nova competência da justiça do trabalho - Anamatra

Transcrição

nova competência da justiça do trabalho - Anamatra
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
NOVA COMPETÊNCIA DA
JUSTIÇA DO TRABALHO
2ª tiragem
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NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
1ª edição — janeiro, 2005
1ª edição — 2ª tiragem — março, 2005
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
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Grijalbo Fernandes Coutinho
Marcos Neves Fava
coordenadores
NOVA COMPETÊNCIA DA
JUSTIÇA DO TRABALHO
2ª tiragem
R
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NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Nova competência da justiça do trabalho /
Grijalbo Fernandes Coutinho, Marcos Neves Fava,
coordenadores. — São Paulo: LTr, 2005.
Vários autores
ISBN 85-361-0658-1
1. Competência (Justiça do trabalho) — Brasil
2. Justiça do trabalho — Brasil I. Coutinho,
Grijalbo Fernandes. II. Fava, Marcos Neves.
05-0153
CDU-347.98:331(81)
Índice para catálogo sistemático:
1. Brasil: Competência: Justiça do trabalho:
Direito 347.98:331(81)
Produção Gráfica e Editoração Eletrônica: IMOS LASER
Capa: ROGERIO MANSINI
Impressão: BOOK
(Cód. 3093.2)
© Todos os direitos reservados
R
EDITORA LTDA.
Rua Apa, 165 — CEP 01201-904 — Fone (11) 3826-2788 — Fax (11) 3826-9180
São Paulo, SP — Brasil — www.ltr.com.br
Março, 2005
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
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Este livro é dedicado à magistratura do trabalho brasileira,
com a certeza de que, preparada e sensível,
abraçará competentemente as
alterações constitucionais da Emenda n. 45.
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NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
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Colaboradores
Alípio Roberto Figueiredo Cara — Juiz de Direito no Estado de São Paulo.
Coordenador das bases de dados do Jurid.
Amauri Mascaro Nascimento — Advogado em São Paulo. Professor aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Cláudio Armando Couce de Menezes — Juiz do Tribunal Regional do Trabalho
da 17ª Região.
Cláudio Mascarenhas Brandão — Juiz do Tribunal Regional do Trabalho da
5ª Região/BA. Mestrando em Direito pela UFBA. Professor de Direito Processual do Trabalho da UNIFACS — Salvador/BA. Professor de Direito
Empresarial da FTE — Salvador/BA.
Edilton Meireles — Juiz do Trabalho da 23ª Vara do Trabalho/SSa/Ba. Mestre
e Doutor em Direito (PUC/SP).
Francisco Rossal de Araújo — Juiz do Trabalho. Mestre em Direito
Público (UFRGS). Doutorando em Direito do Trabalho (Universidade
Pompeu Fabra — Barcelona). Professor Universitário — graduação e
pós-graduação. Pesquisador do CETRA — Centro de Estudos do Trabalho (POA).
Grijalbo Fernandes Coutinho — Juiz do Trabalho em Brasília-DF. Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho —
ANAMATRA.
João Oreste Dalazen — Ministro do Tribunal Superior do Trabalho. Professor Assistente da Universidade de Brasília (UNB).
Jorge Luiz Souto Maior — Juiz do Trabalho, titular da 3ª Vara de Jundiaí/
SP. Professor livre-docente de Direito do Trabalho da Universidade de São
Paulo (USP).
José Affonso Dallegrave Neto — Advogado. Mestre e Doutor em Direito
pela UFPR. Professor da APEJ e da FIC. Professor convidado da Faculdade
de Direito de Lisboa. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e da
Academia Nacional de Direito do Trabalho.
José Eduardo de Resende Chaves Júnior — Juiz do Trabalho, titular da 21ª
Vara de Belo Horizonte. Doutorando em Direitos Fundamentais, pela Universidad Carlos III de Madrid.
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NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
José Hortêncio Ribeiro Júnior — Juiz do Trabalho Substituto do Eg. Tribunal
Regional do Trabalho da 23ª Região. Presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 23ª Região — AMATRA XXIII. Especialista em
Direito Processual do Trabalho e Direito Processual Civil. Vice-diretor da Escola
Judicial do TRT da 23ª Região. Coordenador e Professor do Curso Preparatório
à Magistratura do Trabalho de Mato Grosso. Professor de Direito Processual do
Trabalho no IELF — SP e da Escola Superior de Direito de Mato Grosso.
Júlio César Bebber — Juiz do Trabalho Titular da 2ª Vara do Trabalho
de Campo Grande — MS. Professor de Direito Processual do Trabalho da
Escola da Magistratura do Trabalho de Mato Grosso do Sul. Mestre em Direito
do Trabalho.
Leonardo Dias Borges — Juiz Titular da 18ª Vara do Trabalho do Rio de
Janeiro.
Márcio Túlio Viana — Juiz do Trabalho aposentado. Professor de Direito do
Trabalho da UFMG.
Marcos Neves Fava — Juiz do Trabalho Substituto na 2ª Região. Mestrando
em Direito do Trabalho pela USP. Professor de Processo do Trabalho na
Faculdade de Direito da Fundação Armando Álvares Penteado — FAAP.
Diretor de Cultura e Ensino da ANAMATRA — Associação Nacional dos
Magistrados da Justiça do Trabalho, no biênio 2003/2005.
Mauricio Godinho Delgado — Juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª
Região (Minas Gerais). Professor de Direito do Trabalho da Faculdade de
Direito da PUC — Minas (Doutorado, Mestrado, Especialização e Graduação).
Paulo Luiz Schmidt — Juiz do Trabalho no RS. Vice-presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho — ANAMATRA (2003/
2005). Presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da
4ª Região — AMATRA IV (2004/2006).
Reginaldo Melhado — Juiz do Trabalho no Paraná. Professor. Doutor em
Filosofia do Direito pela Universidade de Barcelona.
Sandra Lia Simón — Procuradora-Geral do Trabalho.
Saulo Tarcísio de Carvalho Fontes — Mestre em Direito pela UFPE. Professor da Escola Superior da Magistratura do Trabalho do Maranhão. Juiz do
Trabalho Titular da Vara de Chapadinha-MA.
Vicente José Malheiros da Fonseca — Juiz Togado de Carreira do Tribunal
Regional do Trabalho da 8ª Região (Belém — Pará). Professor de Direito do
Trabalho e Direito Processual do Trabalho na Universidade da Amazônia
(UNAMA), inclusive em curso de pós-graduação.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
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Sumário
Apresentação .........................................................................................
Grijalbo Fernandes Coutinho e Marcos Neves Fava
11
A reforma do judiciário e a competência da Justiça do Trabalho .........
Alípio Roberto Figueiredo Cara
15
A competência da Justiça do Trabalho para a relação de trabalho ........
Amauri Mascaro Nascimento
24
Algumas questões relativas à nova competência material da Justiça do
Trabalho .................................................................................................
Cláudio Armando Couce de Menezes e Leonardo Dias Borges
38
Relação de trabalho: Enfim, o paradoxo superado .............................
Cláudio Mascarenhas Brandão
54
A nova Justiça do Trabalho — Competência e procedimento ............
Edilton Meireles
62
A natureza jurídica da relação de trabalho (Novas competências da
Justiça do Trabalho — Emenda Constitucional n. 45/04) ...................
Francisco Rossal de Araújo
O mundo que atrai a competência da Justiça do Trabalho ................
Grijalbo Fernandes Coutinho
82
122
A reforma do judiciário e os novos marcos da competência material da
Justiça do Trabalho no Brasil ............................................................... 148
João Oreste Dalazen
Justiça do Trabalho: A justiça do trabalhador? ....................................
Jorge Luiz Souto Maior
Primeiras linhas sobre a nova competência da Justiça do Trabalho
fixada pela Reforma do Judiciário (EC n. 45/2004) .............................
José Affonso Dallegrave Neto
179
191
A Emenda Constitucional n. 45/2004 e a competência penal da Justiça
do Trabalho ............................................................................................ 220
José Eduardo de Resende Chaves Júnior
Competência laboral — Aspectos processuais ..................................
José Hortêncio Ribeiro Júnior
236
A competência da Justiça do Trabalho e a nova ordem constitucional ...
Júlio César Bebber
252
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NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
As relações de trabalho sem vínculo de emprego e as novas regras
de competência ..................................................................................... 259
Márcio Túlio Viana
O esmorecimento do Poder Normativo — Análise de um aspecto
restritivo na ampliação da competência da Justiça do Trabalho ........ 276
Marcos Neves Fava
As duas faces da nova competência da Justiça do Trabalho .............
Mauricio Godinho Delgado
292
Os direitos sociais do art. 7º da CF — Uma nova interpretação no
Judiciário Trabalhista ............................................................................ 306
Paulo Luiz Schmidt
Da dicotomia ao conceito aberto: As novas competências da Justiça
do Trabalho ............................................................................................
Reginaldo Melhado
309
A ampliação da competência da Justiça do Trabalho e o Ministério
Público do Trabalho .............................................................................. 341
Sandra Lia Simón
Acidente de trabalho — Competência da Justiça do Trabalho: Os
reflexos da Emenda Constitucional n. 45 ............................................ 356
Saulo Tarcísio de Carvalho Fontes
Justiça do Trabalho — Nova competência ..........................................
Vicente José Malheiros da Fonseca
375
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
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Apresentação
Este livro é a fotografia do início de uma revolução.
Após mais de uma década de debates, de idas e de vindas, aprimorando-se no dialético e sempre imprevisível caminho do processo legislativo, promulgou-se, em oito de dezembro de 2004, a Emenda Constitucional n. 45, que finaliza a chamada “Reforma do Judiciário”. Tal reforma não ocorreu isoladamente, porque se seguiu às reformas Administrativa e da Previdência, na busca da reconstrução do Estado Democrático
de Direito.
O processo foi longo e difícil. O Congresso Nacional e a própria
sociedade civil aprenderam com os passos da Reforma, perscrutando e
amadurecendo o modelo de Judiciário exigido pelos novos tempos.
Inúmeras e substanciais foram as alterações no Poder Judiciário,
dentre as quais reverberam a introdução da súmula vinculante e a organização do Conselho Nacional de Justiça, órgão de controle administrativo externo dos Tribunais da República.
Quanto às atribuições da Justiça do Trabalho, as mudanças não
foram menos radicais. Estrutura-se, a partir da nova ordem constitucional, uma nova Justiça, com atribuições originais e com notória ampliação de sua competência, de acordo com o novel texto do artigo 114 da
Carta Política.
De plano, a competência da Justiça do Trabalho estendeu-se do
julgamento das lides decorrentes dos contratos de emprego para a
decisão de todas as que derivem das relações de trabalho. Caminhase da limitada espécie ao amplíssimo gênero, na busca do aproveitamento de sua vocação social e de sua agilidade, correspondentes sonoras dos anseios sociais. Qualquer litígio que decorra do trabalho humano
tem, agora, sua solução submetida à apreciação desse ramo do judiciário, promovido, enfim, de “justiça do emprego” a Justiça do Trabalho.
O Texto da Emenda, sufragando jurisprudência que já se erigia,
esclareceu ser da Justiça Laboral o encargo de decidir todas as questões decorrentes das relações de trabalho, tais como os pedidos de
indenização de danos materiais ou morais, os habeas corpus, os habeas
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NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
data e os mandados de segurança, quando versarem sobre matéria de
sua competência.
Outras questões correlatas ao trabalho foram deslocadas de diferentes esferas do Judiciário para a competência da Justiça do Trabalho,
como as lides sindicais, as ações decorrentes dos atos da fiscalização
das relações do trabalho e as decorrentes do exercício da greve.
Faz-se, com isto, a conjunção da necessidade imperiosa de racionalização do Estado com o proveito da especialização, como homenagem ao princípio esculpido no artigo 37, caput, da Constituição Federal,
o da eficiência.
Afetos aos descumprimentos das normas da legislação trabalhistas, os Juízes do Trabalho são mais indicados para tratarem das ações
que decorram da autuação administrativa dos infratores dessas mesmas
normas. Imbuídos da conflituosidade típica do embate entre capital e
trabalho, a eles precisam ser entregues as lides decorrentes da atuação
sindical, desde sua formação — legitimidade, representatividade, enquadramento sindicais — até o exercício mais eloqüente de sua luta, identificado com a greve. Afeiçoados às características do trabalho, nenhum
sentido havia em lhes sonegar as lides resultantes de quaisquer contratos de trabalho, não somente os de emprego.
Emerge do novo artigo 114 uma Justiça Social, aparelhada pela
Constituição dos instrumentos necessários à proteção do núcleo fundante das relações sociais hodiernas: o trabalho.
A Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho —
ANAMATRA —, completando vinte e oito anos de atuação, participou
ativa e relevantemente do processo legislativo de que resultou a Reforma
do Judiciário, oferecendo idéias, debatendo propostas, apresentando modelos alternativos, acompanhando incansavelmente os infinitos passos
que caracterizam a criação das leis. Seus diretores e associados freqüentaram sessões públicas de debates, interagiram com os parlamentares, produziram documentos, anteprojetos, sugestões de emendas,
justificativas, levantamento de dados. A Associação caminhou junto com
o povo brasileiro, por todos os degraus do procedimento legislativo, fazendo-se agente do esboço do novo Poder Judiciário. Nem sempre teve
suas sugestões acolhidas, como é natural no processo democrático,
mas nunca se calou, como é exigível de uma entidade de seu porte.
Este livro coroa a primeira fase da ampliação da competência da
Justiça do Trabalho derivada da Reforma do Judiciário. Diz-se primeira
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
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fase, porque concretizar o que foi entabulado no seio dialético da democracia representativa será atividade que se desdobra nas decisões quotidianas, nas audiências, nos despachos, nas sessões de julgamento.
Um trabalho ainda maior do que o até aqui desenvolvido, que não tem
prazo para se encerrar.
Ocupada em propiciar elementos de conformação da nova ordem
constitucional aos Juízes do Trabalho e à comunidade jurídica envolvida
com as questões laborais, a ANAMATRA, com pressa, organizou a edição do presente livro.
Fê-lo em brevíssimo tempo, contando com a capacidade dos autores dos artigos que compõem a coletânea. Mas, antes e além de tal
capacidade, contou com a coragem dos que se dispuseram a pronunciarse antes de assentada a poeira da explosão causada pela promulgação
da Emenda. Inúmeras obras virão. Os autores dos artigos deste livro, por
certo, pronunciar-se-ão outras vezes acerca deste tema, revendo ou confirmando as primeiras idéias que externaram na efervescência dos atos
da história. Já fizeram, no entanto, com sua coragem, história.
A eles é imensamente grata a ANAMATRA. A eles serão gratos os
que trabalham com o direito laboral, porque seus argumentos auxiliarão
na construção da nova ordem jurídica.
À Editora LTr, que ocupa lugar de histórico destaque no mercado editorial especializado, registra-se o agradecimento da Associação, por encampar
o projeto com presteza, competência e profissionalismo exemplares.
Augura-se que este material mostre-se proveitoso aos primeiros
dias da revolução competencial, estimulando a reflexão, semeando o
debate, desenhando o panorama doutrinário exigido pelos novos tempos, tudo em proveito da construção de um novo Poder Judiciário mais
eficiente e de uma sociedade cada vez mais justa.
ANAMATRA, verão de 2004-2005.
Grijalbo Fernandes Coutinho
Presidente da Associação Nacional
dos Magistrados da Justiça do
Trabalho — ANAMATRA
Marcos Neves Fava
Diretor de Ensino e Cultura
da ANAMATRA
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NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
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A Reforma do Judiciário e a
Competência da Justiça do Trabalho
Alípio Roberto Figueiredo Cara (*)
A competência material da Justiça do Trabalho é estabelecida no
art. 114 da Constituição Federal. Antes da reforma instituída pela Emenda Constitucional n. 45, o artigo em comento tinha a seguinte redação:
“Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios
individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública
direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da
União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação
de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas.”
Analisando esse artigo, a doutrina apontava três regras constitucionais referentes à competência material da Justiça do Trabalho:
a) Competência material natural ou específica;
b) Competência material decorrente;
c) Competência material executória.
A primeira regra, “competência material específica”, referia-se à
competência da Justiça especializada para conhecer e julgar os dissídios
individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores.
Já a competência material decorrente, nas palavras de Rodolfo
Pamplona Filho, era entendida como forma para solucionar controvérsias
decorrentes de outras relações jurídicas diversas das relações de emprego, já que “a Justiça do Trabalho só será competente se presentes
dois requisitos: a expressa previsão de uma lei atributiva dessa competência e se a relação jurídica derivar de uma relação de trabalho”.
Quanto à terceira regra, atribui à Justiça do Trabalho a competência para executar suas próprias sentenças.
(*) Juiz de Direito no Estado de São Paulo e Coordenador das bases de dados do Jurid.
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NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
A Emenda Constitucional n. 45, publicada no último dia 31 de
dezembro, desmembrou e alterou a redação do artigo 114 da Constituição Federal, in verbis:
“Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:
I — as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de
direito público externo e da administração pública direta e indireta da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
II — as ações que envolvam exercício do direito de greve;
III — as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre
sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores;
IV — os mandados de segurança, habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição;
V — os conflitos de competência entre órgãos com jurisdição trabalhista, ressalvado o disposto no art. 102, I, o;
VI — as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho;
VII — as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos
empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho;
VIII — a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art.
195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças
que proferir;
IX — outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma
da lei.”
Como se vê na comparação entre a nova e antiga redação, houve
profunda modificação, especialmente no que se refere à “competência
material natural ou específica”, a qual não se limita mais a tão-somente
“conhecer e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores
e empregadores”. Por força da nova redação, essa competência natural
passou a abranger “as ações oriundas da relação de trabalho”, inclusive
aquelas que envolvam “os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”. Não há mais a antiga limitação, exigindo que o
dissídio (ou lide) ocorra entre “trabalhadores e empregadores”.
Diante disso, em princípio poder-se-iam apresentar como desnecessários e sem sentido o disposto nos incisos VI e IX do mencionado
art. 114, aparentemente e de certa forma ignorando regra de hermenêutica no sentido de que a lei não contém palavras inúteis. Ora, se a ação
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visando à indenização, por dano moral ou patrimonial, decorre (ou é oriunda) da relação de trabalho, à evidência que, por força do disposto no
inciso I, a competência só poderia ser da Justiça do Trabalho. Parece
que aqui a intenção do legislador foi pôr fim à controvérsia sobre o tema
existente na jurisprudência.
O mesmo se diga quanto ao inciso IX, ao estabelecer a competência para “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na
forma da lei”, pois estar-se-ía repetindo o que já é evidente e assim determina o inciso I, como competência natural. Se antes esse “na forma
da Lei” se justificava com a finalidade de resolver, ou melhor, contornar a
limitação da competência trabalhista então existente, em conflito com
inúmeros casos que envolviam a relação de trabalho, mas tinham como
partes pessoas que não se enquadravam como empregadores ou empregados, com a nova redação do inciso I aparentemente esse inciso IX
também seria dispensável. Mas, ao que parece, o legislador ou está
fazendo distinção entre “ações oriundas da relação de trabalho” e “outras
controvérsias decorrentes da relação de trabalho”, que não implique necessariamente em uma ação ou, acolhendo o ditado de que é “melhor
prevenir do que remediar”, sua real intenção pode ter sido deixar em
aberto à lei ordinária a possibilidade de ampliar ainda mais a competência da Justiça do Trabalho, havendo necessidade específica.
Mas o ponto de maior polêmica, envolvendo essa recente alteração
do artigo 114, a questão da ampliação da competência, já está se
fazendo presente em artigos publicados na Internet.
Para Grijalbo Fernandes Coutinho (1), Juiz do Trabalho em Brasília, e
presidente da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho), a nova competência da Justiça do Trabalho passa a ser
ampla, alcançando toda e qualquer lide que envolva relação de trabalho:
“Havendo relação de trabalho, seja de emprego ou não, os seus
contornos serão apreciados pelo juiz do trabalho. Para esses casos, evidentemente, aplicará a Constituição e a legislação civil comum, considerando que as normas da CLT regulamentam o pacto
entre o empregado e o empregador. Como conseqüência, a Justiça
do Trabalho passa a ser o segmento do Poder Judiciário responsável pela análise de todos os conflitos decorrentes da relação de
trabalho em sentido amplo.
(1) No artigo “Enfim, Justiça do Trabalho”, publicado in http://www.anamatra.org.br/opiniao/artigos/artigos.cfm, acessada em 20.12.04.
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NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Os trabalhadores autônomos, de um modo geral, bem como os respectivos tomadores de serviço, terão as suas controvérsias conciliadas e julgadas pela Justiça do Trabalho. Corretores, representantes comerciais, representantes de laboratórios, mestres-de-obras, médicos, publicitários, estagiários, contratados do poder público por tempo
certo ou por tarefa, consultores, contadores, economistas, arquitetos, engenheiros, dentre tantos outros profissionais liberais, ainda que
não empregados, assim como também as pessoas que locaram a
respectiva mão-de-obra (contratantes), quando do descumprimento
do contrato firmado para a prestação de serviços, podem procurar a
Justiça do Trabalho para solucionar os conflitos que tenham origem
em tal ajuste, escrito ou verbal. Discussões em torno dos valores
combinados e pagos, bem como a execução ou não dos serviços e a
sua perfeição, além dos direitos de tais trabalhadores, estarão presentes nas atividades do magistrado do trabalho.” (site da Anamatra)
Já para Fernando Henrique Pinto(2), Juiz de Direito da 1ª Vara da
Comarca de São Sebastião/SP, as modificações introduzidas pela Emenda Constitucional 45 não autorizam interpretação tão ampliativa quanto
à competência, in verbis:
“Quanto às modificações da Reforma do Judiciário, existem algumas manifestações, de respeitáveis fontes, no sentido de que a
competência para o processo e julgamento de serviços prestados
por profissionais liberais, como dentistas, engenheiros e advogados, a seus respectivos clientes, teria sido transferida da Justiça
Comum dos Estados para a Justiça do Trabalho.
Mas, com todo o respeito, não se consegue enxergar, por maior
esforço interpretativo que se faça, onde está escrito que as relações de prestação de serviço, que na verdade são relações de
consumo, não de emprego, teriam experimentado essa modificação de competência. Dizem que a mudança ocorreria pela expressão “relação de trabalho”, indevidamente elevada a uma exponencial interpretação ampliativa.
Mas, em primeiro lugar, em matéria de competência funcional constitucional, não se admitem interpretações ampliativas dessa magnitude, sob pena de quebra do princípio do Juiz Natural para o pro(2) No artigo “Reforma do Judiciário e Competência da Justiça do Trabalho”, in https://
secure.jurid.com.br/jurid/jurid.exe/carregahtml?arq=detalhe.html&ID=7473, acessado
em 7 de janeiro de 2005.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
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cesso. E em segundo lugar — e o mais óbvio, deve-se lembrar que
na redação originária do art. 114 da Constituição Federal sempre
existiu, desde 1988, a expressão ‘relação de trabalho’, de modo
que não há qualquer novidade”.
E continua:
“Em síntese, passaram à competência da Justiça do Trabalho, como
novidade ou esclarecimento, o processo e julgamento das lides
envolvendo servidores estatutários dos entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de
trabalho, e os dissídios coletivos em caso de greve em atividade
essencial, com possibilidade de lesão do interesse público.
Relações entre profissionais liberais ou pessoas jurídicas prestadoras de serviço e seus clientes permanecem com a natureza de
consumo, não de trabalho, até que lei posterior eventualmente diga
o contrário.”
Com a devida vênia, a reforma pode até não ter ampliado a competência da Justiça do Trabalho tanto quanto sustentado pelo ilustre Presidente da Anamatra, porém, no meu entender, tampouco foi tão limitada
como sustentado pelo não menos ilustre Juiz de Direito.
Penso que a questão não se resume a sustentar que a expressão
“relação de trabalho” já existia na redação originária, o mesmo ocorrendo
com a expressão “na forma da lei”, também já existente, mas agora inserida
no inciso IX. O que importa, na verdade, não é o que já existia, mas sim o
que deixou de existir, ou seja, a anterior limitação da competência natural
aos “dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores”.
E é justamente a partir dessa competência primeira e mais relevante, denominada doutrinariamente como “natural ou específica”, é que
a questão deve ser enfocada.
Parece-me clara a nova redação: “Compete à Justiça do Trabalho
processar e julgar: I — as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes...”. Assim, pela primeira e específica regra constitucional
sobre a competência trabalhista, originando a ação da relação de trabalho, e sem necessidade de qualquer “interpretação ampliativa” a competência, e portanto o Juiz Natural, é da Justiça especializada, ainda que
para a decisão da causa o Magistrado do Trabalho tenha que se valer do
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NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Código Civil, Código de Defesa do Consumidor, Código de Processo Civil
ou qualquer outro dispositivo de direito material ou processual, até porque,
por expressa determinação legal, o direito comum, material ou processual,
é “fonte subsidiária do direito do trabalho, naquilo em que não for incompatível com os princípios fundamentais deste” (CLT, arts. 8º e 769).
A tal respeito, como escreve Rodolfo Pamplona Filho, “permitindonos um trocadilho, é preciso lembrar que a Justiça é do Trabalho, e não da
CLT! Se não for superada a mentalidade retrógrada que pretende ser do
Poder Judiciário laboral somente dissídios previstos na Consolidação das
Leis do Trabalho, dever-se-ia negar logo, entre outras medidas, o cabimento de ações de procedimentos especiais na Justiça do Trabalho, como,
por exemplo, a consignação em pagamento, eis que está prevista somente nos arts. 972/984 do Código Civil e 890/900 do Código de Processo
Civil, sem qualquer norma específica no texto consolidado”.
Tal entendimento já encontrava suporte também na jurisprudência,
antes mesmo da reforma:
“EMENTA — Justiça do Trabalho Competência: Constituição, art. 114:
ação de empregado contra o empregador visando à observação das
condições negociais da promessa de contratar formulada pela empresa em decorrência da relação de trabalho.
1 — Compete à Justiça do Trabalho julgar demanda de servidores do
Banco do Brasil para compelir a empresa ao cumprimento da promessa de vender-lhes, em dadas condições de preço e modo de
pagamento, apartamentos que, assentindo em transferir-se para Brasília, aqui viessem a ocupar, por mais de cinco anos, permanecendo
a seu serviço exclusivo e direto.
2 — À determinação da competência da Justiça do Trabalho não importa que dependa a solução da lide de questões de direito civil, mas
sim, no caso, que a promessa de contratar, cujo alegado conteúdo é o
fundamento do pedido, tenha sido feita em razão da relação de emprego, inserindo-se no contrato de trabalho”.
(Ac. STF — Pleno — MV — Conflito de Jurisdição n. 6.959-6 — Rel.
(designado): Min. Sepúlveda Pertence — J. 23.5.90 — Suscte. Juiz de
Direito da 1ª Vara Cível de Brasília; Suscdo. Tribunal Superior do Trabalho — DJU 22.2.91, p. 1.259).
E ainda:
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. JUÍZOS DE DIREITO E
TRABALHISTA. RESÍDUO DE PAGAMENTO. SERVIÇO DE CONSTRUÇÃO CIVIL CONTRATADO POR METRAGEM. COMPETÊNCIA CONS-
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
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TITUCIONAL DA JUSTIÇA TRABALHISTA QUE NÃO SE RESTRINGE
À RELAÇÃO DE EMPREGO.
I — Havendo dissenso entre a Justiça do Estado e a Justiça do Trabalho, o pedido e a causa de pedir definem a natureza da lide e, por
conseqüência, a competência ratione materiae para dirimi-la.
II — O artigo 114 da Constituição Federal não impõe à Justiça do
Trabalho atuação exclusiva nas ações versando sobre relação de
emprego. Ao contrário, atribui-lhe competência para julgar “...na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho...”.
Compete às varas do trabalho conciliar e julgar os dissídios resultantes de contratos de empreitada em que o empreiteiro seja operário ou artífice (CLT, art. 652, a, III).
Conflito conhecido e declarada a competência do juízo suscitante.
(STJ — CC 32433/MA — Conflito de Competência 2001/0081977-7,
Relator(a) Ministro Castro Filho (1119) Órgão Julgador S2 - Segunda
Seção — Data do Julgamento 26.9.2001 — Data da Publicação/Fonte
DJ 29.10.2001, p. 179 — JBT vol. 56, p. 231, e Jurid XP Biblioteca
Jurídica Digital, 11ª edição, setembro/outubro 2004).
No corpo do primeiro Acórdão acima mencionado, ressalta o relator:
“Para saber se a lide decorre da relação de trabalho não tenho como
decisivo, data venia, que a sua composição judicial penda ou não de
solução de temas jurídicos de direito comum, e não, especificamente,
de direito do trabalho. O fundamental é que a relação jurídica alegada
como suporte do pedido esteja vinculada, como o efeito à causa, à
relação empregatícia, como me parece inquestionável que se passa
aqui, não obstante o seu conteúdo específico seja o de uma promessa de venda, instituto de direito civil”.
E nesse mesmo julgamento, em seu Voto lembrou o Ministro
Moreira Alves, sobre a competência trabalhista que, em relação a pensões de viúvas de bancários, a Corte Suprema entende que, “embora
essas questões versassem sobre direito previdenciário, estavam elas
vinculadas ao contrato de trabalho”.
Assim, ao que parece, houve sim profunda e relevante alteração
na competência trabalhista em razão da matéria, de natureza absoluta
e constitucional, pelo que, ante a hierarquia, terá que prevalecer sobre
toda e qualquer legislação inferior (e súmulas, até o momento não vinculantes) que disponham de forma diversa. Bom lembrar que, em se
tratando de competência absoluta, prevalece o interesse público consistente na obrigatoriedade do julgamento pelo juízo do trabalho, sob
pena de nulidade absoluta, não se aplicando o princípio da perpetuação da jurisdição.
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NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Certamente o assunto ainda vai causar muita polêmica, especialmente quanto à competência para julgamento de ações acidentárias;
ações que ao mesmo tempo envolvam o conceito de relação de trabalho/
consumo/prestação de serviços; empreitadas (as pequenas já são há
muito da competência da Justiça do Trabalho — art. 652, III, da CLT);
locação de mão-de-obra; contratos com profissionais liberais; ação de
reintegração de posse em caso de comodato instituído concomitantemente e por força de relação de trabalho; ação de despejo, quando a
locação for estabelecida em razão da relação de trabalho (sobre esta,
vide Lei n. 5.889/73, art. 9º); e, penso, até mesmo ações contra a Previdência Social, em que o autor pede seja declarado o exercício de trabalho
sem registro em Carteira, para fins de averbação do tempo de serviço.
Dentre algumas das ações citadas, breves anotações a respeito:
a) Ações acidentárias. Atribuída atualmente à Justiça Comum estadual por entendimento jurisprudencial do STF (do qual diverge em
parte do TST), não parece ser possível manter o entendimento da
Corte Suprema, à qual incumbe, como a todos os Magistrados,
velar pelo cumprimento da Constituição.
Estabelecida a competência constitucional da Justiça do Trabalho,
para “as ações oriundas da relação de trabalho”, não se vê como
um acidente ou doença ocorridos durante aquela relação poderá
deixar de ser julgado pela Justiça especializada, sem flagrante
nulidade e até mesmo inconstitucionalidade. Lembre-se que o inciso IX do novo art. 114 permite incluir “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei”, e não excluir o que
pelo inciso I do mesmo artigo é estabelecido como competência
natural. Assim, decorrendo o acidente da relação de trabalho, a
competência é da Justiça especializada.
b) Relação de trabalho, relação de consumo, prestação de serviço.
Certamente uma das questões mais controvertidas, mas não se
pode excluir a priori a competência trabalhista apenas porque haveria necessidade de aplicar-se o CDC.
A competência de uma ou outra Justiça poderá variar de acordo com
o caso concreto. Ocorrendo uma lide que envolva o que se considera
“relação de trabalho” e, ao mesmo tempo, uma “relação de consumo”, penso que caberá o julgamento à Justiça especializada, pois
tem competência exclusiva quanto à primeira, mas não se vê impedida de incidentalmente apreciar a segunda, aplicando se necessário o CDC, diante do que dispõe os arts. 8º e 769, da CLT. A Justiça
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
23
Comum, por outro lado, não teria competência para decidir matéria
envolvendo a relação de trabalho. Nos casos de relação típica de
consumo, v.g., aquisição de uma mercadoria com defeito, não haveria qualquer dúvida quanto à competência da Justiça Comum.
A solução só aparecerá quando doutrina e jurisprudência consolidarem o conceito e abrangência das respectivas figuras, especialmente no que toca à “prestação de serviço”. Existe diferença entre
esta e uma “prestação de trabalho”? Uma “prestação de trabalho”
equivale a uma “relação de trabalho”? Em princípio não parece existir
diferença entre a “prestação de trabalho” e a “relação de trabalho”
que atrai a competência especial. Antes da reforma a questão até
poderia ser resolvida afirmando-se que a prestação de serviço seria
de competência da Justiça do Trabalho, desde que estivesse sujeita às leis trabalhistas; e, em caso contrário, a competência seria
da Justiça Comum (art. 593 do novo CC), mas após a reforma essa
afirmação é de constitucionalidade duvidosa.
c) Comprovação de tempo de serviço sem registro em Carteira. A
competência era da Justiça Federal e Juízes de Direito, estes sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal (CF, art.
109, § 3º), ante a existência, no pólo passivo, da autarquia federal
(CF, art. 109, I).
Mas o próprio art. 109, I, estabelece como exceção, entre outras,
as causas cuja competência seja da Justiça do Trabalho:
“Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
I — as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e
as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho.”
Assim, resta saber se uma ação visando a comprovar o exercício
de trabalho sem registro em carteira pode ser tida como “oriunda da
relação de trabalho”, conforme art. 114, I, da CF.
Ao meu ver a resposta é afirmativa, já que o objeto da ação é a
própria declaração de existência da relação de trabalho que o autor afirma ter existido.
Mas existem muitas outras ações que, ao menos em tese, envolvem a “relação de trabalho” e, feitas tais considerações, só resta esperar
pelo entendimento dos doutrinadores e principalmente pela jurisprudência, já que as primeiras decisões judiciais a respeito não tardarão.
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NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
A Competência da Justiça do Trabalho
para a Relação de Trabalho
Amauri Mascaro Nascimento (*)
Introdução
A Reforma do Poder Judiciário (2004) tem repercussões, e amplas, sobre a competência material da Justiça do Trabalho, de tal
modo que surgirão, com toda certeza, inúmeras discussões e, também, divergências a respeito da melhor interpretação a ser dada aos
novos dispositivos constitucionais, não só porque o intérprete sempre
inicia a sua avaliação, como corretamente ensina Arthur Kaufmann,
em Filosofia do Direito, fiel à assertiva de que todo compreender começa com uma pré-compreensão, e que está sujeita a todo tipo de
influência sociológica, antropológica, ideológica, jurídica e, até mesmo,
de conveniência.
Propomo-nos, com essa ressalva, a examinar, numa perspectiva o
quanto possível estritamente jurídica, a nova configuração legal da matéria num dos seus aspectos, o da relação de trabalho.
Estas observações devem ser recebidas como propostas para um
debate que certamente vai se desenvolver por algum tempo e só depois
do qual as diretrizes mais seguras poderão ser sentidas .
Configuração legal e características
A Constituição Federal de 1988 (art. 114) ao fixar a competência
da Justiça do Trabalho, declarou:
“Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores... e, na forma da
lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho...”.
(*) Advogado em São Paulo. Professor aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
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Dispõe o novo texto legal da Reforma do Poder Judiciário (2004):
“Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:
I — as ações oriundas da relação de trabalho, ...
IX — outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma
da lei.”
Esse é o novo contexto legal que passa a ser interpretado com a
finalidade de encontrar, na comparação com o anterior, os pontos de
contato e os de diferença.
Questões iniciais para o Juiz
A primeira questão, e que influirá no equacionamento das novas
diretrizes, ampliando-as ou não, é o significado da expressão relação de
trabalho, que tanto pode ser compreendida como indicativa de todo um
universo de relações jurídicas ou contratos de atividade nos quais o objeto preponderante do vínculo jurídico é a atividade mesma da pessoa
que presta serviços para outra, para uma empresa ou para uma pessoa física,
portanto, gênero, como, também, o que não nos parece acontecer, relação de trabalho como sinônimo de relação de emprego.
A segunda está na tarefa de separar da relação de trabalho, outras
relações que com a mesma não se confundem e que por tal motivo não
podem ser enquadradas em seu âmbito, o que leva a discussão para os
parâmetros da diferença entre relação de trabalho e relação de consumo, relação de trabalho e mandato ou representação, relação de trabalho e fornecimento, relação de trabalho e compra e venda e tantos outros
negócios jurídicos que existem em nosso universo do Direito, tarefa que,
tanto quanto a anterior, provocará divergências, repercutindo, diretamente, na atuação prática das Varas do Trabalho diante das questões que
serão apresentadas para a solução da natureza jurídica do vínculo
que está sendo apreciado, um vez que dessa definição dependerá a
admissão ou não da competência da Justiça do Trabalho.
Ressalte-se, sob essa perspectiva, que relação de consumo, de
acordo com o Código do Consumidor, pode ter como objeto, também, a
prestação de serviços, porém neste caso, de acordo com o mesmo
diploma legal indicado, prioriza-se como relação de trabalho e não de
consumo o vínculo que se enquadrar nessa hipótese.
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NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Com efeito, dispõe o Código do Consumidor, art. 3º, § 2º:
“Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de
crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter
trabalhista.”
Questão diferente, e já habitual, será a tarefa do Juiz, diante de
relações de emprego controvertidas, ao avaliar as características de cada
caso concreto, nele ver se há um vínculo de emprego autêntico encoberto com o figurino de outro contrato por estarem presentes os requisitos
da definição de empregado (CLT, arts. 3º e 2º ), ou se não se trata de
vínculo empregatício, embora sendo um contrato de trabalho, que também será da sua competência, para, na primeira hipótese, desqualificar
a deturpação contratual, e no segundo caso, julgar a questão com base
nas leis que regem o respectivo tipo de contrato ou relação de trabalho.
A alteração da competência
A alteração da competência constitucional material da Justiça do
Trabalho pela Reforma do Poder Judiciário quanto aos tipos de vínculos
de trabalho que podem ser submetidos à sua apreciação, reside num
ponto: a competência que era para dissídios entre trabalhadores e empregadores, passa a ser para ações oriundas da relação de trabalho,
não se limitando mais a questões de trabalho contra empregadores, mas
de todo prestador pessoa física contra todo tomador do trabalho da pessoa física, o que abrangerá prestações de serviços autônomos, serviços
eventuais e outros tipos, mudança que vai exigir algum tempo para que
possa ser devidamente assimilada.
Pensamos, em linhas gerais, que toda relação de trabalho para a
qual a competência agora é da Justiça do Trabalho, deve preencher requisitos básicos: a ) profissionalidade, o que significa que se trata de um
serviço prestado profissionalmente e não com outra intenção ou finalidade, pressupondo, portanto, remuneração; b) pessoalidade para significar
que o trabalho deve ser prestado por pessoa física diretamente, sem
auxiliares ou empregados, porque, neste caso, teríamos na figura do
prestador um verdadeiro empregador ; c) a própria atividade do prestador
do serviço como objeto do contrato, ou, no caso de resultados contratados pelos serviços, a preponderância destes aspectos, dos serviços,
sobre outros, com o que ficariam fora da competência do judiciário trabalhista os contratos de fornecimento e incluídas as pequenas empreita-
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
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das de serviços; d) a subordinação ou não passa a não definir a competência, porque o judiciário trabalhista será competente em ambos os
casos, influindo, se os serviços forem subordinados, para o enquadramento jurídico diante do poder de direção sobre o mesmo exercido, levando-o para a esfera da relação de emprego e se inexistente a subordinação, competente, também, será a Vara do Trabalho, porém para apreciar
a questão como prestação de serviços autônomos ou outra; e) a eventualidade ou não, igualmente, passa a não ter importância sob a
perspectiva da competência, porque se os serviços forem contínuos ou
não eventuais, estar-se-ão no âmbito da relação de emprego, e se forem
eventuais estarão na esfera da prestação de serviços eventuais, em ambos
os casos competente à Justiça Trabalhista, mudando, apenas o enquadramento jurídico a ser dado ao caso concreto.
A experiência não é nova, nem sob a perspectiva do direito comparado, nem internamente em nosso ordenamento jurídico, porque algumas relações de trabalho que não são relações de emprego já vinham sendo julgadas pela Justiça do Trabalho, de modo que, sob esse prisma, o que houve
foi uma ampliação e uma inversão de critérios legais, passando a retirar a
necessidade de lei especial, antes necessária, para que uma relação de
trabalho pudesse ser conciliada e julgada pela Justiça do Trabalho.
Em alguns países a jurisdição trabalhista limita-se às questões
entre empregado e empregador e em outros, de modo mais amplo, abrangem outras relações de trabalho como o trabalho autônomo, as relações
de trabalho para a Administração Pública etc. Na Espanha, a Sala Social da Justiça Ordinária é competente para ações individuais e coletivas
de empregados e empregadores entre si, como, também, para dissídios
interobreiros. Na Itália, o Código de Processo Civil (art. 409) atribui competência aos juízes que solucionam os dissídios individuais não só em
questões de trabalho subordinado, mas, também, nas “relações de agência, de representação comercial e outras relações de colaboração que
se concretizem através de uma prestação de trabalho continuado e coordenado, prevalentemente pessoal, ainda que não subordinado”, bem como
“às relações de trabalho dos dependentes dos entes públicos que desenvolvam, exclusiva ou prevalentemente, atividade econômica” e para
as questões desse mesmo pessoal, ainda que não se trate de ente que
desenvolva atividade econômica, mas desde que a lei não atribua competência a outro Juiz.
A delimitação da competência da Justiça do Trabalho em outros
países apresentou problemas sobre os quais houve certa divergência de
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NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
ordem teórica, embora, no plano operacional, não existisse muita discussão, salvo em um ou outro ponto. É que sendo muitas as relações
jurídicas que se entrelaçam com o trabalho em suas diferentes manifestações e inúmeros os conflitos que podem suscitar, desde as diversas
relações individuais até as diferentes relações coletivas, dessa diversidade resultaram questões de competência e, mais especificamente, dos
tipos de lides que não são atribuídos à sua apreciação.
Relação de trabalho e relação de emprego
Há diferença entre relação de trabalho e relação de emprego ?
De acordo com os modelos teóricos doutrinários, sim.
Mais de uma perspectiva pode ser dada à questão.
A primeira, que não elucida nossa questão, é a diferença entre
contrato de trabalho e relação de trabalho, perspectiva que, para o nosso
tema, não é o fundamental, porque a discussão que nesse ponto se
trava na doutrina tem a única finalidade de responder duas questões:
primeira, se o contrato faz nascer a relação de emprego ou se esta é que
é a causa daquele; segunda, o debate entre contratualismo e anticontratualismo, que nada mais é que saber qual é a natureza jurídica do vínculo de emprego, tem natureza contratual ou se tem natureza institucional,
não sendo esse o nosso problema.
A segunda, que é importante para o nosso tema, é saber se relação de trabalho é o mesmo que contrato ou relação de emprego ou se,
ao contrário, é um gênero que compreende todo tipo de relação individual
de trabalho de pessoa física para pessoa física ou jurídica excedente da
esfera do emprego, e esse é o ponto central.
Sabido é que não há apenas um tipo básico de vínculo jurídico de
trabalho — entre quem trabalha e o tomador de serviços que nem sempre será empregador quando está sendo beneficiado pelo trabalho de
alguém, como a prestação de serviços autônomos, o trabalho temporário, o trabalho eventual, o trabalho avulso, o rural, o doméstico e a empreitada do operário.
O direito material do trabalho direcionou-se mais como fenômeno
da sociedade industrial, do trabalho prestado para uma organização,
como direito dos empregados, mas nunca foi unicamente isso, porque
até mesmo para uma organização outros tipos de trabalho ou contratos
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
29
de atividades podem existir não se confundindo com o emprego, tantas
são as necessidades que uma organização complexa tem e que procura
atender de diferentes modos contratuais.
Pode-se, assim, dizer que para uma organização prestam serviços
empregados e outros tipos de trabalhadores, coexistindo diversas relações de trabalho com características e configurações próprias, o que
ocorre não só para uma organização mas, também, para pessoas físicas nos atos da sua vida rotineira.
O direito processual do trabalho não pode deixar de acompanhar,
no Brasil, essa força expansionista quanto à competência jurisdicional
para as questões de trabalho. Há uma lógica comparativa entre o direito
do trabalho, que abrange não só o empregado, mas outros tipos de trabalho, e o direito processual do trabalho ao definir a competência da
jurisdição trabalhista não só para questões de empregados, mas de outros tipos de trabalho.
Nessa perspectiva fica melhor compreendida a diferença entre relação de trabalho, como gênero, e relação de emprego, como espécie, e as
novas diretrizes constitucionais que abrem as portas da jurisdição trabalhista para aquela, sem prejuízo da continuidade das suas atribuições
para a solução destas que continuarão sob o manto da sua proteção.
Princípio da competência específica e princípio da competência
derivada
Parece-nos, assim, que os novos princípios constitucionais podem
ser resumidos do seguinte modo: a) primeiro é o princípio da competência específica, que se traduz na atribuição à Justiça do Trabalho, do
poder para conhecer e decidir as ações oriundas de relações de trabalho
que são os dissídios individuais entre trabalhadores e empregadores e
as demais relações de trabalho, assim consideradas aquelas em que
uma pessoa física presta serviços a uma pessoa jurídica ou física,
mediante as formas contratuais previstas em nosso ordenamento jurídico;
b) mediante lei infraconstitucional, segundo o princípio da competência
decorrente, solucionar as demais controvérsias que resultem de relações de trabalho, o que exigirá uma reforma da legislação trabalhista.
O saudoso Min. Orlando Teixeira da Costa já sustentava: “Ante o
Texto Constitucional de 1988, não há dúvida que qualquer litígio entre
trabalhadores e empregadores pode ser objeto de apreciação pela Justiça
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NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
do Trabalho, pois a Lei Magna equiparou, para fins processuais, a simples relação de trabalho aos contratos individuais de trabalho. Aliás, face
a essa redação, a Carta Política chegou a ser redundante, quando, mais
adiante, insistiu, de modo tradicional, que, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho também seriam objeto da
competência da Justiça do Trabalho. Estabelecido que a competência
seria para conciliar e julgar litígios decorrentes da relação de trabalho e
não apenas de relação de emprego, não havia necessidade da especificação final, no caput do art. 114”.
Não se diga que o Juiz do Trabalho não pode aplicar o Código Civil,
porque se assim fosse não poderia condenar alguém a pagar indenização de dano moral a outra pessoa, não poderia decidir questões de pequenas empreitadas, não aplicaria as disposições legais sobre defeitos
dos negócios jurídicos, assim por diante. Logo, o que acontecerá será
uma ampliação, mas não uma inovação em sua possibilidade de aplicar
a lei comum que já faz subsidiariamente.
O Código Civil rege os contratos de prestação de serviços de transporte, de agência ou representação comercial, de corretagem, de fornecimento, de mandato, de administração e de cooperados, atividades prestadas por pessoas físicas de modo continuado ou não. A Justiça do Trabalho agora poderá decidi-las. Não são relações de emprego, mas poderão ser, como tal, com base nos dispositivos que definem o seu conteúdo obrigacional previsto no Código Civil, apreciadas pelo Juiz do Trabalho.
Relações de trabalho que não são relações de emprego
O Código Civil (art. 1.216) declara que “toda a espécie de serviço
ou trabalho lícito, material ou imaterial, pode ser contratada mediante
retribuição”. Serão mencionados aqui os principais contratos. Sem apresentar uma relação fechada e definitiva, seguem as que passam a ser
expostas.
Primeiro, e em maior número, o contrato de prestação de serviços,
o trabalho autônomo, por conta própria, relação jurídica regida pelo Código
Civil (arts. 593 a 609).
Dispõe o Código Civil (art. 593), que a prestação de serviços que
não estiver sujeita às leis trabalhistas ou a lei especial reger-se-á pelos
seus dispositivos. Com isso, o critério é o da priorizarão da relação de
emprego. Ausentes os seus requisitos, então, haverá prestação de servi-
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
31
ços do Código Civil. Os advogados preferem ingressar com processo na
Justiça do Trabalho, afirmando que há contrato de emprego mesmo que
exista um instrumento escrito de contrato de prestação de serviços. Se
a prova demonstrar que não há subordinação, o Juiz negará a existência
da relação de emprego. Há casos, no entanto, de inequívoca configuração da prestação de serviços e não da relação de emprego. Exs:. O
dentista que faz o tratamento dentário de alguém, o médico que faz a
cirurgia do paciente e dele recebe e o consultor que do seu escritório e
com plena autonomia presta assessoria eventual a alguém. O poder de
direção exercido sobre o trabalho de alguém é fundamental para a definição das duas formas de atividade profissional, inexistente no trabalho
autônomo que configura a prestação de serviços do direito civil, presente
na relação de emprego do direito do trabalho.
Segundo, o contrato de transporte, aquele em que alguém, mediante remuneração, transporta a de um lugar para outro, pessoas ou coisas (CC, art. 730). Ex:. transporte da mudança em caminhão de motorista, transporte de frutas e verduras, o perueiro que, em seu veículo,
transporta pessoas do ponto de ônibus, motorista de ônibus escolar,
piloto de helicóptero que leva o executivo para uma reunião, taxista que faz
corrida em seu automóvel e não recebe o boleto de pagamento que
lhe foi dado pela empresa usuária etc. Portanto, a finalidade do contrato
de transporte é o deslocamento de uma pessoa ou de uma coisa e o
porte ou frete é o preço do transporte pago ao transportador.
O transportador pessoa física que trabalha por sua conta será autônomo e não empregado. Porém, se trabalhar continuadamente para
outrem sob o seu poder de direção e pelo mesmo remunerado, pode
configurar-se relação de emprego, se houver subordinação. Há processos na Justiça do Trabalho nos quais se discute se o fretista rodoviário
ou motorista carreteiro — nome dado ao caminhoneiro que ganha por viagem — é empregado ou não. Tudo depende da sua liberdade em exercer
a atividade. O tacógrafo destina-se à aferição de velocidade, mas às vezes
é argumento utilizado para provar subordinação. A liberdade de contratar
carga de retorno, ao contrário, pende para o contrato de transporte.
Terceiro, o contrato de agência e distribuição. É o contrato pelo
qual alguém comercializa produtos para terceiros (CC, arts. 710 a 721).
Ensina Sílvio Venosa, em Direito Civil, vol. 3, que o Código Civil não foi
muito claro, mas diferencia agência de distribuição a partir da disponibilidade da coisa em mãos do sujeito. Se a pessoa tem a coisa que comercializa, será distribuidor, caso contrário, será agente. Há, nos meios
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NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
artísticos e de futebol, a figura chamada empresário, do atleta profissional ou do artista, que se encarrega de obter negócios, para o artista
shows em que se apresentará, para o atleta a sua transferência de um
para outro clube de futebol, mediante uma percentagem, situações que
configuram o contrato de agência e não de distribuição.
Quarto, a representação comercial. “Exerce a representação comercial autônoma a pessoa jurídica ou a pessoa física, sem relação de
emprego, que desempenha, em caráter não eventual por conta de uma
ou mais pessoas, a mediação para a realização de negócios mercantis,
agenciando propostas ou pedidos, para transmiti-las aos representados, praticando ou não atos relacionados com a execução dos negócios”
(Lei n. 4.886, de 1965). O representante comercial é autônomo, trabalha
por conta própria, sem subordinação. Mas há vendedores empregados
que, também, fazem mediação para realização de negócios. A diferença
está no poder de direção sobre a atividade exercida pelo vendedor, inexistente em se tratando de representante comercial autônomo.
Nos casos concretos, para se concluir se há ou não o poder de
direção, portanto a subordinação, avaliam-se dados como: 1) freqüência
na empresa; 2) cumprimento de roteiro de visitas, elaborado pelo próprio
vendedor ou por uma empresa para qual as vendas são feitas; 3) presença
obrigatória em reuniões; 4) recebimento de ordens diretas; 5) advertências pela execução inadequada do serviço; 6) fiscalização sobre a sua
atividade; 7) zona fechada e cadastro de clientes fornecido pela empresa
ou pertencentes ao vendedor; 8) exclusividade; 9) despesas da atividade
e veículo próprio. Ex:. O ambulante que vende no Viaduto do Chá por
conta própria não é empregado, mas se alguém o financia e dirige a sua
atividade, ficando com os lucros e pagando uma percentagem, será
empregado.
Quinto, corretagem. Pelo contrato de corretagem, uma pessoa
não ligada a outra em virtude de mandato, de prestação de serviços ou
por qualquer relação de dependência obriga-se a obter para a segunda
um ou mais negócios, conforme instruções recebidas (CC, arts. 722 a
729). Quem se obriga a obter negócios é o corretor. Há corretagens
exercidas por pessoas jurídicas e por pessoas físicas. Quanto a estas,
se estiverem configurados os elementos da definição de emprego, haverá relação de emprego. Será comitente ou dono do negócio, aquele que
contrata a intermediação do corretor, pagando-lhe uma comissão. A corretagem não é um contrato de atividade. É um contrato de resultado. Só
haverá o pagamento da comissão se concluído o negócio. Há corretores
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
33
oficiais, como os investidos de ofício público a exemplo dos corretores
de mercadorias, de navios, de operações de câmbio, de seguros, de
bolsa de valores, e corretores livres. A profissão de corretor de imóveis é
disciplinada por lei (Lei n. 6.530, de 1978, privativa de quem tenha título
técnico em transações imobiliárias). Questão que surge nos processos
trabalhistas é a dos corretores que trabalham para imobiliária, cumprindo horários, plantões, comparecendo diariamente e sob ordens constantes de serviço.
Sexto, o contrato de administração. Administradores são os membros do conselho de administração da sociedade anônima e os membros
da diretoria, não são empregados, mas mandatários eleitos para o exercício da administração por um período. De acordo com o Enunciado n.
269, do TST, o empregado eleito para ocupar cargo de diretor tem o
respectivo contrato de trabalho suspenso, não se computando o tempo
de serviço deste período, salvo se permanecer a subordinação jurídica
inerente à relação de emprego. Os administradores respondem solidariamente perante a sociedade e os terceiros prejudicados, por culpa no
desempenho de suas funções (CC, art. 1.016). Não podem fazer parte
do Conselho Fiscal da sociedade limitada os empregados (CC, art. 1.066,
§ 1º). O contrato social pode permitir administradores não sócios, portanto uma administração de profissionais remunerados para esse fim
(CC, art. 1.061).
Sétimo, os contratos de cooperados. Cooperativa é uma sociedade
prevista pelo Código Civil (arts 1.093 a 1.096) e por legislação especial.
Tem peculiaridades. Não é uma sociedade lucrativa. Dispensa o capital social. As quotas de cada cooperado são intransferíveis a terceiros
estranhos à sociedade, ainda que por herança. O quorum para as
assembléias é fundado no número dos presentes à reunião. Os cooperados são sócios.
Há diversos tipos de cooperativas: de crédito, de produção, de consumo e, o que interessa no nosso caso, as cooperativas de trabalho que
têm por finalidade o fornecimento de mão-de-obra para empresas.
A Constituição brasileira, no art. 174, § 2º, estimula o cooperativismo. A Lei n. 5.764, de 16.12.1971, define a Política Nacional de Cooperativismo, e, no art. 90, dispõe: “Qualquer que seja o tipo de cooperativa,
não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados”, diretriz
reproduzida pela CLT. O art. 442, parágrafo único dispõe que qualquer
que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, não existe
34
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
vínculo de emprego entre ela e seus associados, nem entre estes e os
tomadores de serviços daquela.
A discussão sobre cooperativas de trabalho ganhou dimensão em
razão das práticas abusivas. A experiência foi desastrosa no meio rural
com a criação de cooperativas formais, na prática inexistentes, para
fraudar a legislação trabalhista.
Essa situação levou a Justiça do Trabalho a distinguir situações
para coibir a fraude com base no art. 9º, da CLT, segundo o qual é nulo
todo ato destinado a desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação da lei
trabalhista. Desse modo, se a empresa para a qual os serviços da cooperativa são fornecidos exercer subordinação direta dos seus chefes sobre
os cooperados, a Justiça do Trabalho, acionada pelos interessados, poderá declarar relação de emprego direta com a tomadora dos serviços.
Ressalve-se que há cooperativas de trabalho que prestam serviços à população, são autênticas e não foram criadas para burlar a lei
trabalhista. E as cooperativas são uma forma de organização do trabalho que pode contribuir para a absorção dos excluídos do mercado de
trabalho. O que se combate não são as cooperativas, mas a precarização do trabalho por algumas delas. Entretanto, não deixam de ser uma
forma de terceirização, de descentralização das atividades da empresa,
mas não são ilegais.
Oitavo, o arrendamento e a parceria rural. Não há dispositivos sobre esses contratos no Código Civil vigente. O Estatuto da Terra, no
entanto, refere-se ao arrendamento rural e às diversas formas de parceria. São contratos de direito agrário. Em princípio, não são regidos pelo
direito do trabalho. Todavia, se for acobertada uma relação de trabalho
subordinado com um contrato de parceria ou arrendamento, prevalecerá
a realidade da relação jurídica, portanto o vínculo empregatício, por força
do disposto na CLT, art. 9º, considera nulo todo ato destinado a impedir,
desvirtuar ou fraudar a aplicação da legislação trabalhista.
Parece-nos que o contrato de fornecimento não é uma relação de
trabalho, porque o seu objeto não é a atividade do exercente. É um contrato atípico, não disciplinado pela legislação, pelo qual uma parte se
obriga, mediante um preço, a entregar a outra em prestações periódicas, coisas. Segundo Venosa, cuida-se de um contrato que busca o
abastecimento ou provisão do fornecido que necessita das coisas de
forma constante ou periódica. Fornecedor será o abastecedor e fornecido será o abastecido. O fornecedor pode obrigar-se não só a entregar
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
35
coisas, mas, também, a prestar um serviço. Ex.: fornecimento de câmbios de motor de automóvel para a montadora ou de refeições prontas
para a empresa .
O fornecimento não configura relação de emprego, porque há autonomia na execução do contrato. Podem surgir problemas trabalhistas
quando uma cooperativa é fornecedora de uma empresa. Em princípio,
não se tratará de terceirização ilícita, porém, dependendo do grau de
autonomia da cooperativa e dos cooperados, pode surgir o vínculo empregatício direto com o tomador, se houver subordinação direta.
Quanto ao mandato, é um contrato de representação e não, propriamente, uma relação de trabalho, embora conjugue os dois aspectos,
mas como este, a relação de trabalho, meramente secundária em relação àquele, a representação, que é o seu verdadeiro ou principal objeto.
A competência da Justiça do Trabalho para decidir outras
controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma
da lei (art. 114, IX)
O inc. IX, do novo art. 114, tem como correspondente precedente a
parte final do caput do revogado art. 114 da CF de 1988 . Comparados os
dois textos pela sua redação, verifica-se que a diferença gramatical é
pequena. Porém, a diferença substancial é grande, uma vez que para o
sistema legal anterior competia à Justiça do trabalho, mediante lei, conhecer outros litígios decorrentes de relações de trabalho, e agora desapareceu a necessidade de prévia e expressa autorização legal para que
se aprecie uma relação de trabalho.
Foi por tal razão que passou, já no regime anterior, a ser da competência da Justiça do Trabalho decidir pequenas empreitadas, consoante o disposto na CLT, art. 652, a, III, ao definir como de sua competência julgar as questões entre o empreiteiro operário ou artífice e os tomadores dos seus serviços, no que nenhuma inconstitucionalidade configurou-se diante da ressalva constitucional acima citada; as ações de trabalhadores temporários e empresa tomadora e empresa cedente, por
força do disposto no art. 19 da Lei n. 6.019, de 1974, salvo quanto a
questões entre ambas as empresas, a cedente e a cessionária por se
tratar de lide de direito civil entre duas pessoas jurídicas; as demandas
de avulsos (CLT, art. 643), aliás, também, porque os seus direitos materiais foram, pela Constituição de 1988, equiparados aos dos empregados na forma do disposto no art. 7º, parágrafo único, da Lei Maior.
36
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Não havia fundamento legal para abrir as portas da Justiça do Trabalho para outras relações de trabalho, salvo se, como no caso de cooperados, a cooperativa fosse mero suporte formal de um verdadeiro vínculo
de emprego, caso em que, com base no art. 9º da CLT, concluísse que
houve fraude.
A competência para outras relações de trabalho era a exceção
dependente de autorização legal. Parece-nos que deixa de ser assim
quando o caput do novo art. 114 atribuiu o poder de julgar a relação de
trabalho à Justiça do Trabalho.
Mas, como entender, ao mesmo tempo, competência para a relação de trabalho (caput) e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho? (inc. IX).
Entendemos que houve primeiro uma inversão. O que só podia ser
julgado em caráter excepcional mediante lei autorizante, passou a não
mais depender de uma lei atributiva de competência. Segundo, uma ampliação, porque enquanto antes só podiam ser julgadas, como regra geral,
questões entre trabalhadores e empregadores, agora podem ser decididas todas as questões de relação de trabalho, mesmo aquelas cujo pólo
passivo do vínculo não venha a ser empregador. E por outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei, o que nos parece
viável entender é que, diante da ampliação do quadro da competência
para toda relação de trabalho e tendo em vista a amplitude desse quadro, poderá o legislador, a seu critério, ampliar, ainda mais, a competência do Judiciário Trabalhista, por exemplo, no futuro para previdência
complementar ou oficial.
Uma confusão deve ser evitada quanto a diversos tipos de controvérsias oriundas das relações de trabalho, para as quais não há necessidade
de lei autorizando a atuação judicial trabalhista, porque estão enquadradas no conceito amplo de controvérsia oriunda de relação de trabalho, o
que dispensa, portanto, a legislação específica necessária para a competência derivada. Vale dizer que há, desde logo, a atribuição plena ao judiciário trabalhista para decidi-las com fundamento no caput do art. 114.
É o caso das ações destinadas a julgar se há conduta de boa-fé na
negociação coletiva, as ações de repressão à conduta anti-sindical, as
ações de anulação de cláusula de contrato coletivo e outras .
Como observações finais, ressalte-se que se abre nova e fustigante perspectiva para a Justiça do Trabalho mostrar a sua capacidade para
atuar em nosso ordenamento jurídico que não se resume às alterações
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
37
de competência agora ocorridas, mas, também, ao modo como, ao longo
do tempo, a jurisdição trabalhista reagirá diante dos desafios que lhe
são feitos e que constituem uma oportunidade para mostrar que nela
realmente estuda-se, interpreta-se e aplica-se o direito na sua plenitude
e não se resolve apenas questões de horas extras, sem dúvida importantes, mas que podem, como outras questões de igual nível, passar por
uma triagem conciliatória antes de se tornarem processos judiciais.
Oportuno seria, em nosso entendimento, especializar as Varas. A
especialização aumenta a produtividade pelo conhecimento mais fácil
do especialista sobre a questão que aprecia. Deve ser grande o número
de processos na Justiça Comum sobre essas questões e se forem transferidos para a Justiça do Trabalho haverá a necessidade de aparelhar o
órgão jurisdicional trabalhista para recebê-las, não só as em curso, se
assim for decidido, mas as que ingressarão futuramente, em especial
após a reforma sindical.
Surgirão problemas de eficácia imediata da lei nova que desafiarão
as interpretações, questão de hermenêutica que não pode ser examinada nos limites e com as finalidades do presente estudo.
Outra questão é o rito processual a ser adotado para a solução das
relações de trabalho regidas pelo Código Civil e julgadas pela Justiça do
Trabalho e a resposta, a se repetir o que tem sido feito em relação às
empreitadas, ao trabalho temporário e ao trabalho eventual, será a adoção do rito ordinário aplicado a toda reclamação trabalhista.
38
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Algumas Questões Relativas à Nova Competência
Material da Justiça do Trabalho
Cláudio Armando Couce de Menezes (*)
Leonardo Dias Borges (**)
I. Introdução
Há mais de meio século veio a lume a Consolidação das Leis do
Trabalho. Isto ocorreu no ano de 1943, época em que o Brasil vivia sob o
império da Constituição de 1937. Nesta ocasião, podemos encontrar a
Justiça do Trabalho colocada dentro da Constituição. Todavia, esta Justiça não era considerada como um ramo do Poder Judiciário.(1) (2)
Foi somente com o advento da Constituição Federal de 1946 que a
Justiça do Trabalho passou a ser integrada ao Poder Judiciário e aos
seus juízes foram asseguradas, no plano constitucional, as garantias
previstas para as demais magistraturas, como a vitaliciedade, a inamovabilidade e a irredutibilidade de vencimentos. Todavia, a estrutura paritária foi mantida.(3) Como se pode perceber, a integração da Justiça do
Trabalho no Poder Judiciário era uma conseqüência natural da evolução
histórica dos acontecimentos.
A Justiça do Trabalho já possuiu competência para processar e
julgar os processos oriundos de questões que envolvessem diaristas
e mensalistas da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territóri(*) Juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 17ª Região.
(**) Juiz Titular da 18ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro.
(1) O artigo 139 da Constituição Federal de 1937 declarava que “para dirimir conflitos
oriundos das relações entre empregadores e empregados, reguladas na legislação
social, é instituída a justiça do trabalho, que será regulada em lei e à qual não se aplicam
as disposições desta Constituição relativas à competência, ao recrutamento e às prerrogativas da justiça comum”. A Constituição de 1934 também fez menção expressa a
Justiça do Trabalho, também, sem considerá-la como um órgão do Poder Judiciário.
(2) Como autorizado pelo texto acima, somente em 1941, foi organizada, por meio de
lei ordinária, a Justiça do Trabalho, porém, como sugerido pela Constituição de 1937,
como órgão não judicial.
(3) Dispunha o artigo 94 da Constituição Federal de 1946: “O Poder Judiciário é exercido pelos seguintes órgãos: (...) V — Juízes e tribunais do trabalho”.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
39
os, dos Municípios e das entidades autárquicas, que trabalhassem nas
suas organizações econômicas, comerciais ou industriais em forma de
empresa, desde que não fossem funcionários públicos ou não gozassem
de garantias especiais, até que a Lei n. 1.890, de 13.6.1953, retirou diversas destas questões do âmbito da competência material da Justiça do
Trabalho. Diversas matérias relativas ao Instituto de Previdência Social já
foram objeto de apreciação da Justiça do Trabalho. A Lei n. 5.638, de
3.12.1970, modificada pela Lei n. 6.825, 22.9.80, passou a atribuir à Justiça Federal Comum a competência para decidir ações trabalhistas em
que fossem partes a União, suas autarquias e as empresas públicas federais. O Estatuto do Trabalhador Rural, anterior a Lei n. 4.214, de 2.3.1963,
pretendeu instituir um Conselho Arbitral para dirimir as questões trabalhistas.(4) Como se vê, estes são alguns exemplos de que a competência
material da Justiça do Trabalho foi se perdendo na linha do tempo.
Ocorre que a história mais uma vez demonstrou que todas as
questões que envolvem, direta ou indiretamente, a relação de trabalho
— e não apenas a relação de emprego — devem ficar concentradas em
um único lugar, sendo este lugar, sem dúvida, a Justiça do Trabalho.
A Emenda Constitucional n. 45, promulgada em 8.12.2004, apenas cuidou de realizar um acerto de contas histórico, devolvendo para a
Justiça do Trabalho matérias que dela jamais deveriam ter saído, além
de ter-lhe acrescido outras tantas questões competenciais.
O aumento da competência material da Justiça do Trabalho vem se
alargando em termos de interpretação doutrinária e em sede de aplicação jurisprudencial. Se percebe, facilmente, a ocorrência gradativa de
ampliação da competência da Justiça do Trabalho. O próprio Tribunal
Superior do Trabalho sedimentou a tese ampliativa da competência por
meio de diversos Enunciados, como, ad instar, o de número 18 (quadro de
carreira); o 189 (abusividade de greve); o 300 (cadastramento do PIS).
Além de diversas Orientações Jurisprudenciais, a respeito deste aumento
de competência, como nos dá notícia, por exemplo, a Orientação Jurisprudencial n. 26 (complementação de pensão requerida por viúva de exempregado); a n. 138 (competência residual, transposição para o Regime Jurídico Único); a n. 141 (descontos previdenciários e fiscais); a n.
210 (seguro-desemprego); a n. 327 (dano moral).
(4) Este Conselho jamais chegou a funcionar.
40
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Se a idéia já foi a de restringir a competência material da Justiça do
Trabalho, para limitá-la ao campo apreciativo das relações entre empregados e empregadores, tal visão não mais se sustenta. Não há mais, no
atual estágio em que vivemos, justificativa plausível para a manutenção
do entendimento no sentido de se considerar a restritividade da Justiça do
Trabalho no campo de sua atuação jurisdicional.
O legislador vem se mostrando sensível a essa nova realidade. Em
termos constitucionais, há pouco(5) tempo tivemos a missão de executar
as contribuições sociais previstas no artigo 195, I, alínea a e inciso II, da
Constituição Federal.(6)
A reforma do Poder Judiciário, conquanto tenha trazido alguns pontos que foram prejudiciais para a magistratura como um todo(7), não há
como negar que a Justiça do Trabalho foi a mais prestigiada. A começar
pelo acréscimo do número de Ministros do Tribunal Superior do Trabalho(8), o término da discussão acerca da competência para processar e
julgar habeas corpus, a manutenção do chamado poder normativo, entre
tantas outras questões. Mas o destaque mesmo fica por conta do aumento da competência material da Justiça do Trabalho. Inúmeras matérias que até então eram da competência da Justiça Estadual, como as
ações que envolviam a representação sindical, as ações que versavam
sobre a relação de trabalho e matérias a ela conexas, agora fazem parte
da Justiça do Trabalho. Questões processadas na Justiça Federal comum passam para a Justiça do Trabalho, como as execuções fiscais
trabalhistas, seus mandados de segurança e as ações declaratórias de
negação do débito.(9)
É preciso, todavia, se ter cuidado com algumas questões, que,
com certeza, trarão inicialmente mais dúvidas, mais perplexidades do
que soluções; entretanto, o tempo cuidará de colocar tudo em seu devido lugar.
(5) Isso se deu por força da Emenda Constitucional n. 20, de 15.12.1998.
(6) Não importa, neste passo, que a intenção tenha sido apenas a de arrecadar
dinheiro para os cofres públicos, o que merece ser ressaltado é que o legislador
entendeu que a Justiça do Trabalho, de todos os ramos do Poder Judiciário, poderia
exercer tal mister melhor do que qualquer outra. E, diga-se de passagem, mostrou-se,
neste campo, “campeã”.
(7) Como o chamado “controle externo” ou a súmula vinculante.
(8) De dezessete Ministros voltaram aos vinte e sete que existiam antes do término da
representação classista.
(9) Frise-se que da Justiça Federal comum já havia saído as execuções fiscais do
INSS, por força da EC n. 20/98, como já dito anteriormente.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
41
Para resolver enigmático problema que é o ajuste da competência,
faz-se necessário munir os Tribunais e os operadores do direito dos meios
necessários para tanto. O uso indiscriminado de ações, que aparentemente são da Justiça do Trabalho e que, em verdade não são, constitui
terreno minado, onde com frequência seremos todos vítimas de acidentes, se não estivermos com os equipamentos necessários.
Dedicaremos, por conseguinte, algumas poucas linhas para certas
questões que estão, até este momento, atormentando inúmeros operadores do direito, como a que trata da utilização ou não do Código de
Processo Civil, para as ações que eram de competência da Justiça estadual, o mandado de segurança em primeiro grau de jurisdição, e a incidência da Lei de Execução Fiscal (Lei n. 6.830/80).
II. A Consolidação das Leis do Trabalho ou o Código de Processo
Civil?
A CLT — para ficarmos apenas no campo processual — foi ideologicamente construída para buscar o equilíbrio nas relações jurídicas desiguais. Buscou-se privilegiar o hipossuficiente(10), de modo a lhe possibilitar melhores mecanismos para a reparação de uma lesão a seu
direito subjetivo que por ventura lhe tenha sido causado pelo patrão. Assim,
facilitou-se o acesso à justiça, sem a necessidade de contratação de
advogado; em caso de ausência do “reclamante” o “processo é arquivado”, na ausência do “reclamado” se declara a revelia e a possibilidade de
se aplicar a confissão presumida; para recorrer, o “reclamante” nada
paga — quando muito, no caso de improcedência de seus pedidos, as custas —; já o “reclamado”, se desejar recorrer, além das custas, ainda
necessita efetuar um depósito recursal; o juiz pode promover a execução ex officio, além de tantas outras facilidades no campo processual,
em favor do hipossuficiente.
O processo civil, ao contrário do que já foi preconizado, pugna
pela igualdade(11). Uma das idéias fundamentais que informa todo o processo civil, é aquela cristalizada no princípio da igualdade. Esta é vista
com tanta contudência, dentro do sistema processual civil, que o prof.
(10) Geralmente o empregado, sendo que atualmente quase sempre é o desempregado.
(11) “Art. 125 — O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código,
competindo-lhe: I — assegurar às partes igualdade de tratamento (...).”
42
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Arruda Alvim dedicou inúmeros tópicos de sua obra a ela. Disse o professor que “em nosso sistema jurídico o principal princípio, o princípio
motor é precisamente o da igualdade de todos perante a lei, ao qual se
agregam todos os demais que, em conjunto, formam o quadro componente dos princípios constitucionais vigentes”.(12)
E mais adiante: “este princípio da igualdade de todos perante a lei
se projeta densamente no Código de Processo Civil, como não poderia
deixar de ser, dado que se trata de um princípio constitucional ao qual
todo o ordenamento jurídico necessariamente está vergado”.(13)
Celso Agrícola Barbi também enaltece a igualdade, como forma
de um processo civil mais justo.(14) Nesta mesma esteira poderíamos
mencionar outros tantos processualistas.(15) Ora, não há como compatibilizar, de modo equiparativo, ideologicamente o processo civil e
o processo do trabalho. Tanto isto é fato, que a própria Consolidação
das Leis do Trabalho quando admite a aplicação supletória do Código de Processo Civil, exige, entre outros requisitos, a total compatibilidade da norma processual comum. Por conseguinte, pensamos
que nas ações cíveis há de ser aplicado o Código de Processo Civil,
deixando a Consolidação das Leis do Trabalho para as ações reguladas por ela, CLT.
Esse já é o mecanismo utilizado pelos juízes do Estado quando
no exercício da jurisdição trabalhista. Dispõe o texto da reforma, nos
moldes ideológicos do que já dispunha o anterior, que nas comarcas
não abrangidas pela jurisdição trabalhista, esta será exercida pelos
juízes do Estado. Ora, é plenamente lógico e racional que eles exerçam a jurisdição trabalhista aplicando a CLT e exerçam a jurisdição
cível aplicando o CPC. Qual a dificuldade? Qual o mistério? Mutatis
mutandis o raciocínio é o mesmo. Haveremos de continuar utilizando a
CLT, para os casos regulados por ela e o CPC, para as ações cíveis.
É evidente que alguns tantos problemas, de ordem puramente
operacional, surgirão inicialmente. Por exemplo: em caso de decisão
interlocutória poderá haver o agravo de instrumento, aviado diretamente
(12) Código de Processo Civil Comentado, São Paulo: RT, vol. V, p. 30, 1975.
(13) Ob. cit. p. 34.
(14) Comentários ao Código de Processo Civil, Rio de Janeiro: Forense, vol. I, 8ª ed., p.
314.
(15) Achamos, contudo, desnecessária essa tarefa.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
43
no Tribunal? E os embargos infringentes, como ficam? Os honorários
de advogado, deverão ser considerados? O ingresso no Judiciário deverá ser feito por intermédio de preparo, por tabela a ser estabelecida
pelo TST? Os autos deverão receber autuação diferente? Não faz sentido aplicar-se a CLT para as ações cíveis. Já imaginaram como ficarão
as pautas de audiências!? Se formos aplicar, rigorosamente, a CLT
para todas as ações, as contestações (rectius respostas) deverão ser
entregues em audiência, designadas para quando? Aí sim, será um
verdadeiro caos!?
Inúmeras questões serão levantadas inicialmente, como é, naturalmente, de se esperar. Ainda por exemplo: no caso de um autor ingressar
com uma ação pretendendo o reconhecimento do vínculo de emprego e
seus consectários e, na impossibilidade deste, o pagamento pelas comissões tratadas, já na qualidade de autônomo. Como promover a instrução processual? O advogado vai registrar os seus “protestos” ou vai
agravar? Quantas testemunhas serão ouvidas? Seria o caso de indeferimento da inicial por incompatibilidade de pedidos? Este é um pequeno
exemplo do que pode ocorrer. Faz parte...
De outro lado, se fizermos uma reflexão vamos verificar que em
determinadas situações a Justiça do Trabalho já aplica o Código de Processo Civil para as ações, naturalmente, cíveis. É o que acontece, por
exemplo, com a ação rescisória. Aplica-se quase que a totalidade das
regras procedimentais que constam no Código de Processo Civil, sem
que alguém pense que seja um absurdo.
No mandado de segurança aplica-se a sua lei, sem qualquer questionamento quanto a isto. Por que não ser assim com as demais ações
cíveis? Pensar em sentido contrário significa quebrar a unidade e a harmonia que devem presidir os dispositivos legais vigentes. As normas
processuais existem para atender as normas materiais. Logo, o processo do trabalho — assim entendido o que se encontra na CLT — atende
ao direito material do trabalho, não podendo deixar de ser diferente com
relação às ações cíveis.
É verdade que os Cartórios (ou seriam Secretarias?) ainda não
estão preparados para o recebimento de tantos processos. É verdade
que há falta de funcionários (já havia antes da reforma!). É verdade que
em muitas comarcas sequer há espaço físico para tanto papel. Tudo
deverá ser devidamente adaptado e preparado, inclusive os próprios Magistrados. Tudo faz parte da nova Justiça do Trabalho. São os novos
tempos. Não há como fugir da realidade. Somente recepcioná-la.
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NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
III. O mandado de segurança
Em sua nova redação, o artigo 114, no inciso IV, passa a autorizar
a impetração de mandado de segurança quando o ato questionado envolver matéria sujeita à jurisdição trabalhista.
Na Justiça do Trabalho, em diversas ocasiões, o mandado de segurança vinha sendo utilizado como sucedâneo recursal, em absoluta
desarmonia aos princípios norteadores do sistema trabalhista, mormente em face do princípio da irrecorribilidade das decisões interlocutórias.
Alguns justificam tal postura pelo fato de somente ser cabível o mandado de segurança contra ato de uma única espécie de autoridade, qual
seja, o magistrado. Assim, se este pratica ato abusivo ou ilegal, ainda
que tenha este ato natureza de decisão interlocutória, o mandado de
segurança seria, então, o único remédio jurídico a ser utilizado, combatendo-se, assim, uma decisão teratológica, com uma interpretação igualmente teratológica do instituto, já que não se pode deixar o cidadão sem
resposta para tais situações. Ademais, apenas em face dos atos praticados pelos próprios Juízes do Trabalho conhecia a Justiça do Trabalho
o mandado de segurança.
A reforma do Judiciário alterou esse panorama, posto que ao trazer
para a Justiça do Trabalho os executivos fiscais decorrentes das multas
aplicadas pelo Ministério do Trabalho(16), o caminho natural do mandado
de segurança passou a ser o primeiro grau de jurisdição trabalhista. Isso
sem falar do mandado de segurança em discussões relativas à representação sindical, na qual haja uma ilegalidade ou abusividade cometida
pelo poder público.(17)
Temos, assim, um elastecimento quanto ao campo de aplicação
do mandado de segurança, na Justiça do Trabalho. Isto porque os casos
em que se vinha admitindo o mandado de segurança continuarão sendo
apreciados pelos tribunais. A novidade reside no processamento do
mandado pelo primeiro grau de jurisdição.
É provável, com isso, que se passe a fazer uma nova interpretação
de velhos temas, já que a mudança de ambiente do mandado de segu(16) “Art. 114 — Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: (...) VIII — as
ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos
órgãos de fiscalização das relações de trabalho (...).”
(17) Note-se que pelo novel Texto Constitucional a competência para o mandado de
segurança é ampla, ou seja, sempre que o ato questionado envolver matéria sujeita à
jurisdição da Justiça do Trabalho.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
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rança pode levá-lo a uma nova exegese. Assim, poderemos ter novas
respostas para velhas perguntas, como, por exemplo, quem pode impetrar mandado de segurança na Justiça do Trabalho, uma vez que o artigo
primeiro, da Lei n. 1.533/51 se utiliza a expressão “alguém”, abrindo, em
tese, a possibilidade de impetração a toda e qualquer pessoa? O mandado de segurança coletivo também poderá ser utilizado? E se for possível a sua utilização, esta modalidade de writ somente pode ser manuseada por pessoa jurídica, em prol de seus membros ou associados
com anuência destes? Ou será que uma coletividade, um grupo de pessoas, por meio de um feixe de vontades convergentes, não poderia impetrar o mandado de segurança?(18)
Na acepção do Texto Constitucional de 1988 o sindicato deve ser
considerado como ente coletivo para fins de legitimação do mandamus?
Pensamos que sim, mas apenas na defesa “de direitos”; jamais “de interesses”, uma vez que estes fogem ao alcance da norma que regula o
mandado de segurança.(19)
Um partido político poderia impetrar mandado de segurança na
defesa de direitos violados ou ameaçados de determinado sindicato, nas
causas de competência da Justiça do Trabalho, na medida em que a lei
se utiliza, como já dito, da expressão “alguém”? A propósito, que um
partido político possa impetrar mandado de segurança ninguém duvida,
já que o Texto Constitucional de 1988 enumera, explicitamente, o partido político como ente legitimado a impetração do mandamus. Todavia,
daí a admitir um determinado partido político a ajuizar mandado de segurança na defesa de direitos de um agrupamento de pessoas, vestidas de
sindicato, é outra questão. Vejam que complicador... Podemos dizer
que dependendo da interpretação a ser dada, uma certa conturbação
quanto ao alcance da legitimação ativa para o uso do mandado de segurança poderá, em primeiro momento, surgir.
Encontraremos, por ser perfeitamente compreensível, algumas dificuldades — que até hoje ainda pontificam na Justiça Federal Comum —
quanto ao alcance do vocábulo “autoridade”. O que significa autoridade
pública? Ora, o direito brasileiro admite mandado de segurança contra
(18) Quer nos parecer que não, já que o mandado de segurança coletivo, estabelecido
pela Constituição Federal de 1988, deve ser restrito às pessoas jurídicas, em favor de
seus membros ou associados. De qualquer sorte...
(19) Nunca é demais lembrar que estamos no campo do mandado de segurança e não
no terreno da ação civil pública.
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NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
ato de qualquer autoridade, é o quanto basta para se gerar, em tese,
uma certa confusão.
De outro lado, vale ressaltar que o artigo 5º, da Lei n. 1.533/51
estabelece que “não se dará mandado de segurança quando se tratar: I
— de ato de que caiba recurso administrativo com efeito suspensivo,
independente de caução; II — de despacho ou decisão judicial, quando
haja recurso previsto nas leis processuais ou possa ser modificado por
via de correição; III — de ato disciplinar, salvo quando praticado por autoridade incompetente ou com inobservância de formalidade essencial”.
Em se tratando de writ em face de autoridade judicial, já estamos
escolados quanto ao alcance da norma, havendo farta jurisprudência trabalhista com relação ao tema; bem como até que ponto uma reclamação
correicional ou um agravo de petição servem de óbice a impetração do
mandado. Agora, todavia, passaremos a ter outras situações, como, por
exemplo, o ingresso na via judicial, por meio do mandado de segurança,
significará a desistência do recurso administrativo?(20) Se a decisão judicial for favorável ao impetrante, ela inutiliza e absorve a decisão administrativa desfavorável?(21)
Quanto ao procedimento a ser adotado, em sede de mandado de
segurança, não hesitamos em pugnar pela exclusão integral do regramento processual encontrado na Consolidação das Leis do Trabalho.
Verdadeira ação que é, o mandado de segurança mostra-se constituído
de várias fases, que vai desde a propositura, passando pelas informações, até a sentença.
O procedimento documental adotado para o mandado de segurança em tudo se afasta do procedimento trabalhista a que estamos acostumados a trabalhar. Este procedimento documental desobriga a produção de provas em juízo, ou seja, não há dilação probatória, havendo
obrigatoriedade do impetrante instruir a petição inicial com todos os documentos que fundamentam suas alegações. Qualquer dúvida com relação à materialidade do fato impede o seu conhecimento, por absoluta
ausência de um pressuposto processual objetivo; que é, justamente, a
liqüidez, a certeza, a incontestabilidade dos fatos.
(20) Parece-nos que não.
(21) Quer nos parecer que sim, inclusive, nesse caso, se dará a reintegração do
lesado em seus direitos, devolvendo-lhe tudo o que foi subtraído com a prática ilegal
ou abusiva. Até porque a sentença concessiva da segurança repercute no âmbito
administrativo.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
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A sentença que negar ou conceder a ordem será guerreada pela via
recursal. Na hipótese de negação do mandamus há de ser interposta a
apelação, de iniciativa do impetrante. No caso de concessão do writ,
além do recurso voluntário, haverá necessidade de remessa dos autos à
instância superior(22), ressaltando-se que a sentença proferida em mandado de segurança pode ser executada provisoriamente, quando a ordem é concedida.
O Ministério Público terá presença mais constante em primeiro
grau de jurisdição. Enfim, tudo com sabor de novidade.
III. A lei de execução fiscal
No âmbito das novidades, temos ainda uma parcela das execuções fiscais que passam para a Justiça do Trabalho.
O artigo 114, em seu inciso VII, permite agora a competência para
processar e julgar “as ações relativas às penalidades administrativas
impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações
de trabalho”. Este dispositivo não autoriza apenas as execuções, mas,
como versado claramente, todas “as ações”. Assim, os mandados de
segurança, as ações de conhecimento, além das próprias execuções,
também, passam para a Justiça do Trabalho. Neste passo analisaremos
apenas as questões que tratam da execução.
Todos que operam com o direito sabem que a execução é um
procedimento burocrático, formal e que enseja inúmeras manobras protelatórias, permitindo-se que o devedor estenda a resolução do processo
pelo máximo de tempo, levando a população a idéia de que a Justiça
descansa mais do que o bicho preguiça. Exemplo emblemático é o caso
“Naya”— do famigerado edifício Palace I que desabou e até agora poucos receberam alguma coisa —, entre tantos outros que vem contribuindo para que a pressão social, a doutrina e julgados mais recentes, induzam o legislador a rever velhos dogmas legislativos, com uma radical
mudança ideológica na percepção dos fenômenos modernos, formados
com base em situações e premissas completamente diversas daquelas
em que a maior parte das leis foi confeccionada.
(22) Na linguagem da Lei: “A sentença, que conceder o mandado, fica sujeita ao duplo
grau de jurisdição (...)”, art. 12.
48
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Fala-se — e não é de hoje — de crise no processo executório.
Todavia, olvidam-se, de um modo geral, que essa crise não é causada
apenas por fatores intrínsecos, como a própria burocracia, altamente
formalística, que envolve, de modo obsoleto, a execução. Fatores extrínsecos, fora do campo de atuação do magistrado, também contribuem
para a lentidão do processo executório.
A começar, no âmbito civilista, pelas inúmeras vozes que encontram necessidade de tratar o ser humano não pelo simples enfoque de
mero consumidor, mas em face de seus valores individuais, modificando-se, pois, a triste tendência atual de não mais se valorar o homem
como indivíduo em si. Isto porque se parte de uma interessante premissa de que no mundo moderno ou no universo ótico neoliberal, o cidadão
deve ser enfocado de acordo com as necessidades mercadológicas;
portanto, sempre visto como um consumidor em potencial. E como esta
potencialidade varia de acordo com o poder aquisitivo do consumidor,
ele, cidadão, será sempre medido pelo critério da quantidade. Explicase, lamentavelmente, por que tem mais valor a pessoa que tiver mais
riqueza material, já que, quanto mais dinheiro, mais apto a consumir
estará o indivíduo. Logo, pouco importam as virtudes do ser humano,
como ser bom pai de família, bom magistrado, bom médico ou um cidadão honesto. O que vale é a quantidade de dinheiro que aquele indivíduo
possui, levando-se em conta o critério de sinais de riqueza exterior, para
que possa ser atraído pelo jogo do marketing e se integrar como um
homem de “valor”. O critério, como se vê, é puramente quantitativo, fugindo, pois, por completo, ao âmbito do controle do magistrado, no exercício de suas atribuições funcionais. E isso, na prática, leva o devedor a
dever cada vez mais, pois que para manter “as aparências” de tudo é
capaz!?
Já foi época em que dever era uma grande desonra; pois que atualmente é uma grande desfaçatez. Nos primórdios do direito romano
(manus injectio), depois de trinta dias da condenação do devedor, este
poderia ser conduzido, pelo credor, de modo violento se necessário fosse, ao juízo, que depois de uma exortação punha sua mão em qualquer
parte do corpo do devedor, exteriorizando sua apreensão pessoal. A partir de então, ou o devedor quitava a dívida contraída, ou o credor o conduzia à prisão, no caso domiciliar, acorrentando-o, para posteriormente
apregoar o importe da dívida, por três feiras, a fim de que algum parente
ou amigos do devedor pudesse solver a obrigação contraída. Na hipótese
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
49
de ninguém aparecer, o credor poderia matar o devedor ou vendê-lo como
escravo. Mas não é só. Se fosse o caso de haverem inúmeros credores,
estes poderiam esquartejar o corpo do devedor, repartindo-o entre eles
os pedaços. Não precisamos dizer que nessa época o devedor procurava de todas as formas evitar as dívidas e as que porventura contraísse,
buscava ao máximo a sua quitação. Aliás, mesmo quando o devedor
cumpria a obrigação, havia uma marcação violenta em sua dignidade,
uma vez que a infâmia, a degradação da honra do devedor no meio social, que se aplicava ao indivíduo arruinado, eram registros característicos da velha execução.
Ocorre que, com o evoluir da sociedade, a execução passou a ter
limites, deixando, com isso, de ser pessoal para ser real, ou seja, não
mais se permite que o devedor possa ser preso por dívidas contraídas.
É evidente que essa humanização executória trouxe inúmeros
benefícios aos indivíduos: todavia, a referida humanização também
tem o seu lado negativo, como tudo na vida. É que a partir da modernização do processo (23) se passou a criar um novo ambiente social.
Atualmente, ser devedor não é mais uma vergonha; ao contrário,
muitas vezes deparamos, inclusive na grande mídia, com relatos de
devedores que orgulhosamente declaram que “devem, não negam,
mas somente pagarão quando puderem — se é que vão algum dia
pagar”. Logo, ser devedor não é mais um sinal de desonra. (24) Bem
observado por Roger Perrot que a exacerbação do respeito à liberdade individual e à vida privada tornaram vantajosa a posição de
devedor.(25)
Mas não é só. Como já registrado por Leonardo Greco:
“Há também um novo ambiente econômico. O patrimônio das pessoas não é mais essencialmente imobiliário. Houve uma extraordinária diversificação dos bens e dos tipos de investimentos pos(23) E isso se deu com a bonorum cessio, na fase da cognitio extraordinaria, na qual
se estabeleceu a impossibilidade da execução pessoal.
(24) Às vezes até de orgulho! Dependendo da índole do devedor, é claro. Certa vez,
caminhando pelo calçadão de uma praia, no Rio de Janeiro, em sentido oposto ao meu
passou um indivíduo em cuja camisa estava escrito: “Sou devedor, com muito orgulho.
Azar dos meus credores”!
(25) “L‘ffetività dei provvedimenti giudiziari nel diritto civile, commerciale e del laboro in
Francia”. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Milano: Giuffrè, ano XXXIX,
n. 4, p. 854, dez. 1985.
50
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
síveis, o que aumentou a dificuldade de conhecê-los. Ganhos com
a inflação e com as elevadas taxas de juros praticada no mercado
financeiro tornaram particularmente lucrativo o inadimplemento da
suas obrigações pelo devedor, que gira com o dinheiro do seu credor, auferindo grandes benefícios.”(26)(27)
Como se percebe, todas essas questões acabaram por contribuir
para a facilidade da inadimplência. A sensação de impunidade trabalhista acabou por incentivar o mau pagador, que usualmente diz ao
obreiro: “vá buscar os seus direitos na Justiça!” Ele vai, e não consegue
encontrá-los!
Pois bem, todos os complicadores do processo executório, até
então apenas trabalhista, passam também para o campo do processo
de execução fiscal.
A Lei de Execução Fiscal — n. 6.830/80 — não é nova dos operadores da área trabalhista, eis que supletoriamente já vinha sendo utilizada ao processo de execução trabalhista, como nos dá notícia o artigo
889 da CLT. Assim, esta é a fonte formal de direito supletoriamente
natural, na execução trabalhista, mormente se considerarmos que a Consolidação possui menos de vinte artigos sobre execução.
A lei que trata da cobrança judicial da dívida ativa da Fazenda
Pública tem o nítido escopo de impor uma maior agilização aos processos referentes à execução fiscal, mormente, porque traz um procedimento especial, diferente daquele que se pode encontrar na execução comum por obrigação de pagar quantia certa, incluso no Código
de Processo Civil. Portanto, com as mesmas intenções que orientam o
processo de execução trabalhista. Daí por que ela, Lei de Execução
Fiscal, é utilizada como fonte subsidiária do processo executório trabalhista. Agora, contudo, a Lei n. 6.830/80, não será utilizada como
fonte subsidiária de um determinado processo, mas como norma primária, fundamental. Isto porque passa a Justiça do Trabalho a ter
(26) “A execução e a efetividade do processo”. Revista de Processo, São Paulo, n. 94,
ano 24, p. 36, abr./jun. 1999.
(27) É o que ocorre, por exemplo, com os bancos. É muito mais negócio pagar o que
devem após anos de processo, já que com o dinheiro da dívida contraída fazem
empréstimos com juros elevadíssimos, quando, em contrapartida, pagam de juros, nas
execuções trabalhistas, 1% (um por cento) ao mês não capitalizados! Não é um
absurdo?
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
51
competência para executar as dívidas fiscais decorrentes das “penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de
fiscalização das relações de trabalho”. (28)
Todas as críticas que a doutrina faz em face da legislação executória em apreço, provavelmente, também serão aproveitadas pela Justiça
do Trabalho, como, por exemplo, os exagerados privilégios outorgados,
pela lei, em favor da Fazenda Pública, como a questão relativa a não
observância fiel a igualdade de tratamento (art. 125, I, do CPC); a necessidade de se intimar pessoalmente o representante da Fazenda Pública,
ao passo de o advogado do executado ser intimado por edital. A possibilidade de a Fazenda substituir os bens penhorados em termos amplíssimos, quando ao particular o franqueamento a esta substituição é restrito; a interrupção da prescrição do crédito fiscal, com o simples despacho liminar ordinatório, não havendo, no particular, necessidade de se
promover a citação, tornando-se, esta interrupção temporal, perpétua,
no caso de não se encontrar bens a penhorar ou não se encontrando o
próprio devedor, entre tantas outras prerrogativas processuais.
O magistrado trabalhista, com efeito, já está acostumado a dar
tratamento diferenciado a uma das partes contentoras, posto que assim
é a natureza do próprio processo do trabalho. Nas execuções fiscais, a
manutenção desse tratamento não será de difícil compreensão, sendo
que o raciocínio é no sentido de que o hipossuficiente não é uma pessoa
física, geralmente ex-empregado, mas a própria Fazenda Pública. Se a
Lei n. 6.830/80 é, para muitos, ideologicamente incompatível com o Texto Constitucional moderno, posto que em matéria de processo, outorga
privilégios e prerrogativas a determinados litigantes e isto somente se
tolera como exceção, ou seja, no indiscutível interesse público ou social, é outra questão. O fato é que o Juiz do Trabalho não terá dificuldades em entender e aplicar a norma em apreço, no seu campo ideológico.
As dificuldades que por ventura possam ser encontradas, são aquelas
diretamente relacionadas aos empecilhos de todo e qualquer processo
executório. Mas não quanto ao entendimento da norma.
No que diz respeito à ambientação da magistratura, não vislumbramos maiores dificuldades. Isto porque trata-se de um processo eminentemente documental e repetitivo. A matéria é sempre a mesma. Assim,
o procedimento não varia de um caso para outro. São todos iguais. Se(28) Art. 114, inciso VII, da Constituição Federal.
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NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
quer há, na prática, audiência. A citação, a contestação, o saneamento,
a correção da moeda, os juros, as matérias dos embargos, enfim, tudo
em série. O Tribunal não será assediado por agravo de instrumento, posto que as decisões interlocutórias, em causas de alçada, assim como
no processo do trabalho, não toleram recursos. As dificuldades ficam
por conta daquilo que já conhecemos, como, a falta de funcionários,
instalações precárias, a falta de espaço físico para a guarda dos autos,
maior fluxo de advogados na Justiça do Trabalho, entre outras questões
que não são novidades.
IV. Conclusão
Como podemos observar, nos três temas escolhidos, dentre tantos outros existentes, a Justiça do Trabalho terá uma face nova, completamente diferente de tudo o que já se viu. Devemos, assim, todos nós,
operadores do direito, prepararmo-nos para os novos tempos. Difíceis,
sem dúvida; entretanto, ainda que possa parecer paradoxal, melhores.
Aliás, têm colegas que ainda acham que a competência deveria ter sido
mais ampliada, com as questões criminais, por exemplo.(29)
Por fim, vale lembrar as palavras do Professor Ovídio Baptista, exemplo de jurista inovador, para quem novas medidas para uma melhor prestação jurisdicional, nunca podem ser olvidadas: “Embora se deva reconhecer o inegável mérito das tentativas de modernização de nosso processo ..., todas elas, como já dissemos, serão incapazes de produzir uma transformação significativa em nossa experiência judiciária.
Sem uma profunda e corajosa revisão de nosso paradigma, capaz de
torná-lo harmônico com a sociedade complexa, pluralista e democrática da experiência contemporânea, devolvendo ao juiz os poderes
que o iluminismo lhe recusara, todas as reformas de superfície cedo
ou tarde resultarão em novas desilusões”.
E mais adiante continua o mestre: “Como temos insistido em dizer, é indispensável, e mais do que indispensável, urgente, formar juristas que não sejam, como agora, técnicos sem princípios, meros intér(29) Não devemos nos esquecer que além de toda a matéria já aprovada, que já faz
parte da nossa realidade trabalhista, ainda retornou, para a Câmara dos Deputados,
duas questões que ainda ampliarão mais a competência, quais sejam: a execução, de
ofício, das multas por infração à legislação trabalhista, reconhecida em sentença que
proferir e a execução, de ofício, dos tributos federais incidentes sobre os créditos
decorrentes das sentenças que proferir.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
53
pretes passivos de textos, em última análise, escravo do poder (Michel
Villey, Lençons d`histoire de la philosophie du droit, Paris, 1957, p.109),
pois o servilismo judicial frente ao império da lei anula o Poder Judiciário
que, em nossas circunstâncias históricas, tornou-se o mais democráticos dos três ramos do Poder estatal, já que, frente ao momento da crise
estrutural e endêmica vivida pelas democracias representativas, o livre
acesso ao Poder Judiciário, constitucionalmente garantido, é o espaço
mais autêntico para o exercício da verdadeira cidadania”.(30)
(30) Jurisdição e Execução, Rio de Janeiro: RT, 1996, p. 210.
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NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Relação de Trabalho: Enfim, o Paradoxo Superado
Cláudio Mascarenhas Brandão (*)
Enfim, chega-se ao final da tão propalada Reforma do Poder Judiciário. Doze anos se passaram, na verdade quase treze, desde o seu
início por meio de proposta apresentada pelo então Deputado Hélio Bicudo (PT/SP) em 26 de março de 1992, à qual foram apensadas outras que
tratavam de idêntico tema, até a promulgação da EC n. 45/04, no dia 8 de
dezembro último.
Viviam-se os estertores da Era Collor;(1) Lula combatia ferozmente na
oposição; iniciava-se o processo de demarcação das terras indígenas;(2)
realizou-se uma das mais importantes conferências das Nações Unidas
sobre meio ambiente (Rio-92)(3) ; Jânio Quadros falecera;(4) o Judiciário
era combatido pela morosidade.
Hoje, Lula é Presidente; Genoíno é governo; continua a luta dos
índios pela demarcação de suas terras; a preservação do meio ambiente
permanece na pauta das tratativas da ONU; o Judiciário continua sendo
taxado de moroso.
Tal como uma adolescente, a “Emenda do Judiciário” chega marcada por incertezas (limites da competência da Justiça do Trabalho,
para alguns); ansiedades (da população quanto ao futuro do Poder Judiciário); acaloradas discussões (súmula vinculante) e muita expectativa
quanto ao seu futuro.
(*) Juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região/BA. Mestrando em Direito pela
UFBA. Professor de Direito Processual do Trabalho da UNIFACS — Salvador/BA.
Professor de Direito Empresarial da FTE — Salvador/BA.
(1) A revista Veja publicou em 10.5.92 as denúncias de Pedro Collor de Mello sobre o
“esquema PC” e a CPI para investigar as denúncias contra Paulo César Farias é
instalada em 26.5.92.
(2) Na verdade, iniciado no ano anterior, com a demarcação do Parque Nacional do
Xingu, em 25 de janeiro de 1991.
(3) A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 3
a 14.6.92.
(4) Em 16.2.92.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
55
Num ponto, contudo, merece destaque e encômios da magistratura trabalhista e, por que não afirmar da sociedade brasileira: a ampliação
da competência da Justiça do Trabalho.
Rompe, definitivamente, com os laços do passado, da vetusta Justiça do Emprego, para tornar-se, verdadeiramente, a Justiça do Trabalho, ou melhor, de todo o trabalho, ou, melhor ainda, das variadas formas
do trabalho humano.
Com esses olhos deve ser vista e apreciada a nova redação do
inciso I do art. 114. Inicialmente, despida de preconceitos e de visão
restritiva. Não se pode analisar o futuro com os olhos no passado, senão
para colher as experiências positivas. Nada há que possa comparar o
novo modelo do Judiciário Trabalhista com aquele dos anos 40. Não se
trata mais da justiça voltada para a aplicação das leis destinadas à regulamentação do contrato de emprego.
O juiz do trabalho (verdadeiramente do trabalho) de hoje deve assumir com firmeza as suas novas atribuições e lutar para a preservação da
competência que lhe foi outorgada.
Aos tribunais cabe a tarefa inicial de imprimir uma visão prospectiva, igualmente firme na defesa dos novos paradigmas de atuação da
Justiça Laboral, refutando qualquer tentativa de mitigar a interpretação
trazida pelo novel dispositivo.
E o que há de novo? Pode-se efetivamente extrair a ilação de que
há novos paradigmas a serem observados? A resposta efetivamente há
de ser positiva.
Interpretação histórica
Deve-se recorrer, inicialmente, à interpretação histórica na tentativa de alcançar a vontade manifestada pelo legislador (no caso o constituinte derivado). Ciente da existência de um novo mundo do trabalho,
especialmente marcado pela crise do emprego e utilização de novos
modelos na cessão de mão-de-obra de terceiro, a Carta Magna vem
atender a esse anseio da sociedade, dotando o ramo especializado do
Judiciário de competência que os abarque de forma plena.
A comparação das versões pelas quais passou o texto em foco a
tanto conduz. Na relação original — caput do art. 114 — a competência
era definida a partir da identificação dos sujeitos da relação jurídica ali
contemplada: de um lado o trabalhador, o sujeito ativo, aquele que exe-
56
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
cuta o trabalho, e, de outro, o empregador, o que aufere o resultado
propiciado pelo labor. Ou seja, a referência ao último limitava o alcance
do vínculo citado no dispositivo, que era considerado pela doutrina e
jurisprudência como o definido no art. 442, da CLT.
No curso da tramitação da emenda, numa de suas versões, precisamente no relatório apresentado pela Deputada Zulaiê Cobra Ribeiro
(PSDB/SP), chegou a constar a expressão relação de emprego, a qual
foi alterada por emenda que contou com o decisivo apoio do Deputado
Mendes Ribeiro (PMDB/RS) e da liderança do PT; aprovada no Plenário
da Câmara, introduziu o texto que constituiu o núcleo daquele que foi
promulgado.
Ora, se possuíssem o mesmo conteúdo, não existiria razão para
que fosse modificada a redação (originariamente do art. 115). Se o foi,
uma única conclusão pode ser extraída: buscou-se ampliar o alcance
da regra.
Relação de trabalho e relação de emprego
No texto atual, contudo, o que se vê é a introdução de um novo
conceito, uma nova denominação — relação de trabalho. Indaga-se: seriam, então, expressões sinônimas?
Sem embargo de reconhecer que existem autores que as compreendem de forma sinônima, a exemplo de Octavio Bueno Magano,(5) no
Brasil, e Mario de La Cueva,(6) no México, não é menos verdadeiro salientar que posições contrárias também são encontradas, como afirma
José Augusto Rodrigues Pinto, que opta pela denominação “contrato de
emprego” exatamente para marcar o caráter subordinado do vínculo por
ele gerado, que irá assinalar, de forma indelével, essa modalidade de
contrato. O contrato de trabalho somente poderia ser utilizado como
denominação se viesse seguido do adjetivo subordinado.(7)
Orlando Gomes, ao tratar do contrato que define a força do trabalhador com vínculo de subordinação como objeto, apesar de reconhecer
(5) MAGANO, Octavio Bueno. Manual de Direito do Trabalho, v. II, 2ª ed. São Paulo:
LTr, 1988, p. 19-24.
(6) CUEVA, Mário de La. Derecho Mexicano del Trabaho, t. 1, 3ª ed. México: Porrua,
1949, p. 425-457.
(7) PINTO, José Augusto Rodrigues. Curso de Direito Individual do Trabalho, 4ª ed.
São Paulo: LTr, 2000, p. 154.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
57
que a denominação “contrato de trabalho conquistou foros de cidade”,
afirma que contrato de emprego é uma denominação muito mais adequada, inclusive por eliminar a ambigüidade que o termo trabalho suscita,
por sua amplitude. É muito mais restritivo, dele derivando-se as denominações dos seus sujeitos, empregado e empregador, além de traduzir de
forma mais expressiva o seu conteúdo, que é o trabalho subordinado.(8)
Não é outra a conclusão extraída de Mauricio Godinho Delgado. Ao
fazer o confronto entre relação de trabalho versus relação de emprego,
salienta que há nítida distinção entre ambas; a primeira possui um caráter
genérico e, por isso, refere-se a todas as relações jurídicas que são marcadas pelo fato de ter como prestação essencial aquela centrada em outra obrigação de fazer, consubstanciada em labor humano; refere-se, assim, a toda modalidade de contratação de trabalho humano modernamente admissível, englobando, portanto, a segunda, a relação de emprego,
que é encarada, do ponto de vista técnico-jurídico, apenas como uma das
suas modalidades próprias; é um tipo legal e específico, inconfundível
com os demais tipos de relação de labor, embora seja considerada, ainda
segundo o mesmo autor, como a mais relevante forma de pactuação de
prestação de trabalho, do ponto de vista econômico-social.(9)
Também Evaristo de Moraes Filho e Antônio Carlos Flores de
Moraes compreendem que a expressão contrato ou relação de emprego
é a mais adequada para caracterizar o labor com vínculo subordinado,
embora reconheçam que o uso consagrou a denominação relação de
trabalho.(10)
No mesmo sentido Mozart Victor Russomano. Ao explicar a distinção entre as duas espécies de relação jurídica (de trabalho e de emprego), afirma que a primeira é o gênero da qual a segunda é uma das suas
espécies e, de forma simples, diz: “a relação de emprego sempre, é
relação de trabalho; mas, nem toda relação de trabalho é relação de
emprego, como ocorre, v. g., com os trabalhadores autônomos (profissionais liberais, empreitadas, locações de serviços, etc.)”.(11)
(8) GOMES, Orlando. Curso de Direito do Trabalho: de acordo com a Constituição de
1988, 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 133.
(9) DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2002,
p. 279-280.
(10) MORAES FILHO, Evaristo; MORAES, Antônio Carlos Flores de. Introdução ao
Direito do Trabalho, 5ª ed. rev. e atual. São Paulo: LTr, 1991, p. 214.
(11) RUSSOMANO, Mozart Victor. Curso de Direito do Trabalho. 9ª ed. rev. e atual.
Curitiba: Juruá, 2002, p. 69-70.
58
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Fundamento constitucional
Uma outra pergunta, então, se impõe: a partir da interpretação dos
dispositivos contidos no Texto Constitucional, haveria fundamento para
se concluir que seria uma nova espécie de relação jurídica a ampliar os
limites da competência, traçados na EC n. 45/04, ou, de modo contrário,
se pode considerar que a expressão relação de trabalho equivale à velha
relação de emprego?
A resposta advém a partir da própria redação trazida pela Emenda
Constitucional em referência, quando deixou de lado os parâmetros até
então delineados (trabalhador e empregador) para adotar um outro,
cujos limites são prioritariamente traçados pelo conteúdo do vínculo e
não mais pela identificação dos seus sujeitos.
Ao dispor sobre a proteção em face da dispensa arbitrária ou sem
justa causa, como direito assegurado ao empregado, no art. 7º, I, ainda
carente de regulamentação — e espera-se que um dia deixe de ser apenas previsão para tornar-se norma efetiva —, o constituinte valeu-se da
expressão “relação de emprego”, exatamente para precisar o alcance do
preceito.
Ora, se fossem expressões de idêntica significação, nada justificaria a adoção de um outro conceito, sabendo-se que o legislador, em
especial o constituinte, neste caso o derivado, deve preferentemente valerse de conceitos jurídicos precisos exatamente para afastar qualquer possibilidade de dúvida na sua interpretação.
Alcance da expressão
Isso quer dizer que na Constituição Federal são utilizadas duas
denominações diferentes: a primeira, de conteúdo restrito, identifica o
vínculo que ata o empregado e o empregador; a segunda, de alcance
dilatado, para, rompendo com essas amarras, contemplar outras espécies de relações jurídicas marcadas pelo fato de possuírem, como seu
conteúdo, a prestação de serviço.
Portanto, não há como se explicar a inserção de duas denominações distintas para configurar supostamente a mesma relação jurídica,
salvo se se admitir a diferença entre ambas.
Esse argumento, por si só, já autoriza a ilação que se pretende
extrair no sentido de ser a regra do art. 114, I, representativa das rela-
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
59
ções jurídicas que envolvem as formas de labor humano, sem que se lhe
possa limitar o alcance.
Por isso, pode-se perfeitamente concluir que a Justiça Especializada
deixa de ser a “justiça do trabalho” na adjetivação que tradicionalmente
se lhe dava, no sentido de corresponder à justiça que envolve o labor de
natureza subordinada, para significar, desta feita, a “justiça dos trabalhos”, isto é, das variadas formas de trabalho independentemente do
direito material aplicável.
A expressão utilizada (relação de trabalho) representa o vínculo
que se estabelece entre a pessoa que executa o labor — o trabalhador
propriamente dito, o ser humano que empresta a sua energia para o
desenvolvimento de uma atividade — e a pessoa jurídica ou física que é
beneficiária desse trabalho, ou seja, aufere o resultado proveniente da
utilização da energia humana por parte daquele.
Estariam aí incluídas as atividades executadas por trabalhadores
das mais variadas espécies: além daquela de natureza subordinada, que
já era tradicionalmente submetida ao crivo de apreciação desse ramo do
Judiciário, ter-se-ão, agora, as diversas outras modalidades que ficaram
afastadas, a exemplo daquela realizada pelo trabalhador autônomo; pelo
trabalhador eventual; pelo trabalhador que executa serviço de natureza
gratuita (na hipótese de lesão à integridade física, por exemplo); pelo
estagiário (da qual advém efeitos patrimoniais ou não em virtude dos
quais pode possuir uma demanda em face do tomador dos seus serviços
– expressão utilizada para identificar a pessoa que obtém o resultado da
atividade por ele executada), como o seguro para cobertura de acidentes
pessoais que por lei está a cargo da pessoa jurídica que o contrata.
O representante comercial e o empresário, neste caso, quando
prestam serviços individualmente para pessoa física ou jurídica, sem o
auxílio de terceiros, também são outros exemplos.
O servidor público em sentido amplo, pois, independentemente da
natureza do vínculo criado com a administração pública, de natureza
estatutária ou não, inexistem dúvidas no que toca ao objeto da relação
jurídica mantida: o trabalho, a execução de um serviço.
O raciocínio que se deve ter em mente, a lógica a ser utilizada na
interpretação, parte do confronto entre as duas versões do dispositivo:
na antiga, nenhuma forma de trabalho poderia estar submetida à competência da JT, à exceção daquele de natureza subordinada, salvo quando
houvesse lei especial que a definisse, em face da ressalva contida na ex-
60
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
pressão “e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação
de trabalho”, na parte final do caput do mesmo art. 114.
Significava dizer que apenas o trabalho subordinado estava albergado pela norma constitucional, salvo quando houvesse lei que, de modo
expresso, atribuísse tal encargo, a exemplo do ocorrido com o trabalho
temporário (Lei n. 6.019/74) ou o empreiteiro operário ou artífice (art.
652, III, da CLT), diante da subjetivação que decorria das expressões
trabalhador e empregador, limitadoras do alcance do dispositivo constitucional e da exceção já referida.
Agora, a compreensão do preceito deve ser outra: quando se utiliza
de expressão de sentido amplo, o que se pode concluir é que a regra deve
ser inclusiva: todos os trabalhos estão aqui referenciados, ressalvados
apenas aqueles casos previstos na própria norma constitucional.
Trabalho
E o que é, então, trabalho? Para Daphnis Ferreira Souto é “todo
esforço que o homem, no exercício de sua capacidade física e mental,
executa para atingir seus objetivos em consonância com princípios
éticos”(12) e, juridicamente, corresponde à “atividade física ou intelectual
exercitada pelo homem com o fim de realizar uma produção”(13) ou o
“efetivo exercício de uma profissão, um emprego ou uma ocupação”.(14)
Para Arnaldo Süssekind, “toda energia humana, física ou intelectual,
empregada com um fim produtivo, constitui trabalho”.(15)
Após destacar o caráter complexo do vocábulo e dissertar sobre as
múltiplas correntes quanto à sua origem, Evaristo de Moraes Filho e Antônio Carlos Flores de Moraes formulam, com apoio em Radbruch, um conceito genérico que abrangeria todos os possíveis ângulos que pudesse
ostentar, oriundos do conhecimento humano, tais como a fisiologia, a
psicologia, a psicotécnica, a economia, o direito, a filosofia, etc., vendo-o
como “objetivamente correlativo de impulso, isto é, de aplicação da força
impulsiva a qualquer produção ou realização de um fim humano”.(16)
(12) SOUTO, Daphnis Ferreira. Saúde no Trabalho: uma revolução em andamento.
São Paulo: SENAC, 2003, p. 37.
(13) Ibid., p. 41.
(14) Ibid., loc. cit.
(15) SÜSSEKIND, Arnaldo. Curso de Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Renovar,
2002, p.3.
(16) MORAES FILHO, Evaristo de; MORAES, Antônio Carlos Flores de. Op. cit., p. 17-18.
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Conclusão
Em rápidas pinceladas, essa é a interpretação que se julga adequada para os novos limites traçados competência atribuída à Justiça do
Trabalho: relação jurídica que tem na execução do trabalho o seu objeto.
E por que o paradoxo superado? Porque não se justificava a existência de uma justiça especializada na solução de conflitos dessa natureza, mas que se restringia, primordialmente, à apreciação de uma de
suas espécies: o trabalho subordinado.
Nunca é tarde para corrigir equívocos e a Emenda Constitucional n. 45,
no apagar das luzes do ano de 2004, vem a fazê-lo. Espera-se, contudo,
que triunfe essa interpretação, despida de preconceitos que, via de
regra, se identifica em relação à Justiça do Trabalho.
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NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
A Nova Justiça do Trabalho —
Competência e Procedimento
Edilton Meireles (*)
1. Introdução
Nosso espaço, por questões editoriais, é limitado. Tratarei, portanto, da competência da Justiça do Trabalho, em face da Reforma do Poder Judiciário, de forma quase telegráfica, procurando açambarcar diversas questões que merecem reflexões.
Nesta introdução, no entanto, não posso deixar de lembrar que,
mais remotamente, as novas competências da Justiça do Trabalho
antecipam, no aspecto processual (numa inversão da ordem natural), a
reconfiguração do direito do trabalho, para incluir em seu objeto, não
só o trabalho subordinado, mas todo o trabalho prestado por pessoa
física. Sobre essa tendência, é indispensável a leitura do Relatório da
Comissão Boissonnat (Le travail dans vingt ans. Paris: Odile Jacob,
1995)(1) e do Relatório Supiot (Au-delà de l’emploi. Transformations
du droit du travail et devenir du droit du travail em Europe. Paris:
Flammarion, 1999)(2).
Diria, ainda, nesta quadra, que a Reforma do Judiciário visa a reforçar a natureza social de nossa Constituição, com a valorização do trabalho humano (art. 1º, inciso IV, c/c caput do art. 170 da CF), ao estabelecer um órgão judicial próprio e especializado, com status constitucional,
para julgar as suas causas, sem esquecer que o constituinte fez a opção por prestigiar o contrato de emprego como modelo preferencial nesse desiderato (inciso VIII do art. 170 da CF).
(*) Juiz do Trabalho da 23ª Vara do Trabalho/SSa/Ba. Mestre e Doutor em Direito (PUC/SP).
(1) Publicado no Brasil com o título 2015 Horizontes do Trabalho e do Emprego, Jean
Boissonnat, São Paulo: LTr, 1998.
(2) Publicado no vernáculo português sob o título Transformações do trabalho e
futuro do trabalho na Europa, Coimbra: Coimbra Editora, 2003. Recomendo, ainda, a
leitura do livro Um futuro para el trabajo em la nueva sociedad laboral, Ramón Jáurigui
Atonido et alii, Valencia: Tirant lo Blanch, 2004.
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É certo, porém, que o reformador constitucional, em matéria processual, foi muito mais além do emprego, ao estabelecer a competência, em razão da matéria (grosso modo) para um órgão especializado do
Poder Judiciário Nacional.
2. Da competência
Para pensarmos a nova Justiça do Trabalho é indispensável, antes
de tudo, que esqueçamos o que ela era em matéria de competência. O
que era, provavelmente, jamais voltará a ser. É preciso ter a mente aberta para repensar e entender a nova Justiça do Trabalho, sem preconceitos e sem medo para bem cumprir a missão constitucional originada do
constituinte derivado.
Fazendo uma comparação um tanto quanto forçada, diria que antes a Justiça do Trabalho era um médico especializado. Ao lado dela,
tínhamos (e ainda temos) um médico clínico (a Justiça Estadual, grosso
modo, com competência para todas as ações, contra todos) e um médico clínico especializado (a Justiça Federal, com competência para todas as ações em face de uma categoria de pessoas).
Contudo, com a Reforma do Judiciário, o juiz do trabalho, em sua
nova competência, deixa de ser um médico especializado, para se tornar, tal como o juiz federal, um médico clínico especializado (grosso
modo, em face da matéria). Seria uma espécie de médico geriatra: clínico (para todas as ações/doenças) e, ao mesmo tempo, especializado
(em face de determinadas pessoas em suas relações de trabalho, em
regra).
Pensando o nosso Judiciário como um todo, em relação ao processo civil, diria que o juiz federal ocupa uma vara especializada da
Fazenda Nacional, o juiz do trabalho uma vara especializada social (ou
do trabalho em sentido amplo) e o juiz estadual uma vara com competência remanescente (ou vara de família, vara comercial, etc). E a essa
conclusão chegamos a partir da análise do novo art. 114 da CF, que
transformou a Justiça do Trabalho numa nova Justiça.
2.1. Relação de trabalho e seu objeto (incisos I e VI)
Numa definição bem aceita, e bastante objetiva, tem-se uma relação de trabalho quando uma pessoa física presta serviços a outrem. E,
para ficar bem claro, relação de emprego, por sua vez, é a relação de
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NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
trabalho na qual a pessoa física presta serviços a outrem de forma subordinada (salariado). Aquela gênero, esta espécie.
Contudo, não basta a mera prestação de serviços a outrem, por
parte de uma pessoa física, para que daí surja uma relação de trabalho.
É preciso que o objeto da relação jurídica seja o trabalho.
Para uma melhor compreensão, podemos nos valer da classificação dos contratos quanto ao objeto. Carlos Alberto Bittar, por exemplo,
classifica os contratos quanto ao objeto em: de alienação de bens, de
transmissão de uso e de gozo, de prestação de serviços, de conteúdo
especial e os associativos(3).
Esclarece, ainda, que “os contratos de prestação de serviços são
os que envolvem a utilização de energia pessoal alheia, em si, ou na
consecução de coisas materiais ou imateriais definidas (produção de
bens, ou criações intelectuais)”(4). Compreendem não só o contrato
de emprego como “o serviço, ou a obra final (como na empreitada, ou na
encomenda de obra intelectual, em que o objetivo é o resultado específico do trabalho: a obra ou a criação)”(5).
Já Orlando Gomes — no que nos interessa — classifica os contratos pela sua função econômica (objeto) em: de troca, associativos, de
prevenção de riscos, de crédito e de atividade(6), advertindo que “o mesmo negócio é incluído em categorias distintas, se exerce dupla função...
Mas como a disciplina dos negócios se particulariza de acordo com a
sua função prática, o conhecimento e a classificação das principais categorias interessam ao jurista para a fixação do regime a que se devem
subordinar ” (7). Essa mesma advertência, aliás, é ressaltada por Carlos
Alberto Bittar, que reconhece que “cada grupo de contratos conserva
certos pontos de contato”(8).
Dentre os contratos de atividade, o mestre Orlando Gomes exemplifica com o: de prestação de serviços, de empreitada, de mandato, de
agência, de comissão, de corretagem e o de depósito(9). Destaca, porém, que os de fazer (prestar um serviço) também se incluem na
(3) Direito dos contratos e dos atos unilaterais. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1990, p. 96.
(4) Ibidem, mesma página.
(5) Ibidem, p. 96-97.
(6) Contratos, 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 93-94.
(7) Ibidem, p. 98.
(8) Ob. cit., p. 97.
(9) Ob. cit., p. 98.
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categoria de contratos de troca (fazer algo em troca de outro fazer ou
em troca de uma obrigação de dar)(10), já que “realizam-se para a circulação de riquezas”(11), sem que, com isso, deixem de ser, também, contratos de atividade.
Cabe destacar, outrossim, que nos contratos associativos (de sociedade, de parceria, etc.) a eventual “prestação de um dos contratantes
não é a causa da contraprestação do outro”(12), já que as partes “reúnemse em torno de objetivos comuns, comungando esforços e bens para a
sua consecução e mantendo-se, sob liames espirituais e patrimoniais,
vinculados à pessoa jurídica decorrente (na sociedade), ou à relação
originária”(13), daí por que eles não são tidos como contratos de atividade.
Contudo, a Carta Magna não fala em contrato de trabalho (de atividade), mas, sim, em relação de trabalho, o que faz pressupor que procura,
acobertar outras situações jurídicas que envolvem a prestação de serviço e que não se revelam por meio do contrato de atividade. Cabe esclarecer, inclusive, que toda relação jurídica se estabelece em função de
um fato gerador (fatos jurídicos). E o contrato é apenas um dos fatos
jurídicos capazes de gerar uma relação jurídica.
Encontra-se acobertado pela definição da relação de trabalho, assim, todo e qualquer tipo de contrato de atividade em que o prestador de
serviço seja uma pessoa física. Nesta categoria, portanto, incluem-se
os contratos de emprego, de estágio, de trabalho voluntário, de trabalho
temporário, de atleta não-profissional (inciso II do parágrafo único do art.
3º da Lei n. 9.615/98), de prestação de serviço, de empreitada, de depósito, de mandato, de comissão, de agência e distribuição, de corretagem, de mediação, de transporte, de representação comercial e outros
porventura existentes.
Pode-se, ainda, incluir no seu conceito, a depender do caso concreto, as relações jurídicas decorrentes da gestão de negócios e da promessa de recompensa (“do desempenho de certos serviços”, art. 854 do CC),
enquanto atos unilaterais de vontade geradores de relações de trabalho.
Incluem-se, outrossim, no conceito de relação de trabalho, outras
situações jurídicas nas quais haja um ser humano prestando serviço a
(10)
(11)
(12)
(13)
Ibidem, p. 94-95.
Ibidem, p. 94.
Ibidem, p. 96.
BITTAR, Carlos Alberto, ob. cit., p. 97.
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outrem, tendo por objeto o trabalho, como aquelas decorrentes da prestação de serviços do diretor e/ou do administrador da sociedade, dos
membros dos conselhos fiscais e de administração das pessoas jurídicas, do administrador das demais pessoas jurídicas, etc.
Inclui-esse, ainda, nesse conceito os serviços prestados pelos servidores estatais (em sentido amplo, civis e militares), que mantêm uma
relação de trabalho de natureza profissional, em caráter não-eventual ou
eventual, sob vínculo de dependência com a Administração Pública. São
os servidores públicos civis e militares, os empregados públicos, os contratados por excepcional interesse público, os que firmam contratos de
prestação de serviços com a Administração Pública, os empreiteiros
(pessoa física), etc.
Neste rol, no entanto, não se inclui os agentes políticos, já que
estes não mantêm com o Estado uma relação “de natureza profissional,
mas de natureza política. Exercem munus público. Vale dizer, o que os
qualifica para o exercício das correspondentes funções não é a habilitação profissional, a aptidão técnica, mas a qualidade de cidadãos, membros da civitas e, por isto, candidatos possíveis à condução dos destinos da Sociedade”(14).
O mesmo se diga dos “requisitados para prestação de atividade
pública, quais os jurados, membros de Mesa receptora ou apuradora de
votos quando das eleições, recrutados para o serviço militar obrigatório,
etc. Estes agentes exercem um munus público”(15), além dos “delegados de função ou ofício público, quais os titulares de serventias da Justiça não oficializadas”(16). Destaque-se que, dentre os “requisitados” pelo
Poder Público, podem ser incluídos os membros de comissões (de licitação, de concurso, etc.), membros de conselhos (da Criança e Adolescentes, da República, etc.), o interventor nas liquidações extrajudiciais,
os ocupantes de funções honoríficas e os auxiliares da justiça (perito,
depositário, administrador, conciliador, síndico da massa falida, comissário na concordata, jurados, juízes temporários, etc.).
Frise-se, todavia, que por não ter por objeto o trabalho, não se
incluem no conceito de relação de trabalho as relações jurídicas formadas por laços matrimoniais ou de companheirismo (união estável), as
(14) MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo, 17ª ed., São
Paulo: Malheiros, 2004, p. 229-230.
(15) Ibidem, p. 232.
(16) Ibidem, mesma página.
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decorrentes do exercício do poder familiar, inclusive em face da adoção,
da tutela e da curatela, bem como em face das relações societárias (inclusive em cooperativas), associativas (relação de associação ou filiação) e
de gestão da coisa comum (condomínio e co-propriedade), ainda que,
nessas hipóteses, uma pessoa física possa prestar serviços a outrem.
Deixando clara a abrangência dessa competência, o reformador
constitucional (de modo dispensável, aliás) ainda preceituou que à Justiça do Trabalho cabe julgar “as ações de indenização por dano moral ou
patrimonial, decorrentes da relação de trabalho” (inciso VI do art. 114).
Esse dispositivo, ao certo, serviu muito mais para acabar com as controvérsias quanto à competência para julgamento dos feitos em que se
pede o ressarcimento de danos morais e materiais, inclusive quando
decorrentes do acidente de trabalho.
Daí se tem, por exemplo, para dirimir dúvidas, que celebrado um
contrato de prestação de serviços entre o paciente e o médico, eventual
litígio decorrente dessa relação de trabalho deve ser julgado pela Justiça
do Trabalho. Se se pretender, outrossim, uma indenização decorrente
de erro médico, da mesma forma, competirá à Justiça do Trabalho o julgamento da ação de ressarcimento respectiva. O mesmo se diga quanto a
qualquer outra relação de trabalho, a exemplo daquela formada pelo advogado e seu cliente, podendo o causídico, por exemplo, cobrar seus
honorários na Justiça do Trabalho ou o cliente pedir indenização por
danos causados por aquele. Da mesma forma, a ação de indenização
proposta pela sociedade contra o seu administrador será da competência da Justiça do Trabalho, etc.
Em algumas situações, no entanto, a competência se revelará de
tormentosa definição. Isso porque, em diversas hipóteses, a prestação
de serviços é contratada junto à pessoa jurídica, mas efetivada pela pessoa física. Exemplos que podem gerar controvérsia: um médico que presta
serviços em seu consultório celebra uma relação de trabalho com seu
paciente. Já o médico que presta serviços por intermédio de uma clínica
ou hospital não firma um contrato de trabalho com o paciente. Este último,
em verdade, contrata os serviços da clínica ou do hospital. Relação, portanto, tipicamente comercial-empresarial. Lógico, no entanto, que nesta
última hipótese pode restar demonstrada uma situação de fraude. Somente no caso concreto se definirá a existência da relação de trabalho ou não.
Contudo, pode-se afirmar que, se a prestação de serviços é realizada através da pessoa jurídica, não estamos diante de relação de trabalho.
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Cabe lembrar, todavia, que o empresário (antiga firma individual) não é
pessoa jurídica.
Quanto ao direito material a ser aplicado, óbvio que, a cada contrato ou relação jurídica, aplicam-se as regras próprias que os disciplinam.
E se o serviço é lançado no mercado de consumo, tendo como destinatário final o tomador dos serviços, ao vínculo de trabalho respectivo ainda
se aplicam as regras do Código de Defesa do Consumidor.
Por fim, advirto que, como bem lecionou o Min. Sepúlveda Pertence,
ao votar na ADIn 492, já em 1992, quando se decidiu quanto à inconstitucionalidade da lei ordinária que assegurou a competência da Justiça
do Trabalho para apreciar os litígios envolvendo os servidores estatutário, “outros argumentos, que se trazem, atinentes à composição, à natureza, às inclinações da Justiça do Trabalho [reforçados pela inércia da
tradição], com todas as venias, trazem um pré-conceito a que não adiro”
e que podem conduzir às interpretações restritivas deste dispositivo.
2.2. Relação de trabalho — Exclusão (inciso I)
Bem servindo como parâmetro interpretativo da regra geral, o inciso I do art. 114 da CF exclui da competência da Justiça do Trabalho as
ações em que sejam parte “os servidores ocupantes de cargo criado por
lei, de provimento efetivo ou em comissão, da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações
públicas”. Essa exceção confirma que os servidores efetivos e em comissão também mantêm relação de trabalho com os tomadores de seus
serviços (o Poder Público)(17), embora os litígios não estejam acobertados pela competência da Justiça do Trabalho.
Ocupante de cargo é o trabalhador que firma uma relação institucional com a Administração Pública, submetido ao regime administrativo.
A CF, por meio da Reforma do Poder Judiciário, no entanto, apenas
exclui os ocupantes de cargo efetivo (civil/militar) e em comissão (cf. art. 9º
da Lei n. 8.112/90, no âmbito federal) da competência da Justiça do Trabalho. Logo, os servidores estatais temporários, inclusive os contratados por
excepcional interesse público, devem propor suas ações na Justiça do Trabalho. E nesta competência trabalhista incluem-se também todos os demais servidores (em sentido amplo) que não mantêm uma relação de natureza estritamente institucional com a Administração Pública, a exemplo
(17) Ao contrário do que decidiu o STF na ADIn 492.
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dos dirigentes empresariais (de autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista, etc.) e dos trabalhadores
sem relação de emprego (estagiários, voluntários, avulsos, etc.), já que
estes também são prestadores de uma atividade, mantendo verdadeiramente relações de trabalho.
Vale relembrar, todavia, que os agentes políticos, os agentes “requisitados para prestação de atividade pública” e os “delegados de função ou
ofício público” não se inserem no conceito de relação de trabalho.
2.3. Outros litígios decorrentes da relação de trabalho (inciso IX)
Em aparente contradição, que pode conduzir a interpretações restritivas, o reformador dispôs, ainda, que compete à Justiça do Trabalho conhecer de “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na
forma da lei”. É preciso, portanto, para que a competência seja exercida
pela Justiça do Trabalho em relação a essas outras controvérsias, que
haja uma lei (ordinária ou complementar — LOMAN, por exemplo) disciplinando a matéria.
Mas a pergunta que se faz é: quais seriam essas “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho” não abrangidas pelo inciso I do
art. 114 da CF e que precisam, para ser da competência da Justiça
do Trabalho, de uma lei assim preceituando (“na forma da lei” )?
A resposta é simples, respondida pelas hipóteses já existentes.
Basta lembrar o litígio que decorre do cumprimento de normas coletivas,
envolvendo, por exemplo, o sindicato profissional e a empresa empregadora na cobrança das receitas sindicais. Neste caso, não estamos diante de
uma relação de trabalho (entre sindicato e empresa). Contudo, o pressuposto fático-jurídico que dá origem ao conflito sindicato-empresa é uma
relação de trabalho (a relação de emprego). Em suma, se não existisse
uma relação de emprego, na qual é gerada a receita sindical, não haveria
litígio entre sindicato e empresa. Logo, em última análise, este litígio
(sindicato-empresa) decorre de uma relação de trabalho(18).
Situação semelhante ocorre entre os empregados e as empresas
de previdência privada, cujos litígios encontram respaldo numa relação de
trabalho. Como decidiu o Excelso STF, em relato do Min. Cordeiro Guerra,
à luz do Texto Constitucional anterior, mas plenamente aplicável ao atual, “a Constituição da República, é certo que estabelece a competência da Justiça do Trabalho para dissídios entre empregados e empre(18) STF, RE 287.227-0, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU de 2.3.2001.
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NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
gadores; mas estende-a também a outras controvérsias oriundas da
relação de emprego, desde que a lei disponha sobre essa competência
extraordinária; e esta norma de lei, exigida para o caso de complemento
a aposentados e viúvas, encontra-se na regra de competência das JCJ
no art. 652, a, n. IV, que a estabelece para os ‘demais dissídios’ concernentes ao contrato individual de trabalho, como é o caso destes suprimentos financeiros pelo empregador, oriundos de norma estatutária da
empresa, com eficácia residual, após extinta a relação de emprego”(19).
O dissídio surgido daí decorre do contrato individual do trabalho,
atraindo a competência da Justiça do Trabalho (art. 652, alínea “a”, inciso IV, CLT). “Nesse dissídio, no entanto, não se debate a relação de
emprego, porque já extinta, mas postulam-se os efeitos daquela condição regulamentar estatuída para vigência ulterior pelo regulamento da
empresa empregadora”(20). Esta cláusula, em si, “passa a integrar a relação contratual com o empregador”, atraindo a competência da Justiça
Laboral, pois se concretiza como “dissídios concernentes ao contrato
individual de trabalho”(21).
Outro exemplo (pitoresco) em que a lei pode atrair para Justiça do
Trabalho a competência respectiva, para bem revelar a importância desse dispositivo em comento: o empregado que tem o parente ofendido
pelo empregador pode demandar, por danos morais, na Justiça do Trabalho (litígio entre trabalhador e empregador). O parente ofendido, no
entanto, demanda na Justiça Comum. A lei, então, poderá, considerando a relação de trabalho existente, assegurar à Justiça do Trabalho esta
competência, já que a controvérsia tem como pressuposto fático-jurídico
último a relação de trabalho.
Cabe, portanto, destacar que inexiste qualquer incompatibilidade
entre os incisos I e IX do art. 114 da CF, já que naquele primeiro se
estabeleceu, com plena eficácia e aplicação imediata, a regra de competência da Justiça do Trabalho para os litígios que decorram diretamente da relação de trabalho (litígio diretamente vinculado à relação de trabalho). Já o inciso IX trata da possibilidade de, por meio de lei infraconstitucional, estabelecer-se essa mesma competência para outras controvérsias que tenham como pressuposto fático-jurídico uma relação de
trabalho (litígio indiretamente vinculado à relação de trabalho).
(19) STF, RE 91.259-2-SP, Rel. Min. Cordeiro Guerra.
(20) STF, AiRg 82.214-3-ES, Rel. Min. Clóvis Ramalhete.
(21) Ibidem.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
71
É óbvio, portanto, que o inciso IX não iria contradizer a regra geral
do inciso I do art. 114 da Constituição Federal que, por sua vez, não está
sujeita à qualquer regulamentação para sua eficácia ou aplicação pelos órgãos judicantes.
2.4. As ações que envolvam o exercício do direito de greve
(inciso II)
O inciso II do novo art. 114 da CF assegura também à Justiça
do Trabalho a competência para as ações que envolvam o exercício do
direito de greve.
As ações podem ser coletivas (conforme referência expressa do
§ 3º do art. 114 da CF) ou individuais. Quanto a estas, não havendo qualquer restrição, qualquer ação poderá ser proposta, envolvendo qualquer
pessoa, desde que haja conexão com o exercício do direito de greve.
Assim, por exemplo, poderá a empresa prejudicada ou qualquer
outro interessado propor a ação reparatória, em face de uma greve abusiva, etc. Pode ser uma lide entre empresa e sindicato, entre empresa e
os grevistas (lide empregatícia), entre empresas e sindicalistas responsáveis pela greve, entre o usuário do serviço paralisado (e prejudicado) e o
sindicato e/ou grevistas e/ou empresas, etc. Tudo na Justiça do Trabalho.
Em interpretação sistemática, entretanto, é certo que esse dispositivo não atrai para a Justiça do Trabalho as ações que envolvam o
exercício do direito de greve por parte dos servidores públicos ocupantes
de cargo efetivo ou em comissão.
2.5. Representação sindical (inciso III)
Em face da Reforma, a Justiça do Trabalho passou, ainda, a ter
competência para as ações sobre o direito de representação sindical,
“entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e
empregadores”.
Aqui, em face mesmo de a matéria ser diretamente vinculada ao direito laboral, assegurou-se a competência do juiz do trabalho para as causas
em que se discute o poder de representação de uma entidade sindical.
Essa competência, por sua vez, não desperta grandes controvérsias.
O Texto Constitucional, no entanto, é aparentemente restrito. Fala
em sindicato e não, em entidade sindical. Tal opção pode conduzir à
interpretação de que, se o litígio envolver outra espécie de entidade sindi-
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NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
cal (federação, confederação ou mesmo centrais sindicais), a matéria não
estará sujeita à competência da Justiça do Trabalho, o que seria, data venia,
uma contradição do sistema. Vale lembrar, inclusive, que o art. 8º da CF
também se utiliza da expressão “sindicato”, mas se entende que ela quis se
referir às “entidades sindicais”, quando tratou das questões ali postas.
2.6. Mandados de segurança, habeas corpus e habeas data
(inciso IV)
Procurando consolidar a velha jurisprudência, inclusive do STF, no
que se refere ao mandado de segurança, ao mesmo tempo buscando
respaldar o entendimento doutrinário e jurisprudencial dos juslaboralistas e tribunais trabalhistas, quanto à competência para conhecer do
habeas corpus, a Reforma do Judiciário, expressamente, estabelece a
competência da Justiça do Trabalho, quando o ato questionado envolver
matéria sujeita à sua jurisdição.
Inovando, porém, assegurou, ainda, a competência da Justiça do
Trabalho para conhecer do habeas data, “quando o ato questionado
envolver matéria sujeita à sua jurisdição”.
A competência funcional para conhecer do habeas data, por falta
de regulamentação ou até que ela surja, será do juiz de primeiro grau.
Já em relação ao mandado de segurança e habeas corpus, em já
havendo regulamentação, sabe-se que a competência é dos tribunais
em relação aos atos praticados pelos juízes do trabalho. Será do juiz de
primeiro grau, no entanto, quando o ato questionado envolver matéria
sujeita à sua jurisdição e a autoridade apontada como coatora não for
juiz do trabalho. Ressalte-se, porém, que, em relação a determinadas
autoridades (presidente, ministros, etc.), a CF estabelece expressamente
o foro privilegiado, sem exceções.
Aqui cabe lembrar, aliás, que o STF, em decisão datada de 1993 (e
lá se vão mais de onze anos!), em acórdão elucidativo, decidiu, em mandado de segurança impetrado contra ato do Presidente da República,
que, mesmo contra ato praticado na relação de emprego, é possível a
impetração do writ. Isso porque “a atividade Estatal é sempre pública,
ainda que inserida em relações de Direito Privado e sobre elas irradiando efeitos; sendo, pois, ato de autoridade, o Decreto Presidencial que
dispensa servidor público, embora regido pela legislação trabalhista, a
sua desconstituição pode ser postulada em Mandado de Segurança. 2.
Legitimação passiva do Presidente da República se a questionada dis-
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
73
pensa do impetrante foi objeto de decreto, que o arrolou nominalmente
entre os dispensados, reduzindo-se o ato subseqüente de rescisão do
contrato de trabalho a mera execução material de ordem concreta do Chefe do Governo. 3. Mandado de Segurança contra ato do Presidente da
República, embora versando matéria trabalhista. A competência originária para julgar Mandado de Segurança é determinada segundo a hierarquia
da autoridade coatora e não segundo a natureza da relação jurídica alcançada pelo ato coator. A competência do Supremo Tribunal Federal, órgão
solitário de cúpula do Poder Judiciário Nacional, não se pode opor à competência especializada, ratione materiae, dos seus diversos ramos” (22).
Em seu voto condutor, o Min. Rel. Sepúlveda Pertence adotou lições de Agustin A. Gordillo, para quem “a administração é sempre pessoa de direito público, que realiza operações públicas, com fins públicos e dentro dos princípios e das formas de direito público, ainda que
revista seus atos com formas que são comuns ao direito privado e use
dos meios que este autoriza e para objetos análogos” (23).
A partir de tais lições, portanto, é que o STF — como lembrado —
asseverou que “sendo, pois, ato de autoridade, o Decreto Presidencial
que dispensa servidor público, embora regido pela legislação trabalhista, a sua desconstituição pode ser postulada em Mandado de Segurança”. E, como afirmado pelo Min. Carlos Velloso, “o entendimento em
sentido contrário seria meramente preconceituoso, data venia” (24).
E o entendimento acima mencionado voltou a ser reafirmado, de
forma implícita, pelo Excelso STF, como, por exemplo, no AGRMS 21.200DF, quando decidiu que “a competência para processar e julgar mandado
de segurança impetrado por ex-empregado contra o empregador, muito
embora sociedade de economia mista, de estatura federal, em fase de
liquidação, é da Justiça do Trabalho, por enquadrar-se no artigo 114 da
Constituição Federal ” (25).
Logo, essa competência, para o mandado de segurança, já vinha
sendo reconhecida pelo próprio STF, para as causas estritamente trabalhistas (empregado x empregador), conquanto, contraditoriamente,
encontrava resistência na própria Justiça do Trabalho.
(22) STF, MS 21.109-DF, TP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU 19.2.1993.
(23) Apud MUKAI, Toshio. Direito administrativo e empresas do Estado. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 36.
(24) Voto proferido no MS 21.109-DF, p. 463 dos autos.
(25) TP, Rel. Min. Marco Aurelio, DJU 10.9.1993.
74
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
No que se refere ao mandado de segurança, esse dispositivo, aliado
ao estabelecido no inciso VII (quanto às penalidades administrativas aplicadas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização), retira, em parte, a
competência da Justiça Federal para conhecer dessa espécie de ação,
quando a autoridade coatora for a autoridade federal (inciso VIII do art. 109
da CF). Ainda que neste outro dispositivo constitucional não se faça a
ressalva, tal como a existente no inciso I do art. 109 (no que se refere às
ações de competência da Justiça do Trabalho), não é razoável supor que
a emenda constitucional, ao atrair para a Justiça do Trabalho todas as
“ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho” (inciso VII) e o
mandado de segurança “quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição” (inciso IV), quis excluir o mandamus no qual a autoridade apontada como coatora é uma autoridade federal (lembrando que
aqui não estamos tratando do mandado de segurança de competência
dos tribunais superiores, expressamente elencados na CF).
Outrossim, é óbvio que as leis estaduais de organização judiciária
não podem excluir da competência da Justiça do Trabalho os mandados
de segurança, os habeas corpus e os habeas data mencionados na CF,
ainda que a autoridade coatora seja o governador, o prefeito ou qualquer
outra autoridade estadual ou municipal.
2.7. Conflitos de competência (inciso V) e execução previdenciária
(inciso VIII)
Quanto à solução dos conflitos de competência entre órgãos integrantes da Justiça do Trabalho e a execução das contribuições previdenciárias decorrentes das sentenças que proferir, a Reforma do Judiciário
não acrescentou qualquer novidade.
Dispensável, por ora, qualquer novo comentário, considerando o
objetivo deste trabalho.
2.8. Ações relativas às penalidades administrativas impostas aos
empregadores (inciso VII)
Em face, ainda, da matéria de mérito discutida nas ações que cuidam das penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos
órgãos de fiscalização das relações de trabalho, entendeu-se por bem
atribuir ao juiz do trabalho a competência respectiva.
Aqui, transfere-se para a Justiça do Trabalho a competência para a
execução fiscal das multas respectivas (impostas em face da atuação
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
75
do Ministério do Trabalho), bem como para qualquer ação na qual se
discute essa matéria, inclusive o mandado de segurança contra ato da
autoridade fiscal(26) e a ação declaratória de inexistência de débito.
Outro exemplo de ação que pode ser ajuizada, é a proposta contra
a União visando a anular atos praticados por seus agentes fiscais da
Delegacia Regional do Trabalho no exercício do poder de polícia(27).
Ficam de fora, no entanto, da competência da Justiça do Trabalho
as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos prestadores de serviços (profissionais liberais) pelos órgãos de fiscalização
das respectivas profissões, a exemplo da OAB e dos Conselhos de
Medicina, Engenharia, Enfermagem, etc.
A lei ordinária, porém, com fundamento no inciso IX do art. 114 da CF,
poderá atrair para a Justiça do Trabalho essas outras controvérsias, quando
elas se refiram ao exercício da profissão numa relação de trabalho.
3. Do procedimento
Questão de importância capital se refere ao procedimento a ser
adotado nas ações que passaram a ser da competência da Justiça do
Trabalho.
Essa controvérsia é ao certo a mais relevante e complexa em decorrência das conseqüências, ao menos em curto prazo, que dela advêm,
principalmente se for levado em consideração que há uma tendência dos
juízes do trabalho em aplicar as regras procedimentais disciplinados na
CLT para toda e qualquer espécie de ação proposta na Justiça do Trabalho.
Essa posição, no entanto, somente encontra respaldo jurídico em
se tratando de “dissídios oriundos das relações entre empregados e
empregadores, bem como de trabalhadores avulsos e seus tomadores
de serviços em atividades reguladas na legislação social”, ante a expressa determinação do art. 643 da CLT para que se aplique, nas ações
respectivas, a “forma estabelecida pelo processo judiciário do trabalho”.
Ainda que restritivo esse preceito, sempre se adotou o mesmo procedimento para as ações de pequena empreitada, para as ações propostas
(26) Vide comentários ao inciso IV.
(27) Exemplo extraído a partir da decisão do STJ no CC 42514, Rel. Min. Teori Albino
Zavascki, j. em 22.9.2004.
76
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
pelos sindicatos cobrando suas contribuições sindicais, em face do empregador (litígio entre sindicato e empresa e não, entre empregado e empregador) e em outras que sempre tiveram curso na Justiça do Trabalho.
Em princípio, portanto, estou certo que haverá uma tendência do juiz
do trabalho em querer aplicar esse mesmo procedimento a toda e qualquer nova ação proposta na Justiça do Trabalho, à exceção daquelas de
ritos especialíssimos, a exemplo do mandado de segurança, habeas
corpus e habeas data. Acho até, de lege ferenda, que isso seria o ideal,
com algumas exceções, até por entender como satisfatório, à prestação
jurisdicional efetiva, o rito da ação trabalhista.
É preciso lembrar, no entanto, que a CLT cuida do procedimento a
ser adotado na ação trabalhista. E, para entendê-lo, é preciso lembrar
que o processo do trabalho está para o direito processual civil, assim
como os procedimentos especiais elencados no CPC.
Para melhor compreensão dessas idéias e de forma resumida,
diria que vislumbro apenas duas espécies de ações judiciais: a civil e a
penal. Na jurisdição civil, no entanto, pode-se distinguir a ação com rito
ordinário das ações com ritos especiais. Pode-se dizer, então, que
ação civil ordinária é aquela tratada no CPC como procedimento comum. Excluo dessa classificação o procedimento sumário, já que ele
possui rito diverso daquele tido como comum-ordinário. Classifico-o,
aqui, portanto, como uma ação de procedimento especial, assim como
todos os demais procedimentos especiais que encontram no procedimento comum-ordinário suas regras subsidiárias (parágrafo único do
art. 272 do CPC).
Incluo, assim, entre as ações com ritos especiais não só o procedimento sumário e os procedimentos especiais tratados no Livro IV do
CPC, como, também, todas as outras ações de natureza civil que possuem ritos específicos, tratados na legislação esparsa e mesmo no CPC,
e que têm as regras do procedimento comum-ordinário como fontes subsidiárias. Aqui, portanto, incluo, entre outros, o mandado de segurança,
a ação rescisória, a ação cautelar, a ação de execução, a ação judicial
que corre perante a Justiça Eleitoral e a ação trabalhista.
A ação trabalhista, em verdade, é um procedimento especial, disciplinado em legislação específica (esparsa, em relação ao CPC). Tem,
inclusive, as regras do procedimento ordinário como fonte subsidiária
(CPC), desde a teoria geral do processo aos meios de impugnação às
decisões judiciais.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
77
E mesmo o único princípio não comum a estes dois ramos do
direito processual e que diferenciaria o processo laboral do civil, que é o
princípio da proteção ao hipossuficiente — princípio este de direito material que contagia o processo trabalhista —, mesmo ele, hoje, já é inerente ao processo do consumidor. Sim, porque da mesma forma que o
princípio da proteção ao hipossuficiente na relação de emprego contagia
o processo do trabalho, a ponto deste ter regras que visam a compensar
a inferioridade do trabalhador, mesmo na relação processual, a exemplo
das regras de inversão do ônus da prova, ele mesmo (o princípio protetor)
é encontrado na ação civil que tem por objeto a relação jurídica de consumo. Tanto isso é verdade que o princípio de direito material de proteção ao consumidor contamina a ação civil que cuida dos seus litígios, o
que se exemplifica com a regra de inversão do ônus da prova.
Mas o processo é instrumental. Ele faz atuar o direito material.
Logo, o processo do trabalho, como já dito acima, está contaminado
pelo princípio protetor do direito do trabalho (dos empregados)(28). Ele foi
criado tendo em vista a relação jurídica de emprego. E o procedimento
especial trabalhista (sumário e sumaríssimo), com especial ênfase na
celeridade, na economia processual, na inversão do ônus da prova, concentração dos atos processuais, restrições processuais (descabimento
de intervenção de terceiros, irrecorribilidade das interlocutórias, dentre
outras), etc., justifica-se em face da natureza da relação de direito material que lhe é subjacente.
Em suma, são os valores inerentes à relação de emprego que justificam o rito da ação trabalhista. Incorreto pensar, portanto, que o rito se
justifica em face do órgão julgador (porque na JT, deve ser rito da CLT).
Não à toa que perante o juiz de direito, no exercício da jurisdição trabalhista, é adotado o rito da CLT nas reclamações trabalhistas, assim como
tal ocorria junto à Justiça Federal, quando esta tinha competência para
julgar essas causas em relação à União, suas autarquias e suas empresas públicas (art. 125, I, da CF de 1967/69).
Como lembram Orlando Gomes e Elson Gottschalk, “nunca será
demasia insistir na necessidade de distinguir situações jurídicas, que não
devem ser confundidas. O Direito do Trabalho não protege todos os economicamente fracos, mas, sim, uma grande parte dos que têm esta condição, aqueles, precisamente, que têm o estado jurídico de empregados, ou
(28) Neste sentido, por todos, cf. FERRAZ, Sérgio. A norma processual trabalhista.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, p. 24-64.
78
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
seja, de trabalhadores subordinados. Outros há, também, economicamente,
fracos, que precisam de proteção jurídica. Mas essa proteção não pode
ser a mesma que dispensa aos empregados, pela razão mui simples de
que as medidas de tutela do Direito do Trabalho são tomadas no pressuposto de que o trabalhador é subordinado a alguém”(29).
Ainda que a tendência seja de inserir no objeto do direito do trabalho
outras categorias de trabalhadores, dando-lhes, ao menos, um mínimo de
proteção, é certo que esta jamais poderá se igualar àquela dispensada
aos empregados, inclusive em seus reflexos no direito processual, em
face da condição desses últimos, de trabalhadores subordinados, e, portanto, em situação mais desfavorável do que os não-subordinados.
É preciso, ainda, destacar que há uma gama tão grande de relações
jurídicas de trabalho que passaram para a competência da Justiça do
Trabalho, além de outras causas não diretamente derivadas da relação de
trabalho (fiscais, administrativas, etc.), sujeitas a princípios de direito material diversos e distintos, que não se pode, precipitadamente, querer igualá-los à relação de emprego para efeito de aplicação do direito processual.
Daí por que, como ensina Cândido Rangel Dinarmarco, “a realidade dos conflitos e das variadas crises jurídicas em que eles se traduzem gera a necessidade de instituir procedimentos diferentes entre si,
segundo peculiaridades de diversas ordens, colhidos no modo de ser
dos próprios conflitos, na natureza das soluções ditadas pelo direito
substancial e nos resultados que cada espécie de processo propõe-se a
realizar... Sempre, o procedimento deve ser adaptado à realidade dos
conflitos e das soluções buscadas”(30).
Exemplo se pode dar em relação aos contratos firmados pelos
prestadores de serviços, inclusive profissionais liberais. Quando alguém
contrata outrem para prestar serviços de forma autônoma, sem exercer
sua atividade em favor do destinatário final ou lançada no mercado de
consumo, sujeita-se, tão-somente, às regras materiais do Código Civil.
Se, entretanto, esta mesma pessoa fornece sua atividade “no mercado
de consumo, mediante remuneração” (§ 2º do art. 3º do CDC), prestando-a a um destinatário final (art. 2º do CDC), a esse contrato se aplicam,
também, as regras de defesa do consumidor (inclusive de proteção processual). A relação continua sendo de trabalho, mas sujeita às regras
(29) Curso de direito do trabalho, 16ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, nota de
rodapé 24, p. 126.
(30) Instituições de direito processual civil, vol. III. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 332-333.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
79
materiais de direito civil (direitos e deveres dos contratantes, etc.) e também às de proteção do consumidor (responsabilidade civil, cláusulas
abusivas, propaganda enganosa, etc.).
Assim, tem-se que, se a relação for de natureza somente civil, as
partes devem ser tratadas em equilíbrio, em igualdade de condições ou,
quando muito, protegendo-se o trabalhador (prestador de serviços). Se,
entretanto, a relação também for de consumo (civil-consumidor ou comercial-consumidor), o CDC manda proteger o tomador dos serviços e
não o prestador da atividade.
Podem ser lembradas, ainda, as ações que envolvam exercício do
direito de greve (inciso II do art. 114). Em face desse dispositivo, na
Justiça do Trabalho podem, v.g., ser ajuizadas ações pelas empresas
prejudicadas pela greve abusiva ou por qualquer outro interessado que
tenha sido atingido pelo movimento paredista. Neste caso, então, poderse-á estar diante de lide formada entre pessoas que não merecem qualquer proteção especial, tendo em vista sua qualidade (empresa x sindicato; usuários do serviço paralisado x sindicato, etc.).
O mesmo se diga das ações propostas contra a União, relativas às
penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos
de fiscalização das relações de trabalho. Aqui, ao certo, poder-se-á cuidar tanto da ação de execução fiscal, como de qualquer outra ação (anulatória, declaratória, mandado de segurança, etc.), entre o empregador e
a União. Descabido, assim, data maxima venia, querer impor às partes,
nestas ações, o rito próprio da ação trabalhista, só porque proposta
perante a Justiça do Trabalho, quando sequer, nas referidas causas, se
está diante de algum hipossuficiente.
E as ações entre sindicatos, entre sindicatos e seus filiados e
entre sindicatos e empresas sobre representação sindical? Já em algumas hipóteses essa situação se mostra gritante, como, por exemplo,
em relação à execução fiscal das multas administrativas aplicadas pela
Delegacia Regional do Trabalho, pois não há justificativa razoável para a
adoção do rito da execução trabalhista contrário daquele estabelecido
para o executivo fiscal (Lei n. 6.830/80).
A partir desses exemplos se pode verificar, então, que não há harmonia de princípios que justifique a aplicação do mesmo rito processual
(da CLT) a toda ação judicial de competência da Justiça do Trabalho.
Obviamente, ainda, que não se pode querer mesclar os dois ritos
(exemplo: citação, audiência, contestação, provas, etc., conforme à CLT;
80
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
recursos, conforme o CPC), sob pena de se violar o devido processo
legal e se instalar a mais completa e caótica prestação jurisdicional, pois
ninguém, ao certo, saberá o que deve ser aplicado desse ou daquele diploma processual, sem falar na absoluta insegurança jurídica daí advinda.
Outrossim, cabe destacar que inexiste lei a respaldar o entendimento
de que às novas ações se deve aplicar o rito consolidado, lembrando, mais
uma vez, que o art. 643 da CLT submete ao procedimento ali previsto apenas as ações entre empregado e empregador e as ações dos avulsos(31).
Concordo, porém, que deve ser editada, com máxima urgência, lei
disciplinando essa matéria, sob pena de se instalar verdadeiro caos na
Justiça do Trabalho, em face da disparidade de entendimentos que, ao
certo, serão adotados pelos juízes e tribunais, gerando prejuízo à própria
imagem da Justiça do Trabalho. Indispensável, portanto, a edição da nova
lei a que se refere ao art. 113 da CF.
Em suma, nada justifica mudar o procedimento só porque se alterou o órgão competente para julgar a causa, ao menos sem que haja lei
expressa neste sentido(32).
Data maxima venia, tal procedimento por parte dos juízes (mudança
dos ritos sem lei autorizando), em todos os casos, seria violador do princípio do devido processo legal e do próprio Estado Democrático de Direito.
Já foi dito, no entanto, que a adoção do rito procedimental previsto
no CPC e na legislação esparsa conduzirá a um verdadeiro tumulto administrativo-jurisdicional, num primeiro momento, já que a Justiça do Trabalho não está preparada, em todos os sentidos, para tão radical mudança. Contudo, não podemos ser levados, por este despreparo momentâneo, para caminhos à margem da lei ou, simplesmente, a adotar posições (políticas) do que entendemos ser o ideal em termos de prestação
jurisdicional. Tudo isso poderá conduzir a um maior desprestígio da Justiça do Trabalho.
(31) Cabe ressaltar, porém, que o art. 789 da CLT, quanto ao regime das custas,
estabelece que devem ser adotadas as regras ali mencionadas “nos dissídios individuais e nos dissídios coletivo do trabalho, nas ações e procedimentos de competência da Justiça do Trabalho...”. Assim, às novas ações de competência da JT se
aplicam as regras da CLT, quanto as custas processuais, inclusive quanto ao seu
recolhimento quando da interposição do recurso (seja ele qual for).
(32) A exemplo do Projeto de Lei do Senado n. 288, em trâmite na Câmara dos Deputados, que prevê para as ações ali mencionadas (representantes comerciais, corretor, transportador, empreiteiro, etc.) a adoção do rito procedimental regulado na CLT.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
81
É preciso, portanto, perceber, em sua profundidade, a grandeza da
mudança, aceitando-se, quer queira ou não, o entendimento de que a
Justiça do Trabalho deixou de ser apenas uma “justiça da CLT”, inclusive
em sua parte processual.
Assim, data venia dos doutos que se posicionam em contrário, às
novas ações de competência da Justiça do Trabalho, até ulterior alteração legislativa, aplicam-se as regras procedimentais previstas no CPC e
na legislação processual esparsa, em toda sua extensão e com todas
as suas conseqüências, inclusive quanto ao sistema recursal.
Cabe lembrar, ainda, que, em se tratando de matéria de ordem
pública, definidora de competência material, todos os feitos em curso na
Justiça Comum e na Justiça Federal, inclusive nos respectivos Juizados
Especiais, devem ser remetidos à Justiça do Trabalho.
Tudo isso implica, de imediato, na necessidade de alteração dos
regimentos internos dos tribunais, pois a eles compete conhecer dos recursos cíveis pertinentes, inclusive dos embargos infringentes.
Situação curiosa resta em torno do recurso para o TST. É que o recurso especial somente é cabível para o STJ contra decisões proferidas pelos
TRF’s e TJ’s. Outrossim, a CLT apenas prevê o recurso de revista para as
causas ali disciplinadas. Logo, até que lei trate da matéria, as causas cíveis
de competência da JT são irrecorríveis para o TST, comportando, porém,
em matéria constitucional, o recurso extraordinário, diretamente para o STF.
Em relação ao Juizado Especial, este poderá ser criado no âmbito
da Justiça do Trabalho, desde que haja autorização dada por lei ordinária. Até lá, as causas que seriam da competência dos Juizados Especiais
ficam sujeitas aos ritos disciplinados no CPC, no âmbito da Justiça do
Trabalho, inclusive aquelas ações em curso antes da promulgação da
Emenda da Reforma do Judiciário.
Por fim, lembro que, até que haja lei dispondo em contrário, “quando, para cada pedido, corresponder tipo diverso de procedimento, admitir-se-á a cumulação, se o autor empregar o procedimento ordinário”
(§ 2º do art. 292 do CPC). Assim, não sendo mais a Justiça do Trabalho
uma “justiça da CLT”, em havendo cumulação da ação trabalhista (procedimento especial) com outra ação de procedimento diverso, dever-seá adotar o rito ordinário previsto no CPC(33).
(33) Conforme lembrado anteriormente, no Projeto de Lei do Senado n. 288, em trâmite na
Câmara dos Deputados, está previsto que as ações ali mencionadas (representantes comerciais, corretor, transportador, empreiteiro, etc.), quando cumuladas com a ação trabalhista, devem adotar o rito procedimental regulado na CLT. Tudo depende da lei, portanto.
82
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
A Natureza Jurídica da Relação de Trabalho (Novas
Competências da Justiça do Trabalho — Emenda
Constitucional n. 45/04)
Francisco Rossal de Araújo(*)
Introdução
O objetivo do presente estudo é traçar os limites jurídicos da relação de trabalho. O tema normalmente é abordado pela doutrina tradicional(1) como preliminar ao estudo da relação de emprego. Em geral, afirma-se que a relação de trabalho é gênero, da qual a relação de emprego,
notadamente caracterizada pela subordinação, é espécie(2). Entretanto,
com a promulgação da Emenda Constitucional n. 45/04 que, entre outras modificações, altera a competência em razão da matéria da Justiça
do Trabalho, a distinção teórica entre relação de trabalho e relação de
emprego, adquire relevância. Por via reflexa, ao definir-se o conteúdo
jurídico da relação de trabalho, estar-se-á definindo a competência material da Justiça do Trabalho.
A conexão entre a definição jurídica de relação de trabalho — tema
de direito material — e a atribuição de competência da Justiça do Trabalho — tema de direito processual — é muito importante e serve para
demonstrar como um ramo da ciência jurídica pode influenciar em outro,
apesar da pretendida separação teórica entre direito material e direito
processual. Na verdade, a referida distinção só tem sentido no plano
metodológico, e não deve servir como um fim em si mesma. A interpenetração dos campos do direito material e direito processual é freqüentemente admitida e, inclusive, destacada no princípio da instrumentalida(*) Juiz do Trabalho. Mestre em Direito Público (UFRGS). Doutorando em Direito do Trabalho
(Universidade Pompeu Fabra — Barcelona). Professor Universitário — graduação e pósgraduação. Pesquisador do CETRA — Centro de Estudos do Trabalho (POA).
(1) Nesse sentido, ver VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro de. Relação de Emprego —
Estrutura Legal e Supostos, 2ª ed., São Paulo: LTr, 1999.
(2) Cf. GENRO. Tarso. Direito Individual do Trabalho, 2ª ed., São Paulo: LTr, 1994,
p. 89/90.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
83
de processual(3). A definição material de relação de trabalho influenciará
diretamente na regra de atribuição de competência do art. 114, I, VI e
IX, da Constituição Federal, que dispõe ser competente a Justiça do
Trabalho para conciliar e julgar as ações decorrentes das relações de
trabalho, as ações de indenização por dano moral ou patrimonial decorrentes da relação de trabalho e outras controvérsias decorrentes da relação
de trabalho, na forma da lei(4).
Além do tema específico das relações de trabalho, a Emenda Constitucional n. 45/04 também amplia a competência da Justiça do Trabalho
para outros campos, entre eles as ações envolvendo a fiscalização do
trabalho (art. 114, VII, Constituição Federal), o direito de greve (art. 114,
II, Constituição Federal), ações sobre representação sindical (art.
114, III, Constituição Federal), conflitos de competência entre órgãos
com jurisdição trabalhista (art. 114, V, Constituição Federal), mandados
de segurança, habeas corpus e habeas data (art. 114, IV, Constituição
Federal) e execução de contribuições sociais (art. 114, VIII, Constituição Federal). Entretanto, a presente exposição limita-se ao aspecto da
definição jurídica da relação de trabalho e suas conseqüências práticas
no julgamento de lides trabalhistas, buscando saber qual a Justiça competente para resolvê-las.
Retornando ao caráter mais amplo da definição de trabalho, é inegável que existem relações do tema com aspectos econômicos e sociológicos. Ramos específicos da Economia e da Sociologia se dedicam ao
estudo das relações de trabalho como fator econômico (Economia do
Trabalho) e como fator social (Sociologia do Trabalho). Nesse estudo
serão utilizados alguns conceitos de ordem econômica e sociológica,
em especial na primeira parte, quando será analisada a questão do tra(3) Sobre o tema, ver DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 11ª ed., São Paulo: Malheiros, 2003.
(4) O texto legal é o seguinte:
“Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:
I. as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público
externo e da administração pública direta e indireta, da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios;
...
VI. as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de
trabalho;
...
IX. outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei.”
A questão relativa aos servidores públicos, origem de controvérsia, será referida na
quarta parte do presente estudo.
84
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
balho como um dos fatores de produção e a divisão social do trabalho.
Por não se tratar de um artigo de Economia ou Sociologia, os conceitos
utilizados apenas terão o caráter auxiliar na fundamentação de um conceito jurídico de relação de trabalho. O objetivo central é a análise jurídiconormativa.
A estrutura do presente artigo está dividida em quatro partes: a
primeira, tratará da definição de trabalho, em seus aspectos econômicos e sociológicos; a segunda, tratará de estabelecer um marco jurídico
para a relação de trabalho; a terceira, fará a definição jurídica de relação
de trabalho; e a quarta terá a finalidade de resolver controvérsias a respeito da competência material da Justiça do Trabalho.
I. Definição de trabalho
Nesta primeira parte, buscar-se-á entender o trabalho humano como
um fator de produção, na concepção econômica tradicional, que relaciona
os fatores de produção como sendo terra, trabalho, capital, tecnologia e
capacidade empreendedora. Após, será analisada a onerosidade do trabalho, em sentido sociológico, caracterizando-o como esforço humano
voltado para a caracterização de um fim, distinguindo-o de um trabalho
feito por máquinas ou animais e do trabalho gratuito. Por último, serão
analisadas algumas questões relativas à divisão social do trabalho, tanto
sob o ponto de vista econômico como sob o ponto de vista sociológico.
A. O trabalho como fator de produção
A produção é a atividade econômica fundamental. Seu processo
ocorre pela mobilização de cinco recursos, denominados fatores de produção: reservas naturais (fator terra), recursos humanos (fator trabalho),
bens de produção (fator capital), capacidade tecnológica e capacidade
empresarial(5).
As reservas naturais, renováveis ou não, encontram-se na base de
todos os processos de produção. Incluem o solo, subsolo, águas, pluviosidade, clima, flora, fauna e mesmo fatores extraplanetários como o sol.
Em princípio, todas as reservas naturais são finitas, mas a sua dimensão real está relacionada com o conhecimento que o ser humano dispõe
(5) As idéias fundamentais sobre fatores de produção são encontradas em ROSSETTI,
José Paschoal. Introdução à Economia, 17ª ed., São Paulo: Atlas, 1997, p. 91 e ss.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
85
sobre a sua utilização. Dito de outro modo, se o ser humano descobre
formas de explorar as reservas naturais de maneira mais racional (reciclando materiais, por exemplo), é possível que as reservas naturais levem mais tempo para se esgotar. O certo é que o fator terra (reservas
naturais) constitui um conjunto determinado e finito de macrodisponibilidades, que podem ter sua exploração expandida de acordo com o desenvolvimento da ciência e da técnica.
Os recursos humanos (fator trabalho) constituem a parcela da população que pode ser economicamente mobilizável. Apenas uma parte
da população total encontra-se em condições de trabalhar. Nenhuma
matéria-prima ganha significado econômico se não houver trabalho humano para transformá-la. Mesmo nas situações mais simples, como no
caso da coleta, é preciso que um ser humano desenvolva algum tipo de
esforço físico e/ou intelectual, para retirar o bem da natureza com a
finalidade de trocá-lo, vendê-lo ou consumi-lo. Apenas a população, a partir de uma faixa etária vai compor o mercado de trabalho, caracterizando
a população economicamente ativa. O mercado formal de trabalho contempla as relações contratuais de trabalho, em grande parte determinadas pelas forças de mercado, ao mesmo tempo que são objeto de legislação específica que as regula. O mercado informal de trabalho é aquele
que funciona com um mínimo de influência governamental(6). Os limites
inferiores e superiores do mercado de trabalho (quem entra e quem sai)
são dados, ou por razões normativas (capacidade para o trabalho,
aposentadoria, etc.), ou por razões naturais (acidentes, mortes, inexistência de vontade de trabalhar, etc.).
A noção de que o mercado de trabalho é diferente de outros mercados, porque a demanda de mão-de-obra é derivada, é fundamental para a
definição da relação de trabalho sob o ponto de vista jurídico. Em sua
concepção econômica, o trabalho constitui um insumo para a produção
de outros bens, não constituindo um produto final pronto para ser produzido(7). Sendo demanda derivada e fazendo parte do preço final de outros
produtos, é possível que a remuneração pelo trabalho não corresponda
totalmente ao valor que ele cria, ao transformar matérias-primas ou constituir-se em serviços, sendo apropriado o valor excedente pelo proprietário dos meios de produção sob a forma de lucro. Essa constatação eco(6) Cf. GREMAUD, Amauri Patrick e outros. Manual de Economia, 4ª ed., São Paulo:
Saraiva, 2003, p. 381/383.
(7) Cf. MANKIW, N. Gregory. Introdução à Economia. Rio de Janeiro: Campus, 2001,
p. 398.
86
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
nômica desmistifica a afirmação jurídica de que o salário é a contraprestação retributiva pelo trabalho desempenhado ou, em termos de direito
das obrigações, é uma obrigação de dar que faz o adimplemento de
uma obrigação de fazer. Embora essa afirmação seja válida sob o ponto de vista jurídico, havendo adimplemento total da obrigação, sob o
ponto de vista econômico, ela não é correta, pois se o empregado recebesse de volta todo o valor correspondente ao seu trabalho, o proprietário dos meios de produção não teria lucro, o que contraria um dos fundamentos do sistema econômico capitalista. Portanto, a noção jurídica de
relação de trabalho não corresponde exatamente à noção econômica
de relação de trabalho.
O mercado de trabalho é um mercado de fatores de produção e não
um mercado de produtos. Sua demanda é derivada, e não originária. A
variação no mercado de produtos afeta o mercado de trabalho e viceversa. Havendo pouca demanda no mercado de determinado produto,
pode haver desemprego ou, ao contrário, havendo maior demanda, será
necessário produzir mais e empregar maior quantidade de mão-de-obra.
Visto pelo outro lado, havendo escassez de mão-de-obra (mercado derivado) poderá resultar em um encarecimento dos produtos, pois será necessário pagar melhores salários para produzi-los.
Os bens de produção (fator capital) constituem o conjunto de riquezas acumuladas pela sociedade, tais como máquinas, equipamentos,
ferramentas e instrumentos de trabalho, construções, edificações e toda
a infra-estrutura econômica em geral. Será capital se esse conjunto servir para produzir novos bens e serviços(8). A formação do capital se dá
pelo investimento líquido, que é o resultado de todo o investimento bruto
menos a depreciação natural dos bens. Somente se transformará em
capital capaz de produzir novos bens e serviços, o excedente sobre os
gastos de manutenção do capital existente. De um certo ponto de vista,
é possível afirmar que o capital é o valor do trabalho acumulado, mais o
valor das matérias-primas.
A idéia de capital pode ser didaticamente exposta do exemplo do
camponês que habita uma cabana distante de uma fonte de água(9). Se
ele deseja saciar sua sede, deverá deslocar-se até a fonte e apanhar a
água com as suas mãos. Com tempo e com alguns recursos (trabalho,
(8) Cf. ROSSETTI, José Paschoal, ob. cit., p. 121/125 e GREMAUD, Amauri Patrick e
outros, ob. cit., p. 19.
(9) O exemplo foi colhido na obra de GREMAUD, Amauri Patrick e outros, ob. cit., p.19.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
87
matéria-prima, tecnologia), poderá fabricar um balde e um reservatório e,
com eles, diminuir o número de idas à fonte. Poderá, também, canalizar
a água e ter um abastecimento mais cômodo do referido bem, abrindo
possibilidade de utilizar de outra forma o tempo que normalmente gastava para ir à fonte, ou mesmo utilizar a água para outros fins (movimentar
um moinho, por exemplo). O capital, portanto, é o acúmulo de vários
fatores que possibilita potencializar a produção.
O quarto fator de produção é a capacidade tecnológica (tecnologia),
que é constituída pelo conjunto de conhecimento e habilidades que dão
sustentação ao processo de produção(10). De nada adianta a existência de
recursos naturais (terra), recursos humanos (trabalho) e bens de produção
(capital), se não houver conhecimento e técnica a interligar os fatores de
produção. Portanto, a capacidade tecnológica é o elemento dinâmico dos
fatores de produção, ou, dito de outro modo, é o elo que liga terra, trabalho
e capital.
A capacidade tecnológica implica em capacitação para atividades
de pesquisa e desenvolvimento, para desenvolver e implantar novos projetos e para operar atividades de produção. Esses três aspectos reunidos, desembocam nos processos de invenção e inovação introduzidos
no mercado, implicando na mudança de materiais, processos e produtos. Para produzir, o mercado e o poder público precisam investir em
formação cultural, ciência e tecnologia, potencializando a capacidade
de invenção e inovação.
Por último, o quinto fator de produção é a capacidade empresarial.
A energia empreendedora é quem mobiliza todos os fatores e faz as
escolhas valorativas, traçando os rumos a seguir. Esse fator de produção determina qual parcela da população será mobilizada, quais os padrões tecnológicos que serão empregados. Recursos humanos, capital,
reservas naturais e tecnologia só geram fluxo de produção quando mobilizados e combinados. O elemento motivador da capacidade empreendedora é a obtenção do lucro (benefícios).
A capacidade empreendedora possui certas características, como
a visão estratégica, voltada para o futuro, capaz de antever novas realidades e direcionar a atividade produtiva para o caminho escolhido. Poderse-ia exemplificar com a relação entre artistas e mecenas no Renascimento (Leonardo da Vinci e Michelangelo, por exemplo). É certo que a
(10) Cf. ROSSETTI, José Paschoal, ob. cit., p. 131.
88
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
genialidade é do artista, mas os meios e a determinação da obra foram
direcionados pelo mecenas que anteviram a potencialidade criadora do
artista e resolveram nela investir. Também é importante relacionar a capacidade empreendedora com a baixa aversão aos riscos do negócio e
ao espírito inovador, capaz de quebrar paradigmas.
A capacidade empreendedora somente se verifica se o empreendedor tiver acesso aos quatro outros fatores de produção e souber coordená-los e organizá-los para atingir um fim. A finalidade do empreendimento é que tem caráter valorativo e seus efeitos podem ser diretos e
indiretos. Por exemplo, um determinado empreendedor tem por objetivo
produzir determinado bem em sua terra natal, da qual saiu quando pequeno e que ainda permanece em situação de atraso econômico em
relação à metrópole, na qual o empreendedor foi realizar seus estudos.
A finalidade do empreendimento é gerar lucro (objetivo direto), mas isso
não impede que sejam alcançados objetivos indiretos, como melhor distribuição de renda e desenvolvimento social da comunidade, atendendo
a fatores de responsabilidade social (objetivo indireto).
Em síntese, a produção de bens e serviços é o objetivo da atividade
econômica e para que ocorra é necessário que estejam presentes, simultaneamente, cinco fatores: terra, trabalho, capital, tecnologia e capacidade empreendedora. O papel das relações de trabalho é fundamental para
a produção, pois a atividade econômica deve ser orientada para a satisfação de necessidades do ser humano. A atividade econômica não é um fim
em si mesma, mas responde ao fruto da racionalidade humana, visando a
garantir meios de subsistência e conforto para o ser humano.
B) O trabalho como esforço humano voltado para a realização de
um fim
Os seres humanos trabalham para atingir algum objetivo(11). Para
os físicos, Trabalho é igual a força necessária para mover determinado
objeto multiplicada pela distância (W= F.d). Toda a modificação da situação inercial de um objeto pode ser medida pela relação entre a força
empregada para deslocá-lo e o deslocamento efetivamente realizado.
Não importa se realizado por um ser humano, ou não.
O problema é saber qual a concepção moral do trabalho, considerando a moral como atributo do ser humano, e como essa concepção se
(11) Cf. OLEA, Manuel Alonso. Introdução ao Direito do Trabalho, 4ª ed., São Paulo:
LTr, 1984.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
89
transforma em concepção jurídica. Dito de outro modo, como o ser humano vê o trabalho como imperativo categórico(12) de uma conduta e como o
Estado regula essa atividade de forma heterônoma (externa ao indivíduo),
buscando disciplinar a atividade e estabelecendo forma jurídicas para a
sua realização (contratos, atos administrativos, etc.) e sanções para o caso
de descumprimento de normas (indenizações, nulidades, etc.).
A definição de trabalho varia no tempo e no espaço, mas, de um
modo geral, pode-se afirmar que o trabalho é uma ação realizada por
seres humanos que supõe um determinado gasto de energia, destinado
a algum fim material ou imaterial, conscientemente desejado e que tem a
sua origem e/ou motivação na insatisfação ou existência de uma privação ou necessidade por parte de quem o realiza(13). O trabalho é o método mediante o qual o homem transforma a natureza criando, ao mesmo
tempo, riqueza e construindo a sua própria realidade. De certo modo, a
história é o processo de criação, satisfação e nova criação de necessidades humanas a partir do trabalho(14).
A atividade laboral constitui uma atividade essencial da espécie
humana. É a atividade que possibilita a reprodução e a sobrevivência da
espécie em um determinado nível de satisfação de necessidades. Tratase de uma atividade comum a todas as sociedades, adotando formas
diversas em cada uma delas ao passar do tempo(15). O trabalho assalariado, tal como hoje se apresenta, apenas passou a ser a forma hegemônica de trabalho por conta alheia há muito pouco tempo (final do séc.
XIX, na segunda Revolução Industrial). Mesmo na primeira Revolução
(12) A expressão “imperativo categórico” é utilizada no sentido cunhado por Kant,
significando o agir do indivíduo em conformidade com seus padrões morais.
(13) Cf. AIZPURU, Mikel e RIVERA, Antonio. Manual de Historia Social Del Trabajo,
Madrid: Ed. Siglo Veinteuno, 1994, p. 13. Para estudo mais aprofundado sobre as
diversas perspectivas da definição de trabalho, ver FRIEDMANN, Georges e NAVILLE,
Pierre. Tratado de Sociologia del Trabajo. México: Ed. Fondo de Cultura Económica,
1985, vol. I, p. 13/36 e SANTOS ORTEGA, J. Antonio. Sociologia del Trabajo, Valencia:
Ed. Tirant lo Blanch, 1995, p. 36/40. Uma análise crítica do trabalho como categoria
fundamental pode ser encontrada em OFFE, Claus. Trabalho e Sociedade, Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989, p. 13/41. O referido autor comenta as definições
de trabalho em MARX, DURKHEIM e HABERMAS, entre outros. Para uma análise comparativa do processo de divisão social do trabalho em Marx e Durkheim, ver FINKEL,
Lucila. La Organización Social del Trabajo, Madrid: Ed. Pirámide, 1996, p. 13/26.
(14) Cf. AIZPURU, Mikel e RIVERA, Antonio, ob. cit., p. 13.
(15) Cf. RECIO, Albert. Trabajo, Personas, Mercados. Barcelona: Ed. Icaria, 1997, p.
25. Para a análise da evolução histórica, ver CARRO IGELMO, Alberto José. Historia
Social del Trabajo, Barcelona: Ed. Bosch, 1986.
90
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Industrial (segunda metade do séc. XVIII), fenômeno tipicamente localizado
na Inglaterra, o trabalho assalariado não era forma predominante nos processos de produção no mundo inteiro. Somente quando o Capitalismo(16) se
fortalece e se expande como sistema econômico predominante, impondose sobre as forma remanescentes de Feudalismo (Europa) e outras formas
arcaicas de produção (outras partes do mundo) é que o trabalho assalariado
vai assumir posição dominante nas formas de relação de trabalho.
A forma comum de trabalho que ocupou maior tempo na história da
humanidade e ainda hoje é comum em locais onde a forma de produção
capitalista não está totalmente implementada é o trabalho de auto-subsistência. Por trabalho de auto-subsistência entende-se o trabalho desenvolvido no interior de pequenos grupos (comunidades parentais, famílias no campo, etc.) para obter o conjunto de bens necessários à sua
sobrevivência e algum conforto. Envolve atividades como coleta, caça,
pesca, agricultura rudimentar e a produção de alguns artefatos em um
contexto global que permita a sobrevivência do próprio grupo. É possível
que nesses grupos exista algum grau de divisão social do trabalho, demarcando-se algumas atividades específicas para cada indivíduo(17). O
trabalho de auto-subsistência contém os cinco elementos da produção
econômica fundamental, possibilitando inclusive trocas entre indivíduos
e/ou grupos dos excedentes materiais, mas sempre de forma primitiva
ou rudimentar. Assim, encontram-se no trabalho de auto-subsistência o
acesso aos recursos naturais (terra), a existência de recursos humanos
(trabalho), a acumulação de alguns bens de produção (capital), a capacidade tecnológica para manipular fatores (tecnologia) e o espírito de
coordenação e motivação (capacidade empreendedora).
As comunidades rurais baseadas na agricultura ou criação animal
são exemplos típicos de trabalho de autosubsistência. A característica
do trabalho de auto-subsistência é o seu exercício livre e o não desenvolvimento da noção de lucro pela apropriação da mais-valia gerada pelo
trabalho excedente(18).
(16) A definição adotada para Capitalismo é a de que constitui um sistema econômico,
baseado na propriedade privada dos meios de produção, liberdade de mercado e
iniciativa, trabalho assalariado e lucro.
(17) Ver RECIO, Albert, ob. cit., p. 27/28.
(18) A noção de mais-valia é a relação entre trabalho necessário (para gerar a riqueza
capaz de remunerar o trabalhador) e trabalho excedente (para gerar riqueza sob a
forma de lucro do proprietário dos meios de produção). A expressão célebre de maisvalia deve-se a Karl Marx. A edição consultada foi MARX, Karl. O Capital, 2ª ed., São
Paulo: Nova Cultural, 1985.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
91
Também o trabalho pode ser forçado, ou seja, todas as atividades laborais desenvolvidas por algum meio de coação. No trabalho
forçado, a pessoa, de forma individual ou coletiva, trabalha por conta
alheia, sendo que o beneficiário usufrui todo o resultado do labor. O
exemplo mais importante de trabalho forçado é a escravidão. O senhor dos escravos beneficia-se com todo o resultado econômico do
trabalho e apenas tem o dever de subsistência com o escravo, que
nada mais é do que seu próprio interesse com relação à força motriz
de sua atividade econômica. Historicamente, além da escravidão,
existiam outras formas de trabalho forçado, como algumas formas de
dominação colonial (como os nativos africanos e índios americanos,
obrigados a trabalhar em obras de infra-estrutura que favoreciam à
colonização) ou complexos sistemas de legitimação (feudalismo e
servidão) em sociedades estamentais(19). Alguns Estados modernos
ainda obrigam os presidiários a prestarem trabalhos forçados como
forma de sanção ou como forma de compensação (redução da pena).
Neste último caso, a norma legal admite a possibilidade de trabalho
forçado, sendo lícita a sua exigência. Tal situação não pode ser confundida com variantes modernas de trabalho análogo ao escravo ou
escravidão por dívidas, que constituíam prática social, mas são considerados ilícitos pelo ordenamento jurídico.
Um terceiro tipo é o trabalho mercantil. Neste, o objetivo do trabalho não é a produção direta dos meios de subsistência para seus próprios produtores (trabalho de auto-subsistência) ou para seus amos e senhores (trabalho forçado). O objetivo do trabalho mercantil é a produção
de bens de consumo, de forma livre e mediante retribuição (remuneração
pelo trabalho). O trabalho mercantil só existe quando estão presentes
algumas instituições, como um sistema organizado de trocas (mercado
de produtos), existência de moeda (meio comum de troca) e a existência de alguma instituição política que garanta e avalize a validade da
moeda em circulação(20). O trabalho mercantil é livre e remunerado, embora possa ser disciplinado por normas jurídicas e estabeleçam limites,
modalidades e forma de contratação.
O trabalho mercantil pode ser autônomo ou assalariado.
(19) Cf. RECIO, Albert, ob. cit., p. 29.
(20) Cf. RECIO, Albert, ob. cit., p. 30. Para compreensão do sistema de trocas, ver
ROSSETTI, José Paschoal, ob. cit., p. 168/183 e STIGLITZ, Joseph E. Economía, Barcelona: Ed. Ariel, 1995, p. 945/967. Sob o ponto de vista histórico, ver WEATHERFORD, Jack. A História do Dinheiro, São Paulo: Ed. Negócio, 1999.
92
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
O trabalho autônomo não deixa de ser uma forma evoluída do trabalho de subsistência. A diferença é que no trabalho autônomo moderno
existe a moeda (meio comum de troca), que substitui a apropriação direta
de bens da natureza. Alguém trabalha e, em vez de apropriar-se diretamente da mercadoria, recebe uma unidade monetária de valor, com a qual
pode comprar os bens que necessita. Assim como o trabalho de autosubsistência, o trabalho autônomo é livre, os trabalhadores realizam um
serviço para o comprador dos serviços em troca de remuneração. Os trabalhadores autônomos controlam todo o processo laboral e são proprietários dos meios de produção que utilizam. Um artesão, por exemplo, compra a matéria- prima e a transforma em produto, fazendo a comercialização deste no mercado, estabelecendo o seu preço. O resultado da comercialização é apropriado pelo trabalhador.
Por outro lado, o trabalho assalariado é aquele em que alguém
trabalha sob as ordens de outro, e a pessoa implicada aporta exclusivamente sua atividade laboral em troca de remuneração (dinheiro). A forma
jurídica de relação de trabalho assalariado é o contrato. A questão relativa à natureza jurídica da relação de trabalho será analisada em capítulo
específico, inclusive com relação à sua onerosidade.
C. Divisão social do trabalho
Após a análise sobre o trabalho como fator de produção (aspecto
econômico) e como meio de realização de um fim almejado pelo ser
humano, é preciso considerar um aspecto fundamental da forma do ser
humano trabalhar dentro de um grupo social racionalmente organizado.
O estudo desta circunstância denomina-se divisão social do trabalho(21).
Nenhum ser humano vive sozinho em sociedade e tampouco é autosuficiente no que diz respeito à capacidade de prover bens para a sua
subsistência. Seria pouco provável a existência de um ser humano totalmente isolado, a não ser pela circunstância de algum acidente. Mesmo
assim, esse ser humano hipoteticamente isolado poderia sobreviver por
algum tempo, mas significaria o fim da espécie, pois não poderia procriar.
(21) A referência obrigatória sobre o tema é SMITH, Adam. A Riqueza das Nações.
São Paulo: Ed. Nova Cultural, 1996, volumes I e II, em que o autor analisa os fenômenos
de divisão social do trabalho no início da Revolução Industrial (segunda metade do
século XVIII). Também é obrigatória a visão dos clássicos MARX, Karl. O Capital, 2ª
ed., São Paulo: Nova Cultural, 1985 e DURKHEIM, Emile. La División del Trabajo Social.
3ª ed., Madrid: Ed. Akal, 1995.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
93
Trata-se de uma hipótese improvável, sendo certo que todo o ser humano, por ser animal gregário, tende a necessitar da cooperação e cooperar com outros seres humanos, para conseguir a sua auto-subsistência.
Em toda a natureza existem animais gregários que, em maior ou
menor grau, dividem as tarefas dos indivíduos dentro dos grupos. Nessas espécies, para facilitar a sobrevivência, determinados indivíduos se
especializam em determinadas funções, obtendo, com esse procedimento, resultados mais satisfatórios para o grupo(22). Em todas as sociedades humanas conhecidas existe maior ou menor grau de divisão
social do trabalho, que pode desenvolver-se em distintos níveis: cooperação para manter os indivíduos que não estão em condições físicas de
garantir a subsistência (crianças, idosos e enfermos); cooperação na
transmissão de conhecimentos tecnológicos que permitam aos diversos
indivíduos alcançar certo grau de desempenho produtivo; cooperação de
diversas pessoas para obter um determinado resultado positivo(23).
A cooperação para obter um resultado positivo pode ocorrer por
duas formas: a primeira, pelo fato de que o trabalhador não conseguiria o
resultado se necessariamente não contasse com a ajuda dos demais.
Isso ocorre com atividades que exijam mobilização de grande número de
pessoas (remoção de obstáculos naturais, colheitas em certo prazo,
etc.). Somente a coordenação e especialização do trabalho permitem
alcançar o resultado que seria impossível ao indivíduo isolado(24). A segunda, é a circunstância de que um indivíduo sozinho pode alcançar
determinado resultado, sendo capaz de realizar todos os processos envolvidos na produção de um bem. Entretanto, se esse processo de produção for decomposto em várias atividades distintas, e sendo cada atividade exercida por uma pessoa especializada, o resultado produtivo será
muito mais eficiente. O exemplo clássico desse segundo aspecto da
cooperação, para obter um resultado positivo está na descrição das atividades de manufatura de alfinetes, feita por Adam Smith(25). Nessa pas(22) O exemplo mais conhecido e didático são as abelhas e as formigas. Entretanto, a
especialização de tarefas é extremante comum entre mamíferos gregários, herbívoros ou carnívoros.
(23) Cf. RECIO, Albert, ob. cit., p. 22/23.
(24) Idem, p. 23.
(25) O exemplo está mencionado no clássico “A Riqueza das Nações”, já mencionado
e é paradigmático para ressaltar a importância das primeiras reflexões sobre divisão
social do trabalho e seus reflexos econômicos. Sobre o tema, ver FINKEL, Lucila. La
Organización Social del Trabajo, Madrid: Ed. Pirámide, 1996, p. 14/15.
94
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
sagem, está descrita a atividade do mestre artesão que fazia todo o
alfinete, em comparação com a fábrica de alfinetes, onde cada trabalhador exercia uma tarefa distinta, no processo de produção de alfinetes,
como esticar o arame, cortá-lo, fazer a ponta e a cabeça, etc. Para um
objeto tão simples como um alfinete, Adam Smith identifica dezoito operações distintas, para completar o processo de fabricação. Entretanto,
ao passar da concentração de todas as tarefas em um só artesão para a
divisão das atividades entre vários trabalhadores, os resultados produtivos são impressionantes: enquanto um trabalhador isolado podia produzir ao redor de 20 alfinetes por dia, a simples separação de tarefas, a
colaboração entre trabalhadores e o uso da maquinaria, permitem produzir 48.000 alfinetes por dia, ou seja, 240 vezes mais.
O incremento de produtividade decorrente da divisão social do trabalho ocorre por várias razões: a) o aumento da destreza dos trabalhadores, como conseqüência de suas atividades se limitarem a uma só
operação; b) a economia de tempo, que de outra forma se perderia ao
passar de uma atividade para a outra; e c) uso de máquinas que facilitam
e reduzem o trabalho, permitindo que um só trabalhador realize o trabalho de muitos.
A divisão social do trabalho cresce à medida que se torna complexa a sociedade. Os indivíduos necessitam de bens que não são capazes
de obter sem a colaboração de outros indivíduos. Em qualquer sociedade
é necessário desenvolver mecanismos que favoreçam a cooperação.
Quanto maior seja o volume de uma sociedade e mais ampla a divisão
social do trabalho, mais complexos serão os problemas de coordenação das atividades desenvolvidas pelos diversos indivíduos e as atividades de coordenação adquirirão maior importância(26).
Nesse ponto é que a divisão social do trabalho adquire uma face
jurídica. As normas jurídicas vão disciplinar aspectos relevantes da divisão social do trabalho, dentro de uma sociedade. Existem experiências
históricas de formas jurídicas dessa regulação, algumas descentralizadas e outras centralizadas. As formas jurídicas descentralizadas de regulação da divisão social do trabalho correspondem à economia de mercado, no qual indivíduos trocam a produção realizada em um mercado,
utilizando como instrumento jurídico os contratos (compra e venda, troca, etc.). Nas formas centralizadas, o processo de coordenação da divisão social do trabalho é realizado por um ente centralizado (como a
(26) Cf. RECIO, Albert, ob. cit., p. 23/24.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
95
experiência da antiga União Soviética e outros países que tiveram experiência com socialismo histórico(27)).
No mercado de trabalho é utilizada a forma contratual. Essa forma
contratual está submetida a uma normatividade que a disciplina. Na execução de um contrato de trabalho, além das obrigações derivadas do
contrato em si, o tomador do trabalho (credor) tem à sua disposição o
poder disciplinar, o poder diretivo e o poder de hierarquizar as distintas
atividades. O poder diretivo, o poder disciplinar e o poder hierárquico são
as três expressões da chamada subordinação subjetiva (poder de dar
ordens ao empregado), que é a base da relação de trabalho assalariado
no sistema capitalista. A subordinação é o traço principal do contrato
que expressa o trabalho assalariado(28).
Um outro aspecto da divisão social do trabalho é o fato de que ela
limita o nível de controle que cada indivíduo tem sobre as decisões e os
objetivos do processo produtivo. Quando se depende dos outros, o grau
de controle sobre o processo produtivo dar-se-á pela forma jurídica como
se regula o processo produtivo, uma vez que o poder de decisão sobre a
forma de produzir ou sobre o que produzir poderá ter maior ou menor
grau de liberdade. As normas de uma sociedade tendem a definir os
diferentes graus de influência social sobre as decisões econômicas básicas, o que se traduz em distintos graus de controle dos indivíduos
sobre o processo produtivo(29). A isso se denomina de interferência do
Estado na Economia (Poder normatizador) e, indiretamente, na regulação da Divisão Social do Trabalho.
Como resumo dessa primeira parte, pode-se afirmar que a relação
de trabalho é um dos cinco fatores de produção (terra, trabalho, capital,
tecnologia e capacidade empreendedora) e constitui um esforço humano
visando a uma finalidade, a sua subsistência ou a satisfação de uma
necessidade. Como o ser humano não vive isolado, o seu trabalho está
relacionado com o trabalho de outros seres humanos e só com especia(27) A expressão “socialismo histórico” é aqui utilizada como experiência empírica de
uma determinada sociedade, em contraposição à expressão “socialismo científico”,
que é reservada para as especulações teóricas.
(28) Cf. VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro de, ob. cit., p. 462/464. Sobre o poder disciplinar, ver COUTINHO, Aldacy Rachid. Poder Punitivo Trabalhista, São Paulo: LTr, 1999.
Uma reflexão mais aprofundada sobre subordinação e liberdade pode ser encontrada
em SUPIOT, Alain. Crítica del Derecho del Trabajo. Madrd: Ed. Ministerio del Trabajo y
Asuntos Sociales, 1996, p. 135/147.
(29) Cf. RECIO, Albert, ob. cit., p. 24.
96
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
lização e coordenação de atividades é que se consegue que os bens
gerados por uns cheguem aos demais de forma a garantir a subsistência
de todos de forma mais eficaz possível. A sociedade cada vez mais
complexa exige a normatização das relações de trabalho, estabelecendo pautas de conduta e sanções para o caso de descumprimento. No
sistema capitalista, a normatização das relações de trabalho se dá pelo
contrato, que estabelece os referenciais mínimos como sujeito, objeto e
conteúdo. Também as normas legitimam certos poderes sociais decorrentes da divisão social do trabalho, como os poderes de direção, punição e hierarquização, que constituem o traço característico do trabalho
assalariado (subordinação). As normas jurídicas disciplinam o contrato
em si e o contrato em relação aos demais indivíduos. Embora possa ser
vista sob os ângulos econômico (fator de produção), sociológico (divisão
social do trabalho) e jurídico (subordinação), a relação de trabalho é desses paradigmas sociais multifacetados, que sempre permitem um novo
ângulo de abordagem.
Nos próximos segmentos do presente trabalho serão aprofundadas as questões jurídicas, sem esquecer de que pode ser simplesmente
um reflexo dos aspectos econômicos e sociológicos.
II. Marco jurídico da relação de trabalho
A segunda parte deste estudo tem por objetivo estabelecer qual o
marco jurídico da relação de trabalho. Na primeira parte foi visto que o
trabalho é considerado como fator de produção sobre regulação normativa em si mesma (contrato) ou em relação aos demais indivíduos (divisão
social do trabalho). O objetivo agora é refletir sobre os temas jurídicos
específicos, procurando situar a relação de trabalho dentre os paradigmas jurídicos definidos.
O presente capítulo abordará, na primeira parte, a distinção entre
trabalho subordinado e trabalho autônomo como pressuposto para a análise e seu reflexo na interpretação da reforma constitucional protagonizada pela Emenda Constitucional n. 45/04. Depois, de forma rápida e objetiva, serão analisadas as dicotomias continuidade/eventualidade, pessoa física/pessoa jurídica como prestadora de trabalho e, por último,
onerosidade/gratuidade(30).
(30) As referências doutrinárias sobre tais temas utilizadas neste capítulo foram expostas pelo autor na obra. A Boa-fé no Contrato de Emprego, São Paulo: LTr, 1996.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
97
A. Trabalho autônomo e trabalho subordinado
A expressão “relação de trabalho”, constante do art. 114, I, da Constituição Federal, que atribui competência para a Justiça do Trabalho, não
refere se se trata de trabalho autônomo ou subordinado. O trabalho, sob
o aspecto econômico, é um fator de produção que pode ser utilizado
tanto de forma autônoma como subordinada (dependência econômica +
poder de direção). Para um economista, a produção de um determinado
bem visando satisfazer uma necessidade humana poderá ser feita tanto
por uma empreitada (trabalho autônomo) quanto por uma relação de
emprego (trabalho subordinado).A única certeza é de que as duas formas jurídicas (autônomo e subordinado) estão em um contexto normativo de liberdade de contratar. Do contrário, apareceriam formas de trabalho forçado ou coativo como a escravidão e a servidão(31). Portanto, o
trabalho livre (em sentido lato, opondo-se ao trabalho coativo) poderá ser
autônomo ou subordinado.
O trabalho autônomo caracteriza-se por constituir vínculo jurídico
fundado na predeterminação da prestação, que não sofrerá intervenção
do credor do trabalho e na circunstância de que o poder jurídico reservado ao prestador encerra o poder de auto-organizar o próprio trabalho,
com ou sem o concurso de outrem(32).
Quanto ao primeiro aspecto, significa que o trabalho autônomo em
geral tem por objetivo um resultado e não a atividade em si. O credor
estabelece com o devedor uma determinada meta e a atividade é o meio
para se atingir a finalidade. É o que ocorre, por exemplo, nos contratos
de empreitada ou mandato. Embora possam existir situações dúbias,
considerando a dificuldade de se definir, no caso concreto, o que é meio
e o que é fim, o certo é que o critério tem alguma utilidade, pelo menos
para estabelecer uma prescrição relativa.
O segundo aspecto, a auto-organização do trabalho, também deve
ser analisado com cautela e sempre dentro de parâmetros concretos. O
trabalhador autônomo desenvolve seu trabalho com organização própria,
(31) Definir trabalho autônomo e trabalho subordinado constitui uma das tarefas mais
difíceis do Direito do Trabalho. Tal objetivo não é o centro deste estudo e as considerações sobre o tema aqui realizadas apenas servem como suporte para reflexões
sobre um tema de Direito Constitucional e Direito Processual, que é o estudo da
competência material da Justiça do Trabalho no Brasil. Sobre o tema, a obra de referência é de autoria de Paulo Emílio Ribeiro de Vilhena, já citada, que constitui o estudo
mais alentado sobre relação de emprego na doutrina brasileira.
(32) Cf. VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro de, ob. cit., p. 482.
98
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
iniciativa e discricionariedade, escolhendo o modo, o tempo, o lugar e a
forma de execução. A iniciativa de auto-organização enfatiza a liberdade
do prestador que pode dispor da sua atividade, inclusive para mais de
um contratante. O autônomo atenderá a contento os diversos credores
de serviços(33).
A subordinação pode ser vista sob aspecto subjetivo e sob aspecto
objetivo.
O aspecto subjetivo da subordinação caracteriza-se pela consciência de cumprir ordens, por parte do trabalhador e pela justificação
legal destas ordens por parte do empregador. Os poderes do empregador são amparados pelo ordenamento jurídico, expressando-se sob as
três vertentes conhecidas: poder diretivo, poder disciplinar e poder hierárquico. O empregador tem para si legitimado o poder de estabelecer a
forma, o modo, o tempo e os desígnios do contrato, apropriando-se com
amparo legal, dos resultados excedentes da prestação de trabalho, sob
a forma de lucro. É certo que estes poderes de direção, disciplina e
hierarquia não são ilimitados, tendo o empregador que exercê-los dentro
de parâmetros também estabelecidos por normas jurídicas. Assim, o
poder disciplinar encontra seu limite nas normas sobre o respeito à integralidade física do empregado e aos seus direitos de cidadão (liberdade,
privacidade, etc). Além disso, o poder disciplinar deve respeitar a adequação da sanção imposta no âmbito contratual com a gravidade da falta
(proporcionalidade). Também o poder diretivo encontra limites no próprio
contrato, pois o empregado contrata como um cidadão livre, e a remuneração deve ser proporcional ao contratado, bem como não está obrigado
a cumprir ordens ilegais(34). Por último, o poder hierárquico também encontra limitações nas normas constitucionais(35) e legais(36) a respeito da
isonomia. O aspecto objetivo da subordinação consiste na inserção do
(33) Idem, p. 483.
(34) Todo contrato deve ter objeto lícito, possível, determinado ou determinável (art.
104, do Código Civil). Embora o contrato de emprego seja um contrato de atividade, no
qual se admite certo grau de indeterminação (vide art. 456, parágrafo único, da CLT),
o empregador não pode estabelecer indeterminadamente o objeto da prestação, sob
pena de caracterizar-se um contrato leonino. Também o objeto do contrato de emprego subordinado deve submeter-se aos dispositivos gerais de licitude do objeto, com
especial atenção à cláusula geral de nulidade no art. 9º da CLT e no art. 166, III e VI, do
Código Civil, no que tange a contrato com motivos ilícitos ou que tenham por finalidade
fraudar lei imperativa.
(35) Art. 7º, XXX, XXXI e XXXII, Constituição Federal.
(36) Arts. 460 e 461, CLT.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
99
trabalho do devedor nos desígnios econômicos do credor. Existe um
constante círculo de expectativas entre credor e devedor: o credor
(empregador) precisa que o empregado aliene sua força de trabalho para
que possa impulsionar os demais fatores de produção; o devedor (empregado) precisa de seu emprego, pois dele depende economicamente para
a sua subsistência ou, se não depende, dele obtém remuneração para
satisfazer algumas de suas necessidades pessoais. Trata-se de uma participação interpretativa da atividade-trabalho na atividade da empresa(37).
A relação de trabalho mencionada no art. 114, I, da Constituição
Federal não distingue entre trabalho autônomo e trabalho subordinado.
Se houvesse alguma restrição apenas ao âmbito do trabalho subordinado, a expressão correta seria “relação de emprego”, pois esta é espécie
da relação de trabalho que, por seu turno, constitui gênero. Portanto, a
competência da Justiça do Trabalho é para solucionar ações envolvendo
relações de trabalho no sentido lato, estejam elas inseridas num contexto de auto-organização do trabalho (trabalho autônomo) ou num contexto
de consciência de cumprir ordens, interando-se nos desígnios econômicos da empresa (trabalho subordinado).
Na terceira parte deste estudo será realizada a definição jurídica
de relação de trabalho. É difícil encontrar na bibliografia tal definição,
pois a maioria dos autores parte do pressuposto de que se conhece que
a relação de trabalho é gênero da qual a relação de emprego é espécie.
B. Continuidade e eventualidade
No Direito do Trabalho brasileiro, a continuidade constitui elemento
da relação de emprego. Embora não se tenha na legislação trabalhista
uma definição de relação de emprego(38), ou definição de empregado contida no art. 3º da CLT, refere-se à prestação não eventual de serviços.
Contínuo ou não eventual, o contrato de emprego tem uma relação
com o tempo, sendo uma obrigação contínua ou de trato sucessivo(39). A
(37) Cf. VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro de, ob. cit., p. 477. As expressões credor/
devedor referem-se às obrigações salariais. Poderiam ser invertidas no caso da
obrigação ser o trabalho.
(38) A única referência defeituosa sobre o tema está no art. 442, da CLT, que possui
uma definição “circular”, sem explicitar os elementos do vínculo de emprego. O texto
legal é o seguinte: “Contrato individual de trabalho é o acordo, tácito ou expresso,
correspondente à relação de emprego”.
(39) As obrigações quanto ao tempo de sua execução dividem-se em obrigações
instantâneas, obrigações diferidas e obrigações contínuas ou de trato sucessivo.
100
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
expressão “trabalho não eventual” ou “continuidade” constitui um conceito jurídico indeterminado(40), ou conceito valorativo, que tem de ser preenchido no caso concreto. Pode ocorrer que um contrato inicialmente
previsto para ser instantâneo ou de execução diferida, se transforme em
um contrato de trato sucessivo, porque as partes não ajustando contínuas atividades, que somadas, acabam por modificar-lhe a natureza. De
qualquer forma, como regra hermenêutica, no contrato de emprego presume-se a continuidade, devendo ser demonstrada a existência de termo resolutivo(41).
Podem existir relações de emprego por prazo indeterminado e por
prazo determinado, assim como podem existir relações de trabalho (não
subordinado) por prazo indeterminado ou por prazo determinado. As relações de representação comercial são típicas relações de trabalho não
subordinado ou autônomas, que podem ser pactuadas por tempo determinado ou indeterminado(42). Outro exemplo é a empreitada de lavor que
normalmente é pactuada por tempo determinado, em virtude da característica de consistir na realização da obra determinada, mas pode, conforme o caso, não ter uma data certa para o seu término, apenas possuindo uma expectativa de realização aproximada.
A Justiça do Trabalho tem competência para apreciar ações envolvendo litígios decorrentes de relações de trabalho eventual ou contínuo,
seja ele subordinado ou não. Até a promulgação da Emenda Constitucional n. 45/04, a competência restringia-se à relação de emprego nãoeventual (salvo exceções previstas em lei). Como a não-eventualidade é
um requisito para a caracterização do vínculo de emprego, na prática a
competência da Justiça do Trabalho era majoritariamente voltada para
relações não-eventuais, ou seja, com continuidade.
Como o contrato de emprego contém uma obrigação de fazer específica (atividade),
as obrigações vão aparecendo e desaparecendo no seu decorrer, com contínuos
adimplementos recíprocos. O contrato é um só, mas as obrigações se sucedem.
(40) Sobre os conceitos jurídicos indeterminados ver HENKE, Horst Eberhard. La
Cuestión de Hecho. Buenos Aires: Ed. Ediciones Jurídicas Europa-America, 1979.
(41) Na verdade, dentro da teoria geral do negócio jurídico, os elementos acidentais
devem ser enunciados expressamente. Os elementos essenciais (capacidade, manifestação de vontade sem vícios e objeto lícito) não precisam de cláusula expressa por
situarem-se no plano da validade. Os elementos acidentais (modo, termo e condição),
por situarem-se no plano da eficácia, precisam de enunciação expressa. Um contrato por
tempo determinado é, na verdade, um contrato a termo, ou seja, sua eficácia encontra-se
submetida a um evento futuro e certo (termo final).
(42) Ver Lei n. 4.886/65, art. 27, c.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
101
Entretanto, a relação de trabalho não tem como elemento essencial a continuidade. Pode perfeitamente haver uma relação de trabalho
que ocorra apenas em um só dia ou num único final de semana, como,
por exemplo, o trabalho em um evento, festa ou feira de exposição.
Será uma relação de trabalho que não caracteriza uma relação de
emprego, porque não tem um de seus elementos que é a continuidade.
Outro exemplo comum de trabalho eventual são os “chapas” e os “biscateiros”, ou mesmo pequenas empreitadas normalmente chamadas
de prestação de serviços, comuns na construção civil, manutenção de
prédios, instalações elétricas e hidráulicas, etc. Todo este variado espectro de relações de trabalho de caráter eventual pode gerar conflitos,
inadimplementos, nulidades, etc. O ramo do Judiciário que resolverá
os conflitos daí resultantes será a Justiça do Trabalho por força do art.
114, I, da Constituição Federal.
C. Pessoa física e pessoa jurídica como prestadoras de trabalho.
A questão da pessoalidade.
Outra relevante questão a ser enfrentada, dentro do estudo da relação de trabalho, é a característica de ser ou não intuitu personae, com
relação à figura do prestador de trabalho e quais os reflexos que isso
gera na fixação da competência. Em outras palavras, a questão é saber
se a pessoalidade, seja o trabalho autônomo ou subordinado, é elemento da relação de trabalho em sentido lato. Para se ter a resposta a este
questionamento é preciso buscar a definição de pessoa, distinguir pessoa natural de pessoa jurídica e analisar se pessoas jurídicas podem ser
partes em uma relação de trabalho em sentido lato como o previsto no
art. 114, I, da Constituição Federal.
Não há dúvida de que uma pessoa física (ou pessoa natural) pode
ser parte de uma relação de emprego (trabalho subordinado) e que estão
expressamente excluídas as pessoas jurídicas como prestadoras de trabalho. Os textos legais, que definem empregador e empregado na CLT
(arts. 2º e 3º), autorizam essa conclusão ao utilizarem as expressões
“prestação pessoal de serviços” e “considera-se empregado toda a pessoa física...”. Portanto, dentro da relação de emprego tradicional o problema encontra-se resolvido(43).
(43) Para aprofundar-se sobre a noção de pessoalidade na relação de emprego, ver
VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro de, ob. cit., p. 350/357 e MORAES FILHO, Evaristo de.
Do Contrato de Trabalho como Elemento da Empresa. São Paulo: LTr, 1993.
102
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
A questão encontra-se em aberto no que tange à relação de trabalho (em sentido lato), porque não há conceituação desse instituto sob o
ponto de vista jurídico.
O conceito de trabalhador envolve a noção de pessoa e pessoalidade. Dispõe o Código Civil que toda a pessoa é capaz de direitos e obrigações (art. 1º). A personalidade é a aptidão para contrair obrigações e
exercer direitos e a capacidade é a medida jurídica da personalidade.
Somente uma pessoa capaz pode praticar plenamente os atos da vida
civil, embora toda a pessoa possa ser sujeito de direitos e obrigações. A
existência da pessoa natural inicia com o nascimento com vida e termina com a morte(44).
O trabalhador pessoa natural tem por pressuposto a capacidade
para contratar, pois o contrato para ser válido, exige agente capaz (pessoa com personalidade dimensionada para praticar atos jurídicos). Como
na maioria dos casos se pensa em relação de trabalho como sendo
relação de emprego, ou seja, trabalho subordinado, a tendência é pensar que o trabalhador pessoa física tem a consciência de cumprir ordens. A consciência é um atributo de um indivíduo e não existiria em
pessoas jurídicas, pois estas constituem uma abstração jurídica. Logo,
as relações de trabalho subordinadas (relações de emprego), necessariamente têm de ser pessoais com relação ao empregado, pois pessoas
jurídicas não teriam a consciência de cumprir ordens.
As pessoas jurídicas são uma abstração do mundo jurídico. Tratase de um conceito jurídico definitório, que cria uma definição auxiliar, abstrata, que será utilizada para regular determinadas relações previstas pelo
ordenamento jurídico(45). O Código Civil estabelece que as pessoas jurídicas, para adquirirem o benefício da autonomia patrimonial em relação aos
seus membros e para obterem reconhecimento de existência válida, precisam ter seus atos constitutivos levados a registro (art. 45, Cód. Civil).
(44) As noções de Direito Civil utilizadas são encontradas em GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil, 10ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1991.
(45) Uma visão original da distinção entre pessoa natural e pessoa jurídica pode ser
encontrada em KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, 2ª ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1997. Para o autor, a distinção não tem razão de ser porque em ambos os
casos o que importa é como as normas jurídicas regulam a conduta dos indivíduos.
Para Kelsen, o Direito não se interessa pelo indivíduo de carne e osso, mas apenas o
reflexo de seu agir no mundo normativo. A pessoa jurídica seria apenas uma técnica
normativa que prevê casos em que as normas disciplinam a conduta de um grupo de
indivíduos e não a conduta de um indivíduo isoladamente. No fundo, as normas regulam
condutas de indivíduos, vistas de forma isolada ou agrupada.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
103
Uma pessoa jurídica regularmente constituída pode ter fins econômicos, ou não. Pela sistemática adotada pelo Código Civil de 2002, as
sociedades necessariamente têm fins econômicos (art. 981), enquanto
que as Fundações e Associações não tem o intuito de lucro (art. 53 e
art. 62, parágrafo único)(46).
Se não houver resultado econômico ou onerosidade, como será visto no próximo tópico, não existe relação de trabalho, seja ela autônoma ou
subordinada. Se o trabalho é considerado um fator de produção, sendo
uma das formas principais da atividade econômica, conforme analisado na
primeira parte deste estudo, não é possível que exista relação de trabalho
a título gratuito. Essa conclusão exclui as pessoas jurídicas de natureza
não econômica (associações e fundações) da possibilidade teórica de
fazerem parte de uma relação de trabalho como prestadoras de trabalho.
Resta analisar a possibilidade das sociedades (com fins econômicos) serem parte de relações de trabalho como prestadoras de trabalho.
As sociedades têm por objeto a comum intenção de dividir perdas e lucros
(affectio societatis). A definição, por si só, exclui que possam praticar
trabalho subordinado, pois a definição legal de empregado não é compatível com a circunstância de assumir os riscos da atividade econômica.
Pelo contrário, no trabalho subordinado é o empregador que assume tal
risco (art. 2º, da CLT). Portanto, sociedades (pessoas jurídicas que visam
fins econômicos) não podem realizar trabalho subordinado, porque este é
incompatível com os riscos do negócio, em nosso sistema jurídico(47).
Subsiste, em teoria, a questão da relação de trabalho autônoma
poder ser praticada por pessoa jurídica. Na prática, a hipótese teórica
englobaria todas as empresas prestadoras de serviço, empresas de representação comercial, empreitadas de lavor contratadas por pessoas
jurídicas, relações entre clientes e clínicas médicas, odontológicas, etc.
No fundo, a questão seria saber se a relação de trabalho pode ser sinônimo de prestação de serviço.
(46) O texto legal é o seguinte:
art. 53 — “Constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem
para fins não econômicos”.
art. 62 ... parágrafo único. “A fundação somente poderá constituir-se para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência”.
(47) Os riscos do negócio não se confundem com algumas formas de remuneração
variável, como a participação nos lucros e resultados. Nesse caso, o empregado
participa de forma limitada nos benefícios, mas não sofrerá redução remuneratória no
caso de não haver lucro.
104
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Em primeiro lugar, é preciso verificar o disposto no Código Civil sobre
o contrato de prestação de serviço. A matéria está disciplinada nos artigos 593 a 609, do Código Civil de 2002, e veio a substituir a antiga denominação de contrato de locação de serviços. O contrato de prestação de
serviços nada mais é do que a antiga locatio conductio operarum, sendo
que o próprio Código Civil dispõe que será aplicado apenas de forma subsidiária quando não houver legislação especial pertinente(48). Embora tenha
mudado a denominação, o novo Código Civil praticamente não alterou o
disposto sobre a locação de serviços, perdendo boa oportunidade para atualizar as normas civis sobre um fenômeno cada vez mais freqüente, como a
prestação de serviços. Na prática, o contrato de prestação de serviços continua sendo um contrato intuitu personae, como se pode ver dos artigos
595, 601 e 607 do Código Civil(49), estando em desuso. Infelizmente, a legislação civil não está apta para resolver o problema teórico da distinção entre
relação de trabalho e prestação de serviço, nem o problema se uma pessoa
jurídica que vise lucro pode ser parte numa relação de trabalho.
A solução terá de ser encontrada na origem dos institutos jurídicos
envolvidos, em especial nas finalidades da sociedade empresária. Como se
sabe, a sociedade necessariamente tem fins econômicos e objetiva a repartição de lucros e perdas. No plano interno da sociedade pode ocorrer que,
não obstante todos os esforços dos sócios, o empreendimento econômico
não prospere e não haja resultado para compartilhar. Houve trabalho (em
sentido lato) destinado à consecução de um fim, mas este fim não se realizou e esta circunstância está dentro dos riscos inerentes a todo o empreendimento econômico. Pode ter ocorrido algum evento climático, alguma falha
na estratégia de marketing ou simplesmente o produto lançado não agradou ao mercado. Houve trabalho, houve esforço para realizar um fim, mas
não há benefícios para dividir. Assim, dentro de uma sociedade o que impera é a noção de risco, não se constituindo relação de trabalho(50).
(48) O texto legal é o seguinte: art. 593. “A prestação de serviço, que não estiver sujeita
às leis trabalhistas ou à lei especial, reger-se-á pelas disposições deste Capítulo”.
Sobre a adaptação da locatio conductio operarum aos tempos atuais ver SUPIOT,
Alain, ob. cit., p. 135/147.
(49) Os referidos artigos dispõem, respectivamente, sobre as partes saberem ler ou
escrever, sobre os serviços compatíveis com as suas forças e condições e sobre o
rompimento do contrato por morte de uma das partes. Como se vê, todos esses
dispositivos legais se referem as características de pessoalidade.
(50) Em Direito Mercantil, a remuneração dos sócios pode ocorrer pelo trabalho (pro
labore) ou pelo capital investido (distribuição de lucros e resultados). Ver, sobre o
tema, COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, 3ª ed. São Paulo: Saraiva,
2002, vol. III.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
105
No plano externo, a sociedade pode prestar serviço para outra
empresa ou mesmo para uma pessoa física. No caso, quem contrata o
serviço não está interessado na pessoa que vai realizá-lo, mas no resultado da contratação. Os contratos de prestação de serviço, em regra,
não são obrigações de resultado.
Um critério que poderia ser proposto para diferenciar prestação de
serviço de relação de trabalho é o de que as relações comerciais entre duas
empresas são atos de comércio e consistem na troca de produtos e serviços e não na troca de trabalho. O trabalho faria parte do produto ou serviço,
mas entraria apenas como mais um dos custos de produção, como a matéria-prima, aluguéis, impostos, propaganda, etc. Nas relações de trabalho, o trabalho seria a mercadoria em si. Dito de outra maneira, o trabalho
é endógeno ao produto ou serviço, tendo preço em si. A prestação de
serviços seria o trabalho mais outros custos, acrescida do lucro.
Esse critério econômico apresenta falhas e não pode ser utilizado
para explicar por que uma pessoa jurídica, que visa ao lucro, não pode
praticar relações de trabalho. É possível que uma pessoa física preste
serviços, cobre pelo trabalho (eventual ou autônomo) e no preço do serviço inclua custos de deslocamento, propaganda, impostos que tenha
que recolher sobre o serviço prestado, etc. Ao contrário das relações de
emprego (trabalho subordinado), as relações de trabalho, em sentido
lato, podem visar ao lucro. Uma empreitada de lavor, quando fixado o
preço, leva em consideração o lucro e outros custos para a realização
do contratado. Portanto, se uma pessoa física pode fazer parte de relações de trabalho e auferir lucros, uma pessoa jurídica poderia perfeitamente fazê-lo e isso não impediria de caracterizar a existência de uma
relação de trabalho entre duas pessoas jurídicas (credor e devedor).
Outro critério que poderia resolver a questão da pessoa jurídica com
fim lucrativo não poder fazer parte da relação de trabalho é o critério da
aleatoriedade dos ganhos (risco). As pessoas jurídicas constituem-se de
sócios que têm a comum intenção de dividir os lucros e perdas. Entre
eles, quando pactuados os atos constitutivos, nunca se sabe qual o montante que cada sócio vai ganhar. Sabe-se apenas o percentual que, nas
sociedades, sempre será uma parte do capital social proporcional à propriedade. Se o empreendimento der lucro, divide-se o montante nos percentuais previstos no contrato social. Se der prejuízo, cada um arca com
o seu percentual. Existe uma certa aleatoriedade sobre o montante líquido, embora sejam conhecidos os percentuais. Tudo depende do futuro da
sociedade, que é incerto. Na relação de trabalho, o montante seria conhecido desde o princípio e não existiria aleatoriedade.
106
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Esse critério seria parcialmente válido para as relações de emprego (trabalho subordinado), em virtude da existência de dispositivo legal
que garante o salário mínimo, mesmo no caso do salário do empregado
ser fixado por comissão, peça ou tarefa (art. 78, da CLT) e dispositivo
legal que determina parte do pagamento do salário em dinheiro (artigos
458, § 1º; 463; 81 e 82, da CLT). Nas relações de emprego existem o
sinalagma (obrigações contrárias e equivalentes) e a comutatividade (a
parte sempre sabe o mínimo que vai receber, independentemente do
empreendimento ter ou não ter lucro).
A questão é saber se a relação de trabalho, em sentido lato, é
comutativa ou aleatória. Sendo um contrato que estipula uma obrigação
de fazer em contraposição de uma obrigação de dar, a relação de Trabalho (lato sensu) por definição não tem nenhuma relação necessária com
a circunstância de ser comutativa ou aleatória. Embora quem contrata o
trabalho em outro de regra fixe uma retribuição, seja em dinheiro ou in
natura, pode ocorrer dessa retribuição estar condicionada ao risco do negócio. O exemplo mais conhecido é o da representação comercial. Tratase de uma relação de trabalho em sentido lato, na qual a parte que trabalha só recebe se efetivar as vendas. As normas legais não garantem nenhum mínimo mesmo no caso de inexistência de vendas. O representante
comercial pode ter trabalhado, visitado clientes, mas não efetivou nenhuma venda e, por isso, não receberá nenhuma contraprestação.
O critério da aleatoriedade (risco) não serve para justificar que a
relação de trabalho tenha de ser pessoal.
Fracassadas as tentativas de se encontrar um critério jurídico ou
econômico para definir a relação de trabalho como sendo uma relação
intuitu personae, resta o critério epistemológico (estudo do método de
determinada disciplina).
No campo do Direito do Trabalho, seja de forma autônoma ou subordinada, contínua ou eventual, só tem sentido o estudo do trabalho
humano e produtivo(51). O objeto da disciplina exclui o estudo de formas
de trabalho que não sejam humanas (animais e máquinas) ou que não
sejam onerosas (trabalho gratuito ou altruístico). Trabalho humano é aquele
realizado pelo homem, seja no manejo da matéria (trabalho manual),
seja pelo uso de símbolos (trabalho intelectual)(52).
(51) Sobre o conteúdo valorativo do trabalho humano ver ARAÚJO, Francisco Rossal.
“O Direito do Trabalho e o Ser Humano”, in Continuando a História (Amatra IV), São
Paulo: LTr, 1999.
(52) Cf. OLEA, Manuel Alonso, ob. cit., p. 16.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
107
O ser humano para trabalhar interpõe a sua força física para transformar a matéria, utilizando-se, ou não, de ferramentas. As máquinas e
os animais são ferramentas controladas pelo homem. O trabalho intelectual se dá pela exteriorização de símbolos, que constituem uma linguagem direcionada e compreendida por outros seres humanos. Naturalmente, nenhum trabalho humano é puramente manual ou intelectual. O
mais comum é a coexistência de ambas as modalidades(53).
Se a definição do objeto da relação de trabalho é pressuposto, ou
seja, parte da limitação arbitrária das premissas a serem estudadas, excluindo outras formas de trabalho que não o trabalho humano, poder-se-ia
afirmar que as relações de trabalho realizadas por pessoas jurídicas, por
serem entes abstratos criados como conceito auxiliar do ordenamento
jurídico, não estão incluídas no âmbito de investigação das relações de
trabalho. Dito de outro modo, apenas o trabalho humano direto, manual ou
intelectual, autônomo ou subordinado, eventual ou contínuo, é que seria
objeto da relação de trabalho. Esforços realizados por animais, máquinas
ou entes abstratos (pessoas jurídicas) não seriam objetos das relações
de trabalho. No caso das máquinas e animais, somente seriam objeto das
relações jurídicas se estivessem relacionados ou administrados por seres
humanos. No caso dos entes abstratos — pessoas jurídicas são compostas por seres humanos ou por outras pessoas jurídicas — seriam objeto
de estudo das relações de direito comercial ou mercantil. A separação do
objeto de estudo seria uma questão de método e classificação.
A conseqüência desta afirmativa é o pressuposto de que a pessoalidade é requisito essencial da relação de trabalho (elemento pressuposto). No que diz respeito a matéria de competência da Justiça do Trabalho (art. 114, I, Constituição Federal), o corolário é que os litígios decorrentes das relações de trabalho somente serão resolvidos pela Justiça
do Trabalho quando as relações de trabalho forem intuitu personae. A
expressão “prestação de serviços” ficaria reservada para relações entre
pessoas jurídicas e teria natureza civil ou mercantil. Apenas caberia a
ressalva de que, no caso concreto, uma pessoa jurídica pode ser desviada
de sua finalidade com o intuito de mascarar uma relação de trabalho
(gênero) ou uma relação de emprego (espécie). Isso ocorre nos casos
em que o tomador do trabalho, com a intenção de afastar um possível
vínculo de emprego, obriga o trabalhador a constituir uma pessoa jurídi(53) Idem, p. 16/17. A CLT proíbe a distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual (art. 3º, parágrafo único).
108
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
ca com algum sócio (parente ou amigo). A pessoa jurídica, nesse caso,
é fictícia, pois, na realidade, o trabalho é prestado pessoalmente e o
sócio fictício nunca presta serviços. Esse caso de simulação ou fraude
se resolve com a declaração de nulidade e o reconhecimento do real
contrato existente.
Em resumo, o critério econômico do lucro e o critério jurídico da
aleatoriedade não são suficientes para determinar que a relação de trabalho tenha o elemento da pessoalidade como seu caracterizador. Como
único critério válido, resta o critério pressuposto (critério epistemológico)
da própria definição do objeto de estudo caracterizador da relação de
trabalho. A relação de trabalho envolve trabalho humano, pessoal, manual
ou intelectual, excluindo o trabalho de animais, máquinas e entes abstratos (pessoas jurídicas).
D. Trabalho oneroso e trabalho gratuito
Os contratos podem ser onerosos ou gratuitos no que se refere
ao critério da economicidade. Como a relação de trabalho, em sentido
lato, tem natureza contratual, ela também pode ser onerosa ou gratuita. Um contrato oneroso é aquele em que a prestação tem valor economicamente avaliável. O preço é a expressão monetária do valor. Ambas as partes suportam esforços econômicos nos contratos onerosos,
sendo que, na relação de trabalho, o esforço econômico do devedor do
trabalho é o trabalho em si (manual ou intelectual) e o esforço econômico do credor do trabalho é a remuneração.
A remuneração, tanto na relação de trabalho em sentido lato (trabalho autônomo ou eventual) quanto na relação de trabalho em sentido estrito (trabalho subordinado) pode ser em espécie ou in natura. A diferença é
que na relação de emprego (trabalho subordinado) ao menos uma parte
deve ser paga em espécie(54), enquanto que na relação de trabalho, em
sentido lato, não há limitação para um mínimo a ser pago em espécie. As
normas da CLT são protetivas ao recebimento do salário (trabalho subordinado) e estão inspiradas na Convenção n. 95 da OIT. Tais regras visam a
eliminar o denominado truck system, uma espécie de servidão por dívidas,
comum nos princípios da Revolução Industrial, em que os trabalhadores
eram remunerados in natura e assumiam dívidas para adquirir produtos de
subsistência nos armazéns de propriedade do patrão.
(54) Ver item anterior da presente exposição.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
109
O trabalho que é o fundamento da disciplina do Direito do Trabalho
e das relações de trabalho em geral (sentido lato ou sentido estrito), é o
trabalho oneroso. O ser humano que trabalha, o faz empregando seu
esforço com finalidade imediata de obtenção de bens materiais necessários à sua subsistência(55). Portanto, as relações de trabalho estão
fundadas nas relações de economicidade, sendo esta a presunção. As
relações de trabalho são presumivelmente onerosas e a gratuidade deve
ser considerada como excepcional. A gratuidade terá interpretação restrita, atendendo-se ao caso concreto e, em peculiar, à condição das
pessoas e à peculiar situação em que se encontrem(57).
É possível que existam relações em que o ser humano desenvolva
esforço físico ou intelectual, visando a um determinado fim que não seja a
sua subsistência ou que não tenha significação econômica. O trabalho altruístico, o lazer e os jogos são exemplos de possibilidade de esforço sem
onerosidade. Entretanto, sempre haverá atenção especial para o caso concreto, porque uma atividade que é considerada lazer para muitos (como
jogar futebol, por exemplo), pode converter-se em uma atividade profissional
com significado econômico conforme a circunstância. Da mesma forma, os
exemplos de atividades de um médico ou de um dentista que desempenham seu trabalho em parte do tempo sem cobrar remuneração por motivos de solidariedade ou altruísmo. No exemplo do futebol, se presume a
atividade de lazer e deve ser provada a onerosidade. No caso do médico e
do dentista, se presume a onerosidade devendo ser provada a gratuidade.
Para conectar com o tema da competência em razão da matéria,
prevista no art. 114, I, da Constituição Federal, a Justiça do Trabalho
terá competência para dirimir litígios decorrentes de relações de trabalho onerosas. Eventualmente se discutirá em alguma lide se o trabalho
era oneroso, ou não, mas esse tema confunde a matéria de competência com o mérito, sendo competente a Justiça do Trabalho para examiná-la. Também será competente a Justiça do Trabalho para analisar as
lides envolvendo o inadimplemento de relações de trabalho, sem que
isso se confunda com inexistência de onerosidade.
III — Uma definição jurídica de relação de trabalho
A terceira parte deste estudo visa a resumir as exposições anteriores expostas sobre a concepção geral de trabalho (econômica e socio(55) Cf. OLEA, Manuel Alonso, ob. cit., p. 19.
(57) VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro de, ob. cit., p. 674/675.
110
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
lógica), tratada na parte I e sobre os institutos jurídicos que se interseccionam com a relação de trabalho (autonomia, subordinação, pessoalidade,
continuidade e onerosidade), tratados na parte II, na tentativa de definir
juridicamente a relação de trabalho. Diferentemente das partes anteriores, a presente exposição será breve e propositiva.
Relação de Trabalho, no sentido jurídico, é um contrato. Nesse
sentido, regido pelo princípio da economicidade e da autonomia da vontade (pacta sunt servanda), embora normas jurídicas possam trazer restrições a essa autonomia com maior ou menor intensidade. As relações
de trabalho subordinado tendem a ter maior restrição à autonomia da
vontade e as relações de trabalho autônomo tendem a ter menores restrições à autonomia da vontade.
A relação de trabalho sempre será onerosa e intuitu personae em
relação ao prestador do trabalho, quer o trabalho seja autônomo ou subordinado, contínuo ou eventual. Quanto à forma, trata-se de um contrato consensual (solo consensu), ou seja, não exige forma, salvo se a lei
expressamente o exigir. Como todo e qualquer contrato, exige agente
capaz, objeto lícito e manifestação de vontade sem vícios. As relações
de trabalho são sinalagmáticas e comutativas, embora uma parte da
contraprestação possa ser relacionada ao risco (produtividade, percentuais, peças, tarefas, etc.).
IV — Relação de trabalho e regra de competência
A quarta e última parte desta exposição tem por objetivo conectar
a definição de relação de trabalho com o tema da competência em razão
da matéria. O motivo da interpretação do art. 114, da Constituição Federal, em especial o seu inciso I, e também os incisos VI e IX, que também
utilizam a expressão relação de trabalho(58). Em linhas gerais, o Texto
(58) Existem algumas particularidades, principalmente no que toca aos servidores públicos. Na proposta original que tramitou pelo Congresso, a Justiça do Trabalho é competente para processar e julgar ações oriundas das relações de trabalho, abrangidos os
entes de direito público e externo e a administração pública direta e indireta da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, “exceto os servidores ocupantes de
cargos criados por lei, de provimento efetivo ou em comissão, incluídas as autarquias
e fundações públicas dos referidos entes da federação” (grifado). Ocorre que esta
parte grifada recebeu modificações no Senado e, por esse motivo, retorna à Câmara
dos Deputados para nova votação. Até o presente momento, portanto, a Justiça do
Trabalho tem competência amplíssima para processar e julgar lides envolvendo relações de trabalho, incluindo todo o setor privado (trabalho autônomo ou subordinado,
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
111
Constitucional fixa a competência da Justiça do Trabalho para processar
e julgar ações oriundas das relações de trabalho, ações de indenização
por dano moral ou patrimonial, decorrentes de relação de trabalho e outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei.
A estrutura desta última parte será subdividida em um tópico inicial
sobre noções gerais de jurisdição e competência e um segundo tópico
sobre a inversão de paradigma trazida pela Emenda Constitucional n.
45/04, no que toca à competência em razão da matéria de relações de
trabalho.
A. Noções gerais de jurisdição e competência
A jurisdição e a competência são temas clássicos na Teoria
Geral do Processo e o objetivo, desta pequena abordagem, é apenas lembrar de alguns preceitos fundamentais para orientar o raciocínio a respeito do tema específico que está sendo analisado (Competência Material da Justiça do Trabalho). Muitos autores referem o tema
com mais profundidade e consistência e serviram de base para a presente exposição(59).
contínuo ou eventual, oneroso e pessoal). Entretanto, como a matéria relativa ao
setor público ainda voltará a ser discutida no Congresso Nacional e considerando
que existe muita polêmica a respeito do tema, deixa-se de abordar o assunto até que
o texto legal definitivo venha a ser definido, o que se espera para a primeira metade
de 2005.
(59) As obras consultadas sobre o tema, para as linhas gerais são ARAÚJO CINTRA, Antonio Carlos de e outros. Teoria Geral do Processo, 9ª ed. São Paulo:
Malheiros, 1992, p. 113/130 e MARQUES, José Frederico. Instituições de Direito
Processual, São Paulo: Millenium, 2000, vol. I, p. 257/296. Sobre os princípios de processo na Constituição Federal, ver NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios de Processo Civil
na Constituição Federal. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000; TUCCI,
Rogério Lauria e outros. Constituição de 1988 e Processo, São Paulo: Saraiva,
1989; e PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil, 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. As obras gerais de Teoria Geral do Processo que tratam
sobre o tema, que foram consultadas são: CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de
Direito Processual Civil, 3ª ed. Campinas: Bookseller, 2002, volume II; COUTURE,
Eduardo J. Fundamentos del Derecho Procesal Civil, 3ª ed. Buenos Aires: Depalma,
1990; CALAMANDREI, Piero. Direito Processual Civil, Campinas: Bookseller, 1999,
volume I; CARNELUTTI, Francesco. Instituciones del Proceso Civil. Buenos Aires:
Ediciones Jurídicas Europa-America, 1989, vol. I e ECHANDIA, Devis. Teoria General
Del Proceso, Buenos Aires: Universidad, 1984, vol. I. Sobre o tema específico da
instrumentalidade do processo e seus reflexos na jurisdição e obra consultada foi
DINAMARCO, Cândido Rangel . A Instrumentalidade do Processo, 11ª ed. São Paulo:
Malheiros, 2003, p. 92/192.
112
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
1. Jurisdição
A jurisdição é uma das funções do Estado, juntamente com a função normativa (legislativa) e a administrativa (executiva). Essa tripartição
do poder político do Estado é a base do Estado do Direito(60). Pela jurisdição, o Estado substitui os titulares dos interesses em conflito e, de
forma imparcial, busca a solução. Pela jurisdição ocorre a pacificação
dos conflitos. O Estado desempenha uma função sempre por meio de
um processo(61).
A jurisdição é, ao mesmo tempo, poder, função e atividade. Como
poder, é a manifestação do poder estatal, decidindo imperativamente e
impondo as decisões. A jurisdição, nesse sentido, é heterônoma, pois
as partes não encontram a solução em si (autocomposiçao), mas têm
de se submeter ao decidido por um terceiro (Estado). Como função, a
jurisdição é o encargo que os órgãos estatais têm de promover na pacificação de conflitos interindividuais, mediante a realização do direto
justo e por meio do processo(62). Como atividade, é o complexo de atos
do juiz no processo, exercendo o poder e cumprindo a função que a lei
lhe comete. O poder, a função e a atividade somente transparecem
legitimamente por intermédio de um processo devidamente estruturado
(devido processo legal)(63).
A finalidade da jurisdição é garantir que as normas de direito material (direito substancial) efetivamente produzam os efeitos por elas preconizados. Em outras palavras, a jurisdição faz a concreção judicial,
atuando lastreada na existência de um devido processo legal, de forma
instrumental. Sem jurisdição as normas de direito material não teriam
eficácia(64). A afirmação é no sentido de que a finalidade da jurisdição é a
atuação da vontade concreta da lei e justa composição da lide(65).
(60) A denominação clássica da teoria da divisão dos poderes do Estado está em
MONTESQUIEU, Barão de Charles de Secondat. O Espírito das Leis, São Paulo: Martins
Fontes, 1993, p. 171/183.
(61) Cf. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, ob. cit., p. 113. Para ECHANDIA, Devis, ob.
cit., p. 73, a jurisdição em sentido estrito constitui a função pública de administrar a
justiça, emanada da soberania do Estado e exercida por um órgão especial.
(62) Cf. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo e outros, ob. cit., p. 13 e COUTURE, Eduardo J., ob. cit., p. 30/31.
(63) Idem.
(64) Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel, ob. cit., p. 92/180. O autor faz uma longa e
completa exposição sobre as relações entre Jurisdição e Poder.
(65) Idem, p. 185.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
113
A existência de uma lide é uma característica predominante da
jurisdição, embora em caráter excepcional possa haver jurisdição sem
lide(66). Por definição, os órgãos jurisdicionais são inertes, também sendo excepcionais os procedimentos de ofício. A jurisdição é imutável,
adquirindo tal condição por via do instituto jurídico da coisa julgada (art.
5º, XXXVI, da Constituição Federal). Em resumo, são características da
jurisdição a existência de lide, a inércia e a imutabilidade.
Entre seus princípios, citam-se os princípios da investidura, aderência a território, indelegabilidade, inevitabilidade, inafastabilidade e do
juiz natural(67).
A investidura está conectada com a idéia de que somente poderá
ser exercida a jurisdição por quem regularmente tenha sido investido na
autoridade de juiz. Ato praticado por pessoa não investida nessa autoridade é ato inexistente. O Estado tem a pretensão de exercer o monopólio da
jurisdição.
Aderência ao território significa que a jurisdição é exercida nos
limites da soberania do país. Para que a jurisdição seja exercida fora do
território soberano, deve contar com a colaboração de outro Estado.
A indelegabilidade significa que é vedado a qualquer um dos Poderes delegar as suas atribuições. A Constituição fixa o conteúdo das atribuições do “Poder Judiciário” e não pode a lei ou qualquer outro ato
normativo ou administrativo suprimir-lhe ou modificar-lhe o conteúdo.
Também, internamente, nenhum juiz pode, por iniciativa própria, delegar
a jurisdição a outro órgão.
Por inevitabilidade, entende-se o princípio de que, uma vez que
buscam a Jurisdição, as partes sujeitam-se aos resultados do processo,
de acordo com o disposto na Constituição e na lei. A situação de ambas
as partes diante do Poder Jurisdicional é de sujeição.
A inafastabilidade significa que nenhuma norma jurídica pode excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV, Constituição). Em princípio, também é conhecido
como liberdade de acesso à Jurisdição(68).
(66) Cf. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, ob. cit., p. 115. O autor refere-se a polêmica afirmação de Carnelutti, para o qual sempre haverá lide na Jurisdição. Sobre a
jurisdição voluntária, ver LUCENA, João Paulo. Natureza da Jurisdição Voluntária.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996.
(67) Cf. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, ob. cit., p. 118/120 e MARQUES, José
Frederico, ob. cit., p. 277/278.
(68) Cf. NERY JÚNIOR, Nelson, ob. cit., p. 94/103.
114
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
O princípio do juiz natural significa que ninguém pode ser privado
do julgamento por juiz independente e imparcial, indicado pelas normas
constitucionais e legais. Nenhum juiz pode ser retirado do processo de
julgamento de uma causa, nem mesmo por seus superiores hierárquicos, salvo nos casos previstos em lei. Além disso, são proibidos os
tribunais de exceção (art. 5º, XXXVII, CF).
2. Competência
A competência é a medida da jurisdição. O poder estatal da jurisdição é indivisível e indelegável sob o ponto de vista do Estado em relação
a outros entes, mas em relação ao Estado em si mesmo, é necessário
encontrar critérios que possibilitem o exercício racional do poder. Sob o
ângulo funcional, a competência nada mais é do que o princípio da divisão social do trabalho aplicado à jurisdição. Trata-se de um critério de
racionalização de serviço e distribuição de tarefas, como qualquer outro
em qualquer grupo humano que trabalhe com certo objetivo. Razões de
ordem prática obrigam o estado a distribuir o poder jurisdicional entre
vários juízes e tribunais, visto não ser possível que um só órgão conheça
todos os litígios e resolva todas as causas(69). Essa distribuição de poder obedece a certos critérios, visando a atender não só os interesses
do Estado (Poder Judiciário), mas também o particular. Todos os juízes
exercem a jurisdição numa certa medida e em certos limites(70).
Os critérios para fixar a competência podem ser espaciais, materiais ou funcionais. O poder jurisdicional é exercido dentro dos limites da
soberania do Estado, sendo a competência internacional o primeiro dos
critérios espaciais. Depois, como a Constituição prevê que a República
do Brasil é um ente federativo, o critério espacial interno subdivide a
competência entre União, Estados e Municípios.
Essa subdivisão vertical pode ser interpenetrada por outro critério
de divisão de competência que é o critério material. Por razões de ordem
prática ou política judiciária, certas matérias são de competência determinada de certos órgãos, sejam eles federais ou estaduais. Por último,
também interpenetram essa rede as competências funcionais e em razão da pessoa. A primeira refere-se à hierarquia dos órgãos jurisdicio(69) Cf. MARQUES, José Frederico, ob. cit., p. 319.
(70) Cf. CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e Competência, 4ª ed. São Paulo:
Saraiva, 1991, p. 45.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
115
nais e a segunda dispõe que certas pessoas em certas funções têm foro
privilegiado ou definido. Todos esses critérios devem ser definidos por
lei, pois do contrário caracterizar-se-ia foro de exceção, o que contraria
norma constitucional expressa.
A conexão e a prevenção são institutos jurídicos relacionados com
a competência, mas com ela não se confundem. A conexão é um fator
de alteração de competência e a prevenção é um critério temporal para
prevalência da competência de um órgão jurisdicional sobre o outro(71).
A competência material da Justiça do Trabalho, como órgão jurisdicional, foi fixada na Constituição de 1946. Antes disso, em termos constitucionais, a Justiça do Trabalho tinha caráter administrativo(72). Somente
na Constituição de 1946 é que a Justiça do Trabalho adquiriu natureza
jurisdicional (art. 123), embora legislação infraconstitucional do mesmo
ano já dispusesse sobre o tema com idêntica inclinação (Decreto-lei n.
9.797, de 9 de setembro de 1946). As Constituições de 1967 (art. 134), a
Emenda Constitucional n. 01 de 1969 (art. 142) e a Constituição de 1988
(art. 114), mantiveram a natureza jurisdicional da Justiça do Trabalho.
B. A inversão de paradigma da Emenda Constitucional n. 45/04
Até a Emenda Constitucional n. 45/04, a competência em razão da
matéria da Justiça do Trabalho tinha como norma jurídica fundamental o
art. 114 da Constituição Federal, sendo complementada por legislação
infraconstitucional, em especial o art. 652 da CLT.
O artigo 114 da Constituição dispunha que a Justiça do Trabalho
era competente para “ conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito
público externo e da administração pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União, em, na forma da lei,
outras controvérsias decorrentes das relações de trabalho”. Da forma
como estava redigido, o Texto Constitucional após lenta interpretação
jurisprudencial e desenvolvimento legal, permitia algumas conclusões:
a) a expressão “trabalhadores” permitia uma maior abrangência do que a
expressão “empregados” e era utilizada para permitir uma ampliação da
competência em razão da matéria para outras relações de trabalho que
(71) Cf. MARQUES, José Frederico, ob. cit., p. 326.
(72) A Justiça do Trabalho teve previsão na Constituição de 1934 (art. 122), mas
com âmbito administrativo. A mesma sistemática prevaleceu na Constituição de 1937
(art. 139).
116
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
não a relação de emprego (trabalho subordinado), como, por exemplo, a
relação de trabalho avulso(73); b) a expressão “e, na forma da lei, outras
controvérsias decorrentes da relação de trabalho...” vinha sendo utilizada
como porta de abertura para que outros temas passassem a fazer parte da competência em razão da matéria da Justiça do Trabalho, como, por
exemplo, as indenizações por dano moral decorrentes das relações de trabalho, danos patrimoniais, etc.; e c) ficava ressalvada a questão relativa a servidores públicos estatutários (cargos de provimento efetivo ou de confiança
regidos estatutariamente) e dos acidentes de trabalho (art. 643, § 2º, da CLT).
A respeito das relações de trabalho, afirmava-se que, em face do
Texto Constitucional em vigor, não é mister que as relações de trabalho
(não vinculadas à relação de emprego) sejam reguladas por lei especial
para que se submetam à competência da Justiça do Trabalho. Ou seja,
ações relativas a controvérsias surgidas em relações de trabalho não
reguladas por lei, poderiam ser da competência da Justiça do Trabalho,
desde que houvesse lei, (complementar ou ordinária) adjetiva fixando a
competência nesse sentido. A Justiça do Trabalho não seria órgão jurisdicional para analisar as lides decorrentes do “emprego”, uma vez que
todas as ações relativas às relações de trabalho (autônomo ou subordinado, contínuo ou eventual) poderiam ser apreciadas pela Justiça do
Trabalho desde que houvesse lei nesse sentido(74).
A justificativa para a exigência de lei dispondo no sentido de fixar
competência para relações de trabalho era de natureza gramatical. Ao
utilizar a conjunção aditiva “e”, na expressão “e, na forma da lei, outras
controvérsias decorrentes da relação de trabalho...”, o Texto Constitucional limitava a ampliação de competência para temas relativos à relação de
trabalho à existência de norma jurídica infraconstitucional com hierarquia de lei (lei complementar, lei ordinária ou medida provisória).
Assim, controvérsias decorrentes de uma relação de trabalho típica,
como as pequenas empreitadas de lavor, eram de competência da Justiça
do Trabalho por expressa atribuição de lei (art. 652, a, III, da CLT) e as
controvérsias decorrentes de uma outra relação de trabalho típica, como a
representação comercial, não eram de competência da Justiça do Trabalho, porque não existia norma infraconstitucional dispondo nesse sentido.
(73) A CLT dispunha, mesmo anteriormente à Constituição de 1988, nesse sentido,
nos artigos 652, V e 643, § 3º.
(74) Essa é a posição de BATALHA, Wilson de Souza Campos. Tratado de Direito
Judiciário do Trabalho, 3ª ed. São Paulo: LTr, 1995, vol. I, p. 334.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
117
Outro ponto que se discutia a respeito da competência em razão da
matéria da Justiça do Trabalho em função do texto do art. 114 da Constituição, era o fato de que, segundo alguns(75), o Texto Constitucional reproduzia o vício da legislação ordinária, não estabelecendo, na verdade, competência em razão da matéria, mas competência em razão da pessoa. Isso
ocorreria porque o texto utilizava a expressão “litígios entre trabalhadores e
empregadores”, o que poderia levar a confusões, pois nem todos os litígios
entre trabalhadores e empregadores teriam natureza trabalhista.
Essa questão era altamente polêmica e levou a manifestações do
STF sobre o tema da competência, ficando estabelecido o critério de
que o Texto Constitucional deveria ser interpretado de forma mais ampla,
e que as questões trabalhistas de competência da Justiça do Trabalho
não se limitavam à matéria trabalhista da relação de emprego subordinada em sentido estrito, mas poderiam envolver questões relativas à responsabilidade civil decorrente da relação de emprego, por exemplo. O
objetivo não era retirar parcela da competência da Justiça Comum, mas
sim estender a competência da Justiça do Trabalho para a solução completa dos conflitos que são inerentes às relações trabalhistas(76), estabelecendo uma perspectiva mais abrangente de relação de trabalho. No
fundo, essa nova perspectiva estava baseada na interpretação de que
um mesmo fato jurídico pode sofrer a incidência de várias normas jurídicas, dando origem a direitos subjetivos de distinta natureza. Como a
competência deve existir para auxiliar na solução racional de conflitos e,
na medida do possível, harmonizar os critérios de direito material com
os critérios de direito processual (o processo é o instrumento de realização do direito material), não seria razoável compartimentalizar excessivamente a competência em relação a um litígio que, no fundo, tem a
mesma origem: a relação de trabalho(77).
(75) Cf. GIGLIO, Wagner. Direito Processual do Trabalho, 11ª ed. São Paulo: Saraiva,
2000, p. 38.
(76) Cf. FLORINDO, Valdir. Dano Moral e o Direito do Trabalho, São Paulo: LTr, p. 75.
(77) A jurisprudência do TST apresenta posições nesse sentido: “Inscreve-se na
competência material da Justiça do Trabalho o conflito de interesses entre o empregado e empregador cuja origem repousa diretamente no contrato de emprego, ainda que
seja indenização civil. Situação em que o empregador demandado, ao designar o
reclamante para trabalhar no exterior, assegurou-lhe contratualmente o ressarcimento de prejuízos advindos do desfazimento do comércio mantido por sua consorte na
cidade do Rio de Janeiro” (RR 220.843/95.5 — TST — Rel. Min. Oreste Dalazen). Da
mesma forma o STF tem entendido nesse sentido: “Justiça do Trabalho: Competência:
Ação de reparação de danos decorrentes da imputação caluniosa irrogada ao trabalhador pelo empregador a pretexto de justa causa para a despedida e, assim, decorrente da relação de trabalho, não importando deva a controvérsia ser dirimida à luz do
118
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
O STF firmou posição quanto à competência da Justiça Comum
para julgar os litígios decorrentes dos acidentes de trabalho, que, em
tese, também são ações decorrentes de litígios que envolvem as relações de trabalho. A Súmula n. 501 cristaliza essa jurisprudência desde
1969, sendo mantido o entendimento mesmo com a Constituição
de 1988(78). Pouco a pouco, porém, o STF vinha invertendo no raciocínio
da leitura gramatical do art. 114 da Constituição, dando mais abrangência à expressão “e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da
relação de trabalho”, como revelam os acórdãos anteriormente citados.
Feita a análise da situação anterior à Emenda Constitucional n.
45/04, examina-se a situação posterior à sua promulgação.
Em primeiro lugar, é preciso ressaltar as mudanças de redação e
descobrir se mudanças dessa natureza trazem conseqüências práticas
em matéria competência. Constata-se que o estilo de redação suprimiu
a expressão “conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre
trabalhadores e empregadores...” e a trocou pela expressão “compete à
Justuiça do Trabalho processar e julgar... I — as ações oriundas da
relação de trabalho...”. A primeira conseqüência é de que a referência às
pessoas do trabalhador e do empregador foi substituída pela referência à
matéria relação de trabalho. Além disso, a expressão relação de trabalho reaparece de forma expressa nos incisos VI e IX do mesmo artigo,
referindo-se ao dano moral e patrimonial e outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho. Por essa razão a importância de se definir
juridicamente o que é relação de trabalho.
Em segundo lugar, na redação anterior, depois de fixar a competência geral para litígios entre trabalhadores e empregadores, o art. 114
conectava a expressão “outras controvérsias decorrentes da relação de
trabalho” à expressão “na forma da lei”. Como foi visto nos parágrafos
anteriores, esta era a base da afirmação de que a Justiça do Trabalho
somente seria competente nesses casos se houvesse legislação esDireito Civil” (RE 238737/ SP — São Paulo — 1ª Turma — Rel. Min. Sepúlveda Pertence); “Justiça do Trabalho: Competência: Ação de ressarcimento de danos causados
por descontos indevidos sobre o salário do empregado por ocasião da rescisão do
contrato de trabalho e, assim, decorrente da relação de trabalho, não importando deva
a controvérsia ser dirimida à luz do Direito Civil” (RE 249740 — 1 — Amazonas — 1ª
Turma — Rel. Min. Sepúlveda Pertence).
(78) O texto da Súmula n. 501 é o seguinte: “Compete à justiça ordinária estadual o
processo e o julgamento, em ambas as instâncias, das causas de acidente do trabalho, ainda que promovidas contra a União, suas autarquias, empresas públicas ou
sociedades de economia mista”.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
119
pecífica a respeito, atribuindo-lhe a competência. Entretanto, analisandose a nova redação do art. 114, verifica-se que o inciso não atrela a competência da Justiça do Trabalho para ações oriundas da relação de trabalho
(em sentido lato) à expressão na forma da lei. Isso acontece apenas no
inciso IX, quando o Texto Constitucional se refere a “outras controvérsias
decorrentes da relação de trabalho”. A conseqüência lógica de tal modificação é importantíssima, pois a partir da Emenda Constitucional n. 45/04,
a competência da Justiça do Trabalho para ações decorrentes da relação
de trabalho é a regra geral. Não é necessária norma especial para atribuíla. Dito de outro modo, a nova redação do art. 114, ao separar os temas
por incisos, desatrelou a competência para ações oriundas da relação de
trabalho da necessidade de existência de lei. A própria Constituição, que
é a norma jurídica hierarquicamente mais relevante, o faz expressamente!
Ocorreu uma mudança de paradigma para a interpretação da competência da Justiça do Trabalho (competência em razão da matéria).
Quando se tratar de controvérsia decorrente da relação de trabalho (autônomo ou subordinado, eventual ou contínuo, pessoal e oneroso) a regra geral de interpretação é de que a competência será da Justiça Laboral, por força do inciso I, do art. 114, da Constituição Federal.
Os incisos VI e IX do art. 114 da Constituição apenas reforçam
essa afirmação.
O inciso VI, que se refere aos danos morais e patrimoniais decorrentes da relação de trabalho, abre a competência para matérias que
não são parcelas trabalhistas típicas, como a responsabilidade civil.
Está inserido na perspectiva antes narrada da jurisprudência do STF,
que apontava o critério de que a competência material da Justiça do
Trabalho não se limita a analisar lides envolvendo interpretação de normas trabalhistas típicas, mas também de lides trabalhistas que envolvam interpretação de outros ramos do Direito, como o Direito Civil, por
exemplo(79). Para que ocorra uma lide trabalhista não é necessário que
o direito subjetivo envolvido tenha origem em uma norma trabalhista em
sentido estrito. Basta que o direito subjetivo surja no contexto de um
vínculo contratual trabalhista.
(79) Caberá aos intérpretes e julgadores especificar se os danos decorrentes de
acidentes do trabalho, que envolvam o questionamento direto de culpa ou dolo do
empregador (indenização civil, e não previdenciária) não acabarão por serem analisados pela Justiça do Trabalho em virtude de constituírem “danos morais e patrimoniais
decorrentes da relação de trabalho”, na forma do art. 114, VI, da Constituição.
120
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
O inciso IX tem uma dimensão prospectiva, inserindo-se na técnica
legislativa apropriada para os Textos Constitucionais, no sentido de permitir a adaptação interpretativa a novos fatos sociais. Assim, quando
expressa que a Justiça do Trabalho também será competente para processar e julgar “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho”, o Texto Constitucional contém uma cláusula geral que permite a
adaptação do raciocínio hermenêutico a novos fatos sociais não previstos. As cláusulas gerais são textos normativos que permitem a oxigenação dos dispositivos legais, permitindo a entrada no sistema jurídico de
conteúdo valorativo e de novos fatos advindos das mudanças sociais.
Como se sabe, o fato social anda mais rápido que o Direito, sendo prudente que o texto legal deixe em aberto novas perspectivas para o futuro.
Por essa razão, a palavra “outras” permite que o julgador ou intérprete
analise o caso concreto e verifique, na aplicação direta da lei, se ele se
enquadra como definição de relação de trabalho.
Alguma interpretação mais apressada poderia sugerir, inclusive,
que o inciso IX seria desnecessário, em função da amplitude dos incisos
I (relação de trabalho em sentido lato) e VI (danos morais e patrimoniais
decorrentes da relação de trabalho). Entretanto, a existência do inciso IX
tem duas características benéficas para a interpretação sistemática do
art. 114 da Constituição: a) resolve o problema da competência em razão da matéria estar vinculada à necessidade de existência de norma
expressa, pois essa condicionante não existe no inciso I, apenas existindo no inciso IX; b) serve como cláusula geral para permitir a longevidade do sistema normativo, permitindo que, no futuro, sempre se encontre a possibilidade de valorar o que constitui “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho”. Aliás, foi a circunstância dessa última
expressão constar no final da redação anterior do art. 114 da Constituição, que permitiu o avanço hermenêutico a partir de 1988.
Por último, uma lembrança quanto ao argumento da existência de
normas jurídicas anteriores à Emenda Constitucional n. 45/04, que disponham sobre competência em razão da matéria da Justiça do Trabalho.
Em termos de hermenêutica constitucional, a compatibilidade de normas
de hierarquia inferior com a superveniência de normas de hierarquia superior chama-se recepção. Como as normas de hierarquia superior são o
fundamento de validade das normas de hierarquia inferior, somente se
houver compatibilidade das normas inferiores com as normas superiores é
que aquelas permanecerão válidas. Em outras palavras, deverá ser analisado se a norma inferior preexistente é compatível com a Emenda Cons-
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
121
titucional. Sabe-se que a EC n. 45/04 inverteu o paradigma para a competência em razão da matéria da Justiça do Trabalho, fixando a competência
desse órgão jurisdicional como competência geral, em se tratando de
relações de trabalho (em sentido lato), e não mais residual dependente de
lei expressa. Portanto, toda a lei que se enquadrar nessa premissa será
válida, do contrário deve ser entendido que é incompatível com os novos
termos da Constituição e, portanto, não tem validade.
122
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
O Mundo que Atrai a Competência
da Justiça do Trabalho
Grijalbo Fernandes Coutinho (*)
1. O trabalho no velho mundo capitalista
Consistentemente com o que reza a superstição no tocante à sobrevivência dos felinos, o capitalismo parece ter sete vidas e, exteriorizando verdadeira faceta de camaleão, a cada movimento do sistema
produtivo altera o modo de exploração para manter o domínio absoluto
da selva humana, sempre com as garras afiadas de leão na busca de
suas presas indefesas.
Da fase comercial-artesanal evoluiu para o período da industrialização, convicto de que, detentor da propriedade das máquinas, nada seguraria sua fúria na maximização dos lucros em detrimento da força de trabalho.
Na atualidade, há predominância do regime capitalista financeiro,
sendo o processo produtivo, em todas as áreas de atividade, marcado
pela automação, fruto da revolução tecnológica em curso há pelo menos
trinta anos. Como força naturalmente antagônica, o trabalho foi sacudido
a cada mudança, competindo-lhe encontrar alternativas de impacto para
resistir aos comandos arbitrários e segregacionistas do capital.
As revoluções do século XVIII — a Americana, a Francesa e a
Industrial Inglesa —, ainda que perseguindo objetivos imediatos distintos, tinham a pretensão comum de assentar no poder a burguesia. Essa
ausência de sintonia não podia perdurar por tanto tempo. Numa visão
marxiniana, o poder político, como epifenômeno, apenas é reflexo dos fatores econômicos ou das condições materiais fornecidas pela economia(1). O
detentor do poder econômico exerce o poder político.
Ocorreram três fantásticas revoluções que, do ponto de vista político-econômico, mudaram a feição da humanidade, rompendo com regi(*) Juiz do Trabalho em Brasília-DF. Presidente da Associação Nacional dos Magistrados
da Justiça do Trabalho — ANAMATRA.
(1) MARX, Karl & ENGELS, F. Manifesto Comunista. Fortaleza: Datacopy Editoração, 2003.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
123
mes opressores, autocráticos e ultrapassados, compatibilizando os seus
elementos para alçar ao poder a emergente burguesia, cumprindo essa
última, assim, no dizer de Marx e de Engels, um papel eminentemente
revolucionário, ao eliminar as relações feudais, patriarcais e idílicas(2).
Num eterno movimento de mudanças e de avanços da história, o novo
regime foi colocado em xeque antes do que se esperava, especialmente
na Europa do século XIX, nas revoluções de 1830, de 1848 e na Comuna
de Paris, em 1871(3). É que se, por um lado, o regime dos senhores
feudais e de seus apoiadores políticos deu lugar ao das liberdades individuais, por outro lado, tornou possível uma nova exploração econômica
capaz de exteriorizar com maior nitidez as desigualdades sociais. Assinalaram Marx e Engels que “a sociedade burguesa moderna, que brotou
das ruínas da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classe.
Não fez senão substituir novas classes, novas condições de opressão,
novas formas de luta às que existiram no passado”(4).
Os explorados e exploradores não desapareceram, passaram a
estar revestidos de novas feições. Diante da absoluta indiferença do
Estado frente aos inúmeros problemas decorrentes da liberdade de contratação dos capitalistas, do laissez-faire de Adam Smith e da mão invisível do mercado como marco regulatório absoluto das relações entre o
capital e o trabalho, proliferaram mecanismos que permitiram aos detentores dos meios de produção sugar as últimas gotas de sangue dos
trabalhadores. Repudiando o liberalismo como modelo de gerenciamento das relações sociais, o francês Lacordaire declarou que “entre o forte
e o fraco, entre o rico e o pobre, é a liberdade que escraviza, é a lei que
liberta”.
É sob essa perspectiva, inserindo o trabalho no seu contexto histórico, com ênfase nas revoluções por ele provocadas, que devemos avaliar a sua importância ou não para a sociedade atual.
Desde que o homem passou a viver em sociedade, o trabalho é o
componente mais importante nas relações entre tribos e classes, elemento que distingue a posição social, econômica e política de seus
membros. Nas épocas das primeiras tribos, o controle do trabalho era
determinado pela idade das pessoas, quando os mais velhos, por terem
(2) MARX, Karl & ENGELS, F. Ob. cit.
(3) WEFFORT, Francisco (Org.). Os clássicos da política, vol. 2, 10ª ed., 5ª impressão. São Paulo: Ática, 2002, p. 231.
(4) Ob. cit., p. 15.
124
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
cumprido o ritual anterior, usufruíam da força de trabalho dos mais jovens, sem que desse fato resultasse qualquer exploração econômica,
senão apenas uma rotina opressora determinada pelo fator tempo. Há
também a época do comunismo primitivo, com a divisão da produção
entre todas as pessoas, sem nenhuma exploração econômica. A primeira efetiva exploração do trabalho em larga escala ocorre na sociedade
escravagista, pela qual o homem esteve sujeito à mais degradante condição de vida do ser humano, seja pela coerção física, seja pela coação
econômica.
Devemos anotar que na decantada democracia direta ateniense, de
poucos séculos antes de Cristo, o serviço escravo, fruto do domínio dos
inimigos de guerra e do empobrecimento de pessoas antes consideradas
cidadãs, era encarado com extrema naturalidade e até como indispensável para que os cidadãos pudessem cuidar de tarefas outras, menos desgastantes e mais voltadas para o desenvolvimento do intelecto. O filósofo
Sócrates pôs o dedo em várias feridas da democracia decadente, assumindo postura crítica que o levou à pena de morte; mas não se rebelou
contra a escravidão reinante, apesar de considerar que todas as pessoas
são capazes de entender as verdades filosóficas, bastando para isso que
usem da razão, sendo que o escravo tinha a mesma razão que um cidadão livre(5). Com Sólon, sobrevém a introdução de leis que estabelecem
limites à exploração do trabalho escravo, com a eliminação do direito do
patrono sobre os familiares dos clientes e de suas terras(6).
A sociedade romana, herdeira da cultura helenística, abusou do
trabalho escravo para consolidar o império que dominou o mundo, inclusive no período da República. Logo, a História da Antigüidade está, lamentavelmente, entrelaçada com os serviços forçados. Nos modelos
seguintes de sociedade, o trabalho humano continuou a ser explorado,
mas com a predominância de características distintas da escravidão. O
feudalismo é o regime da submissão dos vassalos aos senhores proprietários de terras, esses apoiados pela nobreza.
Outras formas de trabalho surgiram com as Cruzadas, mediante a
expansão do comércio, fazendo surgir uma nova classe detentora do
poder econômico, em substituição ao domínio, até então, pertencente
(5) ABRÃO, Bernardette Siqueira (Org.). Os Pensadores, História da Filosofia. Mirtes
Ugeda Coscodai (Revisão). São Paulo: Nova Cultural, 1999.
(6) MAIOR, Jorge Luiz Souto. O Direito do Trabalho como Instrumento de Justiça
Social. São Paulo: LTr, 2000, p.38.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
125
aos senhores feudais: a burguesia. Os iluministas perceberam que havia
impossibilidade de uma convivência pacífica entre a ordem política dos
reis e o regime capitalista da liberdade individual, inclusive da contratação da força de trabalho, materializando essa incongruência na famosa
Enciclopédia(7), cujo resultado final foi a deflagração de uma das maiores
revoluções políticas de todos os tempos: a francesa.
2. O liberalismo e as relações de trabalho
A revolução industrial na Inglaterra, no século XVIII, consolida outra
fase do capitalismo, revelando, porém, formas cruéis de exploração do
trabalho, mediante jornadas de até 16 (dezesseis) horas diárias, inclusive de mulheres e de menores, sem qualquer proteção à saúde ou de
cunho social. As reações propiciaram o surgimento das primeiras normas de proteção ao trabalho. Marx, o maior estudioso do capitalismo e
também o mais crítico, vislumbrava na apropriação do excedente não
remunerado da força de trabalho(8), pelos patrões, a que denominou de
mais-valia, toda a base de sustentação desse regime, a ser enfrentado
na luta pelo fim das classes sociais e pela instauração do socialismo,
estágio para a sociedade comunista. Aliás, o estudo preciso dos vários
tipos de sociedade está, mais uma vez, em Marx, ao dividi-la em quatro
períodos fundamentais, quais sejam, o comunismo primitivo, o escravismo, o feudalismo e o capitalismo, na obra “A Ideologia Alemã”, citada
por Enric Monpó Martinez (“Marx, Engels e a Revolução na Rússia”).
Foram as inúmeras lutas de comunistas, socialistas, sindicalistas
e de trabalhadores que fizeram ruir as bases que deram sustentação ao
liberalismo clássico. Em algumas situações, como é o caso da revolução russa de 1917, comandada por Vladimir Lenin e Leon Trotsky, fizeram sucumbir o próprio regime capitalista. O receio da instalação da
sociedade comunista funcionou como principal elemento de pressão por
mudanças na forma do Estado arbitrar os conflitos entre capital e o trabalho, bem como chamou à ordem a sua participação nas atividades
consideradas essenciais. Desprezar a importância dos comunistas no
surgimento do Direito do Trabalho é algo semelhante a negar o papel de
Newton no desenvolvimento da ciência física.
(7) FONTES, Luiz R. Salinas. O Iluminismo e os reis filósofos, 4ª ed. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1996, p. 46.
(8) MARX, Karl. O Capital. Publicações LBI.
126
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
3. O Estado do bem-estar social e o ressurgimento do Estado
Liberal
O Estado do bem-estar social, com forte presença no século XX,
abandona os dogmas liberais, para compreender que a sua intervenção
é fundamental para minimizar as desigualdades, fixar políticas públicas
em favor das classes menos favorecidas e não permitir que a sociedade
seja refém do mercado capitalista de maneira absoluta. John Keynes, o
pensador desse novo ciclo, influenciou profundamente na formação de
estados sociais, em contraposição à crescente destruição das relações
humanas e econômicas provocadas pelo liberalismo. Mesmo assim,
devemos considerar que, não obstante os avanços conquistados, o movimento operário jamais alcançou o êxito do pleno emprego e da distribuição da renda de maneira mais equilibrada, porque a própria lógica do
capitalismo, seja qual for o matiz, desautoriza a construção de modelos
capazes de impor efetiva democracia entre patrões e empregados.
O liberalismo jamais deixou de existir como pensamento econômico-político, mas teve até o início dos anos 70, do século passado, reduzido impacto de penetração nos formadores de opinião, destacando-se as
teses lançadas pelo economista norte-americano Milton Friedman. No
Brasil, o ministro do regime militar, Roberto Campos, gritou até o último
momento de sua vida pelo afastamento do Estado das atividades por ele
consideradas como da alçada exclusiva de particulares e do mercado.
A chegada ao poder da conservadora Margareth Thatcher na Inglaterra e do republicano Ronald Reagan nos EUA, nos anos 80, consagra,
com maior velocidade, o processo de desmonte do Estado do bem-estar
social, com a privatização de empresas estatais e de funções essenciais, diminuição do tamanho do Estado, retirada de garantias trabalhistas, além de tantas outras alterações. Mas nada parece ter sido ocasional. Huw Beynos descreve a estratégia do principal assessor de Margareth Thatcher, Alan Budd, professor de economia da conceituada London Business Scholl, tendo o último declarado que “aumentar o desemprego foi um jeito bastante interessante de reduzir a força da classe
trabalhadora. O que foi engendrada — em termos marxistas — foi a crise
do capitalismo, que recriou o exército industrial de reserva e sempre
permitiu aos capitalistas terem lucro”(9). Segundo Beynos, o depoimento
(9) SANTANA, Marco Aurélio & RAMALHO, José Ricardo (Orgs.) Além da fábrica. O
sindicalismo tem futuro no século XXI? Texto de Huw Beynos. São Paulo: Boitempo,
2003, p. 54.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
127
de Budd foi confirmado por outro assessor, o professor de história moderna da Universidade de Oxford, Norman Stone, que retrata os anos 80
como o período do contra-ataque do capitalismo(10).
Devemos relembrar que as revoluções industrial e francesa, ainda
que com ausência de intencionalidade, criaram as condições próprias
para o estabelecimento das primeiras normas de proteção ao trabalho.
Para os sábios capitalistas, entre “o mal maior do comunismo” e o de
alguma concessão de direito, é evidente que a última alternativa era mais
interessante, porque salvava a essência. O professor e juiz Jorge Luiz
Souto Maior constata que o papel inicial do direito do trabalho era, realmente, impedir a emancipação da classe operária, mas ao longo dos
anos trouxe ao cenário a sua virtude de ser agente de distribuição de
cidadania aos trabalhadores(11).
No Brasil, as primeiras leis trabalhistas surgiram entre o final do
século XIX e início do século XX, para algumas categorias específicas,
por influência do movimento sindical, de forte conotação anarquista e
também comunista, muito pela imigração européia presente na plantação de café e em outras atividades. Houve notória ampliação de direitos
a partir dos anos 30, mas ainda insuficiente para atender às demandas
já resolvidas em outros países. O professor Amauri Mascaro Nascimento descreve a importância do movimento anarquista nas primeiras greves
no Brasil, bem como as suas idéias de uma sociedade “sem governos,
sem leis”(12).
Depois veio a Consolidação das Leis do Trabalho — CLT, em 1943,
que ampliou, nas perspectivas de alcance e de quantidade, os direitos
trabalhistas, tais como as férias anuais remuneradas, a jornada semanal, o salário mínimo, o descanso semanal e a contratação do trabalhador por prazo indeterminado como regra, dentre outras garantias.
Há estudiosos da sociedade brasileira convictos de que o Estado
de bem-estar social nunca chegou em nosso País — mesmo no período
compreendido entre os anos 40 e 70 do século XX, época de maior profusão dos direitos sociais e da industrialização nacional —, seja pelo
alto nível de exclusão de setores da classe trabalhadora, seja pela falta
(10) SANTANA, Marco Aurélio & RAMALHO, José Ricardo. Ob. cit., p. 54.
(11) MAIOR, Jorge Luiz Souto. O Direito do Trabalho como Instrumento de Justiça
Social. São Paulo: LTr, 2000, p. 20.
(12) NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho, São Paulo: Saraiva, 1996, p. 42. 7ª ed.
128
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
de políticas voltadas para corrigir as distorções e desigualdades que
marcam a história das relações entre as classes no Brasil. O fato é que,
de algum modo, no interregno antes mencionado, o liberalismo aqui não
reinou como ideologia da liberdade absoluta de exploração.
4. O neoliberalismo e o novo mundo do trabalho
É inegável que o Estado do bem-estar social sofreu abalo a partir
dos anos 70, com a crise do petróleo de 1973 e do próprio capitalismo,
trazendo transformações na forma de organização da produção capitalista, o enfraquecimento do movimento sindical e o fim do “socialismo”
no Leste Europeu. A revolução tecnológica dos últimos anos reduziu
inúmeras tarefas e retirou muitos postos de trabalho. A liturgia neoliberal, hegemônica desde então, passou a impor a imolação do Direito do
Trabalho perante o altar do mercado globalizado.
Não obstante a mudança de rumo no modo de produção capitalista, de um modelo fordista-taylorista para o digital-toyotista, o trabalho
vivo não desaparecerá, na precisa lição do professor Ricardo Antunes,
pois sempre haverá necessidade do esforço humano, até mesmo para o
funcionamento das máquinas que reduzem as atividades laborais. De
um modelo que produzia em grande quantidade, passamos a outro, dirigido a setores específicos e apenas para o consumo imediato, mediante
alta tecnologia que reduz a utilização da mão-de-obra, com o enfraquecimento sindical pela terceirização, pelo trabalho de equipe e pelos programas de qualidade total instalados em pequenos núcleos para legitimar a grande massa de desempregados(13). Com melancólicos recordes
de concentração de renda, salários indecentes e milhões de excluídos,
o Brasil assistiu recentemente à principal investida contra os direitos dos
trabalhadores, sob um pretexto: o de que o negociado deveria prevalecer
sobre o legislado, abstraindo-se a lição de Laccordaire adrede enunciada.
A autonomia privada coletiva deve ser consagrada como preceito
de emancipação social dos trabalhadores, e não como instrumento de
precarização de seus direitos. O resultado da negociação não pode significar a perda das garantias históricas dos cidadãos brasileiros, resultado de muitas lágrimas e sangue. São conquistas que, por isso, não
podem ser consideradas mero anacronismo.
(13) ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a
centralidade do mundo do trabalho, 8ª ed. Campinas: Unicamp, 2002.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
129
A revolução tecnológica enfrentada nas três últimas décadas foi
capaz de produzir avanços científicos tão fantásticos quanto devastadores para as relações de trabalho, deixando, segundo dados da OIT, um
bilhão e duzentos milhões de pessoas no mundo trabalhando sem vínculo de emprego ou simplesmente desempregadas. Em face do uso da
microeletrônica e de outros recursos, algumas tarefas foram absorvidas
por esse novo processo produtivo, reduzindo-se a utilização da mão-deobra humana e dizimando-se muitos postos de trabalho. Como sempre
agiu, o capital não teve embaraços para incrementar novos meios de
produção, passando da forma taylorista-fordista de organização da produção para o modelo digital-toyotista, de viés essencialmente automatizado, dirigido apenas para fatias específicas de consumidores e limitado
à demanda imediata, com a substituição de grandes fábricas por empresas em rede(14). A automação veio acompanhada do trabalho de equipe e
terceirizado, desintegrando trabalhadores e esfacelando a organização
sindical.
Hoje é cada vez mais comum a repartição do processo produtivo
em vários núcleos pequenos, quebrando o sentido de homogeneidade da
classe trabalhadora. Uma coisa é organizar milhares de trabalhadores
numa mesma base, outra bem diferente é conseguir uni-los, quando já
estão separados de maneira conceitual e física. A terceirização agrava
esse quadro a partir do rompimento do vínculo laboral com a empresamatriz, que consegue arranjar uma outra pessoa jurídica para cuidar das
tensões sociais de sua alçada. Aliás, com esse procedimento, impõe
verdadeira clausura às reivindicações de natureza trabalhista. Além do
notório rebaixamento salarial dos empregados das empresas terceirizadas, a face mais dura do dito fenômeno da atualidade das relações
entre o capital e o trabalho, que pode, sim, ser evitada, está no golpe
que representa à organização coletiva dos trabalhadores, reduzindo todos, e não apenas os terceirizados, a meros reprodutores do sistema,
com voz reivindicatória incapaz de produzir resultados mínimos de satisfação real obreira, enquanto classe antagônica ao capital.
Ora, a estratificação e a fragmentação dos novos modos produtivos
do sistema capitalista, nem de longe, representam compartilhamento
efetivo do desempenho das atividades empresariais por um número maior
(14) GOMES, Álvaro (Org.). Aspectos sociais — Mercado de Trabalho — O trabalho
no século XXI — Considerações para o futuro do trabalho. Texto de Ricardo Antunes
(“As metamorfoses do mundo do trabalho”). São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 2001.
130
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
de empreendedores, pois estes não passam de meros intermediários ou de
verdadeiras correias de transmissão do lucro dos grandes negócios. O
trabalho terceirizado é, portanto, uma das escancaradas correias de
transmissão da mais-valia, carregado de conteúdo ideológico contra o
sentimento de solidariedade entre iguais. Para confirmar o afirmado, basta
verificar a outra face do capital no mundo globalizado, por meio da união
de conglomerados, nacionais e estrangeiros, para eliminar a concorrência e aumentar a margem de lucros. Antes concorrentes, bancos, cervejarias, empresas de telecomunicações, segmentos do ramo da aviação, grupos
petrolíferos, além de tantos outros, unem-se sob a mesma sigla, sem
que do fato resulte uma expansão da base da força de trabalho, exponenciando, na verdade, o segregacionismo, com o enxugamento dos
postos de serviço e transferência de outros para empresas terceirizadas
ou para a locação da mão-de-obra autônoma.
Existem defensores do fim da sociedade dependente do trabalho,
que invocam outra alternativa para enfrentar as adversidades. Robert Kurz,
principal teórico do grupo alemão Krisis, sentencia que “um cadáver domina a sociedade. O cadáver do trabalho. A sociedade dominada pelo trabalho não passa por uma simples crise passageira, mas alcançou o seu
limite absoluto. A venda da mercadoria força de trabalho no século XXI
será tão promissora quanto a venda de diligência no século XX ”(15). De
forma mais moderada, Domenico de Masi recomenda para a sociedade
pós-industrial maior tempo para os trabalhadores destinado “a outra
coisa”, o que denominou de tempo liberado para as atividades criativas(16).
Apesar das reviravoltas e do caráter destrutivo inerente ao capitalismo, da reestruturação promovida na economia para manter intacto o
regime, com diminuição do espaço para os pequenos e médios empreendedores, o trabalho desmente sistematicamente as alternativas neoliberais, os seus agentes, a social-democracia e os que imaginam um
mundo sem a utilização da força de trabalho humana(17).
5. As novas relações sociais e a Justiça do Trabalho
Como demonstrado, o mundo do trabalho tem sofrido profundas
alterações nas últimas décadas. O trabalho em massa, padronizado e
(15) Grupo Krisis. Manifesto contra o trabalho. São Paulo: Conrad Livros, p. 15.
(16) DE MASI, Domenico. O ócio criativo, 7ª ed. Rio de Janeiro: Sextante — GMT
Editores, 2003, p. 15.
(17) ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho — Ensaio sobre a afirmação e a
negação do Trabalho, 6ª reimpressão. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
131
formal, tem convivido com novas formas de ocupação em relação às
quais a legislação social e o aparato do Judiciário não têm se mostrado
devidamente atualizados para atender e solucionar as demandas de fração cada dia mais considerável da população economicamente ativa.
Falamos de um mundo do trabalho sensivelmente transformado pela
implementação de novos padrões produtivos, que impuseram mutações
no tradicional paradigma trabalhista até então conhecido. Segundo o
DIEESE, esse novo ambiente de trabalho é caracterizado pela alta rotatividade, instabilidade, pouco dinamismo na geração de novas vagas, descontinuidade da trajetória profissional e, em especial, precarização das
formas de contratação de mão-de-obra, fazendo recrudescer, assim, a
informalidade. Dados oficiais do IBGE (Pesquisa Mensal de Emprego —
PME, de dezembro de 2003) dão conta de que mais de 40 milhões de
brasileiros trabalham sem qualquer vínculo formal de emprego.
Reportagem do Jornal Folha de São Paulo, do dia 12 de setembro
de 2004 (Caderno “Empregos e Negócios”), sob o título “Pessoa Jurídica”, noticia que tem sido comum a exigência, por parte de empresas, da
constituição de pessoa jurídica pelo trabalhador para que, só assim,
possa ser admitido. É registrado que, nos dias atuais, o mercado de
trabalho tem utilizado com enorme freqüência a seguinte frase: “Temos
total interesse no seu serviço, mas, para trabalhar aqui, você precisa ter
registro de pessoa jurídica”(18).
O resultado disso é a exclusão desses milhões de trabalhadores,
vinculados à denominada “economia informal”, do sistema de proteção
social (trabalhista, previdenciário e de seguridade social), inclusive quanto
ao acesso à Justiça do Trabalho.
Isso porque a Justiça Especializada do Trabalho é formal e historicamente vinculada aos contratos de trabalho celebrados e regidos pela
Consolidação das Leis do Trabalho — CLT, ou seja, aos contratos formais de emprego, nunca lhe tendo sido atribuída ampla competência
para julgar as querelas oriundas de outras modalidades de trabalho, até
o surgimento da Emenda Constitucional n. 45/04.
Por essa razão, a ampliação da competência material da Justiça
do Trabalho é um dos aspectos mais relevantes da Reforma do Poder
Judiciário.
(18) “Pessoa Jurídica” — Caderno Empregos e Negócios. Folha de São Paulo. 12 de
setembro de 2004.
132
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
6. A ampliação da competência da Justiça do Trabalho e a Emenda
Constitucional n. 45/04
Com o término do processo de reforma do Poder Judiciário, é evidente que a população aguarda uma nova dinâmica no funcionamento do
aparelho estatal incumbido de distribuir justiça, desde o fim da morosidade à transparência dos atos praticados por magistrados, no exercício
dos ofícios judicantes e administrativos. O processo revisional parlamentar
não foi capaz de enfrentar alguns dogmas que conduziriam a Justiça a
adquirir legitimidade real. Ainda que conservadora seja a reforma, os
juízes devem adotar prontas medidas, judiciais, políticas e administrativas, para atender aos anseios da imensa maioria do povo brasileiro, notadamente direcionadas aos dois objetivos acima referidos. Se assim é
sob a perspectiva mais global, pelo menos no que se refere à Justiça do
Trabalho, a tônica da reforma foi extremamente avançada.
Quando foi criada a Justiça do Trabalho como órgão do Poder Judiciário, a realidade do mundo do trabalho era bem distinta da atual, asseguradora da regência da CLT para expressivo número de trabalhadores.
Hoje, no entanto, conforme dados do IBGE, cerca de 50% da mão-deobra — ou seja, 40 milhões de brasileiros — trabalha sem nenhum vínculo
formal de emprego.
A insensatez do novo modo de produção capitalista pune duplamente o cidadão brasileiro, antes amparado pela proteção celetista. Por
um lado, deixa-o cada vez mais distante dos direitos sociais conferidos
aos empregados, e, por outro, não permite que procure o Judiciário especializado em causas do trabalho para resolver os litígios enfrentados
com o seu tomador de serviços, mesmo que apenas queira dirimir questões vinculadas a um contrato autônomo e não esteja a reclamar
nenhum direito exclusivo de empregado.
Num cenário menos selvagem, deveriam estar garantidos a todos
os trabalhadores os direitos sociais humanos, previstos no artigo 7º, da
Constituição Federal, bem como o acesso ao ramo do Judiciário que
tem como especialidade a conciliação e o julgamento dos conflitos entre
o capital e o trabalho.
Atacando o núcleo da reforma levada a efeito, a ANAMATRA e as
AMATRAS, durante anos, elegeram como prioridade pontual a ampliação da competência da Justiça do Trabalho, para dar maior racionalidade ao sistema, numa época de profundas transformações do mundo do
trabalho. Ainda que a reforma não tenha atribuído todo o regime de
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
133
competência perseguido pelos juízes do trabalho, são notórios os avanços
conquistados.
É de grande relevância a ampliação da competência da Justiça do
Trabalho, seja qual for o regime contratual a que esteja submetido o trabalhador, para analisar todas as controvérsias oriundas da força de trabalho
humana, pela sua natural vocação social e pela própria espe-cialização
na matéria. A divisão de competências entre Justiças para julgar o valor
do trabalho, além da notória irracionalidade, consagra a fragmentação
obreira verificada na fábrica da nova ordem econômica, reduzindo milhões de pessoas ao patamar dos que não têm acesso ao Judiciário que
julga as causas dos trabalhadores. Logo, “os sem-direitos-trabalhistas”
também podiam ser chamados de “os sem-justiça”.
Ainda que o Parlamento não tenha atribuído à Justiça do Trabalho
toda a competência necessária para o seu melhor aproveitamento, há
alterações significativas, de modo a propiciar aos trabalhadores brasileiros não-empregados e aos respectivos tomadores de serviços a via da
Justiça do Trabalho para a solução dos seus conflitos. Em vez da restrição do original do artigo 114 da Constituição, que disciplinava a relação
“entre trabalhadores e empregadores”, o texto promulgado manda julgar
“as ações oriundas da relação de trabalho”, sem delimitar os atores do
processo.
Havendo relação de trabalho, seja de emprego ou não, os seus
contornos serão apreciados pelo juiz do trabalho. Para os demais casos, evidentemente, aplicará a Constituição e a legislação civil comum,
considerando que as normas da CLT regulamentam o pacto entre o empregado e o empregador. Como conseqüência, a Justiça do Trabalho
passa a ser o segmento do Poder Judiciário responsável pela análise de
todos os conflitos decorrentes da relação de trabalho em sentido amplo.
Os trabalhadores autônomos, de um modo geral, bem como os
respectivos tomadores de serviço, terão as suas controvérsias conciliadas e julgadas pela Justiça do Trabalho. Corretores, representantes comerciais, representantes de laboratórios, mestres-de-obras, médicos,
publicitários, estagiários, contratados pelo poder público por tempo certo ou por tarefa, consultores, contadores, economistas, arquitetos, engenheiros, dentre tantos outros profissionais liberais, ainda que nãoempregados, assim como as pessoas que locaram a respectiva mão-deobra (contratantes), quando do descumprimento do contrato firmado para
a prestação de serviços, podem procurar a Justiça do Trabalho para solu-
134
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
cionar os conflitos que tenham origem em tal ajuste, escrito ou verbal.
Discussões em torno dos valores combinados e pagos, bem como a
execução ou não dos serviços e a sua perfeição, além dos direitos de
tais trabalhadores, estarão presentes nas atividades do magistrado
do trabalho.
7. O papel do intérprete
De modo particular, no âmbito da Justiça do Trabalho, é inegável a
mudança positiva levada a efeito pelo Congresso Nacional. Destaca-se,
nesse cenário, a disposição que autoriza ao juiz do trabalho julgar novas
causas, quais sejam, todas as controvérsias que envolvam o trabalho
humano. A leitura restritiva da nova competência da Justiça do Trabalho,
sem nenhuma dúvida, impedirá uma verdadeira revolução nesse segmento do Poder Judiciário. A postura não deve encontrar respaldo majoritário entre os operadores do Direito. Isso porque, ao contrário do texto
revogado, a disposição nova não mais limita o seu campo de atuação
aos conflitos entre “trabalhadores e empregadores”, explicitando, de
maneira clara, que “os dissídios oriundos da relação de trabalho” são
da alçada do judiciário trabalhista (art. 114, inciso I, da Constituição,
com a redação que lhe deu a emenda).
A boa exegese se revela incompatível com a possibilidade de estabelecer equivalência absoluta entre as relações de emprego e de trabalho, ainda mais quando se pretende que a amplitude da última se
transforme, de forma mitigada, numa das espécies de sua origem. Definitivamente, a relação de emprego ainda não conseguiu abranger a relação de trabalho. Desnecessário esforço hermenêutico profundo, com todas
as vênias, para percebermos a intenção do constituinte derivado em dar
aos magistrados do trabalho papel político mais racional na distribuição
da justiça em atenção aos direitos de todos os trabalhadores. Essa foi a
tônica dos debates envolvendo a reforma do Poder Judiciário. As duas
Casas do Parlamento brasileiro estavam cônscias do novo desenho que
estava sendo dado para a principal competência material da Justiça do
Trabalho. Por isso, a expressão “relação de trabalho” não pode ser enxergada como um eufemismo, uma redação meramente equivalente ao
texto anterior. Pelo contrário, a nova redação carrega toda uma trajetória
de modernização do papel da Justiça do Trabalho, aspecto que não pode
ser agora simplesmente ignorado ou tangenciado por um simples jogo
de palavras.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
135
Essa é a razão de se interpretar as normas jurídicas englobando
um sentido filosófico, livrando-se da mera dogmática para entender a
função política do comando judicial. A ventilada hipótese da declinação
de competência pode nos levar a um retrocesso ainda maior do que as
nossas Cortes produziram em 1992, quando deixamos de julgar os servidores públicos estatutários. É de maior intensidade o prejuízo, quando
observamos as atuais tendências do mundo do trabalho, que esgarça e
precariza as condições sociais, impondo a milhões de trabalhadores
relações de trabalho não subordinadas, esvaziando, cada vez mais, os
ditos conflitos de emprego. Recusar nova competência, diante do quadro
crescente de outras relações que não a de emprego, é apostar no imprevisível ou mesmo na autofagia da instituição, uma vez que ela poderá se
distanciar do seu propósito ontológico, qual seja, albergar as lides que
envolvam os atores sociais do trabalho. O incremento da carga de trabalho dos magistrados deverá ser equacionado de forma racional e científica, valendo-se, cada dia mais, dos modernos instrumentos de trabalho,
mesmo porque já pôde a Justiça do Trabalho demonstrar sua própria
capacidade de superação ao longo de sua história.
O Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Ministro Vantuil
Abdala, ao conceder entrevista ao jornal da ANAMATRA, declarou que
“com a promulgação da reforma, teremos competência para julgar todas
as causas que envolvem relações de trabalho e não apenas de emprego
como ocorre hoje. As intensas mudanças na economia e no mercado de
trabalho resultaram em grandes transformações na relação capital-trabalho, exigindo da Justiça do Trabalho maior sintonia com a nova realidade”.
Não é diferente a opinião do Ministro Antônio José de Barros Levenhagen, tendo ele acentuado no mesmo periódico que “a ampliação da
competência da Justiça do Trabalho no âmbito da reforma do Judiciário
significará a consolidação da emancipação institucional do Judiciário do
Trabalho”(19).
O ex-presidente da ANAMATRA, o jurista Antônio Carlos Faccioli
Chedid, registra que “longe da perfeição e do desejado, a reforma do
Judiciário, apesar disso, no âmbito da Justiça do Trabalho, trouxe profunda e esperançosa modificação, posto que não tenha acolhido os anseios da população, dos magistrados e advogados, no que concerne à
sua nova competência. A inovação de fundo, contudo, pois expurga o
dissídio, adotando a ação, faz do trabalho (seja a laborterapia ou aquele
(19) ANAMATRA, Informativo Especial n. 57, 3 de dezembro de 2004.
136
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
dedicado à finalidade religiosa ou econômica, desenvolvido pelo empregado ou trabalhador, ou mesmo empregador ou profissional liberal, autônomo e assim por diante) o centro nevrálgico de sua competência.
Basta hoje que as partes se unam através de uma relação de trabalho,
assim considerado o dispêndio de energia-trabalho para outrem, mediante uma contraprestação, sem a ignóbil invocação da existência de
requisitos formais para dirimir o local da solução do conflito. A competência, cultura jurídica e dedicação dos magistrados federais do trabalho demonstrará, a curto prazo, o acerto do constituinte, pois doravante
todos, sem exceção (empregado, trabalhador, empregador, profissional
liberal, autônomo, biscateiro, representante comercial e tudo mais que
a dinâmica dos fatos vividos e sofridos tipificar), poderão “usufruir” de
uma jurisdição célere e efetiva. A nova roupagem permitirá a este ramo
do Judiciário, agora, avançar um pouco além do direito tarifado (trabalhista puro) para solucionar também os conflitos de interesses, com ressarcimento ou indenização pela lesão ao direito individual e coletivo.”(20)
O Juiz Reginaldo Melhado, ex-diretor da ANAMATRA, autor da
magnífica obra “Poder e Sujeição”, editada pela LTr, não vacila ao defender a ampliação da competência da Justiça do Trabalho, a partir da
leitura do novo artigo 114, da Constituição Federal: “um dos poucos aspectos realmente positivos na Reforma do Judiciário foi a ampliação da
competência da Justiça do Trabalho. Pondo fim a um paradigma carcomido pelo tempo, esse alargamento competencial permitirá a reconstrução política da Justiça do Trabalho. A regra constitucional em vigor funda a competência trabalhista nos sujeitos da relação de emprego: os
trabalhadores e seus empregadores. Agora, com a reforma, não se levam em conta esses atores, mas a relação jurídica ontologicamente
considerada. Logo, já não importa quem são os atores do litígio: interessa apenas que eles sejam oriundos da relação de trabalho. Só por alguma peripécia de hermenêutica esse grande avanço pode ser negado.
Espero que os próprios juízes do trabalho se dêem conta disso, e reconheçam a extraordinária revolução conceitual da reforma. Ou vamos ver
uma triste história se repetindo, e agora, a um só tempo, como farsa e
tragédia”(21).
Quando da promulgação da reforma do Judiciário, no dia 8 de
dezembro de 2004, os constituintes fizeram questão de pontuar como
(20) ANAMATRA, Informativo Especial n. 57, 3 de dezembro de 2004.
(21) Idem.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
137
uma das medidas mais significativas, sem nenhuma dúvida, a que atribuiu à Justiça do Trabalho competência para apreciar todas as causas
oriundas do trabalho humano. Emitiram pronunciamento nesse sentido,
dentre outros, o Presidente do Senado e do Congresso Nacional, Senador José Sarney, o Presidente da Câmara, Deputado João Paulo Cunha,
e o Relator da PEC no Senado, Senador José Jorge. Antes, por meio de
declarações encaminhadas ao jornal da ANAMATRA, também se posicionaram os parlamentares Ana Júlia Carepa e Maurício Rands, além
dos advogados Nilton Correia e Roberto Caldas(22). Os Procuradores do
Trabalho, representados pelo Presidente da ANPT, Sebastião Vieira Caixeta, e pela Procuradora-Geral do Trabalho, Sandra Lia Simón, enalteceram a ação levada a efeito pelo Parlamento.
Com o novo texto do artigo 114, da Carta Política, não mais subsistem as premissas encontradas pelo Supremo para limitar a atuação da
Justiça do Trabalho ao âmbito da legislação trabalhista e ao pacto regulamentado pela Consolidação das Leis do Trabalho — CLT. No julgamento da ADIn n. 492-1 (sessão de 12 de novembro de 1992), o STF, por
maioria de votos, decidiu que a competência em questão, para o enfrentamento dos litígios individuais, estava restrita aos casos envolvendo o
direito do empregado. Assim procedeu, em síntese, por considerar que
os únicos atores da relação estavam definidos pelo caput (“trabalhadores e empregadores”), e pela existência de representação classista paritária, de empregados e de empregadores, em todos os órgãos da Justiça
do Trabalho(23). As Emendas Constitucionais 24/99 e 45/04 eliminaram
as duas objeções, de modo que o tema, como posto em discussão,
deve encontrar amplo respaldo no Tribunal Superior do Trabalho e no
Supremo Tribunal Federal.
8. O sentido político da ampliação da competência
Estamos, como visto anteriormente, diante de profundas alterações no mundo do trabalho, que a cada dia, lamentavelmente, reduz a
participação da força de trabalho nas relações de emprego. Mas a Justiça do Trabalho, que deveria ser o ramo do Judiciário próprio para dirimir
todas as nuances do valor do trabalho prestado por homens e mulheres,
(22) ANAMATRA, Informativo Especial n. 57, 3 de dezembro de 2004.
(23) ADIn n. 492-1 — STF — Distrito Federal — Requerente: Pocurador-Geral da
República. Requerido: Congresso Nacional. Julgada no dia 12 de novembro de 1992.
138
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
subordinado ou não, foi utilizada durante anos de maneira tímida pela
sociedade brasileira. Não foi por outra razão que, observando o interesse
público por uma maior racionalidade na prestação jurisdicional, a ANAMATRA lutou com todas as suas forças para ampliar a competência da
Justiça do Trabalho, certa, ainda, de que o modelo ultrapassado colocaria em xeque a existência do referido segmento como órgão autônomo
do Poder Judiciário, lançando os seus deletérios efeitos, logo em seguida, para a diminuição da legislação social protetora.
Cabe-me, na condição de Presidente da Associação Nacional dos
Magistrados da Justiça do Trabalho, trazer à tona manifestações de
ex-Presidentes da entidade, que revelam especial preocupação com eventual declinação de competência dos juízes do trabalho, diante dos novos
tempos da Justiça Laboral:
“Outro desafio é continuar a conscientização da magistratura para o
alargamento de sua competência. Eu já ouvi vozes dizendo que não
houve nenhuma alteração do Texto Constitucional, temos que ter
cuidado porque são vozes nefastas à instituição e à própria sociedade. Essa é a competência, essa é a novidade, esse é o dever que
agora tem a magistratura. A responsabilidade daqui pra frente é extraordinária, o futuro está nas mãos dos juízes. Se voltarmos para aquela visão antiga que os juízes do trabalho tinham de que para
nada eram competentes, a Justiça do Trabalho pode desaguar em
nada” (Antônio Carlos Facioli Chedid — Gestão 1987/1989).(24)
“É necessário o empenho das associações no sentido de afirmar
na prática esse ganho político. Parece-me que a sobrevida da Justiça do Trabalho passa por aí. Essa ampliação de competência é
extremamente importante para que o Judiciário Trabalhista se firme como ramo indispensável do Judiciário e que nós continuemos
ampliando essa instituição cidadã” (Ivanildo da Cunha Andrade —
Gestão 1993/1995).(25)
“A aprovação da Emenda Constitucional n. 45/04, que introduz modificações na estrutura do Poder Judiciário Brasileiro, representa
para a Justiça do Trabalho exemplar aperfeiçoamento, uma vez
que autoriza a ampliação de sua competência jurisdicional, reservando a esse segmento especializado o conhecimento das demandas que envolvam todas as modalidades do trabalho humano.
(24) ANAMATRA, Informativo n. 59, de 23 de dezembro de 2004.
(25) Idem.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
139
As transformações vivenciadas no último século no campo das
relações de trabalho não poderiam admitir a permanência dos limites
de competência da Justiça do Trabalho aos litígios decorrentes da
relação de emprego. O juiz do trabalho é vocacionado, pela experiência e pelo conhecimento jurídico, para o julgamento dessas demandas. Por isso, ganha o Poder Judiciário e ganha a sociedade”.
(Beatriz de Lima Pereira — Gestão 1997/1999).(26)
“Essa trajetória demonstra que a questão da competência está diretamente ligada à sobrevivência da Justiça do Trabalho. Uma justiça
especializada que reduz o seu campo de atuação está condenada a
ser uma justiça mínima, menor (a partir daí, não custa muito ser
retomada a proposta de extinção). O momento é crucial para a magistratura trabalhista. Podemos formar jurisprudência declinando de
competência. Seremos, então, especialistas em litígios patrão-empregado — dividindo, obviamente, a nossa atuação com estas comissões de conciliação prévia que estão por aí. Ou, ao revés, podemos ser mais do que uma justiça especializada; podemos ser uma
justiça especial. Aquela que trata de todos os litígios envolvendo
trabalho — matéria-prima e, ao mesmo tempo, o calcanhar de Aquiles do sistema capitalista. O que queremos? A palavra está com o
juiz do trabalho” (Gustavo Tadeu Alkmim — Gestão 1999/2001).(27)
“O que se espera, agora, é que, vencida a guerra, não nos permitamos derrotar em nossas próprias hostes. É claro que o alcance
das novas regras constitucionais dependerá dos contornos que
a sua interpretação, especialmente nas cortes trabalhistas, vier a
ter. Estou certo que os juízes do trabalho lutarão para preservar o
que, com tanto esforço, alcançaram”.(28) “O juiz não deve abrir mão
dessa competência ampliada, interpretando o texto de forma restritiva, ou prestando uma jurisdição defeituosa que termine por desautorizar o seu papel como definidor desses litígios que vão surgir
das novas matérias que vieram para a nossa competência. Acho
que o momento é muito grave e os juízes tem que ter consciência
desse papel na definição e na consolidação dessas conquistas.
Espero que os juízes do trabalho não abdiquem desse papel ” (Hugo
Cavalcanti Melo Filho — Gestão 2001/2003).(29)
(26)
(27)
(28)
(29)
ANAMATRA, Informativo Especial n. 57, 3 de dezembro de 2004.
Idem.
Idem.
ANAMATRA, Informativo n. 59, de 23 de dezembro de 2004.
140
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Não seremos autofágicos, com certeza, reafirmando a cada decisão a ampliação da competência da Justiça do Trabalho, sem perder o
sentido da principiologia orientadora do Direito do Trabalho e o caráter
protetor da legislação social frente às desigualdades que permeiam a
relação entre o capital e o trabalho. Essa visão social da magistratura
trabalhista, agora autorizada por norma constitucional, irá além do pacto
entre empregado e empregador.
Os juízes do trabalho estão aptos para julgar as demandas que
tratam dos conflitos de todas as relações de trabalho, assim como os
litígios entre sindicatos, os mandados de segurança, o habeas corpus
e o habeas data, as ações de indenização por dano moral ou patrimonial e as ações que envolvam o exercício do direito de greve. Além da
especialidade na matéria, dos contornos que serão atribuídos aos contratos de trabalho de natureza civil, numa época em que o recente
Código Civil rompeu com a filosofia liberal clássica individualista para
incorporar noções do direito social do trabalho como valores indisponíveis, nada melhor do que a atuação do magistrado social em tal esfera,
que deve estar acompanhada de princípios informadores da celeridade,
da prestação jurisdicional justa e da efetividade de suas decisões. Pelo
menos um passo à frente foi dado na Reforma do Poder Judiciário recentemente concluída.
9. Ainda a racionalidade da redistribuição da competência
Estivemos tratando da racionalidade sociológica-política de se concentrar em um único ramo do Judiciário, especializado, a solução de
todo e qualquer conflito relacionado ao trabalho.
Deve ser realçado, ademais, que essa nova redistribuição de competência também atende à racionalidade técnica e econômica do sistema.
Parece elementar que a concentração, na Justiça do Trabalho, da
solução de qualquer conflito atinente ao trabalho pessoal prestado por
pessoa física, com abstração de qualquer outro elemento tipificador de
especial modalidade de contrato de trabalho — v.g., eventualidade, onerosidade, alteridade e subordinação, ou não —, implicará em se conferir
enorme eficiência ao sistema. Se não por outras razões, pela eliminação ou, ao menos, substancial redução de conflitos de competência.
Nada mais comum, no regime anterior, que o Juiz do Trabalho, ao
acolher a tese de inexistência de vínculo empregatício deduzida pelo
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
141
tomador de serviços, se visse tolhido de, concomitantemente, pôr termo
ao conflito, sendo compelido a remeter as partes à solução que lhes
propiciasse o Juízo Comum, Estadual ou Federal. Iniciava-se para as
partes, então, mais um novo périplo, no mais das vezes interminável, a
considerar o grau de assoberbamento dos outros ramos do Judiciário,
desestimulando, com freqüência, a própria continuidade da busca da
prestação jurisdicional pelo interessado.
Agora, viabiliza-se a solução de uma única feita, bastando a dedução de pedidos alternativos ou sucessivos, ou, na pior das hipóteses, se
necessária uma nova ação, a perspectiva de uma tramitação mais célere,
a partir da distribuição por dependência para o julgamento pelo mesmo
juízo que já terá tratado da matéria, inclusive com trânsito em julgado,
quanto a aspectos relevantes da relação de trabalho trazida à apreciação.
O regime antecedente, como se sabe, afastava a possibilidade da
aplicação de diversos institutos relacionados à intervenção de terceiros,
na medida em que se configuravam conflitos paralelos contrapondo atores que não eram (simultaneamente) empregado e empregador. Nesses
casos, a solução dos conflitos paralelos tinha que ser remetida também
ao Juízo Comum. Agora, nada mais obsta a que no mesmo feito todas
essas controvérsias sejam, desde logo, dirimidas, pois a competência
não mais se define em face dos atores envolvidos, mas apenas da relação de trabalho subjacente, seja ela subordinada ou não, onerosa ou
não, eventual ou não.
Essas considerações evidenciam que o ganho de eficiência do sistema é notório, ainda que em curto prazo não se possa avaliar qual sua
expressão em termos de descongestionamento dos demais ramos do
Judiciário.
Estamos convictos, contudo, que a redistribuição de competência
tanto mais se impunha quando se analisava o atual quadro de demandas
e de capacidade de solução dos diversos ramos do Judiciário.
Inegavelmente, a Justiça do Trabalho encontra-se em situação de
equilíbrio, que lhe permite absorver novas demandas, desafogando as
co-irmãs, que, sob uma perspectiva global (desconsideradas especificidades de algumas Justiças Estaduais), encontram-se em situação verdadeiramente caótica.
Estudo levado a efeito para a ANAMATRA em 2002 pelo seu atual
Diretor de Direitos e Prerrogativas, Rodnei Doreto Rodrigues, a partir do Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário, encontrado na página do
142
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
STF na internet, considerando o “movimento forense nacional” do período 1990/2001, chegou às seguintes conclusões:
a) Desde 1999, as Varas do Trabalho vinham julgando número superior às ações anualmente ajuizadas, o mesmo ocorrendo, desde 1996,
salvo pequeno retrocesso em 2000, com os Tribunais Regionais;
b) A primeira instância da Justiça dos Estados vinha julgando números inferiores a 70% das ações ajuizadas, embora tenha havido
um salto para 86,3% em 2001; também os Tribunais de Alçada e
de Justiça longe estavam de dar vazão à demanda;
c) A primeira instância da Justiça Federal não vinha conseguindo
julgar sequer 60% das ações anualmente ajuizadas; ao passo que
a segunda instância também estava longe de atender à demanda,
tendo obtido melhores resultados, da ordem de 75%, nos anos de
2000 e 2001;
d) O desempenho da Justiça do Trabalho de primeira instância,
consistentemente observado no período de 1999/2001, evidenciava
que estava prestes a zerar o saldo de ações recebidas e não julgadas no período fechado de 1990/2001;
e) A primeira instância da Justiça Comum dos Estados acumulou
um saldo de 20.398.958 ações recebidas e não julgadas no período 1990/2001. Considerando-se o desempenho de 2001 — julgamento de 7.908.303 ações —, tardaria cerca de 2,6 anos (quase 2
anos e 7 meses) para julgar todo o saldo pendente do período,
ainda que não mais recebesse uma ação sequer;
f) A Justiça Federal de primeira instância acumulou um saldo de
3.882.044 ações recebidas e não julgadas no período de 1990/2001.
Considerando-se o desempenho de 2001 — julgamento de 584.818
ações — tardaria cerca de 6,64 anos (quase 6 anos e 8 meses) para
julgar todo o saldo pendente, ainda que não recebesse qualquer ação.
Por outra, se dobrasse o seu desempenho (dobrando o quadro de
juízes, por exemplo, e assim julgando 1.169.636 ações anuais),
mantido o mesmo número de ações novas recebidas em 2001
(1.102.095) nos anos seguintes, passaria a atender à demanda, com
um saldo positivo de 106.541 julgamentos anuais. Mesmo assim,
levaria cerca de 36,5 anos para zerar o déficit acumulado no período
1990/2001. Mantidas as mesmas condições, se fossem triplicados
os quadros, ainda assim seriam demandados cerca de 5 anos e 2
meses para se anular o saldo acumulado no mesmo período.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
143
Essa realidade não se modificou substancialmente nos últimos anos.
O levantamento mais acurado recentemente concluído pelo Supremo
Tribunal Federal, sob os auspícios do Presidente Nelson Jobim, revela a
situação seriíssima em que se encontra a Justiça Federal.
A ANAMATRA aguarda com ansiedade os resultados do levantamento relativo ao desempenho da Justiça do Trabalho, que, seguramente, haverão de evidenciar a situação de equilíbrio ora relatada.
Estatísticas mais recentes, divulgadas na página do TST na internet, indicam os seguintes resultados relativamente às Varas do Trabalho:
Anos
Autuados
Julgados/Conciliados
Resíduo
1999
1.877.022
1.919.041
940.881
2000
1.722.541
1.897.050
773.860
2001
1.742.523
1.799.849
721.184
2002
1.614.255
1.601.269
738.377
2003
1.706.778
1.640.958
820.877
Nota-se que o resíduo acumulado em 2003 corresponde à metade
da produção no mesmo ano, de sorte que, a se considerar um prazo
médio de julgamento de 6 meses na primeira instância, seria perfeitamente natural tal saldo.
Devemos ressaltar que, na verdade, os prazos médios de julgamento em grande número das Varas do País não supera dois meses. A
rigor, existem alguns desequilíbrios nos grandes centros, notadamente
São Paulo e Rio, que não têm sido aquinhoados com estrutura minimamente adequada nos últimos anos, tanto em termos materiais como de
pessoal. Isso, na prática, acaba dando espaço para as reiteradas críticas produzidas pela mídia, no sentido de uma morosidade que na imensa maioria dos foros trabalhistas do País não ocorre. Não é por outra
razão que a ANAMATRA, recentemente, instituiu uma comissão especial para identificar e pugnar pela adoção de medidas destinadas à eliminação desses desequilíbrios estruturais, que acabam por dar combustível aos críticos da Justiça do Trabalho.
Percebe-se que nos anos de 2002 e 2003 houve um reduzido déficit na solução das ações ajuizadas, perfeitamente explicável, seja pelo
enorme aumento de demanda provocada pela absorção da competência
144
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
para a execução das contribuições previdenciárias decorrentes das decisões proferidas pela Justiça do Trabalho, seja pela redução de quadros
em decorrência de aposentadorias precoces induzidas pelas recentes
reformas previdenciárias.
Entretanto, esse pequeno “retrocesso” (déficit de apenas 65.820
ações não solucionadas em 2003) será facilmente superado pela implantação das novas 269 Varas do Trabalho, que será ultimada no corrente ano, com a criação de 538 novos cargos de juízes do trabalho. Se
considerarmos que em 2003 existiam 1.109 Varas com 2.294 juízes,
teremos uma ampliação da capacidade de produção próxima de 25%,
equivalente a cerca de 400.000 novas ações anuais. É o quanto basta
para a eliminação do déficit e para a absorção das novas demandas
derivadas da ampliação de competência pela recente Reforma do Judiciário, sem qualquer ruptura do equilíbrio já atingido.
Os números ora apresentados revelam que a redistribuição de
competência atende a um imperativo de racionalidade do sistema, desafogando a Justiça Comum Estadual e Federal, cuja capacidade de atendimento de suas demandas se mostra insustentável.
Mais que isso, revela o enorme equívoco em que incorreu o Senado
Federal ao abrir a possibilidade de subtração da competência destinada
à Justiça do Trabalho para dirimir os conflitos relativos aos estatutários,
ao aprovar emenda que ensejou o retorno dessa matéria a nova apreciação pela Câmara dos Deputados.
10. Síntese
O capital jamais esmorece na eterna busca da maximização dos ganhos, pela apropriação do excedente não remunerado da força de trabalho.
A evolução tecnológica propicia aos detentores dos meios de produção modificações nos sistemas produtivos, que sempre têm em mira
a ampliação de seus lucros, pela via da redução da participação do trabalho nos resultados da produção.
Essa redução de participação, invariavelmente, se dá pela diminuição da remuneração do trabalhador ou do aumento da produtividade (ensejador da redução dos postos de trabalho sem prejuízo da produção).
A reação dos trabalhadores tarda, mas sempre sobrevem a partir
do momento em que se organizam adequadamente.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
145
Por isso, o retardamento dessa reação também se insere nas eternas estratégias do capital, que adota, patrocina e estimula mecanismos
inibidores, coibidores e/ou impeditivos da organização dos trabalhadores.
Em épocas anteriores, a reação dos trabalhadores se processou
por meios violentos, revolucionários. Mais recentemente foram encontrados mecanismos menos traumáticos, caracterizados pelo intervencionismo estatal na mitigação dos conflitos entre o capital e o trabalho,
conferindo certo equilíbrio a essa relação que pendularmente oscila em
favor do primeiro.
Quando se imaginava que havia sido encontrada uma solução para
esse eterno embate, por meio do welfare state e da adoção da relação
de emprego como paradigma do vínculo entre os atores individuais do
conflito, mais uma vez a onda liberal renasce, agora como tsunami, a
partir do terremoto gerado pela evolução da informática.
O avanço das comunicações, da robótica, do processamento das
informações, tudo isso e muito mais, vêm determinar um enorme ganho
de produtividade das empresas, bem assim a internacionalização de suas
atividades, tornando os Estados, ao menos momentaneamente, incapazes de desempenhar o papel de equilíbrio entre o capital e o trabalho,
pelas restrições à sua soberania sobre as atividades de empresas alienígenas, determinadas pelo clima competitivo que se estabelece em âmbito global.
Esse ganho de produtividade acaba por determinar uma enorme
redução dos postos de trabalho, ampliando-se o desemprego, com os
decorrentes efeitos deletérios sobre a remuneração dos trabalhadores,
ensejados pelo aumento da oferta de trabalho propiciada pelo exército
de desempregados.
A terceirização passa a ser outra das estratégias de fragmentação
da organização dos trabalhadores e de redução de seus ganhos.
A relação de emprego, cada vez mais, deixa de ser o paradigma do
liame a vincular os atores individuais do eterno embate. Emergem ou
aperfeiçoam-se outras formas de exploração do trabalho humano.
O direito do trabalho, construído para disciplinar a relação paradigmática de emprego, já não mais responde às demandas emergentes
dos novos conflitos que se originam a partir das novas formas de relação
de trabalho. Mesmo para as tradicionais relações laborais, ainda que
autônomas, o Judiciário Comum, assoberbado com tantas outras demandas, não consegue oferecer resposta eficiente e adequada.
146
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Num quadro dessa natureza, nada mais conveniente e racional do
que cometer a um especial ramo do Judiciário a exclusividade da competência para a solução de todos os conflitos emergentes no mundo do
trabalho, tendo-se apenas em conta, como elementos invariavelmente
definidores da matéria, a prestação pessoal de serviços por pessoa física, independentemente de outros tipificadores de particular modalidade
de relação de trabalho (v.g., subordinação ou não, eventualidade ou não,
onerosidade ou não, alteridade ou não).
Ninguém como o juiz do trabalho se encontra tão apto a tratar desses conflitos. Em seu dia-a-dia, invariavelmente, sempre lidou com esses
elementos diferenciadores das peculiares relações de trabalho, como
matéria prejudicial de mérito nas situações em que o tomador de serviços
impugna a configuração da pretendida relação de emprego. De outro lado,
não terá a menor dificuldade em lidar com situações em que o caráter
tuitivo deva ser considerado não em favor do prestador, mas sim do tomador de serviços, como sói ocorrer em relações de consumo que também
configurem relações de trabalho. A abrangência de todos os conflitos relacionados ao mundo do trabalho se revela conveniente, até mesmo para
especializar o juiz na identificação e solução de situações outras, em que
não haja qualquer desequilíbrio entre as partes da relação de trabalho, de
sorte a aplicar em cada caso o direito material mais consentâneo, seja ele
o direito do trabalho, seja o do consumidor, seja, enfim, o direito comum,
sempre à luz dos princípios e normas constitucionais prevalentes.
Essas considerações consubstanciam as razões sociológico-políticas justificadoras da redistribuição de competência material, viabilizada pela recente Reforma do Judiciário.
Em boa hora o Parlamento teve a exata noção da relevância de se
cometer à Justiça do Trabalho a competência material para dirimir todos
os conflitos “oriundos da relação de trabalho”, qualquer que seja a modalidade, independentemente de quem sejam seus atores.
Agora apenas resta à sociedade, sobretudo aos próprios juízes do
trabalho, pugnar para que nenhum “acidente de hermenêutica” determine
qualquer retrocesso nessa conquista, que é dela, pelo qual se subtraiam, ainda que parcialmente, matérias que o processo legislativo claramente evidenciou terem sido destinadas à competência da Justiça do
Trabalho pela vontade do constituinte derivado.
A racionalidade da redistribuição de competência de que se trata
nesse escrito não se resume à vertente sociológico-política. Ela, também, se revela sob a perspectiva técnica e econômica.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
147
A atribuição de exclusiva competência à Justiça do Trabalho para
dirimir todos os conflitos oriundos da relação de trabalho, seguramente
provocará a redução de conflitos de competência entre os diversos ramos, freqüentemente suscitados naquelas situações chamadas de zonas gris, ou seja, em face de situações limítrofes que dificultavam a
identificação do peculiar liame de trabalho que relacionava as partes
contratantes.
No mesmo sentido, será desnecessária a fragmentação do processo para soluções parciais por mais de um ramo do Judiciário, nos
casos em que estejam envolvidos interesses de terceiros, sendo certo
que, no velho regime, não se podia admitir a intervenção de terceiros no
processo do trabalho, pois isso importava em contraposição de partes
que não eram, uma e outra, empregado e empregador. A partir do momento em que a competência se define em função, não mais dos atores
envolvidos, mas da relação de trabalho subjacente, passa a inexistir óbice
à aplicação dos tradicionais institutos do processo comum.
Somente esses exemplos já são reveladores de expressivos ganhos de eficiência do sistema implementados pela nova atribuição competencial.
Não bastasse isso, as estatísticas globais revelam que a Justiça
do Trabalho encontra-se muito mais equilibrada que os demais ramos do
Judiciário, seja no âmbito estadual, seja federal, quando consideradas
as demandas a que estão sujeitas e a capacidade de solução das ações.
Com efeito, a situação da Justiça Federal e da Estadual, ao menos em
termos de números globais, é extremamente grave, em muitos casos
caótica.
Estando mais equilibrada, a ampliação de sua capacidade em cerca de 25%, como decorrência da instalação de novas Varas, a ser ultimada neste ano, conferir-lhe-á potencial para absorver novas demandas
que a ampliação de competência acarretará. Com isso, de outra parte,
promover-se-á um alívio nos demais ramos, com evidente ganho geral do
sistema em eficiência e produtividade.
Essas últimas considerações evidenciam, portanto, que a redistribuição de competência, a par da racionalidade sociológico-política, também confere racionalidade técnico-econômica ao sistema judiciário nacional, confluindo, assim, no sentido dos anseios nacionais de modernização do Poder Judiciário, na medida em que será determinante de maior
celeridade, eficiência e efetividade da prestação jurisdicional.
148
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
A Reforma do Judiciário e os Novos Marcos da
Competência Material da Justiça do
Trabalho no Brasil
João Oreste Dalazen (*)
1. Introdução
A Constituição Federal de 1988, como se recorda, revelou-se muito
avara e precária ao regular em um único preceito (art. 114) a competência material da Justiça do Trabalho no campo do dissídio individual,
tema sobremodo complexo e intrincado para ser tratado com tamanha
parcimônia.
A recente publicação da Emenda Constitucional n. 45, de
31.12.2004, que implantou a primeira etapa da Reforma do Poder Judiciário, no particular, constitui um formidável avanço, não obstante
se ressinta ainda de imperfeições. Além de suprir algumas graves
lacunas atinentes à competência para conflitos trabalhistas típicos,
contemplou a Justiça do Trabalho com um vigoroso e alentador fortalecimento institucional, mormente ao ampliar-lhe sobremodo a competência material.
De fato, a EC em comento inovou significativamente na disciplina
constitucional da competência material da Justiça do Trabalho, seja mediante um inédito detalhamento, decerto visando a evitar ao máximo os
indesejáveis conflitos e exceções de competência, seja atribuindo-lhe competência para julgar outras lides de natureza diversa, absolutamente estranhas à sua clássica competência para o conflito obreiro-patronal.
Percebe-se ainda do novo teor do art. 114 da Constituição Federal
que a Justiça do Trabalho revelou-se merecedora de confiança do Congresso Nacional, pois lhe atribuiu competência para julgar lides de natureza diversa que tenham o trabalho como fundamento.
(*) Ministro do Tribunal Superior do Trabalho. Professor Assistente da Universidade de
Brasília (UNB).
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
149
Em essência, a nova redação emprestada pela EC n. 45/2004
ao art. 114 da Constituição Federal convolou a Justiça do Trabalho no
juízo natural para o qual devem convergir todos os conflitos decorrentes do trabalho pessoal prestado a outrem, subordinado, ou não, assim
como diversas lides conexas decorrentes da execução de um contrato
de emprego.
2. Lides oriundas da relação de trabalho
2.1. Exegese histórica do art. 114, i, da CF/88
Seguramente a mais notável inovação repousa na competência material da Justiça do Trabalho para lides oriundas da relação de trabalho.
Note-se que o Texto Constitucional anteriormente aludia a “dissídios
individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores”, bem como
conferia competência, “na forma da lei”, para “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho”. Por isso, sob o signo de tal mandamento constitucional, fixou-se o entendimento de que a própria Constituição Federal atribuiu à Justiça do Trabalho dirimir os litígios entre empregados e empregadores (conflitos trabalhistas típicos), mas reservou-se à
lei a possibilidade de estender tal competência a litígios emergentes
entre não-empregado e não-empregador vinculados por uma relação de
trabalho em sentido lato. Logo, duas conclusões então se extraíram: a)
para os conflitos individuais emanados de relação de emprego, a fonte
da competência material da Justiça do Trabalho era a própria Constituição Federal; b) diversamente, para os conflitos individuais (atípicos)
emanados da relação de trabalho, a fonte da competência material da
Justiça do Trabalho era a lei ordinária.
Sobrevindo a EC n. 45/2004, não se vincula mais a competência
material da Justiça do Trabalho estritamente à lide emanada da relação
de emprego e entre os respectivos sujeitos. Vinca-se dita competência
à lide advinda da relação de trabalho.
A questão é tormentosa e atormentadora, pois, consiste em saber
se a locução “da relação de trabalho” no novo Texto Constitucional
pode significar “da relação de emprego”.
A absoluta pertinência da indagação ainda mais se acentua quando se atende para a circunstância de que o texto ora aprovado incorre
em grave contradição.
150
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Com efeito. Ao mesmo tempo em que o inciso I do art. 114 declara
competir à Justiça do Trabalho julgar os dissídios em geral emergentes
de “relação de trabalho”, o inciso IX estatui que a Justiça do Trabalho
pode julgar “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na
forma da lei”.
Poder-se-ia objetar que se a competência da Justiça do Trabalho
para “relação de trabalho” repousará no próprio Texto Constitucional
(inciso I), não haveria porquê se contemplar em outro inciso (IX) a possibilidade de a lei ordinária estender essa competência a outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho. Poder-se-ia redargüir que de
duas, uma: ou o inciso I alude impropriamente à relação de trabalho,
pretendendo referir-se tão-somente à relação de emprego, única circunstância em que se compreenderia e justificar-se-ia a norma do inciso
IX ao contemplar a possibilidade de a lei estender a competência para
outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, tal como sucedia em face da redação originária do art. 114; ou o inciso I cometeu à
Justiça do Trabalho competência para o litígio advindo mesmo de qualquer “relação de trabalho” em sentido amplo, hipótese em que o inciso
IX despontaria ocioso, a toda evidência.
Inequivocamente, o art. 114 inc. I padece de uma redação defeituosa e tecnicamente imprópria, que bem se explica no processo legislativo, que redundou na EC n. 45/2004. Na Comissão Especial da
PEC n. 96/1992 da Câmara dos Deputados, votou-se e aprovou-se parecer da Relatora, Dep. Zulaiê Cobra, em que, coerentemente, preservava-se o sistema originário do art. 114 da CF/88: na proposta do que
seria o art. 115 inc. I reportava-se explicitamente a dissídio de relação
de emprego e em outro inciso (VIII) repisava-se a diretriz de que a lei
poderia alargar a competência da Justiça do Trabalho para outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho.
Sucede, todavia, que em Plenário, a Câmara dos Deputados aprovou destaque para substituir a locução “relação de emprego” por “relação
de trabalho”(1). Olvidou-se, no entanto, de suprimir (porque inútil e incompatível com o destaque apresentado e aprovado) o inciso (VIII da
PEC, atual IX) pelo qual a lei poderia estender a competência da Justiça
do Trabalho para outras controvérsias derivantes da relação de trabalho. E o Senado Federal manteve a locução “relação de trabalho”.
(1) Destaque de Votação em Separado n. 116, do Dep. Nelo Rodolfo (PMDB-SP).
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
151
Aprofundando-se mais no processo legislativo, constata-se que no
Senado Federal apresentou-se Emenda de Plenário(2), em que se propugnava o restabelecimento do texto aprovado na Comissão Especial da
Câmara dos Deputados com a locução relação de emprego. A Emenda, contudo, sequer foi votada, o que dá bem a medida da absoluta falta
de receptividade à proposição.
Outro aspecto sumamente importante do processo legislativo está
em que o Senado Federal manteve a locução “relação de trabalho”, mas
aprovou emenda para excluir da competência material da Justiça do Trabalho “os servidores ocupantes de cargos criados por lei, de provimento
efetivo ou em comissão, incluídas as autarquias e fundações públicas”.
Ora, essa exceção à regra da competência da Justiça do Trabalho para as
lides derivantes de “relação de trabalho” é indubitavelmente reveladora de
que não quis o Senado Federal cifrar a referida competência às lides emergentes de relação de emprego, porquanto, se assim fosse, naturalmente não se faria necessária a exclusão dos servidores públicos estatutários. Com efeito, se a competência da Justiça do Trabalho persistisse restrita às lides provenientes de relação de emprego, não haveria porquê
excepcionar os estatutários de tal competência, porque obviamente não
mantêm relação de emprego com o Estado.
Sintomático desse manifesto intuito do legislador é também o fato de
que, diferentemente da redação anterior do art. 114, a atual não repisa a
referência a dissídio entre trabalhadores e empregadores. O silêncio eloqüente acerca dos sujeitos em que se pode configurar um dissídio advindo
da relação de trabalho também sinaliza, iniludivelmente, que se objetivou
mesmo a expansão dos domínios da Justiça do Trabalho, de maneira a
inscrever em sua esfera muitos outros litígios derivantes de relação de
trabalho, em sentido lato, em que não haja vínculo empregatício.
Transparece nítida e insofismável, assim, à luz de uma interpretação histórica do processo legislativo da EC n. 45/2004, que a mens
legislatoris foi a de repelir a identificação da competência material da
Justiça do Trabalho estritamente com os dissídios emergentes da “relação de emprego”. Houve, sim, deliberada vontade do Congresso Nacional,
expressa em sucessivos momentos, de alargar os horizontes da atuação da Justiça do Trabalho, sobretudo no que se renegou a locução “da
relação de emprego”, preferindo-se a esta a locução, muito mais ampla e
genérica, “da relação de trabalho”.
(2) Emenda de Plenário n. 136 do então Senador Artur da Távola (PSDB-RJ).
152
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
2.2. Conceito de relação de trabalho
A estrita vinculação do novel art. 114 inc. I da CF/88 às lides “oriundas
da relação de trabalho” bastaria para ser o fator determinante em si do
reconhecimento da competência material da Justiça do Trabalho para
muito além do dissídio individual entre empregado e empregador.
O vocábulo “relação”, do ponto de vista filosófico, indica “o modo de
ser ou comportar-se dos objetos entre si”(3).
No tocante ao trabalho humano, seja subordinado, seja autônomo,
acha-se “relacionado” de diferentes modos, visto que notoriamente pode
ser objeto de distintas relações jurídicas, contratuais, ou não, entre as
quais: relação jurídica estatutária entre servidor público e o Estado, contrato de emprego, contrato de empreitada, contrato de prestação de serviços, contrato de parceria, contrato de representação mercantil, etc.
Por isso, no plano do Direito Privado, reportam-se alguns doutrinadores
aos contratos, denominando-os genericamente “contratos de atividade”.
Daí o pertinente e abalizado escólio de Amauri Mascaro Nascimento:
“Relação de trabalho é um gênero, do qual a relação de emprego
ou contrato de trabalho é uma das modalidades, aspecto de fácil
compreensão diante das múltiplas formas de atividade humana e
que o Direito procura regulamentar em setorizações diferentes. Podese, mesmo, falar em divisão jurídica do trabalho com implicações
no problema da competência dos órgãos jurisdicionais.”
Patente, por conseguinte, que para efeito de ditar a competência
material da Justiça do Trabalho, a locução relação jurídica de trabalho é
utilizada com alcance mais abrangente que relação jurídica de emprego.
2.3. Lide da relação de trabalho afeta à Justiça do Trabalho
Que se há de entender, então, por “relação de trabalho”, para efeito
de determinação da competência material da Justiça do Trabalho?
Convenci-me de que o novel Texto Constitucional, ao estatuir que
incumbirá à Justiça do Trabalho equacionar dissídio oriundo da “relação
de trabalho” (art. 114, inciso I), confiou-lhe:
a) os conflitos trabalhistas emergentes de uma relação de emprego,
pois esta é uma espécie de relação de trabalho;
(3) ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia, 2ª ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
153
b) também toda lide advinda dos contratos de atividade em geral,
contanto que se cuide de prestação pessoal de serviço a outrem;
c) a lide que envolva servidor público, qualquer que seja o regime,
inclusive o estatutário.
Examinemos de forma particularizada esses casos.
2.3.1. Dissídios individuais da relação de emprego
Patente que a norma constitucional do art. 114 inc. I, conquanto se
reporte às lides que dimanam da “relação de trabalho”, não preexcluiu a
competência do Judiciário Trabalhista para os litígios derivantes de relação
de emprego: não pode ser outra a inferência lógica se se tiver presente que
se contém no conceito de “relação de trabalho” o de “relação de emprego”.
Como se sabe, e é da tradição do Direito brasileiro, há uma umbilical
correlação entre conflitos trabalhistas típicos — havendo-se por tais os
que nascem de uma relação de emprego — e competência material da
Justiça do Trabalho: a competência material da Justiça do Trabalho persiste repousando essencialmente na solução dos conflitos trabalhistas.
A auspiciosa novidade está em que a nova norma constitucional,
consoante já se anotou, não mais circunscreve a competência da Justiça do Trabalho aos dissídios “entre trabalhadores e empregadores”, como
o fazia a redação anterior. Assim, porque o suposto da determinação da
competência é unicamente a controvérsia derivar da “relação de trabalho”, o novo Texto Constitucional preenche uma omissão de que se ressentia a disciplina da competência material da Justiça do Trabalho: os
litígios da relação de emprego e que não envolvam os seus sujeitos.
De sorte que, presentemente, inscrevem-se na competência da
Justiça do Trabalho, ao revés do que sucedia antes (por falta de permissivo legal e constitucional): a) os dissídios interobreiros, a exemplo do
que se passa, às vezes, entre os empregados que celebram contrato
de equipe, a respeito de salário; b) os dissídios interpatronais sobre
obrigação que decorre do contrato de emprego, tal como se verifica na lide
entre o empregador sucessor e o sucedido, ou entre o empregador subempreiteiro e o empreiteiro principal (art. 455 da CLT); c) quaisquer outras lides a propósito de direitos e obrigações que decorram da relação de
emprego, mesmo que não se estabeleçam entre empregado e empregador, como se dá com a ação civil pública “trabalhista”, ou com o dissídio
sobre complementação de aposentadoria entre empregado e entidade
de previdência privada fechada instituída pelo empregador, quando a complementação de aposentadoria não é criada pelo empregador.
154
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Situação peculiar é a do trabalhador eventual avulso: desenvolve trabalho subordinado não configurador de relação empregatícia. A Constituição Federal, contudo, assegura ao avulso direitos iguais aos do trabalhador
com vínculo permanente (art. 7º, parágrafo único). Há, pois, relação de
trabalho assimilada à de emprego e regida pelo Direito do Trabalho.
Antes da atual redação emprestada ao art. 114 inc. I da CF/88, a
MP n. 2164/01 atribuiu competência à Justiça do Trabalho para as lides
entre uma espécie de avulso, o trabalhador portuário, e os operadores
portuários ou o Órgão Gestor de Mão-de-Obra (OGMO).
Entendo que, em face do novo Texto Constitucional, cabe à Justiça
do Trabalho solucionar todos os dissídios por direitos e obrigações da
relação de trabalho do avulso, a saber: a) entre o avulso e o tomador dos
serviços; b) entre o avulso e o sindicato (que lhe coordena e dirige as
atividades) ou o OGMO; c) entre o sindicato e o tomador dos serviços.
2.3.2. Contrato pessoal de atividade
Igualmente pode recair na órbita da Justiça do Trabalho o labor
prestado “sem subordinação”, objeto de uma relação de trabalho em
sentido amplo, quer haja sido formalizada, quer não. É o trabalho autônomo ou por conta própria.
Muitos contratos de atividade, mediante os quais se exterioriza o
trabalho humano autônomo ou por conta própria, podem provocar o surgimento de lide afeta à competência da Justiça do Trabalho.
A aludida competência, todavia, a meu juízo, não enlaça todo contrato de atividade: respeita somente à lide derivante da prestação pessoal
de serviço a outrem.
Por quê? Porque a tônica da competência traçada no novo art. 114
inc. I, em meu entender, há de guardar uma certa simetria ou paralelismo
com a competência para os dissídios emergentes de relação de emprego.
É a similitude de condições socioeconômicas entre a figura do empregado
e a do autônomo que dita essa competência da Justiça do Trabalho. Ambos têm em comum a circunstância de subsistirem da “alienação” pessoal
da força de trabalho a outrem. Tal traço de identidade entre o empregado e o
autônomo é que justifica submeterem-se ambos a uma jurisdição que é
“do Trabalho”, a exemplo do que já sucede há décadas com o pequeno
empreiteiro, operário ou artífice (CLT, art. 652, a, inc. III). Esse, pareceme, o espírito da norma constitucional em foco.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
155
Daí se segue, por exemplo, que um contrato de empreitada entre pessoas jurídicas, ou mediante o qual uma pessoa jurídica obriga-se junto a uma
pessoa física a executar determinada obra, sob certo preço, transcende da
competência da Justiça do Trabalho, por não se tratar de serviço avençado e
prestado diretamente por pessoa física. Diga-se o mesmo de um litígio que
aflore em um contrato de prestação de serviços entre um plano de saúde e o
cliente, ou entre um banco na qualidade de prestador de serviços e pessoa
física (por exemplo, ao receber tributos mesmo de não cliente).
Se, entretanto, a lide deriva de labor pessoal, embora autônomo,
inscreve-se na competência material da Justiça do Trabalho, ante a inafastável incidência do art. 114 inc. I da CF/88. É o que pode suceder em
numerosos contratos firmados por pessoa física, tais como de prestação
de serviços, de corretagem, de representação comercial (denominado de
contrato de agência e distribuição no Código Civil de 2002), ou nos contratos celebrados entre o corretor de seguros e o respectivo tomador de
serviços, ou entre o transportador rodoviário autônomo e a empresa de transporte rodoviário de bens ou o usuário desses serviços, ou entre o empreiteiro pessoa física e o dono da obra, nos contratos de pequena empreitada, ou entre o parceiro ou o arrendatário rural e o proprietário, ou entre
cooperativas de trabalho e seus associados, ou entre cooperativas de
trabalho ou seus associados e os tomadores de serviços.
Por conseguinte, a título ilustrativo, profissionais liberais (médicos,
advogados, odontólogos, economistas, arquitetos, engenheiros, entre
tantos outros) podem agora demandar e ser demandados, nesta qualidade jurídica, na Justiça do Trabalho.
Desse modo, valoriza-se e moderniza-se a Justiça do Trabalho,
bem assim retira-se o máximo proveito social de sua formidável estrutura. Afora isso, supera-se a arraigada e superada concepção de constituir
a Justiça do Trabalho meramente uma Justiça do emprego.
Questão relevante que se põe aqui consiste em averiguar se tal
competência alcançaria também a relação contratual de consumo, reguladas pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90).
Sabe-se que a relação contratual de consumo pode ter por objeto
a prestação pessoal de serviços e, assim, também constituir relação de
trabalho em sentido amplo (art. 3º, § 2º, do CDC). A prestação de serviço
advocatício, a prestação de serviço médico para uma cirurgia estética ou
reparatória, o serviço de conserto ou assistência técnica, entre infindáveis de outros exemplos, caracterizam relação de consumo.
156
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Há relação de consumo desde que presente uma relação jurídica
em cujos pólos estejam as figuras do consumidor-fornecedor, tendo por
objeto um produto ou um serviço.
O art. 2º do CDC reputa “consumidor toda pessoa física ou jurídica
que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”.
É consumidor, portanto, aquele que “contrata a prestação de serviços, como destinatário final, pressupondo-se que assim age com vistas
ao atendimento de uma necessidade própria e não para o desenvolvimento de uma outra atividade negocial”(4).
Sucede, no entanto, que se pode visualizar a relação contratual de
consumo não apenas sob o ângulo do consumidor/destinatário do serviço, mas também sob o prisma da virtual pessoa física prestadora
(fornecedor) do serviço.
Cuida-se, a meu juízo, de uma relação jurídica de natureza bifronte: do ângulo do consumidor/ destinatário do serviço, relação de consumo, regida e protegida pelo CDC; do ângulo do prestador do serviço
(fornecedor), regulada pelas normas gerais de Direito Civil.
Evidentemente, que nessa relação contratual tanto pode surgir
lesão a direito subjetivo do prestador do serviço (fornecedor) quanto do
consumidor/destinatário do serviço.
Entendo que a lide propriamente da relação de consumo, entre o consumidor, nesta condição, e o respectivo prestador do serviço, visando
à aplicação do Código de Defesa do Consumidor, escapa à competência da Justiça do Trabalho, pois aí não aflora disputa emanada de relação de
trabalho. É lide cujo objeto é a defesa de direitos do cidadão na condição
de consumidor de um serviço e, não, como prestador de um serviço.
Afora isso, em geral a relação de consumo traduz uma obrigação contratual
de resultado, em que o que menos importa é o trabalho em si.
Entretanto, sob o enfoque do prestador do serviço (fornecedor), é
forçoso convir que firma ele uma relação jurídica de trabalho com o
consumidor/destinatário do serviço: um se obriga a desenvolver determinada atividade ou serviço em proveito do outro mediante o pagamento
de determinada retribuição, ou preço.
Se, pois, a relação contratual de consumo pode ter por objeto a
prestação de serviços e, assim, caracterizar também, inequivocamen(4) FILOMENO, José Geraldo Brito. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor.
Comentado pelos autores do anteprojeto. 5ª ed., 1999, p. 25.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
157
te, uma relação de trabalho em sentido amplo, afigura-se-me inafastável o reconhecimento da competência material da Justiça do Trabalho
para a lide que daí emergir, se e enquanto não se tratar de lide envolvendo a aplicação do Código de Defesa do Consumidor.
Vale dizer: se não se cuida de litígio que surge propriamente da relação de consumo, mas da relação de trabalho que nela se contém, regulada pelo Direito Civil, não atino para a razão de descartar-se a competência da Justiça do Trabalho. É o que se dá, por exemplo, na demanda
da pessoa física prestadora de serviços em favor de outrem pelos honorários ou preço dos serviços contratados.
Eis por que reafirmo que a circunstância de haver subjacente à lide
uma relação contratual de consumo não obsta a que profissionais liberais e autônomos em geral doravante demandem, nesta qualidade jurídica, na Justiça do Trabalho, uma vez que o façam como sujeitos de uma
relação jurídica que também é de trabalho e a lide não seja concernente
a direitos do consumidor.
2.3.3. Servidor público
O texto promulgado e publicado da EC n. 45/2004 conferiu competência material à Justiça do Trabalho para os dissídios decorrentes de
“relação de trabalho” em geral, inclusive com ente público (art. 114, inc. I).
É certo que a redação aprovada no Senado Federal excepcionou de tal competência “os servidores ocupantes de cargos criados
por lei, de provimento efetivo ou em comissão, incluídas as autarquias e fundações públicas dos referidos entes da federação”. A exceção em tela, porém, porque resultante do acatamento de emenda
de mérito introduzida no Senado, voltou à apreciação da Câmara dos
Deputados. Exatamente por isso, do texto promulgado não consta a
aludida exceção.
Preliminarmente, devo realçar que não diviso, ao contrário de alguns, inconstitucionalidade formal na norma constitucional promulgada
(art. 114, inc. I). A toda evidência, não se poderia promulgar a redação
integral aprovada no Senado, porque não aprovada na Câmara a exclusão da competência da Justiça do Trabalho para os estatutários. Promulgou-se e publicou-se estritamente a redação tal como aprovada nas
duas Casas do Congresso Nacional: competência para as lides oriundas de “relação de trabalho” em geral.
158
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Sem sombra de dúvida, a redação ora vigente mudou radicalmente
a competência da Justiça do Trabalho para o servidor público, que até
então estava circunscrita ao servidor público celetista.
Está claro que a alusão a dissídios decorrentes de “relação de
trabalho” com ente público é indicativa de que se transferiram para a
órbita da Justiça do Trabalho todos os dissídios de servidor público,
qualquer que seja o regime jurídico: celetista, ou estatutário.
A exegese em comento apóia-se em múltiplos fundamentos.
Em primeiro lugar, insta ter presente o alcance mais amplo e abrangente da locução “relação de trabalho”. Ora, inconteste que entre o servidor
e a Administração Pública forma-se uma relação de trabalho em sentido
amplo. Tanto isso é exato que, para afastar a mencionada competência, o
Senado Federal necessitou aprovar uma exceção expressa a tal regra.
Em segundo lugar, em favor dessa exegese milita a interpretação
histórica. Como visto, ao longo da tramitação da PEC no Congresso
Nacional foram rejeitadas as emendas apresentadas para substituir a
locução “relação de trabalho” por relação de emprego.
Impende rememorar que o art. 240, e, da Lei n. 8.112/90 já cometeu tal competência material outrora à Justiça do Trabalho, que somente
não subsistiu porque declarada a inconstitucionalidade material do preceito pelo Supremo Tribunal Federal(5).
Contudo, as razões básicas que ditaram a aludida declaração
de inconstitucionalidade material flagrantemente não mais subsistem, a começar da circunstância óbvia de que não há confronto de lei
ordinária com norma constitucional. E mesmo que houvesse esse
confronto, apenas para argumentar, não remanesce qualquer dos
motivos invocados para a declaração de inconstitucionalidade material.
Com efeito: a) o texto atual do art. 114, inc. I, não mais alude a dissídio entre “trabalhador” e empregador; b) tampouco consta a representação classista da estrutura da Justiça do Trabalho; c) ademais, declarou-se então a inconstitucionalidade também à luz de uma norma
constitucional hoje inexistente (art. 39), que previra regime jurídico
único dos servidores públicos.
De outra parte, sustento que há ponderáveis razões em prol da
novel diretriz do art. 114, inc. I.
(5) ADIn n. 492-1, DF, Rel. Min. Carlos M. Velloso. DJU de 12.3.93.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
159
É forçoso convir que não se afigura razoável a sistemática prevalecente antes da EC n. 45/2004 de cindir-se a competência consoante o
regime jurídico. Recorde-se que no caso do servidor público federal, por
exemplo, a limitação da competência da Justiça do Trabalho até 11.12.90
(Lei n. 8.112, de 10.12.90) levava o servidor, muitas vezes, a demandar
sucessivamente na Justiça do Trabalho e na Justiça Federal por um mesmo
direito, o que poderia gerar, inclusive, decisões conflitantes.
Além disso, essa dualidade de competência gerou um quadro
perverso para o servidor e um privilégio injustificável à Administração
Pública.
Por quê? Porque ensejou à Administração Pública, ao sabor de
suas conveniências, eleger o segmento do Poder Judiciário competente,
mediante mudança do regime jurídico do servidor.
De maneira que sobejam motivos para se confiar à Justiça do
Trabalho a solução do litígio entre o servidor público estatutário e a
Administração Pública, o que se dará, naturalmente, sob o enfoque integral do Direito Público.
Igualmente não pode pairar mais dúvida acerca da competência da
Justiça do Trabalho para a lide entre ente público e servidor contratado
por tempo determinado, sob a égide do art. 37 inciso IX da CF/88, “para
atender a necessidade temporária de excepcional interesse público”.
2.4. Fundamentos para a ampliação da competência da Justiça do
Trabalho
Observa-se no Direito Comparado uma tendência abrangente e expansionista da concepção de conflito trabalhista, com natural repercussão na competência da Justiça do Trabalho que, por isso mesmo, experimenta crescente ampliação, em maior ou em menor medida, aqui e acolá,
de modo a romper a identificação exclusiva e absoluta desse segmento do
Poder Judiciário com a lide entre empregado e empregador(6).
(6) Em Portugal, por exemplo, vinca-se a competência material dos tribunais do trabalho lusitanos a conhecer dos seguintes conflitos individuais jurídicos (“questões”),
entre outros (Lei n. 38, de 23.12.87, art. 64): a) “emergentes de relações de trabalho
subordinado e das relações estabelecidas com vistas à celebração de contrato de
trabalho”; b) “emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais”. Na
Espanha, a competência material dos órgãos da Ordem Social atinge (os arts. 1º e 2º
da Lei de Procedimento Laboral de 1990): a) dissídios entre empregado e empregador
como conseqüência do contrato de emprego, incluídos pactos acessórios e preliminares deste (pré-contrato de trabalho); b) lides referentes à Seguridade Social, inclusive
de proteção por desemprego.
160
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
No Brasil, a aludida tendência já se detectara da comparação do art.
142 da Constituição Federal de 1969 com a redação originária do art. 114
da Constituição Federal de 1988. A EC n. 45/2004, ao implementar nova
ampliação da competência da Justiça do Trabalho, reafirma essa tendência.
É imperativo reconhecer que a globalização da economia capitalista
e os avanços tecnológicos, com o conseqüente e dramático aumento do
desemprego, têm contribuído para exibir um panorama exuberantemente
diversificado das formas de prestação de trabalho. Diminui o emprego
formal em todos os quadrantes e cresce o trabalho informal, assim como
crescem também formas alternativas de prestação de trabalho por conta
própria, em condições muitas vezes até bastante assemelhadas a um
contrato de emprego.
A realidade indisfarçável é que milhões de brasileiros hoje prestam
serviços a outrem como autônomos, fenômeno que parece tender a acentuar-se também em face de políticas econômicas neoliberais que vêm
fustigando e ameaçando a própria sobrevivência do Direito do Trabalho.
Não se pode esquecer igualmente que esta é uma República que
tem entre seus fundamentos o valor social do trabalho (CF/88, art. 1º,
IV). Segundo a Constituição Federal, a ordem econômica é fundada na
valorização do trabalho humano e a ordem social tem como base o primado do trabalho (arts. 170 e 193).
Se assim é, transparece muito mais consentâneo com esse princípio
e com as exigências da cidadania atribuir-se à Justiça do Trabalho todas as
causas derivantes de trabalho pessoal prestado em favor de outrem.
Por quê? Porque comparativamente mais célere, desburocratizada e acessível, em cotejo com a Justiça comum.
É inegável que, em confronto com o processo civil, o processo
perante a Justiça do Trabalho, apesar de todos os pesares, ainda outorga tutela jurisdicional relativamente com maior presteza e eficiência,
pois é marcado pela informalidade e acentuada oralidade, inclusive pela
irrecorribilidade das decisões interlocutórias. A dispensa de advogado e
a gratuidade dos atos processuais em geral também o distinguem do
processo civil.
É inegável igualmente a maior sensibilidade e especialização do
Juiz do Trabalho para dirimir conflitos resultantes do trabalho humano
pessoal prestado a outrem. Inquestionável que o Juiz do Trabalho transita com muito maior familiaridade nessa área.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
161
Por outro lado, não se pode perder de vista que, muitas vezes, a
situação do trabalhador autônomo, do ponto de vista social e econômico, equipara-se à de um verdadeiro empregado.
Realmente, há inúmeros contratos de atividade em que a situação
do prestador de serviços ostenta características bastante similares à do
pequeno empreiteiro, cujo dissídio já era confiado à Justiça do Trabalho
antes da Emenda Constitucional n. 45/2004 (CLT, art. 652, a, III).
São casos de pessoas que, embora não ostentem tecnicamente a
qualidade de empregadas, também dependem do próprio trabalho por conta
própria para sobreviver e estão vinculadas a uma relação de trabalho.
Freqüentemente, inclusive, a prestação de trabalho situa-se em
zona fronteiriça ao contrato de emprego propriamente dito.
É o que sucede, como sabemos, nos contratos de representação
comercial, de parceria agrícola, ou de parceria pecuária, no contrato de
prestação de serviço (médico, ou advogado, p. ex.), no contrato de sociedade, nas cooperativas de trabalho, etc.
Trata-se de casos, comuníssimos no foro, de trabalhadores situados numa zona cinzenta, em que o suposto empregado Reclamante,
se não obtiver êxito na pretensão de reconhecimento de vínculo empregatício, vê-se na contingência, após anos de espera, de ingressar com
outra ação, na justiça estadual, para demandar por direitos da qualidade
de autônomo.
Ora, isso não faz muito sentido se se pensar em economia e em
celeridade processual e, sobretudo, no interesse do jurisdicionado e da
sociedade em alcançar uma pronta resposta para o conflito.
Parece muito mais razoável e consentâneo com a rapidez, exigida
na solução do litígio, que se concentre a competência apenas num único
segmento do Poder Judiciário, quer para a demanda na qualidade de
autônomo, quer para a demanda na qualidade de empregado, até porque,
insisto, freqüentemente há dúvida fundada quanto à natureza da relação
jurídica que vincula os litigantes.
Assim, doravante, em casos que tais, bastará que o Reclamante
formule um pedido principal, com suporte no vínculo empregatício, e um
pedido sucessivo, com suporte em outro contrato de atividade, para que
a Justiça do Trabalho, de todo modo, equacione o litígio.
Naturalmente, o reconhecimento da competência material da Justiça do Trabalho para julgar o pedido sucessivo, formulado na qualidade
162
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
de trabalhador autônomo, deriva de igual competência para o pedido
principal, que também poderá ser deduzido, nessa qualidade.
Por derradeiro, havia uma justificativa política, sumamente relevante,
em favor da ampliação da competência da Justiça do Trabalho: a necessidade de fortalecimento político da instituição, de uns tempos a esta
parte, combalida pela proposta de extinção. E esse fortalecimento foi
alcançado, alargando-se os domínios da Justiça do Trabalho para o dissídio individual. Naturalmente, competência é poder.
Bem se compreende também a ampliação dos domínios da Justiça do Trabalho, quando se atende para o fato de que tal providência, no
fundo, apenas contrabalança a relativa perda de competência normativa
dos Tribunais do Trabalho e que, inclusive, tende a ser extinta.
Não ignoro algumas objeções sérias levantadas a propósito.
Argumenta-se, por exemplo, que uma dilatação desse porte na
competência material da Justiça do Trabalho comprometeria sua especialização.
Está claro que, como todos sabemos, em suas origens, a Justiça
do Trabalho constituiu e constitui uma jurisdição especial, destinada a
solucionar um conflito especial, mediante a aplicação de um direito material e de um direito processual (do Trabalho) igualmente especiais.
Evidentemente que esta é, sempre foi e sempre será a missão por
excelência da Justiça do Trabalho.
Todavia, a Justiça do Trabalho, como tudo na vida, precisava evoluir
e acompanhar o dinamismo da sociedade, sob pena de soçobrar ante os
novos ventos de modernidade.
Ademais, a especialização natural no conflito oriundo da relação
de emprego não é, e nunca foi, incompatível com uma competência paralela para as lides decorrentes de relação de trabalho.
Conforme escrevi alhures, o que qualifica de especial uma jurisdição é o concurso simultâneo de dois elementos contemplados em lei:
a) uma especialização da função jurisdicional, cometendo-a especificamente, ou precipuamente, à resolução de lides de uma
determinada natureza; isto é, conflitos de interesses subjacentes
a determinada relação jurídica;
b) a existência de um corpo de juízes que, compondo uma organização administrativa própria e à margem do quadro da magistratura
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
163
ordinária, esteja permanentemente investido da cognição (rectius:
competência material) para certo grupo de controvérsias.
Ora, nada disso a Justiça do Trabalho perdeu no que se lhe ampliou a competência para as lides oriundas de relação de trabalho.
Impende realçar que o art. 8º, parágrafo único, da CLT sempre permitiu ao Juiz do Trabalho a invocação subsidiária do direito comum para
solucionar o litígio tipicamente trabalhista, o que denota, como assinala
Magano, o repúdio do legislador em cavar um fosso isolacionista em
torno do Direito do Trabalho (Manual de Direito do Trabalho).
Não se deve esquecer também que o dissídio do pequeno empreiteiro sempre foi julgado pela Justiça do Trabalho sob a ótica do Direito
Civil (CLT, art. 652, inc. III).
Do mesmo modo, mediante aplicação do Direito Civil a Justiça do
Trabalho já julgava, com freqüência, sob o beneplácito do Supremo Tribunal Federal, dissídio entre empregado e empregador por dano moral.
Incursões no Direito Previdenciário a Justiça do Trabalho já se vê
na contingência de promover, aqui e acolá, ainda que incidentalmente,
em virtude da competência constitucional atual para execução de contribuições previdenciárias decorrentes de débitos trabalhistas, ou de cláusula de acordo ou convenção coletiva de trabalho.
Não creio, assim, que mesmo essa expressiva ampliação de competência afete a especialização da Justiça do Trabalho.
Haverá necessidade, sim, de uma reciclagem intelectual do Juiz do
Trabalho. Um aprimoramento técnico-jurídico, mormente no âmbito do Direito Civil, do Direito Comercial e do Direito Administrativo, mas não a
ponto de implicar uma perda na especialização da Justiça do Trabalho
para o dissídio derivante da relação de emprego.
De que necessitam os juízes do trabalho, a partir da EC n. 45/
2004, em maior ou em menor medida, é superar o vezo de propender
para identificar, aqui e acolá, um vínculo empregatício, ou de solucionar
as lides apenas sob a ótica das normas e princípios do Direito do Trabalho. Essa postura simplificadora e reducionista do complexo e vasto
fenômeno das relações jurídicas de trabalho haverá de ser suplantada,
sob pena de a Justiça do Trabalho desprestigiar-se e desmoralizar-se
perante a sociedade.
É extreme de dúvidas que a competência material que se outorgou
à Justiça do Trabalho exigirá dela que lance um novo olhar sobre os
164
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
litígios a que será chamada a dirimir, olhar muitas vezes bem diverso
daquele mediante o qual está habituada a compor os conflitos trabalhistas tradicionais.
Outra objeção que tem sido apresentada sustenta que a ampliação
de competência congestionaria ainda mais a Justiça do Trabalho, já a
braços com dificuldades para fazer frente às causas entre empregado e
empregador.
O argumento impressiona, mas a mim não convence.
É certo que, antes da ampliação de competência em apreço, já
se detectavam alguns pontos isolados de estrangulamento na outorga
da prestação jurisdicional trabalhista, sobretudo no âmbito do Tribunal
Superior do Trabalho.
Dois aspectos, todavia, são ponderáveis:
1º) o TST obviamente não é a Justiça do Trabalho e a sua delicada
situação, do ponto de vista da demora no julgamento dos recursos,
apesar de todos os esforços envidados, pode e certamente será
solucionada mediante outras medidas adequadas;
2º) inegavelmente, ainda que em caráter pontual, há Varas do Trabalho e alguns Tribunais Regionais do Trabalho subaproveitados.
Ademais, penso que a relativa morosidade na entrega da prestação jurisdicional trabalhista, a par de pontual, pouco tem a ver com a
amplitude da competência material da Justiça do Trabalho. Decorre muito
mais de outras e diversificadas causas, tal como um sistema recursal
irracional. Basta confrontar-se a recorribilidade das decisões proferidas
nos nossos dissídios submetidos ao rito sumaríssimo com a recorribilidade muita mais restrita nos Juizados Especiais Cíveis da Justiça Estadual
e da Federal em que nos inspiramos...
3. Dissídios individuais sindicais
O sindicato assume diferentes posições no processo trabalhista,
ou seja, nele intervém em distintas qualidades jurídicas.
Cifrando-se a abordagem ao âmbito estrito do dissídio individual,
constata-se que o sindicato demanda em juízo, ou é demandado, fundamentalmente, ostentando três díspares qualidades jurídicas.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
165
Na primeira, o sindicato move a ação em nome próprio, mas deduz
em juízo pretensão jurídica trabalhista em prol dos associados, ou
dos integrantes da categoria profissional (CF/88, art. 8º, inc. III),
atuando como substituto processual.
A segunda forma de atuação judicial do sindicato, no plano do dissídio individual, dá-se mediante representação legal, postulando em juízo
em nome e em favor dos integrantes da categoria que nominar, associados, ou não (CLT, arts. 513, a, e 791, § 1º).
Os litígios entre empregador e sindicato profissional, quer na qualidade de substituto processual, quer na qualidade de representante legal,
sempre se encartaram pacificamente na competência material da Justiça do Trabalho, o que hoje se embasa na norma insculpida no art. 114
inc. I da CF/88.
Há, contudo, uma terceira qualidade jurídica sob a qual o sindicato
pode intervir na relação processual: em nome próprio e na defesa de
direito próprio (naturalmente, dele, sindicato). Em semelhante circunstância, o sindicato figura em juízo como suposto titular de um direito
pessoal, isto é, defendendo interesse dele como pessoa jurídica e não
de quaisquer integrantes da categoria representada.
Os dissídios individuais sindicais desta última espécie podem apresentar-se em juízo sob multiformes facetas, no direito brasileiro, destacando-se as seguintes subespécies: a) os intersindicais não coletivos;
b) os intra-sindicais; c) os sindicais sobre contribuições.
Até sobrevir a EC n. 45/2004, os dissídios individuais sindicais para
defesa de interesse próprio da entidade somente se inscreviam na competência material da Justiça do Trabalho brasileira quando se originassem do cumprimento de acordo coletivo ou de convenção coletiva de
trabalho (Lei n. 8.984, de 7.2.95), bem assim quando derivassem de sentença normativa ou de acordo em dissídio coletivo (art. 114 fine da CF/88
em sua redação originária).
O art. 114 inc. III da CF/88, com a redação imprimida pela EC n.
45/2004, passou a atribuir à Justiça do Trabalho competência para “as
ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e
trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores”.
Lastimavelmente, o mencionado preceito constitucional não disse
tudo e nem disse bem para o fim a que se propôs.
A norma comporta duas leituras.
166
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Ante uma primeira e puramente literal interpretação, a mais indigente de todas, seria tímido, no particular, o avanço: ampliaria a competência
material da Justiça do Trabalho apenas para nela inscrever também a
disputa intersindical de representatividade. Essa exegese, todavia, não
pode prevalecer, porquanto limitaria demasiadamente uma norma bem
mais abrangente.
Semelhante exegese restritiva há de ceder passo ao evidente escopo da norma constitucional de cometer à Justiça do Trabalho competência não apenas para as lides sobre representação sindical, como
também para quaisquer outras que envolvam o direito sindical, ainda que
não estritamente “sobre representação sindical”, contanto que intra-sindicais, intersindicais, ou entre sindicato e empregador.
Sabe-se que há muitos outros dissídios individuais que emergem
do direito sindical, além dos conflitos sobre representação sindical, referidos no texto de forma meramente exemplificativa e não exaustiva.
Soaria irracional e logicamente incompreensível persistir proclamando a incompetência da Justiça do Trabalho para instruir e julgar os demais litígios emergentes da vida sindical, que, inclusive, cresceram desmedidamente após a CF/88 e tendem a aumentar, se se implantar, um
regime de plena liberdade sindical em nosso País, como se anuncia.
Com efeito, as mesmas razões que ditaram a expansão dos domínios
da Justiça do Trabalho para os conflitos sobre representação sindical concorrem para o reconhecimento de igual competência para todos os demais dissídios individuais sobre direito sindical. Resulta manifesto que aos Tribunais
do Trabalho devem ser reputados os juízos naturais de causas dessa espécie, quando menos pela notória especialização requerida no julgamento.
Em meu entender, o novel art. 114 inc. III da CF/88 atribuiu uma
competência material genérica à Justiça do Trabalho para quaisquer
dissídios intra-sindicais, intersindicais, ou entre sindicato e empregador,
que envolvam a aplicação do direito sindical, de que é mero exemplo a
disputa intersindical de representatividade.
Sob tal perspectiva, pois, examina-se a seguir a vasta gama concebível de situações.
3.1. Intersindicais não coletivos
Consideram-se dissídios intersindicais não coletivos, como sugere a própria denominação, os dissídios individuais que opõem sindicatos
atuando na tutela de direito pessoal da entidade.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
167
Comuníssimos entre sindicatos concorrentes nos sistemas de
pluralidade sindical, esses dissídios igualmente tornaram-se freqüentes
no direito brasileiro depois que sobreveio a CF/88. Exemplos emblemáticos de dissídios intersindicais não coletivos são os seguintes: a) os
de representatividade; b) os declaratórios de vínculo jurídico-sindical
entre sindicato e federação; c) os cautelares, como o que objetiva sustar os efeitos de convenção coletiva de trabalho.
3.1.1. Intersindicais de representatividade
As lides intersindicais cujo objeto consista na declaração do direito de representação legal da categoria econômica, ou da categoria profissional, em caráter definitivo e com o atributo da coisa julgada, foram
deslocadas da Justiça Estadual para a Justiça do Trabalho, consoante
resulta do art. 114 inc. III da CF/88.
Em realidade, os sindicatos demandam na tutela de uma pretensão jurídica própria — o reconhecimento do direito de representar legalmente a categoria profissional, ou a categoria econômica — e não buscando resguardar interesses da categoria.
Observava-se neste ponto uma das muitas e graves lacunas da
regulação constitucional da competência material da Justiça do Trabalho no direito positivo brasileiro. Ora, nada justificava excluir da órbita do
Judiciário Trabalhista tais dissídios, porquanto são solucionados por
normas e princípios do Direito do Trabalho.
3.1.2. Dissídio declaratório de vínculo jurídico-sindical
O dissídio intersindical não coletivo, por vezes, trava-se entre sindicato e entidade sindical de grau superior, objetivando um pronunciamento declaratório de vínculo jurídico-sindical, de maneira a que o primeiro possa filiar-se à segunda.
Litígio dessa natureza recai agora na competência da Justiça do
Trabalho, em face do art. 114 inc. III da CF/88, pois se equaciona à luz
do direito sindical.
3.2. Dissídios intra-sindicais
Reputam-se dissídios intra-sindicais, ou internos, os dissídios
individuais em que se digladiam um sindicato, atuando na tutela de direito
168
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
pessoal da entidade, e um associado, ou membro da categoria profissional,
ou da categoria econômica.
Atualmente, no direito brasileiro, os casos mais comuns de disputas intestinas envolventes do sindicato são os seguintes: a) por direitos
trabalhistas de dirigente sindical licenciado; b) para anulação de eleição sindical, ou de assembléia geral sindical; c) para cobrança de
contribuições sindicais.
No Brasil, até surgir a EC n. 45/2004, as lides intra-sindicais, em
princípio, escapavam à competência do Judiciário Trabalhista, dada a
deficiente, fragmentária e assistemática disciplina legal da matéria. Hoje
dá-se o inverso, conforme se aborda mais pormenorizadamente a seguir.
3.2.1. Dirigente sindical licenciado
A lei brasileira considera “de licença não remunerada” e, portanto,
de suspensão da execução do contrato, o tempo em que o empregado
afasta-se do trabalho para o desempenho de cargo de administração
sindical (CLT, art. 543, § 2º). Possibilita, no entanto, à assembléia geral
do sindicato arbitrar “uma gratificação nunca excedente da importância
de sua remuneração na profissão respectiva”, quando o empregado, para
o exercício do mandato, tiver de ausentar-se do trabalho (CLT, art. 521,
parágrafo único).
Configura-se algumas vezes dissídio individual entre o dirigente sindical licenciado e o seu próprio sindicato, tendo por objeto obrigações de
natureza trabalhista (como férias, 13º salário e salário), em que se haveria sub-rogado o sindicato, enquanto suspenso o contrato de emprego.
Por mais insólito que fosse, máxime em se tratando de um conflito
trabalhista regulado tão-somente pelo Direito do Trabalho, o litígio interno entre o sindicato e o seu dirigente afastado transcendia da competência material da Justiça do Trabalho.
Presentemente, porém, o art. 114 inc. III da CF/88 dá suporte ao
reconhecimento da competência material da Justiça do Trabalho para
equacioná-lo.
3.2.2. Dissídio para anulação de eleição sindical
A lide de que participem o sindicato e/ou o respectivo Presidente, de um lado, e integrante da categoria, de outro, cujo objeto princi-
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
169
pal seja declarar a invalidade de procedimento de eleição sindical, até
recentemente estranha à competência material da Justiça do Trabalho, passa a recair em seu domínio em virtude do que reza art. 114
inc. III da CF/88.
3.2.3. Dissídio para anulação de assembléia geral sindical
O dissídio individual entre membro da categoria e o próprio sindicato, pleiteando a anulação de assembléia geral da entidade de classe,
sob alegação de irregularidade, surpreendentemente também não se
amoldava à competência material da Justiça do Trabalho brasileira até a
EC n. 45/2004.
A hipótese hoje subsume-se ao art. 114 inc. III da Constituição
Federal, até porque ventila tema estritamente de direito sindical e constitui teoricamente um conflito trabalhista, ainda que atípico.
3.3. Sindicais sobre contribuições
Dentre as fontes de receita das entidades sindicais, sobrelevam as
seguintes contribuições: a) desconto ou contribuição assistencial, ou
“taxa de reversão salarial”, prevista em norma coletiva; b) contribuição
confederativa (CF/88, art. 8º, inc. IV); c) contribuição sindical (CLT, arts.
548, a, e 578); d) mensalidade do associado (CLT, art. 548, b).
As mencionadas contribuições constantemente provocam dissídios
individuais envolvendo as entidades sindicais: ora entre sindicato profissional e empregador, ora entre sindicato e associado, ora entre sindicato e
membro da categoria econômica, ou da categoria profissional.
Cuidando-se sempre de litígios regulados e dirimidos apenas por
normas e princípios do Direito do Trabalho, em face do art. 114 inc. III
da Constituição Federal passaram a gravitar, todos, na órbita da Justiça
do Trabalho, ainda quando não assentados em instrumento normativo.
Vale dizer: a circunstância de a cobrança — por exemplo, de contribuição assistencial, ou de contribuição confederativa — lastrear-se apenas em deliberação de assembléia geral da categoria não mais tem o
condão de retirar a causa da competência da Justiça do Trabalho, mesmo
que o dissídio trave-se entre sindicato patronal e membro da categoria
econômica(7).
(7) Superada, em meu entender, a Orientação Jurisprudencial n. 290 da SDI do TST em
sentido contrário.
170
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Não permanece mais à margem da Justiça do Trabalho sequer a
cobrança executiva da contribuição sindical propriamente dita visto
que promovida pelas entidades sindicais em face de um empregador.
Sabe-se que, disciplinada em lei de modo minucioso (CLT, arts.
578 a 610), a cobrança judicial da contribuição sindical opera-se mediante execução de título extrajudicial, com os privilégios da Fazenda Pública, exclusive “foro especial” (CLT, art. 606 e §§).
Uma vez que se trata de lide entre sindicato e empregador, toca
agora à Justiça do Trabalho, em virtude do que reza o art. 114 inc. III da
CF/88, executar o empregador inadimplente em contribuição sindical,
a requerimento do interessado.
Naturalmente, a contribuição sindical não gera apenas execução
de título extrajudicial. Com efeito, as lides intersindicais de representatividade, multiplicadas pela vigente Constituição Federal, não raro suscitam dúvida sobre a quem efetuar o recolhimento desse tributo, provocando, em decorrência, um litígio paralelo sobre a contribuição sindical (às
vezes, também sobre o desconto assistencial). Surge, então, uma ação
de consignação em pagamento intentada pelo empregador em desfavor de
dois ou mais sindicatos que disputam entre si a primazia da representação legal da categoria.
A exemplo de qualquer outra controvérsia entre sindicato e empregador, a lide da ação de consignação em pagamento entre empresa e sindicato passa a integrar a competência material da Justiça do
Trabalho, seja ante o que reza art. 114 inc. III da CF/88, seja porque
respeita a um instituto de Direito Sindical. A jurisprudência em contrário do STJ e do STF não foi recepcionada pelo novel mandamento
constitucional.
4. Lides de penalidades administrativas impostas aos empregadores
Uma das mais importantes inovações introduzidas pela EC n.
45/2004 repousa no art. 114 inc. VII da Constituição Federal, no que
se outorgou competência material à Justiça do Trabalho para processar e julgar “as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de
trabalho”.
Trata-se de lide conexa à derivada da relação de emprego. Com
efeito, é lide que advém do desrespeito à legislação trabalhista, sob cuja
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
171
ótica precipuamente será solucionada. Assim, não havia mesmo razão
alguma para escapar à órbita da jurisdição especializada trabalhista.
O mandamento constitucional em foco rompe com tradicional
entendimento sufragado pela jurisprudência consistente em atribuir tais
causas à esfera da Justiça Federal. Doravante, malgrado figure a União
em um dos pólos da relação processual, a lide é da competência material da Justiça do Trabalho.
A competência em tela é para qualquer ação, seja a execução de
título extrajudicial proposta pela Fazenda Pública federal, seja qualquer
demanda intentada pelo empregador, visando a invalidar a sanção administrativa que lhe haja infligido a fiscalização das Delegacias Regionais
do Trabalho.
A aludida competência abrange, pois, entre outras, a ação anulatória e também o mandado de segurança impetrado contra ato da autoridade administrativa do Ministério do Trabalho.
Não havendo norma expressa que inscreva o mandado de segurança na competência originária dos Tribunais Regionais, inquestionável que
se submete ele às regras gerais de determinação de competência funcional: será impetrado perante as Varas do Trabalho, com recursos para
as Cortes superiores.
Penso que, num primeiro momento, a tramitação dessas causas
haverá de pautar-se pelo procedimento comum ordinário, traçado pela
legislação processual trabalhista, com as necessárias adaptações, salvo
causa para a qual a lei preveja rito especial disciplinado em legislação
específica (caso do mandado de segurança).
5. Lides decorrentes de dano moral ou patrimonial —
Acidente de trabalho
O art. 114, inc. VI da CF/88, acrescentado pela Emenda Constitucional n. 45/2004, igualmente alastrou o espectro de atuação da Justiça
do Trabalho para o dissídio individual cujo objeto seja indenização por
dano moral ou patrimonial decorrente da relação de trabalho.
Eis aí um dos mais auspiciosos avanços no aprimoramento da
competência material da Justiça do Trabalho brasileira, sobretudo porque
ensejará uma repressão mais eficaz à chaga social do trabalho escravo,
pontualmente ainda identificado em nosso País.
172
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Como se recorda, a jurisprudência, inclusive do STF, já se inclinava francamente favorável ao reconhecimento da acenada competência,
seja para numerosos casos de indenização por danos materiais(8), seja
para o ressarcimento por danos morais em geral.
O novo art. 114, inc. VI, da CF/88 consagra definitivamente o entendimento de que recaem na competência material da Justiça do Trabalho quaisquer lides por atos ilícitos civis causados pelo empregador ao
empregado, ou vice-versa, em tal condição.
Se, pois, o dano mantém uma relação direta, de causa e efeito,
com o contrato de emprego, de tal modo que a causa de pedir do pedido
de indenização repousa na qualidade jurídica ostentada pelos sujeitos
do conflito intersubjetivo de interesses (empregado e empregador, agindo
nesta condição), inarredável a competência da Justiça do Trabalho, ao
menos a partir da EC n. 45/2004, para solucionar a lide.
A meu juízo, o aspecto central da inovação constitucional repousa
na competência para o ato ilícito atribuído ao empregador em face de
acidente de trabalho.
Até sobrevir a EC n. 45/2004, todos sabemos, a jurisprudência
amplamente dominante negava essa competência à Justiça do Trabalho para as causas entre empregado e empregador, tendo por objeto
indenização proveniente de acidente de trabalho (Súmula n. 15 do STJ).
Mesmo no caso específico de dano moral decorrente desse infortúnio, a
jurisprudência tendia a negar competência material à JT, não obstante
iterativas decisões do Supremo Tribunal Federal, do STJ e do TST reconhecessem genericamente essa competência à Justiça do Trabalho
caso o dano moral não adviesse de acidente de trabalho.
Penso que o novo art. 114 inc. VI da CF/88 provoca uma reviravolta
no quadro da competência para o dissídio entre empregado e empregador
por indenização patrimonial e moral decorrente de acidente de trabalho.
O novel panorama referente à competência para as ações resultantes de acidente de trabalho exige a compatibilização de dois preceitos
constitucionais: o comentado art. 114 inc. VI e o art. 109 inc. I, que
exclui da competência da Justiça Federal as causas de acidente de
trabalho, cometendo-as, por exclusão, à Justiça Estadual.
Entendo que é imperativo distinguir duas situações em matéria
de acidente de trabalho para efeito de determinação da competência.
(8) Na monografia Competência Material Trabalhista expus ampla casuística.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
173
A primeira é a das chamadas ações acidentárias, isto é, lides
previdenciárias derivantes de acidente de trabalho, promovidas em desfavor do INSS. Assim, se a ação tem por objeto prestações previdenciárias e nela figura como sujeito passivo o INSS, inequivocamente inscreve-se na competência da Justiça Comum dos Estados, em face do que
estatuem o art. 109, inc. I, da CF/88 e o art. 19, inc. II, da Lei n. 6.367, de
19.10.1976.
A segunda situação é a das lides entre empregado e empregador por indenização de dano patrimonial e/ou de dano moral causado
pelo acidente de trabalho.
Para estas últimas lides, a Justiça do Trabalho passou a ser o
juízo natural, apesar de a solução do litígio operar-se, evidentemente,
mediante a aplicação das normas do Direito Civil.
Uma vez que a pretensão é a de obter uma indenização pelo dano
supostamente advindo da conduta culposa ou dolosa do empregador, ao
provocar o acidente, a hipótese amolda-se plenamente ao novo art. 114
inc. VI da Constituição Federal.
Afora isso, o mandamento constitucional em apreço não distingue
a natureza do ato ilícito ou a natureza do pedido de indenização para o
fim de fixação da competência.
Não se pode ignorar também que o acidente de trabalho é um mero
desdobramento do labor pessoal e subordinado prestado a outrem e,
em decorrência, gera uma causa acessória e conexa da lide trabalhista típica.
De sorte que não há mesmo razão jurídica ou lógica para que as
lides decorrentes de acidente de trabalho entre empregado e empregador transcendam da competência da Justiça do Trabalho.
A rigor, parece-me que constituiria até um contra-senso admitir-se
a competência material da Justiça do Trabalho para causas em geral
entre empregado e empregador em que se discuta indenização por danos
materiais ou por danos morais e, ao mesmo tempo, negar-se semelhante competência caso o ato ilícito em que se funda a ação fosse o
acidente de trabalho. Seria admitir competência da Justiça do Trabalho
para o gênero, não para a espécie...
Observe-se que, no Direito Comparado, a Alemanha, inclui na
competência da Justiça do Trabalho “controvérsias de direito privado pro-
174
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
venientes de conduta antijurídica, desde que esta esteja em correlação
com o contrato de trabalho”.
6. Lides do exercício do direito de greve
A greve, como fenômeno de patologia social inerente ao mundo do
trabalho humano, rende ensejo, no ordenamento jurídico brasileiro, a ações
individuais e a ações coletivas.
A EC n. 45/2004, ao emprestar nova redação ao art. 114 da CF/88,
pôs em realce essa duplicidade de ações de natureza diversa geradas
pela greve, com repercussão na determinação da competência.
De um lado, ao encetar uma readequação do Poder Normativo da
Justiça do Trabalho, o art. 114, §§ 2º e 3º manteve-o de forma muito
mitigada, restringindo a duas as hipóteses de ações coletivas:
1ª) greve em atividades essenciais, mediante provocação do Ministério Público do Trabalho;
2ª) dissídio coletivo de natureza econômica, suscitado em conjunto pelos sindicatos patronal e profissional, quando uma das partes
recusar-se à negociação coletiva ou à arbitragem privada.
De outro lado, o art. 114 inc. II prescreveu que compete à Justiça
do Trabalho processar e julgar “as ações que envolvam exercício do
direito de greve”.
A interpretação sistemática das aludidas normas constitucionais parece conduzir induvidosamente à conclusão de que o art. 114
inc. II concerne às ações individuais entre empregado e empregador, nesta condição, em virtude do exercício do direito de greve, porquanto
das ações coletivas a que a greve também possa dar causa já tratam
os §§ 2º e 3º do art. 114.
Estou convencido de que o art. 114 inc. II passou a encartar na
competência material da Justiça do Trabalho as ações possessórias
entre empregado e/ou sindicato e empregador em face do exercício do
direito de greve.
Como se sabe, a lei brasileira autoriza a defesa judicial da posse, fundamentalmente, mediante três ações: ação de manutenção de posse, em caso
de turbação; ação de reintegração de posse, em caso de esbulho; e interdito proibitório, em caso de justo receio de violência iminente que possa
molestar ou esbulhar a posse. Em qualquer dessas situações, se a turba-
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
175
ção, o esbulho ou a violência iminente à posse deriva do exercício do
direito de greve, a competência para equacionar a lide vem de ser deslocada da Justiça estadual para a Justiça do Trabalho.
Há muito que sustento essa competência da Justiça do Trabalho(9).
Com efeito. Algumas vezes, o empregado ou um grupo determinado de empregados ocupa ou ameaça ocupar a fábrica, o escritório, a
loja, a agência bancária, ou, enfim, o estabelecimento do empregador,
no curso de uma greve, como meio de pressão para obter o acolhimento
de reivindicações trabalhistas. Outras vezes, mediante o uso ou ameaça de violência, inibe-se o acesso ao estabelecimento, impedindo-se o
exercício do direito ao trabalho, ou de obstando-se o exercício de atividade econômica ou profissional.
Situações que tais autorizam o manejo de ação possessória, agora
perante a Justiça do Trabalho.
Se o dissídio alusivo à posse do imóvel, apesar de alheio a uma
prestação derivada do contrato de trabalho, indubitavelmente fere-se entre empregado e empregador, ambos agindo nesta condição, não havia
porquê mesmo negar-se competência ao Judiciário Trabalhista. Em semelhante circunstância, quem atinge o direito de posse é o empregado
atuando como tal, ainda que sob a liderança do respectivo sindicato. O
conflito de interesses trava-se, no fundo, por um comportamento trabalhista qualquer do empregador, agindo igualmente como tal.
No caso, o comprometimento do direito à posse não constitui senão
um seriíssimo incidente ou desdobramento do exercício do direito de greve.
Sabe-se que o dissídio coletivo não é a via idônea nem a que propicia remédio jurídico expedito para a defesa da posse, o que pode alcançar-se apenas com liminar em ação possessória.
No entanto, seria ilógico e inexplicável que à Justiça do Trabalho
fosse dado conhecer e julgar do dissídio coletivo para pacificar a greve,
que igualmente lhe fosse dado equacionar os dissídios individuais para a
caracterização de justa causa por excesso deste ou daquele empregado
no movimento paredista e não se lhe reconhecesse competência para
examinar um outro aspecto do mesmo fato social: a turbação, o esbulho
ou a violência à posse do empregador em virtude da greve.
(9) Vide FRANCO FILHO, Georgenor de Sousa. Competência Material Trabalhista,
São Paulo: LTr, 1994, 256 p.
176
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Semelhante dicotomia da competência para os diferentes aspectos trabalhistas do mesmo fato social poderia, inclusive, ensejar pronunciamentos decisórios conflitantes entre a Justiça do Trabalho e a
Justiça comum, o que só deporia contra o Poder Judiciário, causandolhe desprestígio.
Basta ter em vista o seguinte exemplo: suponha-se que três empregados dirigentes sindicais hajam sido acusados de ocupar violentamente
uma fábrica, no curso de greve; no inquérito para apuração de falta grave,
na Justiça do Trabalho, julga-se incomprovado esse fato; na Justiça comum, em ação de reintegração de posse, dá-se liminar e ganho de causa
definitivo ao empregador, concluindo-se de forma diametralmente oposta.
A nova competência da Justiça do Trabalho, portanto, é medida
ditada pelo mais elementar bom senso, sobretudo a fim de obviar o risco
de decisões discrepantes, em casos que tais.
Mas o campo de incidência do art. 114 inc. II da CF/88 não se
cinge às possessórias intentadas pelo empregador em decorrência do
exercício do direito de greve. Enlaça igualmente na competência da Justiça do Trabalho quaisquer ações individuais trabalhistas propostas por
empregados ou entidades sindicais em face do empregador e destinadas à prevenção e à repressão de conduta anti-sindical patronal que
aflore no curso de uma greve.
Sabe-se que caracteriza conduta anti-sindical qualquer ato do
empregador que afronte a liberdade ou a atividade sindical. Assim por
exemplo, uma despedida massiva de natureza retaliatória ou discriminatória, em virtude de participação em greve, configura conduta anti-sindical passível de repressão na Justiça do Trabalho. Ações desse jaez,
hoje incomuns, tendem a proliferar num ambiente de plena liberdade
sindical, sob os auspícios da desejável ratificação da Convenção n. 87,
da OIT, em direção ao que marchamos inexoravelmente.
Embora questionável, a uma primeira análise parece-me que a competência funcional para as ações de que cogita o art. 114 inc. II da
Constituição Federal deva ser reservada ao Tribunal do Trabalho a
que competir, em tese, o julgamento do dissídio coletivo de greve. Conquanto omissa a lei a respeito, penso que se impõe essa solução ao
menos por duas razões básicas: a um, porque se já instaurado dissídio
coletivo decorrente de greve, a lei manda distribuir por dependência causa
de qualquer natureza, quando se relacionar por conexão ou continência
com outra já ajuizada (CPC, art. 253 inc. I); a dois, porque, de todo
modo, a qualquer tempo o dissídio coletivo poderá ser ajuizado; se as-
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
177
sim é, haveria risco de decisões conflitantes se se adotar a cisão da
competência entre o Tribunal e a Vara do Trabalho para o exame de
aspectos do mesmo exercício do direito de greve em concreto.
7. Juízo crítico — Omissões — Conclusão
Como visto, é certo que a nova redação do art. 114 da Constituição
Federal introduziu alguns avanços significativos na disciplina da
competência material da Justiça do Trabalho.
Cabe agora à Justiça do Trabalho, que tanto lutou para implementar a reforma do Poder Judiciário, reformar-se para cumprir a notável
missão de que vem de ser investida.
Desafortunadamente, todavia, o conjunto de normas dos diversos
incisos da atual redação do art. 114 está longe de espelhar uma regulamentação ideal, pois se ressente de importantes imperfeições técnicas
e, sobretudo, de graves omissões.
Em primeiro lugar, salta à vista que o texto está vazado de uma
redação infeliz e tecnicamente imprópria ao dispor, repetidas vezes (art.
114), que compete à Justiça do Trabalho processar e julgar “as ações”
que menciona. Evidentemente, a Justiça do Trabalho soluciona “dissídios” ou lides que lhe são submetidos mediante o exercício do direito
de ação. Não julga, portanto, “ação”, cujo conceito é diverso.
Em segundo lugar, como busquei demonstrar, há grave contradição entre os incisos I (relação de trabalho) e IX (relação de trabalho, na
forma da lei) do art. 114.
Em terceiro lugar, também é profundamente infeliz o art. 114 inc. V
ao atribuir competência à Justiça do Trabalho para julgar “conflito de
competência entre órgãos com jurisdição trabalhista”. Naturalmente,
os conflitos de competência não são julgados pela Justiça do Trabalho, mas unicamente pelos Tribunais do Trabalho, porquanto tão-somente os tribunais têm ascendência hierárquica sobre os órgãos em
conflito para determinar o competente no caso concreto. Baralhou-se aí
flagrantemente a disciplina da competência material da Justiça do Trabalho com a disciplina da competência funcional ou hierárquica dos
tribunais do trabalho, o que é muito diverso.
Sobretudo, todavia, o texto aprovado incorre também em várias e
graves omissões no particular. Com efeito, não inscreve na competência da Justiça do Trabalho:
178
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
a) dissídio individual oriundo do cumprimento das decisões da Justiça do Trabalho (art. 114 fine na redação originária da CF/88); são
as chamadas lides derivadas, que, em boa hora, a atual Carta
Magna, colmatando grave lacuna da Constituição anterior, havia
confiado à Justiça do Trabalho, e que a autorizava processar e
julgar, por exemplo, os embargos de terceiro(10);
b) silencia completamente sobre a competência dos Tribunais do
Trabalho para o dissídio coletivo de natureza jurídica.
De tudo quanto se expôs pode-se concluir que, malgrado importantes aperfeiçoamentos, persiste insatisfatório, deficiente e lacunoso o disciplinamento normativo constitucional da competência material da Justiça
do Trabalho.
Não é difícil antever, lastimavelmente, que tal circunstância decerto
conspirará contra a desejável celeridade e efetividade do processo do
trabalho, bem assim concorrerá para ratificar, uma vez mais, o acerto da
afirmativa de Henri de Page:
“As questões sobre competência são a praga da Justiça.”
(10) Felizmente, o Senado Federal aprovou o acréscimo do inciso X ao art. 114, restabelecendo e até ampliando a competência da JT para “os litígios que tenham origem no
cumprimento de seus próprios atos e sentenças, inclusive coletivas”. O texto, todavia,
retorna à Câmara dos Deputados. Daí por que, no interregno entre a publicação da EC n.
45/2004 e a eventual aprovação dessa norma pela Câmara, teremos um período em que
a Justiça do Trabalho irá ressentir-se dessa seriíssima lacuna.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
179
Justiça do Trabalho: A Justiça do Trabalhador?
Jorge Luiz Souto Maior (*)
A recente Reforma do Judiciário, acatando o clamor advindo dos
próprios juízes trabalhistas, acabou por ampliar a competência da Justiça do Trabalho. O atual art. 114(1) da Constituição Federal, modificado
pela Emenda Constitucional n. 29/04, assim dispõe:
“Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:
I — as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de
direito público externo e da administração pública direta e indireta da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, exceto os
servidores ocupantes de cargos criados por lei, de provimento efetivo
ou em comissão, incluídas as autarquias e fundações públicas dos
referidos entes da federação;
II — as ações que envolvam exercício do direito de greve;
III — as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre
sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores;
IV — os mandados de segurança, habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição;
V — os conflitos de competência entre órgãos com jurisdição trabalhista, ressalvado o disposto no art. 102, I, o;
VI — as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho;
VII — as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos
empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho;
VIII — a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art.
195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças
que proferir;
IX — outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na
forma da lei.”
(*) Juiz do Trabalho, titular da 3ª Vara de Jundiaí/SP. Professor livre-docente de Direito
do Trabalho da Universidade de São Paulo (USP).
(1) O artigo foi escrito às vésperas da promulgação da EC n. 45 e desconsiderou a
inclusão dos servidores estatutários na competência da Justiça do Trabalho.
180
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Vou tentar ater-me, na presente análise, a um dos aspectos da
alteração, qual seja, a menção feita no inciso I de que a Justiça do Trabalho é competente para julgar os conflitos oriundos da “relação de trabalho”,
sem a limitação que antes havia no sentido de que em um dos pólos
dessa relação estivesse um empregador, o que fazia pressupor que a
relação de trabalho, sujeita à jurisdição trabalhista, era, unicamente,
a relação de emprego, conforme caracterizada nos arts. 2º e 3º da CLT
(trabalho prestado por uma pessoa física a uma outra pessoa física ou
jurídica, de forma não eventual, subordinada e remunerada).
Com a presente alteração, portanto, não apenas os conflitos oriundos
das relações de emprego são da competência da Justiça do Trabalho,
mas também os conflitos que nasçam de quaisquer relações de trabalho.
Há, no entanto, vários problemas que decorrem dessa inovação e
que precisam ser enfrentados. Esses problemas são tão complexos, que a
presente análise não pode ser tida senão como uma primeira impressão
sobre o tema, sujeita aos necessários complementos e discordâncias
da doutrina, para que possa ser, futuramente, repensada.
O primeiro problema diz respeito, exatamente, ao alcance da expressão “relação de trabalho”.
Sabe-se que a Justiça do Trabalho é uma justiça especial, organizada fora dos padrões da Justiça Comum. Por princípio, os conflitos de
interesses são julgados pela Justiça Comum. Esta competência natural da Justiça Comum só é quebrada por dispositivo constitucional que
transfira a competência, para apreciar determinados conflitos, a uma
das Justiças especializadas da estrutura judiciária.
Se é assim, parece-me de plano ter incorrido em grave erro o legislador ao remeter para a justiça especial do trabalho certos conflitos, sem
a especificação precisa quanto a quais conflitos se refere. Há uma impropriedade de ordem lógica na proposição ao se atribuir a uma justiça
especializada uma competência baseada em termos genéricos.
Quais conflitos, efetivamente, estão abrangidos na expressão
“relação de trabalho”? Perguntam-se todos! Uns têm a resposta na
ponta da língua e dizem logo que esta indagação é despropositada,
mas, para outros, a resposta não é tão evidente, e é possível prever uma
certa divergência quanto ao sentido da expressão. Por exemplo, o conflito
oriundo da relação jurídica que se forma entre um médico e seu cliente
está sujeito à jurisdição da Justiça do Trabalho? E o conflito entre pas-
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
181
sageiro e taxista? E o conflito entre o advogado e seu cliente? E o conflito entre duas empresas, em que uma se compromete a prestar serviços à
outra? E o conflito entre uma empresa e um ente estatal, no que se
refere à execução de serviços determinados? E o conflito da prestação
de serviço de um encanador a um condomínio ou a uma residência? E o
conflito entre um escritor e a editora? E o conflito entre o “dono da obra”
e a construtora? E o conflito entre uma oficina mecânica e o dono do
automóvel? E o conflito entre o proprietário de um computador e a empresa de computação, ou um técnico, que lhe presta assistência?
Lembre-se, ademais, que dessas relações podem resultar conflitos
de interesses no que tange à execução do contrato, mas também ações
por perdas e danos por responsabilidade civil.
Imaginem várias outras situações que possam ser, razoavelmente,
inseridas no contexto destas indagações e suponham, então, uma realidade, que está por vir, brevemente, em que cada um dos juízes estaduais,
por este Brasil afora, dando as suas respostas a todas as indagações
sugeridas e remetendo, em seguida, para a Justiça do Trabalho, os processos em curso, que estejam abrangidos, segundo sua convicção, à
jurisdição trabalhista e imaginem, em seguida, por que não se deve prender as asas da imaginação, cada um dos juízes do trabalho, que recebam esses processos, avaliando os casos sob a sua ótica e suscitando,
ou não, conflitos negativos de competência. E, neste aspecto, abre-se
um parêntese para formular outra indagação: qual o órgão competente
para a solução deste conflito de competência? Antes da Reforma era o
Superior Tribunal de Justiça, agora, parece-me que se pode, razoavelmente, dizer que a competência é da Justiça do Trabalho, no caso do
Tribunal Superior do Trabalho, pois nos termos do inciso é da competência desta Justiça “processar e julgar os conflitos de competência entre
órgãos com jurisdição trabalhista”, e como se está determinando, em
concreto, se uma determinada questão trabalhista é da Justiça do Trabalho ou da Justiça Comum se está reconhecendo que as duas Justiças
têm jurisdição trabalhista, ainda que com alcances distintos, e, assim o
conflito entre ambas, nesta matéria de ordem trabalhista, é da competência da Justiça do Trabalho. Além do mais, seria mesmo ilógico que
fosse a Justiça Comum, neste momento crucial, quem determinasse a
delimitação da competência da Justiça do Trabalho.
De todo modo, o importante é perceber que embora o mesmo texto
da Reforma do Judiciário, que fixou a presente alteração, tenha estabelecido como direito do cidadão a “razoável duração do processo” (art. 5º,
182
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
inc. LXXVIII), esqueceu-se o legislador, ou não quis lembrar, que um dos
principais motivos de retardo da lides é, precisamente, a discussão que
se trava em torno de algumas divergências de ordem processual (os tais
incidentes processuais) e a controvérsia em termos de competência que
se trava entre os diversos seguimentos da Justiça representa um grave
dano para a celeridade processual, conforme já destacara, há muito tempo,
Mauro Cappelletti, em seus estudos sobre o acesso à justiça.
O fato é que as reformas processuais no afã de ajudar a eliminar
algumas barreiras do acesso à Justiça, podem, paradoxalmente, criar
outras (vide exemplo das Leis ns. 9.957/00 e 9.958/00).
Eis, portanto, um importante dado do qual a sociedade precisa ter
conhecimento: um dos maiores culpados pela demora do processo é o
próprio legislador, que legisla mal, muitas vezes criando mais conflitos
do que esclarecendo as relações sociais.
Voltando a questão proposta, de definir o alcance da expressão
“relação de trabalho”, a primeira observação que fica, portanto, é a de
que cabe à doutrina e à jurisprudência, conseqüentemente, posicionarem-se a respeito, enfrentando a difícil tarefa de fixar um sentido mais
preciso à mencionada expressão.
Nesta discussão, por óbvio, estarão em pólos opostos os que pretendem atribuir um sentido mais amplo à expressão e os que a querem ver
restritivamente. Os motivos, de uns e de outros, serão múltiplos, mas
estarão sempre escudados pela linguagem jurídica. As armas dessa linguagem serão extraídas, com maior intensidade, da hermenêutica jurídica, ou, mais propriamente, da utilização das técnicas de interpretação.
Os que almejam o sentido amplo poderão valer-se da interpretação
histórica, dizendo que como o texto atual retirou o limite fixado pela
competência em razão das pessoas (extração da palavra “empregador”
do Texto Constitucional, como apontado anteriormente), houve a nítida
intenção do legislador em ampliar a competência da Justiça do Trabalho.
Poderão dizer, também, que onde o legislador não discrimina não cabe
ao intérprete fazê-lo. Dirão, ainda, que a expressão é inequívoca: relação
de trabalho é relação de trabalho, e, portanto, todo conflito que envolve
trabalho esta sujeito à jurisdição trabalhista.
Os contrários a esta idéia poderão utilizar o argumento de que o
art. 114 constitui uma exceção à regra no critério de fixação de competências e, portanto, por aplicação de princípio hermenêutico, deve ser
interpretado restritivamente, pois assim se consideram as normas que
criam exceções no sistema jurídico.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
183
Outros argumentos, evidentemente, podem ser utilizados por uns
e por outros. O fato é que, como dito, a questão não é nítida e, portanto,
não está isenta de discussões.
Com relação à posição que pende para a ampliação irrestrita da
competência, uma constatação, no entanto, faz-se necessária. O dispositivo constitucional em análise não faz distinção entre pessoas físicas
ou jurídicas enquanto realizadoras de trabalho para fins de fixar a competência e se o sentido da expressão não pode ser restringido pelo intérprete como se poderia fazê-lo para afastar os conflitos entre empresas,
conforme mencionado nos exemplos acima?
Assim, forçosamente, se atrairiam para a competência da Justiça
do Trabalho todos os conflitos em que a prestação de um serviço, ou
execução de trabalho, fosse o objeto da vinculação, independente da
condição das partes do negócio jurídico realizado.
Esta conclusão, no entanto, levaria a um absurdo, ferindo todo e
qualquer raciocínio baseado nos pressupostos da lógica, valendo recordar, por oportuno, que se trata de princípio fundamental da hermenêutica
que a interpretação da lei não pode conduzir ao absurdo.
Onde está o absurdo? O absurdo é que se levarmos a fundo esta
proposição, constataremos que há trabalho em praticamente todas as
relações sociais. Restariam para a Justiça Comum, por conseguinte, os
conflitos decorrentes das relações de família, sucessão, comércio (sem
prestação de serviço), e defesa da propriedade. Em suma, a Justiça do
Trabalho seria a Justiça Comum e a Justiça Comum passaria a ser a
Justiça especial.
Por mais que se queira ampliar o poder da jurisdição trabalhista
(baseado na equivocada idéia de que competência é poder) uma tal conclusão não tem como ser sustentada.
Neste aspecto é importante, ainda, acrescentar que a estrutura do
Judiciário trabalhista não comporta a sobrecarga de trabalho que daí adviria e mesmo que se imaginasse que o advento da ampliação da competência serviria, justamente, para conseguir a melhora na estrutura do
Judiciário trabalhista, esta, a estrutura, não vem da noite para o dia e,
além disso, jamais virá na proporção da real necessidade e ainda que
venha, quando vier o caos já estará instalado e nunca mais será recuperado. Esta advertência, um tanto apocalíptica, aliás, serve igualmente,
embora com menor alarde, para a hipótese em que se entenda de modo
restrito a expressão “relação de trabalho”.
184
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Os teóricos, muitas vezes, estão alheios à realidade e, na avaliação
dos efeitos da aplicação de uma lei, a realidade não poderia jamais ser
desconsiderada. No último ano, vivenciei a experiência de uma Vara com
serviços acumulados. Conclusão: para pôr os serviços em dia, não basta
trabalhar muito (de forma até sobre-humana). Numa Vara, serviço chama
serviço. Assim, tentando tirar o atraso do serviço, produz-se em dobro,
mas o resultado é que o volume do serviço aumenta em quádruplo e,
conseqüentemente, o atraso permanece ou até aumenta (e as forças de
trabalho se esgotam). Apenas com mutirão e programação a longo prazo
é que as coisas podem voltar ao normal. Sem servidores suficientes, sem
estrutura física e sem aparelhamento tecnológico não é possível sequer
vislumbrar uma luz no fim do túnel. Em suma, ampliar competência, sem
antes criar a estrutura compatível é matar por asfixia.
O pior dessa situação é que quem morre é o verdadeiro “paciente” da
Justiça do Trabalho, o ex-empregado, que teve sua força de trabalho explorada no contexto empresarial de outrem e que não recebeu seus direitos trabalhistas, com caráter alimentar. Deve-se reconhecer, ademais,
que sequer a Justiça do Trabalho tem sido eficiente para cuidar dos interesses desse “paciente” e há uma imensa gama de lides trabalhistas reprimidas exatamente por este motivo. A Justiça do Trabalho cumpriria
melhor seu papel se buscasse a eficiência na execução desse relevante
serviço social: fazer valer, em concreto, os direitos trabalhistas.
Não se pode esquecer, a propósito, que se existe uma justiça especializada em questões trabalhistas, isto se deve a uma razão de ordem histórica. A Justiça do Trabalho, pelo mundo afora, foi criada para
que se formassem juízes especializados em questões sociais, que pudessem julgar os conflitos oriundos do conflito capital-trabalho fora dos
parâmetros marcados pelo direito civil e o seu pacta sunt servanda.
Claro, pode-se questionar: nos dias de hoje, dadas as mudanças
no mundo do trabalho, haveria ainda a luta entre o capital e o trabalho,
que exija uma Justiça especializada voltada a regular esses interesses,
protegendo o trabalhador? Ou, ao contrário, não estariam os “parceiros
sociais” aptos a regular os seus próprios interesses, devendo, então, a
Justiça do Trabalho procurar uma outra razão para existir?
Partindo do pressuposto de que nos dias presentes, diante das
diversas formas tecnológicas de produção, é muito difícil a identificação
plena do empregado típico, aquele previsto na CLT, que presta serviços
de forma não eventual, subordinada e remunerada a um empregador, e
como os trabalhos são pulverizados e não sendo tarefa fácil até saber
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
185
para quem se está prestando serviços, passa a ser verdadeiro desafio
reconhecer a relação de emprego, e sendo este tipo de trabalho cada
vez mais freqüente, quando se pensa na sobrevivência da Justiça do
Trabalho, chega-se, inevitavelmente, à conclusão de que se deve ampliar
a sua competência.
Esta visão, no entanto, data venia, pelo menos por um aspecto é
equivocada, pois embora tenha como pressuposto a nobre preocupação
de preservar da Instituição, deixa de lado a importante questão de se
avaliar a qual finalidade ela estará servindo. Obtém-se o argumento lógico
e até econômico da preservação da Justiça do Trabalho (aliás, sobre o
prisma econômico parece que estamos indo muito bem, pois após a
Emenda Constitucional n. 28 e arrecadação dos créditos previdenciários
que decorrem das nossas decisões, estamos dando lucro para os cofres
públicos), mas despreza-se o diálogo acerca da função precípua da Justiça do Trabalho, ao mesmo tempo em que legitima a neo-opressão do
capital sobre o trabalho, que se baseia na ideologia de que na modernidade não há mais o conflito entre o capital e o trabalho, sendo capital e
trabalho partícipes de um mesmo empreendimento, autênticos parceiros.
Entretanto, para quem observa, cotidianamente, a realidade das
relações de trabalho, não há como negar que a lógica do conflito persiste, e até de forma ainda mais perversa, pois que se esconde atrás de
uma ideologia hegemônica, que nos obstrui o acesso ao mundo dos
fatos. Por exemplo, é lugar comum a idéia de que a tecnologia gerou o
desemprego em massa, mas no Brasil quem emprega são as pequenas
e médias empresas onde ainda está muito longe de chegar a tal Revolução tecnológica. Além disso, quem, lembrando do seu árduo cotidiano
na Vara do Trabalho, pode dizer que já passou um dia de audiências
sem constatar pelo menos um caso em que a reclamada quase gasta
mais dinheiro para contestar a reclamação do que gastaria para pagar o
direito demandado (muitas vezes apenas verbas rescisórias incontroversas).
Se forem 3 ou 4 reclamadas, na hipótese de terceirização, então, essa
equação será certamente negativa.
O fato é que a opressão do capital sobre o trabalho se mantém,
mas tem sido camuflada por um certo fatalismo imposto pelas “exigências
advindas dos avanços tecnológicos”, pelo implemento de “novas técnicas administrativas” e por uma interminável “crise econômica” (de onde
advém expressões incompreensíveis, tais como, “superávit” primário, índices “Dow Jones” e Nasdaq, a fúria de um certo senhor Mercado e o
acalanto estonteante de uma espécie de deusa, a Globalização).
186
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Abstraídas as peculiaridades do novo tempo, a opressão do capital
sobre o trabalho existe e negar este dado é o primeiro passo para permitir que ela continue operando, impunemente.
Ora, se assim é, parece-me que antes de brandir a bandeira da
elevação da competência da Justiça do Trabalho, para atingir conflitos
de trabalhadores não empregados, é importante, relembrar que a lógica
da existência de uma justiça especializada reside, exatamente, na necessária capacidade que os julgadores devem ter para compreender os
conflitos que, naturalmente, se originam do choque de interesses entre
o capital e o trabalho.
O direito na era dos direitos humanos tem no desafio contínuo de
impor uma ética humanitária à lógica do capital a sua razão de existir, e
a Justiça do Trabalho, como aplicadora e criadora desse direito, também
tem a razão própria de sua existência vinculada a este objetivo e não ao
de dar lucro aos cofres da União ou de, simplesmente, legitimar as novas técnicas produtivas. Em recente palestra proferida na Escola da
Magistratura da 15ª Região, Campinas, o professor Antoine Jeammaud,
importante jurista francês, destacava o papel recentemente assumido
pela Corte de Cassação francesa, no sentido de impor limites ao propósito do lucro fácil e imediato buscado pelo atual capitalismo financeiro,
fixando parâmetros, pelo menos, para o incremento de um “capitalismo
responsável”. Neste sentido, por exemplo, mesmo sem uma previsão
legal específica a jurisprudência impôs ao empregador o dever de especificar na carta de dispensa os fatos que motivaram a sua decisão de
dispensar o empregado (que segundo a lei devem refletir uma causa real
e séria), não se podendo fugir do limite fático fixado na carta em eventual
discussão judicial sobre a dispensa.
Antes, portanto, de nos curvarmos a certas evidências, que nos
são impostas retoricamente e de forma até estratégica quando se põe
em jogo a extinção da Justiça do Trabalho, desviando o foco de nossa
atenção, pois a sobrevivência fala mais alto que qualquer ideal, pareceme necessário sair do dilema da sobrevivência e passar a examinar,
com maior cuidado e coragem, a realidade imposta pelos atuais modos
de produção, buscando a efetiva proteção da figura humana do trabalhador em face daquele que explora o seu trabalho.
A Justiça do Trabalho não enfrentará este desafio apenas atraindo
para si competência para julgar conflitos de trabalhadores não empregados, porque para os não empregados a proteção trabalhista ou não se
justifica ou se impõe, e neste caso, então, o que se tem, na verdade, é
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
187
uma fraude ao direito trabalhista, denominando-se de trabalhador não
empregado um autêntico empregado. Claro que, diante das novas formas de produção, essa configuração às vezes é difícil, mas este é o real
desafio a ser enfrentado, vislumbrando, juridicamente, a quem pertence
a obrigação pelo adimplemento dos direitos trabalhistas, inscritos na
órbita dos direitos humanos, vale lembrar.
Assim, parece-me que não está autorizada a interpretação ampliativa da expressão relação de trabalho.
O mais correto mesmo, portanto, é dizer que, malgrado a intenção
do legislador, não se ampliou a competência da Justiça do Trabalho para
julgar conflitos, no âmbito das relações individuais, oriundos de outras
relações de trabalho que não se caracterizam como relação de emprego.
Mas, já prevendo que uma tal interpretação não prevalecerá, diante
dos interesses pragmáticos em jogo, não posso deixar, então, de apresentar uma interpretação que, baseada na lógica do malmenor, possa
permitir uma ampliação da competência da Justiça do Trabalho, no que se
refere a outros tipos de relação de trabalho, sem eliminar, completamente,
a sua razão de ser, enquanto estrutura especial do Poder Judiciário.
Nesta linha de preocupação, no entanto, primeiramente, é crucial
deixar fincado o pressuposto de que a Justiça do Trabalho não pode
perder o foco de sua atenção, que é regular (processar e julgar) os conflitos de interesses entre o capital e o trabalho (e num mundo capitalista
este conflito, ainda que por formas diversas e cada vez mais inovadoras,
sempre existirá, a não ser que seja superado por sistemas de produção
verdadeiramente socialistas, em que trabalho e capital fundem-se nas
mãos das mesmas pessoas).
Em segundo lugar, não prevalecendo a negativa da ampliação da
competência, há de se reconhecer, pelo menos, que a competência
da Justiça do Trabalho limita-se, natural e logicamente, às relações de
trabalho que sejam próximas de uma relação de emprego, nas quais se
possa vislumbrar uma espécie de exploração do trabalho alheio para a
consecução de objetivos determinados (sendo marcante o conflito capital-trabalho ainda que com outra roupagem). Como critérios determinantes dessa limitação, alguns aspectos devem ser, necessariamente, observados: a pessoalidade na prestação de serviços (ainda que sob a
forma de pessoa jurídica); a precariedade empresarial do prestador de
serviços; e a exploração da mão-de-obra para a satisfação dos interesses empresariais ou econômicos de outrem.
188
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Dos exemplos supracitados, portanto, estariam fora do âmbito da
competência da Justiça do Trabalho, os conflitos oriundos das relações
jurídicas que se formam entre um médico e seu paciente; entre o passageiro e o taxista; entre o advogado e seu cliente; entre duas empresas, em que uma se compromete prestar serviços à outra (a não ser que
os serviços sejam prestados pessoalmente e for marcante a precariedade empresarial da prestadora); entre uma empresa e um ente estatal, no
que se refere à execução de determinados serviços (com a mesma ressalva anterior); entre o “dono da obra” e a construtora; entre uma oficina
mecânica e o dono do automóvel; entre o proprietário de um computador
e a empresa de computação, que lhe presta assistência.
A competência estaria ampliada, portanto, para julgar conflitos como:
representante comercial; o trabalhador autônomo, cujo trabalho é explorado economicamente por outrem (um médico e o Hospital; um advogado e o escritório de advocacia; um escritor e o jornal), o trabalhador
autônomo que presta serviços e que constitui uma atividade empresarial
precária (o encanador; o jardineiro; o pequeno empreiteiro etc.).
Em suma, a existência da Justiça do Trabalho continua se relacionando à regulação de conflitos entre o capital e o trabalho, atingindo, a
partir de agora, outras formas de exploração da mão-de-obra que se
foram criando ao longo dos anos e que não se incluem, por qualquer
razão, no padrão jurídico da CLT.
Quanto à matéria a ser perseguida, por óbvio, esta não se limita
aos direitos trabalhistas. O direito discutido em tais relações, alheias às
relações de emprego, é o direito civil. Quanto a isto, no entanto, não
vislumbro nenhum problema, pois o juiz do trabalho, como nenhum outro, está mais acostumado com a interdisciplinaridade, estando apto a
lidar com o direito civil. Aliás, diante das recentes mudanças sofridas
pelo direito civil, que remexeu vários de seus dogmas liberais, pareceme até mesmo que os juízes do trabalho estão muito mais aptos a lidar
com os novos princípios do direito civil (sobretudo boa-fé, abuso de direito e debilidade presumida da parte economicamente mais frágil) que o
próprio juiz civilista. Neste sentido, ademais, no julgamento dessas novas questões a jurisprudência poderá, até mesmo, incrementar a aplicação de certos direitos trabalhistas às ditas relações jurídicas, o que se
fará, certamente, em benefício da salubridade da sociedade.
Neste sentido, cabe lembrar que vários direitos trabalhistas, como
remuneração justa, limitação da jornada de trabalho, igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, não discriminação de qualquer natu-
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
189
reza, por exemplo, são direitos inscritos na Declaração Universal dos
Direitos do Homem, não sendo, portanto, direitos exclusivos de trabalhadores empregados.
Fugindo um pouco do objetivo proposto neste texto, mas com ele
guardando estreita ligação, não posso deixar de expressar minha convicção no sentido de que, em decorrência do acatamento da idéia de que
a solução dos conflitos oriundos de outras relações de trabalho passou à
Justiça trabalhista, por conseqüência inevitável estão abrangidos nesta
competência os conflitos decorrentes de acidente do trabalho. Na verdade, desde à promulgação da Constituição de 1988 esta competência já
seria da Justiça do Trabalho, mas por uma interpretação equivocada chegou-se à conclusão diversa.
O fato é que, agora, com a ampliação da competência da Justiça
do Trabalho para outras lides, que não apenas trabalhistas stricto sensu,
atrai-se para a Justiça do Trabalho a aplicação de outros direitos materiais,
que regulam essas relações. Não há, portanto, o impedimento que antes
se via, equivocado, vale dizer, da Justiça do Trabalho julgar conflitos
aplicando outros direitos que não o trabalhista. Ora, se a Justiça do
Trabalho pode a partir de agora solucionar um conflito de um trabalhador
autônomo, nos moldes acima ditos, aplicando o direito civil, com muito
mais razão, deve esta mesma Justiça solucionar o conflito que se origina da relação de emprego típica, ainda que para tanto tenha que se valer
de regras do direito comum. Seria completamente ilógico dizer que a
Justiça do Trabalho regula todos os conflitos do trabalho, para proteção
das diversas formas de exploração do trabalho, e, ao mesmo tempo,
sustentar que está fora da competência do trabalho a pretensão do empregado (o trabalhador subordinado) de ser indenizado pela ocorrência
de acidente do trabalho, ainda mais lembrando-se que os acidentes do
trabalho constituem-se, talvez no principal fundamento histórico (fonte
material) para o surgimento da legislação trabalhista.
Além disso, embora no itinerário da votação da Emenda o inciso
em que se atribuía, expressamente, essa competência à Justiça do Trabalho fora deixado de lado, o texto do atual art. 114, em seu inciso VI,
não deixa margem à dúvida quanto a ser da competência da Justiça do
Trabalho a apreciação das ações de indenização por dano moral ou
patrimonial, decorrentes da relação de trabalho.
Por fim, sobressalta a completa falta de noção do legislador no que
se refere à alteração que impôs na matéria. No inciso I, diz que a Justiça
do Trabalho é competente para processar e julgar as ações oriundas da
190
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
relação de trabalho e no inciso IX, mantendo o que já havia no antigo art.
114, fixou que também são da competência da Justiça do Trabalho “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei”.
Ora, antes a menção tinha sentido porque se pretendia trazer para a
Justiça do Trabalho a competência para julgar outras matérias que fossem decorrentes das relações de emprego, ou seja, que a Justiça do
Trabalho, julgando conflitos típicos trabalhistas, pudesse processar e
julgar, igualmente, conflitos de interesses não restritamente trabalhistas. Agora, como as demais relações de trabalho, que não a de emprego, regulam-se pelo direito civil, toda matéria jurídica pertinente às ditas
relações é, naturalmente, da Justiça do Trabalho e, por conseqüência e
com maior razão, também toda matéria jurídica que decorra das relações de emprego. Assim, pelo menos sob o aspecto dos conflitos individuais, não tem o menor sentido a fórmula contida no inciso IX. Reparese que o inciso em questão não trata dos tipos de relação de trabalho,
sujeitos à competência da Justiça do Trabalho, como se está debatendo
neste texto, mas de “outras controvérsias”, como se a matéria aplicável
à Justiça do Trabalho estivesse, ainda, limitada às relações de emprego.
Pois bem, ainda que contrário à idéia, o fato é que a ampliação da
competência da Justiça do Trabalho no que se refere a outras relações
de trabalho, embora politicamente equivocada, parece, juridicamente,
inevitável. Ainda que possam advir benefícios com a mudança, estes só
se efetivarão se os necessários limites quanto à interpretação da expressão “relação de trabalho” forem respeitados. Sem uma verificação
atenta dos efeitos perversos que podem vir em razão da busca indiscriminada e desmedida de elevação de poder, pela ampliação ilimitada da
competência, ao invés de estarmos salvaguardando os interesses da Justiça do Trabalho, na verdade, poderemos estar confundindo com os nossos interesses pessoais os interesses da sociedade, e conduzindo a
Justiça do Trabalho a um caos estrutural e a uma completa perda de
identidade quanto a suas reais funções, alimentando os argumentos
(neoliberais e tendenciosos) dos que pregam a sua extinção, o que sequer precisará se dar formalmente, pois que já terá ocorrido na essência.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
191
Primeiras Linhas sobre a Nova Competência da
Justiça do Trabalho Fixada pela Reforma do
Judiciário (EC n. 45/2004)
José Affonso Dallegrave Neto (*)
Introdução
Após 13 anos de tramitação no Congresso e a realização de inúmeros debates acerca da matéria, por parte dos representantes do Executivo, da Magistratura e da Advocacia, foi promulgada a Emenda Constitucional n. 45/2004, a qual ficou alcunhada como “Reforma do Judiciário”,
albergando alguns pontos de consenso, sem prejuízo de posterior complemento de outras questões salutares por parte do poder constituinte
derivado-reformador(1) .
Para os operadores do direito do trabalho, as alterações foram substanciais, implicando sensível aumento da competência material da Justi(*) Advogado. Mestre e Doutor em Direito pela UFPR. Professor da APEJ e da FIC.
Professor convidado da Faculdade de Direito de Lisboa. Membro do Instituto dos
Advogados Brasileiros e da Academia Nacional de Direito do Trabalho.
(1) Segundo escólios de Gisela Maria Bester, há um problema de incoerência terminológica acerca do poder instituído, derivado, constituído ou reformador. “Ora, afastar a imprecisão terminológica é tarefa fácil, bastando considerar que, em primeiro
lugar, ele não pode ser constituinte, porque nada constitui, ao contrário, é constituído;
em segundo lugar, dizer apenas que é instituído, constituído ou derivado está certo,
porquanto realmente ele é instituído, constituído ou derivado do poder constituinte
originário, mas não faz jus à sua função, à sua vocação original, pela qual é definido,
qual seja, a de reformar a Constituição. Logo, o mais correto é dizê-lo instituído,
derivado ou constituído, mas não separadamente, e sim juntando ao nome a sua
função, qual seja, reformador ou de reforma. Afastada qualquer dúvida a respeito de
sua denominação, temo que o poder constituído reformador é instituído pelo poder
constituinte originário e deste retira força e a legitimidade para reformar a Constituição
de um Estado, (...) a qual pode ser realizada via revisão ou emendas. In: Direito
Constitucional, volume 1. Fundamentos teóricos. São Paulo: Manole, 2005, p. 195/
196. Preferimos a expressão poder constituinte-derivado reformador para demonstrar que ele é derivado do poder constituinte (originário) e é reformador pelas razões
expendidas pela professora Gisela Bester.
192
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
ça do Trabalho, conforme ilação da simples leitura da nova redação do
art. 114 da CF. Outras questões circunscritas ao direito laboral também
merecem menção a título ilustrativo, tais como:
— Retorno à composição original para o Tribunal Superior do Trabalho: dos atuais 17 Ministros a Casa retorna aos 27 Ministros previstos na CF/88 e que foi reduzida em razão da extinção do cargo de
ministros classistas.
— Instalação de Varas Itinerantes do Trabalho, nos termos do art.
115, § 1º.
— Exigência de três anos de atividade jurídica para o ingresso na
carreira de magistrado, nos termos do art. 93, inciso I.
— Vedação do exercício da advocacia por três anos para os juízes
aposentados ou exonerados no juízo ou Tribunal do qual se afastaram, art. 95, inciso V.
1. A nova redação do artigo 114 da CF
Dada a importância do tema e por questão didática, registramos
um quadro comparativo entre a redação anterior e posterior à EC n. 45/
2004, relativa ao art. 114 da Constituição Federal:
Art. 114. Compete à Justiça do Tra- Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios balho processar e julgar:
individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos
os entes de direito público externo e
da administração pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na
forma da lei, outras controvérsias
decorrentes da relação de trabalho,
bem como os litígios que tenham
origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas.
I — inexistente
I — as ações oriundas da relação
de trabalho, abrangidos os entes de
direito público externo e da administração pública direta e indireta da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
193
II — inexistente
II — as ações que envolvam exercício do direito de greve;
III — inexistente
III — as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e
entre sindicatos e empregadores;
IV — inexistente
IV — os mandados de segurança,
habeas corpus e habeas data,
quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição;
V — inexistente
V — os conflitos de competência entre
órgãos com jurisdição trabalhista,
ressalvado o disposto no art. 102, I, o;
VI — inexistente
VI — as ações de indenização por
dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho;
VII — inexistente
VII — as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos
empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho;
VIII — inexistente
VIII — a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art.
195, I, a, e II, e seus acréscimos
legais, decorrentes das sentenças
que proferir;
IX — inexistente
IX — outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei.
§ 1º Frustrada a negociação coletiva,
as partes poderão eleger árbitros.
§ 1º Não alterado
§ 2º Recusando-se qualquer das partes à negociação ou à arbitragem, é
facultado aos respectivos sindicatos
ajuizar dissídio coletivo, podendo a
Justiça do Trabalho estabelecer
normas e condições, respeitadas as
disposições convencionais e legais
mínimas de proteção ao trabalho.
§ 2º Recusando-se qualquer das
partes à negociação coletiva ou à
arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho
decidir o conflito, respeitadas as
disposições mínimas legais de
proteção ao trabalho, bem como as
convencionadas anteriormente.
194
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
§ 3º Compete ainda à Justiça do Trabalho executar, de ofício, as contribuições sociais previstas no artigo
195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que
proferir.
§ 3º Em caso de greve em atividade essencial, com possibilidade de
lesão do interesse público, o Ministério Público do Trabalho poderá ajuizar dissídio coletivo, competindo à Justiça do Trabalho decidir
o conflito. (NR)
Como se vê, são inúmeras e relevantes as alterações do referido
dispositivo que amplia a competência material da Justiça do Trabalho
em prestígio a esse órgão judicante. Resta saber, no entanto, se foram
acertadas as modificações e se, efetivamente, a justiça laboral encontra-se aparelhada de forma suficiente e proporcional ao alargamento de
sua alçada ou, ao contrário, a Justiça do Trabalho ficará congestionada
em detrimento da célere solução do crédito alimentício que agora disputará espaço na pauta com outras espécies de lides. Isso talvez só o
tempo possa esclarecer, contudo alguns questionamentos e comentários, ainda que incipientes, merecem ser delineados nesse instante de
recém-promulgação de tão importante Emenda Constitucional.
2. Competência para julgar as ações dos servidores públicos —
Exegese do art. 114, inciso I
Após flagrante hesitação, o texto promulgado deixa claro que a nova
competência da Justiça do Trabalho inclui todas as formas de relação de
trabalho e não mais apenas as relações de emprego entre trabalhadores e
empregadores, bem como as relações de trabalho que envolvam entes de
direito público externo e de toda a administração pública direta e indireta
em seus três níveis(2). Observa-se que havia, no texto anterior, exclusão
expressa dos funcionários públicos estatutários, assim constando:
I — AS AÇÕES ORIUNDAS DA RELAÇÃO DE TRABALHO, ABRANGIDOS OS ENTES DE DIREITO PÚBLICO EXTERNO E DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DIRETA E INDIRETA DA UNIÃO, DOS ESTADOS, DO
DISTRITO FEDERAL E DOS MUNICÍPIOS, EXCETO OS SERVIDORES
OCUPANTES DE CARGOS CRIADOS POR LEI, DE PROVIMENTO
EFETIVO OU EM COMISSÃO, INCLUÍDAS AS AUTARQUIAS E FUNDAÇÕES PÚBLICAS DOS REFERIDOS ENTES DA FEDERAÇÃO.
(2) Nível municipal, estadual e federal.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
195
A supressão da segunda parte do dispositivo em epígrafe encerra
eloqüente sentido de trazer para a alçada da Justiça do Trabalho todos
os servidores públicos, celetistas e estatutários, ocupantes de cargos
criados por lei de provimento efetivo ou em comissão.
Não nos parece adequada essa opção legislativa, máxime porque os servidores estatutários são informados por princípios próprios
do Direito Administrativo que em nada se identificam ou se aproximam das relações de trabalho travadas entre particulares. Parecenos que a solução adequada era justamente aquela que já se encontrava assente na doutrina e na jurisprudência: — servidores públicos
estatutários federais, competência da Justiça Federal; — servidores
públicos estatutários estaduais e municipais, competência da Justiça Estadual; — servidores públicos celetistas — competência da Justiça do Trabalho.
Veja-se que em relação ao servidor celetista, o regime jurídico
é híbrido, na medida em que mescla regulamento e princípios próprios
do empregado celetista com alguns princípios constitucionais da
administração pública, previstos na Carta Constitucional. Logo, diante dessa característica, é plenamente justificável que apenas os litígios do servidor celetista sejam instruídos e julgados pela Justiça do
Trabalho.
Sob os mesmos argumentos, é inadmissível que os estatutários
pertencentes ao Direito Administrativo sejam atraídos para uma justiça
especializada que examina precipuamente contratos de trabalho. Repare que o viés contratual é bem diferente do viés estatutário, no que tange
à aplicação de normas, princípios e soluções. Tal fato, por si só, já justificaria o afastamento da competência da justiça trabalhista para examinar questões de servidor público estatutário. Contudo, mantida a supressão da parte final do inciso I do art. 114, todos as ações de servidores
públicos, celetistas e estatutários, passam a ser julgadas pela Justiça
do Trabalho.
3. Competência para julgar as ações oriundas das relações de
trabalho — Exegese do art. 114, incisos I e IX
No que diz respeito à primeira parte do inciso I, do art. 114, verificase abrupta majoração de competência material. Se antes a Justiça do
Trabalho se limitava a pronunciar-se sobre dissídios individuais entre
196
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
trabalhadores e empregadores, doravante passa a ter competência para
julgar as ações oriundas das relações de trabalho. Pela redação anterior à EC n. 45/2004, somente as relações de emprego e “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho” estavam abrangidas pela
Justiça do Trabalho. Tal inferência se dava pela expressão “litígio entre
trabalhadores e empregadores... e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho”. Note que o vocábulo “empregadores”, em sua acepção jurídica, é aquele previsto no art. 2º, da CLT.
Vale dizer, empregador é o sujeito que admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço de empregado regido pela Consolidação das
Leis do Trabalho (CLT).
Destarte, antes da Reforma do Judiciário, a Justiça do Trabalho
tinha competência para julgar, em regra, os conflitos decorrentes da relação de emprego (celetista) e, excepcionalmente, outras controvérsias
decorrentes da relação de trabalho, desde que expressamente previstas
em lei, como, por exemplo, os contratos de empreitada em que o empreiteiro seja operário ou artífice, conforme previsão do art. 652, III, da
CLT; litígios do trabalhador avulso portuário e o OGMO (órgão gestor de
mão-de-obra), conforme previsão do art. 643, § 3º, da CLT ou mesmo os
dissídios que tenham origem no cumprimento de convenções ou acordos coletivos, mesmo quando ocorram entre sindicatos ou entre sindicato de trabalhadores e empregador, na forma do art. 1º da Lei n. 8.984/95.
Agora o que se vê é outra delimitação constitucional vista como
regra geral no art. 114, inciso I — “ações oriundas da relação de trabalho” — e complementada pelo inciso IX — “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei”. As exceções previstas
em lei permanecem as mesmas, todavia mudou-se radicalmente a regra
geral. Se antes a competência da justiça trabalhista estava adstrita à
relação celetista de emprego, agora envolve toda e qualquer relação de
trabalho.
Ganha relevo a velha distinção doutrinária entre relação de trabalho
como gênero, do qual a relação de emprego é espécie que abrange tãosomente o trabalho subordinado. Dessa vez a baliza não se prestará
para restringir a alçada da Justiça do Trabalho, mas para delimitar de
forma abrangente o que se entende por relação de trabalho, prevista na
primeira parte do inciso I do art. 114 da CF, em sua nova redação.
Considerando que o conceito de relação de trabalho é aquele que
pressupõe qualquer liame jurídico entre dois sujeitos, desde que tendo
por objeto a prestação de um serviço, autônomo ou subordinado, não há
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
197
dúvidas que não só os contratos celetistas estão nele abrangidos, mas
boa parte dos contratos civis e comerciais.
Assim, os litígios decorrentes do chamado contrato de prestação
de serviço regulamentado pelos artigos 593 a 609 do atual Código Civil
passam a ser julgados pela Justiça do Trabalho e não mais pela Justiça
Comum. Antes da alteração dada pela EC n. 45, competia à Justiça do
Trabalho apreciar somente os casos em que se pleiteava a declaração
de nulidade de contratos afins usados de forma dissimulada para fraudar
direitos trabalhistas. Nesses casos, decretava-se a nulidade do contrato
civil ou comercial tido como fraudulento (art. 9º da CLT) e, ao mesmo
tempo, declarava-se a relação de emprego caso estivessem preenchidos os requisitos do art. 3º da CLT. Por conseguinte, condenava-se o
contratante-empregador a pagar todas as verbas previstas na legislação
trabalhistas até então sonegadas ao contratado-empregado por força da
dissimulação contratual.
Doravante, será possível ingressar na Justiça do Trabalho não só
para buscar a declaração da relação de emprego em face da fraude perpetrada, mas, de forma sucessiva, no caso do juízo entender ser legítimo o contrato autônomo de prestação de serviço, postular direitos previstos no Código Civil, como, por exemplo, o aviso prévio de 7 (sete) dias
assegurado no parágrafo único do art. 599 ou mesmo a indenização
equivalente à metade do período faltante, fixada no art. 603 do CC para
os casos de despedida sem justa causa em contrato de prestação de
serviço com termo certo.
Não se ignore que a velha máxima que estabelece que “o ordinário
se presume e o extraordinário se comprova” veio expressamente enunciada no novo Código Civil — sem precedente no Código de 1916 — declarando que a relação de emprego se presume, podendo as partes, em
casos especiais, submeterem-se a outros regulamentos e, se assim
não ocorrer, serão regidas pelas disposições do Capítulo VII — Da prestação de serviço, do Título VI, do Livro I, das Obrigações, do Código Civil.
Nesse sentido é a regra do art. 593 do CC:
“A prestação de serviço, que não estiver sujeita às leis trabalhistas ou
a lei especial, reger-se-á pelas disposições deste Capítulo.”
O mesmo se diga com relação ao contrato de Empreitada, regulamentado pelos artigos 610 a 626 do Código Civil. Os litígios decorrentes
das relações de trabalho próprias da Empreitada serão objeto de análise
da justiça trabalhista, seja ela fraudulenta ou legítima. Assim, será
198
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
comum, por exemplo, a discussão em sede da Justiça do Trabalho
acerca da legitimidade da suspensão da obra, pelo empreiteiro, nos casos arrolados no art. 625 do CC ou mesmo o valor de acréscimo a que o
empreiteiro terá direito, pelo dono da obra, na hipótese do parágrafo
único do art. 619 do CC.
Dentre os demais contratos de trabalho lato sensu regidos pelo Código Civil ou por leis esparsas, além das já comentadas prestação de
serviço e empreitada, também outros contratos que tenham por objeto a
prestação de trabalho passam a ser julgados pela justiça trabalhista, podendo mencionar os casos do mandato oneroso, agenciamento e distribuição, comissão, corretagem, cooperativa de trabalho ou de mão-de-obra,
transportador autônomo, parceria rural, representante comercial autônomo, execução de contrato de honorários médicos ou advocatícios, etc.
Ressalve-se que, em qualquer caso, o trabalho há que ser realizado por pessoa física. Caso o contrato seja formalmente celebrado com a
pessoa jurídica do contratado, porém, na prática, a relação de trabalho
for executada intuito personae, ainda que de forma autônoma, a competência para julgar os litígios daí decorrentes será da Justiça do Trabalho,
a exemplo do que já ocorria com as empreitadas previstas no art. 652,
III, CLT. Se se tratasse de grande empreitada, a competência era e continuará sendo da Justiça Comum, contudo em se tratando de pequena
empreitada em que a pessoa do empreiteiro não se limita a celebrar
formalmente o contrato, mas é o próprio operário ou artífice, a competência era da Justiça do Trabalho e assim continuará sendo por força da
nova redação do art. 114, I, da CF.
Em igual situação jurídica encontram-se as firmas individuais ou
mesmo o caso de alguns representantes comerciais autônomos, cuja
relação de trabalho é ostensivamente identificada com a pessoa física
do contratado ou do representante e não propriamente com a empresa
de representação comercial. Estas pequenas corporações unipessoais,
a despeito de serem rotuladas de empresas (sociedades por quotas limitadas), empresas não são em seu sentido técnico e teleológico, podendo, quando muito, serem chamadas de paraempresas.
3.1. O novo conceito de empresa e sua distinção com a paraempresa
Registre-se que o conceito liberal e proprietista de empresa, como
o meio pelo qual o empresário obtém lucro em manifestação de um direito absoluto de propriedade, modifica-se diante do novel quadrante trazido pela Constituição Federal de 1988 e pelo Código Civil de 2002.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
199
Hodiernamente, a verdadeira e lídima empresa é vista como uma
instituição social, sendo inelutável sua função social e de valorização do
trabalho, conforme se depreende da aplicação do art. 170, e incisos, da
Carta Constitucional, sobretudo porque é nela que se aloca a maior parte da mão-de-obra produtiva do país, porque é ela a fornecedora de bens
e serviços necessários à sociedade e ela que arrecada os tributos que
compõem o patrimônio do Estado(3).
Ademais, na mesma proporção que se defende a diminuição do
tamanho do Estado e o alargamento da iniciativa privada, como quer a
ideologia Neoliberal, deve-se também pugnar pela maior responsabilidade
social da empresa. E isso não é apenas uma questão de lógica, mas
de coerência científica (se é que existe coerência na ideologia e na
racionalidade do mercado).
Nessa esteira funcional, justifica-se a postura do legislador em
impor limitações na atuação do empresário, tais como a disregard
doctrine e a ultra vires societatis; vedação à concorrência desleal prevista na lei antitruste; coibição de propaganda enganosa e o controle de
qualidade dos produtos e serviços, previstos no Código de Defesa do
Consumidor; efetividade do cumprimento da legislação trabalhista; coibição de atos atentatórios à dignidade humana (mobbing, assédio sexual,
dispensas discriminatórias e abusivas), etc.
Não foi por acaso que o novo Código Civil substituiu a figura do
comerciante pela do empresário. Tal movimento iniciado na Itália e desembocado no novo Código Civil brasileiro demonstra o processo de
modificação da concepção de sujeito das relações jurídicas econômicas. Para Francesco Galgano, enquanto as relações de comércio pressupõem um modo de operar do sujeito individual em relação a outro
sujeito individual, o conceito de empresa revela a relação entre indivíduo
e sociedade. Ao produzir riqueza, o empresário está trazendo um resultado útil a toda a coletividade e, nessa medida, quanto maior sua função
de agente criador de prosperidade econômica para a coletividade, mais
se justifica um tratamento vantajoso por parte do ordenamento jurídico.
Assim, a prosperidade coletiva (v.g.: geração de empregos e riquezas)
deve ser identificada como resultado natural da atividade do empresário(4).
(3) RIBEIRO, Márcia Carla Pereira. Sociedade de economia mista e empresa privada:
estrutura e função. Curitiba: Juruá, 1999, p. 171.
(4) GALGANO. Francesco. Diritto commerciale: l’imprenditore. 5ª ed. Bologna: Zarichelli, 1996, p. 105. Apud: RIBEIRO, Márcia Carla Pereira, obra citada, p. 172.
200
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Nesse sentido o novo Código Civil, por inspiração do Código Civil italiano(5),
conceitua a figura do empresário:
Art. 966: Considera-se empresário quem exerce profissionalmente
atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de
bens ou de serviços.
O conceito de empresa propriamente dito foi omitido pelo novo Código
Civil; entretanto, pode ser encontrado na Lei n. 4.137/62, que trata da
repressão ao abuso do poder econômico, cujo artigo 6º reza: “considerase empresa toda a organização de natureza civil ou mercantil destinada
à exploração por pessoa física ou jurídica de qualquer atividade com fins
lucrativos”. A doutrina se aproxima desse conceito legal ao estabelecer
que a empresa é a “unidade organizada e organizadora de um conjunto
de meios materiais e humanos tendentes à obtenção de um fim”, nas
palavras de Campz Ruíz (6).
Como se vê, o papel do empresário é o de estruturar a produção ou
circulação de bens ou serviços para oferecê-los ao mercado consumidor
com preços competitivos e qualidade comprovada. Para tanto é preciso
articular quatro fatores de produção: capital, insumos, tecnologia e mãode-obra(7).
Diante de tais conceitos e premissas, cumpre perquirir como se
classificam as paraempresas, ou seja, aquelas pequenas firmas individuais ou pessoas jurídicas que atuam de forma unipessoal e que nem de
longe se aproximam do conceito legal que vincula a empresa à idéia
de uma organização, vez que nelas não se encontram presentes nem
capital, nem insumos, nem tampouco tecnologia, sendo a mão-de-obra
restrita à própria pessoa do “sócio” ou “empresário”. Daí a nossa opção
onomástica em denominá-las com o prefixo para que equivale a “quase”;
logo paraempresa dá a exata idéia de quase-empresa no sentido técnico-jurídico e teleológico.
Há uma distância abissal entre essa pequena e unipessoal paraempresa que, na prática, se confunde com o próprio prestador e execu(5) O art. 2.082 do Código Civil italiano enuncia que empresário é quem exercita
profissionalmente atividade econômica organizada com o fim de produção ou de troca
de bens ou de serviços.
(6) RUÍZ, Camps. Régimen laboral de la transmisión de empresa. Valencia: Tirant Lo
Blach, 1993, p. 23/24.
(7) COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial. 14ª ed. São Paulo: Saraiva,
2003, p. 3/4;
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
201
tor do serviço, e aquelas empresas que efetivamente cumprem os fins
estabelecidos pelo legislador. É exatamente em relação aos litígios oriundos do trabalho prestado por essas pequenas paraempresas que a Justiça do Trabalho passa a ter competência material para instruir e julgar.
São, pois, os casos das pequenas firmas ou (para)empresas de representação comercial ou prestadores de serviço constituídos formalmente
em sociedades de quotas limitadas, mas que na prática a sede da empresa é a sua própria residência, o sócio é a sua própria irmã ou esposa,
na maioria das vezes uma dona-de-casa que só emprestou o nome, mas
que jamais atuou na sociedade. Ora, a capa formal travestida de pessoa
jurídica ou empresa serve apenas para aparentar uma (fictícia) empresa
em face da exigência do contratante ou mesmo para ocupar brechas
(desvirtuadas) da legislação. O Judiciário Trabalhista não pode ficar inerte diante dessa manobra que salta aos olhos, dando o mesmo tratamento jurídico que aquele dado às grandes e legítimas empresas.
Não se perca de vista, a propósito, os princípios da primazia da
realidade econômica e do interesse social que informam o direito econômico. Segundo Washington Peluso Albino de Souza, “ao regulamentar o
modo de manifestação dos atos e fatos econômicos, e ajustá-los à ideologia adotada, a norma de Direito Econômico deve obedecer fundamentalmente à realidade econômica, em vez de distorcê-la”. Aludido enunciado
é complementado pelo princípio do interesse social que o mesmo autor
descreve: “O direito econômico toma o interesse social como fundamento dos seus juízos de valor e por esta orientação procura realizar os
princípios da Justiça Distributiva”(8).
Parece-nos que acertou o constituinte derivado-reformador ao ampliar a alçada da Justiça do Trabalho em relação a essas demandas que,
até então, encontravam-se reprimidas e contidas diante do alto ônus
financeiro exigido pela Justiça Comum, máxime o pagamento imediato
de custas processuais, taxa de distribuição e honorários advocatícios
antecipados. Doravante, trazendo tais questões para a alçada da Justiça do Trabalho haverá sensíveis vantagens para o jurisdicionado, seja
porque não há taxa de distribuição e as custas processuais são pagas
pelo vencido, após a prolação da sentença, seja porque os honorários
são pagos ao final e em percentual incidente sobre o valor do êxito, seja
porque na mesma ação trabalhista será possível pleitear a nulidade de
(8) SOUZA, Washington Peluso Albino. Direito econômico. São Paulo: Saraiva, 1980,
p. 174/175.
202
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
um contrato civil fraudulento (arts. 3º e 9º da CLT) com o conseqüente
pagamento das verbas trabalhistas e, sucessivamente, em caso de reconhecimento de validade dos contratos civis, postular as verbas típicas
daí decorrentes.
A fim de que a delimitação do conceito de relação de trabalho não
fique apenas a cargo da doutrina e da jurisprudência, impende aprovar
o Projeto de Lei que tramita no Congresso Nacional e que altera redação
da CLT para assim constar:
Art. 652 — § 1º: Compete ainda ao juiz do trabalho processar e julgar
os litígios decorrentes de relações de trabalho que, não configurando
vínculo de emprego, envolvam:
I — representante comercial autônomo e tomador de serviços;
II — corretor e tomador de serviços;
III — transportador autônomo e empresa de transporte ou usuário de
serviços;
IV — empreiteiro e subempreiteiro, ou qualquer destes e o dono da
obra, nos contratos de pequena empreitada, sempre que os primeiros concorrerem pessoalmente com seu trabalho para a execução
dos serviços, ainda que mediante o concurso de terceiros;
V — parceiro ou arrendatário rural e proprietário;
VI — cooperativas de trabalho e seus associados;
VII — cooperativas de trabalho ou seus associados e os respectivos
tomadores de serviços.
§ 2º O juiz decidirá os litígios a que se refere o § 1º deste artigo com
base no direito comum, observadas as normas processuais constantes desta Consolidação das Leis do Trabalho.
§ 3º Quando for controvertida a natureza da relação jurídica e o juiz não
reconhecer a existência de contrato de emprego alegado pela parte,
poderá ele decidir a lide com fulcro nas normas de direito comum,
desde que, observados os princípios do contraditório e da ampla defesa, seja o provimento jurisdicional compatível com o pedido.
Impende consignar que também estão afastados da nova competência da Justiça do Trabalho os litígios decorrentes dos serviços, objeto
dos contratos firmados entre fornecedores e consumidores. A Lei n. 8.078/
90, conhecida como Código de Defesa do Consumidor (CDC), ao mesmo
tempo que define o consumidor, em seu art. 1º, como toda pessoa física
ou jurídica que utiliza o serviço (ou produto) na qualidade de destinatário
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
203
final, define também o fornecedor, em seu art. 3º, como toda pessoa
física ou jurídica que desenvolve atividades de produção, distribuição ou
comercialização (de produtos ou) de prestações de serviço. O § 2º do
art. 3º da Lei n. 8.078/90 não deixa margem à dúvida quando delimita
que o serviço, objeto do contrato de consumo, é aquele que não decorre
de relações de caráter trabalhista:
Art. 3º, § 2º, do CDC: “Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das
relações de caráter trabalhista”.
A grande distinção está em saber se o contratante do trabalho
contrata o prestador de serviço para viabilizar sua empresa (relação de
trabalho) ou o contrata para usufruir exclusivamente de seu serviço na
qualidade de destinatário final (contrato de consumo). Da mesma forma,
resta investigar se o contratado é um fornecedor de serviço ao público
em geral (mercado de consumidores) ou se guarda um intenso grau de
dependência econômica para com o seu contratante, que com ele celebra um contrato de trabalho. Os contratos de consumo é o mais acabado exemplo dos contratos padronizados e de adesão, fruto da massificação da sociedade encetada com as sucessivas Revoluções Industriais
(máquina a vapor, eletricidade e automação). Destarte, leis como o CDC
“apenas intentam colmatar a lacuna existente no sistema legislativo, que
havia sido concebido ao tempo do Estado liberal, para ajustá-lo à nova
realidade econômico-social da era em que vivemos, e sobretudo para adequá-lo à contratação padronizada, desconhecida noutros tempos”(9).
3.2. Rito, prescrição e princípios incidentes sobre o objeto da nova
competência
Quanto ao rito, uma vez sendo a ação da competência da Justiça
do Trabalho, adotar-se-á o Procedimento Comum Ordinário de que trata
o art. 763 da CLT, caso o valor atribuído à causa seja superior a 40
salários mínimos, sendo o rito sumaríssimo dos artigos 852-A e seguintes se o valor da causa for superior a 2 e inferior a 40 salários mínimos e,
finalmente, será o Procedimento Comum Sumário de que trata a Lei
n. 5.584/70, se o valor dado à causa for de até 2 salários mínimos. Não
(9) NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais.
São Paulo: Saraiva: 1994, p. 74. Sobre o tema “a massificação da sociedade e seus
reflexos nos contratos”, consultar a mesma obra nas páginas 69 a 74.
204
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
há como adotar os Procedimentos Especiais previstos no CPC, visto
que estes comportam interpretação restrita, sendo possível aplicá-los
somente nos casos expressamente previstos em lei. Vale dizer: somente de lege ferenda se cogita a incidência dos ritos especiais e desde que
assim previstos expressamente não comportando, pois, aplicação analógica ou extensiva.
Quanto ao prazo prescricional, aplica-se a regra do art. 7º, XXIX, da
CF. Observa-se que o caput do art. 7º dirige-se a todos os trabalhadores
de forma geral e o seu inciso XXIX, ao estatuir o prazo prescricional de
cinco anos, faz expressa menção aos “créditos resultantes das relações
de trabalho” e não apenas às relações de emprego. Ademais, deve-se
recordar que o instituto da prescrição fulmina pretensão judicial e não
direito material propriamente dito. Logo, a partir do instante que se traz
para a alçada da Justiça do Trabalho o exame da ação decorrente da
relação de trabalho, a pretensão posta em juízo terá natureza trabalhista, atraindo a regra geral do crédito trabalhista e seu prazo prescricional
qüinqüenal (art. 7º, XXIX, CF).
Finalmente, quanto à aplicação do quadro principiológico do Direito
do Trabalho, sobretudo o da proteção ao prestador de serviço, verifica-se
que tal enunciado não é exclusivo da relação de emprego e pode perfeitamente alcançar o pequeno empreiteiro ou o prestador de serviço hipossuficiente, a exemplo do que já ocorre em outros contratos civis: proteção ao consumidor; ao locatário e ao aderente nos contratos de adesão.
O mesmo se diga quanto ao princípio da primazia da realidade sobre a
forma que já vem previsto em algumas espécies de contratos civis, inclusive com a validade da prova exclusivamente testemunhal em contratos
de pequeno valor (art. 227 do CCB) aliada à boa-fé como elemento de
integração das lacunas dos negócios jurídicos (art. 113 do CCB) e o
princípio da instrumentalidade das formas (art. 244 do CPC).
4. Competência para julgar as ações que envolvam exercício do
direito de greve — Exegese do art. 114, inciso II
Nesse particular, não há maiores alterações, vez que nos termos
da Lei de Greve a competência material para julgar as ações que envolvam tanto o exercício do direito constitucional de greve (art. 9º e seu
§ 1º, da CF), quanto à responsabilidade civil e trabalhista decorrente de
atos abusivos e ilícitos praticados no curso da greve (§ 2º do art. 9º) já
eram e continuarão sendo da Justiça do Trabalho.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
205
Oportuna é a transcrição dos arts. 8º, 14 e 15 da Lei n. 7.783/89:
Art. 8º A Justiça do Trabalho, por iniciativa de qualquer das partes ou
do Ministério Público do Trabalho, decidirá sobre a procedência, total
ou parcial, ou improcedência das reivindicações, cumprindo ao Tribunal publicar, de imediato, o competente acórdão.
Art. 14. Constitui abuso de direito de greve a inobservância das normas contidas na presente Lei, bem como a manutenção da paralisação após a celebração de acordo, convenção ou decisão da Justiça do
Trabalho.
Art. 15. A responsabilidade pelos atos praticados, ilícitos ou crimes
cometidos, no curso da greve, será apurada, conforme o caso, segundo a legislação trabalhista civil ou penal.
Conforme se observa da leitura dos arts. 8º e 14, compete à Justiça do Trabalho decidir sobre a legalidade da greve em relação aos requisitos contidos na Lei n. 7.983/89, bem como a procedência total ou
parcial das reivindicações. O TST tem posição pacífica sobre o tema desde a edição da Súmula 189: “a Justiça do Trabalho é competente para
declarar a abusividade, ou não, da grave”. Quanto ao tema, registremse também as orientações da Seção de Dissídios Coletivos, OJ-SDC ns.
10, 11, 12 e 13, do TST.
Em relação à responsabilidade pelos atos ilícitos praticados pelos
grevistas durante o movimento paredista, o art. 15, acima transcrito, se
reporta aos efeitos apurados segundo a legislação trabalhista, civil ou
penal. Quanto à repercussão jurídica decorrente do cometimento de
crime ou contravenção penal, a Justiça do Trabalho nunca teve e continua não tendo jurisdição criminal, devendo a matéria ser examinada na
Justiça Comum. Veja-se que até mesmo a nova competência para julgar
habeas corpus encontra-se adstrita aos atos sujeitos à jurisdição trabalhista como é o caso da prisão do depositário infiel em execução trabalhista. Exegese do novo art. 114, IV, da CF.
Contudo, em relação aos efeitos trabalhistas decorrentes dos atos
ilícitos da greve, como, por exemplo, a caracterização de rescisão por
justa causa (art. 482 da CLT), ou mesmo para apurar a responsabilidade
civil decorrente de dano causado pelo empregado grevista (art. 462, § 1º,
da CLT), a competência já era e continuará sendo da Justiça do Trabalho, conforme se observa dos arestos abaixo relacionados:
Greve: danos à empresa. Participação ativa do empregado. Configuração da justa causa. Havendo deliberada participação do empregado em greve inclusive com ocupação do estabelecimento impõe-se o
206
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
reconhecimento da justa causa por tratar-se de ato lesivo ao direito de
propriedade. O direito de permanecer na posse dos bens que garantem a produção é do empregador como uma compensação do risco
da atividade econômica que o mesmo assume. (TRT 21ª Região —
Acórdão n: 3.418 — Decisão em 5.7.1994 — RO 2925/92).
A participação em greve é direito assegurado ao trabalhador, porém
dentro dos limites estabelecidos pela Lei n. 7.783/89, segundo a qual
as manifestações e atos de persuasão utilizados pelos grevistas não
poderão impedir o acesso ao trabalho nem causar ameaça ou dano à
propriedade ou à pessoa. No caso dos autos, a prova testemunhal
demonstrou que o reclamante, juntamente com outros funcionários,
dirigiu palavras de baixo calão aos colegas que pretendiam trabalhar
durante a greve, o que acarreta dano moral em face do constrangimento causado por essa atitude. Ademais, também ficou demonstrado que alguns grevistas, dentre eles o reclamante, bateram com as
mãos nos vidros do carro da empresa e, embora o veículo não tenha
sofrido avarias, está configurada a ameaça de que fala a lei. Recurso
de revista conhecido e provido. (TST — RR 695400 — Ano: 2000 — Oriundo da 9ª Região — Quinta Turma — DJ — DATA: 6.2.2004).
A novidade efetivamente vislumbrada no art. 114, II, da CF, está na
inclusão da competência da Justiça do Trabalho para julgar eventuais
litígios que decorram de atos ilícitos praticados em razão da greve, tendo como agente o sindicato dos trabalhadores ou mesmo os trabalhadores que não mantenham vínculo de emprego com a empresa que sofreu
danos patrimoniais ou morais. Nesses casos a competência que antes
era da Justiça Comum — porque fora dos limites da relação de emprego
— passa a ser da Justiça do Trabalho, conforme dicção mais ampla do
novo art. 114, II, da CF, em complemento com os incisos I, III, IV e VI
do mesmo dispositivo.
5. Competência para julgar as ações sobre representação sindical —
Exegese do art. 114, inciso III
A Emenda Constitucional n. 45/2004 acertou ao trazer para a órbita da Justiça do Trabalho a competência material para julgar as ações
sobre representação sindical decorrentes de conflitos entre sindicatos,
entre sindicatos e trabalhadores e entre sindicatos e empregadores.
Diante do novo art. 114, III, da CF, restou superada a Orientação Jurisprudencial da Seção de Dissídios Coletivos, OJ-SDC, n. 04, do TST
que dispõe:
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
207
“Disputa por titularidade de representação. Incompetência da Justiça
do Trabalho. A disputa intersindical pela representatividade de certa
categoria refoge ao âmbito da competência material da Justiça do
Trabalho.”
Observa-se um processo de evolução legislativa que desembocou
na alteração do art. 114, III, da CF, mas que foi iniciado com o art. 1º da
Lei n. 8.984/95, o qual dispõe:
“Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios que
tenham origem no cumprimento de convenções coletivas de trabalho
ou acordos coletivos de trabalho mesmo quando ocorram entre sindicatos ou entre sindicato de trabalhadores e empregador.”
Veja-se que tal diploma legal teve o condão de cancelar a Súmula
334 do TST, que dispunha ser incompetente a Justiça do Trabalho para
julgar ação movida pelo sindicato que pleiteia, em nome próprio, o recolhimento de desconto assistencial previsto em convenção ou acordo coletivo. De imediato, vozes se levantaram acerca da duvidosa inconstitucionalidade do art. 1º da Lei n. 8.984/95, em face da então redação do art.
114 da CF. Contudo, a doutrina assentou posição de que o caput do
então artigo constitucional assegurava legitimidade, ao estatuir que a
Justiça do Trabalho tem competência para julgar “outras controvérsias
decorrentes da relação de trabalho”. Nesse sentido, com precisão assinalou Luiz Eduardo Gunther:
“Portanto, para verificação da constitucionalidade da Lei n. 8.984/
95, resta ver se as convenções e acordos coletivos de trabalho
objetivam resolver controvérsias decorrentes de relação de trabalho. Parece, assim, que na expressão ‘outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho’ podem-se também incluir os sindicatos como possuindo legitimidade para postularem na Justiça do
Trabalho o cumprimento de convenções ou acordos coletivos”(10).
Registre-se que o Supremo Tribunal Federal também se pronunciou pela legitimidade e legalidade da Lei n. 8.984/95, conforme ementa
que se transcreve:
“A Lei n. 8.984/95, editada com base no art. 114 da Constituição
Federal, retirou do âmbito residual deixado à Justiça Comum dos
(10) GUNTHER, Luiz Eduardo. Lineamentos sobre o direito sindical brasileiro. In: Transformações do Direito do Trabalho. Coordenadores Aldacy Rachid Coutinho, José Affonso Dallegrave Neto e Luiz Eduardo Gunther. Curitiba: Juruá Editora, 2000, p. 646/647.
208
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Estados a ação de sindicato de trabalhadores contra empregador,
tendo por objeto o adimplemento de obrigação assumida em convenções ou acordo coletivo de trabalho, incluindo-as na órbita da
Justiça Trabalhista. Incidência imediata da nova regra de competência às demandas em curso. Recurso extraordinário que não se
conhece, mantidos o acórdão recorrido que fixara a competência
da Justiça do Trabalho para julgar a causa. Recurso extraordinário
não conhecido”. (RE 143.722-7-SP, Ac. 1ª Turma, Revista LTr, São
Paulo, novembro de 1995, p. 1.518-1.519).
A nova redação do art. 114, inciso III, é diversa da mencionada Lei
n. 8.984/95 no que tange ao objeto delimitado, contudo ambas transferem, da Justiça Comum para a Justiça do Trabalho, a competência material para apreciar matérias envolvendo entidades sindicais. Nada mais
acertado, vez que as normas relativas a enquadramento sindical e legitimidade encontram-se previstas apenas na CF (art. 8º) e na CLT (arts.
570 a 577), estando, pois, o juiz do trabalho mais credenciado a examinar os conflitos daí resultante, se comparado com o juiz cível.
6. Competência para julgar os mandados de segurança,
habeas corpus e habeas data, envolvendo matéria sujeita à
jurisdição trabalhista — Exegese do art. 114, inciso IV
As três garantias individuais arroladas no inciso IV do art. 114 são
chamadas pela doutrina de remédios constitucionais no sentido de meios
postos à disposição dos indivíduos e cidadãos para provocar a intervenção das autoridades competentes, visando sanar as ilegalidades e abusos de poder em detrimento de direitos e interesses individuais, sendo que,
alguns desses remédios provocam a atividade jurisdicional sendo, então, alcunhados de ações constitucionais (11).
O mandado de segurança previsto no art. 5º, LXIX, se presta a
proteger direito líquido e certo, quando o responsável pela ilegalidade ou
pelo abuso de poder for autoridade pública ou agente no exercício de
atribuições do Poder Público. É cabível por exclusão ao habeas corpus
e habeas data, o que vale dizer que somente se interpõe o writ quando o
direito não estiver amparado por tais remédios.
(11) SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 9ª ed. São
Paulo: Malheiros, 1994, p. 386.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
209
O habeas corpus encontra-se previsto no art. 5º, LXVIII, da CF,
servindo para proteger a liberdade de locomoção de todo aquele que
sofre ou se ache ameaçado em seu direito de ir e vir, decorrente de ato
ilegal ou abuso de poder.
Finalmente, a terceira garantia apontada é o habeas data contemplado no art. 5º, LXXII, da CF. Trata-se de remédio constitucional que se
presta para proteger a intimidade do indivíduo em relação ao conhecimento de informações relativas a sua pessoa, constantes dos registros
ou banco de dados públicos ou mesmo para retificar tais dados, quando
não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo.
Observa-se pela atenta leitura do novo art. 114, IV, da CF, que a
competência da Justiça do Trabalho para apreciar esses três remédios
constitucionais se limita a coibir apenas e tão-somente atos que envolvam matéria sujeita à sua jurisdição.
Assim, o mandado de segurança no processo do trabalho é cabível, por exemplo, contra ato do juiz que determina a penhora em dinheiro
em execução provisória, nos casos em que o impetrante (executado)
nomeou outros bens para constrição (OJ-SDI-II n. 62) ou mesmo para
cassar liminar concedida em ação civil pública (OJ-SDI-II n. 58).
Quanto ao habeas data vislumbra-se o seu cabimento na Justiça
do Trabalho contra informação errônea constante, por exemplo, nos cadastros do MTE que deverá ser notificado na qualidade de impetrado
para informar dados da pessoa de determinado fazendeiro em relação à autuação em crime de trabalho forçado. Também é possível vislumbrar a interposição de habeas data na Justiça do Trabalho na hipótese de notificar
a Vara ou Tribunal do Trabalho para informar o depoimento de testemunha ou decisão que envolveu ou fez menção à intimidade de terceiro em
ação que apura, por exemplo, dano moral decorrente de assédio sexual,
transitada em segredo de justiça.
Finalmente, o habeas corpus é cabível apenas contra ato que determina prisão civil de depositário tido por infiel, mas que, por exemplo,
deixou de assinar o termo de compromisso no auto de penhora e que,
por isso, é acolhida a pretensão do remédio constitucional (OJ-SDI-II n.
89). Registre-se que nos demais casos em que possa ocorrer prisão
proveniente de um processo trabalhista, a competência será sempre da
Justiça Federal, vez que, inevitavelmente, a prisão será decorrente da prática de crime, fator que afasta a competência da Justiça do Trabalho que
não detém competência para matéria criminal. São, pois, os casos
210
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
da prisão por desobediência (art. 330, CP), prisão por desacato (art.
331, CP), prisão por falso testemunho ou falsa perícia (art. 342, CP).
Nessas situações, havendo flagrante, poderá ocorrer a detenção do
suposto autor para lavrar o respectivo auto(12) pela autoridade que tenha
atribuição para tanto. Em seguida, o auto deverá ser encaminhado ao
Juiz Federal que remeterá ao Ministério Público para oferecimento da
denúncia, se for o caso(13).
Consigne-se, ainda, o curioso caso em que o advogado ou qualquer cidadão podem dar “voz de prisão” ao magistrado trabalhista, quando
do flagrante abuso de autoridade ocorrido, por exemplo, em audiência.
Nessa situação, aplicar-se-á a regra do art. 301 do Código de Processo
Penal. Eventual prisão do juiz trabalhista diante da incidência de tal crime, poderá ser atacada por habeas corpus interposto não na Justiça do
Trabalho, mas na Justiça Federal Comum.
Como se vê a ampliação da competência da Justiça do Trabalho
para esses três remédios constitucionais (habeas corpus, habeas data
e mandado de segurança) encontra-se limitada aos atos de sua jurisdição. Tal opção normativa veio ratificar uma tendência jurisprudencial.
Acertou o constituinte derivado-reformador ao pacificar o tema sob
a ótica constitucional, vez que, imaginar o contrário, levando tais questões para a órbita da Justiça Federal, implicaria inadmissível cisão da
jurisdição trabalhista com graves prejuízos à celeridade processual tão
necessária à tutela das garantias individuais(14).
7. Competência para julgar os conflitos de alçada entre órgãos com
jurisdição trabalhista — Exegese do art. 114, inciso V
Urge lembrar que o nome adequado é “conflito de competência” e não
“conflito de jurisdição” como equivocadamente faz menção a CLT e alguns
doutrinadores. É que a jurisdição é sempre una e indivisível, ao contrário
da competência que “é a quantidade de jurisdição cujo exercício é atribuído a cada órgão, ou seja, a medida da jurisdição”, na conhecida lição
de Liebman (15).
(12) Auto de prisão em flagrante.
(13) SOBRINHO, Aderson Ferreira. O habeas corpus na justiça do trabalho. São
Paulo: LTr, 2003, p. 97.
(14) SOBRINHO, Aderson Ferreira. Obra citada, p. 97.
(15) LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil, vol. 1. Tradução de
Cândido Rangel Dinamarco. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 55.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
211
Nos termos do art. 115 do CPC, haverá conflito de competência,
quando dois ou mais juízes se declararem competentes ou se considerarem incompetentes ou quando entre eles surgir controvérsia acerca da
reunião ou separação de processos. O conflito poderá ser suscitado ao
Presidente do Tribunal mediante petição por qualquer das partes ou pelo
Ministério Público ou de ofício pelo próprio juiz.
A nova redação do art. 114, V, da CF, confere alçada para a Justiça do Trabalho examinar os conflitos de competência apenas entre
órgãos com jurisdição trabalhista, ressalvando o disposto no art. 102, I, o,
da CF, que impõe ao STF o julgamento dos conflitos entre: o STJ e
quaisquer tribunais; entre Tribunais Superiores; ou entre estes e qualquer
outro tribunal.
Aludida regra já vinha contemplada no art. 808, alíneas “a” e “b”, da
CLT, inclusive com a mesma ressalva do art. 102, I, o, da CF, a qual faz
menção a alínea “d” do referido dispositivo celetário. Assim, o conflito de
competência será resolvido pelo TRT, quando suscitado entre Varas e
entre Juízes de Direito, ou entre umas e outras nas respectivas regiões.
Será do TST a competência do conflito suscitado entre Tribunais Regionais ou entre Varas e Juízos de Direito sujeitos à jurisdição de Tribunais
Regionais diferentes. Destarte, a nova redação do art. 114, V, apenas
ratificou em plano constitucional a diretriz fixada no art. 808 da CLT.
8. Competência para julgar as ações de indenização por dano moral
ou patrimonial decorrentes da relação de trabalho — Exegese
do art. 114, inciso VI
O Supremo Tribunal Federal já decidiu que o dano moral resultante
da relação de emprego é matéria de alçada da Justiça do Trabalho:
“Justiça do Trabalho. Competência: Ação de reparação de danos decorrentes da imputação caluniosa irrogada ao trabalhador pelo empregador a pretexto de justa causa para a despedida e, assim, decorrente da relação de trabalho, não importando deva a controvérsia ser
dirimida à luz do Direito Civil”. (STF, 1ª T., RE n. 238.737-4, Rel. Min.
Sepúlveda Pertence, unânime, Diário da Justiça n. 226, Seção 1, 25/
11/98, p. 22).
Em igual sentido o TST editou orientação jurisprudencial posicionando-se pela competência da Justiça do Trabalho para solver litígios
referentes à indenização por dano moral, desde que “decorrente da relação de trabalho”:
212
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
OJ-SDI-I n. 327 – Dano Moral. Competência da Justiça do Trabalho.
“Nos termos do art. 114 da CF/88, a Justiça do Trabalho é competente
para dirimir controvérsias referentes à indenização por dano moral,
quando decorrente da relação de trabalho”. (DJU de 09.12.2003).
Como se vê, a nova redação do art. 114, VI, da CF, ratificou o
entendimento uniforme da jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, sendo incontroversa a competência da Justiça do Trabalho que, de
agora em diante, atinge todas as ações que pleiteiam indenização por
dano material ou moral decorrentes da relação de trabalho.
Não se duvida mais acerca da larga expressão relação de trabalho
em contraposição ao vocábulo restritivo relação de emprego. Destarte,
eventual dano, moral ou material, decorrente da pequena empreitada, da
prestação de serviço e de todos os demais contratos de trabalho lato
sensu, descritos nos comentários feitos ao art. 114, inciso I, deverá ser
pleiteado na Justiça do Trabalho. O mesmo se diga quanto aos danos,
material e moral, provenientes de atos ilícitos praticados durante a greve: a competência passa a ser da justiça trabalhista, ex vi legis: art. 114,
I, II e IX, da CF.
Também passam a ser julgados pela Justiça do Trabalho os chamados danos pré ou pós-contratuais decorrentes da relação de trabalho,
como, por exemplo, aqueles manifestados na entrevista para a vaga de
emprego ou mesmo após a rescisão contratual, quando da busca de referência profissional ao ex-empregador. Observa-se que, a partir da nova
redação do art. 114, VI, da CF, cai por terra o argumento de que a competência seria da Justiça Comum, na medida em que “no dano pré-contratual
a relação de emprego sequer havia se formada e no dano pós-contratual o contrato já havia se expirado”. É que, se antes da EC n. 45/2004
a competência da Justiça do Trabalho se dava apenas para litígios
decorrentes da relação de emprego, doravante ela se estende a todas as
ações de indenização por dano moral ou patrimonial decorrentes da
relação de trabalho.
Lamentavelmente a Reforma do Judiciário perdeu a chance de esclarecer qual é a competência material para apreciar as ações indenizatórias decorrentes de acidente do trabalho, em que o empregado move
contra o empregador, nos termos da parte final do art. 7º, XXVIII, da CF.
O Superior Tribunal de Justiça entende que a competência é da Justiça
Comum nos termos de sua Súmula de n. 15. Já o Tribunal Superior do
Trabalho, em inúmeras decisões esparsas, defende a competência da
Justiça do Trabalho.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
213
8.1. Competência para julgar as ações decorrentes de acidente
de trabalho
A fim de compreendermos essa hesitação jurisprudencial das altas cortes (STJ e TST) em relação ao conflito de competência para julgar
as ações acidentárias, faz-se mister perquirir as alterações constitucionais sobre o tema no curso da história.
Pelas Cartas Constitucionais de 1946, 1967 e Emenda n. 1 de
1969, a competência para apreciar dano material originário de acidente
do trabalho era expressamente atribuída à Justiça Comum. Oportuno
transcrever o art. 142 da CF/67 e alterações dadas pela Emenda n. 1/69 e
Emenda n. 7/77:
Art. 142 — Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios
individuais e coletivos entre empregadores e empregados e, mediante lei, outras controvérsias oriundas de relação de trabalho.
§ 1º A lei especificará as hipóteses em que as decisões, nos dissídios
coletivos, poderão estabelecer normas e condições de trabalho.
§ 2º Os litígios relativos a acidentes do trabalho são da competência da justiça ordinária dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, salvo exceções estabelecidas na Lei Orgânica da Magistratura Nacional.
Havia, pois, expressa previsão constitucional para a Justiça Comum apreciar litígios relativos a acidentes do trabalho, ao ponto do STF,
à época, editar a Súmula 501:
“Compete à Justiça Ordinária Estadual o processo e o julgamento, em
ambas as instâncias, das causas de acidente do trabalho, ainda que
promovidas contra a União, suas autarquias, empresas públicas ou
sociedades de economia mista.”
Com a promulgação da Carta de 1988, a situação se modificou. A
melhor exegese do artigo 114 da CF/88, correspondente ao art. 142 da
CF/67, leva à conclusão de que a competência material da Justiça do
Trabalho alcança as ações acidentárias movidas pelo empregado contra
seus empregadores:
Art. 114 da CF/88: Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os
dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores,
abrangidos os entes de direito público (...), na forma da lei, outras
controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios
que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças,
inclusive coletivas.
214
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Como se vê, de forma oposta à tradição das Constituições Federais pretéritas, a Carta de 1988 deixou, adrede, de reproduzir a regra do
§ 2º do art. 142 da CF/67; fê-lo, obviamente, porque o constituinte não
quis mais destinar à Justiça Comum dos Estados os litígios atinentes
aos acidentes do trabalho.
Atualmente o Tribunal Superior do Trabalho tem posição pacífica
sobre o tema, no sentido de avocar para a Justiça do Trabalho a competência material para solver lides que envolvam danos materiais e morais
relacionados a acidente do trabalho:
“COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. INDENIZAÇÃO POR
DANOS MATERIAIS DECORRENTES DE ACIDENTE DE TRABALHO.
Assinale-se ser pacífica a jurisprudência desta Corte sobre a competência do Judiciário Trabalhista para conhecer e julgar ações em que
se discute a reparação de dano moral praticado pelo empregador em
razão do contrato de trabalho. Como o dano moral não se distingue
ontologicamente do dano patrimonial, pois em ambos se verifica o
mesmo pressuposto de ato patronal infringente de disposição legal, é
forçosa a ilação de caber também a esta Justiça dirimir controvérsias
oriundas de dano material proveniente da execução do contrato de
emprego.” (TST — 4ª T., RR n. 620.720, Rel. Min. Antônio José de Barros
Levenhagen, julg. em 27.9.00, in DJU de 29.6.01, p. 836).
Ocorre que, mesmo após a modificação trazida pela CF/88, há quem
continue sustentando a competência da Justiça Comum, mediante interpretação equivocada do art. 109, I, da atual Carta da República, in verbis:
“Art. 109 — Aos juízes federais compete processar e julgar: I — as
causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública
federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes
ou oponentes, exceto as de falência, as de acidente de trabalho e as
sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho.”
Encabeçada pelos ministros do STJ, a referida corrente entende que,
em não havendo competência da Justiça Federal para julgar a lide acidentária, é da Justiça Estadual a competência residual para tanto. O tema é,
inclusive, objeto da Súmula 15 do STJ: “Compete à Justiça Estadual processar e julgar os litígios decorrentes de acidentes do trabalho”(16).
A afirmação de que a Justiça Comum Estadual detém competência residual é correta, porém tais exegetas incorrem em erro, quando
nela incluem os litígios acidentários civis. Deveras, o que compõe a compe(16) O referido verbete foi editado em 14.11.90 no DJU.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
215
tência residual da Justiça Comum não são as lides acidentárias contra
o empregador, mas tão-somente aquelas movidas contra o INSS. Nesse
sentido é a dicção do art. 129, II, da Lei n. 8.213/91, in verbis:
“Os litígios e medidas cautelares relativos a acidentes do trabalho
serão apreciados:
I — na esfera administrativa, pelos órgãos da Previdência Social, segundo as regras e prazos aplicáveis às demais prestações, com prioridade para conclusão; e,
II — na via judicial, pela Justiça dos Estados e do Distrito Federal, segundo o rito sumaríssimo, inclusive durante as férias forenses, mediante
petição instruída pela prova de efetiva notificação do evento à Previdência Social, através de Comunicação de Acidente do Trabalho — CAT.”
Roland Hasson bem observa que o art. 129 da Lei n. 8.213/91, ao
fixar a competência da Justiça Estadual, dirige-se apenas aos litígios
que envolvem o INSS:
“Tanto é verdade que o seu próprio inciso primeiro determina que
as demandas relativas a acidentes do trabalho serão apreciadas,
na esfera administrativa, pelos órgãos da Previdência Social. Ora,
como admitir que (o art. 129) versa também sobre a Justiça do
Trabalho, se é impossível que o trabalhador acidentado demande
administrativamente contra o empregador, buscando reparação
fundada em responsabilidade não previdenciária?”(17)
Data venia é artificial a fixação da competência da Justiça Comum,
especialmente quando o que se vê na prática é o acidente do trabalho
resultante do descumprimento de normas de segurança, higiene e saúde
do trabalho contempladas nos artigos 154 a 223 da CLT.
Felizmente, o constituinte de 1988 corrigiu a distorção jurídica, deixando propositadamente de incluir na competência da Justiça Comum a
lide acidentária(18). Assim, considerando inexistir, doravante, qualquer norma conservando a exclusão da Justiça Trabalhista como fazia a CF/67, é
induvidosa a competência material do órgão judicante especializado(19).
Mais que isto: parece-nos emblemática a localização da norma
que assegura o direito à reparação civil acidentária no rol dos direitos
(17) HASSON, Roland. Acidente do trabalho & Competência. Curitiba: Juruá, 2002,
p. 162/163.
(18) Conforme visto anteriormente, ao contrário do art. 142, § 2º, da CF/67, a atual CF/88,
art. 114, não encerra a exclusão da Justiça do Trabalho para as questões acidentárias.
(19) Nesse sentido também se posiciona PINTO, José Augusto Rodrigues. Processo
trabalhista de conhecimento. 3ª ed. São Paulo: LTr, 1994, p. 113.
216
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
tipicamente trabalhistas — artigo 7º, XVIII, da CF/88 — fato que reforça
a competência material da Justiça do Trabalho.
Com base nessa inferência, o STF vem admitindo a competência
material da Justiça do Trabalho para apreciar pedidos voltados à preservação do meio ambiente do trabalho:
Competência. Ação civil pública. Condições de trabalho. Tendo a ação
civil pública como causa de pedir disposições trabalhistas e pedidos
voltados à preservação do meio ambiente do trabalho e, portanto, aos
interesses dos empregados, a competência para julgá-la é da Justiça
do Trabalho. (STF, Rel. Min. Marco Aurélio, RE 20620/MG, DJU,
17.9.99).
Por derradeiro, registre-se o recém-editado(20) verbete do STF que
pacificou o tema:
Súmula 736: “Compete à Justiça do Trabalho julgar as ações que
tenham como causa de pedir o descumprimento de normas trabalhistas relativas à segurança, higiene e saúde dos trabalhadores.”
Destarte, a despeito da omissão do novo art. 114, CF, pode-se
inferir que é da Justiça do Trabalho a competência para julgar as ações
acidentárias, máxime porque o art. 114, IV, fala em reparação do dano
decorrente da relação de trabalho, caso que abrange o acidente do trabalho. Ademais, considerando que os danos decorrentes dos acidentes
do trabalho estão diretamente relacionados à execução do contrato de
trabalho, depreende-se que a Súmula 736 do STF se aplica às ações
acidentárias movidas pelo empregado contra a empresa, mormente porque a culpa do empregador, nessa hipótese, quase sempre resulta da
não-observância das normas regulamentares de segurança, higiene e
saúde no ambiente de trabalho, previstas na legislação trabalhista(21).
9. Competência para julgar as ações relativas às penalidades
administrativas impostas pelos órgãos de fiscalização —
Exegese do art. 114, incisos VII
Eis aqui outra novidade sensível e acertada. Antes da Emenda
Constitucional n. 45/2004, cabia à Justiça Federal Comum examinar e
julgar as ações movidas pelas empresas em face da União Federal em
(20) DJ 9.12.2003.
(21) OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção jurídica à saúde do trabalhador. 3ª
ed. São Paulo: LTr, 2001, p. 267.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
217
relação à tentativa de desconstituição das multas que lhe foram impostas pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
Aludida opção legislativa era incompreensível, sendo mais razoável
atrair essa matéria para a esfera da Justiça do Trabalho, sobretudo porque
tais penalidades estão previstas na CLT e se manifestam no descumprimento de normas cogentes incidentes sobre a relação de emprego. Não se
pode negar que o juiz federal do trabalho (justiça especializada) se encontra
mais habilitado a examinar a correta autuação e aplicação de multas trabalhistas por parte do MTE, se comparado com o juiz federal ordinário.
Não são raros os casos em que as decisões da Justiça Federal
encontravam-se em flagrante descompasso com as Súmulas do TST
acerca da mesma matéria, conforme se depreende da ementa abaixo:
MULTA — Art. 71, da CLT — DESCANSO INTRAJORNADA — HORA
EXTRA — FGTS. 1. O artigo 71, da Consolidação das Leis do Trabalho,
malgrado em seu caput consagre a unicidade de intervalo intrajornada de labor, põe compreensão diversa no seu parágrafo 2º, ao pluralizar a palavra “intervalo”. Assim, mostra-se razoável a interpretação
que exclui o pagamento de horas extras no fracionamento de descanso intraturno, afastando-se do Enunciado n. 118/TST. Por isso, inexiste contribuição para o FGTS sobre tal lapso, eis que não há trabalho
extraordinário, daí ilícita a imposição de multa por falta do recolhimento da exação. 2. Ademais, a cominação de multa administrativa requer
explícita motivação, mormente quando aplicada quase no seu valor
máximo, sob pena de ficar ilícita. 3. Apelação provida. (TRF 1ª Região
— Apelação Cível 199901000284230 — 3ª Turma Suplementar — DJ
3.7.2003 — pág. 227 — Relator Juiz Evandro Reimão dos Reis).
A partir de agora, o mesmo órgão que decidirá sobre a natureza
jurídica da verba sonegada e seus reflexos ou mesmo sobre o real alcance
da norma da CLT será também competente para examinar as ações das
empresas que visam desconstituir as penalidades impostas pelos auditores fiscais do MTE. Haverá salutar e necessária uniformização hermenêutica da norma trabalhista descumprida tanto para os efeitos da sentença
condenatória em prol do trabalhador, quanto para os efeitos de incidência
de multas administrativas.
10. Competência para processar a execução das contribuições sociais
decorrentes das sentenças que proferir — Exegese do art. 114,
inciso VIII
Redação idêntica constava do § 3º da redação anterior do art. 114, da
CF. Agora encontra-se no inciso VIII do mesmo dispositivo, assim grafado:
218
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:
VIII — a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art.
195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças
que proferir.
Oportuna é a transcrição dos referidos incisos do art. 195 da Constituição Federal:
Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de
forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, e das seguintes contribuições sociais:
I — do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na
forma da lei, incidentes sobre:
Alínea “a” — a folha de salários e demais rendimentos do trabalho
pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe presta
serviço, mesmo sem vínculo empregatício; (...)
II — do trabalhador e dos demais segurados da previdência social,
não incidindo contribuições sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201.
Observa-se que os aludidos dispositivos constantes do art. 195,
inciso I, a, e inciso II referem-se apenas às contribuições previdenciárias. Contudo, o Tribunal Superior do Trabalho, por meio da OJ-SDI-I n.
141 estendeu a competência da Justiça do Trabalho tanto para os descontos previdenciários quanto fiscais(22). Fê-lo de forma gratuita e sem
respaldo na Constituição Federal.
Não se perca de vista que a fixação da competência material não
decorre de simples desejo do órgão judicante, mas da expressa vontade
(e declaração) do constituinte. Com efeito, a aludida OJ-SDI-I n. 141
deve ser cancelada a fim de prestigiar a retórica inação do constituinte
derivado-reformador que, por duas vezes, não quis estender à Justiça do
Trabalho a alçada para executar imposto de renda ou qualquer outro
desconto fiscal. São elas: Emenda Constitucional n. 20/1998, que introduziu o § 3º ao art. 114 e agora a EC n. 45/2004 que repete a mesma
redação do antigo § 3º, desta vez no novo inciso VIII, ambos do art. 114,
da CF. Ambas se limitam a fixar a competência da Justiça do Trabalho
para contribuições previdenciárias.
(22) OJ-SDI-I n. 141: “Descontos previdenciários e fiscais. Competência da Justiça do
Trabalho”.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
219
Ademais, cabe lembrar que tal prerrogativa é do Poder Executivo e
não do Judiciário. Assim, cabe à União Federal, por intermédio dos
auditores e procuradores do Ministério da Fazenda, proceder a regular
execução perante o órgão da Justiça Federal Comum, inclusive com
prazo prescricional mais largo, se comparado ao crédito trabalhista.
Conclusão
Não há como negar que a Justiça do Trabalho foi prestigiada pela
Reforma do Judiciário, diante de sensível alargamento de sua competência material. Cabe, no entanto, um adequado aparelhamento desse órgão judicante, com aumento do orçamento para contratação imediata de
novos magistrados e serventuários, sob pena de congestionamento da
pauta, o que será lesivo ao jurisdicionado, detentor do crédito trabalhista. Aos operadores do direito do trabalho, o desafio consiste no aprimoramento teórico da ciência jurídica por profícuo estudo interdisciplinar.
Somente assim estaremos credenciados a dar efetiva resposta às novas
demandas que estão por vir.
220
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
A Emenda Constitucional n. 45/2004 e a
Competência Penal da Justiça do Trabalho (*)
José Eduardo de Resende Chaves Júnior (**)
I. Introdução
A Emenda Constitucional n. 45, promulgada em 8 de dezembro de
2004, mas só publicada no Diário Oficial da União em 31 de dezembro
do mesmo ano, no que tange à Justiça do Trabalho (JT) teve o objetivo
manifesto de abandonar a raiz clássica do Direito do Trabalho, isto é, a
relação de trabalho juridicamente subordinada.
Antes da Emenda, a competência da JT estava quase que toda ela
concentrada no ora revogado caput do artigo 114; com a promulgação, o
caput desdobrou-se em nove incisos. Este estudo sustenta a tese de
que este desdobramento, levado a efeito pela referida Emenda Constitucional, conferiu competência penal à Justiça do Trabalho.
O cerne da fundamentação da presente proposição consiste na
articulação dos incisos I, IV e IX do novel artigo 114 da Constituição da
República, que deságua em duas conseqüências: (i) mutação do critério
subjetivo para o objetivo, no que toca à definição de competência trabalhista e (ii) atribuição da competência penal à Justiça do Trabalho, além
daquela simplesmente hierárquica, tanto pela natureza da infração, nos
termos do art. 69, III, do Código de Processo Penal, como pela relação
de adequação legítima entre o processo penal-trabalhista e a Justiça do
Trabalho.
Ademais disso, sustenta-se que a competência penal da Justiça
do Trabalho poderá ser ampliada, pela via ordinária, sem necessidade de
emenda constitucional.
(*) Agradeço ao meu pai, o advogado José Eduardo de Resende Chaves, a imprescindível ajuda na elaboração deste estudo, tendo contribuído com observações e idéias
decisivas para a concepção final do trabalho.
(**) Juiz do Trabalho, titular da 21ª Vara de Belo Horizonte. Doutorando em Direitos
Fundamentais pela Universidad Carlos III de Madrid.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
221
II. Da mutação do critério de definição de competência da Justiça
do Trabalho
A anterior ordem constitucional firmava a competência trabalhista,
em relação aos litígios decorrentes do contrato de trabalho, em função
da pessoa — trabalhador e empregador — não em razão da natureza da
matéria. Não é demais ressaltar que, a esse critério, deve-se aditar,
naturalmente, o requisito de que a controvérsia decorresse da relação de
emprego.
Em outras palavras, a competência da Justiça do Trabalho não
decorria apenas de um litígio que tivesse origem na relação de trabalho
subordinado, mas que, além disso, fosse qualificado pela condição jurídica das pessoas envolvidas: empregador e trabalhador. Nesse sentido,
a competência material da Justiça do Trabalho — ou seja, aquela que decorresse da relação de emprego sem envolver necessariamente o trabalhador e o empregador — somente se aperfeiçoava mediante lei específica.
O Excelso Supremo Tribunal Federal, em sua composição plenária, já havia assentado entendimento dessa ordem(1), fixando que a “determinação da competência da Justiça do Trabalho não importa que
dependa a solução da lide de questões de Direito Civil, mas sim, no
caso, que a promessa de contratar, cujo alegado conteúdo é o fundamento do pedido, tenha sido feita em razão da relação trabalhista, inserindo-se no contrato de trabalho”(2).
Nessa acepção, o termo relação de emprego preferia ao de contrato de trabalho, pois o último denotava uma equivocada e conservadora
visão contratualista, no sentido de que a competência da Justiça do
Trabalho estaria jungida estritamente a cláusulas contratuais, perdendo,
assim, toda a abrangência do fenômeno jurídico atinente à relação de
emprego.
A visão contratualista mais avançada da relação de emprego capta
tal fenômeno, não por um enfoque de conteúdo, porquanto não tem o
contrato de trabalho conteúdo específico, mas sim pelo aspecto de sua
realização operacional (3).
(1) STF CJ 6.959-6 (DF) — Ac. Sessão Plenária, 23.05.90 — Rel. Ministro Sepúlveda
Pertence — Revista LTr, 59-10/1370.
(2) Idem, relator Min. Sepúveda Pertence.
(3) Cf. CORRADO, Renato, apud MARANHÃO, Délio. Direito do Trabalho. Rio de
Janeiro: FGV, 1966, p. 29.
222
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
É importante ressaltar que não impressiona a objeção no sentido
de que o critério da pessoa, para se firmar a competência trabalhista, iria
importar, se levado às últimas conseqüências, na assunção de competência penal pela Justiça do Trabalho, por exemplo, nos casos de
crimes de ação penal privada envolvendo o trabalhador e o empregador.
A Justiça do Trabalho não tinha competência penal, porquanto o Ministério Público é o dominus litis. A demanda penal não ocorre entre o
réu e a vítima. Mesmo na ação penal privada, consoante o magistério de
Ada Pellegrini Grinover(4), o ofendido, na queixa-crime (ação privada) não
é o titular do ius puniendi, mas apenas é extraordinariamente legitimado
à ação. Trata-se, pois, de típica substituição processual penal, que, como
tal, não altera a competência da lide(5).
Após a Emenda Constitucional n. 45/04 a situação ganhou contornos bem distintos. Com a elisão dos vocábulos “empregador” e “trabalhador” do art. 114 da Constituição, a competência da Justiça do Trabalho deixou de se guiar pelo aspecto subjetivo (sujeitos ou pessoas envolvidas na relação de emprego), para se orientar pelo aspecto meramente
objetivo, qual seja, ações oriundas da relação de trabalho, sem qualquer
referência à condição jurídica das pessoas envolvidas no litígio.
Assim, a ação penal oriunda da relação de trabalho, que processualmente se efetiva entre o Ministério Público e o réu, passou a ser da
competência da Justiça do Trabalho, em decorrência da referida mutação do critério de atribuição.
Isso porque o critério objetivo, dessa forma, se comunica com a
natureza da infração, que é uma das formas de fixação da competência,
nos termos do artigo 69, III, do Código de Processo Penal.
III. Do inciso IX do artigo 114 da Constituição e a
“Adequação Legítima” da atribuição de competência
penal para a Justiça do Trabalho
O primeiro óbice que se apresenta à tese afirmada no tópico anterior
— competência penal decorrente da assunção do critério objetivo —
(4) Cf. As Nulidades no Processo Penal, 5ª ed. revista e ampliada. São Paulo: Malheiros Editores, 1996, p. 60.
(5) A exemplo das demandas em que o sindicato, como substituto processual, litiga
contra o empregador sem alteração da competência trabalhista.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
223
consiste na alegação de inexistência de atribuição manifesta de competência penal à Justiça do Trabalho.
Antes, contudo, de se examinar se existe ou não tal manifestação
em nível constitucional, é importante verificar se a atribuição de competência penal depende de tal requisito de explicitação.
Consoante reconhece a doutrina, não existe qualquer essencialidade técnica nos critérios de definição de competência, que são definidos segundo a experiência prática secular(6), já que eles variam de país
para país.(7) No ordenamento brasileiro, de uma maneira geral, o critériomor é extremamente pragmático, com a consideração concreta de dados objetivos da causa.
De uma maneira geral tais dados são captados a partir da respectiva categoria jurídica, destacando-se, sobretudo, a natureza da relação
jurídica que envolva a demanda (crime, ato ilícito civil, relação de emprego, etc.)(8).
A despeito de se tomar a categoria jurídica como critério definidor
da competência, nem sempre ela é observada, e isso se passa por uma
infinidade de razões de ordem pragmática ou política, à conveniência
assistemática do legislador.
O que se percebe é que os intentos de sistematização dos critérios definidores da competência resultam inócuos. Todos os estudos a
respeito ressaltam o caráter mais descritivo do que sistêmico da distribuição de competência entre os mais diversos ramos do Judiciário, distribuição essa que envolve até o Poder Legislativo.
Nessa ordem de idéias, embora a tradição tenha consagrado a
visão de que a competência para a categoria jurídica “crime” deva vir
explicitada na Constituição, para fins de atribuição de competência
penal, não existe qualquer fundamento científico ou dogmático a amparar tal entendimento.
O que parece é que se confunde o princípio da reserva legal, que
vigora em sede de Direito Penal material, para efeitos da condenação
criminal, com a definição, própria do Direito Processual Penal, do ramo
judiciário encarregado de proceder ao julgamento da lide.
(6) Cf. CINTRA, A.C.A.; GRINOVER, A. P.; DINAMARCO, C. Teoria geral do processo,
7ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990, p. 205.
(7) Cf. CINTRA (1990) ob. cit., p. 205 e 207.
(8) Cf. CINTRA (1990) ob. cit., p. 207/208
224
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Ícone da inexistência do critério da atribuição específica é a própria
competência penal da Justiça Estadual, que não se encontra inserida de
forma manifesta ou latente na Carta Constitucional. Não há objetar nem
mesmo com o caráter residual da competência da Justiça Comum, pois
se a competência penal dependesse de atribuição manifesta obviamente
que seria um contra-senso afirmar que uma competência específica (penal) resultaria do mesmo critério de definição da competência genérica.
Além disso, a competência penal da Justiça Eleitoral — que é também um ramo Especial como a Justiça do Trabalho — não se encontra
atribuída especificamente na Constituição, senão no Código Eleitoral. Como
veremos nos tópicos que se seguem, a competência penal da Justiça
Eleitoral, em sede constitucional, restringe-se ao habeas corpus de natureza hierárquica e funcional, previsto no art. 121, § 4º, inciso V.
Por outro lado, ainda que a distribuição de competência não seja
dotada de uma essencialidade técnica, isso não significa que ela não
deva observar um critério mais racional de atribuição. A teoria processual
desafia, naturalmente, um mínimo de racionalidade e adequação à realidade, sob pena de transformar-se em puro e desordenado arbítrio.
É nesse sentido, pois, que se entende a conceituação de competência perpetrada por Celso Neves, que abandona a tradicional “medida
da jurisdição”, concebendo-a como a relação de “adequação legítima”
entre o processo e o órgão judiciário, ou seja, uma noção concreta,
pragmática, porém, racional de competência(9) . A idéia do processualista paulista é superar as conceituações quantitativas da competência —
competência enquanto medida — para caminhar em direção a uma conceituação qualitativa.
A conceituação qualitativa, segundo Celso Neves, tem um aspecto subjetivo e outro objetivo. Do ponto de vista subjetivo, a competência
é definida como atributo para o exercício da jurisdição, decorrente da
investidura legítima. Do ponto de vista objetivo, que aqui nos interessa
mais especificamente, como a relação necessária, de adequação legítima, entre o processo e o órgão jurisdicional(10).
Nessa perspectiva de consideração da competência penal, enquanto
relação de adequação legítima entre o processo e o órgão judiciário, a
(9) Cf. CINTRA (1990) ob. cit., p. 204.
(10) In Comentários ao Código de Processo Civil, vol. VII, 4ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1992, prolegômenos, p. XII.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
225
competência penal da Justiça do Trabalho decorre da própria necessidade
de defragmentação judiciária do fenômeno trabalho.
Em tendo sido alçado à condição de verdadeiro fundamento da
República, nos termos do inciso IV do artigo 1º da Carta Magna, o valor
social trabalho(11) desafia tutela judiciária abrangente e concreta, no sentido bobbiano, de que a evolução dos direitos partiu da universalidade
abstrata, para a atingir a fase de sua concreção. Para tanto, a proteção
judiciária do valor social trabalho, para se tornar eficaz e concreta, há de
se fazer de forma a evitar a fragmentação, que só enseja procedimentos
que conspiram contra a integridade do cumprimento das normas de tutela do trabalho humano.
Daí que a adequação legítima corresponde, perfeitamente, ao critério de fixação da competência penal, atinente à natureza jurídica da infração, previsto pelo inciso III do art. 69 do Código de Processo Penal,
em outras palavras, a Justiça que lida com a proteção do trabalho é que,
sem dúvida, tem maior grau de adequação e legitimidade para avaliar o teor
ofensivo das condutas reprimidas pela ordem penal-trabalhista.
Por outro lado, parece nos decisivo ressaltar, novamente, que o inciso IX do artigo 114 da Constituição permite, perfeitamente, que norma
ordinária processual confira competência penal à Justiça do Trabalho.
O precitado inciso III do art. 69 do Código de Processo Penal, desse modo, constitui, assim, a norma de integração da competência penal
da Justiça do Trabalho, em interpretação conforme a Constituição –
rectius: conforme a Constituição integrada pela Emenda n. 45/04.
Por qualquer lado, portanto, em que se analise a questão, é patente no ordenamento jurídico que há atribuição, manifesta ou latente, de
competência penal à Justiça do Trabalho.
III. Do inciso IV do art. 114 da Constituição e a natureza jurídica do
habeas corpus
Não obstante inexista fundamento jurídico a sustentar a tese de
que a competência penal desafia atribuição específica na Constituição,
e, além do mais, ainda que se desconsiderasse a atribuição de competência penal à justiça trabalhista pelo art. 69, III, do CPP, em face do que
(11) Na própria dicção da Constituição do precitado inciso IV do art. 1º.
226
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
dispõe o inciso IX da Constituição, cumpre ressaltar que a novel competência, prevista pelo inciso IV do mesmo art. 114, em articulação à competência objetiva prevista pelo inciso I do mesmo artigo, também se constitui como esse requisito da atribuição manifesta da competência penal
à Justiça do Trabalho.
Muito se discute na doutrina a natureza jurídica do habeas corpus,
todavia a polêmica centra-se na questão acerca do caráter recursal ou
não dessa medida. Para o nosso estudo interessa outro aspecto, qual
seja, a natureza penal ou não desse instituto.
Sem dúvida, em sua origem no direito brasileiro, o habeas corpus
tinha uma natureza que transcendia o caráter penal. Como não havia
outro instrumento de defesa dos direitos e liberdades civis, com a eficácia liminar, a doutrina, pregada por Rui Barbosa, o admitia inclusive para
hipóteses não-penais(12).
Com o advento do mandado de segurança, contudo, o caráter penal do habeas corpus ficou ressaltado, pois as questões meramente
econômicas ou civis poderiam, a partir de então, ser tuteladas por essa
nova medida judicial criada.
Dessa forma, não obstante a possibilidade da impetração do habeas
corpus contra prisão civil (depositário infiel ou em caso de alimentos), ou
mesmo contra prisão administrativa, o Supremo Tribunal Federal acabou
por consolidar o entendimento, por meio do Conflito de Competência n.
6979-1-DF, que a ação autônoma de impugnação, denominada habeas
corpus, tem desenganada (sic) natureza penal:
“Sendo o habeas corpus, desenganadamente, uma ação de natureza penal, a competência para seu processamento e julgamento
será sempre de juízo criminal, ainda que a questão material subjacente seja de natureza civil, como no caso de infidelidade de depositário, em execução de sentença. Não possuindo a Justiça do
Trabalho, onde se verificou o incidente, competência criminal, impõe-se reconhecer a competência do Tribunal Regional Federal para
o feito”. (STF-CC6979-1-DF-Ac. TP, 15.08.91, Relator Min. Ilmar
Galvão).
O entendimento consagrado pelo Supremo Tribunal não desconsiderou, portanto, que o habeas corpus possa ser impetrado contra prisão
(12) Cf. GRINOVER, Ada Pellegrini. Revista da Procuradoria-Geral do Estado de São
Paulo, n. 17, p. 189.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
227
civil ou administrativa, mas que ainda nesses casos, o que define sua
natureza penal é a sua própria teleologia — a proteção da liberdade de ir
e vir — e não o ato impugnado. Consoante se pode observar dos votos
dos Ministros no referido conflito de competência e, principalmente do
voto do Ministro Celso de Mello, ainda que a o ato tenha origem extrapenal a natureza da medida é de ação penal.
No mesmo sentido, o magistério de Tourinho Neto, que entende
que o habeas corpus tem natureza de ação cautelar, de ação constitutiva ou mesmo declaratória, mas sempre penal, in verbis:
“Trata-se de garantia individual destinada a fazer cessar o constrangimento ou a simples ameaça de constrição à liberdade de
locomoção (...) se o habeas corpus não é recurso, no sentido técnico da expressão, qual seria sua natureza jurídica? Às vezes,
como nas hipóteses dos incs. II, III, IV e V do art. 648 (do Código
de Processo Penal), é uma verdadeira ação penal cautelar, pois
visa a impedir que o desenrolar moroso do processo, ou de qualquer outra providência que possa ser tomada, venha carretar maior
restrição ao status libertatis do paciente. Nas hipóteses dos incs.
VI e VII, se houver sentença com trânsito em julgado, funciona ele
como verdadeira ação penal constitutiva, pois visa a extinguir uma situação jurídica. Seu caráter, aí, seria semelhante ao de uma ação
rescisória. Todavia, nessas mesmas hipóteses (VI e VII), se a
decisão não transitou em julgado, ou o processo não foi instaurado, porque na fase das investigações, a ação seria declaratória,
porquanto teria por finalidade a declaração da inexistência de uma
relação jurídico-material. E, dependendo da hipótese concreta, o
habeas corpus, com fundamento no inc. I, poderá ter a natureza de
ação penal cautelar, de ação penal constitutiva ou até mesmo
declaratória.”(13)
Também do ponto de vista da Constituição, e a despeito do contorno constitucional do habeas corpus como garante da liberdade fundamental de locomoção, Alexandre de Morais, conclui pelo caráter penal
da medida:
“É uma ação constitucional de caráter penal e de procedimento
especial, isenta de custas e que visa a evitar ou cessar violência
(13) TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal I. São Paulo: Saraiva,
1990, p. 407/408.
228
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
ou ameaça na liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso
de poder.”(14)
Dessa forma, não há falar, nem mesmo, na hipótese do inciso IV
do art. 114 da Constituição, em competência penal latente, já que ela é
manifesta, no sentido consagrado pela Excelsa Corte.
É verdade que tal inciso, contudo, é passível de leitura restritiva,
qual seja, a de que a competência penal da Justiça do Trabalho limitarse-ia ao habeas corpus.
Todavia, tal entendimento incide e insiste no equívoco, já ressaltado, de que a competência penal desafia atribuição específica.
Nem se alegue, por outro lado, que o argumento hermenêutico de
que não há na lei palavras inúteis, militaria a favor da tese restritiva, pois
a tal argumento pode-se contrapor o chamado argumento “a maiori ad
minus” (15), similar ao argumento “a fortiori”, e que consiste em se partir
de uma afirmação mais extensa para uma menos extensa. Em termos
da argumentação concreta da presente hipótese, o argumento consiste
em afirmar que se inclusive o habeas corpus, que constitui o maior bastião da liberdade, é da competência da Justiça do Trabalho, com mais
razão há de ser a dos demais procedimentos penais, que sequer alcançam alçada constitucional.
Ou seja, se todo o sistema de definição prévia e específica do
direito penal decorre da finalidade de proteção do alto valor constitucional da liberdade física, não seria razoável que se estendesse, em caráter de exceção, a competência penal justamente para o instituto que
decide de uma forma mais patente e manifesta a liberdade do ser humano, sonegando-a em procedimentos com menor grau de transcendência política.
É importante sublinhar que, ainda que o habeas corpus tenha como
objetivo a liberdade e não a pena, a sua denegação tem notória, concreta, efetiva — e até desenganada, na dicção do STF — conotação penal.
Essa conotação penal, especificamente na seara trabalhista, é
mais profunda que se pensa. Chama atenção, inclusive, a conceituação mais
técnica do habeas corpus no Código de Processo Penal — art. 647 —
em que se nota a visceral correspondência entre os núcleos do tipo
(14) MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 1999, p. 128.
(15) Cf. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito – técnica,
decisão dominação. São Paulo: Atlas, 1988, p. 312.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
229
penal-trabalhista e a conduta do agente que justifique a impetração da
medida. O art. 647 do CPP dispõe como núcleo da ação sofrida pelo
paciente a locução “sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência
ou coação ilegal”. Na maioria dos artigos que definem o crime contra
organização do trabalho o núcleo do tipo é sempre “constranger sob
violência ou grave ameaça” alguém a alguma coisa.
Em grande parte dos delitos penais-trabalhistas, como, por exemplo, o de aliciamento de trabalhadores, o de redução à condição análoga
à de escravo (especialmente os incisos I e II do § 1º do art. 149-A) e até o de
atentado contra a liberdade de trabalho, o bem jurídico tutelado é o mesmo
do habeas corpus, ou seja, a própria liberdade física de locomoção.
Saliente-se, por fim, que a opção por um ou outro critério hermenêutico diz respeito muito mais à adequação político-social da decisão
do que propriamente ao desate técnico-jurídico da controvérsia. A teoria
da argumentação jurídica tem se revelado ineficaz quanto à hierarquização de critérios exegéticos. Como concluiu, há muito, Chaïm Perelman,
na lógica jurídica o decisivo é a definição da premissa, a qual não se
processa por meio de um mecanismo lógico. E aqui, como se viu, a adequação político-social encontra-se, sem dúvida, na Justiça do Trabalho.
IV. Do inciso I, d, do art. 108 da Constituição e a competência
hierárquica
A nosso sentir, outro indicativo da existência manifesta da competência penal oriunda do inciso IV do art. 114, acrescido pela Emenda
Constitucional n. 45/04, decorre da análise do inciso I, d do art. 108 do
Diploma Constitucional, que trata da competência dos Tribunais Regionais Federais.
O referido dispositivo constitucional dispõe expressamente sobre a
competência funcional e hierárquica para julgar o habeas corpus contra
ato de juiz federal.
Nisso tal dispositivo se distingue muito do dispositivo contido no
mencionado inciso IV do art. 114, por duas razões. Em primeiro lugar,
porque sua inserção se faz sentir — ao contrário do inciso I, d, do artigo
108 da Constituição — na esfera de competência originária e ordinária
de primeiro grau.
Em segundo lugar, porquanto, na formulação do inciso IV, in fine,
do art. 114, há uma outra referência manifesta à competência penal: a
230
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
conexão entre o habeas corpus e a matéria correlata, ainda que tal atribuição tenha se expressado de maneira extensiva e conectada(16) à competência para julgar o habeas corpus.(17)
Em não se tratando de competência funcional e hierárquica como
está disposto no inciso do art. 108, I, d, não se vislumbra outra hipótese
de matéria sujeita à competência do juiz do trabalho de primeiro grau,
que não aquela decorrente dos atos de processamento da competência
penal-trabalhista, pois na hipótese de prisão civil decorrente de ato
do juiz, a competência é, de forma indiscutível, do Tribunal Regional do
Trabalho.
Poder-se-ia imaginar a hipótese do cabimento de habeas corpus
diretamente ao juiz de primeiro grau, que não se tratasse de competência originária dos tribunais, para os casos, por exemplo, de prisão, pela
autoridade policial, de sindicalista em meio a movimento paredista.
Todavia, mesmo, nessa hipótese, não há como desconectar a competência penal da competência para o habeas corpus, pois o fato gerador da medida decorreria sempre de uma conduta passível de ser capitulada em algum tipo penal(18), já que o exercício de greve, por si só, não
constitui crime, ao contrário, trata-se de liberdade fundamental.
Se se tratar de crime comum, ainda que decorrente da relação de
trabalho, a competência para o habeas corpus é da Justiça Comum; se
se tratar de crime penal-trabalhista(19), a competência é, sem dúvida, do
juiz do trabalho de primeiro grau. O sistema resultaria caótico se fosse
dado ao juiz do trabalho apenas conceder ou negar uma ordem de soltura, intervindo na jurisdição e no processo virtual ou efetivamente instaurado perante outro juízo.
Para marcar bem a nota distintiva da competência penal conexa ao
habeas corpus, nos termos do inciso IV, seria produtivo distinguir-se
(16) Dispõe o inciso IV, in fine, do art. 114 da Constituição: “(...) habeas corpus e
habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição”
(grifo nosso).
(17) Saliente-se, novamente, a grande identidade que existe entre o bem jurídico
tutelado pelo habeas corpus e vários dos delitos penais-trabalhistas, consoante se
viu no tópico anterior.
(18) Tanto da conduta dos grevistas, patrões, como até da autoridade policial.
(19) A distinção, para efeitos de competência, entre crime comum e crime da esfera
penal-trabalhista será perpetrada no tópico seguinte.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
231
uma modalidade de atribuição manifesta de competência: a competência penal manifesta, por extensão.
Em síntese, a competência penal que decorre do inciso IV do artigo 114 da Constituição transcende a competência penal hierárquica para
o habeas corpus e, além disso, se estende para os crimes que decorram da relação de trabalho.
V. Da limitação da competência penal da Justiça do Trabalho
A tese da assunção da competência penal pela Justiça do Trabalho não significa, contudo, que todo delito criminal oriundo da relação de
trabalho seja da sua competência. Não obstante a referida mutação do critério subjetivo para o critério objetivo, a competência da Justiça do Trabalho somente pode atender aos requisitos de adequação e legitimidade
se se configurar, de forma restritiva, não como competência penal comum, mas como tutela jurídica processual de caráter especial, ou seja,
como competência penal-trabalhista. Vejamos.
Se levado a extremo a tese da competência objetiva, estaria inserida na esfera trabalhista, inclusive, a ação penal para julgamento de homicídio praticado pelo empregado contra o patrão, decorrente de desentendimento na execução dos meios de trabalho. Todavia, a prevalecer tal
entendimento, a finalidade da especialização de tal ramo do Judiciário
perderia sentido e adequação.
A saída para esse aparente dilema é a concepção de que a competência penal e não-penal (ou econômica) da Justiça do Trabalho se
guia pela teleologia da descompensação jurídica da relação de poder e
sujeição(20) que existe de fato na prestação de trabalho sob dependência
e subordinação econômicas.
Andou bem, pois, o constituinte ao estender a tutela judiciária especial (que estava restrita à subordinação “jurídica”, a todo tipo de trabalho prestado sob subordinação econômica.
A extensão dessa tutela judiciária “específica” da relação de “poder
e sujeição” deve ser não apenas abrangente, mas também eficaz, de
(20) Como ressalta Reginaldo Melhado, o conceito de “subordinação jurídica” é o
aparato jurídico utilizado pelo capital para legitimar e encobrir o seu poder privado de
sujeitar o trabalho. Cf. in Poder e Sujeição – os fundamentos da relação de poder entre
capital e trabalho e o conceito de subordinação jurídica. São Paulo: LTr, 2003, p. 216.
232
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
forma a abarcar tanto o aspecto proativo, promocional e econômico, como
também o aspecto punitivo.
Nessa ordem de idéias, o suposto paradoxo de conjugar a perda
do foco de tutela específica com a necessidade de lidar com o fenômeno
trabalho de uma forma mais abrangente se resolve na restrição da competência penal para as hipóteses em que o tipo penal, na sua delineação
hipotética, dependa da relação de trabalho exercido sob dependência
econômica.
Assim, o homicídio ocorrido em razão de desentendimento quanto
à execução dos meios de trabalho não se desloca para a competência
trabalhista, porque o tipo penal homicídio se aperfeiçoa, do ponto de
vista hipotético e formal, independentemente da noção de relação jurídica de trabalho. A relação de trabalho pode apenas ou não, dependendo
da hipótese, ser circunstância de aumento de pena, na forma do art.
226, II, do Código Penal.
Por outro lado, os crimes contra a organização do trabalho, previstos nos artigos 197 a 207 do Código Penal, bem assim o crime de redução à condição análoga à de escravo (Código Penal, art. 149) dependem, na qüididade de sua configuração formal, da noção jurídica da relação de trabalho subordinado, ou seja, sem a noção de subordinação
econômica do trabalho, tais crimes sequer se configurariam em tese.
Mais tecnicamente, fundados na lição de Damasio de Jesus, podermos afirmar que a competência penal da Justiça do Trabalho se limita
aos casos em que a existência da relação de trabalho, sob subordinação econômica, constitui elementar do fato típico e não mera circunstância do crime.
Damásio de Jesus explica que circunstâncias são “determinados
dados que, agregados à figura típica fundamental, têm a função de aumentar ou diminuir as suas conseqüências, em regra, a pena”(21). Já a
elementar, ou elemento específico do tipo, desclassifica (atipicidade
relativa) ou destipifica (atipicidade absoluta) o fato como crime.
Assim, a relação necessária de adequação legítima somente se
aperfeiçoa quando a relação de trabalho economicamente subordinado
surge na própria elementar da tipificação penal, já que a mera circuns-
(21) In Direito Penal, 1º Vol. Parte Geral, 13ª ed., revista/ampliada. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 139.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
233
tância é assessória, não justificando, assim, a necessidade de uma
tutela judiciária especializada.
O requisito da integração da elementar do tipo penal coincide, dessa
maneira, com o critério de atribuição de competência penal pela natureza
da infração, nos termos do inciso III do art. 69 do Código de Processo
Penal.
O crime de assédio sexual, portanto, previsto pelo artigo 216-A do Código Penal, também é da competência da Justiça do Trabalho, já que a subordinação decorrente da relação de trabalho é elemento específico do tipo.
Nesse sentido se delineia a distinção entre crime comum, circunstancialmente decorrente da relação de trabalho, e delito penal-trabalhista.
É importante sublinhar, ainda, que o disposto no art. 109,VI, da
Constituição da República, que dispõe expressamente a competência
da Justiça Federal para os crimes contra a organização do trabalho, não
inibe as conclusões ora expendidas, senão vejamos.
É que a despeito da literalidade de tal dispositivo, a jurisprudência,
consolidada na Súmula n. 115 do extinto Tribunal Federal de Recursos,
consagrou que a competência da Justiça Federal, para essas hipóteses,
somente se configura quando se trate de lesão penal de transcendência
coletiva e com repercussão geral na organização do trabalho, concebida
como sistema.
Em face disso, o que se sustenta aqui é que apenas os crimes contra
a organização do trabalho, de aspecto individualizado, é que se deslocariam
da competência da Justiça Estadual, para a Justiça do Trabalho.
Em face, contudo, da própria “adequação legítima” já acenada, é
fundamental que o constituinte desloque ou revogue o mencionado inciso VI do art. 109 da Constituição, a fim de que o fenômeno trabalho
tenha um tratamento penal holístico, inclusive do ponto de vista coletivo.
Assinale-se, por fim, que em face do que dispõe o inciso IX do
artigo 114 da Constituição da República, e das razões ora expendidas,
especialmente a inexistência de um critério de atribuição penal específica na Constituição, simples lei ordinária poderá trasladar para a Justiça
do Trabalho os crimes em que a relação de trabalho subordinado, a despeito de não compor a elementar da figura típica, for conexa, acessória
ou circunstancial ao elemento específico do tipo penal, tais como nos
crimes contra a ordem previdenciária, previstos nos artigos 168-A e
337-A do Código Penal.
234
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Evidentemente, os crimes, cuja competência esteja atribuída diretamente na Constituição, não poderão ser deslocados para a competência da Justiça do Trabalho pela via ordinária, ainda que tenham a relação
de trabalho como integrantes da elementar penal, ou que mantenham
com ela relação de conexão ou assessoriedade, em razão do sistema
de hierarquia das normas jurídicas.
VI. À guisa de conclusão
De uma forma bem objetiva, sintetizamos as seguintes conclusões
acerca da competência penal da Justiça do Trabalho:
1. A Emenda Constitucional n. 45/04, ao suprimir as figuras do
“empregador” e “trabalhador” da delineação da competência da Justiça
do Trabalho, transmutou o critério de atribuição da competência trabalhista, da perspectiva subjetiva para a objetiva;
2. Tal transmutação para o critério objetivo significou a assunção
da competência penal pela Justiça do Trabalho, além daquela simplesmente hierárquica, tanto pela natureza da infração, nos termos do art.
69, III, do Código de Processo Penal, como pela relação de adequação
legítima entre o processo penal-trabalhista e a Justiça do Trabalho;
3. Não existe fundamento dogmático ou doutrinário a sustentar a
tese de que a competência penal desafia atribuição manifesta na Constituição, uma vez que a atribuição de competência pode se efetivar também de forma latente;
4. Tendo o Supremo Tribunal Federal definido a natureza penal da
ação de habeas corpus, o inciso IV do art. 114 da Constituição é indicativo de que à Justiça do Trabalho foi atribuída bem mais do que simples
competência penal-trabalhista latente;
5. A conexão entre o habeas corpus, de competência originária de
1º grau, e a matéria sujeita à jurisdição da Justiça do Trabalho, como
consta do inciso IV do art. 114 da Constituição, é também indicativo de
um plus em relação à mera atribuição penal latente; nesse caso, a atribuição de competência penal-trabalhista é manifesta, ainda que por extensão;
6. Somente os crimes cuja elementar do tipo penal forem compostos pela relação de trabalho economicamente subordinado é que estão
na esfera penal da Justiça do Trabalho; os crimes cujas circunstâncias
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
235
decorram da relação de trabalho, somente poderão se deslocar para a
competência da Justiça do Trabalho com a específica autorização de lei
ordinária; da mesma forma, os crimes contra a ordem previdenciária,
nos termos do inciso IX do art. 114 da Constituição;
7. Diante disso, delineia-se a distinção entre crime comum, circunstancialmente decorrente da relação de emprego (v.g. art. 226, II, do
Código Penal) e delito penal-trabalhista (v.g. crimes contra organização
do trabalho; redução à condição análoga à de escravo e assédio sexual).
8. Os crimes contra a organização do trabalho que antes da EC 45/04
eram da competência da Justiça Estadual, nos termos da Súmula 115 do
extinto TFR, deslocam-se para a competência da Justiça do Trabalho; os
crimes contra a organização do trabalho, concebida de uma forma coletiva e
como sistema, continuam na órbita da Justiça Federal, em face do que dispõe o art. 109, VI, da Constituição.
236
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Competência Laboral — Aspectos Processuais
José Hortêncio Ribeiro Júnior (*)
I. Breve intróito
Não podemos tratar o novo como velho e nem o velho como novo.
Com amparo nesse raciocínio é que tentaremos tecer algumas considerações sobre a amplitude da competência consagrada na nova dicção do
artigo 114 da Constituição Federal, implementada pela Emenda Constitucional n. 45, de 8 de dezembro de 2004, bem como trataremos de alguns
efeitos imediatos que referida alteração trará às relações processuais.
A Justiça do Trabalho sofreu a maior de todas as suas mudanças.
Mais que nunca foi estabelecida uma competência de natureza especial
e como tal há de ser tratada. A novel regra do artigo 114 da Constituição
Federal não pode ser enquadrada em qualquer dos antigos critérios de
determinação de competência, sob pena de não ser compreendida sua
real extensão.
Nesse pequeno trabalho tentaremos trazer à reflexão a necessidade
de pautarmos novos dados para a vinculação da lide à Justiça do Trabalho,
adentrando ainda no cotejo de alguns elementos indispensáveis à absorção dos novos feitos pelo Poder Judiciário Trabalhista.
II. Do critério constitucional de determinação da competência da
Justiça do Trabalho
A Jurisdição, enquanto poder estatal, possui sua natureza una e
indivisível, estando presa a todo o território nacional. Seu exercício, no
(*) Juiz do Trabalho Substituto do Eg. Tribunal Regional do Trabalho da 23ª Região.
Presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 23ª Região —
AMATRA XXIII. Especialista em Direito Processual do Trabalho e Direito Processual Civil.
Vice-diretor da Escola Judicial do TRT da 23ª Região. Coordenador e Professor do Curso
Preparatório à Magistratura do Trabalho de Mato Grosso e Professor de Direito Processual do Trabalho no IELF — SP e da Escola Superior de Direito de Mato Grosso.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
237
entanto, é fracionado, sendo atribuído a diferentes Órgãos que compõem
a estrutura do Poder Judiciário. A este fracionamento do exercício do
Poder Jurisdicional denominamos de competência.
Para vinculação da lide ao Órgão Jurisdicional, valemo-nos dos clássicos critérios de determinação da competência, todos eles calcados
em fatos que a lei reputa como relevantes e suficientes para determinar
os limites da atividade jurisdicional de determinado órgão, a exemplo da
competência em razão da matéria, do território, do valor da causa, da
função (nos campos vertical e horizontal) e da pessoa.
No entanto, a regra do artigo 114 da Constituição Federal não encontra suporte fático estanque nos critérios acima declinados. A simples
análise de seu conteúdo denotada a existência de competências definidas pela matéria, consoante inciso II, mas também aferimos competências funcionais, conforme inciso IV do mesmo dispositivo constitucional.
Mas o ponto central do presente trabalho está assentado na análise da competência trazida pelo inciso I, que atribui a competência da
Justiça do Trabalho para processar e julgar “as ações oriundas da relação de trabalho”.
Nesse diapasão, antes mesmo de adentrarmos na discussão acerca da amplitude do termo “relação de trabalho”, imprescindível se faz
uma breve reflexão sobre o critério que devemos utilizar para determinarmos referida competência.
De plano, afastamos, por completo, qualquer tendência em afirmar
que referida norma encontre enquadramento como hipótese de competência material. Na realidade, mesmo antes da alteração sofrida, o artigo 114
da Constituição Federal não determinava apenas a competência material do
Poder Judiciário do Trabalho. Este entendimento já havia sido assentado pelo Excelso Supremo Tribunal Federal. Sempre oportuno lembrar a
clássica decisão proferida nos autos do processo n. CJ 6959/DF, em que
restou definida a competência da Justiça do Trabalho para julgamento de
danos materiais decorrentes da relação de emprego. Em referida decisão,
já havia sido assentado que “a determinação da competência da Justiça
do Trabalho não importa que dependa a solução da lide de questões de
direito civil, mas sim, no caso, que a promessa de contratar, cujo alegado
conteúdo e o fundamento do pedido, tenha sido feita em razão da relação
de emprego, inserindo-se no contrato de trabalho” (1).
(1) Processo CJ 6959, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, publicado do DJ de 22 de
fevereiro de 1991, p. 1.259.
238
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Da análise de referido acórdão, extrai-se que a competência da
Justiça do Trabalho, mesmo antes da EC 45, não era definida pela matéria, mas sim pela gênese do dissídio. Nascia, portanto, a competência
contratual, ou seja, caberia à Justiça do Trabalho julgar os dissídios
decorrentes do contrato de trabalho, pouco importando a natureza da
referida demanda, se respalda no Direito do Trabalho ou no Direito Civil.
A jurisprudência e a doutrina progrediram, assentando a competência do
Poder Judiciário do Trabalho em questões contratuais, pré-contratuais e
pós-contratuais(2).
Sendo assim, afere-se que há muito houve o abandono do raciocínio de que a regra do artigo 114 da Constituição Federal trouxesse mera
previsão de competência material. Tal realidade é novamente afirmada
com a alteração ora em análise.
Ocorre que a Emenda Constitucional 45 elasteceu o espectro da
competência da Justiça do Trabalho. A partir de sua vigência, ao Poder
Judiciário do Trabalho compete não apenas o julgamento de demandas
decorrentes do contrato de trabalho, mas todas as questões emergentes da relação de trabalho lato sensu.
Daí nasce a necessidade de nova definição do critério de determinação da competência da Justiça do Trabalho, na medida em que não
mais se restringe ao contrato de emprego. Na realidade, ao preconizar a
competência para as causas decorrentes da relação de trabalho, assentou o Texto Constitucional a atuação da Justiça do Trabalho para todas
as demandas em que houvesse uma relação jurídica de trabalho. Daí por
que a denominação de competência laboral.
Desta feita, há de ser aplicado o mesmo raciocínio que outrora era
empreendido na interpretação do artigo 114 da Constituição Federal. Para
a determinação da competência da Justiça do Trabalho, irrelevante se
faz a análise da natureza da matéria, se trabalhista, administrativa, civil
ou mesmo afeta ao campo do direito do consumidor. O elemento que
define a competência passa a ser a existência de uma relação de trabalho, conforme passaremos a analisar no tópico seguinte.
(2) Nesse sentido vinha decidindo o Colendo Tribunal Superior do Trabalho, fixando a
competência da Justiça do Trabalho para o julgamento de danos verificados antes da
formação do contrato de trabalho, ou mesmo após o seu termo, conforme julgamento
extraído do Processo n. RR-640818-2000, publicado no DJU de 29 de agosto de 2003,
4ª Turma, Relator Ministro Antônio José de Barros Levenhagen.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
239
III. Da competência laboral
Conforme já definimos, a nova regra do artigo 114 não reflete hipótese de competência material. Esta premissa é imprescindível para que
possamos definir o novo campo de atuação da Justiça do Trabalho. De
acordo com a nova regra constitucional, compete à Justiça do Trabalho
conciliar e julgar as causas decorrentes da relação de trabalho, nascendo, assim, aquilo que denominamos de competência laboral.
Imprescindível, nesse momento, definirmos o conceito de relação
de trabalho, partindo inicialmente da definição do termo trabalho.
Adotando a conceituação a de Tostes Malta, o trabalho é esforço
destinado à produção de riqueza(3). Deste conceito extraem-se dois elementos de grande relevância. O primeiro na presença da atividade humana e o segundo na predestinação desta atividade à produção. A mesma
linha de raciocínio é seguida por Evaristo de Moraes Filho(4), segundo o
qual para a boa definição de trabalho há a necessidade conjugação dos
elementos: a) trabalho humano, inteligente e moral; b) livre; c) associado; d) dividido; e) regulamentado; f) unido ao capital e g) protegido por lei.
Já a professora Maria Helena Diniz define trabalho como sendo “o conjunto de atividades humanas, intelectuais ou braçais que geram uma
utilidade” (5).
As definições acima pautadas permitem a extração de alguns elementos que são próprios do conceito de trabalho. Naquilo que interessa
ao presente estudo, poderíamos assentar o conceito de trabalho como
sendo fruto da atividade humana, com a utilização das energias alheias
em favor de alguém, que dele se beneficia, mediante retribuição. O conceito tratado não encontra qualquer restrição às hipóteses de relação de
emprego. Aliás, há muito, a doutrina aponta a relação de trabalho como
sendo gênero da qual a relação de emprego seria apenas espécie.
Na realidade, desse conceito extraem-se três elementos. Um prestador de serviços(autônomo, eventual, avulso, subordinado, etc), um
tomador de serviços(que pode ser pessoa física ou jurídica) e uma relação
(3) TOSTES MALTA, Christovão Piragibe. Rudimentos de Direito do Trabalho. Rio de
Janeiro: Edições Trabalhistas, 1966, p. 11.
(4) MORAES FILHO, Evaristo de. Introdução do Direito do Trabalho, vol. I. Rio de
Janeiro: Revista Forense, 1956, p. 102.
(5) DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico, vol. 4. São Paulo: Editora Saraiva, 1998,
p. 591.
240
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
jurídica de labor. Esta relação jurídica é denominada relação de trabalho,
que pode ser classificada de acordo com suas características.
Por outro lado, o conceito de relação jurídica passa pelo laço intersubjetivo, regulado pelo ordenamento jurídico, da qual emergem conseqüências obrigatórias no plano da existência.
Com efeito, ao tratarmos de relação de trabalho, podemos conceber que estão aqui abrangidas todas as relações intersubjetivas, de
natureza eficacial ou básica(6), cujo objeto seja a prestação de serviço
por pessoa física, em favor de alguém, que dele se beneficia, mediante
retribuição.
Nesse contexto, podemos concluir que a acepção de relação de
trabalho engloba o trabalho subordinado, os prestadores de serviço regulamentados pelo artigo 593 e seguintes do Código Civil de 2002, o empreiteiro, o depositário, o mandatário, enfim, todos os trabalhadores
que firmem contratos de natureza civil, administrativa ou trabalhista e
cujo objeto seja a prestação de trabalho em favor de outrem.
Para essas causas, em havendo uma pessoa física figurando no
vértice ativo da relação jurídica de trabalho, estará assentada a competência do Poder Judiciário Trabalhista, pouco importando a natureza da
matéria que ali esteja sendo discutida. Daí a concepção que acima
declinamos, no sentido de que o novel critério de determinação da competência da Justiça do Trabalho há de ser o laborativo, não mais se
concebendo a vesga visão do artigo 114 da Constituição Federal, como
sendo mera hipótese de definição de competência material.
IV. Relação de trabalho x Relação de consumo
Para a determinação da competência da Justiça do Trabalho, pouco importa a natureza da matéria que esteja sendo discutida, fazendose mister apenas o cotejo de sua gênese, ou seja, se decorrente de uma
relação de trabalho. Sendo assim, deparamo-nos com um feixe de rela(6) Na concepção de Pontes de Miranda, as relações jurídicas podem ser de natureza
básica ou eficacial, pontuando que “Para as relações jurídicas básicas não é preciso
que delas nasçam logo direitos e deveres. Pode mesmo dar-se não nasçam nunca.
Para as outras, que são relações intra-jurídicas, em vez de relações inter-humanas,
que se juridicizaram, o ser e o ter algum efeito hão de, pelo menos coincidir no início
delas. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti in Tratado de Direito Privado,
Parte Geral, vol. I. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1970, p. 118.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
241
ções jurídicas regidas pelas diversas ramificações do Direito, todas doravante abrangidas pela égide do artigo 114 da Constituição Federal.
Deixando à margem as relações jurídicas cujas competências
restam incontroversas, a exemplo das relações de emprego, avulsos e
eventuais, passamos ao cotejo das relações jurídicas que, apesar de
sua natureza excepcional, também estarão submetidas à apreciação da
Justiça do Trabalho, desde que fundadas em uma relação de trabalho.
O primeiro ponto a ser ultrapassado está assentado nas relações
enquadradas como de consumo, estando, portanto, materialmente regidas pelo Código de Defesa do Consumidor. Tal análise se faz necessária, na medida em que referida norma alça não só a aquisição ou utilização de produtos, mas também a prestação de serviços. Estes serviços,
por vez, podem ser prestados por pessoas físicas ou jurídicas. Na primeira hipótese, teremos um contrato de prestação de serviços, no qual
uma pessoa física assume a obrigação de prestar determinado trabalho
em favor de contratante, mediante retribuição e com destinação final.
A própria definição acima declinada evidencia que, mesmo na hipótese de estabelecimento de uma relação de consumo, haverá uma relação de trabalho antecedente e, como tal, deverá estar sujeita à competência da Justiça do Trabalho.
Importa registrar que a Lei n. 8.078/90 não possui normas processuais que definam competências. Trata-se, na verdade, de um instrumento
legal de proteção ao consumidor (CF, art. 5º, inciso XXXII), com indiscutível
alcance social, aplicável a todas as relações jurídicas em que haja prestação de serviço a consumidor com destinação final, exceto as de natureza
trabalhista. Com efeito, tecendo uma interpretação teleológica, conclui-se
que todas as relações de trabalho, contratadas diretamente com o consumidor final dos serviços, estarão sujeitas às disposições do Código de Defesa ao Consumidor, pouco importando a natureza dessas relações, feita
apenas a exceção quanto às relações de emprego.
Assim, teremos relações comerciais e civis sujeitas à incidência
do Código de Defesa ao Consumidor, como norma tutelar, sem que isso
afete o campo da determinação da competência.
Essa breve digressão se faz necessária apenas para destacar que a
caracterização da relação de consumo emergente, de determinada relação
de trabalho, não afasta a competência do Poder Judiciário Trabalhista. Isto
porque, conforme já tratamos alhures, a novel regra constitucional não assenta competência em razão da matéria, mas sim em razão do labor.
242
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
A relação de consumo, como não poderia deixar de ser, trata-se de
uma relação jurídica secundária, sendo sempre antecedida de uma outra
relação jurídica. Veja-se, por exemplo, que na aquisição de um aparelho
de televisão, antes de ser estabelecida a relação de consumo, há a formação de um contrato de compra e venda. Do mesmo modo, ao contratar a
execução de determinado serviço, antes do aperfeiçoamento da relação
de consumo, haverá a formação de um contrato de prestação de serviços.
Estas circunstâncias evidenciam que a relação de consumo, apesar de
eficacial, reclama a existência de uma relação jurídica prévia que não
deixa de existir pela sua submissão às disposições da Lei n. 8.078/90.
Essa circunstância já vem sendo reafirmada em constantes decisões do Superior Tribunal de Justiça, nas quais conclui pela aplicabilidade
do Código de Defesa do Consumidor aos contratos de leasing, ou mesmo de depósitos decorrentes de poupanças. Com efeito, emerge, com
segurança, a conclusão de que o enquadramento de determinada relação jurídica como de consumo, não desnatura sua substância inicial,
permanecendo os regramentos do contrato firmado pelas partes, mas
sujeitos às normas protetivas da Lei n. 8.078/90.
Por todos esses fundamentos, podemos concluir que o enquadramento de determinada prestação de serviços, como relação de consumo,
jamais poderá afastar a competência da Justiça do Trabalho, desde que
a relação jurídica básica seja de trabalho e que o prestador dos serviços
seja pessoa física.
A expressão “serviço” é definida por Eduardo Grabriel Saad (7) como a
atividade humana que, na ótica deste Código, exerce-se sem vínculo empregatício e, de conseguinte, com autonomia, mas sempre remunerada.
Referido autor aponta que as relações de trabalho abrangidas pelo Código
de Defesa do Consumidor são aquelas autônomas, firmadas a partir de contratos de locação de serviços. Veja-se que para referidas relações de trabalho a
natureza de consumo somente se materializa em momento posterior, não
transfigurando a essência do contrato firmado previamente.
Esta circunstância é facilmente verificada quando citamos a hipótese do representante comercial, regido pela Lei n. 4.886/65 e que tem
suas relações submetidas às disposições do CDC. No entanto, é incontroverso que se trata de uma relação de trabalho, indiscutivelmente submetida à novel competência da Justiça do Trabalho.
(7) SAAD, Eduardo Grabriel. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São
Paulo: LTr, 1999, p. 89.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
243
Desta feita, não é a circunstância de estar a relação jurídica protegida pelo Código de Defesa do Consumidor que irá afastar a competência da Justiça do Trabalho. Havendo relação de trabalho, a demanda
submeter-se-á à jurisdição trabalhista.
Assim, por exemplo, os efeitos de um contrato de prestação de
serviços cirúrgicos firmado pessoalmente por um médico com seu cliente estarão sujeito à competência da Justiça do Trabalho. Note-se que o
objeto desse contrato está afeto a uma relação de trabalho, abrangida,
portanto, pela norma do artigo 114 da Constituição Federal. Vale dizer
que, caso o cliente não pague o valor contratado pelos serviços, a execução do referido contrato deverá ser feita perante a Justiça do Trabalho.
Do mesmo modo, todos os efeitos que o cliente pretenda desse contrato
de prestação de serviços(que encerra uma relação de trabalho) estarão
sujeitos à competência do Poder Judiciário do Trabalho, inclusive a pretensão reparatória decorrente do erro médico, pressuposto que encontra
eco no próprio inciso VI do artigo 114 da Norma Constitucional.
Em resumo, todas as demandas decorrentes de relações de trabalho, inclusive as prestadas por profissionais liberais submetidos a regimes próprios, tais como advogados, agrimensores, contabilistas, engenheiros, farmacêuticos, médicos, químicos e outros, deverão ser julgadas pelo Poder Judiciário do Trabalho, na medida em que sua submissão ou não às disposições do Código de Defesa do Consumidor não
afeta o campo da competência, corolário próprio da natureza secundária
da relação de consumo.
V. Do deslocamento de competência — Exceção ao princípio da
perpetuatio jurisdictionis
Nos termos do artigo 87 do Código de Processo Civil, a competência é determinada no momento em que a ação é proposta, sendo irrelevante as alterações de fato ou de direito ocorridas posteriormente. Referido dispositivo consagra o princípio da perpetuatio jurisdictionis, que
somente encontra exceção nas hipóteses de extinção dos órgãos ou na
alteração da competência material ou hierárquica.
No caso, a alteração perpetrada pela Emenda Constitucional 45
trouxe supressão de competências materiais tanto da Justiça Estadual
quanto da Justiça Federal. Daí deflui a inequívoca ilação de que todos os
feitos que lá tramitam e que possuem a relação de trabalho como rela-
244
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
ção jurídica básica, deverão ser encaminhados para o Poder Judiciário
Trabalhista, feita a exceção apenas quanto aos processos de execução
baseados em títulos executivos judiciais, conforme será tratado no tópico seguinte.
VI. Dos processos de execução baseados em títulos executivos
judiciais oriundos de processos cognitivos
Quanto às execuções definitivas de títulos executivos judiciais, não
há que se falar em deslocamento da competência. Isto porque, para
referidos feitos, a competência executória é definida pelo critério funcional, não estando, portanto, albergada pelas exceções do artigo 87 do
Código de Processo Civil.
A competência executória para os títulos executivos judiciais provenientes de atividade jurisdicional vem definida pelo artigo 575, II, do
Código de Processo Civil, que determina seja a mesma processada perante o juízo ou tribunal que conheceu originariamente da causa. Notese que o elemento central de definição da competência está assentado
no aspecto funcional, ou seja, será competente para a causa o juiz ou
tribunal que tiver funcionado originariamente na causa. Nesse diapasão,
concluímos que as execuções para títulos executivos judiciais não se
encontram excepcionados pela disposição do artigo 87 do CPC, devendo, portanto, atentar ao princípio da perpetuatio jurisdictionis.
Nesse caso, havendo o título transitado em julgado, deverá a execução continuar a ser processada perante o órgão que conheceu originariamente da causa, não havendo o deslocamento da competência por
força da alteração do artigo 114 da Constituição Federal. Registre-se,
outrossim, que este raciocínio somente é aplicável às execuções de
natureza definitiva, na medida em que o elemento que define o lastro da
competência funcional está assentado no trânsito em julgado do título.
Desta forma, para as execuções de natureza provisória, também haverá
a necessidade de remessa dos autos para o Judiciário Trabalhista.
O professor Araken de Assis(8) registra que “o artigo 575, II, estabelece uma competência funcional e, portanto, absoluta”, imperando o interesse público em ver a sentença executada pelo juízo que conheceu origi(8) ASSIS, Araken de. Manual do Processo de Execução, 6ª ed. São Paulo: Editora
RT, 2000, p. 195.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
245
nariamente da causa, sob o raciocínio que este teria as melhores condições de implementar a necessária efetividade à atividade jurisdicional.
No mesmo sentido é a cátedra de Cândido Rangel Dinamarco(9), ao
pontuar que “é funcional a competência executiva (a) dos ‘tribunais superiores, nas causas de sua competência originária’ e (b) do ‘juízo que
decidiu a causa em primeiro grau de jurisdição’”. Pauta referido autor que a
competência executória para os títulos executivos judiciais, provenientes de processos cognitivos, constitui competência automática, resultando na ilação de que o juízo que conheceu originariamente da causa
será sempre o competente para processar a execução respectiva.
Quanto a este tema, merece ser observada a diversidade de entendimentos pautados pelo Superior Tribunal de Justiça, manifestando, inclusive, posicionamentos conflitantes entre a Segunda e Terceira Turma. A Eg. Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça posiciona-se
no sentido que ora defendemos, ou seja, que a competência executória,
por possuir natureza funcional, não encontra abrigo nas exceções do
artigo 87 do CPC. Nesse sentido é o conteúdo do julgamento proferido
nos autos do conflito de competência CC n. 30912 — RJ, em que foi
relator o Ministro José Arnaldo da Fonseca(10). Nesse caso, conforme se
depreende dos termos da fundamentação trazida, a alteração da competência material da Justiça do Trabalho não ensejou o deslocamento da
competência executória para a Justiça Federal.
Por outro lado, ao analisarmos o conteúdo do julgamento proferido
nos autos do Processo n. 34.312-RS, em que foi relator o Ministro Castro
Filho(11), verificamos posicionamento diametralmente oposto. Em referi(9) DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, vol. IV.
São Paulo: Editora Malheiros, 2004, p. 91.
(10) CONFLITO DE COMPETÊNCIA. JUÍZOS FEDERAL E TRABALHISTA. PROCESSO DE
EXECUÇÃO. SENTENÇA TRABALHISTA. MUDANÇA DE REGIME. COMPETÊNCIA DO
JUÍZO DO CONHECIMENTO. Ainda que tenha havido a mudança de regime do servidor,
o fato é que a sentença foi prolatada antes de tal alteração, e deve ser executada no
juízo do processo de conhecimento. (CC 30912-RJ, 3ª Turma, Relator Ministro José
Arnaldo da Fonseca, publicado no DJ do dia 8 de outubro de 2001, p. 161).
(11) CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. JUSTIÇA DO TRABALHO E JUSTIÇA
ESTADUAL. EXECUÇÃO DE SETENÇA PROFERIDA POR JUIZ ESTADUAL. TRABALHADOR PORTUÁRIO. ÓRGÃO GESTOR DE MÃO-DE-OBRA — OGMO.
I — Compete à Justiça do Trabalho executar sentença, já transitada em julgado, proferida pela Justiça Comum do Estado antes da alteração dos artigos 643 e 652 da CLT,
que fixaram a competência da Justiça Especializada para processar e julgar as ações
envolvendo trabalhador portuário e o Órgão Gestor de Mão-de-Obra — OGMO, decorrentes da relação empregatícia.
246
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
do julgado, determinou-se o deslocamento da competência executória
para a Justiça do Trabalho, não obstante a sentença transitada em julgado tivesse sido proferida pela Justiça Comum, verificando, assim, que a
Eg. Segunda Turma do STJ tratou a competência executória como se
fosse de natureza material, incorrendo, permissa venia, em equívoco na
aplicação da regra do artigo 87 do CPC.
Resta ainda afastar a incidência à hipótese da regra contida na
Súmula 10 do Superior Tribunal de Justiça. Referida súmula trata do
elastecimento da competência territorial da Justiça do Trabalho para as
localidades que outrora tinham a jurisdição laboral exercida pelos órgãos da Justiça Comum. Sabemos que a competência residual da Justiça Comum, definida inclusive pela atual regra do artigo 112 da Constituição Federal, somente é estabelecida pela ausência, na localidade, de
órgãos da Justiça do Trabalho. Nessa situação, por força do Texto Constitucional, o Juiz de Direito, enquanto exerce a jurisdição trabalhista, pertence à estrutura do Poder Judiciário do Trabalho. Tanto assim que a
referidos feitos deverão ser aplicáveis os preceitos do Processo do Trabalho, sendo a competência recursal exercida pelos demais órgãos do
Judiciário Trabalhista.
Com efeito, havendo a instalação do Órgão trabalhista na localidade, automaticamente deixa de existir a competência da Justiça Estadual,
estabelecida em razão da localidade. Verificamos, assim, que tal situação em muito se distancia da hipótese implementada pela Emenda Constitucional n. 45.
Em suma, a competência executória será sempre definida pelo
juízo prolator da decisão originária que houver transitado em julgado.
Logo, os processos de execução definitiva que se encontrem perante o
Judiciário Federal e Estadual não deverão ser recebidos para Justiça do
Trabalho, na medida em que referida competência não encontra enquadramento nas exceções do artigo 87 do CPC.
No entanto, quanto aos títulos executivos extrajudiciais, considerando que sua determinação não segue o critério funcional, deverão os
mesmos ser encaminhados para a Justiça do Trabalho, inclusive quanto
II — Inteligência da exceção prevista no artigo 87, segunda parte, do Código de
Processo Civil.
Conflito conhecido para declarar competente o Juízo da 2ª Vara do Trabalho de Rio
Grande — RS. (CC 3412-RS, 2ª Turma, Relator Ministro Castro Filho, publicado no DJ
do dia 10.6.2002, p. 139).
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
247
às ações de execução de penalidades administrativas impostas pelas
Delegacias Regionais do Trabalho, corolário lógico da regra do artigo
114, inciso VII, da Constituição Federal.
VII. Das normas processuais aplicáveis às novas competências
Dúvidas poderiam surgir acerca da norma processual aplicável às
novas relações jurídicas submetidas à jurisdição trabalhista. Poder-se-ia
partir, permissa venia, do equivocado raciocínio de que para as causas
estranhas à relação de emprego seriam aplicáveis as disposições próprias do processo civil. Esta concepção defluiria do equivocado conceito
do Processo do Trabalho como sendo o instrumento utilizado pelo Estado para a solução dos conflitos de natureza trabalhista.
Afirmamos ser equivocada essa ilação, porque o Processo do Trabalho serve não apenas para a solução dos conflitos trabalhistas. Em verdade,
a definição do Processo do Trabalho transcende o aspecto material.
O Processo do Trabalho pode ser corretamente definido como sendo o instrumento utilizado pela Justiça do Trabalho para a solução dos
conflitos submetidos à sua Jurisdição. Assim, mesmo no caso de causas estranhas ao contrato de trabalho, ser-lhe-ão aplicadas as disposições do Direito Processual do Trabalho, inclusive com seus princípios e
regras próprias.
Tal circunstância reclamará a adequação procedimental dos novos
feitos recebidos pela Justiça do Trabalho, notadamente nas causas submetidas aos juizados especiais cíveis e federais. A partir do momento
em que nos deparamos com a vigência da Emenda Constitucional 45, de
8 de dezembro de 2004, todos os feitos recebidos pela Justiça do Trabalho deverão ser enquadrados dentro da multiplicidade de procedimentos
previstos para o Processo do Trabalho, sempre observado o sistema de
isolamento dos atos processuais.
VIII. Da prescrição a ser observada
Questão que não demanda maiores ponderações está assentada
no prazo prescricional a ser observado para as novas causas sujeitas à
competência da Justiça do Trabalho. Falamos que a matéria não demanda maiores considerações, na medida em que a prescrição possui natureza jurídica de direito material. Desta feita, estando a regra do artigo 7º,
248
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
inciso XXIX, da Constituição Federal voltada às relações de emprego,
não seria aplicável às novas relações jurídicas inseridas no espectro da
competência da Justiça do Trabalho.
Para estas causas, teremos que observar os prazos prescricionais
previstos para as relações jurídicas materiais, podendo, portanto, reclamar incidência das regras dos artigos 205 e 206 do Código Civil.
IX. Jus postulandi e os honorários advocatícios
Nesse tópico, incumbe-nos analisar se às novas relações de trabalho, estranhas à relação de emprego, será aplicável o jus postulandi
previsto no artigo 791 da Consolidação das Leis do Trabalho. Tal análise
se faz imprescindível, haja vista a necessidade de aferirmos a potencialidade de condenações em verbas honorárias.
A capacidade postulatória constitui a qualidade atribuída ao indivíduo de postular em juízo. Como regra geral referida capacidade constitui
prerrogativa exclusiva dos advogados, consoante dicção do artigo 1º da
Lei n. 8.906/94. Ocorre que, para determinadas demandas, a legislação
ordinária estende a capacidade de postular em juízo, atribuindo-a a pessoas não inscritas nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil.
É o que ocorre com a norma do artigo 791 da Consolidação das
Leis do Trabalho, que atribui ao empregado e ao empregador a capacidade
de reclamarem pessoalmente e acompanharem suas reclamações dentro do Poder Judiciário Trabalhista. Em resumo, o jus postulandi constitui a capacidade atribuída ao empregado e ao empregador de postularem
em juízo sem que haja a necessidade de presença do advogado. Sabese que esta peculiaridade não constitui exclusividade da Justiça do Trabalho, sendo também verificada no âmbito dos juizados de pequenas
causas e na impetração do habeas corpus, mas sempre dentro do princípio do devido processo legal.
Nesse contexto nasce a necessidade de delimitação da extensão
subjetiva do jus postulandi.
Pois bem. Da exegese do artigo 791 da CLT, temos uma nítida
restrição aos titulares do jus postulandi no âmbito da Justiça do Trabalho, na medida em que o texto consolidado estende referida capacidade
apenas aos empregados e aos empregadores. Vale dizer que apenas
aqueles que estejam envolvidos por uma relação jurídica de emprego é
que serão alcançados pela norma em comento. Do contrário, não haven-
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
249
do entre os litigantes uma relação jurídica de emprego, ainda que no
campo da manifestação do interesse abstrato do autor, não haveria que
se falar em capacidade postulatória, sendo imprescindível a contratação
de um advogado.
Esta ilação é de grande relevância, na medida em que, com a ampliação da competência do Judiciário Trabalhista, teremos diversas demandas
cujas relações jurídicas não tocam a esfera do contrato de trabalho. Assim,
para referidas relações jurídicas, não haveria que se falar em jus postulandi,
pressuposto que tornaria obrigatória a contratação do advogado.
Releva destacar que o artigo 791 da CLT não estende a capacidade
postulatória para as partes no âmbito da Justiça do Trabalho, mas apenas ao empregado e ao empregador. Para as demandas estranhas às
relações de emprego, não há que se falar em incidência desta norma, na
medida em que não há empregado ou empregador.
Esta conclusão traz efeitos diretos sobre a questão atinente aos
honorários advocatícios. Isto porque, o fundamento central para afastar a
verba honorária, como efeito direto da sucumbência na Justiça do Trabalho, é construído, a partir da contratação facultativa do profissional, diante da norma do artigo 791 da CLT.
Como corolário, para as demandas submetidas à nova competência do Judiciário Trabalhista que não estejam embasadas em uma relação de emprego, imprescindível será a contratação do advogado, emergindo a obrigação da parte sucumbente em arcar com os honorários
advocatícios da parte vencedora, nas estreitas dicções do artigo 20 do
Código de Processo Civil, aplicado de forma subsidiária ao Processo
do Trabalho.
X. Conclusões
A par das considerações acima tecidas, podemos extrair as seguintes conclusões:
a) Para a determinação da competência da Justiça do Trabalho,
irrelevante se faz a análise da natureza jurídica da matéria que esteja
sendo objeto do litígio, bastando apenas que sua gênese esteja assentada em uma relação de trabalho. Logo, a disposição do artigo 114,
inciso I, da Constituição Federal não comporta enquadramento como
sendo norma definidora de competência material. Na realidade, referido
dispositivo constitucional institui um novo critério que deve ser observa-
250
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
do na determinação da competência do Poder Judiciário Trabalhista, qual
seja, o critério laboral, que no corpo do presente texto definimos como
competência laboral;
b) As relações de trabalho pautadas pelo artigo 114, inciso I, da
Constituição Federal devem ser compreendidas como sendo todas as
relações intersubjetivas, de natureza eficacial ou básica, cujo objeto seja
a prestação de serviço por pessoa física, em favor de alguém, que dele
se beneficia, mediante retribuição, não havendo qualquer restrição quanto à sua natureza;
c) O fato da relação de trabalho estar submetida às normas tutelares do Código de Defesa do Consumidor não afeta a competência da
Justiça do Trabalho, na medida em que a relação jurídica de consumo
possui natureza secundária, não alterando a relação jurídica de trabalho
precedente;
d) A alteração perpetrada pela Emenda Constitucional n. 45 trouxe
supressão de competências materiais, tanto do Poder Judiciário Estadual quanto do Federal. Logo, todos os feitos que lá tramitam e que
possuem a relação de trabalho como relação jurídica básica deverão ser
encaminhados para o Poder Judiciário Trabalhista, decorrência própria
da norma do artigo 87 do CPC;
e) Os processos de execução baseados em título executivo judicial, provenientes de processos cognitivos e de natureza definitiva, não
deverão ser encaminhados para a Justiça do Trabalho, ainda que no
processo de conhecimento tenha sido discutida demanda envolvendo
relação de trabalho. Isto porque a competência executória possui natureza funcional, não estando, portanto, abrangida pelas exceções do artigo 87 do CPC;
f) Quanto aos títulos executivos extrajudiciais, considerando que
para a determinação da competência não é observado o critério funcional, as execuções respectivas deverão ser encaminhadas para a Justiça
do Trabalho, inclusive quanto às ações de execução de penalidades administrativas impostas pelas Delegacias Regionais do Trabalho;
g) O Processo do Trabalho constitui o instrumento utilizado pela
Justiça do Trabalho para a solução dos conflitos submetidos à sua jurisdição. Desta feita, para as novas demandas contempladas pela ampliação da competência do Judiciário Trabalhista, dever-se-á aplicar o Direito Processual do Trabalho, com a adequação procedimental respectiva,
observando-se o prazo prescricional regente da relação material;
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
251
h) Considerando que o jus postulandi previsto no artigo 791 da CLT
restringe a capacidade postulatória aos empregados e aos empregadores, para as novas demandas submetidas à competência da Justiça do
Trabalho, e que não estejam embasadas em uma relação jurídica de
emprego, imprescindível será a contratação de advogado, emergindo a
obrigação da parte sucumbente em arcar com os honorários advocatícios da parte vencedora.
252
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
A Competência da Justiça do Trabalho
e a Nova Ordem Constitucional
Júlio César Bebber (*)
1. Considerações Preliminares
A Emenda Constitucional n. 45 deu nova redação ao art. 114 da CF, de
molde a ampliar (consideravelmente) a competência da Justiça do Trabalho.
A novidade do assunto e a falta de um amplo debate antecipado
imprime sérias dificuldades no seu trato. Isso, entretanto, tem pouca
relevância a partir do instante em que compreendemos que o absoluto
não existe; trata-se de uma miragem.
Daí por que me sinto à vontade para declinar as primeiras impressões a respeito de alguns assuntos relacionados com o mencionado
dispositivo constitucional (ora com abordagem técnica, ora tendo em
conta simples opção política), ciente de que jamais estarão depuradas
de imperfeições.
2. Critério da Competência da Justiça do Trabalho
A competência(1), ou seja, a parcela da jurisdição que pode ser
efetivamente exercida por um órgão do Poder Judiciário (CPC, art. 86)(2)
é selecionada em razão da matéria, das pessoas, da função, do valor da
causa e do território (ou foro)(3).
(*) Juiz do Trabalho Titular da 2ª Vara do Trabalho de Campo Grande — MS. Professor
de Direito Processual do Trabalho da Escola da Magistratura do Trabalho de Mato
Grosso do Sul. Mestre em Direito do Trabalho.
(1) “Competência é o conjunto de atribuições jurisdicionais de cada órgão ou
grupo de órgãos, estabelecidas pela Constituição e pela lei” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, v. I. São Paulo: Malheiros,
2001, p. 407).
(2) “Isso significa que todos os juízes têm jurisdição, mas dentro de certos limites”
(HOMMERDING, Adalberto Narciso. Vinte e Uma Lições de Teoria Geral do Processo.
Porto Alegre: Fabris, 2003, p. 137).
(3) As regras de competência acham-se inscritas na Constituição Federal, no Código
de Processo Civil, na Consolidação das Leis do Trabalho, em leis federais extravagan-
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
253
O constituinte derivado, tendo em vista o interesse público de administração da justiça, estabeleceu a competência da Justiça do Trabalho mediante a adoção do critério material — ratione materiae(4) — (ou
seja: segundo a natureza da relação jurídica de direito material afirmada)(5),
limitando-a, em casos específicos, a certas pessoas que se apresentam
para litigar.
3. Escopo Objetivo da Ampliação da Competência
Antes de emitir considerações específicas sobre o art. 114 da CF
cumpre-me definir o escopo objetivo da ampliação da competência da
Justiça do Trabalho.
A importância dessa definição é tamanha que a considero a pedra
de toque para análise desse novo momento histórico.
Dizer (como já ouvi) que o alargamento da competência da Justiça
do Trabalho traduz distribuição de tarefas no Judiciário é pensamento
simplista que ignora a inteligência do legislador e menospreza a importância (social e política) da reforma efetivada.
tes, nas Constituições Estaduais, nos Códigos de Organização Judiciária dos Estados, em leis estaduais e nos Regimentos Internos dos Tribunais.
(4) Especificamente no que pertine à relação de emprego, sempre que a pretensão
deduzida em juízo apresentar o contrato de trabalho como antecedente e presupposto
necessário da situação de fato, a competência será da Justiça do Trabalho. Nesse
sentido, aliás, a orientação adotada pela Corte di Cassazione da Itália: ¾ ogni volta
che il rapporto di lavoro si presenti come antecedente e presupposto necessario
della situazione di fatto in ordine alla quale viene invocata la tutela in sede giudiziale
(Cass. 2479/1992).
(5) “A determinação da competência faz-se sempre a partir do modo como a demanda foi concretamente concebida ¾ quer se trate de impor critérios colhidos nos
elementos da demanda (partes, causa de pedir, pedido), quer relacionados com o
processo (tutelas diferenciadas: mandado de segurança, processo dos juizados
especiais cíveis etc.), quer se esteja na busca do órgão competente originariamente
ou para os recursos. Não importa se o demandante postulou adequadamente ou não,
se indicou para figurar como réu a pessoa adequada ou não (parte legítima ou ilegítima), se poderia ou deveria ter pedido coisa diferente da que pediu etc. Questões como
esta não influenciam na determinação da competência e, se algum erro dessa ordem
houver sido cometido, a conseqüência jurídica será outra e não a incompetência. Esta
afere-se invariavelmente pela natureza do processo concretamente instaurado e
pelos elementos da demanda proposta, in statu assertionis” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, vol. I. São Paulo: Malheiros,
2001, p. 417-8).
254
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Penso, então, que a ampliação da competência da Justiça do Trabalho deve-se à:
a) exigência de acesso do jurisdicionado a uma estrutura judiciária
mais ágil e a um processo simplificado;
b) necessidade de uma nova postura na solução de certos conflitos, para os quais o juiz do trabalho está vocacionado.
4. Relação de Trabalho
O novo art. 114 da CF menciona quatro vezes a expressão relação
de trabalho (incisos I, VI, VII e IX) e, como não a define, caberá à doutrina e à jurisprudência fazê-lo.
Os conceitos até então adotados na doutrina especializada não
servem para o novo momento histórico(6). Isso porque se faz referência à
expressão relação trabalho com escopo único de mencionar o gênero
do qual a relação de emprego (contrato de trabalho) é espécie(7).
Tendo em vista, então, o escopo objetivo da ampliação da competência da Justiça do Trabalho (supra, n. 3), parece-me adequado definir
“relação de trabalho” como toda situação jurídica que emerge direta ou
indiretamente do serviço prestado por pessoa natural ou jurídica para
outra pessoa natural ou jurídica, mediante ou sem remuneração.
(6) “A Ciência do Direito enxerga clara distinção entre relação de trabalho e relação de
emprego. A primeira expressão tem caráter genérico: refere-se a todas as relações
jurídicas caracterizadas por terem sua prestação essencial centrada em uma obrigação
de fazer consubstanciada em labor humano. Refere-se, pois, a toda modalidade de contratação de trabalho humano modernamente admissível. A expressão relação de trabalho englobaria, desse modo, a relação de emprego, a relação de trabalho autônomo, a
relação de trabalho eventual, de trabalho avulso e outras modalidades de pactuação de
prestação de labor (como trabalho de estágio, etc.). Traduz, portanto, o gênero a que se
acomodam todas as formas de pactuação de prestação de trabalho existentes no
mundo jurídico atual. A relação de emprego, entretanto, é, do ponto de vista técnicojurídico, apenas uma das modalidades específicas de relação de trabalho juridicamente
configuradas. Corresponde a um tipo legal próprio e específico, inconfundível com as
demais modalidades de relação de trabalho ora vigorantes” (DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2002, p. 279-80).
(7) Segundo Délio Maranhão, pode-se fazer “a seguinte distinção terminológica: ‘relação jurídica de trabalho’ é a que resulta de um contrato de trabalho, denominando-se
‘relação de emprego’ quando se trata de um contrato de trabalho subordinado. Quando não haja contrato, teremos uma simples ‘relação de trabalho’ (de fato)” (SÜSSEKIND, Arnaldo. MARANHÃO, Délio. VIANNA, Segadas. TEIXEIRA, Lima. Instituições
de Direito do Trabalho. 21ª ed. São Paulo: LTr, 2003, p. 231).
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
255
Disse:
a) situação jurídica, por ser expressão que abrange a relação de
emprego e a prestação civil lato sensu, o que abarca, inclusive, a
relação de consumo (CDC, art. 3º, § 2º);
b) que emerge direta ou indiretamente do serviço, para expressar a
situação jurídica que se origina da própria prestação de serviços (v.
g., os honorários médicos derivam diretamente dos serviços médicos prestados), ou que a tem como antecedente e pressuposto
necessário da situação de fato (v. g., a indenização fundada em
erro médico se origina diretamente do fato lesivo que, por sua vez,
tem a prestação de serviços médicos como antecedente e pressuposto necessário dessa situação de fato);
c) prestado por pessoa natural ou jurídica para outra pessoa natural ou jurídica, porque a Constituição Federal não limita quem deve
ser prestador e tomador de serviço;
d) mediante ou sem remuneração, porque da prestação de serviço
gratuito também podem surgir conflitos que devem ser solucionados.
5. Processamento das Causas Não-Trabalhistas
Se um dos escopos do alargamento da competência da Justiça do
Trabalho é a de proporcionar ao jurisdicionado uma estrutura judiciária
mais ágil e um processo simplificado (supra, n. 3), outra não pode ser
minha assertiva senão a de que às causas submetidas à Justiça do
Trabalho, independentemente da natureza jurídica material litigiosa, aplicam-se as regras do processo do trabalho, salvo quanto às causas de
procedimento especial, como, v. g., o mandado de segurança e o habeas
corpus.
Não faz o menor sentido transferir para a Justiça do Trabalho a
solução de certas causas para que sejam aplicadas a elas as mesmas
regras processuais que as regiam. Isso representaria o fim da especialização da Justiça do Trabalho, uma vez que é exatamente no sistema
processual que reside essa especialização.
O novo modelo constitucional não merece ser visto de modo simplista. Não podemos interpretar a profunda e importante transformação trazida com a Emenda Constitucional n. 45 como mera mudança — mudou
por mudar. O alargamento da competência da Justiça do Trabalho repre-
256
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
senta muito mais que isso. Representa o progresso, a modernidade e o
desejo de algo novo: uma nova estrutura, um novo processo e uma nova
postura na solução de causas antes submetidas à Justiça Comum.
As causas de competência da Justiça do Trabalho, portanto —
salvo quanto às de procedimento especial —, devem observar todos os
princípios, peculiaridades e técnicas do processo do trabalho (jus postulandi, procedimento ordinário ou sumaríssimo, sistema recursal — depósito recursal pelo tomador de serviços, etc.).
6. Litígios Sindicais
Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar as ações sobre
representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores e entre sindicatos e empregadores (CF, art. 114, inc. III).
Algumas observações são necessárias:
a) dentro de um espírito interpretativo aberto, temos que o vocábulo
“sindicatos” deve ser entendido como entidades sindicais, o que
compreende, também, as federações e confederações;
b) a competência da Justiça do Trabalho abrange as ações:
(i) sobre representação sindical. A proliferação de sindicatos gera
concorrência pela mesma representação. Desse modo, surgindo o
conflito, caberá à Justiça do Trabalho solucioná-lo mediante critérios (quantitativos, qualitativos, institucionais, ideológicos, funcionais, estruturais) de fixação da representatividade(8);
(ii) entre sindicatos. Entre as entidades sindicais podem ocorrer
litígios, sendo mais comuns aqueles em que há disputa de arreca(8) REPRESENTAÇÃO SINDICAL. TRABALHADORES EM POSTOS DE SERVIÇO DE
COMBUSTÍVEIS E DERIVADOS DE PETRÓLEO (FRENTISTAS). Organização em entidade própria, desmembrada da representativa da categoria dos trabalhadores no comércio de minérios e derivados de petróleo. Alegada ofensa ao princípio da unicidade
sindical. Improcedência da alegação, posto que a novel entidade representa categoria
específica que, até então, se achava englobada pela dos empregados congregados
nos sindicatos filiados à federação nacional dos trabalhadores no comércio de minérios e derivados de petróleo, hipótese em que o desmembramento, contrariamente ao
sustentado no acórdão recorrido, constituía a vocação natural de cada classe de
empregados, de per si, havendo sido exercida pelos ‘frentistas’, no exercício da
liberdade sindical consagrada no art. 8º, II, da CF (STF-RE-202.097-4-SP, 1ª T., Rel.
Min. Ilmar Galvão, DJU 4.8.2000).
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
257
dação ou rateio das receitas sindicais (contribuição confederativa,
contribuição sindical, contribuição assistencial e contribuição associativa) e declaração de vínculo jurídico-sindical (v. g., entre sindicato e federação, em que aquele pretende a declaração judicial
da sua representatividade profissional ou econômica, a fim de obter
filiação junto a esta);
(iii) entre sindicatos e integrantes da categoria — trabalhadores ou
empregadores (v. g., ação anulatória de decisão assemblear ou de
eleição sindical; ação de cobrança de receitas sindicais).
7. Danos Materiais e Morais
Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar as ações de
indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho (CF, art. 114, inc. VI).
As observações que julgo necessárias são as seguintes:
a) como o dispositivo constitucional é aberto, abrange todos os danos originados pela própria prestação de serviços, ou que a tem
como antecedente e presupposto necessário da situação de fato
(v. g., danos decorrentes de erro médico e do acidente do trabalho);
b) embora o dispositivo constitucional faça referência unicamente
aos danos patrimoniais e morais (individual e coletivo)(9), não exclui
outras modalidades de danos como, v. g., os danos:
(i) estéticos.(10) A beleza natural da pessoa é o seu cartão de visita
e, em alguns casos, o seu instrumento de trabalho. A lesão dura(9) “A vida humana não é apenas um conjunto de elementos materiais. Integram-na,
outrossim, valores imateriais, como os morais. A Constituição empresta muita importância à moral com valor ético-social da pessoa da família, que se impõe ao respeito
dos meios de comunicação social (artigo 221, inciso IV). Ela, mais que as outras,
realçou o valor da moral individual, tornando-a mesmo num bem indenizável (artigo 5º,
incisos V e X). A moral individual sintetiza a honra da pessoa, o bom nome, a boa fama,
a reputação que integram vida humana como dimensão imaterial. Ela e seus componentes são atributos, em os quais a pessoa fica reduzida a uma condição animal de
pequena significação. Daí por que o respeito à integridade moral do indivíduo assume
feição de direito fundamental” (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 7ª ed., São Paulo: RT, p. 179).
(10) Admissível a indenização, por dano moral e dano estético, cumulativamente,
ainda que derivados do mesmo fato (STJ-REsp-40.259-RJ, 3ª T., Rel. Min. Waldemar
Zveiter, 25.4.1994).
258
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
doura à beleza física (causadora do enfeiamento) caracteriza o dano
estético;
(ii) biológicos. É o dano causado à saúde, entendida esta como
bem-estar psicofísico da pessoa. O empregador tem a obrigação
de tutelar a integridade física e psíquica do empregado mediante a
utilização de todos os instrumentos disponíveis pela ciência e pela
técnica.(11) A lesão à saúde (bem-estar psicofísico) do empregado
caracteriza o dano biológico.
8. Mandado de Segurança
Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar os mandados de
segurança (...) quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua
jurisdição (CF, art. 114, inc. IV).
As observações que julgo relevante nesse item são as seguintes:
a) passa a Justiça do Trabalho a ter competência para os mandados de segurança contra atos administrativos praticados no âmbito
ou em decorrência da relação de trabalho;(12)
b) é das Varas do Trabalho a competência para julgar mandados
de segurança contra atos administrativos praticados no âmbito ou
em decorrência da relação de trabalho, em que seja questionada
manifestação ou omissão de autoridade pública ou agente de pessoa
jurídica no exercício de atribuições do Poder Público.
(11) A Corte di Cassazione da Itália responsabilizou o empregador pelo excesso de
horas de trabalho imposta ao empregado que, por isso, veio a sofrer danos à saúde
(sentença n. 8267/1997).
(12) Como a Justiça do Trabalho, antes da reforma constitucional, julgava apenas as
relações de emprego, admitia-se unicamente mandados de segurança contra atos
jurisdicionais. É que na relação de emprego nenhuma das partes pratica ato de autoridade, ainda que uma delas seja órgão público.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
259
As Relações de Trabalho sem Vínculo de Emprego
e as Novas Regras de Competência
Márcio Túlio Viana (*)
1. Observação inicial ao Colega
Convocado pelo nosso presidente Grijalbo para participar dessa
coletânea, no meio de um dezembro cheio de atropelos, não tive tempo
suficiente para estudar e amadurecer as idéias. Além do mais, estou
muito longe de ser um especialista em Direito Civil, se é que sou especialista em alguma coisa. Minhas deficiências são grandes. Assim, as
conclusões a que chego são bem simples, têm valor muito limitado e
possivelmente contêm equívocos. De todo modo, espero que possam ter
alguma utilidade para um começo de debate.
A abordagem que faço aqui é bem genérica. É mais um convite
para pensarmos juntos. Ficaram de fora várias questões — entre as
quais as relações estatutárias no setor público, reincluídas à última hora
no texto da PEC, mas cujo destino final, até agora, ninguém sabe. Naturalmente, complementações e críticas serão sempre bem-vindas.
2. Introdução
Como nos ensina Oléa(1), o trabalho produtivo — voltado para as
nossas necessidades — pode ser realizado por conta própria ou alheia.
É por conta própria quando os frutos se conservam nas mãos do
produtor, que os consome ou os transfere, mais tarde, para um outro. É
por conta alheia quando os frutos vão sendo transferidos no exato momento em que estão sendo produzidos.
Para aquele autor, até mesmo a empreitada se realiza por conta
própria, pois é só num segundo momento, depois de concluído todo o
(*) Juiz do Trabalho aposentado. Professor de Direito do Trabalho da UFMG.
(1) Introdução ao Direito do Trabalho. Coimbra: Coimbra Edit., 1968, passim.
260
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
trabalho, que os frutos se deslocam de uma pessoa para outra. O seu
objeto são os frutos e não a força-trabalho em si(2).
Ao longo da História, até às vésperas da I Revolução Industrial,
o trabalho por conta alheia, quase sempre, foi também forçado. Já o
homem livre, quando trabalhava, fazia-o por conta própria.
Na Grécia, o camponês lavrava a sua terra, ajudado pelo escravo.
No Egito, o homem livre só cedia o seu braço — em troca de sandálias
e azeite — quando as cheias do Nilo inundavam a sua lavoura e o faraó
o chamava para construir pirâmides.
Em Roma, por volta do século III, os altos tributos e a insegurança
fizeram com que os pequenos proprietários trocassem as suas terras por
proteção. Nascia o sistema do colonato, precursor da servidão medieval.
No colonato, e depois na servidão, o homem era meio-livre, meioescravo. Daí por que o trabalho também se misturava: em alguns dias,
por conta própria; em outros, por conta alheia. Quando por conta alheia,
era gratuito, já que também forçado.
Mais tarde, nas cidades medievais, foi nascendo outra mistura:
o trabalho ao mesmo tempo livre e por conta alheia. Mas foi só com o
sistema capitalista que essa contradição se acentuou, tornando-se mais
radical(3) e massiva.
No começo, o empresário distribuía a matéria-prima entre os camponeses e suas famílias. Mais tarde, vendo que era difícil controlá-los, e que o
mercado exigia uma racionalidade crescente, resolveu reuni-los na fábrica.
Tanto numa fase, como na outra, foi o contrato que legitimou o paradoxo do homem livre que se subordina. Mas talvez só tenha conseguido
fazê-lo porque esse paradoxo era (e é) muito mais aparente que real.
Se fosse realmente livre para vender (ou não) a sua liberdade, o
trabalhador a manteria — inviabilizando o sistema. Desse modo, para
que o sistema se perpetue, é preciso não só que haja liberdade formal
para contratar, mas que falte liberdade real para não contratar(4).
(2) Op. cit., p. 88.
(3) É que, nas corporações, nem sempre havia liberdade de escolha do ofício; por
outro lado, o trabalho por conta alheia não impedia que o aprendiz se tornasse mestre,
e passasse a trabalhar por conta própria.
(4) A propósito do poder no contrato de trabalho, cf. MELHADO, Reginaldo. Poder e
Sujeição, São Paulo: LTr, 2003; e BACARAT, Eduardo Milléo. A boa-fé no Direito
Individual do Trabalho, São Paulo: LTr, 2003, passim.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
261
E foi assim que — antes mesmo do contrato — a lei expulsou o
camponês, enquanto a máquina vencia o artesão. Sem outros meios
para produzir, além das próprias mãos, ambos aceitaram então se submeter. As relações de poder tinham se tornado menos visíveis, mas nem
por isso menos fortes.
O Direito do Trabalho é obra desses homens que se perderam, por
já não terem o que perder. Mas talvez ele próprio não tivesse nascido, ou
crescido tanto, não fosse aquela fábrica cada vez mais concentrada,
com seus produtos previsíveis, as suas máquinas grandes e potentes e
os seus trabalhadores em massa, homogêneos e estáveis.
Foi essa espécie de fábrica que fez com que todos se sentissem
iguais e se unissem. Foi ela que viabilizou a resistência operária, semente
da qual brotariam as normas de proteção. Assim, mais que um subproduto do sistema, o Direito do Trabalho foi conseqüência de seu modo de
ser, que chegou ao ápice nos “anos gloriosos” do capitalismo.
E tanto foi assim que ele próprio se moldou à imagem e semelhança daquela fábrica, produzindo em massa as suas leis estáveis e iguais,
os seus princípios fortes e rígidos, o seu contrato-padrão e sem prazo. E
foi também assim que ele se apresentou com as suas regras minuciosas e abundantes, imitando o trabalho parcelado, uniforme e em série.
Hoje, como sabemos, a nova fábrica se desconcentra, organizando-se em rede. Para isso, articula-se não só com outras menores e
hipermodernas, mas também com empresas tayloristas e pequenas oficinas de fundo de quintal.
Com freqüência, utiliza-se de empregados informais, ou empregados alheios. Às vezes, serve-se até do trabalho escravo. Mas o fenômeno mais original talvez não seja esse — e sim a utilização crescente de
trabalhadores autônomos, não só falsos, mas também reais.
De fato, o sistema vem aprendendo e ensinando como extrair maisvalia por tabela, usando cada vez mais o trabalho do artesão, do profissional liberal, do cooperado ou do estagiário. Todos eles, trabalhadores
livres, exploram-se livremente para ganhar os contratos(5) .
A razão é simples: já é possível produzir sem reunir. Graças aos
avanços da técnica, a nova empresa pode controlar à distância o processo. Com isso, pode voltar — sem problemas — ao modelo primitivo,
quando encomendava tecidos às famílias de camponeses. E é assim,
(5) Para uma análise mais cuidadosa, cf. o nosso artigo “Terceirização e sindicato: um
enfoque para além do direito”, in Revista LTr. São Paulo: LTr, outubro 2003.
262
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
mudando o seu modo de ser, que ela inviabiliza a resistência operária,
neutralizando a principal fonte de criação do Direito.
Como se dizia (e todos sabem), nem sempre esses trabalhadores
à distância são empregados. Em muitos casos, realmente assumem os
riscos do negócio. Seja como for, porém, devem sempre se adequar às
rígidas diretrizes da empresa-mãe, da qual dependem economicamente.
Desse modo, apenas em termos formais é que a fábrica se horizontaliza. Em termos reais, continua vertical, na medida em que detém
sobre os parceiros invisíveis relações de domínio. Esse fenômeno é ainda mais presente, quando se trata de um trabalhador isolado, ou uma
empresa familiar, ou ainda uma cooperativa de produção.
Assim é, por exemplo, que
“na criação de aves (...), a agroindústria estabelece os padrões de
construção do aviário, fornece os pintinhos, as vacinas, a ração, a
assistência técnica necessária e garante a recompra dos lotes de
frangos prontos para o abate numa faixa de preços por ela estabelecidos (descontando, obviamente, os gastos que ela teve ao fornecer todos os insumos que acabamos de mencionar).
Ao produtor rural cabe arcar com os custos de construção e manutenção dos aviários, com a compra dos equipamentos adicionais que se
fazem necessários para proteger a saúde dos pintinhos, com a depreciação do patrimônio ou sua obsolescência, e com um trabalho intenso, de domingo a domingo, que envolverá inclusive toda a sua família”(6).
Assim, o que vemos renascer é o trabalho por conta própria, mas
com um novo traço. Na medida em que vai ocupando os espaços deixados pelo trabalho por conta alheia, contamina-se com os seus ares,
tornando-se — também ele — uma mistura.
Agora, já não é apenas o trabalhador livre que se faz empregado e,
portanto, dependente; é o próprio autônomo que trabalha sem autonomia
— não só técnica como econômica(7). Não é por outra razão que a doutrina italiana o tem chamado de “autônomo de segunda geração”(8).
(6) GENNARI, Emilio. Op. cit., p. 46.
(7) É claro que essa falta de autonomia é relativa e variável. Por outro lado, quanto ao
aspecto econômico, é sempre bom notar que muitos dos atuais autônomos não o são
por livre escolha — mas simplesmente porque estão desempregados.
(8) PERULLI, P.; SABEL, C. “Rappresentanza del lavoro autonomo e coordinamento
economico. Il caso degli enti bilaterali dell’artigianato”, in BOLOGNA, S.; FUMAGALLI,
A. (org). Il lavoro autonomo di seconda generazione — scenari del postfordismo in
Italia, Milão: Interzone, 1997, p. 249.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
263
De certo modo, é como se a relação de subordinação extrapolasse
o plano empregador-empregado e os limites do vínculo de emprego,
deslocando-se para a esfera empresa-empresa. É uma subordinação
diferente, pois convive com o seu contrário, mas não deixa de expressar
a mesma (e intensa) relação de poder.
Pois bem. Para muitos, toda essa realidade multiforme e contraditória indica que estamos ainda numa fase de transição. No futuro, tudo
se reordenará. Teremos apenas fábricas enxutas, automatizadas, com
alguns técnicos de avental branco e outros tantos botões. O maior
problema será gerir o ócio.
Preferimos acreditar, porém, que o futuro já esteja presente; e que
todas essas colagens do novo e do velho, tão naturais num mundo pósmoderno, tenham vindo para ficar. É desse modo que o sistema consegue reduzir custos, gerir incertezas e atender — com produtos sempre
novos — aos múltiplos e cambiantes desejos que ele próprio semeia.
E se a realidade, hoje, tem múltiplas faces, o Direito do Trabalho
terá de refleti-las, para que possa, em seguida, refletir-se nelas — corrigindo as suas maiores distorções. Nesse sentido, terá mesmo de ser
flexível, tal como a nova empresa tem sido; mas mantendo firme o seu
princípio protetor, tal como ela faz com a sua lógica de acumulação.
E para isso de três, uma: ou o Direito do Trabalho: (a) transforma
em jurídica a dependência econômica, estendendo ao autônomo os direitos do empregado(9); ou (b) protege de forma diferenciada o trabalho
por conta própria; ou (c) garante ao homem que trabalha, ainda que sem
trabalho, uma existência digna. Tal como tem acontecido com a própria
competência, que vem se alargando, é crescer para não morrer.
A nosso ver, das três alternativas (que não necessariamente se
excluem), a ideal é a terceira. Ela considera a realidade cambiante da
vida do trabalhador, que hoje pode ser servente, amanhã pedreiro, depois camelô, de novo servente, em seguida aprendiz(10), no outro mês
moto-boy e mais tarde, talvez, um alcoólatra de bar ou um malabarista
de rua. Nessa perspectiva, o Direito do Trabalho serviria de costura a
esses recortes de vida, com proteção variada e variável(11) .
(9) A propósito, cf. MACHADO, Sidney. (“A subordinação jurídica na relação de trabalho: uma perspectiva reconstrutiva” (tese de doutorado em Direito do Trabalho, Curitiba:
Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, 310 p., 2003, passim).
(10) Ainda que, informalmente, fora da idade-limite.
(11) Mais ou menos nesse sentido, por exemplo, o chamado “Relatório Supiot”.
264
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
No entanto, numa perspectiva mais próxima, ou menos idílica, as
duas primeiras alternativas são também interessantes. E as novas regras de competência podem significar um primeiro passo, embora não
se saiba ainda se para a frente ou para trás.
3. Um primeiro risco a ser enfrentado
Diz o inciso I do novo art. 114 que cabe à Justiça do Trabalho julgar:
“as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de
direito público externo e da administração pública direta e indireta
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.”
O problema é que, mais adiante, o inciso IX dá-lhe competência para:
“outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma
da lei.”
Pelo visto, houve uma distração geral. Ao se modificar a redação
do inciso I, esqueceu-se de suprimir o inciso IX. De todo modo, como o
texto está posto, resta interpretá-lo.
A primeira pergunta que se faz é: haverá alguma diferença entre
“ações oriundas” (inciso I) e “controvérsias decorrentes” (inciso IX) da
relação de trabalho? Em outras palavras: haverá controvérsias que não
sejam ações?
É difícil imaginar essa possibilidade. Se a controvérsia vai a juízo,
é porque há uma ação; se não há ação (como na jurisdição voluntária),
também inexiste controvérsia.
O único caso de controvérsia sem ação que nos vem à mente é
aquele em que, frustrada a negociação coletiva, as partes vão a juízo, de
comum acordo. Mas a hipótese foge ao comando do inciso IX, pois não
está “na forma da lei”, e sim da própria Constituição, ou mais precisamente do § 3º, do mesmo artigo.
Daí o risco, levantado pelo colega José Eduardo de Resende Chaves Júnior, de que, no futuro, os tribunais abram os olhos para o inciso
IX, fechando-os para o inciso I. E tudo ficaria como antes.
Naturalmente, embora possível de ocorrer, uma interpretação desse
gênero seria absurda. É que, como lembrava, a regra do inciso IX já
existia. Só veio a constar da emenda, porque a sua posição topográfica
mudou. Ora, se uma norma preexistente entra em choque com a nova, é
esta que prevalece. Trata-se de revogação tácita.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
265
Note-se que a norma mais antiga também serve para ajudar o intérprete a conhecer a mais nova. Como ensina Maximiliano, ela
“exerce uma função semelhante à do elemento histórico e, assim,
contribui para a exegese da moderna. Verifica-se o que foi que se
pretendeu explicar, ou dilatar, e colhe-se deste modo alguma
orientação para a descoberta do conteúdo e alcance da nova regra.
Não se fica, entretanto, adstrito ao sentido da norma primitiva: o
hermeneuta adquire a liberdade do historiador: investiga autonomamente; em torno do preceito vetusto procura elementos para demonstrar a razão de ser do mais moderno”(12).
Nem se argumente que “a lei não contém palavras inúteis”. Como
se sabe, o brocardo traz apenas uma presunção relativa:
“Se de um trecho não se colige sentido apreciável para o caso, ou
transparece a evidência de que as palavras foram insertas por inadvertência ou engano, não se apega o julgador à letra morta, inclinase para o que decorre do emprego de outros recursos aptos a dar o
verdadeiro alcance da norma(13).”
De resto, na lição de Canotilho, dentre os princípios que informam
a hermenêutica constitucional estão o da máxima efetividade, segundo o
qual se deve atribuir à norma o sentido que maior eficácia lhe dê; e o da
força normativa da Constituição, que pelo qual se deve priorizar a solução que possibilita a sua atualização(14).
4. As relações excluídas e as incluídas
Quais os tipos de trabalho que se excluem da nova competência?
Em princípio, deve-se excluir todas as hipóteses de trabalho por
conta própria — com a ressalva que faremos adiante.
Assim, ficam de fora as hipóteses em que o trabalhador faz a sua
obra e a consome, ou — num momento subseqüente ao de sua produção — transfere a sua propriedade, como acontece com o artesão da
feira. É que, no primeiro caso, não há qualquer relação, muito menos
jurídica; e, no outro, a relação não é de trabalho, mas de compra e venda
ou qualquer outra que importe alienação do domínio.
(12) Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio/São Paulo: Freitas Bastos, 1965, p. 275.
(13) Idem, p. 263.
(14) Direito Constitucional, Coimbra: Almedina, 1991, p. 235.
266
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Quais as relações incluídas na nova competência?
A resposta exige algumas colocações mais genéricas.
Como sabemos, o contrato de locação, no Direito Romano, compreendia três espécies:
a locatio rei, a locatio operis faciendi e a locatio operarum. A primeira correspondia à locação de coisas; a segunda, à empreitada
e a terceira, à locação de serviços.
Em nosso Direito, a locação de serviços, na trilha da tradição romana, não distinguia o trabalho subordinado e o autônomo. Foi só mais
tarde que a relação de emprego desgarrou-se das outras modalidades
de prestação de serviços, tornando-se o núcleo do Direito do Trabalho.
O novo Código Civil trocou a denominação “locação de serviços”
por “prestação de serviços”, que já era a preferida pela doutrina. Nessa
expressão genérica, Orlando Gomes, em obra clássica, já incluía os
contratos de prestação de serviços stricto sensu, de trabalho eventual e
de trabalho desinteressado (ou voluntário)(15).
Ora, se nos lembrarmos dos pressupostos da relação de emprego
— pessoa física, pessoalidade(16), subordinação, onerosidade e não-eventualidade — veremos que falta pelo menos um deles em cada um daqueles contratos.
Assim é que, na prestação de serviços stricto sensu, está ausente
o pressuposto da subordinação; no trabalho eventual, falta, naturalmente, a não-eventualidade; no trabalho voluntário, a onerosidade. Daí por
que esses contratos criam relações de trabalho, mas não de emprego.
Pois bem. Para efeito de competência da Justiça do Trabalho, até
a pessoalidade(17) pode faltar. Já o pressuposto da pessoa física deve
estar presente, pelo menos em princípio(18). Aliás, ele está implícito nos
art. 593 e segs. do Código Civil, que tratam da prestação de serviços.
(15) Contratos. Rio: Forense, 1986, p. 323. O autor incluía também o trabalho doméstico, mas este, como sabemos, já não se encontra regulado pela lei civil.
(16) Em geral, a doutrina insere no pressuposto da pessoalidade não só o caráter intuitu
personae da relação, no que diz respeito ao empregado, como também a sua qualidade
de pessoa física. Já Mauricio Godinho Delgado, em seu excelente Curso de Direito do
Trabalho (São Paulo: LTr, 2004, passim), prefere separá-los. Adotamos a sua lição.
(17) No sentido estrito, utilizado por Delgado (ver nota supra).
(18) A propósito de possíveis exceções, v. o item 5, infra.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
267
A propósito daqueles artigos, porém, é preciso observar que eles
não esgotam as hipóteses de competência da Justiça do Trabalho. Aliás,
o próprio Código Civil, ao tratar do contrato de prestação de serviços, ressalva leis especiais. E ele mesmo disciplina, em outros capítulos, hipóteses análogas, como é o caso do mandato. Pela mesma razão, também
não podemos reduzir o campo de competência àqueles contratos arrolados por Orlando Gomes. Em outras palavras, a “relação de trabalho” pode
não derivar de um contrato de prestação de serviços.
Seria a empreitada uma relação de trabalho?
Como vimos, Olea a inclui entre os trabalhos por conta própria. É que
desse contrato decorre uma obrigação de resultado, não de meio. Ainda assim, o fato é que a execução do trabalho pelo empreiteiro (pessoalmente ou
sob sua direção) é importante. Em certa medida, o contrato é celebrado
intuitu personae. Só não é assim se prever, expressamente, a hipótese de
subempreitada(19) . É por isso que a empreitada não se confunde com o contrato de fornecimento, em que importa apenas a entrega do produto final.
De mais a mais, como sabemos, a própria CLT já incluíra a pequena empreitada na competência da Justiça do Trabalho. E se o fez, foi
exatamente por considerar que se tratava de uma relação de trabalho.
Não fosse isso, a norma seria inconstitucional(20).
Pois bem. Sabemos que, até antes da emenda, alguns autores
incluíam na competência da Justiça do Trabalho, apenas as empreitadas de pequeno valor. Outros entendiam que o importante é tratar-se de
“operário ou artífice”, como diz literalmente a CLT. E outros, por fim,
somavam os dois critérios.
No entanto, diante dos termos da emenda, a única condição exigível para a competência será a presença de um operário ou artífice na
relação. Pouco importa o valor estipulado para o trabalho.
A mesma conclusão vale, naturalmente, se se tratar do trabalho
intelectual, artístico ou técnico, que nem todos os autores incluem na
empreitada(21). Ainda que se trate, por exemplo, do projeto de um grande
arquiteto, a competência será da Justiça do Trabalho.
(19) Nesse sentido, o colega e professor Manuel Cândido Rodrigues, doublé de
juslaboralista e civilista.
(20) É que o texto primitivo da CF, como se lembra, e já foi dito, permitia que a lei
estendesse a competência nas hipóteses de “outras controvérsias decorrentes da
relação de trabalho”.
(21) Como é o caso de Orlando Gomes.
268
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Pergunta-se: será assim apenas na empreitada de lavor, ou também
na mista, em que o empreiteiro entra com o trabalho e os materiais?
Se a controvérsia envolver o trabalho, em si, penso que a resposta
é afirmativa. Também na empreitada mista a competência será nossa.
É verdade que essas conclusões (como quase todas as outras)
podem ser questionadas.
Pode-se argumentar, com razão, que a Justiça do Trabalho não foi
criada para resolver questões como essas — envolvendo partes iguais.
Tanto a sua estrutura, como o processo com o qual atua, o direito que
aplica e até o perfil de seus juízes se relacionam com um certo tipo de
conflitos, cujo traço marcante é a desigualdade entre as partes. O que a
justifica, como Justiça Especial, não é tanto o fato-trabalho, mas a condição hipossuficiente do trabalhador. E esse seu papel poderá ser até
inviabilizado pelo acúmulo daquelas outras ações.
De outro lado, porém, pode-se observar que, se antes havia uma
coincidência entre o empregado e o pobre, entre o operário e o trabalhador por conta alheia, o fato é que, com o passar do tempo, até as profissões liberais foram se proletarizando. As razões foram várias — desde o
taylorismo, que separou o saber do fazer, até as próprias normas de
proteção, que acabaram atraindo os antigos autônomos. Não foi por
outra razão que a própria denominação “Direito Operário”, tão comum
até o início do século XX, caiu em completo desuso.
Além disso, não é tão certo que ações como aquelas sejam em
número tão grande assim. E não se pode tomar como base de comparação as atuais reclamatórias trabalhistas. Se a Justiça do Trabalho,
mesmo hoje, já conta com demandas em excesso, não é por lidar com
uma relação de trabalho como outra qualquer, mas porque na relação
com que lida: a) o salário, em regra, sucede ao trabalho, o que faz do
patrão o devedor mais freqüente; b) esse devedor, ao contrário do que
acontece na esfera civil (inclusive nas outras relações de trabalho), é a
parte mais poderosa da relação, na medida em que tem em suas mãos
a fonte de sobrevivência do credor — especialmente em países como o
nosso, onde falta proteção ao emprego.
Assim, também ao contrário do que acontece entre o dentista e o
seu cliente, ou o taxista e o passageiro, o devedor-patrão pode tranqüilamente não pagar a conta. Em outras palavras: ao longo da relação de
emprego, o Direito não se cumpre espontaneamente, pelo menos em
termos integrais. Chega manco, torto ou faltando pedaços ao seu destina-
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
269
tário. Também por isso, as ações que provavelmente inundarão a Justiça do
Trabalho serão as “relativas às penalidades administrativas impostas aos
empregadores pelos órgãos de fiscalização”, previstas no inciso VII.
Na verdade, o ideal seria que a Justiça do Trabalho julgasse
apenas as pequenas causas, dos pequenos trabalhadores e dos pequenos avisos prévios, pois são exatamente elas as mais importantes — já que podem envolver até um risco de vida para as famílias
mais pobres. Mas — até por uma questão de coerência — o critério
teria de ser o mesmo, tanto para as relações de emprego, como para
o trabalho autônomo. A mesma razão invocada para excluir as relações de trabalho entre o arquiteto e o seu cliente teria de servir para
afastar as lides de executivos-empregados e jogadores de futebol.
Além disso, diminuir por via hermenêutica ou mesmo legal o texto da
Constituição, especialmente num contexto precarizante, é sempre
um risco — pois cria uma espécie de precedente para futuras novas
investidas, em outros campos.
Seja como for, a grande importância das novas regras não diz
respeito a essas situações — que, como disse, talvez nem sejam tão
freqüentes — mas aos novos autônomos sem autonomia, especialmente aos que servem à empresa em rede. É o que veremos a seguir.
5. A nova competência e o trabalho autônomo individual
Antes, normalmente, a opção era ser empregado ou passar fome.
Só os que tinham certa condição financeira, ou um dom muito especial,
atreviam-se a procurar uma terceira via — o trabalho por conta própria.
O próprio movimento sindical valorizava a relação de emprego, que
era o seu ambiente natural. Aliás, várias das utopias que rompiam com o
sistema, como a de Marx, viam no trabalho por conta alheia não só o lugar
da exploração, mas a semente da revolução. Daí por que a imagem do
trabalhador autônomo era às vezes associada com a de um homem
alienado e egoísta(22).
Hoje, para um número crescente de trabalhadores, a única opção
possível tende a ser o trabalho autônomo. Mas — como vimos — com
uma diferença: ele passa a se articular, muito mais do que antes, com a
(22) A propósito, cf. BIHR, Alain. Da grande noite à alternativa, São Paulo: Boitempo,
passim.
270
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
grande empresa, que o utiliza em lugar do trabalho subordinado. E se ela
o faz, é exatamente porque já consegue, de algum modo, controlá-lo à
distância — não só do ponto de vista técnico, mas econômico.
Daí a grande importância da reforma. Ela oferece pelo menos a
Justiça do Trabalho a esse homem que já não tem sequer a condição
formal de explorado, que lhe garantia a aplicação da CLT.
Pergunta-se: será possível avançar um passo além, e aproveitar a
oportunidade para se lhe deferir alguns (ou todos os) direitos trabalhistas? Ou, formulando a questão de outro modo será possível considerar
empregados alguns desses autônomos e, dando um passo adiante, proteger também os que não fossem empregados?
1. A primeira questão nos remete ao principal pressuposto da relação de emprego — a subordinação.
Se mais uma vez observarmos a História, veremos que ao longo do
tempo, e até recentemente, tanto o conceito de subordinação, como o
de salário, foram se alargando. Pessoas antes não tidas como empregadas (como trabalhadores em domicílio, por exemplo), e parcelas antes
não consideradas salariais (como gratificações, prêmios e fringe benefits)
entraram para a órbita do Direito do Trabalho, que reproduzia o movimento
includente da empresa e do próprio sistema.
Hoje, a tendência se inverte nos dois planos. Não só a lei, em
alguns casos, passa a ignorar a subordinação, enquanto critério de inclusão (caso do estagiário, por exemplo), como a prática jurisprudencial,
pouco a pouco, parece dar importância crescente ao ajuste meramente
formal da autonomia. Ao mesmo tempo, tanto a lei como a jurisprudência vão excluindo a natureza salarial de várias parcelas.
Esse movimento excludente do Direito reflete igual tendência do
sistema que — como vimos — hoje transforma empregados em não empregados, reais ou falsos. E essa tendência não poupa, sequer, alguns
países avançados como, por exemplo, a Itália de Berlusconi.
Com efeito. Há já bastante tempo, o Código de Processo Civil daquele país estabeleceu o mesmo rito das ações trabalhistas para as
hipóteses em que a “colaboração” do prestador se fazia de forma continuativa e coordenada, ainda que não subordinada.
Mais ou menos a partir dos anos 90, essa regra começou a ser utilizada como suporte para legitimar — na prática — os chamados “contratos de
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
271
colaboração continuada”, ou mais sinteticamente “co.co.co.”, que, na observação irônica de uma autora(23), fazia lembrar galinhas de granja.
Esses contratos — que não asseguravam praticamente nenhum
direito além do salário pactuado e envolviam muitas vezes trabalho subordinado — multiplicaram-se por todo o país, como uma espécie de
praga. Em algumas atividades (como o magistério, por exemplo) e em
algumas faixas etárias (todos os jovens, exceto quando operários) tornaram-se virtualmente obrigatórios(24).
Desse modo, longe de traduzir um aumento, o famoso trabalho parassubordinado implicou uma redução no conceito de subordinação. Só mesmo restringindo o significado daquela palavra foi possível criar, em seguida,
um terceiro gênero, capaz de absorver todos aqueles trabalhadores fronteiriços que — de outro modo — seriam considerados empregados.
Pois bem. A nosso ver, essa é uma boa oportunidade para tentar
inverter essa tendência, entre nós, (re)construindo o mesmo conceito,
de uma forma mais ampla ainda que no passado. Para isso, será preciso
(re)valorizar não só a dependência econômica, como a integração da
atividade do prestador na atividade da empresa, tema tratado com maestria por Ribeiro de Vilhena(25).
2. A segunda questão nos remete não às diferenças, mas aos
pontos de semelhança entre o trabalho por conta própria e o trabalho por
conta alheia.
Com isso, quero chamar a atenção dos Colegas para o fato de que,
na essência, as hipóteses de prestação de serviços se tocam de perto
com o contrato de trabalho. Até a subordinação pode estar presente,
como em certas hipóteses de trabalho eventual ou voluntário. Aliás, é o
que também acontece no contrato de estágio, que poderíamos incluir
naquele rol de Orlando Gomes.
Exatamente por isso é que a lei civil imita, em várias situações,
a trabalhista — ou vice-e-versa (26) — prevendo, por exemplo, limites
(23) Roberta Bortone em artigos e conferências.
(24) Há cerca de dois anos, o governo conservador de Berlusconi transformou quase
todas as hipóteses de “co.co.co.” em “trabalhos a projeto”, que na essência precarizam do mesmo modo a situação dos trabalhadores fronteiriços e mesmo alguns que
tendencialmente seriam considerados empregados.
(25) Relação de Emprego, São Paulo: LTr, 2002, passim.
(26) Na verdade, foi a civil que veio antes, no tocante aos exemplos citados a seguir.
272
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
máximos para a prestação de serviços a termo, aviso prévio na hipótese
de não haver prazo e a resolução do contrato por justa causa.
Mas a própria doutrina civilista vai além, admitindo alguns implantes tipicamente trabalhistas na prestação de serviços. O saudoso mestre
mineiro Caio Mário da Silva Pereira dá um exemplo:
“Ocorre (...) o dever de proteção e segurança, mesmo fora do campo
do Direito do Trabalho”(27).
Como, hoje, as fronteiras entre aquelas duas formas de trabalho
estão se diluindo, podemos ensaiar novos passos na mesma direção.
Naturalmente, trata-se de uma tarefa difícil, mas não impossível. Como
ferramentas, poderíamos utilizar não só o princípio da isonomia, como também — mais uma vez — os da máxima efetividade e da força normativa
das Constituições, já mencionados supra(28).
A propósito, é interessante notar que, quando a CLT deu competência aos juízes do trabalho para a pequena empreitada, vários autores
passaram a defender a idéia de que tais direitos seriam os mesmos dos
empregados. Esse ponto de vista, embora minoritário, parte de uma visão mais global, ou mais unitária, da ordem jurídica; e pode nos ajudar a
usar o processo quase às avessas do modo tradicional, servindo de instrumento não apenas de efetivação, mas de produção do direito material.
6. A nova competência e as cooperativas de produção
Vimos que a relação de trabalho pode conter a empreitada — mas,
por outro lado, envolve pessoas físicas. Ainda assim, talvez seja possível, com novo esforço de interpretação, estender a competência da Justiça do Trabalho para alguns contratos intermediados por pessoa jurídica.
Suponhamos, por exemplo, que uma grande empresa, fabricante
de bolsas, queira terceirizar(29) para uma cooperativa de produção uma
(27) Instituições de Direito Civil, vol. III. Rio: Forense, 1999.
(28) Ainda a propósito do tema, cf. a dissertação de mestrado da colega mineira
Rosemary de Oliveira Pires, que parte dos termos amplos contidos na Constituição
(“São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais...”) para concluir que se deve
assegurar aos cooperados aquele mesmo patamar mínimo que é garantido aos empregados. Embora divirja da autora no tocante às cooperativas de mão-de-obra (que me
parecem sempre ilícitas, por natureza, e prejudiciais ao trabalhador), a idéia, como um
todo, merece ser discutida.
(29) É o que podemos chamar de “terceirização externa”, e que os economistas
chamam de subcontratação ou out-sourcing.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
273
parte de seu ciclo produtivo. Para isso, faz uma espécie de licitação.
Para ganhar o contrato, a cooperativa comprime ao máximo os seus
custos, precarizando as condições do trabalho para além do limite do
razoável — e desatendendo ao princípio da remuneração diferenciada
(naturalmente, para mais), proposto por Delgado(30).
A meu ver, seria interessante que a Justiça do Trabalho atuasse
nessas hipóteses, no mínimo para garantir segurança e higiene no trabalho. Com isso, talvez consiga evitar que a megaempresa externalize
selvagemente a própria concorrência, deflagrando uma espécie de guerra entre as contratadas. Haveria uma espécie de regulação indireta, inibindo contratos leoninos — que acabam provocando a auto-exploração
do trabalho.
Como justificar essa competência, em termos jurídicos?
Como sabemos, entre a cooperativa e os seus membros, a relação
é societária — mas implica, ou pode implicar, uma prestação de serviços. Na verdade, quase sempre, a cooperativa é mera intermediária entre
o trabalhador e a empresa em rede. É esta que distribui as encomendas,
traça as diretrizes da produção, fixa os critérios de qualidade total e
recebe em sua porta o produto que ela própria fazia, ou poderia ter feito.
E o que acontece em relação à cooperativa, também ocorre em
relação à empresa que encomenda os produtos. O que ela faz, no fundo,
é apenas expulsar e em seguida reaproveitar os trabalhadores que tinha
(ainda que não as pessoas, naturalmente), nas funções que se ligam
diretamente ao seu ciclo produtivo. Em substância, portanto, o que há
é uma relação de trabalho, ainda que com a mediação da cooperativa e sem
um contrato formal que a expresse.
Mas em face de quem a ação seria proposta?
Aparentemente, em face da cooperativa. Mas nesse caso o problema não se resolveria, pois a reparação viria do fundo comum — vale
dizer, dos próprios cooperados, inclusive o autor da ação.
Por isso, o ideal será responsabilizar a grande empresa, estendendo à hipótese as regras do grupo econômico (art. 2º, § 2º, da CLT).
Mas pergunta-se: como utilizar essas regras da CLT, se não se
trata de relação de emprego?
(30) DELGADO, Mauricio Godinho. Op. cit., passim.
274
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Para contornar o problema, bastaria aplicar diretamente a teoria da
desconsideração da personalidade jurídica, como sugere o colega Luiz
Otávio Linhares Renault (31).
Mas surge então outra pergunta: de que serviria uma ação como essa,
se o cooperado (ou o autônomo isolado) não tem direitos trabalhistas?
Teríamos de seguir a mesma trilha já exposta no item acima. Tarefa mais difícil ainda, mas igualmente possível. Outra idéia seria de tentar
enquadrar a hipótese no Enunciado n. 331 do TST, como já vem fazendo
o Ministério Público do Trabalho, em algumas ações recentes(32).
7. Outras possibilidades mais tranquilas
Com menos dificuldade, será possível estender a competência da
Justiça do Trabalho para hipóteses de responsabilidade pré ou pós-contratual — que muitos já consideravam nossa(33).
No tocante ao processo, uma possibilidade real é o aproveitamento do
mesmo rito para as novas demandas. Até algumas regras de direito material que se refletem no processo — como a exigência de recibo para provar
o pagamento — podem e devem ser utilizadas, especialmente no caso de
autônomos sem autonomia. Também para eles, as regras relacionadas a
custas e honorários advocatícios devem prevalecer. Mas talvez seja o caso
de não as aplicarmos nas grandes causas.
Ensaiando um exercício de futurologia, talvez se possa concluir
que a Justiça do Trabalho — bem mais acessível, em todos os sentidos
— deverá se tornar muito mais presente que a Comum no setor informal da economia. Nesse campo, o número de processos tende, pois,
a aumentar.
É também possível que muitas dessas demandas em potencial
mudem de natureza: o mesmo trabalhador que antes iria à Justiça Comum, pleiteando verbas de natureza civil, agora passa a pedir verbas
trabalhistas, seja porque o setor de atermação (onde ainda existe) o
instrui, seja porque o seu advogado tenderá a ser trabalhista.
(31) Da qual a própria figura do grupo econômico, como vem regulada na CLT, é uma
forma de aplicação.
(32) Na verdade, o Enunciado trata da terceirização interna, mas no fundo o problema
é o mesmo — e igual deve ser a solução.
(33) Nesse sentido, a colega Wilméia da Costa Benevides (“A Responsabilidade PréContratual no Direito do Trabalho”, dissertação de mestrado, UFMG, 1999).
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
275
8. O risco de um passo atrás
Num contexto em que toda inovação, mesmo com viés progressista, tende a ser lida ao contrário, a nova competência sobre relações de
trabalho traz pelo menos dois riscos.
O primeiro — já discutido — é o da inércia. Pode ser, realmente,
que o inciso IX acabe inviabilizando o I. O segundo, ainda mais grave, é
o de acentuar aquela nova tendência de se jogar os casos de fronteira na
vala comum da prestação de serviços.
Com efeito. Sabendo que o reclamante (que se diz empregado)
pode continuar se utilizando da Justiça do Trabalho, ainda que perca a
primeira causa (para pedir reparações civis), alguns colegas menos observadores podem se sentir mais tranqüilos e (ainda que inconscientemente) optar pela via mais fácil.
Naturalmente, todos esses riscos e dúvidas nos tornam mais responsáveis(34) . Daí a necessidade de aprofundar os debates sobre o tema.
(34) A propósito da função social do juiz e do Direito, cf., por todos, SOUTO MAIOR, Jorge
Luiz. O Direito do Trabalho como Instrumento de Transformação Social, São Paulo: LTr,
1999.
276
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
O Esmorecimento do Poder Normativo — Análise
de um Aspecto Restritivo na Ampliação da
Competência da Justiça do Trabalho
Marcos Neves Fava (*)
I. Introdução
Promulgada em oito de dezembro de 2004, a Emenda Constitucional 45 marca, historicamente, a implementação de mais de uma década de debates para realização da chamada “Reforma do Judiciário”.
Como bem aduziu, na cerimônia de promulgação, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Nélson Jobim, não é a melhor ou a pior,
mas a reforma feita pelo Povo Brasileiro, por meio da dialética possível e
típica do processo legislativo.
É, agora, uma realidade, que necessita ser apreendida — e aprendida — pelos militantes do direito, que tomarão posse, paulatinamente,
dos efeitos provocados pela alteração do Texto Maior.
Da enorme gama de matérias relevantes que decorrem da modificação da Carta Magna, a que diz respeito à ampliação da Justiça do
Trabalho irrompe, inegavelmente, uma verdadeira revolução. Com efeito,
a introdução da expressão “relação de trabalho” (artigo 114, I, da Nova
Constituição), como vetor da competência da Justiça Especializada
provoca transformações radicais – de raízes fundas, etimologicamente –
no universo do Direito do Trabalho, do Processo do Trabalho e da Justiça
do Trabalho. Vozes iniciam suas lições, desde já, dividindo-se entre a
interpretação mais abrangente possível de tal ampliação e a restritiva,
parcela de opinião para a qual pouca, ou nenhuma, modificação houve.
Na certeza de que tal modificação, a par das novas atribuições contidas nos demais incisos do artigo 114, implica alargamento majestoso no
(*) Juiz do Trabalho Substituto na 2ª Região. Mestrando em Direito do Trabalho pela
USP. Professor de Processo do Trabalho na Faculdade de Direito da Fundação Armando Álvares Penteado — FAAP. Diretor de Cultura e Ensino da ANAMATRA —
Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, no biênio 2003-2005.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
277
objeto de atenção da Justiça do Trabalho, reserva-se a este breve artigo
um aspecto restritivo da Emenda Constitucional recém-promulgada.
Com efeito, a restrição encontra-se no § 2º do art. 114, que tem,
agora, a seguinte dicção:
“Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio
coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir
o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao
trabalho, bem como as convencionadas anteriormente.”
Que se compara com a anterior, vazada assim:
“Recusando-se qualquer das partes à negociação ou à arbitragem, é
facultado aos respectivos sindicatos ajuizar dissídio coletivo, podendo
a Justiça do Trabalho estabelecer normas e condições respeitadas as
disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho.”
Vislumbra-se, na modificação, sensível redução do Poder Normativo da Justiça do Trabalho, que representa, para alguns, o nó central do
sistema de proteção do trabalhador instituído pelo ordenamento pátrio.
A Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho — ANAMATRA — reforça sua vocação pública de participação ativa na construção
de uma sociedade mais justa, tomando a iniciativa de fazer publicar este
livro, com estudos acerca do tema. Em razão da premência do tempo, o
presente artigo, que tem por objeto a configuração do poder normativo,
ante a nova ordem constitucional, não ultrapassa a barreira das ponderações preliminares.
II. Poder normativo
A clássica divisão das atribuições do poder, lançada por Aristóteles, em sua Política, e detalhada por Montesquieu, no “O Espírito das
Leis”, impõe a visão moderna da organização do Estado, separando-se
as funções estatais por sua atribuição a um dos três Poderes, que funcionam intimamente ligados, mas como órgãos autônomos e independentes. Registre-se que a idéia de “tripartição dos poderes” merece crítica,
porque o poder, em si, é uno e indivisível; as funções, sim, dividem-se,
segundo a vocação de cada órgão, definindo-se como “um modo particular
e caracterizado de o Estado manifestar sua vontade”(1).
(1) BASTOS, Celso Ribeiro de. Curso de Direito Constitucional, 18ª ed., São Paulo:
Saraiva, 1997, p. 340.
278
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
O sistema de divisão das funções entre os órgãos do Estado estabeleceu-se nas Constituições de quase todo o mundo, associando-se à
idéia de um engenhoso mecanismo de pesos e contrapesos, como explica Dalmo de Abreu Dallari: “Segundo essa teoria, os atos que o Estado pratica podem ser de duas espécies: ou são atos gerais ou são especiais. Os gerais, que só podem ser praticados pelo poder legislativo,
constituem-se na emissão de regras gerais e abstratas, não se sabendo, no momento de serem emitidas, a quem elas irão atingir. Dessa
forma, o poder legislativo, que só pratica atos gerais, não atua concretamente na vida social, não tendo meios para cometer abusos de poder
nem para beneficiar, nem para prejudicar a uma pessoa ou a um grupo
particular. Só depois de emitida a norma geral é que se abre a possibilidade de atuação do poder executivo por meio dos atos especiais. O
executivo dispõe de meios concretos para agir, mas está igualmente
impossibilitado e atuar discricionariamente, porque todos os seus atos
estão limitados pelos atos gerais praticados pelo legislativo. E se houver
exorbitância de qualquer dos poderes surge a ação fiscalizadora do poder judiciário, obrigando cada um a permanecer nos limites de sua respectiva esfera de competência”(2).
Adotando o mecanismo referido, por ordem constitucional, os poderes são, entre nós, “independentes e harmônicos entre si” (artigo 2º,
Constituição Federal) e tal fundamento aquilata-se pela qualidade de
cláusula pétrea, consoante estabelece o artigo 60, § 4º, III, da Carta Maior.
Ao Executivo incumbe a chefia de Estado, a chefia de governo e os atos
de administração, enquanto ao Legislativo atribui-se o dever de legislar e
fiscalizar, contábil e financeiramente, o Executivo, encarregando-se, o
Judiciário, da atividade de dizer o direito aplicável ao caso concreto, para
a solução das lides que lhe são apresentadas. A Constituição Federal
estatui, entretanto, para os mesmos poderes, funções que não lhe são
características, como se dá com o julgamento do Presidente da República pelo Senado Federal (artigo 52, I) ou quando o Legislativo dispõe
sobre sua organização, o provimento de cargos e a atribuição de remuneração e férias (atividades típicas do Executivo); o Executivo legisla por
meio das medidas provisórias (artigo 62) ou das leis delegadas (artigo
68), cria e extingue cargos (artigo 84, VI) e julga os litígios administrativos, no âmbito de sua atuação; o Judiciário, por fim, organiza-se admi(2) DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da Teoria Geral do Estado, 16ª edição
atualizada e ampliada. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 184-185.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
279
nistrativamente, ao conceder licenças, férias e estruturar seu quadro
funcional (medidas típicas do Executivo) e legisla, quando, por força do
artigo 96, I, a, cria seus regimentos internos.
Daí considerar-se que cada um dos poderes da República realiza
funções típicas ou atípicas(3). Ocorrerá o exercício destas últimas apenas quando qualquer dos Poderes receberem expressa autorização do
poder constituinte originário, como nos exemplos referidos no parágrafo
anterior. Como pondera Walter Ceneviva(4), a delegação de funções não
típicas constituiu solução inevitável, vez que o funcionamento estanque
de cada Poder, exercendo exclusivamente suas atividades constitucionais ordinárias, não seria suficiente a atender as demandas sociais. Por
se tratar de desvio excepcional dos trilhos da organização constitucional
do Estado, a referida expressa atribuição deve surgir em situações “muito próximas do inevitável”(5), evitando-se promiscuidade arriscada e comprometedora(6) da independência dos Poderes.
Uma das expressivas exceções ao método de organização estatal
da tripartição de poderes coincide com o “poder normativo” atribuído à
Justiça do Trabalho para decisão dos litígios coletivos.
Embora a doutrina assinale sua instituição na Constituição Federal
de 1937(7), a primeira Carta Política(8) que concebe a jurisdicionalização
da Justiça do Trabalho, a de 1946, foi a que trouxe, expressamente, a
autorização de deslocamento da competência legislativa, de forma específica, para o Judiciário, na solução de conflitos coletivos, in verbis:
“Artigo 123 – Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre empregados e empregadores, e as
(3) LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, 7ª ed., revista, atualizada e
ampliada. São Paulo: Método, 2004, p. 191.
(4) CENEVIVA, Walter. Direito Constitucional Brasileiro, 2ª ed., ampliada. São Paulo:
Saraiva, 1991, p. 40.
(5) PINTO, José Augusto Rodrigues. Direito Sindical e Coletivo do Trabalho, 2ª ed.,
São Paulo: LTr, 2002, p. 372.
(6) Walter Ceneviva, op. cit, p. 40: “o princípio da tripartição ainda se mostra útil à
democracia, mas tem encontrado sérios óbices para o cumprimento de sua finalidade quando o sistema verificador da ação dos poderes e o equilíbrio entre eles é
apenas formal, jurídico, mas abstrato, pois um dos Poderes (em geral o Executivo)
domina os demais”.
(7) HINZ, Henrique Macedo. O Poder Normativo da Justiça do Trabalho. São Paulo:
LTr, 2000, p. 51.
(8) Registre-se que, antes da Constituição de 1946, o Decreto-lei n. 1.237 de 1939
outorgava aos órgãos, então administrativos de solução dos conflitos trabalhistas, o
poder de criação de normas.
280
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
demais controvérsias oriundas das relações do trabalho regidas por
legislação especial.
§ 1º Os dissídios relativos a acidentes do trabalho são da competência da Justiça Ordinária.
§ 2º A lei especificará os casos em que as decisões, nos dissídios
coletivos, poderão estabelecer normas e condições de trabalho”(9).
A Constituição Federal de 1967 manteve idêntica redação, no primeiro parágrafo do artigo 134:
“§ 1º A lei especificará as hipóteses em que as decisões nos dissídios
coletivos poderão estabelecer normas e condições de trabalho”.
Com a Emenda Constitucional 1, de 1969, a matéria deslocou-se
para o § 2º do artigo 142, com idêntica redação.
Não comporta este ligeiro estudo a análise das controvérsias, já
superadas historicamente, sobre o impedimento de delegação da função
típica — objeção levantada por Pontes de Miranda(10) — ou sobre a solução encontrada pelos Tribunais para aplicá-lo, mesmo em face de lei
específica que desenhasse as hipóteses de cabimento, nos termos da
Constituição. Com efeito, a história já demonstrou superação dessas
objeções e o poder normativo grassa, há décadas, estabelecendo normas e condições de trabalho, com fulcro no processo introduzido pela
Consolidação das Leis do Trabalho, a partir do artigo 856.
Importa ver, desde logo, que a autorização constitucional de transferência do poder legiferante para o Judiciário – em matéria laboral e diante
da existência de conflito coletivo – vem fundada na expressão “estabelecendo normas”. Estabelecer, ensina-o Aurélio, é “criar, instituir, fundar”(11).
O cerne da autorização constitucional inculca-se no verbo estabelecer (12),
que se traduz pelo poder criativo do instituto em análise.
(9) Disponível em www.presidenciadarepublica.gov.br/ccivil_03/Constituicao/
Constituicao46.htm acessado em 30 de dezembro de 2004, sem grifos.
(10) A tese de Pontes de Miranda e sua refutação encontram-se bem alinhadas no
artigo “Pontes de Miranda e o Poder Normativo dos Tribunais do Trabalho” de Orlando
Teixeira da Costa, in Revista da Academia Nacional de Direito do Trabalho, São Paulo:
LTr, 1991, vol. 1, p. 193.
(11) HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque de. Auríelo Século XXI — o Dicionário da
Língua Portuguesa, 3ª ed., totalmente revista e ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 825, segundo sentido do vocábulo.
(12) No que, aliás, não se afasta literalmente de sua origem na “Carta Del Lavoro” de
Benito Mussolini, Lei 1926/563, artigo 13.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
281
Define-se o poder normativo como aquele “constitucionalmente conferido aos Tribunais Trabalhistas de dirimirem os conflitos coletivos de
trabalho mediante o estabelecimento de novas e mais benéficas condições de trabalho, respeitadas as garantias mínimas já previstas em lei”(13).
Ou, como leciona José Augusto Rodrigues Pinto(14): “é a competência
determinada a órgão do poder judiciário para, em processo no qual são
discutidos interesses gerais e abstratos, criar norma jurídica destinada
a submeter à sua autoridade as relações jurídicas de interesse individual
concreto na área da matéria legislada”.
De sua indiscutível natureza jurisdicional, segundo Octavio Bueno
Magano(15), emana a sentença normativa, que é, como sintetiza Mauricio
Godinho Delgado(16) “ato-regra (Duguit), comando abstrato (Carnelutti),
constituindo-se em ato judicial (aspecto formal) criador de regras gerais,
impessoais, obrigatórias e abstratas (aspecto material). É lei em sentido material, embora preserve-se como ato judicial, do ponto de vista de
sua produção e exteriorização”.
O poder normativo pode, ainda, ser concebido como uma forma
de integração do direito, como faz Pedro Vidal Neto(17), ampliando a
atividade integradora de intérprete que exerce o Juiz nos dissídios
coletivos, para que a eqüidade funcione como um meio de preenchimento de lacunas, nos dissídios coletivos. Nestes termos: “A atividade
judiciária não se reduz à subsunção lógica e silogística, mas envolve
a criação de normas jurídicas, que se desenvolve na aplicação e na
interpretação do direito. Resumidamente pode-se lembrar que o juiz
não se exime de julgar, alegando a inexistência de norma jurídica
adequada ao caso. Cabe-lhe descobrir a regra apropriada, mediante
mecanismos de integração do direito, i.e., recorrendo à analogia, aos
princípios gerais do direito e à eqüidade. Desse modo, são supridas
as lacunas do direito”.
Esta peculiar forma de solução dos conflitos coletivos adotada pelo
Brasil encontra-se, de há muito, no cerne de acirrado debate sobre a
(13) MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva, Processo Coletivo do Trabalho, 2ª ed.,
São Paulo: LTr, 1996, p. 13.
(14) Direito Sindical e Coletivo do Trabalho, 2ª ed., São Paulo: LTr, 2002, p. 370.
(15) “O Poder Normativo da Justiça do Trabalho” in Revista LTr, São Paulo: LTr,
setembro de 1991, volume 55, n. 9, p. 1.027.
(16) Direito Coletivo do Trabalho. São Paulo: LTr, 2001, p. 33.
(17) Poder Normativo da Justiça do Trabalho. São Paulo: LTr, 1983, p. 156.
282
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
necessidade de sua manutenção. Relembra José Carlos Arouca(18) que,
na história, o poder normativo antecipou o conteúdo das convenções e
acordos coletivos: “As decisões da Justiça do Trabalho determinavam o
conteúdo das poucas convenções, que Cid José Sitrângulo desvendou
através do tempo: No período de 1947 a 1952, eram apenas 5 cláusulas,
três altamente restritivas: a) aumento salarial (vez ou outra por faixas salariais); b) compensação dos aumentos concedidos na vigência do dissídio
anterior; c) exclusão dos abonos; d) exclusão dos repousos remunerados;
e) condicionamento do reajuste à assiduidade. Adiante, no período de
1953 a 1964, o avanço foi insignificante: a) reajustamento salarial; b) aplicação proporcional para os empregados admitidos após a data-base; c)
piso salarial; d) teto de aumento; e) compensação dos aumentos anteriores à data-base; f) condicionamento do reajuste à capacidade econômica
da empresa, ou sua capacidade financeira, ou ainda a sua capacidade
econômico-financeira. Assim, se para os trabalhadores o piso foi bom,
ruim foram as demais cláusulas. No período de 1965 a 1976, até onde
chegou o levantamento, os acréscimos foram: a) fornecimento de comprovantes de pagamento; b) fornecimento gratuito de uniformes, quando necessários para a prestação do trabalho; c) estabilidade provisória para a
gestante até dois meses após a licença compulsória; d) salário do substituto igual ao do empregado despedido sem justa causa; e) contribuição
em favor do sindicato para a realização de obras sociais”.
Resta bem demonstrada a importância do instituto, ao garantir o
avanço das normas protetivas do trabalhador, sem a fiança legislativa,
pelas decisões dos Tribunais do Trabalho, com função criadora, dita normativa. Justificam, alguns, sua mantença, sob os argumentos de que:
a) o modelo alimenta uma valiosa fonte formal de normas jurídicas trabalhistas e b) supre a falta ou a insuficiência de organização de algumas
categorias, para reivindicação de seus interesses.
Na trincheira oposta, por “traduzir fórmula de intervenção do Estado na gestão coletiva dos conflitos trabalhistas”(19), o poder normativo
tem sido duramente criticado. José Augusto Rodrigues Pinto, embora
reconhecendo que, no plano individual, o apelo social da manutenção do
poder legiferante dos Tribunais do Trabalho possa tutelar validamente
(18) “Instrução Normativa n. 4 — Uma Questão de Vida ou de Morte” in Revista
Síntese, Porto Alegre: Síntese, junho de 2003, vol. 168, p. 5.
(19) DELGADO, Mauricio Godinho. Direito Coletivo do Trabalho. São Paulo: LTr, 2001,
p. 33.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
283
interesses não protegidos por outras vias, assevera que “numa visão de
conjunto, é nocivo para o amadurecimento do sindicalismo”(20).
O polêmico instituto foi inserido, conclua-se, repetindo, no sistema constitucional pátrio de 1988, pela expressão “estabelecer normas
e condições”.
III. Alterações implementadas pela Emenda 45
1. Quanto à condição de ajuizamento. O pressuposto para o ajuizamento do dissídio coletivo é a impossibilidade de conciliação espontânea
das partes, por meio de negociação coletiva, aspecto que prevalece no
Texto Atual, que havia sido mantido no § 1º do pretérito artigo 114. A regra
está, também, fixada na CLT, a partir de 1967, já que o teor do artigo 616,
§ 4º, passou a estabelecer, com a vigência do Decreto-lei n. 229:
“Nenhum processo de dissídio coletivo de natureza econômica será
admitido sem antes se esgotarem as medidas relativas à formalização da Convenção ou Acordo correspondente”.
Há evidente aproximação entre o resultado positivo da autocomposição — o acordo coletivo de trabalho ou a convenção coletiva de trabalho — e a sentença normativa — mecanismo de heterocomposição —
que é fruto de seu resultado negativo. No magistério de Amauri Mascaro
Nascimento(21): “A tal ponto é a proximidade entre as duas figuras que a
doutrina alemã sustenta que a sentença normativa é o sucedâneo da
convenção coletiva frustrada. O conflito coletivo do trabalho tem nas convenções coletivas de trabalho uma forma de auto-solução e nas sentenças normativas uma forma de heterossolução, à falta do ajuste de vontades entre os interessados”. As cláusulas que as partes não foram capazes de redigirem por comum acordo resultam impostas pelo Estado, na
forma de sentença normativa.
A identificação entre os dois institutos justifica o posicionamento
legal de exigência do esgotamento da via negocial e, portanto, das possibilidades de solução do conflito por autocomposição.
O Tribunal Superior do Trabalho, já há alguns anos, vem dando
importância e magnitude efetivas a tal pressuposto, considerando-o funda(20) Direito Sindical e Coletivo do Trabalho, 2ª ed., São Paulo: LTr, 2002, p. 373.
(21) Curso de Direito Processual do Trabalho, 10ª ed., atualizada. São Paulo: Saraiva,
1989, p. 361.
284
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
mental para o conhecimento da ação de dissídio coletivo, extinguindo,
sistematicamente, sem análise do mérito, os dissídios que afloram sem
negociação prévia consumada:
“Ação coletiva. Exaurimento das tentativas de negociação direta prévia
não configurado. Ausência de comprovação do edital de convocação
da assembléia-geral dos trabalhadores. Quorum legal para a realização da assembléia-geral (art 612, CLT) não demonstrado. Extinção do
processo sem julgamento do mérito”(22).
A “recusa à negociação” emparelha-se à “recusa à arbitragem”
para, juntas, estabelecerem o pressuposto de instauração do dissídio
coletivo, confirmando-se a jurisprudência construída nos últimos anos
no cerne do Tribunal Superior do Trabalho e já mencionada, por exemplo. Bom é que e se compreenda que a “recusa” deve ser conceito
ampliado, para conter todas as formas de sabotagem da legítima negociação coletiva, aderindo-se a esta, para fins de validade, os princípios
da boa-fé e da razoabilidade. Daí o acerto na observação de José Carlos Arouca(23), de que todas as condutas anti-sindicais de esvaziamento da efetiva negociação devem ser tomadas como “recusa”: o agendamento tardio das sessões de negociação, a oferta desarrazoada, a
alegação, em defesa, de que não houve exaurimento da via negocial,
quando não formula, o suscitado, qualquer proposta conciliatória, a
negativa de legitimidade passiva etc.
2. Quanto à iniciativa do ajuizamento. O terceiro parágrafo do artigo 114 da Constituição Federal matém o mecanismo de entrega ao Ministério Público do Trabalho a iniciativa do dissídio, na hipótese de greve em
atividade essencial. A CLT, artigo 856, previa a representação da Procuradoria ao Presidente do Tribunal Regional do Trabalho, na hipótese
de “ocorrer suspensão do trabalho”. O Texto Emendado, portanto, é mais
restritivo do que o processo coletivo anterior, na medida em que, para
legitimação do Parquet, necessário que haja greve e que o movimento se
dê em atividade essencial “com possibilidade de lesão do interesse público”. Na ocorrência de movimentos paredistas em atividades nãoessenciais ou mesmo nas essenciais, se a organização dos trabalhadores evitar a possibilidade de lesão ao interesse público, não mais
(22) TST RODC 578444 — SDC — Relator Ministro Gelson de Azevedo, DJU 6.10.2000,
p. 13.
(23) “Instrução Normativa n. 4 — Uma Questão de Vida ou de Morte” in Revista
Síntese. Porto Alegre: Síntese, junho de 2003, vol. 168, p. 8.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
285
poderá o Ministério Público do Trabalho ajuizar — antes “representar” —
o dissídio coletivo.
Redução ainda maior, no entanto, opera-se em decorrência da hermenêutica do § 2º, que estabelece “recusando-se qualquer das partes à
negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum
acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica”.
Cumpre ver, a princípio, que a expressão “às mesmas” — isto é, as
“partes” — que substitui, no Texto de 88, a expressão “respectivos sindicatos” não implica qualquer modificação substancial. Com efeito, não
alterado o artigo 8º da Constituição Federal, a participação dos sindicatos mantém-se obrigatória na negociação coletiva e, assim, as “partes”
referidas correspondem aos respectivos sindicatos, na negociação para
convenção coletiva de trabalho e ao sindicato de empregados, na formação do acordo coletivo de trabalho.
A locução que se segue merece atenção. Diz o Texto modificado
pela Emenda 45 que as partes poderão ajuizar dissídio coletivo “de comum acordo”. Um aparente contra-senso: se os negociadores não chegam a um denominador comum, resolvendo o conflito, é porque há impasse. Ora, se há impasse, muito difícil é que uma das partes, pelo
menos, acene com interesse de aforamento do dissídio.
O emperramento da negociação, no mais das vezes, provoca a
reação da greve, mas o movimento de suspensão do trabalho, como
visto linhas acima, não ensejará representação do Ministério Público do
Trabalho para instauração da instância, exceto em se tratando de atividade essencial e com possibilidade de prejuízo ao interesse público.
Vislumbra-se plausível, pois, que em dado processo de negociação, as
partes não cheguem a acordo, ecloda a greve e nenhuma delas, por não
haver consenso quanto à utilidade da intervenção estatal, possa socorrer-se da via judicial.
A alteração em comento mostra-se substancial e revolucionária,
na medida em que afasta — depois de mais de seis décadas de aplicação do modelo acolhido pela Constituição Federal de 1988 — o Estado
como meio obrigatório de solução dos conflitos coletivos, para que funcione como uma espécie de arbitragem pública, eleita por ambos os envolvidos no litígio. Mecanismo muito semelhante resultou do Fórum Nacional do Trabalho, instituído para dar início à Reforma Sindical. Embora o
texto final da comissão de sistematização não tenha sido, até a data de
redação deste artigo, publicado, circularam algumas versões dos cinco
286
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
anteprojetos, um dos quais cuida da “arbitragem pública”(24), também
facultativa.
Rejeite-se, desde logo, que o princípio da inevitabilidade da jurisdição — artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal — inquinaria de inválida
a cláusula de instauração de instância por mútuo acordo, porque não há
garantia legal do direito ao acordo, isto é, ao resultado positivo da negociação coletiva.
Apenas se ambas as partes envolvidas no conflito coletivo elegerem o Estado como árbitro para sua contenda é que ocorrerá a instauração do dissídio coletivo.
3. Quanto à natureza do dissídio. Relevante notar que o § 2º do
artigo 114 em comento limita a natureza do dissídio ajuizável apenas
aos de natureza econômica. Sedimentada encontra-se na doutrina brasileira a tipologia dos dissídios coletivos, identificados como jurídicos
(de revisão ou de interpretação) e econômicos (ou de interesse)(25). Em
razão de suas preponderância e relevância, os últimos são classificados
como primários ou originários, e os primeiros, como secundários, ou
derivados. A redação atual limita à hipótese de dissídio econômico a
intervenção do Judiciário nos conflitos coletivos. Nesta espécie, segundo a doutrina que se construiu ao longo das décadas de vigência do
poder normativo, o objeto do processo é “criar norma, pouco importando
seja inédita ou substitutiva de outra criada em dissídio anterior da mesma espécie”, enquanto os derivados têm por objetivo “rever a norma anterior ou interpretá-la para aplicação em concreto”(26). Antes de analisar a
nova configuração do poder criativo de normas, cumpre registrar que a
Constituição Federal vigente, desde 31 de dezembro de 2004, isto é, a
revista pela Emenda Constitucional 45, extinguiu as formas de processo
coletivo de revisão ou interpretação.
4. Quanto aos limites da decisão. Questão tormentosa mostrouse, ao longo das décadas de vigência do poder normativo no Brasil, a
fixação de limites para seu exercício. Antigo decisório da Suprema Cor(24) Os textos podem ser encontrados em www.apub.org.br/plsresind.htm, acessado em 27 de setembro de 2004.
(25) Assim o reconhece, entre vários, Amauri Mascaro Nascimento, Curso de Direito
Processual do Trabalho, 10ª ed., atualizada, São Paulo: Saraiva, 1989, p. 316, antes
de apresentar sua pessoal preferência em classificar os dissídios em salariais e nãosalariais, constitutivos e declaratórios, voluntários e coactos etc.
(26) PINTO, José Augusto Rodrigues, Direito Sindical e Coletivo do Trabalho, 2ª ed.,
São Paulo: LTr, 2002, p. 378.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
287
te Trabalhista, relatado por Coqueijo Costa, procura estabelecer, com
analogia geográfica, tais limites: “Poder normativo. 1. O poder normativo,
atribuído à Justiça do Trabalho, limita-se, ao norte, pela Constituição
Federal; ao sul, pela lei, a qual não pode contrariar; a leste, pela eqüidade e o bom senso; e a oeste, pela regra consolidada no art. Setecentos
e sessenta e seis, conforme a qual nos dissídios coletivos serão estipuladas condições que assegurem justo salário aos trabalhadores, mas
‘permitam também justa retribuição às empresas interessadas’”(27).
O Supremo Tribunal Federal, em mais de uma decisão, restringiu a
operação do poder normativo, concluindo que as cláusulas criadas nas
sentenças normativas “a despeito de configurarem fonte de direito objetivo, revestem o caráter de regras subsidiárias, somente suscetíveis de
operar no vazio legislativo, e sujeitas à supremacia da lei formal (art.
114, § 2º, da CF)(28)”. Segundo o Pretório Excelso, a criação de normas
por meio do deslocamento da competência legislativa ocorreria apenas
no vazio da lei e, ainda, quando não houvesse “reserva legal”. Vale dizer,
para todos os aspectos do direito do trabalho já regulados pela lei ou
pela Constituição Federal, não se poderia inovar pela via do dissídio coletivo primário, assim como não se poderia invadir a competência do
Legislativo, quando o ordenamento apontasse para a lei como fonte formal de determinado direito. Exemplo da primeira hipótese é o valor da
hora extraordinária, já estabelecido em 50% pela Constituição Federal;
exemplo da última é o aviso prévio proporcional ao tempo de serviço “nos
termos da lei” previsto no inciso XXI do artigo 7º da Carta Política.
Rápida leitura de qualquer sentença normativa, no entanto, leva
à conclusão de que os Tribunais do Trabalho, tanto os Regionais,
quanto o Superior, nunca acolheram a interpretação restritiva da Suprema Corte, à vista da grande quantidade de cláusulas normativas
que repetem as palavras da lei, que aumentam os adicionais de horas
extraordinárias, noturno, de insalubridade ou periculosidade, e que
criam novas espécies de garantia de emprego, à revelia do inciso
primeiro do artigo 7º constitucional.
O texto anteriormente vigente, como já visto, autorizava os Tribunais do Trabalho a “estabelecer normas e condições respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho”. A
criação das normas, por interpretação estritamente gramatical, prendia(27) TST RODC n. 30/82, em 27.5.82, T. Pleno, Rel. Min. Coqueijo Costa. DJ 12.8.82.
(28) RE 197.911-9, 1ª Turma, Rel. Min. Octávio Gallotti, proferido em 24.9.1996.
288
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
se apenas aos limites da lei e das convenções vigentes. Por óbvio que,
neste quadro, não importavam as cláusulas convencionais já ultrapassadas, não mais vigorantes, porque a referência a elas dá-se ao lado da lei,
sem qualquer qualificativo especial, tudo em atendimento ao princípio da
condição mais benéfica(29), norteador do direito do trabalho. Havendo lei
ou convenção — válida e vigente — para as categorias em litígio, ao
Tribunal vedava-se a formulação de cláusula menos benéfica.
O texto atual da Constituição, no entanto, impõe como limites a lei
e as disposições mínimas “convencionadas anteriormente”. Refere-se,
pois, às normas resultantes da negociação coletiva entre as partes litigantes. Indica as cláusulas de convenção não vigentes no momento do
litígio, mas que as partes já aceitaram, no passado, como válidas e
aplicáveis. Desta perspectiva, ao contrário do entendimento sufragado
pelo Supremo, o tema “adicional de horas extraordinárias” poderia ser
tratado em dissídio coletivo econômico, desde que, em convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho anterior, as partes já tivessem fixado
adicionais diferentes ao constitucional. A medida valoriza o “livre jogo da
negociação”(30), outorgando maior responsabilidade aos pactos coletivos,
que poderão, em tempo futuro, servir de base para a decisão judicial.
A maior das restrições ao poder normativo, no entanto, merece
análise em separado, dado seu caráter revolucionário.
IV. Esvaziamento do poder criativo
A expressão “estabelecer normas”, repetida nas Constituições de
1946, 1967, na Emenda 01 de 1969 e na Carta Cidadão de 1988, foi
extirpada pela Emenda 45, o que aniquila o poder de criar normas. Aos
Tribunais do Trabalho, quando provocados por ambas as partes, de
(29) Por todos, transcreva-se a lição de DELGADO, Mauricio Godinho, Princípios de
Direito Individual e Coletivo do Trabalho. São Paulo: LTr, 2001, p. 43: “O presente
princípio dispõe que o operador do Direito do Trabalho deve optar pela regra mais
favorável ao obreiro em três situações ou dimensões distintas: no instante da elaboração da regra (princípio orientador da ação legislativa, portanto), ou no contexto
de confronto entre regras concorrentes (princípio orientador do processo de hierarquização de normas trabalhistas) ou, por fim, no contexto de interpretação das
regras jurídicas (princípio orientador do processo de revelação do sentido da regra
trabalhista)”.
(30) Expressão de CARRION, Valentin. Comentários à CLT, 26ª ed., atualizada e
ampliada por Eduardo Carrion, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 672, nota 3 ao artigo 856.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
289
comum acordo, decidirão o dissídio coletivo econômico, baseando seu
pronunciamento com observância das garantias mínimas legais e nas
cláusulas que já vigeram entre as partes litigantes.
Suponha-se que as categorias em dissenso tenham, em período
anterior, fixado, por meio de negociação coletiva, cláusulas de: reposição salarial com base na variação do IPC, adicional noturno de 25%, de
horas extraordinárias de 55% e estabilidade por acidente de trabalho.
Frustrada a negociação coletiva corrente, rejeitada a arbitragem, acorrem ao Judiciário — repita-se, por mútuo acordo —, podendo obter a
reafirmação dessas mesmas cláusulas. Este passa a ser, com a redação impressa pela Emenda 45, o poder criativo da normatização judicial
trabalhista. Impossível, outrossim, que, sem qualquer preexistência de
cláusulas convencionais, a invenção por parte dos Tribunais Trabalhistas.
Afaste-se, desde logo, o argumento de que o inciso IX do mesmo
artigo 114, que dá competência para a Justiça do Trabalho solucionar
“outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho na forma da
lei”, poderia ser evocado para manutenção do poder normativo amplo,
socorrendo-se da CLT (lei vigente e, por esse argumento, recepcionada
pela Emenda).
Por primeiro, porque há regra específica sobre o tema na própria
Constituição, contida no segundo parágrafo do artigo 114 e, é cediço, a
norma especial prevalece sobre a geral, embora não a revogue, por regra
de hermenêutica, bem traduzida na lição de Carlos Maximiliano: “Jus
singulare atende a particulares condições morais, econômicas, políticas
ou sociais, que se refletem na ordem jurídica, e por esse motivo subtrai
determinadas classes de materiais, ou de pessoas, às regras do Direito
Comum, substituídas de propósito por disposições de alcance limitado,
aplicáveis às relações especiais para que foram prescritas”(31).
Por um segundo motivo, no entanto, deve ser rechaçado o argumento de que o poder normativo poderia ser mantido pelo inciso IX do
artigo 114, a saber: o desaparecimento da autorização constitucional de
implementação de normas pelo Judiciário.
Com efeito, ao retirar da Constituição Federal a autorização aos
Tribunais para “estabelecer normas”, a Reforma do Judiciário subtraiu o
alicerce criativo da Justiça Laboral. Em tempos de assembléia constituinte (para a Carta de 1988), quando se discutia a manutenção do poder
(31) Hermenêutica e Aplicação do Direito, 3ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1946,
p. 275.
290
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
normativo, Evaristo de Moraes Filho(32), ao lutar pela conservação do
instituto, alertava: “A Justiça do Trabalho, porém, tem peculiaridades
que não devem ser esquecidas no Texto Constitucional, precisamente
por serem peculiaridades. Praticamente ela ficará ineficiente e se tornaria inoperante para julgar os dissídios coletivos se não se lhe desse a
competência normativa. E esta a lei ordinária não poderá dar, assim o
entendo, se antes não o houver feito de modo expresso a Constituição
que estamos elaborando” (sem grifo no original).
Por excepcional, a “competência normativa”, típica do Poder Legislativo, não pode ser instituída por via de lei ordinária, porque tal diploma
confrontar-se-ia com a Lex Major, perdendo, de pronto, sua eficácia. O
temor apresentado por Evaristo de Moraes Filho confirmou-se, décadas
depois do encerramento dos trabalhos constituintes, com a promulgação da Emenda em análise. Se não há raiz constitucional a permitir a
transposição da atividade típica do Legislativo ao Judiciário, inexiste poder normativo da Justiça do Trabalho. Como a dicção da nova regra permite a observância das condições antes fixadas em convenções coletivas, resta, residualmente, alguma autorização de criação — retius, de
ratificação — de normas inexistentes no ordenamento positivo, mas que
tenham, como conditio sine qua, vigorado, antes, entre as partes.
Mesmo na hipótese de ajuizamento do dissídio coletivo pelo Ministério Público do Trabalho — restrita à existência de greve em serviço
essencial e com possibilidade de lesão do interesse público —, a nova
ordem constitucional não prevê poder criativo, já que o terceiro parágrafo
do artigo 114 apenas refere ao dever da Justiça do Trabalho de “decidir o
conflito”.
V. Conclusões
A revolução da competência da Justiça do Trabalho instituída pela
Reforma do Judiciário e promulgada na forma da Emenda Constitucional
n. 45, de 8 de dezembro de 2004 (publicada em 31 de dezembro do mesmo ano), ampliou sobremaneira as atribuições da Justiça Laboral, mas
restringiu sua atuação nos dissídios coletivos. A partir desta nova ordem:
(a) os dissídios coletivos poderão ter conteúdo apenas econômico
— retius, de interesse — e não mais de interpretação ou revisão;
(32) “A Sentença Normativa” in BERNARDES, Hugo Gueiros (coordenador), Processo do
Trabalho — Estudos em Memória de Coqueijo Costa. São Paulo: LTr, 1989, p. 184.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
291
(b) dependerão da frustração da negociação coletiva e da arbitragem;
(c) somente serão ajuizados por acordo entre as partes litigantes;
(d) a Justiça do Trabalho, ao decidi-los, não poderá criar ou estabelecer normas não existentes no ordenamento positivo ou nos
acordos coletivos e convenções coletivas antes vigentes entre as
mesmas partes.
Restou, pois, reduzidíssimo o poder criativo dos Tribunais Trabalhistas, alimentados, ao longo de décadas, por “amplíssima criatividade”
no estabelecimento de novas condições de trabalho, à margem da lei
positiva.
Tão radical modificação do direito do trabalho brasileiro tende a
supervalorizar a negociação coletiva, desampara as categorias inorganizadas e estabelece um novo patamar de responsabilidade nas tratativas
entre empregadores e empregados. Urge que tal medida faça-se suceder de providências que tornem a representação sindical legítima e mais
efetiva, sob pena de ter constituído apenas involução das conquistas
históricas dos trabalhadores.
O tempo fará, como sempre, seu juízo definitivo. Quer da análise
agora desenvolvida, quer das inovações contidas na Emenda Constitucional n. 45.
292
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
As Duas Faces da Nova Competência
da Justiça do Trabalho
Mauricio Godinho Delgado (*)
I. Introdução
A Emenda Constitucional n. 45, de dezembro de 2004, ao implementar a chamada Reforma do Judiciário, trouxe significativas modificações à
competência da Justiça do Trabalho. Por meio de nova redação ao artigo
114 da Carta Magna, ampliou substancialmente o estuário de lides aptas a
serem conhecidas e julgadas pelo ramo justrabalhista especializado.
A reforma, contudo, é produto de seu tempo, em especial da década de 1990, período de forte acentuação no país do ideário de descomprometimento do Estado perante as necessidades sociais. Nesta linha,
o novo art. 114 denota com muita clareza as marcas dessa época, ao
menos em parte de seu conteúdo normativo.
De fato, pode-se perceber no recente Texto Constitucional, ao lado
de um avanço no processo de efetividade da mais genérica e testada
política de distribuição de renda e poder na sociedade capitalista — o
Direito do Trabalho —, um antitético direcionamento pela trilha do desprestígio deste ramo jurídico.
Há, em síntese, no texto reformado do art. 114 uma face inegavelmente positiva (incisos II e seguintes), que enfatiza a concentração neste ramo judicial especializado da competência de natureza empregatícia, seja a nuclear (lides entre empregadores e empregados), sejam as
inúmeras conexas a tal relação jurídica.
Há, entretanto, no mesmo texto, em seu inciso I, uma (pouco) sutil
face negativa, que, sem dúvida — intencionalmente ou não — incorpora
a tradicional cultura de desprestígio ao Direito do Trabalho, que tem caracterizado os excludentes Estado e sociedade brasileiros.
(*) Juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (Minas Gerais). Professor de
Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da PUC — Minas (Doutorado, Mestrado,
Especialização e Graduação). Autor da obra Curso de Direito do Trabalho (3ª edição,
São Paulo: LTr, 2004) e diversos outros livros e artigos nesta área temática.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
293
Na verdade, a competência judicial especializada seria elemento
decisivo a um sistema institucional voltado a buscar eficácia social para
o ramo justrabalhista (efetividade), a partir da constatação de constituir
esse ramo do Direito a mais ampla, eficiente e democrática política social já construída nas sociedades capitalistas em favor das mais largas
camadas populacionais. No Brasil, esse sistema institucional estaria
integrado pela Justiça do Trabalho, Ministério Público do Trabalho, Ministério do Trabalho e Emprego (em especial, auditoria fiscal trabalhista), a par dos sindicatos e empresas, na sociedade civil.
Por esta razão, a correta competência do ramo judicial especializado torna-se tema de crucial relevância para a consecução das
idéias basilares de democracia e justiça social no Brasil.
II. Face positiva do novo art. 114: concentração da competência
empregatícia
As Constituições brasileiras, desde 1946, passaram a regular a
competência da Justiça do Trabalho, concentrando-a nas lides entre
empregados e empregadores.
Até 1988, porém, os diplomas constitucionais não permitiram reunir
no segmento judicial especializado o diferenciado conjunto de lides conexas à relação de emprego, tais como, intersindicais, previdenciárias reflexas, lides vinculadas aos atos da fiscalização administrativa trabalhista,
etc. É como se a ordem constitucional temesse que tal concentração de
competência no âmbito da Justiça do Trabalho conferisse força demasiada ao sistema trabalhista do país, atenuando o relativo isolamento que a
mesma política oficial sempre buscou conferir ao Direito do Trabalho.
A Carta de 1988, de certo modo, começou a romper com essa
tradição. De fato, fixou em seu art. 114 regra competencial bastante
alargada, abrangendo qualquer lide que tivesse como sujeitos recíprocos, trabalhador e empregador, independentemente da natureza da própria lide. Desse modo, abriu caminho, por exemplo, para a incorporação
da competência judicial quanto a indenizações por danos de caráter moral
ou material entre empregador e empregado.
A interpretação construtiva da norma da Carta de 1988 poderia ter
conduzido à ampliação ainda maior da competência especializada, em
face da largueza do comando constitucional; entretanto, como se sabe,
a jurisprudência preferiu manter-se nos limites da leitura acima exposta.
294
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
A Emenda Constitucional n. 45, de dezembro de 2004, avançou no
caminho progressista aberto pelo texto original de 1988, estendendo,
sem dúvida, a competência da Justiça do Trabalho para lides conexas à
relação de emprego, ou seja, que não tenham rigorosamente empregador e trabalhador como sujeitos recíprocos de pretensões e obrigações.
É o que se passa, ilustrativamente, no tocante às “ações sobre
representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores” (art. 114, III). Também é o que
ocorre quanto às “ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho” (art. 114, VII).
A nova emenda absorveu, obviamente, o avanço anterior na mesma
direção produzido pela EC n. 20, de 1998, no que tange à competência
para “execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art.
195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que
proferir” (art. 114, VIII).
A EC n. 45/2004, finalmente, afastou dúvida competencial ainda
percebida nos anos seguintes a 1988 em certas correntes jurisprudenciais, firmando, de vez, o poder jurisdicional da Justiça do Trabalho. É o
que se passa com os “mandados de segurança, habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição” (art. 114, IV). É o que se verifica também quanto às “ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho”. Na mesma direção — embora aqui nenhuma dúvida fosse pertinente existir — a competência da Justiça do Trabalho para julgar as “ações
que envolvam exercício do direito de greve” (art. 114, II) e os “conflitos de
competência entre órgãos com jurisdição trabalhista, ressalvado o disposto no art. 102, I, o” (art. 114, V).
O avanço político, cultural, institucional e jurídico trazido pela nova
emenda constitucional, no plano dos dispositivos ora citados, é simplesmente manifesto. Por meio do alargamento da competência da Justiça
do Trabalho a Carta Magna passa a reconhecer, indubitavelmente, a existência de um sistema institucional justrabalhista, como instrumento voltado à busca da efetividade do Direito do Trabalho.
Conforme já explicitado, a competência judicial especializada é
elemento decisivo à existência e articulação de todo um sistema institucional voltado a buscar eficácia social (efetividade) para o ramo jurídico
trabalhista. Esta busca de efetividade justifica-se em face da constata-
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
295
ção de constituir o Direito do Trabalho a mais ampla, eficiente e democrática política social já construída nas sociedades capitalistas em favor
das mais largas camadas populacionais. No Brasil, esse sistema institucional estaria integrado, à luz do exposto, pela Justiça do Trabalho,
Ministério Público do Trabalho, Ministério do Trabalho e Emprego (em
especial, auditoria fiscal trabalhista), a par dos sindicatos e empresas,
na sociedade civil.
Por esta razão é que se afirmou ter a correta competência do ramo
judicial especializado crucial importância para a consecução das idéias
basilares de democracia e justiça social no Brasil.
Na presente medida, isto é, no instante em que concentrou na
Justiça do Trabalho a competência para conhecer e julgar lides nucleares e conexas que tenham fulcro na relação de emprego, a nova emenda
constitucional fez despontar sua face progressista, democrática e direcionada à busca da justiça social. Um sistema justrabalhista racional,
eficiente e interconectado é, sem dúvida, alavanca imprescindível para a
conquista da efetividade do Direito do Trabalho no país.
III. Face negativa do novo art. 114: incorporação da cultura de
desprestígio ao Direito do Trabalho
A reforma do Judiciário, entretanto, produto de 12/13 anos de articulações políticas no Congresso, lamentavelmente, também, evidenciou
a assimilação da cultura de desprestígio do Direito do Trabalho, tão exacerbada ao longo dos anos de 1990 no país.
No Brasil — conforme será melhor examinado no item IV, a seguir
— sempre foi recorrente o isolamento e certo desprestígio cultural do ramo
justrabalhista, em contraponto com o largo prestígio e inserção social
alcançados na história dos países capitalistas europeus mais avançados.
Tais isolamento e desprestígio exacerbaram-se na década de 1990
na realidade brasileira, em meio ao ideário de descomprometimento social do Estado, aqui veiculado laudatoriamente desde o início daqueles
anos (ideário que já manifestara sua força na Europa Ocidental pós1970). Os efeitos deletérios deste desprestígio e isolamento disseminaram-se ainda mais em decorrência do apelo da variante intelectual especificamente brandida contra as conquistas da Democracia Social no
Ocidente, qual seja, a idéia do fim da sociedade do trabalho, da centralidade do trabalho e do emprego no mundo capitalista.
296
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Nesse contexto, o Direito do Trabalho — a mais significativa conquista das grandes massas populacionais na economia e sociedade
capitalistas ocidentais, a mais eficiente e generalizada política de distribuição de renda e poder na história do capitalismo — passou a ser acentuadamente desgastado, em irresistível blitzkrieg de críticas, as quais,
curiosamente, originavam-se desde os segmentos mais conservadores
da sociedade, passando pelas novas vertentes de renovação ideológica do
sistema hegemônico, despontando até mesmo de certas searas oriundas do clássico pensamento democratizante e distributivista gestado
nos séculos XIX e XX.
O estratagema de implosão das conquistas socioeconômicas alcançadas pelas macropopulações nas sociedades capitalistas, das políticas públicas distributivistas de poder e renda, supunha a derruição
da matriz filosófico-cultural de todo o avanço da Democracia Social no
Ocidente, qual seja, a noção de sociedade do trabalho, a centralidade
do trabalho e emprego, o trabalho e o emprego como valores, fundamentos e princípios do Direito contemporâneo.
No Brasil — onde sequer se havia construído qualquer projeto de Democracia Social, com suas conquistas e garantias em benefício das grandes maiorias populacionais —, a reunião, na década de 1990, do velho
padrão cultural excludente aqui hegemônico, com as novas vertentes intelectuais justificadoras do descompromisso social, tudo conduziu a um movimento irreprimível de fustigação e desprestígio do Direito do Trabalho.
A Emenda Constitucional n. 45, infelizmente, expressa isso.
O inciso I do novo art. 114, ao retirar o foco competencial da Justiça do Trabalho da relação entre trabalhadores e empregadores (embora
esta, obviamente, ali continue incrustada) para a noção genérica e imprecisa de relação de trabalho, incorpora, quase que explicitamente, o
estratagema oficial dos anos 90, do fim do emprego e do envelhecimento
do Direito do Trabalho. A emenda soa como se o trabalho e o emprego
estivessem realmente em extinção, tudo como senha para a derruição
do mais sofisticado sistema de garantias e proteções para o indivíduo
que labora na dinâmica socioeconômica capitalista, que é o Direito do
Trabalho.
A perda do foco no emprego — e seu ramo jurídico regulador —
retira o coração e a mente da Justiça do Trabalho do seu papel social
imprescindível, de contribuir para a construção da justiça social no conjunto do sistema institucional a que pertence. A história demonstra que
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
297
não se constrói justiça social no âmbito da desigual sociedade capitalista
sem um amplo, diversificado, genérico, democrático, porém equilibrado,
mecanismo de distribuição de poder e renda, como o Direito do Trabalho.
O novo inciso constitucional expressa, ainda, certo preconceito
contra as dezenas de milhões de trabalhadores que laboram com os elementos da relação de emprego (ainda que não formalmente reconhecidos,
todos eles, como empregados): é como se a Emenda n. 45/2004 considerasse injustificável o direcionamento de tamanhos recursos públicos
para um segmento do Judiciário basicamente voltado às lides de tais
empregados, usualmente das camadas menos favorecidas da população. Nesta linha algo preconceituosa (muito própria à ideologia de descompromisso social dos anos 90, registre-se), seria necessário otimizar
a atuação da Justiça do Trabalho, direcionando-a também a grupos sociais integrados de modo distinto ao mercado econômico, sem traços de
subordinação aos respectivos tomadores de serviços (profissionais liberais e outros agentes autônomos, por exemplo).
Ora, trata-se de um equívoco, inclusive do ponto de vista estatístico:
não há, nas economias capitalistas, número tão grande de efetivos profissionais autônomos, uma vez que jamais deixou de ser nelas maciça a
prevalência do universo de empregados, mesmo na realidade mais recente. Pelos dados europeus de fins dos anos 80 e meados da década
de 1990, tomando-se como parâmetro Alemanha e França, verifica-se
não existir sequer 15% de trabalhadores que não sejam reais empregados ou servidores públicos, consideradas suas populações ocupadas.
Na verdade, no capitalismo, a tendência é que cerca de 80% ou mais
dos trabalhadores ocupados laborem, sim, com os elementos da relação de emprego — razão por que se justifica, sim, a todas as luzes, um
sistema institucionalizado do Estado voltado essencialmente às questões próprias a este decisivo universo social(1).
(1) No tocante à Alemanha, expõe Wolfgang Däubler: “Nas estatísticas, os autônomos aparecem como exceção relativamente insignificante. Apenas 8,53% de todas as
pessoas economicamente ativas excerciam em maio de 1987 uma atividade autônoma. 1,78% eram colaboradores familiares que podem ser encontrados sobretudo na
agricultura, no varejo e em atividades artesanais. 80,62% de todos os ativos eram
operários e empregados. 9,07% eram funcionários públicos e militares. Assim, praticamente nove entre dez pessoas economicamente ativas são assalariadas, pois de lá
para cá não houve mudanças maiores nesta relação. Enquanto a condição de
funcionário público se fundamenta em ato administrativo, sendo regulamentada exclusivamente por lei, estão os operários e empregados sujeitos ao direito do trabalho”. In
Direito do Trabalho e Sociedade na Alemanha, São Paulo: LTr/Fundação Friedrich
298
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
À medida que incorpora a renitente (e hoje renovada) cultura de
desprestígio ao Direito do Trabalho no país, flexibilizando o foco central
de atuação do ramo especializado do Judiciário, em detrimento de seu
imprescindível clássico papel (ao invés de, essencialmente, aprofundar
tal função social), o inciso I do novo art. 114 da Constituição revela sua
face negativa, como expressão da avalanche cultural anti-social, típica
dos anos 90 no Brasil.
IV. A tradição histórica brasileira de desprestígio do Direito do
Trabalho
A tradição histórica a que veio servir o novo inciso I do art. 114 da
Constituição da República demarca-se pelo singular desprestígio e isolamento do Direito do Trabalho ao longo da evolução histórica do capitalismo no Brasil. Em contraponto à vitoriosa experiência democrática européia ocidental, aqui cuidou-se de refrear a expansão do ramo justrabalhista especializado ao conjunto da economia e sociedade, certamente
objetivando atenuar seu comprovado efeito distributivo de poder e renda
no contexto socioeconômico.
De fato, uma rápida análise histórica sobre a evolução justrabalhista em nosso país evidencia, irrefutavelmente, como a recusa sistemática à generalização do Direito do Trabalho em nossa economia e sociedade tem constituído um dos mais poderosos veículos de exclusão social das grandes maiorias neste país.
Na verdade, parece claro que o decisivo segredo acerca da dantesca exclusão social neste país reside no fato de o desenvolvimento capiEbert/ILDES, 1997, p. 41-42 (grifos acrescidos). Note-se que o autor, embora fundando-se em dados de 1987, afirma, em sua obra de fins dos anos 90, não ter havido
“mudanças maiores nesta relação”. De todo modo, a obra Perfil da Alemanha, editada
pela Societäts-Verlag, de Frankfurt/Meno, daquele país, em 1996, dispõe que os “trabalhadores, empregados, aprendizes e funcionários públicos, isto é, os chamados
assalariados, perfazem na Alemanha 89,5 por cento dos 36,1 milhões de pessoas
ativas (29,7 milhões nos antigos estados e 6,7 milhões nos novos estados). Além dos
assalariados, há 3,3 milhões de autônomos, que atuam como empregadores. Ao lado
dos 488.000 familiares que os ajudam, os autônomos empregam também um grande
número de assalariados” (ob. cit., p. 386). No tocante à França, referindo-se ao ano de
1996, expõe Jean-Claude Javillier que a população assalariada, regida pelo direito do
trabalho, atinge em torno de 19,5 milhões de pessoas, sendo de 22,5 milhões a
população ativa ocupada, em um contexto de uma população total de 58,4 milhões. In
Manuel Droit du Travail, Paris: LGDJ, 1998, p. 50.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
299
talista aqui, ao longo do século XX, ter se realizado sem a compatível
generalização do Direito do Trabalho na economia e sociedade brasileiras, o que não permitiu a sedimentação de um eficaz, amplo e ágil mecanismo de distribuição de renda e poder no contexto socioeconômico.
Se isto era patente na chamada República Velha, tem-se de admitir
que, mesmo no período em que o Direito do Trabalho erigiu-se como inequívoca política pública oficial — entre os anos 30 a 1964 —, mesmo
nesta época o Estado cuidou de não permitir a efetiva generalização desse ramo jurídico especializado, deixando-o cuidadosamente segregado a
um pequeno segmento do mundo do trabalho. Esse isolamento do Direito
do Trabalho acentuou-se a partir de 1964, tornando-se então indissimulável seu desprestígio no concerto das políticas públicas autoritárias.
Na década de 1990, tais isolamento e desprestígio — que têm
respondido diretamente pela brutal e inflexível concentração de riqueza e
poder no cenário socioeconômico brasileiro — ganham sofisticadas cores culturais, por meio da disseminação no plano institucional e da sociedade civil do conveniente discurso sobre o suposto envelhecimento
de tal ramo jurídico.
1. Dados históricos brasileiros
Ainda que seja forçoso reconhecer que o período iniciado na década de 1930 até 1945, não obstante os graves efeitos da ideologia e prática autoritárias então dominantes, tenha se demarcado por significativo
processo de inclusão social, o fato é que, também, nessa época o Direito do Trabalho não se generalizou para o conjunto do mundo laborativo
brasileiro.
É que este período preservou a clássica tendência de forte exclusão oriunda da história precedente, uma vez que a modernização justrabalhista ficou restrita, à época, apenas aos segmentos urbanos da
sociedade brasileira.
Ora, conforme sabemos, a legislação trabalhista estruturada ou
ampliada naquela fase histórica não se aplicou aos trabalhadores rurais,
não obstante cerca de 70% da população do país ainda estivesse situada no campo naqueles tempos. Não há dúvida de que esse processo de
inclusão social, via Direito do Trabalho, sistematizado a partir de 1930,
com repercussões até o início da década de 1960, foi de grande relevância e impacto socioeconômico — se contraposto às características da
300
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
sociedade e economia anteriores à década de 30 —; entretanto, não
deixou de ser um processo significativamente limitado, por abranger, ao
menos em seu início, não mais do que 1/3 da população brasileira(2).
Com o Governo João Goulart, no início dos anos 60, surgiu o Estatuto do Trabalhador Rural (Lei n. 4.214, de 1963), diploma que estendeu
a legislação trabalhista ao campo — algo que poderia ter modificado o
curso dessa renitente estratégia de exclusão social que tanto caracteriza a história brasileira.
Porém, como é de conhecimento geral, essa extensão normativa
manteve-se mais teórica do que efetivamente prática nas décadas seguintes, dado que o Estado não demonstrou possuir o interesse político
ou os instrumentos institucionais necessários para realizar, eficazmente, o generalizado cumprimento do Direito do Trabalho.
Efetivamente, não só se verifica, desde 1964, por 20 anos, a instauração de um regime político autoritário assumidamente impermeável
a qualquer política pública sistematizada de inclusão social (e, portanto,
sem maior interesse na generalização do Direito do Trabalho), como o
próprio aparelho institucional público encarregado de efetivar tal ramo
jurídico era ainda claramente incipiente, com modesta presença no território nacional. É o que se passava com a Justiça do Trabalho, constituída de poucos juízes e praticamente instalada apenas em grandes
cidades; com o Ministério do Trabalho, com presença muito reduzida no
interior do país; finalmente, do mesmo modo, com o Ministério Público
do Trabalho, que sequer possuía a estrutura e atribuições alargadas, de
órgão agente, só despontadas com a Constituição de 1988.
Tudo isto sem falar na profunda repressão dirigida ao movimento
sindical durante a ditadura — o que tinha o condão de silenciar esta
importante fonte de apoio à efetividade do ramo justrabalhista.
O processo de inclusão social das grandes maiorias, pela via clássica das democracias ocidentais, que foi aquela conectada à generalização do Direito do Trabalho, não se implementou no Brasil mesmo
depois da edição do Estatuto do Trabalhador Rural (1963), em decorrência de tais razões políticas, institucionais e, até mesmo, práticas.
Curiosamente, nesse mesmo período, desponta um processo social e econômico de grande celeridade e impacto, que poderia, por
(2) O Censo de 1940, “o primeiro a dividir a população brasileira em rural e urbana,
registra que 31,1% dos habitantes estavam nas cidades”. Almanaque Abril — Brasil
2003, São Paulo: Abril, 2003, p. 166.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
301
outros caminhos, ainda que transversos, ter influenciado na superação dessa grande chaga da exclusão social das grandes maiorias no Brasil. É que
houve, desde 1964, uma acentuação da anterior dinâmica de industrialização e urbanização do país, em decorrência das características do sistema
econômico que foi impulsionado pela política oficial do regime autoritário
então implantado. O fato é que, em 1960, ainda tínhamos mais de 50% da
população situada no campo, ao passo que nos anos seguintes a urbanização generalizou-se, atingindo cerca de 55% em 1970, em torno de 67% em
1980, para alcançar mais de 80% no Censo do ano 2000(3).
Não se desconhece a existência de questionamentos aos critérios
de enquadramento estatístico seguidos pelo IBGE, baseados na circunstância de que segmentos importantes das populações das pequenas
cidades muitas vezes vivem em função da economia e realidade rurais,
não sendo, pois, inteiramente urbanizados. Não obstante tais críticas,
ponderando que seja atenuada a força dos dados oficiais, não pode haver mais dúvidas, hoje, de que, pelo menos, um percentual superior a
70/75% da população brasileira enquadra-se, inegavelmente, no segmento urbano. Isso significa que tivemos nos últimos 40 anos (mesmo
considerado o regime autocrático recente, por contraditório que seja —
a história nunca é tão simples, afinal) uma oportunidade simplesmente
espetacular de realizarmos um processo de inclusão social pela via clássica do Direito do Trabalho, no curso dessa tendência acentuada de
urbanização. A nova força de trabalho, por meio das levas de migrações
ocorridas, chegaria às cidades e se incorporaria ao mercado laborativo,
em um contexto de regência jurídica pelo Direito do Trabalho, uma vez
que, no meio urbano, as estruturas institucionais e operativas desse
ramo normativo já se encontravam razoavelmente montadas e em funcionamento. Se incorporados os novos trabalhadores, em sua maioria,
ao sistema socioeconômico pelo caminho justrabalhista clássico, parte
significativa da resistente chaga de exclusão social característica do
Brasil teria sido forçosamente mitigada.
Entretanto, como se conhece, essa oportunidade notável não se
concretizou nas últimas décadas. O que se verificou nesse período foi
um processo de quase esterilização da taxa de inserção dos indivíduos
no Direito do Trabalho, por meio do surgimento — acentuado na década
(3) Eis alguns dados das taxas de urbanização da sociedade brasileira, segundos os
respectivos censos realizados oficialmente no país: 1940: 31,1%; 1960: 44,67%;
1970: 55,92%; 1980: 67,6%; 2000: 81,25%. Almanaque Abril — Brasil 2003, São
Paulo: Abril, 2003, p. 147 e 166.
302
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
de 1990 e anos seguintes — de formas alternativas de contratação laborativa, todas elas, não por coincidência, assegurando um patamar civilizatório muito mais acanhado do que aquele garantido pelo Direito do Trabalho.
Em conseqüência, vivencia-se hoje quadro constrangedor de exclusão social.
2. Cenários da exclusão social brasileira
Os dados do IBGE, pela Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios, de 2001, evidenciam que apenas pouco mais de 23 milhões de
pessoas estão explicitamente regidas pelo Direito do Trabalho no país,
não obstante o largo universo de mais de 75 milhões de pessoas ocupadas integrantes da população economicamente ativa (já não computando neste rol os mais de 7 milhões de desempregados). Portanto, menos
de 30% do pessoal ocupado no Brasil corresponde, formalmente, a empregados, em contraponto ao índice de 80% que caracteriza a realidade
européia exposta.
A própria pesquisa do IBGE detecta a existência de nada menos
do que cerca de 18 milhões de empregados sem carteira assinada no
país! Isso significa que os dados oficiais demonstram a presença de
aproximadamente 41 milhões de trabalhadores que deveriam estar sob
inquestionável regência do ramo jurídico trabalhista.
Ao lado desse impressionante número de reais empregados, existem ainda quase 17 milhões de pessoas enquadradas pelo IBGE como
trabalhadores autônomos, a par de mais 9 milhões de pessoas inseridas
naquilo que a estatística oficial chama de economia familiar, no setor de
subsistência, ou, simplesmente, trabalhadores não remunerados. Tratase, pois, segundo os dados oficiais, de aproximadamente 26 milhões de
trabalhadores não-empregados — quase 35% do pessoal ocupado no
país. Ora, o descompasso de tais números (35% do pessoal ocupado,
em contraponto a menos de 15% no parâmetro europeu comparado)
evidencia que, neste grupo de 26 milhões de pessoas, existem, sem
dúvida, inúmeros trabalhadores que se enquadrariam mais corretamente como efetivos empregados.
Em síntese, mesmo não considerados os verdadeiros profissionais
autônomos, os efetivos trabalhadores eventuais, o grupo de indivíduos
realmente inseridos na economia familiar de subsistência e/ou sem remuneração, o que desponta desses dados oficiais é a inquestionável
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
303
existência de algumas dezenas de milhões de pessoas ocupadas no
Brasil, a quem se denega o patamar civilizatório básico de inclusão
socioeconômica assegurado pelo Direito do Trabalho(4).
V. Direito do Trabalho como instrumento de civilização
A grave exclusão social das grandes maiorias no Brasil (dezenas
de trabalhadores sem as proteções mínimas da ordem jurídica trabalhista) entra em choque com os padrões minimamente aceitáveis de evolução do sistema capitalista no mundo ocidental. Padrões hoje vigorantes,
registre-se, mesmo após a maciça crítica ideológica desferida ao Direito
do Trabalho nas últimas décadas do século XX.
O que fica bastante claro é que esta grosseira defasagem econômico-social brasileira encontra-se no fato de o Direito do Trabalho não
ter ainda cumprido no país seu notável papel civilizatório, afirmado nos
países de capitalismo central.
De fato, se tomados dois parâmetros bastante ilustrativos (Alemanha e França), com dados aplicáveis à década recém-encerrada — portanto, dados bastante pertinentes ainda —, ver-se-á que o Direito do
Trabalho tem sido, no desenrolar do sistema econômico-social contemporâneo, o grande instrumento de inclusão social das grandes massas
populacionais dos países capitalistas desenvolvidos. Enfocadas as situações de Alemanha e França, percebe-se que mais de 80% da população economicamente ativa daqueles países (já excluído o percentual de
desempregados) insere-se no mercado laborativo capitalista com as proteções inerentes ao Direito do Trabalho. Mais de 80% do pessoal ocupado
nesses dois países, mesmo após 20 anos do fluxo desregulamentador insaciável, oriundo da década de 1970, encontra-se, sim, regido pelo
Direito do Trabalho naquelas sociedades desenvolvidas(5).
Isso significa que o Direito do Trabalho foi o grande instrumento
que as democracias ocidentais mais avançadas tiveram para implemen(4) Os dados da citada Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (Pnad), do IBGE, de 2001,
encontram-se em: Almanaque Abril — Brasil 2003, São Paulo: Abril, 2003, p. 136 e 138.
(5) Os dados relativos à Alemanha foram retirados de Wolfgang Däubler, Direito do
Trabalho e Sociedade na Alemanha, São Paulo: LTr/Fundação Friedrich Ebert/ILDES,
1997, p. 41-42. Também da obra Perfil da Alemanha, Frankfurt/Meno: Societäts-Verlag,
1996, p. 386. Os dados relativos à França foram retirados de Jean-Claude Javillier,
Manuel Droit du Travail, Paris: LGDJ, 1998, p. 50. A explicitação de todos estes dados
encontra-se na nota de rodapé n. 1 do presente texto, para onde remetemos o leitor.
304
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
tar a integração social de suas populações, a distribuição de renda e de
poder em suas economias e sociedades, enfim, garantir a consecução
da democracia social em seus respectivos países. Um poderoso e eficaz instrumento que conseguiu exatamente estabelecer uma forma de
incorporação do ser humano ao sistema socioeconômico, em especial
daqueles que não tivessem (ou tenham) outro meio de afirmação, senão
a própria força de seu labor.
O que a realidade histórica do próprio capitalismo demonstra é que
o Direito do Trabalho consiste no mais abrangente e eficaz mecanismo
de integração dos seres humanos ao sistema econômico, ainda que
considerados todos os problemas e diferenciações das pessoas e vida
social. Respeitados os marcos do sistema capitalista, trata-se do mais
generalizante e consistente instrumento assecuratório de efetiva cidadania, no plano político-social, e de efetiva dignidade, no plano individual.
Está-se diante, pois, de um potente e articulado sistema garantidor de
significativo patamar de democracia social.
Em síntese, naqueles países líderes do capitalismo, considerada
sua população economicamente ativa ocupada, mais de 80% dos trabalhadores estão regidos pelo Direito do Trabalho, ao passo que, no Brasil,
tradicionalmente cerca de 60/70% dos trabalhadores ocupados estão,
ao revés, excluídos do Direito do Trabalho.
Claro que não se vai desconhecer a existência de outras formas de
labor que escapam, a princípio, ao padrão empregatício tradicional. Porém, tais formas alternativas não alcançam, de modo algum, o relevo, a
extensão e o impacto alardeados pela ideologia de descomprometimento social de fins do século XX. É que nestes dados europeus expostos já
estão consideradas estas outras formas de labor, uma vez que os números dizem respeito à segunda metade da década de 1990, já incorporando todos os efeitos da propagandeada crise trabalhista européia pós1970. Ou seja, mesmo em seguida a duas décadas de ação coordenada
em favor da desarticulação institucional e normativa das conquistas democráticas do Estado de Bem-Estar Social na Europa, os dois importantes países mencionados preservam cerca de 80% de sua força de
trabalho ocupada dentro dos marcos do Direito do Trabalho.
O que tudo demonstra é que o Brasil ainda não enfrentou seu grande desafio, que tem maior abrangência e impacto social do que qualquer
outro: assegurar efetividade ao Direito do Trabalho, em face do diagnóstico de ser baixíssimo aqui (menos de 30%) o percentual de integração
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
305
das pessoas na sociedade econômica, pela via civilizatória desse ramo
jurídico especializado.
Reenfatize-se, pois, que há uma singularidade no desenvolvimento
econômico-social brasileiro: aqui em torno de somente 1/3 dos trabalhadores ocupados é regido pelo Direito do Trabalho, em contraponto ao
percentual-padrão de mais de 80% de relevantes países capitalistas.
Quer dizer, por mais que se intente justificar tratar-se de realidade nacional incomunicável, a defasagem de dados e situações é simplesmente brutal. Está-se diante de uma discriminação acentuada, gravíssima,
posto que neste país milhões de pessoas laboram em dinâmica, qualificada pelos elementos integrantes da relação de emprego, porém sem
que tenham garantido o patamar civilizatório mínimo característico do
Direito do Trabalho. Observe-se que não se está falando de discriminação contra setores especiais da população, segmentos isolados (o que
seria também grave, obviamente), porém trata-se de discriminação contra cerca de 2/3 do pessoal ocupado no Brasil, algo que escapa inteiramente ao padrão mínimo de desenvolvimento da civilização ocidental.
Tudo isso demonstra, ainda, haver largo espaço para a atuação do
Direito do Trabalho no Brasil, como instrumento civilizatório fundamental
para a construção da democracia social e também da cidadania neste país.
306
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Os Direitos Sociais do Art. 7º da CF — Uma Nova
Interpretação no Judiciário Trabalhista
Paulo Luiz Schmidt (*)
Recentemente o Congresso nacional promulgou a parte mais substancial da PEC 29/2000, que trata da reforma do Poder Judiciário. Tramitando
desde 1992, chega aos dias atuais completamente diferente da forma apresentada pelo então deputado Hélio Bicudo (PT/SP). Privilegiando a concentração do poder no vértice superior da pirâmide judiciária, além de buscar
domesticar administrativamente as instâncias inferiores, o texto revela indisfarçável tentativa de tornar previsível a decisão judicial de qualquer instância,
pela criação de mecanismos que concentram a dicção do direito na cúpula.
Embora apontada equivocadamente como panacéia para todos os
males do Poder Judiciário — que sabidamente são muitos —, é certo que
os maiores e principais desses problemas não serão atacados com o
novo texto. Demora excessiva, pouca eficácia da prestação jurisdicional,
meios materiais e de pessoal aquém das necessidades, falta de transparência e de democracia interna são problemas que não serão resolvidos
pelas alterações propostas por essa Reforma, e continuarão aguardando
outras medidas legislativas, especialmente as infraconstitucionais.
De todo modo, há aspectos positivos nessa Emenda Constitucional n. 45, denominada de “Reforma do Poder Judiciário”. Um dos mais
promissores é a ampliação da competência da Justiça do Trabalho. Se
vários outros aspectos podem ser verificados, o inc. I do novo art. 114,
com a redação que lhe dá a EC n. 45, deve merecer atenção desde logo
pelo muito que socialmente poderá representar.
O texto original do art. 114 da CF/88 diz expressamente que “Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e
coletivos entre trabalhadores e empregadores...”. A expressão “trabalhadores” induziu alguns, desde logo, a entender que estava alargada a
competência material dessa justiça especializada. O STF, contudo, jul(*) Juiz do Trabalho no RS. Vice-presidente da Associação Nacional dos Magistrados
da Justiça do Trabalho — ANAMATRA (2003/2005). Presidente da Associação dos
Magistrados da Justiça do Trabalho da 4ª Região — AMATRA IV (2004/2006).
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
307
gando o Conflito de Jurisdição n. 6.829-SP (Rel. Min. Octávio Gallotti,
em 15.3.89), deixou claro que o art. 114 da CF “apenas diz respeito aos
dissídios pertinentes a trabalhadores, isto é, ao pessoal regido pela Consolidação das Leis do Trabalho”. Essa posição da Suprema Corte foi
ratificada no julgamento da ADIn 492, ajuizada pelo Procurador-Geral da
República e que atacava especificamente as alíneas “d” e “e” do art. 240
da Lei n. 8.112/90, que previam aos servidores públicos civis o direito de
negociação coletiva e de ajuizamento, individual e coletivamente, frente
à Justiça do Trabalho.
Tem-se claro que a intenção do constituinte originário era, efetivamente, de alargar o manto protetivo do judiciário trabalhista ao crescente
contingente de trabalhadores que, já naquela época, se encontrava à
margem de qualquer proteção social. Contudo, a utilização da expressão
“empregador” efetivamente afastou o gênero e limitou o alcance a essa
espécie de tomador de serviço que contrata trabalhador como empregado.
A realidade social de 1988, passados mais de 16 anos da promulgação da Constituição Federal, agravou-se. Hoje, o contingente de trabalhadores que forçadamente habita a informalidade já supera o número
daqueles que estão com o seu vínculo minimamente formalizado, segundo algumas estatísticas. Logo, ampliar a competência da Justiça do
Trabalho para ações oriundas de qualquer tipo de “relação de trabalho” é
não só uma necessidade urgente, mas uma medida necessária que poderá representar, para milhões de trabalhadores brasileiros, uma porta
de entrada para um mínimo de dignidade.
Pode alguém perguntar se esses trabalhadores não tinham, até
então, acesso à justiça? E a resposta, formal como não poderia deixar
de ser, é afirmativa. Ocorre, contudo, que no judiciário comum, predomina o princípio da igualdade das partes, não se reconhecendo — como
no Judiciário do Trabalho — a desigualdade real intrínseca às relações
de trabalho. Lá, interpreta-se a lei como se o trabalhador estivesse em
pé de igualdade com o empresário, o que inibe e tolhe a própria capacidade de litigar em juízo. Mas não é só isso.
A alteração constitucional, agora aprovada, mostra a sensibilidade
do legislador ante a realidade social agravada nesse novo contexto de
desproteção social crescente em todos os sentidos. Ao trazer para a
Justiça do Trabalho as demandas decorrentes das mais variadas e diferentes relações de trabalho, não está alterando apenas o lugar e o juiz
perante o qual apresentará a sua reclamação. Está alterando, isso sim,
a forma de enfrentar o problema da desproteção social em muitos aspectos.
308
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Não se imagina que perante o Judiciário Trabalhista deverá valer,
apenas, o direito posto no contrato que, no caso das relações trabalhistas não empregatícias (eventuais, autônomas, de empreitada, etc.), sequer existe formalmente. No Direito do Trabalho, vige o princípio do contrato-realidade. Tratando-se de ramo especializado cujo escopo principal é o da proteção, não é difícil imaginar que o Judiciário Trabalhista
encontrará forma e meio de aplicar os direitos sociais previstos na Constituição Federal em favor de todos os trabalhadores brasileiros, pois é
disso que trata a nossa Carta Maior. Com efeito, diz o caput do art. 7º da
CF que “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros
que visem à melhoria de sua condição social:”, e não apenas dos empregados. Não é demasia lembrar que, entre os ditos direitos sociais
assegurados, está a própria relação de emprego.
É certo que nem todos os direitos previstos nos trinta e quatro
incisos do art. 7º da CF teriam aplicação indiscriminada ou ampla, visto
que vários dentre eles são específicos e típicos dos trabalhadores empregados. Outros, contudo, a exemplo de remuneração mínima, irredutibilidade, proteção do rendimento, salário-família, duração do trabalho,
aposentadoria e assistência social podem, perfeitamente, ser assegurados aos trabalhadores em geral que, à margem da formalidade, recorrerem à Justiça do Trabalho.
Fora da Consolidação das Leis do Trabalho, exceto uma ou outra
lei esparsa regulamentar de alguma categoria profissional, pouco ou nada
há de legislação ordinária que assegure a essa massa imensa de trabalhadores algum direito. Assim, aplicar os direitos sociais previstos no
art. 7º da CF a todos os trabalhadores brasileiros, e não apenas aos
empregados, renovará a voz cidadã da Constituição da República e
suprirá, de algum modo, o imenso vácuo legislativo existente.
Cabe, pois, aos operadores do direito, a importante tarefa de construir uma doutrina e uma jurisprudência que atendam à urgente necessidade de resgatar uma imensa massa de trabalhadores atualmente
excluída de qualquer proteção legal.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
309
Da Dicotomia ao Conceito Aberto: As Novas
Competências da Justiça do Trabalho
Reginaldo Melhado (*)
Advertência ao leitor
Há dois mil anos, proibido de regressar à Roma, Júlio César cruzou
o Rubicão, antigo rio que separava a Gália Cisalpina da Itália. A travessia
foi crucial na estratégia política e militar do general romano e permaneceu para sempre na história. Atravessar o Rubicão até hoje significa
superar o dilema, enfrentar o desafio. Em tupiniquim corrente e fluente,
também, pode traduzir-se pelo velho ou vai ou racha.
Depois de ameaçada de extinção, e ainda sob a espreita alicantina
de setores retrógrados do neofeudalismo, a que chamam globalização, a
Justiça do Trabalho está diante do seu Rubicão e sua decisão será transcendental. Em síntese, a ela — não só a ela, mas a ela antes de tudo e
de todos, e fundamentalmente a ela — caberá enfrentar o dilema: ser a
Justiça do (des)empregado atada a um paradigma da velha Revolução
Industrial, ou a Justiça social, voltada para o universo do trabalho e capaz de defrontar-se com a brutalidade do capitalismo contemporâneo.
Tupi or not tupi, that´s the question, disse certa feita Oswald de Andrade, parodiando o famoso poeta inglês. Numa imitação burlesca da
genial bela paródia: ser ou ser, enfim, uma Justiça do trabalho, ou
uma Justiça do (des)emprego. Eis aqui onde está o nosso busílis
shakespeariano.
Não há hermenêutica asséptica. Na interpretação da Emenda n.
45 interpenetram-se altos valores éticos e profundas considerações técnico-administrativas, mas também diferentes orientações ideológicas, o
comodismo, o medo ao novo, a preguiça mental.
No interior da comunidade jurídica, é majoritário o sentimento de
que a competência da Justiça do Trabalho deve ser ampliada. Entre os
(*) Juiz do trabalho no Paraná. Professor. Doutor em Filosofia do Direito pela Universidade de Barcelona.
310
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
fundamentos dessa ampliação, sobressaem-se três distintas trilhas argumentativas: (a) as razões de ordem institucional — a que poderíamos
chamar corporativistas, (b) as de caráter técnico e (c) as de natureza
sociológica. As primeiras visam preservar a Justiça do Trabalho enquanto instituição. Partem da premissa de que competência é poder e visam
fortalecer um segmento do Judiciário antes ameaçado de extinção. Os
argumentos de caráter técnico objetivam o saneamento de distorções na
distribuição de competências entre os vários ramos da Justiça e a racionalização do sistema (não faz muito sentido que o magistrado da Justiça Comum julgue ações relativas ao exercício do direito de greve ou a
matéria sindical). Essas razões são relevantes, mas o fundamental são
os argumentos de ordem, digamos, sociológica: o capitalismo alterou
profundamente a organização da produção e a forma de expansão e
incremento do capital, e nesse contexto o paradigma do contrato de
emprego tradicional se esgarça e tende a perder a hegemonia construída
desde a Revolução Industrial. A nova realidade inclui o teletrabalho, o
sistema de múltiplas camadas da economia japonesa, os diversos modelos de contrato já praticados na Europa, o poder disciplinar (às vezes
aparentemente inexistente) turbinado por recursos cibernéticos. Todo
um contexto em que a empresa capitalista ganha outros contornos, as
velhas fronteiras Estado se esvaem e os operadores do direito se vêem
obrigados a reprogramar conceitos e categorias vetustas. O conflito entre capital e trabalho e a mais valia de que cuidava o velho filósofo alemão não se fazem apenas por intermédio do contrato de emprego. A
compra e venda de força de trabalho sempre se realizou por outras
formas, embora até aqui venha sendo hegemônico o paradigma do contrato de emprego. A lógica é que essas mutações do modelo de exploração
capitalista cresçam tendencialmente. Sucumbirão o Direito do Trabalho e
o seu direito processual, se os juristas continuarem atados ao conceito
ortodoxo de subordinação jurídica e não forem capazes de compreender
as novas dinâmicas do poder nas relações de produção capitalistas.
Não se trata, portanto, de ampliar a competência, porque isso é melhor
para a Justiça do Trabalho: trata-se de fazer o que é melhor para a sociedade e especialmente para os segmentos explorados do sistema.
Com efeito, uma advertência franca e honesta deve ser feita ao
prezado leitor. As idéias defendidas nas breves linhas que seguem pressupõem a tomada de posição em favor de um outro conceito de Justiça
do Trabalho. Não pelo gosto da novidade (as novidades do mundo de
hoje excitam a nostalgia), mas por estar convencido de que esta é a
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
311
melhor alternativa política. Não para os juízes, enquanto corporação, nem
para o Judiciário, como instituição, e sim para o exercício da cidadania,
da qual é requisito elementar o acesso à Justiça (ágil e eficaz) e a uma
ordem jurídica justa.
Com base nessa premissa política ou filosófica, à continuação,
com efeito, passo a examinar o novo perfil da Justiça do Trabalho decorrente da Reforma do Judiciário. Não se cuidará de um amplo leque de
temas em razão dos limites deste trabalho. Essas idéias, outrossim,
são apenas as primeiras impressões e, na realidade, uma provocação à
crítica e ao debate.
A experiência de alguns outros países
Diversos outros sistemas normativos adotam normas de atribuição
de competência material com formato semelhante ao que foi abraçado
pela Emenda n. 45, em relação aos juízos especializados em matéria
laboral.
É muito interessante a denominação dada aos órgãos especializados em matéria laboral na Espanha. O chamado “Juzgado de lo Social”
(ou juízo de matéria social, numa tradução livre) é encarregado da jurisdição relativa “à rama social do Direito em conflitos individuais e coletivos”(1).
Sua competência é definida com base nos sujeitos da relação, mencionando os litígios entre empregadores e empregados(2), mas também abrange toda a matéria de previdência social e previdência complementar,
inclusive os contratos de seguro que derivam da relação empregatícia ou
de convênios coletivos. Alcança, ainda, qualquer matéria sindical(3) e as
relações entre cooperativas de trabalho e seus associados. A lei espanhola exclui da competência desses juízos, entretanto, os funcionários públicos estatutários e a tutela sindical e do direito de greve a eles relativos.
No sistema português os tribunais do trabalho (denominação dada
aos juízos de primeiro grau) têm competência “em matéria cível” — logo,
(1) Real Decreto Legislativo 2/1995 (Ley de Procedimiento Laboral), art. 1.
(2) Art. 2, alínea a.
(3) Enumeram-se, entre outras, as seguintes questões: (a) constituição e reconhecimento da personalidade jurídica dos sindicatos e associações empresariais, seu funcionamento interno, sua relação com filiados, impugnação e modificação de normas
estatutárias; (b) responsabilidade dos sindicatos e associações empresariais por
infração à legislação social; (c) tutela de direitos sindicais; (d) eleições sindicais.
312
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
excluem-se as questões penais — para conhecer, em primeiro lugar,
das questões “emergentes das relações de trabalho subordinado” e “relativas à anulação e interpretação” dos instrumentos coletivos de trabalho(4).
Ademais, essa competência compreende um amplo leque de matérias
relacionadas ao mundo do trabalho, que vão desde os acidentes de trabalho e doenças profissionais (incluindo, nesses supostos, o fornecimento de medicamentos e serviços clínicos, aparelhos de prótese, etc.)
até os litígios entre sindicatos ou instituições de previdência, e até mesmo sua liquidação e partilha de bens, passando pelo direito de greve e
pelos contratos equiparados aos de trabalho.
No sistema italiano, a competência do juízo laboral compreende as
“controvérsias relativas” a: (a) relações de trabalho subordinado, (b) relações agrárias — assemelhadas ao que conhecemos em nosso sistema
como parceria e arrendamento, (c) relações de colaboração — mediante
trabalho não-subordinado —, como de representação comercial ou agência, e finalmente as (d) relações de trabalho dos empregados de entes
públicos que desenvolvem (de modo exclusivo ou prevalecente) atividade
econômica, ou que não sejam competência de outro juízo especial(5)
(Código de Processo Civil da Itália, arts. 409 e 413).
Oriundo e decorrente: nem pleonasmo, nem atecnia
Muitos argumentam que o inciso I do art. 114 da Constituição não contém qualquer ampliação real da competência da Justiça do Trabalho. Lêemno como se quisera o legislador referir-se apenas às relações de emprego.
Sustenta-se para isso que o dispositivo constitucional alude às
“ações oriundas da relação de trabalho” no inciso I, mas no seu inciso IX
faz referência a “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei”. Logo, se a reforma pretendesse alcançar todas
relações de trabalho, em sentido amplo, não haveria razão de ser para o
inciso IX. A vontade do legislador — essa enigmática entidade que fala
pela boca do jurista — seria remeter à lei formal outras espécies de
litígios, que não as por ele mesmo enumeradas.
As premissas dessa argumentação foram “o tripé ideológico em
que se apóia a dogmática jurídica” a que alude Fernando Coelho(6):
(4) Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, art. 64, letras a e b.
(5) Há aqui uma espécie de competência residual.
(6) COELHO, Luís Fernando. Teoria crítica do direito, Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris, 1991, p. 251-252.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
313
monismo, estatalidade e racionalidade. A premissa da racionalidade é
falsa, porque norma jurídica não é fruto de uma operação intelectual ou
científica, e sim resultado de um embate político. Nela nem sempre há
uma racionalidade orgânica. O positivismo jurídico — sobretudo o de
viés kelseniano — se assenta na idéia de um sistema de normas jurídicas com unidade e coerência, univocamente válidas e legítimas, centrado sobre si mesmo, que extrai dele próprio, de modo autofágico, sua
validade(7). Isso leva o jurista a — de modo eqüidistante e isento, neutro
— sempre buscar a vontade do legislador(8).
Ocorre que o tal sistema compreende normas jurídicas conflitantes
— sem contar que algumas refogem ao seu âmbito, ou nascem fora do
Estado, e se interpenetram, no turbilhão do pluralismo jurídico — e disso
às vezes resulta incoerência. A razão desse fenômeno, que revela a
falsificação do positivismo, repousa na natureza dialética do próprio Estado e do processo legislativo. A lei é resultado de uma dada correlação
de forças entre classes sociais, dentro e fora do espaço legislativo; decorre de pressões, choques de interesses, concessões, crises.
A Emenda n. 45 é rebento desse espetáculo contraditório que deu
à luz o novo texto do art. 114. No início das discussões da reforma do
Judiciário, a Justiça do Trabalho desaparecera (no relatório do Deputado
Aloysio Nunes Ferreira, homem do governo — e da maioria — de então).
Depois, exsurgiria no relatório da Deputada Zulaiê Cobra, mas agora
com sua competência voltada para julgar “as ações oriundas da relação
de emprego”, tendo o texto do relatório a mesma estrutura técnica que
viria a aparecer na Emenda n. 45. Assim, o inciso I e o inciso IX pareciam
encadeados logicamente: o primeiro aludia à relação de emprego e o
último a “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na
forma da lei”. Um complexo jogo de pressões, pesos e contrapesos,
com a Anamatra na sua vanguarda(9), acabou por determinar a mudança
(7) KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito, São Paulo: Martins Fontes, 1991.
(8) Como se o legislador fosse um ser racional e não um amontoado de parlamentares
que, muita vez, sequer se inteiram do que estão votando. Lembro Bismark: se as pessoas
soubessem como são feitas as salsichas e as leis, não consumiriam as primeiras e
nem respeitariam as segundas.
(9) O trabalho da Anamatra, diga-se de passagem, não pode ser confundido com um
lobby. Sua luta pela ampliação da competência da Justiça do Trabalho foi levada a
efeito à luz do dia, honestamente. Foi objeto de congressos, seminários e eventos
políticos. Foi debatida dentro e fora dos tribunais, com entidades representativas da
sociedade civil e parlamentares. Enfim, foi produto do trabalho crítico de magistrados como, por exemplo, Tadeu Alkmin, Hugo Cavalcanti e Grijalbo Coutinho, entre
tantos outros, comprometidos com a idéia de um juiz-cidadão.
314
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
do termo que, finalmente, viria a prevalecer no inciso I: relação de trabalho e não relação de emprego. Não obstante, o inciso IX foi mantido.
Aparentemente, ele é desnecessário e sobrepõe a mesma matéria. Como
veremos a seguir, porém, ele não é pleonástico, nem contém qualquer
atecnia, e pode ser compreendido a partir deste contexto político.
A dogmática moderna dá resposta a essa questão: a norma constitucional é sempre eficaz, como preceito maior, que insufla legitimidade
no sistema normativo. Não há norma constitucional desprovida de atualidade e vinculatividade(10).
O dilema do suposto conflito entre os incisos I e IX do art. 114 pode
ser resolvido no próprio campo da argumentação dogmática. Note-se
que, enquanto o inciso I do art. 114 menciona as ações oriundas da
relação de trabalho, o inciso IX incorpora controvérsias decorrentes dela.
Que diferença há entre os vocábulos oriundo e decorrente? Lexicologicamente, “oriundo” tem o sentido de originário, natural. A raiz latina da
palavra guarda alguma relação com “oriente” (oriens, orientis), que designa a nascente do sol (oriente é o leste, a parte do céu onde nasce o
Sol). O adjetivo “decorrente” significa aquilo que decorre, que se origina(11).
Vale dizer: no inciso I está a relação de trabalho ontologicamente considerada; ela própria em seu estado natural. O substrato é o próprio trabalho. Já no inciso IX há menção à controvérsia decorrente dela, numa
relação mediata e indireta, que dependeria de lei formal para extensão
de competência. Inscrevem-se nessas situações, por exemplo, as ações
previdenciárias (aquelas em que se discutem benefícios da Previdência
Social) ou as ações incidentais na execução trabalhista, como os embargos de terceiro e os embargos à arrematação(12).
A chave, portanto, não está em distinguir ações (inciso I) e controvérsias (inciso IX), termos que se empregam no Texto Constitucional com
o mesmo significado, e sim em definir o que é oriundo e decorrente.
Como não há palavras inúteis na lei, segundo o dogma altissonante e
reverberante da hermenêutica clássica, joio e trigo estão separados por
sentidos próprios.
(10) CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição, Coimbra: Coimbra, 1991, p. 49.
(11) Vejam-se os respectivos verbetes em FERREIRA, Antônio B. H. Dicionário Aurélio Eletrônico, São Paulo: Nova Fronteira, 1994 e CAUDAS AULETE. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, 3ª ed., Rio de Janeiro: Delta, 1974.
(12) Nestas últimas, aliás, o liame com a relação de trabalho, é materialmente indireto,
colateral: os embargos não decorrem propriamente da relação de trabalho, mas da
relação processual nascida do litígio oriundo dela.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
315
O paradigma carcomido da norma dicotômica e a revolução
conceitual
Desde sua instituição no plano constitucional, a Justiça do Trabalho
sempre teve sua competência fixada com base em três elementos conceituais integrantes de uma mesma categoria. A ela competia “conciliar e
julgar” (a) “dissídios individuais e coletivos” (b) entre “empregados” ou “trabalhadores e empregadores”, e, na forma da lei, outras controvérsias oriundas da (c) “relação de trabalho”. Essa fórmula já aparecia na Constituição
de 1946 (art. 123), atravessou o regime militar com o Documento Constitucional de 1967 (art. 142) — reproduzido em 1969 no mesmo art. 142 —, e
foi mantida na redemocratização do País em 1988 (art. 114). A Constituição de 1937, “decretada” por Vargas, dizia o art 139: “para dirimir os conflitos oriundos das relações entre empregadores e empregados, reguladas
na legislação social, é instituída a Justiça do Trabalho”.
A locução “conciliar e julgar” aparecia em todos os Textos Constitucionais (a partir de 1946), mas na Emenda n. 45 se adotou uma outra forma:
“compete à Justiça do Trabalho processar e julgar”. Essa opção não impede
a conciliação e, por outro lado, observa uma certa simetria no tratamento da
matéria, pois locução “processar e julgar” aparece em diversos outros dispositivos da Constituição que tratam da competência de juízes e tribunais
(vejam-se, entre outros, os arts. 102, 105, 108, 109, 124), e vem sendo
adotada desde a primeira Constituição republicana, de 1891.
Além disso, como dito anteriormente, ao longo dessa trajetória de
mais de meio século a práxis constitucional definia a competência da
Justiça do Trabalho (desde que ela surgiu como tal) com base no binômio “empregados e empregadores”. No texto original de 1988 a inovação
consistiu no surgimento do vocábulo trabalhadores em lugar de empregados, notoriamente mais amplo.
A maior abrangência do termo “trabalhador”, porém, acabou
esvaziada pela outra palavrinha a ela associada na díade: os empregadores da outra ponta. Considerou-se assim que esses trabalhadores eram, na verdade, apenas os trabalhadores subordinados (rectius: empregados). Nesse sentido, aliás, firmou-se a jurisprudência
do Supremo Tribunal Federal, no histórico julgamento da Ação Direta
de Inconstitucionalidade n. 492-1, que teve por objeto a Lei n. 8.112/90(13).
(13) “Constitucional — Justiça do Trabalho — Competência — Ações de servidores
públicos estatutários — CF, arts. 37, 39, 40, 41, 42 E 114 — Lei n. 8.112, de 1990, arts.
316
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
No acórdão, o relator do processo, Ministro Carlos Velloso, sublinhava:
“trabalhador é, de regra, o que mantém relação de emprego, é o empregado, o que tem empregador”(14).
Desde a Constituição de 1946, portanto, a competência em razão
da matéria não era enunciada pela sua natureza jurídica e sim pelos
seus sujeitos. Não se cuidava do litígio oriundo da relação de emprego,
mas da lide entre trabalhadores e empregadores. É evidente que a relação jurídica entre empregados e empregadores só pode ser uma relação
de emprego, mas, para que se estabelecesse a competência do Judiciário do Trabalho, era preciso que ambos estivessem na lide processual,
ou que seus sujeitos ao menos como tal se afirmassem.
Exatamente por essa razão, doutrina e jurisprudência sempre
afastaram a competência da Justiça do Trabalho na intervenção de
terceiros — oposição, nomeação à autoria e da denunciação da lide
(sendo admitido, com ressalvas, o chamamento ao processo). A presença do terceiro na lide processual implicaria a possibilidade de um
litígio entre outros sujeitos (por exemplo entre trabalhadores, ou entre
empregadores)(15).
Também nesse aspecto, em particular, a nova orientação conceitual nascida da Reforma do Judiciário deverá acarretar um outro rumo
para a doutrina, solucionado injustiças, corrigindo distorções e trazendo
enormes proveitos para a sociedade.
Com a Emenda n. 45 deu-se fim ao binômio competencial (trabalhadores x empregadores) . Essa “despersonalização” da velha compe240, alíneas d e e — I. Servidores públicos estatutários: direito à negociação coletiva à
ação coletiva frente à Justiça do Trabalho: inconstitucionalidade. Lei n. 8.112/90, art.
240, alíneas d e e. II. Servidores públicos estatutários: incompetência da Justiça do
Trabalho para o julgamento dos seus dissídios individuais. Inconstitucionalidade da alínea e do art. 240 da Lei n. 8.112/90. III. Ação direta de inconstitucionalidade julgada
procedente” (STF — ADI 492-1 — DF — T P — Rel. Min. Carlos Velloso — DJU 12.3.1993).
(14) Acórdão mencionado, às folhas 100.
(15) TEIXEIRA FILHO, Manoel A. Litisconsórcio, assistência e intervenção de terceiros no processo do trabalho, 2ª ed., São Paulo: LTr, 1993, especialmente p. 167 a 169
e 240 a 251. No que se refere à nomeação, à autoria, o autor argumenta que, sendo
seu pressuposto “a existência de demanda sobre determinada coisa, haveremos de
inferir que o instituto em questão tem incidência exclusiva nas ações reais”; conclui
assim, à luz do então vigente art. 114 da Constituição, que “a Justiça do Trabalho não
possui competência para apreciar ações reais ou que visem obter reparação de
prejuízos acarretados a certa coisa” (p. 192).
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
317
tência dicotômica implica em que a partir de agora qualquer litígio oriundo
da relação de trabalho seja competência da Justiça especializada. Alguns exemplos podem ser mencionados nesse sentido. As ações promovidas pelo próprio sindicato “contra” uma empresa visando coibir
prática de atos anti-sindicais, como o de proibir o trabalhador de filiar-se
ao sindicato. A ação que visa impedir que filiação à entidade sindical
constitua causa excludente da contratação de trabalhadores. A que
objetiva impedir a interferência da empresa na atividade do sindicato. A
ação de anulação de norma de convenção coletiva ou regulamento de
empresa promovida pelo sindicato ou a ação do Ministério Público do
Trabalho sobre trabalho infantil ou trabalho escravo(16). Os litígios entre a
empresa e o INSS acerca da existência ou não de vínculo de emprego
que enseje o pagamento das contribuições sociais respectivas(17). Ações
do empregador “contra” entidade sindical que causa dano ao seu patrimônio. Demanda entre o empregador e agentes de higiene e segurança
do trabalho.
Os conceitos adotados em uma Constituição podem ser autônomos ou não(18). Há conceitos criados no Texto Constitucional (no caso
brasileiro, por exemplo, o mandado de injunção), e conceitos nele empregados com um conteúdo semântico próprio. Há conceitos pré-constitucionais, que são meramente recebidos pela Constituição. O conceito
de relação de trabalho já existia na literatura jurídica. Não há novidade
nenhuma. O que muda com a Reforma do Judiciário é a estrutura conceitual de atribuição de competência.
Nesse sentido, a nova arquitetura do art. 114 da Constituição, plasmada na Emenda n. 45, é uma autêntica revolução conceitual(19), se
considerada a tradição dos últimos cinqüenta anos do direito constitucional brasileiro. Ela não se assenta mais no velho binômio (o dos dissídios
(16) Aliás, parece-nos revogado, por incompatibilidade, o art. 405, § 2º, da CLT, que
atribui competência ao juiz de infância e juventude (na denominação atual) a prévia
autorização para o trabalho de menores nas ruas e praças.
(17) Matéria essa conexa ao substrato competencial fixado no inciso VII do art. 114 da
Constituição, como procuraremos demonstrar mais adiante.
(18) CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição, Coimbra: Coimbra, 1991, p. 54 e seguintes.
(19) Note bem o prezado leitor: a revolução é meramente conceitual, e só é revolucionária diante da tradição constitucional brasileira relativa à competência da Justiça
do Trabalho. Em outros sentidos, a revolução parece um sonho cada vez mais
distante.
318
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
entre trabalhador e empregador), e essa é a grande diferença conceitual
a ser compreendida pelos operadores do direito. Até aqui, a competência material da Justiça do Trabalho era definida em razão dos sujeitos —
das personagens, dos atores — integrantes da relação jurídica de direito
material. Esse velho conceito foi superado.
Cabe agora identificar se a ação é oriunda de uma relação de trabalho, já não importando se os sujeitos desse liame jurídico substantivo se
apresentam na lide como empregados e empregadores, o que implica
distinguir o conflito intersubjetivo de interesses e a lide processual a ele
imanente. Isso descortina inovações transcendentais, inclusive no que
toca à intervenção de terceiros (oposição, nomeação à autoria e da denunciação da lide) no processo do trabalho, tema que será enfrentado
mais à frente. Com o novo desenho conceitual da competência material
tem-se em mira a natureza mesma da relação jurídica de direito material —
talvez como antes —, mas os contornos da lide processual não são
mais delimitados pelos atores (trabalhadores e empregadores) que integram a relação substantiva. É assim também com outros novos conceitos da competência material (ações envolvendo o direito de greve, sobre
a representação sindical, relativas a multas...), como veremos a seguir.
O conceito de relação de trabalho
Para compreender o alcance e a extensão da locução empregada
na Emenda n. 45 (relação de trabalho), é preciso definir suas características mais relevantes. Para isso — e não estranhe o leitor que já opera
com o Direito do Trabalho — será preciso revisitar categorias como
subordinação, obrigações de caráter intuitu personae e de trato diferido,
alteridade e onerosidade.
Antes de mais nada preciso compreender a relação de trabalho como
uma forma de exploração da força de trabalho no interior do sistema capitalista de produção e não como uma simples relação jurídica qualquer.
Com efeito, a relação de trabalho é caracterizada, como veremos a seguir,
pelo labor prestado de modo diferido, em caráter pessoal (conquanto diferentemente da pessoalidade característica do vínculo empregatício), via
de regra oneroso, desprovido de subordinação jurídica (mas em geral com
outras formas de subordinação) e quase sempre sem alteridade.
Há relações jurídicas que implicam o cumprimento imediato das
obrigações: as prestações dela resultantes são adimplidas num só
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
319
momento. Essas relações o direito civil classifica genericamente como
espécie dos contratos de execução instantânea.
Já nas relações de trato sucessivo, (a) o cumprimento das obrigações, por um dos sujeitos da relação, ou por ambos, pode dar-se periodicamente ou (b) o “fornecimento da prestação de um dos contratantes
pode se fazer, por convenção entre as partes, através de pagamentos
parcelados”(20). A relação de trabalho a que se refere o inciso I do art. 114
da Constituição, portanto, deve ser entendida como aquela em que o adimplemento da obrigação se faz de modo periódico. O termo periódico, aliás,
sugere a idéia de intervalos regulares, o que talvez seja impróprio: tratase, melhor dizendo, de uma relação obrigacional continuada. Na terminologia clássica, enfim, uma relação diferida (dilatada no tempo, alongada).
São relações jurídicas de execução instantânea típicas a compra e
venda à vista, a doação, a permuta e muitos serviços que não se desenvolvem continuadamente e se plasmam como relação de consumo imediato. É o caso da relação jurídica entre o médico e o paciente, numa
simples consulta, ou na realização de um determinado serviço profissional, como a cirurgia ou um exame. É uma relação de consumo que se
esgota de imediato, num só momento. A mesma natureza caracteriza a
consulta ao advogado ou dentista, o trabalho do taxista, o serviço do
eletricista que faz um pequeno reparo, recebe o preço e ponto final. Nessa
sorte de relações jurídicas incluem-se os serviços ocasionais do arquiteto, encanador, publicitário, jornalista freelancer (que faz apenas uma
única matéria para jornal ou revista e recebe o pagamento correspondente). O consumidor, como destinatário final desses serviços, é a parte
vulnerável do efêmero liame contratual. Aqui não há relação de trabalho
(relação no sentido adequado: relação de trato sucessivo) e a competência para dirimir conflitos intersubjetivos exsurgidos dessas situações não
é da Justiça do Trabalho.
Também não se pode subsumir à regra do inciso I do art. 114, de que
estamos tratando, aquelas relações jurídicas consideradas como de trato
sucessivo apenas porque o pagamento se faz em prestações em parcelas periódicas (embora na classificação do direito civil elas o sejam). Na
relação de trabalho (do inciso I) o diferimento — o caráter sucessivo —
está centrado no elemento preeminente da relação, que é o próprio trabalho. Por exemplo: se o paciente contrata o médico para uma cirurgia,
a prestação obrigacional com conteúdo de trabalho se esvai de pronto,
(20) RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil, São Paulo: Saraiva, 1993, p. 38-39.
320
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
no próprio ato cirúrgico, e mesmo que o pagamento dos honorários se
faça em prestações não haverá relação de trabalho para os efeitos da
competência do Judiciário do Trabalho.
Com efeito, a relação de trabalho(21) não se configura como fenômeno ocasional. É uma relação de trato sucessivo, que se estende por
algum tempo. Como foi dito, não há relação de trabalho no vínculo jurídico pontual do médico que atende o cliente numa consulta, mas haverá
essa relação se o profissional presta serviços a hospitais, cooperativas
de trabalho — inclusive como seu associado —, empresas de medicina de grupo ou operadoras de planos de saúde(22). A relação é diferida
tanto no que toca à prestação do trabalho como no que diz respeito à
remuneração, normalmente fixada por consulta ou procedimento, mas
não raro estabelecida por horas de serviço ou plantões. O mesmo se
deve dizer do advogado que presta serviços de assessoria ou assistência a determinada empresa, em caráter continuado, percebendo sua
remuneração — que nossa cultura jurídica denomina honorários — periodicamente, por unidade de tempo trabalho ou ato processual realizado. Também há relação de trabalho na prestação de serviços do publicitário contratado por tempo indeterminado ou por prazo certo, mas não
quando o contrato visa apenas um serviço ocasional, como a criação de
um folder ou um outdoor.
O contrato de prestação de serviços — atendido o pressuposto
da preeminência do fator trabalho — é um dos exemplos mais típicos de
relação de trabalho sujeita à competência da Justiça do Trabalho. A
própria definição do art. 593 do novo Código Civil deixa isso assentado: “a prestação de serviço, que não estiver sujeita às leis trabalhistas ou a lei especial, reger-se-á pelas disposições deste Capítulo”. A
opção da norma jurídica — ou do “legislador”, como preferem os juristas — foi uma espécie de conceituação residual: se há preeminência
do trabalho humano, mas não se configura o vínculo empregatício,
trata-se de uma prestação de serviços e a disciplina é a do Código
Civil (art. 593 e seguintes). Trata-se de uma regulação legal instituída
“para atender, precisamente, a uma faixa residual de serviços e trabalhos que não está regulada pelo Direito do Trabalho nem pelo Direito Comercial, e que, pela natureza pessoal de que se reveste, com(21) Sempre para os fins hermenêuticos aqui perseguidos: a interpretação do inciso I
do art. 114 da Constituição.
(22) Relação de trabalho entre o médico e essas entidades e não com os pacientes
atendidos.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
321
porta disciplina especial”(23). Repare o leitor, porém, que nem toda prestação de serviços se configura como relação de trabalho (ao menos para
os efeitos da regra de competência de que estamos a cuidar). A relação
somente se configura como tal se há preeminência do trabalho humano
ontologicamente considerado. Não se enquadram nesse conceito, assim, os contratos de prestação de serviços entre pessoas jurídicas (exemplo das empresas que atuam no setor de limpeza e conservação, administração imobiliária, segurança e vigilância etc.).
Uma forma simples de identificar a relação de trabalho é a lógica do
inverso, à qual o operador do Direito do Trabalho já está habituado. Assim,
será sempre possível reconhecê-la naquelas relações jurídicas que se
encontram na famosa zona gris, nas quais a configuração do próprio
vínculo empregatício é controvertida. Se um trabalhador promove ação trabalhista alegando ser empregado do réu e a relação jurídica é nebulosa,
mas acaba por ser afastado na sentença o vínculo de emprego, é muito
provável que se esteja diante de uma relação de trabalho típica. Se o
reconhecimento do vínculo de emprego é afastado, por exemplo, porque
não comprovada a subordinação jurídica, e estando delineados outros traços característicos do próprio emprego, como a pessoalidade, a não-eventualidade ou a alteridade, por certo tratar-se-á de uma relação de trabalho.
Noutras palavras, no núcleo duro do inciso I do art. 114 estão as
relações de compra e venda de força de trabalho realizadas segundo o
estalão de diferentes modelos jurídicos. São abrangidos nessa regra os
contratos de emprego, de prestação de serviços, de empreitada de lavor,
o mandato oneroso, os contratos de comissão, agência, distribuição e
representação comercial, entre outras relações típicas e atípicas. Em
todos eles destacam-se alguns traços característicos que, para os efeitos
do mencionado inciso I do art. 114 da Constituição, identificarão a relação de trabalho. Em conclusão, vamos sintetizar a seguir os traços que
integram o possível perfil conceitual.
O fator trabalho — trabalho humano — está no epicentro do conceito (é o próprio objeto do contrato). Em sua forma arquetípica, a relação de trabalho consubstancia um contrato de compra e venda pelo qual
o trabalhador — empregado ou não — vende sua capacidade de trabalho
como mercadoria. Na empresa capitalista, a mercadoria adquirida (força
de trabalho) é destinada à ampliação do capital, que por seu turno não é
(23) PEDUZZI, Maria Cristina I. “A prestação de serviços”, in FRANCIULLI NETTO,
Domingos e outros, O novo Código Civil, São Paulo: LTr, 2003, p. 540.
322
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
outra coisa senão trabalho objetivado(24). O paradigma jurídico dessa relação, (ainda) hegemônico, é a forma-contrato da Revolução Industrial: o
contrato de emprego. Fora do âmbito do processo de produção capitalista direto, ou paralelamente a ele, as outras formas de trabalho — que
Marx denominaria trabalho improdutivo — não se destinam ao próprio
incremento do capital, e por essa razão freqüentemente configuram modelos jurídicos distintos. O trabalho não-subordinado — vale dizer, o
trabalho que não é objeto de um contrato de emprego clássico — abrange tanto o trabalho produtivo quanto o improdutivo, mas os sistemas de
exploração da mais-valia no interior da chamada globalização incluem
cada vez mais novos paradigmas não-plasmados na forma-emprego. A
subordinação em sua feição clássica dá lugar a outras alternativas de
controle e sujeição. Nelas a capacidade de trabalho também é adquirida
pela empresa capitalista como mercadoria, mas agora para que “o objeto comprado se preserve em sua subjetividade, isto é: em certa medida
esteja disposto ao trabalho por si mesmo e participe do processo cooperativo do trabalho”(25). Esses novos modelos potenciam a perda de subjetividade dos trabalhadores enquanto classe social imersa em mundo
ideologicamente monocórdio. Surgem novas formas de implicação ideológica e laços de dependência mais sutis.
Esse trabalho preponderantemente oneroso só em situações especiais se apresenta como gratuito. O trabalho prestado a título gratuito,
tal como nas relações de família (o “trabalho” da dona de casa feito em
favor dos filhos e do marido; o trabalho do marido e dos próprios filhos na
célula familiar) ou no âmbito de atividades religiosas, por exemplo, não
pode ser considerado como objeto das relações de trabalho a que se
refere a competência da Justiça do Trabalho. As atividades relacionadas
à fé e à caridade não configuram labor em sentido técnico. Há preeminência do conteúdo moral dessas relações. É possível, entretanto, que o
trabalho não-oneroso possa ser objeto da relação de trabalho. É o caso,
por exemplo, do serviço voluntário prestado na forma da Lei n. 9.608/98,
que não é remunerado, mas pode ensejar direitos e deveres a ambas as
partes (como o ressarcimento das despesas realizadas no desempenho
das atividades ou o auxílio financeiro de que trata o seu art. 3º-A).
(24) MARX, K. El capital. Crítica de la economía política, Livro I, 2ª ed. em espanhol,
México: FCE, 1959, p. 316 a 323.
(25) OFFE, C. e HINRICHS, K. “Economía social del mercado de trabajo: los desequilibrios de poder primario y secundario”, em C. Offe (org.). La sociedad del trabajo.
Problemas estructurales y perspectivas de futuro, Madrid: Alianza, 1992, p. 68.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
323
Outro traço importante do conceito é o caráter de execução diferida.
A relação de trabalho enverga um certo caráter obrigacional continuado: é
uma relação de trato sucessivo. O adimplemento da prestação laboral não
se dá num só momento. Isso se evidencia inclusive em alguns contratos
típicos regulados no Código Civil, como o contrato de agência, pelo qual
uma pessoa assume, “em caráter não eventual e sem vínculos de dependência” (isto é, sem vínculo empregatício) “a obrigação de realizar negócios, em zona determinada”, como verbi gratia a distribuição de mercadorias ou a celebração de contratos (art. 710). Essa não-eventualidade, também, é traço característico da prestação de serviços (vejam-se os arts.
597 a 599 do Código de 2002), entre outros contratos típicos.
Há um caráter intuitu personae, embora muito menos rígido. O
objeto do contrato é o trabalho pessoal, que entretanto pode receber,
tangencialmente, o concurso da atividade de outros profissionais ou
até empregados do contratado. À maneira dos italianos, poderíamos
dizer que a prestação do trabalho pessoal “prevalecente”(26). No caso
do contrato de prestação de serviços, por exemplo, o trabalhador pode
fazer-se substituir por terceiro, desde que assim consinta a outra parte, segundo estabelece o art. 605 do novo Código Civil. No mandato
oneroso, o mandatário não pode transferir a responsabilidade pela obrigação a terceiro, salvo mediante consentimento expresso, e é obrigado a
indenizar os danos causados por culpa daquele “a quem substabelecer, sem autorização, poderes que devia exercer pessoalmente” (art.
667). Essa natureza intuitu personae não é afastada pelo trabalho prestado por meio da chamada empresa ou firma individual, que não possui
personalidade jurídica própria e distinta da de seu titular, pessoa física.
Ou seja: mesmo na contratação de firma individual essa pessoalidade
pode estar presente.
A subordinação jurídica tampouco é “elemento” dessa relação(27),
mas o prestador de serviços se obriga ao cumprimento do contrato, a
observar o plano da obra, as instruções do tomador de serviços, as diretrizes da empresa: enfim, pode haver — e freqüentemente haverá —
subordinação econômica ou administrativa. O comissário, por exemplo,
“é obrigado a agir de conformidade com as ordens e instruções do comi(26) Código de Processo Civil da Itália, art. 409, item 3.
(27) A subordinação jurídica tampouco é elemento da relação de emprego: é simples
característica aparente, que não se confunde com os elementos essenciais dessa
relação jurídica. Caso o leitor se interesse sobre tema, remeto-o a um outro trabalho
nosso: MELHADO, Reginaldo. Poder e Sujeição, São Paulo: LTr, 2003.
324
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
tente” (art. 695 do Código Civil). O empreiteiro de mão-de-obra há de
respeitar as determinações do dono da obra e seus responsáveis técnicos. Ela não veste o manequim tradicional do Direito do Trabalho, mas é
freqüentemente uma subordinação real, de outro perfil, alicerçada no poder
daqueles que personificam o capital(28).
Por fim, na relação de trabalho — excetuada uma sua espécie
peculiar, a relação de emprego — em princípio não há o traço da alteridade: o trabalhador pode assumir os riscos de sua profissão ou atividade
econômica. Essa entretanto não é um característica (negativa) essencial. Na empreitada, por exemplo, por exemplo, “se empreiteiro só forneceu mão-de-obra, todos os riscos em que não tiver culpa correrão por
conta do dono” (art. 612 do novo Código Civil).
Relação de trabalho e relação de consumo
É irrelevante a distinção entre relação de consumo e relação de
trabalho, que muitos têm buscado identificar como excludente da hipótese competencial fixada no inciso I do art. 114 da Constituição. Um
mesmo fenômeno jurídico pode estar sob o influxo simultâneo de mais
de uma norma. A subsunção nesses casos é dinâmica e multifacetada.
Nelson Nery Jr. fala nisso, ao sublinhar que os microssistemas regulados pelo Código de Defesa do Consumidor ou pela CLT também podem
ser alcançados pelo Código Civil, subsidiariamente e sempre que haja
compatibilidade(29). Além disso, o CDC excetua de seu campo de incidência a relação “de caráter trabalhista” (rectius: relação empregatícia),
mas não a relação de trabalho enquanto gênero.
Em muitos casos não se trata sequer de “subsidiariedade”. O contrato de prestação de serviços é um exemplo. O art. 593 do Código Civil
estabelece que só é alcançada pela sua disciplina “a prestação de serviço,
que não estiver sujeita às leis trabalhistas ou a lei especial”. A mesma
técnica de exceção é usada pelo Código de Defesa do Consumidor:
serviço é qualquer atividade laboral destinada ao consumo, “salvo as
(28) Sobre a estrutura, as raízes e os fundamentos do poder do capital sobre o
trabalho o autor pede licença para, novamente, remeter o leitor eventualmente interessado para o exame o trabalho acima mencionado (MELHADO, Reginaldo. Poder e
Sujeição, São Paulo: LTr, 2003).
(29) NERY JÚNIOR, Nelson. “Contratos no Código Civil — apontamentos gerais”, in
FRANCIULLI NETO, Domingos, MENDES, Gilmar F. e MARTINS FILHO, Ives G. S. O novo
Código Civil, São Paulo: LTr, 2003, p. 414.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
325
decorrentes das relações de caráter trabalhista” (art. 3º, § 2º). Tanto o
Código Civil como o CDC visam toda e qualquer prestação de serviços,
mas excluem de seu âmbito tuitivo a que provém da relação de emprego(30). Com efeito, a todas as relações de trabalho não-reguladas pela
legislação trabalhista — isto é, todas as que não se expressam como
relação de emprego — aplicam-se o Código de Defesa do Consumidor e
o novo Código Civil (a menos que se entenda que este último, por ser
norma posterior, prevalece sobre o primeiro, o que seria um equívoco).
Uma peculiaridade importante do ponto de vista, digamos, sociológico, e que portanto deve ser levada em conta na modelagem do conceito jurídico, consiste em que o consumidor visado pelo CDC é alguém
que, por meio do consumir, satisfaz uma necessidade pessoal. Não vai
revender esses produtos ou serviços — não é simples intermediário —
ou colocá-los na cadeia produtiva(31). Ele é o seu destinatário final. Assim, não se reputa consumidora uma empresa que adquire insumos para
a fabricação de seus próprios produtos (a montadora de automóveis, por
exemplo), pois esses são bens que integram a cadeia produtiva da adquirente. Ela não é a destinatária final do produto e logo não há relação
de consumo em sentido técnico-jurídico. Não haverá relação de consumo, afastando-se a aplicação do CDC, sempre que a aquisição de bens
ou serviços é feita com finalidade empresarial, como v. g. de montagem,
intermediação, beneficiamento ou industrialização. Essa característica,
aliás, é o que faz presumir uma certa “vulnerabilidade econômica” do
consumidor(32) — o que poderíamos chamar hipossuficiência, na linguagem do Direito do Trabalho —, e justifica o caráter tutelar do sistema
normativo especial.
Não há relação de consumo entre a empresa industrial e o representante comercial autônomo que distribuir seus produtos, conquanto
este forneça um serviço que é “consumido” pela primeira. Tampouco
está presente relação jurídica dessa natureza entre a indústria e o
(30) O Código Civil exclui também a prestação de serviço regulada por “lei especial”
(enquanto o CDC só afasta da sua incidência as relações trabalhistas). Com efeito, à
prestação de serviços do representante comercial autônomo, v. g., não seriam aplicáveis as normas gerais do Código Civil e sim as da Lei n. 4.886/65. Isso, entretanto, é
discutível: as normas do novo Código Civil, especialmente as do seu arcabouço principiológico, também incidem sobre essas relações de trabalho.
(31) FILOMENO, José Geraldo B. et alii. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor
comentado pelos autores do anteprojeto, São Paulo: Forense, 8ª ed., 2004, p. 34.
(32) Idem, ibidem, p. 35.
326
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
comerciante, que adquire os produtos por intermédio do representante
autônomo para revendê-los. A relação de consumo somente se perfaz
na ponta desse encadeamento lógico: entre o consumidor, que é o destinatário final, e os responsáveis pela produção, distribuição e comercialização do produto (CDC, art. 3º). No exemplo, entretanto, há nítida relação de trabalho apenas entre o representante comercial autônomo e a
indústria por ele representada (regulada pela Lei n. 4.886/65).
Na relação de trabalho — salvo quando configurado a relação de
emprego — a hipossuficiência não é um requisito necessário (para dizêlo de alguma forma), mas ela aparecerá com freqüência. Não é por outra
razão, com efeito, que muitas das relações de trabalho tipificadas no
Código Civil são reguladas por diversas disposições de ordem pública
(prestação de serviços, empreitada etc.).
Relação de trabalho e servidores estatutários
A Emenda n. 45 foi promulgada sem a ressalva introduzida pelo
Senado Federal no inciso I do art. 114, visando excluir da esfera competencial da Justiça do Trabalho as ações envolvendo os chamados
servidores estatutários. O texto originário da Câmara Federal, que restou consubstanciado na Emenda, afirma serem competência do Judiciário do Trabalho “as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos
os entes de direito público externo e da administração pública direta e
indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”,
sem a ressalva articulada pelo Senado, que diz: “exceto os servidores
ocupantes de cargos criados por lei, de provimento efetivo ou em comissão, incluídas as autarquias e fundações públicas dos referidos entes da
Federação”.
Servidor ocupante de cargo criado por lei é servidor sujeito ao
regime jurídico próprio, conhecido como estatutário. O servidor regido
pela legislação trabalhista ocupa emprego e não cargo. Por lógica dedutiva, portanto, conclui-se que as ações promovidas pelos estatutários em face da administração direta e indireta, em todos os níveis, estão compreendidas nessa competência. O mesmo sucede, evidentemente, quando a ação é promovida pela administração em face daqueles
servidores.
Mesmo não estando em vigor a regra de exceção proposta pelo
Senado Federal, poder-se-á discutir se os servidores estatutários estariam
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
327
ou não inseridos na competência atribuída pelo inciso I do art. 114. O
texto alude para “as ações oriundas da relação de trabalho”. O vínculo
entre a administração e o servidor estatutário seria uma relação de
trabalho?
Quem o respondeu, de maneira cristalina, é a Constituição de 1969
(que, lembremo-nos, antecedeu a de 1988). Dizia ela, no seu art. 110:
“Os litígios decorrentes das relações de trabalho dos servidores com
a União, inclusive as autarquias e empresas públicas federais, qualquer que seja o seu regime jurídico, processar-se-ão e julgar-se-ão
perante os Juízes Federais, devendo ser interposto recurso, se couber, para o Tribunal Federal de Recursos.”
Com a Constituição de 1988 essa norma expressa foi excluída,
mas o modelo conceitual do texto originário atribuía competência à Justiça do Trabalho para julgar litígios entre trabalhadores e empregadores.
Como só é empregador aquele que contrata pelo regime da CLT, aquele
que se encontra num dos pólos da relação de emprego, segue-se que a
competência da Justiça do Trabalho estava adstrita aos servidores públicos de regime celetista. Com a nova redação, esse modelo dicotômico
foi afastado, como já foi dito anteriormente. Com efeito, os litígios entre
a administração pública direta e indireta e seus servidores militares e
civis, qualquer que seja o regime jurídico, também se inscrevem na competência do Judiciário do Trabalho(33).
Não se incluem nessa competência, entretanto, as relações entre os
agentes políticos e o próprio Estado. Encontram-se nessa categoria jurídica
os membros do Poder Executivo (presidente da República, ministros, governadores, prefeitos e secretários), do Poder Legislativo (senadores, deputados e vereadores) e do Poder Judiciário (ministros dos tribunais superiores,
desembargadores e juízes). Aqui não há relação de trabalho, mas exercício
de poder público. Não há remuneração e sim subsídio. A competência,
portanto, será da Justiça Comum, estadual ou federal.
Repercussões desse novo conceito na intervenção de terceiros
Durante muito tempo se discutiu se haveria lugar para a intervenção de terceiros — nomeação à autoria, oposição e denunciação da lide
(33) Ressalvada a matéria penal. Sobre o tema, veja-se neste livro o trabalho de José
Eduardo de Resende Chaves.
328
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
— no processo do trabalho. A doutrina e a jurisprudência dominantes
sustentavam ser essa intervenção, regulada no CPC, incompatível com
esse processo especializado, em face da regra de competência inscrita
no art. 114 da Constituição: o litígio submetido à jurisdição especializada haveria de ter como únicos atores o trabalhador, de um lado, e o
empregador, de outro.
O conceito de parte no processo é muito mais aberto que o de parte
na demanda, considerada esta como o conflito intersubjetivo de natureza
material. Parte no processo diz com a relação jurídica processual. Podem ser parte no processo o Ministério Público, quando atua como custos legis e não é demandante nem demandado, o assistente, o substituto processual. A idéia de parte na demanda é distinta: diz com a relação
jurídica materialmente considerada.
A competência material da Justiça do Trabalho, no Texto Constitucional de 1988, e em todas as constituições anteriores (desde 1937),
era estabelecida a partir dos sujeitos da relação jurídica material: empregados e empregadores.
A Emenda Constitucional n. 45 supera esse dilema: a competência fixada no art. 114 é definida pela matéria: as ações oriundas da
relação de trabalho (inciso I), que envolvam exercício do direito de greve
(inciso II), de indenização por dano moral ou patrimonial (inciso VI), os
mandados de segurança, habeas corpus e habeas data envolvendo matéria sujeita à sua jurisdição (inciso IV) ou ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho (VII).
O deslize atávico aparece apenas no inciso III, que se refere às
ações sobre representação sindical — portanto, sobre esta matéria —
“entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e
empregadores”. Como no passado, a competência volta ao eixo dos sujeitos da relação jurídica. E agora a relação jurídica processual: “ações
entre sindicatos”... Uma leitura apressada do dispositivo implicaria concluir que as ações entre o sindicato e o órgão responsável pelo registro
dos atos constitutivos das entidades sindicais, mesmo envolvendo a
matéria mencionada — a representação sindical — não seriam de competência da Justiça do Trabalho. A interpretação desse dispositivo somente poderá estar completa, porém, se levado em conta o conjunto
competencial atribuído pelo art. 114 da Constituição. Assim, o mandado
de segurança promovido contra ato de autoridade do Ministério do Trabalho, por exemplo, será de competência da Justiça do Trabalho, se envol-
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
329
ver, entre outras matérias, a própria representação sindical. Aqui, simultaneamente, atuarão os incisos I, III e IV do art. 114, considerados no
seu substrato teleológico.
Assim, os conflitos intersubjetivos originários da relação de trabalho, ou que envolvam o exercício do direito de greve, ou quaisquer outras
matérias enumeradas no art. 114, estarão sob a esfera de competência
da Justiça do Trabalho, mesmo que envolvam litígios ou demandantes
colaterais.
A nova construção conceitual da Emenda n. 45 permite, assim,
equacionar injustiças freqüentes no modelo anterior. Na sucessão, o
juiz do trabalho reconhecia a responsabilidade do sucessor em face das
obrigações do contrato de emprego, mas jamais admitiria a denunciação
da lide ao sucedido, mesmo que estivesse ele obrigado a indenizar àquele
o prejuízo, em ação regressiva (hipótese do inciso III do art. 70 do CPC):
a lide entre o réu e o litisdenunciado (que não eram, um em relação ao
outro, empregado e empregador) refugiria à antiga competência trabalhista(34). Há uma relação de dependência entre o direito de regresso do
sucessor e a responsabilidade do sucedido. É muito mais razoável que
sucedido figure na relação processual e que nela se estabeleçam a natureza, a extensão e a proporção (se for o caso) da sua responsabilidade
e a do sucessor. Nos casos, por exemplo, em que o contrato de emprego sub judice “atravessa” os períodos de titularidade de um e outro na
empresa, o quantum de cada um já pode ser estabelecido desde logo, a
despeito de serem sucessor e sucedido eventualmente responsabilizados solidariamente pelas obrigações oriundas do vínculo empregatício.
(34) “SUCESSÃO DE EMPREGADORES — DENUNCIAÇÃO DA LIDE — CABIMENTO —
PROCESSO DO TRABALHO — INVIABILIDADE — Em se tratando de denunciação da
lide, a sentença, sob pena de nulidade, deve decidir não só a questão entre autor e
réu, como entre este (denunciante) e o terceiro (denunciado), em face do que preconiza o artigo setenta e seis do CPC, aplicável subsidiariamente ao processo do trabalho. Destarte, se a prestação jurisdicional deve dispor sobre ambas as demandas, sob
pena de se revelar incompleta e, como tal, nula, é imperativa a conclusão de que, na
relação jurídica de natureza instrumental e material, estabelecida entre empregado e
empregador, não há lugar para terceiro, na condição de denunciado, quando sua pretensão é de natureza civil. Vê-se, portanto, que a discussão entre o sucessor denunciante e o sucedido denunciado escapa totalmente à competência da Justiça do Trabalho, adstrita, por força do que disposto no artigo 114 da Constituição Federal, tãosomente à composição dos litígios entre trabalhadores e empregadores, levando à
inafastável conclusão acerca do não-cabimento da denunciação da lide no âmbito do
processo do trabalho. Revista não conhecida” (TST — RR 288545/1996 — 4ª T. — Rel.
Min. Milton de Moura França — DJU 4.12.1998 — p. 00326. Os grifos são de agora).
330
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
A antiga díade conceitual inviabilizava, também, a oposição prevista no art. 56 do CPC (“quem pretender, no todo ou em parte, a coisa ou
o direito sobre que controvertem autor e réu, poderá, até ser proferida a
sentença, oferecer oposição contra ambos”). Como se sabe, a oposição
é uma ação de conhecimento promovida pelo terceiro (oponente) que
postula o direito ou coisa objeto da demanda entre autor e réu (opostos).
Sendo a pretensão do opoente resistida por ambos os opostos, o juiz
decide a ação e a oposição (podendo fazê-lo inclusive na mesma sentença). Se um do opostos reconhece a procedência da pretensão deduzida, a lide tem seguimento entre opoente e o outro oposto (CPC, art. 58).
Muitos autores consideram que essa regra do art. 58 do CPC — de
prosseguimento do feito entre uma das partes (autor ou réu) e o opoente
— descortinava a hipótese, no processo do trabalho, de um litígio entre
dois trabalhadores ou dois empregados. Os exemplos revelados pela
doutrina e pela jurisprudência são inúmeros, e podem ser mencionados
aqui como simples ilustração. É o caso, v. g., do empregado que ingressa em juízo postulando condenação do empregador no pagamento de
prêmio que, segundo regulamento interno, seria concedido ao vendedor
que fizesse o maior número de vendas. Julgando-se no direito à mesma
premiação, um outro empregado poderia ingressar com a oposição, com
apoio no art. 56 do CPC. Se o réu na ação trabalhista, que nesse caso é
o empregador, reconhece a procedência da pretensão deduzida pelo
opoente, a lide teria seguimento entre este e o autor. Logo, entre dois
trabalhadores (o opoente e o autor da ação), ficando o empregador excluído do feito. O mesmo problema poderia ocorrer quando, no bojo da
oposição, dois trabalhadores demandassem promoção prevista em quadro de carreira da empresa(35). Há decisões de tribunais do trabalho no
mesmo sentido. Essa orientação era tecnicamente irreprochável, na
medida em que a competência outorgada pelo sistema constitucional à
Justiça do Trabalho estava baseada num binômio: dissídios haveriam de
se estabelecer entre trabalhadores e empregadores.
O mesmo obstáculo alcançava a nomeação à autoria. A hipótese
prevista no art. 62 do CPC tem incidência mais remota — se não impossível — perante a Justiça do Trabalho. Mas a do art. 63, ao contrário,
poderia perfeitamente ensejar aplicação no processo do trabalho. Diz
essa norma jurídica: “Aplica-se também o disposto no artigo anteceden(35) Vejam-se esses e outros exemplos em M. Antonio Teixeira Filho. Litisconsórcio,
assistência e intervenção de terceiros no processo do trabalho, cit., p. 166 a 170.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
331
te (da nomeação à autoria) à ação de indenização, intentada pelo proprietário ou pelo titular de um direito sobre a coisa, toda vez que o responsável
pelos prejuízos alegar que praticou o ato por ordem, ou em cumprimento
de instruções de terceiro”.
Digamos, por exemplo, que se trate de ação em que o empregador
postula indenização pelos danos causados a veículo (que é coisa) que
se encontrava sob a posse de seu empregado, e “contra” ele ingressa
com a ação trabalhista. Como fundamento autor alega que o bem teria
sido danificado por dolo ou culpa grave do empregado. Sustentando o
réu (empregado), no processo, que praticou o ato por ordem ou em cumprimento de instruções de um seu superior hierárquico na própria empresa, poderia ele requerer a nomeação à autoria desse terceiro (art. 63 do
CPC). Ocorre que, nos termos do art. 66, se o superior hierárquico, nomeado à autoria, aceitar a responsabilidade que lhe é atribuída, o processo “contra ele” continuará a correr. Em sendo o nomeado — superior
hierárquico do réu originário — empregado, não estaríamos diante de
qualquer problema. Mas se ele fosse apenas um administrador que presta serviços ao autor da ação como autônomo, ou mandatário, o velho
problema estaria posto outra vez. Nessa hipótese, ter-se-ia a lide novamente entre dois sujeitos que não se apresentariam, um em face do
outro, como empregado e empregador. Não obstante, com inovação conceitual edificada com a Emenda n. 45 esse problema desaparece, pois a
lide, oriunda da relação de trabalho, seria competência da Justiça do
Trabalho. O que a Justiça do Trabalho fazia nesses casos, lamentavelmente, e por não haver, de fato, outra solução tecnicamente aceitável, à
luz do conceito então albergado no art. 114 da Constituição, era quase
uma negativa de jurisdição. Afinal, o juiz do trabalho poderia constatar a
responsabilidade do sucedido, em face das obrigações trabalhistas anteriores, mas sempre transferia a carga exclusivamente sobre os ombros do sucessor, e, olimpicamente, dizia-lhe que fosse procurar um
outro seguimento da Justiça para tentar obter o ressarcimento devido,
iniciando um novo e moroso e tormentoso processo.
Com a nova arquitetura conceitual do art. 114 da Constituição, essa
aberração pode ser finalmente afastada. Afinal, requerida a denunciação
da lide àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar,
em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda (CPC, art. 70,
inciso III), pode o juiz do trabalho resolver o conflito e a responsabilidade
por perdas e danos do sucedido, valendo sua sentença como título executivo (CPC, art. 76).
332
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Isso simplesmente porque superada a fase histórica da competência binomial da Justiça do Trabalho, voltando-se ela, hoje, para as ações
originadas da relação de trabalho. Inclusive “as ações de indenização
por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho” (inciso VI). Assim, essa competência também compreende conflitos entre
os sujeitos da relação de trabalho e terceiros, por acessoriedade, complementaridade ou dependência.
Ações que envolvem o direito de greve
A competência da Judiciário do Trabalho passou a abranger todas as ações que “envolvam exercício do direito de greve” (art. 114,
inciso II, da Constituição). Não é novidade, porque o exercício do direito de greve está no cerne mesmo do Direito do Trabalho e a matéria
sempre foi de competência do Judiciário do Trabalho, que continua
decidindo a legalidade ou (conforme o eufemismo da lei) “abusividade”
da movimento, assim como da conduta dos sujeitos envolvidos na
relação jurídica.
A inovação consiste, também aqui, em fixar a competência com
base no thema juris, não importando quem sejam os sujeitos da relação
de direito material envolvidos. Assim, as ações alcançadas pelo dispositivo constitucional em questão abrangem os litígios entre empregados e
empregadores, entre sindicatos, entre sindicatos e empregados ou empregadores, entre sindicatos e administração pública, entre os grevistas
e terceiros, etc. Não importam os atores, mas a matéria que deve estar
enredada ao exercício do direito greve.
Há numerosos exemplos que ilustram essa competência. A contratação de mão-de-obra com o objetivo de substituir trabalhadores em
greve, fora hipóteses permitidas em lei, pode ser obstada judicialmente
por ação promovida pelo sindicato da categoria em greve ou pelos próprios grevistas. O empregador pode buscar em juízo autorização para contratar trabalhadores por período razoável e necessário à continuidade
dos serviços mínimos nas atividades essenciais à comunidade. O Ministério Público pode agir perante a Justiça para evitar danos ao patrimônio
público em razão da greve. O sindicato pode insurgir-se contra embaraços criados ao exercício do direito de greve pela polícia ou por autoridades públicas (inclusive por meio do mandado de segurança e do habeas
corpus). Um terceiro afetado pela greve — que não é empregado nem
empregador, ou mesmo entidade sindical representativa desses sujeitos
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
333
— deverá discutir a causa na Justiça do Trabalho. Um exemplo é a administração de um Município diante da greve de condutores de ônibus de
transporte público concedido a empresa: não é empregadora, nem empregada, mas titular de direito subjetivo legítimo como titular dos serviços explorados por concessão ou permissão.
A responsabilidade dos trabalhadores e dos seus sindicatos, em
razão de danos causados em razão do movimento paredista, só poderá
ser buscada na Justiça do Trabalho. Eram comuns, até hoje, as ações
de indenização por dano material e moral, contra sindicatos de trabalhadores, na Justiça Comum.
Imputando conduta ilícita aos grevistas e seus sindicatos, e ilegalidade da própria greve, empresas pleiteavam na Justiça Comum a reparação de danos emergentes e lucros cessantes. A decorrência natural e
necessária da greve é o prejuízo econômico ao empregador: a cessação
das atividades é com esse fim. Se a parede não acarreta algum dano,
decorrente da paralisação, ela é ineficaz. Nesses processos, o magistrado da Justiça Comum julgava a greve, como pressuposto necessário
da decisão, decidindo ou não pela procedência da pretensão. Havia nisso uma fragmentação jurisdicional absurda, pois a conduta do próprio
empregado, no curso da greve, só podia ser objeto de apreciação na
Justiça do Trabalho.
Por meio de interditos proibitórios, muitos bancos provocaram o
malogro de recente greve dos bancários. Em diversas decisões foi determinada a abertura de agências, ao fundamento de que a realização de
piquetes implicaria desrespeito à Lei de Greve. Houve caso em que juízes
ordenaram a retirada de faixas e cartazes das empresas em interditos
proibitórios postulados perante a Justiça Comum.
Deu-se um fim a essa cisão competencial absurda, que levava o
julgamento da greve à Justiça Comum pela via das ações possessórias
ou indenizatórias. O inciso II do art. 114 da Constituição é amplíssimo:
“ações que envolvam exercício do direito de greve”. O vocábulo empregado dá um sentido mais alargado do que o usual (ações oriundas, decorrentes, sobre...). Envolver, aqui, significa relacionar-se direta ou indiretamente com o exercício do direito de greve. Podem ser parte os empregados, os empregadores, o Ministério Público, o Poder Público, os
trabalhadores não-empregados, o vizinho afetado pela greve. Já não pode
mais haver dúvida sobre o juízo competente nessa matéria. Em português
corrente: fim de papo!
334
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Ações sobre representação sindical
O inciso III do art. 114 atribui competência à Justiça do Trabalho
para processar e julgar “as ações sobre representação sindical, entre
sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores”. Essa norma veio a racionalizar o sistema e corrigir aberrações. Ela coloca sob a competência do Judiciário do Trabalho as ações
que versam sobre a disputa pela representação de categorias profissionais ou econômicas, ou por base territorial, entre sindicatos, mas também alcança um amplo leque de matérias conexas, que só podem ser
compreendidas pela análise do conjunto de competências fixadas no
art. 114.
Melhor seria, entretanto, que a reforma constitucional houvesse
optado por outra técnica legislativa, fixando a competência genérica
sobre direito sindical, evitando este deslize atávico de fazer referência
aos sujeitos da relação jurídica material subjacente ao litígio (“entre
sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores”).
O dispositivo em questão alude a sindicatos. Deve-se entender
compreendidas nessa locução as entidades sindicais de qualquer grau.
Ações envolvendo federações, confederações e centrais sindicais também são competência da Justiça do Trabalho, desde que versem sobre
algumas das matérias fixadas no art. 114, ou sobre a representação dos
trabalhadores e empregadores, inclusive aquela feita no próprio local de
trabalho (art. 11 da Constituição) ou nos colegiados dos órgãos públicos
em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de
discussão e deliberação (art. 10). Uma leitura restritiva da norma constitucional, limitando a competência aos sindicatos de primeiro grau — e,
logo, excluindo todas as demais organizações — levaria ao ridículo: a
Justiça Comum seguiria decidindo sobre matéria sindical, própria do Direito do Trabalho, e a competência estaria absurdamente cindida nesse
campo específico do direito material.
As disputas de base e de categoria dizem respeito ao reconhecimento da legitimidade de organizações sindicais de qualquer grau, quando
a representação é postulada por mais de uma entidade. Como a lei não
pode impedir a fundação de entidades sindicais, se não há ofensa ao
princípio da unicidade (um único sindicato na base territorial), inúmeros
litígios exsurgem freqüentemente nessa área. A competência da Justiça
do Trabalho, agora, inclui as discussões sobre a legalidade de criação
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
335
da entidade, desde a realização dos atos constitutivos, como a convocação da assembléia de fundação, até o seu registro no órgão competente
(Constituição, art. 8º, inciso I).
Por representação sindical, porém, não se pode entender apenas
essa matéria. Nela está subjacente, também, o próprio direito de sindicalização: se a vinculação ao sindicato se dá com base na atividade
preponderante da empresa empregadora, ou na profissão do trabalhador,
é algo que diz com a representação sindical: sua extensão e seu conteúdo mesmo, e o próprio direito de filiar-se ou não ao sindicato.
Esse dispositivo constitucional abrange, também, discussões sobre a natureza jurídica da empresa empregadora e a representação de
servidores públicos (da administração direta, autárquica e fundacional) e
empregados de empresas públicas e de sociedades de economia mista.
A eleição e o exercício de cargos de direção ou administração
sindical sempre foram temas subsumidos à locução representação sindical. Ela aparece nesse sentido inclusive na Súmula n. 197 do STF (“O
empregado com representação sindical só pode ser despedido mediante
inquérito em que se apure falta grave”). O registro da candidatura a “cargo de direção ou representação sindical” é condição para adquirir-se a
chamada estabilidade provisória do dirigente sindical (Constituição, art.
8º, inciso VII). Com efeito, essa eleição é tema competencial do Judiciário do Trabalho.
Denomina-se o dirigente da entidade representante sindical, assim
na chamada doutrina como na própria legislação(36). Com efeito, as ações
sobre representação sindical abrangem aquelas que versam sobre eleições dos representantes sindicais. Dessa forma, estão incluídas na competência do Judiciário do Trabalho as questões que dizem com a regularidade dos editais de convocação das eleições sindicais, registro de
canditatura, o quadro de associados em condições de votar, as regras
estatutárias na disputas entre as chapas, as comissões eleitorais e um
longo et cetera.
Todas essas situações podem ser subsumidas, também, ao inciso I
do art. 114 da Constituição, pois enfeixam controvérsias oriundas da relação de trabalho. Afinal, o direito sindical pressupõe a relação de trabalho
(36) Vejam-se alguns exemplos: Constituição, art. 8º, inciso IV (“sistema confederativo da representação sindical”), inciso VIII (“cargo de direção ou representação sindical”), art. 233, já revogado (“na presença de seu representante sindical”).
336
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
(como gênero que abrange a relação empregatícia): não há sindicato fora do
âmbito da relação de trabalho. Assim, a compreensão adequada do inciso
III do art. 114 exige que se revisite o seu inciso I, analisado anteriormente.
Nessa ordem de raciocínio é imperioso concluir-se que compete à
Justiça do Trabalho o julgamento das causas que versem sobre os atos
constitutivos, os processos eleitorais e a atuação das comissões de conciliação prévia de que tratam os arts. 625-A e seguintes da CLT, por
atuação conjunta dos incisos I e III do art. 114 da Constituição. Pelas
mesmas razões, estão contidas nessa mesma competência todas as
questões concernentes à gestão dos sindicatos, que são atribuição dos
representantes sindicais.
Penalidades administrativas impostas aos empregadores
O art. 114, inciso VII, da Constituição, faz referência às “ações
relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos
órgãos de fiscalização das relações de trabalho”. O texto inicial que
aparecia no relatório da deputada Zulaiê Cobra era mais restritivo: mencionava as “penalidades administrativas impostas aos empregadores pelo
Ministério do Trabalho”. Graças à intervenção da Anamatra, a versão
final do relatório foi modificada pela parlamentar.
A diferença é importante. As relações de trabalho não são fiscalizadas apenas pelo Ministério do Trabalho. Ele é apenas um dos órgãos
responsáveis pela matéria. A penalidade a que se refere esse inciso
pode ser imposta pela fiscalização de quaisquer outros órgãos públicos.
As multas impostas pelo Ministério do Trabalho são as mais freqüentes. Abrangem o cumprimento das normas de proteção dos trabalhadores, uso de cartões de ponto fraudulentos, pagamento em atraso
de salários, ausência do registro de empregados, o trabalho escravo, o
fundo de garantia, as contribuições sindicais, as contribuições devidas
ao SESC e SENAC, contribuições específicas de seguro de acidentes
do trabalho e um sem-número de outras hipóteses.
Multas aplicadas pela Previdência Social também estão abarcadas
no inciso VII, mesmo quando relativas às suas contribuições, pois (a) elas
são impostas aos empregadores e (b) o auditor fiscal do INSS fiscaliza
relações de trabalho. A arrecadação — mediante desconto nos pagamentos
feitos aos trabalhadores — e o recolhimento das contribuições previdenciá-
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
337
rias é responsabilidade da empresa empregadora. São muito comuns —
até aqui na Justiça Federal — as causas em que a pessoa física ou jurídica
discute na ação a própria existência da relação de emprego que deu fundamento à multa(37). O fiscal aplica a multa à empresa porque, a seu juízo, as
contribuições não foram recolhidas. A empresa opõe-se à penalidade, verbi
gratia, ao fundamento de que não há obrigação de recolher as contribuições, por não haver vínculo empregatício, ou por serem os trabalhadores
empregados de terceiro prestadores de serviços. A discussão, antes comum na Justiça Federal, passa à competência do Judiciário do Trabalho.
O inciso VII do art. 114 compreende as ações concernentes às
multas ou quaisquer outras penalidades impostas ao empregador, como
a interdição ou o embargo de obras. Digamos que o Ministério do Trabalho considere existente grave e iminente risco para os trabalhadores e,
nos termos do art. 161 da CLT, resolva interditar o estabelecimento, ou
um setor da empresa, ou mesmo o uso de máquina ou equipamento. A
discussão sobre a procedência da medida e o levantamento da interdição deverão ser buscados na Justiça do Trabalho. O mesmo se dará nos
casos de construção embargada.
A competência da Justiça do Trabalho abrange também a insurgência contra inspeção do Ministério do Trabalho que imponha modificação nas instalações, obras ou equipamentos de segurança, como
condição para a autorização do início ou da retomada das atividades da
empresa. Nesse caso atuam simultaneamente os incisos I e VII do art.
114. Se a medida eleita pelo empregador for o mandado de segurança, o
caso enfeixará também a regra do inciso IV do mesmo dispositivo.
Essa mesma competência enfeixa ainda as multas aplicadas pelos conselhos de fiscalização profissional, entidades que têm natureza
de autarquia federal e, portanto, podem promover a execução dos valores correspondentes com base na Lei n. 6.830/80. Nesses casos poderse-á discutir, por exemplo, a regularidade da inscrição da dívida, o pro(37) Veja este exemplo, e observe o leitor que se trata de um acórdão da Justiça
Federal e não de um TRT, como parece: “Nos termos do artigo 3º da CLT, ‘considerase empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a
empregador, sob a dependência deste e mediante salário’. Deste modo, os contratados da empresa para substituir em férias e licenças aos seus empregados regulares,
possuindo subordinação hierárquica e realizando atividades precípuas daquela, não
podem ser considerados como trabalhadores avulsos ou autônomos” (TRF 1ª R. —
AC 199901000203751 — MG — 3ª T. — Rel. Juiz Conv. Saulo José Casali Bahia — DJU
29.6.2001 — p. 686).
338
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
cedimento administrativo pela qual ela foi imposta, a competência do
próprio órgão, desde que a penalidade seja atinente ao exercício de
determinada profissão (logo, de relação de trabalho).
Títulos executivos e ações incidentais na cobrança de multas
A competência insculpida no inciso VII do art. 114 compreende as
“ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores”. Tratam-se aqui não só das ações de conhecimento, condenatórias, constitutivas, declaratórias ou mandamentais(38), promovidas pelo
empregador em face dos órgãos de fiscalização das relações de trabalho,
mas também as ações de execução promovidas pelos entes públicos
respectivos, as medidas cautelares pertinentes e as ações incidentais.
Assim, aplicada a multa pela fiscalização do Ministério do Trabalho, por exemplo, a Fazenda Nacional deverá promover a execução correspondente perante a Justiça do Trabalho. Para tanto, ela deverá instruir a petição inicial com a certidão de dívida ativa regularmente inscrita,
que goza de presunção de certeza e liquidez e, portanto, é título executivo extrajudicial. Trata-se, aqui, de dívida ativa não-tributária, cobrada
pela Fazenda Nacional na forma do art. 2º da Lei n. 6.830/80, com a
qual, aliás, já se encontra o juiz do trabalho bastante familiarizado.
O título executivo é a certidão de dívida ativa e deve conter os requisitos do § 5º do art. 2º da Lei n. 6.830/80: (a) o nome do devedor e dos
co-responsáveis, (b) o valor da dívida, o termo inicial e forma de cálculo
dos juros e demais encargos, (c) a origem, a natureza e o fundamento
legal da dívida, (d) a data e o número da inscrição, no Registro de Dívida
Ativa, e (e) o número do processo administrativo ou do auto de infração.
Como dito anteriormente, os meios processuais de insurgência do
empregador contra a penalidade são inúmeros. Ele pode ingressar com
ação visando que o juiz declare a nulidade da multa imposta, por exemplo.
Pode também opor-se à cobrança por meio da ação incidental de embargos à execução. Pode ainda impetrar mandado de segurança ou requerer
provimentos de urgência de qualquer natureza. Para o delineamento da
competência de que trata o art. 114 da Constituição, basta que haja nexo
causal entre o objeto da penalidade e as relações de trabalho.
(38) Muitos autores consideram ser de natureza mandamental as conseqüências do
ato jurisdicional, suas repercussões no mundo fático, e não a ação em si mesma. Essa
é uma discussão que não nos interessa aqui.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
339
Cobrança pela Fazenda Nacional do FGTS não-depositado
Em razão do disposto nos incisos I e VII do art. 114, a Justiça do
Trabalho passa a ter competência para conhecer das ações relativas às
multas impostas aos empregadores em decorrência do descumprimento
das normas do Fundo de Garantia(39). As infrações e as multas correspondentes estão previstas nos arts. 22 e 23 da Lei n. 8.036/90.
Conforme previsto no art. 2º da Lei n. 8.844/94, é da Fazenda Nacional — ou da Caixa Econômica Federal, “mediante convênio” — a legitimidade para cobrança judicial das “contribuições” ao Fundo de Garantia,
“multas e demais encargos”.
Mas em se tratando do Fundo de Garantia a competência da Justiça do Trabalho não compreende apenas as multas. O próprio FGTS
não-depositado regularmente pelo empregador pode ser objeto de cobrança — inclusive pela via executiva —pela Fazenda Nacional ou pela
Caixa Econômica Federal, perante a Justiça do Trabalho, nos termos do
art. 114, inciso I, da Constituição.
Afinal, esses litígios são oriundos da relação de trabalho (porque a
pressupõem), e o pagamento dos salários é o fato gerador da obrigação
de depositar o Fundo de Garantia. Convém lembrar, sempre, que a competência do Judiciário do Trabalho já não se assenta no velho núcleo
dicotômico: agora já não se requer um dissídio entre trabalhadores e
empregadores, mas um litígio intersubjetivo oriundo da relação de trabalho, não importando quem sejam os sujeitos dessa relação jurídica.
Além disso, se não se reconhecesse essa competência para a ação
que visa à cobrança ou execução do próprio depósito do Fundo de Garantia,
haveria uma insólita e absurda situação: as multas seriam discutidas no
Judiciário do Trabalho e o principal na Justiça Federal. Ao defender seus
interesses em juízo, a empresa pode sustentar, digamos, a inexistência
mesma da relação de emprego (ou qualquer outro fundamento). Se se admitir essa hipotética e absurda bifurcação da competência, seria possível, em
tese, que a Justiça Federal, examinando essa questão prejudicial, entendesse devido o principal (o próprio depósito), porque configurado o vínculo
empregatício, e a Justiça do Trabalho, contrariamente, isentasse a suposta
(39) “A fiscalização do Ministério do Trabalho possui competência para verificar o fiel
cumprimento das normas de proteção dos trabalhadores, entre as quais se situa
aquelas relacionadas ao recolhimento do FGTS” (TRF 1ª R. — AC 199901000203751
— MG — 3ª T. — Rel. Juiz Conv. Saulo José Casali Bahia — DJU 29.6.2001 — p. 686).
340
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
empregadora das multas, concluindo pela inexistência do vínculo de emprego. Ou vice-versa, que daria no mesmo: um autêntico imbróglio(40).
A única solução razoável e sensata, portanto, consiste em reconhecer
que Justiça do Trabalho detém competência para processar e julgar a cobrança ou execução dos depósitos do Fundo de Garantia, multas e demais encargos previstos, seja a ação promovida pelo próprio trabalhador, titular da conta
vinculada, seja ela proposta pela Fazenda Pública da União ou pela Caixa
Econômica Federal. O fundamento, nesse caso, repousa na interpretação
combinada dos incisos I e VII do art. 114 do Texto Constitucional.
(40) Essas situações são freqüentes na prática. Veja-se, à guisa de mera ilustração, este
julgado do TRF da 4ª Região: “Execução fiscal — Embargos — FGTS — Odontólogos —
Existência de relação empregatícia — Ausência de prova em contrário — Presunção de
liquidez e certeza da CDA não elidida — Inversão sucumbencial — 1. Considera-se
empregado, toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário (art. 3º da CLT). 2. A caracterização
da relação de emprego se impõe quando se verifica na relação a teor do art. 3º da CLT:
subordinação hierárquica, habitualidade e pessoalidade na prestação de serviços, mediante contraprestação salarial. 3. O contrato de trabalho, no Brasil, não requer forma
solene e as normas legais que o regulam são imperativas, de ordem pública. Por isso,
sempre que um trabalhador prestar serviços não eventuais a uma pessoa física ou
jurídica, que assuma os riscos da atividade empreendida, dirija a prestação pessoal dos
serviços e lhe pague os correspondentes salários — haverá contrato de trabalho entre
ambos (arts. 2º e 3º da CLT). 4. Não basta a alegação de que os odontólogos eram
prestadores de serviços autônomos, sendo necessário à embargante provar tal fato para
elidir a necessidade de recolhimento para o FGTS. Inteligência do art. 3º da LEF. Caso em
que os odontólogos em questão, ainda que inscritos no INSS como autônomos, prestavam
serviços nas dependências do embargante, o que pressupõe uma subordinação hierárquica ou disciplinar. A não-eventualidade fica configurada, haja vista que as atividades
desenvolvidas em prol de seus associados (serviços odontológicos) enquadravam-se
perfeitamente na atividade-meio do sindicato/embargante. A contraprestação mensal pelos serviços prestados caracteriza-se pela lavratura de ‘recibos de salário’. 5. Não há
como considerar-se o sindicato/embargante como mero repassador de verbas advindas
de convênio firmado com o INSS, na medida que todos os documentos juntados à inicial
embargatória, com o fito de confirmar a ausência de vínculo empregatício dos odontólogos
com o sindicato/embargante, são posteriores à exação em questão, portanto, nenhuma
prova fazem. 6. Liquidez e certeza da cártula não elididas pela embargante. 7. Ônus
sucumbencial invertido. 8. Apelação provida” (TRF 4ª R. — AC 2000.04.01.037993-9 —
SC — 2ª T. — Rel. Juiz Alcides Vettorazzi — DJU 23.1.2002 — p. 268). Ou ainda esta outra
decisão, do mesmo tribunal: “ Como o recorrido tem produção 24 horas, o Ministério da
Agricultura autorizou o trabalho de seus fiscais, em horário extraordinário, desde que a
empresa fiscalizada pagasse o valor equivalente ao trabalho extra. Os pagamentos foram
efetuados diretamente ao Ministério da Agricultura, razão pela qual afasta-se a hipótese de
relação de emprego no âmbito privado, excluindo-se, portanto, a necessidade de recolhimento
do FGTS, por não se enquadrar na hipótese em pauta” (TRF 4ª R. — AC 94.04.53910-4 —
SC — 3ª T. — Relª Juíza Luiza Dias Cassales — DJU 16.9.1998 — p. 384).
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
341
A Ampliação da Competência da Justiça do
Trabalho e o Ministério Público do Trabalho
Sandra Lia Simón (*)
1. Considerações iniciais
Os acertos e equívocos da mais recente mudança no Judiciário —
como de resto acontece com qualquer reforma da estrutura institucional
do Estado — só poderão ser detectados depois de um período razoável
de vivência sob o novo sistema.
Essa afirmação é ainda mais pertinente em relação ao ponto principal
da reforma da Justiça do Trabalho: a ampliação da sua competência. Só o
tempo dirá se estavam certos os defensores desse incremento de tarefas
ou se a razão pertencia àqueles que alertavam para o perigo de colapso,
considerada a permanência dos crônicos problemas estruturais e as notórias deficiências do ordenamento processual trabalhista; se a ampliação foi
estrutural ou meramente superficial, ao deixar-se de lado matérias de fundamental importância no mundo do trabalho, como a competência criminal e a
para o julgamento das ações decorrentes de acidentes de trabalho, priorizando-se o papel de Instituição arrecadadora.
Por isso, não se vai, neste artigo, fazer um exercício de futurologia.
O que se pretende aqui é destacar alguns aspectos técnicos da reforma
e, em especial, referenciá-los à atuação do Ministério Público do Trabalho. Não se trata de um trabalho de cunho científico, mas de um pequeno texto, a título de primeiras impressões — enfim, uma modesta contribuição ao início dos debates que certamente serão intensos e fecundos.
2. A nova redação do art. 114 (1) da Constituição Federal.
Abordagem preliminar
A parte inicial do inciso I do art. 114 da Constituição Federal assenta incumbir à Justiça do Trabalho processar e julgar “as ações oriun(*) Procuradora-Geral do Trabalho.
(1) O artigo foi escrito às vésperas da promulgação da EC n. 45 e desconsiderou a
inclusão dos servidores estatutários na competência da Justiça do Trabalho.
342
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
das da relação de trabalho”. Seguem-se uma norma de esclarecimento
(“abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios”), outra de exceção ao esclarecimento (“exceto os servidores
ocupantes de cargos criados por lei, de provimento efetivo ou em comissão”) e outra de inclusão (“incluídas as autarquias e fundações públicas
dos referidos entes da federação”).
A técnica utilizada é questionável e reacende discussão doutrinária sobre as entidades que integram ou não a Administração Pública
Indireta, tais como as autarquias e fundações. O inciso teria o mesmo
sentido, com economia de palavras, e preservando a linguagem própria
do mundo trabalhista, se fosse assim redigido: “os dissídios individuais
e coletivos oriundos de relação de trabalho, excetuados aqueles que
envolvam servidores públicos ocupantes de cargos criados por lei, de
provimento efetivo ou em comissão”. De se registrar a retirada do vocábulo “conciliar” — presente em todos os artigos que definiam a competência da Justiça do Trabalho, desde a Constituição Federal de 1946 —
e a expressão “bem como os litígios que tenham origem no cumprimento
de suas próprias sentenças, inclusive coletivas” — esta certamente desnecessária.
De todo modo, uma primeira conclusão se impõe: a Justiça do Trabalho deixa ser a Justiça apenas do Direito do Trabalho, ou da relação de
emprego, ou, como se queira, da relação de trabalho subordinado. Podese vislumbrar, desde já, o desafio que terão a doutrina e a jurisprudência
para delimitar a extensão da expressão “relação de trabalho”.
No que diz respeito ao setor privado, terão de ser dirimidos pela
Justiça do Trabalho, independentemente do seu objeto específico, os
conflitos que emergirem de todos os contratos aptos a ensejarem uma
relação de trabalho, como, apenas exemplificativamente, os de prestação de serviço e mesmo de empreitada (sem qualquer dúvida, pelo menos, quanto à empreitada de lavor), regidos pelos arts. 593 a 626 do
Código Civil.
No que tange ao setor público, da mesma forma, toda controvérsia
oriunda de prestação de serviços à administração deverá ser examinada
pela Justiça do Trabalho, ressalvadas, unicamente, aquelas que envolvam ocupantes de cargos públicos e, por extensão, de funções de confiança (já que estas devem ser exercidas necessariamente por servidor
que detenha cargo efetivo — Constituição Federal, art. 37, V).
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
343
A atuação do Ministério Público do Trabalho, no entanto, já vinha
apontando nesse sentido, qual seja, o de abranger toda e qualquer relação laboral, independentemente da existência da clássica noção de trabalho subordinado, protegida pela Consolidação das Leis do Trabalho.
Os exemplos dessa atuação ampliada são muitos e dos mais variados e
vão além dos limitados contornos do Direito do Trabalho, pois envolvem
a defesa dos Direitos Humanos decorrentes das relações laborais, em
hipóteses como o combate ao trabalho das crianças nos lixões e o combate ao trabalho infantil doméstico, dentre outros. No primeiro caso, é
patente a inexistência do “contrato de trabalho” tradicional, mas a realidade dos fatos não poderia afastar a atuação do Ministério Público, haja
vista tratar-se de verdadeiro atentado aos mínimos princípios que caracterizam a dignidade da pessoa humana, o que por conseqüência atrairia
a competência da Justiça do Trabalho para julgamento dos litígios decorrentes desta aberração. No segundo caso, tampouco há a caracterização clássica da “relação de emprego”, mas é igualmente necessária a
atuação do Ministério Público do Trabalho, bem como da Justiça do
Trabalho, quando provocada. Saliente-se que estas duas hipóteses são
consideradas pela OIT — Organização Internacional do Trabalho como
duas das piores formas de exploração do trabalho infantil.
Contudo, a atuação ampliada do Ministério Público do Trabalho vai
ainda mais além, abarcando questões permeadas de irregularidades típicas de relações de trabalho, no sentido amplo, mas igualmente sem a
caracterização clássica do vínculo celetista, como, por exemplo, os contratos de estágio e a contratação de pessoas jurídicas individuais (que,
em princípio, seria mera prestação de serviços, distante da proteção
do Direito do Trabalho).
Assim, a alteração constitucional, nesta parte, é absolutamente
significativa, por — pelo menos — dois motivos: primeiro, porque não fez
outra coisa senão legitimar a já consolidada atuação ampliada do Ministério Público do Trabalho, que a partir de agora, certamente, não mais
encontrará os óbices que eventualmente encontrava ao provocar o Judiciário Trabalhista, pleiteando a concretização de princípios que corporificam a dignidade da pessoa humana, em especial, da pessoa que trabalha das mais diversas formas; segundo, porque dá à Justiça do Trabalho
a possibilidade real e concreta de caracterizar-se como ramo do Judiciário
que faz valer os Direitos Humanos Fundamentais, de forma muito mais
pontual e objetiva. Aliás, a consolidação desta nova atuação servirá, inclusive para, posteriormente, ampliar-se ainda mais a competência da
344
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Justiça do Trabalho para o julgamento de todas as lides que envolvam
acidentes do trabalho e, principalmente, todos os crimes decorrentes
das relações de trabalho.
Soa estranho ainda que, definida a competência da Justiça do Trabalho, no inciso I, com tal extensão, se mencionem, no inciso II, “as
ações que envolvam exercício do direito de greve”, no inciso VI, se aluda
às “ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da
relação de trabalho” e também, no inciso IX, se fale em “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei”. Parece-nos
que tudo isso já se contemplava na expressão “ações oriundas da relação de trabalho”. Nem se diga que a menção ao direito de greve teve o
objetivo de estender a competência para o exame, também, da greve no
setor público: a restrição imposta no inciso I excluiria, de qualquer forma, a possibilidade da Justiça do Trabalho julgar a greve de servidores
ocupantes de cargo público, ou seja, regidos pelo regime administrativo
(estatutário). A questão do dano moral será abordada mais adiante.
3. O Ministério Público do Trabalho e a greve (art. 114, § 3º)
O § 3º do art. 114 da Constituição Federal não se limita a elevar ao
status constitucional a legitimidade já conferida por lei ao Ministério Público do Trabalho para ajuizar dissídio coletivo em caso de greve. O
inciso VIII do art. 83 da Lei Complementar n. 75/93 elenca entre as atribuições do Ministério Público do Trabalho a de “instaurar instância em
caso de greve, quando a defesa da ordem jurídica ou o interesse público
assim o exigir”. Parece evidente que a aludida legitimação foi restringida: o manejo do dissídio, pelo MPT, só é possível, agora, quando a greve
ocorre em atividade essencial (isto é, nos setores da economia elencados no art. 10, da Lei n. 7.783/89), e, ainda assim, desde que se possa
vislumbrar lesão ao interesse público.
A restrição é positiva e está em harmonia tanto com a garantia
constitucional do direito de greve (art. 9º), quanto com as atribuições
conferidas genericamente ao Ministério Público no art. 127. A interferência estatal só se justifica quando esse direito, exercido abusivamente,
agride gravemente os interesses da comunidade.
Conquanto não seja de fácil delimitação o conceito de “interesse
público”, neste caso particular já há um norte legal a ser seguido: a
mencionada Lei n. 7.783/89 obriga, “nos serviços ou atividades essenciais”,
que se garanta, durante a greve, “a prestação dos serviços indispensá-
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
345
veis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade”, assim consideradas “aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população”. Assim,
apenas quando se evidenciarem tais circunstâncias, isto é, quando as
partes envolvidas no conflito deixarem de observar esse regramento, poderá — na verdade, deverá — o Ministério Público do Trabalho intervir,
ajuizando o dissídio coletivo.
Mais se justifica ainda a concessão dessa legitimidade, na própria
Constituição, se levarmos em conta que o § 2º, do art. 114, da Constituição Federal reduz, drasticamente, a possibilidade de intervenção da Justiça do Trabalho — e, por conseqüência, também do exercício do poder
normativo — nos conflitos coletivos: necessário que o dissídio seja ajuizado pelas partes conflitantes, “de comum acordo”. Curial que se conclua, assim, que o Ministério Público do Trabalho não poderá agir, nessa
matéria, em atenção ao mero interesse dos agentes envolvidos no conflito: sua atuação subordina-se à defesa do interesse da sociedade.
No que tange à alteração, aqui analisada, o ponto mais interessante é o fato de que as ações possessórias de Interditos Probitórios deverão ser propostas na Justiça do Trabalho. Referido expediente tem sido
largamente utilizado por empresas que pretendem a garantia da posse
de seus bens imóveis, nos casos de greve (diversas foram as ações
propostas por bancos, na última greve dos bancários, ocorrida neste ano
de 2004, a mais longa de toda a história). Lamentavelmente, Juízes Estaduais declaravam-se competentes para a apreciação e julgamento de
referidas ações possessórias, concedendo, inclusive, liminares para garantir a posse mansa e pacífica sobre os imóveis onde funcionam referidas empresas, afirmando tratar-se de matéria eminentemente possessória, sem qualquer conotação de natureza trabalhista. Por óbvio, não
há decisão mais equivocada. As decisões oriundas de referidas ações
terminavam, invariavelmente, sendo utilizadas como instrumento de pressão, verdadeira atitude anti-sindical e violadora do exercício do direito
constitucional de greve, matéria eminentemente trabalhista. Tanto é verdade, que, com essas decisões, as empresas apenas impediam a aproximação dos grevistas das suas sedes e se recusavam terminantemente a participar de negociações. A propositura das ações de Interditos
Probitórios na Justiça do Trabalho dará o verdadeiro enfoque da matéria,
de cunho nitidamente laboral. E é o Juiz do Trabalho o órgão do Poder
Judiciário sensível a tais questões, que considerará a questão posta
dentro do contexto trabalhista, com todas as conseqüências que tal fato
346
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
possa gerar. Caberá ao Juiz do Trabalho a afirmação do direito de fazer
a greve e de seu amplo exercício, desde que conduzido sem abusos ou
exageros.
Há, ainda, a possibilidade do Ministério Público do Trabalho atuar,
como custos legis, em todas as ações que envolvam o exercício do
direito de greve, pois se considerando tratar-se de direito constitucionalmente garantido e, dependendo da forma como esse direito é atacado,
poderá haver a caracterização de verdadeiro ato anti-sindical, o que terminaria ferindo, ainda, outros direitos fundamentais. Mais ainda, o Ministério Público do Trabalho poderá, inclusive, atuar como órgão agente
(como aliás, já ocorreu, na greve de bancários referida), provocando o
Judiciário Trabalhista, para garantir o regular exercício do direito de greve, exatamente por conta das malfadadas liminares concedidas por Juízes de Direito, que na prática — por serem concedidas sem uma análise
da questão laboral — funcionam como inibidoras da ação sindical (mesmo que esta ação seja pacífica) e como impeditivas do desenvolvimento
das negociações coletivas, expediente dos mais almejados no Direito
Coletivo do Trabalho.
4. Sindicatos (art. 114, III)
A reforma contempla uma antiga reivindicação do meio trabalhista,
especialmente o sindical. Define-se a Justiça do Trabalho como competente, agora, para julgar as ações relativas não apenas aos litígios decorrentes de convenções ou acordos coletivos (neste ponto, a Lei n. 8.984/95
já assentava a competência, ainda que envolvidos no conflito estivessem
apenas os sindicatos ou o sindicato de trabalhadores e o empregador),
mas, também, aqueles pertinentes à própria representação sindical.
Não pode haver mais dúvida, também, que caberá à Justiça do
Trabalho apreciar as questões envolvendo empregadores e seus respectivos sindicatos, e — o que talvez venha a se constituir no ponto mais
polêmico — ainda as controvérsias entre os integrantes das categorias
econômica e profissional (e não apenas os associados) e seus respectivos sindicatos, como aquelas, por exemplo, alusivas às eleições sindicais e à cobrança de contribuições sindicais, inclusive a estabelecida
pelo art. 578 da CLT (neste particular, sepultadas estarão as Súmulas
ns. 04 e 222 do STJ, 114 e 255 do antigo TRF).
Insere-se, ainda, nesse âmbito de competência a apreciação de
ações dirigidas à proteção do sindicato contra atos atentatórios à liber-
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
347
dade sindical ou condutas anti-sindicais, especialmente quando praticados pelo empregador, lembrando que, como diz o Juiz do Trabalho Marcos Neves Fava, “a proteção do sindicato envolve (...) o afastamento do
Estado de seus atos constitutivos e de organização, a neutralização de
atos contrários ao funcionamento sindical por parte dos empregadores
e, também, a proteção dos trabalhadores representados pelo sindicato,
quer na elisão das chamadas cláusulas sindicais, quer na efetiva busca
da legitimidade do sindicato frente à coletividade de trabalhadores” (“Proteção da negociação coletiva. Liberdade sindical. Condutas anti-sindicais. Mecanismos de proteção”. In Genesis — Revista de Direito do
Trabalho. Curitiba, n. 21, maio, 2003, p. 726).
5. Dano moral (art. 114, VI)
A referência a “ações de indenização por dano moral ou patrimonial,
decorrentes da relação de trabalho”, no inciso VI do art. 114 da Constituição Federal, parece-nos desnecessária, como dito anteriormente. Se, por
força da parte inicial do inciso I desse artigo, cabe à Justiça do Trabalho
processar e julgar “as ações oriundas da relação de trabalho”, não é imaginável a necessidade de perquirir a natureza específica do dano, cuja
reparação se busca, para se afirmar ainda mais essa competência.
Entretanto, a menção, aqui, a dano “moral” talvez se justifique em
razão da controvérsia que se estabeleceu na jurisprudência acerca da
indenizabilidade desse dano no âmbito trabalhista.
Enquanto a doutrina e a jurisprudência trabalhista posicionavam-se
claramente pela competência da Justiça do Trabalho, obtendo, inclusive, o respaldo do STF nesse posicionamento — como paradigma, mencione-se o seguinte julgado (que, de resto, apenas especifica o que o
STF já assentara, em plenário, de maneira genérica, quando do julgamento do Conflito de Jurisdição n. 6.959-6-DF, relatado também pelo
Ministro Sepúlveda Pertence): “INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL —
JUSTIÇA DO TRABALHO — COMPETÊNCIA. Ação de reparação de
danos decorrentes da imputação caluniosa irrogada ao trabalhador pelo
empregador a pretexto de justa causa para a despedida e, assim, decorrente da relação de trabalho, não importando deva a controvérsia ser
dirimida à luz do Direito Civil” (STF-RE 238.737-4-SP — Ac. 1ª T. de
17.11.98 — rel. Min. Sepúlveda Pertence) — o STJ manteve posição
dúbia acerca da matéria, ora decidindo pela competência da Justiça do
Trabalho, quando o dano pudesse ser referido claramente a uma relação
348
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
trabalhista e nela se fundasse (“Conflito de competência. Justiça Estadual. Justiça do Trabalho. Danos morais decorrentes da relação de trabalho. O Juízo Trabalhista declarou-se incompetente para o julgamento
da lide, extinguindo a ação quanto ao pedido de indenização por danos
morais. Ajuizada outra ação na Justiça Comum Estadual, esta também
afirmou incompetência, remetendo os autos ao Juízo Laboral. Caracterizado, assim, o conflito de competência, corretamente suscitado pelo
Ministério Público do Trabalho, com a finalidade de garantir a prestação
jurisdicional requerida. 2. A Justiça do Trabalho é competente para processar e julgar ação de responsabilidade civil proposta por trabalhador
contra ex-empregador em decorrência de danos morais e materiais ocasionados durante a relação empregatícia. Precedentes. 3. Conflito conhecido para declarar competente a 6ª Junta de Conciliação e Julgamento de Belo Horizonte/MG.” — CC 28571 — rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito — Ac. 2ª Seção , 27.6.2001 — DJ 12.11.2001, p. 124), ora
definindo a competência da Justiça Estadual (“AGRAVO NO CONFLITO
DE COMPETÊNCIA — JUSTIÇA COMUM E TRABALHISTA —PEDIDO DE
INDENIZAÇÃO — DANOS MORAIS E MATERIAIS — ACIDENTE DO
TRABALHO — DOENÇA CONTRAÍDA EM RAZÃO DA EXECUÇÃO DE
SERVIÇOS REPETITIVOS — RESPONSABILIDADE CIVIL — COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. I — Compete à Justiça do Trabalho
processar e julgar reclamatória trabalhista em que se pede dano moral,
desde que este não seja proveniente de acidente do trabalho. II — Tendo
a autora adquirido ‘LER - Sinovite e Tenossinovite’ em razão das tarefas
repetitivas executadas nos serviços prestados durante longos anos à ré,
o pedido de indenização por danos morais e materiais que postula, em
razão de acidente de trabalho, fundado na responsabilidade civil da empresa, deve ser julgado na Justiça Comum Estadual, ex vi do disposto no
art. 109, I, da Constituição Federal. III — Agravo no Conflito de Competência a que se nega provimento” — AgRg no CC 29413-MG — rel.
Min. NANCY ANDRIGHI — Ac. 2ª Seção, 13.9.2000 — DJ 2.10.2000,
p. 135).
Por tal motivo, mesmo sendo desnecessária a menção expressa à
competência da Justiça do Trabalho para o julgamento das ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrente da relação de trabalho,
esse fato coloca termo final na divergência jurisprudencial causada pelo
Superior Tribunal de Justiça.
Importante, ainda, destacar que o Ministério Público do Trabalho
diariamente pleiteia perante a Justiça do Trabalho, em diversas das ações
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
349
civis públicas que propõe, mas especialmente naquelas que têm por
objetivo a erradicação do trabalho escravo, indenização por dano moral
coletivo. E, na maioria das vezes, tem obtido sucesso, com condenações que, mais do que impingir uma penalidade ao escravagista, servem
como verdadeiros inibidores da reiteração dessa vergonhosa prática, funcionando como ponto de partida para colocar a Justiça do Trabalho na
vanguarda da defesa dos Direitos Humanos. Aliás, estes pedidos de
indenização por dano moral coletivo, em qualquer matéria relacionada
aos Direitos Humanos decorrentes das relações laborais, criam um inédito sistema de integração entre o Ministério Público do Trabalho e a
Justiça do Trabalho, que favorece o cumprimento da ordem jurídica trabalhista, numa perspectiva muitíssimo mais efetiva.
6. Mandado de segurança, habeas corpus e habeas data (art. 114, IV)
6.1. Mandado de segurança
Ninguém nega a competência da Justiça do Trabalho, mais especificamente dos tribunais do trabalho, para apreciar mandados de segurança, quando o ato impugnado provenha de autoridade judiciária trabalhista (CLT, art. 678, I, c, 3, Lei n. 7.701/88, arts. 2º, I, d, e 3º, I, b).
A novidade, agora, é que a matéria passa, também, a ser fator relevante na determinação da competência. A Justiça do Trabalho — todos os
seus órgãos, portanto, inclusive os de primeira instância — passará a
julgar mandados de segurança “quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição”.
Elementar que essa previsão não desnatura o conceito, também
constitucional, de mandado de segurança (art. 5º, inciso LXIX), de modo
que, a par de a matéria em discussão estar sujeita à jurisdição trabalhista,
há que se verificar se o responsável pela apontada ilegalidade ou abuso
de poder se trata de “autoridade pública ou agente de pessoa jurídica
no exercício de atribuições do Poder Público” e esteja agindo nessa
condição.
Desde logo se pode dizer que eventuais mandados de segurança
envolvendo, por exemplo, a atuação do Ministério Público do Trabalho
(em especial na condução de procedimentos administrativos, como os
inquéritos civis) haverão de ser apreciados na Justiça do Trabalho. Dada
a competência estabelecida no inciso VII, do art. 114, da Constituição
Federal (“as ações relativas às penalidades administrativas impostas
350
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho”), o julgamento de mandados de segurança impetrados contra Auditores Fiscais, por exemplo, também caberá à Justiça do Trabalho.
6.2. Habeas corpus
Mais uma norma destinada a sepultar, de vez, controvérsias acesas acerca da competência da Justiça do Trabalho. Em que pese os
esforços de consagrados doutrinadores, demonstrando que, pelo menos
no que pertine à prisão do depositário infiel, nada justifica que se diga
incompetente a Justiça do Trabalho para julgar o habeas corpus, o Supremo Tribunal Federal acabou firmando posição em sentido contrário.
Sobre o tema, pedimos licença para transcrever trecho de artigo (cuja
leitura integral, aliás, recomendamos, dada a profundidade do trabalho)
do Procurador do Trabalho Sebastião Vieira Caixeta, publicado recentemente na Genesis — Revista de Direito do Trabalho:
“Não se pode negar, cientificamente, a competência da Justiça do
Trabalho para julgar o habeas corpus impetrado em decorrência da
prisão civil do depositário infiel. A questão será definitivamente resolvida com a promulgação do texto da Reforma do Poder Judiciário, que expressamente prevê a competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar o habeas corpus.
O mesmo não se pode dizer do writ relacionado à prisão criminal
na Justiça do Trabalho.
Já ficou evidenciado que vários tipos penais vinculam-se à atividade
jurisdicional trabalhista, podendo haver, em conseqüência, prisões
criminais decorrentes ou relacionadas com a atuação do juiz do
trabalho.
Batalha, sem aprofundar a questão, advoga que a competência para
o habeas corpus deve ser atribuída aos Tribunais Regionais do
Trabalho quando decorrente de falso testemunho ou desacato relacionados ao processo trabalhista.
Silva, apesar de negar competência criminal à Justiça do Trabalho,
defende a competência desta para julgar o habeas corpus impetrado
de prisão por desacato ou por desobediência decretada pelo juiz do
trabalho, o que soa contraditório porque a matéria debatida no writ,
nessas hipóteses, relacionam-se com o direito penal em regra. Este
autor já havia sustentado, de lege lata, a competência penal da Justiça Obreira, tendo mudado, ao que parece, de opinião.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
351
É mais consistente, todavia, o entendimento de que o Texto Constitucional não dotou a Justiça do Trabalho de competência criminal. A ampliação da competência para abarcar a penal reclama a
reforma dos arts. 109 e 114 da Carta. Infelizmente, o Senado Federal não acolheu, no relatório aprovado em primeiro turno, a ampliação da competência da Justiça do Trabalho para esses crimes.
Desse modo, a competência para julgar o habeas corpus das prisões criminais relacionadas ao exercício da jurisdição trabalhista
ainda está afeta ao Tribunal Regional Federal e ao Superior Tribunal
de Justiça, conforme seja apontado como autoridade coatora, respectivamente, o juiz da Vara do Trabalho ou do Tribunal Regional do
Trabalho. Urge, todavia, seja implementada na Reforma do Poder
Judiciário a competência penal da Justiça do Trabalho para os crimes decorrentes das relações de trabalho e os originados no exercício da jurisdição trabalhista, devendo a Câmara dos Deputados promover as modificações no texto que retorna àquela Casa” (“O habeas
corpus e a competência da Justiça do Trabalho”. In Genesis — Revista de Direito do Trabalho. Curitiba, n. 143, novembro 2004).
Ao menos quanto ao habeas corpus, portanto, avançou o constituinte derivado, com a presente reforma. Mas como mencionado anteriormente e endossando as palavras do Procurador do Trabalho e Presidente da ANPT — Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho,
Sebastião Vieira Caixeta, é necessário um avanço mais profundo na
ampliação da competência da Justiça do Trabalho, para abranger os
crimes decorrentes das relações laborais.
6.3. Habeas data
Já defendíamos a competência da Justiça do Trabalho para julgar o
habeas data, mesmo na falta de previsão legal específica, em nosso
livro A Proteção Constitucional da Intimidade e da Vida Privada do Empregado (São Paulo: LTr, 2000). Dada a relativa carência de estudos
sobre este instituto e sua aplicação no âmbito trabalhista, supomos interessante reproduzir, aqui, algumas reflexões que então propuséramos,
ao abordar, particularmente, a questão da manipulação dos dados pessoais do trabalhador:
“Uma das manifestações mais significativas da intimidade e da vida
privada é o direito de os indivíduos conhecerem as informações que
outras pessoas ou entidades tenham sobre a sua pessoa (...). O
direito à autodeterminação informativa está (...) intrinsecamente
352
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
relacionado com o direito à intimidade e à vida privada e diz respeito ao controle que o indivíduo deve ter sobre todos os dados, registros e informações que lhe digam respeito (...). Como direito integrante do rol das liberdades públicas, o direito à autodeterminação
informativa deve ser exercido em face de todos, o Poder Público, a
sociedade ou o particular. Conseqüentemente, deverá prevalecer
no âmbito das relações de trabalho, durante ou antes que o contrato de trabalho se estabeleça. Nesse âmbito, merece especial atenção, por se tratar de relação onde o patamar de desigualdade é
patente em virtude da subordinação jurídica do trabalhador” (op.
cit., p. 162/164).
Sobre os limites do poder de direção do empregador, no que pertine ao direito à autodeterminação informativa do empregado, anotáramos,
com apoio em Santos Cifuentes (Derechos personalíssimos. 2ª ed. actual. ampl. Buenos Aires: Astrea, 1995):
“a) O empregador não poderá sequer coletar os chamados dados
‘sensíveis’, considerados como aqueles relativos a religião, raça,
ideologia, política, tipo físico, cor de pele, peso, tendências psíquicas, hábitos, vícios ou práticas pessoais, pois seria ‘fácil instrumento de ações de discriminação proibidas pela lei’. (...)
b) Quanto aos dados ‘nominativos’, considerados aqueles identificadores da pessoa, tais como propriedades e contas bancárias,
admite-se o armazenamento deles pela empresa apenas se estiverem relacionados com o contrato de trabalho ou se houver o consentimento do empregado.
c) A divulgação dos dados pessoais do trabalhador só pode ser
efetuada pelo empregador com o seu expresso consentimento,
mesmo que já não seja seu empregado.
d) O empregador não poderá impedir que o empregado tenha acesso aos seus dados.
e) Extinto o contrato de trabalho, a manutenção dos dados na
empresa depende de autorização do empregado, exceto para os
casos previstos em lei (como, por exemplo, aqueles necessários
para eventuais fiscalizações da Previdência Social ou do Ministério
do Trabalho).
f) A existência de erros ou falsidades nos registros do trabalhador
dá a este o direito de efetuar a respectiva retificação.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
353
g) O empregador não pode utilizar os dados pessoais do empregado para finalidades estranhas à relação laboral.
Nesse contexto, percebe-se que o empregado tem o direito de acessar a informação, conhecendo-a, corrigindo-a ou atualizando-a, assim
como de exigir que cesse a sua utilização com outro objetivo ou a sua
divulgação.
(...)
O direito de acesso aos dados pessoais do cidadão tem tanta importância que o constituinte brasileiro instituiu uma garantia específica para
viabilizar a tutela jurisdicional do referido direito (...). É incontestável (...)
a relação do habeas data com a salvaguarda dos direitos da personalidade, em especial com o direito à autodeterminação informativa, uma
das manifestações do direito à intimidade e à vida privada. (...)
Poderia o habeas data ser utilizado pelo empregado para ter acesso
aos seus dados pessoais que estivessem em poder do empregador?
A questão envolve o estudo do sujeito passivo da referida ação constitucional. (...) A expressão ‘entidades de caráter público’, segundo
José Afonso da Silva, ‘não pode referir-se a organismos públicos,
mas a instituições, entidades e pessoas jurídicas privadas que prestem serviços para o público ou de interesse público’. Para Jorge Radi
Jr., o Texto Constitucional é claro no sentido de atribuir a característica
de ‘público’ ao registro ou ao banco de dados e não à entidade.
O legislador infraconstitucional explicitou o verdadeiro alcance da
expressão, preceituando no art. 1º, parágrafo único, da Lei n. 9.507/
97 que se considera de caráter público todo o registro ou banco de
dados que contenha informações passíveis de transmissão a terceiros ou que não sejam de uso privativo do órgão ou entidade
produtora ou depositária dessas informações.
(...) a interpretação do art. 5º, inciso LXXII, da Constituição Federal deve
ser extensiva, partindo-se do pressuposto de que se trata de verdadeira
garantia do exercício de direito integrante do rol de liberdades públicas.
Nesse sentido, seria um paradoxo admitir que as informações que
o Estado possui acerca de um indivíduo possam ser acessadas/
retificadas através de habeas data, e aquelas constantes do banco
de dados de uma empresa, não. O empregado estaria sendo prejudicado, pelo simples fato de ser empregado, pois não teria à sua
disposição tão importante garantia constitucional, em verdadeira
afronta ao princípio da igualdade.
354
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Atualmente, considerando-se que os detentores do poder econômico influenciam diretamente os indivíduos e as relações sociais
— em algumas oportunidades, mais que o próprio Estado —, é
imprescindível que a garantia constitucional do habeas data possa
ser utilizada também em face dos particulares.
(...)
Pela expressão ‘entidades de caráter público’, portanto, devem-se
compreender as empresas que, por quaisquer motivos, possuam
registros ou bancos de dados de trabalhadores, sejam estes ‘terceirizáveis’ ou não. Uma vez existente o armazenamento de informações sobre os indivíduos, eles, no exercício do direito à autodeterminação informativa, deverão ter um meio de acesso aos mesmos. E o habeas data representa a forma mais efetiva e eficaz de
fazer valer tal direito (...)” (op. cit., p. 164/165 e 196/200).
7. O Fundo de Garantia das Execuções Trabalhistas
Uma das mais interessantes novidades trazidas pela emenda que
reforma o Judiciário está inserida no seu artigo 3º: a determinação ao
legislador ordinário no sentido de que crie um Fundo de Garantia das
Execuções Trabalhistas. Todos os que militam na Justiça do Trabalho
sabem o tormento em que às vezes se transforma o processo de execução, seja pelo longo tempo que demanda até a efetiva satisfação do
credor — não raro, tempo superior ao do processo de conhecimento —
seja pela impossibilidade de obter essa satisfação, por insolvência ou
simples desaparecimento do devedor. Há um vastíssimo campo, aqui,
para o legislador ordinário explorar, como, por exemplo, prever que o
Fundo possa pagar imediatamente ao trabalhador e se sub-rogar na dívida perante o executado.
O interessante a observar, ainda, é a previsão, já demarcada constitucionalmente, de que integrem esse Fundo as “multas decorrentes de
condenações trabalhistas e administrativas oriundas da fiscalização do
trabalho”.
Um problema com que se defrontam os Membros do Ministério
Público do Trabalho seja quando obtêm do investigado, no âmbito dos
procedimentos administrativos por eles conduzidos, o compromisso de
ajustamento da conduta às exigências legais, nos termos do § 6º, do
art. 5º, da Lei n. 7.347/85, seja quando ajuízam ação civil pública, refere-se
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
355
à destinação da multa prevista no art. 11 da lei mencionada. À falta de
disciplina específica, no âmbito trabalhista, do fundo a que alude o art. 13,
também da lei citada, tem-se destinado a multa ao FAT — Fundo de Amparo
ao Trabalhador, criado pela Lei n. 7.998/90 e alterado pela Lei n. 8.019/90.
Como não existe a devida transparência sobre a destinação dos
recursos do FAT, há, no âmbito do Ministério Público do Trabalho, discussão que tem se direcionado para a apresentação de anteprojeto de
lei que institua um fundo específico para defesa dos direitos difusos e
coletivos trabalhistas, para o encaminhamento das multas ajustadas em
TAC’s (Termos de Ajustamento de Conduta) e objeto de condenações
em ações civis públicas. Dependendo da forma como seja instituído e
regulamentado e, principalmente, dependendo de como for administrado, seria possível analisar a hipótese também do direcionamento dessas
multas ao referido Fundo de Garantia de Execuções Trabalhistas.
8. Conclusão
Eis, portanto, algumas considerações iniciais sobre a Reforma do
Judiciário, que se prestam única e exclusivamente como colaboração
aos debates, como idéias para reflexão.
Apenas com o transcorrer do tempo é que será possível avaliar o
alcance e o acerto (ou desacerto) da alteração constitucional, que amplia a competência da Justiça do Trabalho. Apenas com a sedimentação
e com a incorporação dessas novas matérias, é que haverá concretas e
reais possibilidades de verificar se a reforma foi capaz de dar à Justiça
do Trabalho aptidão para desempenhar seu papel de pacificadora das
relações decorrentes do eterno embate capital/trabalho, para fazer concretos os princípios que norteiam a dignidade da pessoa humana, ou se
a reforma apenas deu à Justiça do Trabalho um papel burocrático, com
característica claramente arrecadadora. Enfim... . Apenas o tempo dirá
se a reforma do Judiciário transformou a Justiça do Trabalho naquela que se
faz necessária à sociedade.
356
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Acidente de Trabalho — Competência da Justiça do
Trabalho: Os Reflexos da Emenda Constitucional n. 45
Saulo Tarcísio de Carvalho Fontes (*)
I. Introdução
Na atualidade, impera forte dissenso na doutrina e jurisprudência
acerca da competência para dirimir litígios que se referem a indenizações decorrentes de acidente de trabalho e doença profissional. O que
se pretende nesta abordagem é enfocar a adequada interpretação sobre
a matéria, agora já sob a ótica do Texto Constitucional posterior à Emenda Constitucional n. 45, recentemente promulgada.
Inicialmente, temos que reconhecer que o atual quadro jurisprudencial é bastante instável, as jurisprudências do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça insistem na competência da Justiça Estadual, já o Tribunal Superior do Trabalho e as diversas instâncias
trabalhistas, bem como decisões de alguns Tribunais de Justiça vêm
reconhecendo a competência da Justiça do Trabalho, quando se trata de
indenização decorrente do acidente de trabalho em face do empregador.
O fundamento central daqueles que defendem a competência da
Justiça Comum Estadual é o texto inserto no art. 109, inciso I, da Constituição Federal que trata da competência dos juízes federais.
Agregam outros argumentos secundários, tais como tradição legislativa constitucional e jurisprudencial, bem como se fundamentam na
legislação ordinária sobre acidente de trabalho, que estabelece a competência da Justiça Estadual(1).
(*) Mestre em Direito pela UFPE. Professor da Escola Superior da Magistratura do
Trabalho do Maranhão. Juiz do Trabalho Titular da Vara de Chapadinha-MA.
(1) O art. 129 da Lei n. 8.213/91 dispõe, in verbis: “Art. 129. Os litígios e medidas
cautelares relativos a acidentes do trabalho serão apreciados:
I — na esfera administrativa, pelos órgãos da Previdência Social, segundo as regras
e prazos aplicáveis às demais prestações, com prioridade para conclusão;
II — na via judicial, pela Justiça dos Estados e do Distrito Federal, segundo o rito
sumaríssimo, inclusive durante as férias forenses, mediante petição instruída pela
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
357
O que se pretende demonstrar aqui é o desacerto de tal entendimento, que parte de premissas equivocadas, analisando-se pontualmente as
argumentações que têm alimentado o debate até o momento e, ao mesmo tempo, introduzir uma discussão nova, qual seja a insustentabilidade
da tese da competência da Justiça Estadual em face da nova redação
dada ao art. 114 da Constituição Federal de 1988 pela novel Emenda 45.
II. Disciplina da matéria nas Constituições anteriores
A Constituição de 1946, no art. 123, § 2º, estabelecia diretamente
que a competência para julgamento das ações de acidente de trabalho
era da Justiça Comum, trazendo uma exceção expressa à competência
da Justiça do Trabalho, ao dispor sistematicamente:
“Art. 123 — Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre empregados e empregadores, e as
demais controvérsias oriundas de relações do trabalho regidas por
legislação especial.
§ 1º — Os dissídios relativos a acidentes do trabalho são da competência da Justiça ordinária.”
Dispositivo no mesmo sentido foi mantido de modo expresso na
Constituição Federal de 1967, que estabelecia a competência da Justiça
Estadual para julgamento de pleitos indenizatórios decorrentes de acidente de trabalho, dispondo o art. 119 da referida Carta literalmente:
“Aos Juízes federais compete processar e julgar, em Primeira Instância:
I — as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal for interessada na condição de autora, ré, assistente ou
oponente, exceto as de falência e as sujeitas à Justiça Eleitoral, à
Militar ou à do Trabalho, conforme determinação legal.”
Ainda dessa mencionada Constituição, o art. 134, § 2º, estabelecia
que “Os dissídios relativos a acidente do trabalho são da competência
da Justiça ordinária”.
Com o advento da Emenda Constitucional n. 01, de 1969, houve
alteração do Texto Constitucional, mas foi mantida a competência da Justiça Estadual, passando a estabelecer o art. 142 da Constituição o
seguinte:
prova de efetiva notificação do evento à Previdência Social, através de Comunicação
de Acidente do Trabalho — CAT”.
358
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
“Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre empregados e empregadores, e, mediante lei,
outras controvérsias oriundas da relação de trabalho.
§ 2º Os litígios relativos a acidente do trabalho são da competência da
Justiça Ordinária dos Estados, do Distrito Federal ou dos Territórios.”
A Constituição de 1988 não repetiu essa normatização das Constituições precedentes. A única menção à competência sobre acidente
de trabalho está contida no inciso I, do art. 109, que trata da competência dos Juízes federais, sendo apenas uma norma de exceção, na medida em que se limita a excluir da competência da Justiça Federal ações
que versem sobre acidente de trabalho.
Como se vê o ordenamento jurídico constitucional anterior estabelecia expressamente a competência da Justiça Comum para julgar ações
acidentárias, este fato histórico, que é utilizado como indicativo de competência da Justiça Estadual, a nosso ver tem efeito oposto. Não se
pode estabelecer uma espécie de “competência por tradição”, pois tal
critério agride o princípio do juízo natural, devendo, por conseguinte, as
regras de competência serem estabelecidas no ordenamento jurídico
vigente, seja diretamente, seja por atribuição do legislador constituinte
ao legislador ordinário.
O silêncio da Constituição atual, que elegeu o critério de competência residual e excetuou apenas da Justiça Federal a competência para
demandas que envolvam acidente de trabalho, já seria uma manifestação
eloqüente de que tal competência foi alterada com a Constituição Federal
de 1988, pois se o legislador constituinte originário tencionasse manter a
competência da Justiça comum também para as demandas envolvendo
acidente de trabalho, o teria feito expressamente, tal como ocorreu nas
Constituições anteriores ou teria excepcionado expressamente a competência da Justiça do Trabalho, quando se tratasse de tais litígios(2).
III. O dissenso jurisprudencial
O Tribunal Superior do Trabalho, após um longo período de oscilações, consolidou o entendimento de que a Justiça do Trabalho é competente para dirimir litígios decorrentes de acidente de trabalho e doença
(2) No mesmo sentido, OLIVEIRA, Sebastião Geraldo. Proteção jurídica à saúde do
trabalhador, 2ª ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: LTr, 1988, p. 238.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
359
profissional envolvendo empregado e empregador. Os fundamentos que
alicerçam a jurisprudência daquela Corte são bem representados no acórdão da lavra do Ministro Barros Levenhagen, que bem os explicita:
“AÇÕES POR DANOS MATERIAL E MORAL PROVENIENTES DE INFORTÚNIOS DO TRABALHO. COMPETÊNCIA DO JUDICIÁRIO DO
TRABALHO EM RAZÃO DA MATÉRIA. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 114,
7º, INCISO XXVIII, E 5º, INCISO X, DA CONSTITUIÇÃO. As pretensões
provenientes da moléstia profissional ou do acidente do trabalho reclamam proteções distintas, dedutíveis em ações igualmente distintas, uma de natureza nitidamente previdenciária, em que é competente materialmente a Justiça Comum, e a outra, de conteúdo eminentemente trabalhista, consubstanciada na indenização reparatória dos
danos material e moral, em que é excludente a competência da Justiça do Trabalho, a teor do art. 114 da Carta Magna. Isso em razão de o
art. 7º, inciso XXVIII, da Constituição dispor que são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de
sua condição social, seguro contra acidente de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando
incorrer em dolo ou culpa, em virtude do qual impõe-se forçosamente a
ilação de o seguro e a indenização pelos danos causados aos empregados, oriundos de acidentes de trabalho ou moléstia profissional, se equipararem a verbas trabalhistas. O dano moral do art. 5º, inciso X, da Constituição, a seu turno, não se distingue ontologicamente do dano patrimonial, pois de uma mesma ação ou omissão, culposa ou dolosa, pode
resultar a ocorrência simultânea de um e de outro, além de em ambos se
verificar o mesmo pressuposto do ato patronal infringente de disposição
legal, sendo marginal o fato de o cálculo da indenização do dano material
obedecer ao critério aritmético e o da indenização do dano moral o critério
estimativo. Não desautoriza, de resto, a ululante competência do Judiciário do Trabalho o alerta de o direito remontar pretensamente ao art. 159
do Código Civil. Isso nem tanto pela evidência de ele reportar-se, na
verdade, ao art. 7º, inciso XXVIII, da Constituição, mas sobretudo em face
do pronunciamento do STF, em acórdão da lavra do Ministro Sepúlveda
Pertence, no qual se concluiu não ser relevante para fixação da competência da Justiça do Trabalho que a solução da lide remeta a normas de
direito civil, desde que o fundamento do pedido se assente na relação de
emprego, inserindo-se no contrato de trabalho (Conflito de Jurisdição n.
6.959-6, Distrito Federal). Incidência do Enunciado n. 333 do TST. Recurso não conhecido.”(3)
A mencionada decisão tem servido de paradigma e representa com
perfeição o ponto de vista do TST, bem como a posição dos que militam
em favor da tese da competência da Justiça especializada.
(3) TST-RR 804918/2001.7 (4ª Turma), Rel. Min. Barros Levenhagem, DJU 7.11.2003.
360
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Já o Superior Tribunal de Justiça, em sentido oposto, editou a Súmula 15 que estabelece a competência da Justiça Comum para as ações
acidentárias, dispondo “compete à Justiça Estadual processar e julgar
litígios decorrentes de acidente de trabalho”. Embora do teor da Súmula
não esteja excluída expressamente a possibilidade de que a ação acidentária contra o empregador seja de competência da Justiça do Trabalho, as
decisões adotadas pelo Supremo Tribunal de Justiça são praticamente
uniformes ao dar esta aplicação abrangente à Súmula 15, atribuindo a competência geral da Justiça Estadual para todas as ações acidentárias(4).
A análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é mais complexa, na medida em que há conflitos lógicos insustentáveis em casos
que se referem à competência da Justiça do Trabalho e existem mesmo
decisões expressamente conflitantes.
Do Supremo Tribunal Federal e, merece referência expressa a decisão do Ministro Sepúlveda Pertence, proferida no CJ 6.959-6, que tem
servido de parâmetro para orientar outras decisões daquele Tribunal e
tem se espraiado para as demais Cortes Superiores, estabelecendo literalmente que “A determinação da competência da Justiça do Trabalho
não importa que dependa a solução da lide de questões de direito civil,
mas sim, no caso, que a promessa de contratar, cujo alegado conteúdo
é o fundamento do pedido, tem sido feita em razão da relação de emprego, inserindo-se no contrato de trabalho”.(5)
A idéia é de que não importa o fundamento do direito vindicado, não
interessa a natureza da norma que o ampara, o que define a competên(4) Serve de exemplo a seguinte decisão, que confirma a aplicabilidade da súmula,
inclusive para a hipótese de indenização em face do empregador. STJ-CC 42958 Ac.
2004/0050166-3 (2ª Seção), Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJU 18.10.2004, p. 183.
“PROCESSUAL CIVIL. CONFLITO NEGATIVO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO
RECEBIDOS COMO AGRAVO REGIMENTAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR CULPA
DE EX-EMPREGADORA DECORRENTE DE DOENÇA PROFISSIONAL. NATUREZA CIVIL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. SÚMULA 15/STJ. INCIDÊNCIA.
MATÉRIA CONSTITUCIONAL. COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DO E. STF.
I. A ação de indenização por ato ilícito da ex-empregadora, quando decorre de
seqüela física oriunda da atividade laboral, é de natureza civil, e cabe ser processada e julgada perante a Justiça Estadual, conforme o enunciado da Súmula n. 15/STJ.
Precedentes do STJ.
II. Não incumbe a esta Corte pronunciar-se a respeito de matéria de natureza constitucional, eis que de exclusiva competência do E. STF, em sede de recurso extremo.
III. Agravo regimental improvido.”
(5) STF. Sessão Plenária. CJ 6.959-6 9 (DF). Relator Ministro Sepúlveda Pertence. Ac.
de 23 maio de 1990. Revista LTr, São Paulo, v. 59, n. 10, 1995 p. 1.375..
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
361
cia da Justiça do Trabalho é o fato de a controvérsia decorrer da relação
de emprego.
Fundado nesse mesmo raciocínio, que foi acolhido pelo Supremo
Tribunal Federal, o mesmo Ministro Sepúlveda Pertence, no Agravo de
Instrumento n. 349976/RJ, concluiu que era da Justiça do Trabalho a
competência envolvendo um caso de acidente de trabalho, no qual se
pleiteava indenização contra o ex-empregador, com base na responsabilidade civil, anulando o processo que havia sido julgado perante a Justiça
Comum.(6)
Como decorrência desta decisão tornou-se, por um certo tempo,
corrente a idéia de que o Supremo Tribunal Federal finalmente evoluíra
para uma interpretação mais adequada da matéria.
Ocorre, porém, que em decisões supervenientes diversos Ministros do Supremo Tribunal Federal, inclusive em ações relatadas pelo
próprio Ministro Sepúlveda Pertence, manifestaram-se retornando ao
entendimento de que a Justiça Estadual seria a competente(7), merecendo referencia a exceção do Ministro Marco Aurélio de Melo que tem mantido a sua posição favoravelmente à competência da Justiça do Trabalho
em hipóteses tais.
Outra matéria conexa a esta, que foi apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, é a uniformizada na Súmula 736, que evidencia a contradição lógica daquela Corte. A referida súmula enuncia: “compete à Justiça do Trabalho julgar as ações que tenham como causa de pedir o
descumprimento de normas trabalhistas relativas à segurança, higiene
e saúde dos trabalhadores ”.
Torna-se absolutamente insustentável que omissões ou ações do
empregador relativamente às normas preventivas do acidente e doença
profissional sejam tratadas pela Justiça do Trabalho e, ao mesmo tempo,
os efeitos danosos concretos que tais ações ou omissões provoquem,
seja o acidente de trabalho, seja a doença profissional, continuem a ter
sua apreciação fora da esfera de competência da Justiça especializada.
Podemos apontar no conjunto jurisprudencial do STF uma fundamentação bastante superficial da controvérsia. Todas as decisões fazem
(6) STF. AI 349976 (RJ). Relator Ministro Sepúlveda Pertence. DJU 22.10.2001, p. 27.
(7) STF. RE 388227 AgR (SP). Relator Min. Sepúlveda Pertence. DJU 8.10.2004, p. 6;
STF. AI 476279 (SP). Relator Min. Nelson Jobim. DJU 16.4.2004, p. 3.753 e STF. RE
400377 AgR (DF). Relator Min. Gilmar Mendes. DJU 12.11.2004, p. 883, dentre outros.
362
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
simples menção ao art. 109, inciso I, como estabelecedor de competência da Justiça Comum, afirma-se de um modo tal como se não houvesse
outra interpretação possível a ser analisada, a de que aquele dispositivo,
não atribui competência a Justiça Comum, mas apenas excetua a competência da Justiça Federal ordinária para ações acidentárias.
Um outro aspecto que merece destaque é o tratamento diverso do
que é dado em hipóteses análogas. Complementação de aposentadoria,
promessa de compra e venda, dano moral, todo litígio entre empregado e
empregador que decorra da relação de emprego é da competência da
Justiça do Trabalho, segundo o próprio STF. Torna-se não razoável o
entendimento que exclui justamente a lesão mais relevante, aquela que
diz respeito à reparação por lesão à integridade física ou mesmo a
supressão da vida do trabalhador.
IV. Das definições de competência no Texto Constitucional
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu, como critério para definição da competência, elencar casuisticamente a competência das Justiças Especializadas e da Justiça Federal, sendo a matéria remanescente
de competência da Justiça Estadual, adotando assim o denominado
“critério residual” para competência da Justiça Comum dos Estados.
Ora, em nenhum dispositivo constitucional se estabelece diretamente que aos juízes estaduais compete processar e julgar as demandas envolvendo acidente de trabalho. O mencionado art. 109, I, diz que
os juízes federais são competentes para processar e julgar “as causas
em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem
interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes ”,
para em seguida excetuar as ações decorrentes de falência, acidente de
trabalho, as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho.
Verifica-se que nem mesmo nesse dispositivo se estabelece que
essas causas de acidente de trabalho, ali excetuadas, sejam julgadas
pela Justiça Comum Estadual. Apenas se alimentando em dispositivos
de Constituições anteriores e em uma suposta recepção de textos infraconstitucionais é que se tem entendido que, na hipótese, haveria então
competência residual da Justiça dos Estados, do Distrito Federal e dos
Territórios.
É inquestionável que nas hipóteses de demandas envolvendo o Instituto Nacional de Seguridade Social, em que se pleiteia direitos funda-
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
363
dos na ocorrência de acidente de trabalho, a competência é da Justiça
Estadual, isso porque, a regra geral de competência da Justiça Federal
para as demandas de interesse da União ficou afastada expressamente
e, neste caso, o litígio não é abrangido pela esfera de competência de
outra Justiça especializada, expressamente mencionado no Texto Constitucional, assim, aplicando-se a regra de competência residual, há o
reconhecimento inconteste da competência da Justiça Comum.
O mesmo argumento e raciocínio não pode ser aplicado, quando
se trata de pleito indenizatório por dano moral e material decorrente da
relação de emprego contra o empregador, isso porque a regra do art. 114
da Constituição Federal, mesmo antes da promulgação da Emenda 45,
já dispunha como competência constitucional direta que litígios envolvendo trabalhadores e empregadores seriam de competência da Justiça
do Trabalho, e admitindo que lei fixasse a competência para outras controvérsias decorrentes da relação de emprego.
Pode-se falar, mesmo na hipótese do ordenamento vigente antes
da Emenda 45, que há duas competências; a primeira, direta e compulsória, sendo assim inconstitucional qualquer lei que venha estabelecer
outra competência, que não a da Justiça do Trabalho, para litígios que
envolvam empregados e empregadores; a segunda, uma competência
autorizada, significando que o Constituinte outorgou ao legislador a possibilidade de atribuir competência à Justiça do Trabalho para julgar litígios derivados de outras relações de trabalho, tais como pequena empreitada e pequena parceria. Isto leva à conclusão de que nestas hipóteses
o dispositivo legal extensivo da competência não é inconstitucional.
A primeira conclusão, qual seja, da competência compulsória da
Justiça do Trabalho para todas as hipóteses em que haja pretensão fundada em relação de emprego, envolvendo empregado e empregador, é
que interessa diretamente, pois se a conclusão é esta, ou seja, de competência compulsória da Justiça do Trabalho, qualquer lei que estabeleça em sentido diverso será obviamente, inconstitucional.(8)
(8) Partilhando o mesmo entendimento, dentre outros, RODRIGUES PINTO, José
Augusto. Processo Trabalhista de Conhecimento, 3ª ed., São Paulo: LTr, 1996, p.
113; FLORINDO, Valdir. Dano Moral e o Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1995,
p. 90-98, VALE, Vander Zambeli. “Acidente de Trabalho — Culpa do Empregador —
Indenização — Competência da Justiça do Trabalho”, Revista LTr, p. 60-08/1069 e
OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção Jurídica à Saúde do Trabalhador, 2ª ed.
rev. e ampl. São Paulo: LTr, 1998, p. 237-240.
364
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Partindo desta premissa, remanesceria como possibilidade de exclusão da competência da Justiça do trabalho, apenas a hipótese de
exceção expressa da Constituição Federal, que logicamente deveria estar
inserida na seção constitucional que trata dos Tribunais e Juízes do
Trabalho, especificamente no art. 114, algum dispositivo que excetuasse a regra geral constitucional compulsória do caput e dissesse
algo semelhante ao que está dito no art. 109, inciso I, que afasta a regra
geral de competência da Justiça Federal em algumas hipóteses.
É evidente que mesmo antes da Emenda 45 não se constata esta
exceção expressa da competência da Justiça do Trabalho e não se concebe uma conclusão de que tal competência estaria excetuada ao se
dizer simplesmente que os juízes federais não têm competência para
julgar acidente de trabalho, é lógico que o dispositivo em tela somente
pode se referir à hipótese de demanda contra a entidade autárquica de
previdência, pois se ali não houvesse tal exceção, a regra geral seria a
competência da Justiça Federal. Não se diz expressa ou implicitamente
que a Justiça do Estado é competente para julgar ações acidentárias e
muito menos se excetua a regra geral de competência da Justiça do
Trabalho, por meio de qualquer outra norma constitucional.
V. Interpretação sistemática e lógica do razoável
Passando a uma análise da matéria sob o enfoque de uma interpretação sistemática do ordenamento constitucional, seja posterior à
Emenda 45, seja o precedente a esta, poderíamos ter, como já dito
anteriormente, duas possibilidades distintas; na primeira, interpretarse-ia que ao fazer referência às ações acidentárias como excluídas da
competência da Justiça Federal, estar-se-ia implicitamente a dizer que
esta competência seria da Justiça Comum, desconsiderando e omitindo qualquer apelo lógico sistemático ao disposto no art. 114 da Constituição Federal e agora também aos incisos I e VI do mesmo artigo.
A outra interpretação é mais abrangente e sistemática, leva em consideração que o art. 109 da Constituição Federal disciplina a competência
dos Juízes federais, estabelecendo como regra geral a competência destes para os litígios que envolvam autarquia previdenciária federal, como
pretendeu excluir a hipótese de indenização por acidente de trabalho contra tal autarquia, fez menção expressa da exceção no inciso I, o que
resulta, pelo critério residual, que a competência seria da Justiça Comum.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
365
Toda esta interpretação em nada interfere como o caput do art.
114, no sistema anterior à Emenda 45, e muito menos em relação aos
incisos I e II do art. 114, após a Emenda 45. Isto quer dizer que a exceção contida no inciso I não interfere na competência plena dada a Justiça
do Trabalho pelo dispositivo constitucional que trata especificamente
desta.
Mesmo utilizando-se de uma interpretação lógico-formal direta, não
se poderia chegar a uma conclusão diversa. Pela boa técnica de interpretação, jamais um dispositivo inserido no inciso de um artigo, excetuando-o, poderia ser aplicado para um artigo inteiramente diverso e que trata
de matéria diversa.
Mais grave é a contradição da interpretação que leva à competência da Justiça Estadual, quando se estende o processo hermenêutico
para uma quadra de valores e princípios. O intérprete ao se deparar com
duas possibilidades interpretativas deve optar por aquela que dê maior
efetividade ao direito e maior coerência interna ao sistema.
O direito à reparação por dano acidentário está inserido no próprio
art. 7º, inciso XXVIII, da Constituição Federal, ao lado de todos os demais direitos que emergem da relação de emprego ou mesmo de outras
modalidades de relação de trabalho em que há a necessidade de proteção. Não se pode conceber que este direito esteja afastado da competência da Justiça do Trabalho, que está constitucionalmente prevista para
ser o órgão jurisdicional especializado que garanta uma adequada tutela
desses direitos, levando em consideração a situação de hipossuficiência natural dos titulares desses direitos.
VI. Os efeitos da Emenda 45 — A possibilidade de colisão de norma
constitucional superveniente
A conclusão da competência da Justiça do Trabalho para dirimir
litígios referentes à indenização por acidente ou doença profissional, de
responsabilidade do empregador, já era facilmente extraída do conjunto
do Texto Constitucional, por uma adequada análise sistemática, todavia, torna-se agora indiscutível tal entendimento, por força da introdução
do inciso VI do art. 114 que dispõe: “as ações de indenização por dano
moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho ”, bem como do
alargamento da competência geral para “relação de trabalho” em substituição à regra geral anterior “relação de emprego”.
366
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Este reforço argumentativo, que agora se introduz no debate, é no
sentido de que, ainda que se admitisse que o texto vigente antes da
promulgação da Emenda 45 a conclusão seria pela incompetência da Justiça do Trabalho, a alteração do referido inciso VI teria modificado esta
situação.
Avaliando o conteúdo constitucional posterior à promulgação da
Reforma do Judiciário, temos um texto inserido no art. 109, I, que trata
da competência da Justiça Federal, do qual se inferiria, segundo a tese
que vem sendo acolhida pelo Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, a competência da Justiça Comum Estadual. Do outro
lado, temos a literalidade do inciso VI do art. 114 que dispõe diretamente
sobre a competência da Justiça do Trabalho, estabelecendo ser esta
competente para as ações que tratem de danos morais e materiais
decorrentes da relação de trabalho.
Para os que entendiam que a competência da Justiça Comum estava estabelecida no art. 109, inciso I, estaríamos diante de uma colisão
de normas constitucionais, havendo a necessidade de resolução interna
pelos critérios que são comumente apontados pela doutrina.
Se estivéssemos diante de um texto legal ordinário, a antinomia se
resolveria pelos três critérios clássicos apontados por Bobbio(9): o critério cronológico, de que a lei posterior revoga a anterior; o critério hierárquico, que atribui maior valor à determinada disposição normativa em
face de outra, como por exemplo norma legal e constitucional; e, ainda,
o critério de especialidade, ou seja, que a lei especial derroga a lei geral.
Por estes três critérios, o efeito da resolução do conflito implicaria a
adoção da fórmula do “tudo ou nada”, uma das normas é afastada do
ordenamento jurídico ou considerada inaplicável para aquela hipótese.
Todavia, em se tratando de colisão de Textos Constitucionais que
se mantêm, concomitantemente, inseridos na Constituição, apesar da
aparente ou real antinomia, a solução encontrada deve ser outra.
Qualquer emenda constitucional somente revoga o texto anterior
da Constituição quando expressamente declarar esta revogação ou substituir integralmente um dispositivo, não se aplica, na hipótese de antinomia constitucional, o terceiro critério, qual seja, o da revogação implícita, que se refere à incompatibilidade da norma anterior com a norma
(9) BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Trad. Maria Celeste Cordeiro
Leite dos Santos. 10ª ed. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1991, p. 92-107.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
367
superveniente, como ocorre com a legislação ordinária e complementar.
Isto quer dizer que as normas aparentemente colidentes terão que conviver
dentro do ordenamento jurídico constitucional, resolvendo-se a contradição
por mecanismos interpretativos que permitam a manutenção de ambas.
Dois critérios para resolução de colisão de normas constitucionais
têm obtido a consagração da doutrina e mesmo da jurisprudência na
resolução de situações concretas: o critério da concordância prática de
Hesse(10) e o critério da dimensão de peso e importância de Dworkin(11).
Utilizando-se a concordância prática ou harmonização, procura-se
encontrar o equilíbrio entre as normas colidentes, por um processo de ponderação que não atribui a prevalência de um texto sobre o outro, mas tenta
manter aplicação simultânea e compatível de tais normas, deixando de aplicar uma delas, ou aplicando-a de modo diverso em um caso concreto.
Na questão objeto da presente análise, tal raciocínio é perfeitamente aplicável. Partindo da premissa — com a qual não concordamos
— de que o texto do art. 109, I, antes do advento da Emenda 45 dava
competência à Justiça Comum para todas as ações que versassem
sobre acidente de trabalho, e a introdução do dispositivo que determina
que indenização por danos morais e materiais decorrentes da relação de
trabalho são da competência da Justiça obreira, teríamos uma fácil compatibilidade concreta dos Textos Constitucionais, com uma interpretação “nova”, que resulte na aplicação de ambos.
A interpretação que resolve a colisão é justamente aquela que não
estende o sentido do art. 109, inciso I. Aquela que limita a competência
da Justiça Comum somente às ações acidentárias contra o Instituto
Nacional de Seguridade Social, sem se inferir que aquele texto dá competência à Justiça Estadual. Tal interpretação permite que o dispositivo
anteriormente existente permaneça útil e aplicável e ao mesmo tempo
dá a máxima aplicabilidade, sem exceções sistematicamente incongruentes, ao novo dispositivo constitucional que diz claramente, ser da competência da Justiça do Trabalho, “as ações que versem sobre indenização por danos morais e materiais decorrentes da relação de trabalho”.
O outro critério, que é a dimensão de peso e importância, não leva
à conclusão diversa. Analisando os valores e princípios gerais ordena(10) HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Trad. Pedro Cruz Villalon.
2.ed. Madrid: Centro de estudios constitucionales, 1992, p. 45-66.
(11) DWORKIN Apud ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 65.
368
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
dos no conjunto constitucional, não se pode negar, pelo estrito ângulo
da jurisdição comum, a falta de relevância ou de importância que teria o
fato de a Justiça Estadual julgar ou não ações referentes ao acidente de
trabalho. Nenhum valor constitucional ou princípio constitucional seria
prestigiado, não haveria melhor concretização da proteção pelo fato de
se atribuir à Justiça ordinária tal competência. Ao revés, reconhecer a
competência da Justiça do Trabalho para as ações acidentárias decorre
naturalmente do conjunto de princípios insertos na Constituição Federal
de 1988, inclusive a proteção do hipossuficiente, que se esteia na idéia de
justiça distributiva, impregnando toda normatização acerca dos direitos
sociais, em especial dos direitos dos trabalhadores.
A conclusão relativamente ao critério da dimensão de peso e importância é de que a interpretação que atende ao conjunto de princípios
constitucionais é aquela que atribui a competência à Justiça do Trabalho
para as ações acidentárias, pois tais litígios envolvem uma relação desequilibrada, sendo uma das partes hipossuficiente, razão que levou o
legislador constitucional a criar uma Justiça especializada.
Concluída a análise dos critérios, o que se quer deixar bastante
explícito é que se fosse admitido que antes da Emenda Constitucional
45 a competência era da Justiça comum, a mudança introduzida pelo
inciso VI do art. 114 da Constituição Federal de 1988, tem necessariamente de alterar a interpretação.
O que se quer dizer é que uma norma constitucional posterior que
não revogue expressamente outra ou não discipline integralmente o que a
outra dispunha, embora não afaste a norma colidente que se manteve no
texto do ordenamento jurídico constitucional, tem o efeito indubitável de
produzir a possibilidade de uma mudança interpretativa compatibilizadora.
VII. A dimensão das expressões “oriundas da relação de trabalho” e
“decorrentes da relação de trabalho”
A modificação introduzida pela Emenda 45 quanto à competência
geral e constitucional compulsória da Justiça do Trabalho foi substancial.
Anteriormente o caput do art. 114, embora se referisse a litígios decorrentes da relação de trabalho, fazia referência expressa à figura do empregador, o que exigia para configuração desta hipótese de competência direta a existência de um contrato de trabalho. A competência
para outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho não decor-
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
369
ria diretamente da Constituição, mas apenas de lei ordinária que assim
dispusesse, havendo apenas autorização da Constituição neste sentido.
A novidade foi justamente a introdução, no inciso I, do art. 114, da
expressão “oriundas da relação de trabalho”, que tornou mais abrangente a competência constitucional compulsória, bem como a confirmação
específica das competências para as ações indenizatórias fundadas na
responsabilidade civil, contida no inciso VI, do art. 144, que utiliza a
expressão também geral “decorrentes da relação de trabalho”.
Deste modo, verificando-se uma relação de trabalho e não existindo regra constitucional de exceção, aplica-se a competência direta prevista na Constituição Federal, sem necessidade de lei ordinária para
estipular tal competência, como ocorria anteriormente. Além disto, nenhuma norma infraconstitucional poderá fixar competência diversa, pois
estará em confronto com este novo comando constitucional.
Remanesceu no inciso IX a possibilidade de competência legal
derivada de autorização, mas neste caso para outras controvérsias vinculadas à relação de trabalho que não envolvam diretamente o trabalhador e o empregador ou tomador da mão-de-obra, como, por exemplo, lei que desse competência à Justiça do Trabalho para dispor sobre
demandas relativas ao seguro-desemprego que envolvesse a Caixa Econômica Federal.
Passando a relação de trabalho a ser o conteúdo determinante da
competência constitucional, torna-se agora extremamente importante não
só a clássica distinção entre relação de trabalho e contrato de trabalho,
como também a distinção entre relação de trabalho e outras relações
jurídicas.
Conforme a orientação doutrinária consolidada, temos sem qualquer aporia a relação de trabalho vinculada ao conceito de contratos de
atividade, ou seja, toda vez que a convenção entre as partes tiver como
objeto um trabalho humano estar-se-ia diante da relação de trabalho.
Neste sentido são inúmeras as manifestações da doutrina(12).
(12) DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 1ª ed. São Paulo:
LTr, 2002. “A Ciência do Direito enxerga clara distinção entre relação de trabalho e
relação de emprego”.
A primeira expressão tem caráter genérico: refere-se a todas as relações jurídicas
caracterizadas por terem prestação essencial centrada na obrigação de fazer consubstanciada em labor humano. Refere-se, pois, a toda modalidade de contratação
de trabalho humano modernamente admissível. A expressão relação de trabalho
370
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Obviamente que o trabalho humano, na hipótese, deve ser de um
dos contratantes, assim, se uma empresa contrata com outra pôr a mãode-obra de terceiros à disposição não estamos diante de uma relação de
trabalho entre estas, mas de contrato de outra natureza.
Podemos com base na sedimentação doutrinária histórica definir
então a competência da Justiça do Trabalho para todos os contratos de
atividade(13), extensiva a todas as hipóteses nas quais o objeto é o trabalho humano de um dos próprios contratantes. Esta relação de trabalho
pode ser subordinada, eventual, autônoma ou de trabalho avulso, o que
interessa é haver como objeto o trabalho humano e, conseqüentemente,
estará definida, na hipótese, a competência Justiça do Trabalho.
O limite, a nosso ver, é que o contrato tenha de um lado sempre
um trabalhador, ou seja, aquele que com esforço próprio e direto cumpre a sua parte na contratação, tendo como contraprestação o pagamento da outra parte contratante.
Assim, se um médico, enquanto pessoa física, é contratado por
um paciente, a condição de profissionista atrai a competência da Justiça de Trabalho. Também a relação que se dá entre médico e Hospital,
ainda que em caráter autônomo, será de competência da Justiça obreira. Apenas a contratação do Hospital pelo paciente, para prestação de
serviços, é considerada relação de consumo, com competência da Justiça Estadual.
Portanto, considerando os argumentos expostos, significa dizer
que a competência constitucional para acidente de trabalho passou a
envolver não só a relação de emprego, mas todas as hipóteses em que o
engloba, desse modo, a relação de emprego, a relação de trabalho autônomo, a
relação de trabalho eventual, de trabalho avulso e outras modalidades de pactuação
de prestação de labor (como trabalho de estágio, etc.). Traduz, portanto, o gênero a
que se acomodam todas as formas de pactuação de prestação de trabalho existentes no mundo jurídico atual.
A relação de emprego, entretanto, é, do ponto de vista técnico-jurídico, apenas uma
das modalidades especiais de relação de trabalho juridicamente configuradas. Op.
cit., p. 279-280.
(13) GOMES, Orlando. Curso de Direito do Trabalho. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense,
1990. “Estas modalidades de convenções não se confundem com o contrato de trabalho propriamente dito. Embora tenham por fim a atividade do homem, diferenciam-se
nitidamente pela natureza do vínculo obrigacional que criam. Poderiam todos ser englobados na denominação genérica de contratos de atividade, adotando-se, neste
passo, a lição de Jean Vicente que, com esta expressão, designa todos os contratos
nos quais a atividade pessoal de uma das partes constitui o objeto da convenção ou
uma das obrigações que ela comporta”.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
371
infortúnio tenha decorrido em uma relação de trabalho, dentre as quais a
empreitada, parceria, representação comercial de autônomo e prestação de serviços eventuais.
VIII. A interpretação em consonância com o princípio da proteção
A Constituição Federal admite o tratamento desigual das pessoas
que estejam em situação também de desigualdade. Esta possibilidade
em nada afronta o princípio geral da isonomia, ao contrário, ajuda a concretizá-lo, na medida em que desigualdades materiais fazem parte de
uma realidade que impede o próprio objetivo igualitário a que o ordenamento se propõe.
O princípio da proteção do trabalhador é um desdobramento desse
tratamento fundado em uma idéia de Justiça que observa a proporcionalidade, ou seja, a Justiça distributiva, em vez da Justiça meramente comutativa. Aqueles que não detêm os meios de produção, que têm como
patrimônio apenas a sua força de trabalho, logicamente estão fragilizados diante do empregador ou tomador de serviços, que além de ser proprietário do capital tem o poder diretivo, dentre outros que subordinam
com maior ou menor intensidade aquele que põe a mão-de-obra à disposição.
É inegável que o princípio da proteção decorre dos comandos constitucionais, tanto que o legislador cria uma Justiça especializada, com
procedimentos mais céleres e maior acessibilidade, com o propósito de
melhor garantir os direitos dos trabalhadores e dar a estes direitos maior
efetividade ou eficácia social. Deste modo, não se pode conceber o afastamento da competência desta Justiça, justamente para apreciação da
maior lesão que pode sofrer o trabalhador como decorrência de ato ou
omissão do empregador.
Utilizando-se o raciocínio interpretativo a fortiori (14), temos absolutamente insensato que direitos patrimoniais decorrentes do contrato de
trabalho ou conexos, como, exempli gratia, complementação de aposentadoria instituída pelo empregador, sejam de competência da Justiça
(14) MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 11ª ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1991. “Os argumentos a majori ad minus e a minori ad majus levam
a aplicar uma norma aos casos não previstos, nos quais se encontra o motivo, a razão
fundamental da hipótese expressa, porém mais forte, em mais alto grau de eficácia.
Compreende-se os dois em uma denominação comum — argumento a fortiori ”. Op.
cit., p. 246.
372
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
do Trabalho, e lesões à saúde, danos à integridade física e até mesmo a
hipótese de morte do trabalhador, em situação que decorre diretamente
do próprio trabalho, sejam afastados da jurisdição especial criada com
fundamento na idéia de proteção. O entendimento dominante na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, neste caso, destoa do próprio
senso comum.
IX. Os efeitos negativos da multiplicidade de competências —
Decisões conflitantes e dificuldade de acesso à prestação
jurisdicional
Um outro elemento que deve ser considerado pelo intérprete, pautando-se nos critérios de razoabilidade, é eliminar a proliferação de competências para tratar da mesma situação fática ou de matérias conexas
que implicam, inúmeras vezes, em questões prejudiciais para apreciação de mérito das postulações.
Pelo entendimento reinante no Supremo Tribunal Federal, o trabalhador que sofrer um acidente de trabalho poderá demandar na Justiça do
Trabalho para obter reparação de seu empregador, em face da estabilidade prevista o art. 118 da Lei n. 8.213/91. Com referência ao mesmo fato, o
trabalhador teria que ajuizar ação na Justiça Comum Estadual, pleiteando
a indenização por responsabilidade civil do empregador. Postularia, ainda,
na Justiça Federal contra a autarquia previdenciária, direitos referentes
aos benefícios de auxílio-doença acidentário, caso houvesse resistência
na concessão pelo órgão previdenciário. Por fim, demandaria ainda o INSS
para indenização acidentária mantida pelo SAT — Seguro de Acidente de
Trabalho, em uma nova ação, na medida em que a cumulação da ação
acidentária contra o INSS e o empregador não seria, acolhida.
Apenas como demonstração do absurdo, na situação narrada, se
não for aceita prova emprestada, teríamos a possibilidade de haver quatro perícias judiciais sobre um mesmo infortúnio e suas conseqüências.
A sistemática que resulta da interpretação dominante no STF e
STJ dá origem a outras questões, que não são cerebrinas, pois têm
ocorrências reiteradas no dia-a-dia dos Tribunais. Inúmeras vezes o acidente de trabalho envolve trabalhador com contratação informal cujo possível empregador não admite tal condição.
Ora, a Justiça do Trabalho é a única competente para decidir sobre
uma pretensão fundada na relação de emprego, ainda que tal relação
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
373
seja, ao final, considerada inexistente, pois o que define a competência
é justamente a “pretensão”. Neste caso, o empregado teria que demandar o empregador para obter o reconhecimento da relação de emprego e
somente depois tentar reconhecer os direitos aos benefícios previdenciários
e ainda mais para postular na Justiça Estadual uma indenização em
face do mesmo empregador, que havia negado a sua condição de
empregado.
É, sem dúvida, mais conveniente, oportuno e coerente, que pelo
menos o trato das questões em face do empregador sejam reunidas em
uma única demanda com um mesmo Juízo competente. Assim este
poderá decidir sobre a existência da relação de emprego, ocorrência de
acidente de trabalho, conseqüências incapacitantes deste acidente,
remuneração e contribuição previdenciária a ser recolhida, tudo isto sem
a necessidade da ilógica multiplicidade de competências, que atenta
inclusive contra o direito de razoável duração do processo, constitucionalizado expressamente pela Emenda n. 45, no inciso LXXVIII, do art. 5º, da
CF/88.
X. Conclusões
a) Mesmo antes da promulgação da Emenda Constitucional n. 45,
que trata da Reforma do Poder Judiciário, a interpretação lógico-sistemática da Constituição Federal já levava à conclusão de competência da
Justiça do Trabalho para os pleitos de indenização acidentária, em face do
empregador. O art 109, I da CF/88 não atribui competência à Justiça Estadual, mas apenas exclui a competência da Justiça Federal, assim,
tratando-se de demanda contra a autarquia previdenciária, por expressa
exceção da competência geral e considerando o critério residual adotado
quanto à competência da Justiça comum, a competência passa a ser
desta última. O mesmo raciocínio não se aplica na hipótese de ação acidentária contra o empregador, pois a competência geral é da Justiça do
Trabalho e, neste caso, não está excepcionada pelo inciso I do art. 109.
b) Partindo-se da premissa de validade da interpretação contrária à
competência da Justiça do Trabalho, pela redação original da CF/88, o
advento da Emenda n. 45 introduz dispositivos novos sobre a matéria.
Haveria, no caso, colisão de normas constitucionais, especialmente o
disposto no inciso I do art. 109 e o disposto no inciso VI do art. 114. A
resolução desta colisão entre norma já existente e outra introduzida sem
revogação expressa da anterior, se resolve, na hipótese, pelos critérios de
374
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
concordância prática e dimensão de peso e importância, levando, se
necessário, a uma nova interpretação constitucional, de modo que os
dispositivos se tornem aplicáveis e coerentes, sendo inarredável a conclusão de que o art. 109, I, passaria a ter como única interpretação
possível a que se refere apenas à competência residual da Justiça Comum para pleitos em face do INSS.
c) A interpretação deve considerar a lógica do razoável e a opção
pelo sentido compatível com os princípios constitucionais explícitos e
implícitos, em especial o princípio da proteção do trabalhador, que é o
fundamento para existência de uma jurisdição especializada, sendo absolutamente incongruente que as demandas que envolvam reparação
por dano à integridade física ou mesmo em decorrência da supressão da
vida do trabalhador, sejam excluídas da competência da Justiça do Trabalho, e, paradoxalmente, a Justiça especializada, tenha sua competência estendida para todos os direitos e relações jurídicas conexas e acessórias do contrato de trabalho e agora, também, da relação de trabalho;
d) A interpretação de competência da Justiça do Trabalho é a que
melhor se ajusta ao direito fundamental de razoável duração do processo, evitando-se procedimentos judiciais mais lentos e proliferação de
ações perante juízo distintos, versando sobre o mesmo fato ou situações conexas;
e) A competência da Justiça do Trabalho, com advento da Emenda
45, passou a abranger o acidente de trabalho e a doença profissional em
todos os contratos de atividade, não ficando mais circunscrita à esfera
da relação de emprego ou contrato de trabalho em sentido estrito.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
375
Justiça do Trabalho — Nova Competência
Vicente José Malheiros da Fonseca (*)
1. Algumas considerações sobre o direito do trabalho no Brasil
O direito do trabalho, no Brasil, é um ramo da ciência jurídica em
formação, ainda não totalmente elaborada, apesar dos significativos avanços teóricos que apresenta. Carece de urgente modernização, em virtude das rápidas e profundas transformações na realidade econômica, que
decorre da globalização e acarreta as altas taxas de desemprego. As
mudanças nesse universo provocam a imediata repercussão sobre as
relações entre o capital e o trabalho, cujo disciplinamento jurídico deveria adequar-se ao novo perfil dos fenômenos atuais, nada semelhantes
ao panorama vivenciado pelo legislador da época da edição da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943. A necessária adequação
legislativa está, ainda, longe de acontecer.
Numa época de grandes e rápidas transformações sociais, tecnológicas e dos costumes, na virada do milênio, parece natural que o
direito, justamente porque não é ciência pura, deve adequar-se à realidade. Nunca, porém, a ponto de perder o seu papel ético-cultural de
referência às conquistas históricas da humanidade, centradas nas
idéias de liberdade, de igualdade, de dignidade, de democracia e de
justiça.
Na realidade brasileira, e, especialmente, na região amazônica,
por exemplo, seria desaconselhável a extinção imediata do poder normativo da Justiça do Trabalho, justamente porque as condições dos trabalhadores ainda não permitem, salvo exceções, o exercício da livre negociação. Se extinto o poder normativo da Justiça do Trabalho, cresce a
importância da negociação coletiva. Daí a necessidade, mais do que
nunca, da organização e do aperfeiçoamento das entidades sindicais,
(*) Juiz Togado de Carreira do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (Belém Pará. Professor de Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho na Universidade da Amazônia (UNAMA), inclusive em curso de pós-graduação.
376
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
principalmente de suas lideranças e de seus órgãos de assessoramento
técnico.
No que diz respeito ao direito material do trabalho, devo acentuar
que se conseguirmos ultrapassar o momento crítico em que nos encontramos, mantendo, porém, os seus princípios fundamentais, conquistados ao longo da história, embora com as adaptações necessárias, acho
que já teremos vencido boa parte dos desafios que ao mundo todo preocupa, o desemprego, a miséria, a marginalidade, o analfabetismo, a fome, a
violência, enfim, os males do cotidiano, que a cada dia mais se agravam.
E é preciso ter consciência de que o desafio não se limita apenas a
salvar o emprego, mas, também, a proporcionar as condições de manter a dignidade do trabalhador, razão de ser do Direito do Trabalho.
Não se descobriu ainda a fórmula mágica para resolver o drama do
desemprego estrutural. Mas é certo que a redução da taxa de desempregados depende basicamente do crescimento econômico do país, da diminuição da taxa de juros e de uma autêntica reforma fiscal, dentre outros
pressupostos. Porém depende, também, da qualificação da mão-de-obra,
da conscientização e do aperfeiçoamento das lideranças sindicais.
Quanto ao mais, a mudança, de fato, deve ser de mentalidade,
inclusive no aspecto ético e funcional do juiz do trabalho, que deve ser,
essencialmente, sensível aos fatos econômicos e sociais. Com a globalização, deve haver ainda mais necessidade de proteger o hipossuficiente, para fazer face aos abusos do capital. Penso que no Brasil existe
uma regulamentação trabalhista apenas formal, porque, na realidade,
verifica-se uma inefetividade da norma jurídica, enfim, uma desregulamentação de fato, uma flexibilidade real, em desfavor da classe operária.
São os trabalhadores os mais prejudicados enquanto houver um sistema
recursal complexo e um processo de execução ineficaz, que não atendem aos ideais de uma justiça gratuita, informal e célere, tal como foi
concebida. Não basta dizer o direito; impõe-se a efetiva e real entrega da
prestação jurisdicional, sobretudo com a rápida execução do julgado.
2. Justiça do Trabalho
Os órgãos jurisdicionais trabalhistas surgiram em épocas diferentes em distintos países: na França, os Conseils de Prud’hommes
(1806); na Itália, os Probiviri (1893), substituídos pela Magistratura
do Trabalho (1928); na Inglaterra, os Tribunais Industriais (1919); na
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
377
Alemanha, os Tribunais Trabalhistas (1926); e na Espanha, os Tribunais do Trabalho (1940).
A jurisdição trabalhista, como organização especial e autônoma,
funciona na Inglaterra, na Alemanha e no Brasil, bem como em quase
toda a América Latina, com ligeiras variantes na estrutura organizacional e no procedimento judicial. Em nosso país, a Justiça do Trabalho
existe há quase sessenta (60) anos, quando foi incorporada ao Poder
Judiciário da União, pela Constituição Democrática de 1946.
A legislação trabalhista e a Justiça do Trabalho despontaram, no
Brasil, como decorrência de longo processo que se desenvolvia no exterior, sob forte influência dos princípios de proteção ao trabalhador, defendidos pelo Papa Leão XIII em sua conhecida Encíclica Rerum Novarum,
de 1891.
A bem sucedida experiência dos Conseils de Prud’hommes, órgão
especializado em resolver divergências nas relações trabalhistas, cujas
origens são da época napoleônica, estimulou outros países europeus a
seguir o exemplo francês, instituindo organismos independentes do
Poder Judiciário, para apreciação de causas trabalhistas, basicamente
pela via da conciliação entre os litigantes.
Tal como o Direito do Trabalho teve origem no Direito Civil, a Justiça do Trabalho surgiu como corolário da independência da nova disciplina jurídica. Porém, no início cabia à Justiça Comum o julgamento das
controvérsias relativas às questões entre o capital e o trabalho.
Com a Constituição de 1946, a Justiça do Trabalho passou a integrar o Poder Judiciário da União, como órgão jurisdicional especializado,
de âmbito federal, assim como o são a Justiça Eleitoral e a Justiça
Militar. Antes disso, tinha caráter administrativo, era órgão do Poder
Executivo, vinculada ao Ministério do Trabalho.
Nas Constituições seguintes houve pouca alteração na estrutura
organizacional do Judiciário Trabalhista, composta pelo Tribunal Superior do Trabalho, Tribunais Regionais do Trabalho e Juntas de Conciliação e Julgamento (atualmente, Varas do Trabalho, em face da extinção
dos representantes classistas, por força da EC n. 24/99).
A Justiça do Trabalho surgiu, enfim, da necessidade de dotar um
órgão jurisdicional capaz de solucionar os conflitos entre trabalhadores
e empregadores, de modo simples, informal, célere, eficaz e gratuito,
em contraste com a Justiça Comum, quase sempre onerosa, formalista
378
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
e lenta. Além disso, está na origem da Justiça do Trabalho ser ela integrada por magistrados naturalmente mais sensíveis às questões sociais,
que não raro requerem soluções fundadas no juízo de eqüidade, característica que importa na interpretação criativa da realidade social, e não a
mera aplicação automática e fria das normas jurídicas. Isso não significa,
entretanto, que os Juízes do Trabalho seriam levados a proferir decisões
fundadas no seu sentimento pessoal, emotivo e irresponsável.
3. Evolução constitucional e legislativa da competência material da
Justiça do Trabalho
É da tradição do nosso Direito Constitucional traçar os limites da
competência dos órgãos que integram o Poder Judiciário.
Desde as Constituições Federais de 1934 e 1937, a Justiça do
Trabalho foi inicialmente concebida para dirimir apenas as questões entre
“empregadores e empregados”, isto é, as partes do contrato de trabalho
subordinado. As questões concernentes à Previdência Social e acidentes do trabalho permaneceram sujeitas à Justiça Comum, nos termos
dos §§ 1º e 2º do mencionado art. 643, da CLT.
Não obstante, o art. 652, a, III, da Consolidação, dispõe que os
dissídios resultantes de contratos de empreitadas em que o empreiteiro
fosse operário ou artífice (os chamados “pequenos empreiteiros”) poderiam ser julgados pela Justiça do Trabalho, embora regidos pela legislação material civil. As suas demandas, portanto, somente poderiam versar sobre direitos resultantes da empreitada civil (verbi gratia, o saldo de
empreitada), e não da legislação pertinente à proteção do trabalho subordinado (férias, salários e, atualmente, 13º salário, FGTS etc.). Posteriormente, o legislador incluiu na competência da Justiça do Trabalho o
julgamento dos dissídios entre “trabalhadores avulsos e seus tomadores
de serviços” (art. 643, da CLT, com a redação dada pela Lei n. 7.494, de
17.6.1986) e, ainda, as ações entre “trabalhadores portuários e os operadores portuários ou o Órgão Gestor de Mão-de-Obra – OGMO decorrentes da relação de trabalho” (art. 643, § 3º, da CLT, acrescentado pela
Medida Provisória n. 2.164-41, de 24.8.2001).
Todavia, desde logo, o art. 123, da Carta Magna de 1946, fixou a
competência genérica da Justiça do Trabalho, para atribuir-lhe o papel
de conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre empregados e empregadores (tal como dispuseram as Constituições de 1934 e
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
379
1937), e, ainda, “as demais controvérsias oriundas de relações do trabalho regidas por legislação especial”.
Diversas outras questões pertinentes ao tema cheguei a examinar,
enquanto magistrado trabalhista de primeiro grau, no interior da Amazônia, tais como: imunidade de jurisdição; prisão de testemunha flagrada
em crime de falso testemunho; alcance do privilégio do crédito trabalhista em razão da falência do empregador; habeas corpus impetrado por
infiel depositário etc. Afinal de contas, há muito que a Justiça do Trabalho tem competência para dirimir os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, o que, aliás, é inerente à própria
jurisdição.
Quanto à competência, assim estabeleceu a atual Carta Magna, em
sua redação originária (art. 114): “Compete à Justiça do Trabalho conciliar
e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da administração
pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e
da União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação
de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de
suas próprias sentenças, inclusive coletivas”.
De observar que a competência material da Justiça do Trabalho
passou a abranger os dissídios de interesses dos “trabalhadores e empregadores”, e não apenas de “empregados e empregadores”, como constava nas Constituições anteriores. Vale consignar, por oportuno, que o
art. 17, da Lei n. 5.889, de 8 de junho de 1973, que estatui normas
reguladoras do trabalho rural, determina que os preceitos dessa legislação são aplicáveis, no que couber, aos “trabalhadores rurais” não compreendidos na definição do art. 2º (“empregados rurais”, sob vínculo de
subordinação), que prestem serviços a empregador rural. O art. 14 do
Decreto n. 73.626, de 12.2.1974, que regulamentou a Lei n. 5.889/73,
esclarece que “as normas referentes à jornada de trabalho, trabalho noturno, trabalho do menor e outras compatíveis com a modalidade das respectivas atividades aplicam-se aos avulsos e outros trabalhadores rurais que,
sem vínculo de emprego, prestam serviços a empregadores rurais”.
Como se percebe, a competência material da Justiça do Trabalho
vem sendo alargada, gradativamente, para além do julgamento das ações
que abrangem apenas conflitos resultantes da “relação de emprego”,
como vimos: as causas de interesse de “pequenos empreiteiros” (art.
652, a, III, da CLT); de “trabalhadores rurais” não sujeitos a vínculo empregatício (art. 17, da Lei n. 5.889/73); de “trabalhadores avulsos e seus
380
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
tomadores de serviços” (art. 643, da CLT, com a redação dada pela Lei
n. 7.494, de 17.6.1986); e de “trabalhadores portuários e os operadores
portuários ou o Órgão Gestor de Mão-de-Obra – OGMO decorrentes da
relação de trabalho” (art. 643, § 3º, da CLT, acrescentado pela Medida
Provisória n. 2.164-41, de 24.8.2001).
Ademais, a Emenda Constitucional n. 20, de 1998, acrescentou ao
art. 114 da Constituição de 1988 o § 3º, por força do qual “compete ainda
à Justiça do Trabalho executar, de ofício, as contribuições sociais previstas no art. 195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das
sentenças que proferir”. Este preceito foi regulamentado pela Lei n. 10.035,
de 25.10.2000, que alterou a Consolidação das Leis do Trabalho, em
diversos aspectos, para estabelecer os procedimentos, no âmbito da
Justiça do Trabalho, de execução das contribuições devidas à Previdência Social.
Já anteriormente, por força da Lei Complementar n. 75, de 20 de
maio de 1993, que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União, pode o Ministério Público do Trabalho promover, perante a Justiça do Trabalho, as ações que lhe foram
atribuídas pela Constituição Federal e pelas leis trabalhistas; ações
civis públicas no âmbito do Judiciário Trabalhista, para defesa de interesses coletivos, quando desrespeitados os direitos sociais constitucionalmente garantidos; ações cabíveis para declaração de nulidade de cláusula de contrato, acordo coletivo ou convenção coletiva que viole as
liberdades individuais ou coletivas ou os direitos individuais indisponíveis
dos trabalhadores; ações necessárias à defesa dos direitos e interesses
dos menores, incapazes e índios, decorrentes das relações de trabalho;
ações para questionar a deflagração de greve, quando a defesa da ordem
jurídica ou o interesse público assim o exigir; e mandado de injunção,
quando a competência for da Justiça do Trabalho (art. 83).
Antes mesmo disso, a Lei Complementar n. 35, de 14 de março de
1979, que dispõe sobre a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN),
pacificou a questão da competência originária dos Tribunais Trabalhistas para julgar os mandados de segurança “contra seus atos, os dos
respectivos Presidentes e os de suas Câmaras, Turmas ou Seções” (art.
21, VI), pois, até então, havia jurisprudência que entendia que a competência, no caso, era da Justiça Federal Comum.
Ainda nos dias atuais se discutia a competência da Justiça do
Trabalho para julgar habeas corpus, em que pese a Justiça Eleitoral —
igualmente um ramo especializado da Justiça da União, tal como a Traba-
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
381
lhista —, ter pacífica atribuição para apreciar habeas corpus e mandado de segurança em casos pertinentes à matéria eleitoral, além de
julgar os delitos eleitorais e os comuns que lhes forem conexos.
4. A Emenda Constitucional n. 45/2004
A Emenda Constitucional n. 24, promulgada em 8 de dezembro de
2004, que dispõe sobre a Reforma do Judiciário, ampliou bastante a
competência material da Justiça do Trabalho, como se vê dos seguintes
dispositivos da Carta Magna de 1988:
“Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:
I — as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de
direito público externo e da administração pública direta e indireta da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
II — as ações que envolvam exercício do direito de greve;
III — as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre
sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores;
IV — os mandados de segurança, habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição;
V — os conflitos de competência entre órgãos com jurisdição trabalhista, ressalvado o disposto no art. 102, I, o;
VI — as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho;
VII — as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos
empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho;
VIII — a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art.
195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças
que proferir;
IX — outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei.
§ 1º ......................................................................................................................
§ 2º Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à
arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho
decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente.
§ 3º Em caso de greve em atividade essencial, com possibilidade de
lesão do interesse público, o Ministério Público do Trabalho poderá
382
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
ajuizar dissídio coletivo, competindo à Justiça do Trabalho decidir o
conflito.”
Em tese, o dissídio coletivo de natureza econômica, se frustrada a
negociação coletiva ou solução arbitral, somente poderá ser ajuizado de
“comum acordo” entre os interessados. Porém, em caso de greve em
atividade essencial, com possibilidade de lesão do interesse público, o
Ministério Público do Trabalho poderá ajuizar dissídio coletivo, competindo à Justiça do Trabalho julgar a controvérsia.
Na verdade, a referida Emenda Constitucional (PEC n. 29/2000)
não só assegurou a todos, no âmbito judicial e administrativo, o direito à
razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de
sua tramitação (art. 5º, LXXVIII), como também recompôs em 27 o
número de membros do TST (art. 111-A); criou a Escola Nacional de
Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho (art. 111-A,
§ 1º); ampliou consideravelmente a competência da Justiça do Trabalho,
sobretudo para julgar as ações oriundas da “relação de trabalho” e as
ações sobre controvérsias intersindicais e intra-sindicais, além de ter
mantido, em tese, o poder normativo desta Justiça Especializada (art.
114); estabeleceu que os TRTs instalarão a justiça itinerante, com a
realização de audiências e demais funções de atividade jurisdicional,
nos limites territoriais da respectiva jurisdição, servindo-se de equipamentos públicos e comunitários (art. 115, § 1º); autorizou os TRTs a
funcionarem descentralizadamente, constituindo Câmaras regionais, a fim
de assegurar o pleno acesso do jurisdicionado à justiça em todas as
fases do processo (art. 115, § 2º); e, finalmente, previu a criação do
Fundo de Garantia das Execuções Trabalhistas(1) (idéia que venho propondo há mais de 25 anos e sobre a qual já elaborei um Esboço de
Anteprojeto de Lei Ordinária(2)), integrado pelas multas decorrentes de condenações trabalhistas e administrativas oriundas da fiscalização do trabalho, além de outras receitas (art. 3º).
A rigor, o novo modelo de execução trabalhista também importa
em ampliar a competência da Justiça do Trabalho, pois atribui legitimidade ativa ao citado “Fundo” para promover a execução, em caso de
inadimplemento de parte do executado.
(1) Artigo publicado na Revista do TRT - 8ª Região, n. 22 (julho-dezembro/1979); livros
Reforma da Execução Trabalhista e Outros Estudos, São Paulo: LTr, 1993, e Em Defesa
da Justiça do Trabalho e Outros Estudos, São Paulo: LTr, 2001, de minha autoria.
(2) Artigo publicado na Revista do TRT - 8ª Região, n. 72 (janeiro-junho/2004), p. 41-50.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
383
De fato, não havendo pagamento, o juízo da execução determinará
a movimentação do Fundo de Garantia das Execuções Trabalhistas —
que se destina a assegurar todo e qualquer crédito trabalhista, e não
apenas os salários, como na Espanha —, para efeito de pagamento
imediato ao credor trabalhista, que terá, assim, satisfeito, de modo rápido, o seu direito. Em seguida, o Fundo, sub-rogando-se no crédito do
trabalhador, passa a executar o devedor, perante a Justiça do Trabalho, mediante sanções severas, inclusive as astreintes (dia-multa), justamente para evitar a sua movimentação constante e inevitável descapitalização.
Algumas matérias estabelecidas, de modo expresso, na Emenda
Constitucional n. 45/2004, já vinham sendo julgadas pela Justiça do Trabalho, por construção doutrinária e jurisprudencial, como o mandado de
segurança, o habeas corpus e as ações de indenização por dano moral
ou patrimonial, decorrentes do contrato de trabalho.
Muito importante foi a ampliação da competência jurisdicional da Justiça do Trabalho para as questões intersindicais e intra-sindicais (o que
resolve inclusive problemas no julgamento de dissídios coletivos, em que se
discute, por exemplo, disputas pela representação e base territorial do
sindicato), como também para as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das
relações trabalhistas.
Costumo dizer que se um trabalhador, sem anotação na Carteira
de Trabalho e Previdência Social, sofrer acidente de trabalho, é possível
que precise acionar três (3) ramos do Poder Judiciário para reivindicar
seus direitos: a Justiça do Trabalho (para a prova da relação de emprego); a Justiça Estadual (para a ação acidentária); e a Justiça Federal
Comum (para eventual conflito com o INSS).
O ideal seria concentrar todas essas demandas na Justiça do Trabalho. Por isso mesmo, propugno pela competência criminal da Justiça
do Trabalho quanto ao julgamento de questões correlatas e imediatamente resultantes do ilícito civil-trabalhista, sobretudo quanto aos crimes contra a organização do trabalho e a prática do trabalho escravo, a
fim de preservar a unidade da jurisprudência sobre todos os aspectos
jurídicos da questão.
A Carta de Blumenau (SC), aprovada no XI CONAMAT (Congresso
Nacional dos Magistrados do Trabalho), encerrado em 3.5.2002, proclamou que é “imperiosa a ampliação da competência material da Justiça
384
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
do Trabalho, trazendo para a sua esfera jurisdicional todos os litígios
que envolvam o trabalho humano, mediante a correspondente alteração
constitucional e legal”.
É nesse sentido, enfim, a Emenda Constitucional n. 45/2004, que
dispõe sobre a Reforma do Judiciário, ao ampliar consideravelmente a
competência material da Justiça do Trabalho.
Tenho entendimento firmado de que a Justiça do Trabalho é competente para apreciar pedido de indenização por dano material e moral
decorrente de acidente de trabalho.
Sustento a tese de que é competente a Justiça do Trabalho para
julgar demanda com vistas à indenização por dano material e moral decorrente de acidente de trabalho, em face da possibilidade da existência de
culpa do empregador pelas condições do labor, à luz dos arts. 7º, XXVIII, e
114, da Constituição Federal. O acidente de trabalho, no caso, constitui
mera questão incidental, que não afasta a competência material da Justiça
Trabalhista.
A EC n. 45/2004, que cuida da Reforma do Judiciário, trata agora
da “justiça itinerante”. No âmbito de nossa Região Trabalhista, essa
prática já ocorrera há cerca de 20 anos antes. Quando exerci o cargo
de Juiz Presidente da então Junta de Conciliação e Julgamento de
Abaetetuba, em 1986, na administração do Juiz Pedro Thaumaturgo
Soriano de Mello, o TRT - 8ª Região implementou experiência pioneira,
ao autorizar o deslocamento daquele órgão trabalhista de 1º grau, de
Abaetetuba para Barcarena, com apoio na Lei n. 6.947, de 17 de setembro de 1981 (art. 2º, § 3º), para o recebimento de reclamações e
realização de audiências. Na época, o saudoso colega, juiz substituto,
Dr. José Augusto Figueiredo Affonso, já falecido, foi o primeiro magistrado que atuou no Barco Itinerante da Justiça do Trabalho, em âmbito
oficial. O sucesso da iniciativa atraiu a curiosidade da mídia internacional, haja vista o propósito de alargar o direito de acesso ao Judiciário Trabalhista às populações ribeirinhas da Amazônia. Antes mesmo da vigência da Lei n. 6.947/81, o juiz Hermes Afonso Tupinambá
Neto adotou o sistema do juízo itinerante, na JCJ de Parintins (AM),
então pertencente à 8ª Região Trabalhista. E, atualmente, o juiz Océlio
de Jesus Carneiro de Morais, Titular da Vara do Trabalho de Santarém,
vem adotando, com êxito, a prática itinerante daquele órgão de 1º grau,
na execução do projeto “Rio Acima, Rio Abaixo”, a fim de tornar o
Judiciário mais acessível ao jurisdicionado.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
385
5. Considerações finais
Como se vê, não foi por acaso o alargamento da competência material da Justiça do Trabalho, pugnada, sobretudo, pelos próprios magistrados trabalhistas, conscientes do novo papel reservado a este ramo
especializado do Poder Judiciário da União. O fenômeno resulta de um
contexto do qual não podemos nos afastar na compreensão da matéria,
qual seja, a inevitável importância que deve ser emprestada ao trabalho
humano, seja eventual, subordinado ou autônomo, sujeito a regime contratual, civil ou trabalhista, ou, ainda, estatutário.
Assim, a nova competência material da Justiça do Trabalho abrange não só os litígios de interesse dos servidores públicos, de qualquer
regime jurídico, como ainda as causas em que sejam partes os magistrados federais, trabalhistas, eleitorais, militares e estaduais.
Em suma, todos os litígios decorrentes das mais variadas relações
jurídicas que compreendem o labor do homem devem ser resolvidos,
atualmente, perante a Justiça do Trabalho, por força da nova redação
contida no art. 114, da Constituição Federal, preconizada pela Emenda
Constitucional n. 45/2004.
No julgamento das questões trabalhistas podem ser abordados
temas estabelecidos no direito constitucional, direito administrativo, direito internacional, direito do trabalho, direito previdenciário, direito civil,
direito comercial, direito falimentar, direito tributário, direito penal, direito
do consumidor, direito processual civil, direito processual penal e outros
ramos da ciência jurídica. Esta circunstância não afasta a nova competência material da Justiça do Trabalho, sempre que se verificar a hipótese de dissídio oriundo de uma relação de trabalho.
Creio que alguns títulos executivos extrajudiciais, previstos no art.
585, do CPC, que resultem de “relação de trabalho”, podem ser cobrados na Justiça do Trabalho, uma vez que sobre a legislação ordinária
deve prevalecer o preceito constitucional, quanto à competência para
solucionar o eventual litígio.
Não resta dúvida que a reflexão acerca do tema passa pelo estudo
sobre “direitos pessoais” e “direitos reais”, na medida em que, perante a
Justiça do Trabalho, podem ser pleiteados basicamente os primeiros,
quando oriundos da relação de trabalho de qualquer natureza.
A nova realidade exige, enfim, uma visão interdisciplinar do direito.
Mesmo que a relação de direito material, entre as partes, seja diversa do clássico vínculo empregatício, sob a égide do direito civil, por
386
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
exemplo, será possível o ajuizamento de ação perante a Justiça do Trabalho, quando houver litígio oriundo da “relação de trabalho”.
A título de exemplo, vejamos o caso do contrato de compra e venda (art. 481, do atual Código Civil). Os litígios resultantes do contrato de
compra e venda, em si, continuarão a ser julgados pela Justiça Comum.
Porém, as pessoas que trabalham para comprador e vendedor, mesmo
autônomos e eventuais, poderão demandar na Justiça do Trabalho, cuja
competência foi ampliada para processar e julgar “as ações oriundas da
relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e
da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios” (art. 114, I, da Constituição Federal,
com a redação dada pela EC n. 45/2004). É necessário, portanto, distinguir adequadamente cada situação.
O mesmo raciocínio aplica-se às demais modalidades de contratos civis ou comerciais.
Cuidado especial merece a hipótese do contrato de “prestação de
serviço”, de natureza autônoma, pois o art. 593 do Código Civil ressalva os
casos de contratos sujeitos às leis trabalhistas ou à lei especial. Em
síntese, havendo ou não relação de emprego, a competência será sempre
da Justiça do Trabalho, porque o contrato de prestação de serviço pressupõe uma “relação de trabalho” autônomo, eventual ou subordinado.
Quanto ao direito material, serão aplicadas as normas estabelecidas no Código Civil (arts. 594 a 609).
Contudo, deverá o juiz do trabalho, em qualquer situação, aplicar
as normas processuais trabalhistas, previstas na CLT e legislação processual trabalhista esparsa, embora possa socorrer-se, em caso de omissão, da legislação processual comum (art. 769, da CLT).
De fato, a estrutura jurisdicional da Justiça do Trabalho não foi incorporada à Justiça Estadual ou Federal, mas, sim, algumas demandas,
que, antes eram ajuizadas na Justiça Comum, passaram à competência
do Judiciário Trabalhista, certamente porque esta Justiça Especializada
dispõe, sobretudo, de normas processuais mais eficazes, particularmente
para atender as expectativas dos jurisdicionados mais humildes e excluídos, como é o caso dos “eventuais” do chamado mercado informal.
A propósito, se formos aplicar o “processo civil” para os casos de
“relação de trabalho”, vamos cobrir um santo e descobrir outro. O processo trabalhista (copiado pela legislação que cuida do procedimento
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
387
na ação de alimentos e nos juizados especiais; e até pelo processo
civil), é a referência que não se pode abandonar, mesmo para as causas
sobre “relação de trabalho”, ainda que sejam instituídos juízes e turmas
especializados, no âmbito da Justiça do Trabalho. Enfim, exige-se um
autêntico processo trabalhista, tal como foi concebido, de modo célere,
informal, gratuito, concentrado, simples, eqüitativo, econômico, enxuto,
oral e sempre sujeito à conciliação. E de suma importância: a irrecorribilidade das decisões interlocutórias, característica fundamental do processo do trabalho (art. 893, § 1º, da CLT). Sem isso, não haveria motivo
para a transferência de competência daquelas questões para o Judiciário
Trabalhista.
Um breve comentário, ainda, sobre o contrato de “empreitada” (art.
610, do atual Código Civil). Antes de tudo, reporto-me ao exposto sobre
o contrato de “prestação de serviço”, eis que, em ambos os casos, pode
haver controvérsia sobre a existência, ou não, de relação de emprego
entre os litigantes.
Antes da EC n. 45/2004, a competência material da Justiça do
Trabalho, quanto à pessoa do trabalhador, limitava-se aos dissídios entre trabalhadores e empregadores. A CLT, desde a sua origem, preceitua
que compete à Justiça do Trabalho dirimir os dissídios resultantes de
contratos de empreitadas em que o empreiteiro seja operário ou artífice
(art. 652, a, III, da CLT), a chamada “pequena empreitada”, hipótese em
que o trabalhador, assim considerado, não tem direito aos direitos trabalhistas típicos (anotação na CTPS, aviso prévio, férias, 13º salário, FGTS,
horas extras, adicional noturno, repouso semanal remunerado, segurodesemprego, adicional de insalubridade ou de periculosidade etc.), mas
apenas aos direitos assegurados pelo contrato civil de empreitada, como
o saldo de empreitada, embora por meio de ação na Justiça do Trabalho.
A segunda hipótese é a do “trabalhador rural” não empregado (art. 17, da
Lei n. 5.889/73). A terceira situação é o caso de dissídio entre “trabalhadores avulsos e seus tomadores de serviços, em atividades reguladas na
legislação social” (art. 643, da CLT, com a redação dada pela Lei n.
7.494, de 17.6.1986). E a quarta, trata dos trabalhadores portuários e os
operadores portuários ou o Órgão Gestor de Mão-de-Obra. Nessas quatro hipóteses (pequena empreitada, trabalhador rural, trabalhador avulso
e trabalhador portuário), em que não há vínculo de emprego, a Justiça do
Trabalho, embora competente para o julgamento da causa, pode aplicar
o direito material estranho à legislação trabalhista que rege a relação de
emprego — sobretudo no caso da pequena empreitada —, mas adotará
388
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
o processo do trabalho, previsto basicamente na CLT. Quanto aos avulsos — assim compreendidos os que trabalham na zona portuária, sob
intermediação de entidade sindical, como estivadores e capatazes —,
embora sejam trabalhadores autônomos, eles foram, ao longo do tempo,
obtendo diversos direitos trabalhistas (FGTS, 13º salário, salário-família
etc.), daí por que a Constituição Federal de 1988 acabou por estabelecer
a “igualdade de direitos entre o trabalhador com vínculo empregatício
permanente e o trabalhador avulso” (art. 7º, inciso XXXIV).
Façamos ligeiras considerações sobre o mandato, a transação e o
compromisso, institutos previstos no atual Código Civil.
No cotidiano da Justiça do Trabalho são muito comuns os litígios
que versam sobre controvérsia acerca do vínculo empregatício, notadamente quanto aos chamados “contratos afins” ao contrato de emprego,
tais como os contratos de locação de serviço, empreitada, representação comercial, mandato, sociedade e parceria, todos “contratos de atividade” ou “de trabalho”, lato sensu.
Quanto ao “mandato” (art. 653, do Código Civil), em particular, esse
contrato pode co-existir com a relação de emprego, como no caso dos
gerentes (art. 62, da CLT). Quando se tratar de mandato específico, sob
a modalidade de contrato autônomo, deverá ser aplicada a legislação
comum, no âmbito do direito material, mas as normas do direito processual trabalhista, em caso de ação na Justiça do Trabalho, se houver
litígio resultante da relação de trabalho.
Se a “transação” ou o “compromisso” (arts. 840 e 851-853, do Código Civil) abrangerem direitos e deveres de uma “relação de trabalho”, o
litígio será da competência material da Justiça do Trabalho, à luz da
nova redação introduzida no art. 114, da CF, pela EC n. 45/2004. Tal
como dito antes, deverá ser aplicada a legislação comum, no âmbito do
direito substantivo, porém as regras do direito processual trabalhista,
em caso de demanda na Justiça do Trabalho, se o litígio resultar da
“relação de trabalho”.
Cumpre deixar claro que a relação de trabalho não se confunde
com a relação de consumo, de produção ou de outra natureza. O que
ocorre é a incidência de vários ramos do direito em determinadas situações, insuscetível, entretanto, de afetar a competência material da Justiça do Trabalho para dirimir o eventual dissídio, sob a ótica do vínculo
trabalhista, se ficar perfeitamente identificado o dissídio oriundo da relação de trabalho.
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
389
Se merece ser enaltecido o empenho eficiente das associações e
dos magistrados trabalhistas pela ampliação da competência da Justiça
do Trabalho, outra luta se avizinha: obter os meios e instrumentos necessários para implementar as conquistas, seja quanto aos aspectos
materiais e recursos humanos, como também o aperfeiçoamento das
normas processuais necessárias para tornar realidade os avanços estabelecidos nos preceitos constitucionais.
Frustrante, por certo, se a desejada ampliação da competência
trabalhista não vier secundada da necessária estrutura material e funcional
capaz de implementar o novo comando constitucional. Público e notório
que o montante de valores arrecadados, a título de contribuições previdenciárias, é superior ao gasto na folha de pagamento de juízes e servidores da Justiça do Trabalho. Essa arrecadação, porém, não é destinada ao orçamento do Judiciário, que ainda proporciona o recolhimento de
imposto de renda, depósitos recursais e custas, resultantes de acordos
homologados e sentenças judiciais.
É preciso, então, rever a falsa idéia de que a Justiça do Trabalho,
cujo orçamento tem sofrido cortes, representa um ônus pesado ao Estado Brasileiro.
Durante 20 anos funcionei como magistrado trabalhista de 1º Grau,
em quase todas as unidades federativas da Amazônia, em capitais e no
interior, antes de chegar ao Tribunal Regional do Trabalho, onde exerci
as funções de Corregedor, Vice-Presidente e Presidente, época em que
atuei como Coordenador do Colégio de Presidentes e Corregedores de
TRTs (1999-2000), que coincidiu com o período em que se propôs a
extinção da Justiça do Trabalho e, depois, como alternativa absurda,
a de alguns TRTs, embora sem sucesso, graças aos movimentos de
resistência manifestados por diversos seguimentos da sociedade brasileira. Pouco tempo depois, era extinta a representação classista (Emenda
Constitucional n. 24/1999). No ano passado, uma conquista histórica: a
Lei n. 10.770, de 21.11.2003, criava, em todo o território nacional, 269
novas Varas do Trabalho. E, agora, amplia-se significativamente a competência desta Justiça Federal Especializada.
Na verdade, o papel social da Justiça do Trabalho, cuja jurisdição se
espraia pelos mais longínquos municípios deste imenso país, é transcendental. Vai para muito além de meros dados estatísticos ou de utópicas fórmulas
que pretendem sepultar o ideal de uma justiça gratuita, informal e célere,
praticada por uma magistratura sensível aos dramas dos mais humildes, quase sempre excluídos do acesso às mínimas condições de vida digna.
390
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
A Justiça do Trabalho proporciona um dos mais autênticos direitos
de cidadania à pessoa humana. Essa conquista tem o preço incalculável
da dignidade do cidadão trabalhador ou empresário.
É evidente que a ampliação da competência da Justiça do Trabalho
implicará em aumento de processos, por conseguinte em necessidade
de expansão de seus órgãos, inclusive com a instituição de câmaras ou
turmas ou varas especializadas para o julgamento de questões diversificadas, em todos os graus de jurisdição. O alcance de qualquer finalidade exige os meios capazes de implementar a medida.
Caso contrário, haverá apenas simples transferência formal de tarefas e o acúmulo dos mesmos problemas verificados na Justiça Comum.
E, então, a crise persistirá. Muitos dos princípios processuais trabalhistas
restarão impraticáveis. Em síntese: para dar conta de suas novas atribuições, sem perda de seu excelente padrão de qualidade, a Justiça do
Trabalho precisa ser dotada dos recursos materiais e humanos capazes
de suportar, em idêntica proporção, o aumento da demanda, inclusive, se
for o caso, dos processos pendentes em outros ramos do Judiciário.
Estaremos preparados para mais esse desafio?
6. Conclusões
1) A ampliação da competência da Justiça do Trabalho, preconizada pela Emenda Constitucional n. 45/2004, seria mais adequada se tivesse havido concentração de todas as demandas oriundas da relação
de trabalho, abrangidas as questões de natureza criminal, de modo que
a Justiça Especializada pudesse também julgar as matérias correlatas e
imediatamente resultantes do ilícito civil-trabalhista, sobretudo quanto
aos crimes contra a organização do trabalho e a prática do trabalho
escravo, a fim de preservar a unidade da jurisprudência sobre todos os
aspectos jurídicos da questão.
2) O alargamento da competência material da Justiça do Trabalho
é fenômeno que resulta de um contexto do qual não podemos nos afastar na compreensão da matéria, qual seja, a inevitável importância que
deve ser emprestada ao trabalho humano, seja eventual, subordinado ou
autônomo, sujeito a regime contratual, civil ou trabalhista, ou, ainda,
estatutário.
3) A nova competência material da Justiça do Trabalho abrange
não só os litígios de interesse dos servidores públicos, de qualquer regi-
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
391
me jurídico, como ainda as causas em que sejam partes os magistrados
federais, trabalhistas, eleitorais, militares e estaduais. Em suma, todos
os litígios decorrentes das mais variadas relações jurídicas que compreendem o labor do homem devem ser resolvidos, atualmente, perante a Justiça do Trabalho, por força da nova redação contida no art.
114, da Constituição Federal, preconizada pela Emenda Constitucional n. 45/2004.
4) Essa nova realidade exige uma visão interdisciplinar do direito.
5) Em qualquer caso, deverá o juiz do trabalho aplicar, sobretudo,
as normas processuais trabalhistas, principal razão da transferência do
conflito para o âmbito da Justiça do Trabalho.