Relevância, Conteúdo e Metodologia da Investigação Histórica em
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Relevância, Conteúdo e Metodologia da Investigação Histórica em
_______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ Ana Rita Faria RELEVÂNCIA, CONTEÚDO E METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO HISTÓRICA EM CONTABILIDADE Mestre em Ciências Económicas e Empresariais CESE em Gestão Financeira pelo ESGHT - Universidade do Algarve Bacharelato em Gestão Hoteleira pelo ESGHT – Universidade do Algarve _______________________________________________________________________________________RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág. 185 _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ SUMÁRIO 1. Introdução......................................................................................................... 186 2. Justificações para a História da Contabilidade .............................................. 190 3 As fontes da História da Contabilidade ........................................................... 193 4. As fases da investigação histórica ................................................................... 197 5. As áreas de investigação da História da Contabilidade ................................. 199 6. As Novas Tendências da História da Contabilidade ...................................... 204 6.1. As origens da “Nova História da Contabilidade”......................................... 204 6.2. Contabilidade Crítica e História da Contabilidade ..................................... 206 7. Aspectos Distintivos da “Nova História da Contabilidade” face à “História da Contabilidade Tradicional” .................................................................................. 210 8. Conclusão .......................................................................................................... 216 9. Bibliografia ....................................................................................................... 218 1. Introdução As últimas décadas testemunharam o florescimento da investigação em RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág.186 _______________________________________________________________________________________ _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ História da Contabilidade, podendo afirmar-se que esta área do saber assume, actualmente, uma posição relevante na disciplina de Contabilidade. A par do considerável aumento do número de trabalhos e de publicações contemplando uma enorme diversidade de histórias, da criação de associações para agrupar e coordenar o crescente número de investigadores interessados em se debruçar sobre os contrafortes genéticos da Contabilidade e da proliferação de congressos (nacionais e mundiais) de historiadores de Contabilidade, assistiu-se ao aparecimento de novas abordagens e metodologias de investigação histórica. A literatura de História da Contabilidade, que numa fase embrionária visava o reconhecimento da Contabilidade enquanto profissão e disciplina académica, passa, num segundo momento, a ser dominada por uma abordagem de índole “utilitarista”, em que o passado da Contabilidade é encarado como uma potencial fonte de soluções para os problemas contemporâneos e, mais recentemente, por uma abordagem denominada “crítica”, que intenta examinar o passado da Contabilidade através de um leque variado de perspectivas teóricas e metodológicas (também apelidadas de “escolas”) inspiradas no pensamento de autores como Marx, Foucault, Habermas, e tantos outros (Carnegie e Napier, 1996). A abordagem da dimensão sociológica da Contabilidade, produto das novas tendências de investigação histórica, pôs em relevo as suas possibilidades interpretativas e explicativas nos domínios: social, cultural, político e ideológico, relegando praticamente para segundo plano as leituras de índole economicista e técnica, que constituíam, até então, o foco principal da abordagem “tradicional”, “antiga” ou “convencional”. Esta forma de investigação alternativa, que recorre a esquemas interpretativos que se apoiam na teoria social crítica, viria a ser denominada de “Nova História da Contabilidade” . Tendo a sua génese nos movimentos renovadores e iconoclastas que atingiram as Ciências Sociais em geral, e a História em particular, a “Nova História da Contabilidade” não é propriamente uma escola ou um corpo de doutrina homogéneo, mas sim um conjunto diversificado de abordagens e formas de perceber e praticar a disciplina - por vezes muito discordantes entre si - que, na opinião dos seus prosélitos, se distanciam das ideias tradicionais. Profundamente crítica em relação ao objecto e métodos da “História Tradicional”, a “Nova História” suscitou uma inevitável apreensão, introduzindo um aceso debate no seio da comunidade de historiadores. No decorrer da polémica sobre as estratégias de investigação mais adequadas para a história da disciplina, estabeleceram-se duas correntes antagónicas: _______________________________________________________________________________________RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág. 187 _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ uma constituída por aqueles vêm pouco mérito na “História Tradicional” e que a querem banir da nova ordem e outra por aqueles que nela querem preservar o seu lugar. A História da Contabilidade passou assim de um prolongado período em que os seus estudiosos se sentiam seguros do seu contributo para a compreensão da mesma, para um período controverso relativo às matrizes possíveis de investigação neste domínio. Esta crise de configuração epistémica que assolou a disciplina, sobretudo a partir da década de 80, teve, no entanto, um inusitado efeito no aumento do interesse pelas matérias históricas da Contabilidade, envolvendo no seu estudo não só investigadores de Contabilidade contemporânea, como de áreas conexas. Além de expandir os horizontes da investigação a um conjunto mais alargado de períodos, entidades, indústrias, actividades, indivíduos e a outras questões do passado da Contabilidade - induziu uma reflexão consciente sobre os fundamentos metodológicos da disciplina e as aplicações/abordagens metodológicas alternativas, contribuindo para a sofisticação e validação da investigação nesta área. A ela se deve grande parte do auge que a História da Contabilidade hoje experimenta e também o seu reconhecimento como um campo legitimado do saber no seio das disciplinas históricas em geral. Os trabalhos animados pelas diferentes metodologias e perspectivas de História da Contabilidade passaram a constituir-se objecto temático gravitacional das principais revistas de Contabilidade internacionais, como a Accounting, Auditing and Accountability Journal (Austrália), a Critical Perspectives on Accounting (E.U.A.) e a Accounting, Organisations and Society (Reino Unido). A estas publicações poder-se-iam somar outras mais, que têm estado atentas à polémica entre as novas tendências e as tendências tradicionais, comparecendo aí a Accounting Business and Financial History (Reino Unido), a Accounting History (Austrália) e a Accounting Historians Journal (a primeira revista exclusivamente dedicada à História da Contabilidade), da Academy of Accounting Historians (desde sempre um bastião da História tradicional). Outro importante veículo de expressão para estes trabalhos, considerado um dos mais importantes eventos para a disciplina, é o Congresso Mundial de Historiadores de Contabilidade, que se realiza de quatro em quatro anos1. 1 O último Congresso realizou-se em Melboune (Austrália) em 2002 e contou com cinco comunicações de autores portugueses. O 10.º Congresso decorrerá em Saint Louis no Missouri e em Oxford no Mississippi, entre 1 e 5 de Agosto de 2004. RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág.188 _______________________________________________________________________________________ _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ Em Portugal tem-se vindo a assistir a uma progressiva consciencialização da necessidade de investigação direccionada ao passado da Contabilidade, existindo, desde 1996, uma entidade que se dedica exclusivamente ao estudo, pesquisa e divulgação da História da Contabilidade – o Centro de Estudos de História da Contabilidade da Associação Portuguesa de Técnicos de Contabilidade (APOTEC). São também em número significativo os jornais e revistas de Contabilidade que publicam, com frequência, artigos que incorporam matérias históricas, sendo de destacar, pela sua antiguidade e qualidade, a Revista de Contabilidade e Comércio, o Jornal de Contabilidade e o Jornal do Técnico de Contas e da Empresa. Trata-se de artigos que versam essencialmente sobre temáticas como a origem e a edificação da Contabilidade, o desenvolvimento das partidas dobradas, as instituições de Contabilidade, a História da Contabilidade em relação à História Económica, as teorias de importantes personalidades que se pressupõe terem liderado o desenvolvimento do pensamento contabilístico, a sua vida e obra, o contexto dos procedimentos contabilísticos e a profissão contabilística. A aplicação de perspectivas teóricas/sociológicas ao estudo da História da Contabilidade é, no caso português, ainda incipiente. Estes apontamentos de síntese, ao versarem sobre a historiografia de Contabilidade, pretendem contribuir, ainda que de forma modesta, para a caracterização do seu estado, para a consideração dos múltiplos e por vezes incompatíveis papéis atribuídos à investigação histórica, e para a análise das suas dimensões metodológicas fundamentais. Visa-se, assim, por um lado, dar a conhecer as possibilidades de pesquisa nesta área, por outro, anotar os tópicos de investigação e os estilos de escrita da história. Ao alertar para os principais traços que emergiram ou se continuam a desenvolver no terreno historiográfico, este trabalho procura ser um ensejo para os actuais estudiosos reflectirem sobre a situação da historiografia de Contabilidade em Portugal. Simultaneamente, pretende-se que funcione como alavanca motivadora para aqueles que, estando conscientes das oportunidades nesta área, permanecem relutantes em participar nela, quer por não dominarem os métodos de investigação histórica, quer por não se sentirem inteirados dos debates que se têm produzido no seu seio. Daí que comece por abordar a relevância dos estudos históricos na disciplina de Contabilidade para, em seguida, identificar as principais fontes de obtenção de informações relevantes sobre o passado da Contabilidade, as etapas de percurso no processo de investigação histórica e as áreas em que esta se poderá desenvolver. Por último, procura tipificar a recente abordagem ao estudo da História da Contabilidade, a que acima se aludiu como “Nova História da Contabilidade”, relacionando-a, nos seus contrastes argumentativos, com a “História da Contabilidade Tradicional”. _______________________________________________________________________________________RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág. 189 _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ 2. Justificações para a História da Contabilidade Muito antes da História da Contabilidade ter sido reconhecida como uma área académica digna de estudo, já a maioria dos antigos autores de Contabilidade recorria à longa história e às remotas origens da Contabilidade com o intuito de enaltecer o estatuto do que poderia de outro modo assemelhar-se a uma prática meramente técnica. Carnegie e Napier (1996, pp. e 9 ss.) identificam três propósitos que fundamentaram, ao longo dos tempos, a invocação do passado da Contabilidade, quer como uma actividade genérica, quer como uma prática específica tal como a escrituração por partidas dobradas. O primeiro inscreve-se no facto de, para os autores dos antigos tratados, a Contabilidade se traduzir numa forma de convencerem o seu público potencial do valor e da pertinência dos métodos que pretendiam divulgar e promover. A inclusão de uma breve história da Contabilidade em tais tratados conferia ao método das partidas dobradas um sabor a “final da história”. O segundo intuito relaciona-se com o enobrecimento do estatuto social daqueles que exerciam a actividade contabilística. Para as associações de profissionais emergentes, a história encarregar-se-ia de funcionar como contributo justificativo das suas pretensões de reconhecimento profissional. Um terceiro intento teria a ver com o facto de, para os académicos do princípio do século XX, permanecer titubeante a legitimidade da Contabilidade enquanto disciplina universitária. Daí que uma boa parte dos manuais de Contabilidade daquele período, nomeadamente os que eram destinados a ser utilizados nos novos cursos superiores de Contabilidade que surgiam nos EUA, incluísse uma introdução histórica que, apesar de concisa, tinha por função reivindicar a autoridade secular da prática contabilística. Alicerçados naqueles pressupostos foram publicados, nos finais do século XIX e princípios do século XX, os primeiros trabalhos dedicados à História da Contabilidade, tais como os de B. Worthington (1895) intitulado Professional Accountants e o de R. Brown (1905) denominado A History of Accounting and Accountants. Por essa altura começaram a ser concebidas as justificações para o estudo e escrita da História da Contabilidade tendo pontificado aí o paradigma da utilidade. Escrevendo no princípio de século XX (1904), C. W. Haskins, professor da Universidade de Nova Iorque, defendia que a História da RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág.190 _______________________________________________________________________________________ _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ Contabilidade permite-nos «melhor compreender o nosso presente e (...) prever ou controlar o nosso futuro» (Previts et al., 1990a, p. 1). Já em 1970, o relatório do Comité de História da Contabilidade da American Accounting Association (AAA) apresentava como fundamento para a História da Contabilidade as suas dimensões intelectual e utilitária (Carnegie e Napier, pp. 12-13): ¯ Intelectual por esclarecer o processo através do qual o pensamento, as práticas e as instituições de contabilidade se desenvolvem, identificando no ambiente os factores indutores de mudança e revelando como tal mudança ocorre de modo substantivo. Também por visar determinar o efeito no ambiente de modificações no pensamento, nas práticas e nas instituições de contabilidade. Finalmente, por contribuir para uma melhor compreensão da História económica e da História empresarial. ¯ Utilitária por esclarecer as origens dos conceitos, práticas e instituições da modernidade, produzindo conhecimento para a solução de problemas contabilísticos contemporâneos. A compreensão da interacção passada do ambiente e das modificações nas práticas e instituições de contabilidade facilitará a previsão das consequências das soluções actualmente propostas. O mesmo relatório (ibid.) acrescentava ainda que: «a história da contabilidade é digna de estudo porque coloca a contabilidade actualmente em perspectiva, e poderá possibilitar a utilização de dados do passado como solução para problemas do presente. É digna de ensino como parte da formação cultural geral dos futuros contabilistas, especialmente para enfatizar que “práticas actualmente aceites” da contabilidade não foram “imutáveis durante as décadas e séculos de transformações ambientais”». Convergente, ainda que mais recente, é a opinião de Previts et al. (1990a, p. 3), que ao aflorarem a questão da relevância histórica, argumentam-na como peça auxiliar da investigação contemporânea na elaboração de normas e de políticas contabilísticas, indispensável à familiarização dos contabilistas com os indivíduos, ideias, experiências e lições que constituem a sua herança, para além de contribuir para uma visão interdisciplinar da Contabilidade e para a sua contextualização. Nessa linha, e num outro artigo escrito em conjunto com Bricker (ap. Fleischman, Mills e Tyson, 1996, p. 60), Previts reconhece que «uma vantagem de conduzir uma investigação histórica em contabilidade é o _______________________________________________________________________________________RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág. 191 _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ desenvolvimento de perspectivas sobre problemas actuais; isto é, possuir informação relativa ao passado como pano de fundo para questões do presente». No Simpósio sobre História da Contabilidade, realizado no âmbito do 21.º Congresso Anual da European Accounting Association, que teve lugar em Bordéus em Maio de 1999, John Richard Edwards (ap. Hernández Esteve, 1999, p. 7) destacou quatro razões para a prática da História da Contabilidade, a saber: 1. Recreativas - por simples curiosidade ou prazer; 2. Intelectuais ou explicativas – por favorecer a compreensão do passado, esclarecendo a génese das práticas e dos problemas actuais; 3. Preditivas – por permitir estabelecer analogias, dotando de predicabilidade os acontecimentos futuros; 4. Resolução de problemas. A estas Hernández Esteve acrescentaria uma quinta, em resposta à recente incorporação de elementos e aspectos teóricos na investigação em História da Contabilidade: o uso da História da Contabilidade como verificador de teorias sociais e institucionais. A generalidade das justificações apontadas para o estudo da História da Contabilidade baseia-se numa concepção da Contabilidade que tem tido um nível de aceitação significativo e que a vê como essencialmente progressiva, ou, invocando a metáfora de A. C. Littleton (1933, ap. Carnegie e Napier, 1996, p.11), como «um esboço que o tempo está continuamente a aperfeiçoar». Trata-se de uma noção que encara a Contabilidade como uma actividade em permanente mutação, em resposta a exigências explícitas ou implícitas num ambiente em mudança, e onde as alusões à metáfora da sua evolução ou progresso são uma constante. Neste sentido, a utilidade da História da Contabilidade reside no contributo que o conhecimento do modo como foram solucionadas no passado as incongruências da Contabilidade com a sua envolvente poderá fornecer para a resolução de questões e problemas idênticos que se colocam no presente. Como deduzem Miller e O’Leary (1987, p. 236), «a imagem a colher é que a contabilidade, face a uma mudança ambiental esmagadora, pode emaranhar-se com o seu contexto em sentidos que são inevitáveis, e que pode até ser socialmente desejável». RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág.192 _______________________________________________________________________________________ _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ Embora o argumento utilitarista seja plausível, como justificação para a investigação histórica em Contabilidade, a verdade é que enfrenta, na actual era tecnológica e pós moderna, uma ameaça crescente. Com efeito, alegam os seus críticos (Hamerow, ap. Parker, 1996, p. 19) que, em virtude das transformações de que o mundo foi alvo, e dos perigos e dilemas globais com que se debate, as lições do passado já não se adequam às questões do presente, e que a história é demasiado fragmentada e incoerente para orientar a definição de políticas e o estabelecimento de normas. Acresce que a sua capacidade de previsão é limitada pela singularidade de cada evento, ou sequência de eventos, e pelas circunstâncias que os rodeiam, os quais são, praticamente, de impossível replicação. Daí que Parker questione (1999, pp. 20-21) o que poderá a História oferecer. Numa perspectiva utilitária o seu contributo pode ser encarado num dupla vertente: por um lado permite uma reflexão consciente sobre o que resultou ou não no passado e as razões subjacentes a sucessos e fracassos específicos, por outro fornece precedentes, probabilidades e alternativas, que, no entanto, continuarão a exigir por parte dos tomadores de decisão contemporâneos, discernimento, imaginação, sensibilidade e liderança. Numa perspectiva intelectual – já aflorada – a História fornece informação sobre os processos de mudança, não se podendo descurar o facto dela constituir uma apropriação da humanidade, o que por si só dispensa justificações, porquanto tal saber outorga às sociedades um sentido de identidade, criando elos de ligação entre tradição e modernidade, qual fio condutor de crenças e comportamentos que contribuem para a coesão social e profissional, fomentando a introspecção e o debate. 3 As fontes da História da Contabilidade Tradicionalmente, o conhecimento do passado da Contabilidade adquire-se através da análise de fontes que forneçam informação sobre a forma como este saber foi, ou poderia ter sido, utilizado. Essas fontes podem ser de dois tipos: primárias ou secundárias. As primeiras compreendem a herança documental manuscrita, ou seja, registos contabilísticos e empresariais originais, e as segundas a literatura contabilística, nomeadamente: tratados de Contabilidade e de escrituração e jornais e revistas técnicas de Contabilidade. Fontes primárias Os livros de contas e os documentos contabilísticos ou comerciais constituem a principal matéria prima do historiador, sendo decisivos na colheita de _______________________________________________________________________________________RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág. 193 _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ dados empíricos de suporte à estruturação teórica. De acordo com Napier (1989, pp. 240 e ss.), entre as informações passíveis de serem reveladas pela análise dos registos contabilísticos originais incluise a das técnicas de escrituração utilizadas pelas gerações anteriores. Os seus detalhes mais recônditos poderão testemunhar como se processou a difusão dos métodos práticos e esclarecer a relação entre os registos contabilísticos originais e os antigos tratados de contabilidade. Também a análise do objecto de estudo da Contabilidade, ou seja, aquilo que é alvo de contabilização, não deve ser negligenciada. O grau de detalhe em certas contas e o cuidado com que determinados erros são tratados podem fornecer indícios sobre os interesses daqueles que as prepararam. Por outro lado, a ausência de certas contas cuja presença parece intuitivamente óbvia pode sugerir diferentes objectivos para os registos contabilísticos estudados. Não menos relevantes são as informações relacionadas com as opções contabilísticas tomadas, mormente os critérios de valorimetria adoptados (consciente ou implicitamente), os conceitos de acréscimos, os critérios de reconhecimento dos proveitos, etc. Para que se possa extrair dos livros de contas o máximo de informação, com a melhor qualidade, a sua análise deve ser acompanhada da análise dos registos empresariais, entre os quais se contam documentos como: memorandos internos, correspondência, actas de reuniões (da administração ou da direcção) e relatórios. Estes poderão revelar a importância (ou possivelmente ignorância) atribuída às contas por aqueles que as preparavam e utilizavam. A descrição e análise dos aspectos técnicos da escrituração e do sistema contabilístico utilizado, da lista de contas e da sua movimentação devem, pois, ser complementadas com a descrição e análise das operações e dos negócios registados nos livros, do capital fixo e circulante, das fontes de financiamento utilizadas, das relações com outros comerciantes, enfim, com qualquer informação que aqueles possam fornecer respeitante ao comerciante/empresa à qual pertencem e também ao respectivo sector. Todas estas informações devem ser estudadas à luz das matrizes teóricas próprias da época analisada, sobre estas matérias, num exercício de História empresarial, financeira e económica (Hernández Esteve, 1997 e 1998). Os estudos histórico-contabilísticos baseados em fontes primárias podem restringir-se ao exame detalhado de uma única organização numa base longitudinal ou ser mais abrangentes, resultando do cruzamento de dados de várias empresas durante um período relativamente longo. O tipo de organização examinada (comercial ou industrial) pode variar consoante as RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág.194 _______________________________________________________________________________________ _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ problemáticas emergentes. Carnegie e Napier (1996, p. 19) dão como exemplo o recente interesse na história da Contabilidade industrial, que levou os investigadores a observar o interior das organizações industriais em conjunturas decisivas, tais como a revolução industrial, o aparecimento da produção em massa, a exigência de relato financeiro em sistemas de gestão e a introdução de novas tecnologias de produção. Estes estudos podem ainda dirigir-se a períodos de tempo específicos. A nível internacional, o século XIX é o que maior atenção tem despertado, em consequência do crescente interesse demonstrado em relação à Contabilidade industrial, bem como à Contabilidade financeira e à informação produzida pelas sociedades anónimas do sector privado da economia. Entre nós são praticamente insignificantes os estudos apoiados nos registos contabilísticos de outrora, o que, na opinião de Gonçalves da Silva (1995, p. 119) se explica pela «fraca importância que (...) sempre se atribuiu a esta espécie de documentos». Este desinteresse é ainda agravado pelo facto de «as escrituras comerciais do século XIX» terem sido « quase todas destruídas depois de expirados os prazos que os códigos comerciais fixavam para a sua conservação. Dos séculos anteriores, raras, raríssimas, são decerto, as escritas que ainda existem no todo ou em parte». O tempo, com a sua contínua erosão, pode ser apontado como uma das principais causas da aniquilação de tão valioso acervo, mas esta é também fruto da incúria dos homens. Quando constituíam propriedade de mercadores individuais, os registos contabilísticos eram guardados durante alguns anos pelos próprios ou pelas suas famílias, mas acabavam quase sempre por ser eliminados. Se pertencentes, ou sob a protecção de sociedades vitalícias, de companhias mercantis, de corpos eclesiásticos ou de grandes herdades, viam as suas probabilidades de sobrevivência aumentar substancialmente. Apesar de a entidade responsável pela arrecadação dos registos contabilísticos determinar sobremaneira as suas hipóteses de sobrevivência, esta também depende da sua forma. De acordo com Napier (1989, p. 240), os registos contabilísticos sob a forma de folhas presas (livros encadernados) têm mais hipóteses de sobrevivência do que as demonstrações em folhas soltas. Assim, os livros mais formais resistem, enquanto os memorandos, facturas e correspondência – os documentos base das transacções – e os balancetes, balanços e outras demonstrações contabilísticas – as peças finais da contabilidade – se perdem. De igual forma, os documentos financeiros (num sentido lato) têm tendência para subsistir, enquanto os documentos de _______________________________________________________________________________________RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág. 195 _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ gestão são destruídos. Perante as contingências apontadas, os investigadores cujo estudos dependem basicamente da análise de material depositado em arquivos históricos – públicos ou privados – devem ser prudentes nas suas ilações. Poderão confrontar-se apenas com aquela porção do passado que os actores históricos determinaram que estaria disponível ou que valia a pena preservar e, desta, apenas com aquela que sobreviveu à acção destruidora do tempo. Assim sendo, ao fazerem generalizações, devem ter sempre presente que os registos contabilísticos salvos para a posteridade são susceptíveis de revelar apenas uma imagem parcial do negócio a que pertencem e da época em que foi produzidos. Fontes secundárias As fontes secundárias, isto é, os livros de texto, as monografias e os artigos de jornais e revistas, constituem o produto da investigação de outrem. São diversos os autores que alertam para o perigo da utilização de fontes secundárias, sobretudo pela probabilidade de conterem erros ou ideias preconcebidas. Para ultrapassar esta barreira, o historiador que se socorra de fontes secundárias para idealizar as suas próprias histórias deve procurar informar-se do nível de conhecimento histórico do período, das suposições base daquele tempo, da personalidade do autor e das tendências historiográficas bem como das influências académicas que o levaram a defender uma determinada tese (Standford, 1987, ap. Fleischman et al., 1996b, p. 63) Ainda assim, o valor destas fontes não deve ser ignorado. As fontes secundárias constituem um precioso auxiliar na contextualização dos registos estudados, pelo que um conhecimento profundo das mesmas permitirá ao historiador concentrar-se nos designados “achados surpresa”, isto é, aqueles que divergem ou acrescentam algo às referidas fontes. Por último, coloca-se ainda a questão de saber se os materiais de investigação foram ou não transmitidos de modo consciente. Os materiais conscientemente transmitidos são itens que foram concebidos para uso por futuros estudiosos. Incluem-se nesta classificação as memórias pessoais, os debates dos corpos gerentes nos relatórios anuais publicados e as entrevistas gravadas. Os materiais inconscientemente transmitidos são provas que, em princípio, não se destinam a ser apreciadas por gerações futuras. Compreendem a maioria dos registos contabilísticos e empresariais, que por não terem sido elaborados com o propósito da publicação, acabam por RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág.196 _______________________________________________________________________________________ _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ transmitir uma história mais inteligível e, por vezes, dotada de maior veracidade. 4. As fases da investigação histórica Uma investigação histórica completa compreende duas etapas (Hernández Esteve, 2001): 1. Descritiva e analítica – de busca, descrição, análise e exposição ordenada dos factos e do seu contexto. A objectividade é, nesta fase, um requisito essencial. 2. Interpretativa ou explicativa – de interpretação ou explicação dos factos estudados e apresentados na fase anterior. Não requer a objectividade própria da exposição dos factos mas sim explicações plausíveis dos mesmos, devendo, para o efeito, ser coerentes e consistentes entre si. Em todo o processo reveste extrema importância a adequada separação entre o facto em si, tal como é conhecido, descrito e analisado e as opiniões e interpretações que se fazem dele. Isto significa o leitor deve poder separar claramente o conteúdo de cada fase e não só aferir do seu grau de fiabilidade, mas também fazer a sua interpretação dos factos, se assim o entender. Por outro lado, há que ter em consideração a existência de graves limitações intrínsecas, isto é, inerentes à própria natureza dos factos históricos, para o conhecimento dos mesmos. Essas limitações resumem-se a três (Hernández Esteve, 2001, p. 75): 1. O objecto de estudo do historiador não são os factos em si mas a representação que ele faz deles, representação que poderá ser percebida de forma variada por cada observador; 2. o estudo e conhecimento dos factos é dificultado pela distância temporal, ou seja, a representação que o historiador faz dos factos não foi percebida por si, mas sim reconstruída através de testemunhos históricos, não lhe oferecendo garantias de que reflicta os factos de forma completa, fiável, objectiva e verdadeira; 3. a representação indirecta que lhe chega dos factos está desprovida de contexto, atitudes e procedimentos do momento, enfim, do _______________________________________________________________________________________RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág. 197 _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ espírito da época, pelo que há que reconstruir este marco em que se desenvolvem os factos e que lhes confere a sua natureza, razão de ser, motivação e circunstância. Este insigne historiador (ibid., p. 74) alerta para o facto de existirem autores que consideram as fases assinaladas como formas diferentes de conduzir a investigação histórica em Contabilidade, ao invés de etapas de um mesmo processo de investigação. Neste sentido, adverte, há quem entenda que a sua missão termina com a busca, descrição e exposição dos factos, e há quem considere que a sua missão se centra na interpretação dos factos, independentemente de terem sido expostos por eles próprios ou de serem o produto do labor de outros historiadores. Previts, Parker e Coffman (1990a, p. 2), por exemplo, concebem duas formas fundamentais de conduzir a investigação histórica em Contabilidade – narrativa e interpretativa - e sublinham que aqueles que consideram a História menos valiosa se incapaz de analisar um fenómeno, mas apenas de o descrever, demonstram uma preferência pela História interpretativa. Deixando transparecer uma crítica ao que consideram ser a tendência de alguns colegas em construir narrativas isentas de poder explicativo, observam que os estudiosos que possuem alguma consciência histórica valorizam o contributo de ambas as Histórias para a compreensão de matérias complexas. Concomitantemente, os autores reconhecem as vantagens e limitações de cada um destes tipos de pesquisa histórica, salientando que «a história narrativa representa um esforço académico legítimo para acrescentar ao corpo de conhecimentos os rudimentos de feitos humanos passados por forma a dotar as temáticas contemporâneas de uma perspectiva mais completa. A história interpretativa realça os métodos de inquérito científico e o rigor a eles associado». A coexistência de duas formas distintas de abordar o trabalho histórico tem dado azo, segundo Hernández Esteve (2001, p. 74), a que expressão método narrativo tenha vindo a ser utilizada como sinónimo da primeira das duas fases assinaladas, isto é, da fase descritiva, quando este método consiste num relato por ordem cronológica no qual não só se expõem os factos mas também se apresenta a sua explicação ou interpretação. Esta forma de entender a investigação histórica é partilhada por uma boa parte dos “novos historiadores” que desconfia, em absoluto, da possibilidade de conhecer os factos tal como ocorreram, e por isso desvaloriza a importância da sua recolha e exposição. São estes mesmos historiadores que adoptam uma posição mais crítica em relação à narrativa. Não obstante, a narrativa é o método normalmente utilizado na exposição RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág.198 _______________________________________________________________________________________ _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ das investigações históricas, assumindo-se, de há muito, como a pedra angular deste tipo de escrita. A narrativa é o processo através do qual os historiadores constróem e comunicam o seu conhecimento do passado. Como assevera Parker (1999, p. 21), para grande parte desta comunidade a narrativa constitui «um meio de organizar eventos e de lhes dar coerência. Procura captar, representar e articular a vida tal como é vivida – uma sucessão de eventos que têm começos e fins». 5. As áreas de investigação da História da Contabilidade A classificação da investigação histórico-contabilística em áreas temáticas constituí um valioso instrumento de orientação não apenas para actuais investigadores mas para todos os interessados em dar os primeiros passos na História da Contabilidade. Num artigo publicado em 1990 na revista ABACUS, Previts, Parker e Coffman apresentam um interessante guia de classificação das matérias objecto de estudo histórico, ordenando-as da seguinte forma: Biografia, História institucional, História do pensamento contabilístico, História geral, História crítica, Bases de dados, cronologias, taxonomias e bibliografias, Historiografia. Para além desta existem outras classificações de interesse, como a proposta por Carnegie e Napier (1996), que sugerem as seguintes demarcações para classificar os temas e abordagens de investigação em História da Contabilidade: Estudos de registos contabilísticos de empresas, Uso de registos contabilísticos na História Empresarial, Biografia, Prosopografia, História institucional, Contabilidade do sector público, História da contabilidade internacional comparativa, Métodos de investigação em história da contabilidade inovadores. Os parágrafos seguintes tratarão de cada área, tendo por base a classificação de Previts, Parker e Coffman. Biografia Os esforços empreendidos nesta área têm subjacente a ideia de que «o crescimento de uma profissão é largamente o reflexo das suas grandes personalidades» (Peloubet, ap. Previts et al., 1990b, p. 137). _______________________________________________________________________________________RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág. 199 _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ O método biográfico constitui um precioso instrumento de reconstituição histórica das elites da Contabilidade e procura determinar a influência de indivíduos chave na formação dos princípios, das práticas e das instituições de contabilidade, através da revisão e análise de documentos originais como a sua correspondência pessoal, trabalhos publicados, discursos e outro material de arquivo - e da identificação dos principais factores influentes no seu pensamento - como o ambiente familiar, a educação e formação escolar, as instituições sociais, as ocupações, etc. É um estudo que se esteia nas singularidades individuais, em que o singular prevalece sobre o colectivo e o homem sobre a sociedade. A sua autenticidade apoia-se numa única fonte – o sujeito – podendo tornar-se “frágil”, apesar de empregar uma grande variedade de materiais primários e secundários. É no âmbito dos estudos biográficos que surgem os estudos prosopográficos, envolvendo a análise das características de um grupo, social ou profissional, de actores históricos através de um estudo colectivo das suas vidas. Mediante a detecção de propriedades como as origens sociais e familiares, percurso profissional, ligações políticas e religiosas e acumulação de riqueza do grupo é possível «definir o tipo social do profissional da Contabilidade e/ou caracterizar os diferentes tipos que frequentam o “mundo da contabilidade”» (Sousa, 1999, p. 365). Exemplos de biografias ou estudos/notas biográficos de contabilistas portugueses incluem os de Cabral de Mendonça (António Pires Caiado, 1998), Gonçalves da Silva (Rogério Fernandes Ferreira, 1990; Hernâni Carqueja, 2002), Jaime Lopes Amorim (Guilherme Rosa; Rogério Fernandes Ferreira, 1993), Martim Noel Monteiro (José Fernandes de Sousa, 1999; Hernâni Carqueja, 2003), Ricardo José de Sá (Hernâni Carqueja, 2000; Hernâni Carqueja, 2002), José António Sarmento (Hernâni Carqueja, 2003) e Afonso Pequito (Hernâni Carqueja, 2002). História do Pensamento Contabilístico A investigação na área do desenvolvimento do pensamento, tal como no campo do pensamento económico, procura identificar, articular e explicar o papel que os indivíduos, instituições e ideias desempenharam no desenvolvimento e na disseminação do conhecimento, com o objectivo de melhorar o entendimento do processo de ensino, da investigação e da prática RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág.200 _______________________________________________________________________________________ _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ de uma disciplina em resposta a alterações no ambiente (Previts, et al., 1990b, p. 140). Numa perspectiva contabilística, o potencial deste tipo de investigação reside na identificação das inter-relações entre indivíduos, tecnologia, conceitos e práticas legais e económicas e na demonstração das metamorfoses nelas provocadas ao longo dos tempos pelo desenvolvimento do conhecimento. Os trabalhos realizados na área do desenvolvimento do pensamento podem ser dirigidos para períodos ou circunstâncias específicos e podem ter como objecto de estudo conceitos contabilísticos, pretendendo-se neste caso definir o seu âmbito ou o que os justifica; e explicar a sua justificação e evolução. São exemplos de realizações nesta área trabalhos como: Doutrinas Contabilísticas, de Gonçalves da Silva (1959); A Escola do Porto e a Teoria da Contabilidade, de Hernâni Carqueja (1997); Antecedentes Históricos dos Princípios Contabilísticos, de António Paiva Martinho (2000); Evolução do Pensamento Contabilístico nos Séculos XV a XIX, de Maria da Conceição Marques (2000); Breve Histórico da Doutrina Neopatrimonialista, de Yumara Vasconcelos (2002); Resenha Histórica da Ciência Contabilística, de Teixeira da Silva (2001) e A Influência da Teoria Positiva de Dumarchey na Estruturação do Pensamento Contabilístico Português, de José Marques de Almeida e de Maria da Conceição Marques (2001). História Geral Esta área distingue-se da anterior porquanto adopta uma extensa perspectiva temporal, incidindo sobre temáticas como a prática num determinado país, o desenvolvimento da profissão contabilística duma nação ao longo dos séculos, ou a progressão de um sector da disciplina como a Contabilidade de custos (Previts et al., 1990b, p. 142). Como exemplos de trabalhos de autores portugueses, nesta linha, destacamse: Pequena História da Contabilidade, de Martim Noel Monteiro (1979); Bosquejo duma sucinta história da Contabilidade em Portugal, de Gonçalves da Silva (1983/4); Um contributo para a história da contabilidade em Portugal (Séculos XIV a XVII), de Armandino Rocha e Delfina Gomes (2002); A Contabilidade Pública em Portugal – Origens, de Manuel Benavente Rodrigues (2002) e Contabilidade, Capitalismo e Democracia, de Hernâni Carqueja (2003). _______________________________________________________________________________________RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág. 201 _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ História Institucional Investiga a experiência pretérita das instituições, entendendo-se por instituição tanto os organismos ou entidades, como as leis, costumes, profissão, organização ou outro ente instituído. A avaliação e análise do ambiente social e político das instituições constituem importantes dimensões neste tipo de estudos, que requerem a análise de registos, correspondência, memorandos, relatórios internos, minutas e audiências de comissões e conselhos (Previts et al., 1990b, p. 139). As histórias institucionais podem ser desenvolvidas por historiadores participantes ou não participantes, configurando o primeiro caso um autêntico exercício de evocação por parte do autor. O cuidado a ter com este tipo de estudos advém do facto do historiador ser um observador participante, podendo deixar-se influenciar por grupos dominantes e, assim, não alcançar o grau de distanciamento necessário relativamente aos acontecimentos e realizações que está a narrar, o que se materializa em relatos lisonjeiros e posições menos críticas. Acresce que os trabalhos desta natureza são geralmente patrocinados pela instituição objecto de estudo, o que torna mais remota a possibilidade de objectivação. À referida limitação, acresce a potencial “sobrevivência selectiva” de fontes de arquivo incompletas ou que não representam fidedignamente os registos originais. De facto, a insensibilidade e o descuido relativamente a estes documentos, que constituem a mais importante fonte da história de uma empresa, conduzem, frequentemente, ao seu incorrecto armazenamento, ao seu desaparecimento em trânsito ou ainda à sua destruição propositada. Em última instância, o historiador terá que recorrer aos trabalhadores que têm por hábito preservar a correspondência bem como qualquer documento e publicação interna da empresa. Os trabalhos divulgados em Portugal até ao momento, enquadráveis na categoria em epígrafe, dão ênfase às primeiras instituições de ensino da Contabilidade, à organização profissional dos contabilistas e ao aparecimento de publicações profissionais. São exemplos: A Aula do Comércio: Primeira Escola de Gestores em Portugal, de Fernando da Conceição Lopes (1992); Centenário (1902-2002) da Escola Prática Comercial Raul Dória, de Joaquim da Cunha Guimarães (2002); Aula do Comércio: Primeiro Estabelecimento de Ensino Técnico Profissional Oficialmente Criado no Mundo?, de Lúcia Rodrigues, Delfina Gomes e Russel Craig (2003); Extinção do Erário Régio em 1832, de Manuel Benavente Rodrigues (2000) e As Associações e as Revistas de Contabilidade, RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág.202 _______________________________________________________________________________________ _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ de Hernâni Carqueja (2002). História Crítica Na “História crítica”, a contabilidade é interpretada como uma actividade social e política em si mesma, reflectindo e influenciando, simultaneamente, os seus ambientes económico, institucional, político e social. A dimensão relacional sob a qual a contabilidade é perspectivada - como fenómeno reflectivo e como promotora de relações organizacionais e sociais – supõem o reconhecimento da capacidade da Contabilidade na modelação do seu ambiente ao invés de simplesmente o reflectir (Previts et al., 1990b, p. 143). Esta área será objecto de aprofundamento em ponto ulterior deste trabalho. Bases de dados – Cronologias, bibliografias e taxonomias Este tipo de investigação histórica tem por finalidade fornecer informação sobre fontes/referências, constituindo um repositório indispensável para posteriores investigações. O enquadramento social e económico dos fenómenos ou a interpretação ou explicação das principais influências e causas, modelos ou estruturas estão ausentes deste tipo de investigação, que procura disponibilizar informação descritiva sobre acontecimentos, datas, períodos, conjuntos de artigos, fontes, e publicações afins (Previts et al., 1990b, p. 144). São exemplos de bases de dados/resenhas bibliográficas publicadas na literatura técnica de Contabilidade portuguesa: Elementos para a História da Contabilidade, de Arnaldo Nunes (1933); Ensaio de Bibliografia Portuguesa de Contabilidade e Para a História da Contabilidade Pública em Portugal, de Rodrigo Everard Martins (1944 e 1963, respectivamente) e A Contabilidade e a História Económica, de Moses Bensabat Amzalak (1943). Historiografia A historiografia «é o estudo da escrita da história; inclui a teoria, a metodologia e o desenvolvimento da escrita histórica» (Previts et al., 1990b, p. 144). Conforme referem Goodman e Kruger (1988) (ibid.) «inclui o corpo de técnicas, teorias e princípios associados à investigação histórica. É uma forma de abordar dados e fontes, colocar questões e edificar teorias com base _______________________________________________________________________________________RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág. 203 _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ em evidências». À semelhança da Histórica crítica, é uma área que não tem merecido a devida atenção dos historiadores de Contabilidade portugueses. O artigo de maior relevo sobre esta temática é da autoria do historiador espanhol Esteban Hernández Esteve e intitula-se Historia de la Contabilidad: Pasado Rumbo al Futuro (1997). 6. As Novas Tendências da História da Contabilidade 6.1. As origens da “Nova História da Contabilidade” O aparecimento da “Nova História da Contabilidade” foi o acontecimento mais marcante no seio desta disciplina e a ele se deve grande parte do auge que ela hoje experimenta. De acordo com Hernández Esteve (1997, p. 615), a “Nova História da Contabilidade” teve como factores impulsionadores o aparecimento de uma abordagem alternativa de investigação contabilística - o chamado paradigma crítico - e a aceitação, gradual, das novas ideias epistemológicas e metodológicas introduzidas no seio da disciplina de História pelos partidários da construção de um novo modelo de investigação histórica, que destronasse e fizesse desaparecer os postulados seguidos pelos “historiadores tradicionais”. A sua génese formal inscreve-se na publicação, na revista Accounting, Organisations and Society, dos artigos “The Normative Origins of Positive Theories: Ideologies and Accounting Thought”, de Anthony M. Tinker, Barbara D. Merino e Marilyn Neimark, e “On Trying to Study Accounting in the Contexts in Which it Operates”, de Anthony G. Hopwood, em 1982 e 1983, respectivamente. A confirmação definitiva da sua existência ocorreria em 1991, aquando da publicação, na mesma revista, do artigo “The New Accounting History: An Introduction”, de Peter Miller, Trevor M. Hopper e Richard C. Laughlin (ibid., pp. 623-4). Os desenvolvimentos no domínio da História da Contabilidade estão intimamente relacionados com os acontecimentos verificados nos anos sessenta no seio da disciplina de História Geral, muito embora a rivalidade entre a “Nova” e a “Velha História” remonte a 1929, ano da publicação, em França, de “Annales d’Histoire: Economique et Sociale” por Lucien Febvre e RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág.204 _______________________________________________________________________________________ _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ Marc Bloch e por volta da mesma altura, em Inglaterra, da “Economic History Review”. De acordo com Peter Novick (ap. Miller et al., 1991, pp. 396-7), desde a década de 60 que a principal corrente da história americana se encontra num autêntico estado de turbilhão. Grande parte das mudanças que se verificam actualmente na História da Contabilidade, assolaram a profissão histórica americana durante cerca de três décadas. Nos anos 60 e 70, à medida que a noção de “progresso” se tornou alvo de contestação, a “questão da objectividade” passou a estar na ordem do dia em inúmeras disciplinas, incluindo a de História. As suas principais componentes, designadamente: ¯ o compromisso com a realidade do passado e com a verdade histórica inerente àquela realidade; ¯ uma nítida distinção entre conhecedor e conhecido, assim como entre factos e valores, história e ficção; ¯ uma noção de que os factos históricos são anteriores e independentes da interpretação; ¯ uma visão de que a verdade histórica é unitária ao invés de perspectiva (assente em várias perspectivas); ¯ em suma, a ideia de que se deve relatar o passado “tal como ele verdadeiramente aconteceu” (um projecto elaborado e implementado no final do século XIX e princípio do século XX), começaram a ser objecto de erosão em inúmeras frentes (Miller et al., ibid.). A partir da década de 1960 assistiu-se igualmente à emergência de novas formas de História que vieram desafiar a “História Tradicional” e que ficaram conhecidas por “Nova História Social”. Estas não rejeitavam os métodos da “História Tradicional”, apenas as suas conclusões, redireccionando o ênfase do político e do económico para o social, i.e., reconhecendo a existência de outras classes sociais para além das elites política e económica (Funnel, 1996, p. 42). O âmbito da História foi alargado, passando a comportar aspectos sociais, culturais e intelectuais. Embora a História da Contabilidade tenha percorrido uma trajectória de desenvolvimento semelhante, os estádios por que passou foram comprimidos _______________________________________________________________________________________RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág. 205 _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ e em alguns pontos sobrelevam na “Nova História da Contabilidade” com a presença de uma amálgama de diversos estilos de História que perseguem a “História contextualizada”, nos quais se incluem, entre outros, historiadores de Contabilidade como Christopher Napier (Universidade de Southampton), Trevor Hopper (Universidade de Manchester), Peter Armstrong (Universidade de Sheffield) e Anthony Hopwood (London School of Economics and Political Science). 6.2. Contabilidade Crítica e História da Contabilidade A ascensão da investigação “alternativa” ou centrada no paradigma crítico, ocorrida nas últimas décadas em resposta à hegemonia do paradigma positivista - assim chamado, segundo Hernández Esteve (1997), porque recorre a dados reais, positivos, perceptíveis de forma directa e objectiva constitui um dos traços mais surpreendentes e importantes da Contabilidade académica nos últimos anos. O paradigma crítico insere-se numa corrente que Mattessich designa “Behavioural and organizational accounting” e que Hernández Esteve (ibid., p. 613) traduz em espanhol como “Estudio de las conductas sociales relacionadas com la contabilidad y de ésta en tanto elemento de organizador e configurador de la sociedad”, não constituindo, portanto, “um estudo da contabilidade propriamente dita, mas das relações sociológicas que a contabilidade produz na sua envolvente”. Laughlin (1999, pp. 73-74), define Contabilidade crítica como «a interpretação crítica do papel, dos processos e práticas de contabilidade e da profissão contabilística no funcionamento da sociedade e das organizações com uma intenção de usar essa interpretação para empreender na mudança (quando apropriada) desses processos, práticas e da profissão». Segundo o autor, esta definição encerra as principais características da Contabilidade crítica: 1. a Contabilidade crítica é sempre contextual, o que significa que a Contabilidade é um fenómeno abrangente que não se dissocia de marcos políticos, sociais e económicos precisos, pelo que carece de ser interpretado neste contexto; 2. a interpretação tem sempre um objectivo que é, neste caso, o de possibilitar a realização de um processo de avaliação e subsequente mudança (quando apropriada); RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág.206 _______________________________________________________________________________________ _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ 3. a Contabilidade crítica preocupa-se com o funcionamento da profissão contabilística, das práticas e dos processos contabilísticos tanto ao nível macro da sociedade, do governo, normativo e profissional, como ao nível específico das instituições e das organizações; 4. a Contabilidade crítica requer “empréstimos intelectuais” de outras disciplinas (como destaque para a Sociologia, Antropologia, Economia, História da Ciência, Teoria das Organizações, ...) que lhe fornecem as perspectivas teóricas e metodológicas necessárias para a análise da multidimensionalidade dos fenómenos em questão. Os investigadores críticos utilizam como referência uma dentre várias perspectivas que se inspiram no pensamento de teóricos sociais como Foucault, Derrida e Latour (de nacionalidade francesa) e Marx, Adorno e Habermas (de nacionalidade alemã), não podendo as perspectivas utilizadas deixar de influenciar a selecção, análise e interpretação que aqueles fazem dos factos. Daí que, nos últimos anos, se tenha vindo a assistir a um crescente, interessante e acesso debate em torno dos teóricos cujo pensamento deve fazer parte do projecto crítico de Contabilidade e da forma como estas perspectivas devem coexistir e cooperar. Este florescimento de saber crítico estendeu-se à História da Contabilidade, assinalando o aparecimento da infelizmente (Laughlin, 1999, p. 74) ou proeminentemente (Fleischman et al., 1996, p. 66) denominada “Nova História da Contabilidade, que, como já foi assinalado, se caracteriza por «uma pluralização de metodologias» e um «leque heterogéneo de abordagens teóricas» (Miller et al, 1991). De acordo com Merino (1998), o recente interesse na investigação históricocontabilística, que foi rotulado de “Nova História”, espelha claramente o impulso que o pensamento crítico trouxe ao domínio da análise genética da disciplina, sendo actualmente encarado como uma fonte de oportunidades por uma parcela significativa dos historiadores de Contabilidade, que consideram a investigação histórica uma componente essencial da investigação crítica. Desenvolvendo-se essencialmente em dois domínios - a escrituração por partidas dobradas e as origens da Contabilidade de custos – este tipo de investigação «tem procurado questionar a legitimidade das instituições existentes, a distribuição de poder e o papel da contabilidade em sustentar e eternizar formas de discurso capitalista dominantes» (Funnel, 1996, p. 38) utilizando como referência um dos dois paradigmas predominantes – Marxista e Foucaultiano. _______________________________________________________________________________________RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág. 207 _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ A Perspectiva Marxista/Processo de Trabalho As histórias de Contabilidade de influência marxista baseiam-se no postulado de que a Contabilidade não é em si um elemento neutro ou passivo, mas uma poderosa ferramenta utilizada na luta de classes para apoiar e perpetuar o domínio capitalista (Hernández Esteve, 1997, p. 614; Merino, 1998, p. 611). Os historiadores contemporâneos que subscrevem este paradigma, embora mantendo o contacto com a visão Marxista de conflito de classes, alargaram o âmbito da sua investigação, por forma a incluir os suportes social, cultural e político que definem as relações industriais (Fleischman et. al., 1996, p. 326). Associada a esta perspectiva historiográfica surge a escola “Processo de Trabalho”, que representa uma actualização dos escritos de Marx aos novos estádios de desenvolvimento capitalista. Os teóricos pertencentes a esta tradição, entre os quais se incluem muitos Marxistas confessos, consideram que o poder se encontra embutido nas estruturas capitalistas. Críticos em relação às teorias Neoclássicas e Foucaultianas, que admitem a neutralidade da Contabilidade enquanto sistema de registo, os historiadores de Contabilidade marxistas defendem que a mesma oscila entre «um método “para apoiar grupos de interesse específicos” e uma “arma ideológica” na luta de classes pela distribuição da riqueza» (Tinker et al., 1982, 1991, ap. Fleischman et al., 1996, p. 327). O trabalho de Hopper e Armstrong (1991), que examina os mecanismos de controlo de trabalho americanos no final do séc. XIX, apresenta conclusões que dimanam desta abordagem. Nele, os autores argumentam persuasivamente que os desenvolvimentos da Contabilidade de custos se encontram arreigados em lutas que se centram no controlo dos processos de trabalho, relacionando-as quer com a destruição da subcontratação interna e do controlo da produção pelos praticantes do ofício nas fábricas primitivas, quer com outras técnicas correntes e ideologias de controlo – como sejam o advento da gestão científica, os acordos entre sectores trabalhistas e corporações, etc. Perspectiva Foucaultiana O filósofo francês Michel Foucault tornou-se a principal figura de referência para um grupo substancial de investigadores que defende que os primeiros desenvolvimentos da Contabilidade, nomeadamente de gestão, não são apenas um reflexo da ascensão do capitalismo ou da industrialização, da propriedade ou das estruturas organizacionais. Há que ponderar, segundo RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág.208 _______________________________________________________________________________________ _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ Stewart (1992, p. 61), que «a emergência e o funcionamento da contabilidade nos seus diversos contextos é um fenómeno complexo, devido à interacção de múltiplas influências». A atracção dos historiadores e teóricos de Contabilidade por Foucault prende-se com a possibilidade de aplicação à Contabilidade, quer da sua matriz analítica, quer do seu esquema teórico, aspectos que lhes permitem, respectivamente, abordar os temas investigados e problematizar e questionar a Contabilidade, afastando-os assim de uma visão unidimensional do seu desenvolvimento. O trabalho de Foucault pode ser dividido em duas etapas cronológicas (Stewart, 1992, p. 62): a primeira compreende uma serie de casos de estudo históricos que o teórico francês denomina de “arqueologias” e que respeitam às circunstâncias que conduziram ao aparecimento de uma multiplicidade de ciências humanas modernas; a segunda assenta na noção de “genealogia”. Nesta fase, Foucault mantêm o interesse pelas ciências humanas – pela arqueologia das estruturas do conhecimento - embora atribua maior importância ao papel estratégico destes conhecimentos em determinados campos da administração e da política públicas e, em particular, ao papel constitutivo que o poder desempenha na construção social do conhecimento. A abordagem genealógica, que analisa as inter-relações entre poder e conhecimento, constitui uma das principais contribuições de Foucault para a filosofia da História. Na perspectiva de Foucault, o poder é encarado, não como uma actividade de subjugação, repressiva, que tem como finalidade suprimir os interesses dos subordinados, mas como algo produtivo a supor a produção de conhecimento para o seu exercício, sendo assim possível conceber regimes de poder-conhecimento geradores de valores desejáveis para o bem comum, como sejam a motivação, a ordem e a regulamentação (Fleischman et al., 1996). O paradigma disciplinar estabelecido pelo “teórico do poder” - como lhe chamou Habermas - para relatar a história de instituições panópticas, como asilos, prisões, quartéis, escolas e outras parece ter verosimilhança com as metamorfoses no sistema fabril, pelo que tem sido amplamente utilizado na historiografia de Contabilidade de gestão. No entanto, de acordo com Fleischman et al. (ibid., p. 325), a maioria dos investigadores de Contabilidade que adopta a abordagem histórica de Foucault não está particularmente interessada nas origens da Contabilidade de custos per se, mas em conceitos tão gerais como os de poder e controlo e o seu _______________________________________________________________________________________RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág. 209 _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ desenvolvimento e manifestação no contexto da Contabilidade. As histórias de Contabilidade de inspiração “Foucaultiana” não constituem descrições neutras, objectivas, do passado da Contabilidade. Elas são sobretudo histórias do presente que, inserindo-se na tradição do pensamento crítico, procuram mostrar a Contabilidade como uma forma de “poder disciplinar” – e não de “poder soberano” - sendo este definido como aquele que “actua por meio de visibilidade geral” e que “permite vigiar sem ser visto”, i.e., o poder é exercido essencialmente através da observação (Stewart, 1992, p. 62). O sistema de Contabilidade de gestão, ao permitir observar o funcionamento da totalidade da organização e assegurar, de forma permanente, a vigilância e controlo do comportamento e do rendimento dos seus trabalhadores, proporciona aos Foucaultianos um exemplo patente de aplicação daquele paradigma ao contexto da Contabilidade (Hernández Esteve, 1997 e 1998). Nesta perspectiva, a Contabilidade deixa de ser um mero sistema de apoio à tomada de decisão ou ao controlo da gestão e passa a comportar uma nova dimensão: a de instrumento de vigilância. A análise das relações poder-conhecimento no contexto da História da Contabilidade foi desenvolvida por autores como Hoskin e Macve, Loft, Miller e O’Leary e Hopwood (ap. Fleischman et al., 1996; Napier, 1989; Stewart, 1992). Examinando a contabilidade de custos da empresa Springfield Armory, em meados do séc. XIX, Hoskin e Macve (1986,1988) (ap. Fleischman et al., 1996; Merino, 1998), ilustraram como ela constituía um poderoso instrumento para a gestão, ao criar novas categorias que tornavam visíveis as ineficiências dos indivíduos, e como era irrelevante para a tomada de decisão per se. Este novo tipo de “vigilância hierárquica” servia para transmitir aos trabalhadores a ideia de que todos os seus esforços produtivos se encontravam normalizados, sistematizados e escrutinados, ou seja, que a mão de obra era “calculável”. Miller e O’ Leary (1987), por seu turno, associaram o desenvolvimento das técnicas de custeio padrão e orçamentação, nos primeiros decénios do século XX, não a um avanço no refinamento e fiabilidade dos conceitos e técnicas contabilísticas, mas a uma forma da gestão efectivar o exercício do poder sobre o trabalhador enquanto indivíduo, criando assim uma entidade mais manobrável e eficiente, i.e., governável. 7. Aspectos Distintivos da “Nova História da Contabilidade” RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág.210 _______________________________________________________________________________________ _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ face à “História da Contabilidade Tradicional” O debate epistémico e metodológico dos últimos anos em torno da experiência humana em geral, que se estendeu à História da Contabilidade, manifestou-se na utilização de novas correntes historiográficas cujos enfoques redundam, invariavelmente, críticos em relação à “História Tradicional”. Estas críticas prendem-se essencialmente com questões ontológicas e epistemológicas, que levaram os novos historiadores de Contabilidade a rejeitar, a diversos níveis, as preocupações tradicionais, embora não necessariamente os métodos da prática histórica (Funnel, 1996, p. 41). As características distintivas da “Nova História da Contabilidade” foram sumariadas por diversos historiadores. Yannic Lemarchand (1994, ap. Hernández Esteve, 1997 e 1998) resume-as à perda de confiança na possibilidade de conseguir objectividade no estudo e descrição de acontecimentos históricos e ao abandono de uma espécie de “Darwinismo” historico-contabilístico, que consiste em acreditar que a Contabilidade, tal como outras actividades humanas, está sujeita a um processo mais ou menos linear de progresso contínuo, motivado pela necessidade de se adaptar às exigências da sua envolvente. Carnegie e Napier (1996, pp. 7-8), por seus turno, identificam como traços comuns do tratamento teórico-científico da “Nova História” os seguintes: ¯ Ênfase na importância de perceber a Contabilidade como uma prática social, entre muitas, e na necessidade de a interpretar no contexto em que opera como um fenómeno localizado no tempo e no espaço. Tal significa que a Contabilidade deve ser encarada como um instrumento de domínio e de poder e não como um corpo de ideias e técnicas sem valor, com carácter meramente probatório. ¯ Rejeição de uma visão “Whig” da História como a narrativa de um progresso inexorável do “primitivo” para o “sofisticado”, com o triunfo do presente a ocultar os fracassos do passado. Os “novos historiadores” revelam algum cepticismo em relação ao emprego de conceitos como os de “evolução”, “progresso” e “origens” nas suas análises. Simultaneamente, os autores adiantam que «nos seus escritos historiográficos, os “novos historiadores” têm tendência para construir uma caricatura “tradicionalista” que descontextualiza a contabilidade, que exalta _______________________________________________________________________________________RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág. 211 _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ o progresso denegrindo subtilmente o passado, que explica tudo por referência à economia neoclássica, que na pior das hipóteses envereda numa “caça ao tesouro” apenas para estabelecer o mais velho, o mais primitivo, o mais estranho, e que na melhor das hipóteses encara o passado unicamente pelo perspectiva do presente» (ibid., p. 8). Para Miller et al. (1991, p. 399), o principal aspecto distintivo da “Nova História da Contabilidade” reside «no seu foco nas mudanças verificadas nas formas de conhecimento ou perícia que caracterizam a Contabilidade num dado momento e num determinado contexto social, seja num cenário cultural nacional particular ou mais localizado (...) A história da contabilidade terá um impacto mais abrangente e vasto, na medida em que possa demonstrar como o aparecimento e o funcionamento da contabilidade, como um conhecimento, corpo de perícia ou saber perfeitamente distintivo é formado e transmitido com o potencial de moldar e transformar os tipos de relações sociais que nos cercam, seja isto numa empresa, quando visitamos um hospital ou o nosso médico de família, ou de uma forma geral, na vida pública». Seguindo a mesma linha de raciocínio, Napier (1989, p. 244) aponta como diferença basilar entre a “História Tradicional” e a “História da Contabilidade Contextualizada”, a mudança de foco da Contabilidade enquanto técnica, para a Contabilidade enquanto elemento constituinte e activo dos contextos social e organizacional. Estas concepções da História assumidas pelos “novos historiadores” levaram-nos a atribuir à “História Tradicional”, entre outros qualitativos, os de “a-histórica” ou “presentista”, “reducionista” e “antiquária”. A linha de pensamento que Napier (1989) caracterizou como “contextualização da Contabilidade” (introduzida por Hopwood em 1983) constitui a resposta dos “novos historiadores” à visão Whig e a-histórica em que se alicerça a maioria das histórias de Contabilidade tradicionais, onde o passado é encarado como uma sombra ou simulacro do presente. Baseia-se no princípio de que «uma verdadeira abordagem histórica ao estudo de qualquer disciplina significa inserir a disciplina no seu contexto» (Skinner, 1969, ap. Stewart, 1992, p. 58), o que envolve a conscientização de que os fenómenos não se geram isoladamente, mas que inserem num contexto que os explica e condiciona. Na esfera da História da Contabilidade, implica atribuir aos contextos social, político e ideológico da Contabilidade idêntica ou maior importância do que aos contextos económico e técnico, o que permitirá libertar o seu estudo dos «constrangimentos do presente» (Stewart, 1992, p. 58). Esta abordagem declina a visão de que a Contabilidade vive um RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág.212 _______________________________________________________________________________________ _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ processo de mudança, ou mesmo de aperfeiçoamento, motivado pela necessidade de se adaptar a diversas necessidades empresariais e organizacionais. Em detrimento das mudanças de cariz evolutivo, os “novos historiadores” preferem privilegiar as situações de quebra, de interrupção, de retrocesso (Lemarchand, ap. Hernández Esteve, 1997 e 1998). O processo de adaptação da Contabilidade às exigências da sua envolvente não é por eles considerado tão relevante como a forma como a Contabilidade ajudou e continua a ajudar a moldar os contornos de uma realidade social dinâmica, contribuindo assim para o fomento das transformações sociais que se vão operando no mundo. Sendo “a tentativa de compreender a Contabilidade no contexto em que actua” (Hopwood, 1983), apontada como um dos aspectos positivos da “Nova História da Contabilidade”, não é, todavia, exclusiva desta escola. Porém, os “novos historiadores” não hesitam em rotular a abordagem tradicional – conhecida por Neoclassicismo ou racionalismo económico - de “reducionista”, uma vez que considera apenas os contextos económico e técnico da Contabilidade, como se ela se “desenvolvesse”, “progredisse” e “transformasse” por forma a satisfazer somente as necessidades de informação racional dos tomadores de decisão como implícito nos modelos económicos. Por serem originários de um ambiente em que a Contabilidade é considerada uma tecnologia indispensável à racionalidade das decisões ou de uma área de formação onde sofreram uma forte exposição à teoria económica, i.e., Contabilidade ou Economia, os “historiadores tradicionais” entendem que o desenvolvimento da Contabilidade deve e pode ser explicado por referência às alterações no contexto económico, mormente as relacionadas com a necessidade economicista de reduzir os custos de transação ou incrementar a aderência entre a estratégia organizacional e as exigências ambientais. Os praticantes da “Nova História da Contabilidade”, porquanto encaram a Contabilidade predominantemente como um fenómeno cultural, e não como uma técnica ou ferramenta cujas características são neutras, senão benignas, preferem concentrar-se na estrutura e no emprego da informação contabilística para controlo e mesmo coerção, do que considerá-la um mero input num processo de tomada de decisão racional (Carnegie e Napier, 1996, pp. 15-16). Assim, imputam a sua evolução a outras causas concorrentes, tais como (Hernández Esteve, 1996, p. 62) o desenvolvimento do poder administrativo, a profissionalização da Contabilidade, o papel do Estado ou a normalização e consolidação das técnicas educativas. Acresce que a relevância da teoria económica na explicação de questões _______________________________________________________________________________________RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág. 213 _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ contabilísticas não é igualmente reconhecida pelo crescente número de historiadores originários de disciplinas tão variadas como a Sociologia, a Filosofia, a Psicologia e até a História, uma vez que começou a ser associada a uma abordagem metodológica específica - a abordagem “científica” ou “positiva”2. Como sugere Parker (1999, pp. 14-15), ao ficarem “presos” no modo “presentista/cientista”, os investigadores de Contabilidade e Gestão tornaram-se «peritos em estabelecer “cientificamente” respostas para “o que é” e em prever as consequências da confluência de variáveis rigorosamente definidas». A emergência de metodologias e perspectivas teóricas alternativas veio “libertá-los” daquela rigidez, permitindo-lhes abordar temáticas até então ignoradas, como sejam «a crítica às estruturas, estabelecimento de normas e códigos de ética da profissão contabilística; género na contabilidade; estratégia e divulgação social e ambiental; gestão do sector público e mudança contabilística; comunicação contabilística; contabilidade e gestão de sectores sem fins lucrativos; contabilidade, literatura e as artes, e muito mais». O diálogo entre “historiadores tradicionais” e “novos historiadores” centra-se com frequência naquele que é tido como o principal ponto de divergência entre as duas “correntes” - as respectivas posições em relação aos “factos” da História. Segundo Stanford (1987) (ap. Fleischman et al., 1996b., p. 61), os historiadores que encaram a História como uma sucessão de eventos tendem a adoptar uma visão positivista dos testemunhos3, presumindo que os factos falam claramente, que são inflexíveis e que podem ser conhecidos, pelo que devem ser acumulados até que toda a verdade e a interpretação correcta surja. Justamente por se preocupar excessivamente com os factos, ignorando que a sua acumulação, por si só, não fornecerá explicações adequadas de como e porquê as práticas contabilísticas se desenvolveram de determinada maneira (Miller e O’Leary, 1987), a “História Tradicional” vem sendo apelidada de “antiquária” (Funnel, 1996; Hernández Esteve, 1996; Stewart, 1992). O debate sobre a compilação de factos, que Stewart (1992, p. 59) reconhece não ser uma actividade neutra e indiscutível, não é recente, tendo as suas origens na literatura histórica. Carr (1964, ibid.) refere-se a «uma tensão entre o historiador e os factos da história. A tensão, por um lado, de deixar os 2 Esta abordagem tem como ponto forte a capacidade de ser testada contra dados empíricos e caracteriza--se pelos, por vezes sofisticados, testes estatísticos de hipóteses derivados de modelos contabilísticos essencialmente económicos cujo objectivo é prever e explicar a prática contabilística. 3 Os testemunhos podem definir-se como acontecimentos passados que ilustram ou explicam outros acontecimentos. RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág.214 _______________________________________________________________________________________ _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ factos falar por si e, por outro lado, a necessidade de oferecer alguma explicação do passado». Os “historiadores tradicionais” reivindicam extrair dos testemunhos os factos da história e deixar-se surpreender pela história que emerge desses factos. Esta pretensão levou os “novos historiadores” – que encaram a narrativa como um discurso com interesse, ao invés de desinteressante – a qualificar a “Historiografia Tradicional” de “neutra”, “desinteressante”, “factual” (Parker, 1999, p. 22). Inspirados no modelo das ciências sociais, cujo propósito é testar leis gerais por aplicação a eventos específicos, os “novos historiadores” reclamam que sejam os acontecimentos históricos a comprovar asserções estabelecidas a priori, i.e., usam o passado para compreender o presente. Nesse sentido, procuram (Parker, ibid.) «descodificar as mensagens latentes, até agora por desvendar nos relatos narrativos do passado» ao passo que, encaram «a verdade como sendo dependente da perspectiva teórica ou filosófica expressa ou implicitamente adoptada pelo historiador». Funnel (1996, 1998) aponta mesmo uma tendência por parte dos “novos historiadores” de Contabilidade para reexaminarem as narrativas históricas existentes através de paradigmas alternativos, com o intuito de demonstrarem que a partir do mesmo testemunho se podem obter conclusões diferentes, e para analisarem fontes primárias com o objectivo de construírem “contranarrativas” que controvertem as narrativas precedentes. O facto da “Nova História” admitir explicitamente a natureza “simulada” da História é identificado por Chua (1998, p. 618) como um dos principais aspectos que a diferencia da “História Tradicional”. Como sugere o autor (ibid.), apesar de terem há muito reconhecido a natureza incompleta dos arquivos históricos, o inevitável exercício de julgamento e privilégio interpretativo por parte do historiador, e a necessidade de se sujeitarem a essa subjectividade, os “historiadores tradicionais” alimentam eternamente a esperança de descobrir a verdade histórica nos factos documentados. Contrariamente, os “novos historiadores” consideram a verdade contingente, parcial, e tendem a escarnece-la como objecto do seu trabalho, pelo que, de acordo com Chua (ibid.), estão mais dispostos a eleger, em substituição da verdade com V maiúsculo, a noção de plausibilidade. A dissonância de opiniões entre “historiadores tradicionais” e “novos historiadores” no que concerne aos factos é ainda acentuada pelo que os “novos historiadores” designam de “selectividade” inerente descoberta dos factos e ao que alegam ser a desonestidade dos “historiadores tradicionais” ao disfarçar tal selectividade. Admitindo o seu cepticismo em relação aos factos, os “novos historiadores” defendem que o acto de escolher, dentre um _______________________________________________________________________________________RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág. 215 _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ vasto universo de candidatos, factos que entretanto já poderiam ter sido alvo de selecção por outros actores históricos, torna a História da Contabilidade parcial e enviesada e, logo, indigna de esforço (Funnel, 1996, pp. 48-9). Destarte salientam que os registos podem ser um instrumento de desigualdades, passível de favorecer apenas os interesses das elites dominantes. Bryer (1991) (ap. Funnel, 1996, p. 49) chega mesma a conjecturar que «em algumas circunstâncias pode ter havido uma tentativa continuada e deliberada de sanear o registo histórico através da destruição e selecção de documentos pelos descendentes das elites governantes». Neste caso, esclarece Funnel (ibid.) a parte do passado que não ficou registada é silenciada para sempre; é como se os não poderosos em tempo algum tivessem existido, jamais lhes será dada visibilidade. Pelos motivos expostos, existe uma maior prudência entre os “novos historiadores” relativamente à primazia dos registos primários, desde sempre o material de eleição dos “historiadores tradicionais”. No entanto, as divergências apontadas não eliminam o respeito que os adeptos de ambas as correntes possuem pela investigação em arquivos, preservando este tipo de investigação grande parte da sua lendária importância. Neste aspecto, a diferença basilar entre “historiadores tradicionais” e “novos historiadores”, é que, enquanto os primeiros entendem que a sua missão consiste na descoberta, descrição e exposição dos factos, os segundos atribuem pouca importância a esta fase da investigação, considerando que a sua missão se deve centrar na interpretação e investigação dos factos, independentemente destes terem sido investigados e expostos por eles próprios ou de terem sido produto do esforço de outros historiadores. 8. Conclusão Neste trabalho abordaram-se diversas questões atinentes à investigação do passado da Contabilidade, dando-se especial ênfase às características essenciais das principais correntes intervenientes no debate epistemológico e metodológico mantido no seio das disciplinas históricas em geral e recentemente propalado à História da Contabilidade. Tal alusão, juntamente com a identificação e revisão das áreas temáticas em que se decompõe a investigação histórica em Contabilidade, onde se apresentaram diversos exemplos seleccionados do contexto português, procurou revelar o enorme potencial e os desafios que a investigação nesta área do saber encerra e assim, quem sabe, avivar o interesse pela mesma ou nela envolver novos investigadores. RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág.216 _______________________________________________________________________________________ _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ Basta examinar o conteúdo das principais revistas da especialidade ou o programa de um congresso – nacional ou internacional – sobre esta temática, para comprovar a sua forte multidimensionalidade. A História da Contabilidade pode consubstanciar-se em “pura” História empresarial, na evolução da profissão contabilística e na sua progressiva institucionalização, na narração da vida e obra das elites da Contabilidade, na evolução de técnicas e conceitos contabilísticos específicos, no estudo da literatura contabilística do passado, na análise histórico-comparativa de práticas, normas, instituições e conceitos contabilísticos numa perspectiva internacional, na revisão de métodos inovadores de condução e interpretação da investigação histórica, etc. As novas abordagens ao estudo e escrita da “História da Contabilidade”, reunidas sob a designação de “Nova História da Contabilidade”, vieram acentuar a interdisciplinaridade deste campo do saber. Um numero substancial de “novos historiadores” de Contabilidade, na esteira da tradição do pensamento crítico, intenta agora examinar as genealogias dos discursos contabilísticos para evidenciar a sua mutabilidade em diferentes contextos sociais e organizacionais e o seu papel como armas ideológicas em lutas em torno da distribuição do rendimento e da riqueza (Tinker e Neimark, 1988). Outros, mais moderados ou mais desligados dos problemas da sociologia política, empregam teorias complexas (como a institucional, a da agência e outras) para interpretar os acontecimentos que investigam (Hernández Esteve, 2001). A introdução de paradigmas explanatórios alternativos na História da Contabilidade não tem sido pacífica, o que se constata pela rivalidade existente entre os partidários das denominadas “História da Contabilidade Tradicional” e “Nova História da Contabilidade”, ou, até, entre os que subscrevem diferentes paradigmas pertencentes à mesma “corrente” (Foucaultinos e Marxistas). O debate epistemológico e metodológico a que se vem assistindo teve, no entanto, o mérito de revigorar e de engrandecer a Historiografia de Contabilidade, revelando-lhe horizontes ainda não explorados. Simultaneamente, obrigou os investigadores a reconsiderar noções e práticas instituídas, necessitadas de alguma reflexão, incitando-os a adoptar atitudes mais interpretativas aquando das suas investigações. Pelos motivos traçados, e em conformidade com Hernández Esteve (1998 e 2001), os postulados da “Nova História da Contabilidade” devem ser encarados numa óptica de complementaridade e de enriquecimento dos velhos padrões e não como uma abordagem revolucionária que, buscando a superioridade intelectual, procura rebaixar as realizações e métodos da “História da Contabilidade Tradicional” - ainda que seja esse o espírito que anima alguns adeptos mais radicais. Nesta linha de raciocínio, deverá ser _______________________________________________________________________________________RCC Vol. LX - n.º 237 – Pág. 217 _______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________ respeitado qualquer trabalho que apresente novos factos, mesmo que apenas os apresente e descreva, ou pelo contrário, somente interprete factos expostos anteriormente, e não interpretados, ou interpretados de maneira distinta. Nenhum trabalho deverá ser rejeitado ou considerado incompleto, mesmo que não ofereça as interpretações, contextualizações e avaliações teóricas desejadas. Se possuir qualidade e rigor científicos, a sua análise poderá vir depois, do próprio ou de outro autor; o que é relevante é que os factos tenham sido resgatados do esquecimento e que estejam ao dispor da comunidade de historiadores de Contabilidade. 9. 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