psicanálise - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
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psicanálise - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
v. 17, n. 1, 2015 psicanálise Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre Filiada à Associação Psicanalítica Internacional desde 1992, à FEPAL e à Federação Brasileira de Psicanálise A revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre é uma publicação semestral editada regularmente desde 1999. Encontra-se indexada na Base de Dados INDEX PSI Periódicos. Tem como finalidade publicar trabalhos selecionados de psicanalistas brasileiros das Sociedades Psicanalíticas e Grupos de Estudos filiados à Associação Psicanalítica Internacional e de autores de notório saber, visando aprofundar, divulgar, ampliar e atualizar conhecimentos na área da psicanálise. A Revista publica também artigos originais ou traduções de trabalhos de analistas estrangeiros, ainda de candidatos em formação do Instituto de Psicanálise. São aceitos artigos de profissionais ligados a Universidades e articulistas de comprovado saber, ligados de alguma forma à psicanálise e às ciências humanas. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Psicanálise – Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. Vol. 1, n. 1 (jan/dez. 1999)– . – Porto Alegre: Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, 1999– v. ; 25 cm. Revista indexada na base de dados INDEX PSI Periódicos. Periodicidade: semestral a partir de 2001. ISSN 1518-398x 1. Psicanálise I. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. CDU 615.851.1 CDU 616.891.7 Bibliotecária Responsável: Adriana Clô Lopes – CRB10/1951 Tiragem: 200 exemplares Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre Praça Dr. Maurício Cardoso, nº 07 / 2º andar – CEP 90570-010 Porto Alegre – RS – Brasil Tel./Fax 55 51 3330-3845 | 3333-6857 www.sbpdepa.org.br e-mails: [email protected] | [email protected] EDITORA Mara Horta Barbosa CONSELHO EDITORIAL Alicia Beatriz Dorado de Lisondo | Ana Rosa C. Trachtenberg | André Green (in memoriam) | Antonino Ferro | Carmen Médici de Steiner | Cesar Botella | Didier Lauru | Elfriede Susana Lustig de Ferrer (in memoriam) | Ester Malque Litvin | Franco Borgogno | François Marty | Gildo Katz | Gley Silva de Pacheco Costa | Helena Ardaiz Surreaux | Heloísa Helena Poester Fetter | João Baptista Novaes Ferreira França | Laura Ward da Rosa | Leopold Nosek | Leonardo Wender | Marcelo Viñar | Marco Aurélio Rosa | Maria Aparecida Quesado Nicoletti | Marta Petricciani | Miguel Leivi | Nilde Parada Franch | Raquel Zak de Goldstein | Rómulo Lander | Samuel Zysman | Sara Botella | Sara Zac de Filc | Sebastião Abrão Salim | Stefano Bolognini | Suad Haddad de Andrade COMISSÃO EDITORIAL Carmen Lúcia M. Moussalle | Maria Isabel Ribas Pacheco | Patrícia R. Menelli Goldfeld | Ramon Castro Reis | Rosa Beatriz Santoro Squeff ORGANIZADORA DESTA EDIÇÃO Patrícia R. Menelli Goldfeld ASSISTENTE EDITORIAL E NORMATIZAÇÃO Adriana Clô Lopes REVISÃO Débora Jael Rodrigues DIAGRAMAÇÃO Alex Barreto CAPA E PROJETO GRÁFICO Marcelo Spalding SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE Filiada à Associação Psicanalítica Internacional DIRETORIA Presidente Helena Ardaiz Surreaux Secretário Lores Pedro Meller Tesoureira Ane Marlise Port Rodrigues Diretora Científica Silvia Brandão Skowronsky Diretora de Comunicação Mara Horta Barbosa Diretora de Relações com a Comunidade Patrícia Rivoire Menelli Goldfeld Diretora Centro de Atendimento Psicanalítico Denise Zimpek Pereira INSTITUTO DE PSICANÁLISE Diretor Fernando Linei Kunzler Secretário Leonardo Adalberto Francischelli Coordenadora da Subcomissão de Formação Augusta Gerchmann Coordenadora da Subcomissão de Seminários Laura Ward da Rosa ASSOCIAÇÃO DE MEMBROS DO INSTITUTO Presidente Magda Regina Barbieri Walz Vice-Presidente Kellen Gurgel Anchieta Secretário Fábio Martins Pereira Tesoureira Tamara Barcellos Jansen Ferreira NÚCLEOS Núcleo de Infância e Adolescência Eluza Maria Nardino Enck Núcleo de Vínculos e Transmissão Geracional Vera Maria Pereira Homrich de Mello Núcleo Psicanalítico de Florianópolis Márcio José Dal-Bó MEMBROS FUNDADORES Alberto Abuchaim Ana Rosa Chait Trachtenberg Antonio Luiz Bento Mostardeiro David Zimmermann Gildo Katz Gley Silva de Pacheco Costa Izolina Fanzeres José Facundo Passos de Oliveira José Luiz Freda Petrucci Júlio Roesch de Campos Leonardo Adalberto Francischelli Lores Pedro Meller Luiz Gonzaga Brancher Marco Aurélio Rosa Newton Maltchik Aronis Renato Trachtenberg Sérgio Dornelles Messias MEMBRO HONORÁRIO Dr. David Zimmermann sumário Dossiê Temático: Diálogos Psicanalíticos Contemporâneos com Freud Dez equívocos teóricos na obra de Freud Abram Josek Eksterman Mal-estar na cultura hoje: o atual e a atualidade em psicanálise. Pertinência de nossas ferramentas psicanalíticas freudianas Adriana Sorrentini 17 47 O contemporâneo na função analítica: medo e paixão Ane Marlise Port Rodrigues, Augusta Gerchmann, Christiane Vecchi da Paixão, Kellen Gurgel Anchieta 61 Um pequeno grande Hans em três breves atos Celso Gutfreind 72 Freud e os pós-freudianos sobre as patologias atuais Laura Ward da Rosa 84 Mal estar na cultura: diálogo com Freud, Herr Professor Silvia Skowronsky 94 Possíveis articulações entre narcisismo e pulsão de morte para a clínica da atualidade Sissi Vigil Castiel 108 Autoerotismo, desmentida e a cisão do Eu Celso Halperin Outras contribuições Como se originou e se criou a teoria do encapsulamento autista David Rosenfeld As diversas faces do desejo nos tratamentos de reprodução assistida Katya de Azevedo Araújo, Mara Horta Barbosa, Maria Isabel Pacheco, Patrícia Mazeron, Renata Viola Vives Afinal, o que é esse tal enactment? Roosevelt M. S. Cassorla 118 127 138 147 Interfaces Cine fórum : construindo um espaço potencial Denise Zimpek Pereira, José Ricardo Pinto de Abreu 167 Resenha Metapsicologia: um olhar à luz da pulsão de morte Christiane Vecchi da Paixão 177 Entrevista Ricardo Avenburg 183 Orientações aos Colaboradores e Normas para Publicação 193 contents Thematic Works Ten psychoanalytical mistakes in Freud’s theory Abram Josek Eksterman Discontent in culture today: the present and current events in psychoanalysis. Pertinence of our freudian psychoanalytical tools Adriana Sorrentini 17 47 The contemporary in the analytical function: fear and passion Ane Marlise Port Rodrigues, Augusta Gerchmann, Christiane Vecchi da Paixão, Kellen Gurgel Anchieta 61 A little big Hans in three short acts Celso Gutfreind 72 Freud and post-freudians about current pathologies Laura Ward da Rosa 84 The discontent in culture: dialog with Freud, Herr Professor Silvia Skowronsky 94 Possible links between narcissisms and death drive for today’s clinic Sissi Vigil Castiel 108 Self-eroticism, disavowal and splitting of the ego Celso Halperin Other contributions How was the theory of autistic encapsulation originated and created David Rosenfeld 118 127 The many faces of desire in assisted reproduction treatment Katya de Azevedo Araújo, Mara Horta Barbosa, Maria Isabel Pacheco, Patrícia Mazeron, Renata Viola Vives 138 After all, what is enactment? Roosevelt M. S. Cassorla 147 Interfaces Cine Forum: building a potential space Denise Zimpek Pereira, José Ricardo Pinto de Abreu 167 Book review Metapsicologia: um olhar a luz da pulsão de morte Christiane Vecchi da Paixão 177 Interview Ricardo Avenburg 183 Guidelines for contributors and standards for publication 193 editorial Palavras da Editora Queridos leitores, A Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre com prazer apresentalhes mais uma edição de Psicanálise: Revista da SBPdePA. Estamos trazendo o número 1 de 2015, volume 17. Impossível deixar de mencionar que em 2015 a SBPdePA está completando 25 anos! Idade de maturidade. Foi em janeiro de 1990 que, fundado o Movimento para uma Nova Sociedade Psicanalítica em Porto Alegre, plantou-se uma semente que germinou e deu frutos. Hoje, passados 25 anos, temos uma história que se perpetua com a chegada de novos membros, fazendo a Brasileira seguir sua trajetória. Gostaríamos de agradecer de modo especial aos fundadores que, com coragem, fé em si e na psicanálise, sonharam, gestaram e criaram a Brasileira. E lembrar aos membros recém-chegados que são o futuro, e esperamos que se sirvam dessa história para fazerem parte dela. Voltando para a Revista, estamos apresentando como eixo temático deste número Diálogos Psicanalíticos Contemporâneos com Freud. O ano de 2014 foi marcado pelo Centenário da Metapsicologia − momento em que Freud organiza os trabalhos considerados pilares de sustentação de sua construção teórica. Homenageando os Cem Anos de Psicanálise, a SBPdePA organizou em sua Jornada anual o II Encontro de Estudos sobre a Obra de Sigmund Freud, e trouxe para o evento o Dr. Ricardo Avenburg, psicanalista da APdeBA de Buenos Aires e profundo estudioso da obra freudiana. A ideia do encontro foi partir dos conceitos básicos que fundamentam a psicanálise, postulados por Freud, e questionar como se articulam com as novas configurações psíquicas que encontramos na clínica atual. Criou-se um clima fértil de estudo, bastante descontraído e informal, com troca de ideias e diferentes interpretações do pensamento freudiano, buscando novos desdobramentos de seus aportes. A equipe editorial de Psicanálise valeu-se da proposta desse Diálogo para torná-lo o eixo temático deste número. Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 11 Esta edição tem como organizadora a colega Patrícia Goldfeld, que a apresenta nas páginas a seguir. Tenho imenso prazer em fazê-los saber que, a partir desse número, teremos nossa Revista em formato digital para compra online. E também, a partir desta edição, contamos com um novo parceiro na editoração, que é a wwlivros − editora de livros impressos e digitais, dirigida por Marcelo Spalding, escritor e jornalista. Finalizo agradecendo aos autores pela confiança e pela oportunidade de compartilharem suas ideias e seu conhecimento conosco. Àqueles autores que tiveram seus artigos aceitos mas não contemplados neste número, asseguramos que ganharão voz na próxima edição. Impossível furtar-me de mencionar a sintonia dessa querida equipe editorial composta pelas experientes colegas Carmem Moussalle, Rosa Squeff, Maria Isabel Pacheco, Patricia Goldfeld e pelo recém-chegado Ramon Castro Reis, que veio enriquecer o trabalho editorial com seu olhar. Menciono também o imprescindível apoio técnico de nossa equipe administrativa: a vocês agradeço muito a parceria! E espero que os leitores possam compartilhar conosco o prazer da experiência de elaborar essa revista, através de sua leitura. Um afetuoso abraço. Mara Horta Barbosa Editora de Psicanálise: Revista da SBPdePA 12 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Palavras da Organizadora Há poucos meses integrei-me ao corpo editorial da revista da SBPdePA, da qual me orgulho em participar porque se trata de uma revista que busca continuamente evoluir, aprimorar seus critérios e modernizar-se, de modo que possui um alto nível de excelência em suas publicações. A experiência de trabalho com o grupo de colegas que compõem o corpo editorial, de elevado nível técnico e científico, tem sido muito desafiadora e estimulante. Nesta presente edição, que fui convidada a organizar por nossa editora Mara Horta Barbosa, sinto-me especialmente honrada porque o eixo temático trata de interlocuções com o fundador da psicanálise, Sigmund Freud. O tema foi inspirado no II Encontro de Estudos sobre a Obra de Sigmund Freud, ocorrido em novembro de 2014, na sede da SBPdePA. Esse encontro teve como convidado especial o psicanalista didata argentino Ricardo Avenbug, que recentemente publicou um livro denominado Conversaciones com Freud. É questão indiscutível, para nós psicanalistas, que a obra de Freud encontrase sempre presente em nosso trabalho clínico e em nossos estudos teóricos. Os desenvolvimentos da teoria e da técnica psicanalítica implicam, em geral, uma interlocução com alguma afirmação do fundador, tão vasta e abrangente foi a sua obra. No entanto, a humanidade está em constante evolução, e os psicanalistas se dedicam a estudar as patologias contemporâneas, buscando desenvolver teorias e técnicas que nos permitam compreender e tratar essas novas manifestações clínicas. Estes estudos provocam diálogos e questionamentos à teoria freudiana. Esta edição da revista visou selecionar algumas das excelentes contribuições teóricas e clínicas destes estudiosos da atualidade. Na seção de Eixo Temático, publicamos oito trabalhos apresentados em ordem alfabética de autor. O artigo Dez equívocos teóricos na obra de Freud, do psicanalista da SBPRJ e da APERJ-Rio-4, Abram Josek Eksterman, já foi apresentado no Congresso Comemorativo do Sesquicentenário do nascimento de Sigmund Freud em Praga, República Tcheca, em 2006. Neste interessante trabalho, o autor exa- Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 13 mina dez questões que ele considera paradigmáticas na obra de Freud e que, por terem sido mal compreendidas ou expostas por Freud de uma maneira ambígua, permitiram equívocos técnicos e clínicos com o passar do tempo. Adriana Sorrentini, psicanalista da APA, apresenta o tema Mal-estar na cultura hoje: o atual e a atualidade em psicanálise, pertinência de nossas ferramentas psicanalíticas freudianas. A autora discute o desafio da psicanálise nos dias atuais, quando analisamos pessoas com patologias psicossomáticas, transtorno de pânico, fobias, anorexia, bulimia, compulsões e dependência de drogas e/ou álcool. No trabalho, a autora examina algumas importantes ferramentas analíticas, como transferência/contratransferência, interpretação, construção e reconstrução. Ane Marlise Rodrigues, Augusta Gerchmann, Christiane Vecchi da Paixão e Kellen Gurgel Anchieta, psicanalistas da SBPdePA, trazem o estudo O contemporâneo na função analítica: medo e paixão. O trabalho analisa questões ligadas à ética em psicanálise e aspectos transferenciais na relação analista/analisando relativos à questão totêmica do incesto, explicitadas nas normas da IPA/ FEBRAPSI. Celso Gutfriend, escritor, poeta e psicanalista da SBPdePA, propõe uma releitura da clássica publicação de Sigmund Freud referente ao caso do Pequeno Hans. Ele conclui com algumas interessantes inferências sobre a relação desse estudo e as alterações culturais no cuidado infantil ocorridas no último século. Celso Halperin, psicanalista da SBPdePA, apresenta o estudo original Autoerotismo, desmentida e a cisão do eu e questiona a existência de uma possível relação estrutural entre o autoerotismo e os mecanismos como a desmentida e a cisão do eu. Laura Ward da Rosa, psicanalista da SBPdePA, traz o artigo Freud e os pósfreudianos: sobre as patologias atuais. A autora relaciona o conceito de neurose atual de Freud e patologias comumente encontradas na atualidade, como anorexia, bulimia, adições e doenças psicossomáticas. Silvia Brandão Skowronsky, psicanalista da SBPdePA, apresenta o ensaio O mal estar na civilização, no qual desenvolve reflexões sobre os cem anos da Psicanálise de Freud, e analisa seus reflexos na humanidade e na cultura. Sissi Vigil Castiel, psicóloga psicanalista, doutora em psicologia pela Universidade Autônoma de Madri, propõe o trabalho Possíveis articulações entre narcisismo e pulsão de morte para a clínica da atualidade. Neste texto, ela relaciona as patologias fundamentadas em problemáticas narcísicas, casos limite e melancolia com as incidências da destrutividade no funcionamento psíquico direcionadas ao interior do sujeito. 14 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Na seção Outras Contribuições publicamos três trabalhos. David Rosenfeld, psicanalista da APdeBA e professor da Universidade de Buenos Aires, apresenta o ensaio Como se originou e se desenvolveu a teoría do encapsulamento autista. O autor desenvolve a hipótese de que os mecanismos de defesa autistas nem sempre promovem patologias mentais, mas o que ele denomina encapsulamento autista serve para preservar e manter as primeiras relações infantis e as introjeções. Katya de Azevedo Araújo, Mara Horta Barbosa, Patrícia Mazeron e Renata Viola Vives, psicanalistas da SBPdePA, trazem o artigo As diversas faces do desejo nos tratamentos de reprodução assistida. As autoras analisam as diferentes faces do desejo e levantam questões sobre uma forma de expressão do desejo que estaria ligada à gravidez como uma descarga corporal, ligada à libido intrassomática. Roosevelt M. S. Cassorla, psicanalista da SBPSP, traz o trabalho Afinal, o que é esse tal enactment? Neste artigo, o autor relata investigações clínicas sobre situações de enactment e propõe nomear de enactment crônico os conluios duais e de enactment agudo as situações em que esses conluios são desfeitos. Na seção Interfaces, apresentamos o trabalho Cine fórum: construindo um espaço potencial, dos psicanalistas Denise Zimpek Pereira e José Ricardo Pinto de Abreu. Os autores analisam a atividade Cine Fórum, oferecida à comunidade pela SBPdePA, e hoje denominada Café Cinema. Entendem que a atividade se realiza dentro de um espaço potencial criado pelo intercâmbio emocional entre os organizadores e os participantes, sendo oportunizada uma experiência criativa compartilhada. Na seção Por que ler, a psicanalista Christiane Paixão apresenta uma resenha do livro de Ignácio Paim Filho, psicanalista da SBPdePA: Metapsicologia: um olhar à luz da pulsão de morte. Segundo ela, Paim cria novas relações conceituais a partir dos textos freudianos. Finalizando, na seção Entrevista retornamos ao eixo temático uma entrevista do professor Ricardo Avenburg, com questões baseadas nas perguntas realizadas a ele no encontro aqui em nossa sociedade, em novembro de 2014: II Encontro sobre a Obra de Freud. Aproveitem a leitura! Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 15 dossiê temático Dez equívocos teóricos na obra de Freud1 Abram Josek Eksterman2 “Know thyself? If I know myself, I’d run away” W. J. von Goethe Resumo: O autor examina dez questões paradigmáticas na obra psicanalítica de Freud que, com o passar do tempo, foram ou mal compreendidas ou expostas por Freud de uma maneira ambígua, permitindo equívocos técnicos e clínicos. Tais equívocos contribuíram para a dispersão da teoria e da técnica psicanalítica. O autor sugere que o uso frequente do modelo etiológico e fenomenológico da medicina, ao invés do psicodinâmico, inevitável no tempo da exposição das ideias de Freud, permitiu tais ambiguidades e suas consequências. Dentro desse contexto foram examinadas: 1) a busca do inconsciente ao invés de como se forma a consciência; 2) a ênfase no estudo da patogenicidade derivada de mecanismos de defesa ao invés do estudo desses mesmos mecanismos como funções protetoras do ego; 3) psicologia unipessoal (o que leva à neuropsicologia) ao invés da psicologia diádica, ou à psicologia das relações; 4) a repressão compreendida como pressão defensiva ao invés de dissociação entre o Trabalho selecionado e apresentado no Congresso Comemorativo do Sesquicentenário do nascimento de Sigmund Freud em Praga, República Tcheca, em 5 de maio de 2006. Esta é uma versão em português para esta publicação do original em inglês apresentado em Praga. Mantive aqui citações em inglês e deixo ao leitor a liberdade de traduzi-las. 2 Membro Titular da I.P.A. Funções Didáticas da APERJ–RIO-4. Membro Titular da SBPRJ. Professor de Psicologia Médica e Antropologia Médica. Membro Honorário da Academia Nacional de Medicina. 1 Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 17 Dez equívocos teóricos na obra de Freud significante de seu significado; 5) a pré-genitalidade como conduta sexual ao invés de simbolização da sexualidade; 6) ênfase na conduta sadia ao invés da organização saudável de uma estrutura simbólica (levando a um ego saudável); 7) ênfase na normalização ao invés da geração de consciência; 8) modelo científico natural para analisar sintomas ao invés do modelo cultural a fim de criar um instrumento para a análise estrutural da vida mental; 9) transferência como reedição histórica ao invés de significantes abertos para o significado; 10) ênfase na experiência biológica ao invés de ênfase na experiência existencial. Palavras-chave: Formação do conceito. Psicanálise. Teoria Freudiana. Introdução O longo período em que fui professor e coordenador do Curso Teórico sobre a obra do criador da psicanálise, Sigmund Freud, no Instituto de Formação Psicanalítica em minha sociedade, produziu-me a convicção de que muito além de estudarmos o texto de sua obra, deveríamos dedicar-nos a estudar seu objeto de estudo. E com essa advertência iniciava a série de seminários. Seus textos seriam portas de acesso básicas sobre as quais poderíamos erguer o edifício cognitivo da psicanálise. Insistia em incutir nos alunos liberdade e autonomia intelectual para que mais que seguidores de um gênio fossem efetivos continuadores de sua obra, melhor forma de honrarem o legado que recebiam. Tal sempre me pareceu a missão de um aluno de ciências, diferente daquele discípulo de verdades acabadas dos mestres religiosos. Nunca efetivamente entendi que pudessem existir várias psicanálises de acordo com postulados de alguns renomados autores. Especialmente me era impossível entender uma psicanálise freudiana, salvo por conta dessa estreiteza intelectual que nos faz adeptos e não (como deveria ser) continuadores. Nas minhas modestas contribuições ao estudo da obra de Freud, enfatizo invariavelmente o estudo crítico de sua exposição, especificamente para depurá-la dos resvalos inevitáveis a que um gênio de seu porte está sujeito. Penso assim estar contribuindo para o desenvolvimento de seu estudo e, consequentemente, da prática da psicanálise. O que chamei dos dez equívocos teóricos na obra de Freud é produto dessa intenção e tem tudo a ver com minha profunda reverência ao gênio que marcou minha vida profissional e meu principal objeto de estudo. É a forma que encontro para expressar minha mais profunda aderência ao seu objeto de estudo, que é 18 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Abram Josek Eksterman a pesquisa da humanidade do homem. E que, finalmente, permite esse tipo de atrevimento intelectual. Inspirei-me no notável filósofo americano Adler, de quem parafraseio o título de sua notável obra Ten philosophical mistakes (1985), para nomear este trabalho, sabendo, humildemente, que muito me separa da extraordinária competência desse notável autor, mas muito dele me aproximo pela admiração que nutro por seu espírito crítico. Devo examinar neste trabalho os seguintes tópicos: 1) psicanálise não é a busca do inconsciente, mas a busca de como se forma a consciência; 2) defesa não é só um meio de proteger nossa mente de impulsos inconsci entes, mas, além disso, um meio de proteger nossa consciência organizada do inconsciente caótico; 3)psicanálise lida com conhecimento caótico. Assim não há lugar para es tudos sobre etiologia como se faz na medicina diagnóstica. O estudo diagnóstico em medicina deriva da biologia e refere-se à doença; psicanálise deriva da experiência interpessoal e refere-se à existência; 4)portanto, psicanálise não é uma explicação de distúrbios funcionais do cérebro; antes é uma exposição transcendental de relações humanas, nas quais a natureza não é o paradigma, mas somente sintaxe e semântica o são; 5)a pré-genitalidade não é uma forma anterior evolutiva da genitalidade, mas a expressão da maior ou menor impregnação do processo primário de pensar nas representações relativas aos fenômenos sexuais; 6) repressão não é contenção de forças instintivas; é a dissociação do significado de seu significante cuja consequência é a perda de sentido, ou inconsciência; 7) conduta e significado são dimensões epistemológicas diferentes. A psicanálise está comprometida com o significado e só o está com a conduta na medida em que significados induzem condutas; 8)em consequência, a psicanálise, como instrumento terapêutico, não pretende mudança em condutas, mas visa a produzir consciência com a expansão de seus conteúdos simbólicos; 9) psicanálise não pode ser instrumento de qualificação axiológica, ou mais precisamente, de discriminação ou orientação moral. A consciência do vínculo interpessoal é que possibilita a qualidade da relação afetiva; 10)transferência é um fenômeno intermediário de transformação semântica e não a reedição de pautas de condutas do passado infantil no cenário da experiência de vínculo adulto. Transferência indica significantes no processo de se apresentar como significados. Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 19 Dez equívocos teóricos na obra de Freud Algumas advertências preliminares são indispensáveis. Esse estudo não é um trabalho exegético no sentido de que esmiucei o texto de Freud e tentei extrair dele significados esotéricos que, movido por talentos extraordinários pude compreender o que ninguém antes conseguiu. Longe estou dos notáveis comentadores de Freud (e foram numerosos e geniais). Freud mesmo foi seu melhor comentador e realizou algumas tentativas de síntese de sua obra como no trabalho sobre psicoterapia, nos trabalhos metapsicológicos, nas Lições introdutórias (1916-17[1915-17), nas Novas lições introdutórias (1932-1936) e no Esboço (1940[1938]), póstumo. Freud, além do mais, foi um excelente escritor, claro e preciso, como o são os gênios da cultura alemã. Não acho que alguém precise ir além de Freud, realizar um trabalho metalinguístico de Freud. Mas penso que é indispensável continuá-lo e deploro o expurgo de alguns geniais continuadores que apresentaram novas visões, algumas críticas e importantes, mas que não foram ortodoxas. Mas como falar em ortodoxia na psicanálise? Se o próprio Freud até o final realizava esforços hercúleos para autossuperar-se e tornar-se ainda mais claro é porque ele próprio desconfiava que deveria ser continuado e que ele tinha consciência de que havia chegado às portas de um novo conhecimento, divisado sua imensidão, contemplado, como Moisés o fez do alto do monte Nebo, a terra prometida do autoconhecimento, máxima realização humana por isso proposto no pórtico de templo de Delfos – e deixado aos discípulos a missão de conquistar essa terra e que nos dará novo fôlego para conquista de nossa humanidade. Não há psicanálise, nem ortodoxa, nem freudiana, nem kleiniana, nem lacaniana, nem winnicottiana, nem kohutiana, nem bioniana, e nem outras tantas denominadas existenciais, culturalistas, jungueanas e quantas seitas que se dispersaram e confundiram-se em pequenas paróquias esquecendo-se da missão essencial do Gnothi Seauton, legado pelo conhecimento da psicodinâmica criada por Freud. Há psicanálise, sim, e persiste como método de investigação desse fantástico (literalmente) software, instrumento por excelência da humanização, que é a vida mental. É necessário obviamente conhecer a obra toda de Freud, seus principais comentadores, suas biografias e, sobretudo, ter vivido uma autêntica análise pessoal e praticar psicanálise. Sem isso, corre-se o risco de perder-se em palavras e conceitos, no esmiuçamento de rodapés e textos secretos, enfim, na arqueologia do saber, numa metapsicanálise, quando o que precisamos saber está bem exposto, em linguagem clara que mereceu o prêmio Goethe. Freud não precisa de seguidores; precisa de continuadores. Em razão disso, a bibliografia deste texto é apenas referencial, não exaustiva, embora utilize algumas quantas citações específicas. Não vou servir-me da 20 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Abram Josek Eksterman autoridade de nenhum autor, nem mesmo da de Freud, para corroborar minhas afirmações. O que direi é produto da reflexão de um estudante e de um psicanalista. E, confesso, de alguém que se dedica a continuar a pesquisa que Freud começou. Se puder comover pelo menos um de meus ouvintes, me sentirei recompensado pelo esforço. Sucessivamente, vamos examinar os dez equívocos. 1 A busca pelo inconsciente ao invés de como se forma a consciência Se pudermos deter-nos em um trabalho pouco estudado de Freud sobre Afasias (1891) poderíamos encontrar ali o germe da psicanálise na concepção de afasia funcional. Afirmava ele que algo deixa de ser consciente se perde a conexão com a representação de palavra (wortvorstellung). Daí emergiu a ideia de repressão – cisão da representação de coisa com a representação de palavra – necessária para manter uma experiência fora da consciência e em consequência, a concepção do inconsciente, fundamento da própria psicanálise. Mas, a parte essencial não foi bem destacada: o fato de que isso se dá só porque a relação desse conteúdo mental com outras pessoas produziria sofrimento no sujeito em estudo. Defesa e inconsciência são resultados, portanto, de um processo de interação; está no âmago mesmo da relação do sujeito com o outro. Desde esse momento, fica evidente que Freud está estudando a interação humana e não o que se passa no cérebro, fato que ele próprio nem sempre se deu conta, ou porque pensava como neurologista, ou porque temia afastar-se demais dos cânones científicos da época. Se ousasse essa ultrapassagem, poderia passar para a posteridade não como um cientista que investiga fenômenos naturais, mas como um filósofo que especula a natureza do encontro humano, a exemplo do que fez seu mestre em filosofia Brentano ou seu contemporâneo Nietzsche. Sem falar, obviamente, na noção circulante contida nos três volumes de Hartmann (1869) sobre o inconsciente, com sua noção de inconsciente relativo, matriz da consciência psicológica. Que é afinal o inconsciente, base de toda metapsicologia de Freud? Depreende-se de seus escritos que inconsciente é a sensopercepção que ainda não adquiriu significado. Neste sentido, o inconsciente é um fenômeno da psicologia unipessoal, está estritamente relacionado com os fenômenos neurofisiológicos, contido nos métodos científico-naturais e compreendido dentro de relações causais. É um estado no qual os conteúdos sensoperceptivos ainda não receberam wortvorstellung e permaneceram como Dingwortvorstellung. Por que dar ao inconsciente palavras? Para produzir consciência. E com isso ego. Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 21 Dez equívocos teóricos na obra de Freud E com ego, relações. E com relações, espaço de interação social e, portanto, cultura, estudo comprometido não mais como as ciências que estudam cadeias causais, mas com sistemas que estudam significados. É compreensível que Freud tenha insistido em afirmar a existência do inconsciente através da exposição de seus conteúdos e escassamente através dos processos que se desenvolvem para tornar esses conteúdos elementos da consciência. Foi justamente aí que Popper (1959) pôde desenvolver sua crítica à psicanálise. Na realidade, só podemos afirmar a psicanálise nos processos que geram consciência ou, mais especificamente, nos processos que geram ego, de cuja organização dependerá o vínculo necessário com a realidade para dissipar os conflitos neuróticos, promover a organização harmônica com a realidade ensejando estruturas adaptativas eficazes, e a participação na vida social e organização mental, além da construção de um destino individual. A ênfase na necessidade de afirmar a existência do inconsciente levou a prática psicanalítica a dar prioridade à pesquisa de seus conteúdos ao invés de utilizar esses conteúdos no esforço clínico de construir um ego saudável e estabelecer os limites clínicos operacionais, da investigação do inconsciente, cuja investigação indiscriminada pode liberar forças instintivas de alto poder destrutivo sobre as estruturas simbólicas e sociais que asseguram o funcionamento saudável do ego. Podemos perceber que, recuperando-se o objeto terapêutico da psicanálise, qual seja, o de construir e adequar ego, podemos fazer confluir estudos que foram banidos da chamada psicanálise ortodoxa, como os da escola culturalista (muito consentânea com os estudos do cognitivismo atual) e outros estudos vistos com reservas, como os da psicologia do self. 2 A patologia decorrente de mecanismos de defesa ao invés da função protetora desses mecanismos relativamente ao ego Freud, na abertura de seu trabalho metapsicológico sobre o inconsciente, enfatiza: “We have learnt from psychoanalysis that the essence of the process of repression lies, not to putting an end to, in annihilating, but in protecting it from becoming conscious” (1915, p. 166). Desde os primórdios de seus trabalhos até seu último escrito (Outline), este é o conceito teórico paradigmático da teoria e da técnica psicanalítica. A prevenção assim realizada é a custa do que ele denominou mecanismo de defesa, cujo principal mecanismo e primariamente descrito foi o da repressão, ampliado sucessivamente e sistematizado em 1930 por sua filha Anna. 22 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Abram Josek Eksterman Foram descritos um pouco mais de vinte tipos de defesas contra determinados conteúdos mentais que poderiam tornar-se agentes de sofrimento se experimentados em nível consciente. Esses conteúdos mentais devem estar sempre associados a sentimentos. Sentimentos, como sabemos, são estados afetivos que se tornam conscientes na interação humana e modelam condutas consequentes entre as pessoas envolvidas. Ficamos sabendo assim que a percepção de estruturas simbólicas de natureza afetiva tem a capacidade de gerar sofrimento e que a organização mental, a exemplo da organização biológica, tem a capacidade de proteger-se com barreiras simbólicas, que, por sua vez, protegem a vida mental de experiências lesivas. Toda a ideia metapsicológica de dinâmica mental provém dessa descrição metafórica de forças oponentes, ora gerando conflito, ora inconsciência, ora sintomas, ora qualquer tipo de combinação entre eles, ou a totalidade em conjunto desses processos. Algumas dessas defesas geram tipos de sintomas que se enquadram no que Freud designou, dentro de suas taxonomias psicodinâmicas, como neurose. A solução desse sofrimento, portanto, ficou acessível, demolindo-se as defesas, conhecendo-se as forças em oposição, ampliando-se a capacidade de elaboração do ego, e substituindo-se os elementos infantis ou anacrônicos do conflito por atualizações maduras do comportamento. Como uma espécie de download para atualizar os sistemas operacionais para os novos inputs. Enfim, uma descrição paralela ao que é realizado pelo sistema biológico relativamente aos mecanismos de defesa orgânicos, patrocinados basicamente pela imunidade. Neurose seria, utilizando o símile biológico, uma doença autoimune, e a psicanálise um esquema terapêutico dessensibilizante, propiciando a integração dos elementos da vida mental, agastada por conflitos intrapsíquicos. Da mesma forma como ocorreu o conhece-te a ti mesmo desenfreado em busca de segredos do inconsciente, a ponto de tecnicamente confundir-se interpretação com revelação e conteúdo latente como a verdade, dissimulada por mecanismos de defesa, além de gerar a falsa concepção de que a verdade é sempre uma verdade oculta e que o que se revela ostensivamente é uma screen memory, também os mecanismos de defesa, assim reconhecidos como verdades dissimuladoras do sujeito, foram objeto de anatemização sistemática e que, portanto, deveriam ser objeto prioritário de abolição dentro do processo psicanalítico. Em parte, por conta de expressões iniciais utilizadas por Freud como psiconeuroses de defesa. A consequência da prática de demolir defesas dessa maneira fundamentalista foi descaracterizar o paciente como um self, uma identidade, e torná-lo vulnerável a Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 23 Dez equívocos teóricos na obra de Freud uma neoplasia ideatória e a uma atrofia da capacidade de pensar, gerando discípulos e sectários de uma ideologia que, não conseguindo construir uma identidade, a emprestaram de seus analistas. Não é por acaso que os americanos chamaram seus analistas com a expressão cômica e ao mesmo tempo agressiva (como toda comicidade contém aspectos afetuosos e agressivos) de headshrinker, ou simplesmente, shrink. Assim produzindo exatamente o oposto que uma análise bem conduzida deveria produzir. Parece-me óbvio que a intolerância conceitual, especialmente desenvolvida após 1910, foi gerada a partir dessa idealização das verdades inconscientes e sua concomitante demolição de defesas psicológicas. A psicanálise perdeu com isso a abertura necessária para um debate crítico e a apreciação de uma torrente de novas ideias que o nascimento da psicodinâmica gerou. Mecanismos de defesa, é bom reiterar, significam exatamente o que é enunciado. Defendem. Defendem a integridade de um sistema mental e a intervenção sobre esses mecanismos só deve realizar-se para sanar vulnerabilidades geradas por conflitos ou anacronismos promotores de esquemas neuróticos de viver, ou quando tivermos à mão esquemas defensivos melhores. Sem essa observância não vejo como esse notável instrumento terapêutico e de pesquisa que é a psicanálise não gere, ela própria, outras patologias psíquicas, somáticas ou sociais, tornando-se um importante agente morbígeno. 3 Psicologia unipessoal (levando à neuropsicologia) ao invés de psicologia diádica, ou psicologia da relação Aparentemente, este tópico não poderia estar no rol dos equívocos atribuíveis a Freud, pois esta discussão ultrapassa de muito os temas por ele abordados. As ansiedades de separação que deram origem à concepção diádica foram publicadas por Bowlby a partir de 1957, no documento da WHO e o 1o volume do livro Attachment and loss, em 1969. Mas deixando de lado questões semânticas, percebemos desde o início das publicações de Freud que quando menciona o desvelo com que Charcot se dedica à dissecção da nosografia de seus pacientes histéricos, o que de fato queria nos fazer entender como nosografia? Nada menos que a biografia, da mesma forma como podem ser consideradas as minúcias dissecadas nos sintomas de Anna O. por Breuer. O que de fato é ressaltado não é o sintoma, mas a história do sintoma e, portanto, a história do paciente. Método que Freud, a partir daí, adota e perpassa em todos seus estudos de histéricos. Ao dizer que os histéricos sofrem de reminiscências, o que fica evidente é que os histéricos contam biografias patogênicas, cuja rememoração os leva a sofrimentos insuportáveis, daí a necessidade de excluir essas experiências da consciência. O procedimento de 24 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Abram Josek Eksterman limpeza da chaminé, utilizada por Breuer, através do método hipnótico nada mais é do que uma tentativa de elaboração da experiência emocional traumática através do vínculo emocional com o terapeuta, vínculo que Breuer não suportou e que Freud pôde reconhecer e utilizar chamando-o, no caso Dora, de transferência. Por que dissecção do sintoma e não dissecção biográfica? Porque biografia levaria, na época, ao romance, ao contexto moral, como já fora realizado por Phillippe Pinel, quase cem anos antes. A dissecção do sintoma fazia parte do contexto científico, do elementarismo causal que daria crédito e méritos hipocráticos a seu descobridor. Assim procedeu seu mestre Charcot, seu amigo Breuer; assim recomendaram seus guias científicos Du bois Raymond, Helmholtz e Brücke. Assim procedeu Freud, deixando para a posteridade o mérito de conceder à histeria condição médico-terapêutica, embora, toda a psicanálise fundada por ele seja um estudo historiográfico, ou seja, um estudo crítico da biografia dos pacientes. Ou como diria em privado Charcot a seu estagiário, o jovem Sigmund Freud: Sempre há um segredo por baixo da histeria. Desta forma, o estudo do sintoma histérico tomou o lugar do estudo biográfico do paciente, e tornou proeminente uma psicologia derivada da neuropatologia e não uma psicologia derivada das estruturas simbólicas produzidas pela relação humana. A partir daí, como dizia Perestrello (1945, 1974, 1987), desenharam-se dois Freuds, um técnico dedicado a nosografias dentro do estrito modelo médico, e, outro, clínico, que tomou como base a relação médico-paciente, transfigurada no estudo da transferência e que deu substância a todo procedimento terapêutico. Para o primeiro, a psicologia unipessoal. Para o segundo, a psicologia da relação humana, diádica, ou multipessoal. É interessante observar que todas as formas de psicanálise utilizam com êxito o segundo modelo, o da relação clínica, com ênfases diferentes em alguns aspectos dessa mesma relação, inclusive aquelas psicoterapias que excluem o conhecimento do inconsciente. As divergências surgiram nas concepções teóricas, nas quais se multiplicaram as psicoterapias, cada qual defendendo seus respectivos territórios teóricos com a ferocidade de fundamentalistas religiosos. Dois ingleses, entre muitos outros espalhados pela comunidade internacional, de maneira diferente, exortaram para algum entendimento: Klauber (1991), que chamou a atenção para a historicidade do método psicanalítico e Thorner, que insistia em vermos que aspectos aproximam-nos e com os quais todos nós podemos concordar. É urgente, portanto, uma reapreciação de nossos modelos teóricos e que nos debrucemos em maiores reflexões sobre a clínica, realizemos uma metaclínica, para encontrarmos as bases de uma psicodinâmica geral que fundamente melhor a prática psicanalítica. Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 25 Dez equívocos teóricos na obra de Freud 4 A repressão compreendida como pressão defensiva ao invés da função dissociativa entre significante e significado Repressão e inconsciente são dois conceitos que institucionalizaram a psicanálise. O inconsciente como fundamento teórico e a repressão como fundamento clínico. Vale transcrever o conceito de repressão como exposto por Freud em seu respectivo trabalho metapsicológico: At some later period, rejection based on judgement (condemnation) will be found to be a good method to adopt against an instinctual impulse. Repression is a preliminary stage of condemnation, something between flight and condemnation. It is a concept which could not have been formulated before the time of psycho-analytic studies (1915, p. 146). Duas dimensões epistemológicas cruzam-se nesse trecho essencial da teoria de Freud. Um deles trata de um impulso biológico e o outro de uma condenação moral, psicológica. Poderíamos afirmar que o conhecimento deste cruzamento poderia iluminar-nos quanto ao lugar preciso em que Descartes buscava sua conexão entre o res cogitans e o res extensa, o lugar de conexão da alma com o corpo, que ele, Descartes, localizava na glândula pineal. A pensar pela proximidade anatômica do eixo hipotálamo-hipofisário, Descartes, no remoto século XVII, errou por pouco. Seria, na concepção moderna, o lugar em que a dimensão simbólica, como concebida por Cassirer (1944), e a dimensão biológica se cruzariam, o lugar prioritário da pesquisa da neurociência atual (especialmente desde Damásio), e o lugar da visão psicossomática, necessária à prática médica do século XXI. Se Descartes errou por pouco, certamente estamos errando por muito quando tentamos reduzir essa questão essencial mente-corpo, a uma, ou outra dimensão. Não é difícil entender que o impulso instintivo de Freud é um quase impulso biológico e a condenação mencionada por ele, é quase uma afirmação psicológica. A moderna ciência dos computadores pode dar uma resposta mais aproximada. O quase impulso faz parte de um hardware e a condenação faz parte de um software. A ação corretiva, ou em termos médicos, os recursos terapêuticos são completamente diferentes nos dois casos. No primeiro, biológico, usamos instrumentos e recursos materiais. No segundo, psicológico, usamos programas, ou seja símbolos, ou seja derivados da interação (relação) humana. Estudos sobre como fazer interagir esses dois recursos para implementar resultados terapêuticos mais eficazes ainda são incipientes e padecem de preconceitos 26 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Abram Josek Eksterman conceituais e grandes interesses institucionais e econômicos que precisam ser denunciados e eventualmente eliminados. Obviamente que o termo condenação não foi utilizado como sinônimo de força física, como algo que se opõe à tensão gerada pelo instinto em favor de sua realização, ou seja, esgotar-se na satisfação com objetos específicos ou equivalentes. Como entender que a força psicológica de uma experiência simbólica pode contrapor-se a uma exigência de mobilização física? Aparentemente, parece impossível que um ato mental possa desmobilizar um ato material. Isso seria factível se todos nós pudéssemos matricular-nos na escola de feiticeiros onde Harry Potter tem cursado como brilhantismo e realizado suas proezas ao lado de seus companheiros. Sem dúvida, isso soa como mágica: exorcizar forças físicas e impedir seu fluxo natural. Interromper a sequência de fenômenos naturais esconjurando seus propósitos. Simplesmente, na expressão de Freud, condenandoos. Lembremo-nos que nós, médicos, apesar de todo conhecimento psicanalítico desenvolvido no século XX, ainda estamos influenciados por diagnósticos em que o clínico, diante de exames laboratoriais negativos, afirma ao paciente que ele não tem nada, é só emocional. Assim, emocional, ainda na visão médica, é equivalente a não ter nada e, em consequência, recebe a orientação terapêutica de cure-se por si mesmo de suas mazelas. Como um abracadabra pode conter um impulso biológico? Respondeu Freud: tornando-o inconsciente. Em outros termos, perdendo o rumo, dispersando-o na economia biológica, ora alterando a funcionalidade do sistema biológico, ora enganando-o com satisfações equivalentes, ora impedindo sua consecução com rituais dissuasórios e diversificadores, ora encistando-o em condutas sociais de autoproteção. A necessidade não se extingue jamais, o que ocorre é uma manobra diversificadora, enganadora. Ou por equivalentes, ou por enganos e ilusões, ou por proteções institucionalizadas pelo ambiente social. Freud analisou esse embate entre a biologia e a psicologia, primeiro em um trabalho mais tímido de 1908 (Moralidade civilizada sexual e a doença nervosa moderna), depois numa sequência de estudos antropológicos: Totem e Tabu (1913), Malestar na civilização (1930), Futuro de uma Ilusão (1927) e Moisés e a religião monoteísta (1939). Em todos, não nos deixou alternativa para aspirar o bem-estar senão a renúncia psicológica e os caminhos da sublimação. Em outros termos, produzir consciência. Ou melhor ainda: ampliar a capacidade da estrutura simbólica do ego. Em termos filosóficos, pensando numa ontologia, ampliando a nossa humanidade. Não há, portanto, como incluir ideias mecânico-hidráulicas nessa concepção, equívoco que Freud nos legou tentando traduzir o fenômeno da repressão Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 27 Dez equívocos teóricos na obra de Freud em metáforas da mecânica física, produzindo traduções como de refoulement em francês, o que levou filósofos como Marcuse (1955) a propugnar por uma liberação das forças de contenção social e, equivocadamente, utilizar o conceito de repressão psicanalítica como um apelo social pela liberação de costumes que inflamou a juventude da década de 60, virou ao avesso tradições e ajudou a psicotizar o ambiente social até os dias de hoje, ora em prol da liberação de drogas, ora em prol da liberação indiscriminada de mensagens e hábitos. Em grande medida em favor de uma vida em que justamente a consciência está (psicanaliticamente) reprimida. Paradoxalmente, o grande movimento pela liberdade tornou-se também o melhor instrumento de repressão, portanto, de inconsciência. Entendendo-se que só consciência produz liberdade. 5 Pré-genitalidade como conduta sexual ao invés de simbolização da sexualidade Ellenberger (1970) em seu alentado estudo sobre A descoberta do inconsciente assinalou com propriedade que, ao contrário do que se pensava a respeito do escândalo causado pela publicação dos Três ensaios em 1905, não houve nem escândalo nem surpresa. A sexualidade infantil já era discutida, assim como as perversões sexuais, e não havia mais na época uma sociedade vitoriana, ao contrário, a lubricidade era assunto quotidiano, claro, não com a pletora pornográfica e a liberação erótica dos dias atuais. Mesmo para a época, o texto de Freud era bem comportado. Dessa obra, bastante clínica e descritiva, firmouse a ideia de uma evolução da vida sexual em três etapas principais. A primeira predominantemente autoerótica; a segunda, vinculada a objetos parciais e a terceira, realizando os objetivos da genitalidade adulta. A primeira e a segunda, Freud as descreveu como pré-genitais e nelas localizou as perversões, entendidas como práticas que excluem a relação sexual adulta, designada como genital, caracteristicamente substituindo a relação adulta, ou pelo autoerotismo, ou por objetos parciais. Fica claro o objetivo dessa publicação, uma vez que atribuiu aos desvios sexuais e às vicissitudes de seus impulsos parciais a causa das neuroses, aliás, de todas as formas conhecidas na época e não apenas da histeria, como estabeleceu especificamente em 1896. Sem dúvida, podemos admirar o cuidado clínico com que realizou a obra, e não é por acaso que passou a ser vista, juntamente com A interpretação dos sonhos (1900), como um dos dois escritos basilares da psicanálise. Contudo, por que esse trabalho se revela mais como um texto fenomenológico que comprometido com a visão psicodinâmica já estabelecida desde o capítulo VII da Interpretação 28 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Abram Josek Eksterman dos sonhos? Mais uma vez a resposta parece ser bastante evidente. Era a época de consolidar a concepção etiológica das neuroses e estabelecer a psicanálise como fator terapêutico específico para essa classe de enfermidade. Psicanálise, naquele período, era um procedimento terapêutico a ser justificado no ambiente científico reconhecido, sem o que poderia ser apreciado como um derivado do mesmerismo, das curas esotéricas estimuladas pelo desenvolvimento do espiritismo já bastante popular na época, e das sociedades orientalistas das quais se procurava guardar grande distância, daí os cuidados na tradução para a língua inglesa da obra de Freud, tentando utilizar vocábulos de maior consistência no quotidiano científico, como assinalou, por exemplo, Bettelheim (1983) a propósito da tradução para o inglês da palavra alemã seele (alma) como mind (mente). Assim como o cuidado que se teve ao tratar de temas como o da telepatia. Livres que estamos nos dias atuais de legitimar a prática psicanalítica de preconceitos epistemológicos e, especialmente, médicos, embora ainda atravessando numerosas crises institucionais e de credibilidade, podemos retomar o tema da pré-genitalidade, como exposta por Freud, numa apreciação psicodinâmica crítica, indo possivelmente um pouco além da mera descrição fenomenológica. É plenamente reconhecido que Freud ampliou o conceito de sexualidade para o de representação psíquica da vida sexual. Aliás, pelo desenvolvimento de seus trabalhos sobre sexualidade, percebemos nitidamente que ele é mestre na análise de conteúdos psíquicos e extremamente precário no entendimento da vida sexual. Em outros termos: hábil na compreensão do conteúdo psíquico e pobre na compreensão da conduta sexual. Sem dúvida, podemos afirmar que Freud, a rigor, nunca foi um sexólogo, como entendemos essa especialidade nos dias atuais. Mesmo não dá para compará-lo nesse aspecto, por exemplo, a um Havelock Ellis. O cenário da especulação de Freud sobre sexo era o da vida mental. Assim, podemos concluir que a etiologia da neurose não considerava a prática sexual, mas a representação psíquica da sexualidade e que as duas neuroses descritas em seus trabalhos clínicos inicias, a neurastenia e a neurose atual, baseadas em especulações sobre energia sexual, traduzidas mais tarde como catexis, são formulações de uma dinâmica muito mais ampla que deveria incluir maior complexidade, e que essas exposições originais devem conter muito mais características metafóricas que descrições realistas de uma etiologia. Muita polêmica já ocorreu por conta dessas designações, e muita especulação teórica ainda sobrevive, dando margem a outras tantas consequências teóricas e clínicas, cuja crítica ultrapassaria o objetivo desta exposição. Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 29 Dez equívocos teóricos na obra de Freud Se aplicarmos a dinâmica transformadora do processo primário para o processo secundário de pensar, podemos, acredito, ter uma versão, diria, mais psicanalítica do que fenomenológica, como está nos Três ensaios. Autoerotismo, no cenário mental, confunde-se com o que descreveu mais tarde como narcisismo, onde o que se leva em conta não é o estímulo, mas a existência (ou não) de objeto do impulso. O objeto do narcisismo é o próprio sujeito, daí os estados mentais autistas e psicóticos graves, nos quais predominam a exclusão do objeto, substituídos por objetos-fantasmas ou fantasias. O quadro polimorfoperverso da infância constitui um avanço do processo primário em busca da realidade sensoperceptual. Os elementos da sensopercepção da realidade começam progressivamente a constituir-se como uma realidade e seus componentes jogam com o sujeito num cenário que Winnicott (1958) poderia designar como de brinquedo. A sexualidade parcial são jogos com objetos parciais. Na sexualidade adulta tem-se consciência do objeto e o outro passa a existir. Tal progressão lembra a grade exposta por Bion (1963) em seus elementos de pensar e como se produz a consciência da realidade, dependendo dos recursos estruturados e formadores do ego, em termos atuais, com sistemas mentais (sofwares) capazes de interagir com a realidade. O balanço entre processo primário e secundário é que permite a consecução de uma sexualidade do feitio genital que antes de estar comprometida com os imperativos do genoma, ao estilo de Schopenhauer, está comprometida com a relação consciente com outra pessoa. Isso, no meu entender, seria a sexualidade madura, capaz de produzir a experiência afetiva que costumamos chamar de amor. Longe, portanto, estamos de um processo evolutivo, da pré-genitalidade para a genitalidade, mas antes, de um processo transformador dos elementos mentais da sexualidade, ora impregnados por elementos do processo primário, ora por elementos da sensopercepção comprometidos com a realidade e mediados pelo processo secundário. Desta forma, as chamadas patologias do comportamento sexual cedem espaço para uma compreensão psicodinâmica dependente do balanço entre fantasia e realidade e as chamadas perversões teriam mais a ver com a institucionalização de comportamentos para evitar a irrupção maciça de processo primário e subsequente destruição maior ou menor da estrutura do ego, produzindo em consequência um surto psicótico. Tal formulação ficou muito nítida nos textos de Freud especialmente no caso Schreber. Assim, o estudo da patologia deslocase do comportamento para a dinâmica mental e possivelmente podemos extrair disso não terapêuticas reformuladoras de condutas, mas recursos psicológicos 30 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Abram Josek Eksterman para estimular e implementar novas transformações psíquicas, que é, no meu entender, a essência da intervenção psicanalítica. 6 Ênfase no comportamento saudável ao invés da organização saudável de significados (levando a um ego saudável) Freud inicia seu fundamental trabalho Análise terminável e interminável (1937) com uma advertência do tipo que deveria ser óbvio para todo psicanalista: “Experience has taught us that psycho-analytic therapy – the freeing of someone from his neurotic symptoms, inhibitions and abnormalities of character – is a time-consuming business” (p. 216). É uma observação nitidamente de estilo médico a respeito do objetivo da terapêutica, qual seja o de restabelecer um estado considerado saudável, perturbado pela irrupção de anormalidades da vida mental. Não há nenhuma novidade nisso: toda a obra de Freud trata a clínica psicanalítica como uma empreitada de cura. Contudo, curiosamente, a palavra cura está ausente em toda a sua obra. Mesmo no original em alemão, a palavra da frase citada é Befreiung3 (libertar). Vale lembrar que a conceituação de Freud de psicanálise era a de um método de investigação, uma teoria e uma prática terapêutica da vida mental4. Por que, em uma época de tão acirrada polêmica quanto ao método psicanalítico, Freud não utilizava a palavra cura ao referir-se à terapêutica? Mais uma vez, é verdade, em sua autobiografia que desde cedo não tinha vocação para médico. Ele próprio estava, desde sua autoanálise, como Alice no mundo do espelho, preso na investigação do imaginário, do sonho, da fantasia, dessa massa mitológica e mitopoética que é nossa vida mental profunda. De fato, sua capacidade especulativa é assombrosa. E efetivamente eletrizou a elite intelectual que o leu e acompanhou, mesmo seus detratores. E produziu, ao longo de todo século XX, um frêmito de fascínio equivalente ao que produzem as modernas bandas de música popular. Mesmo hoje, se aparecesse já velhinho, magro e pequeno, com seus trajes formais, como aparece nas fotografias e com seu indefectível charuto num palco armado em um parque capaz de abrigar Erfahrung hat uns gelehrt die psychoanalytische Therapie, die Befreiung eines Menschen von seinen neurotischen Symptomen, Hemmungen und Charakterabnormitäten, is eine langwierige Arbeit. 4 No artigo para a Enciclopédia Britânica, assinala: “He [Freud] invented the term psychoanalysis, which in the course of time came to have two meanings: (1) a particular method of treating nervous disorders and (2) the science of unconscious mental processes, which has also been appropriately described as ‘depth-psychology’” (1926[1925], p. 264). 3 Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 31 Dez equívocos teóricos na obra de Freud um milhão de pessoas, certamente os lugares para vê-lo seriam disputados no câmbio-negro. É sem dúvida o ícone inconteste do século XX, assim como o foi Napoleão no século anterior. Tornou-se o desbravador desse mundo fantástico que é a fantasia humana e percebeu nessas fantasias a origem da patogenia psicológica. E decidiu, como diria Ricoeur (1965), desilusionar esse ser sofrido que é o homem de sua autointoxicação pelo imaginário. Certo ou não, parece-me essa a razão porque, tentando ter uma linguagem médica, científica, resvalava para a linguagem poética e, tentando ser um historiador, era preponderantemente um dramaturgo. Criticá-lo por isso é tentar destituir a psicanálise de seus méritos, é tentar extinguir uma cultura inteira que se erigiu sobre milhares de trabalhos de observação de seus seguidores sobre a natureza e comportamento humanos, imitando Scipião ao conclamar os romanos para destruir Cartago. Delenda psicanálise, poderiam clamar hoje os adeptos de uma nova ciência baseada na neurofisiologia (afinal, nada nova). Ao contrário, mais uma vez parece-me a hora de reunirmos as vozes discordantes, os xiitas de todos as facções psicanalíticas e psicológicas (se isso for possível) e conclamá-los a unirem-se para entenderem a natureza da vida mental, que era a permanente ansiedade de Freud. Teve êxito em sua empreitada terapêutica? Foi efetivamente um curador? Ao que consta, teve muitos fracassos e os casos que expôs, desde sua adesão às conclusões otimistas de Breuer sobre a cura realizada em Anna O. e os subsequentes casos relatados nos Estudos sobre histeria (1893-1895), na apreciação crítica de Mikkel Borch-Jacobsen em trabalho (Lê médecin imaginaire), incluído na alentada obra organizada por Catherine Meyer que, provavelmente inspirada em George Lucas e no seu personagem Darth Vader, a entitulou Lê livre noir de la psychanalyse, também o foram, assim como o caso do Homem dos lobos (Sergei Pankelejeff). J. Allan Hobson, professor de psiquiatria em Harvard, em publicação de 1987 sob o título Psychoanalysis on the couch assinala tal paradoxo e sugere sérias revisões em suas posturas. Tais críticas sempre me foram úteis para aprimorar meu trabalho clínico, considerando que sendo menos um pesquisador que um terapeuta, percebi que Freud era mais um pesquisador que um terapeuta. Bem mais. E creio que nisso cometeu seu maior equívoco, quando fascinado por sua pesquisa, precisava provar suas linhas teóricas, e o fez de maneira denodada ao longo de toda a sua vida. Está fora de questão, como falam seus detratores, que era um mentiroso, mas apenas alguém mobilizado pela importância de suas próprias descobertas e escotomizado por elas. Percebi, como professor de psicanálise em meu Instituto de Formação, do qual cheguei a ser diretor, que o 32 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Abram Josek Eksterman didata insistia em induzir seu aluno para sua forma de pensar, bem como o aluno maquiava seus relatórios para o julgamento da Comissão de Ensino. Não creio que esse tipo de disfarce seja um fenômeno local, mas tem sua origem nesse modelo herdado do fundador da psicanálise, de precisar provar o afirmado. São inúmeras as críticas a essa condução perversa de material científico e todas elas recebem, nesse sentido, meu integral apoio. Por outro lado, creio que Freud tateava entre uma explicação causal e uma formulação hermenêutica, que produziu duas linhas de pensamento psicanalítico, aparentemente antagônicas, uma adotando os princípios estruturais inspirados em O ego e o id (1923) e outra no modelo topográfico e no princípio da causalidade, segundo o qual o inconsciente causa os sintomas da patologia mental. Não creio que Freud, com os recursos da época, poderia formular o problema de maneira diferente. A reflexão em torno de ciências naturais e do espírito estava começando no debate epistemológico da filosofia. Mas é incrível que ele próprio tenha aberto o caminho, sem disso se aperceber, dividindo-se em dois Freuds. Seria possível atribuir a um conceito imaterial como inconsciente a materialidade de fonte causal? A solução é conquistada conceitualmente com a teoria de sistemas e com a teoria posterior do caos que procuram entender complexidades. Por enquanto, dentro das perspectivas e recursos mais atuais, é possível se pensar o seguinte, como ações terapêuticas integradas: a)para os transtornos nos quais se observam vínculos causais, a ação terapêutica seria mais neurobiológica que psicológica, com exceção para a dinâmica da histeria, na qual a psicanálise é o instrumento de eleição; b)para os transtornos de vínculo humano, manifestamente nas relações interpessoais, a ação terapêutica deveria dar prioridade aos conhecimen tos psicanalíticos; c)para os transtornos de natureza simbólica, unipessoal, a intervenção poderia ser beneficiada pela interpretação psicanalítica e por elementos do cognitivismo, salvo aquelas alterações nitidamente psicóticas, marcadamente causadas por distúrbios neurofisiológicos. E para concluir esse item, algumas observações relativas a comportamento, cuja natureza é um estudo específico da psicologia geral, da qual justamente Freud pretendia distanciar a psicanálise. Pergunta-se Freud quando uma análise pode ser dada como concluída. Responde: Just [when] the patient shall no longer be suffering from his symptoms and shall have overcome his anxieties and his inhibitions; and secondly [when] the analyst shall judge that so much repressed Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 33 Dez equívocos teóricos na obra de Freud material has been made conscious, so much internal resistance conquered, that there is no need to fear a repetition of the pathological processes concerned (1937, p. 219). Assim entendemos que a ênfase sutilmente recai sobre os resultados no comportamento e não na avaliação das conquistas sobre a estruturação do ego e na sua competência em lidar com os desafios da vida sobre as quais pouco ficamos sabendo. Creio que isso levou muitos bons analistas a confundirem sucessos sociais, pecuniários, acadêmicos, sexuais como indicadores de êxitos terapêuticos, diante dos quais um psicanalista de minhas relações comentou: apenas behaviorismo disfarçado. 7 Ênfase na normalização ao invés de geração de consciência Existe realmente algo que podemos estabelecer como normal em termos de vida psicológica? É verdade que com algumas hesitações conseguimos discriminar distúrbios e sofrimentos. Mas o normal seria o equivalente a não haver distúrbios ou sofrimentos? Realmente sabemos o que é um ego normal? Em O ego e o id (1923) esse tema é descurado. No trabalho sobre A realidade na neurose e na psicose (1924), Freud assinala que: “We call behavior ‘normal’ or helalthy’, if it combines certain features of both reaction – if it disavows the reality as little as does a neurosis, but if it then exerts itself, as does a psychosis, to effect an alteration of that reality” (p. 185). É digno de nota que nesse trecho põe entre aspas as palavras normal e saudável, enfatizando o relativismo de seus significados e seu compromisso com o que ocorre na dinâmica da neurose e da psicose. Efetivamente ficamos sem saber o que é um ego normal, mas entendemos, justamente em Freud, que uma das funções do ego é estabelecer a partir de uma administração das relações entre as fantasias instintivas do id e as demandas da realidade sensoperceptual e da realidade cultural um funcionamento normal da vida psíquica. A rigor não existe um ego normal, mas uma capacidade de viver normalmente. O que se revela ao terapeuta não é um ego doente, mas seu funcionamento precário. Isso antecipa a análise posteriormente realizada por Hartman em uma comunicação de 1950 (Comments on the psychoanalytic theory of the ego), incluída em seus Essays on ego psychology (1964). Em Freud não conseguimos apurar o que vem a ser uma pessoa normal e um aparelho psíquico saudável, embora todo procedimento psicanalítico convirja para o restabelecimento de uma normalidade que não está definida. Contudo, fica-se sabendo como se formam sintomas 34 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Abram Josek Eksterman neuróticos e esse é o tema central de toda a teoria em Freud. Poderíamos quase dizer que sua obra é uma vasta exposição da patogenia da neurose, do sofrimento neurótico, individual, coletivo, antropológico. Ninguém melhor do que Freud nos fez entender a natureza do conflito psíquico e, certamente, ninguém antes dele conseguiu pensá-lo, salvo a literatura. Só isso justificaria a reputação e a reverência que o mundo científico lhe consagra bem como daqueles que se dedicam ao estudo da vida mental. Mas, salvo esboços, praticamente pouco sabemos, através dele, como concebia a normalidade para a qual destinava todo o esforço psicanalítico. Como se essa normalidade fosse um axioma para todos, assim como a sólida estrutura burguesa do final do século XIX, como acentuou Ellenberger (1970). Talvez essa seja a razão porque ficou o mito de que todos somos neuróticos, ou todos doentes, ou todos necessitados de uma psicanálise. E que, portanto, qualquer pessoa que procure ajuda de um psicanalista deva ser submetido à análise, uma vez que ela só traria benefícios, propiciando uma ampliação do autoconhecimento e das capacidades adaptativas do ego. Deixa-se, assim, de se considerar duas providências indispensáveis da clínica: o diagnóstico para justificar a indicação de um procedimento terapêutico e a análise teórica das indicações terapêuticas na pressuposição que a intervenção psicanalítica só pode ser benéfica, o que a experiência mostra que é falso. O caminho para a idealização da intervenção psicanalítica estava aberto e justificado, embora falaciosamente, assim como sua progressiva transformação em um bem de consumo social, eventualmente elegante e promotor de uma classe de analisandos que avocavam a si privilégios de mentores, ou de seres especiais capazes de compreender os segredos esotéricos, profundos, da natureza humana. O que obviamente facilitou também o progressivo descrédito da psicanálise e de se suas aplicações. Fazer análise com tal ou qual analista era ostentado como um elevado bem curricular que garantia ascensão intelectual e benefícios sociais, notadamente entre as décadas de 70 e 80 do século passado. Naturalmente para a satisfação dos detratores da psicanálise e do desespero daqueles que conheciam suas notáveis conquistas e igualmente suas limitações. Bastaria o alerta de que a psicanálise não produz necessariamente normalidade, mas consciência. E consciência não é a solução para a normalidade, mas o instrumento para organizar a estrutura simbólica do ego, fazê-lo funcionar de forma adequada para administrar os desafios da realidade, para estabelecer vínculos estáveis com pessoas e orientar as demandas biológicas de acordo com as possibilidades da existência cultural. Fazer psicanálise não é um passaporte para a saúde, mas a aquisição de um instrumento especial para administrar a vida humana que é consagrada pelo uso da consciência. Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 35 Dez equívocos teóricos na obra de Freud Especialmente a intervenção psicanalítica nas doenças somáticas foi frequentemente desastrosa. De certa maneira os conceitos de conflito psíquico como promotor de distúrbios funcionais do corpo, bem como de lesões somáticas (o que estabeleceu a medicina psicossomática no século XX) promoveu uma avalanche de tentativas psicanalíticas para tratar etiologicamente doenças físicas, bem como uma profusão de trabalhos alentadores e otimistas a indicar que se havia descoberto finalmente a panaceia, esta agora cientificamente fundamentada. Evidentemente, a análise crítica dessas tentativas mostrou o quanto de fantasia terapêutica continha, muito embora tenha contribuído para o extraordinário enriquecimento da compreensão do doente, portador de doenças, daí se originando estudos de antropologia médica e de psicologia médica. Ainda não encontramos nem o lugar, nem a pessoa, nem o remédio que nos livre definitivamente do sofrimento, ou da patologia. A psicanálise não foi a resposta, mas ainda é um caminho a ser percorrido em busca de novas respostas. 8 Modelo das ciências naturais analisando sintomas ao invés do modelo cultural, criando um meio para uma análise estrutural da vida mental Discutir a psicanálise dentro de um contexto científico é a tarefa que continua atual e que os grandes nomes, tanto da epistemologia quanto da psicanálise, ainda não chegaram a nenhum acordo. Há muitas sugestões, mas o problema da cientificidade da psicanálise continua em aberto. É interessante o comentário do próprio Freud em uma carta a Jones, depois de uma visita de Einstein, carta citada por Hartman (1964): He has had [referindo-se ao Einstein] the support of a long series of predecessors from Newton onward, while I have had to hack every step of my way through a tangled jungle alone. No wonder that my path is not a very broad one and that I have not got far in it. Enquanto se discute, nós pobres praticantes ficamos sem saber se o que estamos ouvindo de nossos pacientes é real ou não, se nosso diálogo com eles é confiável ou não, se os nossos resultados terapêuticos existem ou não, se, enfim, somos charlatães ou terapeutas confiáveis? Mais de cem anos se passaram e a comunidade científica ainda não chegou a uma conclusão se nossa prática pode receber a benção da credibilidade científica. 36 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Abram Josek Eksterman Creio que a questão é mais séria e tem a ver com a distância com a qual nós todos, como seres humanos, protegemo-nos de conhecer a nós mesmos. Não é por acaso que o produto mais utilizado e de maior circulação no mercado humano é o alienante. Seja esse alienante álcool, drogas, fumo, ilusões, fantasias ou distratores de uma maneira geral. Vivemos fugindo de nós mesmos e sem o conhecimento de nós mesmos ficamos estúpidos, realizamos atos estúpidos, e acreditamos em coisas estúpidas. O século XX, marcado pelo esforço da psicanálise em conhecer o homem, foi ao mesmo tempo o século marcado pela maior onda de realizações estúpidas que o ser humano conseguiu perpetrar. A realização do diálogo faustiano, entre consciência e estupidez, ou irracionalidade, mostrou-se em toda sua pujança dialética e os nossos dias são herdeiros desse encontro titânico. A discussão se a psicanálise é ou não científica parece-me também estúpida, para desviar-nos do que é essencial. É essencial sabermos quem somos e o que estamos fazendo. A partir de Freud sabemos que somos basicamente irracionais, utilizando com maior ou menor frequência os instrumentos racionais penosamente criados por nossa cultura, mas frequentemente, apesar disso, continuamos a ser irresponsáveis, predadores, instintivos, impulsivos, narcisistas, egoístas, e, finalmente, estúpidos. Ao mesmo tempo, percebemos que com um pouco mais de consciência podemos descobrir a nossa humanidade e descobrir que a humanidade existe. Assim, a tarefa é diferente. Não é questionar se a psicanálise é científica, mas qual ciência (se é que existe) pode conferir credibilidade a esse formidável instrumento de humanização descoberto por Freud. Através da produção de consciência, que é o objetivo máximo do ato psicanalítico. E com isso nos tornarmos responsáveis, cultivadores, racionais, altruístas e, finalmente, aprendermos a amar, palavra que se tornou banal no mercado das ambições, assim como seu corolário imediato: a ética. No início do século XX, vários filósofos, entre os quais W. Dilthey ensaiou uma distinção entre ciências da natureza, ou ciências físicas, e ciências do homem, ou ciências culturais. Curiosamente a medicina continua situada entre as ciências da natureza, como um ramo da biologia. Isso criou particularmente para mim, que me dedico na Universidade à psicologia médica e à antropologia médica, um problema curioso. O de precisar convencer meus colegas médicos de que o ser humano não é só um corpo. Que a existência humana é, sobretudo, cultural e de que cuidar do ser humano é considerar sua dimensão psicossocial, diferente de psicossomática, que procura estudar principalmente as relações etiológicas da patogenia mente/corpo, sem o que o doente no ato médico é descaracterizado como ser humano. Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 37 Dez equívocos teóricos na obra de Freud Um grupo sueco classificou a psicanálise dentro das chamadas ciências hermenêutico-dialéticas, como, por exemplo, a história. Parece-me que a tentativa de unificar todo o conhecimento dentro de uma mesma metodologia seja um convite à cama de Procusto e ao farisaísmo intelectual. Freud repudiava farisaísmos intelectuais e acredito que sua aversão por digressões filosóficas tinha muito a ver com isso. Sem dúvida, era um pensador e um especulador, mas, ao mesmo tempo, com repulsa pelo esmiuçamento exegético de textos. É raro, por exemplo, vê-lo citar em sua obra, ou se valer da autoridade dos mentores do pensamento, dos quais, por outro lado, era também leitor assíduo. Com isso perdeu a oportunidade de utilizar os recursos dessa nova reflexão epistemológica, nascente na época, e renunciar a linha científico-natural com a qual procurou plasmar a teoria psicanalítica. E deixou para nós a tarefa de desenvolver uma teoria psicanalítica do vínculo humano, ao invés de uma teoria psicanalítica das relações mente-corpo. 9 Transferência como reedição histórica ao invés do significante aberto para o significado A linguagem emocional decifrada por Freud e descrita por ele como processo primário de pensar, juntamente com a teoria da transferência que nos permite avançar no entendimento da dinâmica do vínculo humano, são os eixos fundamentais da prática e da teoria psicanalíticas. Esses, como eu entendo, são os personagens centrais de uma variada trama de teorias e afirmações, algumas tentando confluir, outras se dispersando em escolas de pensamento psicanalítico, umas quantas expurgadas do cânone, e não se sabe quantas outras estão para nascer e reivindicar seu posto privilegiado de observação na arena intelectual dessa imensa complexidade que é a mente humana. Na verdade, com esses dois eixos teóricos poderíamos realizar a aventura de penetrar no âmago da experiência humana, ao lado de um companheiro de aventuras, qual Virgílio, e dizer como Dante, logo no 3o canto da Divina Comédia: Before me nothing was but things eternal, and I endure eternally. Abandon all hopes, you who enter here. These words, dark in hue, I saw inscribed over an archway. And then I said: ‘Master, for me their meaning is hard.’ And he, as one who understood: 38 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Abram Josek Eksterman ‘Here you must banish all distrust, here must all cowardice be slain. ‘We have come to where I said you would see the miserable sinners who have lost the good of the intellect5. Setecentos anos antes de Freud, Dante já havia descoberto o caminho, dentro da maneira de expressar-se da época e que lhe valeu igualmente o ódio de seus conterrâneos de Florença, condenando-o ao exílio. Hoje, revendo as afirmações de Freud, podemos ampliar suas afirmações quanto ao processo primário de pensar, quanto ao que se refere à transferência, tentando corrigir os postulados, diria discretos, originais, e que produziram na prática intervenções apenas tímidas na experiência de relações, base como se viu de toda prática psicoterápica. O conceito de processo primário de pensar nasceu da tentativa de decifrar o significado dos sonhos, tarefa equivalente, senão de muito maior relevância, ao que Champollion realizou com a pedra de Rosetta, oitenta anos antes. Ainda hoje estamos impactados com esta descoberta de Freud: a descoberta de nossa intimidade emocional. Obviamente não foram os segredos da sexualidade infantil que escandalizaram a comunidade já um tanto lasciva do início do século XX, mas esse terrível instrumento de pôr a descoberto a hipocrisia, a mentira, o disfarce, a traição, a bestialidade, e todo o horror de impulsos indignos, pondo por terra as fantasias de autoidealização e, especialmente, de magnificação da natureza moral do ser humano, denunciando suas limitações, suas canalhices, suas baixezas, embora, ao mesmo tempo, destacando sua luta de autosuperação, seus conflitos morais, sua grandeza criativa, sua busca por consciência, por aperfeiçoamento moral, por aprimoramento na arte extremamente difícil de viver uma vida humana. A rigor, Freud reencenou a viagem realizada por Dante, mostrando que a grandeza só pode ser obtida se a iniciarmos passando pelos rios Cocito, Aqueronte e Lethe e penetrando fundo no Inferno. Os sonhos, diz Freud, são formas de pensar os desejos pela imagística do processo primário. São formas pré-racionais de reclamar realizações, através de fantasias, ilusões, alucinações, que se expressam na vida consciente como “Dinanzi a me non fuor cose create / se non etterne, e io etterno duro / Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate / Queste parole di colore oscuro / vid’ io scritte al sommo d’una porta / per ch’io: “Maestro, il senso lor m’è duro.”/ Ed elli a me, come persona accorta: / “Qui si convien lasciare ogne sospetto; / ogne viltà convien che qui sia morta. / Noi siam venuti al loco ov’ i’ t’ho detto / che tu vedrai le genti dolorose / c’hanno perduto il ben de l’intelletto”. 5 Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 39 Dez equívocos teóricos na obra de Freud lendas, mitos, ficções, que desde tempos pré-históricos são impressos em produtos culturais. É o homem recriando a si mesmo, já desprovido de seu habitat natural, seu paraíso terreno, e obrigado a vestir-se de fantasias e símbolos para sobreviver. Desejos são a energia de vínculo e só são compreendidos na experiência de vínculo. Freud, comprometido com as ciências naturais, qualificou um dos pólos do desejo como sujeito e o outro como objeto. Aparentemente simples, mas equivocado. O outro pólo também é um sujeito e ambos formam uma estrutura interdependente, na verdade um sistema diádico que funciona ele próprio como nova unidade em novas relações interdependentes. A estrutura diádica não é mantida já pelo desejo original, mas por organizações simbólicas, capazes de dar sentido àquela nova unidade. É aí que se forma a consciência, na inter-relação humana, mercê da trama simbólica que mantém essa unidade. A trama simbólica é virtual, é o próprio software que compatibiliza os elementos em relação. Nesse sentido, transferência não é um item de recuperação de memória, mas representa a emergência de elementos da experiência, precariamente simbolizados, para a experiência consciente e apresentados em um novo vínculo para receberem elementos capazes de traduzi-los e convertê-los em partes da trama simbólica atual. Não é o passado se recriando no presente, causando-o, mas o passado se insinuando no presente para ser atualizado, elaborado em uma nova relação. O fenômeno transferencial é o âmago da elaboração psicanalítica porque ela retira a experiência simbólica do espaço emocional, sendo então capaz de impelir essa experiência emocional para a consciência através de uma reencenação do passado na realidade, transformando esses elementos em conteúdos conscientes capazes de serem elaborados psiquicamente. Como um significante que adquire significado. Se pudermos realizar essa tarefa de converter essas urgências mal elaboradas do passado em conteúdos psíquicos conscientes dentro de um laboratório terapêutico, creio que teremos realizado nossa tarefa psicanalítica, claro que em um meio adequado para que esse laboratório terapêutico funcione. 10 Ênfase nas experiências biológicas ao invés das experiências existenciais Ao completar 70 anos, Freud escreve a Romain Rolland: Unforgettable one! By what troubles and sufferings must you have fought your way up to such a height of humanity as yours! Long 40 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Abram Josek Eksterman years before I saw you, I had honoured you as an artist, as an apostle of the love of mankind. I was myself a disciple of the love of mankind, not from sentimental motives or in pursuit of an ideal, but for sober, economic reasons, because, our inborn instincts and the world around us being what they are, I could not but regard that love is less essential for the survival of the human race than such things as technology. And when at last I came to know you personally, I was surprised to find that you can value strenght and energy so highly and you yourself embody such force of will. May the next decade bring you nothing but fulfillment (1927-1931, p. 279). Que notável contraste entre o conteúdo deste bilhete a um dos expoentes do humanismo literário do século XX, com os textos habituais de Freud, enxugados aparentemente de qualquer expressão afetiva, claros, concisos, mesmo sem serem secos, às vezes contraditórios, mas bem germânicos e contidos, onde não dá para esperar nenhum ponto de exclamação. Aparentemente seu entusiasmo fica oculto pela descrição minuciosa além de uma exaustiva análise de conteúdo perpassada por um dissecação teórica, sem qualquer arrebatamento, como convinha a um expositor de ciências naturais. Não dá para aceitar um viajante caminhando pelos escuros recônditos da alma, contido e fleumático como um turista britânico educado, como foi Freud desbravando a intimidade emocional do ser humano e ainda por cima recomendando neutralidade na interação clínica, como se isso fosse possível. Nunca acreditei que uma interação humana autêntica (e a interação psicanalítica para sê-lo só pode ser autentica) pudesse ser neutra. Para Freud, pelo que depreendemos de sua atitude ao longo de sua vida, a posição diante do paciente não devia ser neutra, tinha que ser neutra como uma disciplina monástica para evitar perigosos envolvimentos, produzindo uma lei seca afetiva na prática psicanalítica, com resultados eventualmente desastrosos como podemos inferir das cifras divulgadas de envolvimentos sexuais e perversos entre terapeuta e paciente. Criou-se para esse envolvimento a expressão contratransferência, impedindose em grande medida, com esse rótulo limitante, de compreenderem-se as sutilezas da intimidade real da psicodinâmica diádica. É interessante assinalar que aos transgressores dessa lei seca afetiva só restou impor disciplina rígida no melhor estilo medieval, ao invés de um estudo aprofundado da trama afetiva que ocorre na interação terapêutica. Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 41 Dez equívocos teóricos na obra de Freud Nesse trecho a Romain Rolland revela-se o Freud amante da humanidade, projetado sobre o grande escritor, da mesma forma como fez sobre Pfister, sobre Schnitzler e, sobretudo, sobre Thomas Mann. Assim como, num momento de desespero, o macambúzio e contraído Beethoven se revelou como um grande amante da humanidade no testamento desesperado de Heiligenstadt. Será que o amor à humanidade não é um tema merecedor de atenção científica? Será que o tema mais importante e sagrado de nossa condição humana só pode ser tratado pela arte, seja pela poesia, pela ficção literária, pela pintura e escultura, pela música, enfim, através das Musas? Será que o Gnothi Seauton terá que ficar mesmo fora de conhecimento e tornar-se habitante exclusivo dos domínios da crença? Freud iniciou essa empresa heróica de maneira sistemática. Cumpre-nos, como seus discípulos, continuá-lo e saber que ele apenas balbuciou as primeiras fases desse longo estudo. Como diz Virgílio a Dante: Ogni viltà convien que sia morta (que toda covardia seja morta). Numa viagem circunstancial, passando de carro pela Borgonha, vi uma placa numa estrada secundária com o aviso que estava entrando em Clamecy, e logo abaixo, cidade natal de Romain Rolland. A emoção foi tal que parei o carro no acostamento tomado de intensa emoção, como se estivesse entrando num santuário. E pode ser diferente ao nos reencontrarmos com aqueles expoentes que marcaram as diretrizes de nossas vidas, impregnaram-nas com os seus ideais e a elas deram sentido? Quando Romain Rolland completava 70 anos, Freud homenageou o amigo com uma carta que ao mesmo tempo é um precioso trabalho que ele intitulou: Um distúrbio de memória na acrópole. Conta-nos que realizando uma viagem de férias a Corfu com o irmão mais novo (curiosamente da mesma idade de Romain Rolland) foi persuadido por um conhecido em Trieste, etapa da viagem, a aproveitar os dias de férias para ir a Athenas, programa que certamente os agradaria mais. Após muita relutância resolveram aceitar a sugestão e embarcaram para a Grécia. Na Acrópole, Freud nos conta que exclamou (exclamação rara em seus textos): “So all this really does exist, just as we learned at school!” (1936, p. 241). A continuação desse trabalho desenvolve um incrível raciocínio sobre essa frase, mostrando o quanto a realidade é importante sobre o que aparentemente já registramos como conhecimento intelectual. Saber é viver. Como diria Korzybski (1958): “Mapa não é território”. Athenas existe, eu existo, o outro existe. A enormidade desta experiência avassalou Freud como avassala cada um de nós quando vive a realidade da experiência, experiência que temos chamado de insight. Em termos psicanalíticos, a realidade do encontro humano. 42 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Abram Josek Eksterman O ser humano, na experiência psicanalítica, certamente não é o objeto biológico de estudo de um médico, que examina, faz diagnóstico, trata e pretende curar. O ser humano, sobretudo na relação psicanalítica, é uma experiência existencial, exclusiva entre seres dotados de consciência. Esta é a característica da experiência psicanalítica, ressuscitando a cena da experiência diádica do mito da Gênese bíblica, no primeiro encontro humano depois do casal original provar o fruto da árvore do conhecimento. A relação psicanalítica é precisamente uma relação transformadora da objetividade biológica para subjetividade humana. Se encontrarmos o método apropriado, acredito que seja possível submeter essa subjetividade ao rigor científico e conferir credibilidade a nossos atos terapêuticos regulares. Esse é o desafio que permanece, desde A interpretação dos sonhos. Vários eminentes autores tentaram esta difícil travessia do biológico ao existencial, lembrando Ludwig Binswanger, Meddard Boss, Viktor Frankl, Rollo May, sem falar nos chamados culturalistas, particularmente Erich Fromm. Obviamente não creio ser possível misturar todas essas posturas sem correr o risco de desfigurar todas e descaracterizar a psicanálise. Mas, creio que devemos ter a humildade de estudálas e transcendê-las. E realizar o que Freud desejou, mas contemplou à distância do alto da Acrópole: a humanidade do homem. Ten psychoanalytical mistakes in Freud’s theory Abstract: The author reviews ten paradigmatic questions in Freud’s writings that along the time were either misunderstood or exposed by Freud in an ambiguous way leading to technical and clinical mistakes. Such mistakes contributed to dispersions on psychoanalytical techniques and theories. The author also suggests that the use of the etiological model of Medicine beyond the frequent use of the phenomenological diagnosis instead of the psychodynamic one, inevitable at the time when Freud exposed his ideas, permitted such ambiguities and its consequences. Likewise will be reexamined: 1) the search for the unconscious instead of “how consciousness is formed”; 2) the pathogenicity originated from defense mechanisms instead of its ego’s aspects regarding protective functions; 3) one person psychology (which leads to neuropsychology) instead of diadic psychology, or relationship psychology; 4) repression understood as a defense pressure instead of the dissociation of the significant from its meaning; 5) the pregenitality as sexual conduct instead of the symbolism of sexuality; 6) emphasis on healthy behavior instead of healthy organization of symbolic structure (leading to a healthy ego); 7) emphasis on normalization instead of generating consciousness; 8) natural scientific model of analyzing symptoms instead of cultural model so creating Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 43 Dez equívocos teóricos na obra de Freud a medium for a structural analysis of mental life; 9) transference as historical reedition instead of significants open to meanings; and finally 10) emphasis on biological experience instead of existential experience. Keywords: Concept formation. Freudian theory. Psychoanalysis. Referências ADLER, J. M. Ten phylosophycal mistakes. New York: Kindle Ed, 1985. BETTELHEIM, B. Freud and man’s soul. New York: Alfred A. Knopf, 1983. BION, W. R. Elements of psycho-analysis. London: William HeinemannMedical Books Lt, 1963. BOWLBY, J. Attachment and loss: attachment. v. 1. New York: Basic Books, 1969. CASSIRER, E. Antropologia filosófica. São Paulo: Mestre Jou, 1972. Originalmente publicado em 1944. ELLENBERGER, H. El descubrimiento del inconsciente. Madrid: Gredos, 1976. Originalmente publicado em 1970. FREUD, A. The ego and the mechanisms of defense. New York: Int Univ. Press, 1936. FREUD, S. (1891). La afasia. Buenos Aires: Nueva Visión, 1973. ______. (1893-1895). Studies on hysteria. v. 2. In: The standard edition of the complete psychological works of Sigmund Freud. London: The Hogarth Press, 1964. ______. (1900). The interpretation of dreams. v. 4. 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Abram Josek Eksterman Rua Visconde de Pirajá, 595 22410-003 Rio de Janeiro – RJ – Brasil e-mail: [email protected] 46 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Mal-estar na cultura hoje: O atual e a atualidade em psicanálise. Pertinência de nossas ferramentas psicanalíticas freudianas Adriana Sorrentini1 Resumo: Consideramos o mal-estar na cultura com as suas manifestações que incidem fortemente na atitude de reação diante da psicanálise, quer seja em um imaginário social ou como nos próprios analistas. A sessão psicanalítica estabelece um campo não espacial e atemporal, contido por um enquadramento abstinente. A abstinência promove a frustração e instala a transferência e o desenvolvimento trágico-incestuoso, cujos protagonistas são o analisado e o analista. Consideramos a transferência e a contratransferência, tanto a intrapsíquica como a transferência na pessoa do analista, quem passa de ser uma representação a objeto original, sujeito do amor da transferência e da reação terapêutica negativa, impondo analisar a contratransferência. A intensidade da transferência de conteúdos sepultados, atuais, com qualidade somática, levam a pensar em uma transferência atual, vivencial amplia a análise das patologias atuais. Palavras-chave: Contratransferência. Interpretação. Neurose atual. Psicanálise. Transferência. Membro Titular e Didata da Associação Psicanalítica Argentina. 1 Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 47 Mal-estar na cultura hoje: o atual e a atualidade em psicanálise. A exigência atual para o tratamento psicanalítico faz lembrar o que Freud teve que enfrentar em 1926 – Psicanálise. A terapia psicanalítica devia ser cito, tuto, jucund − rápida, confiável e agradável. Expectativa instalada no espírito contemporâneo, de ação mais do que reflexão, decidido a conjurar velozmente a angústia, antes que ter que analisá-la. Enfrentamos assim o consumo desmedido de álcool ou de droga entre os adolescentes que procuram adormecer os seus medos diante do encontro com o outro, com a sexualidade, com a diferença. Situação naturalizada ou banalizada entre os adultos. Em 1916, a passagem da hipnose para o método psicanalítico obrigou Freud a explicar porque era conveniente abandonar um método rápido e indolor, tanto para o paciente passivamente liberado de seu mal-estar como para o analista, que dessa maneira evitava participar do processo transferencial, submergir-se no seu inconsciente e reconhecer-se como instrumento da cura. Hoje, a discussão sobre a psicanálise continua. Dispomos de eficientes psicofármacos para suprimir os sintomas, curas mágicas através de pessoas com poderes e variadas terapias alternativas, persistindo a aspiração de eliminar rapidamente a angústia e todas as suas manifestações, sem analisar, reprimindo todo saber, que sempre é doloroso. Desta forma surgem, hoje em dia, propostas inovadoras como o cognitivismo e o conductismo, devidamente considerados por Freud, sobretudo quando, no seu Esquema de psicanálise (1938), volta a considerar o somático como o psíquico autêntico devido a sua qualidade inconsciente. O consciente, a explicação e as indicações expressas versus a exploração do inconsciente, a análise e a possível síntese egóica posterior. A urgência, a imediatez e a vertiginosidade da vida atual, a predominância da imagem, a realidade virtual que permite a ilusão de ter acesso a tudo e que já dão conta de uma modalidade estrutural de características pulsionais e de ação, pouco propensa à reflexão, com um pensamento concreto, metonímico − como o objeto de desejo − e perda da metáfora como movimento ao discernível, ao visível, objeto do amor que desenha a cristalização interna do fantasma, segundo Kristeva (1984). Atualmente, convive a passividade do Homo videns (SARTORI, 1999) que, hipnotizado pelas imagens que o deixam alucinado, exige tratamentos que alienam ao ego submetendo-o a engolir o remédio, com uma realidade externa que avassala tempo e espaço, onde tudo sucede aqui e agora, impactando traumaticamente em cada espectador que participa da cena. Freud continua vigente também no sociológico através do Mal-estar na cultura (1930). Entre outras coisas, ele cita três lados em que o sofrimento nos 48 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Adriana Sorrentini ameaça: “Desde o próprio corpo que, destinado à ruína e à dissolução, não pode prescindir da dor e da angústia como sinais de alarme; desde o mundo exterior […], desde os vínculos com outros seres humanos” (p. 76). Para contrabalançar este sofrimento, a cultura ou a civilização tenta fazer com que o mundo seja mais hospitaleiro e menos perigoso, e tenta obstruir estas três fontes da infelicidade humana. Isto implica impor restrições aos indivíduos singulares em prol do bem comum, fato que, à sua vez, provoca rebeldia e mal-estar. Liberdade irrestrita e segurança são contraditórias. A imediatez do efeito da droga ou da vertigem da ação é o privilegiado para a evasão ou para a descarga da angústia, embora seja evidente o caráter perigoso e daninho que contém. Mediante certas renúncias e limitações, privilegia-se o princípio da realidade resignando algo da satisfação desejada. Estabelece-se, então, o antagonismo entre liberdade e segurança. O recurso ao técnico e ao científico faz com que o homem se transforme em um deus-prótese, grandioso quando está conectado aos seus órgãos auxiliares, e cai na dependência da mesma maneira que com as drogas ou com o álcool. Basta ver a tecnologia que permanentemente acompanha as crianças, jovens e adultos, que já não se comunicam a não ser através de mensagens e fotos, algo que substitui o intercâmbio direto entre as pessoas. A propósito disto, li que nos Estados Unidos temem que o público cause danos às coleções nos museus com os extensores das câmaras fotográficas e dos celulares usados com o fim de obter selfies; a varinha do narcisismo se transformou em uma arma perigosa e obrigou aos museus regulamentar ou proibir o seu uso para proteger as obras de um público que acha mais importante mostrar as suas fotos que ver arte. Ao edificar-se a cultura sobre a renúncia do pulsional através da repressão, da sufocação de poderosas pulsões, entendemos a razão da hostilidade contra a qual é preciso lutar incansavelmente. Freud apresenta como uma transação, já que para obter a capacidade de viver na cultura nós, os humanos, devemos renunciar a agir de acordo com os próprios impulsos, urgências e desejos. A liberdade irrestrita levaria ao caos e a segurança sem liberdade nos levaria à escravidão. A transação proposta por Freud, em 1929, continua tão vigente e em tensão, Sicherheit ou Unsicherheit, segurança, proteção, em contraposição à tão ansiada liberdade com insegurança. Em tempos freudianos o desejo é de liberdade, atualmente reclama-se segurança. As condições de uma prolongada incerteza inauguram sensações de ignorância e impotência, ambas humilhantes (BAUMAN, 2014). Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 49 Mal-estar na cultura hoje: o atual e a atualidade em psicanálise. Expressões do mal-estar As denominadas patologias atuais fazem hoje alusão às da atualidade, ao contemporâneo, e compreendem, em essência, a angústia e seus derivados, desde o ataque de pânico, fobia, anorexia, bulimia, compulsões e várias adições, até a naturalizada dependência da droga e ou do álcool. É notável a apresentação de que sempre existiu como se fosse novidade, talvez pela necessidade de serem pioneiros, descobridores e não repetidores, penso que é pela dificuldade de aceitar que podemos dar valiosas contribuições ao que já é conhecido. É uma ferida narcisista difícil de suportar. Fica claro que estes padecimentos são vividos como novidade em função das variações da cultura e, fundamentalmente, das características do psicanalista de hoje, cujas resistências não resolvidas se articulam em inovações terapêuticas em função das demandas culturais. Por isso que as denominadas patologias atuais ou novas patologias são uma criação imaginária que surgem das condições do terapeuta que as diagnostica. A estas manifestações se somam os denominados transtornos funcionais: cardíacos, circulatórios, digestivos, musculares, fadiga crônica, asma, alergias, distonias neurovegetativas, etc., evidentes manifestações neuróticas com o seu concomitante somático, ou especificamente a apresentação somática e atual − no sentido da Aktualneuròse − em que o corpo fala da sua dor sem nome, esperando ser decodificada, transformada em palavras. “Não afundes o chapéu sobre as vossas pupilas! Dê palavras à dor, à desgraça que não fala, murmura no fundo do coração, que não pode mais, até rompê-lo.” (SHAKESPEARE, 1967, Macbeth, ato IV, cena III). O poeta disse isto antes que o psicanalista. O desafio da psicanálise, nos nossos dias, exige que suportemos a transferência que desde o sepultado investe a pessoa do analista, quem deve pôr o corpo a estes conteúdos de forte caráter vivencial, com manifestações somáticas, angústia, letargia, que costumam mexer com ele, através da resistência, a se afastar da análise buscando outras técnicas ou indicando interconsultas − como uma tentativa desesperada de convocar a um terceiro − ou a inclusão de psicofármacos que, em virtude da sua identificação – Einfühlung − com o paciente, pode chegar inclusive a consumir. Isto é afundar o chapéu na cabeça para não enxergar. Os desenvolvimentos originados a partir de uma maior compreensão da teoria psicanalítica nos permitem ter acesso à análise destas graves doenças sem que nos afastemos da psicanálise e ampliando, em troca, as suas fronteiras. 50 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Adriana Sorrentini A sessão Constitui um âmbito inefável, onde ocorre um encontro singular regido pela circulação de palavras, afetos e vivências, demarcado por um enquadramento abstinente que contém e delimita, dando lugar a um campo transferencial, por cujo eixo transitam as intervenções do analista. É uma unidade em si mesma, é o elo de uma corrente enquanto cura psicanalítica. Esse encontro é diferente de qualquer outro entre duas pessoas, mesmo em termos assistenciais. Consideramos dois parâmetros fundamentais: o espaço e o tempo em que ocorre, destacando seu caráter original. O espaço-consultório, um lugar concreto e profano, pertencente à vida secular, ao mundo dos homens, oposto ao sagrado, que em virtude do enquadramento que se estabelece como condição sine qua non para que a sessão psicanalítica possa ser desenvolvida, assume características de espaço virtual sagrado − fano − um centro − recordemos que centro do mundo, ônfalo, remete ao que Pausarías refere em Delfos, situado no centro da terra. Varron descreve ônfalo como a sepultura da serpente sagrada de Delfos, Píton. Considera-se um ponto de intersecção do mundo dos mortos, dos viventes e dos deuses; uma sepultura pode ser um centro, um ônfalo da Terra: Mortis et vitae lócus − um centro então, no qual se desenvolve a cena trágico-incestuosa em todo o seu esplendor ominoso. O ominoso está dado justamente por esta intersecção de nosso mundo vivente com o sepultado, os mortos, e com o ideal, os deuses (SORRENTINI, 2000). O tempo, como periodicidade e eternidade: na magia e na religião periodicidade significa utilização indefinida de um tempo mítico feito presente. Todos os rituais têm a qualidade do agora − como o presente atemporal do inconsciente − onde o tempo mítico em que teve lugar o acontecimento representado, é sempre atual. Assim, na sessão psicanalítica tudo é atual, original, mesmo que os tempos verbais do relato estabeleçam um passado que, em função da resistência, será considerado mais ou menos remoto. O presente do indicativo é o tempo verbal da sessão em virtude da sincronização do inconsciente, qualidade vivencial indispensável para a eficácia terapêutica da psicanálise. O ritual do enquadramento, enquanto conjunto de regras estabelecidas que sempre são repetidas, cada vez, unido à periodicidade, à repetição e ao eterno presente, características do tempo mágico-religioso, instala a dupla psicanalítica no tempo a-histórico, atual, vivencial, onde transcorre a sessão, após a qual a história pode começar como desenvolvimento temporal (SORRENTINI, 2004). Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 51 Mal-estar na cultura hoje: o atual e a atualidade em psicanálise. Com as cerimônias mágicas e religiosas, compartilhamos a regra de abstinência, que deve imperar no enquadramento psicanalítico como condição para a análise do desejo. Referimo-nos à denegação de satisfazer a demanda, dando lugar à frustração. Nos seus desenvolvimentos sobre o amor de transferência, Freud salienta que a técnica analítica impõe ao médico o mandamento de denegar a satisfação das demandas do amor ou sexuais, presentes de maneira direta ou deslocadas. Insiste que a cura deve ser realizada na abstinência, recordando que o analista só poderia oferecer sub-rogados, malogrando a possibilidade de análise. Nos caminhos da terapia analítica (1919) destaca outro aspecto da abstinência: não ceder diante do pedido de intervenção na síntese que o ego realizará devido à análise, sob pena de ocupar o lugar reitor que pertence aos objetos parentais, atuando a transferência em lugar de analisá-la. Insiste que na medida do possível, a cura analítica deve ser executada em um estado de privação − de abstinência − capaz de pôr em primeiro plano o desejo. É iniludível e compreende a ambos os protagonistas da cena, mesmo que a indicação seja para o analista. A frustração fará que subsista necessidade e saudade como forças pulsantes do trabalho e da alteração; conceitos como necessidade e saudade remetem à descrição que Freud faz da primeira vivência de satisfação, acompanhada pela percepção do objeto que satisfaz associada ao vestígio da necessidade que, cada vez que sobrevenha, investirá essa imagem mnêmica em busca da identidade de percepção; essa moção constitui o desejo, que na sessão desenvolve as forças pulsionantes presentes nas manifestações transferenciais, as quais, se não são percebidas e analisadas, conduzem à atuação. A proibição, implícita no enquadramento mediante a regra de abstinência, coloca em primeiro plano o reprimido-sepultado, moção pulsional que exige peremptoriamente a sua realização-satisfação, agora que enfrenta a frustração original e que pode ser apalavrada, tornar-se consciente. Paraxodalmente, a abstinência mantém o enquadramento e que ao mesmo tempo convoca e permite o desenvolvimento do drama trágico-incestuoso no real da sessão. O analista sabe que só poderia oferecer sub-rogados a custo da perda da análise e que deve manter-se dentro das fronteiras que a ética e a técnica prescrevem, já que trabalha com as forças mais explosivas (FREUD, 1915), que exigem cautela e escrúpulo. O enquadramento psicanalítico compreende um aspecto manifesto, formal, no qual se pactua o lugar físico, a duração da sessão, a frequência, horários e honorários, aspectos pertencentes ao contrato, que explicita um trato-com um sujeito que precisa de análise. Mas é do simbólico que a sessão, emoldurada e 52 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Adriana Sorrentini circunscrita pelo enquadramento sustentado na abstinência, dá lugar à cerimônia da bruxa metapsicologia. O enquadramento delimita a sessão e o processo psicanalítico, permitindo o estabelecimento do campo transferencial, em que o inconsciente se desenvolve, tanto no expresso pelo discurso do analisado, composto de seu estilo, gramática e fonética, como dos seus desperfectos lapso, ilogismos, neologismos, etc., ouvidos como associação livre da atenção livremente flutuante do analista. A vivência, a angústia, o afeto, o pré-verbal e o irrepresentado devem ser decifrados como manifestação do atual trágico incestuoso, não unido, carente de representação e palavra − o infans não a tem − transferido in toto na pessoa do analista, uma transferência atual (CESIO, 2010). Transferência – Contratransferência O lugar especial que o enquadramento psicanalítico, com sua regra de abstinência, reserva ao analista é fundamentalmente o das imagos primordiais do analisado, as mais desejadas, ameaçantes e culposas. Para que possamos reconhecer e suportar tais identificações é necessário ter alcançado, por meio da análise pessoal, elaboração das resistências ao conhecimento do inconsciente reprimido e das vivências provenientes do que está sepultado. A capacidade de autoanálise durante a sessão revela os nossos próprios dramas inconscientes que denominamos contratransferência, e permite-nos assumir o protagonismo atribuído na tragédia que se desenrola. O próprio processo analítico se funde na transferência, isto é, no amor, no desejo, na sexualidade infantil, e implica que o discurso que ocorre seja interpretado a partir do borde ou do limite do advento do sujeito e da sua perda que é a identificação − Einfühlug. Freud começou a usar Übertragung na Interpretação dos Sonhos (1900) para explicar que a representação inconsciente é incapaz de ter acesso ao pré-consciente, a não ser que entre em conexão com uma representação insignificante pertencente a este sistema, para a qual transfere a sua intensidade. A representação préconsciente pode permanecer intacta ainda que imerecidamente engrandecida ou pode ser modificada em virtude do que foi transferido para ela. Também utiliza o termo para descrever o processo descoberto no tratamento psicanalítico, durante o qual é transferido para um objeto contemporâneo − o analista − sentimentos que o sujeito conserva no inconsciente por um objeto infantil. Recordamos que infantil se refere a uma qualidade do material e não é uma referência temporal ou evolutiva. Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 53 Mal-estar na cultura hoje: o atual e a atualidade em psicanálise. Devido ao fato de o sintoma neurótico ser constituído pela realização de um desejo inconsciente e a sua correspondente formação de reagir, constatamos que na transferência o desejo se cumpre investindo ao analista – enquanto representação pré-consciente, recente e insignificante − com as catexes correspondentes ao objeto inconsciente reprimido-sepultado. Tal investidura difere na sua intensidade até o ponto de procurar uma realização alucinatória de desejo tão vividamente experimentada, que proporciona convicção na vivência – Erlebniss − que tem lugar, acompanhada de reações afetivas e neurovegetativas, o atual, somático, expressando uma transferência diferente, atual (CESIO, 2010), em que o analista é efetivamente o objeto original. Permitam-me uma mínima digressão para comentar que o termo vivência é aquele proposto por Ortega e Gasset para traduzir a palavra alemã Erlebniss, que indica que algo meramente é vivido, mas não decide se foi um acontecimento real. Difere claramente de experiência, que sim é feito com algo objetivo, um objeto da realidade. Kristeva (1984), seguindo a Freud, defende que a identificação com o pai da pré-história (os pais indiferenciados) é imediata, direta, e se continua com a da identificação secundária e mediata com apetências libidinais do primeiro período sexual que reforçam a primeira. Toda a matriz simbólica que cobre o vazio está localizada nessa problemática pré-edípica, propondo a existência de uma transferência imediata – unmittelbare − do psíquico carregado de libido, mais do que de uma identificação, sobre o pai-mãe da pré-história individual. É uma situação complexa, mista e imaginária encarnada pelo analista na sessão. Transferência intrapsíquica na palavra e nas representações pré-conscientes, que proporcionam a livre associação no discurso do paciente, o sonho e seu relato e, por outra parte, a transferência na pessoa do analista como objeto contemporâneo, suporte do desejo inconsciente reprimido, descrito no epílogo do caso Dora (1905) e em Pontualizações sobre o amor de transferência (1915), onde o analista passa a ser o objeto original, antes que o resto diurno − recente e insignificante − sobre o que se transfere o reprimido do ego, enfrentando a transferência do trágico-incestuoso que pertence ao sepultado, que jamais foi consciente e se apresenta irrompendo com qualidade somática e ideias de morte. O conceito de contratransferência preocupava a Freud em 1910, como possível obstáculo na tarefa do psicanalista por sua resistência diante de determinado material surgido na sessão. Foi elaborado por diversos autores, como Heimann (1950, 1960) em Londres, e na Argentina por Racker (1949), Cesio (1963) entre 54 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Adriana Sorrentini outros, e concluímos que, tal como a transferência do analisado, é um elemento valioso que o analista dispõe para perceber e incluir aquilo que emerge com qualidade atual, vivencial, carente de representação e palavra ou com expressão somática, material correspondente ao sepultado, ao núcleo atual, diferente do reprimido das psiconeuroses de defesa. Falar da transferência na pessoa do analista implica levar em consideração não só o da função, da investidura, senão também o sujeito que a sustenta. Dele se espera que conecte seu inconsciente como um órgão receptor do inconsciente do analisado, que suspenda a sua atenção e interesse de tudo àquilo que não provenha do seu paciente; que aceite sustentar o objeto inconsciente transferido para ele, dando-lhe vida com seu sangue, desentranhando a cena que ocorre no real da sessão, com toda a intensidade trágico-incestuosa acorde ao fundamento atual que irrompe. É nossa tarefa, uma das tarefas impossíveis, aceitar o papel que nos é atribuído nesse ato cênico, descrevê-lo, colocar palavra e representação onde só há manifestações atuais como afeto, angústia, letargia, silêncio. Implica renúncia narcisista e luta contra as resistências. Recordo um fato que aconteceu com um analista que, aflito pela recente perda de uma pessoa querida e em pleno luto, enquanto ouvia o seu analisado falar com voz desvitalizada e monótona sobre as suas carências e dos seus mortos, caiu repentinamente em uma letargia total. Foi o analisado que tímida e afetuosamente o despertou, podendo analisar junto o que aconteceu. Diríamos que, graças à capacidade de reação do analisado e da possibilidade de reconhecimento do analista de ter sido vítima do morto, puderam analisar proveitosamente este fato. A afirmação freudiana de que a análise do paciente transcorre simultaneamente com a autoanálise do analista, e que se este não for capaz de fazer isso não está capacitado para analisar, conserva íntegra a sua vigência. Sustentamos essa simultaneidade desde a assimetria que estabelece o fato de que o psicanalista está atravessado por uma prolongada análise pessoal, que lhe permitiria manter-se na abstinência junto ao analisado, e conseguir o seu objetivo ao falar do objeto transferido sem que a moção em jogo atue. A transferência na pessoa do analista é preciso inferi-la quase por conta própria, baseando-se nos mínimos pontos de apoio e evitando cometer arbitrariedades, diz Freud. Analisar em transferência exige ser suporte do objeto que emerge na cena sexual, uma atitude analítica de renúncia narcisista e postergação das próprias moções pulsionais, conscientizadas durante a experiência que está acontecendo na sessão, imprescindível para dar lugar à cena inconsciente e analisá-la. Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 55 Mal-estar na cultura hoje: o atual e a atualidade em psicanálise. Tratam-se de vivências intensas, de alta voltagem pulsional, que levam paciente e analista a resistirem a esse saber inquietante que trazem os demônios convocados. Aqui também observamos manifestações da cultura imperante, que não tolera o mal-estar imposto e o interrogar-se em lugar de projetar ou silenciar isso que insiste recorrendo às drogas, ao álcool e à atuação. Apoiado nos restos diurnos oferecidos pela realidade em que vive, o analisado argumentará, para reduzir ou suspender a cura, dificuldades econômicas ou de horários, de distância, desejo de experimentar sozinho, queixa dos resultados obtidos, variedade de argumentos resistentes com os quais tenta explicar por que deseja interromper ou espaçar o tratamento. O analista pode intervir analiticamente ou simplesmente concordar com a resistência de seu paciente, racionalizando a sua angústia diante da presença ominosa que deseja afastar. Já não como analista senão como um simples cidadão, compartilhará o imaginário consumista cujo mercado do inovador se apoia na desmentida da castração, do fetichismo da mudança da embalagem e da apresentação dos produtos, novos nomes para velhas doenças. A busca contínua de maior e melhor capacidade analítica nos permitirá chegar além, ter acesso ao padecimento atual, ampliando a fronteira do analisável. Interpretação – Construção – Reconstrução A interpretação conserva seu lugar fundamental na teoria e na técnica psicanalítica. Desde as suas primeiras intelecções sobre os sonhos, Freud confere o mesmo valor à fantasia ou ao sintoma, ponto de partida para a livre associação de um paciente no divã. Qualifica o sonho como um hieroglífico em que o desejo infantil reprimido dá lugar ao relato que se constitui em pré-texto a ser analisado na sessão. A neurose, como o sonho, faz uma interpretação ad hoc do real a favor de satisfações sexuais, pré-genitais, formadoras de sintomas. Também a sessão transcorre como um sonho cujo relato, o discurso do analisando, descreve através da livre associação das imagens que representam o desejo transferido para elas, enquanto o afeto apresenta a força pulsante que a gera. O analista deve perceber e diferenciar a representação do material psiconeurótico passível de interpretação, e a apresentação do material atual subjacente que traz a vivência em ato, tributário da construção. O termo interpretação leva a traduzir, explicar, entender tomando um ou outro sentido, conjeturar, pretender, crer, decidir. O analista poderia propor uma interpretação diferente da que foi feita do ego do analisando em determinada 56 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Adriana Sorrentini circunstância geradora da alteração neurótica em virtude de estar comandado pelo vivenciado, isto é, o acidental e atual capaz de exercer alterações na sua estruturação- permitindo a possibilidade de introduzir uma nova alteração no ego, esta vez terapêutica. Atende ao rompimento da coerência associativa no discurso do analisando, aos desperfectos do ego que o inconsciente capitaliza como conquistas. A construção se impõe ao analista a partir de uma vivência que irrompe e interrompe a sua atenção flutuante: uma ideia, sobressalto, ocorrência, uma sensação somática de diferente característica e intensidade, dor, excitação sexual, angústia, medo, letargia, são os indícios com os quais o analista, baseado na sua contratransferência, faz uma construção do atual que surge com a força ominosa de apresentação somática ou de morte. Do latim construere: acumular, amontoar, surge o nosso construir, que tem o sentido de fabricar, erigir, edificar, fazer de novo alguma coisa. A gramática remete a pôr em ordem as palavras ou uni-las entre si de acordo com as leis da construção gramatical, ordenação das partes do discurso, uma frase, o sentido daquilo que se apresenta como cúmulo ou montão. Esta explicação gramatical nos leva ao conceito de processo primário e processo secundário do aparato psíquico, proposto por Freud na Interpretação dos Sonhos (1900), e a importância conferida à palavra na transferência intrapsíquica. Também Lacan, formula a hipótese do inconsciente estruturado como uma linguagem. Finalmente, nas antigas escolas de gramática, construção tem o significado de traduzir do latim ou do grego ao castelhano, isto é, de uma língua morta, arcaica para um idioma compartilhado e atual. Desentranhar o texto arcaico, pré-histórico, o morto encarnado na pessoa do analista nestes momentos trágicos da sessão, traz um material correspondente às impressões e vivências não unidas pelo ego, que jamais foram conscientes e cujo destino é o sepultado, submetido à compulsão da repetição. Apresenta-se como o atual na sessão, interrompendo a atenção flutuante do analista que, perturbado pela irrupção intensa e brusca de sensações somáticas, afetos e ocorrência, está exposto a cair na atuação, ou no rechaço e desestima o que lhe acontece ou, através da autoanálise, pode elaborar uma construção do ato que está acontecendo, procurando incluir o que se apresenta como resto, cúmulo ou montão, que exige representação e palavra, ou constructo que, desde uma língua morta, o analista oferece em palavras da língua viva e compartilhada, buscando um esboço de representação. Trabalho de desconstrução do traumático que irrompe e que o analista distingue, separando os elementos do conglomerado que emerge, e outro de Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 57 Mal-estar na cultura hoje: o atual e a atualidade em psicanálise. construção e ordenação, dando sentido e palavra ao ato protagonizado por ambos os actantes da cena matricial, original, desenrolada no real da sessão. Se resistencialmente, o analista não consegue pôr palavra, oferecer uma construção disto que ocorre agora, sobrevirá uma atuação ou talvez uma ancoragem somática. O paciente repete impressões e vivências arcaicas que jamais foram escritas como experiência e carecem de elaboração psíquica, pertencem à pré-história, incapazes de recordar, nem memória. Manifestação da pulsão de morte, compulsão de repetição sempre atual, motor da transferência na pessoa do analista, que longe de ser uma representação investida de forma libidinal, é corpo investido desde a pulsão, amor de transferência, reação terapêutica negativa. Nesta modalidade arcaica, analisando e analista encontram seu limite apagado (desdibujado), confundindo-se nas impressões e vivências que os impactam desde o trágico-incestuoso. O analista se resgata, constrói o ato e descreve a cena, colocando palavra, tempo e espaço, significa o acontecido como repetição possibilitando sua entrada na história pessoal do sujeito. Freud, em Construções na análise (1937) dirá que “[...] ao analisando lhe é apresentada uma peça da sua pré-história esquecida [...]” (p. 260) que na nossa concepção refere ao infantil − prévio à palavra − que se apresenta na sessão com características trágico-incestuosas, diferentes das pertencentes ao complexo de Édipo que faz parte da história pessoal e pode ser reconstruído como recordação a partir dos seus brotos. Propomos denominar construção àquela realizada pelo analista a partir do que emerge do atual, uma vivência que irrompe subitamente e interrompe a sua atenção flutuante pelo impacto traumático da apresentação ominosa. Algo original, atual, que só pode existir a partir da palavra do analista que, desconstruindo o cúmulo de afeto-angústia-vivência, descreve a cena e constrói o ato que traduz em palavras o drama, em vez da atuação da tragédia. Transformar a tragédia em drama é passar da pré-história para a história, dar a metáfora faltante aos conteúdos pulsionais atuais que adquirem nível representacional e simbólico, tornando possível a reconstrução da qual Freud nos fala. O recurso técnico da construção, a partir da contratransferência, amplia nossas possibilidades analíticas nos permitindo incluir, para a sua tramitação psíquica, conteúdos que jamais passaram pela consciência. Freud (1937, p. 264) diz claramente que: “É apenas uma questão de técnica analítica que se possa ou não trazer à luz de maneira completa o que está escondido”. Nisso estamos empenhados, ainda que o mal-estar e as resistências estejam dispostos a dificultar o caminho para o inconsciente. 58 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Adriana Sorrentini Discontent in culture today. The present and current events in psychoanalysis. Pertinence of our freudian psychoanalytical tools. Abstract: We feel discomfort in culture with its manifestations that strongly affect the reactive attitude to psychoanalysis, either in a social imaginary as the analysts themselves. The psychoanalytic session sets a no space place and timeless scenery, determined by an abstinent frame. Abstinence promotes frustration and installs both transference and tragic-incestuous positioning, whose protagonists are analyzed and analyst. We consider transference and countertransference, both intrapsychic and transference over analyst’s person, who happens to be representation that becomes an original object, subject of transference love and negative therapeutic reaction, imposing the analysis of countertransference. The intensity of the transference of buried, actual contents, with somatic quality, recalls a current, experiential transference and extends the analysis of actual pathologies. Keywords: Actual Neurosis. Contratransference. Interpretation. Psychoanalysis. Transference. 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Resumo: Situando Totem e tabu como um trabalho de Freud com abrangência contemporânea, as autoras indagam-se sobre o sentido de estarem explicitadas na Relação de Membros da Febrapsi, sob o título Princípios Éticos da IPA, as proibições totêmicas. Consideram que analista e analisando, ao desenvolverem o processo analítico, entram num terreno escorregadio onde são mobilizados medos e paixões. O risco de transgressão da regra de abstinência envolve a dupla e requer que a interdição e a lei Trabalho apresentado na mesa redonda O contemporâneo e a função analítica, no XXIV Congresso Brasileiro de Psicanálise. Campo Grande/MS, setembro/2013. 2 Membro Titular da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. 3 Membro Titular e Didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. 4 Membro do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. 5 Membro do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. 1 Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 61 O contemporâneo na função analítica: medo e paixão sejam reinstaladas constantemente. Diferenciam amor de transferência e transferência passional. Enfatizam que vivências de desamparo do analista e a não elaboração de dimensões narcísicas e edípicas de sua sexualidade infantil podem dificultar ou impedir a manutenção do enquadre interno e externo, necessários para assegurar a função analítica e o trabalho analítico. Palavras-chave: Contemporâneo. Função analítica. Medo. Paixão. Princípios Éticos da IPA. Totem e tabu. Nosso projeto, ao nos debruçarmos sobre este tema – O contemporâneo na função analítica: medo e paixão – nasceu a partir do seminário sobre Totem e tabu no Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPdePA), artigo que completa 100 anos e que é tema deste encontro de analistas do Brasil. Apesar de sua antiguidade, este artigo nos pareceu contemporâneo. No mesmo ano de Totem e tabu (FREUD, 1913a), também é publicado o artigo O interesse pela psicanálise (FREUD, 1913b). Na época, a psicanálise era considerada uma ciência jovem pelo autor. Nesse texto, Freud explica os motivos que levam o ser humano a ter atos falhos e sonhos, meios através dos quais o psiquismo, sufocando a representação que suscita dor psíquica, evita o desprazer que a lembrança promoveria. Naquele período, Freud (1913b) identifica como neurose a patologia que se apresentava através dessas formações do inconsciente, pelo mecanismo do deslocamento. Segundo o autor, “a psicanálise eleva o sonho à condição de um ato psíquico que possui sentido, propósito e um lugar dentro da vida anímica do sujeito e, ao fazê-lo, se situa acima do alheio, da incoerência e do absurdo do sonho” (p. 173). Concomitantemente, em Totem e tabu, Freud (1913a) relaciona o horror dos selvagens ao incesto à vida anímica do neurótico, esta última dirigida à primeira escolha de objeto sexual. Reconhece o tabu do incesto e o desejo pela eliminação do pai e posse da mãe, concebendo o complexo nuclear da neurose, conhecido como complexo de Édipo. Mais adiante, agrega que a resolução da conflitiva edípica deixa como herdeiro o superego, ou ideal do eu, que começou a constituir-se no período do narcisismo (FREUD, 1914), quando a máxima consistia na ideia de que assim como o pai quero ser. 62 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Ane Marlise Port Rodrigues, Augusta Gerchmann, Christiane Vecchi da Paixão, Kellen Gurgel Anchieta O totemismo simboliza o crime que foi cometido. Mas o assassinato do pai, ao mesmo tempo em que inaugura o ser civilizado e as relações fraternas, lança-o ao desamparo de estar sem o pai absoluto e entregue à própria sorte. Partindo de Wundt (apud FREUD, 1913a), que sugere ser o Tabu o código legal não escrito mais antigo da humanidade, perguntamo-nos qual será o sentido para que, na Relação de Membros, a Federação Brasileira de Psicanálise (2013) coloque, explicitadas na forma da lei, sob o título Princípios Éticos da IPA, as proibições totêmicas. Consta no item 5: “O psicanalista não deverá ter relações sexuais com um/a paciente ou estudante sob tratamento ou supervisão do psicanalista” (p. 24). De que forma a cultura atual, em que se observa um afrouxamento da repressão e uma constituição insuficiente do ideal de ego, pode vir a refletir-se na sala de análise? Um código de conduta que necessita ser explicitado junto à relação de membros alerta para o risco da transgressão e faz recordar a presença da lei. Dentre as recomendações, Freud já incluía a necessidade de não haver nenhuma proximidade social entre analista e paciente, salientando, entre os pilares da técnica, a manutenção da neutralidade e a abstinência a serviço do analisando. Haveria por parte dos analistas o risco de esquecer os princípios éticos que norteiam a psicanálise? Gabbard (2005) propõe uma diferenciação entre violação e cruzamento de fronteira. Violações de fronteira envolvem transgressões que são potencialmente prejudiciais ou exploradoras do paciente; elas podem ser sexuais ou não. Estamos diante de um fenômeno descrito como terreno escorregadio, que envolve a progressão gradual de violações de fronteira das mais sutis e não sexuais ao franco envolvimento sexual. Pensamos que, nessa área escorregadia em que habita o medo e a paixão, podemos vislumbrar o desamparo crônico ou circunstancial do analista, a perda de discrição com o paciente, a ativação de núcleos psicóticos ou a atuação de áreas de psicopatia predatória (termo usado por Gabbard), na qual a violação não é reconhecida. Também neste terreno estão representações de desejos ou relacionamentos incestuosos do passado de um deles. E ainda temos o que Gabbard nomeia de rendição masoquista, que mais comumente ocorre com pacientes considerados difíceis ou impossíveis, quando o analista repete o padrão de relação com o objeto torturador, controlador e exigente de seu passado. O analista cede à demanda de seu analisando e racionaliza sua própria rendição, gerando atuações transgressoras. Além dos fatores que envolvem a história infantil do analista, consideramos que faz parte do terreno escorregadio a relação previamente esta- Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 63 O contemporâneo na função analítica: medo e paixão belecida na análise pessoal do analista: o vínculo com o seu analista de formação. Aulagnier (1979) aponta para a patologia desse vínculo, em nome do amor de transferência, quando ocorre uma idealização excessiva do analista didata pelo analista em formação. Chama de acidente passional quando esse amor transferencial, condição necessária para colocar em marcha a análise, desliza para uma paixão alienante que mantém o analisando capturado pela idealização. A relação assim estabelecida torna-se um ritual vazio e não habitado por um real projeto analítico que leve à autonomia emocional e de pensamento. Com o término desse tipo de análise, é conservada a idealização, seja através do referencial teórico, de um modelo de pensamento ou de um poder do analista sobre o analisando. Nesse sentido, o pai totêmico nunca é morto e o analista, em sua formação ou depois, poderá atuar essa vivência não elaborada, fomentando com seus analisandos o mesmo tipo de idealização. Segue o autor explicando que na diferenciação entre relação amorosa e relação passional, o objeto da paixão não é substituível, tornando-se objeto necessário. Quando lidamos com o objeto da paixão, o desejo se converte em necessidade. No contexto do tratamento analítico, pensamos que o enquadre externo e interno entram como reguladores para interditar a sedução mútua que apaga as diferenças entre analista e paciente, levando a uma relação passional de necessidade e gozo mútuos. O medo parece residir justamente na existência do desejo da transgressão, pois a interdição deverá ser instalada constantemente. O risco, quando a interdição não ocorre, é que o analista exerça uma violência secundária, tomando o analisando como infans no lugar de escutar e compreender o seu idioma. Portanto, consideramos fundamental diferenciar o amor de transferência e a transferência passional. O amor de transferência, defendido por Freud como necessário e estruturante do processo analítico, revelará a neurose de transferência. Este canto da sereia, quando transborda seus limites para além do indicado, para que a técnica se instale, poderá levar analista e analisando a entrarem numa sedução mútua, gerando uma atuação tanática, pura expressão da pulsão de morte. Ocorrerá a destruição do processo e da esperança do analisando de alcançar a resolução de seus conflitos e a representação para sua dor psíquica. É frequente encontrar na literatura psicanalítica atual referências à clínica na qual a neurose, como organizador psíquico, não se estabeleceu a contento. São quadros com falhas importantes na constituição do narcisismo estruturante e da capacidade simbólica, dificultando que se crie a representação do não representado. 64 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Ane Marlise Port Rodrigues, Augusta Gerchmann, Christiane Vecchi da Paixão, Kellen Gurgel Anchieta Levantamos a questão de que, nesses casos, o pai ainda não pode ser assassinado pelo fato de não ter sido adequadamente reconhecido e, assim, sua função simbólica não alcança ser plenamente representada no psiquismo. Totem e tabu precisam estruturar-se na passagem pelo Édipo. Para que isso ocorra, é necessário passar pelo narcisismo, estabelecendo um ideal que sustente a própria passagem pela e na interdição, movimento necessário para viver e elaborar o luto pela castração simbólica. Por vezes, há uma tendência de se pensar que esse movimento de renúncia é exclusivo do filho. Ledo engano: a par da renúncia imposta ao filho, existe a necessária renúncia do pai na passagem do lugar mítico de dono da horda ao lugar simbólico do representante e executor da lei, porquanto ele próprio não é a lei, mas seu representante, devendo também submeter-se a ela. Se Totem e tabu estão no cerne do complexo de Édipo, darão a esse complexo uma universalidade da qual padece todo sujeito da cultura. Temos nestas leis o marco inaugural de uma nova ordem social. No entanto, É importante diferenciarmos que as leis totêmicas têm por objetivo ordenar as relações de troca e união dentro de uma determinada sociedade, enquanto que as leis ligadas ao complexo de Édipo têm a função de ordenar o mundo do desejo, permitindo alojar-se no inconsciente a partir do objeto da pulsão (a mulher do pai), e do objeto do desejo (a proibição do gozo sexual com essa mulher) (LEITE; PAIM FILHO, 2007, p. 39). Este conjunto de leis tem em comum o fator da interdição e a renúncia subsequente. Poderíamos relacionar a vivência de desamparo do analista e as falhas na instalação da repressão e na constituição do superego com seu impedimento em manter a interdição necessária ao desenvolvimento de sua função analítica. Para tanto, a função analítica perpassa a vivência, a identificação e a internalização de sua própria análise, como eixo fundamental do tripé da formação analítica. Agamben (1978a) relata a análise de Lévi-Strauss sobre os Aranda, população da Austrália Central que usava objetos de pedra ou de madeira como totens representantes do corpo de um antepassado. Em seus rituais, nas sucessivas gerações, tais objetos eram solenemente atribuídos ao indivíduo que acreditava ser a reencarnação do antepassado naquela circunstância. Destaca Agamben a dupla dimensão temporal do totem: sua função diacrônica, que atravessa o Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 65 O contemporâneo na função analítica: medo e paixão tempo e se torna presença tangível do passado mítico, e sua função sincrônica, pois está encarnada no presente, permanecendo atual. Também considera a contemporaneidade como uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distância. Criase, assim, uma situação de quebra, de fratura, um estado de espírito em que na escuridão é possível enxergar, procurando-se ver na obscuridade. O escuro do tempo não é considerado uma ausência, mas sim uma construção histórica. A relação fundamental entre o passado e o presente se dá pelo arcaico, estabelecido como origem. Essa origem não se situa apenas num tempo cronológico, mas torna-se contemporânea ao constituir-se num marco da história e não cessa de operar sobre esta, da mesma forma que a criança vive na vida psíquica do adulto (AGAMBEN, 2008). A infância é descrita por Agamben (1978b) como a pátria transcendental da história e a linguagem como o lugar onde a experiência deve tornar-se verdade, quando o sujeito desenvolve o próprio discurso. A ênfase na importância da subjetivação é ponto comum entre o filósofo e os psicanalistas, principalmente numa sociedade muitas vezes imersa em gigantescos processos de des-subjetivação. Facilmente podemos entrever, nos bastidores, a importância fundamental dos milhares de espaços analíticos que vêm sendo constituídos, desde Freud, para assegurar a presença do subjetivo e o reconhecimento do arcaico no presente, tentando enfrentar a força da repetição e gerando facilitações para novos caminhos transformadores do futuro. Nesse contexto, a psicanálise torna-se uma experiência subjetiva que coloca o inconsciente, a sexualidade, o desamparo e a morte no âmago da alma humana, revelando-os através da relação analistaanalisando. Vários autores afirmam que, num mundo que prioriza o exterior, o consumo, o imediatismo, as aparências e a não reflexão, a psicanálise torna-se fundamental como reduto do ser e da reflexão. Portanto, a escuta analítica e a função analítica tornam-se elementos altamente contemporâneos. E como é possível para a psicanálise transitar do presente ao arcaico e do arcaico ao presente, situando no contemporâneo o ser do analista e o ser do analisando, ambos imersos nos medos e paixões que esse trânsito suscita? Pensamos que o estabelecimento do enquadre analítico permite ao analista correr os riscos inerentes à posição de polo de atração da transferência de ambas as dimensões do infantil (narcísica e edípica), as quais buscam satisfação e/ou sentido. Para Césio (1986), desde Freud, o contrato analítico estabelece algumas disposições que regulam a relação entre o analisando e o analista, incluindo a proibição de toda e qualquer atuação por parte de ambos. A regra de abstinência 66 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Ane Marlise Port Rodrigues, Augusta Gerchmann, Christiane Vecchi da Paixão, Kellen Gurgel Anchieta situaria o analista no lugar do objeto tabu, representante do pai morto, do parricídio e do incesto, colocando o analista no lugar do mesmo ideal que fundamenta a religião. Neste sentido, o analista adquiriria o poder do pai morto, do cadáver representante do eu original, do narcisismo primário absoluto e do próprio ideal. Para o autor, a abstinência representaria a reação defensiva frente à própria culpa pelas fantasias incestuosas latentes, ao mesmo tempo em que é delas inseparável. Sua aplicação na sessão revelaria a excitação incestuosa subjacente. Em resumo, de maneira indireta, a abstinência traria ao primeiro plano o incesto e suas vicissitudes. Novamente, medos e paixões em pauta. Voltemos aos princípios éticos da IPA, explicitados na relação dos membros publicada pela Febrapsi. O princípio que proíbe o comércio sexual – como era chamado pelo próprio Freud – entre analisando e analista aponta para o pai como aquele que deveria realizar o interdito, ao tempo em que ele próprio é o interdito. A lei escrita torna-se representante simbólico da interdição e alerta para o risco das falhas de tão antiga regra, que vem do início da civilização, quando o tabu foi consolidado pelos povos primitivos. Que medos e paixões cegariam o analista em sua função quando abandona o lugar do simbólico, e reativa com o analisando suas mais primitivas fantasias, dirigidas aos seus próprios desejos não tramitados e não elaborados em sua análise pessoal? Conforme Urribarri (2012), o enquadre, como função constituinte do encontro e do processo analítico, é a instituição e a encenação do método analítico e tem uma natureza transicional (entre a realidade social e a realidade psíquica). O enquadre institui o espaço analítico como um terceiro que torna possível o encontro e a separação (discriminação) entre o psiquismo do paciente e o do analista. Sobretudo, evita a conivência, a fusão regressiva e a captura na miragem da dualidade. Segue o autor afirmando que na psicanálise contemporânea a significação do enquadre é polissêmica, incluindo diversas lógicas na escuta: escuta da unidade (narcisismo), do par (mãe-bebê), do intermediário (transicional), do triangular (estrutura edípica), do transgeracional e do conjunto (grupalidade e sociabilidade). Portanto, a exigência de trabalho psíquico no analista se dá em várias frentes e exige um analista poliglota, que compreenda variadas apresentações do discurso e do mundo psíquico do paciente, o qual tenta fazer-se representar. O enquadre interno do analista, mantendo-se estável como um terceiro entre ele e seu paciente, permite adaptações em relação à singularidade de cada caso. A escuta analítica, descrita por Green (2012) como uma metáfora do enquadre, pode ser incluída como parte da função analítica e da interminável construção/ desconstrução do lugar de analista, designando uma atitude mental profunda Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 67 O contemporâneo na função analítica: medo e paixão em face da verdade e do conhecimento de si mesmo, regrada pelo princípio da abstinência. Delouya (2010) considera que os esquemas do plano edípico constituem os alicerces da escuta analítica. Aponta para o fato de que, na construção em análise, o analista está engajado, não mais como auxiliar do paciente para desatar e dissolver os nós que embaralham a associação livre em direção a insights e lembranças, mas como agente de uma nova ação psíquica, por meio da qual o paciente adquire a noção de um si mesmo, separado do outro e capaz de subjetivação. Partindo de nossa compreensão, consideramos que, através do enquadre, o analista pode retomar a dimensão do arcaico no presente e atualizar o Nome-do-Pai (LACAN, 1958[1957]), herdeiro do assassinato do pai e da interdição do desejo pelas mulheres do pai, configurando a interdição do incesto. A psicanálise contemporânea desenvolve o trabalho psíquico do analista como um eixo conceitual terciário que procura incluir a atenção flutuante e a contratransferência como dimensões parciais e complementares de um processo complexo (URRIBARRI, 2012). A subjetividade do analista é colocada em jogo como parte do diálogo analítico, como co-constitutiva do campo analítico intersubjetivo. A constante e interminável elaboração no analista das dimensões narcísicas e edípicas de sua sexualidade infantil, através de sua análise, reanálise, autoanálise e experiência clínica, torna-se fundamental para atravessar as zonas de turbulência geradas pelo encontro analítico. Aponta Delouya (2010) que, nessas condições, são ativadas as fantasias originárias de constituição do sexual (sedução originária), de constituição da diferença entre gerações (cena primária), de constituição da alteridade (castração) e de retorno ao ventre materno (nirvana). Ao que acrescentamos nesse esquema de mitos familiares, a novela familiar (desejo de adoção pelo pai analista). Ao longo dos cruzamentos destas ideias, enquanto tecíamos este breve apanhado sobre a contemporaneidade da função do analista, seus medos e suas paixões, voltamos às origens da psicanálise. Da filosofia, antropologia, teologia e outros campos do saber partiu Freud para construir o arcabouço teórico e técnico da psicanálise. Apesar das diversidades teóricas, temos tido, como analistas, a necessidade cada vez maior de nos lançarmos à leitura de outros campos de estudo, como um retorno às origens, buscando respostas para a dor e o desamparo da criatura humana. Ao mesmo tempo, para exercer a função analítica temos de nos ater à técnica e ao referencial teórico, a fim de que o mundo psíquico possa emergir. Sabemos que não só o mundo psíquico do paciente emerge, mas também o do analista, ativando medos e paixões. Para não nos deixarmos enfeitiçar pela paixão desta praxis, viemos buscando, através 68 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Ane Marlise Port Rodrigues, Augusta Gerchmann, Christiane Vecchi da Paixão, Kellen Gurgel Anchieta de novas leituras, ampliar e dar um novo e genuíno sentido às doenças da alma, incluindo um tempo que se transforma e tem fim, diferentemente do inconsciente atemporal. Não só o ego é corporal e finito, como também a psicanálise. Após um século, apresenta-nos mais claramente suas limitações e coloca-nos frente à desidealização necessária. No entanto, mantém-se contemporânea e ainda parece ser a melhor oferta para o sofrimento psíquico do ser humano na atualidade. A cada dia defrontamo-nos com o que é mais transitório no humano: a vida. Na tentativa de entendê-la, é saudável buscar, assim como Freud, em outras ciências, na filosofia e nas artes, novas perguntas, sabedores de que nunca chegaremos às respostas. Elas estarão sempre em outro tempo. The contemporary in the analytical function: fear and passion Abstract: Situating Totem and taboo as one of Freud’s work with contemporary scope, the authors question themselves about the meaning of being explicit in the “List of Members” of Febrapsi, under the title Ethic Principles of IPA, the totemic prohibitions. They consider that the analyst and the patient, when developing the analytical process, enter a slippery ground where fears and passions are mobilized. The risk of breaking the rule of abstinence involves both and demands that the interdiction and the law be reinstalled constantly. They differentiate transference love and passional transference. They emphasize the experiences of helplessness of the analyst and the no-elaboration of the narcissistic and oedipal dimensions on his/her infantile sexuality can hamper or ban the maintenance of the internal and external setting, essential to guarantee the analytical function and the analytical work. Keywords: Analytical function. Contemporary. Ethic Principles of IPA. Fear. Passion. Totem and Taboo. Referências AGAMBEN, G. O país dos brinquedos: reflexões sobre a história e o jogo. In: ______. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. p. 79-107. Originalmente publicado em 1978a. Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 69 O contemporâneo na função analítica: medo e paixão ______. Infância e história: ensaio sobre a destruição da experiência. In: ______. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. p. 54-65. Originalmente publicado em 1978b. ______. O que é o contemporâneo? In: ______. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2013. Originalmente publicado em 2008. AULAGNIER, P. La relación amorosa: introducción al análisis de las relaciones de simetria. In: ______. Los destinos del placer. Buenos Aires: Paidós, 2004. p. 144-161. 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Revista Brasileira de Psicanálise, v. 46, n. 3, p. 47-64, 2012. Ane Marlise Port Rodrigues Rua Carvalho Monteiro, 234 / 606 90470-100 Porto Alegre – RS – Brasil e-mail: [email protected] Augusta Gerchmann Rua Florêncio Ygartua, 270 / 1107 90430-010 Porto Alegre – RS – Brasil e-mail: [email protected] Christiane Vecchi da Paixão Rua Ramiro Barcelos, 1793 / 408 90035-006 Porto Alegre – RS – Brasil e-mail: [email protected] Kellen Gurgel Anchieta Rua Florêncio Ygartua, 53 / 406 90430-010 Porto Alegre – RS – Brasil e-mail: [email protected] Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 71 Um pequeno grande Hans em três breves atos Celso Gutfreind1 Resumo: Neste artigo, o autor propõe uma releitura da clássica publicação de Sigmund Freud referente ao caso do Pequeno Hans, publicado originalmente em 1909. Na primeira parte, apresenta de maneira breve a personagem conforme as referências originais. Na segunda, sintetiza aspectos que considera importantes dessa publicação. Na terceira e principal, retoma o sumo das conclusões que considera fundamental de um estudo em que ele próprio tentou aprofundar-se no caso com o objetivo de refletir sobre a atualidade desta obra precursora da psicanálise infantil. Ao final, propõe um balanço desses pouco mais de cem anos que nos separam do atendimento do Pequeno Hans e apresenta, a partir ainda do texto de origem, algumas possibilidades de perspectivas e desdobramentos para a clínica contemporânea da infância. Palavras-chave: Clínica psicanalítica. O pequeno Hans. Psicanálise da infância. Introdução Em 1909, Sigmund Freud publicou As duas análises de uma fobia em um menino de cinco anos, o clássico caso do pequeno Hans (FREUD, 1909). O historial acirrou ânimos e deu muito o que falar (ou o que escrever) e, pouco tempo depois, tornar-se-ia o precursor da psicanálise infantil a partir dos novamente clássicos trabalhos de Melanie Klein (1923) e Ana Freud (1951), entre outros desbravadores desse campo. Escritor e Psicanalista de crianças e adultos pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. 1 72 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Celso Gutfreind Debruçados sobre essa matéria, ao mesmo tempo clínica e histórica, dividimos o presente artigo em três breves partes a que chamamos atos como forma de homenagear a nossa personagem que se tornaria na vida adulta, apesar de tantas desconfianças a respeito de seu prognóstico, um grande e criativo diretor de ópera. Na primeira parte ou ato, contamos quem é o pequeno Hans. No segundo ato ou parte, destacamos alguns aspectos do pequeno Hans de Freud. Na terceira e última, propomos uma releitura que, entre outras hipóteses, aponta a impressionante atualidade de uma obra precursora da psicanálise infantil e sua pertinência para o que ainda hoje se faz ou tenta se ampliar em termos de perspectivas na clínica com crianças. Mais do que isso, pensamos que se trata de uma publicação marcada por uma pujança que faz da psicanálise, também em seu capítulo infantil, uma verdadeira obra aberta (ECO, 1962). 1 O Pequeno Hans Viena, começo do século passado. Freud já havia publicado A Interpretação dos Sonhos (1900) e, como uma criança que se desenvolve, a psicanálise deambulava e falava muito bem. O criador e sua turma reuniam-se às quartas-feiras para debater o que aprendiam. O grupo, sugerindo novamente as relações entre psicanálise e cultura, incluindo aqui a arte, era aberto a não médicos e a não analistas. Um de seus participantes era Max Graff, um musicólogo pra lá de erudito, pai do pequeno Herbert Graff, que, pouco tempo depois, se tornaria mundialmente famoso como O Pequeno Hans. Freud também já havia publicado seus Três ensaios sobre a sexualidade (1905). Priorizando, entre os conceitos mais caros à sua teoria, a importância dessa sexualidade infantil, ele não via crianças diretamente, mas acreditava que quase vinte séculos de civilização judaico-cristã haviam distorcido o que eram elas de fato (por fora e por dentro). A criança, segundo Freud, era mesmo provida de uma sexualidade, pelo menos no sentido freudiano, ou seja, amplo, histórico, longitudinal do pré-genital ao genital. Com pouco mais de três anos de idade, o pequeno Hans era um menino esperto, espontâneo e que, por isso, correspondia na prática aos anseios teóricos de Freud. Ele se comportava bem mais como uma criança real (de Freud) do que aquela distorcida (vitoriana) ou idealizada pelos preconceitos de uma cultura altamente repressora, conforme o mesmo Freud e todos os observadores atentos aquele período. Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 73 Um pequeno grande Hans em três breves atos Interessado por pintos e pererecas (pela sexualidade, enfim, em seus representantes genitais) de coisas, pessoas e animais, Hans tentava traduzir em palavras (representações conscientes) o que sentia sexualmente (a coisa), movido por uma necessidade de falar e de brincar, verbos e processos tão valorizados por psicanalistas da infância que vieram ulteriormente. O pai, ouvinte atento do filho, contava tudo para um Freud que, embora não atendesse crianças diretamente, exultava ao ver o quanto Hans correspondia ao mundo infantil mais próximo da realidade que ele tentava recompor nos adultos. Enquanto isso, o pequeno Hans crescia sem maiores – mas com neuróticos − percalços. Resumindo o imbróglio de uma vida no seu auge (a infância, para Freud e todos nós), Hans ganhou uma irmã, pouco mais de um ano se passou, e uma fobia eclodiu. Sem querer sair do quarto, com medo de ser mordido por um cavalo numa época plena deles, o menino criou, felizmente, a demanda de um atendimento, fazendo com que o pai consultasse o seu mestre que imediatamente topou a parada de acompanhá-los sem soberba, ainda que indiretamente. Agora sim havia um pedido de dentro para fora, calcado no sofrimento psíquico, restringindo e ampliando o espaço dos diletantes. Tinha um sintoma a ser batido, ou seja, clamando por uma história com papéis a serem ocupados num cenário terapêutico, aberto pelo pai e pelo criador da psicanálise. Bendito sintoma para Hans e nós todos. No caso dele, permitiu que fosse atendido (compreendido) e, no nosso, que a psicanálise da infância pudesse ser construída para muito além do espaço e tempo restritos aos pioneiros protagonistas. 2 O Pequeno Hans de Freud Foram quatro meses de um tratamento indireto, quando Freud intercedeu bem mais como um supervisor. O pai de Hans, banhado pelas ideias do pioneiro, aproximava-se do filho e, depois de debatê-las com o pequeno, levava o material ao grande. Tudo impensável e talvez até mesmo selvagem para os dias de hoje, mas estávamos nos primórdios a desbravar o desconhecido do desconhecido entre pioneiros como pais, paciente e analista de crianças. O tratamento, nesses moldes, foi breve, tendo durado os quatro meses entre janeiro e abril de 1908, tempo suficiente para que o sintoma se esbatesse, encontrando uma história possível, um ano antes da publicação deste historial que, entre outros frutos e desdobramentos, tornou-se a base do atendimento de uma criança através da psicanálise. 74 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Celso Gutfreind Teoricamente, o caso sustenta os complexos de castração e de Édipo que se presta para a compreensão do sofrimento de Hans, além de embasarem os caminhos tortuosos e triangulares da produção de uma fobia. Clinicamente, há um corte analítico clássico a partir de interpretações realizadas paulatinamente e sustentadas nessa teoria. Ao estilo dos historiais freudianos mais tradicionais, trata-se de uma longa e romanesca obra, descrita em detalhes do princípio ao fim. Não é nosso objetivo, no pequeno espaço que nos cabe, descrevê-los em pormenores, porém cabe salientar o cuidado com que o criador da psicanálise (de adultos e crianças) descrevia o seu atendimento: longamente, sem pressa, longe do estilo contemporâneo marcado pelas vinhetas, pelos fragmentos, pelo corte2 (GUTFREIND, 2008). Afinal, além de cientista, o clínico-autor era um escritor de fôlego. 3 O Pequeno Hans de Freud revisitado Nos anos oitenta do século passado, ainda estudante de medicina e já interessado em psicanálise, ouvi falar do Pequeno Hans pela primeira vez. Com alguns colegas, fazíamos um grupo de estudos para arejarmos um pouco das disciplinas duras da faculdade e encontrar uma abordagem mais integrada e humanista. A coordenadora, Liliane Fleming3, mencionou o caso e fui atrás. Eu já tinha feito o mesmo com o Moisés e o monoteísmo que havia lido num fim de semana como um romance histórico que nada devia aos livros de ficção de fôlego que à época tínhamos tempo para devorar. Com O Pequeno Hans, o deleite foi o mesmo, ou seja, mais literário do que científico, saboreando uma narrativa magistralmente estruturada (com humor) e, depois dessa primeira leitura mais lúdica, ficamos muitos anos sem nos ler. Nos anos noventa, uma década depois, já como psiquiatra de orientação analítica, ao realizar uma pesquisa sobre a utilização terapêutica do conto, fiquei impressionado com a referência do caso em quase todos os trabalhos de psicanálise infantil que precisei pesquisar (GUTFREIND, 2002). Ali, não Em nosso próprio estudo, fizemos a hipótese de que Hans representaria, com o sintoma fóbico, uma cultura com doses maiores de recalcamento e menores de atenção. Hoje em dia, o equivalente prototípico de um transtorno seria um quadro de déficit de atenção com hiperatividade, mostrando o quanto os distúrbios, desde a infância, podem ser influenciados pelos aspectos culturais (idem). 3 Atualmente, professora no Curso de Psicologia da UFRGS. 2 Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 75 Um pequeno grande Hans em três breves atos cheguei a relê-lo diretamente, mas nos reencontramos com frequência no boca a boca de muitos autores. Na década seguinte, já psicanalista em formação e num novo século, eu e O pequeno Hans tivemos aquele que seria, pelo menos até o momento, o nosso maior encontro. Eu gozava das minhas férias em Gramado, quando desci ao lobby do hotel para olhar e-mails (o tempo contemporâneo é veloz e, ainda que o episódio seja recente, o wireless capengava àquela época). A primeira mensagem vinha do Rio de Janeiro, assinada pela escritora e editora Nina Saroldi que anunciava uma coleção destinada a reler as principais obras de Freud e convidando alguns autores para (re) apresentá-las. Fui lembrado para O pequeno Hans e, embora estivesse concluindo um livro sobre a parentalidade, não pude deixar de atender o convite, especialmente porque era a primeira vez, depois de mais de uma vintena de trabalhos, que me ofereciam um adiantamento para escrever. Além do mais, era fevereiro, mês de mais gastos do que ganhos. A aceitação, neste clima de sério humor, deu-se sem muita hesitação e com muita necessidade. Aproveitei o prazo de um ano até o final, lendo e relendo a fonte, assim como tudo que pude topar – e não era pouca coisa – a respeito dela. Desse terceiro encontro, destaco alguns aspectos teórico-clínicos que me acompanham até hoje. A versão e os conceitos de Freud estavam intactos com uma história clínica, dando conta do complexo de castração em todas as suas instâncias desde o medo de um menino sentir-se atraído por uma mãe que não filtrava a proximidade incestuosa e de ser retaliado pelo pai (com sua sisudez e seu bigode, posteriormente comparado aos arreios de um cavalo) até o sintoma fóbico, dando conta de tudo isso e muito mais (o sintoma como uma verdadeira obra aberta). Todavia, no meio de uma nova intriga literária entre criador e criatura, mas já vislumbrando acréscimos científicos, havia sintomas em mim também. Assim como recebia um adiantamento pela primeira vez para escrever, pela primeira vez tinha dificuldades de atender a um prazo. À custa de muita análise (mais pessoal do que didática) em busca de meu próprio pequeno Hans (sempre disposto a vir à tona a cada transferência dentro ou fora dos livros), dei-me conta de que revivia uma nova cena edípica com nada menos do que o próprio Sigmund Freud. Afinal, eu era convidado para reescrever um livro desta autoridade soberana e mais: desejava e precisava encontrar o meu próprio caminho, por mais modesto que fosse. Ao final, o que diria o mestre inacessível; pior, o pai castrador com sua obra falicamente grande e neuroticamente insuperável... 76 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Celso Gutfreind Parecia mesmo (como sempre?) um caso de simbiose e individuação. Correto ou incorreto, maior ou menor, eu necessitava de vir à tona de mais esse cenário edipiano, anotando verdadeiramente aquilo que seria fruto de uma leitura pessoal (com seus encontros, evidentemente), legado não desprezível de qualquer leitura ou análise. Se as teses do mestre inatingível seguiam densas e intactas no século seguinte, já era possível (com muita psicanálise e literatura, evidentemente) crescer a partir delas, individualizar-se profissionalmente em relação a elas com eventuais acréscimos, ou seja, lançar algumas pedrinhas próprias a partir de uma experiência clínica sempre pessoal em sua co-construção e também do que pudemos ler do que já fora escrito, desde então, por discípulos que também superaram, mesmo que em parte, seus complexos edípicos. Dito isso, podemos pensar que os conceitos (castração, Édipo, fobia) seguiam intactos à releitura do pequeno Hans, bem como a técnica utilizada, a partir deles, com interpretações se sucedendo a insights ou entendimentos. A neurose seguia em riste como a decorrência de pulsões desconhecidas (incestuosas e maternas, no caso) conforme noções expostas desde os três ensaios, marcadas pela exclusão e sujeitas a retaliação (paterna) De certa forma, da teoria à técnica, o esforço em transformar o inconsciente em consciente (a primeira tópica freudiana) a partir do projeto de uma metapsicologia, continuava vigoroso dentro de uma leitura tradicional (possível e pertinente) do caso. Impressiona mesmo é a abertura da obra a novos conceitos (os acréscimos pessoais) e as possibilidades que oferece para refletirmos sobre o avanço teórico e clínico no que se referem à psicanálise da criança pós-freudiana. Entre outros exemplos possíveis e exploráveis no rico material, destacamos a ênfase que viria a ser dada ao lúdico, o foco no inter e transgeracional, bem como a importância de mediadores como as histórias que já estavam sugeridas no texto original de Freud (sempre interessadíssimo pelo conto e pela literatura) e que, por tudo isso, mostrava-se vigoroso para uma releitura e seus avanços. Entre as reflexões advindas dessa releitura, destacamos: I. Freud, desde o começo, sugeria mais uma vez com propriedade que um sintoma é uma obra aberta. Afinal, por mais que todo o material clínico caísse como uma luva para os dedos de sua teoria, o analista negou-se na prática a concordar com o pai quando esse garantiu que a fobia estava diretamente ligada a uma estimulação erótica excessiva da mãe que punha o filho para dormir com ela durante as ausências paternas. Mas aqui havia muito mais do que um elogio ao tempo e à elaboração: Freud, sem mencionar, expressava o quanto intuía a Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 77 Um pequeno grande Hans em três breves atos importância de trabalhar, junto às crianças, com a parentalidade (conceito recente e contemporâneo, pelo menos em sua sistematização) sem exercer críticas a seus protagonistas (GUTFREIND, 2010a). Estávamos em 1908, seis anos antes da publicação sobre a introdução ao narcisismo, e Freud já voava como um clínico capaz de dar conta desses cuidados ao atender uma família, incluindo, sobretudo, os pais (FREUD, 1914). Hoje, depois dos aportes winnicottianos, são muitos os estudos e as práticas clínicas valorizando esse lugar dos pais na psicanálise da criança, o que também podemos localizar no estudo pioneiro de um Freud já focado em um atendimento que valoriza o contexto, o ambiente da criança e suas interações com o mundo interno (ROSENBERG et al., 2002). II. O pai do pequeno Hans transformou-se como ser humano ao longo da narrativa a partir do encontro com Freud. No princípio, ele tinha a ânsia de interpretar dura e concretamente, correlacionando apressadamente os eventos observados no filho com as teorias da sexualidade do seu supervisor. Ironicamente, era o próprio Freud quem o continha, sugerindo que priorizava a clínica aos conceitos que ele mesmo erigia. Com isso, defendia a criação de um tempo (a elaboração) e a abertura de espaços co-construídos com o paciente. Havia ali, muito além das teorias, um encontro interpessoal e a arte da psicanálise ao conciliar, entre outros desafios, interpretação e tempo. Aos poucos, tempo a tempo, o pai tornou-se mais lúdico (a brincadeira com a girafa, por exemplo, entre tantas outras passagens clínicas expressivas), mais presente, mais acolhedor, com novas e mais positivas representações mentais de seu filho, e uma de nossas hipóteses, além do que se poderia refletir sobre a técnica interpretativa, apontou para a importância dessas novas interações na melhora do Pequeno Hans e o quanto é difícil tratar uma criança sem tratar também o seu ambiente e/ou propor encontros de maior qualidade, temperados por uma forma lúdica e divertida de lidar. Restam, ainda hoje, questões sobre o que teria esbatido os sintomas de Hans: as interpretações de Freud, devidamente baseadas no complexo de castração e de Édipo, conceito que conta fortemente com essa obra para o seu desenvolvimento... Ou foi a proximidade de um pai melhor, propondo relações de mais intensidade e qualidade? Na dúvida, atualmente, no dia a dia, entre a nossa clínica e os referenciais que a sustentam, tentamos, ainda que humildemente, proporcionar os dois, dosandoos a cada caso e suas respectivas evoluções. 78 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Celso Gutfreind De qualquer forma, o próprio Sigmund Freud, antes dos trabalhos decisivos de sua filha Anna e Melanie Klein, já abria as portas para o lúdico junto ao interpretativo, convivência técnica tão em voga nos dias de hoje e não somente com crianças. III. Juntamente com o item anterior, observamos que muitas histórias foram contadas ao longo das idas e vindas do tratamento do Pequeno Hans. O evento máximo deu-se no único encontro entre paciente e analista, pelo menos descrito no livro, já que, como é sabido, Freud conhecia a família e havia tratado a mãe de Hans anteriormente. No comovente encontro relatado no texto, Freud comunica ao Pequeno Hans que há muitos anos esperava encontrar o menininho que, de tanto amar a mãe, temeria o pai. Ele fala com Deus? – perguntou na saída um Hans quase incrédulo para o pai, dando conta da satisfação de se sentir compreendido nesta vida, especialmente depois de um (longo) tempo, trocando histórias ludicamente, ainda que amparado por conceitos. Compreendido sim – e nada poderia em psicanálise ou na vida ser mais atual do que isso − mas também no contexto de um encontro que, além de abrir espaços, mostra-se repleto de transferências com rearranjos de objetos internos a partir da empatia que o sustenta e de histórias – o cimento − que são contadas. A narratividade, portanto, abre um espaço para se pensar na importância da intersubjetividade, hoje atribuída à psicanálise como, aliás, a sua guardiã num mundo de imagens tão concretas, de tanta pressa e superficialidade na ingerência de conflitos. Nesse sentido, a co-construção de um tecido interafetivo mais profundo, a partir de um encontro, assume um lugar primordial no desenvolvimento da pessoa. Há autores, inclusive, que chegam a enfatizar a psicanálise como um dispositivo cujo arsenal tem no implicar-se algo mais importante do que no explicar (CICCONE, 2007). Freud, enquanto explicava paulatinamente, implicou-se muito com seu pequeno paciente, e os estudos da narratividade mostraram-se também fundamentais nas décadas que sucederam os primeiros trabalhos freudianos. Podemos mencionar, entre tantos outros, os aportes de Bruno Bettelheim sobre os contos de fada e, sobretudo, a valorização que Winnicott sempre atribuiu à construção de um espaço transicional construído entre a mãe e o bebê, baseado formalmente nas interações entre ambos e com o conteúdo marcado pelas histórias, pela cultura, pela arte, ou seja, eminentemente narrativo (BETTELHEIM, 1976; GUTFREIND, 2010b; WINNICOTT, 1971). Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 79 Um pequeno grande Hans em três breves atos O texto e suas faltas, as emoções e seus preenchimentos promovem essa ligação: ambos encontram o seu nascimento (ou cura) na palavra. Os processos narrativos tornam-se, enfim, valiosos para acompanhar o que se passa no desenvolvimento de uma criança, seja longitudinalmente ao longo de sua vida, seja na transferência transversal durante o tratamento, quando também observamos, nos casos de melhor evolução ou descobertas, o surgimento de um ego mais narrativo (STERN, 1992). Conclusão Retomamos, em busca de alguma conclusão possível (mas qual narrativa faria senão preparar novas questões...), os ânimos acirrados depois da publicação da obra. Teria sido o pequeno Hans vítima da psicanálise, de seu criador e seus anseios de construir uma ciência? Seria ele uma criança normal? Portadora de outros diagnósticos ainda mais graves? Aqui sobram questões como em torno de toda grande obra, em meio a um dispositivo (analítico) mais afeito a perguntar do que a responder, mas as evidências (termo médico bastante utilizado na contemporaneidade) apontam para o importante fato que, a partir de então, as crianças não precisariam mais estar reclusas a intervenções educativas, religiosas ou simplesmente negligenciadas em seu sofrimento psíquico e poderiam agora se beneficiar de uma escuta analítica, compreensiva, dinâmica. A publicação, no mínimo, abriu essa valiosa porta, sempre frágil e podendo ser fechada novamente, haja vista a valorização contemporânea de tratamentos mais breves e/ou medicamentosos. Mas novos e importantes precursores a abriram e sucederiam a Freud como a sua filha Anna, valorizando a importância do desenho ou da preparação da criança para o atendimento analítico, e Melanie Klein, desenvolvendo o papel do jogo como equivalente às associações livres (FREUD, 1951; KLEIN, 1923), tornando a criança analisável, e mesmo o mencionado Winnicott com suas contribuições valiosas à compreensão do papel essencial exercidos pela mãe e pelo ambiente. No caso deste, se atentarmos a seu historial igualmente clássico e de fôlego, The pigle, veremos o quanto há ecos de Hans já na década de sessenta, quando o caso foi escrito (WINNICOTT, 1979). Somam-se a eles os novos psicanalistas da infância e sua luta para manter aquela porta aberta. Em meio a isso, impressiona que Freud, embora seguisse não atendendo crianças – indiretamente tampouco – tenha fomentado tantas ideias com essa obra precursora. Acabamos de percorrer algumas delas como 80 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Celso Gutfreind a parentalidade, a forma lúdica de um tratamento com a aquisição da mesma pelo cuidador e a narratividade (incluindo, aqui, a importância do inter e transgeracional), todas assíduas na teoria e na clínica contemporânea, o que nos permite afirmar que Freud, na continuidade de seu trabalho, à medida que seguia atendendo adultos com suas crianças recompostas, trazia em seu aparelho psíquico a noção afetiva e verdadeira de uma criança aqui e agora. Em outras palavras, talvez não haja psicanálise do adulto que não precise considerar as noções primordiais da análise de uma criança. De qualquer forma, o pequeno Hans seguiu com Freud no atendimento aos grandes, assim como permanece entre nós que atendemos adultos (com suas crianças internas) e crianças em meio a seus adultos. Ali estão as bases de um método para compreender a experiência humana que priorizaria a forma ao conteúdo, tornando-se, de certa forma, mais afeito à poesia de suas entrelinhas do que à aparente abundância de sua prosa. Parodiando Joyce MacDougall, poderíamos utilizar aqui a expressão em defesa de certa musicalidade em detrimento de, simplesmente, uma cura pela palavra. Mais de cem anos depois da publicação original, pode-se hoje dizer com folga e afinação que a música deste que se tornaria um diretor de óperas soa ainda e cada vez mais afinada no dia a dia de nossas análises. A little big Hans in three short acts Abstract: In this article, the author proposes a reinterpretation of the classic publication of Sigmund Freud referring to the Little Hans case, originally published in 1909. The first part briefly presents the character according to the original references. In the second, the article synthesizes aspects considered important in this publication. The third and main part takes the conclusion most important parts that considers fundamental to a study in which he tried to deepen in the case in order to reflect on the relevance of this precursor work of child psychoanalysis. In the end, proposes a balance of these hundred years that separate us from the Little Hans treatment, and presents, from the source text, some possible prospects and developments for the contemporary clinic for infants. Keywords: Childhood psychoanalysis. Little Hans. Psychoanalytic clinic for infants. Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 81 Um pequeno grande Hans em três breves atos Referências BETTELHEIM, Bruno. Psychanalyse dês contes de fées. Paris: Robert Laffont, 1976. CICCONE Albert. Naissance à lapensée et partage d’affects. Apresentado no Colóquio Vinculos tempranos, clinica y desarrollo infantil. Montevidéu, agosto de 2007. ECO, Umberto. L’œuvre ouverte. Paris: Seuil, 1965. Trabalho originalmente publicado em 1962. FREUD, A. 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Originalmente publicado em 1971. ______. The pigle : relato do tratamento psicanalítico de uma menina. Rio de Janeiro: Imago, 1979. Celso Gutfreind Rua Des. Moreno Loureiro Lima, 445 / 202 90450-130 Porto Alegre – RS – Brasil e-mail: [email protected] Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 83 Freud e os pós-freudianos sobre as patologias atuais Laura Ward da Rosa1 Resumo: Desenvolve-se um estudo sobre a clínica atual, partindo da descrição freudiana dos estágios iniciais, que ele designou eu real primitivo, seguido pelo eu de prazer purificado e chegando ao eu real definitivo, correlacionando a constituição subjetiva e as defesas que interferem nesse processo. Sabe-se que nas psiconeuroses há um conflito inconsciente, de natureza edípica, que sofre repressão (Verdrängung) e que estão norteadas pelo princípio do prazer/desprazer e pelo princípio de realidade. Nas patologias contemporâneas, deparamo-nos com quadros clínicos mais próximos da descrição de Freud das neuroses atuais, nas quais não há conflito recalcado, predominando as manifestações diretamente no soma, pela falta de simbolização. Nesses casos, transitamos pelas defesas do negativo: Verneinung (denegação), Verleugnung (recusa da realidade) e Verwerfung (forclusão ou rejeição). Os excessos pulsionais manifestam-se diretamente no corpo, como em distúrbios psicossomáticos, alimentares e nas toxicomanias, expressões clínicas que estão além do princípio do prazer, campo do gozo e da pulsão de morte. Palavras-chave: Defesa. Eu. Fronteira. Gozo. Limite. Prazer. Grande evolução ocorreu na psicanálise a partir da metade do século passado até os dias atuais. O psicanalista enfrentou o desafio de atender no território das bordas e fronteiras, atreveu-se a investigar os chamados casos de difícil acesso, passou a entender melhor os mecanismos arcaicos do funcionamento psíquico. Membro Titular da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. 1 84 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Laura Ward da Rosa Assim, ampliou a clínica psicanalítica, dedicando-se a um grande número de pacientes que demandam atenção devido ao um tipo de sofrimento, antes não bem entendido: se o instrumento é a palavra, eles não sabem falar; se o recurso é expressar os afetos, eles não podem senti-los. Aos desvalidos do recurso simbólico restava, antes, buscar dar vazão a esse tipo de angústia, advinda diretamente do soma: comer em excesso ou não poder alimentar-se, usar drogas cada vez mais potentes e aprimoradas no seu poder destrutivo, além de nicotina e álcool, ditas lícitas, num paradoxo questionável para uma sociedade ávida de experiênciaslimite. Também esses pacientes podem apresentar compulsões variadas e mesmo lesões em órgãos vitais, como nas manifestações psicossomáticas. Detectamos, ainda, a produção de marcas corporais em tatuagens e piercings ou em cortes autoengendrados na busca do registro de uma identidade falha. Pela impossibilidade de tramitar a angústia por meio da palavra, verificam-se passagens ao ato, visando ao alívio do excesso de puras quantidades, não qualificadas, da tensão intrassomática. Poder trabalhar nessa fronteira é tarefa do psicanalista de nossos dias, após adentrar na psicopatologia dos estágios mais primitivos do funcionamento psíquico. É importante ressaltar que Freud, bem no início de suas observações sobre a histeria, em seu artigo As neuropsicoses de defesa, de 1894, estudando a constituição do eu e os mecanismos de defesa, destaca a ocorrência de neuroses mistas, com o aparecimento simultâneo de fobias e sintomas histéricos, como algo frequente na clínica. Afirma, ainda, que o eu, para escapar de uma ideia incompatível, pode refugiar-se numa psicose alucinatória, afastando-se da realidade. Nesse caso, é claro e preciso ao afirmar: Há, entretanto, uma espécie de defesa, muito mais poderosa e bem-sucedida. Aqui o ego rejeita a ideia incompatível juntamente com seu afeto e comporta-se como se a ideia jamais lhe tivesse ocorrido. Mas, a partir do momento em que o tenha conseguido, o sujeito encontra-se numa psicose, que só pode ser qualificada como confusão alucinatória (FREUD, 1894, p. 71). Era já a genial captação da Verwerfung, que vai ser depurada somente a partir de 1925, no artigo Die Verneinung – expressão erroneamente traduzida por A negativa, hoje admitida como denegação. Nesse trabalho, Freud aborda a questão das ideias reprimidas (Verdrängung), que somente podem ser admitidas na consciência se estiverem negadas. Desse modo, a Verneinung expressa a dupla operação de negar algo, ao mesmo tempo em que o confirma. Dentre as negações constitutivas do sujeito, encontram-se ainda a recusa da realidade (Verleugnung) e a forclusão, Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 85 Freud e os pós-freudianos sobre as patologias atuais repúdio ou rejeição do significante primordial (Verwerfung) – esta muito mais radical – que são justamente as defesas predominantes nas patologias das bordas e fronteiras. Freud usou os dois termos de maneira bastante ampla. É com Lacan, porém, que o vocábulo Verwerfung ganha status de mecanismo específico das psicoses, que ele traduziu por forclusão, conferindo a essa defesa o papel de excluir o pai simbólico como significante primordial. Dirá, então, que o Nome do Pai é o objeto da rejeição e que estará forcluído nas patologias mais graves. Essa rejeição impede o sujeito de simbolizar a castração e, desse modo, de admitir a falta e o limite. Partindo de Freud, no Projeto para uma psicologia científica, de 1895, e nos seus desenvolvimentos posteriores, bem como nos autores pós-freudianos, chegamos à compreensão das patologias contemporâneas como falhas na organização do eu real primitivo, por traumas precoces que determinam pontos de fixação nos estágios mais iniciais da constituição subjetiva. Assim, Freud descreve um estágio inicial pré-psíquico, a partir do nascimento, no qual existe uma organização neuronal capaz de originar uma consciência sensorial, derivada da percepção de estados corporais. As experiências subjetivas primitivas estão intimamente relacionadas às sensações oriundas do corpo; nesse estágio em que o ego se compõe de núcleos aglutinados (BLEGER, 1977), ainda não houve a integração. O segundo tipo de consciência seria já de natureza propriamente psíquica, a partir da ativação de marcas mnêmicas que, então, expressariam pensamentos regidos pelo processo secundário. O período neuronal inicial funciona a partir de estímulos exógenos e endógenos, e capta apenas quantidades que são descarregadas ou em contrações musculares ou pela via endógena, por meio de secreções e mecanismos vasomotores. Esse período, que Freud chamará eu real primitivo, rege-se pelo princípio de constância, através do qual os estímulos captados pelo polo perceptual, vindos do exterior ou desde o interior do organismo, são descarregados pelo polo motor, seguindo o modelo do arco reflexo. A função principal do eu real primitivo, de acordo com a pulsão de autoconservação, é promover a eliminação dos excessos de tensão e manter o aparelho psíquico em níveis de mínima excitação compatível com a vida. Para tanto, esse eu primitivo deve adquirir a capacidade de discriminar o dentro e o fora, aprendendo os distintos momentos dos ritmos biológicos de satisfação das necessidades, fornecida pela ação específica promovida pela mãe, que empatiza e satisfaz o seu bebê. Se há sintonia entre a necessidade e a satisfação, promove-se o bem-estar básico, com a descarga que produz alívio das tensões e prazer – embora nessa fase unicamente de órgão. 86 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Laura Ward da Rosa Ainda não estamos no princípio do prazer, que se instala mais tarde com o eu de prazer purificado. Sabe-se que dos estímulos internos não é possível fugir. Quando há falha nesse mecanismo de equilíbrio, quando não há sintonia entre as necessidades e as demandas do bebê e a oferta materna ou do objeto cuidador, forma-se um ponto de fixação originado pelo acúmulo de excitação e pelo incremento da angústia que será, então, descarregada diretamente nos órgãos vitais – como o aparelho respiratório, o circulatório e o digestivo, primeiros investimentos libidinais que, a partir do nascimento, mantêm a sobrevivência – ou através da pele, como envoltório e elemento de contensão corporal. Winnicott (1990) captou a importância da sintonia materna em relação às necessidades do bebê e estabeleceu os conceitos de mãe suficientemente boa e preocupação materna primária para expressar o papel central da mãe: de estar atenta, decodificar e satisfazer adequadamente o filho nos diferentes momentos evolutivos. Pesquisas demonstram a importância dos ritmos e sintonias na relação mãe-bebê, as vicissitudes desse encontro e a comprovação do quanto a patologia materna pode determinar manifestações sintomáticas no pequeno ser, que não tem recursos próprios para contrapor-se às intrusões ou desconexões maternas. Tustin (1990) descreveu núcleos autistas em pacientes neuróticos graves, nos quais há pontos cegos relativos aos processos cognitivos e afetivos capazes de encapsular o sujeito pela falta de percepções e representações adequadas de si mesmo e do mundo circundante. Sabemos que as pulsões, por serem somáticas, para chegarem a expressar-se psiquicamente, necessitam do representante representativo e do afeto, que promove ligações ao objeto e outorga qualidade psíquica. Para que haja consciência, é necessário o investimento afetivo. O componente mais importante do afeto é o que Freud chamou de matiz, sugerindo que, quanto mais atuante, mais o sujeito adquire condições para fazer ligações, para captar a realidade e ter consciência adequada do mundo externo. Green (1993) desenvolveu a concepção de clínica do vazio, ou do negativo, também chamada de série branca, que engloba a psicose branca ou núcleo psicótico sem psicose, a alucinação negativa e o luto branco. Essas patologias originam-se em sérias alterações na capacidade de representação, devido a uma relação mãebebê extremamente perturbada, que compromete a constituição do eu e, como consequência, do supereu, com profundas distorções e alteração da capacidade simbólica. Para Green (1993), o mecanismo de defesa fundamental nesses casos é o desinvestimento. Nesses quadros clínicos, há um desinvestimento massivo, por parte do objeto, o que deixa marcas no inconsciente, como se fossem buracos psíquicos. O sujeito apresenta uma vida vazia, com manifestações de fracasso profissional ou amoroso, com repetição de abandonos, enfim, desvitalizados. O Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 87 Freud e os pós-freudianos sobre as patologias atuais complexo da mãe morta evidencia uma depressão branca, no sentido de que não se trata da perda real do objeto, mas de sua presença, porém sem afeto. A mãe ausentou-se de seu filho e ficou absorta, narcisicamente, em seu próprio luto. A criança sofre esse desinvestimento súbito e se identifica com o vazio da mãe desvitalizada – o que Green (1988) chama de identificação negativa, porque não se dá com o objeto, mas com o vazio deixado pelo desinvestimento. Marty (2003) apresentará outra abordagem, mais especificamente referindo-se ao paciente psicossomático e às neuroses de caráter. Nesses pacientes, pelo vazio representacional, não há vida fantasmática. O sujeito apresenta-se sobreadaptado e apegado ao discurso factual. O pensamento operatório, isto é, sem ligações com percepções e fantasias, limitado no acesso aos símbolos, torna-o apegado ao concreto e impede a expressão dos afetos, de modo a configurar-se uma verdadeira vida operatória. Esta, geralmente, está ligada à depressão essencial, que consiste numa depressão sem objeto, sem culpa e sem autoacusação. A ferida narcisista e o déficit de trabalho mental incrementam a repetição da descarga dos excessos unicamente por via somática, razão pela qual os pacientes adoecem no corpo, sofrendo lesões que refletem a dificuldade de tramitar a angústia pelo uso da linguagem. Devemos a Lacan (1957-1958) um importante legado na compreensão das patologias contemporâneas, no sentido de diferenciar necessidade, demanda e desejo, por um lado, e prazer e gozo, por outro. Sabemos que Freud utilizou a palavra alemã lust para designar prazer e a palavra genuss, quando se referia a gozo – descrito como prazer extremo, êxtase ou volúpia. Usou, porém, poucas vezes a segunda, e não seguiu aprofundando essa distinção. Lacan dedica-se intensamente a esse estudo a partir de 1960. Considera o princípio do prazer como homeostático, o que promove o equilíbrio psíquico, impedindo o excesso, que chama gozo, porque só pode se manifestar no corpo. Tanto na clínica dos distúrbios alimentares como nas toxicomanias essa diferenciação é importante. Na necessidade, o sujeito satisfaz-se com o objeto em si; embora saibamos que ela não exista em estado puro, sempre há um signo de linguagem que a acompanha. Na demanda, porém, sempre está implicado um Outro, porque ela é uma demanda de amor. A mãe que a criança solicita não só satisfaz a necessidade de alimento como também expressa o amor e o olhar de ternura, de reconhecimento do filho como sujeito. Sabe-se que na base da anorexia e da bulimia esse dilema se presentifica, de maneira que, no plano da necessidade, a criança foi atendida, por vezes até alimentada em excesso, enquanto no da demanda foi ignorada, não atendida no sentido do afeto e do olhar que transmite a aprovação, necessário ao narcisismo trófico. 88 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Laura Ward da Rosa A partir desse desencontro inicial, desse trauma precoce e intenso, o sujeito passará a rejeitar a demanda, pelo mecanismo da forclusão, enquanto recusa a necessidade de alimento. O abandono ou a diminuição do investimento na criança determina uma espécie de refluxo narcísico no qual o sujeito passa a preocupar-se excessivamente consigo mesmo, numa luta paradoxal com o objeto da necessidade, o alimento. A descoberta de Freud trouxe à luz a constituição do corpo erógeno, construído a partir do corpo biológico, através do investimento afetivo que coloniza inicialmente as zonas erógenas para depois ser concebido como toda uma superfície capaz de excitação sexual e, portanto, de inscrições dos estímulos sensoriais. Quando o corpo real não passa por esse processo, o significante permanece desligado da representação simbólica, mudo às emoções e às manifestações da pulsão de vida, como constatamos nos casos de anorexia, na qual o soma predomina, numa fixação masoquista de excitação que ultrapassa os limites do prazer, atingindo o domínio do gozo, conceituado por Lacan como todo o excesso para além do princípio do prazer, algo que extrapola e passa a produzir dor e sofrimento – campo privilegiado da pulsão de morte. Também nos casos de drogadição encontramos essa luta necessidadedemanda e a busca constante do objeto droga. A clínica demonstra que o toxicômano utiliza-se do recurso químico para tentar se afastar do Outro que é excessivamente presente, desenvolvendo o que Fédida (2002) chama adição da ausência. Observa-se que, nesse âmbito das patologias contemporâneas, a marca básica na determinação dos sintomas é a presença, no inconsciente, do objeto tirânico que não se afasta e que submete o paciente aos seus desígnios. Winnicott (1990) advertira a importância da mãe que saiba falhar, no momento certo, para liberar seu bebê, de modo a proporcionar ao filho a autonomia e o desenvolvimento adequados. Lacan (1956-1957) trabalhou muito a função indispensável da falta, descrevendo suas três dimensões: a frustração, a privação e a castração. Desde Freud sabemos que, para que se instale o símbolo, é necessária a configuração da ausência; o processo de subjetivação coincide com a perda do objeto, para que se adquira a capacidade simbólica. Essa perda provocadora de desprazer é o que impulsiona o psiquismo à representabilidade da ausência e, uma vez se admitindo a falta, à aquisição do próprio desejo. Mas, para tolerar essa perda, é fundamental contar, no início, com a presença e o amor de um Outro, holding (Winnicott) ou continente (Bion), que forneça as condições necessárias à sobrevivência e à subjetivação. A mãe deve retirar-se progressivamente, Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 89 Freud e os pós-freudianos sobre as patologias atuais respeitando o limite e o tempo do advir do sujeito. Esse movimento, a mãe dos pacientes portadores das patologias atuais não proporciona. Ela é plena, narcísica, apossa-se do filho, condenando-o à alienação. Assim, para Cláudia, que está com doze quilos a menos do que deveria para a sua altura, por mais que evite comer e malhe na academia até a exaustão, sempre se acha gorda e é advertida pela mãe de que tem pneuzinhos em sua cintura. Ela não encontra o prazer de uma boa refeição porque o espelho, seu algoz, sempre lhe sussurra que existe outra mulher mais bela do que ela: sua mãe magérrima e vampiresca, a cobrar-lhe magreza, não lhe permitindo desenvolver formas femininas e desfrutar da sexualidade e do prazer genital, obrigando-a ao gozo tanático, de características orais. Ao permanecer capturada no desejo da mãe, evidencia-se a falta do pai, que pudesse interditar a relação simbiótica mãe-bebê, instalando a lei da proibição do incesto, ao privar a mãe de seu bebê e instalar a castração simbólica. Vê-se claramente a operação da Verwerfung rejeitando a entrada do terceiro, no caso o pai, que opere a separação. Desse modo, a falha da função paterna impede a instalação da alteridade e da diferença. Lacan (1957-1958) destacou a importância da resolução positiva do complexo de Édipo para que os pais ocupem os devidos lugares, possibilitando o desenvolvimento adequado do filho. Assim, a mãe que admite a necessidade do homem para a concepção e a criação do bebê reservará o lugar do pai. O exercício da metáfora nome do pai, ou função paterna, é o elemento estruturante da constituição subjetiva. Ao contrário, quando a mãe se apossa narcisicamente do filho, desvalorizando e afastando o companheiro, a separação não ocorre. A criança permanece, então, alienada ao desejo da mãe. Cláudia me relata, com expressão de triunfo, sua satisfação ao dominar a fome, tomando copos d’água, fazendo exercícios e fumando até cair morta de cansaço na cama e dormir. Quando consegue não comer, considera-se vitoriosa, acima dos comuns mortais, que precisam alimentar-se. O gozo, diferente do prazer, coincide com o excesso e com o máximo de angústia pelo risco de, repetidamente, desafiar a morte. Na anorexia, a forclusão é plenamente detectada na alucinação negativa do corpo real, visto no espelho como aumentado, enquanto a realidade demonstra o oposto. Há uma enorme distorção da percepção de si mesmo e da imagem corporal. A compulsão pelas situações de risco também encontro em Henrique, campeão de motocross, que exibe com orgulho suas cicatrizes por fraturas múltiplas. Afirma que jamais deixará de correr porque a adrenalina da velocidade e dos perigos que enfrenta é sua razão de viver, porque, quando sofre uma fratura, é quando sente que tem um corpo. Tudo o que não foi simbolizado aparece 90 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Laura Ward da Rosa no Real, diz Lacan. As cicatrizes precisam tornar-se visíveis para que o sujeito perceba que tem um corpo. Green (1990) propôs uma nova clínica psicanalítica para esses casos, a que prefere chamar de loucuras privadas, enquanto diferentes autores utilizam distintos termos, como pacientes de difícil acesso, alexitimia ou patologias do desvalimento, segundo Maldavsky (1992). Esses quadros clínicos produziram uma mudança importante no settting. Não se trata mais somente de levantar a repressão de um conflito neurótico, mas de ajudar o paciente a simbolizar ou a integrar aspectos cindidos do eu. Não mais interpretações do reprimido, mas construções que promovam ligações, elaborações e historização. O trabalho nesse território de fronteira implica considerarem-se o nível de regressão e os tipos de repetição. Destacam-se, assim, dois tipos de repetição: as repetições que aparecem no discurso, que têm acesso à palavra e que, portanto, estão ligadas a representações; e as repetições em ato, nas quais não houve inscrição e que se expressam na conduta, por passagens ao ato, ou diretamente no corpo, por meio de lesões somáticas. Nesse sentido, Marty (2003) avalia o grau do que chama mentalização do paciente, que inclui a atividade representacional e a capacidade fantasmática. Ele considera dois tipos de somatização: um, mais benigno, no qual predomina um funcionamento mais organizado, do tipo neurótico, no qual se podem manter o setting clássico e o uso do divã; outro no qual houve desligamento pulsional. O eu não logrou uma organização neurótica, por traumas precoces e profundos, determinando uma fixação narcisista que resultou numa vida operatória, que inclui a depressão essencial e o pensamento operatório. O sujeito funciona sem tonalidade afetiva, sobreadaptado, com pensamento concreto e ausência de fantasias. Neste caso está contraindicado o dispositivo analítico clássico e o uso do divã porque há a necessidade do contato visual com o analista, que se vale de sua capacidade empática para fornecer os signos e a expressão do afeto, que o paciente não pode sentir. A exigência ao trabalho do analista é significativamente aumentada. Concluindo, lembramos que Freud afirmou ser uma pré-condição, para que haja um perfeito ajuste ao princípio da realidade, que o objeto tenha sido perdido, para que o encontro seja, de fato, um reencontro. Os pacientes das patologias contemporâneas são justamente aqueles nos quais não se deu a perda do objeto que Lancan chamou de objeto a, predominando o registro do real, em relação ao simbólico e ao imaginário. Cabe ao analista a tarefa de tentar iniciar esse processo constitutivo da subjetividade, propiciando ao analisando a simbolização e a posse de seu próprio desejo. Ser ou não ser, disse Hamlet, eis a questão. Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 91 Freud e os pós-freudianos sobre as patologias atuais Freud and post-freudians about current pathologies Abstract: The current clinical approach is discussed based on Freud’s description of initial stages, which he called the real primitive ego, followed by the purified pleasure ego and by the real definitive ego, establishing a correlation between the subjective constitution and the defenses that interfere with this process. It is commonly known that in psychoneuroses there exists an unconscious conflict, oedipal in nature, which endures repression (Verdrängung), and that these psychoneuroses are guided by the pleasure/unpleasure principle and by the reality principle. In contemporary pathologies, we are faced with clinical pictures that closely resemble Freud’s description of actual neuroses, in which no repressed conflict exists, with predominance of manifestations directly in the soma, due to the lack of symbolization. In these cases, defenses involve negative mechanisms: negation (Verneinung), disavowal (Verleugnung) and foreclosure (Verwerfung). Excessive drives manifest themselves directly in the body, as occurs in psychosomatic and eating disorders and addictions, clinical expressions beyond the pleasure principle, the enjoyment field and the death drive. Keywords: Boundaries. Defense. Ego. Enjoyment. Frontiers. Pleasure. Referências BLEGER, J. Simbiose e ambiguidade. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. FÉDIDA, P. Dos benefícios da depressão: elogio da psicoterapia. São Paulo: Escuta, 2002. FREUD, S. (1894). As neuropsicoses de defesa. In: ______. Obras psicológicas completas. v. 3. Rio de Janeiro: Imago, 1980. p. 71. ______. (1895). Projeto para uma psicologia científica. In: ______. Obras psicológicas completas. v. 1. Rio de Janeiro: Imago, 1980. ______. (1925). A negativa. In: ______. Obras psicológicas completas. v. 19. Rio de Janeiro: Imago, 1980. GREEN, A. 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Laura Ward da Rosa Rua Dona Laura, 207 / 402 90430-090 Porto Alegre – RS – Brasil e-mail: lauraros@terra .com.br Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 93 Mal Estar na cultura: diálogo com Freud, Herr Professor Silvia Brandão Skowronsky1 Resumo: Reflexões sobre os cem anos da psicanálise de Freud, legado fundamental e fundante, fonte de transmissão de conhecimento propício para pensar, na atualidade, sobre o Mal Estar. Atualizar a memória cria elo entre passado e futuro. Movimento que viabiliza representações, condição para narrativas singulares e historizantes. Construção psíquica que contém as marcas de nascença desde a biologia na complexa articulação com a cultura. Palavras-chave: Desamparo. Inconsciente. Mal Estar. Psiquismo. Representação. Violência. Existem muitos modos de estar no mundo. Além da diversidade, o modo de estar no mundo se altera, muda com o tempo. Há um século, a psicanálise de Freud descobriu que o humano é múltiplo e singular, e que o mundo é mais complexo do que alcançamos pensar. Freud apontou a possibilidade de transformação do desamparo humano em pensamento e história. Há cem anos, Freud interrogou o conhecimento e o saber. Sistematizou seus achados a partir dos instigantes desafios demandados pelos sintomas das histéricas. Fundou a psicanálise com a descoberta do inconsciente. Definido atemporal, condição da memória, do esquecimento, com a especial qualidade de significação a posteriore, de retrospectiva, nachtraglich. Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. 1 94 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Silvia Brandão Skowronsky A psicanálise de Freud inaugurou uma concepção original e inédita, na qual se inclui a proposta da noção de psiquismo articulado entre o biológico e a cultura. Contém ambas as perspectivas, sua teoria do funcionamento psíquico constrói a ideia de um psiquismo capaz de trabalhar. Como o trabalho psíquico da elaboração onírica, de sintomas, na elaboração do luto, na capacidade de simbolização e de construção de representação psíquica. A realidade psíquica é a marca humana da singular verdade vivencial, que afirma versão diferente da versão histórica, factual e material, essa condição situa que a verdade é multideterminada, perspectiva que descentra qualquer certeza. Eis a incerteza para indagação, para interrogação da análise do campo inconsciente. A proposta freudiana da realidade psíquica, com a versão vivencial e singular, abre o tempo do inconsciente, especial marca daquilo experimentado, um limite do representável, ou do excesso, pensável ou não. Nesta perspectiva, quem fala não é quem diz. Quem é, nem sempre é quem pensa que é. Campo propício para as indagações com o método inventado por Freud. Freud trabalhou cinquenta anos na construção da concepção teórica da psicanálise. A metapsicologia pode ser considerada como um mapa de cada época, pode ser estudada, revisitada, e revisada com a inclusão de novos conhecimentos. A elaboração conceitual não se demarcou de uma só vez, gradativamente se complexizou. Nesse sentido, a cronologia nem sempre indicou avanço teórico, mas numa perspectiva dialética, a evolução do pensamento e do corpo teórico freudiano foi se articulando. Desenvolveu a concepção de inconsciente, da sexualidade infantil (teoria do narcisismo e do complexo de Édipo), e a teoria das pulsões com seus destinos, como o recalcamento e a sublimação. A concepção de psiquismo situa a importância da noção de representação. A ideia de psiquismo supõe delicada construção. Envolvida com a sexualidade, articulada na experiência de satisfação, de um lugar narcisista para a vivência triangular, edípica, com os limites do interdito ao incesto, que introduz importantes leis humanas, de respeito às diferenças e de direitos partilhados. Lugar da ética da responsabilidade. O psiquismo, como uma marca de nascença contém o biológico, o herdado, o adquirido e o construído. Freud, no decorrer de sua obra, indagou problemáticas que irradiavam desafios, para pensar soluções e respostas conceituais. Solucionou os desafios da neurose2, modelo em que a elaboração psíquica e a representação com o Problemáticas da neurose: os sintomas neuróticos desafiaram a construção de paradigmas e levaram à elaboração do modelo do sonho e a concepção da neurose, situando um lugar 2 Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 95 Mal estar na cultura: diálogo com Freud, Herr Professor recalque criam sonhos e sintomas; os desafios do traumático3; e os desafios da não neurose4, modelo que nasce da falha ou da falta de representação psíquica. Construção conceitual que organizou modelos e alguns paradigmas. Resumindo, com Freud temos o tempo do inconsciente, que mediante a representação se faz revelável com a palavra; o tempo do trauma, expressão do excesso, com angústia que demanda elaboração, com a mediação psíquica; e o tempo do ato, expressão em ação sem representação. A procura de saber abre o tempo da pergunta! Um grande desafio humano é saber viver o tempo, e, incluir o saber do tempo precedente5. Saber o valor de raízes e asas. Solucionar a questão da fome e do amor é um significativo esforço humano que cria contradições. Poder é uma problemática de outra natureza. A simbolização é um patrimônio da humanidade que inventa inúmeras soluções. Os humanos nascem desamparados, despreparados e dependentes de cuidadores, chamados de mãe e pai, cuja função é alimentar com a experiência de viver em dois, em três, com o múltiplo, no mundo. É o infantil do humano, raiz que abriga as asas. Paradoxal dependência de um cuidador, pois dela nasce a capacidade de autonomia. A condição de desamparo atribui especial lugar ao materno e ao paterno na experiência infantil, demanda de um verdadeiro ninho criador, porque tem a potência de organizar recursos para a vida adulta, e contém o paradoxo das posteriores dificuldades e limitações. Para Freud, o psiquismo foi construído desde o nascimento, a partir da condição de desamparo, apoiado nos cuidados do semelhante, na direção de complexidades adquiridas, cada vez maiores. Movimento que articula a experiência humana de uma dimensão biológica para uma dimensão psíquica, incluindo a dimensão da cultura. O humano é múltiplo e particular, um singular central para a representação da pulsão sexual. Supõe a problemática do conflito intrapsíquico, da transgressão, e do recalque como destino da pulsão sexual. Pressupostos conceituais: inconsciente (representação e recalcado), a sexualidade infantil (pulsão sexual, narcisismo e Édipo), e a transferência (repetição e atualização a posteriore). 3 A problemática da angústia: desafia porque inexiste representação, assim uma intensidade, um excesso, inunda o psiquismo, que fica incapaz de mediação psíquica. Pressuposto conceitual: o trabalho de elaboração e mediação psíquica realizado pelo ego, define a importância da representação psíquica e os efeitos do não representado. 4 A problemática da não neurose: desafio originado pela compulsão à repetição, um agir carente de representação, como um irrepresentável com risco destrutivo. Pressuposto conceitual: a concepção de pulsão de morte. A representação tem seus limites. 5 As influências dos antepassados, ou dos contemporâneos, provocam admiração e concordância ou aversão e críticas, e constroem a base das ações humanas transformadoras. 96 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Silvia Brandão Skowronsky ser. A interação humana consigo mesmo e com o mundo desafia o equilíbrio psíquico. Paradoxo de recursos e fragilidades, condição propícia aos efeitos do aleatório, que abriga possíveis causas de mal estar humano. Para dialogar com o mal estar vamos interrogar o tempo, que só pode ser apanhado numa narrativa. Um recurso é a memória, que nos leva em qualquer tempo vivido. Precisamos do contexto. A história contém o relato. Pensar as passagens do tempo situa um contexto, mesmo enquanto atualizada contém o antigo ainda presente. Reflexões de Freud sobre o mal estar na cultura O mal estar na cultura, hoje, conserva alguma relação com as reflexões de Freud em 1930? Com capítulos iniciados no outono de 1927, que chamou de Infelicidade na Cultura, Freud pergunta: porque é tão difícil para o ser humano conseguir a felicidade? Descreve três fontes do penar humano: a potência da natureza; a impotência humana, na fragilidade cósmica e nos limites do corpo; e a insuficiência de normas para regular os vínculos recíprocos, nas famílias, no estado, na sociedade. Em Mal estar na cultura, 1930, observa que grande parte da miséria humana tem relação com a cultura. O tema principal é sobre o irremediável antagonismo entre as exigências pulsionais e as restrições impostas pela cultura6. Considera que a pulsão sexual, em especial a sexualidade infantil, sofre os efeitos da obediência às imposições da cultura, já a violência escapa. Razão para abordar o tema na perspectiva da pulsão de morte. O Mal estar na cultura, 1930, foi escrito no tempo da ascensão do nazismo, perto do tempo da Segunda Guerra Mundial, e no momento em que Freud está com câncer. No tempo que já dominava conceitualmente os fundamentos da psicanálise, apoiado no saber que construiu pouco antes de 1900, época do nascimento da psicanálise. A psicanálise de Freud não se propõe a desenvolver uma visão de mundo, uma weltanschauung, que ele assim descreve: Entendo que uma cosmovisão é uma construção intelectual, que soluciona de uma maneira unitária todos os problemas de nossa existência, a partir de uma hipótese suprema. Dentro dela “O incesto é antissocial, a cultura consiste na progressiva renuncia a ele” (FREUD, 2000, p. 299). 6 Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 97 Mal estar na cultura: diálogo com Freud, Herr Professor nenhuma questão permanece em aberto, e tudo tem seu lugar preciso. Possuir uma cosmovisão está entre os desejos ideais dos homens (1932b, p. 146). A psicanálise está inapta para a ideia de unicidade. Freud propõe a inclusão de complexidades, que encontram múltiplas articulações e inúmeras respostas, dificilmente enquadráveis em uma única solução, ou verdade. No Mal estar na cultura, 1930, Freud não diferenciava civilização de cultura7. Define civilização como tudo que distingue o homem do mundo animal, tudo que o afasta de sua natureza. Significa emancipação da existência bestial. Civilização inclui o controle do homem sobre a natureza e o conjunto de regras e leis que organiza e rege os relacionamentos humanos. Cultura é, em síntese, o patrimônio da construção de invenções e soluções de progresso e a articulação complexa dos vínculos humanos. Cultura significa também as peculiaridades e idiossincrasias que marcam uma época. Freud (1930) desenvolve a tese de que a cultura causa mal estar aos humanos, pois implica em renúncias. Afirma: “A liberdade individual nunca foi patrimônio da cultura” (p. 94). Pensa que “O poder da comunidade se impõe como direito sobre o poder do indivíduo. A substituição do poder do indivíduo pelo poder da comunidade, é um passo cultural decisivo” (Ibid., p. 94). Ilustrou esse pensamento em 1913, no texto Totem e tabu. Freud descreve a origem evolutiva humana, um relato da passagem da natureza para à experiência de hominização. “No começo foi a ação” (p. 162). O pai da horda primeva canibal, dono de todas as fêmeas, foi morto pela revolta dos filhos excluídos, e devorado num ritual canibalístico. “Unidos, os filhos conseguiram fazer o que individualmente seria impossível” (Ibid., p. 143). O parricídio marca a origem da civilização. Irradia efeito e consequência, que constitui uma organização social, quando introduz o totem, em homenagem ao pai morto, agora deificado e respeitado. O que impõe o mandamento ético, a obediência simbólica, o tabu do incesto, e a exogamia representando a ordem social, de respeito geracional e ao fraterno. São os pilares da civilização, definindo o roteiro do drama como distinto do roteiro da tragédia. Do ato, com a violência, para a experiência com a sexualidade, na dimensão do horror do incesto, nasce a marca humana. “Cultura designa a soma total de operações e normas que distanciam nossa vida da de nossos antepassados animais, e que servem com fins de proteção do ser humano frente a natureza e a para a regulação dos vínculos recíprocos entre os homens [...]” (FREUD, 1930, p. 88). 7 98 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Silvia Brandão Skowronsky O nascimento da cultura impõe renúncia. As leis do tabu, com a proibição do canibalismo e do incesto, substituem o ato animal por uma perspectiva simbólica, privilégio humano, e lugar de obediência à lei. Freud coloca a civilização na perspectiva de proteção, de evitar o sofrimento e de oferecer segurança, mesmo que isto signifique colocar o prazer em segundo plano. A ideia da cultura humana, na perspectiva de sujeito, supõe o caminho na direção do reconhecimento da alteridade, dimensão além de si mesmo, assim se inclui o coletivo e o social, como diferente de indivíduo, ou de individual, incluindo o múltiplo, a diversidade partilhável. Esta passagem da filogênese, experiência da espécie humana com o crime primordial, (tragédia), Freud compara com o conteúdo da versão psíquica, na ontogênese. Com a experiência individual, na evolução da sexualidade infantil, perspectiva circunscrita ao (drama) complexo de Édipo e suas leis implícitas. Estabelece a proibição do incesto, o corte na simbiose e apresentação do terceiro, anunciando a exclusão edípica como um divisor importante, para marcar as diferenças, sem o significado de superioridade ou de inferioridade, típicos da lógica narcisista. A renúncia infantil ao amor incestuoso abre a chance de crescimento para a vida adulta, na relação com a cultura, um importante caminho de liberdade, porém que não desobriga de renúncias futuras. Raízes e asas? Articulação complexa. O roteiro do drama, com a mediação do simbólico, é, pois, distinto do roteiro da tragédia, que contém o funesto destino da violência, que insiste e demarca o destrutivo e a morte. A contradição humana, para Freud, sempre será entre liberdade versus alteridade, igualdade de direitos, entre o poder individual e o poder coletivo. Ilusões partilhadas na obediência à lei. Coloca que a questão crucial para a espécie humana é ser capaz de desenvolvimento cultural, que considera um dos destinos da pulsão sexual, quando alcança substituir o prazer direto, por substitutos, de dois modos: os destinos chamados de neuróticos, caminho dos sintomas, que são satisfações substitutas para desejos não realizados, ou como os sonhos, e o humor; e os destinos chamados de sublimatórios, campos da cultura e da ética humana. Dimensão que cria o partilhável, onde os neuróticos produzem sofrimento e sintomas. Pensa que a tendência por parte da civilização, em restringir a vida sexual, em especial a sexualidade infantil, implica na expansão do âmbito cultural. Na capacidade humana de produzir conhecimento, de movimento do concreto para o abstrato, de alcançar saber pensar. Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 99 Mal estar na cultura: diálogo com Freud, Herr Professor Salienta que o mais problemático, questão difícil de dominar, são as perturbações provocadas pela carência de representação psíquica, condição propícia ao destrutivo8 (pulsão de morte), um irrepresentado, que é mudo, e se expressa em atos autodestrutivos, ou por atos de efeitos destrutivos na vida coletiva, como a hostilidade e a violência. Pensa Freud (1930) que “a inclinação destrutiva é uma disposição pulsional, autônoma, originária no ser humano” (p. 117). “Sustento que a cultura encontra nela seu obstáculo mais poderoso.” “Essa pulsão destrutiva é ligada a pulsão de morte” (Ibid., p. 118) “É uma continuação no campo psíquico, daquele dilema de comer ou ser comido, que domina o mundo orgânico” (FREUD, 1932a, p. 103). “Por sorte, as pulsões destrutivas nunca estão só, e sim ligadas à pulsão erótica, que tem muito que mitigar e prevenir, diante das condições da cultura criada pelo homem” (Ibid., p. 103). Freud considerava que o desenvolvimento humano obedece ao programa do princípio do prazer, que consiste em encontrar satisfação, como objetivo principal. Porém a integração entre os humanos, a adaptação à comunidade humana, são objetivos que se impõe como prioridade, frente aos objetivos de felicidade individuais. Especial efeito e lugar do interdito, mediado pela dupla parental9. Assim, a contradição conflituosa, na experiência de desenvolvimento humano, está entre a demanda de felicidade, que é egoísta, e a demanda fraterna e de alteridade, união com os semelhantes, a vida em comunidade, o coletivo na fratria. A cultura estabelece ideais com as suas exigências. Nesse sentido, a civilização é uma etapa necessária de desenvolvimento, desde a experiência na família (os ideais de ego são herdeiros do complexo de Édipo), até o âmbito da cultura, na vida em comunidade. A importância da sobrevivência, noção do transitório e da finitude relativizam as prioridades dos ideais de felicidade particulares. “Nossa concepção atual pode ser assim enunciada: a libido participa na exteriorização da pulsão, mas nem tudo nela é libido” (FREUD, 1930, p. 117). 9 O princípio de prazer em Dois princípios do funcionamento psíquico (1911), Freud diferencia do princípio de realidade. O princípio de prazer domina os processos psíquicos primários. Refere: “A tendência principal destes processos primários se define como princípio de prazer” (p. 224). Em Além do princípio de prazer (1920), “na teoria psicanalítica adotamos sem reservas o suposto que os processos psíquicos são regulados automaticamente pelo principio de prazer. Uma tensão desprazerosa o põe em marcha, para evitar o desprazer ou para produzir prazer” (p. 7). 8 100 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Silvia Brandão Skowronsky A conclusão de Freud é que a demanda de segurança, de proteção, predomina sobre a demanda de prazer sexual. Razão para situar as proibições e os riscos de transgressão como neuróticos, relativos à pulsão sexual (Eros), porém, tudo que implicar em risco de vida significa a ameaça do destrutivo, violência, um irrepresentável, perspectiva da pulsão de morte. Por isto a demanda de segurança predomina sobre a sexualidade infantil, e sobre a demanda de prazer sexual quando implica em risco. Porém não exerce influência naquilo aquém de representação, justamente uma espécie de névoa impenetrável que cria riscos inesperados e imprevisíveis. Um ingovernável, como a violência. Além disto, quando a satisfação da demanda destrutiva predomina, vem acompanhada de elevado grau de prazer narcisista10, que significa uma fuga da diferença. Onde não entra diversidade, dúvidas nem incertezas. Para Freud, esta qualidade constitui o maior impedimento à civilização. Lembro que as feridas narcisistas perturbam a questão de ser, (tema da humilhação e sujeição), é um valor que é diferente da questão de ter (tema do desejo e da proibição). A evolução da civilização implica numa luta entre Eros, pulsão de vida (representável), com o destrutivo da violência, da pulsão de morte,11 que é muda, carente de representação, ou um irrepresentável. Tese que situa os limites da representação na perspectiva das fragilidades humanas. O homem civilizado prioriza a segurança, estar vivo. Sabe das fragilidades humanas e da importância do reconhecimento da alteridade, então troca uma parcela de suas possibilidades de felicidade, por uma posição que implica na obediência e renúncia. A renúncia impõe restrições à sexualidade e restrições à violência do destrutivo da pulsão de morte. Tudo que escapar gera riscos. A tese de Freud no mal-estar da cultura se apoia nas impossíveis renúncias, campo dos limites da representação psíquica. Aquilo que excede e escapa, no excesso que se expressa em risco e violência. O antigo presente no novo, de novo, o eterno retorno da violência, observável no mal estar na cultura, ainda hoje. Green (1986) ensina a pulsão de morte na perspectiva de um narcisismo de vida e um narcisismo de morte. Laplanche (1991) ensina a pulsão de morte na perspectiva de uma pulsão sexual de morte em contraponto a uma pulsão sexual de vida. 11 Derrida em seu livro O mal de arquivo (2001), um estudo sobre a pulsão de morte de Freud, elabora uma interessante perspectiva, quando considera a pulsão de morte como um mal de arquivo, inarquivável, pois não contem os requisitos da representação, para ser esquecido ou pensável. 10 Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 101 Mal estar na cultura: diálogo com Freud, Herr Professor Violência, força que escapa da civilização? A violência é um excesso. Será um novo sintoma? Precisamos gerar novas categorias para pensarmos? As comunicações rápidas e simultâneas dos acontecimentos abrem o tema do excesso. No tempo de hoje, esta condição altera a concepção de padrões únicos de comportamento. Isto gera uma revolução? Como a de Copérnico, que nos descentrou do lugar de centro do universo. Como a de Darwin que nos coloca na cadeia evolutiva do mundo animal. Assim como a revolução da psicanálise, que propõe o mundo psíquico inconsciente, que nos descentra do lugar de donos de si mesmo. Quem penso que sou não significa diretamente quem sou. Revoluções que humilharam a soberba da verdade e da certeza. O valor de uma época, de um tempo, pode significar um desvalor em outra. Ensina Freud (1921) que: “A massa aparece como um renascimento da horda primordial. Assim como o homem primordial se conserva em cada indivíduo, de igual modo a horda primordial se restabelece a partir de uma multidão de seres humanos” (p. 117). Em 1930, afirma Freud que: O programa da cultura se opõe à pulsão agressiva de todo ser humano. Esta pulsão de agressão é uma marca e principal preposto da pulsão de morte que descobrimos junto com Eros, com quem comparte o governo do universo. O desenvolvimento cultural nos ensina sobre a luta entre Eros e morte, pulsão de vida e pulsão de destruição, intrínseca à espécie humana (p. 118). O enunciado, de que o processo cultural equivale à modificação pulsional experimentada no processo de viver, é uma ideia que interroga o trabalho humano de construção da cultura, neste caminho entre um saber culto, com aquisição de conhecimento, superando um não saber da ignorância, ao qual é inerente um possível descontrole da barbárie. Campo da violência. Historicamente, a figura do pai centralizava as orientações e a lei, lugar do terceiro, caminho da cultura. O eixo das identificações se modifica no tempo de hoje? Novas complexidades introduzem variáveis inéditas, com as novas configurações familiares, ainda faz falta uma bússola? Para Freud, a bússola se representa por um caminho percorrido, do biológico ao psíquico, e na inclusão da cultura, o caminho de Narciso a Édipo, e a possível construção almejada sobre essa travessia. Para a psicanálise, seria alcançar o 102 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Silvia Brandão Skowronsky recurso psíquico, instrumento capaz, para saber realizar a complexa articulação entre o biológico e a cultura. Neste caminho, o grande desafio são os alcances e os limites psíquicos em saber de si. O ponto de articulação para saber pensar. Muitas vezes a conclusão poderá estar no limite do saber, de saber representar! O problemático é quando excede o limite do saber representar por excesso ou por irrepresentabilidade. Um mal de arquivo12. A violência e a rapidez de informações predominam como excessos no tempo atual. O inesperado e o imprevisível dificultam a reflexão. Pontos possíveis de tensão criando mal estar na cultura hoje. Existirá hoje uma quebra dos laços humanos dialogáveis? Condição que introduz a intolerância. Parece que o mal estar atual ainda se expressa especialmente com os atos de violência! O destrutivo! Na civilizada raça humana, ainda se faz presente muitos atos de violência, atos de racismo, atos de preconceito. Dialética entre consciência e alienação perturbada, especialmente pelo fascínio por ideologias. A hostilidade introduz a problemática da intolerância. Existe a violência da fome, das guerras, a violência no ato de julgamento, sobre a cor, da opção sexual, da religião, do diferente. O que pensar dos sistemas que cultivam o ódio, incitam atos destrutivos, inclusive os sistemas religiosos? Ignorar o que se afasta do próprio modo habitual de conceber o mundo significa indiferença. Indiferença é o contrário do amor. Um menosprezo, menor valor e desprezo não contém apreço. Indiferença é a marca que desconhece a diferença, e a alteridade. Cria intolerâncias. Nesse sentido, o diferente é um inimigo. O que pensar sobre a ideia que diferente significa melhor ou pior, como se existisse uma qualidade na diferença, em vez da ideia de distinção, de diversidade, o múltiplo. As categorias: melhor ou pior, bom e mau, belo e feio, certo e errado, tudo ou nada, também são invenções humanas perniciosas, uma violência? Lógica binária típica do narcisismo, reducionista ao preto e branco, impede de incluir as múltiplas cores que compõem um arco-íris. Desmascarar as ilusões e preconceitos humanos para repensar significados de algumas verdades absolutas, de valores e ideais contrários à dignidade humana, convoca-nos a um atento trabalho de indagação, sobre discursos ideológicos preconcebidos e autoritários. Derrida define assim a pulsão de morte, em seu livro O mal de arquivo (2001), em que examina profundamente o tema da pulsão de morte e a designa como um mal de arquivo. 12 Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 103 Mal estar na cultura: diálogo com Freud, Herr Professor Poderíamos pensar que a violência surge quando existe uma crise de ideais. Declínio que produz um vazio normativo na trama da cultura. E no nosso tempo? Será um desafio a proposta de igualdade mediada com ética, na irrestrita obediência à lei? Qual será o caminho para zelar a herança humana compartilhada, e as necessidades coletivas, calibrando a intolerância, e a destrutiva crueldade da violência. Recuperar os ideais? Lembro que Freud propôs: o ideal do ego é o herdeiro do complexo de Édipo, por isto um importante ordenador simbólico, quando a autoridade é internalizada. Nascido na humana experiência infantil, com a responsabilidade parental, numa insubstituível função estruturante do espaço da ética da responsabilidade. O transmitido e o construído, assim um adquirido. Um lugar da cultura dentro do psíquico introduz a capacidade de responsabilizar-se pelos próprios atos. Bauman (2001) descreve a Modernidade líquida, expressão que caracteriza o provisório e o descartável, em nosso tempo, com significado de descaso, o que é diferente daquilo que é transitório do viver humano, como a finitude. O humano é múltiplo e singular, precisa de raízes e asas, do tempo, e de lugar para abrigar a ética. Chamaria de ética da responsabilidade. Acredito na psicanálise porque descobriu que viver é muito mais que simplesmente sobreviver, existir, ou durar, como na categoria biológica. Essa é a marcante diferença entre os humanos e os demais seres vivos do planeta. Inteligência e engenhosidade de complexidade psíquica, e capacidade de encontros transformadores. A marca humana inventa, modifica e transforma a existência concreta numa experiência simbólica, pensável, e compartilhável. Uma história vivencial é um particular, que poderá ser compartilhado como experiência humana, mas ainda uma universal condição. Exemplos de temas humanos conhecidos e partilháveis: desamparo, solidão, transitoriedade, finitude, violência, ódio, homicídio, autodestruição, humilhação, loucura, alegria, felicidade, amor, inclusão, exclusão, intolerância, diferença, diversidade, semelhança, poder, saber, etc. Humana marca de nascença: o desamparo O desamparo humano, originária condição que demanda cuidado e zelo, contém um paradoxo na possibilidade de organizar recursos e na possibilidade de incapacidades que irradiam sofrimento, autêntica vulnerabilidade ao excesso. 104 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Silvia Brandão Skowronsky São as fragilidades humanas que produzem impotência, ativando de novo o desamparo, que possivelmente contém a raiz de violências. Lembro Freud que propõe o modelo do traumático e postula: que a não mediação psíquica inunda o psiquismo de intensidades sem representação, significa um excesso. É a insuficiência de recursos, de processamento, para criar representação. O acontecimento excede, e o não significado gera angústia. Eis os limites. Seria o excesso uma das prováveis causas do mal-estar atual? O representável e o irrepresentável (carente de representação) organizam recursos diferentes, significando a distância entre o equilíbrio de pensar e a pressão do agir. Como a expressão em ato, que é sem capacidade de pensamento ou de simbolização. Freud demarca a diferença: a angústia diante de demandas de intensidades, que desafiam por situações limites, que implicam na experiência de risco de vida, são muito diversas daquelas tipicamente envolvidas com os riscos de proibições, da pulsão sexual, princípio de prazer e capazes de representação13. Desde Totem e tabu de 1913 que Freud considerou possível o processo de civilização neutralizar a violência e o destrutivo, o ato, mediante a capacidade de simbolização, com o recurso de representação, uma utilização de complexidades psíquicas. Precisou reformular quando descobriu a compulsão à repetição, vinculada ao nunca representado, por isto um destrutivo, que gerava ato em vez de representações ou simbolizações pensáveis, chamou de pulsão de morte. Será o nosso tempo atual um campo propício à simbolização? Ou estimulante de atos, ações de descarga sem mediação psíquica, típica expressão do mal-estar frente aos efeitos do que denominamos de excesso, ou de violência. Tudo que escapa do trabalho psíquico de elaboração, via representação no trabalho da mediação psíquica, que constrói o caminho de simbolização, tem expressão em ato. Distinto das capacidades de sonho, lapsos, transferências ou sintomas neuróticos. Atos implicam em riscos que, associados ao mal-estar com os efeitos da vigência atual de violência, representam ameaças ao equilíbrio psíquico e à integridade física dos humanos. Com o passar do tempo, um novo contexto expõe antiga polêmica, a vigência da violência. A humana violência que escapa e excede o pensar! Da traumdeutung significa figuração deformada tranquilizadora, o sonhar, para a observação da repetição de situações penosas. O que carece de representação carece de desejo, mas repete a reincidência do não significado (representado) daquilo não figurado. 13 Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 105 Mal estar na cultura: diálogo com Freud, Herr Professor Para concluir, afinal, tudo igual e tudo diferente. Naturalmente, nossa ideia de futuro nasce da ilusão. É quando paramos para refletir sobre o quotidiano. O igual e o diferente nos constroem com complexidades. O tempo é imutável e inexorável, mas nós humanos mutantes criativos, portadores de ilusão, então vencemos o tempo. Por um tempo. O tempo de inventar e viver a versão da história para noutro tempo contar a história, nossa própria versão, povoada com memórias indestrutíveis, algumas indescritíveis... cada uma de um tempo... No inconsciente sem tempo e ao mesmo tempo, não importa que o tempo passe, a gente não esquece, volta lá mesmo que o tempo passe. Mas não convém perder tempo, pois nosso tempo na vida termina. O tempo, este continua... Freud ensinou que a turbulência não é indesejada, eis o valor das formações do inconsciente, tudo aquilo que excede, irrompe e altera o sentido, aquele que a consciência pretenda atribuir aos acontecimentos, são desafios para o recurso humano de simbolização, para construir representações. Preocupante é o que não se esgota, e ainda nos exige trabalho de representar o que não se representa, essa pulsão de morte, muda, irrepresentável, insiste em mostrar mas nunca em dizer com palavra. Restam muitas perguntas, indagações em aberto. Conhecimento por construir, ainda é tempo de perguntas? Não existe paraíso, o saber nos expulsou, mas e a ignorância? Essa nunca terminamos de conhecer, ou erradicar. O tempo sempre nos excede! E ainda existe esse mal de arquivo! The discontent in culture: dialog with Freud, herr professor Abstract: Reflections on the centenary of Freud’s psychoanalysis, a fundamental and foundational legacy, a means of transmitting knowledge that is appropriate to think, today, about the discontent. Updating the memory creates links between the past and the future. A movement that enables representations, a condition for singular and historicizing narratives. A mental construct that contains the birthmarks since the biology in the complex articulation with culture. Keywords: Discontent. Helplessness. Psyche. Representation. Unconscious. Violence. 106 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Silvia Brandão Skowronsky Referências BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. FREUD, S. (1911). Dois princípios do acontecer psíquico. In: Obras completas. v. 12. Buenos Aires: Amorrortu, 2001. ______. (1913). Totem e tabu. In: Obras completas. v. 13. Buenos Aires: Amorrortu, 2001. ______. (1920). Além do princípio do prazer. In: Obras completas. v. 18. Buenos Aires: Amorrortu, 2001. ______. (1921). Psicologia das massas e análise do ego. In: Obras completas. v. 18. Buenos Aires: Amorrortu, 2001. ______. (1930). Mal estar na cultura. In: Obras completas. v. 21. Buenos Aires: Amorrortu, 2001. ______. (1932a). Conferência 32: angustia y vida pulsional. In: Obras completas. v. 22. Buenos Aires: Amorrortu, 2001. ______. (1932b). Conferência 35: em torno de uma cosmovisão. Obras completas. v. 22. Buenos Aires: Amorrortu, 2001. ______. Manuscrito N. In: Obras completas. v. 1. Buenos Aires: Amorrortu, 2000. GREEN, Andre. Narcisismo de vida e narcisismo de morte. Buenos Aires: Amorrortu, 1986. LAPLANCHE, Jean. A pulsão de morte na teoria da pulsão sexual. In: A pulsão de morte. Buenos Aires: Amorrortu, 1991. Silvia Brandão Skowronsky Rua Tobias da Silva, 120 / 513 90570020 Porto Alegre – RS – Brasil e-mail: [email protected] Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 107 Possíveis articulações entre narcisismo e pulsão de morte para a clínica da atualidade Sissi Vigil Castiel1 Resumo: As patologias fundamentadas em problemáticas narcísicas, casos limite e melancolia com as incidências da destrutividade no funcionamento psíquico direcionadas ao interior do sujeito, colocam em juízo os enunciados metapsicológicos, de forma que novas articulações se façam possíveis frente aos enigmas que a experiência psicanalítica com estes pacientes impõe no sentido de uma transformação. Frente a tais indagações, o texto tensiona os conceitos de narcisismo e pulsão de morte a partir das postulações freudianas e autores contemporâneos. Palavras-chave: Narcisismo. Subjetividades atuais. Psicanálise. Psicopatologia. Pulsão de morte. A clínica contemporânea nos confronta, muito frequentemente, com neuroses graves fundamentadas em problemáticas narcísicas, casos limite e melancolia com as incidências da destrutividade no funcionamento psíquico direcionadas ao interior do sujeito e quadros de angústia. O fazer psicanalítico com esses casos coloca em juízo os enunciados metapsicológicos para que sejam Psicanalista. Doutora em Psicologia pela Universidade Autônoma de Madri. Membro pleno da Sigmund Freud Associação Psicanalítica de Porto Alegre. 1 108 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Sissi Vigil Castiel repensados, de forma que novas articulações se façam possíveis frente aos enigmas que a experiência psicanalítica com estes pacientes impõe no sentido de uma transformação. Cabe ao psicanalista se indagar a respeito de quais são as proposições teóricas e técnicas da psicanálise em sua possibilidade de escuta e terapêutica dessas patologias, a que modelos clínicos elas respondem. Os sucessivos momentos históricos propiciaram a emergência de distintas formas de subjetivação e estas requerem distintos modelos de abordagem clínica e teórica. Existe em Freud um modelo teórico e clínico de entendimento e tratamento das neuroses, mas há também possiblidades de entendimento e tratamento das patologias para além das neuroses, mesmo que este não tenha sido extensamente elaborado por ele. Por isso mesmo, talvez seja possível a identificação de diversos paradigmas em Freud. Paradigma é um conceito de Thomas Kuhn no livro A estrutura das revoluções científicas (2003) que afirmou que as ciências evoluem através de paradigmas. Este último se define por ser uma forma de solução para os problemas relativos ao campo de ação de uma ciência que passa a funcionar como solucionadora de problemas de determinado tipo através destas maneiras de soluções que constituem os paradigmas. Chega-se a estes por existirem casos exemplares que permitem fazer generalizações. Um novo paradigma se forma quando há um corte epistemológico em um campo pré-conceitual, onde há uma ruptura com o modelo até então vigente para uma nova forma de olhar determinado problema. Assim, na física, ao longo do tempo, existiram diferentes paradigmas, a teoria geocêntrica de Ptmoleu, posteriormente a teoria heliocêntrica de Copérnico e assim por diante. Dessa forma, o conceito de paradigma teve toda uma importância, pois possibilitou diferenciar as ciências e seus objetos teóricos, sendo, também, uma resposta à questão da cientificidade das ciências não naturais. Partindo-se da tese de Kuhn, a psicanálise como uma ciência não natural tem seu objeto teórico no conceito de inconsciente, e justamente diante desse objeto teórico as diversas formas que se manifestam, as patologias, colocaram a necessidade de distintos padrões clínicos e formulações metapsicológicas, formando diferentes paradigmas (CASTIEL, 2014). Nesse sentido, Birman (2014) afirma que há diversos paradigmas em Freud e que a conceituação da histeria e da neurose da primeira tópica e da primeira dualidade pulsional fazem parte de um primeiro modelo freudiano: o da repressão da sexualidade e permitem delinear um paradigma − a técnica centrada no tratamento da neurose. Já o conceito de narcisismo, a pulsão de morte, a segunda tópica e a segunda dualidade pulsional fazem parte de outro momento Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 109 Possíveis articulações entre narcisismo e pulsão de morte para a clínica da atualidade histórico – o da violência e da crueldade e permitem vislumbrar as subjetividades melancólicas e psicóticas, possibilitando outro paradigma. Encontro-me completamente de acordo com as postulações de Birman e acrescentaria que o primeiro modelo está alicerçado nos casos de Dora, O pequeno Hans e o Homem dos ratos que fazem parte deste momento histórico, teórico e técnico, enquanto que o segundo modelo encontra-se ancorado nas histórias de Schereber e O homem dos lobos (CASTIEL, 2012a). Da mesma forma, Birman (2014) afirma que os autores pós-freudianos dentre os quais destaca Melanie Klein, Lacan e Winnicott fazem parte de um momento histórico diverso do da repressão da sexualidade e se relaciona à violência e à crueldade e, portanto, suas linhas de pesquisa têm como fundamento a psicose. Melanie Klein parte da posição esquizoparanoide e Lacan da paranoia. Ainda dentro desse mesmo contexto, Mezan2 (2014) afirma que existem em Freud quatro modelos metapsicológicos cada qual baseado numa matriz clínica distinta. As correntes posteriores privilegiam um deles, daí derivando suas hipóteses centrais sobre o funcionamento psíquico. Green, tentando dar conta dessa profunda transformação do campo clínico ao longo dos anos, trabalhou no desenvolvimento de novos fundamentos metapsicológicos para a elucidação da clínica nos limites da analisabilidade. Para tanto, afirma que atualmente os casos limites são os pacientes paradigmáticos, assim como os neuróticos foram para Freud e os psicóticos para os pósfreudianos. Entende que existem dois modelos clínicos em Freud, o das neuroses e as possiblidades abertas com a segunda tópica. Para dar conta da elaboração de um programa de investigação para os pacientes limites, reformula a metapsicologia de uma maneira pessoal a partir de um diálogo com Freud e autores pós-freudianos. Assim, percebe-se que os autores contemporâneos, quer seja através da noção de paradigma ou de modelos clínicos, entendem a necessidade de aprofundar os elementos da metapsicologia e da técnica freudiana de forma a fazer frente às indagações que a prática clínica impõe. Efetivamente, as subjetividades atuais emergem de um contexto histórico distinto, propiciando a emergência de subjetividades diferentes da neurose e que requerem ampliações teóricas e clínicas, tornando-se tarefa dos psicanalistas proporem ferramentas teóricotécnicas para darem conta desses quadros clínicos. Penso que a psicanálise encontra no segundo modelo freudiano, bem como em autores contemporâneos, Renato Mezan não se utiliza do conceito de paradigma, preferindo a expressão modelos clínicos. 2 110 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Sissi Vigil Castiel os elementos teóricos que nos permitem formular essas proposições, na medida em que a obra de Freud encontra-se aberta a novas leituras que reconfiguram a teoria e a clínica no diálogo com autores contemporâneos. Minha hipótese é a de que os conceitos de narcisismo e pulsão de morte são operadores fundamentais na psicopatologia psicanalítica, pois existe toda uma possibilidade de articulação entre eles que permite lançar luz sobre o entendimento das subjetividades nas quais a ação, no sentido da passagem ao ato, é uma das marcas de sua condição de ser. Neles se faz presente a descarga da excitabilidade sem possibilidades de simbolização, manifestando-se sob forma de comportamentos às vezes mais, às vezes menos autodestrutivos (CASTIEL, 2014). O texto freudiano Sobre o narcisismo: uma introdução, de 1914, é um ponto de partida para uma compreensão das patologias para além da neurose, na medida em que há nessas patologias uma impossibilidade do sujeito de sair de uma condição narcísica e investir em objetos. Freud (1914) postula o narcisismo como o investimento das pulsões no ego, constituinte da formação deste antes das catexias libidinais serem enviadas a objetos e que é obscurecido no decorrer do desenvolvimento libidinal. Uma das formas pelas quais Freud define o narcisismo, nesse texto, é: “[...] afigurou-se provável que uma das localizações da libido que merecesse ser descrita como narcisismo estivesse presente em muito maior extensão, podendo mesmo reivindicar um lugar no curso do desenvolvimento humano” (p. 89). O texto põe de manifesto o aspecto do direcionamento da libido: se a libido está localizada no ego, investindo-o, trata-se de uma condição narcisista, evidenciando a questão do investimento e desinvestimento dos objetos. A partir disso, no final da segunda parte do texto, refere-se à necessidade de o sujeito sair do narcisismo, direcionar a libido a objetos para não adoecer. O represamento da libido no ego torna-se patogênico. Na verdade, Freud havia abordado a questão da retirada da libido dos objetos como o que caracteriza a psicose em sua correspondência com Jung3, nas cartas que sucedem a primeira visita de Jung a Freud em março de 1907, afirmando que o autoerotismo é o conceito que poderá ajudar a resolver o A correspondência entre Freud e Jung perdurou por 7 anos e está documentada no livro de William McGuire (1976). Dessa correspondência, vou me ater ao conjunto de cartas que dizem respeito à psicose. Este é o tema predominante do início da correspondência entre ambos, tendo em vista que o trabalho de Jung no hospital psiquiátrico era com pacientes psicóticos. 3 Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 111 Possíveis articulações entre narcisismo e pulsão de morte para a clínica da atualidade enigma das psicoses, no sentido de que nestas há uma regressão autoerótica. Freud afirma: [...] na paranoia a libido é retirada do objeto [...] o lugar para onde foi a libido é indicado pela hostilidade frente ao objeto. Dada a relação de compensação entre o investimento objetal e o investimento no ego parece provável que o investimento retirado do objeto tenha retornado ao ego, isto é, tenha se tornado autoerótico. O ego paranoide é, portanto, superinvestido, egoísta e megalomaníaco. (McGUIRE, 1976, p. 65). Freud insiste na questão de que a libido não é autoerótica quando dispõe de um objeto real ou imaginário. A regressão da libido só se torna autoerótica quando atinge um ponto aquém das fantasias, a saber, o ego. Na paranoia, a libido se retira do objeto real, mas não continua apegada a sua representação, regride ao autoerotismo. A questão crucial que se coloca nesta afirmação freudiana é a de que o autoerotismo é a situação de que a pulsão investe o ego, em consequência disso este se torna grandioso. Isto permite a Freud dimensionar a importância de se considerar o investimento da libido no ego em detrimento dos objetos para a compreensão das patologias graves4. Esse pensamento é reafirmado no texto sobre o narcisismo e novamente será retomado por ele a propósito da segunda tópica e da segunda teoria das pulsões. Justamente minha proposta é a de que essas articulações teóricas que o conceito de narcisismo possibilita possam ser problematizadas e ampliadas, considerando-se a oposição entre Eros e pulsão de morte. Em Freud (1920), Eros é compatível com a ligação, ou seja, com a capacidade de investimento enquanto que na via oposta, a pulsão de morte se caracteriza pelo desinvestimento, pelo desligamento. E é por esta possiblidade de se entender o investimento e o desinvestimento sob a ótica da segunda teoria das pulsões que pretendo articulála com o narcisismo. A propósito da articulação entre a segunda tópica com a segunda dualidade pulsional em O ego e o id, Freud (1923) afirma que essas duas classes de pulsão se unem e se fundem, de forma que o impulso destrutivo pode ser neutralizado, sendo desviado para o mundo externo através do aparelho muscular. Dessa forma, as duas classes de pulsão se unem e funcionam combinadamente ou se desfusionam. A libido constitui um fator de ligação, de fusão pulsional, E, também posteriormente, definir este estado de localização da libido como narcisismo. 4 112 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Sissi Vigil Castiel enquanto a agressividade, um fator de desfusão. Quanto maior for o predomínio da agressividade, mais a fusão pulsional tende a desfazer-se. Inversamente, quanto mais a libido prevalecer, mais se realizará a fusão. Portanto, a postulação da segunda teoria das pulsões e a ideia da fusão-desfusão pulsional permitem pensar sobre o funcionamento combinado das pulsões sexuais e de morte, o quanto elas aparecem mescladas ou desfusionadas no sujeito. Nas patologias a que estou me referindo, entendo que as ações autodestrutivas, a impulsividade, as somatizações refletem a desfusão das pulsões com a manifestação da pulsão de morte. Ainda dentro do contexto da fusão-desfusão da pulsão, existe em O ego e o id uma afirmativa de Freud sobre a retirada das catexias do objeto característica da pulsão de morte que parece ampliar a compreensão dos fenômenos destrutivos. Afirma ele no texto que: A transformação (de libido erótica) em libido do ego naturalmente envolve um abandono de objetivos sexuais, uma dessexualização. De qualquer modo, isso lança luz sobre uma importante função do ego em sua relação com Eros. Apoderandose assim da libido das catexias do objeto, erigindo-se em objeto amoroso único e dessexualizando ou sublimando a libido do id, o ego está trabalhando em oposição aos objetivos de Eros e colocando-se a serviço de impulsos pulsionais opostos. (FREUD, 1923, p. 61) Essas questões me permitem considerar que, ao dizer que a retirada da libido dos objetos e o consequente retorno ao ego acarreta que este último seja transformado em objeto amoroso único, Freud está, em outras palavras, dizendo que esta retirada da libido dos objetos se relaciona ao narcisismo, ou seja, a consequência desse processo é o narcisismo. Por outro lado, se essa transformação da libido objetal em libido do ego está em oposição aos objetivos de Eros e coloca-se a serviço de impulsos pulsionais opostos como diz Freud, relaciona-se à pulsão de morte. Isto nos permite supor uma articulação entre narcisismo e pulsão de morte, ou seja, a destrutividade se relaciona ao narcisismo. Se o ego é o objeto amoroso único – narcisismo − isso acontece por um desinvestimento dos objetos. E, portanto, o sujeito é destrutivo consigo próprio em função do desinvestimento dos objetos e a posição narcisista que esse desinvestimento acarreta. Esta passagem no texto de Freud oferece elementos para a compreensão da destrutividade na medida em que coloca como aspectos centrais desta o Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 113 Possíveis articulações entre narcisismo e pulsão de morte para a clínica da atualidade desinvestimento e o narcisismo. O desinvestimento implica no aumento da destrutividade, na qual os processos de desligamento triunfam sobre a geração de fontes de prazer ou sobre o desenvolvimento das potencialidades criativas (CASTIEL, 2012b). Articulando essas afirmativas com o exposto em 1914 pode-se entender que é preciso sair do narcisismo para não adoecer, ou seja, o represamento da libido no ego – que constitui o narcisismo torna-se patogênico porque é mortífero. A especificidade da relação entre o narcisismo e a destrutividade foi trabalhada por importantes autores da Psicanálise contemporânea. Dentre eles, destacase Green (1993) que demonstra que nos casos limite o mecanismo dominante é o luto insuperável e as reações defensivas que ele suscita, resultado de um narcisismo negativo, um narcisismo de morte que se opõe ao narcisismo positivo, de vida. Green (1988) enfatiza a ideia de Freud que o objetivo das pulsões de vida é a objetalização, no sentido da ligação, na capacidade de investimento em novos objetos que promovam satisfação pulsional depois da separação do objeto primordial. Enquanto que o objetivo da pulsão de morte seria a função desobjetalizante que se caracteriza pelo desinvestimento e desobjetalização. O narcisismo negativo é uma espécie de medida extrema a qual, após ter desinvestido os objetos, transporta-se sobre o próprio ego e o desinveste. A função desobjetalizante se opõe ao trabalho do luto, na medida em que a relação com o objeto é atacada assim como o ego, tendo em vista que este se torna o único objeto de investimento dado ao desligamento dos objetos. Salienta-se essa formulação de Green, na medida em que nela é possível encontrar sustentação para compreender as ações destrutivas como decorrência do processo de desinvestimento no seio da função desobjetalizante (GREEN, 2008) e que se articulam com as afirmações freudianas feitas em O ego e o id (1923) citadas acima (CASTIEL, 2013). Essa discussão de conceitos abre a questão do estatuto do objeto, no sentido de seu papel, sua função e seu devir. É preciso que se constate a relevância do objeto para a economia psíquica do sujeito a partir de uma concepção de destrutividade que contextualize tanto as experiências do campo intersubjetivo juntamente com suas repercussões pulsionais. Nestas patologias, o objeto ocupa uma posição de protagonismo na vida do sujeito, há uma queixa interminável sobre os objetos. Logo, o discurso é a queixa sobre a falta de reconhecimento do objeto sobre o sujeito. Portanto, há uma idealização do objeto, esse é, muitas vezes, engrandecido não no sentido da exaltação e sim no sentido de seu poder com relação ao sujeito, o que gera e incrementa a raiva e o ressentimento. 114 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Sissi Vigil Castiel A posição narcísica do sujeito corrobora uma contínua decepção no encontro com o outro, incrementando ações autodestrutivas. É, portanto, também pela decepção do sujeito com relação ao que ele espera do objeto que se fomenta o que o leva a desinvestir e autodestruir-se. Nesse sentido, Lacan, (1948) baseandose na importância do estágio do espelho para a constituição de um sujeito (ao considerar que é através de um espelhamento em relação ao outro que este adquire a imagem de si) coloca a paranoia como um elemento constituinte da subjetividade (LACAN, 1953-1954). Entendo que claro está, pois se o sujeito está na dependência do que o outro diz que ele é, obviamente que vai buscar no olhar do outro sua aprovação ou reprovação. O que nos leva à ideia de que nestas patologias, em que o sujeito está aferrado ao narcisismo, existe uma atitude paranoide frente aos objetos, no sentido da expectativa do sujeito em ler nas atitudes do objeto sua aprovação ou reprovação. Tendo-se em vista que as ações do objeto nem sempre são direcionadas ao sujeito, a aprovação do objeto é sempre relativa. Isto leva ao ressentimento e à raiva e gera desinvestimento como em um círculo vicioso. Entendo que a contextualização das ações autodestrutivas e do desinvestimento característicos da pulsão de morte no seio de uma perspectiva narcisista dimensiona a clínica, no sentido de que a destrutividade possa ser analisada a partir das decepções na transferência e posterior recolhimento narcísico. Entendo que essas constatações adquirem sua positividade não só pelo aspecto da relação do sujeito com o objeto, mas muito mais porque permitem dimensionar as experiências do campo intersubjetivo juntamente com suas repercussões pulsionais. Pois não se trata de priorizar a relação de objeto em detrimento do aspecto pulsional ou vice-versa e sim reconhecer que os desencontros com os objetos trazem implicações pulsionais: a raiva e o ressentimento pela decepção com os objetos leva a ressentimento, recolhimento e, muitas vezes, a ações autodestrutivas. Talvez a transferência seja uma possiblidade de se abrir espaço à análise desses aspectos a partir do lugar que o analista ocupa, no sentido da apropriação por parte do paciente de sua raiva, desinvestimento e recolhimento narcísico. Possible links between narcissisms and death drive for today’s clinic Abstract: The diseases based on the narcissistic problematic, borderline cases and melancholia with destructiveness effects on psychological functioning directed to Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 115 Possíveis articulações entre narcisismo e pulsão de morte para a clínica da atualidade the inner realm of the subject, question metapsychological statements so that new articulations are possible considering the puzzles that the psychoanalytic experience with these patients requires toward transformation. Faced with such questions the text tightens the concepts of narcissism and the death drive from the Freudian and contemporary authors’ postulations. Keywords: Death Psychopathology. drive. Current subjectivities. Narcissism. Psychoanalysis. Referências BIRMAN, J. et. al. A fabricação do humano: psicanálise, subjetivação e cultura. São Paulo: Zagodoni, 2014. CASTIEL, S. O homem dos ratos, Schreber e Kafka: destinos possíveis para a hostilidade. In: Psicologia: ciência e profissão/CFP, a. 32, n. 42012, p. 808-825, 2012a. ______. Abuso sexual e clínica psicanalítica. In: MIRANDA, C. A. (Org.). A psicologia clínica e suas relações com a violência e negligência: marcas na constituição psíquica. Passo Fundo: IFIBE, 2012b. p. 187-205. ______. Destrutividade e narcisismo. In: Sig revista de psicanálise, a. 2, n. 1, 2013. ______. The relation among paradigms and psychoanalytical clinics: narcissism and death drive as main operators in psychoanalytical psychopathology. Global Journals, v. 14, n. 6, p. 13-17, 2014. FREUD, S. (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução. In: Obras completas. v. 14. Rio de Janeiro: Imago, 1980. ______. (1920). Além do princípio do prazer. 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Sissi Vigil Castiel Rua Frei Henrique Trindade, 430 90480-140 Porto Alegre – RS – Brasil e-mail: [email protected] Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 117 Autoerotismo, desmentida e a cisão do Eu Celso Halperin5 Resumo: A partir de uma breve revisão de conceitos, o autor questiona a existência de uma possível relação estrutural entre o autoerotismo e mecanismos como a desmentida e a cisão do Eu. Palavras-chave: Autoerotismo. Cisão do Eu. Desmentida. Em recente atividade científica com o Dr. Ricardo Avenburg na SBPPA, estimulado por uma citação sobre a relativamente escassa exploração do tema do autoerotismo na obra de Freud, resolvi, na hora do debate, levantar a seguinte especulação (não exatamente com essas palavras): Não podemos imaginar que haja uma relação direta entre o autoerotismo, com seu caráter fragmentário, e a estruturação de defesas como a cisão do eu e a desmentida descrita já nos trabalhos finais de Freud? O Dr. Avenburg, assim como fez com várias outras perguntas, pensa um pouco e responde afirmativamente, não se detendo para maiores explicações. Algumas semanas depois, a editoria da nossa revista fez um instigante convite, quase uma provocação: desenvolver o meu questionamento daquela ocasião, explorando o tema sob a forma de um trabalho para a Revista Psicanálise. Surpreendido, resolvi aceitar o desafio, buscando compreender melhor a questão. Nesse sentido, faço algumas considerações sobre o autoerotismo, posteriormente sobre a desmentida e cisão do eu e concluo buscando estabelecer alguma relação entre eles. Se considerarmos que no pensamento psicanalítico a sexualidade humana não se realiza completamente, no sentido de nunca atingir um estado de maturidade Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. 5 118 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Celso Halperin plena ou perpétua satisfação, e se entendermos também que essas características se relacionam com a presença da sexualidade infantil como um dos componentes da sexualidade das crianças e adultos, convém atentarmos para aquele funcionamento que Freud vai caracterizar como o estado sexual mais primitivo de todos: o autoerotismo. Tomando emprestado o termo utilizado anteriormente por Havelock Ellis em seus estudos sobre a sexualidade humana, Freud vai utilizar o termo autoerotismo, pela primeira vez, numa carta a Fliess em 9 de dezembro de 1899, caracterizando o autoerotismo como o estado sexual mais primitivo, cujas pulsões sexuais agiriam com independência em relação a qualquer função biológica. Assim, Freud caracteriza o autoerotismo como um estado original da sexualidade infantil, chamando também a atenção para o caráter sexual da libido, ou seja, ainda que o autoerotismo seja a forma como se manifesta originariamente a sexualidade, isso não significa que a criança não se relacione antes com o mundo de uma forma biológica, buscando atender suas necessidades de sobrevivência. Mas, sem dúvida, é a partir dos Três ensaios, nas suas várias edições, que Freud desenvolverá o tema, enfatizando a questão do objeto, ou seja, que no autoerotismo a pulsão não é dirigida a outra pessoa, satisfazendo-se no próprio corpo (FREUD, 1905). Aqui, Freud trabalha com a ideia de uma separação entre a pulsão sexual e a pulsão de autoconservação. Primariamente, a pulsão sexual não funciona de forma independente, ela apoia-se na pulsão de autoconservação, que busca atender as necessidades vitais do indivíduo. Nesse sentido, já na amamentação, a satisfação da zona erógena (pulsão sexual) estava associada à satisfação da necessidade de alimentação (pulsão de autoconservação). Ocorre que essa ligação não se perpetua. A satisfação da pulsão sexual com o objeto, primariamente apoiada na necessidade de autoconservação, logo se independizará, procurando, de forma autônoma, o prazer. E é essa independência da pulsão sexual que permitirá a busca de uma forma mais livre pela satisfação, inclusive pela forma autoerótica. Mas o que gostaria de salientar aqui, para depois incluir em uma discussão mais ampla, é a presença primitiva, desde o autoerotismo, da clivagem, isto é, da separação da pulsão sexual em relação à pulsão de conservação, na qual se apoiava na busca do objeto. Assim como Freud descreve essa clivagem nas pulsões, também vai caracterizar o autoerotismo por um estado em que as pulsões se satisfazem cada uma por sua própria conta, sem existir qualquer organização de conjunto. Ou seja, no autoerotismo há um funcionamento não integrado daquilo que se constituirá o ego. Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 119 Autoerotismo, desmentida e a cisão do Eu As zonas erógenas funcionam como que de forma isolada uma das outras, buscando sua satisfação ali mesmo, no próprio local em que se produz, cada zona independente da outra (prazer do órgão). Aqui impera o princípio do prazer. Se no autoerotismo entendemos um funcionamento da pulsão sexual de alguma forma fragmentado, Freud nos fala de um outro funcionamento, quando há uma unificação dessas pulsões em busca de um objeto comum, ainda que esse objeto seja o próprio corpo: É uma suposição necessária a de que uma unidade comparável ao ego não esteja presente no indivíduo desde o início; e o eu precisa antes ser desenvolvido. Todavia, as pulsões autoeróticas estão presentes desde o início, e é necessário supor que algo tem de ser acrescentado ao autoerotismo, uma nova ação psíquica, para que se constitua o narcisismo (FREUD, 1914, p. 99). Pensando no desenvolvimento do instinto sexual desde o autoerotismo até o amor objetal, passando pelo narcisismo, podemos fazer um questionamento: será que a libido, no seu funcionamento de organização autoerótica, já desvinculada da função de alimentação, mas funcionando com seu caráter anárquico, não harmônico e também sem ainda qualquer responsabilidade de integração com o mundo exterior, não teria outras contribuições psíquicas na estruturação do psiquismo além de ser ponto de passagem rumo ao funcionamento narcísico e posteriormente objetal? Vejamos: Nas Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico (1911), acompanhando Freud em sua descrição sobre o princípio do prazer e o princípio da realidade, deparamo-nos com questões fundamentais para entender a importância do autoerotismo. Em primeiro lugar, Freud chama a atenção que o processo de substituição do princípio do prazer pelo princípio da realidade “não ocorre de uma só vez, nem em toda a extensão da psique” (p. 67). Ou seja, está aqui também falando do caráter não unitário do funcionamento psíquico, inclusive por estar abordando uma cisão: enquanto as pulsões do eu podem depararse com o princípio de realidade, as pulsões sexuais se separam das primeiras, buscando, sem maiores impedimentos, a sua satisfação, já que não estão regidas pelo princípio de realidade. Nesse mesmo trecho, Freud nos traz outra preciosidade, relacionando a questão da pulsão sexual e a fantasia no autoerotismo: “É o continuado autoerotismo que possibilita que seja mantida por tanto tempo no lugar de uma satisfação real – que demanda esforço e adiamento – uma satisfação 120 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Celso Halperin mais fácil, momentânea e fantasiosa com o objeto sexual” (1911, p. 68). Podemos pensar aqui que o autoerotismo, pelo caráter fragmentário, parcial, tendo o próprio corpo como objeto, funcionando, portanto, predominantemente no princípio do prazer, permite uma contínua e permanente atividade da pulsão sexual, alimentando e enriquecendo o aparelho psíquico pela sua profícua produção de fantasias sexuais. Desse modo, o autoerotismo, pela sua fecundidade da vida imaginativa, é um produtor e alimentador da sexualidade e da vida psíquica em todos os seus estágios, pois, como diz ainda Freud nesse ensaio: “A substituição do princípio do prazer pelo princípio da realidade não implica a destituição do primeiro, mas sim a garantia da sua continuidade.” (Ibid., p. 68). Mas, retomando Freud de 1914, quando aborda a questão da passagem do autoerotismo ao narcisismo através de uma nova ação psíquica, que tanta polêmica provoca no seu esclarecimento, gostaria de uma rápida abordagem sobre o narcisismo, mais especificamente, sobre o denominado narcisismo primário. Retomando a frase já citada anteriormente, Freud coloca que no autoerotismo não existe ainda uma unidade comparável ao ego, já que o corpo não é percebido até aquele momento como uma unidade integrada ao objeto da pulsão. Funcionando de forma não integrada, cada zona erógena trata de tirar prazer dela mesma (prazer do órgão), já que o corpo, o eu como um todo, ainda não é reconhecido. Somente através de uma nova ação psíquica (não vamos entrar aqui na discussão de qual seria essa ação) há uma integração do eu (ego), passando ele a ser percebido com alguma unidade factível de ser alvo do investimento libidinal. Quando há uma representação de um eu (ego) como uma unidade, podemos falar de narcisismo. Esse narcisismo é primário se considerarmos o encontro entre essa percepção de si e o investimento libidinal dos pais, e é secundário quando a libido, ultrapassado esse momento de integração do ego, se aventura em investimento em objetos externos e retorna, por algum motivo, ao próprio eu. Feitas todas essas considerações sobre a estrutura autoerótica, vamos para a segunda parte da pergunta, ou seja, tentar entender a cisão do ego e posteriormente a possível relação entre essas duas questões. Embora Freud já tratasse da cisão, ou divisão da consciência, nos seus estudos sobre histeria, a cisão do eu (ego) e o processo de desmentida são estudados a partir dos artigos Fetichismo (1927), A cisão do eu no processo de defesa (1938) e o Resumo de psicanálise (1938). Freud propõe, de forma resumida, que, frente a uma realidade intolerável para a criança, que é fundamentalmente a percepção da incompletude (castração) Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 121 Autoerotismo, desmentida e a cisão do Eu da mãe, haveria a coexistência de duas realidades contraditórias: uma parte do eu aceitaria a percepção da ausência do pênis na mãe, isto é, partindo de uma teoria infantil que supõe a presença de pênis em ambos os sexos, a criança se depararia não só com a percepção da castração da mãe, como também com o próprio fenômeno da possibilidade da castração, inclusive em si próprio. Já a outra parte do ego recusaria que haja a falta do pênis na mãe, consequentemente não aceita outra solução que não a permanência da mãe fálica, desmentindo qualquer possibilidade ao contrário. Freud demonstra que a desmentida, ou seja, a persistência dessas duas atitudes opostas e independentes uma da outra, só é possível se houver uma cisão do eu (ego). É interessante notar também que, já no trabalho de 1927, Freud chama a atenção para a presença desse mecanismo não só no fetichismo, como também em outras situações em que o eu precisa estruturar um mecanismo de defesa. Para Freud, a cisão do eu e a desmentida se dão na estruturação do Édipo. Assim, uma parte do eu que reconhece a existência da castração seguiria com o seu desenvolvimento psicossexual, enquanto outra parte, aquela que não aceita, que renega, desmente a castração, continuaria funcionando de uma forma mais primitiva. Mas de que forma? Aqui temos de pensar em alguns autores contemporâneos que poderiam ser representados por Norberto Marucco e Myrta Casas de Pereda, os quais sustentam que a desmentida seria não só um processo mais primitivo em relação ao Édipo, como também seria estruturante. Para Marucco (1998), o sujeito já chega cindido ao Édipo. O autor compreende que essa cisão se dá entre uma parte do eu que funciona edipicamente (aceitando a castração, passando pela repressão) e outra parte do eu que funciona fundamentada na preservação do narcisismo primário (falicamente, não aceitando a castração). Essa parte mais primitiva que se preserva de uma forma cindida teria sua forma estruturada pela própria libido do indivíduo, bem como pelo processo de identificação primária passiva, ou seja, pelo investimento libidinal dos pais. Ressaltando a importância do investimento libidinal dos pais, mesmo que em função de suas próprias demandas narcísicas, o autor localiza aqui, no narcisismo primário, a estruturação da cisão e da desmentida. É através desse mecanismo da desmentida que a criança buscará manter a estrutura narcísica primária (ou seja, não aceitando a castração e suas consequências), bem como a manutenção do narcisismo (falo) dos pais ao lado de outra parte do eu que segue com seu desenvolvimento psicossexual. Para Marucco, a desmentida se dá de forma bem mais precoce que o Édipo, já na estruturação do narcisismo primário, sob o impacto da intersubjetividade. 122 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Celso Halperin Casas de Pereda (1999) compreende a desmentida (tanto da castração como da ausência do outro) como um mecanismo estrutural intersistêmico. Para a autora, a desmentida se mostra presente já na gratificação alucinatória do desejo, quando haveria uma desmentida da ausência do objeto. Aqui, a representação desmente a ausência. A desmentida organiza o primado fálico enquanto a repressão (primária), também estrutural, implica a proibição do corpo materno. Ocorre que, para a autora, essa desmentida estrutural não provoca cisão do eu. Somente teremos essa cisão se houver a persistência dessa estrutura fora de uma cadeia simbólica a ser desenvolvida. “Na desmentida estrutural não haveria uma verdadeira cisão do eu, mas estaria a dupla ‘saber-não saber’ (da castração) fazendo parte da divisão estrutural, ficando o primeiro no inconsciente e o segundo no consciente” (CASAS DE PEREDA, 1999, p. 181, tradução do autor). Portanto, a desmentida se daria entre dois sistemas: o consciente e o inconsciente. A partir de tudo o que foi descrito até aqui, podemos entender que no processo de desmentida não há um funcionamento único do eu, parecendo haver duas ou mais maneiras que podem coexistir de formas muitas vezes independentes, simultâneas e paradoxais. Enquanto Freud coloca essa estrutura em termos edípicos, Marucco trabalha em termos de narcisismo primário (eu ideal) e Casas de Pereda fala em uma desmentida estrutural, a partir de uma cisão inconsciente/consciente. Chegamos então no objetivo do trabalho, que seria retomar a pergunta original. A desmentida não poderia estar assentada na cisão natural do eu a ser formado, ainda não integrado, próprio do autoerotismo? Vimos que o autoerotismo se caracteriza por um funcionamento de um eu naturalmente ainda bastante fragmentado, não integrado. Há uma separação entre a pulsão sexual e a pulsão de autoconservação, bem como da própria estrutura do eu, que atinge somente satisfações isoladas (prazer do órgão), sem um funcionamento mais harmônico. Esse período, rico na produção da vida imaginativa, seguirá como um produtor, fornecedor de fantasias sexuais por toda a vida, já que o princípio do prazer, próprio do funcionamento do autoerotismo, jamais será completamente destituído pelo princípio da realidade. Pois bem, se, em termos da persistência das fantasias sexuais por toda a vida, a preservação do autoerotismo fica comprovada, por que não podemos pensar que esse mesmo autoerotismo preservado não se manifestaria também pela preservação de um mecanismo como a cisão, frente às dificuldades da vida, no caso, frente às duras realidades (castração) quando essas parecem intoleráveis? Ou seja, não é a desmentida, tal como as fantasias sexuais, a manifestação clínica, a comprovação de que o funcionamento autoerótico não integrado se preserva Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 123 Autoerotismo, desmentida e a cisão do Eu normalmente na vida psíquica, ainda que novos padrões de funcionamento sejam alcançados? Nesse sentido, a possibilidade de usar o recurso da desmentida não só seria fundamentado na presença da estrutura autoerótica durante toda a vida, como tenderia a estar disponibilizado para um funcionamento psíquico simultâneo a um contínuo processo de integração do eu, através do narcisismo e das relações objetais. Self-eroticism, disavowal and splitting of the Ego Abstract: From a brief review of concepts, the author questions the existence of a possible structural relationship between the self-eroticism and mechanisms such as disavowal and the splitting of the Ego. Keywords: Disavowal. Self-eroticism. Splitting of the Ego. Referências CASAS DE PEREDA, M. Entre la desmentida y la represión. In: ______. En el camino de simbolización. Buenos Aires: Paidós, 1999. p. 147-164. FREUD, S. (1899). Extratos dos documentos dirigidos a Fliess: carta 125. In: ______. Obras psicológicas completas. v. 1. Rio de Janeiro: Imago, 1977. p. 377-378. ______. (1905). 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Celso Halperin Rua Mostardeiro, 157 / 905 90430-001 Porto Alegre – RS – Brasil e-mail: [email protected] Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 125 outras contribuições Como se originou e se criou a teoria do encapsulamento autista (autistic encapsulation) David Rosenfeld1 Resumo: A originalidade deste trabalho está em demonstrar que os mecanismos de defesa autistas nem sempre provocam patologias mentais e, como se pode ver neste artigo, servem com o encapsulamento autista para preservar e manter as primeiras relações infantis e as introspecções que aqui se define como encapsulamento autista. Palavras-chave: Autismo. Desenvolvimento psicossexual. Introjeção. Mecanismos de defesa. Minha experiência tratando crianças autistas e o descobrimento dos mecanismos de defesa que eles utilizam, um dos quais titulei e defini como mecanismos autistas chamado encapsulamento autista, fez-me pensar que são os mesmos mecanismos que usam muitos pacientes adultos, especialmente aqueles que conheci e tratei, sobreviventes dos campos de concentração nazistas. A hipótese do encapsulamento autista é que dentro dessa cápsula, com poderosos mecanismos, há recordações e vínculos infantis que se preservam. Preservar dentro é a chave. Os afetos e as memórias infantis ali preservados, nesse Psiquiatra e Psicanalista. Membro da Associação Psicanalítica de Buenos Aires. 1 Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 127 Como se originou e se criou a teoria do encapsulamento autista encapsulamento, reaparecem muito bem preservados espontaneamente sem que provoquem estados de confusão na mente dos pacientes, diferentemente da dissociação ou splitting que, quando reaparece o dissociado sobre a mente, provoca estados de confusão. Hoje penso que podemos diagnosticar estes mecanismos de encapsulamento autista e localizar neste contexto teórico. Mecanismos que as crianças autistas usam e que voltam a ser usados na fase adulta como forma de sobrevivência. Particularmente como se verá no exemplo clínico posterior. Há uma frase de Freud que é importante ter sempre presente, escrita em seu último trabalho: Em algum canto da mente sempre há uma pessoa sã escondida2. Penso que terríveis e massivos traumas poderosos, como foi o efeito do nazismo sobre muitas pessoas, perturbam e destroem as identificações. Postulo que as identificações introjetivas podem desaparecer por causa de traumas extremos e massivos. E que os pacientes afetados por esses traumas terríveis perdem identificações e, também, elementos valiosos de seu self. Por exemplo, no material em que o paciente perde seu próprio nome. Quando o Registro de Identidade foi bombardeado em sua cidade não foi só um bombardeio, como também perdeu seu nome original – Moshe – e terminou usando o de Mario. A perda da linguagem da infância ou do próprio nome é como a perda da própria estrutura universal dele mesmo. Tecnicamente, é útil para o psicanalista prestar muita atenção em todos os elementos de perda ou ruptura, despedidas ou dores. É como se a perda e a desarticulação do self ou a desaparição ou desmembramento das identificações fosse a consequência de um paradoxo pragmático criado pelo terror massivo: ante o perigo, querem preservar as identificações e, ao mesmo tempo, perdem outras. No caso seguinte, correspondente ao Mario, acho que o conceito teórico de encapsulamento autista é útil. Esta é minha hipótese e modelo explicativo, que me permite entender como em certos pacientes as primeiras identificações da criança puderam ser preservadas e guardadas dentro de uma cápsula. Isso é o que vou descobrir usando este mecanismo teórico que foi usado pelo paciente Mario. A estrutura da personalidade prévia também influi no bom uso desse mecanismo. No caso do material correspondente ao Mario, encontro o conceito de encapsulamento autista bastante útil e este modelo explicativo me ajuda a en Traduzido da Standart Edition: “In some corner of their mind there was a normal person hidden” (FREUD, 1940, p. 202). 2 128 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 David Rosenfeld tender como as primeiras identificações infantis foram guardadas nessa cápsula. O mecanismo do encapsulamento autista que preserva os mais valiosos elementos do self frente ao terrificante e sanguinário mundo externo pode preservar algumas das introjeções e identificações, para evitar a perda total das identificações introjetivas. Como poderão ler, proponho uma teoria que pode ser chamada metodologicamente de forte: que as identificações introjetivas podem desaparecer. Baseando-me em minha experiência, posso agregar que algumas crianças com problemas neuróticos podem manter uma parte encapsulada em um bolso isolado (pocket, em inglês) e permitir que outra parte da personalidade possa seguir funcionando aparentemente normal. Isso é o que descobri em pacientes adultos. (RHODE, 2004a, 2004b; ROSENFELD, 1986, 2006, 2012a, 2012b; TUSTIN, 1986). Isto se vê no material de pacientes adultos que apresento, assim como também em transtornos de identidade, da pseudoidentidade, demonstrado nesse material. Paciente Mario O paciente tinha mais de 40 anos, aparentava ser jovem, alto, moreno e atlético, embora seus temores, ansiedades e certa dificuldade ao contato emocional fossem óbvios. Na primeira entrevista, fala sobre seu problema: uma dor no estômago que reaparecia sempre. Seu médico diagnosticou úlcera gástrica e indicou que começasse um tratamento psicanalítico, coisa que Mario fez. Aos 32 anos, casou-se com uma mulher, não tem problemas com ela, teve duas filhas, de 7 e 8 anos e um menino de 4 anos, no momento da entrevista. Também ocorreu que, estando noivo, morreu seu pai e não se permitiu casar-se nesse momento para não deixar sua mãe sozinha, viúva. No decorrer das primeiras entrevistas, o clima era sempre harmonioso e parecia todo correto e perfeito. Mario parecia demasiado formal e sobreadaptado. Descrevia sua mãe como uma pessoa generosa, às vezes hipocondríaca, menos educada que seu pai. O pai e sua família eram uma típica família representativa da comunidade sefaradi judeu-espanhola da Bulgária, onde cresceram (a cidade de Roustochouk, no baixo Danúbio). Era uma cidade maravilhosa para uma criança: pessoas de diferentes origens viviam juntas e falavam sete ou oito idiomas diferentes. À parte dos búlgaros, havia turcos e, perto da casa deles, gregos, albaneses e sefarades, que falavam o mesmo idioma, o espanhol antigo, de quando foram expulsos da Espanha, em 1942. Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 129 Como se originou e se criou a teoria do encapsulamento autista A família tinha vínculos fortes com essa comunidade. Também havia armênios, romenos, ciganos, que vinham do outro lado do Danúbio e também alguns russos. Falavam em italiano quando eram visitados por seus parentes italianos. O paciente conta que a relação com seu irmão mais velho às vezes era tensa, inclusive chegou a dar-lhe uma bofetada por não querer participar em uma competição de natação. Imediatamente, muda o assunto, falando de como ele adora seu filhinho. Também muda o assunto pela preocupação pelo seu estômago. Quando o analista pergunta sobre seu pai, diz que era afetuoso, gentil, uma pessoa a quem todo mundo queria, e que ele fazia chacotas ao pai quando não podia pronunciar corretamente alguma palavra em espanhol. Suas primeiras recordações relativas a medos e terrores se situam aos oito anos, quando os alemães atacam e bombardeiam Roustochouk: sangue, corpos mutilados, morte e terror. Ele foge para a casa de uns tios e logo se esconde na mesquita. Conta com muita ansiedade enquanto fala, como se estivesse revivendo nesse momento com o analista este episódio traumático. Depois, quando retornaram para sua casa, os nazistas haviam ocupado todo o país. Era proibido escutarem a rádio de Londres, mas mesmo assim o pai a escutava em segredo, e ele cometeu o erro de contar confidencialmente aos amiguinhos. Com muita fúria, o pai descobre e corre atrás dele com uma faca na mão, até que os tios conseguem acalmá-lo. Assim, os nazistas começam a observar seu pai e eles decidem abandonar a cidade vestidos como mulçumanos e alcançam a Costa Dálmata. Seu pai foi preso, mas por sorte os que o prenderam eram do exército italiano e o deixaram passar. Desde então, os italianos e a Itália têm sido símbolos admirados. Dali fogem apurados a Trieste, onde os homens de preto (era o uniforme das juventudes fascistas de Mussolini) atam a todos com correntes e os levam à cidade de Turim, onde foram alojados. No entanto, ele teve que ir viver em um orfanato. Esses meses no orfanato foram vividos como longos anos para ele. Com muito ressentimento, fantasiou e pensou que seus pais haviam se desfeito dele. Nesse momento, recorda com muito medo os ataques aéreos desse período. Depois de muitos anos de análise, disse que os bombardeios eram menos perigosos do que ser descoberto como um menino judeu. Depois, quando a família foi reunida em uma pequena cidade, chegaram a sobreviver trabalhando como sapateiros. No entanto, os alemães avançaram sobre essa cidade e a família foge apressada para cima das montanhas, onde conseguem conhecer um grupo 130 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 David Rosenfeld da resistência antifascista. Quando os nazistas fazem outra batida buscando judeus, um milagroso e falso salvo-conduto os salvou da batida e conseguiram fugir escondidos em caixotes de arroz até Roma. Perto dali vivia um tio e esconderam-se nessa casa. Quando Mario tinha em torno de 11 anos, os norte-americanos libertaram Roma. Recorda muitas coisas, mas entre elas, também, que se masturbava esfregando-se sobre superfícies duras, uma parede ou uma tabuleta. Quando o terapeuta pergunta-lhe sobre isso, diz que, para os pais, a sexualidade era um tema secreto, algo de que não se falava. Somente aos 20 anos conseguiu que um tio lhe explicasse o que é a sexualidade, como é o coito, o sexo, etc. Tempos depois, chegam a Buenos Aires e um parente lhe dá um pequeno trabalho. Nesse momento, descobre que seus avós e todos os irmãos da sua mãe haviam sido assassinados na Bulgária. Aqui começa a estudar na escola secundária, era muito bom aluno. Apenas aos 30 anos teve sua primeira relação com uma menina. Começo do tratamento Pudemos seguir o tratamento deste paciente, quatro vezes por semana, durante dois anos. A conduta do paciente era formal, às vezes obsessivo em sua linguagem e estilo. Seu temor ao tratamento não era exposto, mas creio que estava dissociado. Seu terapeuta, um católico, recorda que somente o viu uma vez aterrorizado em sessão quando estavam falando sobre as perseguições entre cristãos e judeus. Então o terapeuta disse-lhe nesse momento: Eu sou cristão e você é judeu, você crê que eu sou uma ameaça para você por isso? O paciente saltou do divã rapidamente e parou. Depois disso, aparecem sonhos que traz às sessões. O primeiro sonho: Ele estava caminhando até o consultório. Perto há um negócio de marcas italianas de carros, Fiat, coisa que é real. Ali vê quatro homens com a típica aparência dos serviços secretos da ditadura militar, que aterrorizou a Argentina por muitos anos, em seus típicos automóveis. Em um carro vê um revólver. Trata de tirá-lo enquanto gritava: É um malentendido, não atire em mim, não atire em mim. No entanto, esses senhores começam a disparar com um revólver de cano recortado e o paciente se acorda desse sonho, aterrorizado. As associações do paciente: a primeira coisa que observa é que todo o sonho ocorre próximo do consultório, mas as associações do paciente foram muito poucas. Parecia que paralisou suas associações. Parecia ter terror do terapeuta e Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 131 Como se originou e se criou a teoria do encapsulamento autista desconfiança do tratamento. Apesar de tudo, havia um elemento que se mantinha como algo salvador: a Itália, a Fiat e a cidade de Torino. Outro sonho do primeiro ano de análise. Diz o paciente: Que sonho estranho eu tive! Havia um campo que estava arado e havia um homem vestido de festa, que tinha uma mangueira da qual saía sangue e com isso regava o campo. Depois de contar o sonho, o paciente tem uma crise muito forte de ansiedade que atinge o terapeuta e que lhe preocupa muito. Hoje em dia, penso que este sonho pode ser visto como expressão de sua imagem corporal (body image). Ter e participar de um encontro sexual (mangueira=penis) poderia ser experimentado e fantasiado como que podia esvaziar-se, sangrando. Além do mais, este sonho permitiu formular hipóteses concernentes a seus afetos e emoções sobre suas relações sexuais e vínculos baseados nas noções primitivas de sua imagem corporal (ROSENFELD, 2014). As interpretações durante o trabalho analítico permitiram-lhe entender muito melhor suas inibições a respeito de seus medos em relação às relações sexuais. Sessão depois da festa religiosa a que concorreu o paciente Durante os três longos anos de análise, o paciente manteve seu comportamento aparente e formal, e possivelmente uma pseudoidentidade. Também continuou com seu estilo de linguagem obsessivo, em que descreve fatos reais e fala de seus compromissos e obrigações em relação a seu trabalho. O paciente muito raramente podia mostrar algum temor em sua relação transferencial, isto ocorreu uma única vez quando o psicanalista disse-lhe que ele, na realidade, era cristão. Sempre encontrava uma explicação racional para a sua tendência de faltar às sessões: algumas vezes era pela fábrica, trabalho extra ou horas extras. O paciente muitas vezes parecia dissociado. Neste momento do tratamento, algo aconteceu com ele e com a supervisão. O psicanalista, uma pessoa altamente sensível, muito contido e afetuoso, trouxe um material no qual se podia detectar a dissociação de uma parte da mente do paciente que estava fora de contato com ele mesmo e com o tratamento. Tentamos trabalhar várias hipóteses e maneiras técnicas de aproximação para ver se poderíamos entrar em contato com áreas do paciente muito dissociadas ou encapsuladas. Uma dessas hipóteses foi sugerir que uma das próximas sessões do paciente coincidiria com uma das festas mais importantes da religião judaica, chamada Dia da Reflexão/Expiação/Perdão (que em hebraico 132 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 David Rosenfeld se chama Yom Kippur): o psicanalista ia declarar que o paciente não tinha obrigação de vir nesse dia à sessão e dizer-lhe que o respeitava por ser um judeu e que não teria que esconder-se nas montanhas, como quando era criança, fugindo dos nazistas. Três sessões mais tarde, algo completamente novo apareceu: traz um material que demonstra quão importante é a identidade judaica e a relação com a identidade infantil. Isto nunca havia aparecido manifestadamente antes em sessão. Isso parecia estar sempre encapsulado e colocado fora de sua mente e do tratamento. Possivelmente, preservado pelo paciente dentro de seu self. Nessa sessão, ele recordou a época em que, criança, brincava subindo nos ombros do avô e nesse momento sentiu o peculiar aroma do cabelo do avô. O paciente chegou a dizer: Estou cheirando-o neste momento da sessão. Na continuação, diz ao analista que esteve vendo na televisão uma série chamada Holocausto e nesse episódio aparece o pai de uma família que encontra um irmão, os dois aparecem caminhando juntos ao longo das vias de um trem. Enquanto relata isso, o paciente se detém bruscamente. Sua mente parece ficar em branco. Fica totalmente em silêncio. De repente, pula a cena seguinte do filme e começa a falar de outra parte desse filme. O analista que também havia visto na televisão Holocausto nessa mesma noite, assinala ao paciente seu erro, e diz que ele havia-se detido bruscamente, ficado em silêncio e, havia continuado a falar, pulando e esquivando uma cena completa na qual o pai caminhava junto a um homem chamado Moisés (Moses). Nesse momento, o tom de voz do paciente sofre uma mudança brusca e, profundamente impressionado, diz: Doutor, você tem razão. Agora lembro que meu verdadeiro nome é Moses. O paciente havia vivido na Argentina por mais de 30 anos e durante esse longo tempo esse nome nunca chegou a ser consciente nele. Nunca havia falado disso ou mencionado na sua casa. Tinha 14 anos quando chegou ao país, foi como se desde criança parte de sua identidade tivesse ficado encapsulada. Agora, depois desta longa hibernação, emerge novamente. Bem preservada. E no decorrer de uma sessão. Enormemente emocionado, o psicanalista lhe pergunta, tratando de superar sua emoção e surpresa: Mas então seu nome não é Mario, é Moisés. O paciente diz: Dr., recentemente lembrei que usavam o sobrenome Misha para me chamar que é um diminutivo de Moshe. Muito poucas vezes vi um psicanalista tão emocionado no decorrer de uma hora de supervisão. Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 133 Como se originou e se criou a teoria do encapsulamento autista Em outra sessão, o paciente conta que foi convidado para uma cerimônia importante da tradição judaica, a cerimônia dos 13 anos (Barmitzvá), que faziam ao filho de seu sócio. Nesse momento, o paciente estava muito emocionado e conta que de repente viu ele mesmo chorando no templo. Agrega que antes havia se sentido temeroso, mas que, como em seus sonhos, de repente se sentiu invadido de emoções e recordações. Seu povo da infância, Roustchouk, recordando vozes chamando-o Misha, Misha. Também se sentiu invadido com a imagem das costas de seu avô, carregando-o nos ombros e a fragrância forte de seu cabelo. Então disse ao analista: Eu nunca vou poder recuperar esse nome, porque a seção do Registro Municipal dessa cidade foi destruída e bombardeada. E meu verdadeiro nome também foi destruído e queimado pelas bombas. Nesse momento o paciente fica constrangido com uma grande emoção pelo resto da sessão. Na construção linguística podemos observar que se referia não somente a seu próprio nome senão às partes de sua identidade, de seu self (LIBERMAN, 1972; ROSENFELD, 2006, 2008, 2009, 2012b). Obviamente, depois dessa sessão, é o mesmo paciente que, por semanas e meses somente falava de seu trabalho ou dava lógicas explicações sobre suas tarefas para justificar muitas faltas à sessão. Mas a estrutura rígida inicial parece ter desaparecido, e outro estilo de comunicação surge e emerge. Mais adiante, outras áreas de sua personalidade puderam ser tratadas com maior facilidade. Por exemplo, sua relação com sua esposa, seus filhos e seu sócio. E aparece a possibilidade de ter outra criança, coisa que antes ele temia. Além disso, pela primeira vez, surgem recordações de quando tinha três anos: envolto por um lençol branco e levado ao hospital para tirar as amígdalas. Lembra ter estado assustado por uma luz que o iluminava e que vinha do espelho que o médico tinha, que refletia um feixe de luz, um espelho com um buraco no meio. Meses depois, este material sugeriu alguma relação com medos à castração. As emoções infantis e recordações aparecem muito relacionadas com seu pai, porém antes da perseguição dos nazistas. Também surgem intensamente os sentimentos e dores pela morte do pai, porém agora vistos de outra perspectiva. Por exemplo, recordações de algumas travessuras com ele, como quando era criança e retirou a cadeira na qual seu pai ia sentar-se e ele caiu. Algo muito importante ocorre em sua mente e remexe seu mundo interior quando a Argentina entra em guerra com a Inglaterra pelas Ilhas Malvinas, chamadas pelos ingleses Falklands. No paciente despertam terrores tanto em Mario como em Moshe. Tanto que no decorrer de uma sessão, diz: Isto é demais para uma criança. 134 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 David Rosenfeld Pensamos e acreditamos que o paciente agora tinha novos e melhores recursos psicológicos para fazer frente a esta guerra, assim como o terror que causava nele o sequestro e desaparecimento de muita gente nas ruas de Buenos Aires com a ditadura militar. Este último sempre o recordou do dia em que seu pai foi arrastado e levado à prisão. Recordações da primeira infância de repente crescem e aparecem muitas delas de forma desordenada. O mesmo paciente se dá conta que tinha um buraco, um espaço que ficou vazio de quando era muito pequeno. Então, um dia ele pergunta a sua mãe: O que aconteceu quando eu era muito pequeno em nosso povoado de Rouschouk? A mãe lhe conta fatos, anedotas e entre elas, uma anedota na qual um vizinho deu-lhe um presente.. O paciente em estado de regressão, durante a sessão, sem dar-se conta, segue falando em italiano. Nesta maneira expressou, de forma concreta, a regressão linguística que ele mesmo se permitiu. E como o poeta diz: I lest parvenu mantenant au terme de sa route, i se devoile et Eclaire les vingt annees de mutisme ecoulees Dans son ombre. Il ne pourrait pas autant reveler s’il ne s’etait tu si longtemps… (Elías Canetti – Premio Nobel de Literatura – Territoire de l’homme) He has now reached the end of his journey, he takes off His veils and clarifies the twenty years of silence elapsed under His own shadow. He Could not have revealed so much if he had Not remained silent for so long… Agora ele chegou ao final de sua rota, ele descobre-se dos véus que tinha E se esclarecem os vinte anos de mutismo escondidos em sua própria sombra. Ele não poderia revelar-se assim se não houvesse estado calado e em silêncio por tão longo tempo... (Elías Canetti – Premio Nobel de Literatura- Territoire de l’homme) Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 135 Como se originou e se criou a teoria do encapsulamento autista How was the theory of autistic encapsulation originated and created Abstract: The originality of this study is in demonstrating that the mechanisms of autistic defense do not always cause mental pathologies and, as this study demonstrates, work with the autistic encapsulation to preserve and maintain the first infantile relations and the introspections which, in this article, are defined as autistic encapsulation. Keywords: Autism. Defense mechanisms. Introjection. Psychosexual development. Referências CANETTI, Elías. Le territoire de l’homme: réflexions (1942-1972). Paris: Albin Michel, 1978. FREUD, S. (1940). An outline of psychoanalysis. In: Standart Edition. v. 23. London: Hogaart, 1964. LIBERMAN. D. Linguistica, interaccion, comununicativa.y proceso psicoanalitico. Buenos Aires: Nueva Vision, 1972. RHODE, M. A the many faces of Asperger Syndrome. London: Karnac, 2004a. ______ . Sensory aspects of language development in relation to primitive anxietes . International Journal of Infant Observation and its Application, v. 6, p. 12-32, 2004b. ROSENFELD , D. Identification and its vicissitudes in relation to the nazi phenomenon. International Journal of Psychoanalysis, v. 67, p. 53-64, 1986. ______. Autistische abkapselung. In: NISSEN, B. Autistische phaenomena in psychanalitischen behandlung. Giessen: Psychosozial-Verlag, 2006. ______. The soul, the mind and the psychoanalyst. London: Karnac, 2008. ______. l ame, le psychisme et le psychanalyste. 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Estes predomínios podem mostrar-se mais evidentes quando estamos diante de mulheres que buscam os tratamentos de reprodução assistida, criando diferentes formas de vínculos. Também observamos, em algumas mulheres, uma outra forma de tentar engravidar que parece mais ligada a um acúmulo de excitação e de investimento, em que os órgãos corporais são fonte e objeto da pulsão, o que nos remete à ideia de libido intrassomática. Este trabalho tem como objetivo apresentar as diferentes faces do desejo e levantar questões sobre uma outra forma de expressão que estaria ligada à gravidez quase como uma mera descarga corporal, ligada à libido intrassomática, usando, para tanto, ilustrações clínicas. Palavras-chave: Conservação da espécie. Desejo. Pulsão de autoconservação. Reprodução assistida. 3 4 1 2 Membro Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. Membro Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. 138 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Katya de Azevedo Araújo, Mara Horta Barbosa, Maria Isabel Pacheco, Patrícia Mazeron, Renata Viola Vives 1 Revisão do conceito de desejo O conceito de desejo, na teoria freudiana, aparece mais na primeira tópica e é nela que Freud implanta a teoria representacional. Quando falamos de desejo, falamos de investimento da representação, sendo que é esta (a representação) que caracteriza o fenômeno psíquico. O desejo nasce quando ocorrem as primeiras vivências de satisfação, com a formação do aparato psíquico, ou seja, o surgimento do desejo inaugura o psiquismo e será o motor deste aparato. Segundo Valls (1995) a experiência de satisfação funda um complexo representacional que se apresenta com três tipos de representações: a) a representação do objeto de satisfação, ou seja, a primeira que se ativa quando se reanima o desejo; b) a representação dos movimentos que se fizeram com este objeto e o que este fez; c) a representação da sensação de descarga. Por outro lado, temos a necessidade, que deixa registros na memória, sendo que estes ficam associados às percepções geradas pela experiência de satisfação (imagens mnêmicas). Na próxima aparição da necessidade, em função do enlace estabelecido, ocorre um movimento psíquico que irá buscar investir novamente na imagem mnêmica, ou seja, reestabelecer à situação da primeira satisfação. [...] uma moção desta índole é o que chamamos desejo; a reaparição da percepção é o cumprimento do desejo e o caminho mais curto para este é o que leva desde a excitação produzida pela necessidade até o investimento pleno da percepção (FREUD apud VALLS, 1995, p. 194). O desejo é o desejo de voltar a reviver a experiência de satisfação, aquela primeira vivida no vínculo com o outro e que agora é o objeto desejado, sonhado, almejado. “Cada vivência de satisfação irá deixando novos desejos; as pulsões de autoconservação vão ficando mais repetitivas enquanto o objeto será mais fixo” (VALLS, 1995, p. 194). Já as pulsões sexuais irão mudando os desejos conforme as zonas erógenas do período até chegarem à supremacia fálica, quando se organizam em uma direção e ocorre a eleição de objeto, que por ser incestuoso deverá ser reprimido. O objeto das pulsões sexuais irá se modificando ao longo do desenvolvimento, mas vai diminuindo conforme vai produzindo fixações, podendo ficar no próprio corpo. Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 139 As diversas faces do desejo nos tratamentos de reprodução assistida A escolha de objeto sexual (externo) se sustenta em parte nas pulsões de autoconservação e em parte no próprio corpo, onde o objeto deixou seus registros. Então “a história do corpo e sua representação irão definindo o eu” (VALLS, 1995, p. 195). Os desejos inconscientes dos objetos poderão chegar ao pré-consciente, a partir do período pré-edípico, pois com a aquisição da linguagem, podem ligarse às representações de palavra, manifestando assim os desejos pré-conscientes. Depois do complexo de Édipo, o aparato psíquico se cindirá e múltiplos desejos (incestuosos, parricidas e os infantis) serão reprimidos, passarão ao estado de inconscientes e lá permanecerão (VALLS, 1995, p. 195). O ego tira o investimento da representação-palavra, nega sua existência e não reconhece os desejos como seus. Mas estes desejos permanecerão querendo retornar, diretamente ou por meio de deslocamento pré-consciente que os representem e, ao mesmo tempo, evitem a censura. Esse retorno origina os sonhos, atos falhos, sintomas neuróticos, etc. Em termos gerais, para Valls (1995), quando nos referimos a desejo inconsciente nos referimos a desejo sexual, mesmo que a posse de representação (de coisa e de palavra) dê à pulsão de autoconservação característica desejante. Segundo Freud (1915 apud VALLS, 1995), não pode haver desejo correspondente à pulsão de morte, pois não há no inconsciente representação coisa desta (morte). É uma contradição falar de uma vivência de morte que deixe sua marca no aparato psíquico. O que pode acontecer é uma necessidade inconsciente de castigo que provém do superego. Paradoxalmente sabemos da existência de uma pulsão de morte muda, que se falasse seria através das representações (de coisa e de palavra) do desejo sexual, com o qual está misturado. O conceito de desejo se confunde com o de pulsão, bem como o de libido sexual, mas são coisas diferentes. Pulsão, para Freud (1915, p. 117 apud VALLS, 1995, p. 470), “é um conceito limite entre o somático e o psíquico”. O desejo relaciona-se mais com o lado das representações. Por isso Freud fala em satisfação alucinatória de desejo e não em satisfação alucinatória de pulsões. Valls (1995), ao diferenciar os conceitos de libido e desejo, nos aponta a dificuldade em falar de desejo narcísico puro, pois afirma que poderia fazê-lo como extensão do conceito de desejo homossexual, mas que mesmo assim ainda estaria referindo-se a um objeto. Exemplifica esta afirmação com a dependência da criança ao amor do objeto no período de latência em que pode tomar para si, como próprios, os desejos do objeto. A criança, em geral, resigna suas pulsões para garantir o amor materno. 140 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Katya de Azevedo Araújo, Mara Horta Barbosa, Maria Isabel Pacheco, Patrícia Mazeron, Renata Viola Vives Conforme Valls (1995), poderíamos pensar, portanto, que a necessidade do amor do objeto não é narcisista no sentido mais restrito do termo, uma vez que desejar ser amado pelo objeto, ou desejar ser o ideal, está constituído por marcas de objetos do passado infantil ou da onipotência perdida. Assim, “são desejos narcisistas, porém nunca falta o rastro do objeto em todas as complexizações do desejo” (p. 198). De acordo com Hanns (1996), Wunsch é um substantivo que é traduzido por desejo, sendo que este se dirige ao que é almejado, diferenciando-se no texto freudiano de Lust, que significa vontade, desejo e prazer e de Begierde, que representa desejo intenso, sofreguidão. O termo é utilizado para expressar algo menos imediato, objetos que se apresentam para o sujeito como um ideal, algo sonhado, sendo este de caráter imaginário. Difere-se do sentido em português, em que desejo é usado como um querer mais imediato e referindo-se também à sexualidade, sentido este que não está contido em alemão. Tanto no Projeto para psicologia científica (1895) quanto na Interpretação dos sonhos (1900) Freud, de acordo com Hanns (1996) usa o termo Wunsch no sentido de desejo alucinatório. Coloca ainda em 1900 que nada senão o desejo pode colocar nosso aparelho anímico em ação. O termo Wunsch está presente na obra de Freud desde suas primeiras formulações sendo que é no texto da Interpretação dos sonhos que é elaborado mais detalhadamente. Hanns (1996) salienta que de forma geral pode-se dizer que o desejo circula preponderantemente na esfera representacional, nas regiões do pensamento, do sonho, da fantasia, do idealizado, do imaginado, do alucinado e da loucura. Segundo o mesmo autor, Freud muito raramente emprega o termo satisfação (Befriedigung) em conexão com desejo (Wunsch), sendo a palavra realização como também a palavra desejo pertencentes à esfera do idealizado, do almejado e do anímico. A pulsão em si não tem desejo, é uma força, uma intensidade que busca a descarga, o desejo sim, busca satisfação. Segundo Hanns (1996), a pulsão é inquietante e aguilhoa o sujeito, necessitando ser apaziguada; sua meta é obter o prazer (Lust) desconsiderando qualquer mediação. Sua expressão mais imediata é Lust (desejo-vontade e sensação de prazer). Sendo uma manifestação mais direta do Trieb, o qual desconsidera a realidade, o Lust constitui-se numa tendência ou vontade e não propriamente num desejo. Esta expressa uma vontade do corpo de forma direta, quase sem mediação do objeto. Enquanto a Lust é de cunho mais autoerótico, o Wunsch se dirige a um objeto investido e imaginado, o qual faz a triangulação entre Wunsch e a Lust. Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 141 As diversas faces do desejo nos tratamentos de reprodução assistida 2 A pulsão de autoconservação e a conservação da espécie Na busca pela reprodução assistida vemos, por vezes, pacientes recorrendo à tecnologia de forma quase irracional, chegando a dispor, para isso, não só de todo o montante de seus bens materiais, mas também da integridade física do próprio corpo. Joana tem 44 anos. Fez quatro fertilizações in vitro, com doação de sêmen, porque desejava ser mãe. Não obteve sucesso. Estava encaminhando-se para o quinto procedimento, quando foi internada às pressas. Estava com colesterol altíssimo, com problemas renais e hepáticos devido à sobrecarga de medicamentos. Entrou em coma. Quase morreu, porém relata que em nenhum momento deu-se conta da gravidade da situação, pois só tinha em mente ser mãe. Atualmente, em parte recuperada dos problemas de saúde, pensa em adotar uma criança para alcançar seu objetivo. Para Maldavsky (2000) o corpo é uma unidade complexa, sendo possível precisar sua função e sua eficácia na constituição, desenvolvimento e atividade da vida anímica e nos processos subjetivos. Em primeiro lugar, o corpo tem valor de fonte química da pulsão e também de objeto da mesma; também funciona como estrutura que processa as excitações das fontes pulsionais. Essa estrutura carrega um saber filogenético, que é inerente à espécie e que predetermina certas orientações universais na vida psíquica. Por último, o corpo é o lugar de diversas ações com as quais se pretende tramitar as exigências endógenas. O corpo também pode sofrer alterações como consequências dos conflitos, sobretudo as somatizações. É na superfície corpórea e por suas sensações de prazer e desprazer que Freud (1905) definiu as zonas erógenas, sendo que a constituição de uma zona erógena requer processos projetivos e de excitações periféricas. Para Maldavsky (2000), as erogeneidades oral, anal e uretral são ordenadoras de um conjunto vasto de outras sensualidades, sensorialidades e motricidades de caráter ativo ou passivo. A tudo isso se agrega a erogeneidade fálica, possivelmente a única não acoplada a autoconservação. Por fim, também se juntará a isso uma erogeneidade genital, que implica um desempenho na conservação da espécie. A pulsão de conservação da espécie, que se liga com a erogeneidade fálicogenital, quando sobrevêm as mudanças da puberdade, pode estar a serviço de neutralizar a pulsão de morte. Ela predetermina o valor de cada erogeneidade no marco da reprodução e reúne em torno da autoconservação e da sexualidade um saber filogenético. Essa pulsão pode entrar em luta com alguma pulsão parcial, 142 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Katya de Azevedo Araújo, Mara Horta Barbosa, Maria Isabel Pacheco, Patrícia Mazeron, Renata Viola Vives bem como pode entrar em conflito com a pulsão de autoconservação quando a procriação resulta numa ameaça direta ou indireta à própria vida. Sobretudo, a pulsão de conservação da espécie se opõe à pulsão de morte, onde já não se trata de preservar uma vida singular e sim de preservar a espécie, da qual cada corpo é um representante. Lembremos também que para o mesmo autor, a libido pode ficar fixada a uma fase inicial do desenvolvimento e, portanto, investir duramente os órgãos internos, criando processos tóxicos. A substituição do princípio do prazer-desprazer pelo do masoquismo como orientador da sexualidade leva a uma estase da pulsão, seja da sexualidade ou da autoconservação, ou ambas ao mesmo tempo. A estase é entendida como a impossibilidade de tramitação psíquica, sobretudo orgânica, para uma erogeneidade dada. Se a estase afeta o narcisismo, de acordo com Freud, podem dar-se manifestações hipocondríacas; se diz respeito à libido objetal, surgem sintomas de neurose atual. A questão que se apresenta é que essas experiências podem ou não ser reprocessadas psiquicamente e podem ter um caráter transitório ou duradouro. Por vezes irão surgir estados de angústia automática, atribuídas ao desvalimento psíquico ante a pulsão sexual. Maldavsky (1994), quando propõe as patologias do desvalimento, coloca que essas pessoas carecem de uma vida fantasmática, e que essa carência simbólica se traduz por uma falha no registro dos afetos e, consequentemente, o empobrecimento da subjetividade. A raiz disso, ainda segundo o autor, seriam falhas estruturais ocorridas nos primórdios da vida do sujeito, nas quais sua economia pulsional está voltada para manter o equilíbrio das funções orgânicas basais (temperatura corporal, frequência cardíaca, frequência respiratória, etc.). Ou seja, uma época regida pela demanda (corporal) anterior ao desejo. O autor diz que a satisfação dessa demanda e manutenção do equilíbrio homeostático depende de um ambiente empático e continente ao sujeito. Havendo falha nesta função do ambiente, o ego primitivo do bebê fica à mercê de um quantum de energia que é incapaz de processar, levando ao traumático (por excesso) e a um transbordamento dessa energia para o corpo, que é então tomado como objeto de catexia da pulsão. Maldavsky (2000) nomeia essa fase de fase libidinal intrassomática, em que a libido está a serviço do equilíbrio orgânico. Scherer et al. (2013) coloca que pacientes desvalidos são desprovidos de uma demanda psíquica e geralmente chegam a tratamento por questões clínicas, ligadas ao corpo. Postulam que a defesa característica da fixação à fase libidinal intrassomática é a desestimação do afeto, podendo estar associado também à desestimação da realidade e/ou instância paterna e a desmentida, o que caracteriza Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 143 As diversas faces do desejo nos tratamentos de reprodução assistida então os quadros de desvalimento. É o fracasso de um desses mecanismos de defesa que levaria a algum desequilíbrio orgânico, que gera então a busca de algum tipo de tratamento clínico. Freud em 1894 já apresentava a ideia de uma defesa muito mais poderosa e bem-sucedida, na qual o ego rejeitaria a representação incompatível, juntamente com seu afeto, e se comportaria como se a representação jamais tivesse existido. Essa busca desmedida, que não observa nem mesmo os limites da própria saúde corporal, faz questionar seu fim em si, que é a gestação e o futuro bebê. O que se observa, é que o bebê imaginário aparece muito pouco neste cenário, quase ausente no discurso, que é pontuado por ecografias, medicações, exames laboratoriais e prazos. Isso leva ao questionamento se haveria um suporte simbólico sustentando essa busca que não respeita nem mesmo a própria integridade corporal do sujeito, podendo levar até a morte em nome da vida. Perpassando pelas diversas faces do desejo, nos deparamos com o desejo narcísico, com o desejo edípico e nos questionamos sobre que desejo, se é que poderíamos chamá-lo assim, sustenta essa busca por um filho a qualquer preço e a qualquer custo, colocando a própria vida em risco? Seria possível inferir que algumas das mulheres inférteis que buscam reprodução assistida possam fazê-lo movidas não por um desejo, mas por uma demanda – necessidade (orgânica) característica da fixação intrassomática, busca esta ligada à descarga pulsional somática, onde o corpo é o objeto da pulsão, que é levado até a exaustão? Ou a busca por tratamentos de reprodução assistida que chegam a pôr em risco o autoconservativo tem como motivação primordial a conservação da espécie, ou seja, isso que se encontra inscrito em cada um de nós, filogeneticamente? Na tentativa de apreender a motivação que impulsiona a mulher na busca pela maternidade, talvez nos escape ou neguemos uma ordem interna que possa estar intimamente imbricada nesta busca. Referimo-nos aqui a algo relacionado ao inato. O homem antes de tudo é um ser biológico. Se pudermos pensar que em uma situação hipotética de extremo estresse e risco de vida todos os preceitos éticos e morais do indivíduo ficam abalados, levando-o a agir de forma irracional para manter a própria sobrevivência ou de sua espécie, não temos como negar que também somos guiados por forças instintivas que não domamos. É possível pensarmos que talvez estejamos negligenciando estas forças e mandatos filogenéticos, relacionados à maternidade e perpetuação da espécie. Estes são questionamentos que levantamos e seguimos a pensar a partir da teoria e da clínica. 144 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Katya de Azevedo Araújo, Mara Horta Barbosa, Maria Isabel Pacheco, Patrícia Mazeron, Renata Viola Vives The many faces of desire in assisted reproduction treatment Abstract: Throughout Freud’s work the concept of desire is defined and assumes different shades, especially when the issue is the women wish for child, a wish that can be of a narcissistic or oedipal predominance. These instances of predominance may prove more evident when one deals with women seeking assisted reproduction treatments, creating different types of bonds. We have also observed in some women another way of trying to get pregnant which seems more connected to a buildup of excitement and investment, in which the bodily organs are the source and the object of the drive, which brings us to the idea of intrasomatic libido. This work aims to present the different sides of the desire and raise questions about another form of expression that would be connected to pregnancy almost as a mere body discharge, connected to the intrasomatic libido, and clinical illustrations will be used for this purpose. Keywords: Assisted reproduction. Desire. Preservation of the species. Self-preservation drive. Referências FREUD, S. (1894). As neuropsicoses de defesa. In: _____. Obras psicológicas de Sigmund Freud. v. 1. Rio de Janeiro: Imago, 1974. ______. (1895). Projeto para uma psicologia científica. In: ______. Obras psicológicas de Sigmund Freud. v. 1. Rio de Janeiro: Imago, 1974. ______. (1900). Interpretação dos sonhos. In: ______. Obras psicológicas de Sigmund Freud. v. 4. Rio de Janeiro: Imago, 1996. ______. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: ______. Obras psicológicas de Sigmund Freud. v. 7. Rio de Janeiro: Imago, 1996. HANNS, Luiz Alberto. Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. MALDAVSKY, D. Pesadillas em vigília. Buenos Aires: Amorrortu, 1994. ______. Lenguaje, pulsiones, defesas. Buenos Aires: Nueva Vision, 2000. Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 145 As diversas faces do desejo nos tratamentos de reprodução assistida SCHERER, C. et al. Des-afetos: pensando as patologias do desvalimento. Psicanálise: Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, v. 14, n. 2, 2013. VALLS, Jose Luis. Diccionario freudiano. Madrid: Julian Yebenes, 1995. Katya de Azevedo Araújo Rua Tobias da Silva, 137 / 208 90570-020 Porto Alegre – RS – Brasil e-mail: [email protected] Mara Horta Barbosa Rua Dona Laura, 354 / 306 90430-091 Porto Alegre – RS – Brasil e-mail: [email protected] Patrícia Mazeron Av. Independência, 172 / 403 90035-904 Porto Alegre – RS – Brasil e-mail: [email protected] Renata Viola Vives Rua José Gomes, 393 91910-280 Porto Alegre – RS – Brasil e-mail: [email protected] 146 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Afinal, o que é esse tal enactment? Roosevelt M. S. Cassorla1 Resumo: O autor relata investigações clínicas que o levaram a encontrar o conceito de enactment. O estudo minucioso de explosões do campo analítico revelou que elas desfazem conluios duais entre os membros da dupla analítica. Esses conluios congelam situações traumáticas primitivas. Ao mesmo tempo, o analista, utilizando sua função alfa explícita e implícita, recupera a rede simbólica defeituosa ou inexistente. Quando ela está recomposta, o trauma é revivido no campo analítico através do contato com a realidade triangular. Dessa forma, a dupla analítica pode sonhar-a-dois. Demonstra-se que essas situações revelam configurações borderline que são externalizadas no campo analítico. Revisa-se o conceito de enactment e propõe-se nomear enactment crônico aos conluios duais e enactment agudo às situações em que esses conluios são desfeitos. Finalmente, através de aproximações metapsicológicas, discutem-se fatores relacionados às situações estudadas, tais como vicissitudes dos processos de simbolização em áreas primitivas, organizações defensivas patológicas e comunição inconsciente entre os membros da dupla analítica. Palavras-chave: Agieren. Borderline. Enactment. Simbolização. Trauma. Convido o leitor a acompanhar-me no relato de investigações que, a meio caminho, encontraram-se com o conceito enactment. O início foi a clínica. Ainda candidato, na década de 1980, atendia K, uma sofrida jovem. Durante as sessões, sentia-me invadido por queixas e lamentações que, inicialmente, Membro Efetivo e Analista Didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Campinas gepCampinas. 1 Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 147 Afinal, o que é esse tal enactment? referiam-se a sintomas corporais e busca desesperada de tratamentos médicos, depois substituídos por queixas em relação a pessoas significativas incompreensivas. Tentava compreender o que havia para além das lamentações, com pobres resultados. Minhas intervenções eram atacadas ou desvitalizadas. Sentia-me frente a uma espécie de muro protegido por metralhadoras que me fuzilavam. Percebia minha impotência, e K se queixava dela também. No entanto, havia momentos em que K parecia aproveitar o trabalho analítico. Imaginava que estava sendo capaz de suportar os ataques e, na medida do possível, transformá-los em pensamento. Acreditava que as dificuldades seriam vencidas, aos poucos, desde que eu não me deixasse destruir. Numa determinada sessão, K detalhava frustrações e incompreensões, na forma lamentadora habitual. Eu ouvia calmamente (ou assim me parecia) e buscava por onde intervir. A intensidade crescente dos ataques dificultava a manutenção de minha paciência. K mal me ouvia e falava junto comigo, por vezes gritando. Pacientemente, eu interrompia minhas intervenções esperando que ela se acalmasse. Em determinado momento, surpreendi-me dando um soco no braço da cadeira enquanto interrompia K dizendo-lhe que ela não me escutava e não me deixava falar. Senti-me perplexo e assustado ao ouvir o barulho do soco e a irritação em minha voz. K assinalou, ironicamente, que eu havia ficado nervoso. Mais controlado, disse-lhe que sim, ela tinha razão, eu era humano. E acrescentei: ainda bem que você tem um analista que fica nervoso, e que se não fosse isso eu estaria com medo de você e você não teria analista. A sessão terminou em seguida, sem condições para conversarmos sobre o que havia ocorrido. Quando K saiu, senti-me envergonhado e culpado. Estava certo que minha função analítica havia sido destruída e que havia maltratado K. Receava que ela não mais voltasse. E tratava-se da paciente escolhida para minha primeira supervisão oficial. Mesmo perturbado, pude imaginar o que ocorrera. K havia projetado elementos não pensáveis dentro de mim que, em forma complementar, engancharam-se a aspectos meus não suficientemente elaborados. Considerava-me responsável pela situação e não tinha clareza sobre os aspectos de minha con tratransferência que haviam sido atuados. Essa situação seria nomeada, anos após, enactment agudo. No dia seguinte, surpreendo-me com K chegando à sessão. Minha satisfação inicial foi seguida de apreensão. Tinha certeza que K se vingaria. Mas ela estava 148 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Roosevelt M. S. Cassorla calma, suas associações eram produtivas, e eu me senti analiticamente potente. A sessão foi satisfatória, como há muito não ocorria. Nas sessões seguintes minha surpresa aumentou. K, emocionada, lembrouse de situações traumáticas ocorridas durante sua vida, envolvendo separações, abandonos e intrusões. Essas lembranças foram estimuladas pela situação descrita, com a qual se articularam. Sua ressignificação somada a construções hipotéticas ampliou a rede simbólica do pensamento2. A surpresa, ainda que agradável, intrigou-me. Desde então, venho me dedicando à sua compreensão. Parti de conceitos que me pareciam próximos, tais como contratransferência complementar, identificação projetiva massiva, contraidentificação projetiva, atualizações, tela beta e outras formas de co municação primitiva. O primeiro trabalho, apresentado na SBPSP em 1985, foi publicado 10 anos após (CASSORLA, 1995). Outros trabalhos se seguiram (CASSORLA, 2001, 2003, 2004, 2005a, 2005b, 2007, 2008a, 2008b, 2008c, 2009a, 2009b, 2012a), nos quais o leitor poderá acompanhar, em detalhes, os passos da investigação. Eles têm-me levado ao estudo do processo de simbolização e suas formas de expressão no campo analítico (CASSORLA, 2012b, 2013a, 2013b e textos no prelo). Revendo a situação, fui capaz de perceber que o enactment agudo (o soco na cadeira) seguiu-se a um conluio dual de violência e submissão mútuas que havia tomado, antes, o campo analítico. K me atacava e eu me submetia a esses ataques, sem dar-me conta suficiente do fato. Minha paciência parecia masoquista. Por outro lado, eu submetia K à impotência de minha função analítica. Ambos os membros da dupla analítica se sentiam prolongamento um do outro (CASSORLA, 1997). Tempos depois, chamaria esse conluio de enactment crônico. Percebi, também, que o enactment agudo indica a liberação do analista do conluio dual. O paciente entra em contato com o fato de que o analista é outra pessoa. A discriminação self/objeto é vivenciada como traumática. Adiante, esses aspectos serão estudados em detalhes. Percebi que fatos próximos já me intrigavam bem antes de defrontar-me com essa situação. Desde o maltrato de equipes de saúde a determinados pacientes, tais como os tentadores de suicídio (CASSORLA, 1985) até falhas do analista quando se engana em relação a horários, esquece de alguma sessão, troca nomes, usa tom de voz sedutor, impaciente, irônico, etc. Essas situações se tornavam produtivas quando a dupla as reconhecia e discutia. Minha supervisora, Judith Andreucci, acolheu meu constrangimento e ajudou-me a perceber o que ocorrera. 2 Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 149 Afinal, o que é esse tal enactment? Uma situação marcante ocorreu antes de tornar-me analista. Um paciente me disse, ao final da sessão, que havia esquecido o cheque e que me pagaria na próxima sessão. Eu lhe disse que deixasse o cheque na portaria, no mesmo dia, porque eu tinha um pagamento que venceria no dia seguinte. Senti-me constrangido tanto com a cobrança como com a exposição. Na sessão seguinte, o paciente me disse que nunca imaginaria que eu precisasse de dinheiro. A partir desse fato, pudemos trabalhar sua fantasia que eu era uma espécie de seio inesgotável que estava ali só para satisfazê-lo, sem ter vida própria. Lembro-me de outra situação com resultado oposto. Cobrava honorários baixos de uma paciente. Aos poucos, percebi que eu fora influenciado por suas lamentações. Ao trabalhar esses fatos, a paciente passou a atrasar o pagamento tentando seduzir-me a reduzir mais os honorários. Após bastante trabalho analítico, chegou-se à conclusão que seria melhor interromper a análise até que sua situação melhorasse. Agradeceu-me por minha ajuda e prometeu voltar. Tempos depois, soube que me difamava. Nunca mais voltou. Nas duas situações, eu havia entrado num conluio com os pacientes, em que eu os gratificava ou submetia-me a eles, em determinadas áreas do funcionamento mental, constituindo-se enactments crônicos. Com o primeiro paciente, esse conluio foi desfeito quando solicitei o pagamento (enactment agudo). O contato traumático com a discriminação self/objeto foi suportado e terminou por ser produtivo. Na segunda situação, a percepção da realidade não foi suportada. Foi substituída por ressentimento crônico, mantendo-se a fantasia de relação dual. A nomeação Nos anos de 1990, o psicanalista Robert Caper visitou a SBPSP. Ele estava interessado num tema desconhecido em nosso meio, um tal de enactment. A diretoria científica buscava material clínico em que tivesse ocorrido um acting-out. Suspeitava-se que esse fato tinha relação com enactment. Apresentei o material abaixo e, em certo momento, Caper disse: Isto é um enactment. Tratava-se de uma situação em que eu havia mudado de endereço. Saíra de minha residência para um edifício comercial. Com S, a paciente em questão, haviam sido trabalhadas as fantasias sobre a mudança, em forma que me parecia satisfatória. Na primeira sessão no novo consultório, S entra transtornada, atacando-me verbalmente e desprezando o novo endereço, um prédio sujo e feio. Afirmava que abandonaria a análise sem esclarecer os motivos. Sua expressão me fazia temer que passasse para um ataque físico. Ficara em pé, com a porta aberta, gritando e ameaçando sair. Sentei-me numa cadeira diferente da habitual, 150 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Roosevelt M. S. Cassorla longe do divã e perto da porta. S foi aproximando-se e terminou por sentarse em frente a mim. Discretamente, levantei-me e fechei a porta. Com muita dificuldade, fui percebendo a relação entre seu estado emocional e o fato de terse sentido enganada. Eu não a havia avisado que se tratava de um edifício burguês, onde todos estavam ali para ganhar dinheiro. Seus gritos impediam que ela me ouvisse. Terminei a sessão dizendo-lhe que as coisas não estavam claras e que a esperaria no dia seguinte. Após a sessão, senti-me constrangido e culpado. Imaginei que não havia comunicado corretamente a mudança de endereço e/ou havia ficado cego para algum aspecto. Incomodou-me também a impressão de que minha função analítica havia sido danificada durante a sessão. Nas sessões seguintes, S me surpreendeu lembrando-se de fatos novos. Sua família constantemente mudava de casa e de cidade, porque os pais precisavam ganhar mais dinheiro. Com isso perdia sua escola, seus amigos, e tinha que se adaptar a um novo lugar que logo seria deixado. S reviveu esses fatos com minha mudança de endereço. Outras situações traumáticas relacionadas a separações, abandonos e intrusões, algumas construídas como hipóteses (isto é, que não foram lembradas), permitiram que o processo analítico se tornasse mais produtivo. Não compreendi bem por que Caper chamara o fenômeno de enactment. Para mim, era um acting-out de S. Considerava que ela não tinha condições de simbolizar verbalmente seus sentimentos que, dessa forma, haviam sido descarregados. Lembrava-me também que acting-out era a tradução do termo Agieren (FREUD, 1914), situações nas quais o paciente representava fatos que não podia lembrar. Essa dramatização se opunha à rememoração. Sabia, também, que Agieren se confundia com a própria noção de transferência. No entanto, em seu uso comum, os analistas usavam acting-out ou atuação para descargas impulsivas, mais ou menos pontuais, e não era quase usado para representações encenadas que durassem um tempo maior. O advérbio out indicava para algo que era colocado para fora (do mundo interno), em forma rápida. A atuação era vista como um obstáculo para a análise, algo não bemvindo. Era comum analistas acusarem o paciente por ter atuado em vez de associar livremente, como se o paciente se recusasse a recordar. O termo atuação era também utilizado para rotular personalidades impulsivas e sociopáticas. O conceito se ampliara, em forma moralística, para a linguagem comum dos profissionais de saúde mental, tornando-se comum a acusação de atuadores a pacientes (e colegas...) questionadores. Curiosamente, não se Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 151 Afinal, o que é esse tal enactment? considerava que a maioria dos atos maldosos é fruto de raciocínios sofisticados e não de descargas. Essa conotação moralística me incomodava porque intuía que se um paciente atuasse ele o faria porque não teria condições suficientes para fazer outra coisa e não porque ele quisesse atacar o analista. A confusão conceitual em relação ao termo acting-out pode ser resumida da seguinte forma: quando o paciente dramatiza − através de condutas − situações que não se lembra, estamos frente ao Agieren. Esse termo foi traduzido, em inglês, por acting-out. No entanto, em outra vertente, o termo acting-out passou a ser utilizado para atos impulsivos descarregados. Armou-se tal confusão que no Vocabulário de psicanálise de Laplanche e Pontalis (1995) existem dois verbetes: 1. Acting-out (em inglês, algo curioso num dicionário francês...) referindo-se aos atos impulsivos; 2. Atuação (mise en acte) como tradução do Agieren freudiano, como condutas encenadas opondo-se à rememoração3. Curiosamente, o estudo do enactment, meu próximo desafio, me levaria a considerar descargas e formas simbólicas que substituem a simbolização verbal, discriminando os dois significados. A diferenciação entre acting-out e enactment se tornará clara adiante. Estudando o conceito, descobri que enactment é usado coloquialmente com o sentido de representação teatral, encenação, colocação em cena, similar a to act, to represent, to play. O mesmo uso se encontra em textos psicanalíticos. O verbo to enact se refere ao fato do paciente externalizar seus dramas internos durante a sessão analítica ou fora dela. Por vezes, usa-se o verbo to re-enact, com o mesmo sentido. Uma citação de Greenacre (1950) é significativa: “Acting-out, como expressão, é uma forma especial de lembrança em que a antiga memória é re-enacted numa forma mais ou menos organizada e apenas ligeiramente disfarçada” (p. 456, tradução minha). A citação mostra que to act out (como Agieren) e to re-enact podem ter quase o mesmo significado. No entanto, a partir do final dos anos 90 o termo enactment vai adquirindo maior precisão. Surge outra conotação, do mundo jurídico. Enactment significa algo com força de lei, um decreto, algo que tem que ser obrigatoriamente obedecido (PANEL, 1999). Aos poucos, o termo passa a envolver os dois significados ao mesmo tempo, ainda que seu uso coloquial continue. Isto é, a encenação ou representação é associada a algo inevitável, como se obedecesse a uma lei. A conotação Venho verificando, na SSPSP, um uso cada vez menor dos termos acting-out e atuação, substituídos por descargas. Esse uso também é limitante. 3 152 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Roosevelt M. S. Cassorla depreciativa é superada. Mas a observação do uso do termo vai além: o enactment ocorre entre paciente e analista, isto é, ambos participam do que está ocorrendo. Diferentemente do acting-out que é algo que ocorre com o paciente e, hipoteticamente, o analista apenas observa. Essa ideia é concomitante à valorização do vértice intersubjetivo na psicanálise contemporânea. As ideias sobre intersubjetividade consideram que o processo analítico ocorre num campo em que nada acontece com um dos membros da dupla que não tenha reflexos no outro. O drama contado e representado no campo analítico é fruto da externalização de personagens e enredos colocados em cena por ambos os membros da dupla analítica, ainda que a relação entre eles seja assimétrica. Nesse momento, revalorizam-se autores que já haviam chamado a atenção para esses fatos, como o casal Baranger, Ferenczi, Winnicott, Rosenfeld, Bion, Betty Joseph etc., e mais recentemente Ferro e Ogden. Em outros trabalhos, propus considerar que, em área simbólica (não psicótica), o paciente coloca seus sonhos (diurnos e noturnos) no campo analítico por meio de narrativas e enredos. Esses sonhos são comunicados ao analista através de identificações projetivas normais. O analista, identificado com os sonhos do paciente, transforma-os em outros sonhos, modificando as defesas que escondem o reprimido. O analista re-sonha os sonhos do paciente. Este, por sua vez, re-sonha os sonhos contados pelo analista através de suas intervenções e assim por diante. Constituem-se conglomerados simbólicos que chamei sonhosa-dois, nos quais a participação de cada membro da dupla vai se tornando menos clara. Quando predomina o funcionamento da parte psicótica ou traumática (onde a simbolização está prejudicada), o paciente não consegue pensar e os elementos com déficit de simbolização verbal são descarregados, colocados em cena por meio de condutas, transformados em sintomas corporais ou ainda em alucinose. Ao conjunto desses elementos não pensados adequadamente chamei nãosonhos. O analista, utilizando sua função alfa, transforma os não-sonhos em sonhos. Existem situações em que os não-sonhos penetram o analista atacando sua capacidade de pensar em forma tal que ele também passa a não-sonhar. Constituem-se não-sonhos-a-dois, conluios duais em que paciente e analista descarregam e/ou repetem condutas compulsivamente, sem que se deem conta do que está ocorrendo. Considero não-sonhos-a-dois a matéria-prima dos enactments crônicos. Joseph (1989) antecipa a descrição de enactment, mas sem nomeá-lo, ao estudar minuciosamente como o paciente recruta emocionalmente seu analista para que Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 153 Afinal, o que é esse tal enactment? este represente determinados papéis complementares. Sua função é manter o status quo, evitando mudança psíquica. O analista somente se dá conta desse recrutamento depois que ele ocorre. Em meu modelo, enquanto ele não se dá conta, está ocorrendo um enactment crônico. Rosenfeld (1987) descreve, também detalhadamente, situações similares quando levam a impasses analíticos. Seria necessário um novo termo para fatos que ocorrem no campo analítico e que já foram descritos desde Freud, como no caso Dora ou no sonho de Irma, por exemplo? Ou por Joseph (1950), Rosenfeld (1987) e tantos outros? Brown (2011) revisa autores pioneiros que apontavam para fatos similares. Em outros trabalhos, retomo situações descritas por Bion quando o analista se torna estúpido. Ele afirma que, nesses momentos (de enactments, mas evidentemente Bion não usa o termo), nada há a ser feito a não ser tentar compreender, posteriormente, o que ocorreu (BION, 1958). Considero que o termo enactment agregou fenômenos similares que eram descritos de formas próximas, porém diferentes, por psicanalistas de várias orientações teóricas. O termo passou a fazer parte do que tem sido chamado common ground em psicanálise. Como qualquer termo novo, ele foi inicialmente visto com aversão e desconfiança. Em seguida, passou a ser aceito em forma crítica e reticente. O uso tem-se ampliado, mas ainda é necessário que se explicite seu significado. Uma primeira tentativa de definição de enactment poderia ser: fenômeno intersubjetivo em que, a partir da indução emocional mútua, o campo analítico é tomado por descargas e/ou condutas e comportamentos que envolvem ambos os membros da dupla analítica, sem que eles se deem conta suficientemente do que está ocorrendo, e que remetem a situações em que a simbolização verbal está prejudicada. Quando existem palavras, elas servem como instrumentos de descargas ou formas de expressar afetos que envolvem emocionalmente o interlocutor. A palavra funciona como ato, em que dizer é fazer (AUSTIN, 1990). Tratam-se de formas de rememorar através de sentimentos (memory in feelings) e comportamentos colocados em cena no campo analítico. Como no enactment ambos os membros da dupla estão envolvidos (sem dar-se conta), o conceito vai para além do actingout e do Agieren freudiano, descritos como pertencendo ao paciente. Como vimos, a clínica me levou a propor dois tipos de enactments. O enactment crônico, em que paciente e analista representam, como numa espécie de teatro mímico, ou cinema mudo, cenas e condutas. O enactment agudo, por sua vez, corresponde a fatos abruptos, do mesmo teor, que num primeiro momento parecem ser apenas descargas. Adiante veremos que são mais do que isso. 154 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Roosevelt M. S. Cassorla Na literatura psicanalítica, o termo enactment se refere, quase sempre, ao que chamo enactment agudo, como descarga. Desafios na investigação Agora que o termo enactment foi decifrado devemos aprofundar nossa investigação. Temos várias questões desafiadoras: que fatores estão envolvidos no enactment? O enactment é inevitável ou decorre de falhas evitáveis da função analítica? O enactment é útil para o processo analítico ou é sua compreensão que o torna útil? Que configurações emocionais estimulam enactments? E assim por diante. Teremos que ir além da pobre descrição fenomenológica, em busca de visões metapsicológicas. Para tal, devemos retornar à clínica. No primeiro material, K atacava o analista que tentava dar sentido ao que ocorria no campo analítico. Em determinado momento, o analista perde a cabeça, dando um soco em sua cadeira. No segundo material, o processo caminhava bem. De repente, S perde a cabeça e quer parar a análise. O analista, por sua vez, imaginou que perdera a cabeça durante a comunicação da mudança de endereço e quando não se sentou na cadeira do analista. Em ambas as situações, o perder a cabeça indica enactments agudos. Como vimos, após os enactments agudos os analistas se sentem constrangidos e culpados. Mas nas sessões seguintes, o processo analítico, surpreendentemente, desenvolve-se. O que ocorreu durante a explosão do campo analítico e que fatores fizeram com que o processo analítico se desenvolvesse, posteriormente? Lembremos que os enactments agudos se seguem a conluios duais que haviam tomado o campo analítico. Com K, eu estava envolvido num conluio sadomasoquista com uma repetição compulsiva de situações de violência e submissão mútuas. Com S, eu estava envolvido num conluio de idealização mútua, também repetido compulsivamente. Essas repetições lembram sonhos traumáticos, algo para além do princípio do prazer. Mas existem importantes diferenças entre esses sonhos e o enactment crônico. Neste último, a ansiedade está tamponada, o analista está envolvido, e tanto paciente como analista não se dão conta suficientemente do que está ocorrendo. Após o soco na cadeira, K percebe que não estou mais submisso a ela, que sou outra pessoa. O mesmo ocorre com S quando tem que se defrontar com a mudança de endereço. O trauma revivido no campo analítico é o trauma de tomada de consciência da triangularidade, da separação self/não-self. O enactment agudo mostra a revivescência de traumas, as descargas afetivas e, ao mesmo tempo, a retomada da capacidade de sonhar. Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 155 Afinal, o que é esse tal enactment? Descobrimos, portanto, que no enactment agudo ocorrem fatos para além das descargas. Ele é um mix de descargas, não-sonhos sendo sonhados e sonhos revertendo para não-sonhos, todos esses fatos ocorrendo ao mesmo tempo. O enactment agudo revela, ao vivo, tanto o trauma do contato com a triangularidade como o início do processo de simbolização. Resumindo o exposto, podemos considerar as seguintes fases nas configurações descritas: 1. Antes do enactment agudo: o trabalho analítico ocorre em duas áreas paralelas: a. em área simbólica, paciente e analista sonham-a-dois e, ao mesmo tempo, em área não simbólica sonham-se não-sonhos; b. em área não simbólica, paciente e analista formam um conluio dual, enactment crônico, como não-sonho-a-dois. Esses conluios costumam ter cono tação sadomasoquista ou de idealização mútua. Comumente, há uma oscilação entre os dois. A dupla não se dá conta suficientemente do que está ocorrendo, ainda mais porque em área paralela o processo analítico está desenvolvendo-se aparentemente em forma produtiva4. 2. Enactment agudo. Em determinado momento, o campo analítico parece explodir. Trata-se do desfazimento do conluio dual e do surgimento abrupto da realidade triangular, vivenciada como traumática. O campo analítico é tomado por um conglomerado de descargas, não-sonhos sendo sonhados, e sonhos sendo revertidos para não-sonhos. Nesse momento observamos, ao vivo, como o trauma de contato com a realidade triangular é, ao mesmo tempo, descarregado, revivido e sonhado. 3. Após o enactment agudo. A rede simbólica do pensamento se amplia. Lembranças e construções permitem que o paciente ressignifique fatos primitivos que haviam sido congelados durante o enactment crônico. Estamos em área de não-sonhos sendo sonhados caminhando rumo a sonhos-a-dois. Configurações borderline Os fatos acima conduzem para a hipótese de que durante o enactment crônico são vividas situações traumáticas primitivas que não puderam ser simbolizadas verbalmente porque foram registradas antes do desenvolvimento da mente simbólica. Estamos em área de inconsciente não reprimido. Ansiedades de aniquilamento, fruto dessas situações traumáticas, são controladas através da Frequentemente o paciente capta inconscientemente áreas vulneráveis do analista, nas quais suas projeções se engancharão. 4 156 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Roosevelt M. S. Cassorla fantasia de fusão com o analista. O analista é vivenciado como escudo protetor, substituto do escudo protetor que falhou no desenvolvimento inicial. Durante o enactment crônico, o paciente imobiliza o analista impedindo que sejam revividas situações de abandono e intrusão, os traumas por excelência. Durante a imobilização, entretanto, a dupla repete (sem saber que repete) essas situações de abandono e intrusão e as defesas contra elas, através de uma espécie de cena teatral mímica ou cinema mudo. Esse fato indica que existe outro tipo de simbolização desses registros iniciais, uma simbolização em conduta ou comportamento. No entanto, a rede simbólica está coarctada e a cena permanece congelada. Somente após o enactment agudo, quando se retorna à capacidade de sonhar, a cena se conecta a símbolos verbais. Quando o enactment agudo rompe o conluio dual, a ansiedade tamponada toma o campo analítico, ameaçando aniquilá-lo. O analista se sente culpado por imaginar que perdeu sua função analítica. Mas agora sabemos mais sobre essa culpa. Ao desfazer a relação dual e levar a dupla para o espaço triangular, o analista intui que está re-traumatizando o paciente. O analista receia que o paciente não suporte este contato com a realidade por falhas na capacidade da dupla em recompor a rede simbólica. Este último ponto é consequência do seguinte raciocínio. Se o enactment agudo se revelou produtivo, retomando-se a capacidade de sonhar, somos obrigados a constatar que a rede simbólica do pensamento se recuperou. E, como ela se recupera? Teremos, novamente, que voltar à clínica. Revendo o material das sessões antes do enactment agudo, verificamos que o analista tinha certa noção dos ataques (com K) e da gratificação mútuos (com S) e trabalhava esses fatos, ainda que de forma não suficiente. Penso que esse trabalho, somado a características do analista (paciência, perseverança, busca constante de novos caminhos, capacidade negativa, etc.) constituíram o que chamei função-alfa implícita. Isto é, em áreas paralelas ao enactment crônico, a rede simbólica vai sendo construída e reconstruída. Em determinado momento, nem antes nem depois, o analista intui que existe rede simbólica suficiente para arriscar o contato com a realidade triangular. Caso essa rede não estivesse refeita, em forma suficiente, a dupla retomaria o enactment crônico. Essas hipóteses são confirmadas pelo estudo minucioso de material clínico. Muitas vezes o analista tenta libertar-se do conluio dual, mas quando a realidade triangular é vivenciada como muito traumática retoma-se o enactment crônico. O processo de cerzimento da rede simbólica continua, até que nova tentativa é efetuada. Quando a rede simbólica é suficiente, o enactment agudo se impõe (CASSORLA, 2008a, 2013b). Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 157 Afinal, o que é esse tal enactment? O estudo do enactment me levou a uma maior compreensão das configurações borderline, isto é, situações em que traumas primitivos fizeram o paciente criar, através de identificações projetivas, uma carapaça que visa a manter uma relação dual com o objeto, no caso o psicanalista. Essa carapaça é altamente instável e o paciente sente que seu rompimento o levará a entrar em contato traumático com a realidade. A relação dual analista/paciente, dentro da carapaça, oscilará entre conluios idealizados que correspondem às organizações patológicas pele fina (ROSENFELD, 1987) e conluios de agressão mútua, que correspondem à pele grossa. Em outras palavras, o paciente altamente vulnerável (pele fina) se funde ao analista numa relação dual idealizada. Como a todo momento o analista ameaça discriminar-se (o próprio enquadre promove isso), o paciente reclama, não se submete e tenta submetê-lo. A pele grossa predomina e ela também está presente para proteger o paciente de intrusões. Quando a triangularidade ameaça, de novo, o paciente pode retomar o conluio em forma sedutora. Entre oscilações de sedução e violência mútuas, o trauma da triangularidade está sempre ameaçando. Essas configurações subjazem ao fato do paciente viver na fronteira entre a relação indiscriminada (EP) e a triangularidade (D). Nenhuma das duas é suportada, levando às oscilações descritas. Lembremos, por outro lado, que esses pacientes também funcionam com outra parte da personalidade que promove uma aparente boa adaptação ao ambiente5. O estudo do enactment levou-me, também, a constatações de ordem técnica. Em área de sonho (simbólica), o paciente se comunica com seu analista penetrando-o através de identificações projetivas normais. Constitui-se uma relação dual momentânea que é desfeita assim que o analista mostra, com suas intervenções, que é outra pessoa. Isso é bem evidente quando a interpretação é transferencial ou mutativa (STRACHEY, 1934). Podemos dizer, portanto, que em área simbólica, constituem-se enactments ou micro-enactments normais, a todo momento da análise, que o analista vai desfazendo através de suas interpretações. Em áreas psicótica e traumática, em que a capacidade simbólica está deteriorada, os não-sonhos tomam o analista através de identificações projetivas massivas. Nestas áreas, a interpretação transferencial é contraindicada porque não existe rede simbólica suficiente para viver-se na realidade triangular. Essas interpretações não serão compreendidas ou, pior, serão sentidas como As configurações lembram Hamlet, na fronteira (bordcr) entre não-ser (Narciso) e ser (Édipo). Nessa fronteira Ser ou não-ser, eis a questão. 5 158 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Roosevelt M. S. Cassorla traumáticas, o analista impondo a realidade triangular a uma mente sem capacidade para sonhá-Ia. Antes, portanto, essa rede simbólica terá que ser construída pelo trabalho da dupla. Poderíamos arriscar certa ampliação das ideias descritas para fatos sociais6. Sabemos que o establishment impede mudança catastrófica através de seduções ou ameaças que, mantendo a fusão dual grupal, impedem o pensamento. Situações destrutivas são mantidas congeladas (similar ao enactment crônico). Se a capacidade de pensar é retomada, o conluio se desfaz com disrupção grupal produtiva ou insuportável. Quando um membro traz ideia nova, o grupo não a reconhece enquanto tenta digeri-Ia ou destruí-Ia. Reconhecimento instantâneo ou rápido é consequência de idealização ou medo, conluios duais, com consequente desvitalização. Comumente, a ideia nova é aceita quando é reconhecida longe do grupo original. Essa história natural do reconhecimento faz parte do funcionamento normal dos grupos humanos7. Conclusões Como vimos, o enactment crônico congela, na relação dual, traumas inscritos no inconsciente não reprimido, incluindo fatos transgeracionais. O campo analítico é tomado por configurações arcaicas dramatizadas por ambos os membros da dupla, sem que eles o percebam. A dramatização compreende diferentes formas expressivas que se manifestam por meio de emoções, mímica, atos, sons, cheiros, formas de construção da linguagem, tons, timbres de voz. Esta expressividade pode ser muito sutil em sua manifestação visível e muito potente em sua capacidade de envolvimento emocional. Os traumas congelados se revelam, no campo analítico, através do enactment agudo ao mesmo tempo que são sonhados. Sua ressignificação ocorre, portanto, après coup. Neste momento devo referir-me às ideias de Gabriel Sapisochin, de Madrid, com quem venho mantendo um estimulante diálogo. Sapisochin (2012, 2013) combate a ideia de que não existe simbolização no inconsciente não reprimido. Ele insiste que não há simbolização verbal, mas existem outras formas de O colega Luiz Meyer me chamou a atenção para essa possibilidade de ampliação. Quando um analista acredita piamente em fatos contados por seu paciente, ignorando que não tem acesso à realidade externa, estamos frente a um enactment por deficiência da função analítica. Quando o analista relata esses fatos para além da sala de análise, estamos frente a situações éticas graves, enactment perverso amplificado. Instituições psicanalíticas se defrontam com essas situações. 6 7 Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 159 Afinal, o que é esse tal enactment? simbolização. Descreve gestos psíquicos, padrões de relacionamento que foram registrados em épocas primitivas, e que surgem no campo analítico através de formas ideo-pictográficas. Esses padrões não podem ser colocados em palavras mas são simbolizados através de comportamentos, como um teatro mímico ou um filme mudo. O enactment crônico nada mais é que a colocação em cena desses padrões, tais como eu o domino e ele se revolta, eu o seduzo e ele se submete, ele me ataca e eu fujo, e vice-versa8. Retornemos à função alfa. Neste trabalho enfatizei sua ação implícita e a associei à profunda comunicação inconsciente entre os membros da dupla analítica. Penso que o sonho inconsciente do analista é captado pelo paciente, para além da comunicação explícita, e esse fato merece maiores investigações. Continuamos, no entanto, com um problema não totalmente solucionado. Por que razão o analista tem que permanecer no enactment crônico, sem ter consciência disso? Não seria mais útil, para o processo analítico, que o analista se liberasse do conluio e mantivesse a paciência necessária? Para tentar responder a essas questões, faço analogia com a função materna. Uma mãe adequada procura ser o seu bebê, vivendo situações traumáticas para poder sonhá-Ias por ele. Para que isso ocorra, cega-se parcialmente para suas próprias necessidades através de um masoquismo normal. Constitui-se algo parecido a um enactment, a mãe sofrendo com seu bebê mas não tendo consciência clara desse sofrimento. Com isso, a mãe não percebe o irrealismo de seu masoquismo podendo mantê-lo por todo o tempo que for necessário. Se essa negação for desfeita precocemente, a mãe corre o risco de não suportar sua identificação com o sofrimento do bebê, podendo desligar-se dele de modo traumático. Em situações extremas, pais podem deixar-se matar para salvar a vida de seus filhos. Isso só será possível se houver uma profunda identificação com eles, sentidos como partes de si mesmos, para além da razão explícita. Nesse modelo, o analista tem que negar provisoriamente o irrealismo de seu masoquismo, como ocorre com a mãe do bebê, para poder sofrer junto com seu paciente. Esta hipótese nos levaria a supor que, em situações em que há certa elaboração dos traumas, o analista terá menos dificuldade em denunciá-los, os conluios duais sendo menos intensos. Possivelmente a experiência do analista e o conhecimento dos fatos estudados facilitará a identificação mais precoce dessas situações, ainda que sempre ocorra après coup. O analista incomodado por não ter clareza suficiente sobre o que está ocorrendo deve escrever sobre seu Considero que Gabriel e eu temos sonhado-a-dois nossas convergências e divergências. 8 160 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Roosevelt M. S. Cassorla trabalho e/ou compartilhá-lo com um colega. Esse segundo olhar, retomada do trabalho de sonho, permite a entrada de um terceiro no conluio dual, contribuindo para seu desfazimento. Evidentemente, o analista pode contribuir para as situações descritas devido a limitações pessoais. Este trabalho não busca justificá-los, mas propõe que devem ser examinados, compreendidos e aproveitados. Visões moralísticas condenatórias impedem o desenvolvimento da capacidade de pensar. Termino este texto discriminando as funções do enactment crônico: a) evitar a revivescência do trauma, congelando-o e tamponando a ansiedade; b) imobilizar o analista para que ele não re-traumatize; c) utilizar o analista como escudo protetor frente ao trauma; d)permitir contato profundo, inconsciente, entre paciente e analista, que possibilite examinar áreas traumatizadas; e) utilizar a função-alfa implícita do analista; f) recompor funções e partes lesadas da mente, elaborando o trauma; g) esperar o tempo necessário e suficiente para que esse trabalho elaborativo ocorra. After all, what is enactment? Abstract: The author reports clinical investigations which led him to find the concept of enactment. The thorough study of analytical field explosions revealed that they clarify dual collusions among the members of analytical dyad. These collusions freeze primal traumatic situations. At the same time, the analyst using his explicit or implicit alpha-function recovers the symbolic defective or nonexistent network. When it is recomposed the trauma is revived in the analytical field through the contact with the triangular reality. This way the analytical dyad can dream-for-two. It is shown that these situations reveal borderline configurations which are externalized in the analytical field. The enactment concept is reviewed and it is proposed to name the dual collusion as Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 161 Afinal, o que é esse tal enactment? chronic enactment and acute enactment to the situations in which these collusions are dissolved. Finally, through metapsychological approximations, the factors related to the studied situations, such as vicissitudes of the symbolization processes in primal areas, defensive pathological organizations and unconscious communication among the members of the analytical dyad are discussed. Keywords: Agieren. Borderline. Enactment. 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Pereira1 José Ricardo Pinto de Abreu2 Resumo: Cine Fórum é o nome original da atividade oferecida à comunidade pela SBPdePA, hoje batizada de Café Cinema. Essa atividade nos levou a tentar compreender os fenômenos psíquicos que levaram o público, organizadores, coordenadores e moderadores a desenvolver um grande entusiasmo nos debates sobre as películas apresentadas. Fomos buscar nos autores um aprofundamento sobre o tema do impacto que a imagem exerce sobre o psiquismo, como também a troca em grupo dessas impressões. Entendemos que essa atividade se realiza dentro de um espaço potencial criado pelo intercâmbio emocional entre os organizadores, representando a instituição e os participantes, sendo oportunizada uma experiência criativa compartilhada. Palavras-chave: Espaço potencial. Identificação. Mãe-ambiente. Sonho compartilhado. Subjetivação. Introdução Os 10 anos de existência da atividade que inicialmente foi batizada de Cine Fórum, hoje conhecida como Café Cinema, estimulou-nos a tentar compreender algo sobre os fenômenos mentais que têm levado os participantes e coordena- Psicóloga. Psicanalista. Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. Membro da Comissão Relações com a Comunidade, entre 2006-2011. 2 Psiquiatra. Mestre em Medicina. Psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. Coordenador da Comissão Relações com a Comunidade, entre 2006-2011. 1 Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 167 Cine fórum : construindo um espaço potencial dores a participarem com reconhecido entusiasmo, consagrando esse espaço aberto ao público pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. Consideramos que essa atividade se realiza dentro de um espaço potencial criado pelo intercâmbio emocional entre os coordenadores, representando a instituição, e os participantes, sendo oportunizada uma experiência criativa compartilhada. Valemos-nos, para tanto, das observações, vivências e reflexões dos coordenadores e, sempre que possível, dos comentários realizados pelos participantes. Cotejamos nossas observações com a literatura, pretendendo com isso lançar alguma luz sobre uma atividade que tem despertado grande interesse, constituindo-se num bom caminho para o encontro com a comunidade. Uma breve descrição do Cine Fórum: são encontros dirigidos à comunidade que têm como objetivo criar um espaço de intercâmbio com outros profissionais e pessoas interessadas, enfocando os aspectos psicanalíticos dos filmes exibidos. Nos primeiros anos seguia-se a seguinte metodologia: I) assistir à exibição do filme; II) discutir o filme em pequenos grupos com 45 min de duração; III) discutir em plenária com cerca de 1 hora de duração. Atualmente, é composta pelos passos I e III. Participam em média 20-30 pessoas por encontro. Os participantes são heterogêneos quanto à profissão, idade e experiências profissionais. A maioria não é psicanalista e a maior parte são profissionais vinculados às áreas de educação e saúde. Ao longo desses 10 anos de existência, percebemos que as pessoas tiveram participação muito ativa, reunidas entre 9-13h, quase 4 horas, pediram repetição ou reprodução, ou ainda registro das discussões. Adiante, no tópico A tarefa, descrevemos com mais detalhes o desenvolvimento da cada Cine Fórum. Refletindo sobre o que poderia estar contribuindo para o êxito da atividade, levantamos algumas possibilidades e pensamos que poderia ser a metodologia que temos utilizado, mas logo percebemos que a mesma deveria ser entendida dentro de um contexto de compreensão psicanalítica dos jogos , brincadeiras e experiência cultural, na linha apresentada por Freud, Winnicott e Ogden. Sonho, teatro e cinema Freud começou sua vida profissional como médico neurologista, aspirava tornar-se cientista, fez inúmeras pesquisas e produziu importantes trabalhos. Depois, ingressou no terreno da sugestionabilidade e hipnose. Como não se considerava bom hipnotizador e não estava satisfeito com os resultados do método hipnótico, desenvolveu o método de investigação, inédito, baseado na associação livre e atenção flutuante (ETCHEGOYEN, 1987). 168 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Denise Zimpek Pereira, José Ricardo Pinto de Abreu Encontrou um caminho para penetrar na subjetividade e estudá-la. Ainda não existia a noção de inconsciente dinâmico, muito menos da estrutura da personalidade, mas eram realizadas incursões sobre o mundo interno dos pacientes. Interessava-se pelos relatos, particularmente pela falha inadvertida das palavras, dos discursos, ouvia os dramas, as tragédias, dissecava as imagens dos sonhos que tornaram-se o canal régio para o inconsciente, ainda não revelado. Obtinha resultados com o seu método de trabalho em desenvolvimento. Foi através de uma paciente histérica que ele descobriu a transferência. Depois veio o livro dos sonhos que deu início à edificação da psicanálise, ainda não denominada como tal. No livro dos sonhos, ele utilizou material produzido por ele próprio, suas imagens oníricas e de seus pacientes. As imagens eram interpretadas e logo transformadas em palavras e depois em textos que davam a compreensão lógica aos processos mentais que os produziam. Freud sempre se interessou pela cultura, particularmente pela literatura e logo associou as produções literárias aos sonhos e aos mitos. A obra literária mais celebrada pela psicanálise foi Édipo Rei, justamente uma peça de teatro cujos personagens representavam o drama e a tragédia universal da humanidade, os quais se repetiam nos seus próprios sonhos e de seus pacientes. Outras obras também foram investigadas por Freud, salientam-se as de Shakespeare, muitas delas escritas para serem encenadas. O teatro é considerado uma arte maior, pois possibilita a interlocução, a possibilidade de uma relação com os personagens, favorecendo a ação dos mecanismos identificatórios, talvez mais intensa do que aqueles que ocorrem com os personagens que nascem das palavras de um livro e de outras manifestações artísticas que são mais contemplativas. O teatro é vincular por natureza e proporciona um clima emocional evocativo, produzindo envolvimento através dos mecanismos de identificação. Diante do exposto, queremos relacionar os seguintes pontos: o primeiro é o sonho com todos os seus disfarces característicos, é uma representação do mundo interno e opera nesse espaço; segundo, o teatro que põe em cena as representações produzidas pelo mundo interno e opera num espaço intermediário; e, terceiro, a intensa atração que o teatro exerce sobre as pessoas, como experiência cultural, decorre do prazer estético, da descarga emocional e de elaborações lúdicas dos conteúdos internos despertados. Na atualidade, poderíamos dizer que o cinema, considerado a sétima arte, representa o papel que tinha o teatro em outras épocas e, guardadas as diferenças que não importam especificar nesse momento, proporciona ao expectador boa parte do que o teatro podia proporcionar. Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 169 Cine fórum : construindo um espaço potencial O cinema está relacionado com o desejo, com o imaginário e com o simbólico e utiliza jogos de identificação e mecanismos que regulam nosso psiquismo, tal como o sonho. Assim, ao longo dos anos estabeleceu uma relação ímpar com a psicanálise, sendo que também a psicanálise encontrou no cinema um interlocutor profícuo. O cinema valoriza as imagens em movimento e estas podem ter o poder de subjetivar ou de alienar. As imagens podem valer por muitas palavras e seu impacto costuma ser muito forte. Dependendo de como são utilizadas podem ter um efeito de passivisar, penetrando sorrateiramente na subjetividade, tentando ocupar todos os espaços psíquicos relativos às faltas, ao vazio, com a promessa de apagar as angústias, uma vez que a reflexão é secundária. Caso as imagens priorizem a exterioridade e a uniformidade, podem contribuir para a indiferenciação narcísica. A ênfase dada pela psicanálise à palavra, com sua capacidade de elaboração pré-consciente, deixou a imagem num segundo plano. Por outro lado, o poder evocativo das imagens, justamente aquele usado pelas obras de arte visual, através das cores, das formas, das linhas de expressão e dos movimentos, pode contribuir a subjetivação e individuação. Entendemos que no cinema os dramas e tragédias humanos interpretados e colocados em cena conseguem abrir brechas para o inconsciente, mobilizando conteúdos, possibilitando algum trabalho de ligação entre representação psíquica e afeto. Para Sampaio (2000), alguns tipos de sofrimentos na atualidade são marcados pelo excesso e pela intensidade, diante dos quais o sujeito está ao mesmo tempo passiva e ativamente posicionado. Assim, ao sujeito só resta buscar os destinos possíveis para as forças pulsionais, ordenando circuitos pulsionais e inscrevendo a pulsão no registro da simbolização. Frente à reativação do desprazer produzido por grandes quantidades não metabolizáveis pelo psiquismo, será a capacidade de ligação do aparelho psíquico que definirá as possibilidades de domínio desta energia. A cultura, a arte, e o cinema, em particular, nesse sentido, cumpririam um papel de importante estímulo gerador de subjetividade. Sua força de impacto sobre o psiquismo estaria justamente ligado ao poder da imagem. A arte visual, por mais simples que seja, pode produzir uma poética da representabilidade capaz de substituir o aspecto regressivo notado por Freud a propósito do sonho. Assistir a um filme seria como experimentar um sonho compartilhado e coletivo que pode nos levar do riso ao choro ou do pânico à tranquilidade. Assim, temos filmes que falam de si mesmos e de seu público, como também interpretam e são interpretados por ele. Portanto, o que registramos de um 170 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Denise Zimpek Pereira, José Ricardo Pinto de Abreu filme, já dentro de nossas mentes, é mais do que o filme projetado na tela, mas também aquilo que projetamos nele, criando-se um espaço-tempo intersubjetivo de transição entre o observador e o que é observado. Uma vez que o cinema se constitui numa expressão artística geradora de subjetividade, que promove um processo dialético entre as cenas de um drama, ou qualquer outra temática apresentada na tela, terá a capacidade de evocar as cenas do imaginário ou do processo de fantasias inconscientes daquele que assiste. O expectador não será passivo, mas dinamicamente ativo diante da tela. A subjetivação, as brincadeiras e a experiência cultural Entendemos que os encontros de Cine Fóruns constituem uma brincadeira no sentido que Winnicott (1975) dá ao termo. Ele diz que as brincadeiras são sempre criativas, expandindo-se no viver criativo e na vida cultural. Na gênese das brincadeiras, o papel da mãe é fundamental, pois é com ela que o bebê faz as primeiras experiências do brincar. Ela deve estar disposta a participar daquilo que o bebê espera encontrar e ser ela mesma. Essa experiência repetida proporciona ao bebê uma experiência onipotente, base de um estado de confiança. A área de experiência localiza-se no espaço potencial existente entre o indivíduo e o ambiente que tanto une como separa o bebê da mãe. O jogo é estimulante e refere-se à ação recíproca da realidade pessoal e à experiência de domínio dos objetos reais. Ogden (1996), inspirado em Winnicott, diz que a subjetividade tem a ver com a capacidade de percepção, que vai da tardia conquista da autorreflexão intencional, ao mais sutil e discreto senso de individualidade, pelo qual a experiência é sutilmente dotada da qualidade de que se está pensando os próprios pensamentos e sentindo-se os próprios sentimentos, em oposição a viver-se num estado de reatividade reflexa. No desenvolvimento ocorre a diferenciação da unidade mãe-bebê (mãeambiente invisível) para a condição de mãe e bebê (mãe como objeto). No curso dessa diferenciação, vão se firmando a subjetividade, a consciência e a capacidade de desejar (que é diferente das necessidades de autoconservação). Experiências inevitáveis causadas pela relação mãe-bebê proporcionam as primeiras experiências de separação. O objeto transicional seria o símbolo do processo de separação, pois seria ao mesmo tempo o bebê e o não-bebê. O relacionamento com esse objeto é também significativamente um reflexo do desenvolvimento da capacidade de estabelecer um processo dialético psicológico, produzindo a capacidade de gerar significados pessoais representados em símbolos. Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 171 Cine fórum : construindo um espaço potencial Assim, a capacidade de manter uma dialética psicológica envolve a transformação de uma unidade que não exigia símbolos, naquilo que Ogden (1996) chama de trindade, ou seja, uma interação dinâmica de três unidades diferenciadas. Estas entidades são o símbolo, que é um pensamento; o simbolizado, que é aquilo que está sendo pensado; e o sujeito interpretador, ou seja, o pensador que gera seus próprios pensamentos e interpreta os seus próprios símbolos. A diferenciação de símbolo, simbolizado e sujeito interpretador cria a possibilidade de uma triangulação, onde o espaço é criado. Este espaço entre símbolo e simbolizado, mediado por um self interpretador, é o espaço potencial em que a criatividade se torna possível. A tarefa Acreditamos que além das emoções promovidas pelos filmes exibidos, outros elementos possam contribuir para a construção de um espaço que consideramos potencial. Sabe-se que uma atitude disponível e amorosa é indispensável ao clima de confiança que proporciona o desenvolvimento da brincadeira. Contribuíram para isso o preparo de cada encontro, levando em conta o cuidado na seleção de filmes, considerando a temática, a fertilidade para discussão e o conteúdo estético. Os filmes escolhidos sempre foram muito apreciados. Outro aspecto preliminar foi a preparação da sala de projeção do filme, com teste prévio de som e imagem. A preparação preliminar dos participantes, no chamamento para atividade, com vinhetas motivadoras sobre o conteúdo do filme a ser discutido e, também, a divulgação do nome dos organizadores. No dia da projeção, sempre o coordenador fazia uma fala de acolhimento e de boas vindas. Muito importante era a inclusão de um pequeno intervalo para café após a projeção do filme, assistidos por todos, servindo ao início de um convívio, visando alguma integração entre os participantes e organizadores. Esses elementos de cuidado sempre foram considerados importantes no desenvolvimento da tarefa. Após a projeção do filme, o grupo era subdividido em pequenos grupos e cada pequeno subgrupo dirigia-se a uma sala definida para discussão, considerada como um aquecimento, coordenada pelos moderadores. Os moderadores foram convidados a assistirem aos filmes com antecedência. Seu papel era principalmente o de estimular a troca de impressões entre os participantes sobre o filme, no pequeno grupo, destacando os aspectos ventilados. No pequeno grupo era escolhido algum participante para relacionar os tópicos discutidos. 172 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Denise Zimpek Pereira, José Ricardo Pinto de Abreu Terminada a discussão em pequenos grupos, todos os participantes se reuniam e, então, eram cotejados os tópicos valorizados, agora no grande grupo. Nesse momento, o coordenador da atividade estimulava o debate entre os participantes e apresentava suas contribuições, valorizando os tópicos que emergiam durante os debates, sem a preocupação de oferecer uma versão definitiva sobre o que foi sentido pelos participantes. Desenrolava-se a seguir um debate muito espontâneo e novas observações costumavam surgir no encontro dos participantes em conjunto. Observava-se que os participantes falavam de modo espontâneo, revelando entusiasmo ao expressarem seus pontos de vista, dando a clara impressão de que se sentiam à vontade e gratificados com a participação. Entendemos que, nesse momento, trabalhávamos juntos num ambiente suficientemente bom e criativo. Os coordenadores de cada sessão do Cine Fórum eram convidados dentro de um critério de interesse e de disponibilidade, e esperava-se deles aceitação e tolerância quanto à diversidade das experiências que poderiam aparecer. O clima de respeito e de grande interesse pelo conteúdo dos filmes proporcionou debates de modo muito ativos e espontâneos. Observou-se em todos os encontros emoções, evidenciadas pelo tom da voz e outras expressões afetivas, na busca de entendimento na larga participação grupal. Em alguns Cine Fóruns, principalmente nos primeiros, buscamos ao final, uma avaliação escrita, na qual valorizávamos sobretudo os ganhos afetivos que os participantes poderiam ter obtido e alguma sugestão quanto ao próximo filme a ser trabalhado. Todas as avaliações foram positivas e havia recomendação que a atividade fosse mantida, e que a mesma se revelava útil, pois proporcionava um aprofundamento no entendimento dos filmes que, em meio à discussão, passou a ter mais sentido. Considerações finais e correlações Essa dinâmica proporcionou o desenvolvimento de um clima de confiança tal qual a mãe deve ter para jogar com o bebê. Concluímos tratar-se da construção de um momento criativo com efeitos benéficos a todos, coordenadores, moderadores e público participante. Um fenômeno de grupo, evocado primeiramente no encontro com o filme, onde o espectador como um sonhador, entrega-se às impressões visuais, auditivas e proprioceptivas evocadas a partir da tela, seguido pelo encontro com grupo que expõe suas impressões, interpreta a trama e os personagens, muitas vezes acrescenta informações, detalhes, emociona-se, inspira-se e fala. “A afinidade Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 173 Cine fórum : construindo um espaço potencial reconhecida entre o cinema e o sonho nos levaria de pronto a pensar que a experiência onírica, ou o desejo humano de compartilhar seus sonhos, está na própria base do cinema” (SAMPAIO apud DESNOS, 2000, p. 46). Os encontros de Cine Fórum têm suas peculiaridades e muitas vezes são marcados também por experiências de angústia, pois o grupo não se repete e cada filme evoca diferentes sentimentos e representações. Segundo Kaës (2005), num grupo, o indivíduo pode ter uma função de porta-voz, e ao falar do filme, fala dele e do próprio grupo. É interessante como, em certos encontros, algumas pessoas se destacam e têm dificuldades notórias de ceder a palavra. Os coordenadores então, como porta vozes legítimos do grupo, conseguem intervir fazendo a palavra novamente circular pelo grupo. O que tem emergido dessas atividades são experiências em que não existe lugar para o certo ou errado, não há assimetria, mas sim um espaço onde circulam emoções e ideias. Psicanalistas e leigos compartilham da atmosfera provocada pelo drama, pela trama e pelos personagens. Uma possibilidade de colocar em palavras as interrogações e interpretações a partir de imagens, de sons e dos diálogos, sem o compromisso de acertar, de diagnosticar, de tratar. Entendemos que esses elementos têm potencializado o clima lúdico. Para Winnicott (1975), a criação se ergue entre o observador e a criatividade do artista. Pensamos tratar-se de uma rica experiência que poderia ser definida como o Espaço Potencial, um espaço onde os paradoxos podem existir, ser aceitos, tolerados, respeitados e, principalmente , não exigem resolução. Assim, o Espaço Potencial mobilizado pelo Cine Fórum é um espaço do brincar e um espaço de criação. Trata-se de uma experiência cultural construída em dois tempos: tempo intersubjetivo entre o filme (objeto transicional) e o espectador desejante, seguido pelo tempo de construir hipóteses e questionamentos (self interpretador), incrementados por outros elementos subjetivos, que o filme e o intercâmbio emocional e intelectual entre o grupo produzem. Este espaço oportuniza através da brincadeira estimulada pela riqueza simbólica dos filmes, um exercício da criatividade, fazendo emergir um objeto próprio e diferenciado que proporciona uma experiência de prazer. Percebemos que nesse espaço circulam vivas emoções e reflexões, todos saem tocados e enriquecidos. 174 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Denise Zimpek Pereira, José Ricardo Pinto de Abreu Cine Forum: building a potential space Abstract: Cine Forum is the original name of the activity offered to the community by the SBPdePA, today named Café Cinema. This activity led us to try to understand the psychic phenomena that led the public and coordinators to a great enthusiasm in discussions about the films presented. We have searched authors for some depth on the topic of the impact that the image exerts on the psyche, as well as the switch in Group of these impressions. We believe that this activity takes place within a potential space created by the emotional exchanges between coordinators, representing the institution and the participants, where a shared creative experience is offered. Keywords: Potential space. Identification. Mother-environment. Shared dream. Space potential. Subjectivation. Referências ETCHEGOYEN, R. H. Fundamentos da técnica psicanalítica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. KAËS, René. Os espaços comuns e partilhados. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005. OGDEN, Thomas H. Os sujeitos da psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996. SAMPAIO, Camila P. O cinema e a potência do imaginário. In: BARTUCCI, Giovanna. Psicanálise, cinema e estéticas de subjetivação. Rio de Janeiro: Imago, 2000. WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975. Denise Zimpek Pereira Rua Florência Ygartua, 53 / 302 90430-010 – Porto Alegre – Brasil e-mail: [email protected] José Ricardo Pinto de Abreu Rua Dona Laura, 207 / 305 90430-091 – Porto Alegre – Brasil e-mail: [email protected] Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 175 resenha Resenha do livro Metapsicologia: um olhar à luz da pulsão de morte Christiane Vecchi da Paixão1 Ignácio Paim Filho vem se revelando, ao longo dos anos, com uma série de artigos e livros publicados, um incansável e entusiasmado estudioso da psicanálise. Mergulha nos textos freudianos, esmiúça-os e vai criando novas relações conceituais. Segundo o próprio autor, aceita o convite deixado por Freud de fantasiar metapsicologicamente. Arrisca-se, interroga-se, questiona-se e cria. Esse é o espírito por trás de todos os textos, sejam eles em parceria com outros colegas, sejam de própria autoria. Com seu vigor característico, ressalta a importância de repensar os fundamentos do psíquico, sobretudo do arcaico. Justifica que sem se aventurar, sem especular teoricamente não haverá avanço que permita compreender e produzir uma metapsicologia para as ditas patologias atuais e ressignificar as velhas patologias. Por essa razão, chama os textos de vertentes, são como derivados de suas especulações psicanalíticas. Divide-as em três capítulos: Repensar a metapsicologia e os fundamentos da alma; Reencontrar a metapsicologia e Ressignificar a metapsicologia na clínica e na cultura. Finaliza com um epílogo sobre o legado freudiano. No capítulo inicial revisita a história do trauma, do trauma psíquico infantil, que julga fazer parte da própria essência da psicanálise por relacionar-se com a descoberta do inconsciente recalcado. Com o advento da pulsão de morte e sua expressão na compulsão à repetição, o trauma ressurge do além. Se o trauma (sexual) gerador de angústia produz o recalque, a ausência dele indicaria um Membro do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. 1 Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 177 Metapsicologia: um olhar à luz da pulsão de morte registro fora do campo do recalcado? Seria possível esboçar uma trajetória para o trauma no psiquismo? O autor trabalha com a hipótese de um trauma primordial estruturante, capaz de produzir história e conteúdo, de ser significado e ressignificado, e um trauma não estruturante, marcado por impressões que nunca foram conscientes, alojadas no inconsciente não recalcado e que não obedecem à lei freudiana dos dois tempos (a posteriori). Seria isso expressão da mutez e da força demoníaca da pulsão de morte? Ocupado está em pensar as origens do psíquico, assim retoma o conceito freudiano de repúdio ao feminino (1937), sustentando que é coexistente às origens do sujeito, através da personagem Helena de Troia, de Homero. Argumenta que será necessário discriminar a fundação da psique da fundação do recalcado. Salienta o autor que o inconsciente é mais abrangente que o recalcado ao propor que os destinos pulsionais pré-recalque (transformação ao contrário e retorno sobre si mesmo) são responsáveis pela fundação do aparelho psíquico. Ousadia do autor? Escreve: Assim, temos de um lado a transformação ao contrário e o retorno sobre si mesmo, fundando o psíquico, o que será conhecido como inconsciente não recalcado; por outro lado, temos o recalcamento originário que cinde o psiquismo em inconsciente e pré-consciente/ consciente, fundando o inconsciente recalcado (p. 45). Caberia ao recalcamento pôr em marcha o sentido, ou dar sentido ao histórico (a posteriori). Acredita que a dialética entre registros traumáticos estruturantes e não estruturantes na sua linguagem, ou do representável ou irrepresentável, lançam as bases para a compreensão e uma abertura para pensar os traumas do início da vida. Sendo o feminino portador do desamparo, da morte e da necessidade vital do outro, o repúdio ao feminino será a eterna marca da tentativa humana de manter a plenitude de narciso, em não aceitar a castração e fazer a guerra. Acrescenta que o feminino não repudiado é uma dura conquista do desenvolvimento representacional e simbólico, transformando representação em traço, traço em escrita, pré-história em história, estrangeiro em cidadão. Nesse sentido, propõe a existência de uma disposição feminina originária, capaz de conter as demandas pulsionais (sexuais e de morte?) e que tem no trabalho do feminino, o trabalho de transformações das impressões pré-recalque. De um só fôlego pergunta: O recalcamento inaugura o aparelho psíquico ou o inconsciente recalcado? O inconsciente existe desde as origens ou tem que ser construído? Caso 178 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Christiane Vecchi da Paixão tenha que ser construído, o que existe antes dele? Como compreender metapsicologicamente a existência do inconsciente recalcado? Seus questionamentos têm como finalidade abrir questões e não fechá-las, por outro lado não hesita em posicionar-se. Posiciona-se afirmando que o recalcamento não funda o aparelho psíquico, que existe um universo que não só o antecede como também é responsável por sua efetivação. Para então reafirmar que os destinos pulsionais primordiais (pré-recalque) são os responsáveis pela fundação do aparelho psíquico. Na quarta vertente, discute através de Schreber (1911) e Uma criança é espancada (1919) os fundamentos para sua proposta de pensar os destinos pulsionais narcísicos e sua relação com a fundação do aparelho psíquico. Em Reencontrar a metapsicologia, título para o segundo capítulo, composto por quatro textos ou vertentes, retoma o masoquismo erógeno primário e estabelece a relação de uma solidariedade-excitatória-sexual entre a pulsão sexual e a pulsão de morte. Ao marcar a ligação do erógeno e da força demoníaca da pulsão de morte coloca que Freud, ao acrescentar ao conceito de masoquismo primário a palavra erógeno, marca a importância da libido nas vicissitudes do masoquismo primário. E, ao mesmo tempo, deixa em aberto um possível interrogante, que possa existir um masoquismo primário não erógeno expresso nas patologias do não representável. Acredita que se o ser humano se constitui no encontro da pulsão com o objeto, entende que a capacidade menor ou maior de solidariedade está intimamente relacionada com o resultado desse encontro. Encontro que pode mitigar a força destrutiva da pulsão de morte. O que prepara para o próximo capítulo, que se ocupará da repetição, no qual pergunta se a compulsão à repetição é apenas a expressão da pulsão de morte ou uma tentativa de simbolização. Ao desmembrar o vocábulo compulsão (com+pulsão), toma a repetição na sua inter-relação da pulsão de morte versus pulsão sexual. Pulsão de morte que, enlaçada com a libido, tem na compulsão à repetição a possibilidade de ser capturada pela malha representacional, única possibilidade de virar acervo histórico. Seguindo o rastro dessas ideias, na vertente sobre o enigma do tempo, associa o aparelho psíquico freudiano a uma verdadeira máquina do tempo, indissociado da noção de pulsão e intrinsicamente ligado ao conceito de a posteriori. A posteriori e recalcamento coincidindo. Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 179 Metapsicologia: um olhar à luz da pulsão de morte No entanto, como pensar o traumático que nunca foi consciente, que não pode retornar (pela via do retorno do recalcado) e sofrer as vicissitudes do a posteriori? Tempo sem tempo da pulsão de morte? O estranho (1911) e Além do princípio do prazer (1920) juntos marcam o nascimento do conceito revolucionário da metapsicologia freudiana: a pulsão de morte. Com essa base freudiana, pergunta sobre uma possível metapsicologia da pulsão de morte que possa vir em auxílio aos desafios da clínica. Ao tomar como ponto de partida a criatura humana, assolada pelo caos pulsional da presença da pulsão de morte, tece uma série de novas associações conceituais que tentam dar conta da estruturação do sujeito psíquico. Transita entre os destinos da pulsão e os destinos do sujeito, lançando luz e novos interrogantes às manifestações da clínica contemporânea. Questões que serão discutidas ao longo do terceiro capítulo, Ressignificar a metapsicologia. Questiona o que mudou nesses mais de cem anos desde quando Freud escreveu sobre a moral sexual civilizada e doença moderna nervosa e seus efeitos na clínica e na cultura. Se o recalque visa a negativar a força da pulsão, permitindo que o desejo circule, estamos no campo dos desdobramentos do romance familiar do complexo de Édipo. Como discriminar o que tramita pelo universo do representável do que tramita como tragédia familiar edípica, que põe em ato o desejo? Estará o homem contemporâneo permeado por essa moral sexual (in)civilizada, expressão dos desejos narcísicos e sustentada pelo forcluído e desmentido? Se assim o for, pergunta se estamos diante de um novo paradigma na composição das estruturas clínicas: o representável e o irrepresentável. Questiona qual a importância de um diagnóstico estrutural em nosso fazer clínico diário. As hipóteses metapsicológicas sobre a fundação do sujeito psíquico ainda sustentam nosso discurso clínico? Ou estamos diante de necessárias revisões, com Freud e além dele? Sem dúvida, esse é o grande mérito desse livro. Ignácio, incansavelmente, aponta a força disjuntiva da pulsão de morte, ligada ao inconsciente não recalcado e pergunta como a função analítica pode construir formas de transformar traço em representação. Toma a função analítica e a escuta analítica como uma capacidade do analista de acessar o inconsciente do outro (o país do outro) a partir das repercussões no próprio inconsciente. A posição contratransferencial, termo cunhado por Faimberg e corroborado pelo autor, refere-se a uma atitude anímica ampla de escutar o que é dito e não dito pelo analisando. Acrescenta que essa posição é capaz de produzir um estado alucinatório em imagens que possam, através da função analítica, ser representadas. É nessas situações que o trabalho das construções ganha espaço na cena analítica. 180 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Christiane Vecchi da Paixão Finaliza com um legado da obra de Freud, como um viajante em terra conhecida/desconhecida, que nunca é indiferente ao que encontra. Trabalha a obra freudiana, dividindo-a em quatro grandes momentos, denominando-as viradas, no sentido de indicarem momentos de ruptura, reformulações e acréscimos da teoria. Nada mais freudiano que essa postura interrogativa, um eterno conquistador de terras estrangeiras. Pois é verdade que não sou de modo algum um homem de ciência, nem observador, nem experimentador, nem um pensador. Sou, por temperamento, nada além de um conquistador – um aventureiro, se você quiser que eu traduza – com toda curiosidade, ousadia e tenacidade que são características de um homem dessa espécie. (FREUD, 1900). Referências FREUD, S. Carta de 1º de fevereiro de 1900. In: A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess: 1887-1904. Rio de Janeiro: Imago, 1991. PAIM FILHO, Ignácio A. Metapsicologia: um olhar à luz da pulsão de morte. Porto Alegre: Movimento, 2014. Christiane Vecchi da Paixão Rua Ramiro Barcelos, 1793 / 408 90035-006 Porto Alegre – RS – Brasil e-mail: [email protected] Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 181 entrevista SPBdePA Entrevista Ricardo Avenburg1 Ricardo Avenburg, psicanalista argentino, foi o nosso convidado de honra para o II Encontro sobre a Obra de Freud, em novembro de 2014, na sede da SBPdePA. Além de ser psicanalista didata da APA, membro fundador e didata da APdeBA e membro fundador da Sociedade Psicoanalitica del Sur, também atuou como docente de Teoria Psicoanalítica na Faculdad de Filosofía y Letras da Universidad de Buenos Ayres, e foi professor de psicoterapia no Instituto de Psicoterapia de Gotemburgo, Suécia. Ricardo é um profundo conhecedor da obra freudiana, tendo entre seus escritos, os livros: El aparato psíquico y la realidad; Breve historia del pensamiento de Freud e Psicoanálisis: perspectivas teórias y clínicas en Conversaciones con Freud (este último, recentemente lançado). Pessoalmente, mostra uma atitude aberta a aceitar a complexidade humana, e convida a deixar-nos impactar pela surpresa, pelo acontecimento, pelo inesperado. Com grande sabedoria e uma postura absolutamente democrática, não hierarquizada, ele aprecia o diálogo acima de tudo, sempre evitando os pensamentos pré-formados. Durante o encontro sobre Freud, foram realizadas inúmeras perguntas ao professor Avenburg por membros de nossa sociedade e convidados. Para esta entrevista, baseamo-nos em algumas destas perguntas. 1. SBPdePA – Um dos méritos de Freud foi ter construído uma teoria, uma metapsicologia centrada na clínica. Tendo em vista o complexo de Édipo, como o pilar da construção subjetiva, e pensando na obra de Freud, estas patologias contemporâneas onde não há conflito psíquico recalcado, como no caso das bulimias, anorexias, toxicomanias e fenômenos psicossomáticos, como poderiam ser entendidas? Psicanalista. Didata e fundador da Associação Psicanalítica de Buenos Aires. 1 Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 183 Entrevista R.A – O complexo de Édipo não é o pilar de toda a construção subjetiva: a repressão do complexo de Édipo e seu fracasso são o fundamento das neuroses. A construção subjetiva parte da alucinação desiderativa, passando pelo ego real primitivo, o ego de prazer purificado e o ego real definitivo, que se constituem previamente e, pouco a pouco desembocam no complexo de Édipo. O mesmo se passa com o desenvolvimento do pré-consciente (o menino de 3 ou 4 anos expressa verbalmente seus desejos sexuais). O conflito psíquico reprimido é universal (geneticamente determinado) e a dita repressão é o fundamento do período de latência. Com respeito às patologias contemporâneas: sobre este tema teria que fazer um estudo de alto espectro, que integre as patologias que se dão no mundo inteiro, assim como no decorrer da história. Não creio que o que vejo no consultório me permita conhecer o panorama mundial das patologias contemporâneas. Em relação aos casos de Freud, vejo menos neuroses sintomáticas hoje. Ángel Garma nos dizia (anos 60, aproximadamente) que na Europa via mais neuroses obsessivas e na Argentina, mais fobias. Hoje fobias se veem, por exemplo, em relação aos aviões, entre outras. De qualquer forma, o fato de que, pelo menos nesta parte do mundo, vejamos menos neuroses sintomáticas creio que tem que ver com uma menor repressão genital e uma maior satisfação instintiva. Sugere que o instinto não requer caminhos deslocados para manifestar-se em forma encoberta. Ainda que, às vezes, podem observar-se situações de ansiedade ou depressão vinculadas a carências genitais, ou seja, neuroses atuais. Em relação aos outros quadros mencionados: teria que estudá-los, cada um em sua especificidade, porém podem ser manifestações contemporâneas de quadros mais universais, como cisões do ego e/ou patologias narcisistas. 2. SBPdePA – Freud se dizia insatisfeito com suas colocações a respeito da sexualidade feminina. Levando-se em conta que a mulher de hoje é muito diferente da mulher da sua época, o que o senhor acrescentaria ou reformularia na teoria freudiana sobre a sexualidade feminina? R.A – O tema da sexualidade feminina deve ser tratado desde um ponto de vista interdisciplinar: psicanalítico, a partir das experiências individuais (com cada analisanda em particular), sociológico (a sexualidade feminina na atualidade em geral), histórico (nas diferentes épocas da história) e antropológico (a mulher com suas características essenciais). Nos conceitos de Freud, creio que este integra sua experiência psicanalítica com uma visão 184 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Ricardo Avenburg antropológica (teríamos que analisar detalhadamente seu desenvolvimento teórico). O objetivo da sexualidade é a procriação (conservação da espécie), na qual mulher e homem aportam suas potencialidades específicas, o que envolve uma diferenciação anatômica. A questão é como cada sexo assume tais diferenças. Um período significativo nesse processo de assunção é o genital infantil (o fálico) da sexualidade infantil, momento em que a excitação sexual se concentra nos genitais, que também é objeto de investigação da criança. Aqui aparece como pergunta lógica: por que os meninos têm pênis e as meninas não? Segundo Freud, essa pergunta, vinculada à inveja do pênis e à angústia de castração (incorporada pela herança genética a partir da instauração do totemismo), fica congelada durante o período de latência, para ressignificar-se na puberdade, no sentido de que cada um dos sexos cumpre uma função necessária e nenhum é superior ao outro. Creio que aqui o problema transcende a mulher e se estende a toda humanidade que, segundo minha forma de ver, segue fixada aos 4 anos e se pergunta qual é o melhor cantor, o melhor esportista, a quem premiar com o Oscar ou o prêmio Nobel, ou seja, quem possui o maior (vocês certamente imaginam a que me refiro) e não reconhece o valor das diferenças e a riqueza específica de cada indivíduo. 3. SBPdePA – Freud postulou que na resolução do Édipo, uma parte é reprimida e uma outra parte naufraga. O que seria este naufrágio? Seria a identificação? R.A – Não fica claro a que Freud se refere com o conceito de naufrágio. Usa diferentes palavras como sinônimos: Untergang (ruína, naufrágio), zerstörung (destruição), Aufhebung (abolição, supressão), Zugrundegehen (perecer, ir a pique). O significado comum seria a destruição; naufrágio seria uma metáfora. Ele relaciona a destruição com a sublimação e a desfusão instintiva. Chama a atenção que a sublimação, até agora expressão mais alta da criatividade (ver Leonardo) e que teria que ser produto de uma mescla de instintos, seja produto de uma desfusão que está vinculada a uma destruição (do complexo de Édipo). Não encontrei a resposta em Freud. Minha reflexão é que a sublimação (do latim: sublimis: que está no Dicionário Vox), sendo expressão da destruição do complexo de Édipo, é expressão de uma destruição de representações coisa, processo característico da esquizofrenia. A sublimação seria uma criatividade estéril (a verdadeira criatividade não pode não ser erótica), dessexualizada (Freud desde o princípio caracterizou-a como expressão de um instinto sexual dessexualizado) imposta pelo superego Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 185 Entrevista que já não precisa reprimir porque matou seu inimigo, o complexo de Édipo, e o desbiologizou com a desfusão instintiva. A sublimação seria uma restituição psicótica imposta por mandatos culturais derivados do totem (a vingança do pai assassinado). No entanto, tudo isso é uma reflexão minha e não tenho ideia sobre se Freud me acompanharia, porém ele é o responsável destas deduções a partir de suas asseverações. Em Introdução ao narcisismo, Freud propõe que a passagem do autoerotismo ao narcisismo pressupõe um novo ato psíquico. O narcisismo, nesse momento da obra de Freud, é a culminação do autoerotismo, na qual as satisfações parciais de cada zona erótica se integram sob a primazia fálica (a partir do meu ponto de vista, o novo ato psíquico seria a masturbação genital). Entretanto, Freud, a partir dos artigos metapsicológicos de 15, vai estender o conceito de narcisismo a todo o desenvolvimento da sexualidade infantil e chamará autoerotismo à atividade sexual própria do período narcisista. Com respeito ao ego, este irá se configurando a partir do ego real primitivo, que vai se organizando a partir do narcisismo original, no qual a criança ainda não diferencia entre ego e objeto. O olhar da mãe (entendo que é uma expressão metafórica, porém aqui a tomo ao pé da letra) adquire significado para o bebê a partir de um ego que pode diferenciar um olhar que vem a partir do objeto: previamente são o tato, o calor, o olfato e o gosto. A vista adquire um lugar central a posteriori (Freud: As Afasias). 4. SBPdePA – Existe um narcisismo secundário como normal no desenvolvimento? Segundo Freud, não se pode encerrar o tratamento analítico sem a análise da transferência negativa. Quando isto não ocorre, incidimos no narcisismo do analista? R.A – Os conceitos de primário e secundário mudam de sentido em Freud, segundo o nível em que sejam considerados (com o narcisismo acontece o mesmo que com a repressão ou a defesa primária e secundária ou com a identificação primária e secundária). A libido narcisista segue investindo o ego em pleno estágio objetal: pode incrementar-se ante qualquer situação desencadeante (quando o ego do sujeito está em jogo) ou em caso de uma regressão libidinal generalizada (esquizofrenia, por exemplo). Segundo o meu ponto de vista, o que decide o término do tratamento são, antes de mais nada, considerações clínicas que, é claro, não excluem 186 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Ricardo Avenburg considerações psicopatológicas ou metapsicológicas. Entretanto, estas últimas não são determinantes de tal decisão. Será que o meu narcisismo tem algo a ver com isso? A análise da transferência negativa, mais precisamente da transferência reprimida que se manifesta na consciência de um modo distorcido é um dos muitos fatores que intervêm na análise; porém, por que não a análise da transferência erótica ou positiva reprimida? São essas transferências que podem dirigir-se ao analista ou a qualquer outra pessoa (ou animal) do contexto de vida do analisando e que merecem ser trabalhadas quando se tornam perturbadoras das ações específicas do paciente. 5. SBPdePA – O Sr. mencionou que o autoerotismo é pouco tratado na obra de Freud. Pensando na passagem do autoerotismo para o narcisismo como um estágio de integração, Freud, quando se refere a fetichismo, em divisão do ego, ele não estaria de alguma forma retomando pelo sentido inverso o processo do autoerotismo, quando ele fala em estados já não integrados como, por exemplo, a dissociação e a cisão? De alguma forma ele não estaria retomando o autoerotismo? E isto que chamamos de patologias do narcisismo não seriam na realidade patologias autoeróticas, pois seu funcionamento se caracteriza muito mais por um estado de não integração do que por um estado integrado? R.A – Não recordo quando nem em que contexto disse que o autoerotismo é pouco tratado na obra de Freud; sim, talvez, no sentido de que Freud deixa de definir o autoerotismo como uma etapa e, como disse antes, passa a defini-lo como a atividade sexual própria da etapa narcisista. Sobre a questão da cisão do ego, na qual o fetichismo está incluído e, creio, também o que hoje se chama psicopatia e, na psiquiatria clássica loucura moral, está em jogo uma patologia do ego e, portanto, uma patologia narcisista, na qual, estabelecendo uma analogia com a política, no lugar de um sistema repressor (exemplos não faltam, nem no mundo, nem na América Latina) há um duplo governo que atua simultaneamente (como na Espanha com o franquismo e a República Espanhola): uma parte desconhecendo a angústia de castração e a outra, experimentando uma crise de angústia aparentemente imotivada (reage, sem dar-se conta à ameaça de castração). 6. SBPdePA – A nossa questão tem a ver com o narcisismo e a imagem. Observando a clínica, o senhor considera que hoje se confunde com narcisismo, Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 187 Entrevista o que poderiam ser pacientes predominantemente neuróticos, com traços histéricos, preocupados com a questão da imagem, com a vaidade ou com aquilo que Freud descreve como desejo ambicioso, relacionado por ele com o erotismo fálico-uretral? Entrando um pouco nas relações do narcisismo com as estruturas clínicas, seriam duas situações muito comuns: uma visão do narcisismo onde apareceriam mais aspectos histéricos, a vaidade, a importância do aspecto estético, principalmente na mulher; e a questão do desejo ambicioso no homem, expressão do erotismo fálico-uretral, que muitas vezes se confundiria com uma expressão narcísica. O que o senhor pensa sobre isto? R.A – Com respeito ao fato de se existem ou não pacientes neuróticos, fiz algumas referências na pergunta 1. Eu prefiro chamar de neuroses as neuroses sintomáticas e não estendo esse termo a traços de caráter, o que faz com que o seu sentido se torne muito difuso (e confuso). Isso não quer dizer que o conflito neurótico ou a disposição ao mesmo não seja um fenômeno universal (salvo em pacientes muito regressivos) que se manifesta no fato de que os sonhos (salvo nas crianças previamente ao período de latência) expressem desejos encobertos que requerem ser interpretados e que existam atos falhos e sintomáticos. Por outro lado, o narcisismo, ou seja, o ego investido de libido é o esperado em todo o sujeito medianamente são, salvo no caso da patologia narcisista, na qual a estrutura do ego está danificada e, portanto, não adequadamente investida pela libido. A exagerada vaidade e a exagerada ambição nos mostram um ego invadido pela quantidade e não adequadamente investido libidinalmente (a vaidade e a ambição não são necessariamente patológicas, mas dependem de sua adequação às ações específicas que o ego queira realizar). 7. SBPdePA – O senhor acredita que a psicanálise precisaria debater mais o conceito de pulsão de morte com as ciências correlatas a fim de aperfeiçoar e adequar aos preceitos científicos a sua teoria? Se Freud vivesse nos dias atuais, ainda pensaria a Pulsão de Morte para explicar o masoquismo, a destrutividade, a compulsão à repetição e a reação terapêutica negativa? R.A – Antes de mais nada e, além de responder temas derivados, quero expressar como considero a teoria dos instintos desenvolvida por Freud, ainda que nem sempre coincidindo com seu pensamento (mas sempre em diálogo com ele). 188 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Ricardo Avenburg Na Crítica da razão pura, Kant diz que a psicologia está (ou estava) ainda nos braços da filosofia e ainda não havia crescido suficientemente como para ser uma ciência independente. Creio que com Freud esse passo se deu. Sigo com Kant ( sintetizo tal como o entendo). Toda a ciência e todo o conhecimento nascem com a experiência a partir da qual se constituem juízos (sintéticos). Entretanto, esgotada a experiência, a razão quer seguir pensando (com juízos analíticos), perguntando-se pelo sentido, pela origem das coisas e não conta com mais elementos do que desenvolvendo seus próprios juízos. Os resultados desse desenvolvimento do pensamento puro seriam regulativos e não constitutivos: não podem reclamar a existência real como os que resultam da experiência (constitutivos), mas que nos servem para nos localizarmos no mundo. Após ter tratado de pensar a psicologia a partir da neurologia (Projeto para uma psicologia) e ver, desde aí, a impossibilidade de entender os atos falhos e os sonhos, Freud disse (ou assim o imagino): “Vou inventar um aparelho por meio do qual possa entender esses fenômenos” e construiu o esquema do aparelho psíquico do capítulo VII de A interpretação de sonhos. Com isso, introduziu-se no campo da razão pura (sem por isso deixar de lado os achados da experiência) que se estendeu ao longo de toda a metapsicologia. Aqui entra a teoria dos instintos, que parte, em Além do Princípio do Prazer, da primeira célula vivente. É especulação pura e filosofia no melhor sentido da palavra, o que lhe permite entender a biologia em sua essência. Aqui me insiro na filosofia e introduzo Hegel e seu pensamento dialético, que creio ser também de Freud, sem que ele mesmo tenha-se dado conta. Hegel em sua Lógica e em sua Enciclopédia de ciências filosóficas faz-se a pergunta: O que é o ser? E se responde que o ser é tudo, abarca a totalidade, portanto não tem limites. No entanto, para que o ser seja algo tem que estar determinado, ter limites: é isso e não é aquilo. Porém, o ser é a totalidade, não está determinado por nada, portanto, o ser não é nada: o ser é o nada e o nada é o ser. O nada e o ser são o mesmo e, ao mesmo tempo, não são o mesmo e, a partir dessa tensão entre o ser e o não ser surge o porvir e o cosmos. Essa dialética entre o ser e o não ser (o nada) se expressa no vivente sob a forma de vida e morte: viver é morrer e morrer é viver, vida e morte são o mesmo e, ao mesmo tempo, não são o mesmo. O ser e o nada, em nível cósmico, são vida e morte em nível biológico. No que não estou de acordo com Freud é que não tenha se mantido em nível Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 189 Entrevista especulativo e tenha tendido a aplicar imediatamente os conceitos de instinto de vida e de morte ao campo da clínica, na qual, salvo no momento em que a vida passa a ser nada (a morte) nos manejamos com mesclas em distintos níveis de organização. Os instintos de vida e de morte representam a dialética do ser e o nada no ser biológico. Os instintos de autoconservação (a conservação do indivíduo biológico) e os sexuais (conservação da espécie viva) representam a dialética entre a parte e o todo. Em seus começos, a reprodução, enquanto divisão celular, coincide com a fusão e desaparecimento, enquanto indivíduos das células que se integram nessa nova organização. Porém, no desenvolvimento das espécies vivas, os indivíduos se perpetuam (autoconservação) logo da reprodução sexual: aqui se impõe a dialética, não entre o ser e o não ser, mas entre a parte (instinto de conservação) e o todo (a sexualidade ou conservação da espécie). Tudo isso que acabo de desenvolver existe na realidade? São juízos constitutivos? Não sei, mas permitem-me entender melhor os conceitos de Freud em particular (e talvez melhor que ele, desculpem-me a presunção) e a vida em geral. Creio que o dito serve como resposta, não direta, mas global, à pergunta. 190 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Orientações aos colaboradores e normas para publicação 1 Informações Gerais Psicanálise é uma publicação semestral, oficial, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, editada desde 1999. Tem por objetivo divulgar trabalhos não só do campo da psicanálise como também de suas interfaces com as diversas áreas do conhecimento, tanto em nível nacional como internacional. Esses são apresentados na forma de artigos, ensaios, conferências, entrevistas e reflexões. Os manuscritos aceitos e publicados tornam-se propriedade da Psicanálise – Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, sendo vedada a sua reprodução, ainda que parcial, sem a devida autorização por escrito da Comissão Editorial da revista. As opiniões emitidas nos trabalhos, bem como a exatidão, adequação e procedência das referências e citações bibliográficas, são de exclusiva responsabilidade dos autores. 2 Requisitos para submissão do manuscrito 2.1 o trabalho deve ser preferencialmente inédito (exceto os publicados em anais de Congressos, Simpósios, Mesas Redondas ou Boletins de circulação interna de Sociedades Psicanalíticas). Exceções serão consideradas. 2.2 não infringir nenhuma norma ética. Não será exigido pela revista consentimento informado do paciente quando utilizada alguma vinheta clínica nos artigos, ficando na responsabilidade do autor as questões referentes à ética e ao sigilo. 2.3 respeitar as normas gerais que regem os direitos do autor. Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 193 Orientações aos colaboradores e normas para publicação 2.4 não conter nenhum material que possa ser considerado ofensivo ou difamatório. 2.5 caso o trabalho seja encaminhado simultaneamente para outra publicação, deve o autor comunicar explicitamente e por escrito a Comissão Editorial. A revista não colocará obstáculos à divulgação desse em outra publicação, desde que informada previamente. Quaisquer violações destas regras que impliquem em ações legais serão de responsabilidade exclusiva do autor. 2.6 por fim, o autor deve estar ciente de que, ao publicar o trabalho na Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, está transferindo automaticamente o “copyright” para essa, salvo as exceções previstas pela lei. 3 Forma de apresentação de manuscrito 3.1 os originais deverão ser enviados à “Psicanálise” – Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre por e-mail para os endereços biblioteca@ sbpdepa.org.br, [email protected], ou entregues pessoalmente na Praça Maurício Cardoso, nº 7, Bairro Moinhos de Ventos, Porto Alegre. 3.2 ter extensão máxima de 20 páginas (frente), fonte Times New Roman, tamanho 12 em espaço 1 ½, com numeração no canto superior direito. 3.3 folha de rosto identificada, contendo: 3.3.1 título do trabalho em português, inglês e na língua a ser publicado (centralizado); 3.3.2 nome completo do (s) autor (es) na margem direita; 3.3.3 nota de rodapé com titulação e afiliação; 3.3.4 quando se tratar de trabalho apresentado em evento, informar em nota de rodapé. 3.4 Resumo e palavras-chave em português, inglês e na língua a ser publicado: 3.4.1 o resumo e o abstract deverão conter, cada um, no máximo 150 palavras, seguidos das palavras-chave e keywords, respectivamente; 3.4.2 resumo e palavras-chave deverão localizar-se na folha de rosto após o título; abstract e keywords constarão no final do trabalho, antes das referências. 3.5 Texto 3.5.1 Citações As seguintes orientações seguem o estabelecido nas normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, NBR 10520 – Informação e documentação – Citação em documentos – Apresentação. 194 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Orientações aos colaboradores e normas para publicação 3.5.1.1 deverão ser identificadas através do sobrenome do autor, ano de publicação e número da página. Por exemplo: Freud (1918, p. 5) ou (FREUD, 1918, p. 5). Na citação direta curta (até 3 linhas), colocar entre aspas duplas; em citação direta longa (mais de 3 linhas), destacar com recuo de 4cm da margem esquerda com letra menor e sem aspas. 3.5.1.2 obras com dois autores, os dois devem ser mencionados, por exemplo, Marty e M’Uzan (1963) ou (MARTY e M’UZAN, 1963). Caso existam mais de dois autores, indicar somente o primeiro seguido da expressão latina et al., como por exemplo: Rodrigues et al. (1983) ou (RODRIGUES et al., 1983). 3.5.1.3 consideração especial para as obras de Freud: as datas correspondentes aos seus textos deverão aparecer entre parênteses, logo após o nome, seguido da data de publicação da obra consultada. Exemplo: Freud (1915/1996). 3.5.2 Referências As referências seguem o estabelecido nas normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, NBR 6023 – Informação e documentação – Referências – Elaboração. 3.5.2.1 são apresentadas de forma completa, no final do trabalho, em ordem alfabética de sobrenome dos autores e suas obras pela ordem cronológica de publicação, correspondendo exatamente às obras citadas. 3.5.2.2 se houver obras publicadas de um mesmo autor no mesmo ano, devese acrescentar à data de publicação as letras a, b, c. Exemplo: WINNICOTT, D. W. Teoria do relacionamento paterno infantil. In: O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983a. Quando um autor é citado individualmente e também como coautor, serão citadas antes as obras nas quais ele é o único autor, seguidas das publicações em que aparece como coautor. Os autores não são repetidos, mas indicados por seis traços subscritos sem espaçamento entre eles. Exemplo: ______. Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago, 1990. 3.5.2.3 os títulos dos livros devem ser grifados, sendo que as palavras mais significativas serão escritas em maiúsculas; o lugar da publicação, o nome do editor e a data de publicação também devem ser indicados, nesta ordem. 3.5.2.4 nos títulos de artigos somente a primeira palavra figurará em letra maiúscula, seguido do título grifado da revista, volume, número e página inicial e final do artigo. Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 195 Orientações aos colaboradores e normas para publicação 3.5.2.5 consideração especial para as obras de Freud: as datas correspondentes aos seus textos deverão aparecer entre parênteses, logo após o nome; a data de publicação da obra consultada constará no final da referência. Exemplo: FREUD, S. (1913). Totem e tabu. In: Obras completas. v. 13. Rio de Janeiro: Imago, 1974. 4 Forma de apresentação de resenha 4.1 deverá ser enviada à “Psicanálise” – Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre por e-mail para os endereços biblioteca@sbpdepa. org.br, [email protected], ou entregues pessoalmente na Praça Maurício Cardoso, nº 7, Bairro Moinhos de Ventos, Porto Alegre. 4.2 deverá ter extensão máxima de quatro páginas (frente), fonte Times New Roman, tamanho 12 em espaço entrelinhas de 1,5 com numeração no canto superior direito. 4.3 deverá mencionar: 4.3.1 título, autor(es), editora, ano e número de páginas da obra resenhada; 4.3.2 síntese do conteúdo do livro; 4.3.3 comentário sobre a inserção, contribuição ou importância da obra no contexto da literatura psicanalítica; 4.3.4 considerações sobre a pessoa do autor ou sobre a relação pessoal com ele devem ser evitadas. 5 Procedimentos de avaliação 5.1 todo documento entregue para publicação será avaliado através de critérios padronizados, de modo paritário, por membros do Conselho Editorial da Revista e “às cegas” (anonimamente). 5.2 avaliador e autor serão mantidos em sigilo pela Revista durante o processo de avaliação. 5.3 após revisão pelos avaliadores, o documento poderá ter três destinos: 5.3.1 ser aprovado para publicação. Nesse caso, após revisão gramatical e diagramação uma prova final será enviada ao autor para sua aprovação. Após a resposta do autor com seu consentimento, no prazo estipulado pela revista, o artigo será envido para publicação; 5.3.2 ser aprovado para publicação com necessidade de adequação na forma e/ou no conteúdo. Nesse caso o documento será reenviado ao autor para as devidas correções ou ajustes. Após o retorno do documento para a revista no 196 | Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 Orientações aos colaboradores e normas para publicação prazo estipulado, o mesmo será novamente submetido para análise. Ele poderá ser aprovado, seguindo o descrito no ponto 5.3.1, poderá necessitar de novas correções, seguindo novamente o caminho deste ponto, ou poderá não ser aprovado para publicação, seguindo o item 5.3.3; 5.3.3 não ser aprovado para publicação. Nesse caso o autor receberá da revista as justificativas; 5.4 a decisão final quanto à data de sua publicação dependerá do número de artigos aprovados e do programa editorial estabelecido. 5.5 a Comissão Editorial reserva-se o direito de efetuar pequenas alterações no texto aceito para publicação, a fim de adequá-lo aos critérios de coerência, clareza, fluidez, correção gramatical e padronização editorial adotados pela revista. Ressalta-se que em todos os casos a versão final do documento será enviada ao autor para aprovação final deste e consentimento para publicação. 5.6 artigos que não forem publicados em 12 (doze) meses a partir da data de sua aprovação serão oferecidos de volta ao seu autor, para que esse tenha liberdade de enviá-lo a uma outra publicação. Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 | 197 Livro impresso em Porto Alegre inverno de 2015 Todos os direitos reservados a Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre