que surge com a força ominosa de apresentação
somática ou de morte.
Do latim construere: acumular, amontoar, surge o nosso construir, que tem o
sentido de fabricar, erigir, edificar, fazer de novo alguma coisa. A gramática
remete a pôr em ordem as palavras ou uni-las entre si de acordo com as leis da
construção gramatical, ordenação das partes do discurso, uma frase, o sentido
daquilo que se apresenta como cúmulo ou montão.
Esta explicação gramatical nos leva ao conceito de processo primário e processo
secundário do aparato psíquico, proposto por Freud na Interpretação dos Sonhos
(1900), e a importância conferida à palavra na transferência intrapsíquica.
Também Lacan, formula a hipótese do inconsciente estruturado como uma
linguagem.
Finalmente, nas antigas escolas de gramática, construção tem o significado de
traduzir do latim ou do grego ao castelhano, isto é, de uma língua morta, arcaica para
um idioma compartilhado e atual. Desentranhar o texto arcaico, pré-histórico,
o morto encarnado na pessoa do analista nestes momentos trágicos da sessão,
traz um material correspondente às impressões e vivências não unidas pelo
ego, que jamais foram conscientes e cujo destino é o sepultado, submetido à
compulsão da repetição. Apresenta-se como o atual na sessão, interrompendo
a atenção flutuante do analista que, perturbado pela irrupção intensa e brusca
de sensações somáticas, afetos e ocorrência, está exposto a cair na atuação, ou
no rechaço e desestima o que lhe acontece ou, através da autoanálise, pode
elaborar uma construção do ato que está acontecendo, procurando incluir o que
se apresenta como resto, cúmulo ou montão, que exige representação e palavra,
ou constructo que, desde uma língua morta, o analista oferece em palavras da língua
viva e compartilhada, buscando um esboço de representação.
Trabalho de desconstrução do traumático que irrompe e que o analista
distingue, separando os elementos do conglomerado que emerge, e outro de
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 57
Mal-estar na cultura hoje: o atual e a atualidade em psicanálise.
construção e ordenação, dando sentido e palavra ao ato protagonizado por
ambos os actantes da cena matricial, original, desenrolada no real da sessão. Se
resistencialmente, o analista não consegue pôr palavra, oferecer uma construção
disto que ocorre agora, sobrevirá uma atuação ou talvez uma ancoragem
somática.
O paciente repete impressões e vivências arcaicas que jamais foram escritas
como experiência e carecem de elaboração psíquica, pertencem à pré-história,
incapazes de recordar, nem memória. Manifestação da pulsão de morte,
compulsão de repetição sempre atual, motor da transferência na pessoa do
analista, que longe de ser uma representação investida de forma libidinal, é corpo
investido desde a pulsão, amor de transferência, reação terapêutica negativa.
Nesta modalidade arcaica, analisando e analista encontram seu limite apagado
(desdibujado), confundindo-se nas impressões e vivências que os impactam desde
o trágico-incestuoso. O analista se resgata, constrói o ato e descreve a cena,
colocando palavra, tempo e espaço, significa o acontecido como repetição
possibilitando sua entrada na história pessoal do sujeito.
Freud, em Construções na análise (1937) dirá que “[...] ao analisando lhe é
apresentada uma peça da sua pré-história esquecida [...]” (p. 260) que na nossa
concepção refere ao infantil − prévio à palavra − que se apresenta na sessão com
características trágico-incestuosas, diferentes das pertencentes ao complexo de
Édipo que faz parte da história pessoal e pode ser reconstruído como recordação
a partir dos seus brotos.
Propomos denominar construção àquela realizada pelo analista a partir do
que emerge do atual, uma vivência que irrompe subitamente e interrompe a sua
atenção flutuante pelo impacto traumático da apresentação ominosa. Algo original,
atual, que só pode existir a partir da palavra do analista que, desconstruindo o
cúmulo de afeto-angústia-vivência, descreve a cena e constrói o ato que traduz
em palavras o drama, em vez da atuação da tragédia. Transformar a tragédia
em drama é passar da pré-história para a história, dar a metáfora faltante aos
conteúdos pulsionais atuais que adquirem nível representacional e simbólico,
tornando possível a reconstrução da qual Freud nos fala.
O recurso técnico da construção, a partir da contratransferência, amplia
nossas possibilidades analíticas nos permitindo incluir, para a sua tramitação
psíquica, conteúdos que jamais passaram pela consciência. Freud (1937, p. 264)
diz claramente que: “É apenas uma questão de técnica analítica que se possa
ou não trazer à luz de maneira completa o que está escondido”. Nisso estamos
empenhados, ainda que o mal-estar e as resistências estejam dispostos a dificultar
o caminho para o inconsciente.
58 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Adriana Sorrentini
Discontent in culture today. The present and current events in psychoanalysis.
Pertinence of our freudian psychoanalytical tools.
Abstract: We feel discomfort in culture with its manifestations that strongly affect
the reactive attitude to psychoanalysis, either in a social imaginary as the analysts
themselves. The psychoanalytic session sets a no space place and timeless scenery,
determined by an abstinent frame. Abstinence promotes frustration and installs both
transference and tragic-incestuous positioning, whose protagonists are analyzed and
analyst. We consider transference and countertransference, both intrapsychic and
transference over analyst’s person, who happens to be representation that becomes an
original object, subject of transference love and negative therapeutic reaction, imposing
the analysis of countertransference. The intensity of the transference of buried, actual
contents, with somatic quality, recalls a current, experiential transference and extends
the analysis of actual pathologies.
Keywords: Actual Neurosis. Contratransference. Interpretation. Psychoanalysis.
Transference.
Referências
BAUMAN, Z.; DESSAL, G. El retorno del péndulo. FCE: Buenos Aires, 2014.
CESIO, F. La comunicación extraverbal en psicoanálisis: transferencia,
contransferencia e interpretación. Revista de Psicoanalisis APA, v. 20, n. 2,
1963.
______. Actualneurosis. Buenos Aires: Editorial La Peste, 2010.
FREUD, S. (1900). La interpretación de los sueños: el cumplimiento de deseo.
In: Obras completas Sigmund Freud. v. 5. Buenos Aires: Amorrortu, 1994.
______. (1905). Fragmento de análisis de un caso de histeria. In: Obras
completas Sigmund Freud. v. 7. Buenos Aires: Amorrortu, 1994.
______. (1915). Puntualizaciones sobre el amor de transferencia. In: Obras
completas Sigmund Freud. v. 12. Buenos Aires: Amorrortu, 1994.
______. (1916). 28ª Conferencia. La terapia psicoanalítica. In: Obras completas
Sigmund Freud. v. 16. Buenos Aires: Amorrortu, 1994.
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 59
Mal-estar na cultura hoje: o atual e a atualidade em psicanálise.
______. (1919). Nuevos caminos de la terapia psicoanalítica. In: Obras
completas Sigmund Freud. v. 17. Buenos Aires: Amorrortu, 1994.
______. (1926). Psicoanálisis. In: Obras completas Sigmund Freud. v. 20.
Buenos Aires: Amorrortu, 1994.
______. (1930). El malestar en la cultura. In: Obras completas Sigmund
Freud. v. 21. Buenos Aires: Amorrortu, 1994.
______. (1937). Construcciones en el análisis. In: Obras completas Sigmund
Freud. v. 23. Buenos Aires: Amorrortu, 1994.
______. (1938). Esquema del psicoanálisis: construcciones en el análisis. In:
Obras completas Sigmund Freud. v. 23. Buenos Aires: Amorrortu, 1994.
HEIMANN, P. On counter-transference. International Journal of PsychoAnalysis, v. 31, p. 81-84, 1950.
______. Counter-transference. British Journal of Medical Psychology, v. 33,
p. 9-15, 1960.
KRISTEVA, J. Historias de amor. México: Siglo XXI, 1995. Originalmente
publicado em 1984.
RACKER, H. Estudios sobre técnica psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós,
1960. Originalmente publicado em 1949.
SARTORI, G. Homo Videns: la sociedad teledirigida. Madrid: Taurus, 1999.
SHAKESPEARE, W. La tragedia de Macbeth: obras completas. México:
Ed Aguilar, 1967.
SORRENTINI, A. El sentimiento religioso. La Peste de Tebas, a. 5, n. 17,
p. 20-28, 2000.
______. Encuadre psicoanalítico. La Peste de Tebas, a. 9, n. 31, p. 9-16, 2004.
Adriana Sorrentini
Gelly 3550 – 6º – B
C1425BML – Buenos Aires – Argentina
e-mail: [email protected]
60 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
O contemporâneo na
função analítica: medo e
paixão1
Ane Marlise Port Rodrigues2
Augusta Gerchmann3
Christiane Vecchi da Paixão4
Kellen Gurgel Anchieta5
[...] apesar de toda a dispersão da vida contemporânea, as múltiplas
sereias que existem para você não se concentrar, talvez haja ainda
essa vontade de ler uma narrativa longa, que tente dar conta de um
ambiente, de uma sociedade, do raciocínio e do sentimento de uma pessoa
(CONTI, 2013, p. 5).
Resumo: Situando Totem e tabu como um trabalho de Freud com abrangência
contemporânea, as autoras indagam-se sobre o sentido de estarem explicitadas
na Relação de Membros da Febrapsi, sob o título Princípios Éticos da IPA, as proibições
totêmicas. Consideram que analista e analisando, ao desenvolverem o processo analítico,
entram num terreno escorregadio onde são mobilizados medos e paixões. O risco de
transgressão da regra de abstinência envolve a dupla e requer que a interdição e a lei
Trabalho apresentado na mesa redonda O contemporâneo e a função analítica, no XXIV Congresso
Brasileiro de Psicanálise. Campo Grande/MS, setembro/2013.
2
Membro Titular da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.
3
Membro Titular e Didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.
4
Membro do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.
5
Membro do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.
1
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 61
O contemporâneo na função analítica: medo e paixão
sejam reinstaladas constantemente. Diferenciam amor de transferência e transferência
passional. Enfatizam que vivências de desamparo do analista e a não elaboração de
dimensões narcísicas e edípicas de sua sexualidade infantil podem dificultar ou impedir
a manutenção do enquadre interno e externo, necessários para assegurar a função
analítica e o trabalho analítico.
Palavras-chave: Contemporâneo. Função analítica. Medo. Paixão. Princípios Éticos da
IPA. Totem e tabu.
Nosso projeto, ao nos debruçarmos sobre este tema – O contemporâneo na
função analítica: medo e paixão – nasceu a partir do seminário sobre Totem e tabu no
Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
(SBPdePA), artigo que completa 100 anos e que é tema deste encontro de
analistas do Brasil.
Apesar de sua antiguidade, este artigo nos pareceu contemporâneo. No
mesmo ano de Totem e tabu (FREUD, 1913a), também é publicado o artigo O
interesse pela psicanálise (FREUD, 1913b). Na época, a psicanálise era considerada
uma ciência jovem pelo autor. Nesse texto, Freud explica os motivos que levam
o ser humano a ter atos falhos e sonhos, meios através dos quais o psiquismo,
sufocando a representação que suscita dor psíquica, evita o desprazer que a
lembrança promoveria.
Naquele período, Freud (1913b) identifica como neurose a patologia que
se apresentava através dessas formações do inconsciente, pelo mecanismo do
deslocamento. Segundo o autor, “a psicanálise eleva o sonho à condição de um
ato psíquico que possui sentido, propósito e um lugar dentro da vida anímica
do sujeito e, ao fazê-lo, se situa acima do alheio, da incoerência e do absurdo do
sonho” (p. 173).
Concomitantemente, em Totem e tabu, Freud (1913a) relaciona o horror dos
selvagens ao incesto à vida anímica do neurótico, esta última dirigida à primeira
escolha de objeto sexual. Reconhece o tabu do incesto e o desejo pela eliminação
do pai e posse da mãe, concebendo o complexo nuclear da neurose, conhecido
como complexo de Édipo.
Mais adiante, agrega que a resolução da conflitiva edípica deixa como
herdeiro o superego, ou ideal do eu, que começou a constituir-se no período
do narcisismo (FREUD, 1914), quando a máxima consistia na ideia de que assim
como o pai quero ser.
62 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Ane Marlise Port Rodrigues, Augusta Gerchmann, Christiane Vecchi da Paixão, Kellen Gurgel Anchieta
O totemismo simboliza o crime que foi cometido. Mas o assassinato do pai,
ao mesmo tempo em que inaugura o ser civilizado e as relações fraternas, lança-o
ao desamparo de estar sem o pai absoluto e entregue à própria sorte.
Partindo de Wundt (apud FREUD, 1913a), que sugere ser o Tabu o código
legal não escrito mais antigo da humanidade, perguntamo-nos qual será o
sentido para que, na Relação de Membros, a Federação Brasileira de Psicanálise
(2013) coloque, explicitadas na forma da lei, sob o título Princípios Éticos da
IPA, as proibições totêmicas. Consta no item 5: “O psicanalista não deverá ter
relações sexuais com um/a paciente ou estudante sob tratamento ou supervisão
do psicanalista” (p. 24).
De que forma a cultura atual, em que se observa um afrouxamento da
repressão e uma constituição insuficiente do ideal de ego, pode vir a refletir-se
na sala de análise? Um código de conduta que necessita ser explicitado junto à
relação de membros alerta para o risco da transgressão e faz recordar a presença
da lei. Dentre as recomendações, Freud já incluía a necessidade de não haver
nenhuma proximidade social entre analista e paciente, salientando, entre os
pilares da técnica, a manutenção da neutralidade e a abstinência a serviço do
analisando. Haveria por parte dos analistas o risco de esquecer os princípios éticos
que norteiam a psicanálise?
Gabbard (2005) propõe uma diferenciação entre violação e cruzamento de
fronteira. Violações de fronteira envolvem transgressões que são potencialmente
prejudiciais ou exploradoras do paciente; elas podem ser sexuais ou não. Estamos
diante de um fenômeno descrito como terreno escorregadio, que envolve a
progressão gradual de violações de fronteira das mais sutis e não sexuais ao
franco envolvimento sexual.
Pensamos que, nessa área escorregadia em que habita o medo e a paixão,
podemos vislumbrar o desamparo crônico ou circunstancial do analista, a perda
de discrição com o paciente, a ativação de núcleos psicóticos ou a atuação de
áreas de psicopatia predatória (termo usado por Gabbard), na qual a violação
não é reconhecida. Também neste terreno estão representações de desejos
ou relacionamentos incestuosos do passado de um deles. E ainda temos o
que Gabbard nomeia de rendição masoquista, que mais comumente ocorre com
pacientes considerados difíceis ou impossíveis, quando o analista repete o padrão
de relação com o objeto torturador, controlador e exigente de seu passado. O
analista cede à demanda de seu analisando e racionaliza sua própria rendição,
gerando atuações transgressoras.
Além dos fatores que envolvem a história infantil do analista, consideramos que faz parte do terreno escorregadio a relação previamente esta-
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 63
O contemporâneo na função analítica: medo e paixão
belecida na análise pessoal do analista: o vínculo com o seu analista de formação.
Aulagnier (1979) aponta para a patologia desse vínculo, em nome do amor de
transferência, quando ocorre uma idealização excessiva do analista didata pelo
analista em formação. Chama de acidente passional quando esse amor transferencial,
condição necessária para colocar em marcha a análise, desliza para uma paixão
alienante que mantém o analisando capturado pela idealização. A relação assim
estabelecida torna-se um ritual vazio e não habitado por um real projeto analítico
que leve à autonomia emocional e de pensamento. Com o término desse tipo
de análise, é conservada a idealização, seja através do referencial teórico, de um
modelo de pensamento ou de um poder do analista sobre o analisando. Nesse
sentido, o pai totêmico nunca é morto e o analista, em sua formação ou depois,
poderá atuar essa vivência não elaborada, fomentando com seus analisandos o
mesmo tipo de idealização.
Segue o autor explicando que na diferenciação entre relação amorosa e
relação passional, o objeto da paixão não é substituível, tornando-se objeto
necessário. Quando lidamos com o objeto da paixão, o desejo se converte em
necessidade. No contexto do tratamento analítico, pensamos que o enquadre
externo e interno entram como reguladores para interditar a sedução mútua que
apaga as diferenças entre analista e paciente, levando a uma relação passional de
necessidade e gozo mútuos. O medo parece residir justamente na existência do
desejo da transgressão, pois a interdição deverá ser instalada constantemente.
O risco, quando a interdição não ocorre, é que o analista exerça uma
violência secundária, tomando o analisando como infans no lugar de escutar e
compreender o seu idioma. Portanto, consideramos fundamental diferenciar
o amor de transferência e a transferência passional. O amor de transferência,
defendido por Freud como necessário e estruturante do processo analítico,
revelará a neurose de transferência. Este canto da sereia, quando transborda seus
limites para além do indicado, para que a técnica se instale, poderá levar analista e
analisando a entrarem numa sedução mútua, gerando uma atuação tanática, pura
expressão da pulsão de morte. Ocorrerá a destruição do processo e da esperança
do analisando de alcançar a resolução de seus conflitos e a representação para
sua dor psíquica.
É frequente encontrar na literatura psicanalítica atual referências à clínica
na qual a neurose, como organizador psíquico, não se estabeleceu a contento.
São quadros com falhas importantes na constituição do narcisismo estruturante
e da capacidade simbólica, dificultando que se crie a representação do não
representado.
64 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Ane Marlise Port Rodrigues, Augusta Gerchmann, Christiane Vecchi da Paixão, Kellen Gurgel Anchieta
Levantamos a questão de que, nesses casos, o pai ainda não pode ser
assassinado pelo fato de não ter sido adequadamente reconhecido e, assim, sua
função simbólica não alcança ser plenamente representada no psiquismo. Totem
e tabu precisam estruturar-se na passagem pelo Édipo. Para que isso ocorra, é
necessário passar pelo narcisismo, estabelecendo um ideal que sustente a própria
passagem pela e na interdição, movimento necessário para viver e elaborar o
luto pela castração simbólica. Por vezes, há uma tendência de se pensar que esse
movimento de renúncia é exclusivo do filho.
Ledo engano: a par da renúncia imposta ao filho, existe a necessária renúncia
do pai na passagem do lugar mítico de dono da horda ao lugar simbólico do
representante e executor da lei, porquanto ele próprio não é a lei, mas seu
representante, devendo também submeter-se a ela. Se Totem e tabu estão no
cerne do complexo de Édipo, darão a esse complexo uma universalidade da qual
padece todo sujeito da cultura.
Temos nestas leis o marco inaugural de uma nova ordem social. No entanto,
É importante diferenciarmos que as leis totêmicas têm por objetivo ordenar as relações de troca e união dentro de uma determinada sociedade, enquanto que as leis ligadas ao complexo de
Édipo têm a função de ordenar o mundo do desejo, permitindo
alojar-se no inconsciente a partir do objeto da pulsão (a mulher do
pai), e do objeto do desejo (a proibição do gozo sexual com essa
mulher) (LEITE; PAIM FILHO, 2007, p. 39).
Este conjunto de leis tem em comum o fator da interdição e a renúncia
subsequente. Poderíamos relacionar a vivência de desamparo do analista e
as falhas na instalação da repressão e na constituição do superego com seu
impedimento em manter a interdição necessária ao desenvolvimento de sua
função analítica. Para tanto, a função analítica perpassa a vivência, a identificação
e a internalização de sua própria análise, como eixo fundamental do tripé da
formação analítica.
Agamben (1978a) relata a análise de Lévi-Strauss sobre os Aranda, população
da Austrália Central que usava objetos de pedra ou de madeira como totens
representantes do corpo de um antepassado. Em seus rituais, nas sucessivas
gerações, tais objetos eram solenemente atribuídos ao indivíduo que acreditava
ser a reencarnação do antepassado naquela circunstância. Destaca Agamben
a dupla dimensão temporal do totem: sua função diacrônica, que atravessa o
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 65
O contemporâneo na função analítica: medo e paixão
tempo e se torna presença tangível do passado mítico, e sua função sincrônica,
pois está encarnada no presente, permanecendo atual.
Também considera a contemporaneidade como uma singular relação com o
próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distância. Criase, assim, uma situação de quebra, de fratura, um estado de espírito em que na
escuridão é possível enxergar, procurando-se ver na obscuridade. O escuro do
tempo não é considerado uma ausência, mas sim uma construção histórica. A
relação fundamental entre o passado e o presente se dá pelo arcaico, estabelecido
como origem. Essa origem não se situa apenas num tempo cronológico, mas
torna-se contemporânea ao constituir-se num marco da história e não cessa de
operar sobre esta, da mesma forma que a criança vive na vida psíquica do adulto
(AGAMBEN, 2008).
A infância é descrita por Agamben (1978b) como a pátria transcendental da
história e a linguagem como o lugar onde a experiência deve tornar-se verdade,
quando o sujeito desenvolve o próprio discurso. A ênfase na importância da
subjetivação é ponto comum entre o filósofo e os psicanalistas, principalmente
numa sociedade muitas vezes imersa em gigantescos processos de des-subjetivação.
Facilmente podemos entrever, nos bastidores, a importância fundamental dos
milhares de espaços analíticos que vêm sendo constituídos, desde Freud, para
assegurar a presença do subjetivo e o reconhecimento do arcaico no presente,
tentando enfrentar a força da repetição e gerando facilitações para novos
caminhos transformadores do futuro. Nesse contexto, a psicanálise torna-se
uma experiência subjetiva que coloca o inconsciente, a sexualidade, o desamparo
e a morte no âmago da alma humana, revelando-os através da relação analistaanalisando.
Vários autores afirmam que, num mundo que prioriza o exterior, o consumo,
o imediatismo, as aparências e a não reflexão, a psicanálise torna-se fundamental
como reduto do ser e da reflexão. Portanto, a escuta analítica e a função analítica
tornam-se elementos altamente contemporâneos. E como é possível para a
psicanálise transitar do presente ao arcaico e do arcaico ao presente, situando
no contemporâneo o ser do analista e o ser do analisando, ambos imersos nos
medos e paixões que esse trânsito suscita? Pensamos que o estabelecimento do
enquadre analítico permite ao analista correr os riscos inerentes à posição de
polo de atração da transferência de ambas as dimensões do infantil (narcísica e
edípica), as quais buscam satisfação e/ou sentido.
Para Césio (1986), desde Freud, o contrato analítico estabelece algumas
disposições que regulam a relação entre o analisando e o analista, incluindo a
proibição de toda e qualquer atuação por parte de ambos. A regra de abstinência
66 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Ane Marlise Port Rodrigues, Augusta Gerchmann, Christiane Vecchi da Paixão, Kellen Gurgel Anchieta
situaria o analista no lugar do objeto tabu, representante do pai morto, do
parricídio e do incesto, colocando o analista no lugar do mesmo ideal que
fundamenta a religião. Neste sentido, o analista adquiriria o poder do pai morto,
do cadáver representante do eu original, do narcisismo primário absoluto e do
próprio ideal. Para o autor, a abstinência representaria a reação defensiva frente
à própria culpa pelas fantasias incestuosas latentes, ao mesmo tempo em que
é delas inseparável. Sua aplicação na sessão revelaria a excitação incestuosa
subjacente. Em resumo, de maneira indireta, a abstinência traria ao primeiro
plano o incesto e suas vicissitudes. Novamente, medos e paixões em pauta.
Voltemos aos princípios éticos da IPA, explicitados na relação dos membros
publicada pela Febrapsi. O princípio que proíbe o comércio sexual – como era
chamado pelo próprio Freud – entre analisando e analista aponta para o pai
como aquele que deveria realizar o interdito, ao tempo em que ele próprio é o
interdito. A lei escrita torna-se representante simbólico da interdição e alerta para
o risco das falhas de tão antiga regra, que vem do início da civilização, quando o
tabu foi consolidado pelos povos primitivos. Que medos e paixões cegariam o
analista em sua função quando abandona o lugar do simbólico, e reativa com o
analisando suas mais primitivas fantasias, dirigidas aos seus próprios desejos não
tramitados e não elaborados em sua análise pessoal?
Conforme Urribarri (2012), o enquadre, como função constituinte do
encontro e do processo analítico, é a instituição e a encenação do método
analítico e tem uma natureza transicional (entre a realidade social e a realidade
psíquica). O enquadre institui o espaço analítico como um terceiro que torna
possível o encontro e a separação (discriminação) entre o psiquismo do paciente
e o do analista. Sobretudo, evita a conivência, a fusão regressiva e a captura na
miragem da dualidade.
Segue o autor afirmando que na psicanálise contemporânea a significação do
enquadre é polissêmica, incluindo diversas lógicas na escuta: escuta da unidade
(narcisismo), do par (mãe-bebê), do intermediário (transicional), do triangular
(estrutura edípica), do transgeracional e do conjunto (grupalidade e sociabilidade).
Portanto, a exigência de trabalho psíquico no analista se dá em várias frentes e
exige um analista poliglota, que compreenda variadas apresentações do discurso
e do mundo psíquico do paciente, o qual tenta fazer-se representar.
O enquadre interno do analista, mantendo-se estável como um terceiro entre
ele e seu paciente, permite adaptações em relação à singularidade de cada caso.
A escuta analítica, descrita por Green (2012) como uma metáfora do enquadre,
pode ser incluída como parte da função analítica e da interminável construção/
desconstrução do lugar de analista, designando uma atitude mental profunda
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 67
O contemporâneo na função analítica: medo e paixão
em face da verdade e do conhecimento de si mesmo, regrada pelo princípio da
abstinência.
Delouya (2010) considera que os esquemas do plano edípico constituem os
alicerces da escuta analítica. Aponta para o fato de que, na construção em análise, o
analista está engajado, não mais como auxiliar do paciente para desatar e dissolver
os nós que embaralham a associação livre em direção a insights e lembranças, mas
como agente de uma nova ação psíquica, por meio da qual o paciente adquire a
noção de um si mesmo, separado do outro e capaz de subjetivação. Partindo
de nossa compreensão, consideramos que, através do enquadre, o analista pode
retomar a dimensão do arcaico no presente e atualizar o Nome-do-Pai (LACAN,
1958[1957]), herdeiro do assassinato do pai e da interdição do desejo pelas
mulheres do pai, configurando a interdição do incesto.
A psicanálise contemporânea desenvolve o trabalho psíquico do analista
como um eixo conceitual terciário que procura incluir a atenção flutuante e a
contratransferência como dimensões parciais e complementares de um processo
complexo (URRIBARRI, 2012). A subjetividade do analista é colocada em
jogo como parte do diálogo analítico, como co-constitutiva do campo analítico
intersubjetivo. A constante e interminável elaboração no analista das dimensões
narcísicas e edípicas de sua sexualidade infantil, através de sua análise, reanálise,
autoanálise e experiência clínica, torna-se fundamental para atravessar as zonas
de turbulência geradas pelo encontro analítico. Aponta Delouya (2010) que,
nessas condições, são ativadas as fantasias originárias de constituição do sexual
(sedução originária), de constituição da diferença entre gerações (cena primária),
de constituição da alteridade (castração) e de retorno ao ventre materno
(nirvana). Ao que acrescentamos nesse esquema de mitos familiares, a novela
familiar (desejo de adoção pelo pai analista).
Ao longo dos cruzamentos destas ideias, enquanto tecíamos este breve
apanhado sobre a contemporaneidade da função do analista, seus medos e suas
paixões, voltamos às origens da psicanálise. Da filosofia, antropologia, teologia
e outros campos do saber partiu Freud para construir o arcabouço teórico e
técnico da psicanálise. Apesar das diversidades teóricas, temos tido, como
analistas, a necessidade cada vez maior de nos lançarmos à leitura de outros
campos de estudo, como um retorno às origens, buscando respostas para a dor
e o desamparo da criatura humana. Ao mesmo tempo, para exercer a função
analítica temos de nos ater à técnica e ao referencial teórico, a fim de que o
mundo psíquico possa emergir. Sabemos que não só o mundo psíquico do
paciente emerge, mas também o do analista, ativando medos e paixões. Para
não nos deixarmos enfeitiçar pela paixão desta praxis, viemos buscando, através
68 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Ane Marlise Port Rodrigues, Augusta Gerchmann, Christiane Vecchi da Paixão, Kellen Gurgel Anchieta
de novas leituras, ampliar e dar um novo e genuíno sentido às doenças da alma,
incluindo um tempo que se transforma e tem fim, diferentemente do inconsciente
atemporal. Não só o ego é corporal e finito, como também a psicanálise. Após
um século, apresenta-nos mais claramente suas limitações e coloca-nos frente à
desidealização necessária. No entanto, mantém-se contemporânea e ainda parece
ser a melhor oferta para o sofrimento psíquico do ser humano na atualidade.
A cada dia defrontamo-nos com o que é mais transitório no humano: a vida.
Na tentativa de entendê-la, é saudável buscar, assim como Freud, em outras
ciências, na filosofia e nas artes, novas perguntas, sabedores de que nunca
chegaremos às respostas. Elas estarão sempre em outro tempo.
The contemporary in the analytical function: fear and passion
Abstract: Situating Totem and taboo as one of Freud’s work with contemporary scope,
the authors question themselves about the meaning of being explicit in the “List of
Members” of Febrapsi, under the title Ethic Principles of IPA, the totemic prohibitions.
They consider that the analyst and the patient, when developing the analytical process,
enter a slippery ground where fears and passions are mobilized. The risk of breaking
the rule of abstinence involves both and demands that the interdiction and the law be
reinstalled constantly. They differentiate transference love and passional transference.
They emphasize the experiences of helplessness of the analyst and the no-elaboration
of the narcissistic and oedipal dimensions on his/her infantile sexuality can hamper
or ban the maintenance of the internal and external setting, essential to guarantee the
analytical function and the analytical work.
Keywords: Analytical function. Contemporary. Ethic Principles of IPA. Fear. Passion.
Totem and Taboo.
Referências
AGAMBEN, G. O país dos brinquedos: reflexões sobre a história e o jogo. In:
______. Infância e história: destruição da experiência e origem da história.
Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. p. 79-107. Originalmente publicado em
1978a.
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 69
O contemporâneo na função analítica: medo e paixão
______. Infância e história: ensaio sobre a destruição da experiência. In:
______. Infância e história: destruição da experiência e origem da história.
Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. p. 54-65. Originalmente publicado em 1978b.
______. O que é o contemporâneo? In: ______. O que é o contemporâneo?
E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2013. Originalmente publicado em 2008.
AULAGNIER, P. La relación amorosa: introducción al análisis de las relaciones
de simetria. In: ______. Los destinos del placer. Buenos Aires: Paidós, 2004.
p. 144-161. Originalmente publicado em 1979.
CÉSIO, F. Abstinência y neurosis actual en la sesion psicoanalitica. In:
Actualneurosis. Buenos Aires: Editorial La Peste, 2010. p. 393-403. Originalmente publicado em 1986.
CONTI, M. S. Um tempo que não se perde. Entrevista concedida a Carlos
André Moreira. Zero Hora (Caderno Cultura). Porto Alegre, 6 abr, p. 5, 2013.
DELOUYA, D. Simbolismo e construção: o analista como porta-voz da cultura.
Revista Brasileira de Psicanálise, v. 44, n. 4, p. 165-177, 2010.
FEBRAPSI (Federação Brasileira de Psicanálise). Relação de Membros, 2013.
FREUD, S. (1913a). Totem y tabú. In: ______. Obras completas. v. 13. Buenos
Aires: Amorrortu, 1989.
______. (1913b). El interés por el psicoanálisis In: ______. Obras completas.
v. 13. Buenos Aires: Amorrortu, 1989.
______. (1914). Introducción al narcisismo. In: ______. Obras completas.
v. 14. Buenos Aires: Amorrortu, 1989.
GABBARD, G. O. Violações das fronteiras profissionais. In: EIZIRIK, C. L.
et al. Psicoterapia de orientação analítica: fundamentos teóricos e clínicos.
Porto Alegre: Artmed, 2005.
GREEN, A. André Green: a clínica contemporânea e o enquadre interno do
analista. Entrevista concedida a Fernando Uribarri. Revista Brasileira de
Psicanálise, v. 46, n. 3, p. 215-225, 2012.
LACAN, J. A metáfora paterna. In: ______. As formações do inconsciente.
v. 5. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. Originalmente publicado em 1958[1957].
LEITE, L. C.; PAIM FILHO, I. A. Novos tempos, velhas recomendações I
(sobre a função analítica). In: ______. Novos tempos, velhas recomendações
70 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Ane Marlise Port Rodrigues, Augusta Gerchmann, Christiane Vecchi da Paixão, Kellen Gurgel Anchieta
sobre a função analítica (1912-2012): Freud – 100 anos depois. Porto Alegre:
Sulina, 2012. cap. 2. Originalmente publicado em 2007.
URIBARRI, F. O pensamento clínico contemporâneo: uma visão histórica
das mudanças no trabalho do analista. Revista Brasileira de Psicanálise, v. 46,
n. 3, p. 47-64, 2012.
Ane Marlise Port Rodrigues
Rua Carvalho Monteiro, 234 / 606
90470-100 Porto Alegre – RS – Brasil
e-mail: [email protected]
Augusta Gerchmann
Rua Florêncio Ygartua, 270 / 1107
90430-010 Porto Alegre – RS – Brasil
e-mail: [email protected]
Christiane Vecchi da Paixão
Rua Ramiro Barcelos, 1793 / 408
90035-006 Porto Alegre – RS – Brasil
e-mail: [email protected]
Kellen Gurgel Anchieta
Rua Florêncio Ygartua, 53 / 406
90430-010 Porto Alegre – RS – Brasil
e-mail: [email protected]
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 71
Um pequeno grande Hans
em três breves atos
Celso Gutfreind1
Resumo: Neste artigo, o autor propõe uma releitura da clássica publicação de Sigmund
Freud referente ao caso do Pequeno Hans, publicado originalmente em 1909. Na primeira
parte, apresenta de maneira breve a personagem conforme as referências originais. Na
segunda, sintetiza aspectos que considera importantes dessa publicação. Na terceira
e principal, retoma o sumo das conclusões que considera fundamental de um estudo
em que ele próprio tentou aprofundar-se no caso com o objetivo de refletir sobre a
atualidade desta obra precursora da psicanálise infantil. Ao final, propõe um balanço
desses pouco mais de cem anos que nos separam do atendimento do Pequeno Hans e
apresenta, a partir ainda do texto de origem, algumas possibilidades de perspectivas e
desdobramentos para a clínica contemporânea da infância.
Palavras-chave: Clínica psicanalítica. O pequeno Hans. Psicanálise da infância.
Introdução
Em 1909, Sigmund Freud publicou As duas análises de uma fobia em um menino
de cinco anos, o clássico caso do pequeno Hans (FREUD, 1909). O historial
acirrou ânimos e deu muito o que falar (ou o que escrever) e, pouco tempo
depois, tornar-se-ia o precursor da psicanálise infantil a partir dos novamente
clássicos trabalhos de Melanie Klein (1923) e Ana Freud (1951), entre outros
desbravadores desse campo.
Escritor e Psicanalista de crianças e adultos pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto
Alegre.
1
72 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Celso Gutfreind
Debruçados sobre essa matéria, ao mesmo tempo clínica e histórica, dividimos o presente artigo em três breves partes a que chamamos atos como
forma de homenagear a nossa personagem que se tornaria na vida adulta, apesar
de tantas desconfianças a respeito de seu prognóstico, um grande e criativo
diretor de ópera.
Na primeira parte ou ato, contamos quem é o pequeno Hans. No segundo
ato ou parte, destacamos alguns aspectos do pequeno Hans de Freud.
Na terceira e última, propomos uma releitura que, entre outras hipóteses,
aponta a impressionante atualidade de uma obra precursora da psicanálise infantil e sua pertinência para o que ainda hoje se faz ou tenta se ampliar em
termos de perspectivas na clínica com crianças. Mais do que isso, pensamos
que se trata de uma publicação marcada por uma pujança que faz da psicanálise, também em seu capítulo infantil, uma verdadeira obra aberta (ECO,
1962).
1 O Pequeno Hans
Viena, começo do século passado. Freud já havia publicado A Interpretação dos
Sonhos (1900) e, como uma criança que se desenvolve, a psicanálise deambulava
e falava muito bem. O criador e sua turma reuniam-se às quartas-feiras para
debater o que aprendiam. O grupo, sugerindo novamente as relações entre
psicanálise e cultura, incluindo aqui a arte, era aberto a não médicos e a não
analistas. Um de seus participantes era Max Graff, um musicólogo pra lá de
erudito, pai do pequeno Herbert Graff, que, pouco tempo depois, se tornaria
mundialmente famoso como O Pequeno Hans.
Freud também já havia publicado seus Três ensaios sobre a sexualidade (1905).
Priorizando, entre os conceitos mais caros à sua teoria, a importância dessa
sexualidade infantil, ele não via crianças diretamente, mas acreditava que quase
vinte séculos de civilização judaico-cristã haviam distorcido o que eram elas de
fato (por fora e por dentro). A criança, segundo Freud, era mesmo provida de
uma sexualidade, pelo menos no sentido freudiano, ou seja, amplo, histórico,
longitudinal do pré-genital ao genital.
Com pouco mais de três anos de idade, o pequeno Hans era um menino
esperto, espontâneo e que, por isso, correspondia na prática aos anseios teóricos
de Freud. Ele se comportava bem mais como uma criança real (de Freud) do
que aquela distorcida (vitoriana) ou idealizada pelos preconceitos de uma cultura
altamente repressora, conforme o mesmo Freud e todos os observadores atentos
aquele período.
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 73
Um pequeno grande Hans em três breves atos
Interessado por pintos e pererecas (pela sexualidade, enfim, em seus representantes genitais) de coisas, pessoas e animais, Hans tentava traduzir em
palavras (representações conscientes) o que sentia sexualmente (a coisa), movido
por uma necessidade de falar e de brincar, verbos e processos tão valorizados
por psicanalistas da infância que vieram ulteriormente.
O pai, ouvinte atento do filho, contava tudo para um Freud que, embora
não atendesse crianças diretamente, exultava ao ver o quanto Hans correspondia ao mundo infantil mais próximo da realidade que ele tentava recompor
nos adultos. Enquanto isso, o pequeno Hans crescia sem maiores – mas com
neuróticos − percalços.
Resumindo o imbróglio de uma vida no seu auge (a infância, para Freud e
todos nós), Hans ganhou uma irmã, pouco mais de um ano se passou, e uma
fobia eclodiu. Sem querer sair do quarto, com medo de ser mordido por um
cavalo numa época plena deles, o menino criou, felizmente, a demanda de um
atendimento, fazendo com que o pai consultasse o seu mestre que imediatamente
topou a parada de acompanhá-los sem soberba, ainda que indiretamente.
Agora sim havia um pedido de dentro para fora, calcado no sofrimento
psíquico, restringindo e ampliando o espaço dos diletantes. Tinha um sintoma
a ser batido, ou seja, clamando por uma história com papéis a serem ocupados
num cenário terapêutico, aberto pelo pai e pelo criador da psicanálise.
Bendito sintoma para Hans e nós todos. No caso dele, permitiu que fosse
atendido (compreendido) e, no nosso, que a psicanálise da infância pudesse
ser construída para muito além do espaço e tempo restritos aos pioneiros
protagonistas.
2 O Pequeno Hans de Freud
Foram quatro meses de um tratamento indireto, quando Freud intercedeu
bem mais como um supervisor. O pai de Hans, banhado pelas ideias do pioneiro,
aproximava-se do filho e, depois de debatê-las com o pequeno, levava o material
ao grande. Tudo impensável e talvez até mesmo selvagem para os dias de hoje,
mas estávamos nos primórdios a desbravar o desconhecido do desconhecido
entre pioneiros como pais, paciente e analista de crianças.
O tratamento, nesses moldes, foi breve, tendo durado os quatro meses
entre janeiro e abril de 1908, tempo suficiente para que o sintoma se esbatesse,
encontrando uma história possível, um ano antes da publicação deste historial
que, entre outros frutos e desdobramentos, tornou-se a base do atendimento de
uma criança através da psicanálise.
74 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Celso Gutfreind
Teoricamente, o caso sustenta os complexos de castração e de Édipo que
se presta para a compreensão do sofrimento de Hans, além de embasarem os
caminhos tortuosos e triangulares da produção de uma fobia. Clinicamente, há
um corte analítico clássico a partir de interpretações realizadas paulatinamente e
sustentadas nessa teoria.
Ao estilo dos historiais freudianos mais tradicionais, trata-se de uma longa
e romanesca obra, descrita em detalhes do princípio ao fim. Não é nosso
objetivo, no pequeno espaço que nos cabe, descrevê-los em pormenores,
porém cabe salientar o cuidado com que o criador da psicanálise (de adultos
e crianças) descrevia o seu atendimento: longamente, sem pressa, longe do
estilo contemporâneo marcado pelas vinhetas, pelos fragmentos, pelo corte2
(GUTFREIND, 2008). Afinal, além de cientista, o clínico-autor era um escritor
de fôlego.
3 O Pequeno Hans de Freud revisitado
Nos anos oitenta do século passado, ainda estudante de medicina e já
interessado em psicanálise, ouvi falar do Pequeno Hans pela primeira vez. Com
alguns colegas, fazíamos um grupo de estudos para arejarmos um pouco das
disciplinas duras da faculdade e encontrar uma abordagem mais integrada e
humanista. A coordenadora, Liliane Fleming3, mencionou o caso e fui atrás.
Eu já tinha feito o mesmo com o Moisés e o monoteísmo que havia lido num fim
de semana como um romance histórico que nada devia aos livros de ficção de
fôlego que à época tínhamos tempo para devorar. Com O Pequeno Hans, o deleite
foi o mesmo, ou seja, mais literário do que científico, saboreando uma narrativa
magistralmente estruturada (com humor) e, depois dessa primeira leitura mais
lúdica, ficamos muitos anos sem nos ler.
Nos anos noventa, uma década depois, já como psiquiatra de orientação
analítica, ao realizar uma pesquisa sobre a utilização terapêutica do conto,
fiquei impressionado com a referência do caso em quase todos os trabalhos
de psicanálise infantil que precisei pesquisar (GUTFREIND, 2002). Ali, não
Em nosso próprio estudo, fizemos a hipótese de que Hans representaria, com o sintoma
fóbico, uma cultura com doses maiores de recalcamento e menores de atenção. Hoje em dia,
o equivalente prototípico de um transtorno seria um quadro de déficit de atenção com hiperatividade, mostrando o quanto os distúrbios, desde a infância, podem ser influenciados pelos
aspectos culturais (idem).
3
Atualmente, professora no Curso de Psicologia da UFRGS.
2
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 75
Um pequeno grande Hans em três breves atos
cheguei a relê-lo diretamente, mas nos reencontramos com frequência no
boca a boca de muitos autores.
Na década seguinte, já psicanalista em formação e num novo século, eu e
O pequeno Hans tivemos aquele que seria, pelo menos até o momento, o nosso
maior encontro. Eu gozava das minhas férias em Gramado, quando desci ao
lobby do hotel para olhar e-mails (o tempo contemporâneo é veloz e, ainda que o
episódio seja recente, o wireless capengava àquela época).
A primeira mensagem vinha do Rio de Janeiro, assinada pela escritora e editora
Nina Saroldi que anunciava uma coleção destinada a reler as principais obras de
Freud e convidando alguns autores para (re) apresentá-las. Fui lembrado para
O pequeno Hans e, embora estivesse concluindo um livro sobre a parentalidade,
não pude deixar de atender o convite, especialmente porque era a primeira vez,
depois de mais de uma vintena de trabalhos, que me ofereciam um adiantamento
para escrever. Além do mais, era fevereiro, mês de mais gastos do que ganhos. A
aceitação, neste clima de sério humor, deu-se sem muita hesitação e com muita
necessidade.
Aproveitei o prazo de um ano até o final, lendo e relendo a fonte, assim
como tudo que pude topar – e não era pouca coisa – a respeito dela. Desse
terceiro encontro, destaco alguns aspectos teórico-clínicos que me acompanham
até hoje. A versão e os conceitos de Freud estavam intactos com uma história
clínica, dando conta do complexo de castração em todas as suas instâncias
desde o medo de um menino sentir-se atraído por uma mãe que não filtrava
a proximidade incestuosa e de ser retaliado pelo pai (com sua sisudez e seu
bigode, posteriormente comparado aos arreios de um cavalo) até o sintoma
fóbico, dando conta de tudo isso e muito mais (o sintoma como uma verdadeira
obra aberta).
Todavia, no meio de uma nova intriga literária entre criador e criatura,
mas já vislumbrando acréscimos científicos, havia sintomas em mim também.
Assim como recebia um adiantamento pela primeira vez para escrever, pela
primeira vez tinha dificuldades de atender a um prazo. À custa de muita
análise (mais pessoal do que didática) em busca de meu próprio pequeno Hans
(sempre disposto a vir à tona a cada transferência dentro ou fora dos livros),
dei-me conta de que revivia uma nova cena edípica com nada menos do que
o próprio Sigmund Freud. Afinal, eu era convidado para reescrever um livro
desta autoridade soberana e mais: desejava e precisava encontrar o meu próprio
caminho, por mais modesto que fosse. Ao final, o que diria o mestre inacessível;
pior, o pai castrador com sua obra falicamente grande e neuroticamente
insuperável...
76 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Celso Gutfreind
Parecia mesmo (como sempre?) um caso de simbiose e individuação. Correto
ou incorreto, maior ou menor, eu necessitava de vir à tona de mais esse cenário
edipiano, anotando verdadeiramente aquilo que seria fruto de uma leitura pessoal
(com seus encontros, evidentemente), legado não desprezível de qualquer leitura
ou análise. Se as teses do mestre inatingível seguiam densas e intactas no século
seguinte, já era possível (com muita psicanálise e literatura, evidentemente)
crescer a partir delas, individualizar-se profissionalmente em relação a elas com
eventuais acréscimos, ou seja, lançar algumas pedrinhas próprias a partir de
uma experiência clínica sempre pessoal em sua co-construção e também do que
pudemos ler do que já fora escrito, desde então, por discípulos que também
superaram, mesmo que em parte, seus complexos edípicos.
Dito isso, podemos pensar que os conceitos (castração, Édipo, fobia) seguiam
intactos à releitura do pequeno Hans, bem como a técnica utilizada, a partir deles,
com interpretações se sucedendo a insights ou entendimentos. A neurose seguia
em riste como a decorrência de pulsões desconhecidas (incestuosas e maternas,
no caso) conforme noções expostas desde os três ensaios, marcadas pela exclusão
e sujeitas a retaliação (paterna) De certa forma, da teoria à técnica, o esforço em
transformar o inconsciente em consciente (a primeira tópica freudiana) a partir
do projeto de uma metapsicologia, continuava vigoroso dentro de uma leitura
tradicional (possível e pertinente) do caso.
Impressiona mesmo é a abertura da obra a novos conceitos (os acréscimos
pessoais) e as possibilidades que oferece para refletirmos sobre o avanço teórico
e clínico no que se referem à psicanálise da criança pós-freudiana. Entre outros
exemplos possíveis e exploráveis no rico material, destacamos a ênfase que viria
a ser dada ao lúdico, o foco no inter e transgeracional, bem como a importância
de mediadores como as histórias que já estavam sugeridas no texto original de
Freud (sempre interessadíssimo pelo conto e pela literatura) e que, por tudo isso,
mostrava-se vigoroso para uma releitura e seus avanços.
Entre as reflexões advindas dessa releitura, destacamos:
I.
Freud, desde o começo, sugeria mais uma vez com propriedade que um
sintoma é uma obra aberta. Afinal, por mais que todo o material clínico caísse
como uma luva para os dedos de sua teoria, o analista negou-se na prática a
concordar com o pai quando esse garantiu que a fobia estava diretamente ligada
a uma estimulação erótica excessiva da mãe que punha o filho para dormir com
ela durante as ausências paternas. Mas aqui havia muito mais do que um elogio
ao tempo e à elaboração: Freud, sem mencionar, expressava o quanto intuía a
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 77
Um pequeno grande Hans em três breves atos
importância de trabalhar, junto às crianças, com a parentalidade (conceito recente
e contemporâneo, pelo menos em sua sistematização) sem exercer críticas a seus
protagonistas (GUTFREIND, 2010a).
Estávamos em 1908, seis anos antes da publicação sobre a introdução ao
narcisismo, e Freud já voava como um clínico capaz de dar conta desses cuidados
ao atender uma família, incluindo, sobretudo, os pais (FREUD, 1914).
Hoje, depois dos aportes winnicottianos, são muitos os estudos e as práticas
clínicas valorizando esse lugar dos pais na psicanálise da criança, o que também
podemos localizar no estudo pioneiro de um Freud já focado em um atendimento
que valoriza o contexto, o ambiente da criança e suas interações com o mundo
interno (ROSENBERG et al., 2002).
II.
O pai do pequeno Hans transformou-se como ser humano ao longo
da narrativa a partir do encontro com Freud. No princípio, ele tinha a ânsia
de interpretar dura e concretamente, correlacionando apressadamente os
eventos observados no filho com as teorias da sexualidade do seu supervisor.
Ironicamente, era o próprio Freud quem o continha, sugerindo que priorizava a
clínica aos conceitos que ele mesmo erigia. Com isso, defendia a criação de um
tempo (a elaboração) e a abertura de espaços co-construídos com o paciente.
Havia ali, muito além das teorias, um encontro interpessoal e a arte da psicanálise
ao conciliar, entre outros desafios, interpretação e tempo.
Aos poucos, tempo a tempo, o pai tornou-se mais lúdico (a brincadeira com
a girafa, por exemplo, entre tantas outras passagens clínicas expressivas), mais
presente, mais acolhedor, com novas e mais positivas representações mentais
de seu filho, e uma de nossas hipóteses, além do que se poderia refletir sobre
a técnica interpretativa, apontou para a importância dessas novas interações na
melhora do Pequeno Hans e o quanto é difícil tratar uma criança sem tratar
também o seu ambiente e/ou propor encontros de maior qualidade, temperados
por uma forma lúdica e divertida de lidar.
Restam, ainda hoje, questões sobre o que teria esbatido os sintomas de
Hans: as interpretações de Freud, devidamente baseadas no complexo de
castração e de Édipo, conceito que conta fortemente com essa obra para o seu
desenvolvimento... Ou foi a proximidade de um pai melhor, propondo relações de
mais intensidade e qualidade?
Na dúvida, atualmente, no dia a dia, entre a nossa clínica e os referenciais que
a sustentam, tentamos, ainda que humildemente, proporcionar os dois, dosandoos a cada caso e suas respectivas evoluções.
78 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Celso Gutfreind
De qualquer forma, o próprio Sigmund Freud, antes dos trabalhos decisivos
de sua filha Anna e Melanie Klein, já abria as portas para o lúdico junto ao
interpretativo, convivência técnica tão em voga nos dias de hoje e não somente
com crianças.
III.
Juntamente com o item anterior, observamos que muitas histórias foram
contadas ao longo das idas e vindas do tratamento do Pequeno Hans. O evento
máximo deu-se no único encontro entre paciente e analista, pelo menos descrito
no livro, já que, como é sabido, Freud conhecia a família e havia tratado a mãe de
Hans anteriormente. No comovente encontro relatado no texto, Freud comunica
ao Pequeno Hans que há muitos anos esperava encontrar o menininho que, de
tanto amar a mãe, temeria o pai.
Ele fala com Deus? – perguntou na saída um Hans quase incrédulo para o pai,
dando conta da satisfação de se sentir compreendido nesta vida, especialmente
depois de um (longo) tempo, trocando histórias ludicamente, ainda que amparado
por conceitos.
Compreendido sim – e nada poderia em psicanálise ou na vida ser mais atual
do que isso − mas também no contexto de um encontro que, além de abrir
espaços, mostra-se repleto de transferências com rearranjos de objetos internos
a partir da empatia que o sustenta e de histórias – o cimento − que são contadas.
A narratividade, portanto, abre um espaço para se pensar na importância da
intersubjetividade, hoje atribuída à psicanálise como, aliás, a sua guardiã num
mundo de imagens tão concretas, de tanta pressa e superficialidade na ingerência de
conflitos. Nesse sentido, a co-construção de um tecido interafetivo mais profundo,
a partir de um encontro, assume um lugar primordial no desenvolvimento da
pessoa. Há autores, inclusive, que chegam a enfatizar a psicanálise como um
dispositivo cujo arsenal tem no implicar-se algo mais importante do que no explicar
(CICCONE, 2007).
Freud, enquanto explicava paulatinamente, implicou-se muito com seu
pequeno paciente, e os estudos da narratividade mostraram-se também
fundamentais nas décadas que sucederam os primeiros trabalhos freudianos.
Podemos mencionar, entre tantos outros, os aportes de Bruno Bettelheim
sobre os contos de fada e, sobretudo, a valorização que Winnicott sempre
atribuiu à construção de um espaço transicional construído entre a mãe e o
bebê, baseado formalmente nas interações entre ambos e com o conteúdo
marcado pelas histórias, pela cultura, pela arte, ou seja, eminentemente narrativo
(BETTELHEIM, 1976; GUTFREIND, 2010b; WINNICOTT, 1971).
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 79
Um pequeno grande Hans em três breves atos
O texto e suas faltas, as emoções e seus preenchimentos promovem essa
ligação: ambos encontram o seu nascimento (ou cura) na palavra. Os processos
narrativos tornam-se, enfim, valiosos para acompanhar o que se passa no
desenvolvimento de uma criança, seja longitudinalmente ao longo de sua
vida, seja na transferência transversal durante o tratamento, quando também
observamos, nos casos de melhor evolução ou descobertas, o surgimento de um
ego mais narrativo (STERN, 1992).
Conclusão
Retomamos, em busca de alguma conclusão possível (mas qual narrativa faria
senão preparar novas questões...), os ânimos acirrados depois da publicação da
obra. Teria sido o pequeno Hans vítima da psicanálise, de seu criador e seus
anseios de construir uma ciência? Seria ele uma criança normal? Portadora de
outros diagnósticos ainda mais graves?
Aqui sobram questões como em torno de toda grande obra, em meio a
um dispositivo (analítico) mais afeito a perguntar do que a responder, mas as
evidências (termo médico bastante utilizado na contemporaneidade) apontam
para o importante fato que, a partir de então, as crianças não precisariam
mais estar reclusas a intervenções educativas, religiosas ou simplesmente
negligenciadas em seu sofrimento psíquico e poderiam agora se beneficiar
de uma escuta analítica, compreensiva, dinâmica. A publicação, no mínimo,
abriu essa valiosa porta, sempre frágil e podendo ser fechada novamente, haja
vista a valorização contemporânea de tratamentos mais breves e/ou
medicamentosos.
Mas novos e importantes precursores a abriram e sucederiam a Freud como
a sua filha Anna, valorizando a importância do desenho ou da preparação da
criança para o atendimento analítico, e Melanie Klein, desenvolvendo o papel
do jogo como equivalente às associações livres (FREUD, 1951; KLEIN, 1923),
tornando a criança analisável, e mesmo o mencionado Winnicott com suas
contribuições valiosas à compreensão do papel essencial exercidos pela mãe e
pelo ambiente. No caso deste, se atentarmos a seu historial igualmente clássico e
de fôlego, The pigle, veremos o quanto há ecos de Hans já na década de sessenta,
quando o caso foi escrito (WINNICOTT, 1979).
Somam-se a eles os novos psicanalistas da infância e sua luta para manter
aquela porta aberta. Em meio a isso, impressiona que Freud, embora seguisse
não atendendo crianças – indiretamente tampouco – tenha fomentado tantas
ideias com essa obra precursora. Acabamos de percorrer algumas delas como
80 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Celso Gutfreind
a parentalidade, a forma lúdica de um tratamento com a aquisição da mesma
pelo cuidador e a narratividade (incluindo, aqui, a importância do inter e
transgeracional), todas assíduas na teoria e na clínica contemporânea, o que
nos permite afirmar que Freud, na continuidade de seu trabalho, à medida que
seguia atendendo adultos com suas crianças recompostas, trazia em seu aparelho
psíquico a noção afetiva e verdadeira de uma criança aqui e agora.
Em outras palavras, talvez não haja psicanálise do adulto que não precise
considerar as noções primordiais da análise de uma criança.
De qualquer forma, o pequeno Hans seguiu com Freud no atendimento aos
grandes, assim como permanece entre nós que atendemos adultos (com suas
crianças internas) e crianças em meio a seus adultos. Ali estão as bases de um
método para compreender a experiência humana que priorizaria a forma ao
conteúdo, tornando-se, de certa forma, mais afeito à poesia de suas entrelinhas
do que à aparente abundância de sua prosa. Parodiando Joyce MacDougall,
poderíamos utilizar aqui a expressão em defesa de certa musicalidade em detrimento
de, simplesmente, uma cura pela palavra.
Mais de cem anos depois da publicação original, pode-se hoje dizer com folga
e afinação que a música deste que se tornaria um diretor de óperas soa ainda e
cada vez mais afinada no dia a dia de nossas análises.
A little big Hans in three short acts
Abstract: In this article, the author proposes a reinterpretation of the classic publication
of Sigmund Freud referring to the Little Hans case, originally published in 1909. The
first part briefly presents the character according to the original references. In the second,
the article synthesizes aspects considered important in this publication. The third and
main part takes the conclusion most important parts that considers fundamental to a
study in which he tried to deepen in the case in order to reflect on the relevance of
this precursor work of child psychoanalysis. In the end, proposes a balance of these
hundred years that separate us from the Little Hans treatment, and presents, from the
source text, some possible prospects and developments for the contemporary clinic for
infants.
Keywords: Childhood psychoanalysis. Little Hans. Psychoanalytic clinic for infants.
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 81
Um pequeno grande Hans em três breves atos
Referências
BETTELHEIM, Bruno. Psychanalyse dês contes de fées. Paris: Robert
Laffont, 1976.
CICCONE Albert. Naissance à lapensée et partage d’affects. Apresentado
no Colóquio Vinculos tempranos, clinica y desarrollo infantil. Montevidéu,
agosto de 2007.
ECO, Umberto. L’œuvre ouverte. Paris: Seuil, 1965. Trabalho originalmente
publicado em 1962.
FREUD, A. Le traitement psychanalytique des enfants. Paris: Puf, 1975.
Originalmente publicado em 1951.
FREUD, S. (1900). A interpretação dos sonhos. In: Edição standard das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. v. 4. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
______. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. 7. Rio
de Janeiro: Imago, 1996.
______. (1909). Duas histórias clínicas (O Pequeno Hans e O Homem dos
ratos). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de
Sigmund Freud. v. 10. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
______. (1914). A guisa de introdução ao narcisismo. In: Obras psicológicas
de Sigmund Freud: escritos sobre a psicologia do inconsciente. v. 1. Rio
de Janeiro: Imago, 2004.
GUTFREIND, Celso. L’utilisation du conte comme médiateur dans le
traitement des enfants séparé de leurs parents : possibilités thérapeutiques
et quelques aspects spécifiques. Villeneuve d’Ascq : Presses Universitaires du
Septentrion, 2002.
______. As duas análises de uma fobia em um menino de cinco anos: o
Pequeno Hans: a psicanálise da criança ontem e hoje. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2008.
______. Narrar, ser mãe, ser pai & outros ensaios sobre a parentalidade.
Rio de Janeiro: Difel, 2010a.
______. O terapeuta e o lobo: a utilização do conto na psicoterapia da
criança. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2010b.
82 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Celso Gutfreind
KLEIN, Mélanie. L’analyse des jeunes enfants. In : Essais de psychanalyse.
Paris : Payot, 1967. Originalmente publicado em 1923.
ROSENBERG, Ana Maria S. et al. O lugar dos pais na psicanálise das
crianças. São Paulo: Escuta, 2002.
STERN, Daniel. O mundo interpessoal do bebê: uma visão a partir da
psicanálise e da psicologia do desenvolvimento. Porto Alegre: Artes Médicas,
1992.
WINNICOTT, D. W. Jeu et réalité: l’espace potentiel. Paris: Gallimard, 1975.
Originalmente publicado em 1971.
______. The pigle : relato do tratamento psicanalítico de uma menina. Rio de
Janeiro: Imago, 1979.
Celso Gutfreind
Rua Des. Moreno Loureiro Lima, 445 / 202
90450-130 Porto Alegre – RS – Brasil
e-mail: [email protected]
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 83
Freud e os pós-freudianos
sobre as patologias atuais
Laura Ward da Rosa1
Resumo: Desenvolve-se um estudo sobre a clínica atual, partindo da descrição freudiana
dos estágios iniciais, que ele designou eu real primitivo, seguido pelo eu de prazer purificado
e chegando ao eu real definitivo, correlacionando a constituição subjetiva e as defesas que
interferem nesse processo. Sabe-se que nas psiconeuroses há um conflito inconsciente, de
natureza edípica, que sofre repressão (Verdrängung) e que estão norteadas pelo princípio
do prazer/desprazer e pelo princípio de realidade. Nas patologias contemporâneas,
deparamo-nos com quadros clínicos mais próximos da descrição de Freud das neuroses
atuais, nas quais não há conflito recalcado, predominando as manifestações diretamente
no soma, pela falta de simbolização. Nesses casos, transitamos pelas defesas do negativo:
Verneinung (denegação), Verleugnung (recusa da realidade) e Verwerfung (forclusão ou
rejeição). Os excessos pulsionais manifestam-se diretamente no corpo, como em
distúrbios psicossomáticos, alimentares e nas toxicomanias, expressões clínicas que
estão além do princípio do prazer, campo do gozo e da pulsão de morte.
Palavras-chave: Defesa. Eu. Fronteira. Gozo. Limite. Prazer.
Grande evolução ocorreu na psicanálise a partir da metade do século passado
até os dias atuais. O psicanalista enfrentou o desafio de atender no território das
bordas e fronteiras, atreveu-se a investigar os chamados casos de difícil acesso,
passou a entender melhor os mecanismos arcaicos do funcionamento psíquico.
Membro Titular da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.
1
84 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Laura Ward da Rosa
Assim, ampliou a clínica psicanalítica, dedicando-se a um grande número de
pacientes que demandam atenção devido ao um tipo de sofrimento, antes não
bem entendido: se o instrumento é a palavra, eles não sabem falar; se o recurso é
expressar os afetos, eles não podem senti-los. Aos desvalidos do recurso simbólico
restava, antes, buscar dar vazão a esse tipo de angústia, advinda diretamente do
soma: comer em excesso ou não poder alimentar-se, usar drogas cada vez mais
potentes e aprimoradas no seu poder destrutivo, além de nicotina e álcool, ditas
lícitas, num paradoxo questionável para uma sociedade ávida de experiênciaslimite. Também esses pacientes podem apresentar compulsões variadas e
mesmo lesões em órgãos vitais, como nas manifestações psicossomáticas.
Detectamos, ainda, a produção de marcas corporais em tatuagens e piercings ou
em cortes autoengendrados na busca do registro de uma identidade falha. Pela
impossibilidade de tramitar a angústia por meio da palavra, verificam-se passagens
ao ato, visando ao alívio do excesso de puras quantidades, não qualificadas, da
tensão intrassomática. Poder trabalhar nessa fronteira é tarefa do psicanalista
de nossos dias, após adentrar na psicopatologia dos estágios mais primitivos do
funcionamento psíquico.
É importante ressaltar que Freud, bem no início de suas observações sobre a
histeria, em seu artigo As neuropsicoses de defesa, de 1894, estudando a constituição
do eu e os mecanismos de defesa, destaca a ocorrência de neuroses mistas, com
o aparecimento simultâneo de fobias e sintomas histéricos, como algo frequente
na clínica. Afirma, ainda, que o eu, para escapar de uma ideia incompatível, pode
refugiar-se numa psicose alucinatória, afastando-se da realidade. Nesse caso, é
claro e preciso ao afirmar:
Há, entretanto, uma espécie de defesa, muito mais poderosa e
bem-sucedida. Aqui o ego rejeita a ideia incompatível juntamente
com seu afeto e comporta-se como se a ideia jamais lhe tivesse
ocorrido. Mas, a partir do momento em que o tenha conseguido,
o sujeito encontra-se numa psicose, que só pode ser qualificada
como confusão alucinatória (FREUD, 1894, p. 71).
Era já a genial captação da Verwerfung, que vai ser depurada somente a partir de
1925, no artigo Die Verneinung – expressão erroneamente traduzida por A negativa,
hoje admitida como denegação. Nesse trabalho, Freud aborda a questão das ideias
reprimidas (Verdrängung), que somente podem ser admitidas na consciência se
estiverem negadas. Desse modo, a Verneinung expressa a dupla operação de negar
algo, ao mesmo tempo em que o confirma. Dentre as negações constitutivas
do sujeito, encontram-se ainda a recusa da realidade (Verleugnung) e a forclusão,
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 85
Freud e os pós-freudianos sobre as patologias atuais
repúdio ou rejeição do significante primordial (Verwerfung) – esta muito mais
radical – que são justamente as defesas predominantes nas patologias das bordas
e fronteiras. Freud usou os dois termos de maneira bastante ampla. É com
Lacan, porém, que o vocábulo Verwerfung ganha status de mecanismo específico
das psicoses, que ele traduziu por forclusão, conferindo a essa defesa o papel de
excluir o pai simbólico como significante primordial. Dirá, então, que o Nome do
Pai é o objeto da rejeição e que estará forcluído nas patologias mais graves. Essa
rejeição impede o sujeito de simbolizar a castração e, desse modo, de admitir a
falta e o limite.
Partindo de Freud, no Projeto para uma psicologia científica, de 1895, e nos seus
desenvolvimentos posteriores, bem como nos autores pós-freudianos, chegamos
à compreensão das patologias contemporâneas como falhas na organização do
eu real primitivo, por traumas precoces que determinam pontos de fixação nos
estágios mais iniciais da constituição subjetiva. Assim, Freud descreve um estágio
inicial pré-psíquico, a partir do nascimento, no qual existe uma organização
neuronal capaz de originar uma consciência sensorial, derivada da percepção
de estados corporais. As experiências subjetivas primitivas estão intimamente
relacionadas às sensações oriundas do corpo; nesse estágio em que o ego se
compõe de núcleos aglutinados (BLEGER, 1977), ainda não houve a integração. O
segundo tipo de consciência seria já de natureza propriamente psíquica, a partir
da ativação de marcas mnêmicas que, então, expressariam pensamentos regidos
pelo processo secundário.
O período neuronal inicial funciona a partir de estímulos exógenos e endógenos, e capta apenas quantidades que são descarregadas ou em contrações
musculares ou pela via endógena, por meio de secreções e mecanismos
vasomotores. Esse período, que Freud chamará eu real primitivo, rege-se
pelo princípio de constância, através do qual os estímulos captados pelo
polo perceptual, vindos do exterior ou desde o interior do organismo, são
descarregados pelo polo motor, seguindo o modelo do arco reflexo. A função
principal do eu real primitivo, de acordo com a pulsão de autoconservação, é
promover a eliminação dos excessos de tensão e manter o aparelho psíquico em
níveis de mínima excitação compatível com a vida. Para tanto, esse eu primitivo
deve adquirir a capacidade de discriminar o dentro e o fora, aprendendo os
distintos momentos dos ritmos biológicos de satisfação das necessidades,
fornecida pela ação específica promovida pela mãe, que empatiza e satisfaz o seu
bebê. Se há sintonia entre a necessidade e a satisfação, promove-se o bem-estar
básico, com a descarga que produz alívio das tensões e prazer – embora nessa
fase unicamente de órgão.
86 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Laura Ward da Rosa
Ainda não estamos no princípio do prazer, que se instala mais tarde com o
eu de prazer purificado. Sabe-se que dos estímulos internos não é possível fugir.
Quando há falha nesse mecanismo de equilíbrio, quando não há sintonia entre as
necessidades e as demandas do bebê e a oferta materna ou do objeto cuidador,
forma-se um ponto de fixação originado pelo acúmulo de excitação e pelo
incremento da angústia que será, então, descarregada diretamente nos órgãos
vitais – como o aparelho respiratório, o circulatório e o digestivo, primeiros
investimentos libidinais que, a partir do nascimento, mantêm a sobrevivência – ou através da pele, como envoltório e elemento de contensão corporal.
Winnicott (1990) captou a importância da sintonia materna em relação às
necessidades do bebê e estabeleceu os conceitos de mãe suficientemente boa e
preocupação materna primária para expressar o papel central da mãe: de estar
atenta, decodificar e satisfazer adequadamente o filho nos diferentes momentos
evolutivos. Pesquisas demonstram a importância dos ritmos e sintonias na relação
mãe-bebê, as vicissitudes desse encontro e a comprovação do quanto a patologia
materna pode determinar manifestações sintomáticas no pequeno ser, que não
tem recursos próprios para contrapor-se às intrusões ou desconexões maternas.
Tustin (1990) descreveu núcleos autistas em pacientes neuróticos graves, nos
quais há pontos cegos relativos aos processos cognitivos e afetivos capazes de
encapsular o sujeito pela falta de percepções e representações adequadas de si
mesmo e do mundo circundante. Sabemos que as pulsões, por serem somáticas,
para chegarem a expressar-se psiquicamente, necessitam do representante
representativo e do afeto, que promove ligações ao objeto e outorga qualidade
psíquica. Para que haja consciência, é necessário o investimento afetivo. O
componente mais importante do afeto é o que Freud chamou de matiz, sugerindo
que, quanto mais atuante, mais o sujeito adquire condições para fazer ligações,
para captar a realidade e ter consciência adequada do mundo externo.
Green (1993) desenvolveu a concepção de clínica do vazio, ou do negativo,
também chamada de série branca, que engloba a psicose branca ou núcleo psicótico
sem psicose, a alucinação negativa e o luto branco. Essas patologias originam-se
em sérias alterações na capacidade de representação, devido a uma relação mãebebê extremamente perturbada, que compromete a constituição do eu e, como
consequência, do supereu, com profundas distorções e alteração da capacidade
simbólica. Para Green (1993), o mecanismo de defesa fundamental nesses casos
é o desinvestimento. Nesses quadros clínicos, há um desinvestimento massivo,
por parte do objeto, o que deixa marcas no inconsciente, como se fossem buracos
psíquicos. O sujeito apresenta uma vida vazia, com manifestações de fracasso
profissional ou amoroso, com repetição de abandonos, enfim, desvitalizados. O
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 87
Freud e os pós-freudianos sobre as patologias atuais
complexo da mãe morta evidencia uma depressão branca, no sentido de que não
se trata da perda real do objeto, mas de sua presença, porém sem afeto. A mãe
ausentou-se de seu filho e ficou absorta, narcisicamente, em seu próprio luto.
A criança sofre esse desinvestimento súbito e se identifica com o vazio da mãe
desvitalizada – o que Green (1988) chama de identificação negativa, porque não
se dá com o objeto, mas com o vazio deixado pelo desinvestimento.
Marty (2003) apresentará outra abordagem, mais especificamente referindo-se
ao paciente psicossomático e às neuroses de caráter. Nesses pacientes, pelo vazio
representacional, não há vida fantasmática. O sujeito apresenta-se sobreadaptado
e apegado ao discurso factual. O pensamento operatório, isto é, sem ligações
com percepções e fantasias, limitado no acesso aos símbolos, torna-o apegado
ao concreto e impede a expressão dos afetos, de modo a configurar-se uma
verdadeira vida operatória. Esta, geralmente, está ligada à depressão essencial,
que consiste numa depressão sem objeto, sem culpa e sem autoacusação. A ferida
narcisista e o déficit de trabalho mental incrementam a repetição da descarga dos
excessos unicamente por via somática, razão pela qual os pacientes adoecem no
corpo, sofrendo lesões que refletem a dificuldade de tramitar a angústia pelo uso
da linguagem.
Devemos a Lacan (1957-1958) um importante legado na compreensão das
patologias contemporâneas, no sentido de diferenciar necessidade, demanda e
desejo, por um lado, e prazer e gozo, por outro. Sabemos que Freud utilizou
a palavra alemã lust para designar prazer e a palavra genuss, quando se referia a
gozo – descrito como prazer extremo, êxtase ou volúpia. Usou, porém, poucas
vezes a segunda, e não seguiu aprofundando essa distinção. Lacan dedica-se
intensamente a esse estudo a partir de 1960. Considera o princípio do prazer
como homeostático, o que promove o equilíbrio psíquico, impedindo o excesso,
que chama gozo, porque só pode se manifestar no corpo.
Tanto na clínica dos distúrbios alimentares como nas toxicomanias essa
diferenciação é importante. Na necessidade, o sujeito satisfaz-se com o objeto
em si; embora saibamos que ela não exista em estado puro, sempre há um signo
de linguagem que a acompanha. Na demanda, porém, sempre está implicado
um Outro, porque ela é uma demanda de amor. A mãe que a criança solicita
não só satisfaz a necessidade de alimento como também expressa o amor e
o olhar de ternura, de reconhecimento do filho como sujeito. Sabe-se que
na base da anorexia e da bulimia esse dilema se presentifica, de maneira que,
no plano da necessidade, a criança foi atendida, por vezes até alimentada em
excesso, enquanto no da demanda foi ignorada, não atendida no sentido do
afeto e do olhar que transmite a aprovação, necessário ao narcisismo trófico.
88 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Laura Ward da Rosa
A partir desse desencontro inicial, desse trauma precoce e intenso, o sujeito
passará a rejeitar a demanda, pelo mecanismo da forclusão, enquanto recusa
a necessidade de alimento. O abandono ou a diminuição do investimento na
criança determina uma espécie de refluxo narcísico no qual o sujeito passa a
preocupar-se excessivamente consigo mesmo, numa luta paradoxal com o objeto
da necessidade, o alimento.
A descoberta de Freud trouxe à luz a constituição do corpo erógeno,
construído a partir do corpo biológico, através do investimento afetivo que
coloniza inicialmente as zonas erógenas para depois ser concebido como toda
uma superfície capaz de excitação sexual e, portanto, de inscrições dos estímulos sensoriais. Quando o corpo real não passa por esse processo, o significante permanece desligado da representação simbólica, mudo às emoções
e às manifestações da pulsão de vida, como constatamos nos casos de anorexia, na qual o soma predomina, numa fixação masoquista de excitação que
ultrapassa os limites do prazer, atingindo o domínio do gozo, conceituado
por Lacan como todo o excesso para além do princípio do prazer, algo que
extrapola e passa a produzir dor e sofrimento – campo privilegiado da pulsão
de morte.
Também nos casos de drogadição encontramos essa luta necessidadedemanda e a busca constante do objeto droga. A clínica demonstra que o
toxicômano utiliza-se do recurso químico para tentar se afastar do Outro que
é excessivamente presente, desenvolvendo o que Fédida (2002) chama adição
da ausência. Observa-se que, nesse âmbito das patologias contemporâneas, a
marca básica na determinação dos sintomas é a presença, no inconsciente, do
objeto tirânico que não se afasta e que submete o paciente aos seus desígnios.
Winnicott (1990) advertira a importância da mãe que saiba falhar, no momento
certo, para liberar seu bebê, de modo a proporcionar ao filho a autonomia e
o desenvolvimento adequados. Lacan (1956-1957) trabalhou muito a função
indispensável da falta, descrevendo suas três dimensões: a frustração, a privação
e a castração.
Desde Freud sabemos que, para que se instale o símbolo, é necessária a
configuração da ausência; o processo de subjetivação coincide com a perda do
objeto, para que se adquira a capacidade simbólica. Essa perda provocadora de
desprazer é o que impulsiona o psiquismo à representabilidade da ausência e,
uma vez se admitindo a falta, à aquisição do próprio desejo. Mas, para tolerar
essa perda, é fundamental contar, no início, com a presença e o amor de um
Outro, holding (Winnicott) ou continente (Bion), que forneça as condições necessárias
à sobrevivência e à subjetivação. A mãe deve retirar-se progressivamente,
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 89
Freud e os pós-freudianos sobre as patologias atuais
respeitando o limite e o tempo do advir do sujeito. Esse movimento, a mãe
dos pacientes portadores das patologias atuais não proporciona. Ela é plena,
narcísica, apossa-se do filho, condenando-o à alienação.
Assim, para Cláudia, que está com doze quilos a menos do que deveria para a
sua altura, por mais que evite comer e malhe na academia até a exaustão, sempre
se acha gorda e é advertida pela mãe de que tem pneuzinhos em sua cintura.
Ela não encontra o prazer de uma boa refeição porque o espelho, seu algoz,
sempre lhe sussurra que existe outra mulher mais bela do que ela: sua mãe magérrima
e vampiresca, a cobrar-lhe magreza, não lhe permitindo desenvolver formas
femininas e desfrutar da sexualidade e do prazer genital, obrigando-a ao gozo
tanático, de características orais. Ao permanecer capturada no desejo da mãe,
evidencia-se a falta do pai, que pudesse interditar a relação simbiótica mãe-bebê,
instalando a lei da proibição do incesto, ao privar a mãe de seu bebê e instalar
a castração simbólica. Vê-se claramente a operação da Verwerfung rejeitando a
entrada do terceiro, no caso o pai, que opere a separação. Desse modo, a falha da
função paterna impede a instalação da alteridade e da diferença.
Lacan (1957-1958) destacou a importância da resolução positiva do
complexo de Édipo para que os pais ocupem os devidos lugares, possibilitando
o desenvolvimento adequado do filho. Assim, a mãe que admite a necessidade
do homem para a concepção e a criação do bebê reservará o lugar do pai. O
exercício da metáfora nome do pai, ou função paterna, é o elemento estruturante
da constituição subjetiva. Ao contrário, quando a mãe se apossa narcisicamente
do filho, desvalorizando e afastando o companheiro, a separação não ocorre.
A criança permanece, então, alienada ao desejo da mãe. Cláudia me relata,
com expressão de triunfo, sua satisfação ao dominar a fome, tomando copos
d’água, fazendo exercícios e fumando até cair morta de cansaço na cama e dormir.
Quando consegue não comer, considera-se vitoriosa, acima dos comuns mortais,
que precisam alimentar-se. O gozo, diferente do prazer, coincide com o excesso
e com o máximo de angústia pelo risco de, repetidamente, desafiar a morte.
Na anorexia, a forclusão é plenamente detectada na alucinação negativa do
corpo real, visto no espelho como aumentado, enquanto a realidade demonstra
o oposto. Há uma enorme distorção da percepção de si mesmo e da imagem
corporal.
A compulsão pelas situações de risco também encontro em Henrique, campeão de motocross, que exibe com orgulho suas cicatrizes por fraturas múltiplas.
Afirma que jamais deixará de correr porque a adrenalina da velocidade e dos
perigos que enfrenta é sua razão de viver, porque, quando sofre uma fratura,
é quando sente que tem um corpo. Tudo o que não foi simbolizado aparece
90 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Laura Ward da Rosa
no Real, diz Lacan. As cicatrizes precisam tornar-se visíveis para que o sujeito
perceba que tem um corpo.
Green (1990) propôs uma nova clínica psicanalítica para esses casos, a que
prefere chamar de loucuras privadas, enquanto diferentes autores utilizam distintos
termos, como pacientes de difícil acesso, alexitimia ou patologias do desvalimento, segundo
Maldavsky (1992). Esses quadros clínicos produziram uma mudança importante
no settting. Não se trata mais somente de levantar a repressão de um conflito
neurótico, mas de ajudar o paciente a simbolizar ou a integrar aspectos cindidos
do eu. Não mais interpretações do reprimido, mas construções que promovam
ligações, elaborações e historização. O trabalho nesse território de fronteira
implica considerarem-se o nível de regressão e os tipos de repetição.
Destacam-se, assim, dois tipos de repetição: as repetições que aparecem no
discurso, que têm acesso à palavra e que, portanto, estão ligadas a representações;
e as repetições em ato, nas quais não houve inscrição e que se expressam na
conduta, por passagens ao ato, ou diretamente no corpo, por meio de lesões
somáticas. Nesse sentido, Marty (2003) avalia o grau do que chama mentalização
do paciente, que inclui a atividade representacional e a capacidade fantasmática. Ele
considera dois tipos de somatização: um, mais benigno, no qual predomina um
funcionamento mais organizado, do tipo neurótico, no qual se podem manter o
setting clássico e o uso do divã; outro no qual houve desligamento pulsional. O
eu não logrou uma organização neurótica, por traumas precoces e profundos,
determinando uma fixação narcisista que resultou numa vida operatória, que
inclui a depressão essencial e o pensamento operatório. O sujeito funciona sem
tonalidade afetiva, sobreadaptado, com pensamento concreto e ausência de
fantasias. Neste caso está contraindicado o dispositivo analítico clássico e o uso
do divã porque há a necessidade do contato visual com o analista, que se vale de
sua capacidade empática para fornecer os signos e a expressão do afeto, que o
paciente não pode sentir. A exigência ao trabalho do analista é significativamente
aumentada.
Concluindo, lembramos que Freud afirmou ser uma pré-condição, para
que haja um perfeito ajuste ao princípio da realidade, que o objeto tenha sido
perdido, para que o encontro seja, de fato, um reencontro. Os pacientes das
patologias contemporâneas são justamente aqueles nos quais não se deu a perda
do objeto que Lancan chamou de objeto a, predominando o registro do real,
em relação ao simbólico e ao imaginário. Cabe ao analista a tarefa de tentar iniciar
esse processo constitutivo da subjetividade, propiciando ao analisando a
simbolização e a posse de seu próprio desejo. Ser ou não ser, disse Hamlet, eis a
questão.
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 91
Freud e os pós-freudianos sobre as patologias atuais
Freud and post-freudians about current pathologies
Abstract: The current clinical approach is discussed based on Freud’s description of
initial stages, which he called the real primitive ego, followed by the purified pleasure
ego and by the real definitive ego, establishing a correlation between the subjective
constitution and the defenses that interfere with this process. It is commonly known
that in psychoneuroses there exists an unconscious conflict, oedipal in nature, which
endures repression (Verdrängung), and that these psychoneuroses are guided by the
pleasure/unpleasure principle and by the reality principle. In contemporary pathologies,
we are faced with clinical pictures that closely resemble Freud’s description of actual
neuroses, in which no repressed conflict exists, with predominance of manifestations
directly in the soma, due to the lack of symbolization. In these cases, defenses involve
negative mechanisms: negation (Verneinung), disavowal (Verleugnung) and foreclosure
(Verwerfung). Excessive drives manifest themselves directly in the body, as occurs in
psychosomatic and eating disorders and addictions, clinical expressions beyond the
pleasure principle, the enjoyment field and the death drive.
Keywords: Boundaries. Defense. Ego. Enjoyment. Frontiers. Pleasure.
Referências
BLEGER, J. Simbiose e ambiguidade. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.
FÉDIDA, P. Dos benefícios da depressão: elogio da psicoterapia. São Paulo:
Escuta, 2002.
FREUD, S. (1894). As neuropsicoses de defesa. In: ______. Obras psicológicas
completas. v. 3. Rio de Janeiro: Imago, 1980. p. 71.
______. (1895). Projeto para uma psicologia científica. In: ______. Obras
psicológicas completas. v. 1. Rio de Janeiro: Imago, 1980.
______. (1925). A negativa. In: ______. Obras psicológicas completas. v. 19.
Rio de Janeiro: Imago, 1980.
GREEN, A. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. São Paulo: Escuta,
1988.
______. De locuras privadas. Buenos Aires: Amorrortu, 1990.
92 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Laura Ward da Rosa
______. El trabajo de lo negativo. Buenos Aires: Amorrortu, 1993.
LACAN, J. A relação de objeto. In: ______. O seminário, livro 4: A relação de
objeto. Rio de Janeiro: Zahar, 1995. Originalmente publicado em 1956-57.
______. As formações do inconsciente. In: ______. O seminário, livro 5:
As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. Originalmente
publicado em 1957-58.
MALDAVSKY, D. Teoria y clinica de los procesos tóxicos. Buenos Aires:
Amorrortu, 1992.
MARTY, P. La psicosomática del adulto. Buenos Aires: Amorrortu, 2003.
TUSTIN, F. Barreiras autistas em pacientes neuróticos. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1990.
WINNICOTT, D. W. O ambiente e os procesos de maturação: estudos sobre
a teoria do desenvolvimento emocional. 3. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
Laura Ward da Rosa
Rua Dona Laura, 207 / 402
90430-090 Porto Alegre – RS – Brasil
e-mail: lauraros@terra .com.br
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 93
Mal Estar na cultura:
diálogo com Freud, Herr
Professor
Silvia Brandão Skowronsky1
Resumo: Reflexões sobre os cem anos da psicanálise de Freud, legado fundamental e
fundante, fonte de transmissão de conhecimento propício para pensar, na atualidade,
sobre o Mal Estar. Atualizar a memória cria elo entre passado e futuro. Movimento que
viabiliza representações, condição para narrativas singulares e historizantes. Construção
psíquica que contém as marcas de nascença desde a biologia na complexa articulação
com a cultura.
Palavras-chave: Desamparo. Inconsciente. Mal Estar. Psiquismo. Representação.
Violência.
Existem muitos modos de estar no mundo. Além da diversidade, o modo
de estar no mundo se altera, muda com o tempo. Há um século, a psicanálise
de Freud descobriu que o humano é múltiplo e singular, e que o mundo é
mais complexo do que alcançamos pensar. Freud apontou a possibilidade de
transformação do desamparo humano em pensamento e história.
Há cem anos, Freud interrogou o conhecimento e o saber. Sistematizou
seus achados a partir dos instigantes desafios demandados pelos sintomas das
histéricas. Fundou a psicanálise com a descoberta do inconsciente. Definido
atemporal, condição da memória, do esquecimento, com a especial qualidade de
significação a posteriore, de retrospectiva, nachtraglich.
Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.
1
94 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Silvia Brandão Skowronsky
A psicanálise de Freud inaugurou uma concepção original e inédita, na qual
se inclui a proposta da noção de psiquismo articulado entre o biológico e a
cultura. Contém ambas as perspectivas, sua teoria do funcionamento psíquico
constrói a ideia de um psiquismo capaz de trabalhar. Como o trabalho psíquico
da elaboração onírica, de sintomas, na elaboração do luto, na capacidade de
simbolização e de construção de representação psíquica.
A realidade psíquica é a marca humana da singular verdade vivencial, que
afirma versão diferente da versão histórica, factual e material, essa condição
situa que a verdade é multideterminada, perspectiva que descentra qualquer
certeza. Eis a incerteza para indagação, para interrogação da análise do campo
inconsciente.
A proposta freudiana da realidade psíquica, com a versão vivencial e singular,
abre o tempo do inconsciente, especial marca daquilo experimentado, um limite
do representável, ou do excesso, pensável ou não. Nesta perspectiva, quem fala
não é quem diz. Quem é, nem sempre é quem pensa que é. Campo propício para
as indagações com o método inventado por Freud.
Freud trabalhou cinquenta anos na construção da concepção teórica da
psicanálise. A metapsicologia pode ser considerada como um mapa de cada época,
pode ser estudada, revisitada, e revisada com a inclusão de novos conhecimentos.
A elaboração conceitual não se demarcou de uma só vez, gradativamente se
complexizou. Nesse sentido, a cronologia nem sempre indicou avanço teórico,
mas numa perspectiva dialética, a evolução do pensamento e do corpo teórico
freudiano foi se articulando. Desenvolveu a concepção de inconsciente, da
sexualidade infantil (teoria do narcisismo e do complexo de Édipo), e a teoria das
pulsões com seus destinos, como o recalcamento e a sublimação. A concepção
de psiquismo situa a importância da noção de representação.
A ideia de psiquismo supõe delicada construção. Envolvida com a
sexualidade, articulada na experiência de satisfação, de um lugar narcisista para a
vivência triangular, edípica, com os limites do interdito ao incesto, que introduz
importantes leis humanas, de respeito às diferenças e de direitos partilhados.
Lugar da ética da responsabilidade. O psiquismo, como uma marca de nascença
contém o biológico, o herdado, o adquirido e o construído.
Freud, no decorrer de sua obra, indagou problemáticas que irradiavam
desafios, para pensar soluções e respostas conceituais. Solucionou os desafios
da neurose2, modelo em que a elaboração psíquica e a representação com o
Problemáticas da neurose: os sintomas neuróticos desafiaram a construção de paradigmas
e levaram à elaboração do modelo do sonho e a concepção da neurose, situando um lugar
2
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 95
Mal estar na cultura: diálogo com Freud, Herr Professor
recalque criam sonhos e sintomas; os desafios do traumático3; e os desafios da
não neurose4, modelo que nasce da falha ou da falta de representação psíquica.
Construção conceitual que organizou modelos e alguns paradigmas.
Resumindo, com Freud temos o tempo do inconsciente, que mediante a
representação se faz revelável com a palavra; o tempo do trauma, expressão do
excesso, com angústia que demanda elaboração, com a mediação psíquica; e o
tempo do ato, expressão em ação sem representação. A procura de saber abre o
tempo da pergunta!
Um grande desafio humano é saber viver o tempo, e, incluir o saber do tempo
precedente5. Saber o valor de raízes e asas. Solucionar a questão da fome e do
amor é um significativo esforço humano que cria contradições. Poder é uma
problemática de outra natureza. A simbolização é um patrimônio da humanidade
que inventa inúmeras soluções.
Os humanos nascem desamparados, despreparados e dependentes de
cuidadores, chamados de mãe e pai, cuja função é alimentar com a experiência
de viver em dois, em três, com o múltiplo, no mundo. É o infantil do humano,
raiz que abriga as asas. Paradoxal dependência de um cuidador, pois dela nasce
a capacidade de autonomia. A condição de desamparo atribui especial lugar ao
materno e ao paterno na experiência infantil, demanda de um verdadeiro ninho
criador, porque tem a potência de organizar recursos para a vida adulta, e contém
o paradoxo das posteriores dificuldades e limitações.
Para Freud, o psiquismo foi construído desde o nascimento, a partir da
condição de desamparo, apoiado nos cuidados do semelhante, na direção
de complexidades adquiridas, cada vez maiores. Movimento que articula a
experiência humana de uma dimensão biológica para uma dimensão psíquica,
incluindo a dimensão da cultura. O humano é múltiplo e particular, um singular
central para a representação da pulsão sexual. Supõe a problemática do conflito intrapsíquico, da transgressão, e do recalque como destino da pulsão sexual. Pressupostos conceituais:
inconsciente (representação e recalcado), a sexualidade infantil (pulsão sexual, narcisismo e
Édipo), e a transferência (repetição e atualização a posteriore).
3
A problemática da angústia: desafia porque inexiste representação, assim uma intensidade, um
excesso, inunda o psiquismo, que fica incapaz de mediação psíquica. Pressuposto conceitual: o
trabalho de elaboração e mediação psíquica realizado pelo ego, define a importância da representação psíquica e os efeitos do não representado.
4
A problemática da não neurose: desafio originado pela compulsão à repetição, um agir carente
de representação, como um irrepresentável com risco destrutivo. Pressuposto conceitual: a
concepção de pulsão de morte. A representação tem seus limites.
5
As influências dos antepassados, ou dos contemporâneos, provocam admiração e concordância ou aversão e críticas, e constroem a base das ações humanas transformadoras.
96 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Silvia Brandão Skowronsky
ser. A interação humana consigo mesmo e com o mundo desafia o equilíbrio
psíquico. Paradoxo de recursos e fragilidades, condição propícia aos efeitos do
aleatório, que abriga possíveis causas de mal estar humano.
Para dialogar com o mal estar vamos interrogar o tempo, que só pode ser
apanhado numa narrativa. Um recurso é a memória, que nos leva em qualquer
tempo vivido. Precisamos do contexto. A história contém o relato. Pensar as
passagens do tempo situa um contexto, mesmo enquanto atualizada contém o
antigo ainda presente.
Reflexões de Freud sobre o mal estar na cultura
O mal estar na cultura, hoje, conserva alguma relação com as reflexões de
Freud em 1930? Com capítulos iniciados no outono de 1927, que chamou de
Infelicidade na Cultura, Freud pergunta: porque é tão difícil para o ser humano
conseguir a felicidade?
Descreve três fontes do penar humano: a potência da natureza; a impotência
humana, na fragilidade cósmica e nos limites do corpo; e a insuficiência de
normas para regular os vínculos recíprocos, nas famílias, no estado, na sociedade.
Em Mal estar na cultura, 1930, observa que grande parte da miséria humana
tem relação com a cultura. O tema principal é sobre o irremediável antagonismo
entre as exigências pulsionais e as restrições impostas pela cultura6. Considera que
a pulsão sexual, em especial a sexualidade infantil, sofre os efeitos da obediência
às imposições da cultura, já a violência escapa. Razão para abordar o tema na
perspectiva da pulsão de morte.
O Mal estar na cultura, 1930, foi escrito no tempo da ascensão do nazismo,
perto do tempo da Segunda Guerra Mundial, e no momento em que Freud
está com câncer. No tempo que já dominava conceitualmente os fundamentos
da psicanálise, apoiado no saber que construiu pouco antes de 1900, época do
nascimento da psicanálise.
A psicanálise de Freud não se propõe a desenvolver uma visão de mundo,
uma weltanschauung, que ele assim descreve:
Entendo que uma cosmovisão é uma construção intelectual,
que soluciona de uma maneira unitária todos os problemas de
nossa existência, a partir de uma hipótese suprema. Dentro dela
“O incesto é antissocial, a cultura consiste na progressiva renuncia a ele” (FREUD, 2000,
p. 299).
6
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 97
Mal estar na cultura: diálogo com Freud, Herr Professor
nenhuma questão permanece em aberto, e tudo tem seu lugar
preciso. Possuir uma cosmovisão está entre os desejos ideais dos
homens (1932b, p. 146).
A psicanálise está inapta para a ideia de unicidade. Freud propõe a inclusão
de complexidades, que encontram múltiplas articulações e inúmeras respostas,
dificilmente enquadráveis em uma única solução, ou verdade.
No Mal estar na cultura, 1930, Freud não diferenciava civilização de cultura7.
Define civilização como tudo que distingue o homem do mundo animal,
tudo que o afasta de sua natureza. Significa emancipação da existência bestial.
Civilização inclui o controle do homem sobre a natureza e o conjunto de regras
e leis que organiza e rege os relacionamentos humanos. Cultura é, em síntese, o
patrimônio da construção de invenções e soluções de progresso e a articulação
complexa dos vínculos humanos. Cultura significa também as peculiaridades e
idiossincrasias que marcam uma época.
Freud (1930) desenvolve a tese de que a cultura causa mal estar aos humanos,
pois implica em renúncias. Afirma: “A liberdade individual nunca foi patrimônio
da cultura” (p. 94). Pensa que “O poder da comunidade se impõe como direito
sobre o poder do indivíduo. A substituição do poder do indivíduo pelo poder da
comunidade, é um passo cultural decisivo” (Ibid., p. 94).
Ilustrou esse pensamento em 1913, no texto Totem e tabu. Freud descreve a
origem evolutiva humana, um relato da passagem da natureza para à experiência
de hominização. “No começo foi a ação” (p. 162). O pai da horda primeva
canibal, dono de todas as fêmeas, foi morto pela revolta dos filhos excluídos, e
devorado num ritual canibalístico. “Unidos, os filhos conseguiram fazer o que
individualmente seria impossível” (Ibid., p. 143).
O parricídio marca a origem da civilização. Irradia efeito e consequência, que
constitui uma organização social, quando introduz o totem, em homenagem ao
pai morto, agora deificado e respeitado. O que impõe o mandamento ético, a
obediência simbólica, o tabu do incesto, e a exogamia representando a ordem
social, de respeito geracional e ao fraterno. São os pilares da civilização, definindo
o roteiro do drama como distinto do roteiro da tragédia.
Do ato, com a violência, para a experiência com a sexualidade, na dimensão
do horror do incesto, nasce a marca humana.
“Cultura designa a soma total de operações e normas que distanciam nossa vida da de nossos
antepassados animais, e que servem com fins de proteção do ser humano frente a natureza e a
para a regulação dos vínculos recíprocos entre os homens [...]” (FREUD, 1930, p. 88).
7
98 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Silvia Brandão Skowronsky
O nascimento da cultura impõe renúncia. As leis do tabu, com a proibição do
canibalismo e do incesto, substituem o ato animal por uma perspectiva simbólica,
privilégio humano, e lugar de obediência à lei. Freud coloca a civilização na
perspectiva de proteção, de evitar o sofrimento e de oferecer segurança, mesmo
que isto signifique colocar o prazer em segundo plano.
A ideia da cultura humana, na perspectiva de sujeito, supõe o caminho na
direção do reconhecimento da alteridade, dimensão além de si mesmo, assim
se inclui o coletivo e o social, como diferente de indivíduo, ou de individual,
incluindo o múltiplo, a diversidade partilhável.
Esta passagem da filogênese, experiência da espécie humana com o crime
primordial, (tragédia), Freud compara com o conteúdo da versão psíquica, na
ontogênese. Com a experiência individual, na evolução da sexualidade infantil,
perspectiva circunscrita ao (drama) complexo de Édipo e suas leis implícitas.
Estabelece a proibição do incesto, o corte na simbiose e apresentação do terceiro,
anunciando a exclusão edípica como um divisor importante, para marcar as
diferenças, sem o significado de superioridade ou de inferioridade, típicos da
lógica narcisista.
A renúncia infantil ao amor incestuoso abre a chance de crescimento para
a vida adulta, na relação com a cultura, um importante caminho de liberdade,
porém que não desobriga de renúncias futuras. Raízes e asas? Articulação
complexa.
O roteiro do drama, com a mediação do simbólico, é, pois, distinto do roteiro
da tragédia, que contém o funesto destino da violência, que insiste e demarca o
destrutivo e a morte.
A contradição humana, para Freud, sempre será entre liberdade versus
alteridade, igualdade de direitos, entre o poder individual e o poder coletivo.
Ilusões partilhadas na obediência à lei.
Coloca que a questão crucial para a espécie humana é ser capaz de
desenvolvimento cultural, que considera um dos destinos da pulsão sexual,
quando alcança substituir o prazer direto, por substitutos, de dois modos: os
destinos chamados de neuróticos, caminho dos sintomas, que são satisfações
substitutas para desejos não realizados, ou como os sonhos, e o humor; e os
destinos chamados de sublimatórios, campos da cultura e da ética humana.
Dimensão que cria o partilhável, onde os neuróticos produzem sofrimento e
sintomas. Pensa que a tendência por parte da civilização, em restringir a vida
sexual, em especial a sexualidade infantil, implica na expansão do âmbito cultural.
Na capacidade humana de produzir conhecimento, de movimento do concreto
para o abstrato, de alcançar saber pensar.
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 99
Mal estar na cultura: diálogo com Freud, Herr Professor
Salienta que o mais problemático, questão difícil de dominar, são as
perturbações provocadas pela carência de representação psíquica, condição
propícia ao destrutivo8 (pulsão de morte), um irrepresentado, que é mudo, e se
expressa em atos autodestrutivos, ou por atos de efeitos destrutivos na vida
coletiva, como a hostilidade e a violência.
Pensa Freud (1930) que “a inclinação destrutiva é uma disposição pulsional,
autônoma, originária no ser humano” (p. 117). “Sustento que a cultura encontra
nela seu obstáculo mais poderoso.” “Essa pulsão destrutiva é ligada a pulsão de
morte” (Ibid., p. 118) “É uma continuação no campo psíquico, daquele dilema
de comer ou ser comido, que domina o mundo orgânico” (FREUD, 1932a, p.
103). “Por sorte, as pulsões destrutivas nunca estão só, e sim ligadas à pulsão
erótica, que tem muito que mitigar e prevenir, diante das condições da cultura
criada pelo homem” (Ibid., p. 103).
Freud considerava que o desenvolvimento humano obedece ao programa
do princípio do prazer, que consiste em encontrar satisfação, como objetivo
principal. Porém a integração entre os humanos, a adaptação à comunidade
humana, são objetivos que se impõe como prioridade, frente aos objetivos de
felicidade individuais. Especial efeito e lugar do interdito, mediado pela dupla
parental9.
Assim, a contradição conflituosa, na experiência de desenvolvimento
humano, está entre a demanda de felicidade, que é egoísta, e a demanda fraterna
e de alteridade, união com os semelhantes, a vida em comunidade, o coletivo na
fratria.
A cultura estabelece ideais com as suas exigências. Nesse sentido, a civilização é uma etapa necessária de desenvolvimento, desde a experiência na família (os ideais de ego são herdeiros do complexo de Édipo), até o âmbito
da cultura, na vida em comunidade. A importância da sobrevivência, noção
do transitório e da finitude relativizam as prioridades dos ideais de felicidade
particulares.
“Nossa concepção atual pode ser assim enunciada: a libido participa na exteriorização da pulsão, mas nem tudo nela é libido” (FREUD, 1930, p. 117).
9
O princípio de prazer em Dois princípios do funcionamento psíquico (1911), Freud diferencia do
princípio de realidade. O princípio de prazer domina os processos psíquicos primários. Refere:
“A tendência principal destes processos primários se define como princípio de prazer” (p.
224). Em Além do princípio de prazer (1920), “na teoria psicanalítica adotamos sem reservas o
suposto que os processos psíquicos são regulados automaticamente pelo principio de prazer.
Uma tensão desprazerosa o põe em marcha, para evitar o desprazer ou para produzir prazer”
(p. 7).
8
100 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Silvia Brandão Skowronsky
A conclusão de Freud é que a demanda de segurança, de proteção, predomina sobre a demanda de prazer sexual. Razão para situar as proibições
e os riscos de transgressão como neuróticos, relativos à pulsão sexual (Eros),
porém, tudo que implicar em risco de vida significa a ameaça do destrutivo,
violência, um irrepresentável, perspectiva da pulsão de morte. Por isto a demanda de segurança predomina sobre a sexualidade infantil, e sobre a demanda de prazer sexual quando implica em risco. Porém não exerce influência naquilo aquém de representação, justamente uma espécie de névoa
impenetrável que cria riscos inesperados e imprevisíveis. Um ingovernável,
como a violência.
Além disto, quando a satisfação da demanda destrutiva predomina, vem
acompanhada de elevado grau de prazer narcisista10, que significa uma fuga da
diferença. Onde não entra diversidade, dúvidas nem incertezas. Para Freud, esta
qualidade constitui o maior impedimento à civilização. Lembro que as feridas
narcisistas perturbam a questão de ser, (tema da humilhação e sujeição), é um
valor que é diferente da questão de ter (tema do desejo e da proibição).
A evolução da civilização implica numa luta entre Eros, pulsão de vida
(representável), com o destrutivo da violência, da pulsão de morte,11 que é muda,
carente de representação, ou um irrepresentável. Tese que situa os limites da
representação na perspectiva das fragilidades humanas.
O homem civilizado prioriza a segurança, estar vivo. Sabe das fragilidades
humanas e da importância do reconhecimento da alteridade, então troca uma
parcela de suas possibilidades de felicidade, por uma posição que implica na
obediência e renúncia. A renúncia impõe restrições à sexualidade e restrições à
violência do destrutivo da pulsão de morte. Tudo que escapar gera riscos.
A tese de Freud no mal-estar da cultura se apoia nas impossíveis renúncias,
campo dos limites da representação psíquica. Aquilo que excede e escapa, no
excesso que se expressa em risco e violência. O antigo presente no novo, de
novo, o eterno retorno da violência, observável no mal estar na cultura, ainda
hoje.
Green (1986) ensina a pulsão de morte na perspectiva de um narcisismo de vida e um narcisismo de morte. Laplanche (1991) ensina a pulsão de morte na perspectiva de uma pulsão sexual
de morte em contraponto a uma pulsão sexual de vida.
11
Derrida em seu livro O mal de arquivo (2001), um estudo sobre a pulsão de morte de Freud,
elabora uma interessante perspectiva, quando considera a pulsão de morte como um mal de
arquivo, inarquivável, pois não contem os requisitos da representação, para ser esquecido ou
pensável.
10
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 101
Mal estar na cultura: diálogo com Freud, Herr Professor
Violência, força que escapa da civilização?
A violência é um excesso. Será um novo sintoma? Precisamos gerar novas
categorias para pensarmos?
As comunicações rápidas e simultâneas dos acontecimentos abrem o tema do
excesso. No tempo de hoje, esta condição altera a concepção de padrões únicos
de comportamento. Isto gera uma revolução? Como a de Copérnico, que nos
descentrou do lugar de centro do universo. Como a de Darwin que nos coloca na
cadeia evolutiva do mundo animal. Assim como a revolução da psicanálise, que
propõe o mundo psíquico inconsciente, que nos descentra do lugar de donos de
si mesmo. Quem penso que sou não significa diretamente quem sou. Revoluções
que humilharam a soberba da verdade e da certeza.
O valor de uma época, de um tempo, pode significar um desvalor em outra.
Ensina Freud (1921) que: “A massa aparece como um renascimento da horda
primordial. Assim como o homem primordial se conserva em cada indivíduo, de
igual modo a horda primordial se restabelece a partir de uma multidão de seres
humanos” (p. 117).
Em 1930, afirma Freud que:
O programa da cultura se opõe à pulsão agressiva de todo ser
humano. Esta pulsão de agressão é uma marca e principal preposto
da pulsão de morte que descobrimos junto com Eros, com quem
comparte o governo do universo. O desenvolvimento cultural nos
ensina sobre a luta entre Eros e morte, pulsão de vida e pulsão de
destruição, intrínseca à espécie humana (p. 118).
O enunciado, de que o processo cultural equivale à modificação pulsional
experimentada no processo de viver, é uma ideia que interroga o trabalho
humano de construção da cultura, neste caminho entre um saber culto, com
aquisição de conhecimento, superando um não saber da ignorância, ao qual é
inerente um possível descontrole da barbárie. Campo da violência.
Historicamente, a figura do pai centralizava as orientações e a lei, lugar do
terceiro, caminho da cultura. O eixo das identificações se modifica no tempo
de hoje? Novas complexidades introduzem variáveis inéditas, com as novas
configurações familiares, ainda faz falta uma bússola?
Para Freud, a bússola se representa por um caminho percorrido, do biológico
ao psíquico, e na inclusão da cultura, o caminho de Narciso a Édipo, e a possível
construção almejada sobre essa travessia. Para a psicanálise, seria alcançar o
102 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Silvia Brandão Skowronsky
recurso psíquico, instrumento capaz, para saber realizar a complexa articulação
entre o biológico e a cultura.
Neste caminho, o grande desafio são os alcances e os limites psíquicos em
saber de si. O ponto de articulação para saber pensar. Muitas vezes a conclusão
poderá estar no limite do saber, de saber representar! O problemático é quando
excede o limite do saber representar por excesso ou por irrepresentabilidade.
Um mal de arquivo12.
A violência e a rapidez de informações predominam como excessos no tempo
atual. O inesperado e o imprevisível dificultam a reflexão. Pontos possíveis de
tensão criando mal estar na cultura hoje. Existirá hoje uma quebra dos laços
humanos dialogáveis? Condição que introduz a intolerância.
Parece que o mal estar atual ainda se expressa especialmente com os atos
de violência! O destrutivo! Na civilizada raça humana, ainda se faz presente
muitos atos de violência, atos de racismo, atos de preconceito. Dialética entre
consciência e alienação perturbada, especialmente pelo fascínio por ideologias.
A hostilidade introduz a problemática da intolerância.
Existe a violência da fome, das guerras, a violência no ato de julgamento,
sobre a cor, da opção sexual, da religião, do diferente. O que pensar dos sistemas que cultivam o ódio, incitam atos destrutivos, inclusive os sistemas
religiosos?
Ignorar o que se afasta do próprio modo habitual de conceber o mundo
significa indiferença. Indiferença é o contrário do amor. Um menosprezo, menor
valor e desprezo não contém apreço. Indiferença é a marca que desconhece
a diferença, e a alteridade. Cria intolerâncias. Nesse sentido, o diferente é um
inimigo. O que pensar sobre a ideia que diferente significa melhor ou pior,
como se existisse uma qualidade na diferença, em vez da ideia de distinção, de
diversidade, o múltiplo.
As categorias: melhor ou pior, bom e mau, belo e feio, certo e errado, tudo
ou nada, também são invenções humanas perniciosas, uma violência? Lógica
binária típica do narcisismo, reducionista ao preto e branco, impede de incluir as
múltiplas cores que compõem um arco-íris.
Desmascarar as ilusões e preconceitos humanos para repensar significados de
algumas verdades absolutas, de valores e ideais contrários à dignidade humana,
convoca-nos a um atento trabalho de indagação, sobre discursos ideológicos
preconcebidos e autoritários.
Derrida define assim a pulsão de morte, em seu livro O mal de arquivo (2001), em que examina
profundamente o tema da pulsão de morte e a designa como um mal de arquivo.
12
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 103
Mal estar na cultura: diálogo com Freud, Herr Professor
Poderíamos pensar que a violência surge quando existe uma crise de ideais.
Declínio que produz um vazio normativo na trama da cultura. E no nosso
tempo?
Será um desafio a proposta de igualdade mediada com ética, na irrestrita
obediência à lei? Qual será o caminho para zelar a herança humana compartilhada, e as necessidades coletivas, calibrando a intolerância, e a destrutiva
crueldade da violência. Recuperar os ideais?
Lembro que Freud propôs: o ideal do ego é o herdeiro do complexo de
Édipo, por isto um importante ordenador simbólico, quando a autoridade é
internalizada. Nascido na humana experiência infantil, com a responsabilidade
parental, numa insubstituível função estruturante do espaço da ética da
responsabilidade. O transmitido e o construído, assim um adquirido. Um lugar
da cultura dentro do psíquico introduz a capacidade de responsabilizar-se pelos
próprios atos.
Bauman (2001) descreve a Modernidade líquida, expressão que caracteriza o
provisório e o descartável, em nosso tempo, com significado de descaso, o que é
diferente daquilo que é transitório do viver humano, como a finitude. O humano
é múltiplo e singular, precisa de raízes e asas, do tempo, e de lugar para abrigar a
ética. Chamaria de ética da responsabilidade.
Acredito na psicanálise porque descobriu que viver é muito mais que
simplesmente sobreviver, existir, ou durar, como na categoria biológica. Essa
é a marcante diferença entre os humanos e os demais seres vivos do planeta.
Inteligência e engenhosidade de complexidade psíquica, e capacidade de
encontros transformadores.
A marca humana inventa, modifica e transforma a existência concreta numa
experiência simbólica, pensável, e compartilhável. Uma história vivencial é um
particular, que poderá ser compartilhado como experiência humana, mas ainda
uma universal condição.
Exemplos de temas humanos conhecidos e partilháveis: desamparo, solidão,
transitoriedade, finitude, violência, ódio, homicídio, autodestruição, humilhação,
loucura, alegria, felicidade, amor, inclusão, exclusão, intolerância, diferença,
diversidade, semelhança, poder, saber, etc.
Humana marca de nascença: o desamparo
O desamparo humano, originária condição que demanda cuidado e zelo,
contém um paradoxo na possibilidade de organizar recursos e na possibilidade
de incapacidades que irradiam sofrimento, autêntica vulnerabilidade ao excesso.
104 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Silvia Brandão Skowronsky
São as fragilidades humanas que produzem impotência, ativando de novo o
desamparo, que possivelmente contém a raiz de violências.
Lembro Freud que propõe o modelo do traumático e postula: que a não
mediação psíquica inunda o psiquismo de intensidades sem representação,
significa um excesso. É a insuficiência de recursos, de processamento, para criar
representação. O acontecimento excede, e o não significado gera angústia. Eis os
limites. Seria o excesso uma das prováveis causas do mal-estar atual?
O representável e o irrepresentável (carente de representação) organizam
recursos diferentes, significando a distância entre o equilíbrio de pensar e a
pressão do agir. Como a expressão em ato, que é sem capacidade de pensamento
ou de simbolização.
Freud demarca a diferença: a angústia diante de demandas de intensidades, que desafiam por situações limites, que implicam na experiência de
risco de vida, são muito diversas daquelas tipicamente envolvidas com os
riscos de proibições, da pulsão sexual, princípio de prazer e capazes de
representação13.
Desde Totem e tabu de 1913 que Freud considerou possível o processo de
civilização neutralizar a violência e o destrutivo, o ato, mediante a capacidade de
simbolização, com o recurso de representação, uma utilização de complexidades
psíquicas.
Precisou reformular quando descobriu a compulsão à repetição, vinculada
ao nunca representado, por isto um destrutivo, que gerava ato em vez de
representações ou simbolizações pensáveis, chamou de pulsão de morte.
Será o nosso tempo atual um campo propício à simbolização? Ou estimulante
de atos, ações de descarga sem mediação psíquica, típica expressão do mal-estar
frente aos efeitos do que denominamos de excesso, ou de violência.
Tudo que escapa do trabalho psíquico de elaboração, via representação no
trabalho da mediação psíquica, que constrói o caminho de simbolização, tem
expressão em ato. Distinto das capacidades de sonho, lapsos, transferências
ou sintomas neuróticos. Atos implicam em riscos que, associados ao mal-estar
com os efeitos da vigência atual de violência, representam ameaças ao equilíbrio
psíquico e à integridade física dos humanos. Com o passar do tempo, um novo
contexto expõe antiga polêmica, a vigência da violência. A humana violência que
escapa e excede o pensar!
Da traumdeutung significa figuração deformada tranquilizadora, o sonhar, para a observação da
repetição de situações penosas. O que carece de representação carece de desejo, mas repete a
reincidência do não significado (representado) daquilo não figurado.
13
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 105
Mal estar na cultura: diálogo com Freud, Herr Professor
Para concluir, afinal, tudo igual e tudo diferente. Naturalmente, nossa ideia
de futuro nasce da ilusão. É quando paramos para refletir sobre o quotidiano. O
igual e o diferente nos constroem com complexidades.
O tempo é imutável e inexorável, mas nós humanos mutantes criativos,
portadores de ilusão, então vencemos o tempo. Por um tempo. O tempo de
inventar e viver a versão da história para noutro tempo contar a história, nossa
própria versão, povoada com memórias indestrutíveis, algumas indescritíveis...
cada uma de um tempo... No inconsciente sem tempo e ao mesmo tempo, não
importa que o tempo passe, a gente não esquece, volta lá mesmo que o tempo
passe. Mas não convém perder tempo, pois nosso tempo na vida termina. O
tempo, este continua...
Freud ensinou que a turbulência não é indesejada, eis o valor das formações
do inconsciente, tudo aquilo que excede, irrompe e altera o sentido, aquele que
a consciência pretenda atribuir aos acontecimentos, são desafios para o recurso
humano de simbolização, para construir representações. Preocupante é o que não
se esgota, e ainda nos exige trabalho de representar o que não se representa, essa
pulsão de morte, muda, irrepresentável, insiste em mostrar mas nunca em dizer
com palavra. Restam muitas perguntas, indagações em aberto. Conhecimento
por construir, ainda é tempo de perguntas?
Não existe paraíso, o saber nos expulsou, mas e a ignorância? Essa nunca
terminamos de conhecer, ou erradicar. O tempo sempre nos excede! E ainda
existe esse mal de arquivo!
The discontent in culture: dialog with Freud, herr professor
Abstract: Reflections on the centenary of Freud’s psychoanalysis, a fundamental and
foundational legacy, a means of transmitting knowledge that is appropriate to think,
today, about the discontent. Updating the memory creates links between the past and
the future. A movement that enables representations, a condition for singular and
historicizing narratives. A mental construct that contains the birthmarks since the
biology in the complex articulation with culture.
Keywords: Discontent. Helplessness. Psyche. Representation. Unconscious. Violence.
106 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Silvia Brandão Skowronsky
Referências
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
FREUD, S. (1911). Dois princípios do acontecer psíquico. In: Obras completas.
v. 12. Buenos Aires: Amorrortu, 2001.
______. (1913). Totem e tabu. In: Obras completas. v. 13. Buenos Aires:
Amorrortu, 2001.
______. (1920). Além do princípio do prazer. In: Obras completas. v. 18.
Buenos Aires: Amorrortu, 2001.
______. (1921). Psicologia das massas e análise do ego. In: Obras completas. v.
18. Buenos Aires: Amorrortu, 2001.
______. (1930). Mal estar na cultura. In: Obras completas. v. 21. Buenos Aires:
Amorrortu, 2001.
______. (1932a). Conferência 32: angustia y vida pulsional. In: Obras completas.
v. 22. Buenos Aires: Amorrortu, 2001.
______. (1932b). Conferência 35: em torno de uma cosmovisão. Obras
completas. v. 22. Buenos Aires: Amorrortu, 2001.
______. Manuscrito N. In: Obras completas. v. 1. Buenos Aires: Amorrortu,
2000.
GREEN, Andre. Narcisismo de vida e narcisismo de morte. Buenos Aires:
Amorrortu, 1986.
LAPLANCHE, Jean. A pulsão de morte na teoria da pulsão sexual. In: A pulsão
de morte. Buenos Aires: Amorrortu, 1991.
Silvia Brandão Skowronsky
Rua Tobias da Silva, 120 / 513
90570020 Porto Alegre – RS – Brasil
e-mail: [email protected]
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 107
Possíveis articulações
entre narcisismo e pulsão
de morte para a clínica da
atualidade
Sissi Vigil Castiel1
Resumo: As patologias fundamentadas em problemáticas narcísicas, casos limite e
melancolia com as incidências da destrutividade no funcionamento psíquico direcionadas
ao interior do sujeito, colocam em juízo os enunciados metapsicológicos, de forma que
novas articulações se façam possíveis frente aos enigmas que a experiência psicanalítica
com estes pacientes impõe no sentido de uma transformação. Frente a tais indagações,
o texto tensiona os conceitos de narcisismo e pulsão de morte a partir das postulações
freudianas e autores contemporâneos.
Palavras-chave: Narcisismo.
Subjetividades atuais.
Psicanálise.
Psicopatologia.
Pulsão
de
morte.
A clínica contemporânea nos confronta, muito frequentemente, com
neuroses graves fundamentadas em problemáticas narcísicas, casos limite e
melancolia com as incidências da destrutividade no funcionamento psíquico
direcionadas ao interior do sujeito e quadros de angústia. O fazer psicanalítico
com esses casos coloca em juízo os enunciados metapsicológicos para que sejam
Psicanalista. Doutora em Psicologia pela Universidade Autônoma de Madri. Membro pleno da
Sigmund Freud Associação Psicanalítica de Porto Alegre.
1
108 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Sissi Vigil Castiel
repensados, de forma que novas articulações se façam possíveis frente aos
enigmas que a experiência psicanalítica com estes pacientes impõe no sentido
de uma transformação. Cabe ao psicanalista se indagar a respeito de quais são as
proposições teóricas e técnicas da psicanálise em sua possibilidade de escuta e
terapêutica dessas patologias, a que modelos clínicos elas respondem.
Os sucessivos momentos históricos propiciaram a emergência de distintas
formas de subjetivação e estas requerem distintos modelos de abordagem
clínica e teórica. Existe em Freud um modelo teórico e clínico de entendimento
e tratamento das neuroses, mas há também possiblidades de entendimento e
tratamento das patologias para além das neuroses, mesmo que este não tenha
sido extensamente elaborado por ele. Por isso mesmo, talvez seja possível a
identificação de diversos paradigmas em Freud.
Paradigma é um conceito de Thomas Kuhn no livro A estrutura das revoluções
científicas (2003) que afirmou que as ciências evoluem através de paradigmas.
Este último se define por ser uma forma de solução para os problemas relativos
ao campo de ação de uma ciência que passa a funcionar como solucionadora
de problemas de determinado tipo através destas maneiras de soluções que
constituem os paradigmas. Chega-se a estes por existirem casos exemplares
que permitem fazer generalizações. Um novo paradigma se forma quando há
um corte epistemológico em um campo pré-conceitual, onde há uma ruptura
com o modelo até então vigente para uma nova forma de olhar determinado
problema. Assim, na física, ao longo do tempo, existiram diferentes paradigmas,
a teoria geocêntrica de Ptmoleu, posteriormente a teoria heliocêntrica de
Copérnico e assim por diante. Dessa forma, o conceito de paradigma teve
toda uma importância, pois possibilitou diferenciar as ciências e seus objetos
teóricos, sendo, também, uma resposta à questão da cientificidade das ciências
não naturais.
Partindo-se da tese de Kuhn, a psicanálise como uma ciência não natural
tem seu objeto teórico no conceito de inconsciente, e justamente diante desse
objeto teórico as diversas formas que se manifestam, as patologias, colocaram
a necessidade de distintos padrões clínicos e formulações metapsicológicas,
formando diferentes paradigmas (CASTIEL, 2014).
Nesse sentido, Birman (2014) afirma que há diversos paradigmas em Freud
e que a conceituação da histeria e da neurose da primeira tópica e da primeira
dualidade pulsional fazem parte de um primeiro modelo freudiano: o da
repressão da sexualidade e permitem delinear um paradigma − a técnica centrada
no tratamento da neurose. Já o conceito de narcisismo, a pulsão de morte, a
segunda tópica e a segunda dualidade pulsional fazem parte de outro momento
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 109
Possíveis articulações entre narcisismo e pulsão de morte para a clínica da atualidade
histórico – o da violência e da crueldade e permitem vislumbrar as subjetividades
melancólicas e psicóticas, possibilitando outro paradigma.
Encontro-me completamente de acordo com as postulações de Birman e
acrescentaria que o primeiro modelo está alicerçado nos casos de Dora, O pequeno
Hans e o Homem dos ratos que fazem parte deste momento histórico, teórico e
técnico, enquanto que o segundo modelo encontra-se ancorado nas histórias de
Schereber e O homem dos lobos (CASTIEL, 2012a).
Da mesma forma, Birman (2014) afirma que os autores pós-freudianos dentre
os quais destaca Melanie Klein, Lacan e Winnicott fazem parte de um momento
histórico diverso do da repressão da sexualidade e se relaciona à violência e à
crueldade e, portanto, suas linhas de pesquisa têm como fundamento a psicose.
Melanie Klein parte da posição esquizoparanoide e Lacan da paranoia.
Ainda dentro desse mesmo contexto, Mezan2 (2014) afirma que existem em
Freud quatro modelos metapsicológicos cada qual baseado numa matriz clínica
distinta. As correntes posteriores privilegiam um deles, daí derivando suas
hipóteses centrais sobre o funcionamento psíquico.
Green, tentando dar conta dessa profunda transformação do campo clínico
ao longo dos anos, trabalhou no desenvolvimento de novos fundamentos
metapsicológicos para a elucidação da clínica nos limites da analisabilidade. Para
tanto, afirma que atualmente os casos limites são os pacientes paradigmáticos,
assim como os neuróticos foram para Freud e os psicóticos para os pósfreudianos. Entende que existem dois modelos clínicos em Freud, o das
neuroses e as possiblidades abertas com a segunda tópica. Para dar conta da
elaboração de um programa de investigação para os pacientes limites, reformula
a metapsicologia de uma maneira pessoal a partir de um diálogo com Freud e
autores pós-freudianos.
Assim, percebe-se que os autores contemporâneos, quer seja através da noção
de paradigma ou de modelos clínicos, entendem a necessidade de aprofundar
os elementos da metapsicologia e da técnica freudiana de forma a fazer frente
às indagações que a prática clínica impõe. Efetivamente, as subjetividades
atuais emergem de um contexto histórico distinto, propiciando a emergência
de subjetividades diferentes da neurose e que requerem ampliações teóricas e
clínicas, tornando-se tarefa dos psicanalistas proporem ferramentas teóricotécnicas para darem conta desses quadros clínicos. Penso que a psicanálise
encontra no segundo modelo freudiano, bem como em autores contemporâneos,
Renato Mezan não se utiliza do conceito de paradigma, preferindo a expressão modelos clínicos.
2
110 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Sissi Vigil Castiel
os elementos teóricos que nos permitem formular essas proposições, na medida
em que a obra de Freud encontra-se aberta a novas leituras que reconfiguram a
teoria e a clínica no diálogo com autores contemporâneos.
Minha hipótese é a de que os conceitos de narcisismo e pulsão de morte
são operadores fundamentais na psicopatologia psicanalítica, pois existe toda
uma possibilidade de articulação entre eles que permite lançar luz sobre o
entendimento das subjetividades nas quais a ação, no sentido da passagem ao
ato, é uma das marcas de sua condição de ser. Neles se faz presente a descarga da
excitabilidade sem possibilidades de simbolização, manifestando-se sob forma
de comportamentos às vezes mais, às vezes menos autodestrutivos (CASTIEL,
2014).
O texto freudiano Sobre o narcisismo: uma introdução, de 1914, é um ponto de
partida para uma compreensão das patologias para além da neurose, na medida
em que há nessas patologias uma impossibilidade do sujeito de sair de uma
condição narcísica e investir em objetos. Freud (1914) postula o narcisismo
como o investimento das pulsões no ego, constituinte da formação deste antes
das catexias libidinais serem enviadas a objetos e que é obscurecido no decorrer
do desenvolvimento libidinal. Uma das formas pelas quais Freud define o
narcisismo, nesse texto, é: “[...] afigurou-se provável que uma das localizações
da libido que merecesse ser descrita como narcisismo estivesse presente em
muito maior extensão, podendo mesmo reivindicar um lugar no curso do
desenvolvimento humano” (p. 89).
O texto põe de manifesto o aspecto do direcionamento da libido: se a
libido está localizada no ego, investindo-o, trata-se de uma condição narcisista,
evidenciando a questão do investimento e desinvestimento dos objetos. A partir
disso, no final da segunda parte do texto, refere-se à necessidade de o sujeito sair
do narcisismo, direcionar a libido a objetos para não adoecer. O represamento
da libido no ego torna-se patogênico.
Na verdade, Freud havia abordado a questão da retirada da libido dos objetos como o que caracteriza a psicose em sua correspondência com Jung3,
nas cartas que sucedem a primeira visita de Jung a Freud em março de 1907,
afirmando que o autoerotismo é o conceito que poderá ajudar a resolver o
A correspondência entre Freud e Jung perdurou por 7 anos e está documentada no livro
de William McGuire (1976). Dessa correspondência, vou me ater ao conjunto de cartas que
dizem respeito à psicose. Este é o tema predominante do início da correspondência entre
ambos, tendo em vista que o trabalho de Jung no hospital psiquiátrico era com pacientes
psicóticos.
3
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 111
Possíveis articulações entre narcisismo e pulsão de morte para a clínica da atualidade
enigma das psicoses, no sentido de que nestas há uma regressão autoerótica.
Freud afirma:
[...] na paranoia a libido é retirada do objeto [...] o lugar para onde foi
a libido é indicado pela hostilidade frente ao objeto. Dada a relação
de compensação entre o investimento objetal e o investimento no
ego parece provável que o investimento retirado do objeto tenha
retornado ao ego, isto é, tenha se tornado autoerótico. O ego
paranoide é, portanto, superinvestido, egoísta e megalomaníaco.
(McGUIRE, 1976, p. 65).
Freud insiste na questão de que a libido não é autoerótica quando dispõe
de um objeto real ou imaginário. A regressão da libido só se torna autoerótica
quando atinge um ponto aquém das fantasias, a saber, o ego. Na paranoia, a
libido se retira do objeto real, mas não continua apegada a sua representação,
regride ao autoerotismo.
A questão crucial que se coloca nesta afirmação freudiana é a de que o
autoerotismo é a situação de que a pulsão investe o ego, em consequência disso
este se torna grandioso. Isto permite a Freud dimensionar a importância de se
considerar o investimento da libido no ego em detrimento dos objetos para a
compreensão das patologias graves4. Esse pensamento é reafirmado no texto
sobre o narcisismo e novamente será retomado por ele a propósito da segunda
tópica e da segunda teoria das pulsões.
Justamente minha proposta é a de que essas articulações teóricas que o
conceito de narcisismo possibilita possam ser problematizadas e ampliadas,
considerando-se a oposição entre Eros e pulsão de morte. Em Freud (1920), Eros
é compatível com a ligação, ou seja, com a capacidade de investimento enquanto
que na via oposta, a pulsão de morte se caracteriza pelo desinvestimento, pelo
desligamento. E é por esta possiblidade de se entender o investimento e o
desinvestimento sob a ótica da segunda teoria das pulsões que pretendo articulála com o narcisismo.
A propósito da articulação entre a segunda tópica com a segunda dualidade
pulsional em O ego e o id, Freud (1923) afirma que essas duas classes de pulsão
se unem e se fundem, de forma que o impulso destrutivo pode ser neutralizado,
sendo desviado para o mundo externo através do aparelho muscular. Dessa
forma, as duas classes de pulsão se unem e funcionam combinadamente ou
se desfusionam. A libido constitui um fator de ligação, de fusão pulsional,
E, também posteriormente, definir este estado de localização da libido como narcisismo.
4
112 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Sissi Vigil Castiel
enquanto a agressividade, um fator de desfusão. Quanto maior for o predomínio
da agressividade, mais a fusão pulsional tende a desfazer-se. Inversamente,
quanto mais a libido prevalecer, mais se realizará a fusão. Portanto, a postulação
da segunda teoria das pulsões e a ideia da fusão-desfusão pulsional permitem
pensar sobre o funcionamento combinado das pulsões sexuais e de morte, o
quanto elas aparecem mescladas ou desfusionadas no sujeito. Nas patologias a
que estou me referindo, entendo que as ações autodestrutivas, a impulsividade,
as somatizações refletem a desfusão das pulsões com a manifestação da pulsão
de morte.
Ainda dentro do contexto da fusão-desfusão da pulsão, existe em O ego e o id
uma afirmativa de Freud sobre a retirada das catexias do objeto característica da
pulsão de morte que parece ampliar a compreensão dos fenômenos destrutivos.
Afirma ele no texto que:
A transformação (de libido erótica) em libido do ego naturalmente envolve um abandono de objetivos sexuais, uma
dessexualização. De qualquer modo, isso lança luz sobre uma
importante função do ego em sua relação com Eros. Apoderandose assim da libido das catexias do objeto, erigindo-se em objeto
amoroso único e dessexualizando ou sublimando a libido do
id, o ego está trabalhando em oposição aos objetivos de Eros e
colocando-se a serviço de impulsos pulsionais opostos. (FREUD,
1923, p. 61)
Essas questões me permitem considerar que, ao dizer que a retirada da
libido dos objetos e o consequente retorno ao ego acarreta que este último
seja transformado em objeto amoroso único, Freud está, em outras palavras,
dizendo que esta retirada da libido dos objetos se relaciona ao narcisismo,
ou seja, a consequência desse processo é o narcisismo. Por outro lado, se
essa transformação da libido objetal em libido do ego está em oposição aos
objetivos de Eros e coloca-se a serviço de impulsos pulsionais opostos como diz
Freud, relaciona-se à pulsão de morte. Isto nos permite supor uma articulação
entre narcisismo e pulsão de morte, ou seja, a destrutividade se relaciona ao
narcisismo. Se o ego é o objeto amoroso único – narcisismo − isso acontece
por um desinvestimento dos objetos. E, portanto, o sujeito é destrutivo consigo
próprio em função do desinvestimento dos objetos e a posição narcisista que
esse desinvestimento acarreta.
Esta passagem no texto de Freud oferece elementos para a compreensão
da destrutividade na medida em que coloca como aspectos centrais desta o
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 113
Possíveis articulações entre narcisismo e pulsão de morte para a clínica da atualidade
desinvestimento e o narcisismo. O desinvestimento implica no aumento da
destrutividade, na qual os processos de desligamento triunfam sobre a geração
de fontes de prazer ou sobre o desenvolvimento das potencialidades criativas
(CASTIEL, 2012b). Articulando essas afirmativas com o exposto em 1914
pode-se entender que é preciso sair do narcisismo para não adoecer, ou seja, o
represamento da libido no ego – que constitui o narcisismo torna-se patogênico
porque é mortífero.
A especificidade da relação entre o narcisismo e a destrutividade foi trabalhada
por importantes autores da Psicanálise contemporânea. Dentre eles, destacase Green (1993) que demonstra que nos casos limite o mecanismo dominante
é o luto insuperável e as reações defensivas que ele suscita, resultado de um
narcisismo negativo, um narcisismo de morte que se opõe ao narcisismo positivo,
de vida. Green (1988) enfatiza a ideia de Freud que o objetivo das pulsões de
vida é a objetalização, no sentido da ligação, na capacidade de investimento
em novos objetos que promovam satisfação pulsional depois da separação do
objeto primordial. Enquanto que o objetivo da pulsão de morte seria a função
desobjetalizante que se caracteriza pelo desinvestimento e desobjetalização. O
narcisismo negativo é uma espécie de medida extrema a qual, após ter desinvestido
os objetos, transporta-se sobre o próprio ego e o desinveste.
A função desobjetalizante se opõe ao trabalho do luto, na medida em que
a relação com o objeto é atacada assim como o ego, tendo em vista que este
se torna o único objeto de investimento dado ao desligamento dos objetos.
Salienta-se essa formulação de Green, na medida em que nela é possível
encontrar sustentação para compreender as ações destrutivas como decorrência
do processo de desinvestimento no seio da função desobjetalizante (GREEN,
2008) e que se articulam com as afirmações freudianas feitas em O ego e o id
(1923) citadas acima (CASTIEL, 2013).
Essa discussão de conceitos abre a questão do estatuto do objeto, no sentido
de seu papel, sua função e seu devir. É preciso que se constate a relevância
do objeto para a economia psíquica do sujeito a partir de uma concepção de
destrutividade que contextualize tanto as experiências do campo intersubjetivo
juntamente com suas repercussões pulsionais. Nestas patologias, o objeto
ocupa uma posição de protagonismo na vida do sujeito, há uma queixa interminável sobre os objetos. Logo, o discurso é a queixa sobre a falta de
reconhecimento do objeto sobre o sujeito. Portanto, há uma idealização do
objeto, esse é, muitas vezes, engrandecido não no sentido da exaltação e sim no
sentido de seu poder com relação ao sujeito, o que gera e incrementa a raiva e o
ressentimento.
114 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Sissi Vigil Castiel
A posição narcísica do sujeito corrobora uma contínua decepção no encontro
com o outro, incrementando ações autodestrutivas. É, portanto, também pela
decepção do sujeito com relação ao que ele espera do objeto que se fomenta o
que o leva a desinvestir e autodestruir-se. Nesse sentido, Lacan, (1948) baseandose na importância do estágio do espelho para a constituição de um sujeito (ao
considerar que é através de um espelhamento em relação ao outro que este
adquire a imagem de si) coloca a paranoia como um elemento constituinte da
subjetividade (LACAN, 1953-1954).
Entendo que claro está, pois se o sujeito está na dependência do que o outro
diz que ele é, obviamente que vai buscar no olhar do outro sua aprovação ou
reprovação. O que nos leva à ideia de que nestas patologias, em que o sujeito
está aferrado ao narcisismo, existe uma atitude paranoide frente aos objetos, no
sentido da expectativa do sujeito em ler nas atitudes do objeto sua aprovação
ou reprovação. Tendo-se em vista que as ações do objeto nem sempre são
direcionadas ao sujeito, a aprovação do objeto é sempre relativa. Isto leva ao
ressentimento e à raiva e gera desinvestimento como em um círculo vicioso.
Entendo que a contextualização das ações autodestrutivas e do desinvestimento
característicos da pulsão de morte no seio de uma perspectiva narcisista
dimensiona a clínica, no sentido de que a destrutividade possa ser analisada
a partir das decepções na transferência e posterior recolhimento narcísico.
Entendo que essas constatações adquirem sua positividade não só pelo aspecto da
relação do sujeito com o objeto, mas muito mais porque permitem dimensionar
as experiências do campo intersubjetivo juntamente com suas repercussões
pulsionais. Pois não se trata de priorizar a relação de objeto em detrimento do
aspecto pulsional ou vice-versa e sim reconhecer que os desencontros com os
objetos trazem implicações pulsionais: a raiva e o ressentimento pela decepção
com os objetos leva a ressentimento, recolhimento e, muitas vezes, a ações
autodestrutivas. Talvez a transferência seja uma possiblidade de se abrir espaço
à análise desses aspectos a partir do lugar que o analista ocupa, no sentido da
apropriação por parte do paciente de sua raiva, desinvestimento e recolhimento
narcísico.
Possible links between narcissisms and death drive for today’s clinic
Abstract: The diseases based on the narcissistic problematic, borderline cases and
melancholia with destructiveness effects on psychological functioning directed to
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 115
Possíveis articulações entre narcisismo e pulsão de morte para a clínica da atualidade
the inner realm of the subject, question metapsychological statements so that new
articulations are possible considering the puzzles that the psychoanalytic experience
with these patients requires toward transformation. Faced with such questions the
text tightens the concepts of narcissism and the death drive from the Freudian and
contemporary authors’ postulations.
Keywords: Death
Psychopathology.
drive.
Current
subjectivities.
Narcissism.
Psychoanalysis.
Referências
BIRMAN, J. et. al. A fabricação do humano: psicanálise, subjetivação e cultura.
São Paulo: Zagodoni, 2014.
CASTIEL, S. O homem dos ratos, Schreber e Kafka: destinos possíveis para
a hostilidade. In: Psicologia: ciência e profissão/CFP, a. 32, n. 42012,
p. 808-825, 2012a.
______. Abuso sexual e clínica psicanalítica. In: MIRANDA, C. A. (Org.).
A psicologia clínica e suas relações com a violência e negligência: marcas
na constituição psíquica. Passo Fundo: IFIBE, 2012b. p. 187-205.
______. Destrutividade e narcisismo. In: Sig revista de psicanálise, a. 2, n. 1,
2013.
______. The relation among paradigms and psychoanalytical clinics: narcissism
and death drive as main operators in psychoanalytical psychopathology. Global
Journals, v. 14, n. 6, p. 13-17, 2014.
FREUD, S. (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução. In: Obras completas.
v. 14. Rio de Janeiro: Imago, 1980.
______. (1920). Além do princípio do prazer. In: Obras completas. v. 18. Rio
de Janeiro: Imago, 1980.
______. (1923). O ego e o id. In: Obras Completas. v. 19. Rio de Janeiro:
Imago, 1980.
GREEN, A. et al. Pulsão de morte. São Paulo: Escuta, 1988.
116 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Sissi Vigil Castiel
GREEN, A. Narcisismo de vida, narcisismo de muerte. Buenos Aires:
Amorrortu, 1993.
______. Orientações para uma psicanálise contemporânea. Rio de Janeiro:
Imago, 2008.
KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva,
2003.
LACAN, J. O seminário. Livro 1: os escritos técnicos de Freud, 1953-1954. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.
______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. Originalmente publicado
em 1948.
McGUIRE, W. (Org.). A correspondência completa de Sigmund Freud e
Carl Gustav Jung. Rio de Janeiro: Imago, 1983. Originalmente publicado em
1976.
MEZAN, R. O tronco e os ramos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
Sissi Vigil Castiel
Rua Frei Henrique Trindade, 430
90480-140 Porto Alegre – RS – Brasil
e-mail: [email protected]
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 117
Autoerotismo, desmentida
e a cisão do Eu
Celso Halperin5
Resumo: A partir de uma breve revisão de conceitos, o autor questiona a existência de
uma possível relação estrutural entre o autoerotismo e mecanismos como a desmentida
e a cisão do Eu.
Palavras-chave: Autoerotismo. Cisão do Eu. Desmentida.
Em recente atividade científica com o Dr. Ricardo Avenburg na SBPPA,
estimulado por uma citação sobre a relativamente escassa exploração do tema
do autoerotismo na obra de Freud, resolvi, na hora do debate, levantar a seguinte
especulação (não exatamente com essas palavras): Não podemos imaginar que haja
uma relação direta entre o autoerotismo, com seu caráter fragmentário, e a estruturação de
defesas como a cisão do eu e a desmentida descrita já nos trabalhos finais de Freud?
O Dr. Avenburg, assim como fez com várias outras perguntas, pensa um pouco
e responde afirmativamente, não se detendo para maiores explicações. Algumas
semanas depois, a editoria da nossa revista fez um instigante convite, quase uma
provocação: desenvolver o meu questionamento daquela ocasião, explorando o
tema sob a forma de um trabalho para a Revista Psicanálise. Surpreendido, resolvi
aceitar o desafio, buscando compreender melhor a questão. Nesse sentido, faço
algumas considerações sobre o autoerotismo, posteriormente sobre a desmentida
e cisão do eu e concluo buscando estabelecer alguma relação entre eles.
Se considerarmos que no pensamento psicanalítico a sexualidade humana não
se realiza completamente, no sentido de nunca atingir um estado de maturidade
Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.
5
118 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Celso Halperin
plena ou perpétua satisfação, e se entendermos também que essas características se
relacionam com a presença da sexualidade infantil como um dos componentes
da sexualidade das crianças e adultos, convém atentarmos para aquele
funcionamento que Freud vai caracterizar como o estado sexual mais primitivo
de todos: o autoerotismo.
Tomando emprestado o termo utilizado anteriormente por Havelock
Ellis em seus estudos sobre a sexualidade humana, Freud vai utilizar o termo
autoerotismo, pela primeira vez, numa carta a Fliess em 9 de dezembro de 1899,
caracterizando o autoerotismo como o estado sexual mais primitivo, cujas pulsões
sexuais agiriam com independência em relação a qualquer função biológica.
Assim, Freud caracteriza o autoerotismo como um estado original da sexualidade infantil, chamando também a atenção para o caráter sexual da libido,
ou seja, ainda que o autoerotismo seja a forma como se manifesta originariamente a sexualidade, isso não significa que a criança não se relacione antes
com o mundo de uma forma biológica, buscando atender suas necessidades de
sobrevivência.
Mas, sem dúvida, é a partir dos Três ensaios, nas suas várias edições, que
Freud desenvolverá o tema, enfatizando a questão do objeto, ou seja, que no
autoerotismo a pulsão não é dirigida a outra pessoa, satisfazendo-se no próprio
corpo (FREUD, 1905). Aqui, Freud trabalha com a ideia de uma separação entre
a pulsão sexual e a pulsão de autoconservação. Primariamente, a pulsão sexual
não funciona de forma independente, ela apoia-se na pulsão de autoconservação,
que busca atender as necessidades vitais do indivíduo. Nesse sentido, já na
amamentação, a satisfação da zona erógena (pulsão sexual) estava associada à
satisfação da necessidade de alimentação (pulsão de autoconservação). Ocorre
que essa ligação não se perpetua.
A satisfação da pulsão sexual com o objeto, primariamente apoiada na
necessidade de autoconservação, logo se independizará, procurando, de forma
autônoma, o prazer. E é essa independência da pulsão sexual que permitirá a busca
de uma forma mais livre pela satisfação, inclusive pela forma autoerótica. Mas o
que gostaria de salientar aqui, para depois incluir em uma discussão mais ampla,
é a presença primitiva, desde o autoerotismo, da clivagem, isto é, da separação
da pulsão sexual em relação à pulsão de conservação, na qual se apoiava na
busca do objeto. Assim como Freud descreve essa clivagem nas pulsões, também
vai caracterizar o autoerotismo por um estado em que as pulsões se satisfazem
cada uma por sua própria conta, sem existir qualquer organização de conjunto.
Ou seja, no autoerotismo há um funcionamento não integrado daquilo que se
constituirá o ego.
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 119
Autoerotismo, desmentida e a cisão do Eu
As zonas erógenas funcionam como que de forma isolada uma das outras,
buscando sua satisfação ali mesmo, no próprio local em que se produz, cada
zona independente da outra (prazer do órgão). Aqui impera o princípio do prazer.
Se no autoerotismo entendemos um funcionamento da pulsão sexual de
alguma forma fragmentado, Freud nos fala de um outro funcionamento, quando
há uma unificação dessas pulsões em busca de um objeto comum, ainda que esse
objeto seja o próprio corpo:
É uma suposição necessária a de que uma unidade comparável
ao ego não esteja presente no indivíduo desde o início; e o eu
precisa antes ser desenvolvido. Todavia, as pulsões autoeróticas
estão presentes desde o início, e é necessário supor que algo tem
de ser acrescentado ao autoerotismo, uma nova ação psíquica,
para que se constitua o narcisismo (FREUD, 1914, p. 99).
Pensando no desenvolvimento do instinto sexual desde o autoerotismo até o
amor objetal, passando pelo narcisismo, podemos fazer um questionamento: será
que a libido, no seu funcionamento de organização autoerótica, já desvinculada
da função de alimentação, mas funcionando com seu caráter anárquico, não
harmônico e também sem ainda qualquer responsabilidade de integração com o
mundo exterior, não teria outras contribuições psíquicas na estruturação do
psiquismo além de ser ponto de passagem rumo ao funcionamento narcísico e
posteriormente objetal? Vejamos:
Nas Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico (1911), acompanhando
Freud em sua descrição sobre o princípio do prazer e o princípio da realidade,
deparamo-nos com questões fundamentais para entender a importância do
autoerotismo. Em primeiro lugar, Freud chama a atenção que o processo de
substituição do princípio do prazer pelo princípio da realidade “não ocorre
de uma só vez, nem em toda a extensão da psique” (p. 67). Ou seja, está aqui
também falando do caráter não unitário do funcionamento psíquico, inclusive
por estar abordando uma cisão: enquanto as pulsões do eu podem depararse com o princípio de realidade, as pulsões sexuais se separam das primeiras,
buscando, sem maiores impedimentos, a sua satisfação, já que não estão regidas
pelo princípio de realidade.
Nesse mesmo trecho, Freud nos traz outra preciosidade, relacionando
a questão da pulsão sexual e a fantasia no autoerotismo: “É o continuado
autoerotismo que possibilita que seja mantida por tanto tempo no lugar de
uma satisfação real – que demanda esforço e adiamento – uma satisfação
120 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Celso Halperin
mais fácil, momentânea e fantasiosa com o objeto sexual” (1911, p. 68). Podemos pensar aqui que o autoerotismo, pelo caráter fragmentário, parcial, tendo
o próprio corpo como objeto, funcionando, portanto, predominantemente
no princípio do prazer, permite uma contínua e permanente atividade da
pulsão sexual, alimentando e enriquecendo o aparelho psíquico pela sua
profícua produção de fantasias sexuais. Desse modo, o autoerotismo, pela sua
fecundidade da vida imaginativa, é um produtor e alimentador da sexualidade
e da vida psíquica em todos os seus estágios, pois, como diz ainda Freud nesse
ensaio: “A substituição do princípio do prazer pelo princípio da realidade não
implica a destituição do primeiro, mas sim a garantia da sua continuidade.”
(Ibid., p. 68).
Mas, retomando Freud de 1914, quando aborda a questão da passagem
do autoerotismo ao narcisismo através de uma nova ação psíquica, que tanta
polêmica provoca no seu esclarecimento, gostaria de uma rápida abordagem
sobre o narcisismo, mais especificamente, sobre o denominado narcisismo
primário. Retomando a frase já citada anteriormente, Freud coloca que no
autoerotismo não existe ainda uma unidade comparável ao ego, já que o corpo
não é percebido até aquele momento como uma unidade integrada ao objeto
da pulsão. Funcionando de forma não integrada, cada zona erógena trata de
tirar prazer dela mesma (prazer do órgão), já que o corpo, o eu como um todo,
ainda não é reconhecido. Somente através de uma nova ação psíquica (não
vamos entrar aqui na discussão de qual seria essa ação) há uma integração
do eu (ego), passando ele a ser percebido com alguma unidade factível de ser
alvo do investimento libidinal. Quando há uma representação de um eu (ego)
como uma unidade, podemos falar de narcisismo. Esse narcisismo é primário
se considerarmos o encontro entre essa percepção de si e o investimento
libidinal dos pais, e é secundário quando a libido, ultrapassado esse momento de
integração do ego, se aventura em investimento em objetos externos e retorna,
por algum motivo, ao próprio eu.
Feitas todas essas considerações sobre a estrutura autoerótica, vamos
para a segunda parte da pergunta, ou seja, tentar entender a cisão do ego e
posteriormente a possível relação entre essas duas questões. Embora Freud já
tratasse da cisão, ou divisão da consciência, nos seus estudos sobre histeria, a
cisão do eu (ego) e o processo de desmentida são estudados a partir dos artigos
Fetichismo (1927), A cisão do eu no processo de defesa (1938) e o Resumo de psicanálise
(1938).
Freud propõe, de forma resumida, que, frente a uma realidade intolerável
para a criança, que é fundamentalmente a percepção da incompletude (castração)
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 121
Autoerotismo, desmentida e a cisão do Eu
da mãe, haveria a coexistência de duas realidades contraditórias: uma parte do
eu aceitaria a percepção da ausência do pênis na mãe, isto é, partindo de uma
teoria infantil que supõe a presença de pênis em ambos os sexos, a criança se
depararia não só com a percepção da castração da mãe, como também com o
próprio fenômeno da possibilidade da castração, inclusive em si próprio. Já a
outra parte do ego recusaria que haja a falta do pênis na mãe, consequentemente
não aceita outra solução que não a permanência da mãe fálica, desmentindo
qualquer possibilidade ao contrário. Freud demonstra que a desmentida, ou seja,
a persistência dessas duas atitudes opostas e independentes uma da outra, só é
possível se houver uma cisão do eu (ego). É interessante notar também que, já
no trabalho de 1927, Freud chama a atenção para a presença desse mecanismo
não só no fetichismo, como também em outras situações em que o eu precisa
estruturar um mecanismo de defesa.
Para Freud, a cisão do eu e a desmentida se dão na estruturação do Édipo.
Assim, uma parte do eu que reconhece a existência da castração seguiria com o
seu desenvolvimento psicossexual, enquanto outra parte, aquela que não aceita,
que renega, desmente a castração, continuaria funcionando de uma forma mais
primitiva.
Mas de que forma? Aqui temos de pensar em alguns autores contemporâneos
que poderiam ser representados por Norberto Marucco e Myrta Casas de Pereda,
os quais sustentam que a desmentida seria não só um processo mais primitivo
em relação ao Édipo, como também seria estruturante.
Para Marucco (1998), o sujeito já chega cindido ao Édipo. O autor compreende
que essa cisão se dá entre uma parte do eu que funciona edipicamente (aceitando
a castração, passando pela repressão) e outra parte do eu que funciona
fundamentada na preservação do narcisismo primário (falicamente, não aceitando
a castração). Essa parte mais primitiva que se preserva de uma forma cindida
teria sua forma estruturada pela própria libido do indivíduo, bem como pelo
processo de identificação primária passiva, ou seja, pelo investimento libidinal
dos pais. Ressaltando a importância do investimento libidinal dos pais, mesmo
que em função de suas próprias demandas narcísicas, o autor localiza aqui, no
narcisismo primário, a estruturação da cisão e da desmentida. É através desse
mecanismo da desmentida que a criança buscará manter a estrutura narcísica
primária (ou seja, não aceitando a castração e suas consequências), bem como
a manutenção do narcisismo (falo) dos pais ao lado de outra parte do eu que
segue com seu desenvolvimento psicossexual. Para Marucco, a desmentida se
dá de forma bem mais precoce que o Édipo, já na estruturação do narcisismo
primário, sob o impacto da intersubjetividade.
122 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Celso Halperin
Casas de Pereda (1999) compreende a desmentida (tanto da castração como
da ausência do outro) como um mecanismo estrutural intersistêmico. Para a
autora, a desmentida se mostra presente já na gratificação alucinatória do desejo,
quando haveria uma desmentida da ausência do objeto. Aqui, a representação
desmente a ausência. A desmentida organiza o primado fálico enquanto a
repressão (primária), também estrutural, implica a proibição do corpo materno.
Ocorre que, para a autora, essa desmentida estrutural não provoca cisão do eu.
Somente teremos essa cisão se houver a persistência dessa estrutura fora de uma
cadeia simbólica a ser desenvolvida. “Na desmentida estrutural não haveria uma
verdadeira cisão do eu, mas estaria a dupla ‘saber-não saber’ (da castração) fazendo
parte da divisão estrutural, ficando o primeiro no inconsciente e o segundo no
consciente” (CASAS DE PEREDA, 1999, p. 181, tradução do autor). Portanto,
a desmentida se daria entre dois sistemas: o consciente e o inconsciente.
A partir de tudo o que foi descrito até aqui, podemos entender que no
processo de desmentida não há um funcionamento único do eu, parecendo
haver duas ou mais maneiras que podem coexistir de formas muitas vezes
independentes, simultâneas e paradoxais. Enquanto Freud coloca essa estrutura
em termos edípicos, Marucco trabalha em termos de narcisismo primário (eu
ideal) e Casas de Pereda fala em uma desmentida estrutural, a partir de uma
cisão inconsciente/consciente. Chegamos então no objetivo do trabalho, que
seria retomar a pergunta original.
A desmentida não poderia estar assentada na cisão natural do eu a ser formado,
ainda não integrado, próprio do autoerotismo?
Vimos que o autoerotismo se caracteriza por um funcionamento de um eu
naturalmente ainda bastante fragmentado, não integrado. Há uma separação
entre a pulsão sexual e a pulsão de autoconservação, bem como da própria
estrutura do eu, que atinge somente satisfações isoladas (prazer do órgão), sem
um funcionamento mais harmônico. Esse período, rico na produção da vida
imaginativa, seguirá como um produtor, fornecedor de fantasias sexuais por toda
a vida, já que o princípio do prazer, próprio do funcionamento do autoerotismo,
jamais será completamente destituído pelo princípio da realidade.
Pois bem, se, em termos da persistência das fantasias sexuais por toda a vida,
a preservação do autoerotismo fica comprovada, por que não podemos pensar
que esse mesmo autoerotismo preservado não se manifestaria também pela
preservação de um mecanismo como a cisão, frente às dificuldades da vida, no
caso, frente às duras realidades (castração) quando essas parecem intoleráveis?
Ou seja, não é a desmentida, tal como as fantasias sexuais, a manifestação clínica,
a comprovação de que o funcionamento autoerótico não integrado se preserva
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 123
Autoerotismo, desmentida e a cisão do Eu
normalmente na vida psíquica, ainda que novos padrões de funcionamento sejam
alcançados? Nesse sentido, a possibilidade de usar o recurso da desmentida não
só seria fundamentado na presença da estrutura autoerótica durante toda a vida,
como tenderia a estar disponibilizado para um funcionamento psíquico simultâneo
a um contínuo processo de integração do eu, através do narcisismo e das relações
objetais.
Self-eroticism, disavowal and splitting of the Ego
Abstract: From a brief review of concepts, the author questions the existence of a
possible structural relationship between the self-eroticism and mechanisms such as
disavowal and the splitting of the Ego.
Keywords: Disavowal. Self-eroticism. Splitting of the Ego.
Referências
CASAS DE PEREDA, M. Entre la desmentida y la represión. In: ______. En
el camino de simbolización. Buenos Aires: Paidós, 1999. p. 147-164.
FREUD, S. (1899). Extratos dos documentos dirigidos a Fliess: carta 125.
In: ______. Obras psicológicas completas. v. 1. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
p. 377-378.
______. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: ______. Obras
psicológicas completas. v. 7. Rio de Janeiro: Imago, 1972. p. 123-252.
______. (1911). Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico.
In: ______. Obras psicológicas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2004.
p. 63-77.
______. (1914). À guisa de introdução ao narcisismo. In: ______. Obras
psicológicas de S. Freud. v. 1. Rio de Janeiro: Imago, 2004, p. 95-131.
______. (1927). Fetichismo. In: ______. Obras psicológicas de S. Freud. v. 3.
Rio de Janeiro: Imago, 2007. p.159-170.
124 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Celso Halperin
______. (1938). A cisão do eu no processo de defesa. In: ______. Obras
psicológicas de S. Freud. v. 3. Rio de Janeiro: Imago, 2007. p. 171-179.
MARUCCO, N. La identidad de Édipo. In: ­­______. Cura analítica y
transferência: de la represión a la desmentida. Buenos Aires: Amorrortu, 1998,
p. 27-66. Originalmente publicado em 1978.
Celso Halperin
Rua Mostardeiro, 157 / 905
90430-001 Porto Alegre – RS – Brasil
e-mail: [email protected]
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 125
outras
contribuições
Como se originou e
se criou a teoria do
encapsulamento autista
(autistic encapsulation)
David Rosenfeld1
Resumo: A originalidade deste trabalho está em demonstrar que os mecanismos de
defesa autistas nem sempre provocam patologias mentais e, como se pode ver neste
artigo, servem com o encapsulamento autista para preservar e manter as primeiras
relações infantis e as introspecções que aqui se define como encapsulamento autista.
Palavras-chave: Autismo. Desenvolvimento psicossexual. Introjeção. Mecanismos de
defesa.
Minha experiência tratando crianças autistas e o descobrimento dos
mecanismos de defesa que eles utilizam, um dos quais titulei e defini como
mecanismos autistas chamado encapsulamento autista, fez-me pensar que são os
mesmos mecanismos que usam muitos pacientes adultos, especialmente aqueles
que conheci e tratei, sobreviventes dos campos de concentração nazistas.
A hipótese do encapsulamento autista é que dentro dessa cápsula, com
poderosos mecanismos, há recordações e vínculos infantis que se preservam.
Preservar dentro é a chave. Os afetos e as memórias infantis ali preservados, nesse
Psiquiatra e Psicanalista. Membro da Associação Psicanalítica de Buenos Aires.
1
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 127
Como se originou e se criou a teoria do encapsulamento autista
encapsulamento, reaparecem muito bem preservados espontaneamente sem
que provoquem estados de confusão na mente dos pacientes, diferentemente
da dissociação ou splitting que, quando reaparece o dissociado sobre a mente,
provoca estados de confusão.
Hoje penso que podemos diagnosticar estes mecanismos de encapsulamento
autista e localizar neste contexto teórico. Mecanismos que as crianças autistas
usam e que voltam a ser usados na fase adulta como forma de sobrevivência.
Particularmente como se verá no exemplo clínico posterior.
Há uma frase de Freud que é importante ter sempre presente, escrita em seu
último trabalho: Em algum canto da mente sempre há uma pessoa sã escondida2.
Penso que terríveis e massivos traumas poderosos, como foi o efeito do
nazismo sobre muitas pessoas, perturbam e destroem as identificações. Postulo
que as identificações introjetivas podem desaparecer por causa de traumas
extremos e massivos. E que os pacientes afetados por esses traumas terríveis
perdem identificações e, também, elementos valiosos de seu self.
Por exemplo, no material em que o paciente perde seu próprio nome.
Quando o Registro de Identidade foi bombardeado em sua cidade não foi só um
bombardeio, como também perdeu seu nome original – Moshe – e terminou
usando o de Mario. A perda da linguagem da infância ou do próprio nome é
como a perda da própria estrutura universal dele mesmo.
Tecnicamente, é útil para o psicanalista prestar muita atenção em todos os
elementos de perda ou ruptura, despedidas ou dores. É como se a perda e a
desarticulação do self ou a desaparição ou desmembramento das identificações
fosse a consequência de um paradoxo pragmático criado pelo terror massivo:
ante o perigo, querem preservar as identificações e, ao mesmo tempo, perdem
outras.
No caso seguinte, correspondente ao Mario, acho que o conceito teórico
de encapsulamento autista é útil. Esta é minha hipótese e modelo explicativo, que
me permite entender como em certos pacientes as primeiras identificações da
criança puderam ser preservadas e guardadas dentro de uma cápsula. Isso é o
que vou descobrir usando este mecanismo teórico que foi usado pelo paciente
Mario. A estrutura da personalidade prévia também influi no bom uso desse
mecanismo.
No caso do material correspondente ao Mario, encontro o conceito de
encapsulamento autista bastante útil e este modelo explicativo me ajuda a en Traduzido da Standart Edition: “In some corner of their mind there was a normal person
hidden” (FREUD, 1940, p. 202).
2
128 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
David Rosenfeld
tender como as primeiras identificações infantis foram guardadas nessa cápsula.
O mecanismo do encapsulamento autista que preserva os mais valiosos
elementos do self frente ao terrificante e sanguinário mundo externo pode
preservar algumas das introjeções e identificações, para evitar a perda total das
identificações introjetivas. Como poderão ler, proponho uma teoria que pode ser
chamada metodologicamente de forte: que as identificações introjetivas podem
desaparecer.
Baseando-me em minha experiência, posso agregar que algumas crianças
com problemas neuróticos podem manter uma parte encapsulada em um bolso
isolado (pocket, em inglês) e permitir que outra parte da personalidade possa
seguir funcionando aparentemente normal. Isso é o que descobri em pacientes
adultos. (RHODE, 2004a, 2004b; ROSENFELD, 1986, 2006, 2012a, 2012b;
TUSTIN, 1986). Isto se vê no material de pacientes adultos que apresento, assim
como também em transtornos de identidade, da pseudoidentidade, demonstrado
nesse material.
Paciente Mario
O paciente tinha mais de 40 anos, aparentava ser jovem, alto, moreno e atlético,
embora seus temores, ansiedades e certa dificuldade ao contato emocional fossem
óbvios. Na primeira entrevista, fala sobre seu problema: uma dor no estômago
que reaparecia sempre. Seu médico diagnosticou úlcera gástrica e indicou que
começasse um tratamento psicanalítico, coisa que Mario fez.
Aos 32 anos, casou-se com uma mulher, não tem problemas com ela, teve
duas filhas, de 7 e 8 anos e um menino de 4 anos, no momento da entrevista.
Também ocorreu que, estando noivo, morreu seu pai e não se permitiu casar-se
nesse momento para não deixar sua mãe sozinha, viúva.
No decorrer das primeiras entrevistas, o clima era sempre harmonioso e
parecia todo correto e perfeito. Mario parecia demasiado formal e sobreadaptado.
Descrevia sua mãe como uma pessoa generosa, às vezes hipocondríaca, menos
educada que seu pai. O pai e sua família eram uma típica família representativa
da comunidade sefaradi judeu-espanhola da Bulgária, onde cresceram (a cidade
de Roustochouk, no baixo Danúbio). Era uma cidade maravilhosa para uma
criança: pessoas de diferentes origens viviam juntas e falavam sete ou oito
idiomas diferentes. À parte dos búlgaros, havia turcos e, perto da casa deles,
gregos, albaneses e sefarades, que falavam o mesmo idioma, o espanhol antigo,
de quando foram expulsos da Espanha, em 1942.
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 129
Como se originou e se criou a teoria do encapsulamento autista
A família tinha vínculos fortes com essa comunidade. Também havia
armênios, romenos, ciganos, que vinham do outro lado do Danúbio e também
alguns russos. Falavam em italiano quando eram visitados por seus parentes
italianos.
O paciente conta que a relação com seu irmão mais velho às vezes era
tensa, inclusive chegou a dar-lhe uma bofetada por não querer participar em
uma competição de natação. Imediatamente, muda o assunto, falando de
como ele adora seu filhinho. Também muda o assunto pela preocupação pelo
seu estômago. Quando o analista pergunta sobre seu pai, diz que era afetuoso, gentil, uma pessoa a quem todo mundo queria, e que ele fazia chacotas ao pai quando não podia pronunciar corretamente alguma palavra em
espanhol.
Suas primeiras recordações relativas a medos e terrores se situam aos oito
anos, quando os alemães atacam e bombardeiam Roustochouk: sangue, corpos
mutilados, morte e terror. Ele foge para a casa de uns tios e logo se esconde
na mesquita. Conta com muita ansiedade enquanto fala, como se estivesse
revivendo nesse momento com o analista este episódio traumático. Depois,
quando retornaram para sua casa, os nazistas haviam ocupado todo o país. Era
proibido escutarem a rádio de Londres, mas mesmo assim o pai a escutava em
segredo, e ele cometeu o erro de contar confidencialmente aos amiguinhos. Com
muita fúria, o pai descobre e corre atrás dele com uma faca na mão, até que os
tios conseguem acalmá-lo. Assim, os nazistas começam a observar seu pai e eles
decidem abandonar a cidade vestidos como mulçumanos e alcançam a Costa
Dálmata.
Seu pai foi preso, mas por sorte os que o prenderam eram do exército italiano
e o deixaram passar. Desde então, os italianos e a Itália têm sido símbolos
admirados. Dali fogem apurados a Trieste, onde os homens de preto (era o uniforme
das juventudes fascistas de Mussolini) atam a todos com correntes e os levam à
cidade de Turim, onde foram alojados.
No entanto, ele teve que ir viver em um orfanato. Esses meses no orfanato
foram vividos como longos anos para ele. Com muito ressentimento, fantasiou
e pensou que seus pais haviam se desfeito dele. Nesse momento, recorda com
muito medo os ataques aéreos desse período.
Depois de muitos anos de análise, disse que os bombardeios eram menos
perigosos do que ser descoberto como um menino judeu. Depois, quando a
família foi reunida em uma pequena cidade, chegaram a sobreviver trabalhando
como sapateiros. No entanto, os alemães avançaram sobre essa cidade e a família
foge apressada para cima das montanhas, onde conseguem conhecer um grupo
130 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
David Rosenfeld
da resistência antifascista. Quando os nazistas fazem outra batida buscando
judeus, um milagroso e falso salvo-conduto os salvou da batida e conseguiram
fugir escondidos em caixotes de arroz até Roma. Perto dali vivia um tio e
esconderam-se nessa casa.
Quando Mario tinha em torno de 11 anos, os norte-americanos libertaram
Roma. Recorda muitas coisas, mas entre elas, também, que se masturbava
esfregando-se sobre superfícies duras, uma parede ou uma tabuleta. Quando
o terapeuta pergunta-lhe sobre isso, diz que, para os pais, a sexualidade era um
tema secreto, algo de que não se falava.
Somente aos 20 anos conseguiu que um tio lhe explicasse o que é a sexualidade,
como é o coito, o sexo, etc. Tempos depois, chegam a Buenos Aires e um parente
lhe dá um pequeno trabalho. Nesse momento, descobre que seus avós e todos os
irmãos da sua mãe haviam sido assassinados na Bulgária. Aqui começa a estudar
na escola secundária, era muito bom aluno. Apenas aos 30 anos teve sua primeira
relação com uma menina.
Começo do tratamento
Pudemos seguir o tratamento deste paciente, quatro vezes por semana,
durante dois anos. A conduta do paciente era formal, às vezes obsessivo em
sua linguagem e estilo. Seu temor ao tratamento não era exposto, mas creio que
estava dissociado. Seu terapeuta, um católico, recorda que somente o viu uma
vez aterrorizado em sessão quando estavam falando sobre as perseguições entre
cristãos e judeus. Então o terapeuta disse-lhe nesse momento: Eu sou cristão e você
é judeu, você crê que eu sou uma ameaça para você por isso?
O paciente saltou do divã rapidamente e parou. Depois disso, aparecem
sonhos que traz às sessões. O primeiro sonho:
Ele estava caminhando até o consultório. Perto há um negócio de marcas
italianas de carros, Fiat, coisa que é real. Ali vê quatro homens com a típica
aparência dos serviços secretos da ditadura militar, que aterrorizou a Argentina
por muitos anos, em seus típicos automóveis.
Em um carro vê um revólver. Trata de tirá-lo enquanto gritava: É um malentendido, não atire em mim, não atire em mim. No entanto, esses senhores começam a
disparar com um revólver de cano recortado e o paciente se acorda desse sonho,
aterrorizado.
As associações do paciente: a primeira coisa que observa é que todo o sonho
ocorre próximo do consultório, mas as associações do paciente foram muito
poucas. Parecia que paralisou suas associações. Parecia ter terror do terapeuta e
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 131
Como se originou e se criou a teoria do encapsulamento autista
desconfiança do tratamento. Apesar de tudo, havia um elemento que se mantinha
como algo salvador: a Itália, a Fiat e a cidade de Torino.
Outro sonho do primeiro ano de análise. Diz o paciente: Que sonho estranho eu
tive! Havia um campo que estava arado e havia um homem vestido de festa, que tinha uma
mangueira da qual saía sangue e com isso regava o campo.
Depois de contar o sonho, o paciente tem uma crise muito forte de ansiedade
que atinge o terapeuta e que lhe preocupa muito.
Hoje em dia, penso que este sonho pode ser visto como expressão de
sua imagem corporal (body image). Ter e participar de um encontro sexual
(mangueira=penis) poderia ser experimentado e fantasiado como que podia
esvaziar-se, sangrando. Além do mais, este sonho permitiu formular hipóteses
concernentes a seus afetos e emoções sobre suas relações sexuais e vínculos
baseados nas noções primitivas de sua imagem corporal (ROSENFELD,
2014). As interpretações durante o trabalho analítico permitiram-lhe entender
muito melhor suas inibições a respeito de seus medos em relação às relações
sexuais.
Sessão depois da festa religiosa a que concorreu o paciente
Durante os três longos anos de análise, o paciente manteve seu comportamento
aparente e formal, e possivelmente uma pseudoidentidade. Também continuou
com seu estilo de linguagem obsessivo, em que descreve fatos reais e fala de seus
compromissos e obrigações em relação a seu trabalho.
O paciente muito raramente podia mostrar algum temor em sua relação
transferencial, isto ocorreu uma única vez quando o psicanalista disse-lhe que
ele, na realidade, era cristão.
Sempre encontrava uma explicação racional para a sua tendência de faltar
às sessões: algumas vezes era pela fábrica, trabalho extra ou horas extras. O
paciente muitas vezes parecia dissociado.
Neste momento do tratamento, algo aconteceu com ele e com a supervisão.
O psicanalista, uma pessoa altamente sensível, muito contido e afetuoso,
trouxe um material no qual se podia detectar a dissociação de uma parte da
mente do paciente que estava fora de contato com ele mesmo e com o tratamento. Tentamos trabalhar várias hipóteses e maneiras técnicas de aproximação
para ver se poderíamos entrar em contato com áreas do paciente muito
dissociadas ou encapsuladas. Uma dessas hipóteses foi sugerir que uma das
próximas sessões do paciente coincidiria com uma das festas mais importantes
da religião judaica, chamada Dia da Reflexão/Expiação/Perdão (que em hebraico
132 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
David Rosenfeld
se chama Yom Kippur): o psicanalista ia declarar que o paciente não tinha obrigação de vir nesse dia à sessão e dizer-lhe que o respeitava por ser um judeu e
que não teria que esconder-se nas montanhas, como quando era criança, fugindo
dos nazistas.
Três sessões mais tarde, algo completamente novo apareceu: traz um
material que demonstra quão importante é a identidade judaica e a relação
com a identidade infantil. Isto nunca havia aparecido manifestadamente
antes em sessão. Isso parecia estar sempre encapsulado e colocado fora de sua
mente e do tratamento. Possivelmente, preservado pelo paciente dentro de seu
self.
Nessa sessão, ele recordou a época em que, criança, brincava subindo nos
ombros do avô e nesse momento sentiu o peculiar aroma do cabelo do avô. O
paciente chegou a dizer: Estou cheirando-o neste momento da sessão. Na continuação,
diz ao analista que esteve vendo na televisão uma série chamada Holocausto e
nesse episódio aparece o pai de uma família que encontra um irmão, os dois
aparecem caminhando juntos ao longo das vias de um trem. Enquanto relata
isso, o paciente se detém bruscamente. Sua mente parece ficar em branco. Fica
totalmente em silêncio. De repente, pula a cena seguinte do filme e começa a
falar de outra parte desse filme.
O analista que também havia visto na televisão Holocausto nessa mesma
noite, assinala ao paciente seu erro, e diz que ele havia-se detido bruscamente,
ficado em silêncio e, havia continuado a falar, pulando e esquivando uma
cena completa na qual o pai caminhava junto a um homem chamado Moisés
(Moses).
Nesse momento, o tom de voz do paciente sofre uma mudança brusca e,
profundamente impressionado, diz: Doutor, você tem razão. Agora lembro que meu
verdadeiro nome é Moses.
O paciente havia vivido na Argentina por mais de 30 anos e durante esse longo
tempo esse nome nunca chegou a ser consciente nele. Nunca havia falado disso
ou mencionado na sua casa. Tinha 14 anos quando chegou ao país, foi como se
desde criança parte de sua identidade tivesse ficado encapsulada. Agora, depois
desta longa hibernação, emerge novamente. Bem preservada. E no decorrer de
uma sessão.
Enormemente emocionado, o psicanalista lhe pergunta, tratando de superar
sua emoção e surpresa: Mas então seu nome não é Mario, é Moisés. O paciente diz: Dr.,
recentemente lembrei que usavam o sobrenome Misha para me chamar que é um diminutivo
de Moshe. Muito poucas vezes vi um psicanalista tão emocionado no decorrer de
uma hora de supervisão.
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 133
Como se originou e se criou a teoria do encapsulamento autista
Em outra sessão, o paciente conta que foi convidado para uma cerimônia
importante da tradição judaica, a cerimônia dos 13 anos (Barmitzvá), que faziam
ao filho de seu sócio. Nesse momento, o paciente estava muito emocionado e
conta que de repente viu ele mesmo chorando no templo.
Agrega que antes havia se sentido temeroso, mas que, como em seus sonhos,
de repente se sentiu invadido de emoções e recordações. Seu povo da infância,
Roustchouk, recordando vozes chamando-o Misha, Misha. Também se sentiu
invadido com a imagem das costas de seu avô, carregando-o nos ombros e a
fragrância forte de seu cabelo.
Então disse ao analista: Eu nunca vou poder recuperar esse nome, porque a seção do
Registro Municipal dessa cidade foi destruída e bombardeada. E meu verdadeiro nome também
foi destruído e queimado pelas bombas. Nesse momento o paciente fica constrangido
com uma grande emoção pelo resto da sessão.
Na construção linguística podemos observar que se referia não somente a seu
próprio nome senão às partes de sua identidade, de seu self (LIBERMAN, 1972;
ROSENFELD, 2006, 2008, 2009, 2012b).
Obviamente, depois dessa sessão, é o mesmo paciente que, por semanas e
meses somente falava de seu trabalho ou dava lógicas explicações sobre suas
tarefas para justificar muitas faltas à sessão. Mas a estrutura rígida inicial parece
ter desaparecido, e outro estilo de comunicação surge e emerge. Mais adiante,
outras áreas de sua personalidade puderam ser tratadas com maior facilidade.
Por exemplo, sua relação com sua esposa, seus filhos e seu sócio. E aparece a
possibilidade de ter outra criança, coisa que antes ele temia.
Além disso, pela primeira vez, surgem recordações de quando tinha três anos:
envolto por um lençol branco e levado ao hospital para tirar as amígdalas. Lembra
ter estado assustado por uma luz que o iluminava e que vinha do espelho que o
médico tinha, que refletia um feixe de luz, um espelho com um buraco no meio.
Meses depois, este material sugeriu alguma relação com medos à castração.
As emoções infantis e recordações aparecem muito relacionadas com seu
pai, porém antes da perseguição dos nazistas. Também surgem intensamente os
sentimentos e dores pela morte do pai, porém agora vistos de outra perspectiva.
Por exemplo, recordações de algumas travessuras com ele, como quando era
criança e retirou a cadeira na qual seu pai ia sentar-se e ele caiu.
Algo muito importante ocorre em sua mente e remexe seu mundo interior
quando a Argentina entra em guerra com a Inglaterra pelas Ilhas Malvinas,
chamadas pelos ingleses Falklands. No paciente despertam terrores tanto em
Mario como em Moshe. Tanto que no decorrer de uma sessão, diz: Isto é demais
para uma criança.
134 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
David Rosenfeld
Pensamos e acreditamos que o paciente agora tinha novos e melhores
recursos psicológicos para fazer frente a esta guerra, assim como o terror que
causava nele o sequestro e desaparecimento de muita gente nas ruas de Buenos
Aires com a ditadura militar. Este último sempre o recordou do dia em que seu
pai foi arrastado e levado à prisão.
Recordações da primeira infância de repente crescem e aparecem muitas delas
de forma desordenada. O mesmo paciente se dá conta que tinha um buraco,
um espaço que ficou vazio de quando era muito pequeno. Então, um dia ele
pergunta a sua mãe: O que aconteceu quando eu era muito pequeno em nosso povoado de
Rouschouk? A mãe lhe conta fatos, anedotas e entre elas, uma anedota na qual um
vizinho deu-lhe um presente..
O paciente em estado de regressão, durante a sessão, sem dar-se conta, segue
falando em italiano. Nesta maneira expressou, de forma concreta, a regressão
linguística que ele mesmo se permitiu. E como o poeta diz:
I lest parvenu mantenant au terme de sa route, i se devoile et
Eclaire les vingt annees de mutisme ecoulees Dans son ombre.
Il ne pourrait pas autant reveler s’il ne s’etait tu si longtemps…
(Elías Canetti – Premio Nobel de Literatura – Territoire de
l’homme)
He has now reached the end of his journey, he takes off
His veils and clarifies the twenty years of silence elapsed under
His own shadow. He Could not have revealed so much if he had
Not remained silent for so long…
Agora ele chegou ao final de sua rota, ele descobre-se dos véus
que tinha
E se esclarecem os vinte anos de mutismo escondidos em sua
própria sombra.
Ele não poderia revelar-se assim se não houvesse estado calado e
em silêncio por tão longo tempo...
(Elías Canetti – Premio Nobel de Literatura- Territoire de
l’homme)
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 135
Como se originou e se criou a teoria do encapsulamento autista
How was the theory of autistic encapsulation originated and created
Abstract: The originality of this study is in demonstrating that the mechanisms
of autistic defense do not always cause mental pathologies and, as this study
demonstrates, work with the autistic encapsulation to preserve and maintain the first
infantile relations and the introspections which, in this article, are defined as autistic
encapsulation.
Keywords: Autism. Defense mechanisms. Introjection. Psychosexual development.
Referências
CANETTI, Elías. Le territoire de l’homme: réflexions (1942-1972). Paris:
Albin Michel, 1978.
FREUD, S. (1940). An outline of psychoanalysis. In: Standart Edition. v. 23.
London: Hogaart, 1964.
LIBERMAN. D. Linguistica, interaccion, comununicativa.y proceso
psicoanalitico. Buenos Aires: Nueva Vision, 1972.
RHODE, M. A the many faces of Asperger Syndrome. London: Karnac,
2004a.
______ . Sensory aspects of language development in relation to primitive
anxietes . International Journal of Infant Observation and its Application,
v. 6, p. 12-32, 2004b.
ROSENFELD , D. Identification and its vicissitudes in relation to the nazi
phenomenon. International Journal of Psychoanalysis, v. 67, p. 53-64,
1986.
______. Autistische abkapselung. In: NISSEN, B. Autistische phaenomena in
psychanalitischen behandlung. Giessen: Psychosozial-Verlag, 2006.
______. The soul, the mind and the psychoanalyst. London: Karnac,
2008.
______. l ame, le psychisme et le psychanalyste. Larmour Plage: Hublot, 2009.
136 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
David Rosenfeld
______. Die seele, die psyche und der analytiker. Giessen: PsychosozialVerlag, 2012a.
______. The creation of the self and language. London: Karnac, 2012b.
______. The body speaks: body image delusions and hypocondria.
London: Karnac, 2014.
TUSTIN, F. Autistic barriers in neurotic patients. London: Karnac, 1986.
David Rosenfeld
Rua Billinghurst 1451, 9º “A”
1425 Buenos Aires – Argentina
e-mail: [email protected]
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 137
As diversas faces do
desejo nos tratamentos de
reprodução assistida
Katya de Azevedo Araújo1
Mara Horta Barbosa2
Patrícia Mazeron3
Renata Viola Vives4
Resumo: Ao longo da obra freudiana, o conceito de desejo vai sendo delimitado e
assumindo diferentes coloridos, principalmente quando falamos do desejo de filho
na mulher, desejo este que pode ser de predomínio narcísico ou de predomínio
edípico. Estes predomínios podem mostrar-se mais evidentes quando estamos diante
de mulheres que buscam os tratamentos de reprodução assistida, criando diferentes
formas de vínculos. Também observamos, em algumas mulheres, uma outra forma de
tentar engravidar que parece mais ligada a um acúmulo de excitação e de investimento,
em que os órgãos corporais são fonte e objeto da pulsão, o que nos remete à ideia de
libido intrassomática. Este trabalho tem como objetivo apresentar as diferentes faces
do desejo e levantar questões sobre uma outra forma de expressão que estaria ligada
à gravidez quase como uma mera descarga corporal, ligada à libido intrassomática,
usando, para tanto, ilustrações clínicas.
Palavras-chave: Conservação da espécie. Desejo. Pulsão de autoconservação.
Reprodução assistida.
3
4
1
2
Membro Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.
Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.
Membro Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.
Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.
138 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Katya de Azevedo Araújo, Mara Horta Barbosa, Maria Isabel Pacheco, Patrícia Mazeron, Renata Viola Vives
1 Revisão do conceito de desejo
O conceito de desejo, na teoria freudiana, aparece mais na primeira tópica e
é nela que Freud implanta a teoria representacional. Quando falamos de desejo,
falamos de investimento da representação, sendo que é esta (a representação)
que caracteriza o fenômeno psíquico. O desejo nasce quando ocorrem as
primeiras vivências de satisfação, com a formação do aparato psíquico, ou seja, o
surgimento do desejo inaugura o psiquismo e será o motor deste aparato.
Segundo Valls (1995) a experiência de satisfação funda um complexo
representacional que se apresenta com três tipos de representações:
a) a representação do objeto de satisfação, ou seja, a primeira que se ativa
quando se reanima o desejo;
b) a representação dos movimentos que se fizeram com este objeto e o que
este fez;
c) a representação da sensação de descarga.
Por outro lado, temos a necessidade, que deixa registros na memória, sendo
que estes ficam associados às percepções geradas pela experiência de satisfação
(imagens mnêmicas). Na próxima aparição da necessidade, em função do enlace
estabelecido, ocorre um movimento psíquico que irá buscar investir novamente
na imagem mnêmica, ou seja, reestabelecer à situação da primeira satisfação.
[...] uma moção desta índole é o que chamamos desejo; a reaparição
da percepção é o cumprimento do desejo e o caminho mais curto
para este é o que leva desde a excitação produzida pela necessidade
até o investimento pleno da percepção (FREUD apud VALLS,
1995, p. 194).
O desejo é o desejo de voltar a reviver a experiência de satisfação, aquela
primeira vivida no vínculo com o outro e que agora é o objeto desejado, sonhado,
almejado. “Cada vivência de satisfação irá deixando novos desejos; as pulsões de
autoconservação vão ficando mais repetitivas enquanto o objeto será mais fixo”
(VALLS, 1995, p. 194).
Já as pulsões sexuais irão mudando os desejos conforme as zonas erógenas do
período até chegarem à supremacia fálica, quando se organizam em uma direção
e ocorre a eleição de objeto, que por ser incestuoso deverá ser reprimido. O
objeto das pulsões sexuais irá se modificando ao longo do desenvolvimento, mas
vai diminuindo conforme vai produzindo fixações, podendo ficar no próprio
corpo.
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 139
As diversas faces do desejo nos tratamentos de reprodução assistida
A escolha de objeto sexual (externo) se sustenta em parte nas pulsões de
autoconservação e em parte no próprio corpo, onde o objeto deixou seus
registros. Então “a história do corpo e sua representação irão definindo o eu”
(VALLS, 1995, p. 195).
Os desejos inconscientes dos objetos poderão chegar ao pré-consciente, a
partir do período pré-edípico, pois com a aquisição da linguagem, podem ligarse às representações de palavra, manifestando assim os desejos pré-conscientes.
Depois do complexo de Édipo, o aparato psíquico se cindirá e múltiplos desejos
(incestuosos, parricidas e os infantis) serão reprimidos, passarão ao estado de
inconscientes e lá permanecerão (VALLS, 1995, p. 195).
O ego tira o investimento da representação-palavra, nega sua existência e
não reconhece os desejos como seus. Mas estes desejos permanecerão querendo
retornar, diretamente ou por meio de deslocamento pré-consciente que os
representem e, ao mesmo tempo, evitem a censura. Esse retorno origina os
sonhos, atos falhos, sintomas neuróticos, etc.
Em termos gerais, para Valls (1995), quando nos referimos a desejo
inconsciente nos referimos a desejo sexual, mesmo que a posse de representação
(de coisa e de palavra) dê à pulsão de autoconservação característica desejante.
Segundo Freud (1915 apud VALLS, 1995), não pode haver desejo
correspondente à pulsão de morte, pois não há no inconsciente representação
coisa desta (morte). É uma contradição falar de uma vivência de morte que
deixe sua marca no aparato psíquico. O que pode acontecer é uma necessidade
inconsciente de castigo que provém do superego.
Paradoxalmente sabemos da existência de uma pulsão de morte muda, que se
falasse seria através das representações (de coisa e de palavra) do desejo sexual,
com o qual está misturado.
O conceito de desejo se confunde com o de pulsão, bem como o de libido
sexual, mas são coisas diferentes. Pulsão, para Freud (1915, p. 117 apud VALLS,
1995, p. 470), “é um conceito limite entre o somático e o psíquico”. O desejo
relaciona-se mais com o lado das representações. Por isso Freud fala em satisfação
alucinatória de desejo e não em satisfação alucinatória de pulsões.
Valls (1995), ao diferenciar os conceitos de libido e desejo, nos aponta a
dificuldade em falar de desejo narcísico puro, pois afirma que poderia fazê-lo
como extensão do conceito de desejo homossexual, mas que mesmo assim ainda
estaria referindo-se a um objeto. Exemplifica esta afirmação com a dependência
da criança ao amor do objeto no período de latência em que pode tomar para si,
como próprios, os desejos do objeto. A criança, em geral, resigna suas pulsões
para garantir o amor materno.
140 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Katya de Azevedo Araújo, Mara Horta Barbosa, Maria Isabel Pacheco, Patrícia Mazeron, Renata Viola Vives
Conforme Valls (1995), poderíamos pensar, portanto, que a necessidade do
amor do objeto não é narcisista no sentido mais restrito do termo, uma vez que
desejar ser amado pelo objeto, ou desejar ser o ideal, está constituído por marcas
de objetos do passado infantil ou da onipotência perdida. Assim, “são desejos
narcisistas, porém nunca falta o rastro do objeto em todas as complexizações do
desejo” (p. 198).
De acordo com Hanns (1996), Wunsch é um substantivo que é traduzido
por desejo, sendo que este se dirige ao que é almejado, diferenciando-se no
texto freudiano de Lust, que significa vontade, desejo e prazer e de Begierde, que
representa desejo intenso, sofreguidão.
O termo é utilizado para expressar algo menos imediato, objetos que se
apresentam para o sujeito como um ideal, algo sonhado, sendo este de caráter
imaginário. Difere-se do sentido em português, em que desejo é usado como um
querer mais imediato e referindo-se também à sexualidade, sentido este que não
está contido em alemão.
Tanto no Projeto para psicologia científica (1895) quanto na Interpretação dos sonhos
(1900) Freud, de acordo com Hanns (1996) usa o termo Wunsch no sentido
de desejo alucinatório. Coloca ainda em 1900 que nada senão o desejo pode
colocar nosso aparelho anímico em ação. O termo Wunsch está presente na obra
de Freud desde suas primeiras formulações sendo que é no texto da Interpretação
dos sonhos que é elaborado mais detalhadamente.
Hanns (1996) salienta que de forma geral pode-se dizer que o desejo circula
preponderantemente na esfera representacional, nas regiões do pensamento,
do sonho, da fantasia, do idealizado, do imaginado, do alucinado e da loucura. Segundo o mesmo autor, Freud muito raramente emprega o termo satisfação
(Befriedigung) em conexão com desejo (Wunsch), sendo a palavra realização como
também a palavra desejo pertencentes à esfera do idealizado, do almejado e do
anímico.
A pulsão em si não tem desejo, é uma força, uma intensidade que busca
a descarga, o desejo sim, busca satisfação. Segundo Hanns (1996), a pulsão é
inquietante e aguilhoa o sujeito, necessitando ser apaziguada; sua meta é obter o
prazer (Lust) desconsiderando qualquer mediação. Sua expressão mais imediata é
Lust (desejo-vontade e sensação de prazer). Sendo uma manifestação mais direta
do Trieb, o qual desconsidera a realidade, o Lust constitui-se numa tendência ou
vontade e não propriamente num desejo. Esta expressa uma vontade do corpo de
forma direta, quase sem mediação do objeto. Enquanto a Lust é de cunho mais
autoerótico, o Wunsch se dirige a um objeto investido e imaginado, o qual faz a
triangulação entre Wunsch e a Lust.
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 141
As diversas faces do desejo nos tratamentos de reprodução assistida
2 A pulsão de autoconservação e a conservação da espécie
Na busca pela reprodução assistida vemos, por vezes, pacientes recorrendo
à tecnologia de forma quase irracional, chegando a dispor, para isso, não só de
todo o montante de seus bens materiais, mas também da integridade física do
próprio corpo.
Joana tem 44 anos. Fez quatro fertilizações in vitro, com doação de sêmen,
porque desejava ser mãe. Não obteve sucesso. Estava encaminhando-se
para o quinto procedimento, quando foi internada às pressas. Estava com
colesterol altíssimo, com problemas renais e hepáticos devido à sobrecarga de
medicamentos. Entrou em coma. Quase morreu, porém relata que em nenhum
momento deu-se conta da gravidade da situação, pois só tinha em mente ser mãe.
Atualmente, em parte recuperada dos problemas de saúde, pensa em adotar uma
criança para alcançar seu objetivo.
Para Maldavsky (2000) o corpo é uma unidade complexa, sendo possível
precisar sua função e sua eficácia na constituição, desenvolvimento e atividade
da vida anímica e nos processos subjetivos. Em primeiro lugar, o corpo tem valor
de fonte química da pulsão e também de objeto da mesma; também funciona
como estrutura que processa as excitações das fontes pulsionais. Essa estrutura
carrega um saber filogenético, que é inerente à espécie e que predetermina certas
orientações universais na vida psíquica. Por último, o corpo é o lugar de diversas
ações com as quais se pretende tramitar as exigências endógenas. O corpo
também pode sofrer alterações como consequências dos conflitos, sobretudo as
somatizações.
É na superfície corpórea e por suas sensações de prazer e desprazer que
Freud (1905) definiu as zonas erógenas, sendo que a constituição de uma zona
erógena requer processos projetivos e de excitações periféricas.
Para Maldavsky (2000), as erogeneidades oral, anal e uretral são ordenadoras de um conjunto vasto de outras sensualidades, sensorialidades e
motricidades de caráter ativo ou passivo. A tudo isso se agrega a erogeneidade
fálica, possivelmente a única não acoplada a autoconservação. Por fim, também
se juntará a isso uma erogeneidade genital, que implica um desempenho na
conservação da espécie.
A pulsão de conservação da espécie, que se liga com a erogeneidade fálicogenital, quando sobrevêm as mudanças da puberdade, pode estar a serviço de
neutralizar a pulsão de morte. Ela predetermina o valor de cada erogeneidade no
marco da reprodução e reúne em torno da autoconservação e da sexualidade um
saber filogenético. Essa pulsão pode entrar em luta com alguma pulsão parcial,
142 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Katya de Azevedo Araújo, Mara Horta Barbosa, Maria Isabel Pacheco, Patrícia Mazeron, Renata Viola Vives
bem como pode entrar em conflito com a pulsão de autoconservação quando a
procriação resulta numa ameaça direta ou indireta à própria vida. Sobretudo, a
pulsão de conservação da espécie se opõe à pulsão de morte, onde já não se trata
de preservar uma vida singular e sim de preservar a espécie, da qual cada corpo
é um representante.
Lembremos também que para o mesmo autor, a libido pode ficar fixada a
uma fase inicial do desenvolvimento e, portanto, investir duramente os órgãos
internos, criando processos tóxicos.
A substituição do princípio do prazer-desprazer pelo do masoquismo como
orientador da sexualidade leva a uma estase da pulsão, seja da sexualidade ou
da autoconservação, ou ambas ao mesmo tempo. A estase é entendida como
a impossibilidade de tramitação psíquica, sobretudo orgânica, para uma
erogeneidade dada. Se a estase afeta o narcisismo, de acordo com Freud, podem
dar-se manifestações hipocondríacas; se diz respeito à libido objetal, surgem
sintomas de neurose atual. A questão que se apresenta é que essas experiências
podem ou não ser reprocessadas psiquicamente e podem ter um caráter
transitório ou duradouro. Por vezes irão surgir estados de angústia automática,
atribuídas ao desvalimento psíquico ante a pulsão sexual.
Maldavsky (1994), quando propõe as patologias do desvalimento, coloca que essas
pessoas carecem de uma vida fantasmática, e que essa carência simbólica se traduz
por uma falha no registro dos afetos e, consequentemente, o empobrecimento
da subjetividade. A raiz disso, ainda segundo o autor, seriam falhas estruturais
ocorridas nos primórdios da vida do sujeito, nas quais sua economia pulsional
está voltada para manter o equilíbrio das funções orgânicas basais (temperatura
corporal, frequência cardíaca, frequência respiratória, etc.). Ou seja, uma época
regida pela demanda (corporal) anterior ao desejo. O autor diz que a satisfação
dessa demanda e manutenção do equilíbrio homeostático depende de um
ambiente empático e continente ao sujeito. Havendo falha nesta função do
ambiente, o ego primitivo do bebê fica à mercê de um quantum de energia que é
incapaz de processar, levando ao traumático (por excesso) e a um transbordamento
dessa energia para o corpo, que é então tomado como objeto de catexia da
pulsão. Maldavsky (2000) nomeia essa fase de fase libidinal intrassomática, em
que a libido está a serviço do equilíbrio orgânico.
Scherer et al. (2013) coloca que pacientes desvalidos são desprovidos de
uma demanda psíquica e geralmente chegam a tratamento por questões clínicas,
ligadas ao corpo. Postulam que a defesa característica da fixação à fase libidinal
intrassomática é a desestimação do afeto, podendo estar associado também à
desestimação da realidade e/ou instância paterna e a desmentida, o que caracteriza
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 143
As diversas faces do desejo nos tratamentos de reprodução assistida
então os quadros de desvalimento. É o fracasso de um desses mecanismos de
defesa que levaria a algum desequilíbrio orgânico, que gera então a busca de
algum tipo de tratamento clínico.
Freud em 1894 já apresentava a ideia de uma defesa muito mais poderosa e
bem-sucedida, na qual o ego rejeitaria a representação incompatível, juntamente
com seu afeto, e se comportaria como se a representação jamais tivesse existido.
Essa busca desmedida, que não observa nem mesmo os limites da própria
saúde corporal, faz questionar seu fim em si, que é a gestação e o futuro bebê.
O que se observa, é que o bebê imaginário aparece muito pouco neste cenário,
quase ausente no discurso, que é pontuado por ecografias, medicações, exames
laboratoriais e prazos. Isso leva ao questionamento se haveria um suporte
simbólico sustentando essa busca que não respeita nem mesmo a própria
integridade corporal do sujeito, podendo levar até a morte em nome da vida.
Perpassando pelas diversas faces do desejo, nos deparamos com o desejo
narcísico, com o desejo edípico e nos questionamos sobre que desejo, se é que
poderíamos chamá-lo assim, sustenta essa busca por um filho a qualquer preço
e a qualquer custo, colocando a própria vida em risco?
Seria possível inferir que algumas das mulheres inférteis que buscam
reprodução assistida possam fazê-lo movidas não por um desejo, mas por uma
demanda – necessidade (orgânica) característica da fixação intrassomática, busca
esta ligada à descarga pulsional somática, onde o corpo é o objeto da pulsão, que
é levado até a exaustão? Ou a busca por tratamentos de reprodução assistida
que chegam a pôr em risco o autoconservativo tem como motivação primordial
a conservação da espécie, ou seja, isso que se encontra inscrito em cada um de
nós, filogeneticamente?
Na tentativa de apreender a motivação que impulsiona a mulher na busca pela
maternidade, talvez nos escape ou neguemos uma ordem interna que possa estar
intimamente imbricada nesta busca. Referimo-nos aqui a algo relacionado ao
inato. O homem antes de tudo é um ser biológico.
Se pudermos pensar que em uma situação hipotética de extremo estresse e
risco de vida todos os preceitos éticos e morais do indivíduo ficam abalados,
levando-o a agir de forma irracional para manter a própria sobrevivência ou
de sua espécie, não temos como negar que também somos guiados por forças
instintivas que não domamos.
É possível pensarmos que talvez estejamos negligenciando estas forças e
mandatos filogenéticos, relacionados à maternidade e perpetuação da espécie.
Estes são questionamentos que levantamos e seguimos a pensar a partir da
teoria e da clínica.
144 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Katya de Azevedo Araújo, Mara Horta Barbosa, Maria Isabel Pacheco, Patrícia Mazeron, Renata Viola Vives
The many faces of desire in assisted reproduction treatment
Abstract: Throughout Freud’s work the concept of desire is defined and assumes
different shades, especially when the issue is the women wish for child, a wish that
can be of a narcissistic or oedipal predominance. These instances of predominance
may prove more evident when one deals with women seeking assisted reproduction
treatments, creating different types of bonds. We have also observed in some women
another way of trying to get pregnant which seems more connected to a buildup of
excitement and investment, in which the bodily organs are the source and the object of
the drive, which brings us to the idea of intrasomatic libido. This work aims to present
the different sides of the desire and raise questions about another form of expression
that would be connected to pregnancy almost as a mere body discharge, connected to
the intrasomatic libido, and clinical illustrations will be used for this purpose.
Keywords: Assisted reproduction. Desire. Preservation of the species. Self-preservation drive.
Referências
FREUD, S. (1894). As neuropsicoses de defesa. In: _____. Obras psicológicas
de Sigmund Freud. v. 1. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
______. (1895). Projeto para uma psicologia científica. In: ______. Obras
psicológicas de Sigmund Freud. v. 1. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
______. (1900). Interpretação dos sonhos. In: ______. Obras psicológicas de
Sigmund Freud. v. 4. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
______. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: ______. Obras
psicológicas de Sigmund Freud. v. 7. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
HANNS, Luiz Alberto. Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de
Janeiro: Imago, 1996.
MALDAVSKY, D. Pesadillas em vigília. Buenos Aires: Amorrortu, 1994.
______. Lenguaje, pulsiones, defesas. Buenos Aires: Nueva Vision, 2000.
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 145
As diversas faces do desejo nos tratamentos de reprodução assistida
SCHERER, C. et al. Des-afetos: pensando as patologias do desvalimento.
Psicanálise: Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto
Alegre, v. 14, n. 2, 2013.
VALLS, Jose Luis. Diccionario freudiano. Madrid: Julian Yebenes, 1995.
Katya de Azevedo Araújo
Rua Tobias da Silva, 137 / 208
90570-020 Porto Alegre – RS – Brasil
e-mail: [email protected]
Mara Horta Barbosa
Rua Dona Laura, 354 / 306
90430-091 Porto Alegre – RS – Brasil
e-mail: [email protected]
Patrícia Mazeron
Av. Independência, 172 / 403
90035-904 Porto Alegre – RS – Brasil
e-mail: [email protected]
Renata Viola Vives
Rua José Gomes, 393
91910-280 Porto Alegre – RS – Brasil
e-mail: [email protected]
146 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Afinal, o que é esse tal
enactment?
Roosevelt M. S. Cassorla1
Resumo: O autor relata investigações clínicas que o levaram a encontrar o conceito
de enactment. O estudo minucioso de explosões do campo analítico revelou que elas
desfazem conluios duais entre os membros da dupla analítica. Esses conluios congelam
situações traumáticas primitivas. Ao mesmo tempo, o analista, utilizando sua função alfa
explícita e implícita, recupera a rede simbólica defeituosa ou inexistente. Quando ela está
recomposta, o trauma é revivido no campo analítico através do contato com a realidade
triangular. Dessa forma, a dupla analítica pode sonhar-a-dois. Demonstra-se que essas
situações revelam configurações borderline que são externalizadas no campo analítico.
Revisa-se o conceito de enactment e propõe-se nomear enactment crônico aos conluios
duais e enactment agudo às situações em que esses conluios são desfeitos. Finalmente,
através de aproximações metapsicológicas, discutem-se fatores relacionados às situações
estudadas, tais como vicissitudes dos processos de simbolização em áreas primitivas,
organizações defensivas patológicas e comunição inconsciente entre os membros da
dupla analítica.
Palavras-chave: Agieren. Borderline. Enactment. Simbolização. Trauma.
Convido o leitor a acompanhar-me no relato de investigações que, a meio
caminho, encontraram-se com o conceito enactment. O início foi a clínica.
Ainda candidato, na década de 1980, atendia K, uma sofrida jovem. Durante
as sessões, sentia-me invadido por queixas e lamentações que, inicialmente,
Membro Efetivo e Analista Didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e do
Grupo de Estudos Psicanalíticos de Campinas gepCampinas.
1
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 147
Afinal, o que é esse tal enactment?
referiam-se a sintomas corporais e busca desesperada de tratamentos médicos,
depois substituídos por queixas em relação a pessoas significativas incompre­ensivas.
Tentava compreender o que havia para além das lamentações, com po­bres
resultados. Minhas intervenções eram atacadas ou desvitalizadas. Sentia-me
frente a uma espécie de muro protegido por metralhadoras que me fuzila­vam.
Percebia minha impotência, e K se queixava dela também. No entanto, havia
momentos em que K parecia aproveitar o trabalho analítico.
Imaginava que estava sendo capaz de suportar os ataques e, na medida do
possível, transformá-los em pensamento. Acreditava que as dificuldades se­riam
vencidas, aos poucos, desde que eu não me deixasse destruir.
Numa determinada sessão, K detalhava frustrações e incompreensões,
na forma lamentadora habitual. Eu ouvia calmamente (ou assim me parecia)
e buscava por onde intervir. A intensidade crescente dos ataques dificultava a
manutenção de minha paciência. K mal me ouvia e falava junto comigo, por
vezes gritando. Pacientemente, eu interrompia minhas intervenções esperando
que ela se acalmasse.
Em determinado momento, surpreendi-me dando um soco no braço da
cadeira enquanto interrompia K dizendo-lhe que ela não me escutava e não
me deixava falar. Senti-me perplexo e assustado ao ouvir o barulho do soco e a
irritação em minha voz.
K assinalou, ironicamente, que eu havia ficado nervoso. Mais controlado,
disse-lhe que sim, ela tinha razão, eu era humano. E acrescentei: ainda bem que você
tem um analista que fica nervoso, e que se não fosse isso eu estaria com medo de você e você não
teria analista. A sessão terminou em seguida, sem condições para conversarmos
sobre o que havia ocorrido.
Quando K saiu, senti-me envergonhado e culpado. Estava certo que mi­nha
função analítica havia sido destruída e que havia maltratado K. Receava que
ela não mais voltasse. E tratava-se da paciente escolhida para minha pri­meira
supervisão oficial.
Mesmo perturbado, pude imaginar o que ocorrera. K havia projetado
elementos não pensáveis dentro de mim que, em forma complementar,
engancharam-se a aspectos meus não suficientemente elaborados. Considerava-me
responsável pela situação e não tinha clareza sobre os aspectos de minha con­
tratransferência que haviam sido atuados. Essa situação seria nomeada, anos após,
enactment agudo.
No dia seguinte, surpreendo-me com K chegando à sessão. Minha sa­tisfação
inicial foi seguida de apreensão. Tinha certeza que K se vingaria. Mas ela estava
148 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Roosevelt M. S. Cassorla
calma, suas associações eram produtivas, e eu me senti analiticamente potente.
A sessão foi satisfatória, como há muito não ocorria.
Nas sessões seguintes minha surpresa aumentou. K, emocionada, lem­brouse de situações traumáticas ocorridas durante sua vida, envolvendo se­parações,
abandonos e intrusões. Essas lembranças foram estimuladas pela situação
descrita, com a qual se articularam. Sua ressignificação somada a cons­truções
hipotéticas ampliou a rede simbólica do pensamento2.
A surpresa, ainda que agradável, intrigou-me. Desde então, venho me
dedicando à sua compreensão. Parti de conceitos que me pareciam próximos,
tais como contratransferência complementar, identificação projetiva massiva,
contraidentificação projetiva, atualizações, tela beta e outras formas de co­
municação primitiva. O primeiro trabalho, apresentado na SBPSP em 1985,
foi publicado 10 anos após (CASSORLA, 1995). Outros trabalhos se seguiram
(CASSORLA, 2001, 2003, 2004, 2005a, 2005b, 2007, 2008a, 2008b, 2008c, 2009a,
2009b, 2012a), nos quais o leitor poderá acompanhar, em detalhes, os passos da
investigação. Eles têm-me levado ao estudo do processo de simbolização e suas
formas de expressão no campo analítico (CASSORLA, 2012b, 2013a, 2013b e
textos no prelo).
Revendo a situação, fui capaz de perceber que o enactment agudo (o soco na
cadeira) seguiu-se a um conluio dual de violência e submissão mútuas que havia
tomado, antes, o campo analítico. K me atacava e eu me submetia a esses ataques,
sem dar-me conta suficiente do fato. Minha paciência parecia masoquista. Por
outro lado, eu submetia K à impotência de minha função analítica. Ambos
os membros da dupla analítica se sentiam prolongamento um do outro
(CASSORLA, 1997). Tempos depois, chamaria esse conluio de enactment crônico.
Percebi, também, que o enactment agudo indica a liberação do analista do conluio
dual. O paciente entra em contato com o fato de que o analista é outra pessoa. A
discriminação self/objeto é vivenciada como traumática. Adiante, esses aspectos
serão estudados em detalhes.
Percebi que fatos próximos já me intrigavam bem antes de defrontar-me com
essa situação. Desde o maltrato de equipes de saúde a determinados pacientes,
tais como os tentadores de suicídio (CASSORLA, 1985) até falhas do analista
quando se engana em relação a horários, esquece de alguma sessão, troca nomes,
usa tom de voz sedutor, impaciente, irônico, etc. Essas situações se tornavam
produtivas quando a dupla as reconhecia e discutia.
Minha supervisora, Judith Andreucci, acolheu meu constrangimento e ajudou-me a perceber
o que ocorrera.
2
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 149
Afinal, o que é esse tal enactment?
Uma situação marcante ocorreu antes de tornar-me analista. Um paciente
me disse, ao final da sessão, que havia esquecido o cheque e que me pagaria
na próxima sessão. Eu lhe disse que deixasse o cheque na portaria, no mesmo
dia, porque eu tinha um pagamento que venceria no dia seguinte. Senti-me
constrangido tanto com a cobrança como com a exposição. Na sessão seguinte,
o paciente me disse que nunca imaginaria que eu precisasse de dinheiro. A
partir desse fato, pudemos trabalhar sua fantasia que eu era uma espécie de seio
inesgotável que estava ali só para satisfazê-lo, sem ter vida própria.
Lembro-me de outra situação com resultado oposto. Cobrava honorários
baixos de uma paciente. Aos poucos, percebi que eu fora influenciado por suas
lamentações. Ao trabalhar esses fatos, a paciente passou a atrasar o pagamento
tentando seduzir-me a reduzir mais os honorários. Após bastante trabalho
analítico, chegou-se à conclusão que seria melhor interromper a análise até que
sua situação melhorasse. Agradeceu-me por minha ajuda e prometeu voltar.
Tempos depois, soube que me difamava. Nunca mais voltou.
Nas duas situações, eu havia entrado num conluio com os pacientes, em que eu
os gratificava ou submetia-me a eles, em determinadas áreas do funcionamento
mental, constituindo-se enactments crônicos. Com o primeiro paciente, esse
conluio foi desfeito quando solicitei o pagamento (enactment agudo). O contato
traumático com a discriminação self/objeto foi suportado e terminou por ser
produtivo. Na segunda situação, a percepção da realidade não foi suportada. Foi
substituída por ressentimento crônico, mantendo-se a fantasia de relação dual.
A nomeação
Nos anos de 1990, o psicanalista Robert Caper visitou a SBPSP. Ele estava
interessado num tema desconhecido em nosso meio, um tal de enactment. A
diretoria científica buscava material clínico em que tivesse ocorrido um acting-out.
Suspeitava-se que esse fato tinha relação com enactment. Apresentei o material
abaixo e, em certo momento, Caper disse: Isto é um enactment.
Tratava-se de uma situação em que eu havia mudado de endereço. Saíra de
minha residência para um edifício comercial. Com S, a paciente em questão,
haviam sido trabalhadas as fantasias sobre a mudança, em forma que me parecia
satisfatória. Na primeira sessão no novo consultório, S entra transtornada,
atacando-me verbalmente e desprezando o novo endereço, um prédio sujo e feio.
Afirmava que abandonaria a análise sem esclarecer os motivos. Sua expressão
me fazia temer que passasse para um ataque físico. Ficara em pé, com a porta
aberta, gritando e ameaçando sair. Sentei-me numa cadeira diferente da habitual,
150 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Roosevelt M. S. Cassorla
longe do divã e perto da porta. S foi aproximando-se e terminou por sentarse em frente a mim. Discretamente, levantei-me e fechei a porta. Com muita
dificuldade, fui percebendo a relação entre seu estado emocional e o fato de terse sentido enganada. Eu não a havia avisado que se tratava de um edifício burguês,
onde todos estavam ali para ganhar dinheiro. Seus gritos impediam que ela me ouvisse.
Terminei a sessão dizendo-lhe que as coisas não estavam claras e que a esperaria
no dia seguinte.
Após a sessão, senti-me constrangido e culpado. Imaginei que não havia
comunicado corretamente a mudança de endereço e/ou havia ficado cego
para algum aspecto. Incomodou-me também a impressão de que minha função
analítica havia sido danificada durante a sessão.
Nas sessões seguintes, S me surpreendeu lembrando-se de fatos novos. Sua
família constantemente mudava de casa e de cidade, porque os pais precisavam
ganhar mais dinheiro. Com isso perdia sua escola, seus amigos, e tinha que se
adaptar a um novo lugar que logo seria deixado. S reviveu esses fatos com minha
mudança de endereço. Outras situações traumáticas relacionadas a separações,
abandonos e intrusões, algumas construídas como hipóteses (isto é, que não
foram lembradas), permitiram que o processo analítico se tornasse mais
produtivo.
Não compreendi bem por que Caper chamara o fenômeno de enactment.
Para mim, era um acting-out de S. Considerava que ela não tinha condições
de simbolizar verbalmente seus sentimentos que, dessa forma, haviam sido
descarregados.
Lembrava-me também que acting-out era a tradução do termo Agieren (FREUD,
1914), situações nas quais o paciente representava fatos que não podia lembrar.
Essa dramatização se opunha à rememoração. Sabia, também, que Agieren se
confundia com a própria noção de transferência.
No entanto, em seu uso comum, os analistas usavam acting-out ou atuação
para descargas impulsivas, mais ou menos pontuais, e não era quase usado
para representações encenadas que durassem um tempo maior. O advérbio out
indicava para algo que era colocado para fora (do mundo interno), em forma
rápida. A atuação era vista como um obstáculo para a análise, algo não bemvindo. Era comum analistas acusarem o paciente por ter atuado em vez de
associar livremente, como se o paciente se recusasse a recordar.
O termo atuação era também utilizado para rotular personalidades impulsivas
e sociopáticas. O conceito se ampliara, em forma moralística, para a linguagem
comum dos profissionais de saúde mental, tornando-se comum a acusação
de atuadores a pacientes (e colegas...) questionadores. Curiosamente, não se
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 151
Afinal, o que é esse tal enactment?
considerava que a maioria dos atos maldosos é fruto de raciocínios sofisticados
e não de descargas.
Essa conotação moralística me incomodava porque intuía que se um paciente
atuasse ele o faria porque não teria condições suficientes para fazer outra coisa e
não porque ele quisesse atacar o analista.
A confusão conceitual em relação ao termo acting-out pode ser resumida da
seguinte forma: quando o paciente dramatiza − através de condutas − situações
que não se lembra, estamos frente ao Agieren. Esse termo foi traduzido, em
inglês, por acting-out. No entanto, em outra vertente, o termo acting-out passou
a ser utilizado para atos impulsivos descarregados. Armou-se tal confusão que
no Vocabulário de psicanálise de Laplanche e Pontalis (1995) existem dois verbetes:
1. Acting-out (em inglês, algo curioso num dicionário francês...) referindo-se aos
atos impulsivos; 2. Atuação (mise en acte) como tradução do Agieren freudiano,
como condutas encenadas opondo-se à rememoração3.
Curiosamente, o estudo do enactment, meu próximo desafio, me levaria a
considerar descargas e formas simbólicas que substituem a simbolização verbal,
discriminando os dois significados. A diferenciação entre acting-out e enactment se
tornará clara adiante.
Estudando o conceito, descobri que enactment é usado coloquialmente com
o sentido de representação teatral, encenação, colocação em cena, similar a to
act, to represent, to play. O mesmo uso se encontra em textos psicanalíticos. O
verbo to enact se refere ao fato do paciente externalizar seus dramas internos
durante a sessão analítica ou fora dela. Por vezes, usa-se o verbo to re-enact, com
o mesmo sentido. Uma citação de Greenacre (1950) é significativa: “Acting-out,
como expressão, é uma forma especial de lembrança em que a antiga memória
é re-enacted numa forma mais ou menos organizada e apenas ligeiramente
disfarçada” (p. 456, tradução minha). A citação mostra que to act out (como
Agieren) e to re-enact podem ter quase o mesmo significado.
No entanto, a partir do final dos anos 90 o termo enactment vai adquirindo
maior precisão. Surge outra conotação, do mundo jurídico. Enactment significa
algo com força de lei, um decreto, algo que tem que ser obrigatoriamente
obedecido (PANEL, 1999).
Aos poucos, o termo passa a envolver os dois significados ao mesmo tempo,
ainda que seu uso coloquial continue. Isto é, a encenação ou representação
é associada a algo inevitável, como se obedecesse a uma lei. A conotação
Venho verificando, na SSPSP, um uso cada vez menor dos termos acting-out e atuação, substituídos por descargas. Esse uso também é limitante.
3
152 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Roosevelt M. S. Cassorla
depreciativa é superada. Mas a observação do uso do termo vai além: o
enactment ocorre entre paciente e analista, isto é, ambos participam do que está
ocorrendo. Diferentemente do acting-out que é algo que ocorre com o paciente
e, hipoteticamente, o analista apenas observa. Essa ideia é concomitante à
valorização do vértice intersubjetivo na psicanálise contemporânea.
As ideias sobre intersubjetividade consideram que o processo analítico ocorre
num campo em que nada acontece com um dos membros da dupla que não
tenha reflexos no outro. O drama contado e representado no campo analítico é
fruto da externalização de personagens e enredos colocados em cena por ambos
os membros da dupla analítica, ainda que a relação entre eles seja assimétrica.
Nesse momento, revalorizam-se autores que já haviam chamado a atenção para
esses fatos, como o casal Baranger, Ferenczi, Winnicott, Rosenfeld, Bion, Betty
Joseph etc., e mais recentemente Ferro e Ogden.
Em outros trabalhos, propus considerar que, em área simbólica (não
psicótica), o paciente coloca seus sonhos (diurnos e noturnos) no campo analítico
por meio de narrativas e enredos. Esses sonhos são comunicados ao analista
através de identificações projetivas normais. O analista, identificado com os
sonhos do paciente, transforma-os em outros sonhos, modificando as defesas
que escondem o reprimido. O analista re-sonha os sonhos do paciente. Este, por
sua vez, re-sonha os sonhos contados pelo analista através de suas intervenções e
assim por diante. Constituem-se conglomerados simbólicos que chamei sonhosa-dois, nos quais a participação de cada membro da dupla vai se tornando menos
clara.
Quando predomina o funcionamento da parte psicótica ou traumática (onde
a simbolização está prejudicada), o paciente não consegue pensar e os elementos
com déficit de simbolização verbal são descarregados, colocados em cena por
meio de condutas, transformados em sintomas corporais ou ainda em alucinose.
Ao conjunto desses elementos não pensados adequadamente chamei nãosonhos. O analista, utilizando sua função alfa, transforma os não-sonhos em
sonhos.
Existem situações em que os não-sonhos penetram o analista atacando
sua capacidade de pensar em forma tal que ele também passa a não-sonhar.
Constituem-se não-sonhos-a-dois, conluios duais em que paciente e analista
descarregam e/ou repetem condutas compulsivamente, sem que se deem conta
do que está ocorrendo. Considero não-sonhos-a-dois a matéria-prima dos
enactments crônicos.
Joseph (1989) antecipa a descrição de enactment, mas sem nomeá-lo, ao estudar
minuciosamente como o paciente recruta emocionalmente seu analista para que
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 153
Afinal, o que é esse tal enactment?
este represente determinados papéis complementares. Sua função é manter o
status quo, evitando mudança psíquica. O analista somente se dá conta desse
recrutamento depois que ele ocorre. Em meu modelo, enquanto ele não se dá
conta, está ocorrendo um enactment crônico. Rosenfeld (1987) descreve, também
detalhadamente, situações similares quando levam a impasses analíticos.
Seria necessário um novo termo para fatos que ocorrem no campo analítico
e que já foram descritos desde Freud, como no caso Dora ou no sonho de
Irma, por exemplo? Ou por Joseph (1950), Rosenfeld (1987) e tantos outros?
Brown (2011) revisa autores pioneiros que apontavam para fatos similares. Em
outros trabalhos, retomo situações descritas por Bion quando o analista se torna
estúpido. Ele afirma que, nesses momentos (de enactments, mas evidentemente
Bion não usa o termo), nada há a ser feito a não ser tentar compreender,
posteriormente, o que ocorreu (BION, 1958).
Considero que o termo enactment agregou fenômenos similares que eram
descritos de formas próximas, porém diferentes, por psicanalistas de várias
orientações teóricas. O termo passou a fazer parte do que tem sido chamado
common ground em psicanálise. Como qualquer termo novo, ele foi inicialmente
visto com aversão e desconfiança. Em seguida, passou a ser aceito em forma
crítica e reticente. O uso tem-se ampliado, mas ainda é necessário que se explicite
seu significado.
Uma primeira tentativa de definição de enactment poderia ser: fenômeno
intersubjetivo em que, a partir da indução emocional mútua, o campo analítico é
tomado por descargas e/ou condutas e comportamentos que envolvem ambos
os membros da dupla analítica, sem que eles se deem conta suficientemente do
que está ocorrendo, e que remetem a situações em que a simbolização verbal está
prejudicada.
Quando existem palavras, elas servem como instrumentos de descargas ou
formas de expressar afetos que envolvem emocionalmente o interlocutor. A
palavra funciona como ato, em que dizer é fazer (AUSTIN, 1990). Tratam-se de
formas de rememorar através de sentimentos (memory in feelings) e comportamentos
colocados em cena no campo analítico. Como no enactment ambos os membros
da dupla estão envolvidos (sem dar-se conta), o conceito vai para além do actingout e do Agieren freudiano, descritos como pertencendo ao paciente.
Como vimos, a clínica me levou a propor dois tipos de enactments. O enactment
crônico, em que paciente e analista representam, como numa espécie de teatro
mímico, ou cinema mudo, cenas e condutas. O enactment agudo, por sua vez,
corresponde a fatos abruptos, do mesmo teor, que num primeiro momento
parecem ser apenas descargas. Adiante veremos que são mais do que isso.
154 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Roosevelt M. S. Cassorla
Na literatura psicanalítica, o termo enactment se refere, quase sempre, ao que
chamo enactment agudo, como descarga.
Desafios na investigação
Agora que o termo enactment foi decifrado devemos aprofundar nossa
investigação. Temos várias questões desafiadoras: que fatores estão envolvidos
no enactment? O enactment é inevitável ou decorre de falhas evitáveis da função
analítica? O enactment é útil para o processo analítico ou é sua compreensão que
o torna útil? Que configurações emocionais estimulam enactments? E assim por
diante. Teremos que ir além da pobre descrição fenomenológica, em busca de
visões metapsicológicas. Para tal, devemos retornar à clínica.
No primeiro material, K atacava o analista que tentava dar sentido ao que
ocorria no campo analítico. Em determinado momento, o analista perde a cabeça,
dando um soco em sua cadeira. No segundo material, o processo caminhava
bem. De repente, S perde a cabeça e quer parar a análise. O analista, por sua vez,
imaginou que perdera a cabeça durante a comunicação da mudança de endereço e
quando não se sentou na cadeira do analista. Em ambas as situações, o perder a
cabeça indica enactments agudos.
Como vimos, após os enactments agudos os analistas se sentem constrangidos
e culpados. Mas nas sessões seguintes, o processo analítico, surpreendentemente,
desenvolve-se. O que ocorreu durante a explosão do campo analítico e que
fatores fizeram com que o processo analítico se desenvolvesse, posteriormente?
Lembremos que os enactments agudos se seguem a conluios duais que
haviam tomado o campo analítico. Com K, eu estava envolvido num conluio
sadomasoquista com uma repetição compulsiva de situações de violência e
submissão mútuas. Com S, eu estava envolvido num conluio de idealização
mútua, também repetido compulsivamente. Essas repetições lembram sonhos
traumáticos, algo para além do princípio do prazer. Mas existem importantes
diferenças entre esses sonhos e o enactment crônico. Neste último, a ansiedade
está tamponada, o analista está envolvido, e tanto paciente como analista não se
dão conta suficientemente do que está ocorrendo.
Após o soco na cadeira, K percebe que não estou mais submisso a ela, que
sou outra pessoa. O mesmo ocorre com S quando tem que se defrontar com
a mudança de endereço. O trauma revivido no campo analítico é o trauma de
tomada de consciência da triangularidade, da separação self/não-self. O enactment
agudo mostra a revivescência de traumas, as descargas afetivas e, ao mesmo
tempo, a retomada da capacidade de sonhar.
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 155
Afinal, o que é esse tal enactment?
Descobrimos, portanto, que no enactment agudo ocorrem fatos para além das
descargas. Ele é um mix de descargas, não-sonhos sendo sonhados e sonhos
revertendo para não-sonhos, todos esses fatos ocorrendo ao mesmo tempo. O
enactment agudo revela, ao vivo, tanto o trauma do contato com a triangularidade
como o início do processo de simbolização.
Resumindo o exposto, podemos considerar as seguintes fases nas configurações descritas:
1. Antes do enactment agudo: o trabalho analítico ocorre em duas áreas paralelas:
a. em área simbólica, paciente e analista sonham-a-dois e, ao mesmo tempo, em
área não simbólica sonham-se não-sonhos;
b. em área não simbólica, paciente e analista formam um conluio dual,
enactment crônico, como não-sonho-a-dois. Esses conluios costumam ter cono
tação sadomasoquista ou de idealização mútua. Comumente, há uma
oscilação entre os dois. A dupla não se dá conta suficientemente do que
está ocorrendo, ainda mais porque em área paralela o processo analítico
está desenvolvendo-se aparentemente em forma produtiva4.
2. Enactment agudo. Em determinado momento, o campo analítico parece
explodir. Trata-se do desfazimento do conluio dual e do surgimento abrupto da
realidade triangular, vivenciada como traumática. O campo analítico é tomado
por um conglomerado de descargas, não-sonhos sendo sonhados, e sonhos
sendo revertidos para não-sonhos. Nesse momento observamos, ao vivo, como o
trauma de contato com a realidade triangular é, ao mesmo tempo, descarregado,
revivido e sonhado.
3. Após o enactment agudo. A rede simbólica do pensamento se amplia.
Lembranças e construções permitem que o paciente ressignifique fatos primitivos
que haviam sido congelados durante o enactment crônico. Estamos em área de
não-sonhos sendo sonhados caminhando rumo a sonhos-a-dois.
Configurações borderline
Os fatos acima conduzem para a hipótese de que durante o enactment crônico
são vividas situações traumáticas primitivas que não puderam ser simbolizadas
verbalmente porque foram registradas antes do desenvolvimento da mente
simbólica. Estamos em área de inconsciente não reprimido. Ansiedades de
aniquilamento, fruto dessas situações traumáticas, são controladas através da
Frequentemente o paciente capta inconscientemente áreas vulneráveis do analista, nas quais
suas projeções se engancharão.
4
156 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Roosevelt M. S. Cassorla
fantasia de fusão com o analista. O analista é vivenciado como escudo protetor,
substituto do escudo protetor que falhou no desenvolvimento inicial. Durante o
enactment crônico, o paciente imobiliza o analista impedindo que sejam revividas
situações de abandono e intrusão, os traumas por excelência. Durante a
imobilização, entretanto, a dupla repete (sem saber que repete) essas situações de
abandono e intrusão e as defesas contra elas, através de uma espécie de cena teatral
mímica ou cinema mudo. Esse fato indica que existe outro tipo de simbolização
desses registros iniciais, uma simbolização em conduta ou comportamento. No
entanto, a rede simbólica está coarctada e a cena permanece congelada. Somente
após o enactment agudo, quando se retorna à capacidade de sonhar, a cena se
conecta a símbolos verbais.
Quando o enactment agudo rompe o conluio dual, a ansiedade tamponada
toma o campo analítico, ameaçando aniquilá-lo. O analista se sente culpado
por imaginar que perdeu sua função analítica. Mas agora sabemos mais sobre
essa culpa. Ao desfazer a relação dual e levar a dupla para o espaço triangular,
o analista intui que está re-traumatizando o paciente. O analista receia que o
paciente não suporte este contato com a realidade por falhas na capacidade da
dupla em recompor a rede simbólica.
Este último ponto é consequência do seguinte raciocínio. Se o enactment agudo
se revelou produtivo, retomando-se a capacidade de sonhar, somos obrigados
a constatar que a rede simbólica do pensamento se recuperou. E, como ela se
recupera? Teremos, novamente, que voltar à clínica.
Revendo o material das sessões antes do enactment agudo, verificamos que o
analista tinha certa noção dos ataques (com K) e da gratificação mútuos (com
S) e trabalhava esses fatos, ainda que de forma não suficiente. Penso que esse
trabalho, somado a características do analista (paciência, perseverança, busca
constante de novos caminhos, capacidade negativa, etc.) constituíram o que
chamei função-alfa implícita. Isto é, em áreas paralelas ao enactment crônico, a
rede simbólica vai sendo construída e reconstruída. Em determinado momento,
nem antes nem depois, o analista intui que existe rede simbólica suficiente para
arriscar o contato com a realidade triangular. Caso essa rede não estivesse refeita,
em forma suficiente, a dupla retomaria o enactment crônico.
Essas hipóteses são confirmadas pelo estudo minucioso de material clínico.
Muitas vezes o analista tenta libertar-se do conluio dual, mas quando a realidade
triangular é vivenciada como muito traumática retoma-se o enactment crônico.
O processo de cerzimento da rede simbólica continua, até que nova tentativa
é efetuada. Quando a rede simbólica é suficiente, o enactment agudo se impõe
(CASSORLA, 2008a, 2013b).
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 157
Afinal, o que é esse tal enactment?
O estudo do enactment me levou a uma maior compreensão das configurações
borderline, isto é, situações em que traumas primitivos fizeram o paciente criar,
através de identificações projetivas, uma carapaça que visa a manter uma relação
dual com o objeto, no caso o psicanalista. Essa carapaça é altamente instável e
o paciente sente que seu rompimento o levará a entrar em contato traumático
com a realidade. A relação dual analista/paciente, dentro da carapaça, oscilará
entre conluios idealizados que correspondem às organizações patológicas pele
fina (ROSENFELD, 1987) e conluios de agressão mútua, que correspondem à
pele grossa.
Em outras palavras, o paciente altamente vulnerável (pele fina) se funde
ao analista numa relação dual idealizada. Como a todo momento o analista
ameaça discriminar-se (o próprio enquadre promove isso), o paciente reclama,
não se submete e tenta submetê-lo. A pele grossa predomina e ela também
está presente para proteger o paciente de intrusões. Quando a triangularidade
ameaça, de novo, o paciente pode retomar o conluio em forma sedutora. Entre
oscilações de sedução e violência mútuas, o trauma da triangularidade está
sempre ameaçando. Essas configurações subjazem ao fato do paciente viver na
fronteira entre a relação indiscriminada (EP) e a triangularidade (D). Nenhuma
das duas é suportada, levando às oscilações descritas. Lembremos, por outro
lado, que esses pacientes também funcionam com outra parte da personalidade
que promove uma aparente boa adaptação ao ambiente5.
O estudo do enactment levou-me, também, a constatações de ordem técnica.
Em área de sonho (simbólica), o paciente se comunica com seu analista
penetrando-o através de identificações projetivas normais. Constitui-se uma
relação dual momentânea que é desfeita assim que o analista mostra, com
suas intervenções, que é outra pessoa. Isso é bem evidente quando a interpretação é transferencial ou mutativa (STRACHEY, 1934). Podemos dizer,
portanto, que em área simbólica, constituem-se enactments ou micro-enactments
normais, a todo momento da análise, que o analista vai desfazendo através de
suas interpretações.
Em áreas psicótica e traumática, em que a capacidade simbólica está
deteriorada, os não-sonhos tomam o analista através de identificações projetivas
massivas. Nestas áreas, a interpretação transferencial é contraindicada porque
não existe rede simbólica suficiente para viver-se na realidade triangular.
Essas interpretações não serão compreendidas ou, pior, serão sentidas como
As configurações lembram Hamlet, na fronteira (bordcr) entre não-ser (Narciso) e ser (Édipo).
Nessa fronteira Ser ou não-ser, eis a questão.
5
158 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Roosevelt M. S. Cassorla
traumáticas, o analista impondo a realidade triangular a uma mente sem
capacidade para sonhá-Ia. Antes, portanto, essa rede simbólica terá que ser
construída pelo trabalho da dupla.
Poderíamos arriscar certa ampliação das ideias descritas para fatos sociais6.
Sabemos que o establishment impede mudança catastrófica através de seduções
ou ameaças que, mantendo a fusão dual grupal, impedem o pensamento.
Situações destrutivas são mantidas congeladas (similar ao enactment crônico). Se
a capacidade de pensar é retomada, o conluio se desfaz com disrupção grupal
produtiva ou insuportável.
Quando um membro traz ideia nova, o grupo não a reconhece enquanto tenta
digeri-Ia ou destruí-Ia. Reconhecimento instantâneo ou rápido é consequência
de idealização ou medo, conluios duais, com consequente desvitalização.
Comumente, a ideia nova é aceita quando é reconhecida longe do grupo original.
Essa história natural do reconhecimento faz parte do funcionamento normal
dos grupos humanos7.
Conclusões
Como vimos, o enactment crônico congela, na relação dual, traumas inscritos
no inconsciente não reprimido, incluindo fatos transgeracionais. O campo
analítico é tomado por configurações arcaicas dramatizadas por ambos os
membros da dupla, sem que eles o percebam. A dramatização compreende
diferentes formas expressivas que se manifestam por meio de emoções, mímica,
atos, sons, cheiros, formas de construção da linguagem, tons, timbres de voz.
Esta expressividade pode ser muito sutil em sua manifestação visível e muito
potente em sua capacidade de envolvimento emocional. Os traumas congelados
se revelam, no campo analítico, através do enactment agudo ao mesmo tempo que
são sonhados. Sua ressignificação ocorre, portanto, après coup.
Neste momento devo referir-me às ideias de Gabriel Sapisochin, de Madrid,
com quem venho mantendo um estimulante diálogo. Sapisochin (2012, 2013)
combate a ideia de que não existe simbolização no inconsciente não reprimido.
Ele insiste que não há simbolização verbal, mas existem outras formas de
O colega Luiz Meyer me chamou a atenção para essa possibilidade de ampliação.
Quando um analista acredita piamente em fatos contados por seu paciente, ignorando que
não tem acesso à realidade externa, estamos frente a um enactment por deficiência da função
analítica. Quando o analista relata esses fatos para além da sala de análise, estamos frente a
situações éticas graves, enactment perverso amplificado. Instituições psicanalíticas se defrontam
com essas situações.
6
7
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 159
Afinal, o que é esse tal enactment?
simbolização. Descreve gestos psíquicos, padrões de relacionamento que foram
registrados em épocas primitivas, e que surgem no campo analítico através de
formas ideo-pictográficas. Esses padrões não podem ser colocados em palavras
mas são simbolizados através de comportamentos, como um teatro mímico ou
um filme mudo. O enactment crônico nada mais é que a colocação em cena desses
padrões, tais como eu o domino e ele se revolta, eu o seduzo e ele se submete, ele me ataca e
eu fujo, e vice-versa8.
Retornemos à função alfa. Neste trabalho enfatizei sua ação implícita e a
associei à profunda comunicação inconsciente entre os membros da dupla
analítica. Penso que o sonho inconsciente do analista é captado pelo paciente,
para além da comunicação explícita, e esse fato merece maiores investigações.
Continuamos, no entanto, com um problema não totalmente solucionado.
Por que razão o analista tem que permanecer no enactment crônico, sem ter
consciência disso? Não seria mais útil, para o processo analítico, que o analista se
liberasse do conluio e mantivesse a paciência necessária? Para tentar responder a
essas questões, faço analogia com a função materna.
Uma mãe adequada procura ser o seu bebê, vivendo situações traumáticas
para poder sonhá-Ias por ele. Para que isso ocorra, cega-se parcialmente para
suas próprias necessidades através de um masoquismo normal. Constitui-se
algo parecido a um enactment, a mãe sofrendo com seu bebê mas não tendo
consciência clara desse sofrimento. Com isso, a mãe não percebe o irrealismo
de seu masoquismo podendo mantê-lo por todo o tempo que for necessário.
Se essa negação for desfeita precocemente, a mãe corre o risco de não suportar
sua identificação com o sofrimento do bebê, podendo desligar-se dele de modo
traumático.
Em situações extremas, pais podem deixar-se matar para salvar a vida de
seus filhos. Isso só será possível se houver uma profunda identificação com eles,
sentidos como partes de si mesmos, para além da razão explícita. Nesse modelo,
o analista tem que negar provisoriamente o irrealismo de seu masoquismo, como
ocorre com a mãe do bebê, para poder sofrer junto com seu paciente.
Esta hipótese nos levaria a supor que, em situações em que há certa
elaboração dos traumas, o analista terá menos dificuldade em denunciá-los, os
conluios duais sendo menos intensos. Possivelmente a experiência do analista
e o conhecimento dos fatos estudados facilitará a identificação mais precoce
dessas situações, ainda que sempre ocorra après coup. O analista incomodado por
não ter clareza suficiente sobre o que está ocorrendo deve escrever sobre seu
Considero que Gabriel e eu temos sonhado-a-dois nossas convergências e divergências.
8
160 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Roosevelt M. S. Cassorla
trabalho e/ou compartilhá-lo com um colega. Esse segundo olhar, retomada do
trabalho de sonho, permite a entrada de um terceiro no conluio dual, contribuindo
para seu desfazimento.
Evidentemente, o analista pode contribuir para as situações descritas devido
a limitações pessoais. Este trabalho não busca justificá-los, mas propõe que
devem ser examinados, compreendidos e aproveitados. Visões moralísticas
condenatórias impedem o desenvolvimento da capacidade de pensar.
Termino este texto discriminando as funções do enactment crônico:
a) evitar a revivescência do trauma, congelando-o e tamponando a ansiedade;
b) imobilizar o analista para que ele não re-traumatize;
c) utilizar o analista como escudo protetor frente ao trauma;
d)permitir contato profundo, inconsciente, entre paciente e analista, que
possibilite examinar áreas traumatizadas;
e) utilizar a função-alfa implícita do analista;
f) recompor funções e partes lesadas da mente, elaborando o trauma;
g) esperar o tempo necessário e suficiente para que esse trabalho elaborativo
ocorra.
After all, what is enactment?
Abstract: The author reports clinical investigations which led him to find the concept
of enactment. The thorough study of analytical field explosions revealed that they
clarify dual collusions among the members of analytical dyad. These collusions freeze
primal traumatic situations. At the same time, the analyst using his explicit or implicit
alpha-function recovers the symbolic defective or nonexistent network. When it is
recomposed the trauma is revived in the analytical field through the contact with the
triangular reality. This way the analytical dyad can dream-for-two. It is shown that these
situations reveal borderline configurations which are externalized in the analytical field.
The enactment concept is reviewed and it is proposed to name the dual collusion as
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 161
Afinal, o que é esse tal enactment?
chronic enactment and acute enactment to the situations in which these collusions are
dissolved. Finally, through metapsychological approximations, the factors related to
the studied situations, such as vicissitudes of the symbolization processes in primal
areas, defensive pathological organizations and unconscious communication among the
members of the analytical dyad are discussed.
Keywords: Agieren. Borderline. Enactment. Symbolization. Trauma.
Referências
AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
BION, W. R. On arrogance. In: BION, W. R. Second thoughts: selected papers
on psycho analysis. Londres: William Heinemann, 1967. p. 86-92. Originalmente
publicado em 1958.
BROWN, L. J. Intersubjective processes and the unconscious: an integration
of freudian, kleinian and bionian perspectives. Nova York: Routledge, 2011.
CASSORLA, R. M. S. Depression and suicide in adolescence. In: Pan American
Health Association (Org.). The health of adolescents and youths in the
americas. Washington: PAHO, 1985. p. 156-169.
______. Comunicação primitiva e contra-reações na situação analítica. Arquivos
de Psiquiatria, Psicoterapia e Psicanálise, v. 2, n. 2. p. 11-33, 1995.
______. No emaranhado de identificações projetivas cruzadas com adolescentes
e seus pais. Revista Brasileira de Psicanálise, v. 31, n. 3, p. 639-676, 1997.
______. Acute enactment as resource in disclosing a coliusion between
the analytical dyad. International Journal of Psychoanalysis, v. 82, n. 6.
p. 1155-1170, 2001.
______. Estudo sobre a cena analítica e o conceito de colocação em cena da dupla
(enactment). Revista Brasileira de Psicanálise, v. 37, n. 2/3, p. 365-392, 2003.
______. Procedimentos, colocação em cena da dupla (enactment) e validação
clínica em psicoterapia psicanalítica e psicanálise. Revista de Psiquiatria do
Rio Grande do Sul, v. 25, n. 3, p. 426-435, 2004.
162 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Roosevelt M. S. Cassorla
______. From bastion to enactment: the non-dream in the theatre of analysis.
International Journal of Psychoanalisis, v. 86, n. 3, p. 699-719, 2005a.
______. Considerações sobre o sonho a dois e o não-sonho a dois no teatro da
análise. Revista de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre,
v. 12, n. 3, p. 527-552, 2005b.
______. The analyst, bis mourning and melancholia, analytical technique and
enactment. In: FIORINI, L. G.; BOKANOWSKY, T.; LEWKOWICZ, S. (Eds.).
Ou Freud’s mourning and melancholia. Londres: N’A Publications, 2007.
p. 71-89.
______. The analyst’s implicit alpha-function, trauma and enactment in the
analysis of borderline patients. Internationalfournal of Psychoanalysis,
v. 89, n. 1, p. 161-180, 2008a.
______. Desvelando configurações emocionais da dupla analítica através de
modelos inspirados no mito edípico. Revista Brasileira de Psicoterapia, n. 10,
n. 1, p. 37-48, 2008b.
______. O analista, seu paciente e a psicanálise contemporânea: considerações
sobre indução múta, enactment e não-sonho-a-dois. Revista Latinoamericana de
Psicoanálisis, v. 8, p. 189-208, 2008c.
______. Reflexõs sobre não-sonhos a dois, enactment e função-alfa implícita do
analista. Revista Brasileira de Psicanálise, v. 43, n. 4. p. 91-120, 2009a.
______. O analista, seu paciente adolescente e a psicanálise atual: sete reflexões.
Revista de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, v. 16,
n. 2, p. 261-278, 2009b.
______. What happens before and after acute enactment? An exercise in
clinical validation and broadening of hypothesis. International Journal of
Psychoanalysis, v. 93, n. 1, p. 53-89, 2012a.
______. Transferindo aspectos inomináveis no campo analítico: uma
aproximação didática. Revista de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de
Porto Alegre, v. 19, 2012b.
______. In search of symbolizarion: the analyst task of dreaming. In: LEVINE,
H. B.; REED, G. S.; SCARFONE, D. (Orgs.). Unrepresented states and the
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 163
Afinal, o que é esse tal enactment?
constructzon ofmeaning: clinical and theoretical contributions. Londres:
Karnac, 2013a. p. 202-219.
______. When the analyst becomes stupid. An attempt to understand
enactment using Bion’s theory of thinking. Psychoanalytic Quarterly, v. 82,
n. 2, p. 323-360, 2013b.
______. Em busca da simbolização: sonhando objetos bizarros e traumas
iniciais. Revista Brasileira de Psicanálise. No prelo.
______. The silent movies between George Bruns and Elien. International
Journal of Psychoanalysis. No prelo.
______. O analista, seu paciente adolescente e a estupidez no campo analítico.
Calibán-Revista Latinoamericana de Psicanálise. No prelo
FREUD, S. (1905). Fragmentos da análise de um caso de histeria. In: ______.
Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969a.
______. (1914). Recordar, repetir e elaborar. In: ______. Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago, 1969b.
GREENACRE, P. General problems of acting-our. Psychoanalytical
Quarterly, v. 19, p. 455-467, 1950.
JOSEPH, B. Psychic equilibrium and psychic change: selected papers
of Betty Joseph. Londres: Rourledge, 1989. Originalmente publicado em
1950.
LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da psicanálise. Santos:
Martins Fontes, 1995.
PANEL. Enactment: an open panel discussion. Journal Clinical Psychoanalysis,
v. 8, p. 32-82, 1999.
ROSENFELD, H. Impasse and interpretation. Nova York: Tavistock, 1987.
SAPISOCHIN, G. A escuta da regressão no processo analítico. Revista
Brasileira de Psicanálise, v. 46, n. 3, p. 90-105, 2012.
164 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Roosevelt M. S. Cassorla
______. Second thoughts on agieren: listening the enacted. International
Journal Psychoanalysis, v. 94, n. 5, p. 967-991, 2013.
STRACHEY, J. The nature of the therapeutic action of psycho-analysis.
International Journal Psychoanalysis, v. 15, p. 127-159, 1934.
Roosevelt M. S. Cassorla
Av. Francisco Glicério, 2331 / 24
13023-101 Campinas – SP – Brasil
e-mail: [email protected]
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 165
interfaces
Cine Fórum: construindo
um espaço potencial
Denise Zimpek T. Pereira1
José Ricardo Pinto de Abreu2
Resumo: Cine Fórum é o nome original da atividade oferecida à comunidade pela
SBPdePA, hoje batizada de Café Cinema. Essa atividade nos levou a tentar compreender
os fenômenos psíquicos que levaram o público, organizadores, coordenadores e
moderadores a desenvolver um grande entusiasmo nos debates sobre as películas
apresentadas. Fomos buscar nos autores um aprofundamento sobre o tema do impacto
que a imagem exerce sobre o psiquismo, como também a troca em grupo dessas
impressões. Entendemos que essa atividade se realiza dentro de um espaço potencial
criado pelo intercâmbio emocional entre os organizadores, representando a instituição
e os participantes, sendo oportunizada uma experiência criativa compartilhada.
Palavras-chave: Espaço potencial. Identificação. Mãe-ambiente. Sonho compartilhado.
Subjetivação.
Introdução
Os 10 anos de existência da atividade que inicialmente foi batizada de Cine
Fórum, hoje conhecida como Café Cinema, estimulou-nos a tentar compreender
algo sobre os fenômenos mentais que têm levado os participantes e coordena-
Psicóloga. Psicanalista. Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto
Alegre. Membro da Comissão Relações com a Comunidade, entre 2006-2011.
2
Psiquiatra. Mestre em Medicina. Psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto
Alegre. Coordenador da Comissão Relações com a Comunidade, entre 2006-2011.
1
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 167
Cine fórum : construindo um espaço potencial
dores a participarem com reconhecido entusiasmo, consagrando esse espaço
aberto ao público pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.
Consideramos que essa atividade se realiza dentro de um espaço potencial criado
pelo intercâmbio emocional entre os coordenadores, representando a instituição,
e os participantes, sendo oportunizada uma experiência criativa compartilhada.
Valemos-nos, para tanto, das observações, vivências e reflexões dos
coordenadores e, sempre que possível, dos comentários realizados pelos
participantes. Cotejamos nossas observações com a literatura, pretendendo com
isso lançar alguma luz sobre uma atividade que tem despertado grande interesse,
constituindo-se num bom caminho para o encontro com a comunidade.
Uma breve descrição do Cine Fórum: são encontros dirigidos à comunidade
que têm como objetivo criar um espaço de intercâmbio com outros profissionais
e pessoas interessadas, enfocando os aspectos psicanalíticos dos filmes exibidos.
Nos primeiros anos seguia-se a seguinte metodologia: I) assistir à exibição do
filme; II) discutir o filme em pequenos grupos com 45 min de duração; III)
discutir em plenária com cerca de 1 hora de duração. Atualmente, é composta
pelos passos I e III. Participam em média 20-30 pessoas por encontro. Os
participantes são heterogêneos quanto à profissão, idade e experiências
profissionais. A maioria não é psicanalista e a maior parte são profissionais
vinculados às áreas de educação e saúde.
Ao longo desses 10 anos de existência, percebemos que as pessoas tiveram
participação muito ativa, reunidas entre 9-13h, quase 4 horas, pediram repetição
ou reprodução, ou ainda registro das discussões. Adiante, no tópico A tarefa,
descrevemos com mais detalhes o desenvolvimento da cada Cine Fórum.
Refletindo sobre o que poderia estar contribuindo para o êxito da atividade,
levantamos algumas possibilidades e pensamos que poderia ser a metodologia
que temos utilizado, mas logo percebemos que a mesma deveria ser entendida
dentro de um contexto de compreensão psicanalítica dos jogos , brincadeiras e
experiência cultural, na linha apresentada por Freud, Winnicott e Ogden.
Sonho, teatro e cinema
Freud começou sua vida profissional como médico neurologista, aspirava
tornar-se cientista, fez inúmeras pesquisas e produziu importantes trabalhos.
Depois, ingressou no terreno da sugestionabilidade e hipnose. Como não se
considerava bom hipnotizador e não estava satisfeito com os resultados do
método hipnótico, desenvolveu o método de investigação, inédito, baseado na
associação livre e atenção flutuante (ETCHEGOYEN, 1987).
168 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Denise Zimpek Pereira, José Ricardo Pinto de Abreu
Encontrou um caminho para penetrar na subjetividade e estudá-la. Ainda
não existia a noção de inconsciente dinâmico, muito menos da estrutura da
personalidade, mas eram realizadas incursões sobre o mundo interno dos
pacientes. Interessava-se pelos relatos, particularmente pela falha inadvertida das
palavras, dos discursos, ouvia os dramas, as tragédias, dissecava as imagens dos
sonhos que tornaram-se o canal régio para o inconsciente, ainda não revelado.
Obtinha resultados com o seu método de trabalho em desenvolvimento.
Foi através de uma paciente histérica que ele descobriu a transferência.
Depois veio o livro dos sonhos que deu início à edificação da psicanálise, ainda
não denominada como tal. No livro dos sonhos, ele utilizou material produzido
por ele próprio, suas imagens oníricas e de seus pacientes. As imagens eram
interpretadas e logo transformadas em palavras e depois em textos que davam a
compreensão lógica aos processos mentais que os produziam.
Freud sempre se interessou pela cultura, particularmente pela literatura e logo
associou as produções literárias aos sonhos e aos mitos. A obra literária mais
celebrada pela psicanálise foi Édipo Rei, justamente uma peça de teatro cujos
personagens representavam o drama e a tragédia universal da humanidade, os
quais se repetiam nos seus próprios sonhos e de seus pacientes. Outras obras
também foram investigadas por Freud, salientam-se as de Shakespeare, muitas
delas escritas para serem encenadas.
O teatro é considerado uma arte maior, pois possibilita a interlocução,
a possibilidade de uma relação com os personagens, favorecendo a ação dos
mecanismos identificatórios, talvez mais intensa do que aqueles que ocorrem com
os personagens que nascem das palavras de um livro e de outras manifestações
artísticas que são mais contemplativas. O teatro é vincular por natureza e
proporciona um clima emocional evocativo, produzindo envolvimento através
dos mecanismos de identificação.
Diante do exposto, queremos relacionar os seguintes pontos: o primeiro é o
sonho com todos os seus disfarces característicos, é uma representação do mundo
interno e opera nesse espaço; segundo, o teatro que põe em cena as representações
produzidas pelo mundo interno e opera num espaço intermediário; e, terceiro, a
intensa atração que o teatro exerce sobre as pessoas, como experiência cultural,
decorre do prazer estético, da descarga emocional e de elaborações lúdicas dos
conteúdos internos despertados.
Na atualidade, poderíamos dizer que o cinema, considerado a sétima arte,
representa o papel que tinha o teatro em outras épocas e, guardadas as diferenças
que não importam especificar nesse momento, proporciona ao expectador boa
parte do que o teatro podia proporcionar.
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 169
Cine fórum : construindo um espaço potencial
O cinema está relacionado com o desejo, com o imaginário e com o simbólico
e utiliza jogos de identificação e mecanismos que regulam nosso psiquismo,
tal como o sonho. Assim, ao longo dos anos estabeleceu uma relação ímpar
com a psicanálise, sendo que também a psicanálise encontrou no cinema um
interlocutor profícuo.
O cinema valoriza as imagens em movimento e estas podem ter o poder
de subjetivar ou de alienar. As imagens podem valer por muitas palavras e seu
impacto costuma ser muito forte. Dependendo de como são utilizadas podem
ter um efeito de passivisar, penetrando sorrateiramente na subjetividade,
tentando ocupar todos os espaços psíquicos relativos às faltas, ao vazio, com a
promessa de apagar as angústias, uma vez que a reflexão é secundária. Caso as
imagens priorizem a exterioridade e a uniformidade, podem contribuir para a
indiferenciação narcísica.
A ênfase dada pela psicanálise à palavra, com sua capacidade de elaboração
pré-consciente, deixou a imagem num segundo plano. Por outro lado, o poder
evocativo das imagens, justamente aquele usado pelas obras de arte visual,
através das cores, das formas, das linhas de expressão e dos movimentos, pode
contribuir a subjetivação e individuação. Entendemos que no cinema os dramas
e tragédias humanos interpretados e colocados em cena conseguem abrir brechas
para o inconsciente, mobilizando conteúdos, possibilitando algum trabalho de
ligação entre representação psíquica e afeto.
Para Sampaio (2000), alguns tipos de sofrimentos na atualidade são marcados
pelo excesso e pela intensidade, diante dos quais o sujeito está ao mesmo tempo
passiva e ativamente posicionado. Assim, ao sujeito só resta buscar os destinos
possíveis para as forças pulsionais, ordenando circuitos pulsionais e inscrevendo
a pulsão no registro da simbolização. Frente à reativação do desprazer produzido
por grandes quantidades não metabolizáveis pelo psiquismo, será a capacidade
de ligação do aparelho psíquico que definirá as possibilidades de domínio desta
energia. A cultura, a arte, e o cinema, em particular, nesse sentido, cumpririam
um papel de importante estímulo gerador de subjetividade.
Sua força de impacto sobre o psiquismo estaria justamente ligado ao poder
da imagem. A arte visual, por mais simples que seja, pode produzir uma poética
da representabilidade capaz de substituir o aspecto regressivo notado por Freud
a propósito do sonho. Assistir a um filme seria como experimentar um sonho
compartilhado e coletivo que pode nos levar do riso ao choro ou do pânico à
tranquilidade.
Assim, temos filmes que falam de si mesmos e de seu público, como também
interpretam e são interpretados por ele. Portanto, o que registramos de um
170 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Denise Zimpek Pereira, José Ricardo Pinto de Abreu
filme, já dentro de nossas mentes, é mais do que o filme projetado na tela, mas
também aquilo que projetamos nele, criando-se um espaço-tempo intersubjetivo
de transição entre o observador e o que é observado.
Uma vez que o cinema se constitui numa expressão artística geradora de
subjetividade, que promove um processo dialético entre as cenas de um drama,
ou qualquer outra temática apresentada na tela, terá a capacidade de evocar as
cenas do imaginário ou do processo de fantasias inconscientes daquele que
assiste. O expectador não será passivo, mas dinamicamente ativo diante da tela.
A subjetivação, as brincadeiras e a experiência cultural
Entendemos que os encontros de Cine Fóruns constituem uma brincadeira
no sentido que Winnicott (1975) dá ao termo. Ele diz que as brincadeiras são
sempre criativas, expandindo-se no viver criativo e na vida cultural. Na gênese
das brincadeiras, o papel da mãe é fundamental, pois é com ela que o bebê faz as
primeiras experiências do brincar. Ela deve estar disposta a participar daquilo que
o bebê espera encontrar e ser ela mesma. Essa experiência repetida proporciona
ao bebê uma experiência onipotente, base de um estado de confiança. A área
de experiência localiza-se no espaço potencial existente entre o indivíduo e o
ambiente que tanto une como separa o bebê da mãe. O jogo é estimulante e
refere-se à ação recíproca da realidade pessoal e à experiência de domínio dos
objetos reais.
Ogden (1996), inspirado em Winnicott, diz que a subjetividade tem a ver
com a capacidade de percepção, que vai da tardia conquista da autorreflexão
intencional, ao mais sutil e discreto senso de individualidade, pelo qual a
experiência é sutilmente dotada da qualidade de que se está pensando os próprios
pensamentos e sentindo-se os próprios sentimentos, em oposição a viver-se num
estado de reatividade reflexa.
No desenvolvimento ocorre a diferenciação da unidade mãe-bebê (mãeambiente invisível) para a condição de mãe e bebê (mãe como objeto). No curso
dessa diferenciação, vão se firmando a subjetividade, a consciência e a capacidade
de desejar (que é diferente das necessidades de autoconservação). Experiências
inevitáveis causadas pela relação mãe-bebê proporcionam as primeiras
experiências de separação. O objeto transicional seria o símbolo do processo de
separação, pois seria ao mesmo tempo o bebê e o não-bebê. O relacionamento
com esse objeto é também significativamente um reflexo do desenvolvimento
da capacidade de estabelecer um processo dialético psicológico, produzindo a
capacidade de gerar significados pessoais representados em símbolos.
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 171
Cine fórum : construindo um espaço potencial
Assim, a capacidade de manter uma dialética psicológica envolve a
transformação de uma unidade que não exigia símbolos, naquilo que Ogden
(1996) chama de trindade, ou seja, uma interação dinâmica de três unidades
diferenciadas. Estas entidades são o símbolo, que é um pensamento; o
simbolizado, que é aquilo que está sendo pensado; e o sujeito interpretador,
ou seja, o pensador que gera seus próprios pensamentos e interpreta os seus
próprios símbolos.
A diferenciação de símbolo, simbolizado e sujeito interpretador cria a
possibilidade de uma triangulação, onde o espaço é criado. Este espaço entre
símbolo e simbolizado, mediado por um self interpretador, é o espaço potencial
em que a criatividade se torna possível.
A tarefa
Acreditamos que além das emoções promovidas pelos filmes exibidos, outros
elementos possam contribuir para a construção de um espaço que consideramos
potencial. Sabe-se que uma atitude disponível e amorosa é indispensável ao clima
de confiança que proporciona o desenvolvimento da brincadeira.
Contribuíram para isso o preparo de cada encontro, levando em conta o
cuidado na seleção de filmes, considerando a temática, a fertilidade para
discussão e o conteúdo estético. Os filmes escolhidos sempre foram muito
apreciados. Outro aspecto preliminar foi a preparação da sala de projeção
do filme, com teste prévio de som e imagem. A preparação preliminar dos
participantes, no chamamento para atividade, com vinhetas motivadoras sobre
o conteúdo do filme a ser discutido e, também, a divulgação do nome dos
organizadores. No dia da projeção, sempre o coordenador fazia uma fala de
acolhimento e de boas vindas. Muito importante era a inclusão de um pequeno
intervalo para café após a projeção do filme, assistidos por todos, servindo
ao início de um convívio, visando alguma integração entre os participantes
e organizadores. Esses elementos de cuidado sempre foram considerados
importantes no desenvolvimento da tarefa.
Após a projeção do filme, o grupo era subdividido em pequenos grupos e
cada pequeno subgrupo dirigia-se a uma sala definida para discussão, considerada
como um aquecimento, coordenada pelos moderadores. Os moderadores
foram convidados a assistirem aos filmes com antecedência. Seu papel era
principalmente o de estimular a troca de impressões entre os participantes sobre
o filme, no pequeno grupo, destacando os aspectos ventilados. No pequeno
grupo era escolhido algum participante para relacionar os tópicos discutidos.
172 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Denise Zimpek Pereira, José Ricardo Pinto de Abreu
Terminada a discussão em pequenos grupos, todos os participantes se
reuniam e, então, eram cotejados os tópicos valorizados, agora no grande
grupo. Nesse momento, o coordenador da atividade estimulava o debate entre
os participantes e apresentava suas contribuições, valorizando os tópicos que
emergiam durante os debates, sem a preocupação de oferecer uma versão
definitiva sobre o que foi sentido pelos participantes. Desenrolava-se a seguir um
debate muito espontâneo e novas observações costumavam surgir no encontro
dos participantes em conjunto. Observava-se que os participantes falavam
de modo espontâneo, revelando entusiasmo ao expressarem seus pontos de
vista, dando a clara impressão de que se sentiam à vontade e gratificados com
a participação. Entendemos que, nesse momento, trabalhávamos juntos num
ambiente suficientemente bom e criativo.
Os coordenadores de cada sessão do Cine Fórum eram convidados dentro
de um critério de interesse e de disponibilidade, e esperava-se deles aceitação e
tolerância quanto à diversidade das experiências que poderiam aparecer.
O clima de respeito e de grande interesse pelo conteúdo dos filmes
proporcionou debates de modo muito ativos e espontâneos. Observou-se em
todos os encontros emoções, evidenciadas pelo tom da voz e outras expressões
afetivas, na busca de entendimento na larga participação grupal. Em alguns Cine
Fóruns, principalmente nos primeiros, buscamos ao final, uma avaliação escrita,
na qual valorizávamos sobretudo os ganhos afetivos que os participantes
poderiam ter obtido e alguma sugestão quanto ao próximo filme a ser
trabalhado. Todas as avaliações foram positivas e havia recomendação que a
atividade fosse mantida, e que a mesma se revelava útil, pois proporcionava um
aprofundamento no entendimento dos filmes que, em meio à discussão, passou
a ter mais sentido.
Considerações finais e correlações
Essa dinâmica proporcionou o desenvolvimento de um clima de confiança tal
qual a mãe deve ter para jogar com o bebê. Concluímos tratar-se da construção
de um momento criativo com efeitos benéficos a todos, coordenadores,
moderadores e público participante.
Um fenômeno de grupo, evocado primeiramente no encontro com o filme,
onde o espectador como um sonhador, entrega-se às impressões visuais, auditivas
e proprioceptivas evocadas a partir da tela, seguido pelo encontro com grupo
que expõe suas impressões, interpreta a trama e os personagens, muitas vezes
acrescenta informações, detalhes, emociona-se, inspira-se e fala. “A afinidade
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 173
Cine fórum : construindo um espaço potencial
reconhecida entre o cinema e o sonho nos levaria de pronto a pensar que a
experiência onírica, ou o desejo humano de compartilhar seus sonhos, está na
própria base do cinema” (SAMPAIO apud DESNOS, 2000, p. 46).
Os encontros de Cine Fórum têm suas peculiaridades e muitas vezes são
marcados também por experiências de angústia, pois o grupo não se repete
e cada filme evoca diferentes sentimentos e representações. Segundo Kaës
(2005), num grupo, o indivíduo pode ter uma função de porta-voz, e ao falar do
filme, fala dele e do próprio grupo. É interessante como, em certos encontros,
algumas pessoas se destacam e têm dificuldades notórias de ceder a palavra. Os
coordenadores então, como porta vozes legítimos do grupo, conseguem intervir
fazendo a palavra novamente circular pelo grupo.
O que tem emergido dessas atividades são experiências em que não existe
lugar para o certo ou errado, não há assimetria, mas sim um espaço onde circulam
emoções e ideias. Psicanalistas e leigos compartilham da atmosfera provocada
pelo drama, pela trama e pelos personagens. Uma possibilidade de colocar em
palavras as interrogações e interpretações a partir de imagens, de sons e dos
diálogos, sem o compromisso de acertar, de diagnosticar, de tratar. Entendemos
que esses elementos têm potencializado o clima lúdico. Para Winnicott (1975), a
criação se ergue entre o observador e a criatividade do artista.
Pensamos tratar-se de uma rica experiência que poderia ser definida como
o Espaço Potencial, um espaço onde os paradoxos podem existir, ser aceitos,
tolerados, respeitados e, principalmente , não exigem resolução.
Assim, o Espaço Potencial mobilizado pelo Cine Fórum é um espaço do brincar
e um espaço de criação. Trata-se de uma experiência cultural construída em dois
tempos: tempo intersubjetivo entre o filme (objeto transicional) e o espectador
desejante, seguido pelo tempo de construir hipóteses e questionamentos (self
interpretador), incrementados por outros elementos subjetivos, que o filme e o
intercâmbio emocional e intelectual entre o grupo produzem.
Este espaço oportuniza através da brincadeira estimulada pela riqueza
simbólica dos filmes, um exercício da criatividade, fazendo emergir um objeto
próprio e diferenciado que proporciona uma experiência de prazer. Percebemos
que nesse espaço circulam vivas emoções e reflexões, todos saem tocados e
enriquecidos.
174 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Denise Zimpek Pereira, José Ricardo Pinto de Abreu
Cine Forum: building a potential space
Abstract: Cine Forum is the original name of the activity offered to the community
by the SBPdePA, today named Café Cinema. This activity led us to try to understand
the psychic phenomena that led the public and coordinators to a great enthusiasm in
discussions about the films presented. We have searched authors for some depth on the
topic of the impact that the image exerts on the psyche, as well as the switch in Group
of these impressions. We believe that this activity takes place within a potential space
created by the emotional exchanges between coordinators, representing the institution
and the participants, where a shared creative experience is offered.
Keywords: Potential space. Identification. Mother-environment. Shared dream. Space
potential. Subjectivation.
Referências
ETCHEGOYEN, R. H. Fundamentos da técnica psicanalítica. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1987.
KAËS, René. Os espaços comuns e partilhados. São Paulo: Casa do Psicólogo,
2005.
OGDEN, Thomas H. Os sujeitos da psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo,
1996.
SAMPAIO, Camila P. O cinema e a potência do imaginário. In: BARTUCCI,
Giovanna. Psicanálise, cinema e estéticas de subjetivação. Rio de Janeiro:
Imago, 2000.
WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
Denise Zimpek Pereira
Rua Florência Ygartua, 53 / 302
90430-010 – Porto Alegre – Brasil
e-mail: [email protected]
José Ricardo Pinto de Abreu
Rua Dona Laura, 207 / 305
90430-091 – Porto Alegre – Brasil
e-mail: [email protected]
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 175
resenha
Resenha do livro
Metapsicologia: um olhar à
luz da pulsão de morte
Christiane Vecchi da Paixão1
Ignácio Paim Filho vem se revelando, ao longo dos anos, com uma série
de artigos e livros publicados, um incansável e entusiasmado estudioso da
psicanálise. Mergulha nos textos freudianos, esmiúça-os e vai criando novas
relações conceituais. Segundo o próprio autor, aceita o convite deixado por
Freud de fantasiar metapsicologicamente.
Arrisca-se, interroga-se, questiona-se e cria. Esse é o espírito por trás de
todos os textos, sejam eles em parceria com outros colegas, sejam de própria
autoria.
Com seu vigor característico, ressalta a importância de repensar os
fundamentos do psíquico, sobretudo do arcaico. Justifica que sem se aventurar,
sem especular teoricamente não haverá avanço que permita compreender e
produzir uma metapsicologia para as ditas patologias atuais e ressignificar as
velhas patologias. Por essa razão, chama os textos de vertentes, são como derivados
de suas especulações psicanalíticas. Divide-as em três capítulos: Repensar a
metapsicologia e os fundamentos da alma; Reencontrar a metapsicologia e Ressignificar a
metapsicologia na clínica e na cultura. Finaliza com um epílogo sobre o legado freudiano.
No capítulo inicial revisita a história do trauma, do trauma psíquico infantil,
que julga fazer parte da própria essência da psicanálise por relacionar-se com
a descoberta do inconsciente recalcado. Com o advento da pulsão de morte e
sua expressão na compulsão à repetição, o trauma ressurge do além. Se o trauma
(sexual) gerador de angústia produz o recalque, a ausência dele indicaria um
Membro do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.
1
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 177
Metapsicologia: um olhar à luz da pulsão de morte
registro fora do campo do recalcado? Seria possível esboçar uma trajetória
para o trauma no psiquismo? O autor trabalha com a hipótese de um trauma
primordial estruturante, capaz de produzir história e conteúdo, de ser significado
e ressignificado, e um trauma não estruturante, marcado por impressões que
nunca foram conscientes, alojadas no inconsciente não recalcado e que não
obedecem à lei freudiana dos dois tempos (a posteriori). Seria isso expressão da
mutez e da força demoníaca da pulsão de morte?
Ocupado está em pensar as origens do psíquico, assim retoma o conceito
freudiano de repúdio ao feminino (1937), sustentando que é coexistente
às origens do sujeito, através da personagem Helena de Troia, de Homero.
Argumenta que será necessário discriminar a fundação da psique da fundação do
recalcado. Salienta o autor que o inconsciente é mais abrangente que o recalcado
ao propor que os destinos pulsionais pré-recalque (transformação ao contrário
e retorno sobre si mesmo) são responsáveis pela fundação do aparelho psíquico.
Ousadia do autor?
Escreve:
Assim, temos de um lado a transformação ao contrário e o retorno
sobre si mesmo, fundando o psíquico, o que será conhecido como
inconsciente não recalcado; por outro lado, temos o recalcamento
originário que cinde o psiquismo em inconsciente e pré-consciente/
consciente, fundando o inconsciente recalcado (p. 45).
Caberia ao recalcamento pôr em marcha o sentido, ou dar sentido ao histórico
(a posteriori). Acredita que a dialética entre registros traumáticos estruturantes
e não estruturantes na sua linguagem, ou do representável ou irrepresentável,
lançam as bases para a compreensão e uma abertura para pensar os traumas
do início da vida. Sendo o feminino portador do desamparo, da morte e da
necessidade vital do outro, o repúdio ao feminino será a eterna marca da tentativa
humana de manter a plenitude de narciso, em não aceitar a castração e fazer
a guerra. Acrescenta que o feminino não repudiado é uma dura conquista do
desenvolvimento representacional e simbólico, transformando representação
em traço, traço em escrita, pré-história em história, estrangeiro em cidadão.
Nesse sentido, propõe a existência de uma disposição feminina originária, capaz de
conter as demandas pulsionais (sexuais e de morte?) e que tem no trabalho do
feminino, o trabalho de transformações das impressões pré-recalque.
De um só fôlego pergunta: O recalcamento inaugura o aparelho psíquico ou o
inconsciente recalcado? O inconsciente existe desde as origens ou tem que ser construído? Caso
178 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Christiane Vecchi da Paixão
tenha que ser construído, o que existe antes dele? Como compreender metapsicologicamente a
existência do inconsciente recalcado?
Seus questionamentos têm como finalidade abrir questões e não fechá-las,
por outro lado não hesita em posicionar-se.
Posiciona-se afirmando que o recalcamento não funda o aparelho psíquico, que existe um universo que não só o antecede como também é responsável por sua efetivação. Para então reafirmar que os destinos pulsionais
primordiais (pré-recalque) são os responsáveis pela fundação do aparelho
psíquico.
Na quarta vertente, discute através de Schreber (1911) e Uma criança é espancada
(1919) os fundamentos para sua proposta de pensar os destinos pulsionais
narcísicos e sua relação com a fundação do aparelho psíquico.
Em Reencontrar a metapsicologia, título para o segundo capítulo, composto por
quatro textos ou vertentes, retoma o masoquismo erógeno primário e estabelece
a relação de uma solidariedade-excitatória-sexual entre a pulsão sexual e a pulsão de
morte.
Ao marcar a ligação do erógeno e da força demoníaca da pulsão de morte
coloca que Freud, ao acrescentar ao conceito de masoquismo primário a palavra
erógeno, marca a importância da libido nas vicissitudes do masoquismo primário.
E, ao mesmo tempo, deixa em aberto um possível interrogante, que possa
existir um masoquismo primário não erógeno expresso nas patologias do não
representável.
Acredita que se o ser humano se constitui no encontro da pulsão com o objeto,
entende que a capacidade menor ou maior de solidariedade está intimamente
relacionada com o resultado desse encontro. Encontro que pode mitigar a força
destrutiva da pulsão de morte.
O que prepara para o próximo capítulo, que se ocupará da repetição, no qual
pergunta se a compulsão à repetição é apenas a expressão da pulsão de morte ou
uma tentativa de simbolização.
Ao desmembrar o vocábulo compulsão (com+pulsão), toma a repetição
na sua inter-relação da pulsão de morte versus pulsão sexual. Pulsão de morte
que, enlaçada com a libido, tem na compulsão à repetição a possibilidade de
ser capturada pela malha representacional, única possibilidade de virar acervo
histórico.
Seguindo o rastro dessas ideias, na vertente sobre o enigma do tempo, associa
o aparelho psíquico freudiano a uma verdadeira máquina do tempo, indissociado
da noção de pulsão e intrinsicamente ligado ao conceito de a posteriori.
A posteriori e recalcamento coincidindo.
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 179
Metapsicologia: um olhar à luz da pulsão de morte
No entanto, como pensar o traumático que nunca foi consciente, que não
pode retornar (pela via do retorno do recalcado) e sofrer as vicissitudes do a
posteriori? Tempo sem tempo da pulsão de morte?
O estranho (1911) e Além do princípio do prazer (1920) juntos marcam o
nascimento do conceito revolucionário da metapsicologia freudiana: a pulsão de
morte. Com essa base freudiana, pergunta sobre uma possível metapsicologia da
pulsão de morte que possa vir em auxílio aos desafios da clínica. Ao tomar como
ponto de partida a criatura humana, assolada pelo caos pulsional da presença da
pulsão de morte, tece uma série de novas associações conceituais que tentam dar
conta da estruturação do sujeito psíquico. Transita entre os destinos da pulsão e
os destinos do sujeito, lançando luz e novos interrogantes às manifestações da
clínica contemporânea.
Questões que serão discutidas ao longo do terceiro capítulo, Ressignificar a
metapsicologia. Questiona o que mudou nesses mais de cem anos desde quando
Freud escreveu sobre a moral sexual civilizada e doença moderna nervosa e seus
efeitos na clínica e na cultura. Se o recalque visa a negativar a força da pulsão,
permitindo que o desejo circule, estamos no campo dos desdobramentos do
romance familiar do complexo de Édipo. Como discriminar o que tramita pelo
universo do representável do que tramita como tragédia familiar edípica, que
põe em ato o desejo? Estará o homem contemporâneo permeado por essa moral
sexual (in)civilizada, expressão dos desejos narcísicos e sustentada pelo forcluído e
desmentido? Se assim o for, pergunta se estamos diante de um novo paradigma
na composição das estruturas clínicas: o representável e o irrepresentável.
Questiona qual a importância de um diagnóstico estrutural em nosso fazer
clínico diário. As hipóteses metapsicológicas sobre a fundação do sujeito psíquico
ainda sustentam nosso discurso clínico? Ou estamos diante de necessárias
revisões, com Freud e além dele?
Sem dúvida, esse é o grande mérito desse livro. Ignácio, incansavelmente,
aponta a força disjuntiva da pulsão de morte, ligada ao inconsciente não recalcado
e pergunta como a função analítica pode construir formas de transformar
traço em representação. Toma a função analítica e a escuta analítica como uma
capacidade do analista de acessar o inconsciente do outro (o país do outro)
a partir das repercussões no próprio inconsciente. A posição contratransferencial,
termo cunhado por Faimberg e corroborado pelo autor, refere-se a uma atitude
anímica ampla de escutar o que é dito e não dito pelo analisando. Acrescenta
que essa posição é capaz de produzir um estado alucinatório em imagens que
possam, através da função analítica, ser representadas. É nessas situações que o
trabalho das construções ganha espaço na cena analítica.
180 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Christiane Vecchi da Paixão
Finaliza com um legado da obra de Freud, como um viajante em terra
conhecida/desconhecida, que nunca é indiferente ao que encontra.
Trabalha a obra freudiana, dividindo-a em quatro grandes momentos,
denominando-as viradas, no sentido de indicarem momentos de ruptura,
reformulações e acréscimos da teoria. Nada mais freudiano que essa postura
interrogativa, um eterno conquistador de terras estrangeiras.
Pois é verdade que não sou de modo algum um homem de ciência,
nem observador, nem experimentador, nem um pensador. Sou, por
temperamento, nada além de um conquistador – um aventureiro,
se você quiser que eu traduza – com toda curiosidade, ousadia e
tenacidade que são características de um homem dessa espécie.
(FREUD, 1900).
Referências
FREUD, S. Carta de 1º de fevereiro de 1900. In: A correspondência completa
de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess: 1887-1904. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
PAIM FILHO, Ignácio A. Metapsicologia: um olhar à luz da pulsão de morte.
Porto Alegre: Movimento, 2014.
Christiane Vecchi da Paixão
Rua Ramiro Barcelos, 1793 / 408
90035-006 Porto Alegre – RS – Brasil
e-mail: [email protected]
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 181
entrevista
SPBdePA Entrevista
Ricardo Avenburg1
Ricardo Avenburg, psicanalista argentino, foi o nosso convidado de honra
para o II Encontro sobre a Obra de Freud, em novembro de 2014, na sede da
SBPdePA. Além de ser psicanalista didata da APA, membro fundador e didata
da APdeBA e membro fundador da Sociedade Psicoanalitica del Sur, também
atuou como docente de Teoria Psicoanalítica na Faculdad de Filosofía y Letras
da Universidad de Buenos Ayres, e foi professor de psicoterapia no Instituto de
Psicoterapia de Gotemburgo, Suécia.
Ricardo é um profundo conhecedor da obra freudiana, tendo entre seus
escritos, os livros: El aparato psíquico y la realidad; Breve historia del pensamiento de
Freud e Psicoanálisis: perspectivas teórias y clínicas en Conversaciones con Freud (este
último, recentemente lançado). Pessoalmente, mostra uma atitude aberta a
aceitar a complexidade humana, e convida a deixar-nos impactar pela surpresa,
pelo acontecimento, pelo inesperado. Com grande sabedoria e uma postura
absolutamente democrática, não hierarquizada, ele aprecia o diálogo acima de
tudo, sempre evitando os pensamentos pré-formados.
Durante o encontro sobre Freud, foram realizadas inúmeras perguntas ao
professor Avenburg por membros de nossa sociedade e convidados. Para esta
entrevista, baseamo-nos em algumas destas perguntas.
1. SBPdePA – Um dos méritos de Freud foi ter construído uma teoria, uma
metapsicologia centrada na clínica. Tendo em vista o complexo de Édipo, como
o pilar da construção subjetiva, e pensando na obra de Freud, estas patologias
contemporâneas onde não há conflito psíquico recalcado, como no caso das
bulimias, anorexias, toxicomanias e fenômenos psicossomáticos, como poderiam
ser entendidas?
Psicanalista. Didata e fundador da Associação Psicanalítica de Buenos Aires.
1
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 183
Entrevista
R.A – O complexo de Édipo não é o pilar de toda a construção subjetiva: a
repressão do complexo de Édipo e seu fracasso são o fundamento das neuroses.
A construção subjetiva parte da alucinação desiderativa, passando pelo ego real
primitivo, o ego de prazer purificado e o ego real definitivo, que se constituem
previamente e, pouco a pouco desembocam no complexo de Édipo. O mesmo
se passa com o desenvolvimento do pré-consciente (o menino de 3 ou 4 anos
expressa verbalmente seus desejos sexuais). O conflito psíquico reprimido é
universal (geneticamente determinado) e a dita repressão é o fundamento do
período de latência.
Com respeito às patologias contemporâneas: sobre este tema teria que fazer
um estudo de alto espectro, que integre as patologias que se dão no mundo inteiro,
assim como no decorrer da história. Não creio que o que vejo no consultório
me permita conhecer o panorama mundial das patologias contemporâneas.
Em relação aos casos de Freud, vejo menos neuroses sintomáticas hoje. Ángel
Garma nos dizia (anos 60, aproximadamente) que na Europa via mais neuroses
obsessivas e na Argentina, mais fobias. Hoje fobias se veem, por exemplo, em
relação aos aviões, entre outras.
De qualquer forma, o fato de que, pelo menos nesta parte do mundo,
vejamos menos neuroses sintomáticas creio que tem que ver com uma menor
repressão genital e uma maior satisfação instintiva. Sugere que o instinto não
requer caminhos deslocados para manifestar-se em forma encoberta. Ainda que,
às vezes, podem observar-se situações de ansiedade ou depressão vinculadas a
carências genitais, ou seja, neuroses atuais.
Em relação aos outros quadros mencionados: teria que estudá-los, cada
um em sua especificidade, porém podem ser manifestações contemporâneas
de quadros mais universais, como cisões do ego e/ou patologias narcisistas.
2. SBPdePA – Freud se dizia insatisfeito com suas colocações a respeito
da sexualidade feminina. Levando-se em conta que a mulher de hoje é muito
diferente da mulher da sua época, o que o senhor acrescentaria ou reformularia
na teoria freudiana sobre a sexualidade feminina?
R.A – O tema da sexualidade feminina deve ser tratado desde um ponto
de vista interdisciplinar: psicanalítico, a partir das experiências individuais
(com cada analisanda em particular), sociológico (a sexualidade feminina
na atualidade em geral), histórico (nas diferentes épocas da história) e
antropológico (a mulher com suas características essenciais). Nos conceitos
de Freud, creio que este integra sua experiência psicanalítica com uma visão
184 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Ricardo Avenburg
antropológica (teríamos que analisar detalhadamente seu desenvolvimento
teórico).
O objetivo da sexualidade é a procriação (conservação da espécie), na qual
mulher e homem aportam suas potencialidades específicas, o que envolve uma
diferenciação anatômica. A questão é como cada sexo assume tais diferenças. Um
período significativo nesse processo de assunção é o genital infantil (o fálico) da
sexualidade infantil, momento em que a excitação sexual se concentra nos genitais,
que também é objeto de investigação da criança. Aqui aparece como pergunta
lógica: por que os meninos têm pênis e as meninas não? Segundo Freud, essa
pergunta, vinculada à inveja do pênis e à angústia de castração (incorporada pela
herança genética a partir da instauração do totemismo), fica congelada durante
o período de latência, para ressignificar-se na puberdade, no sentido de que cada
um dos sexos cumpre uma função necessária e nenhum é superior ao outro.
Creio que aqui o problema transcende a mulher e se estende a toda humanidade
que, segundo minha forma de ver, segue fixada aos 4 anos e se pergunta qual é
o melhor cantor, o melhor esportista, a quem premiar com o Oscar ou o prêmio
Nobel, ou seja, quem possui o maior (vocês certamente imaginam a que me refiro)
e não reconhece o valor das diferenças e a riqueza específica de cada indivíduo.
3. SBPdePA – Freud postulou que na resolução do Édipo, uma parte
é reprimida e uma outra parte naufraga. O que seria este naufrágio? Seria a
identificação?
R.A – Não fica claro a que Freud se refere com o conceito de naufrágio. Usa
diferentes palavras como sinônimos: Untergang (ruína, naufrágio), zerstörung
(destruição), Aufhebung (abolição, supressão), Zugrundegehen (perecer, ir a
pique). O significado comum seria a destruição; naufrágio seria uma metáfora.
Ele relaciona a destruição com a sublimação e a desfusão instintiva. Chama
a atenção que a sublimação, até agora expressão mais alta da criatividade (ver
Leonardo) e que teria que ser produto de uma mescla de instintos, seja produto
de uma desfusão que está vinculada a uma destruição (do complexo de Édipo).
Não encontrei a resposta em Freud. Minha reflexão é que a sublimação (do
latim: sublimis: que está no Dicionário Vox), sendo expressão da destruição do
complexo de Édipo, é expressão de uma destruição de representações coisa,
processo característico da esquizofrenia.
A sublimação seria uma criatividade estéril (a verdadeira criatividade não
pode não ser erótica), dessexualizada (Freud desde o princípio caracterizou-a
como expressão de um instinto sexual dessexualizado) imposta pelo superego
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 185
Entrevista
que já não precisa reprimir porque matou seu inimigo, o complexo de Édipo, e
o desbiologizou com a desfusão instintiva. A sublimação seria uma restituição
psicótica imposta por mandatos culturais derivados do totem (a vingança do pai
assassinado).
No entanto, tudo isso é uma reflexão minha e não tenho ideia sobre se Freud
me acompanharia, porém ele é o responsável destas deduções a partir de suas
asseverações.
Em Introdução ao narcisismo, Freud propõe que a passagem do autoerotismo ao
narcisismo pressupõe um novo ato psíquico. O narcisismo, nesse momento da
obra de Freud, é a culminação do autoerotismo, na qual as satisfações parciais
de cada zona erótica se integram sob a primazia fálica (a partir do meu ponto de
vista, o novo ato psíquico seria a masturbação genital).
Entretanto, Freud, a partir dos artigos metapsicológicos de 15, vai estender
o conceito de narcisismo a todo o desenvolvimento da sexualidade infantil e
chamará autoerotismo à atividade sexual própria do período narcisista. Com
respeito ao ego, este irá se configurando a partir do ego real primitivo, que
vai se organizando a partir do narcisismo original, no qual a criança ainda não
diferencia entre ego e objeto.
O olhar da mãe (entendo que é uma expressão metafórica, porém aqui a tomo
ao pé da letra) adquire significado para o bebê a partir de um ego que pode
diferenciar um olhar que vem a partir do objeto: previamente são o tato, o calor,
o olfato e o gosto. A vista adquire um lugar central a posteriori (Freud: As Afasias).
4. SBPdePA – Existe um narcisismo secundário como normal no
desenvolvimento? Segundo Freud, não se pode encerrar o tratamento analítico
sem a análise da transferência negativa. Quando isto não ocorre, incidimos no
narcisismo do analista?
R.A – Os conceitos de primário e secundário mudam de sentido em Freud,
segundo o nível em que sejam considerados (com o narcisismo acontece o mesmo
que com a repressão ou a defesa primária e secundária ou com a identificação
primária e secundária).
A libido narcisista segue investindo o ego em pleno estágio objetal: pode
incrementar-se ante qualquer situação desencadeante (quando o ego do sujeito
está em jogo) ou em caso de uma regressão libidinal generalizada (esquizofrenia,
por exemplo).
Segundo o meu ponto de vista, o que decide o término do tratamento
são, antes de mais nada, considerações clínicas que, é claro, não excluem
186 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Ricardo Avenburg
considerações psicopatológicas ou metapsicológicas. Entretanto, estas últimas
não são determinantes de tal decisão. Será que o meu narcisismo tem algo a ver
com isso?
A análise da transferência negativa, mais precisamente da transferência
reprimida que se manifesta na consciência de um modo distorcido é um
dos muitos fatores que intervêm na análise; porém, por que não a análise da
transferência erótica ou positiva reprimida?
São essas transferências que podem dirigir-se ao analista ou a qualquer
outra pessoa (ou animal) do contexto de vida do analisando e que merecem ser
trabalhadas quando se tornam perturbadoras das ações específicas do paciente.
5. SBPdePA – O Sr. mencionou que o autoerotismo é pouco tratado na
obra de Freud. Pensando na passagem do autoerotismo para o narcisismo
como um estágio de integração, Freud, quando se refere a fetichismo, em
divisão do ego, ele não estaria de alguma forma retomando pelo sentido inverso o processo do autoerotismo, quando ele fala em estados já não integrados como, por exemplo, a dissociação e a cisão? De alguma forma ele
não estaria retomando o autoerotismo? E isto que chamamos de patologias
do narcisismo não seriam na realidade patologias autoeróticas, pois seu
funcionamento se caracteriza muito mais por um estado de não integração do
que por um estado integrado?
R.A – Não recordo quando nem em que contexto disse que o autoerotismo
é pouco tratado na obra de Freud; sim, talvez, no sentido de que Freud deixa
de definir o autoerotismo como uma etapa e, como disse antes, passa a defini-lo
como a atividade sexual própria da etapa narcisista.
Sobre a questão da cisão do ego, na qual o fetichismo está incluído e, creio,
também o que hoje se chama psicopatia e, na psiquiatria clássica loucura moral,
está em jogo uma patologia do ego e, portanto, uma patologia narcisista, na qual,
estabelecendo uma analogia com a política, no lugar de um sistema repressor
(exemplos não faltam, nem no mundo, nem na América Latina) há um duplo
governo que atua simultaneamente (como na Espanha com o franquismo e a
República Espanhola): uma parte desconhecendo a angústia de castração e a
outra, experimentando uma crise de angústia aparentemente imotivada (reage,
sem dar-se conta à ameaça de castração).
6. SBPdePA – A nossa questão tem a ver com o narcisismo e a imagem.
Observando a clínica, o senhor considera que hoje se confunde com narcisismo,
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 187
Entrevista
o que poderiam ser pacientes predominantemente neuróticos, com traços
histéricos, preocupados com a questão da imagem, com a vaidade ou com aquilo
que Freud descreve como desejo ambicioso, relacionado por ele com o erotismo
fálico-uretral? Entrando um pouco nas relações do narcisismo com as estruturas
clínicas, seriam duas situações muito comuns: uma visão do narcisismo onde
apareceriam mais aspectos histéricos, a vaidade, a importância do aspecto
estético, principalmente na mulher; e a questão do desejo ambicioso no homem,
expressão do erotismo fálico-uretral, que muitas vezes se confundiria com uma
expressão narcísica. O que o senhor pensa sobre isto? R.A – Com respeito ao fato de se existem ou não pacientes neuróticos, fiz
algumas referências na pergunta 1. Eu prefiro chamar de neuroses as neuroses
sintomáticas e não estendo esse termo a traços de caráter, o que faz com que o
seu sentido se torne muito difuso (e confuso).
Isso não quer dizer que o conflito neurótico ou a disposição ao mesmo
não seja um fenômeno universal (salvo em pacientes muito regressivos) que se
manifesta no fato de que os sonhos (salvo nas crianças previamente ao período
de latência) expressem desejos encobertos que requerem ser interpretados e que
existam atos falhos e sintomáticos.
Por outro lado, o narcisismo, ou seja, o ego investido de libido é o esperado
em todo o sujeito medianamente são, salvo no caso da patologia narcisista, na
qual a estrutura do ego está danificada e, portanto, não adequadamente investida
pela libido. A exagerada vaidade e a exagerada ambição nos mostram um ego
invadido pela quantidade e não adequadamente investido libidinalmente (a
vaidade e a ambição não são necessariamente patológicas, mas dependem de sua
adequação às ações específicas que o ego queira realizar).
7. SBPdePA – O senhor acredita que a psicanálise precisaria debater mais o
conceito de pulsão de morte com as ciências correlatas a fim de aperfeiçoar e
adequar aos preceitos científicos a sua teoria?
Se Freud vivesse nos dias atuais, ainda pensaria a Pulsão de Morte para
explicar o masoquismo, a destrutividade, a compulsão à repetição e a reação
terapêutica negativa?
R.A – Antes de mais nada e, além de responder temas derivados, quero
expressar como considero a teoria dos instintos desenvolvida por Freud, ainda
que nem sempre coincidindo com seu pensamento (mas sempre em diálogo
com ele).
188 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Ricardo Avenburg
Na Crítica da razão pura, Kant diz que a psicologia está (ou estava) ainda nos
braços da filosofia e ainda não havia crescido suficientemente como para ser
uma ciência independente. Creio que com Freud esse passo se deu. Sigo com
Kant ( sintetizo tal como o entendo).
Toda a ciência e todo o conhecimento nascem com a experiência a partir da
qual se constituem juízos (sintéticos). Entretanto, esgotada a experiência, a razão
quer seguir pensando (com juízos analíticos), perguntando-se pelo sentido, pela
origem das coisas e não conta com mais elementos do que desenvolvendo seus
próprios juízos.
Os resultados desse desenvolvimento do pensamento puro seriam regulativos
e não constitutivos: não podem reclamar a existência real como os que resultam
da experiência (constitutivos), mas que nos servem para nos localizarmos no
mundo.
Após ter tratado de pensar a psicologia a partir da neurologia (Projeto para
uma psicologia) e ver, desde aí, a impossibilidade de entender os atos falhos e os
sonhos, Freud disse (ou assim o imagino): “Vou inventar um aparelho por meio
do qual possa entender esses fenômenos” e construiu o esquema do aparelho
psíquico do capítulo VII de A interpretação de sonhos.
Com isso, introduziu-se no campo da razão pura (sem por isso deixar de lado
os achados da experiência) que se estendeu ao longo de toda a metapsicologia.
Aqui entra a teoria dos instintos, que parte, em Além do Princípio do Prazer, da
primeira célula vivente. É especulação pura e filosofia no melhor sentido da
palavra, o que lhe permite entender a biologia em sua essência.
Aqui me insiro na filosofia e introduzo Hegel e seu pensamento dialético, que
creio ser também de Freud, sem que ele mesmo tenha-se dado conta.
Hegel em sua Lógica e em sua Enciclopédia de ciências filosóficas faz-se a pergunta:
O que é o ser? E se responde que o ser é tudo, abarca a totalidade, portanto não
tem limites.
No entanto, para que o ser seja algo tem que estar determinado, ter limites: é
isso e não é aquilo. Porém, o ser é a totalidade, não está determinado por nada,
portanto, o ser não é nada: o ser é o nada e o nada é o ser.
O nada e o ser são o mesmo e, ao mesmo tempo, não são o mesmo e, a partir
dessa tensão entre o ser e o não ser surge o porvir e o cosmos. Essa dialética
entre o ser e o não ser (o nada) se expressa no vivente sob a forma de vida e
morte: viver é morrer e morrer é viver, vida e morte são o mesmo e, ao mesmo
tempo, não são o mesmo.
O ser e o nada, em nível cósmico, são vida e morte em nível biológico.
No que não estou de acordo com Freud é que não tenha se mantido em nível
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 189
Entrevista
especulativo e tenha tendido a aplicar imediatamente os conceitos de instinto de
vida e de morte ao campo da clínica, na qual, salvo no momento em que a vida
passa a ser nada (a morte) nos manejamos com mesclas em distintos níveis de
organização.
Os instintos de vida e de morte representam a dialética do ser e o nada no
ser biológico. Os instintos de autoconservação (a conservação do indivíduo
biológico) e os sexuais (conservação da espécie viva) representam a dialética
entre a parte e o todo.
Em seus começos, a reprodução, enquanto divisão celular, coincide com a
fusão e desaparecimento, enquanto indivíduos das células que se integram nessa
nova organização. Porém, no desenvolvimento das espécies vivas, os indivíduos
se perpetuam (autoconservação) logo da reprodução sexual: aqui se impõe a
dialética, não entre o ser e o não ser, mas entre a parte (instinto de conservação)
e o todo (a sexualidade ou conservação da espécie).
Tudo isso que acabo de desenvolver existe na realidade? São juízos
constitutivos? Não sei, mas permitem-me entender melhor os conceitos de
Freud em particular (e talvez melhor que ele, desculpem-me a presunção) e a
vida em geral.
Creio que o dito serve como resposta, não direta, mas global, à pergunta.
190 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Orientações aos colaboradores e
normas para publicação
1 Informações Gerais
Psicanálise é uma publicação semestral, oficial, da Sociedade Brasileira de
Psicanálise de Porto Alegre, editada desde 1999. Tem por objetivo divulgar
trabalhos não só do campo da psicanálise como também de suas interfaces com
as diversas áreas do conhecimento, tanto em nível nacional como internacional.
Esses são apresentados na forma de artigos, ensaios, conferências, entrevistas e
reflexões.
Os manuscritos aceitos e publicados tornam-se propriedade da Psicanálise
– Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, sendo vedada
a sua reprodução, ainda que parcial, sem a devida autorização por escrito da
Comissão Editorial da revista.
As opiniões emitidas nos trabalhos, bem como a exatidão, adequação
e procedência das referências e citações bibliográficas, são de exclusiva
responsabilidade dos autores.
2 Requisitos para submissão do manuscrito
2.1 o trabalho deve ser preferencialmente inédito (exceto os publicados
em anais de Congressos, Simpósios, Mesas Redondas ou Boletins de circulação
interna de Sociedades Psicanalíticas). Exceções serão consideradas.
2.2 não infringir nenhuma norma ética. Não será exigido pela revista
consentimento informado do paciente quando utilizada alguma vinheta clínica
nos artigos, ficando na responsabilidade do autor as questões referentes à ética e
ao sigilo.
2.3 respeitar as normas gerais que regem os direitos do autor.
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 193
Orientações aos colaboradores e normas para publicação
2.4 não conter nenhum material que possa ser considerado ofensivo ou
difamatório.
2.5 caso o trabalho seja encaminhado simultaneamente para outra publicação,
deve o autor comunicar explicitamente e por escrito a Comissão Editorial. A
revista não colocará obstáculos à divulgação desse em outra publicação, desde
que informada previamente. Quaisquer violações destas regras que impliquem
em ações legais serão de responsabilidade exclusiva do autor.
2.6 por fim, o autor deve estar ciente de que, ao publicar o trabalho na
Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, está transferindo
automaticamente o “copyright” para essa, salvo as exceções previstas pela lei.
3 Forma de apresentação de manuscrito
3.1 os originais deverão ser enviados à “Psicanálise” – Revista da Sociedade
Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre por e-mail para os endereços biblioteca@
sbpdepa.org.br, [email protected], ou entregues pessoalmente na Praça
Maurício Cardoso, nº 7, Bairro Moinhos de Ventos, Porto Alegre.
3.2 ter extensão máxima de 20 páginas (frente), fonte Times New Roman,
tamanho 12 em espaço 1 ½, com numeração no canto superior direito.
3.3 folha de rosto identificada, contendo:
3.3.1 título do trabalho em português, inglês e na língua a ser publicado
(centralizado);
3.3.2 nome completo do (s) autor (es) na margem direita;
3.3.3 nota de rodapé com titulação e afiliação;
3.3.4 quando se tratar de trabalho apresentado em evento, informar em nota
de rodapé.
3.4 Resumo e palavras-chave em português, inglês e na língua a ser publicado:
3.4.1 o resumo e o abstract deverão conter, cada um, no máximo 150 palavras,
seguidos das palavras-chave e keywords, respectivamente;
3.4.2 resumo e palavras-chave deverão localizar-se na folha de rosto após o
título; abstract e keywords constarão no final do trabalho, antes das referências.
3.5 Texto
3.5.1 Citações
As seguintes orientações seguem o estabelecido nas normas da Associação
Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, NBR 10520 – Informação e
documentação – Citação em documentos – Apresentação.
194 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Orientações aos colaboradores e normas para publicação
3.5.1.1
deverão ser identificadas através do sobrenome do autor, ano de
publicação e número da página. Por exemplo: Freud (1918, p. 5) ou (FREUD,
1918, p. 5). Na citação direta curta (até 3 linhas), colocar entre aspas duplas; em
citação direta longa (mais de 3 linhas), destacar com recuo de 4cm da margem
esquerda com letra menor e sem aspas.
3.5.1.2
obras com dois autores, os dois devem ser mencionados,
por exemplo, Marty e M’Uzan (1963) ou (MARTY e M’UZAN, 1963). Caso
existam mais de dois autores, indicar somente o primeiro seguido da expressão
latina et al., como por exemplo: Rodrigues et al. (1983) ou (RODRIGUES et al.,
1983).
3.5.1.3
consideração especial para as obras de Freud: as datas
correspondentes aos seus textos deverão aparecer entre parênteses, logo após
o nome, seguido da data de publicação da obra consultada. Exemplo: Freud
(1915/1996).
3.5.2 Referências
As referências seguem o estabelecido nas normas da Associação Brasileira
de Normas Técnicas – ABNT, NBR 6023 – Informação e documentação –
Referências – Elaboração.
3.5.2.1 são apresentadas de forma completa, no final do trabalho, em ordem
alfabética de sobrenome dos autores e suas obras pela ordem cronológica de
publicação, correspondendo exatamente às obras citadas.
3.5.2.2 se houver obras publicadas de um mesmo autor no mesmo ano, devese acrescentar à data de publicação as letras a, b, c. Exemplo:
WINNICOTT, D. W. Teoria do relacionamento paterno infantil. In:
O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas,
1983a.
Quando um autor é citado individualmente e também como coautor, serão
citadas antes as obras nas quais ele é o único autor, seguidas das publicações em
que aparece como coautor. Os autores não são repetidos, mas indicados por seis
traços subscritos sem espaçamento entre eles. Exemplo:
______. Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago, 1990.
3.5.2.3 os títulos dos livros devem ser grifados, sendo que as palavras mais
significativas serão escritas em maiúsculas; o lugar da publicação, o nome do
editor e a data de publicação também devem ser indicados, nesta ordem.
3.5.2.4 nos títulos de artigos somente a primeira palavra figurará em letra
maiúscula, seguido do título grifado da revista, volume, número e página inicial
e final do artigo.
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 195
Orientações aos colaboradores e normas para publicação
3.5.2.5 consideração especial para as obras de Freud: as datas correspondentes
aos seus textos deverão aparecer entre parênteses, logo após o nome; a data de
publicação da obra consultada constará no final da referência. Exemplo:
FREUD, S. (1913). Totem e tabu. In: Obras completas. v. 13. Rio de Janeiro:
Imago, 1974.
4 Forma de apresentação de resenha
4.1 deverá ser enviada à “Psicanálise” – Revista da Sociedade Brasileira de
Psicanálise de Porto Alegre por e-mail para os endereços biblioteca@sbpdepa.
org.br, [email protected], ou entregues pessoalmente na Praça Maurício
Cardoso, nº 7, Bairro Moinhos de Ventos, Porto Alegre.
4.2 deverá ter extensão máxima de quatro páginas (frente), fonte Times New
Roman, tamanho 12 em espaço entrelinhas de 1,5 com numeração no canto
superior direito.
4.3 deverá mencionar:
4.3.1 título, autor(es), editora, ano e número de páginas da obra resenhada;
4.3.2 síntese do conteúdo do livro;
4.3.3 comentário sobre a inserção, contribuição ou importância da obra no
contexto da literatura psicanalítica;
4.3.4 considerações sobre a pessoa do autor ou sobre a relação pessoal com
ele devem ser evitadas.
5 Procedimentos de avaliação
5.1 todo documento entregue para publicação será avaliado através de
critérios padronizados, de modo paritário, por membros do Conselho Editorial
da Revista e “às cegas” (anonimamente).
5.2 avaliador e autor serão mantidos em sigilo pela Revista durante o processo
de avaliação.
5.3 após revisão pelos avaliadores, o documento poderá ter três destinos:
5.3.1 ser aprovado para publicação. Nesse caso, após revisão gramatical e
diagramação uma prova final será enviada ao autor para sua aprovação. Após a
resposta do autor com seu consentimento, no prazo estipulado pela revista, o
artigo será envido para publicação;
5.3.2 ser aprovado para publicação com necessidade de adequação na forma
e/ou no conteúdo. Nesse caso o documento será reenviado ao autor para as
devidas correções ou ajustes. Após o retorno do documento para a revista no
196 |
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015
Orientações aos colaboradores e normas para publicação
prazo estipulado, o mesmo será novamente submetido para análise. Ele poderá
ser aprovado, seguindo o descrito no ponto 5.3.1, poderá necessitar de novas
correções, seguindo novamente o caminho deste ponto, ou poderá não ser
aprovado para publicação, seguindo o item 5.3.3;
5.3.3 não ser aprovado para publicação. Nesse caso o autor receberá da revista
as justificativas;
5.4 a decisão final quanto à data de sua publicação dependerá do número de
artigos aprovados e do programa editorial estabelecido.
5.5 a Comissão Editorial reserva-se o direito de efetuar pequenas alterações
no texto aceito para publicação, a fim de adequá-lo aos critérios de coerência,
clareza, fluidez, correção gramatical e padronização editorial adotados pela
revista. Ressalta-se que em todos os casos a versão final do documento será
enviada ao autor para aprovação final deste e consentimento para publicação.
5.6 artigos que não forem publicados em 12 (doze) meses a partir da data
de sua aprovação serão oferecidos de volta ao seu autor, para que esse tenha
liberdade de enviá-lo a uma outra publicação.
Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 197
Livro impresso em Porto Alegre
inverno de 2015
Todos os direitos reservados a
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre

Documentos relacionados