Contextos de formação de professores - ESSA

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Contextos de formação de professores - ESSA
Contextos de formação de professores
Estudo de características sociológicas específicas
Margarida Afonso
Ana Maria Morais
Isabel Neves
Centro de Investigação em Educação
Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa
Versão pessoal revista do texto final do artigo publicado em:
Revista de Educação , XI (1), 129-146 (2002).
Homepage da Revista de Educação: http://revista.educ.fc.ul .pt/
Contextos de formação de professores
Estudo de características sociológicas específicas
Margarida Afonso
Ana Maria Morais
Isabel Neves
Centro de Investigação em Educação
Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa
INTRODUÇÃO
O estudo que se apresenta neste artigo integra-se num projecto mais amplo, que envolveu a
formação e a análise do desenvolvimento profissional de professoras do 1º ciclo do ensino
básico (Afonso, 2002) e da influência das suas práticas pedagógicas no desenvolvimento
científico das crianças (Pires, 2001). Os conceitos da teoria de Vygotsky (1978,1992) e o
modelo do discurso pedagógico da teoria de Bernstein (1990, 2000), constituem os
principais refenciais teóricos da investigação. Trabalhos anteriores, realizados dentro do
mesmo quadro conceptual, têm contemplado análises e/ou intervenções a vários níveis do
aparelho pedagógico subjacente ao sistema educativo português. A maior parte desses
trabalhos tem-se focado no micro-nível, explorando relações presentes no contexto de
reprodução do discurso pedagógico (DP) em sala de aula (Morais et al, 1993; Morais,
Neves et al, 2000; Morais, & Neves, 2001). Outros trabalhos têm dirigido a atenção para o
macro-nível, analisando questões de política educativa relacionadas com a produção do DP
(Fontes, & Morais, 1996; Neves, & Morais, 2001b). Outros, ainda, têm-se centrado no
meso-nível, incluindo análises relacionadas com a recontextualização oficial do DP, como
é o caso de análises de currículos e de programas (Morais, Neves, & Fontinhas, 1999;
Neves, & Morais, 2001a, c), e com a recontextualização pedagógica do DP, como é o caso
de análises de manuais escolares (Neves, 1991; Lourenço, & Neves, 1998) e de contextos
de formação inicial (Morais, 2002) e contínua (Rocha, & Morais, 2000) de professores.
O estudo foca-se na formação e desenvolvimento profissional dos professores e explora as
relações que se estabelecem em contextos de formação contínua (meso-nível de análise),
procurando ampliar resultados de um trabalho anterior, realizado também com professores
do 1º ciclo do ensino básico (Rocha & Morais, 2000). Este trabalho, que se desenvolveu
segundo uma metodologia de investigação-acção, forneceu dados que conduziram a um
1
modelo teórico de formação de professores com características semelhantes, em traços
gerais, às do modelo teórico de prática pedagógica que os estudos realizados ao micro-nível
de análise têm revelado ser mais favorável à aprendizagem de todos os alunos.
Pretendendo explorar, também numa linha de investigação-acção, a importância, no
desenvolvimento profissional dos professores, das características sociológicas que
caracterizam os modelos de formação, a investigação tinha como uma das suas principais
finalidades pesquisar razões subjacentes aos desempenhos escolares de professores com
diferentes experiências e histórias de vida e como esses desempenhos podem ser
influenciados por contextos de formação com determinadas características. Com base
neste objectivo central, pretendia-se dar resposta às seguintes questões de investigação: (a)
em que medida as vertentes pessoal, social e profissional do professor se articulam e
interferem no seu desempenho escolar; (b) que modalidade(s) de formação se revela(m)
mais adequada(s) a um desenvolvimento profissional conducente à implementação de
práticas pedagógicas favoráveis ao desenvolvimento científico de todas as crianças; (c) que
modalidade(s) de formação são capaz(es) de fazer convergir professores, com diversas
experiências, histórias de vida e desempenhos escolares, de modo a que implementem
práticas pedagógicas favoráveis a um maior desenvolvimento científico de crianças
socialmente diferenciadas; (d) que aspectos, relacionados com a prática pedagógica, os
professores sentem mais dificuldades em alterar e/ou implementar na sala de aula e que
razões estão subjacentes a tais dificulades; (e) em que medida o desenvolvimento
profissional e o desempenho dos professores estão relacionados com a aquisição de regras
de reconhecimento e de realização necessárias à implementação de práticas pedagógicas
com determinado(s) perfil(s) científico(s) e pedagógico(s).
O presente artigo, centra-se nas modalidades de formação que foram desenvolvidas no
âmbito da investigação anteriormente referida, e tem como objectivos: (a) descrever a
forma como se podem caracterizar as relações sociológicas presentes em contextos de
formação; (b) complementar resultados anteriores (Rocha & Morais, 2000) sobre as
potencialidades de um modelo de análise de modalidades de formação baseado em
instrumentos conceptuais semelhantes aos utilizados na análise sociológica das relações
que caracterizam os contextos de ensino-aprendizagem na sala de aula.
2
QUADRO CONCEPTUAL
Os quadros conceptuais que têm estado presentes na formação de professores baseiam-se,
predominantemente, em correntes sediadas na psicologia e na epistemologia. Literatura
sobre formação e desenvolvimento profissional de professores, fundamentada na sociologia
é escassa e, por vezes, muito superficial.
Liston e Zeichner (1993) e Wilson e Berne (1999) são da opinião que as actividades e
esforços dos formadores/investigadores no domínio do desenvolvimento profissional, para
obterem resultados mais consistentes e profundos, devem: (a) centrar-se no ensino como
prática contextualizada e ressaltar os contextos sociais e políticos gerais no qual está imerso
e devem prestar especial atenção às dinâmicas de género, etnia e classe social da
escolarização e da formação dos professores; (b) identificar, analisar e conceptualizar o
“que” do conhecimento dos professores e, também, compreender melhor “como” esse
conhecimento é adquirido, como evolui e como influencia a prática; (c) deixar claros os
quadros conceptuais com que se identificam; (d) ser de natureza compreensiva de forma a
permitir relacionar estudos de aprendizagem dos professores com o ensino que realizam e
com a aprendizagem que os alunos apresentam; (e) procurar explicar como os contextos de
formação influenciam a aprendizagem, permitindo o desenvolvimento dos professores.
Dos vários aspectos referidos, é de salientar a importância crucial de se perspectivar os
processos de formação no contexto global do sistema educativo e de se clarificar os
quadros conceptuais que orientam as investigações realizadas no âmbito da formação de
professores. Nesta matéria, corrobora-se a opinião de autores, entre os quais Anderson e
Mitchener (1994) que, com base numa extensa revisão de literatura sobre a investigação
neste domínio, afirmam que muitos dos estudos não têm um quadro conceptual de
referência consistente e profundo e que parte da investigação se centra na formação dos
professores individuais esquecendo o contexto escolar e o contexto mais global do sistema
educativo no qual os professores se movimentam e actuam. Segundo os autores citados, há
necessidade de desenvolver mais investigação nesta área, de se dar uma maior atenção às
perspectivas teóricas que orientam os estudos e de se desenvolverem estudos que
contemplem múltiplas perspectivas, como por exemplo, a análise da competência dos
professores em termos psicológicos, sociológicos e epistemológicos.
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Considerando a complexidade, multiplicidade e interdependência dos factores que intervêm
no desenvolvimento profissional dos professores e a importância de se dispôr de quadros
conceptuais suficientemente poderosos e abrangentes para permitir análises cruzadas aos
vários níveis desse desenvolvimento, recorreu-se ao modelo do discurso pedagógico da
teoria de Bernstein que, pela sua forte linguagem interna de descrição, contém instrumentos
conceptuais aplicáveis a diferentes níveis de análise e às suas inter- relações. Considerando,
por outro lado, que uma formação alicerçada em processos de investigação-acção envolve
relações sociológicas específicas que incluem quer as interacções formador-professor e
professor-professor, quer as relações entre discursos e espaços que configuram o contexto
global da formação, é possível, através dos conceitos de classificação (poder) e de
enquadramento (controlo) da teoria de Bernstein, analisar e descrever processos distintos
de investigação-acção bem como discutir o seu significado no desenvolvimento e
desempenho dos professores.
Partiu-se, assim, da ideia que, tal como os processos de ensino-aprendizagem na sala de
aula, também os processos de formação de professores e, nomeadamente os processos de
investigação-acção, representam determinadas modalidades de prática pedagógica. Neste
sentido, poder-se-á utilizar, na análise das modalidades de formação, o mesmo tipo de
conceptualização que é usado na análise das modalidades de prática pedagógica da sala de
aula, recorrendo na sua caracterização às relações de poder e/ou de controlo que regulam os
contextos instrucional e regulador da formação.
Partindo do pressuposto que as relações de poder entre os sujeitos formador e professor
traduzem relações de forte classificação (dado que é o formador que assume maior estatuto
nesta relação), a caracterização da interacção formador-professor é feita com base no
conceito de enquadramento. Assim, considera-se o controlo que cada um dos sujeitos tem
na relação de comunicação, quer ao nível do contexto instrucional (regras discursivas
selecção, sequência, ritmagem e critérios de avaliação), quer ao nível do contexto
regulador (regras hierárquicas). No caso das regras discursivas, valores fortes de
enquadramento indicam uma modalidade de formação centrada no formador (transmissor)
e valores fracos de enquadramento indicam uma modalidade de formação centrada no
professor (aquisidor). No caso das regras hierárquicas, valores fortes de enquadramento
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traduzem uma relação de comunicação baseada em formas do controlo posicional e valores
fracos de enquadramento traduzem uma relação de comunicação aberta, baseada em formas
de controlo pessoal.
No contexto de formação de professores, há ainda a considerar as relações de poder que se
estabelecem entre os discursos e entre os espaços que configuram esse contexto. Para
caracterizar a modalidade de formação, em termos de relações entre discursos, é necessário
ter presente que as relações intra-disciplinares e inter-disciplinares e as relações entre
conhecimentos académico e não-académico devem ser analisadas de acordo com a natureza
dos discursos que estão presentes em contextos de formação de professores. Assim,
relações inter-disciplinares referem-se às relações entre áreas de disciplinas usualmente
presentes na formação pedagógica e científica de professores (psicologia da educação,
sociologia da educação, epistemologia das ciências, didáctica da disciplina). Relações intradisciplinares referem-se ao maior ou menor grau de integração dos diferentes assuntos
abordados, reflectindo o nível de exigência conceptual que é requerido na formação.
Quanto à relação entre conhecimentos “académico” e “não-académico”, ela corresponde,
neste caso, à relação entre os conhecimentos que o formador põe à disposição dos
formandos e os conhecimentos que os formandos possuem das suas práticas do dia-a-dia. A
classificação será forte, sempre que se verifiquem fronteiras bem definidas entre os
discursos e será fraca sempre que essas fronteiras sejam esbatidas. Do mesmo modo, as
relações entre espaços serão caracterizadas por classificações fortes quando os espaços do
formador e dos formandos e quando os espaços dos diferentes formandos forem marcados
por fronteiras bem definidas e serão caracterizadas por classificações fracas quando esses
espaços evidenciarem fronteiras esbatidas.
Nesta caracterização é possível considerar ainda as relações de poder e de controlo (regras
hierárquicas) entre os diferentes professores envolvidos na formação. A existência de
estatutos distintos entre os professores, o que traduz a legitimação de “vozes” distintas,
representa uma classificação forte, enquanto que a ausência de estatutos e, portanto, de
“vozes” distintas, representa uma classificação fraca. Quanto às regras hierárquicas, uma
relação de comunicação tendencialmente unidireccional corresponde a um enquadramento
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forte; pelo contrário, uma relação de comunicação aberta, interpessoal, corresponde a um
enquadramento fraco.
Os conceitos de classificação e de enquadramento da teoria de Bernstein, usados para se
proceder a uma análise criteriosa e pormenorizada do processo de formação dos
professores, foram complementados pelas ideias de Vygotsky (1978, 1992), de forma a
fundamentar as opções tomadas na concepção e concretização das modalidades de
formação. Por um lado, as ideias de Vygotsky sobre a importância da interacção social na
construção do conhecimento, apontam, em articulação com a teoria de Bernstein, para a
importância das relações sociológicas entre sujeitos (na presente investigação, entre
formador e professores em contextos de formação) e para a necessidade de se criarem
contextos sociais de formação favoráveis à construção desse conhecimento. Por outro lado,
o conceito de Vygotsky de zona de desenvolvimento proximal, quando aplicado à
aprendizagem científica e pedagógica dos professores (como em estudos realizados, por
exemplo, por Jones, Rua, & Carter, 1998; Manning, & Payne, 1993), sugere a importância
de se promover o desenvolvimento potencial dos professores como forma de obter níveis
mais elevados de desempenho. A possibilidade de combinar ideias das duas teorias foi já
referida por Hasan (1995), quando afirma:
“Precisamos de Vygotsky pelo modo criativo como integra a biogenética com a sociogenética.
Este aspecto da mente humana é insuficientemente mencionado na teoria de Bernstein. [...] Por
outro lado, precisamos de Bernstein pela meticulosa e profunda descrição do significado de
sociogénese. Nenhuma teoria da mente humana pode funcionar sem este elemento [...]”. (p. 194).
As ideias de Vygostky também ganham significado quando se perspectiva a formação de
professores segundo uma abordagem de investigação-acção. Com efeito, autores que
analisam esta abordagem (por exemplo, Schon, 1988; Crawley, 1998) advogam, entre
outros aspectos, que se devem promover relações humanas novas, nas quais o homem é
concebido como um ser em interacção permanente, num processo de crescimento e
conquista de maturidade, que se manifesta na criatividade, espírito crítico e capacidade de
integração em grupo. Defendem também que a investigação-acção deve ser entendida
como uma contínua e dialéctica experiência de aprendizagem em espiral na qual, por meio
da interacção, todos os sujeitos nela implicados descobrem, redescobrem, trocam pontos de
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vista, apendem e ensinam, porque investigam. Todas estas considerações vão no sentido de
dar significado ao papel da interacção social na formação e desenvolvimento profissional
dos professores.
DESENVOLVIMENTO DO PLANO DE FORMAÇÃO
O estudo envolveu quatro professoras de três escolas do 1º ciclo do ensino básico situadas
em duas cidades de província. As turmas (uma turma por professora) eram constituídas por
crianças de diferente género e classe social, que frequentavam o 4º ano de escolaridade. A
formação foi orientada por duas investigadoras, tendo cada uma delas trabalhado com duas
professoras. Embora se pretendesse desenvolver uma formação conjunta, de forma a
controlar as variáveis “formador” e “conteúdos e competências a desenvolver”, tal
pretensão não foi concretizada por impossibilidade das professoras. Contudo, a variável
“formador” acabou por ser em grande medida controlada dado que as formadoras, além de
terem percursos semelhantes na sua formação inicial e contínua1, conceberam em conjunto
o plano de formação (o que e o como da formação), que foi sendo sistematicamente
analisado e discutido entre elas.
No que diz respeito à metodologia de formação, adoptou-se a investigação-acção. Esta
opção teve por base duas razões principais. Primeiro, e tal como defendem vários autores
(Bourgeault, 1991; Lampert, 1997; Elliot, 1997; Harris, 1994; McIntyre, 1995; Newby,
1997), nega-se a separação artificial entre a teoria e a prática no âmbito profissional. Só a
partir dos problemas concretos é que o conhecimento académico teórico se pode tornar útil
e significativo para os professores. Segundo, está-se consciente de que a prática/o
desempenho do professor é uma complexa competência de carácter holístico. É um
processo que deve ser encarado como um todo, não se restringindo à soma das partes de
carácter cognitivo e afectivo, de conhecimentos, capacidades, teorias, crenças e atitudes.
Por outro lado, tal como referem Cohen e Manion (1995), o próprio processo de
investigação-acção é evolutivo, isto é, é caracterizado, ao longo do tempo, por relações de
natureza sociológica diferentes. Sabe-se que mudar práticas/desempenhos, conhecimentos,
atitudes dos professores são tarefas morosas, que exigem, por um lado, apoio e suporte
contínuos e, por outro lado flexibilidade e adaptação às novas necessidades e exigências.
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Seguindo uma metodologia de investigação-acção, o estudo envolveu diversas tarefas: (a)
concepção dos perfis teóricos da modalidade de formação a ser implementada; (b)
planeamento, organização e construção de actividades a usar na formação das professoras,
de acordo com os perfis teóricos delineados; (c) observação e registo escrito de situações
ocorridas durante a formação e sua análise posterior de acordo com o instrumento
construído para a caracterização da modalidade de formação; (d) observação e análise das
práticas pedagógicas implementadas pelas professoras e sua comparação com o perfil
teórico de prática pedagógica previamente delineada; (e) análise da evolução do
desempenho das professoras, em termos de aquisição das regras de reconhecimento e de
realização necessárias à implementação dessa prática pedagógica.
A implementação do plano de formação foi antecedida pela selecção dos temas/conteúdos a
explorar (o que da formação) e pela definição da modalidade de código pedagógico
subjacente ao contexto da formação (o como da formação). Em termos de temas/conteúdos,
a formação incluiu a aprendizagem de conteúdos e processos científicos e a aprendizagem
de conteúdos pedagógicos dos campos da epistemologia, psicologia e sociologia
(particularmente, a teoria de Bernstein). Pretendia-se desenvolver uma sólida formação
científica que valorizasse a aquisição de conteúdos científicos e o desenvolvimento de
competências relacionadas com os processos investigativos. Pretendia-se igualmente
desenvolver uma sólida formação pedagógica que valorizasse as vertentes sociológica e
psico-sociológica. Todos estes procedimentos foram objecto de discussão com as
professoras.
Como se referiu anteriormente, a definição da modalidade de código pedagógico
subjacente ao contexto da formação baseou-se no tipo de conceptualização usado para
definir as modalidades de prática pedagógica em sala de aula. Por um lado, estudos
anteriores sobre a relação entre a modalidade de formação e o desempenho dos professores
(Rocha, & Morais, 2000) e sobre a relação entre a prática pedagógica e a aprendizagem dos
alunos (Morais et al, 1993, 2000) revelaram a existência de um paralelismo entre a
modalidade de formação mais favorável ao desenvolvimento profissional dos professores e
a modalidade de prática pedagógica mais favorável ao desenvolvimento científico e sócioafectivo de crianças de diferentes grupos sociais. Como um dos objectivos da investigação
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era levar as professoras a desenvolver práticas com características favoráveis à
aprendizagem dos alunos, seria importante conduzir um processo de formação com
características paralelas, para que a transferência de conhecimentos, competências e
atitudes fosse facilitada. Por outro lado, o facto de se usar uma mesma estrutura conceptual
e metodológica na concepção e análise das modalidades de formação e de prática
pedagógica, permitiria que a actuação e a reflexão, pretendidas ao longo de todo o processo
de investigação-acção, ganhassem uma dimensão e significado mais abrangentes.
De acordo com estes fundamentos, traçou-se um perfil teórico de modalidade de formação
globalmente semelhante ao perfil de prática pedagógica a ser implementada pelas
professoras, isto é, um perfil contendo características sociológicas de uma prática
pedagógica mista.
Assim, contrariamente ao que é preconizado, na área da formação de professores, por
muitos defensores da investigação-acção, que tendem a valorizar modelos de formação de
classificações e enquadramentos fracos, adoptou-se um modelo em que, a par de relações
caracterizadas por classificações e enquadramentos fracos, haveria relações caracterizadas
por classificações e enquadramentos fortes. A opção por esta modalidade de formação
reflecte também a importância que se atribui, na investigação-acção, à teorização e à
construção, em conjunto com as professoras, de quadros conceptuais e linguagens comuns.
Uma verdadeira partilha de conhecimentos e uma reflexão conceptualmente fundamentada
das práticas requer, a nosso ver, uma comunicação alicerçada em quadros teóricos comuns.
A dificuldade de comunicação entre professores e investigadores tem sido referida por um
grande número de autores (por exemplo, Fullan, & Hargreaves, 1992; Fullan, 1994;
Broadfoot, 1992) e se, como afirma Nóvoa (1992), “É preciso investir positivamente os
saberes de que o professor é portador, trabalhando-os de um ponto de vista teórico e
conceptual”, então é crucial que os formadores comecem por partilhar saberes com os
professores para que, posteriormente, possam “falar” a mesma linguagem na exploração
dos diversos assuntos, temas e problemas.
O plano de formação decorreu ao longo de dois anos e envolveu duas fases, uma mais
estruturada e intensiva no primeiro ano, e outra mais flexível e prolongada no segundo ano.
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Na primeira fase de formação ocorreu também a pilotagem da prática pedagógica a ser
implementada pelas professoras e que consistiu na concretização, em sala de aula, de uma
unidade de ensino de ciências. Na segunda fase de formação, as professoras
implementaram, em duas unidades de ensino de ciências (Mudanças de estado e
Experiências com o ar), a prática pedagógica previamente pilotada. A primeira unidade de
ensino experimental teve lugar no início do ano de escolaridade e a segunda no final do
ano.
Os perfis teóricos da modalidade de código pedagógico que caracterizaram as primeira e
segunda fases da formação estão apresentados nas figuras 1 e 2 (ver à frente). As relações
de poder referem-se a uma escala de dois graus de classificação (C + e C -) e as relações de
controlo a uma escala de quatro graus de enquadramento (E ++, E +, E -, E - -).
As duas fases de formação distinguiram-se apenas no contexto instrucional, ao nível do
controlo sobre a selecção e sobre a sequência. Pretendia-se que, na segunda fase de
formação, as professoras tivessem um maior controlo sobre estas duas regras discursivas.
Esta opção teve por base o facto de se considerar que seria demagógico, numa primeira
fase, esperar que todas as professoras tivessem conhecimentos suficientes para intervirem
ao nível da macro-selecção e da macro-sequência, seleccionando temas/conteúdos,
científicos e pedagógicos, necessários a uma formação fundamentada em resultados
recentes da investigação educacional. Numa segunda fase, após um período em que já
haviam implementado, discutido e reflectido sobre as suas práticas na base de quadros
teóricos a que tiveram acesso, seria mais importante ir ao encontro das motivações,
interesses e necessidades particulares de cada professora e, nesse sentido, a selecção e a
sequência passariam a ser também controladas pelas professoras.
Atendendo aos perfis delineados, a modalidade de formação reunia as seguintes
características:
•
Em toda a formação, a formadora teria um estatuto superior ao das professoras, que lhe era
conferido pela sua posição académica e institucional e pelo facto de ser ela a definir as
características dos contextos instrucional e regulador da formação – Ci + nas relações de poder
formadora-professoras.
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•
Na primeira fase da formação, os temas, sub-temas, actividades e materiais a utilizar em cada
sessão seriam seleccionados pela formadora, que os exploraria segundo uma ordem
previamente determinada; contudo, as professoras teriam oportunidade de intervir, discutindo
as suas ideias, o que significaria terem algum controlo ao nível da micro-selecção e da microsequência. Numa escala de quatro graus, estas regras discursivas seriam caracterizadas por um
enquadramento muito forte (E
nível micro – Ei
+
++
) ao nível macro, mas por um enquadramento fraco (E -) ao
nas relações formadora-professoras quanto ao controlo na selecção e na
sequência.
•
Na segunda fase de formação, seria dado maior controlo às professoras na selecção dos temas,
sub-temas, actividades e materiais a utilizar em cada sessão e na ordem com que seriam
abordados, o que se traduziria num enfraquecimento do enquadramento relativamente a estas
regras -
Ei
-
nas relações formadora-professoras quanto ao controlo na selecção e na
sequência.
•
Durante toda a formação, a formadora respeitaria o ritmo de aprendizagem de cada professora,
não estabelecendo qualquer limite de tempo – Ei - - nas relações formadora-professoras quanto
ao controlo na ritmagem.
•
A formadora deixaria explícitos, em toda a formação, os critérios de avaliação; assim, tornaria
claros os conhecimentos a serem adquiridos, promovendo discussões e dando explicações
pormenorizadas, ilustradas e exemplificadas com base num processo de co-construção desses
conhecimentos com as professoras – Ei++ nas relações formadora-professoras quanto ao
controlo nos critérios de avaliação.
•
Ao longo de todas as sessões da formação, os temas em estudo seriam inter-relacionados e os
trabalhos e actividades envolveriam conhecimentos conceptualmente abrangentes – Ci
–
nas
relações intra-disciplinares.
•
Os conhecimentos das várias áreas do saber explorados nas diferentes sessões (sociologia,
psicologia, epistemologia, etc) seriam igualmente valorizados e inter-relacionados e articulados
durante a realização dos diversos trabalhos – Ci – nas relações inter-disciplinares.
•
Os conhecimentos téorico e prático que as professoras já possuíam seriam usados
sistematicamente no sentido de os relacionar e articular com o conhecimento teórico, científico
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e pedagógico, a ser explorado na formação – Ce
–
nas relações entre os conhecimentos da
formadora e os conhecimentos das professoras.
•
Durante a discussão de textos e actividades, e consequente processo de co-construção de
conhecimentos, estabelecer-se-ia uma relação de comunicação aberta entre a formadora e as
professoras – Ei - - nas relações formadora-professoras quanto às regras hierárquicas.
•
Todas as professoras teriam igual estatuto na relação pedagógica, esbatendo-se possíveis
hierarquias entre elas e todas teriam uma igual participação e intervenção, estabelecendo
relações de comunicação abertas entre si – Ci – nas relações de poder professora-professora e
Ei - - nas relações professora-professora quanto às regras hierárquicas.
•
Os espaços da formadora e das professoras estariam organizados de forma a não existirem
fronteiras entre eles, o que se traduziria na existência de um mesa de trabalho comum ou de
mesas iguais e juntas, na partilha de materiais e na igual mobilidade da formadora e professoras
pelos espaços disponíveis – Ci
–
nas relações entre o espaço da formadora e o espaço das
professoras e também entre os espaços das várias professoras.
CARACTERIZAÇÃO SOCIOLÓGICA DA MODALIDADE DE FORMAÇÃO
Instrumento de análise
O instrumento foi construído seguindo uma metodologia de investigação construtiva. Partindo
dos dados de observação empírica, fornecidos pelas situações reais do contexto de formação, e
mantendo uma relação dialéctica entre esses dados e as proposições teóricas derivadas do
quadro conceptual em que nos baseámos, foi possível construir e reformular indicadores para
cada uma das relações a analisar e dispôr de descritivos que traduzissem, para cada indicador,
situações distintas e permitissem fazer uma análise, o mais pormenorizada possível, do
contexto da formação. Criaram-se indicadores para cada uma das relações sociológicas
(sujeitos, discursos e espaços) em análise. Embora a observação conduzisse a um maior
número de indicadores, decidimos seleccionar aqueles que estavam mais presentes e que, ao
mesmo tempo, se revelavam mais apropriados para serem usados na análise das várias
relações. Com este critério, pretendia-se facilitar o processo posterior de análise e de
caracterização da modalidade de formação. Está-se consciente que o desenvolvimento e
selecção de intrumentos observacionais têm subjacentes pressupostos sobre a forma como
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ocorrem os processos de ensino-aprendizagem e como seleccionamos os aspectos a que iremos
dar atenção. Contudo, corrobora-se a opinião de Stodolsky (1990) quando afirma que:
“Os procedimentos não são neutros. Eles abrem ou restringem a nossa visão de ensino. [...] As
categorias de um sistema de observação focam a atenção em alguns aspectos da actividade instrucional
e excluem outras [...]. É melhor reconhecer explicitamente estas escolhas do que pensar que somos
objectivos, científicos ou neutros pelo facto de usarmos um procedimento observacional sistemático
[...]” (p. 175).
Indicam-se a seguir os indicadores presentes no instrumento, agrupados em função das relações
a que dizem respeito.
Relação formadora-professora, quanto às regras discursivas (selecção, sequência, ritmagem e critérios
de avaliação): Nos conteúdos a abordar; Nas actividades a realizar; Nos documentos a analisar; Na
apreciação das aulas realizadas pelas professoras (este apenas usado para os critérios de avaliação).
Relações intra-disciplinares e inter-disciplinares e relações entre conhecimentos da formadoraconhecimentos das professoras: Na exploração/discussão dos temas em estudo; Nas actividades a
realizar.
Relações formadora-professora e professora-professora, quanto às regras hierárquicas: Na relação de
comunicação.
Relações entre o espaço da formadora-espaço das professoras e entre os espaços das várias profesoras:
Organização dos espaços; Organização dos materiais (livros, material de laboratório, etc); Utilização dos
espaços durante a realização das actividades; Utilização dos materiais (livros, material de laboratório,
etc).
Uma vez definidos os indicadores, criou-se para cada um deles uma escala de classificação ou
de enquadramento cujos graus (dois ou quatro) traduzem diferentes comportamentos-tipo. As
escalas exprimem uma gradação de valores que foram tomados em termos relativos e não
absolutos.
De modo a mostrar como este instrumento foi utilizado na caracterização da modalidade de
formação apresenta-se extractos do instrumento2, alguns referentes ao contexto instrucional e
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outros ao contexto regulador. Cada extracto do instrumento é seguido por excertos de situações
reais ocorridas no contexto de formação das professoras com a indicação do grau de
classificação ou de enquadramento que lhes foi atribuído. Embora os excertos possam, por
vezes, ilustrar vários indicadores e/ou várias relações, eles devem ser entendidos no contexto
concreto que se está a evidenciar3.
Contexto Instrucional
Regra Discursiva: Selecção
INDICADOR
E++
E+
E-
E --
NOS CONTEÚDOS
A ABORDAR
A formadora indica
os conteúdos a serem abordados em
cada reunião
A formadora menciona os conteúdos
que considera prioritários, aceitando,
no entanto, sugestões das professoras
A formadora faz
uma lista de conteúdos susceptíveis de serem abordados, sem referir prioridades, e
pede às professoras que façam a
selecção
A formadora solicita às professoras que sugiram conteúdos a
abordar
Excertos
E++ No início da reunião, a formadora refere que, nas próximas sessões de trabalho, irão abordar vários
aspectos relacionados com os processos científicos e com competências a eles associadas como, por
exemplo. a observação, o planeamento experimental, a experimentação, o controlo de variáveis, a
formulação de problemas e hipóteses, a previsão... Começa, então, a introduzir o tema da primeira
sessão de trabalho sobre “a observação” [...]. (1a Fase, registo da investigadora)
E-
-
Vai iniciar-se o 2º ano do plano de formação. A formadora começa por dizer às professoras que
indiquem temas/assuntos/materiais/documentos que gostariam de explorar. A formadora continua
dizendo que as selecções das professoras poderão incidir sobre assuntos novos ou já explorados que
gostariam de ver clarificados ou aprofundados. As professoras dizem que vão pensar em
temas/assuntos e que informarão, depois, a formadora. (2a Fase, registo da investigadora)
Contexto Instrucional
Regra Discursiva: Sequência
INDICADOR
E++
E+
E-
E --
NAS ACTIVIDADES
A REALIZAR
A realização das
actividades segue uma ordem
rígida, determinada pela formadora
A realização das
actividades segue
uma ordem determinada pela formadora, mas essa
ordem pode ser
pontualmente alterada
A realização das
actividades segue
uma ordem planeada pelas professoras com a orientação da formadora
A realização das actividades segue uma
ordem planeada pelas professoras
14
Excertos
E++ As actividades e as questões são exploradas pela ordem prevista pela formadora. Com base num texto
previamente distribuído “Que ciência no 1º ciclo do ensino básico?”, as professoras respondem a
algumas questões, primeiro individualmente e, depois, em pequeno grupo. Posteriormente, realizam duas
actividades: identificar e observar a flutuação de objectos na água. Após a realização das actividades,
clarificam-se os conceitos envolvidos e discute-se a sua adequação aos alunos do 1º ciclo do ensino
básico. (1ª Fase, registo da investigadora)
E- As professoras, usando conceitos da teoria de Bernstein, caracterizam as relações presentes no contexto
de formação preenchendo, para o efeito, um quadro. Durante a discussão geral, as professoras intervém,
comentando e justificando vários aspectos da caracterização que fizeram. A formadora vai deixando as
professoras intervir à medida que estas o vão solicitando, mas vai orientando a ordem da discussão, de
modo a que se discutam primeiro as relações entre os espaços, depois as relações entre discursos e,
finalmente, as relações entre sujeitos. (1ª Fase, registo da investigadora)
Contexto Instrucional
Regra Discursiva: Ritmagem
INDICADOR
E++
E+
E-
E --
NOS DOCUMENTOS
A ANALISAR
O tempo previsto
para a análise dos
documentos é rigorosamente cumprido
A formadora dá um
tempo para a análise dos documentos, mas aceita ocasionalmente prolongamentos justificados
O tempo necessário à análise dos
documentos é determinado pelas
professoras, mas
a formadora pressiona-as no sentido de terminarem
o trabalho
Não é marcado tempo para a análise dos
documentos; o tempo
depende do ritmo das
professoras, não exercendo a formadora
qualquer pressão
Excertos
E++, E+, E – [Não ocorreram]
E - - As professoras ficaram de ler em casa o texto “Que ciência no 1ºciclo do ensino básico?”, respondendo a
algumas questões. Porém, antes de se iniciar a discussão, as professoras pedem mais algum tempo para
rever o texto e esclarecer alguns pontos, pedido a que a formadora acede. Então, analisam o texto, em
pequeno grupo e em grande grupo. Durante a discussão, apresentam dúvidas, discutem opiniões
divergentes, reflectem sobre a sua prática pedagógica, dão exemplos... A formadora, em nenhum
momento, acelerou o ritmo das actividades. (1ª Fase, registo da investigadora)
15
Contexto Instrucional
Regra Discursiva: Critérios de avaliação
INDICADOR
E++
E+
E-
E --
NOS CONTEÚDOS
A ABORDAR
As explicações/
discussões são muito pormenorizadas e ilustradas.
As professoras anotam todos os aspectos referidos
As explicações/
discussões são pormenorizadas e ilustradas; contudo, as
professoras apenas
anotam os aspectos
principais
As explicações/ discussões são pouco
pormenorizadas e
ilustradas e as professoras tomam algumas notas
As explicações/ discussões não são pormenorizadas nem ilustradas e as professoras não tomam qualquer nota
Excertos
E++
Uma das professoras tinha sentido muitas dificuldades em corrigir e classificar as questões do teste de
avaliação. As professoras e a formadora reunem-se, então, para analisar as questões do teste. A
discussão começa com a classificação de cada uma das questões em A (Aquisição do conhecimento) e
em U (Utilização do conhecimento). Seguidamente lêem-se as indicações que tinham sido dadas às
professoras sobre as respostas consideradas como completas e correctas para valerem a cotação
máxima. Discute-se, para várias questões do teste, a informação que é considerada como mais
relevante e menos relevante e a cotação que se poderia atribuir a cada uma de possíveis respostas dos
alunos. No final, a formadora distribui um texto sobre a problemática da avaliação para as professoras
sedimentarem e aprofundarem as ideias discutidas. (2ª Fase, registo da investigadora)
E - - A sessão de trabalho inicia-se com uma reflexão, a ser continuada nas próximas sessões, sobre a
problemática do sucesso/insucesso escolar. Antes de se iniciar o trabalho, as professoras leram um
texto “Código e classe social” que apresenta e relaciona vários conceitos da teoria de Bernstein (como,
por exemplo, os conceitos de código, regras de reconhecimento e regras de realização) que serviriam
de base à exploração e fundamentação sociológica de causas de situações, de sucesso/insucesso dos
alunos, presenciadas pelas professoras ao longo do seu percurso profissional. A discussão e exploração
da problemática do sucesso/insucesso escolar ocorre, contudo, sem uma clara referência aos conceitos
da teoria de Bernstein. As professoras não tomam quaisquer notas. (1ª Fase, registo da investigadora)
Contexto Instrucional
Relação entre discursos: Relações intra-disciplinares
INDICADOR
C+
C-
NA EXPLORAÇÃO/
DISCUSSÃO DOS TEMAS
EM ESTUDO
Os temas são tratados isoladamente
e de um modo independente
Os temas são tratados de um modo
inter-ligado
Excertos
C+
C-
[Não ocorreram]
Para tratar o tema da sessão, que tinha como objectivo levar as professoras a ampliar a sua análise
sobre as causas do sucesso/insucesso escolar, são introduzidos novos conceitos, como os conceitos de
orientação específica de orientação e regras de reconhecimento e de realização. Contudo, durante a
discussão, recorre-se com frequência a outros conceitos – como classificação, enquadramento,
16
exigência conceptual do professor, ciência, competências cognitivas simples, competências cognitivas
complexas – estudados em sessões de trabalho anteriores. (1ª Fase, registo da investigadora)
Contexto Instrucional
Relação entre discursos: Relações inter-disciplinares
INDICADOR
C+
C-
NAS ACTIVIDADES
A REALIZAR
As actividades envolvem apenas
conhecimentos de uma área específica do saber
As actividades envolvem a articulação de conhecimentos de diferentes áreas do saber
Excertos
C+
C-
[Não ocorreram]
As professoras analisam programas e manuais escolares de forma a aplicar as ideias desenvolvidas ao
longo das várias sessões de trabalho e a alargar a sua visão sobre os diversos campos/domínios do
conhecimento (psicologia, sociologia, epistemologia). Para isso, usam um instrumento de análise de
programas e manuais escolares que envolve conhecimentos sobre a construção da ciência (história,
sociologia, psicologia e filosofia) e sobre a dimensão sociológica da aprendizagem (relação entre
discursos e entre sujeitos. (1ª Fase, registo da investigadora)
Contexto Instrucional
Relação entre discursos: Conhecimentos da formadora - Conhecimentos das professoras
INDICADOR
C+
C-
NA EXPLORAÇÃO/
DISCUSSÃO DOS TEMAS
EM ESTUDO
Não há relação entre o conhecimento prático das professoras e os
novos conhecimentos a serem introduzidos
O conhecimento prático das professoras é frequentemente relacionado com os novos conhecimentos
a serem introduzidos
Excertos
C+
C-
[Não ocorreram]
A formadora começa a sessão de trabalho pedindo, a cada uma das professoras, para reflectir sobre o
ensino das ciências que tem desenvolvido ao longo da sua actividade profissional e dando a seguinte
sugestão: “Refira os aspectos que tem valorizado, e como os tem valorizado, no ensino das ciências;
porque razão considera, ou não, importante ensinar ciências; qual o estatuto que dá às ciências quando
as compara com outras áreas do saber como, por exemplo, a língua protuguesa e a matemática; em que
medida a sua acção pedagógica tem contribuído para a promoção da aprendizagem de conhecimentos
científicos por crianças de grupos sociais distintos” [...] (1ª Fase, registo da investigadora)
17
Contexto Regulador
Regras Hierárquicas: Formadora– Professoras
INDICADOR
E++
E+
E-
E --
NA RELAÇÃO
DE COMUNICAÇÃO
Privilegia-se uma
relação vertical e
unidireccional de
comunicação
Privilegia-se uma relação vertical e unidireccional de comunicação, com uma interacção pontual entre formadora e professoras
Privilegia-se uma interacção entre a formadora e as professoras mas a relação
vertical também ocorre
Privilegia-se uma interacção permanente entre a formadora e as professoras
Excertos
E++ As professoras e a formadora analisam a problemática do sucesso/insucesso escolar. A formadora
apresenta um acetato com três gráficos. Começa a descrever os dados fornecidos pelo primeiro gráfico.
Em seguida, descreve os dados apresentados no segundo gráfico e, por fim, descreve a informação que é
fornecida pelo terceiro gráfico. As professoras seguem atentamente a descrição da formadora. (1a Fase,
registo da investigadora)
--
E As professoras estão a realizar as experiências que irão implementar na sala de aula quando for abordado
o estudo do ar. À medida que vão realizando as actividades conversam entre si e com a formadora,
comentando os resultados: “a vela ainda está muito alta”; “com o balão mais fino é capaz de resultar
melhor”; “é difícil trabalhar com a mola - não sei se eles [os alunos] a conseguirão abrir”. As professoras
também colocam questões: “por que funciona melhor com uns funis do que outros?”; “continuam a cair
gotas de água - estará bem vedado?”; “os balões de borracha não se estragam com o aquecimento do
matraz?”. Também pedem mais material à formadora: “esta faca não corta muito bem - não há outra?”;
“há tripés mais baixos? - é capaz de resultar melhor!”. (2a Fase, registo da investigadora)
Contexto Regulador
Regras Hierárquicas: Professora – Professora
INDICADOR
E++
E+
E-
E --
NA RELAÇÃO
DE COMUNICAÇÃO
Uma /algumas
professoras polariza(m) e domina(m) o discurso
Todas as professoras “podem” intervir
mas apenas a intervenção de uma/algumas é valorizada
Todas as professoras intervêm mas a
intervenção de uma/
algumas é mais frequente
Há uma comunicação aberta e intensa
entre as várias professoras
Excertos
E++, E+, E- - [Não ocorreram]
-
E Duas das professoras envolvidas na formação participam sistematicamente nas discussões, mas as
intervenções no sentido da professora Inácia → professora Rita são um pouco mais frequentes do que no
sentido inverso. (1a Fase, registo da investigadora)
18
Contexto Regulador
Relação entre espaços: Espaço da formadora – Espaço das professoras
INDICADOR
C+
C-
ORGANIZAÇÃO DOS
ESPAÇOS
Fronteiras nítidas entre os espaços
da formadora e das professoras,
traduzida pela existência de uma
mesa de trabalho da formadora
diferente e separada das mesas das
professoras
Fronteiras esbatidas entre os espaços da formadora e das professoras, traduzida pela existência de uma mesa de trabalho da formadora
semelhante e próxima das mesas
das professoras
[Apenas ocorreram situações C
-
].
Contexto Regulador
Relação entre espaços: Professora - Professora
INDICADOR
C+
C-
ORGANIZAÇÃO DOS MATERIAIS (LIVROS, MATERIAL DE LABORATÓRIO,
ETC)
Cada professora tem os materiais
no seu próprio espaço
As professoras têm os seus materiais próximos dos materiais das
colegas
[Apenas ocorreram situações C
-
]
Modalidades de formação implementadas
Para se caracterizar a modalidade de formação que realmente ocorreu durante o processo de
investigação-acção e para se apreciar a relação entre o tipo de formação recebida e a
evolução no desempenho das professoras, o instrumento foi utilizado em dois momentos, o
primeiro no final do primeiro ano de formação e o segundo no final do segundo ano de
formação. Esta caracterização foi feita com base nos registos de observação de cada uma
das formadoras, no decurso de todo o processo de formação, e a sua identificação e
classificação, com base no instrumento construído, foram objecto de validação por duas
outras investigadoras. Os dados obtidos a partir das opiniões das professoras e da
caracterização do contexto de formação, que elas fizeram numa das sessões de trabalho
com base no mesmo instrumento de análise4, foram também usados para validar a
caracterização previamente feita pelas investigadoras.
Com base nestes dados, foi possível caracterizar os processos de formação das professoras,
tal como realmente ocorreram. As figuras 1 e 2 mostram, para cada conjunto de duas
19
professoras (Rita-Inácia e Dulce-Céu5), e para as várias relações sociológicas analisadas, as
características reais dos contextos de formação, nas suas dimensões instrucional e
reguladora. Ambas as figuras mostram também a comparação que se pode estabelecer entre
as modalidades de formação efectivamente implementadas e os perfis teóricos previamente
definidos.
RELAÇÃO ENTRE SUJEITOS
RELAÇÃO ENTRE DISCURSOS
(Formadora-Professoras)
(C E)
Relações
de poder
(C)
Relações de controlo (Ei)-Regras discursivas
Conhecimento da formadoraconhecimento das professoras
Ritmagem
Critérios
(C)
(C)
(C)
C+
E+
E+
E --
E++
C-
C-
C-
Rita - Inácia
C+
E+
E+
E --
E++
C-
C-
C-
Dulce - Céu
C
MODELO TEÓRICO
C
Rita - Inácia
C
Dulce - Céu
C
2ª fase
Selecção Sequência
Conhecimento
inter-disciplinar
MODELO TEÓRICO
1ª fase
(C)
Conhecimento
Intra-disciplinar
+
E
+
E
+
E
--
E
+
E
-
E
+
E /E
+
-
E /E
+
+
E /E
+
-
E /E
+
++
C
-
C
-
C
-
-
E
--
E
++
C
-
C
-
C
-
-
E
--
E
++
C
-
C
-
C
-
-
E
--
E
++
C
-
C
-
C
-
Figura 1. Características reais do contexto instrucional da modalidade de formação (primeira e segunda
fases) e sua comparação com o perfil teórico previamente planeado.
RELAÇÃO ENTRE SUJEITOS
RELAÇÃO ENTRE ESPAÇOS
(C)
Formadora-Professora
Professora-Professora
(C E)
(C E)
Relações de
Relações Relações de controlo Relações
(E)
controlo (E)
de poder
de poder
(C)
Regras hierárquicas
(C)
Regras hierárquicas
1ª fase
MODELO TEÓRICO
C
+
Rita -Inácia
C
+
Dulce -Céu
C
+
C
2ª fase
MODELO TEÓRICO
Rita -Inácia
Dulce -Céu
E
--
C
-
E
--
C
+
E
--
C
-
+
E
--
C
-
C
+
E
--
C
+
C
+
E
--
C
-
Espaços formadora- Espaços professoraprofessora
professora
C
-
C
-
-
C
-
C
-
E
--
C
-
C
-
E
--
C
-
C
-
-
C
-
C
-
--
C
-
C
-
E
E
E
E
--
Figura 2. Características reais do contexto regulador da modalidade de formação (primeira e segunda
fases) e sua comparação com o perfil teórico previamente planeado.
20
Relativamente ao contexto instrucional (figura 1), observou-se que, na primeira fase, a
formação recebida por todas as professoras correspondeu ao que tinha sido planeado.
Contudo, na segunda fase de formação, houve um ligeiro desvio em relação ao perfil
teórico, que se traduziu no facto de a selecção e a sequência não terem adquirido valores de
enquadramento tão fracos quanto se desejava. Apesar da insistência das formadoras para
que as professoras escolhessem assuntos, actividades, materiais e identificassem problemas
a serem explorados na segunda fase da formação, constatou-se uma certa dificuldade a este
nível. Também, relativamente à sequência, as professoras revelaram alguma dificuldade na
determinação do rumo a dar à formação. Estes aspectos contradizem, em certa medida,
algumas correntes da investigação-acção que vêem o professor como um profissional
prático, totalmente autónomo, protagonista das suas próprias investigações, controlando as
suas opções, determinando de forma eficiente as suas próprias escolhas e todo o seu
percurso de formação e dispensando o apoio de pessoas exteriores. De facto, embora as
linhas de investigação-acção mais correntes preconizem valores tendencialmente fracos de
enquadramento, parece-nos que, pelo menos nas etapas iniciais, e no que respeita a alguns
aspectos da selecção e da sequência, é de toda a conveniência que esses valores sejam
relativamente fortes evitando longos períodos de procura, indecisão, tentativa-e-erro que
são normalmente desencorajadores do desenvolvimento profissional dos professores. Os
nossos dados parecem, assim, valorizar o papel do formador, particularmente numa fase
inicial da investigação-acção. Este aspecto vem de encontro ao desejo manifestado pelas
professoras que, antes de se dar início ao projecto, consideraram importante que fosse a
formadora a seleccionar os assuntos a serem explorados.
Relativamente ao contexto regulador (figura 2), observou-se, em geral, uma correspondência
com o perfil teórico. Contudo, no caso da formação das professoras Rita e Inácia, as
relações de poder e as relações de controlo quanto às regras hierárquicas revelaram-se
diferentes do pretendido em qualquer das fases de formação. Este desvio reflecte o facto de
se ter assistido a uma hierarquia que, embora não sendo muito explícita, esteve presente na
interacção entre estas duas professoras. A professora Inácia, pelo tipo de intervenções que
fazia, pelos conhecimentos que revelava e pela frequência com que intervinha acabou por
assumir um estatuto um pouco superior ao da professora Rita.
21
Não se encontrou na literatura, sobre a investigação-acção, qualquer referência à
possibilidade de os vários professores intervenientes em processos de formação
apresentarem estatutos diferentes. Contudo, ao tornar evidente esta possibilidade, o
presente estudo poderá dar um contributo para se alcançar uma maior compreensão sobre a
importância das relações sociais, presentes em contextos de formação, no desempenho e
desenvolvimento profissional dos professores. Pensamos que o diferente estatuto assumido
pelas professoras Rita e Inácia foi, pelo menos parcialmente, responsável pelo menor
posicionamento, pelas diposições sócio-afectivas menos positivas e pela maior dificuldade
revelada pela professora Rita na concretização da prática pedagógica com as características
previstas pelo respectivo modelo teórico (Pires, 2001).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um dos objectivos do estudo, parcialmente descrito neste artigo, foi explorar, dentro de
uma perspectiva de investigação-acção, a importância das características sociológicas que
caracterizam os contextos de formação no desenvolvimento profissional de professoras
do 1º ciclo do ensino básico. Este artigo centrou-se na descrição do plano de formação e,
em particular, na apresentação dos
procedimentos e fundamentos conceptuais e
metodológicos que guiaram a construção e a aplicação de um instrumento de análise e a
caracterização dos contextos de formação.
Em qualquer plano de formação, podemos pensar em múltiplas variações nas relações de
poder (classificação) e nas relações de controlo (enquadramento) presentes no contexto
de formação, que dão ao professor um maior ou menor grau de controlo sobre o seu
desenvolvimento profissional. A modalidade de formação que implementámos representa
uma das muitas combinações possíveis das várias características dos contextos de
formação e reflecte uma modalidade de prática pedagógica mista com características
paralelas às características das práticas pedagógicas que haviam revelado ser favoráveis à
aprendizagem de alunos socialmente diferenciados. Assim, embora predominantemente
caracterizada por valores globais de enquadramento fraco nas relações formadoraprofessora quanto às regras discursivas e regras hierárquicas, e por valores de
22
classificação fraca nas relações entre discursos e entre espaços, o contexto de formação
foi caracterizado por um enquadramento muito forte ao nível dos critérios de avaliação e
por um enquadramento forte ao nível da selecção e da sequência. Uma modalidade de
formação com estas características revelou-se favorável aos desempenhos escolares das
professoras, sugerindo os resultados que o paralelismo entre a modalidade de formação
recebida e a modalidade de prática pedagógica a implementar na sala de aula teria
facilitado a transferência de conhecimentos do contexto de formação para o contexto de
aplicação. De facto, verificou-se que esta modalidade de formação permitiu que as
professoras tivessem evoluído, na aquisição das regras de reconhecimento e de
realização, para implementarem uma prática pedagógica favorável à aprendizagem das
suas crianças6. Mesmo as professoras que não adquiriram as regras de realização activa,
para todas as características da prática pedagógica, mostraram evolução desta realização
para algumas das características e também evolução ao nível das regras de
reconhecimento e de realização passiva. Este aspecto será objecto de análise num artigo
posterior.
Estes resultados permitem questionar e reflectir sobre algumas das ideias defendidas no
âmbito da formação de professores segundo processos de investigação-acção. As
correntes de investigação-acção tendem, com frequência (ver, por exemplo, Cole, 1989;
Bogdan & Biklen, 1994; Crawley, 1998), a defender que o poder e o controlo sejam
igualmente partilhados por todos os intervenientes em todas as fases do processo de
formação o que, em termos da teoria de Bernstein, significaria um contexto de formação
caracterizado por classificações e enquadramentos fracos. Porém, os resultados que
obtivemos sugerem que esta ideia necessita ser repensada, requerendo uma análise mais
precisa e aprofundada. O recurso ao instrumento de análise que construímos, com base
em conceitos da teoria de Bernstein, permitiu precisar com muito pormenor e rigor as
relações sociológicas que caracterizam o contexto de formação.
Contrariamente ao que algumas correntes da investigação-acção defendem, a relação de
poder formador-professor está sempre presente e, por isso, a classificação é forte. Com
efeito, formadores e professores desempenham papéis sociais diferentes, pertencem a
instituições distintas, têm conhecimentos distintos, e estes aspectos são inerentes ao
23
contexto de formação. É a natureza participativa, colaborativa e reflexiva que caracteriza
a investigação-acção, e que corresponde a uma interacção formador-professor
caracterizada por relações de comunicação abertas (enquadamento fraco nas relações de
controlo) que tende a mascarar as hierarquias existentes, tornando as relações de poder
implícitas ou invisíveis. Uma análise dos processos de investigação-acção que considere
os conceitos de classificação e de enquadramento da teoria de Bernstein vem, assim,
chamar a atenção para a importância crucial da distinção que é necessário fazer entre
poder e controlo.
Um outro aspecto que salientamos, e que já anteriormente se referiu, é que não há, na
literatura sobre a investigação-acção, qualquer referência à possibilidade de os diversos
professores intervenientes apresentarem estatutos diferentes. Os resultados do presente
estudo, ao sugerirem esta possibilidade, parecem de grande relevância pois mostram
como o desenvolvimento pessoal e profissional dos professores com menor estatuto pode
ser negativamente influenciado por este facto (Afonso, 2002).
Um aspecto da investigação-acção que, neste estudo, se revelou fundamental na formação
das professoras, em termos do seu desempenho em sala de aula, foi o facto de se ter
baseado numa modalidade de prática pedagógica mista. A interacção entre os diferentes
intervenientes, numa lógica de co-construção de conhecimentos, conjugada com uma
explicitação clara do texto a ser apreendido (uma prática pedagógica favorável à
aprendizagem de todos as crianças) mostrou ter um potencial inovador e facilitador no
desempenho das professoras. Este aspecto contradiz também a ideia, defendida por
muitos adeptos da investigação-acção, de que os professores devem ter controlo sobre
todos os aspectos da sua formação. É provável que esta ideia derive do facto de não se
considerar, no contexto de investigação-acção, a distinção entre as suas componentes
instrucional e reguladora, o que conduz a uma falta de clarificação da diferença que pode
existir, nas relações formador-professor, entre as regras discursivas e as regras
hierárquicas. Se um enfraquecimento do enquadramento ao nível das regras hierárquicas
(discutir e confrontar ideias, dar opiniões, etc) parece ser claramente favorável ao
desempenho dos professores, um enfraquecimento do enquadramento ao nível da regra
discursiva critérios de avaliação, e mesmo das regras discursivas selecção e sequência
24
(pelo menos, ao macro-nível), pode levar os professores a não perceberem qual é o texto
legítimo a ser produzido, dificultando a aquisição da orientação específica de codificação
para esse texto.
A conclusão deste estudo de que, nalguns aspectos da formação (por exemplo, na
ritmagem e nas regras hierárquicas), o controlo deve estar centrado no professor e que,
noutros aspectos (por exemplo, na macro-selecção, na macro-sequência e nos critérios de
avaliação), esse controlo deve estar centrado no formador, vem igualmente salientar a
importância de se proceder a uma análise pormenorizada das múltiplas relações de
controlo que caracterizam a interacção formador-professor em processos de investigaçãoacção.
Ao apresentar e descrever um modelo de análise da formação de professores orientado
pela teoria de Bernstein, o presente estudo poderá contribuir para uma reflexão
teoricamente fundamentada sobre o significado da investigação-acção em processos de
formação e desenvolvimento profissional de professores. De um ponto de vista da
investigação educacional, pensamos que o instrumento de análise da modalidade de
formação de professores contém potencialidades conceptuais e metodológicas cuja
abrangência permite a sua aplicação noutros contextos de formação. Ele baseou-se
noutros instrumentos construídos para analisar práticas pedagógicas em sala de aula, a
vários níveis de escolaridade, e para analisar o contexto de formação de professores e este
facto não só vem salientar o valor de uma metodologia de investigação baseada numa
constante dialéctica entre o teórico e o empírico, como vem reforçar o enorme poder
conceptual, de aplicabilidade e de transferência da teoria em que toda a nossa
investigação se tem baseado. Contudo, tal como sempre foi defendido por Bernstein, é
crucial o desenvolvimento de mais estudos empíricos, para que a evolução da sua teoria
ocorra no sentido de alcançar maior poder de descrição, maior clarificação conceptual,
maior capacidade de generalização e maior precisão, ao nível de uma análise
pormenorizada das situações educacionais. Como Bernstein afirmou (Bernstein, &
Solomon, 1999), “[...] A teoria, para seu próprio bem, está crucialmente dependente da
investigação” (p. 277).
25
Notas
1. Na sua formação inicial, ambas as formadoras tinham concluído, na mesma universidade, o mesmo
curso, tinham também concluído noutra, mas mesma, universidade, o mesmo curso de mestrado e na sua
tese de dissertação ambas tinham usado a teoria de Bernstein como quadro conceptual de referência na
abordagem de questões relacionadas com a aprendizagem científica. Ambas são professoras de Escolas
Superiores de Educação.
2. O instrumento completo está disponível em Afonso (2002).
3. Por exemplo, quando se apresenta um excerto que ilustre uma situação correspondente à regra discursiva
selecção, significa que nesse momento se está a analisar esse aspecto, mesmo que esse excerto possa ser
também analisado na perspectiva de outra regra.
4. A título de exemplo, transcrevem-se opiniões das professoras que ilustram os valores atribuídos a algumas
das relações analisadas, corroborando a caracterização feita pelas investigadoras.
“Sim, acho que tivemos o tempo que quisemos... no fundo, o ritmo foi nosso.”
Ritmagem - Professora Rita, 1ª Fase, registo da investigadora.
“Ai, acho que ficou bem claro o que pretendia em cada sessão... na observação...no rigor científico... então e
na classificação das folhas não ficou bem claro o que queria?... Se ficou!”
Critérios de avaliação - Professora Inácia, 1ª Fase, registo da investigadora.
“Estamos sempre a voltar atrás…ainda agora o fizemos…aliás é o que temos estado a fazer! Por exemplo
agora…estivemos sempre a voltar atrás…quando falámos da exigência conceptual dos professores também
relacionámos com a própria exigência que o professor quer, por exemplo, com a planificação e execução de
experiências…não é “pôr umas gotinhas”…não é “observar qualquer coisa.”
Relações intra-disciplinares - Professoras Inácia e Rita, 1ª Fase, registo da investigadora.
“Na análise das competências a serem desenvolvidas pelas crianças no contexto da aprendizagem científica,
são discutidos aspectos relacionados com a psicologia (quais as competências de maior ou menor grau de
abstracção? Crianças ainda no estádio concreto serão capazes de raciocínios de nível mais elevado?), com a
sociologia (as crianças dos grupos sociais mais baixos serão capazes de atingir objectivos de nível elevado?
E as crianças dos grupos sociais mais elevados? Porquê? Quais as modalidades de prática pedagógica
familiar e escolar mais favoráveis para que as crianças sejam capazes de atingir objectivos de maior nível
de abstracção?), com os processos e conteúdos científicos (classificação das competências e conceitos
envolvidos em algumas perguntas que surgiram nas fichas de trabalho da primeira unidade de ensino
experimental)”.
Relações inter-disciplinares - 2ª Fase, registo da investigadora.
“Foram dados muitos exemplos, em todas as reuniões trouxemos sempre exemplos…quando se falou daquele
aluno com dificuldades em memorizar para a peça de teatro…aqueles estagiários que chegam lá à sala de
aula e aceitam tudo o que os alunos dizem, não reformulam nem acrescentam nada e dão o assunto como
terminado [...]”
Relação entre os conhecimentos da formadora e os conhecimentos das professoras - Professora Inácia, 1ª
Fase, registo da investigadora.
Investigadora Professora Investigadora Professora -
[...] Porque é que na relação [...] entre as duas professoras e a formadora, indicou um
enquadramento fraco? Porquê?
Eu acho que nos entendemos muito bem...cada uma expôs...
Houve um entendimento...sim..., e como é que foi essa relação de comunicação?
Muito aberta.
26
Investigadora -
Acha que predominou, ou não, uma relação vertical uni-direccional, ou foi uma relação
aberta, de partilha de razões? [...]
Professora -
Mais...mais de partilha sim.
Regras hierárquicas formadora-professora - Professora Dulce, 2ª Fase, entrevista.
A investigadora Laurinda, numa das entrevistas que fez à professora Dulce, perguntou como classificava a
relação entre os espaços dos vários intervenientes no processo de formação.
Professora Não havia isolamento, como não há agora. Estamos ao mesmo nível, foi sempre assim [...]
Investigadora - Os materiais também eram utilizados por uns e por outros?
Professora Exacto.
Relação entre os espaços da formadora e das professoras - Professora Dulce, 2ª Fase, entrevista.
“Também é fraca [a classificação], temos exactamente o mesmo espaço uns dos outros…até a mesa é a
mesma!”
Relação entre os espaços das professoras - Professora Inácia, 1ª Fase, registo da investigadora.
“Penso que sabe mais do que eu, eu só sei ser professora…sabe concerteza muito mais do que eu…até pelo
seu próprio trabalho na ESE”
Relação de poder formadora-professoras - Professora Rita, 1ª Fase, registo da investigadora.
5. Os nomes das professoras são fictícios.
6. Como foi verificado noutro estudo, também parte da investigação em que o presente estudo se insere
(Pires, 2001), sempre que a prática pedagógica das professoras se aproximou do perfil teórico, melhorou
a aprendizagem das crianças.
AGRADECIMENTOS
As autoras agradecem à Fundação Calouste Gulbenkian e ao Instituto de Inovação Educacional o apoio
financeiro que tornou possível a investigação.
27
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30
Contextos de formação de professores
Estudo de características sociológicas específicas
Resumo
O artigo foca-se na formação contínua de professores, centrando-se no meso nível de
análise do modelo de Bernstein sobre a produção e reprodução do discurso pedagógico.
Um dos objectivos do estudo, parcialmente descrito neste artigo, era explorar, numa
perspectiva de investigação-acção, a importância das características sociológicas dos
contextos de formação no desenvolvimento profissional de professores do 1º ciclo do
ensino básico. Este artigo centra-se na descrição do plano de formação, apresentando os
procedimentos e os fundamentos conceptuais e metodológicos que orientaram a
construção e aplicação de um instrumento de análise e a caracterização de modalidades
de formação de professores.
O artigo discute razões subjacentes à modalidade de formação seguida, em termos do
desenvolvimento profissional dos professores e da aprendizagem das crianças decorrente
desse desenvolvimento.
Palavras-chave: Formação contínua de professores; Investigação-acção; Características
sociológicas.
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Teacher training contexts
Study of specific sociological characteristics
Abstract
The paper focus on in-service teacher training and is centred on the meso level of Bernstein’s
model of production and reproduction of pedagogic discourse.
One of the aims of the study, partially described in this paper, was to explore, within an action
research perspective, the importance of the sociological characteristics of the training contexts
to the professional development of primary school teachers. This paper is centred on the
description of the plan of teacher training, particularly the presenting the procedures and
conceptual and methodological fundaments, which guided the construction and application of
an instrument of analysis, and the characterisation of teacher training modalities.
The paper discusses reasons for the pedagogy of teacher training followed, in terms of
teachers’ professional development and of children’s learning this development originate.
Key-words: In-service teacher training; Action-research; Sociological characteristics.
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