Como posso sonhar um sonho impossível?

Transcrição

Como posso sonhar um sonho impossível?
Ano 4, n. 10, 2011
Seção Colunas
13/05/2011
Como posso sonhar um sonho impossível?
Gustavo Bernardo
Gustavo Bernardo é Doutor em Literatura Comparada, Professor Associado de Teoria da Literatura no Instituto de Letras da UERJ e
pesquisador do CNPq. Publicou doze ensaios, entre eles “A Educação pelo Argumento” e “O Livro da Metaficção”, e onze romances,
entre eles “A filha do escritor” e “Nanook”. Publicou, pela editora Rocco, o livro “Conversas com um professor de literatura”,
contendo 50 crônicas desta Revista Eletrônica do Vestibular da UERJ. Seu ensaio “A ficção de Deus”, publicado pela Annablume,
acaba de receber o Prêmio da Biblioteca Nacional para o Melhor Ensaio Literário de 2015. Edita o site www.gustavobernardo.com,
sobre as suas obras.
O adjetivo “quixotesco”, informa o dicionário Aurélio, designa aquele que é “ingênuo, romântico, sonhador”, ou aquele que “se envolve em
trapalhadas”.
O dicionário Houaiss define o termo como o atributo de alguém “generosamente impulsivo, sonhador, romântico, nobre, mas um pouco desligado da
realidade”.
Para o dicionário Caldas Aulete, ser quixotesco implica ser “ousado, irrealista, utópico”.
De acordo com o Merriam-Webster Online Dictionary, quem é quixotesco mostra-se “tolamente despido de espírito prático, sobretudo quando se
dedica aos ideais”.
The American Heritage Dictionary oferece a seguinte definição: “envolvido na aventura romântica de proezas e dedicado a alcançar metas
inatingíveis”.
Os espanhóis preferem “quijote” como substantivo, que o Diccionario de la Real Academia Española define como “o homem que antepõe seus ideais
a sua conveniência e trabalha em defesa de causas que julga justas, sem consegui-lo”.
À exceção do dicionário espanhol, todas as definições mostram o adjetivo “quixotesco” como essencialmente negativo. Ser quixotesco implica se
situar entre o simpático e o patético, caindo mais para o lado do patético. As ações quixotescas são grandiosas mas não chegam a termo, no melhor
dos casos, ou realizam o oposto do que pretendiam, no pior dos casos.
Os espanhóis veem Dom Quixote como um personagem heroico porque ele é realmente o seu herói nacional, pelo menos em termos imaginários.
Nós outros o vemos antes como um louco patético porque nos deixamos contaminar pelas adaptações literárias para jovens, aquele crime de
lesa-literatura de que falei na crônica anterior.
Nos dois volumes da história original, Dom Quixote enfrenta 40 combates, vencendo 20 e sendo derrotado nos outros 20. Fica claro que Cervantes,
seguindo a lição do seu mestre cético, Erasmo de Rotterdam, queria equivaler derrota a vitória, relativizando uma e outra.
Entretanto, as adaptações para jovens esquecem as vitórias quixotescas e só falam das derrotas, reforçando a imagem patética do personagem para
melhor recalcar suas características heroicas. A riqueza do personagem reside em ele não ser só isto ou aquilo, ou seja, em ser ao mesmo tempo
patético e heroico, louco e sábio, forte e fraco, criança e velho.
Mas, para contrabalançar a ênfase negativa das adaptações juvenis, falemos hoje apenas do Dom Quixote herói do sonho impossível, como ele
aparece, por exemplo, no musical “O Homem de La Mancha”, escrito por Dale Wasserman.
Esse musical foi representado primeiro em 1965, na Broadway. Sua versão brasileira estreou no Brasil em 1972, com Paulo Autran, Bibi Ferreira e
Grande Otelo nos papéis de Dom Quixote, Dulcineia e Sancho Pança. O filme “O Homem de La Mancha” estreia também em 1972, com Peter O'Toole,
Sophia Loren e James Coco nos mesmos papéis (esse filme pode finalmente ser encontrado no Brasil em DVD).
O tema do musical e do filme é a música “An Impossible Dream”, de Mitch Leigh e Joe Darion, mais conhecida entre nós, na voz de Maria Bethânia,
como “Um Sonho Impossível”, na versão de Chico Buarque e Ruy Guerra. Vejamos, lado a lado, as duas versões:
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AN IMPOSSIBLE DREAM
Joe Darion & Mitch Leigh
UM SONHO IMPOSSÍVEL
Chico Buarque & Ruy Guerra
To dream the impossible dream,
to fight the unbeatable foe,
to bear with unbearable sorrow,
to run where the brave dare not go.
Sonhar mais um sonho impossível,
lutar, quando é fácil ceder,
vencer, o inimigo invencível,
negar, quando a regra é vender.
To right the unrightable wrong,
to love pure and chaste from afar,
to try when your arms are too weary,
to reach the unreachable star.
Sofrer a tortura implacável,
romper a incabível prisão,
voar no limite improvável,
tocar o inacessível chão.
This is my quest,
to follow that star –
no matter how hopeless,
no matter how far.
É minha lei,
é minha questão,
virar esse mundo,
cravar esse chão.
To fight for the right
without question or pause,
to be willing to march into hell for a
heavenly cause.
Não me importa saber
se é terrível demais,
quantas guerras terei de vencer
por um pouco de paz.
And I know if I'll only be true to this
glorious quest
that my heart will be peaceful and calm
when I'm laid to my rest.
E amanhã, se esse chão que eu beijei
for meu leito e perdão,
vou saber que valeu
delirar e morrer de paixão.
And the world will be better for this,
that one man scorned and covered with scars
still strove with his last ounce of courage
to reach the unreachable stars.
E assim, seja lá como for,
vai ter fim a infinita aflição
e o mundo vai ver uma flor brotar
do impossível chão.
Ouso afirmar: quem se lembra dessa música numa versão ou na outra, na voz de Peter O’Toole, de Paulo Autran ou de Maria Bethânia, se emociona.
Gostaria então de comparar os versos das duas versões, na verdade para valorizar ambas.
A primeira estrofe, no original, nos convida a: sonhar o sonho impossível; lutar contra o inimigo imbatível; suportar a dor insuportável; estar onde
nem os mais corajosos ousam ir.
Na versão brasileira, a primeira estrofe é semelhante à do original, mas: se refere a mais um sonho impossível; no lugar da luta contra o inimigo
invencível, propõe já vencê-lo!; não fala em suportar a dor insuportável (que aparecerá na segunda estrofe), mas sim em lutar quando é mais fácil
ceder; no lugar de estar onde os bravos não ousam, acrescenta a ideia de negar ao invés de se vender (se corromper).
A segunda estrofe original convida a: consertar o erro inconsertável; amar de modo puro e casto, e de longe; tentar mesmo quando os braços
estejam muito cansados; por fim, alcançar a estrela inalcançável.
A segunda estrofe brasileira modifica completamente as imagens, convidando-nos a: sofrer uma tortura terrível (quando recupera o terceiro verso da
primeira estrofe); romper uma prisão na qual nem se cabe lá dentro; voar no limite mais improvável; enfim, tocar o chão a que nem acesso se tem.
Devido à necessidade da rima em “ão” com “prisão”, a estrela inalcançável, lá no firmamento, se substitui pelo chão aqui mesmo, ainda que
inacessível.
A terceira estrofe, no original, determina: para aquele que canta, esta é a missão; para seguir a estrela, não importa que o faça sem esperança; não
importa quão longe a estrela, isto é, o seu ideal, se encontre.
A terceira estrofe, na versão brasileira, transforma “quest” em “questão”, embora a tradução correta fosse “busca”, “procura” ou “missão”, e a
partir daí segue a metáfora do ideal como “chão” e não como “estrela”, determinando: para aquele que canta, esta é a lei e a questão, a saber: virar
esse mundo (de ponta-cabeça) e cravar esse chão (com a sua bandeira, ou seja, com o seu sonho).
A quarta estrofe, em inglês, estabelece a necessidade de: lutar pelo certo, pelo direito, sem dúvidas ou pausas, mostrando-se disposto a marchar até
mesmo para o inferno, desde que a causa pela qual se lute venha do céu.
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A quarta estrofe, em português, recupera da terceira estrofe original a ideia de “no matter”, isto é, não importa saber “se é terrível demais”, opondo
a seguir “guerras” a “paz” no lugar de “inferno” a “céu”. Mantém-se assim a noção ética de fazer a coisa certa a qualquer custo, mesmo a custo
pessoal.
A penúltima estrofe, na versão original, encaminha o prêmio maior para aquele que canta o sonho impossível: sentir-se fiel a si mesmo por ser fiel à
sua gloriosa missão, de modo a que seu coração mantenha-se calmo e em paz na hora do seu descanso final, ou seja, na hora da sua morte.
A penúltima estrofe, na versão brasileira, faz uma bela combinação da ideia do descanso final com a sua metáfora anterior do chão, aceitando que:
se o chão que beijou como ideal, lá na segunda estrofe, for o seu túmulo, isto é, seu “leito e perdão”, então o cantador pode saber que “valeu”,
condensando num verbo só o reconhecimento de ter sido fiel a si mesmo, para desse modo morrer da paixão pela qual viveu.
A última estrofe, por fim, originalmente assegura que: o mundo será melhor do que este que aí está; um homem desdenhou das cicatrizes que o
cobrem, mostrando-se superior a seu próprio sofrimento; esse homem ainda recorreu à sua última grama (ou onça) de coragem para alcançar as
estrelas que não se podem alcançar.
A última estrofe, na versão de Chico Buarque e Ruy Guerra, conclui de maneira bem diversa à do original, sem se referir a um mundo melhor ou ao
homem que quis o inacessível, preferindo apostar no paradoxal fim de uma infinita aflição e na visão de uma flor brotando de onde não poderia
fazê-lo.
A versão brasileira termina assim nos remetendo à flor de Carlos Drummond de Andrade: Drummond nos conta, no seu poema “A flor e a náusea”,
que uma flor desbotada e feia iludiu a polícia para nascer na cidade, furando “o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”.
Chico e Ruy, dessa maneira sutil e suave, trazem a música de Mitch Leigh e Joe Darion para o campo da literatura brasileira, como que a
incorporando, junto com a força do personagem quixotesco, ao imaginário nacional.
Agora seria interessante que o leitor procurasse, na Internet, a música nas versões inglesa e brasileira, bem como vídeos de diferentes cantores e
cantoras que a escolheram para comover suas plateias – além de Maria Bethânia, Simone e Paulo Autran, no Brasil, poderá escutar Andy Williams,
Jennifer Hudson, Robert Goulet, Diana Ross, Donna Summer, Placido Domingo, Frank Sinatra e até mesmo Elvis Presley, em interpretação antológica
no ano de 1972, no Madison Square Garden, em New York.
Se, ao escutar a canção nessas diferentes vozes, sentir uma lágrima brotar, como a flor, saiba que ela nasce ao lado das minhas e de tantos que
choraram ao ouvir esta música de louvor ao sonho impossível.
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