Pequenas Solidões. Avaliação crítica da obra

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Pequenas Solidões. Avaliação crítica da obra
Pequenas Solidões. Avaliação crítica da obra Intimidades, Série
Orgasmo 8
Alexandra Martins Costa
RESUMO
O presente artigo constituiu-se de uma discussão a partir de um levantamento
bibliográfico de referenciais conceituais acerca de um trabalho artístico autoral
denominado Intimidades, série Orgasmo 8. A obra, eixo central deste trabalho, é uma
compilação de autorretratos durante o ciclo de um gozo mostrando as nuances do rosto e
do corpo durante este momento íntimo. O resultado é o estranhamento de uma
performance da qual não imaginava que fazia e o (re)conhecimento de um corpo numa
situação que até o momento nunca me havia sido revelada. Toda parte que envolve o
corpo, na hora do gozo solitário, se tornar reveladora de nossas sensações, do desejo ao
repúdio.
Palavras-chave: Corpo. Performance. Masturbação. Fotografia. Gênero.
ABSTRACT
The present article consists a bibliographical survey on references of the conceptual
artwork called Intimacies, series Orgasm 8. The central axis of this work is a collection
of self-portraits during cycles of orgasm, showing the nuances of the face and body
during this intimate moment. The result is the strangeness of a performance that was not
previously imagined and the (re)cognition of a state of mind that had never been
revealed. Every part that involves the body, in that time of solitary enjoyment, becomes
indicative of our sensations, from desire to rejection.
Keyword: Body. Performance. Masturbation. Photography. Gender.
Possui especialização em Artes Visuais pelo SENAC-DF (2012) cujo trabalho teve orientação de
Alexandra Cristina Moreira Caetano. É formada em Jornalismo pelo UniCEUB (2009) e atualmente é
estudante de Artes Visuais pela Universidade de Brasília. Faz parte da coletiva Tete-a-Teta onde
desenvolve ações e pesquisas em performance e intervenções urbanas.
Inicialmente, o interesse por um tema que faz uso do corpo como narrativa pessoal
partiu da necessidade de registrar os rostos de amigas em um momento íntimo de
orgasmo. Diante da dificuldade de convencê-las a posar, tomo a liberdade de me
fotografar nessa situação e a consequência foi o (re)conhecimento de um corpo numa
situação que nunca mee havia sido revelada. Em alguma medida, essa experiência se
relaciona com a vivência enquanto fotógrafa, pois assim como fotografar é um ato
solitário, o autoprazer também é feito das descobertas dessas pequenas solidões. “O
corpo é, de fato, uma das grandes percepções que permeiam a obra dos artistas
contemporâneos, que se mostram atentos às tensões situadas em um corpo cada vez
mais idealizado pela sociedade de consumo” (CANTON, 2009, p 25).
A pesquisa objetiva naturalizar a masturbação, na medida em que essa prática seja vista
como ferramenta de apropriação para o conhecimento e autonomia dos corpos. Ao
dividir este momento íntimo com outras pessoas há um compartilhamento da
experiência individual naturalizando essa prática que possui um histórico de repressão
entre as mulheres. Na sociedade em geral, mas especificamente as mulheres possuem
muitas dificuldades de falar, sentir e descrever um orgasmo por medo, vergonha ou até
nunca ter tido essa experiência. A dificuldade de se falar do gozo feminino como um
assunto pouco discutido é um dos motivos que impulsiona a criação deste trabalho
Fotografia como um certificado de presença
Dentre as séries de ciclos de orgasmo fotografados, a oitava foi escolhida para ser
apresentada porque foi observado um amadurecimento e potencialidade em comparação
aos registros anteriores. Ao contrário das outras séries, na oitava encaro a máquina
fotográfica, deixando os olhos em abertos na maior parte do tempo e assim evocando a
possível presença de alguém como numa espécie de repartir esse momento íntimo.
“Toda fotografia é um certificado de presença. Esse certificado é o gene novo que sua
invenção introduziu na família das imagens” (BARTHES, p.129, 1980). Quando se
fecha os olhos, se reforça o local particular. No entanto, quando se abre os olhos é
revelada a tentativa de outra aproximação dessa vez mais compartilhada, mais presente
na ação. Toda parte que envolve o corpo, na hora do gozo solitário, se torna reveladora
de sensações, do desejo ao repúdio. São individualidades expressas através da
experiência estética que o ciclo do orgasmo pode causar. Observar como funciona o
trajeto do meu corpo por meio dessas seqüências é reconhecer as imensas possibilidades
poéticas que posso manejar.
Performances masturbatórias
As narrativas da vida íntima e doméstica são postas em cena trazendo revelações
subjetivas, cotidianas, despreocupadas e confessionais onde o eixo principal dos
trabalhos é muito menos a obra final apresentada, mas sim a caminhada feita nesse
processo. Daí a importância do registro como elemento que permite a busca
experimental de um trabalho do qual dificilmente se sabe como a dinâmica acontecerá.
Infere-se então que a vida está estruturada por comportamentos repetidos e que a
performance não está apenas associada ao fazer mas ao refazer a partir de uma
autoconsciência sobre o que se apresenta. Portanto, o presente trabalho, para além de
um ensaio fotográfico, também é uma performance registrada na medida que masturbarse faz parte de um ritual, de uma atividade humana que possui uma série de pesos
sociais e está presente no nosso cotidiano.
De acordo com os argumento colocados à cima, pode-se inferir que uma ação que é
executada com uma consciência de si mesma é uma performance. No entanto, quando
mostrada como expressão poética e características artísticas, essa atividade ganha outras
potencialidades onde “podemos fazer ações sem pensar, mas, quando pensamos sobre
elas, isso introduz uma consciência que lhes dá qualidade de performance” (CARLSON,
2010, p. 15).
Uso do corpo como extensão de subjetividades
Os trabalhos apresentados à seguir partilham da mesma estratégia de projeção da vida
privada revelando indícios de como alguns artistas lidam com a temática do (auto)
prazer como alguns artistas contemporâneos como Elke Krystufef através do trabalho
Satisfaction (Figura1) e Andy Warhol com Blow Job (Figura 2) cujas estratégias
utilizadas aproximam-se da realizada em Intimidades, Série Orgasmo 8 (Figura 3) na
medida em que são registradas experiências do orgasmo revelando indícios de como
esses artistas voluntariamente tornam pública a sua vida privada.
Em Satisfaction, Elke Krystufek expõe sua intimidade durante uma performance, em
1997, durante a Bienal de Viena, onde se masturba publicamente diante de uma vitrine
cujo público assiste a esse ritual do privado separado por um vidro que separa o espaço
da intimidade da artista e o ambiente da galeria. Ela está deitada numa banheira cheia de
água enquanto revela o ciclo de gozos em um espaço branco que lembra a de um
banheiro. No chão, perto da banheira, há outros utensílios que a artista usa para obter
prazer. A galeria de arte e sua privacidade se confundem numa experiência voyeur do
compartilhamento do orgasmo com as pessoas que a assistem. “Atuando como
protagonistas de sua própria obra, são as musas masturbatórias. Não é mais o espectador
que se masturba frente à imagem. É nesse jogo que o objeto se torna o sujeito do desejo
e realiza suas fantasias antes que o público o faça”. (DE MARTINO. 2010. p. 92).
Elker possui uma vasta coletânea de trabalhos seguindo a linha da exposição pessoal
para o público. Quando veio para São Paulo, durante a 24ª Bienal de São Paulo, em
1998, apresentou a serie Photo-Mirror: Painter onde eliminação radical do público e do
privado ao registrar partes do corpo nu, numa exibição despretensiosa e tecnicamente
cuidadosa com enquadramento.
Figura 1: Imagens da performance Satisfaction da performer Elke Krystufek.
Fonte: http://31.media.tumblr.com/tumblr_mc6wt1hMXa1r3ctglo1_500.jpg
Em Blow Job (p/b, 16 mm, 1964), de Andy Warhol (Figura 2), é mostrado em plano
sequencia o rosto de um homem cuja expressão facial muda no decorrer do filme
aludindo à presença de uma segunda pessoa que estaria fazendo sexo oral neste jovem.
É possível supor essa relação por meio de pequenos movimentos do rosto, ombro,
cabeça e pescoço. E, claro, pelo próprio nome escolhido para nomear a obra: Blow Job
(Boquete, chupeta ou sexo oral. Tradução da autora). Em grande parte dos trinta e seis
minutos do filme, o personagem olha para um ponto indefinido, às vezes fuma um
cigarro e em outros momentos dirige o olhar direto para a câmera como se estivesse
dialogando sem palavras.
Vídeo Blow Job – Andy Warhol (1964)
https://vimeo.com/45258317
Figura 2: Imagens do vídeo Blow Job de Andy Warhol.
Fonte: http://cinespect.com/wp-content/uploads/2011/01/Warhol_Blow_Job.gif
Ao não revelar quais outros personagens estaria presentes na ação do ato sexual, quer
dizer, por quem o jovem recebe o prazer e se, inclusive, é possível nomear essa(s)
pessoa(s), Blow Job deixa uma fissura que rompe com toda uma série de dicotomias:
homossexualidade/heterossexualidade, homem/mulher, masculino/feminino. Ao tomar
o corpo como um espaço de construção bio-política, que age como lugar de opressão,
mas também como centro de resistência, Beatriz Preciado apregoa a construção do
gênero – a partir das práticas contra-sexuais - para além daquelas identidades sexuais
tradicionalmente associadas à reprodução, como a de homem ou mulher.
Para Beatriz Preciado em seu Manifiesto contra-sexual: prácticas subversivas de
identidad sexual (2002) sugere que as formas mais eficazes de resistência da produção
de sexualidade não seria a luta pela proibição, mas sim uma produção de forma de
prazer alternativa. Assim, a “paródia” e “simulação” dos efeitos associados ao orgasmo
transformariam uma reação natural ideologicamente construída, onde pênis e vagina são
transformados em centros orgásticos.
La contra-sexualidad afirma que el deseo, la excitación sexual y el orgasmo
son sino los productos retrospectivos de cierta tecnología sexual que
identifica los órganos reproductivos como órganos sexuales, en detrimento de
una sexualización de la totalidad del cuerpo. (PRECIADO, 2002).
Em Intimidades, Série Orgasmo 8 (figura 3) revela a sequência de 87 fotos
transformadas em arquivo de vídeo apresentando um estudo visual do ciclo de um gozo
a partir da decomposição do movimento em pequenos fragmentos deste processo. A
experiência é mostrada sequencialmente e linear, delimitando o começo, meio e fim
deste ciclo. Nega-se o cabelo como elemento construtor de identidade ao se permitir
fotografar após a raspagem total do cabelo com máquina zero aludindo à imagem de um
ser cujo gênero não está explícito, um ser andrógino cuja ambiguidade remete a um
“anjo sem sexo”, Brinca-se com a aura da divindade angelical que se reforça a partir das
possibilidades de prazer independe da variabilidade do sexo. É por ser um ser divino
que se pode possuir qualquer atributo humano de prazer.
elemento primordial para que a narrativa seja exposta: uma causa social, um
engajamento político, um veículo de transferência, um emissor da dor, como
um suporte para a existência niilista, como um questionador do ser e do estar e
como uma máquina desejante que fere e é ferido. Um corpo sem órgãos que
evagina o desejo (DE MARTINO. 2009. p. 18)
O ciclo do trabalho se fecha em partilhas do sensível durante a exposição de cada foto.
Cada clic revela um novo estágio do gozo. Descubro então que a cada registro aumenta
minha excitação ao ponto de não saber ao certo se é o meu corpo ou a máquina
fotográfica que conduz a ação. Assumo que não consigo mais manter o olhar atento para
a máquina fotográfica, durante toda a masturbação, e como num corpo que trai a si
próprio decido fechar os olhos. Infere-se, então que a masturbação nos convida para um
jogo de controle e atenção sobre o próprio corpo. Numa brincadeira de estabelecer outro
local de ação e existência para a masturbação, foram usados sons de mar, aves e ventos
ao fundo para compor com as imagens. A presença da natureza, por meio do som,
dentro do contexto de espaço privado e íntimo estabelece outra relação com o tema no
qual o espaço público também se faz presente. Entendendo aqui o espaço público como
estabelecimentos fora do campo da moradia, da casa, das quatro paredes.
Intimidades, Série Orgasmo 8
http://vimeo.com/35572864
Figura 3: 67ª imagem da série Intimidades, Orgasmo 8.
Fonte: Arquivo pessoal
Ao gozar na cidade
O gozo expandido e aberto que frui por entre os poros do espaço público, escondida
entre os cantos da cidade por meio de um descontrole que o orgasmo nos traz. A
proposta de gozar na cidade se relaciona com a necessidade de naturalizar essa
performance como elemento presente no cotidiano das mulheres mas que quase nunca é
falado ou exposto. Para tanto, uma das 87 fotos da série foi escolhida para ser
transformada em um stencil de quatro cores (Figura 4). A imagem representa o ápice do
ciclo do orgasmo onde a fotografada passa por uma intensidade íntima seguida de um
descanso do corpo. O stencil foi colocado em centros da cidade de Brasília como
Rodoviária, Setor Comercial Sul, algumas quadras do Plano Piloto e nos arredores da
Universidade de Brasília.
Figura 4: 67ª imagem da série Intimidades, Orgasmo 8 (versão stencil).
Fonte: Arquivo pessoal
Ao levar essa imagem, feita no espaço privado, para o espaço público me utiliza das
táticas de desvio dos espaços normatizantes - de constante policiamento como é o local
da rua – para abertura de fissuras da rua que se torna um local de troca onde o total
controle sobre os corpos (o corpo da cidade e o corpo humano) é dificultada pelo
atravessamento biopolítico que esse tema carrega. É preciso situar para atuar: se colocar
no mundo para interagir e agir.
Ao assumir o orgasmo em público há uma negociação do meu corpo com o corpo da
cidade a partir das revelações de discursos não oficiais da cidade - um local de conflito e
troca - na medida em que as pessoas começam a se apropriar do corpo urbano para
colocar suas reivindicações e criar um deslocamento simbólico, pois inicialmente não se
espera que o orgasmo esteja presente nas ruas e exposto às pessoas. Portanto, para
pensar arte e política - é necessário antes de tudo - pensar de corpo inteiro: o corpo
como ferramenta de existência onde é possível partilhar um espaço já demandado por
uma série de acordos, negociações e tensões.
Referências
BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1980.
CANTON, Katia, Corpo, Identidade e Erotismo – Temas da Arte Contemporânea.
São Paulo: Editora Martins Fontes, 2009.
CARLSON, Marvin. Performance: Uma Introdução Crítica. Editora
UFMG.Tradução de Thaís Flores Nogueira Diniz e Maria Antonieta Pereira. Belo
Horizonte. 2010.
DE MARTINO, Marlen Batista. Narrativas do eu: confissões na arte contemporânea o corpo como diário. Porto Alegre: Editora UFRGS. 2009.
_____. Relatos em primeira pessoa: Confissões Artísticas. Revista Poiésis, n 16, p.8695, Dez. de 2010.
DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 1995.
KEHL, Maria Rita. O eu é o corpo. In: Cocchiariale, Fernando & MATESCO, Viviane
[curadoria]. Corpo. São Paulo: Itaú Cultural, 2005
PRECIADO, Beatriz. Manifesto Contra-sexual, Madrid, Pensamiento/Opera Prima,
2002.