(re)significação do conceito de meio

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(re)significação do conceito de meio
Autor:
Victor Hugo de Almeida ([email protected])
Doutorando pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - Largo de São
Francisco (FD/USP). Mestre pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão
Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP/USP). Graduado em Direito pela Faculdade
de Direito de Franca (FDF).
A harmonização da relação entre consumidores versus trabalhadores e a
(re)significação do conceito de meio ambiente de trabalho
Resumo:
A reorganização da economia e as transformações tecnológicas não só afetaram as
condições e o meio ambiente de trabalho, mas, sobretudo, exerceram inevitável impacto no
mundo jurídico. Diversas políticas de harmonização da relação de consumo culminaram na
instituição de regras voltadas para a tutela dos interesses dos consumidores, que se
tornaram mais exigentes, o mercado mais competitivo e parte dessa responsabilidade coube
aos trabalhadores, tão hipossuficientes quanto os consumidores, embora em diferentes
perspectivas. O presente artigo, um recorte extraído da pesquisa do autor, ainda em fase
inicial, junto à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, tem por objetivo
analisar a influência da política de harmonização da relação de consumo no meio ambiente
de trabalho e seus impactos na saúde e qualidade de vida do trabalhador.
Palavras-chave: Direito do Trabalho. Meio ambiente de trabalho. Relação de consumo.
Telemarketing.
The harmonization of the relationship between consumers versus workers and the
(re)definition of the concept of work environment.
Abstract:
The technological reorganization and the economy transformations had not only affected
the conditions and the work environment, but, over all, had exerted inevitable impact in the
legal world. Several politics of harmonization of the consumption relationship had
culminated in the institution of rules directed toward the guardianship of the interests of the
consumers, which had become more demanding, the most competitive market and part of
this responsibility fit to the workers, as inapt as the consumers, even so in different
perspectives. This article, one cuts extracted of the research of the author, still in initial
phase, in Law school of the University of São Paulo, has for objective to analyze the
influence of the politics of harmonization of the relation of consumption in the
environment of work and its impacts in the health and quality of life of the worker.
Key words: Labour Law. Work Environment. Relation of consumption. Telemarketing.
A HARMONIZAÇÃO DA RELAÇÃO ENTRE CONSUMIDORES VERSUS
TRABALHADORES E A (RE)SIGNIFICAÇÃO DO CONCEITO DE MEIO
AMBIENTE DE TRABALHO
Diversos movimentos ao longo da história, cada qual em seus contextos e
cenário político-social, convocaram a sociedade de cada época a repensar o trabalho,
incluindo o ambiente no qual se efetivava, provocando uma densa modificação nos
processos, nas relações laborais e na condição de vida dos trabalhadores. A Revolução
Industrial, tendo como berço a Inglaterra do século XVIII e, posteriormente, alastrando-se
por toda a Europa, tornou-se um marco de significativa importância nas modificações
sociais, que se estendem até hoje, ao iniciar um processo histórico de radical transformação
econômica e social, modificando o entendimento de trabalho e de meio ambiente de
trabalho.
Uma das principais mudanças introduzidas pela industrialização implicou
na separação do ambiente de trabalho da moradia. Condicionados ao ritmo das máquinas a
vapor, os operários passaram a cumprir extensas jornadas de trabalho, já não mais
limitadas pelo cair do dia, em razão da utilização da iluminação a gás, permanecendo mais
tempo na ambiente fabril do que em suas casas (FERREIRA, 2004; OLIVEIRA, 2004).
Questões como essa tornam a se apresentar e remontam a discussão das condições de
trabalho e do papel do meio ambiente de trabalho na saúde do trabalhador. À guisa de
exemplo, o surgimento de uma nova forma de trabalho em virtude da sofisticação
tecnológica, o teletrabalho, remonta a discussão da separação entre casa e ambiente de
trabalho, evidenciando a reinvenção constante do labor, das suas relações e do ambiente
onde se efetiva.
Diante do aparecimento de novas profissões para atender aos anseios de
uma sociedade que se reinventa todos os dias, reclama o trabalho e seus sujeitos novas
formas de organização e de tutela de seus interesses fundamentais. Nesse sentido, pontua
Otavio Pinto e Silva que as mudanças tecnológicas e organizacionais introduzidas pelo
recente processo de globalização da economia, que alterou e continua a alterar as relações
de trabalho, são responsáveis por gerar novas profissões e, ao mesmo tempo, extinguir
outras até então existentes (SILVA, 2004).
Evidente que a criação de novas formas de trabalho traz consigo a
necessidade de instituição de novos espaços, novas demandas, novas regras de produção,
sociabilidade e sobrevivência, bem como novas formas de agir, de pensar e de viver
(NICOLACI-DA-COSTA, 2002). Por corolário, surge a necessidade de criação, adaptação
e interpretação da legislação trabalhista às necessidades de cada tempo, embora seja sabida
a dificuldade das leis em acompanhar o dinamismo das mudanças sociais. Diante disso,
assevera Silva (2004b, p. 10) que é indiscutível que “o direito do trabalho deve se adaptar
ao mundo de hoje, que não é mais o mesmo de quando foi concebido”.
Os tempos são outros. Os problemas atuais enfrentados pelo Direito do
Trabalho assumem novas nuances em decorrência das mudanças ocorridas nas últimas
décadas do século XX, principalmente o desenvolvimento tecnológico, a automação e a
informatização, embora por vezes se verifique que antigas discussões outrora enfrentadas
pela classe operária lotada no ambiente fabril ainda não foram superadas e se mostram
sempre muito atuais.
Para Silva (2004b), reforçando a repercussão no Direito do Trabalho das
inovações introduzidas pelo processo de globalização e pela contemporânea Revolução das
Tecnologias, algumas descobertas tecnológicas registradas no início do século XX foram
responsáveis por densas modificações das técnicas de organização do trabalho, marcado
por profundas reestruturações produtivas, diante da crescente automação, dos novos tipos
de materiais a disposição de todos os setores da produção e da sofisticação tecnológica no
campo da comunicação.
Esse período, conhecido por Revolução das Tecnologias ou Revolução
das Tecnologias da Informação e Comunicação, além de alterar comportamentos e hábitos,
revolucionou o mercado de trabalho ao impor novas concepções de organização e de
ambiente. No entanto, se por um lado a tecnologia possibilitou modificar o conteúdo
organizacional do trabalho, permitindo a redução do tempo de execução das tarefas e o
aumento da produtividade, em revés, tornou o labor mais intenso, compacto e amplamente
controlado (MOURA, 1993).
A diversidade de estudos no campo do direito, da sociologia, da
economia, da medicina social e da psicologia, entre outras áreas, aponta a necessidade de
aprofundar o estudo sobre esses processos de modernização técnica e organizacional,
decorrentes da política de globalização da economia, e seus impactos no meio ambiente de
trabalho e, sobretudo, na saúde do trabalhador.
1 Uma compreensão de meio ambiente de trabalho para além dos aspectos físicos
ambientais
Criar ambientes de trabalho que promovam qualidade de vida, bem como
mantê-los, tem sido um grande desafio para o campo da saúde do trabalhador.
Se é indiscutível que “o direito do trabalho deve se adaptar ao mundo de
hoje, que não é mais o mesmo de quando foi concebido” (SILVA, 2004, p. 10), também é
verdade que a noção de meio ambiente de trabalho não pode ser imutável, pois deve
considerar as constantes evoluções tecnológicas, organizacionais e sociais (ROCHA,
2002). Para Sady (2005), este meio ambiente faz parte da condição humana e é reinventado
todos os dias pela atividade produtiva, fazendo parte da vida do trabalhador e de sua
sobrevivência como espécie.
Em razão dos impactos que esse espaço exerce na saúde do trabalhador,
conforme evidenciado na literatura científica de diversas áreas do conhecimento, é preciso
que o meio ambiente de trabalho seja compreendido em sua plenitude, para além dos
aspectos físicos ambientais.
Por muito tempo a compreensão desse espaço se limitou aos arredores da
empresa e aos atributos físicos ambientais, sem considerar contextos mediatos e os
aspectos pessoais do trabalhador (psicológicos e comportamentais) que influenciam e são
influenciados pelo ambiente de trabalho, evidenciando-se uma interação (ROSSIT, 2001).
Isto porque, em geral, a compreensão de meio ambiente de trabalho focaliza estritamente
trabalhador separadamente do ambiente em que ele está inserido, enquanto, na verdade, o
ambiente é único, sendo a pessoa um de seus componentes (MELO, 1991; CAMPOS-DECARVALHO, 2003; RIVLIN, 2003).
Nessa direção, Rocha (2002, p. 130) aponta que “o entendimento de meio
ambiente do trabalho estabelece-se com a percepção do espaço do trabalho e, mais ainda,
do próprio trabalhador, na medida em que não existe tal ambiente sem o ser humano”. Essa
concepção bastante atual de ambiente de trabalho foi construída através dos esforços de
diferentes áreas do conhecimento, a partir da ressignificação1 do entendimento de meio
ambiente de trabalho, através das experiências compartilhadas, sobretudo no campo da
saúde e qualidade de vida do trabalhador.
A Psicologia Ambiental, um dos campos de pesquisa e intervenção na
Psicologia, desde a década de 70, dedica-se ao estudo da inter-relação entre pessoa e
1
Método da neurolinguística que tem como finalidade a atribuição de um "novo/outro significado" a
acontecimentos, diante de uma situação de crise que desencadeia uma mudança da visão de mundo.
ambiente, priorizando os aspectos físicos ambientais (CAMPOS-DE-CARVALHO, 2003).
Nos Estados Unidos, a Psicologia Ambiental originou-se da Psicologia Ecológica de
Barker2 (CAMPOS-DE-CARVALHO, 1993; FERREIRA, 2004), enquanto, na Europa,
surgiu em decorrência da necessidade de reconstrução das cidades após a Segunda Guerra
Mundial (MELO, 1991).
Desde a década de 70 a Psicologia Ambiental vem se ocupando da
conjunção de dois segmentos: degradação ambiental e planejamento de ambientes
construídos. Vários autores apontam que dentre os tipos de temas que compõem os
interesses da Psicologia Ambiental estão: (1) a preocupação com o efeito do ambiente no
comportamento; (2) a construção de determinados ambientes para obter certos efeitos
sobre o comportamento; (3) mudanças de atitudes, percepções e comportamentos frente ao
ambiente; (4) mudanças e planejamento do ambiente; etc. (CAMPOS-DE-CARVALHO,
1993; FERREIRA, 2004; STOKOLS, 1978).
Sob a perspectiva da Psicologia Ambiental, além dos aspectos imediatos
que integram o meio ambiente de trabalho, como, por exemplo, equipamentos, estrutura
física espacial e organização do trabalho, contextos mais amplos e mediatos também
influenciam o locus laboral, gerando impactos positivos ou negativos no trabalho, por
vezes não percebidos pelos sujeitos que integram um determinado espaço. Rivlin (2003, p.
217) salienta que “o ambiente físico está envolvido pelos sistemas social, econômico,
político e cultural nos quais se encontra e é inseparavelmente relacionado a eles”. Estes
aspectos, segundo Bronfenbrenner (1977, p. 515), constituem o macrossistema, que se
refere “aos protótipos gerais que existem na cultura ou subcultura, os quais estabelecem o
padrão para as estruturas e atividades que ocorrem no nível concreto”.
Para Campos-de-Carvalho (2008), com fundamento na perspectiva
ecológica de Bronfenbrenner, a conceituação de ambiente é abrangente, abarcando
sistemas interdependentes, desde contextos imediatos dos quais a pessoa participa
(microssistema) até estruturas sociais e contextos mais amplos nos quais os ambientes
imediatos são imersos (macrossistema), como, por exemplo, sistemas econômicos,
políticos, legais e educacionais.
Em outras palavras, o ambiente de trabalho estritamente considerado,
entendido como microssistema, também é influenciado por aspectos de contextos mais
amplos e mediatos denominados macrossistema, como, por exemplo, pela economia, que
2
Um dos vários domínios da Psicologia Ambiental, cuja abordagem analisa o impacto do ambiente ecológico
no comportamento humano.
interfere nos aspectos nucleares do trabalho, determinando seu ritmo, suas condições
organizacionais, a política salarial, os níveis de desemprego que, por sua vez, determinam
a satisfação no trabalho e, consequentemente, a saúde e qualidade de vida do trabalhador.
E por serem interdependente integram o que se entende por meio ambiente de trabalho.
2 A reestruturação do processo produtivo e seus impactos no meio ambiente de
trabalho
Ao longo da história, desde a Revolução Industrial até a contemporânea
Revolução das Tecnologias da Informação e Comunicação, o processo produtivo sofreu
diversas reestruturações motivadas pelo interesse econômico, influenciando nas condições
laborais em decorrência dos impactos no meio ambiente do trabalho.
Alguns exemplos de reestruturação do trabalho através de intervenções
no meio ambiente do trabalho contextualizam essa luta travada entre o capital e o
trabalhador, como por exemplo: a substituição do trabalho artesanal pela máquina a vapor
no período da Revolução Industrial, possibilitando a manipulação de diversas máquinas
por um mesmo trabalhador; a parcialização e o aumento do ritmo de trabalho instituído
pelo modelo taylorista e aperfeiçoado pelo fordismo, através da instalação de esteiras
mecanizadas; a simplificação do trabalho através do emprego de tecnologia de ponta e da
informatização, em decorrência da Revolução das Tecnologias da Informação e
Comunicação, possibilitando a realização de diversas tarefas em um curto espaço de tempo
e em diversos ambientes além das dependências da empresa; etc.
Dentre as sofisticações tecnológicas introduzidas no processo produtivo
no final da década de 90, talvez a mais significativa seja o aperfeiçoamento dos canais de
comunicação através da implantação de serviços de voz e internet para a execução do
trabalho. A utilização desses meios trouxe alterações significativas no meio ambiente de
trabalho, à medida que modificou aspectos fundamentais do próprio processo produtivo,
tornando possível: (a) o trabalho à distância, principalmente de casa ou fora do expediente
do trabalho, estendendo a jornada contratual; (b) a simplificação e uniformização de
procedimentos, acelerando ainda mais o trabalho diante da facilidade de produzir mais em
um curto espaço de tempo; e (c) a fiscalização abrangente do trabalho e a cobrança e metas
e resultados.
Essas inovações tecnológicas do final da década de 90 também
trouxeram novas formas de trabalho, sobretudo no Brasil, que atravessava um processo de
privatização das empresas de telefonia. O contexto era favorável para a instalação de
diversas empresas multinacionais, que contribuíram para a expansão do telemarketing no
país, dedicando-se a dois seguimentos: serviço de atendimento ao consumidor e oferta de
produtos e serviços por meio de contato telefônico (ALMEIDA, 2008).
Atualmente, o telemarketing constitui a principal atividade terceirizada
no Brasil direcionada para a venda de produtos e atendimento ao consumidor, sendo um
dos setores que mais cresceram devido à privatização de operadoras, em decorrência do
processo de globalização da economia, cuja medida popularizou a telefonia no país. É
também um exemplo emblemático de uma nova forma de trabalho decorrente da
sofisticação tecnológica, responsável pela instituição de novas concepções de organização
e de meio ambiente de trabalho.
Embora a expansão das empresas de telecomunicação no Brasil tenha
ocorrido tardiamente com o neoliberalismo, caracterizado pelas privatizações das empresas
públicas e o desmonte do setor produtivo estatal no final da década de 90, já se verificava
no Código de Defesa do Consumidor (Artigo 4º, inciso V), do início da mesma década,
essa atividade como um dos instrumentos de harmonização das relações consumeristas,
como objetivo da política nacional das relações de consumo (FILOMENO, 1998;
NOGUEIRA, 2006).
A adoção do telemarketing por grandes e médias empresas, como meio
de vender seus produtos e resolver problemas decorrentes da atividade empresarial junto
aos consumidores, surgiu da necessidade de aproximar empresas de sua clientela através de
um meio que proporcionasse agilidade na prestação de serviços, tornando-se possível
atender a crescente demanda em um curto espaço de tempo.
Expressivamente, nos três primeiros anos desta década, o telemarketing
cresceu 235%, mesmo em períodos de forte recessão e elevados índices de desemprego. De
acordo com estimativas da Associação Brasileira de Telesserviços, no Brasil cerca de 500
mil pessoas foram empregadas no setor de telesserviços em 2003, contra 465 mil no final
de 2002, indicando um crescimento de 7,5%, superior às expectativas iniciais, que eram
6%. Em 2005, no Brasil, eram 600 mil teleoperadores, distribuídos em 1.827 empresas, das
quais 250 eram terceirizadas; 60% desses postos de trabalho estão no Estado de São Paulo
e 45% acolhem jovens em sua primeira experiência no mercado de trabalho (NOGUEIRA,
2006; VENCO, 2006).
A pesquisa Global Call Center Industry Project, realizada em 19 países
(tais como Estados Unidos, Canadá, Filipinas, Índia, Austrália, Inglaterra, Alemanha,
Suécia, Polônia, África do Sul e Brasil) e coordenada pelas Universidades de Sheffield, da
Inglaterra, e Cornell, dos Estados Unidos, evidenciou no Brasil os seguintes indicadores:
(1) mais da metade dos call centers (76%) foram implantados após o processo de
privatização do setor de telecomunicações; (2) 25% tem mais de 500 posições de
atendimento, 25% tem entre 100 e 500 e 50% tem mais de 10; (3) a expressiva maioria dos
teleoperadores é composta por mulheres (77%); (4) o tempo médio inicial de treinamento é
de 4 semanas; 74% dos teleoperadores possuem o 2º grau e 22%, curso superior
(ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE TELESSERVIÇOS, 2006).
3 A influência da política de harmonização da relação de consumo no meio ambiente
de trabalho e seus impactos: um estudo de caso no contexto do telemarketing
A sofisticação da tecnologia e sua inserção no meio ambiente de trabalho
não contribuíram somente para o surgimento de novas atividades, conforme já apontado,
mas também instituiu novas formas de realizar um mesmo trabalho, reinventando o
processo produtivo. A possibilidade de encurtamento da distância entre fornecedores e
consumidores, através de canais de voz e dados, permitiu que fornecedores alcançassem
um maior público consumidor, que se beneficiou da livre concorrência de mercado. Mais
que angariar uma clientela, tornou-se imprescindível fidelizá-la.
Nesse contexto, diversas políticas de harmonização da relação de
consumo culminaram na instituição de regras voltadas para a qualidade dos serviços
prestados aos consumidores, freando a sanha capitalista empresarial, destituída de qualquer
preocupação com a qualidade da prestação.
Em alguns municípios e estados brasileiros, como São Paulo, Rio de
Janeiro, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Paraná, a “lei contra demora nas filas”
impôs tempo máximo para atendimento dos clientes do setor bancário. Nesse mesmo
compasso, em 1º de dezembro de 2008, passou a viger o Decreto nº 6.523, de 31 de julho
de 2008, que fixa as normas gerais sobre o Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC),
por telefone, que prevê, em seu Artigo 1º, a observância dos direitos básicos do
consumidor de obter informação adequada e clara sobre os serviços que contratar e de
manter-se protegido contra práticas abusivas ou ilegais impostas no fornecimento desses
serviços”.
Dentre outras disposições, prevê o Decreto o tempo máximo de sessenta
segundos para a duração da transferência de ligações (artigo 10º, parágrafo primeiro), a
inadmissibilidade de transferência de ligações em caso de reclamação e cancelamento de
serviço (artigo 10º, parágrafo segundo), o prazo máximo de cinco dias úteis para a solução
das reclamações (artigo 17, caput) e a clareza e objetividade da resposta da demanda ao
consumidor (artigo 17, parágrafo segundo).
No entanto, essas novas regras pautadas na política de harmonização da
relação de consumo vieram na contramão do preexistente Anexo II da Norma
Regulamentadora 17, instituído em 30 de março de 2007 através da Portaria nº 9 do
Ministério do Trabalho e Emprego, cuja medida estabelece parâmetros mínimos para o
trabalho em atividades de teleatendimento/telemarketing, para proporcionar um máximo de
conforto, segurança, saúde e desempenho eficiente aos trabalhadores do setor.
Enquanto o Decreto nº 6.523/08 impôs tempo máximo para a duração da
transferência de ligações e de solução para as reclamações, instituindo o dever de
objetividade e clareza das informações, o Anexo II da Norma Regulamentadora 17 prevê,
na seção “Organização do Trabalho”, o aumento de pausas fora do posto de trabalho (item
5.4.1) e a proibição de adoção de mecanismos de monitoramento da produtividade e
aceleração do trabalho, como por exemplo, mensagens nos monitores de vídeo, sinais
luminosos, sonoros ou indicações do tempo utilizado nas ligações ou de filas de clientes
em espera (item 5.9).
Cumpre analisar, assim, que enquanto o Decreto nº 6.523/08 tem a
finalidade de mitigar a vulnerabilidade do consumidor diante da relação de consumo, o
Anexo II da Norma Regulamentadora 17 tem a finalidade de mitigar a vulnerabilidade do
teleoperador diante da relação de emprego, porém, ambos instituem regras colidentes para
uma mesma celeuma; cada qual resguardando a hipossuficiência de seus tutelados,
consoante aos interesses aos quais cada uma se destina, entretanto, descortinando um
conflito de pretensões.
É certo que as duas medidas traziam consigo a expectativa do aumento
das posições de trabalho nas centrais de teleatendimento, para não gerar sobrecarga
habitual ao trabalhador, conforme mesmo prelecionam os itens 5.23 e 5.2.14 do Anexo II,
da Norma Regulamentadora 17. Porém, assevera a literatura não a prosperidade da
atividade, mas sim a precarização do trabalho em telemarketing, justificada pela alta
incidência de doenças relacionadas ao trabalho no setor.
De acordo com o Sindicato dos Trabalhadores em Telemarketing de São
Paulo (Sintratel), depressão e estresse são sintomas cada vez mais freqüentes em
3
5.2. O contingente de operadores deve ser dimensionado às demandas da produção no sentido de não gerar
sobrecarga habitual ao trabalhador.
4
5.2.1. O contingente de operadores em cada estabelecimento deve ser suficiente para garantir que todos
possam usufruir as pausas e intervalos previstos neste Anexo.
trabalhadores do setor, desencadeados pela “forte cobrança dos supervisores para o alcance
de metas, atitudes grosseiras do público, repetições à exaustão do mesmo „script‟5 para
vender produtos e serviços e, por vezes, brincadeiras desagradáveis dos superiores
hierárquicos” (RIBEIRO, 2004, E2); ritmo alucinante de trabalho, impossibilidade de
interação com outros colegas de trabalho, escassez de pausas para descanso, metas de
produtividade desgastantes (Tempo Médio de Atendimento – TMA ou Tempo Médio
Operacional – TMO), postura estática, movimentos repetitivos, pressão constante de
supervisores com controle rígido de trabalho, inadequação do mobiliário e dos
equipamentos, insalubridade do ambiente de trabalho, baixos salários, sistemas de
avaliação e fardo emocional de lidar com clientes exigentes ou desagradáveis (ODA, 2003;
GALASSO, 2005; NOGUEIRA, 2006).
Nesse contexto, é quase inevitável a presença de estresse, tensão
psicológica, ansiedade, depressão e fadiga em teleoperadores (ROSSIT, 2001;
ASSUNÇÃO, 2003; SILVA e ASSUNÇÃO, 2005), embora insista a publicidade do setor
em mostrar teleoperadores felizes em sua primeira experiência de trabalho em uma
conjuntura de elevados índices de desemprego, enquanto, na realidade, o que se tem é um
meio ambiente de trabalho permeado por queixas e sintomas constantes de estresse,
envolvendo
absenteísmo
elevado,
alta
rotatividade,
dificuldades
cotidianas
de
gerenciamento e retenção de pessoas e diversas queixas denunciadas pelas organizações
sindicais, enfraquecidas pelos índices de desemprego, privatizações e pelo desmonte dos
direitos sociais dos trabalhadores (SILVA e ASSUNÇÃO, 2005).
4 A influência da política de harmonização da relação de consumo no trabalho em
telemarketing sob a perspectiva ambiental
Sob a perspectiva da Psicologia Ambiental, a saúde e bem-estar das
pessoas são influenciadas por diversos fatores do ambiente sociofísico, tanto pessoais
como ambientais.
Nos fatores pessoais, Stokols (1992) inclui: (a) aspectos biogenéticos
(por exemplo, sexo, idade cronológica, história de doenças na família, competência
imunológica, etc.), (b) aspectos comportamentais (por exemplo, participação em
programas de promoção de saúde, padrões de sono, tabagismo, consumo de álcool, etc.),
(c) psicológicos (por exemplo, otimismo, criatividade, extroversão, habilidade interpessoal,
5
Texto padrão utilizado pelos operadores de telemarketing para o exercício da atividade.
ansiedade, estado depressivo, etc.). Quanto aos fatores ambientais, o autor inclui: (a)
aspectos geográficos (por exemplo, clima, vegetação, radiação ultravioleta, aquecimento
global, etc.), (b) aspectos arquiteturais-tecnológicos (por exemplo, ergonomia, design das
áreas de trabalho, radiação eletromagnética, poluição sonora, isolamento, etc.), (c) aspectos
sócio-culturais (por exemplo, status socioeconômico individual e coletivo, crenças e
práticas culturais e religiosas, clima social na empresa, instabilidade política, mudanças
econômicas, regulamentação ambiental protetiva, etc.).
De acordo com essa divisão meramente metodológica, uma vez que o
meio ambiente de trabalho é único e assim deve ser compreendido, diversos aspectos
ambientais e pessoais contribuem para a precarização do trabalho em telemarketing,
podendo-se destacar os seguintes: (1) ambiente físico – ausência de equipamentos
ergonômicos, posto de trabalho isolado, características físicas do edifício, etc.; (2) à
“estrutura temporal” – fila de atendimento, ritmo elevado e poucos intervalos; (3) à
“latitude decisória” – falta de controle sobre a tarefa, rigidez da organização do trabalho,
roteiro de atendimento padrão, falta de oportunidade de tomar decisões individuais e falta
de participação nas decisões referentes a organização do trabalho (GALASSO, 2005, p.
196-197).
Outros aspectos noticiados pela literatura, como por exemplo, as
agressões verbais e ameaças dos consumidores, também exercem influência na saúde,
bem-estar e satisfação no trabalho em telemarketing.
Diante desses aspectos que contribuem para a precarização do trabalho
em teleatendimento, o Anexo II da Norma Regulamentadora 17 instituiu diversas medidas6
de tutela e proteção dos direitos fundamentais desses trabalhadores, incluindo o direito a
um trabalho digno e a um meio ambiente de trabalho incólume.
Contudo, as novas regras para o telemarketing instituídas pelo Decreto nº
6.523 de 31 de julho de 2008, sob a perspectiva da harmonização da relação de consumo,
são mais bem fiscalizadas e divulgadas. Meses após sua vigência, comemorou-se o fato de
que metade das empresas já havia se adaptado ao decreto e que milhares de consumidores
seriam favorecidos por essa medida, ignorando a necessidade de novas contratações e
6
garantia de pausas no trabalho imediatamente após a ocorrência desses eventos por parte dos consumidores,
para socializarem conflitos e dificuldades com outros teleoperadores, supervisores ou profissionais de saúde
ocupacional (item 5.4.5); programas preventivos voltados para aspectos da organização do trabalho, como
repercussões sobre a saúde desses trabalhadores, em virtude de todo e qualquer meio de avaliação e pressões
decorrentes de horários de maior demanda de atendimentos (item 5.10); preservação da autonomia dos
teleoperadores para a resolução de problemas, com a finalidade de reduzir o estresse desses trabalhadores
(5.14).
acelerando o ritmo de trabalho, para que o consumidor não esperasse tempo superior a
sessenta segundos pelo atendimento.
Aponta o Sindicato dos Trabalhadores em Telecomunicações do Distrito
Federal que, para a elaboração do decreto, foram ouvidos os empregadores, clientes,
órgãos de proteção ao consumidor, porém, não os trabalhadores do setor.
Quanto ao Anexo II da Norma Regulamentadora 17, nem mesmo os
teleoperadores conhecem as garantias nele previstas, quanto mais os consumidores, que
ignoram o fato de que do outro lado da linha há um trabalhador igualmente vulnerável.
Nenhuma notícia se teve sobre a quantidade de empresas que aderiram ao Anexo II da
Norma Regulamentadora 17, tampouco se houve fiscalização efetiva do cumprimento
dessa medida pelas empresas do setor.
5 Conclusão
O processo produtivo sofreu diversas reestruturações sócio-físicas
motivadas por interesses econômicos, promovendo impactos no meio ambiente de trabalho
e influenciando nas condições laborais, por vezes, em detrimento do direito fundamental
do trabalhador a um trabalho digno e incólume.
Ao longo da história do trabalho, da Revolução Industrial ao surgimento
do Direito Social Comunitário Europeu, verificou-se a necessidade de harmonizar os
interesses econômicos e os interesses sociais, com a instituição de patamares mínimos de
garantias sociais aos trabalhadores, para a própria sobrevivência do ideal de
desenvolvimento sustentável.
Evidente
que
aspectos
macro-ambientais,
como
por
exemplo,
econômicos, políticos e legais, considerados padrões generalizados que dotam de
significado e motivação as agências governamentais, redes sociais, papéis, atividades e
suas inter-relações (CAMPOS-DE-CARVALHO, 2003), determinam as condições
laborais, pois integram o meio ambiente de trabalho, considerado em sua plenitude.
Por isso, é imprescindível que a tutela jurídica do meio ambiente de
trabalho contemple desde a qualidade do ambiente físico mediato, imediato, interno e
externo ao locus laboral, até as relações interpessoais nas quais o trabalhador está imerso.
Essa complexidade de variáveis, que influenciam na forma como o trabalhador vivencia e
negocia com o meio ambiente de trabalho, justifica a necessidade de que esse espaço seja
analisado sob perspectivas interdisciplinares7 e multiprofissionais, para melhor
compreensão desses aspectos de competência de diversas e diferentes áreas do saber; essa
intersecção de diferentes perspectivas permite “a abertura de diálogo em outros quadrantes
e sob outras justificativas teóricas, compreendendo, sistematicamente, o momento do
direito na atualidade e seu impacto sobre a sociedade” (ROCHA, 2002, p. 277). Trata-se de
buscar uma aproximação entre as ciências envolvidas e não uma sobreposição, preservando
caminhos próprios e métodos específicos, com a finalidade de que se completem.
Referências
ALMEIDA, V. H. Sala de descanso em empresas de telemarketing e qualidade de
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