1 Presente Histórico: o antigo e o novo na obra de Lina Bo Bardi

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1 Presente Histórico: o antigo e o novo na obra de Lina Bo Bardi
Presente Histórico: o antigo e o novo na obra de Lina Bo Bardi
Ana Paula Maciel
Mestranda do NPGAU/UFMG e bolsista da Capes-Prof. Graduada em Arquitetura e Urbanismo no ano de 2006 pela UFU
– Universidade Federal de Uberlândia.
[email protected]
Fernanda Ghirotto Garcia
Arquiteta e urbanista formada pela PUC-MINAS em 2007. Atualmente desenvolve atividades na área de requalificação
urbana e patrimônio cultural.
Ma Angélica M. Q. Magalhães
Formada em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade Metodista Integrada Izabela Hendrix (FAMIH) em 1990 e pósgraduada em Gerenciamento de Projetos pela FGV em 2005.Trabalha com projetos arquitetônicos residenciais e
comerciais e legalização imobiliária.
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Presente Histórico: o antigo e o novo na obra de Lina Bo Bardi
Resumo
O Presente Histórico é uma formulação da arquiteta Lina Bo Bardi que permeou todo seu trabalho com
especial ênfase às obras de reabilitação de antigas construções. Próxima à crença na inexistência de uma
narrativa canônica, a arquiteta propõe uma “liberação das amarras” - entendendo que sua ação não deve se
dirigir a manter o bem intocado, ou a permanecer com sua suposta matéria original, ou ainda sua idealizada
verdade histórica (CARSALADE, 2007b), Lina Bo distancia-se do ideal albertiano que define a obra íntegra
como “um objeto do qual nada se pode acrescentar, retirar ou alterar sem torná-la pior” (ALBERTI, 1996).
Como modelo da postura adotada pela arquiteta frente às intervenções em edifícios pré-existentes é tomado
o emblemático projeto para a Fábrica da Pompéia (1977-1986), onde exploramos o distanciamento de Lina
de um pensamento escultórico do fazer arquitetônico, a integração do antigo e do novo sem falseamento e
seu entendimento da arquitetura como “ato coletivo”, distante da prancheta e próxima à construção.
Num segundo momento, é proposta uma “reflexão sobre a situação atual do legado arquitetônico de Lina Bo
Bardi e sua inserção na dinâmica contemporânea da cidade” 1. Para tanto, procedemos à análise do projeto
de reabilitação elaborado para a Igreja Espírito Santo do Cerrado (1976-1982), na cidade mineira de
Uberlândia, que receberá, neste ano de 2009, intervenção pelas mãos dos dois arquitetos parceiros de Lina
– André Vainer e Marcelo Ferraz2.
Como ponto de partida é colocado o histórico da execução da igreja, a tipologia não usual do projeto
proposto por Lina, seu entendimento acerca da religião e o trabalho em conjunto com a comunidade pobre
da lugar. Além disso, são abordados os conflitos que rondaram seu processo de tombamento, em 1997, e o
novo perfil dos habitantes do bairro que agregaram novos significados à construção.
Interpretando o novo presente forjado, os arquitetos Vainer e Ferraz nos trazem, a proposta de uma
intervenção na igreja que idealizaram a priori junto a Lina. Um projeto sensível ao presente, num exercício de
juízo crítico sobre a pré-existência onde as categorias de permanência e modificação não são entendidas
como oposição.
Como conclusão da abordagem é proposta uma aproximação entre os dois projetos percorridos de onde são
extraídas algumas reflexões - constatar que a Pompéia e a Igreja do Espírito Santo são patrimônio cultural
envolve reconhecer que a preservação de seus espaços não foi feita, no caso da primeira e nem o será para
a segunda, apenas para salvar uma edificação do passado, mas, também, para re-significar essa
construção, adequando-a às novas formas de utilização e atribuindo-lhe novos significados. O ato de
transformar o espaço de um equipamento consagrado à produção econômica em outro, dedicado à produção
cultural e a contemplação das novas demandas de uso de um espaço espiritual são “atitudes arquitetônicas”
que não devem ser entendidas com um olhar condescendente, mas sim com vistas a um tempo que
pertence à humanidade, ainda vivo, que permita forjar um presente verdadeiro, histórico.
Palavras Chave
presente histórico, Fábrica da Pompéia, Igreja Espírito Santo do Cerrado.
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Tomamos como empréstimo o trecho do texto de apresentação do evento por sua proximidade com nossa proposta motriz para o
presente artigo – fazer uma reflexão crítica acerca do processo de intervenção de Lina Bo em edifícios pré-existentes e sua proximidade
ou distanciamento em relação às intervenções que seu legado arquitetônico recebem contemporaneamente.
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Colocamos aqui nossos especiais agradecimentos aos dois arquitetos que nos cederam gentilmente o material para a análise.
2
Historical Present: the old and the new in Lina Bo Bardi’s work
Abstract
The Historical Present is a formulation by the architect Lina Bo Bardi which permeated her entire work with
special emphasis to the works in the rehabilitation of old buildings. Close to the belief in the existence of a
canonical narrative, the architect suggests a "liberation of the moorings" - understanding that her action must
not direct itself to keeping the property untouched, or maintaining its supposed original matter, or yet its
idealized historical truth (CARSALADE, 2007b), Lina Bo distances herself from the albertan ideal that defines
the entire work as "an object from which nothing can be added, retired or altered without making it worse"
(ALBERTI, 1996).
As a model of the stance adopted by the architect regarding the interventions in pre-existent buildings, one
takes the emblematic project for the Pompey Factory (1977-1986), where we explore Lina's distancing from a
sculptural thinking of the architectural handling, the integration between the old and the new without distortion
and her understanding of the architecture as a "collective act", distant from the clipboard and close to the
building itself.
In a second moment, a "reflection about the present situation of Lina Bo Bardi's architectonical legacy and its
insertion in the contemporary dynamic of the city" is proposed. For this, we proceed to the analysis of the
rehabilitation project elaborated for the Espírito Santo do Cerrado church (1979 - 1982), in the Minas Gerais
city of Uberlândia, which will receive, in this year of 2009, intervention by the hands of Lina's architect
partners André Vainer and Marcelo Ferraz.
As a starting point, one places the historical of the execution of the church, the unusual typology of Lina's
suggested project, her understanding about religion and the work together with the poor community of the
place. Besides that, the conflicts that prowled its toppling process, in 1997, and the new profile of the
inhabitants of the neighborhood that added new meanings to the building, are addressed.
Interpreting the new forged present, the architects Vainer and Ferraz bring us the proposal of an intervention
in the church that they idealized firstly together with Lina. A project that is sensitive to the present, in an
exercise of critical appreciation about the pre-existence where the categories of permanence and modification
are not understood as an opposition.
As a conclusion of the approach, an approximation between the two analyzed projects is proposed, from
which are extracted some reflections - to note that Pompey and the Espírito Santo Church are cultural
property involves recognizing that the preservation of their spaces has not been done, in the case of the first,
and will not be done for the second, only to save an edification from the past but, also, to resignify this
building, adapting it to the new ways of usage and giving it new meanings. The act of transforming the space
from an equipment directed to the economical production into another, dedicated to the cultural production
and the contemplation of the new demands for usage of a spiritual space are "architectonical attitudes" that
must not be understood with a condescending look, but with eyes to a time that belongs to humanity, still
alive, which permits to forge a true and historical present.
Keywords
historical present, Pompey Factory, Espírito Santo do Cerrado Church.
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Presente Histórico: o antigo e o novo na obra de Lina Bo Bardi
Libertando-se das amarras: a verdade relativizada
É preciso se liberar das ‘amarras’, não jogar fora simplesmente o passado e toda a
sua história; o que é preciso é considerar o passado como presente histórico. O
passado, visto como presente histórico, é ainda vivo, é um presente que ajuda a
evitar as arapucas... Frente ao presente histórico, nossa tarefa é forjar outro
presente, ‘verdadeiro’, e para isso não é necessário um conhecimento profundo de
especialista, mas uma capacidade de entender historicamente o passado, saber
distinguir o que irá servir para novas situações de hoje que se apresentam a vocês e
tudo isso não se aprende somente nos livros. [...] Na prática, não existe o passado, o
que existe é o presente histórico (Lina Bo Bardi apud MIRANDA, 1999).
De acordo com o historiador francês Paul Veyne (FOURNIER, 2009, p.10), estudioso da produção
de Foucault, este filósofo demonstrou em seu trabalho que as convicções, por mais fortes que
possam ser, devem ser analisadas dentro de seus contextos, entendendo-se, por conseguinte, a
historicidade de todas as verdades. Partindo dessa reflexão, o historiador vai ainda além, ao
postular que a história não demonstra nada e não permite tirar lições eternas. Com essa afirmação,
Veyne põe em questão o estatuto da verdade abrindo caminho para o foco no qual este artigo
pretende se ater: o presente histórico na obra de Lina Bo Bardi.
Numa formulação que permeou todo seu trabalho e próxima à crença na inexistência de uma
narrativa canônica, Lina Bo, propõe uma “liberação das amarras” colocando-se numa posição que
configura um outro caminho onde seu juízo crítico sobre a pré-existência rompe com a idéia de
oposição entre as categorias de permanência e modificação. De acordo com a arquiteta romana, o
presente histórico guardaria do passado algo de vivo ao qual a ação, no tempo presente, teria a
possibilidade de conferir uma nova interpretação ou, retornando a Veyne, uma nova e também
“verdadeira verdade”.
Nesse sentido, o presente histórico é o presente que traz raízes e memórias não sendo, contudo,
passado, pois ninguém vive em tempos já remotos, da mesma forma que é impossível se habitar o
futuro (OLIVEIRA2, 2007). Dessa maneira, Lina retira de seu vocabulário o termo “renovação”, uma
“mania” – ou melhor dizendo, “retromania”, que segundo a arquiteta, jamais encontraria lugar em
sua postura de intervenção frente à pré-existências (GONÇALVES FILHO, 1999).
Entendendo que sua ação não deve se dirigir a manter o bem intocado, ou a permanecer com sua
suposta matéria original, ou ainda sua idealizada verdade histórica (CARSALADE, 2007b), Lina Bo
distancia-se do ideal albertiano que define a obra íntegra como “um objeto do qual nada se pode
acrescentar, retirar ou alterar sem torná-la pior” (ALBERTI, 1996), também definida por Kapp
(2006, p.8) como “um objeto que tem certa logicidade própria, ainda que ela não seja a mesma do
mundo empírico exterior à obra”. Na ação da arquiteta, não há lugar para se reinvindicar uma
beleza - ou uma verdade - que nunca houve; não há lugar para a autonomia de um passado
congelado que se faz heterônomo no presente.
Não se trata, entretanto, de uma ação deliberada frente ao existente, na verdade, a arquiteta,
novamente na contramão de Alberti, reaproxima a arquitetura da construção distanciando-a, assim,
da condição de bem escultórico - objeto de um campo autônomo. Em Lina Bo, não há a formulação
de uma estética3 a priori e tampouco, o belo é colocado numa esfera; em Lina, não há arquitetura
para além da vida comum - é justamente a presença humana que fornece o substrato a cada
3 Sobre o conceito dominante da estética moderna ocidental como “sentimento, genialidade, originalidade e imaginação criativa” e sobre
a acepção da arquitetura como “obra extraordinária”, ver Paul Oskar Kristeller - The Modern System of the Arts: A Study in the History of
Aesthetics.
Disponível em: <http://www.compilerpress.atfreeweb.com/Anno%20Krislteler%20Modern%201.htm>
4
intervenção; o edifício, já consolidado no tecido urbano, é um reservatório de vida, testemunho do
trabalho dos homens e da solidariedade transmitida entre eles (BIERRENBACH, 2007, p. 22).
Aqui, verifica-se também, um distanciamento da maneira brandiana4 de se encarar a intervenção.
Em direção oposta ao restauro de Brandi, cujo estatuto preserva o extraordinário e excepcional,
Lina valora o ordinário, o presente que se desenrola no cotidiano e uma história, cuja verdade é o
hoje. Sua preocupação não reside na arquitetura como expressão congelada de um tempo que
passou; Lina não entende a autonomia de sua produção e, para a arquitetura que não é somente
imagem materializada por um gênio criador, a “ação restauradora” com privilégio da instância
estética-artística tem seu sentido desintegrado.
Apesar de conhecedora das cartas patrimoniais5, Lina excluía a possibilidade da existência de uma
única e definitiva interpretação dos fatos passados e presentes ou, com mais precisão, de um
modelo de intervenção abrangente6, não somente com relação à problemática de bens préexistentes como também para um todo da ação arquitetônica. Sua arquitetura resulta assim, numa
produção circunstanciada, vinculada ao momento e suas contingências, não sendo jamais fruto de
vontades formais apriorísticas. Na obra de Lina, a forma é resultado, e não ponto de partida. Sua
“idéia forte aparece como um catalisador das interpretações e decisões parciais tomadas a
respeito dos aspectos fundamentais de qualquer projeto: o programa, a construção e o lugar”7
(MAHFUZ, 1991).
Distante, desse modo, dum pensamento de status artístico ou autônomo8 do objeto arquitetônico,
Lina Bo Bardi nos deixa como herança uma arquitetura que, nas palavras de Darcy Ribeiro, é
semente9 ou segundo Mafhuz, antídoto “para a tendência atual em que a figuração mimética ou a
complicação formal são frequentemente marcas de um pensamento esquemático e redutor”
(MAHFUZ, 1991)
A seguir, percorreremos duas de suas arquiteturas: o emblemático Sesc Fábrica da Pompéia
(1977-1986) - intervenção em uma antiga fábrica de tambores -, em São Paulo, e a Igreja Espírito
Santo do Cerrado (1976-1982), na cidade mineira de Uberlândia, que receberá, neste ano de 2009,
4
“Se as condições da obra de arte forem tais a ponto de exigirem sacrifício de uma parte da sua consistência material, o sacrifício, ou,
de qualquer modo, a intervenção, deverá concluir-se segundo aquilo que exige a instância estética. E será essa instância, a primeira em
qualquer caso, porque a singularidade da obra de arte em relação aos outros produtos humanos não depende da sua consistência
material e tampouco da sua dúplice historicidade, mas da sua artisticidade, donde se ela perder-se, não restará nada além de seu
resíduo.” (BRANDI, 2004, p.32).
5
De acordo com Marcelo Ferraz em entrevista à Raíssa de Oliveira: “Lina tinha formação e sabia o que era restauro científico ou Carta
de Veneza. Ela tinha estudado com Giovannoni e podia dizer isso com convicção. Era uma forma de dizer ‘alto lá, olha com quem vocês
estão falando!’. Ela tinha conhecimento e impunha respeito. Nesse sentido ela usava a Carta de Veneza. Como é uma carta de
princípios a ser aplicada em infintas situações, ela se torna flexível e permite que você dê sua interpretação.”
6
“Parecia-nos que os métodos científicos não conseguiam abarcar a problemática da preservação e que o largo espaço de
subjetividade com que muitas vezes a matéria era tratada subjazia muito mais nos gostos e convicções pessoais do que fundamentados
em uma reflexão teórico-crítica mais profunda.” (CARSALADE, 2007a, p. 21).
7
De acordo com Mahfuz (1991), “esses conceitos sempre aparecem como idéias de ordem ou estruturas formais, ao contrário de muitos
casos atuais em que algo alheio à arquitetura é introduzido no processo de projeto com autoridade suficiente para controlá-lo. Eu
arriscaria dizer que é exatamente a falta dessa capacidade de entender a forma como síntese de programa, construção e lugar um dos
fatores determinantes da baixa qualidade da nossa arquitetura recente”.
8
De acordo com Kapp (2006, p.9): “Nos últimos cinqüenta anos, muitos arquitetos entenderam a autonomia como liberdade de produzir
objetos belos ou instigantes mesmo que em detrimento de exigências da técnica ou do uso. Uma vez que em outras artes tradicionais,
como a pintura, a música ou a poesia, autonomia designa convencionalmente a emancipação do culto e da utilidade, pensa-se também
uma suposta autonomia arquitetônica como independência, ainda que problemática, em relação às demandas externas que dão origem
às construções”.
9
“Vivo minha vida aprendendo sem parar, às vezes dói, às vezes encanta. Nunca me lembro de, num pedaço de tarde ter aprendido
tanto. O Brasil precisa ver este Centro de Lazer, que é uma árvore, para fazer dele semente” – Inscrição de Darcy Ribeiro no livro de
visitas do SESC Fábrica da Pompéia, São Paulo, 17 de abril de 1983 – transcrita na contracapa da publicação especial “Cidadela da
Liberdade” (INSTITUTO LINA BO E P. M. BARDI, 1999).
5
intervenção pelas mãos dos dois arquitetos parceiros de Lina (em ambos os projetos citados) –
André Vainer e Marcelo Ferraz.
Numa velha fábrica de tambores:
longe da escultura, perto da construção
O projeto para a Fábrica da Pompéia foi encomendado pelo SESC10, com o objetivo de construir
um centro comunitário, cultural e esportivo para os trabalhadores do comércio em São Paulo.
Possuindo como ponto de partida uma fábrica de tambores abandonada em um terreno11 com
cerca de 16.500m2 de área, o empreendimento tornou-se uma das obras de maior envergadura da
carreira de Lina Bo.
O projeto da arquiteta e equipe optou por manter a antiga fábrica, ao contrário do que ocorreu com
a maioria das que se encontravam nessa zona da cidade e que foram demolidas. A fábrica de
tambores metálicos e, mais tarde, de geladeiras era um dos poucos marcos que restavam do
período de expansão capitalista e industrial ocorrido em princípios do século XX em todo o país e,
por isso mesmo, considerada por Lina um documento histórico. Além disso, não só o edifício
deveria ser preservado, mas também o ambiente de convívio espontâneo que ali se manifestava
(OLIVEIRA1, 2006a, p. 203):
Entrando pela primeira vez na então abandonada Fábrica de Tambores da Pompéia,
em 76, o que me despertou curiosidade, em vista de uma eventual recuperação para
transformar o local num centro de lazer, foram aqueles galpões distribuídos
racionalmente conforme os projetos ingleses do começo da industrialização
européia, nos meados do século XIX. Todavia, o que me encantou foi a elegante e
precursora estrutura de concreto. Lembrando cordialmente o pioneiro Hennebique,
pensei logo no dever de conservar a obra. Foi assim o primeiro encontro com aquela
arquitetura que me causou tantas histórias, sendo conseqüência natural ter sido um
trabalho apaixonante. Na segunda vez que lá estive, um sábado, o ambiente era
outro: não mais a elegante e solitária estrutura Hennebiqueana, mas um público
alegre de crianças, mães, pais, anciãos passava de um pavilhão a outro. Crianças
corriam jovens jogavam futebol debaixo da chuva que caia dos telhados rachados,
rindo com os chutes da bola na água. As mães preparavam churrasquinhos e
sanduíches na entrada da Rua Clélia; um teatrinho de bonecos funcionava perto da
mesma, cheio de crianças. Pensei: isto tudo deve continuar assim, com toda esta
alegria. Voltei muitas vezes, aos sábados e domingos, até fixar claramente aquelas
alegres cenas populares. (OLIVEIRA1, 2006a, p. 203).
Registradas todas as pré-existências encontradas a arquiteta procedeu à reabilitação dos
pavilhões da antiga fábrica e à construção do novo centro. Com o objetivo de buscar sua essência,
na primeira etapa do projeto (1977-1982), a estrutura fabril é desnudada com a retirada dos
rebocos e a aplicação de jatos de areia nas paredes, a pavimentação em paralelepípedo da rua
interna, as telhas cerâmicas da cobertura em shed e as grandes portas de entrada são
recuperadas e os antigos tambores transformados em lixeiras (OLIVEIRA1, 2006a, p.206).
Entre 1982 e 1986, numa segunda etapa do projeto, são construídas três torres em concreto
aparente, sendo uma o bloco das quadras com suas janelas-buracos, a outra mais comprida e
estreita de circulação vertical e vestiários com janelas quadradas salpicadas na fachada e uma
terceira, cilíndrica que se destaca pelo seu “rendado” exterior. As torres das quadras e da
10
SESC/ Serviço Social do Comércio
11
“O terreno pertencia à firma alemã Mauser & Cia que em 1938 construiu a fábrica com uma tipologia industrial de final do século XIX
fundamentada em projetos ingleses e que foi muito comumente utilizada no começo da industrialização brasileira. Os galpões que Lina
encontrou, possuíam uma estrutura simples e rigorosa, moldada pelo francês François Hennebique, um dos pioneiros do concreto
armado, com detalhes tipicamente ingleses, como a utilização de tijolos aparentes e rebocados, simetria de planos e sheds para a
3
iluminação zenital” (OLIVEIRA , 2007, p.16-17).
6
circulação vertical são interligadas através de passarelas de concreto protendido. Estes elementos
passam por cima do córrego das Águas Pretas - uma galeria de águas pluviais que era uma
condicionante non aedificandi do projeto e que foi transformado por Lina em um deck de madeira
utilizado como solarium. Com as novas torres, a arquiteta resgata a escala fabril, a caixa d’água
cilíndrica recupera simbolicamente a imagem da chaminé que lança flores, em um apito que ao
invés de chamar para o trabalho convida a uma viagem lúdica numa subversão do passado
industrial (FERRAZ, 2008). Essa transformação do espaço fabril em locus amoenus é bem
colocada por Ferraz:
A reabilitação de uma antiga fábrica, local de trabalho duro, sofrimento de
muitos, testemunho do trabalho humano, e sua transformação em centro de
lazer, sem o apagamento dessa história pregressa, fazem do SESC Pompéia
um espaço especial. O cuidado da recuperação em deixar todos os vestígios da
antiga fábrica evidentes aos olhos dos freqüentadores – seja nas paredes, nos
pisos, telhados e estruturas, seja na linguagem das novas instalações -, fez com
que o espaço iniciasse sua nova vida de Centro de Lazer já pleno de calor e
animação. Com alma e personalidade. A própria linguagem arquitetônica das
novas edificações reforçava o lado fabril e industrial do conjunto (FERRAZ,
2008).
Distante de um pensamento escultórico do fazer arquitetônico, Lina Bo, num extremo cuidado com
a escolha dos materiais, coloca como objetivo a integração do antigo e do novo sem falseamento
alcançando ainda, uma pertinente coerência com as tecnologias construtivas empregadas. Assim,
a plástica contundente resultante de seu trabalho demonstrou a presença marcante da estrutura na
construção formal de sua arquitetura, assim como o papel desempenhado pelos materiais e pelos
detalhes arquitetônicos, indicativos de que a forma nunca era pensada de modo independente da
sua materialização12 (MAHFUZ, 1991).
Na experiência do SESC, Lina Bo percorre caminho oposto ao de muitos de seus colegas que
pensavam (e ainda pensam) a arquitetura como elemento autônomo e a figura do arquiteto como
gênio criador de prancheta, distante do presente a da história de seu objeto de trabalho. A
resolução de acompanhar a obra num escritório dentro do canteiro levou o fazer arquitetônico a
soluções distintas, carregadas de identidade e Lina chega à compreensão máxima da arquitetura
como um ato coletivo13, vivenciado dia a dia (OLIVEIRA3, 2007, p.7). De acordo com Ferraz o
projeto da Pompéia desenvolveu-se
numa atividade diária em meio ao canteiro de obras: acompanhamento dos
trabalhos, experimentações in loco e grande envolvimento de técnicos, artistas
e, sobretudo, operários. Esta postura foi, também, uma verdadeira revolução no
‘modus operandi’ da prática arquitetônica vigente. Tínhamos um escritório dentro
da obra; o projeto e o programa eram formulados como em uma amálgama,
juntos e indissociáveis; ou seja, a barreira que separava o virtual do real não
existia. Era arquitetura de obra feita, experimentada em todos os detalhes
(FERRAZ, 2008).
Essa arquitetura de “obra feita”, pensada e executada de maneira participativa em todos os
aspectos e experimentada dia a dia in loco travou, como vimos, uma busca pela essência tectônica
do antigo, propondo referências fabris não mimetizadas impressas na nova estrutura que reflete a
ação de um olhar crítico dirigido às raízes sem, no entanto buscar um congelamento de formas e
materiais. Um olhar da arquiteta que, imbuído de sua formulação histórica do presente, procurou
12
No mesmo sentido, CARSALADE (2007b) completa: “A plástica arquitetônica não é uma imagem pictórica aplicada ao espaço com
significado distinto e autônomo, ela é a própria qualificação do espaço e a sua articulação formal”.
13
“Perguntada por estudantes que visitavam o SESC Pompéia nos anos 1980 sobre o papel da arquitetura, Lina responde, referindo-se
especificamente àquele projeto: ‘Arquitetura para mim, é ver um velhinho, ou uma criança com um prato cheio de comida atravessando
elegantemente o espaço do nosso restaurante à procura de um lugar para se sentar, numa mesa coletiva’. E, para arrematar, com a voz
embargada de quem desabafa uma vida de trabalho e de sonho por um mundo melhor, disse: ‘Fizemos aqui, uma experiência
socialista.” (FERRAZ, 2008).
7
avaliar as possibilidades criativas originais e trazê-las ao encontro das instâncias atuais, sem com
isso pretender repeti-las. Não se cogitou a possibilidade de algum retorno no tempo. A referência à
origem não pode significar a eterna repetição de modelos anteriores e a morte dos acontecimentos
posteriores, mas sim a vida, na sua plenitude. A relação entre os tempos históricos deve ser mútua
e construtiva transformando todas as partes envolvidas (BIRREMBACH, 2007, p. 15).
Dessa forma, ao fazer do presente da Fábrica da Pompéia uma nova verdade (Veyne), Lina
demonstra a impossibilidade de o fato arquitetônico se comportar como uma forma fechada
albertiana, íntegra e imutável (CARSALADE, 2007b) da mesma maneira que nos mostra com o
não apagamento da história pregressa (FERRAZ, 2008), como passado e presente podem, enfim
co-habitar.
Numa igreja pagã ou católica panteísta:
confeitos para um bolo de fubá
A Igreja do Divino Espírito Santo, em Uberlândia – cidade do cerrado mineiro - foi encomendada
por franciscanos italianos que lá viviam, em 1976, por intermédio do Frei Egydio Parisi e do artista
plástico uberlandense, Edmar de Almeida. Este último, colaborador da arquiteta nas tapeçarias do
restaurante do SESC Pompéia, cujo período de execução ocorreu em paralelo ao da edificação
religiosa.
Tendo negado, a principio, a solicitação recebida, Lina que alegava sua posição ideológica
comunista e sua descrença no Vaticano como motivos da recusa, acabou por reconsiderar seu
posicionamento em função de ser o projeto destinado a uma ordem cristã mais social e
politicamente engajada – a Igreja da Libertação que se encontrava no auge de sua atuação,
permanecendo ideologicamente ao lado dos pobres (FERRAZ, 1997).
Com a proposta de um projeto situado fora do campo das tipologias usuais, Lina Bo oferece uma
nova saída para a arquitetura religiosa daqueles dias que, de acordo com Laurentiz (1995)
posicionou-se ao lado da niemeyeriana Pampulha, no hall de novidades do front religioso. Assim,
novamente alinhada a sua concepção de presente histórico, a arquiteta sublinha, sem descartar a
importância do passado, a superação de épocas e tipologias arquitetônicas14 de maneira a evitar
reproduções enganosas e promovendo o direito que o presente tem à sua própria manifestação
(BIERRENBACH, 2007, p.11) – “Não existe fratura entre o assim chamado ‘moderno’ e a história,
visto ser o ‘moderno’ antes o produto da história mesma, através do qual é possível evitar as
repetições de experiências superadas.” (BARDI, 1957, p.6)
Comunista, atéia e anti-clerical por formação, Lina propõe para a Igreja do Divino Espírito Santo,
sua idéia-síntese formulada sobre o outro lado da religião que encontra no Brasil. Neste país – Rio,
São Paulo e principalmente Bahia – a arquiteta entende o sincretismo religioso e o verdadeiro
ecumenismo dele resultante (FERRAZ, 1997) e o expressa em seu projeto para o cerrado mineiro:
Neste projeto, você tem de um lado um terreno de candomblé completamente
africano, do outro uma igreja simples como uma igreja franciscana de pequena
cidade italiana. No meio, uma área de concentração, de camarim, até chegar ao
centro com um pequeno lago, um poço árabe. Tudo isso cercado pelas plantas
do cerrado, culminando com o campinho de futebol bem brasileiro. Ela é uma
14
O repúdio de Lina à cópia indiscriminada de formas tradicionais pode ser verificado em sua fala sobre uma visita feita à Catedral da
Sé, em São Paulo: “Tal atmosfera veio ao nosso encontro brutalmente, com o odor de Roma de ouro queimado, com o som de músicas
militares ao longo do Tibre. Reconhecemos [...] a remastigação estilística que nos envenenara na universidade e que nos impelira a
abandoná-la. Seria possível que tais coisas tivessem chegado aqui? [...] Toda aquela arquitetura equivocada, inútil, vazia como uma
pele soprada com a cúpula ridícula sobreposta, uma arquitetura que nem se quer (sic) se despetala em garbo culturalístico, uma
arquitetura capaz de fazer-nos duvidar de uma religião que aceita tal monumento” (BARDI, 1954 apud BIERREMBACH, 2007, p.11).
8
igreja pra lá do catolicismo. É uma igreja pagã, ou católica panteísta (FERRAZ,
1997).
Contudo, de acordo com a própria arquiteta o que houve de mais importante na construção da
Igreja, foi a possibilidade de um trabalho conjunto, entre arquiteto e mão de obra. Lina reproduz em
Uberlândia, a prática que vivenciava paralelamente na Fábrica da Pompéia - “De modo algum foi
um projeto elaborado num escritório de arquitetura e enviado simplesmente para execução, pois
houve um contato fecundo entre arquiteto, equipe e povo que se encarregou de realizá-lo” (BARDI,
1999, p.1).
Assim, Lina Bo foi à procura de uma arquitetura simples e de fácil comunicação, onde a
monumentalidade tem o sentido de coletivo num resgate da dignidade cívica dos futuros fiéis (e
também construtores). A arquiteta trabalhou com o que possuía em mãos, “sem menosprezar nada
do que encontra pelo caminho, segue reciclando materiais e abrindo-lhes novas possibilidades de
uso num trabalho respeitoso que demonstra uma atitude ética e ecológica”15 (OLIVEIRA1, 2006b).
Sem reboco nem acabamentos especiais, na realização desse projeto foram
empregados materiais do próprio local: tijolos de barro e a estrutura portante de
madeira (aroeiras da região). Restringiu-se o emprego de concreto armado
apenas para as partes essenciais da estrutura (BARDI, 1999, p.3).
Mais do que torta confeitada, o que a arquitetura de Lina se propunha de fato, era ser bolo de
fubá16. Segundo trechos do Processo de Avaliação para Tombamento do bem (MINAS GERAIS,
1997), essa simplicidade presente na construção não foi fruto apenas dos parcos recursos
financeiros empregados na obra. Acima de tudo, estavam presentes traços do engajamento
político-ideológico e arquitetônico de Lina, o que envolvia o trabalho com a comunidade local, o
resgate de aspectos da genuína cultura popular e da compreensão e valorização do enorme
caldeirão cultural brasileiro.
Todos esses fatores, conjugados em uma obra cuja idéia motriz fora extraída do lugar da vida
cotidiana ou espaço ordinário - no sentido em que os anglófonos entendem do termo (KAPP, 2006,
p. 8) -, fizeram da igreja, talvez contraditoriamente à proposta original da arquiteta, um espaço
extraordinário e excepcional, merecedor portanto, de atitudes para sua salvaguarda.
Passados cerca de 20 anos após a construção, em 1997, a Igreja do Divino Espírito Santo é então
tombada. Este processo resultou, no entanto, da ação de setores bastante específicos da
sociedade ligados aos dois únicos personagens17 que mantinham ainda vínculo com a história de
sua fundação – Frei Fúlvio Sabiá e o artista plástico Edmar de Almeida, ambos residentes em
Uberlândia. Retirada a ordem dos padres franciscanos e alterado o perfil dos moradores do bairro,
não mais restavam ligações pessoais que fortalecessem a defesa do bem:
A população do bairro – antes formada por gente pobre, trabalhadores e
prostitutas, segundo a própria Lina – foi substituída, desde o fim dos anos 1980,
por moradores de classe média em virtude da valorização do solo naquela
região, situada a poucos quilômetros da área central. Os atuais moradores, seus
principais usuários – além de terem tratado de rebocar as paredes internas, por
rejeitarem sua simplicidade – não compreendem sua representatividade e
protestam contra o tombamento. [...] Dos freqüentadores anteriores,
15
“Sua atitude engajada estará em total acordo com a ‘poética da economia’ defendida, anos mais tarde, por Flávio Império, Sérgio
1
Ferro e Rodrigo Lefévre, ao questionarem promessas de uma modernização associada ao consumo” (OLIVEIRA , 2006a, p. 18).
16
Alusão a um trabalho proposto pelo professor da FAU/UFU, Lú de Laurentiz em sua disciplina de Teoria e Crítica da Arquitetura, no
ano de 2005. Como trabalho de conclusão do curso e comemoração do centenário de Lina Bo Bardi, foi proposta à turma, a elaboração
de bolos inspirados na igreja do Divino Espírito Santo com posterior exposição e degustação dos mesmos na antiga cozinha do claustro.
17
A perda maciça da população original e a “presença maciça de novos moradores na vizinhança contribuem para que a comunidade
desconheça a importância do imóvel. No caso de um bem cultural tão recente, numa cidade que ainda considera o critério da
antiguidade para a proteção, esses vínculos pessoais são importantes para fortalecer a defesa do monumento” (GOULART, 2006, p.
166).
9
trabalhadores que haviam doado parte de seu tempo livre para construí-la, para
quem certamente o ‘valor afetivo’ da igrejinha era inegável, a maioria mudou-se
ou morreu (GOULART, 2006, p.162).
Nesse sentido, recebem especial destaque, as ações de arquitetos e artistas ligados à comunidade
acadêmica e ao Instituto de Arquitetos do Brasil/ Núcleo Uberlândia. Com objetivo de promover um
maior reconhecimento do valor histórico e artístico do imóvel na cidade, abriu-se espaço para
várias publicações de alcance nacional que destacavam a obra esporadicamente – de acordo com
Goulart, para a comunidade uberlandense, que pouco conhecia o templo e não compreendia suas
razões de projeto, o reconhecimento externo lhes parecia mais importante do que a valorização da
obra em si. Ainda, em colaboração ao trabalho de conscientização e mobilização, foi trazida para
Uberlândia em 1995 a exposição “Lina Bo Bardi – arquiteto”, cujo debate de abertura contou com a
participação do Instituto Estadual de Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais/ IEPHA-MG.
A partir deste evento, as tratativas para o tombamento estadual da igreja foram iniciadas, com a
homologação da proposta em maio de 1997 (GOULART, 2006, p.167).
Apesar da intensa campanha, várias, no entanto, foram as manifestações contrárias à proteção do
bem. Em carta enviada pela Diocese de Uberlândia ao IEPHA/MG, foi requerida a impugnação do
tombamento da igreja18 em função de características da mesma que não atendiam, segundo os
requerentes, a vários aspectos do culto religioso. De acordo com o IEPHA, no entanto, muitas das
requisições como a não existência de sacristia ou a falta de ventilação adequada eram decorrentes
da não execução completa do projeto bem como de sua descaracterização posterior.
Contudo, o estado precário de conservação do bem era inegável. De acordo com o Inventário de
Proteção do Acervo Cultural/ IPAC19 realizado em 2002, muitos eram os fatores de degradação, da
mesma forma que muitas também haviam sido as intervenções. Neste último aspecto,
consideráveis foram a construção de um cômodo para a sacristia, a pintura do piso de pedra
portuguesa com a marcação do caminho para o altar e o recobrimento com reboco na face interna
das paredes que circundam a igreja. As novas demandas refletem, dessa forma, a nova verdade
instaurada, o novo presente da Igreja do Divino Espírito Santo que hoje, junto aos padres de
ordens seculares e a uma nova comunidade, constroem uma também nova história.
Numa metáfora da relação verticalizada da igreja com os fiéis, o caminho do culto é então
demarcado e a pele antes bruta de seu interior torna-se coberta e aceada – oportunamente
Umberto Eco ao discorrer sobre o belo, o coloca como uma atitude sensível e material em seu
sentido carnal. A qualidade da coisa bela assim, não teria sentido para Deus que, no entanto,
reconhecendo os limites de sua criação, nos coloca a pele para que desse modo, não nos
assustássemos conosco mesmos.
18
Demandas registradas pela carta de Impugnação do Tombamento da Igreja do Divino Espírito Santo, enviada pela Diocese de
Uberlândia:
1) O prédio é construído de forma arredondada, não possuindo nenhuma janela;
2) Existe somente uma porta central de acesso à Igreja, cuja porta é a única entrada de ar que é muito precária;
3) Não existe sacristia;
4) Seu telhado cedeu, e na época das chuvas, facilita a entrada de água no recinto do telhado;
5) O piso não oferece condições para manutenção de limpeza, tendo em vista que as pedras são miúdas (pedra portuguesa);
6) O prédio não comporta mais o número de fiéis, existindo uma necessidade premente em ampliá-la;
7) Não possui um escritório paroquial, o que impossibilita o recebimento e o atendimento necessário aos fieis de nossa igreja;
8) Necessita urgentemente efetuar a construção de um Centro Comunitário em sua área ociosa.
19
Dentre os dados fornecidos pelo inventário, podemos destacar:
“A edificação apresenta problemas físico-construtivos e problemas estético-formais. Na primeira classificação encontram-se
principalmente os problemas relacionados à estrutura do telhado, que apresenta vigas em madeira com início do processo de
rachamento [...] Na segunda classificação encontram-se as intervenções realizadas no imóvel que provocaram uma sensível
descaracterização deste em relação ao projeto original da arquiteta Lina Bo Bardi; aplicação de massa sobre o tijolinho nas paredes
internas da Igreja; fechamento dos vãos de iluminação em toda a extensão da Igreja provocando perda da circulação cruzada de ar;
construção de paredes de alvenaria formando um cômodo para abrigar a sacristia, localizada atrás do altar; pintura da pedra portuguesa
do piso; recobrimento do piso do altar, originalmente de tijolinho, em cimento queimado vermelho; entre outros”.
10
(Fig.01)
(Fig. 02)
Parafraseando Lina Bo, um outro presente é então forjado, como bem falava a arquiteta ninguém
vive em tempos já remotos. O presente que é histórico traz raízes e memórias sem, contudo
permanecer como expressão congelada de um tempo passou. Alinhados ao pensamento
bobardiano, os arquitetos André Vainer e Marcelo Ferraz nos trazem, em 2009, a proposta de uma
intervenção20 na igreja que idealizaram a priori junto a Lina. Um projeto sensível ao presente de
hoje, num exercício de juízo crítico sobre a pré-existência onde as categorias de permanência e
modificação não são entendidas como oposição. Sobre sua postura com relação às intervenções
em bens pré-existentes, Marcelo Ferraz coloca:
É claro que o passado alimenta o tempo todo o projeto, mas não podemos ser
prisioneiros dele [...] Mas, aquilo que pode sobreviver e ser transformado e adaptado
à vida contemporânea é ótimo que seja. Não é preciso destruir a cidade velha e
construir uma nova: elas andam paralelamente. [...] Você tem que trabalhar com
coisas que conseguem sobreviver, que conseguem atender o uso atual [...] Nós
somos contra o saudosismo puro. Saudade, só do futuro. (OLIVEIRA2, 2007, grifos
nossos).
A proposta, cuja intervenção de maior ênfase é a ocupação do antigo campo de futebol com um
bloco destinado ao salão paroquial, objetiva não somente a complementação da estrutura com as
demandas contemporâneas como também a execução de elementos que haviam sido previstos no
projeto original. Segundo André Vainer:
Á época da construção muitas coisas não foram feitas por causa de dinheiro,
ficando para complementação posterior. Mas isso nunca aconteceu, o tempo
passou e deteriorou outros tantos elementos, complicando ainda mais a
situação. Há muitos anos esperávamos a oportunidade e procurávamos
parcerias para recuperar essa igreja, que é muito importante como ponto de
referência e de estudos da arquitetura moderna. (André Vainer In: PROJETO
DESIGN, 2009).
O novo salão, destinado a abrigar salas de reunião e catequese, posicionado à cota mais baixa do
terreno, prolonga o nível do quiosque pré-existente numa praça seca que se abre para o visual da
20
Segundo o Sr. Renato César José Jorge, Diretor de Conservação do IEPHA, obras emergenciais foram iniciadas em maio de 2009
para reparos na estrutura do telhado que estava prestes a ruir.
11
cidade. Como menção ao passado, o novo edifício, recebe esquadrias que referenciam a tipologia
de portas e janelas existentes no claustro.
Os arquitetos seguem ponderando sobre remoções e permanências – intervenções como o reboco
interno da nave são mantidas bem como a pavimentação do quiosque (de terra batida no projeto
original) que será objeto de manutenção. O mesmo não ocorre, no entanto com o bloco de
garagem, edificado junto ao campanário e com a vedação completa do quiosque com troncos de
eucalipto que serão removidos, tendo suas antigas demandas (garagem e área protegida para
encontros) atendidas pela nova edificação. Também minimizada será a intervenção decorrente da
criação de uma sacristia atrás da empena do altar. De acordo com o projeto dos arquitetos, este
último elemento terá sua altura reduzida, de forma que o visual da cobertura da nave como um
todo não seja prejudicado. A sacristia é mantida em seu lugar, com a substituição da vedação
lateral em alvenaria, por armários de madeira que visam uma delimitação do espaço sem o
prejuízo de sua função. Outros acréscimos como rampas e sanitários para deficientes bem como o
fechamento perimetral do lugar com gradis, respondem às demandas contemporâneas de
acessibilidade e segurança da edificação.
Distante de uma atitude nostálgica e alinhada ao pensamento de Lina Bo, a nova intervenção vive
no presente, no mundo real das coisas reais e não daquelas idealizadas em tempos passados ou
num futuro inexistente (OLIVEIRA1, 2006b). O bem patrimonial é aqui encarado não pela ditadura
da prescrição arquitetônica e nem tampouco como um invólucro perfeito para pessoas e eventos
inexistentes (KAPP, 2007, p.1). Em sua crônica sobre o pobre homem rico, Adolf Loos
pertinentemente, nos conta sobre a miséria de um apreciador das artes que após ter sua
residência finalizada pelas mãos do grande arquiteto, “sente que está morto, pois não pode mais
se transformar, não pode adquirir novos gostos, nem pode mais ganhar presentes ou comprar
coisas, pois todos os lugares de sua casa já estão devidamente preenchidos e qualquer alteração
destruiria a harmonia da obra de seu idealizador” (KAPP, 2007, p.4).
Com sua crônica, Loos nos fornece uma oportuna metáfora para pensarmos as intervenções num
bem patrimonial, somos ricos em arquiteturas de diversas épocas, representativas de expressões
artísticas dos diferentes povos envolvidos na construção de nosso país, não podemos, no entanto,
tornarmo-nos pobres ao congelarmos estes bens alienando-os de seu novo presente e de qualquer
desenvolvimento criativo das personalidades que os habitam e deles usufruem. E... retornando a
Marcelo Ferraz:
“Nós somos contra o saudosismo puro. Saudade, só do futuro.”
(Fig.03)
12
(Fig.04)
(Fig.05)
Considerações Finais
Tomando por empréstimo as palavras de Lina Bo: Um templo, um monumento, uma fábrica ou
uma igrejinha páleo cristã existe em si por seu peso, sua estabilidade, suas proporções, volumes,
espaços, mas até que o homem não entre no edifício, não suba os degraus, não possua o espaço
numa “aventura humana” que se desenvolve no tempo, a arquitetura não existe, é frio esquema
não humanizado. O homem o cria com o seu movimento, com os seus sentimentos. Uma
arquitetura é criada, “inventada de novo” por cada homem que nela anda, percorre o espaço, sobe
uma escada, se debruça sobre uma balaustrada, levanta a cabeça para olhar, abrir, fechar uma
porta, sentar e se levantar.
Constatar que a Pompéia e a Igreja Espírito Santo do Cerrado são patrimônio cultural envolve
reconhecer que a preservação de seus espaços não foi feita, no caso da primeira e nem o será
para a segunda, apenas para salvar uma edificação do passado, mas, também, para re-significar
essa construção, adequando-a às novas formas de utilização e atribuindo-lhe novos significados. O
ato de transformar o espaço de um equipamento consagrado à produção econômica em outro,
dedicado à produção cultural e a contemplação das novas demandas de uso de um espaço
espiritual são “atitudes arquitetônicas” que não devem ser entendidas com um olhar
condescendente, mas sim com vistas a um tempo que pertence à humanidade, ainda vivo, que
permita forjar um presente verdadeiro, histórico. Uma atitude de quem olha a história com valores
contemporâneos reconhecendo nos edifícios do passado, valores permanentes da arquitetura,
distantes de qualquer nostalgia ou romantismo ou “retromania”, incorporando-os e com eles
reagindo.
O arquiteto descarna a fábrica, na busca do estado inacabado e bruto do material. Sugere uma
experiência estética contundente ao reconhecer que os agentes portantes constituem a ação
primordial simultaneamente essencial e material de uma construção (GIMENEZ). O homem
encarna a igreja, lhe pinta a pele e lhe cobre o entalhe original. Uma busca de que o
estranhamento do antigo possa torna-se a intimidade com o novo traduzindo-o numa linguagem
“habitual”. A pele então incorporada permanece – uma posição que configura um outro caminho,
rompendo com a idéia de oposição entre as categorias de permanência e modificação. Atitude que
13
demonstra um juízo crítico sobre o pré-existente, que incorpora a vida cotidiana e a energia das
pessoas que utilizam a arquitetura aqui vislumbrada como um organismo apto para a vida.
O arquiteto insere o novo, edifica grandes torres ao lado de antigos galpões e um comedido prisma
que se estende até a divisa do terreno, substituindo o antigo futebol. A primeira relação institui um
lugar de onde pode-se ver e ser visto, a segunda, por sua vez, institui um valor à elevação lateral
que talvez nunca houvesse existido. De um lado, o deslocamento ascendente do nível de
apropriação livre do térreo para uma “praça seca” que estabelece uma nova relação com a cidade,
do outro lado, um microcosmo urbano que institui, ele próprio, uma pequena cidade. Inserções que
demonstram a impossibilidade de o fato arquitetônico se comportar como uma forma fechada,
levando ao entendimento de que os princípios teóricos e metodológicos do restauro arquitetônico
devem se basear na combinação do contemporâneo com o tradicional, sem que nenhum, contudo,
enverede pelo caminho da arqueologia mumificatória nem ignore os valores da pré-existência.
(Fig.06)
“O enquadramento dos óculos me aproxima e me faz perceber o que enxergo. Sem eles, não
consigo compreender, diante da grande abertura, a essência da imagem e do momento” (Win
Wenders, In: CARVALHO e JARDIM, 2002). Utilizar os óculos ou a escala da experiência de Lina
Bo Bardi na Fábrica da Pompéia para parametrizar a Igreja do Divino Espírito Santo e sua futura
intervenção foi o objetivo de nossa reflexão. Defendemos a experiência do SESC como uma chave
para aqueles que quiserem refletir sobre o papel da arquitetura na vida dos homens. Uma
experiência arquitetônica que alia criatividade a um grande rigor, liberdade com responsabilidade,
riqueza com concisão e economia de meios, poética com ética (OLIVEIRA1, 2006a). Enfim, uma
chave contemporânea, ativada e que está ao alcance de todos nós.
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Imagens
FIG.01: Arquivo pessoal das autoras
FIG.02: Arquivo pessoal das autoras
FIG.03: Gentilmente cedido por Marcelo Ferraz e André Vainer.
FIG.04: Gentilmente cedido por Marcelo Ferraz e André Vainer.
FIG.05: Gentilmente cedido por Marcelo Ferraz e André Vainer.
FIG.06: Fotomontagem - autoras
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