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A construção do Estado no Timor-Leste:
colonização, ocupação e independência
Kamilla R. Rizzi*
Resistir é vencer
“Dos gritos da dor temos sonhos falados
Sonhos lindos de Timor
P'ra esquecer passados
E sonho é ser livre
E sonhamos a paz
E sonhamos amor
E sonhamos o futuro”.
Xanana Gusmão (Díli, 1º de outubro de 1999).
Resumo
O Timor-Leste carrega consigo o status de mais jovem Estado asiático no sistema mundial,
decidido por votação popular em agosto de 1999 e institucionalizado em maio de 2002.
Após mais de quatro séculos de domínio colonial português, seguido por vinte e quatro
anos de ocupação indonésia e, finalmente, um período de negociação e transição, o Estado
timorense teve seu status de independência reconhecido. Status esse devido, em grande
parte, ao papel sem precedentes desempenhado pelas forças das Nações Unidas, mas também pela resistência civil timorense. No entanto, a esperada independência dessa antiga
colônia portuguesa não trouxe a paz e a efetiva consolidação do Estado timorense, mas uma
continuidade da intervenção das Nações Unidas em razão das tensões sociais e políticas e
da crise humanitária ascendente. Nesse sentido, o presente artigo busca refletir sobre a débil
constituição desse Estado, levando em conta o legado colonial português, a ocupação indonésia e a independência tardia, sob a supervisão das Nações Unidas.
Palavras-chave: Timor-Leste. História do Timor-Leste. Império colonial português.
1 Introdução
O Timor-Leste possui um território de 14.874 km², ocupando a
parte oriental da ilha de Timor, na Ásia (sua única fronteira ocorre com
a Indonésia). O relevo do país é montanhoso e o clima tropical propicia
*
Professora Assistente de Relações Internacionais da Universidade Federal do Pampa e
Pesquisadora Associada do Núcleo de Estratégia e Relações Internacionais (NERINT/
UFRGS). Mestre em Relações Internacionais/UFRGS e Doutoranda em Ciência Política/UFRGS. (E-mail: [email protected]).
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períodos de chuvas intensas (monções), além das consequentes
avalanches de terra e cheias de rios. O pequeno território possui como
recursos naturais o ouro, o petróleo e o gás natural. No Timor existe
ainda gás natural e mármore em Manatuto; petróleo, em Suai; manganês, em Vemasi e Loi Lubo; ouro, em Lacio e Elena; e os proventos da
área do Timor Gap, com a exploração dos hidrocarbonetos em parceria
com a Austrália. A ilha de Ataúro, ao norte de Díli, e o ilhéu de Jaco, a
leste do país, também fazem parte do território timorense.
Atualmente, o país possui mais de 1.130.000 habitantes1 – com
crescimento demográfico de 3,3% nos últimos anos –, sendo que 62%
dessa população encontra-se em idade economicamente ativa (entre 15
e 60 anos). Aproximadamente 28% da população vive em áreas urbanas,
sendo que apenas 52% da população acima de 15 anos é alfabetizada.
O Produto Interno Bruto foi de US$453 milhões em 2009, e o PIB per
capita gira em torno de US$390.
Em relação à infraestrutura, o Timor-Leste possui nove áreas
portuárias (Díli, Hera, Karabela, Batugade, Suai, Beaco, Com, Pante
Macassar), das quais se destaca a de Díli; seis aeroportos (Díli, Baucau,
Maliana, Suai, Los Palos e Oecussi), sendo Baucau o único com capacidade para aviões de grande porte, e o de Díli, menor, mas com estatuto
de aeroporto internacional. A rede viária do território foi destruída,
quer pelos efeitos das condições climáticas, quer pela falta de manutenção, pelo que a circulação rodoviária faz-se com dificuldade (com algumas exceções), sendo a distância medida em tempo e não em quilômetros.
A agricultura timorense ainda é de subsistência, em sua maioria,
com a produção de café, arroz, batata, batata doce, milho e borracha.
A pecuária é um setor relativamente desenvolvido no interior do país,
com criação de búfalos, porcos e aves. No setor secundário, existem
unidades de produção industrial de óleos vegetais, beneficiamento de
sisal e algumas unidades de secagem de peixe. No artesanato, assinalase a tecelagem, a cestaria, os adereços de prata e algumas esculturas.
O setor de serviços despertou gradualmente com a melhoria na infraestrutura, como restaurantes, bares e hotéis.
A seguir apresenta-se uma reflexão sobre a débil constituição do
Timor-Leste, considerando o legado colonial português, o período de
ocupação Indonésia e a sua tardia independência, sob a supervisão das
Nações Unidas.
1
Dados referentes ao ano de 2009, conforme a United Nations Statistics Division. Disponível em: <http://unstats.un.org/unsd/demographic/products/socind/population.htm>.
Acesso em: 30 ago. 2010.
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2 A colônia portuguesa na Ásia
O primeiro contato dos portugueses com o Timor2 ocorreu no início do século XVI, quando esses ampliavam sua presença na Ásia,3 em
busca de sândalo branco. Após Portugal conquistar Málaca em 1511, missionários portugueses construíram a primeira igreja na ilha do Timor, no
ano de 1590. Esse é o início da colonização portuguesa, a partir de Lifau
(Oecusse), na costa norte da parte ocidental do Timor, protagonizada por
frades franciscanos, comerciantes de sândalo e os topasses (grupo miscigenado a partir de marinheiros, comerciantes e soldados portugueses,
cujos descendentes subsistem ainda hoje, no Timor). Portugal estabeleceu
colônias em outras ilhas da região, mas estas foram tomadas pelos holandeses, que também desalojaram os portugueses de Malaca, de Macassar e
de Sulawesi e, em 1652, expulsaram-nos da sua recém-construída fortaleza de Kupang, no Timor Ocidental, apenas cinco anos depois de ser construída.4 As viagens portuguesas à Ásia, nessa época, relacionavam-se
com a localização dos centros produtores e distribuidores de mercadorias
de luxo e de bens de primeira necessidade. Assim, conforme Loureiro
(2001, p. 145),
[...] os mercadores lusitanos, por um lado, buscavam o
cravo, a noz moscada e a maça, o almíscar e o benjoim, a
cânfora e o lacre, as sedas e as porcelanas, e tantas outras
mercadorias exóticas [...] Por outro lado, a cidade de Malaca necessitava desesperadamente de alimentos, pois era
uma terra quase estéril, que de forma alguma produzia
mantimentos suficientes para consumo dos seus próprios
habitantes. Além do mais, este entreposto português não
podia sobreviver sem um suprimento regular dos mais
variados objectos de uso quotidiano, indispensáveis ao
bom funcionamento de uma fortaleza e de uma marinha
de guerra, como salitre e enxofre, componentes essenciais
da pólvora, chumbo para balas, e também amarras, madeira, bréu, estopa, âncoras e outros variados apetrechos
navais.
2
Os portugueses não foram os primeiros estrangeiros no Timor-Leste: o comércio de sândalo com os chineses e os javaneses era anterior à presença portuguesa (DUNN, 2003).
3
O império português naquela parte do mundo referia-se a um conjunto de portos e feitorias que, partindo da costa africana, passando por Ormuz, Dio, Goa, Calcutá, Colombo,
Málaca, Java, as ilhas Molucas, chegavam ao seu extremo em Macau (litoral da China).
Apesar da fragilidade desse império, reduzido com o passar do tempo ao porto indiano de
Goa, à ilha de Timor Leste na Indonésia, e à cidade de Macau na China, foi o que mais
tempo durou.
4
A batalha de Penfui, entre Portugal e Holanda, ocorreu em meados do século XVII e constituiu um ponto determinante para o controle português do Timor. Penfui localiza-se ao
norte da cidade de Kupang, perto do local do aeroporto atual. A derrota portuguesa perante
os militares holandeses resultou na expulsão efetiva dos topasses – apoiados pelos portugueses – do maior porto da ilha, em Kupang. Tratou-se de um claro indício da superioridade militar dos holandeses.
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Durante os primeiros dois séculos de contatos luso-timorenses,
os diversos reinos da ilha de Timor mantiveram uma permanente autonomia face aos portugueses. As relações com os portugueses foram
sempre de natureza esporádica, circunscritas a determinados entrepostos no litoral, com a exceção de algumas investidas missionárias. Não
houve durante séculos ocupação plena da parte leste da ilha do Timor
pelos portugueses.
Em 1702, o governo português estabeleceu formalmente a sua presença em Lifau, administrando o Timor a partir da colônia de Goa.5
O artifício do governador, ao conceder patentes militares aos reis locais
(liurai), criou no governo do Timor um precedente que perdurou até o
século XX. No entanto, os portugueses tiveram de enfrentar desafios no
território, originados nos liurai e nos topasses (que nessa época dominavam o comércio de sândalo e, apesar da sua ascendência portuguesa, só
esporadicamente se mostravam cooperativos). Por volta de 1710, a imposição de um tributo em gêneros, a finta, provocou uma rebelião e descontentamento nos nativos, fato que forçou Portugal a transferir sua administração para Díli em 1769, onde os portugueses entraram em contato
com o povo Belu, que habitava a zona oriental da ilha.
Mesmo com sua nova base em Díli, os portugueses ainda dispunham de pouca influência e controle geográfico limitado sobre o TimorLeste. Durante algum tempo, Portugal viu-se confinado à costa norte,
devido à resistência local e à sua capacidade militar limitada. Em 1851, o
governador Lopes de Lima deu início a uma série de complexas negociações territoriais com as autoridades coloniais holandesas, implicando os
liurai e centradas nos patrimônios de áreas fronteiriças como Maucata
(no interior timorense), em Maubara e na ilha das Flores (controlada pelos portugueses). Depois, Portugal enfrentou uma resistência limitada,
até que o governador Afonso de Castro recorreu à força militar para impor o cultivo do café. Esta impopular iniciativa provocou uma revolta em
1861, seguida de uma série de rebeliões localizadas, dirigidas pelos liurai,
contra os excessos coloniais. Em resposta, em 1895, a administração portuguesa impôs o controle direto sobre o Timor-Leste, quando o governador Celestino da Silva afirmou a presença administrativa e militar na
totalidade do território, dividindo-o em onze distritos, incluindo o enclave de Oecusse.
É relevante frisar que, em 1859, Portugal cedeu a parte ocidental
da ilha à Holanda. As negociações resultaram no princípio da troca de
territórios entre os dois países, com vista ao estabelecimento de uma fronteira negociada com base numa divisão Leste-Oeste da ilha entre as potências coloniais rivais. Isto veio aliviar Portugal das guerras coloniais
com os Países Baixos, permitindo-lhe reforçar o seu poder na parte orien5
Goa tornou-se o centro do comércio português na Ásia, local onde Afonso de Albuquerque fundou a primeira igreja em 1511, data do início do vice-reinado da Índia.
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tal da ilha.6 Em 1895, Portugal criou unidades militar-administrativas em
todos os dez distritos de Timor-Leste. Oecusse foi acrescentada, tornando-se o 11º distrito. Portugal construiu aquartelamentos militares, escritórios, algumas escolas, hospitais e prisões, antes dos finais do século XIX.
Quando, no pós-Segunda Guerra Mundial, a Indonésia lutou pela
independência e a conquistou, fundamentou as suas pretensões nacionais, junto às Nações Unidas, nas antigas fronteiras coloniais holandesas.7
Foi com base nesse princípio que manteve a luta, acabando por entrar em
guerra, pela posse de Irian Jaya/Papua Ocidental, na década de 1960.
Embora alguma retórica se exprimisse no conceito de “Grande Indonésia” durante a luta nacionalista, nela incluindo-se áreas da Malásia Britânica e do Bornéu, esta nunca foi seriamente proposta à ONU.8
Os portugueses exerceram uma autoridade indireta através dos
liurai, cuja cooperação asseguraram, permitindo-lhes que retivessem autonomia nos seus territórios de origem. Os portugueses aproveitaram-se
das rivalidades internas entre os liurai, ganhando acesso ao poder dos
seus pequenos exércitos (grupos milicianos), dos quais se serviram para
reforçarem os seus próprios recursos militares. Os colonizadores utilizaram pela primeira vez as milícias dos liurai em 1642, durante a campanha
contra o reino de Wehale, e continuaram a fazê-lo até esmagarem a rebelião de Viqueque, em 1959. Dunn (2003, p. 4, tradução nossa) tece considerações sobre a relação entre a administração portuguesa e as comunidades locais timorenses:
Até 1970, a maioria dessas pessoas só tinham contato direto com raros representantes do poder metropolitano. As
relações oficiais, tais como eram, ascenderam a pouco
mais do que a coleta anual de dados demográficos, a cobrança de impostos sobre cabeças de gado [...] Na maioria
dos casos estas onerosas [...] tarefas não foram executadas
pelos oficiais portugueses, mas pelo chefe de suco (chefe da
tribo), um timorense nomeado pelo governo para exercer
funções administrativas ao nível tribal, cujas responsabilidades eram bastante limitadas, com outros aspectos da política e autoridade social restantes nas mãos dos governantes locais tradicionais.
6
As negociações pela parte ocidental da ilha foram levadas ao Tribunal Internacional de
Haia, onde uma decisão definitiva sobre as fronteiras coloniais ficou lavrada na Sentença
Arbitral datada de 1913; a troca final de territórios entre os Países Baixos e Portugal, após a
decisão, ocorreu em 1917. Como resultado, o Timor-Leste permaneceu a única possessão
colonial portuguesa no arquipélago. Esta definição formal das fronteiras internacionais
entre os Países Baixos e Portugal transformou-se num ponto de referência fundamental para
o futuro político de Timor-Leste.
7
Em 1949, a metade ocidental da ilha do Timor, colonizado pela Holanda, passou a fazer
parte da recém-independente República da Indonésia.
8
Em exposições apresentadas às Nações Unidas, nos finais da década de 1950, relativamente às suas reivindicações sobre Irian Jaya, a Indonésia negou explicitamente ter qualquer
reivindicação a fazer relativamente ao Timor português.
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Para os portugueses, o preço pago por esta política de “dividir
para reinar” foi o de uma persistente resistência em relação à sua autoridade. Para os habitantes locais, esse preço foi uma profunda debilidade e desunião da comunidade timorense. Essa sistemática de governança portuguesa no Timor gerou uma profunda distinção entre a elite e o
povo, a cidade e o campo, ainda hoje percebidos.
Durante a maior parte do século XX, Portugal confrontou-se com
uma situação de instabilidade interna. Em 1910, a monarquia foi substituída por uma república, a qual, por sua vez, passou a regime de partido único depois de 1928. Durante este período, muitos chineses entraram na colônia do Timor português e desenvolveram o seu papel como
negociadores intermediários. Portugal, apesar dos seus problemas internos, criou a Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho (SAPT), um conglomerado comercial que proporcionou nova infraestrutura para a produção e a exportação local.9
Ainda assim, o Timor continuou a ser um distante entreposto colonial que funcionava com níveis mínimos de apoio da metrópole, quer
em quadro de pessoal quer na forma de investimentos diretos. Em 1929,
existiam apenas 200 portugueses originários da metrópole, além de
mais 300 soldados. Lisboa continuava a governar através de intermediários locais. Já em 1930, a Lei Colonial criou conselhos locais representativos, mas, em grande medida, desprovidos de poder, permitindo alguma elegibilidade dos nativos do Timor-Leste ao estatuto de cidadãos
portugueses.
Após o ataque do Japão a Pearl Harbor, em dezembro de 1941, a
Austrália previu que o Japão ocuparia o Timor e, e em poucos dias,
tropas australianas, britânicas e holandesas desembarcaram em Díli,
numa intervenção classificada como medida preventiva, ignorando a
neutralidade portuguesa. O Japão invadiu o Timor em 19 de fevereiro
de 1942.
As repercussões da invasão na sociedade timorense foram devastadoras. Entre 40 e 60 mil timorenses foram dados como mortos; muitos
foram torturados e assassinados pelas tropas japonesas, com base na
suspeita de prestarem auxílio aos guerrilheiros australianos. A escravidão sexual de mulheres timorenses pelas tropas japonesas era generalizada. Não só o território se viu empobrecido pela guerra, como foram
semeadas divisões entre as pessoas consideradas apoiadoras dos japoneses e as pessoas consideradas apoiadoras da pequena força de guerrilheiros australianos.
9
A SAPT era gerida pela empresa brasileira de construção civil Moniz da Maia, Serra e
Fortunato.
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Cabe ressaltar que a difusão do cristianismo foi, a partir da década
de 1940, rápida e em extensão, pecando por não ser profunda, pois, ainda
hoje, apesar de a grande maioria da população estar convertida ao catolicismo, subsistem elementos da religião tradicional; mesmo assim, pode-se considerar que o cristianismo constitui, de fato, um dos pilares da
identidade timorense. Os missionários não foram apenas responsáveis
pela assimilação da cultura portuguesa por parte dos timorenses: em
resposta ao processo de aculturação imposto pela Indonésia quando da
sua permanência no território, traduziram os textos litúrgicos para tétumpraça e mantiveram ainda o ensino da língua portuguesa nas suas escolas, bem como alguns cânticos religiosos. Esta atitude permitiu conservar
não apenas a religião católica no maior país muçulmano do mundo, como
preservar a individualidade do Timor-Leste e transformar o tétum-praça
na língua timorense mais falada.
A Igreja local, como única estrutura subsistente, esteve sempre ao
lado do povo timorense, principalmente durante o período de ocupação
indonésia. Aqueles que tinham dificuldades ou problemas com os indonésios recorriam ao auxílio da hierarquia religiosa. O papel dessa instituição foi ainda determinante para a realização do referendo de 1999 e
como forma de divulgar a grave situação que se vivia no Timor durante a
ocupação indonésia, principalmente através da figura D. Carlos Ximenes
Belo, bispo de Díli.
3 O início do movimento pela descolonização
O acesso gradual à autonomia dos países colonizados era garantia
do artigo 73º da Carta das Nações Unidas. À medida que parte dos países
colonizadores concedia a independência às suas colônias no pós-Segunda
Guerra Mundial, tal consenso internacional se ampliou, exprimindo-se
através de mecanismos como a Assembleia Geral da ONU, que, em 1960,
reconheceu o colonialismo como negação dos direitos humanos.10
Como tentativa de resposta à pressão internacional, em 1951, Portugal atribuiu às suas colônias a designação de Províncias Ultramarinas,
uma iniciativa de cunho paternalista e emergencial; porém, sem teor efetivo: na prática, na isolada Timor não se desenvolveu qualquer movimento de independência semelhante aos nascidos nas colônias africanas de
Portugal. Em 1959, um grupo de exilados indonésios participou do levante em Viqueque contra a administração colonial portuguesa. Os portugueses descobriram a conspiração e esmagaram-na com violência. Na
sequência, o governo português abriu um escritório da Polícia Interna10
Resolução nº 1514 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1960, conhecida como a
Declaração sobre a Concessão de Independência aos Países e aos Povos Coloniais.
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cional e de Defesa do Estado (PIDE), em Díli, para manter, sob sua vigilância, os movimentos indonésios e os sentimentos antiportugueses.
Na década de 1950, a administração portuguesa buscou implantar
planos de fomento, destinados a revigorar a estagnada economia colonial, incluindo o aumento da produção e exportação do café, a exploração
de minas e o desenvolvimento turístico. Entre as relativas melhorias de
infraestruturas11 contavam-se a construção de estradas, a reparação do
porto de Díli e do aeroporto de Baucau, bem como a instalação de eletricidade e de um sistema municipal de abastecimento de água em Díli.
A classificação de território não autônomo ocorreu em 1960, pela
Assembleia Geral, através da Resolução nº 1542, de 14 de dezembro. Dessa forma, apesar da oposição de Portugal, o Timor-Leste beneficiava-se
de um regime jurídico internacional definido pela Carta das Nações Unidas e por várias resoluções seguidas que desenvolveram as normas jurídicas sobre a autodeterminação. Conforme Teles (1999, p. 382), tal exercício do direito à autodeterminação
[...] compreendia uma escolha de entre três alternativas,
como foi clarificado pela Resolução 1541 (XV) de 14
Dezembro 1960 da Assembleia Geral e reafirmado na Resolução 2625 (XXV) de 24 Outubro 1970: a) emergência
como Estado soberano e independente; b) livre associação
com um Estado independente; ou c) integração num Estado independente.
Apesar das resoluções da ONU (e da consequente pressão a Portugal), o regime de Salazar (e, mais tarde, de Marcelo Caetano) negligenciava a evolução da situação nas colônias, seja na Ásia, seja na África.
Essa conjuntura somente se alterou com o acesso ao poder do general
Antônio de Spínola, após a Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974.
Uma série de fatores externos foi fundamental para a descolonização portuguesa na Ásia, principalmente levando-se em conta o sistema
mundial estabelecido no pós-Segunda Guerra Mundial e condicionado
durante a Guerra Fria. A pressão que os Estados ocidentais e (a própria
ONU) fazia pela descolonização não chegou a redimensionar efetivamente a posição estratégica das colônias portuguesas orientais:
Goa, Damão e Diu (tanto quanto o Timor) eram territórios
pequenos e remotos das influências principais do centro
imperial [...] Sendo pequenos, eles tinham pouco interesse
11
Porém, o acesso dos nativos à educação manteve-se limitado ao longo da presença portuguesa. Os filhos dos liurai conquistaram algum acesso ao ensino primário a partir de cerca
de 1860; em 1904 os jesuítas abriram uma escola missionária em Soibada, que se tornou um
importante lugar de aprendizagem para os timorenses de todo o território. No entanto, o
sistema de ensino ocidental manteve-se propriedade quase exclusiva dos cidadãos portugueses. Em 1964, apenas 10 timorenses eram detentores de um grau acadêmico. Em 1975,
havia 18 médicos a trabalho no hospital de Díli e em clínicas regionais (DUNN, 2003).
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para a balança de poder entre os dois superblocos [...]
Timor também era uma diminuta parte do império e seu
mais remoto entre-posto. Inserido no arquipélago indonésio-muçulmano, era o mais ignorado por Salazar. (GONÇALVES, 2003, p. 55, tradução nossa).
Diferente da descolonização africana, no sudeste asiático a colônia
portuguesa não entrou em luta armada contra as forças imperialistas
através de movimentos de libertação (como em Angola, Moçambique e
Guiné-Bissau). As forças portuguesas mantiveram-se nos territórios em
número reduzido, ampliando a vulnerabilidade local (houve permanência do efetivo militar português em Angola e Moçambique), o território
não se mostrou como local estratégico (e área de influência) para as duas
superpotências e seus aliados e, também, não detinha amplas reservas
minerais que causassem interesse entre facções internas e vizinhas.
4 Pró-independência, pró-Portugal, pró-Indonésia...
Os anos de 1974 e 1975 foram cruciais para a evolução política no
Timor: após a Revolução dos Cravos, o aumento das tensões sociais ocorreu associado à fundação de partidos políticos e movimentos sociais, nos
mais variados setores e intenções. Em julho de 1975, a Assembleia da República portuguesa promulgou a Lei nº. 7/75, que garantia ao povo timorense o direito à autodeterminação, prevendo, para outubro de 1976, a
realização das eleições legislativas livres no território, fato que definiria seu
futuro status administrativo e político.
Antes disso, e em função da referida Lei, a primeira associação a
formar-se foi a União Democrática Timorense (UDT), fundada em 11 de
maio de 1974. Os seus fundadores eram tendencialmente conservadores, e
muitos encontravam-se unidos por laços à administração colonial portuguesa, o que refletia o seu estatuto social privilegiado e a função que desempenhavam como intermediários entre os timorenses e os colonizadores
portugueses. O primeiro presidente da UDT foi Francisco Lopes da Cruz.
O primeiro manifesto dessa União defendia uma autonomia progressiva, sob
administração portuguesa, embora também apoiasse o direito à autodeterminação. Em agosto de 1974, anunciou-se uma mudança de posição, declarando como seu objetivo final a independência, após um período de federação com Portugal. Rejeitava-se também a integração com outros países. Com
essa mudança, a UDT dera provas de sua maleabilidade política, em resposta às alterações ocorridas no panorama político português e à evidência de
que o nacionalismo era uma força crescente no próprio Timor.
Nove dias após a fundação da UDT, em 20 de maio, foi criada a
Associação Social Democrata Timorense (ASDT). Os fundadores da
ASDT eram, sobretudo, jovens intelectuais timorenses, com antecedentes
diversos, alguns pertencentes à administração portuguesa, outros oriunCiências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 51-75, jul./dez. 2010
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dos do grupo anticolonial do início da década de 1970. Mais velho e mais
conhecido que os fundadores jovens da associação, Francisco Xavier do
Amaral foi nomeado presidente. Outras figuras importantes eram Mari
Alkatiri, José Ramos-Horta, Nicolau Lobato e Justino Mota. A ASDT publicou o seu manifesto no dia 22 de maio, afirmando o direito à independência e uma posição anticolonial e nacionalista. Nele se declarava
igualmente o empenho da associação em garantir uma política de “boa
vizinhança” com os países da região, sem comprometer os interesses do
povo timorense; defendia a independência imediata e viria, em 12 de
setembro, a denominar-se Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente (FRETILIN).
A terceira agregação a constituir-se foi a Associação Popular Democrática Timorense (Apodeti), fundada em 27 de maio do mesmo ano.
Inicialmente pensara-se em denominá-la Associação para a Integração do
Timor na Indonésia, como forma de sintetizar seu objetivo principal. Teve
como presidente fundador Arnaldo dos Reis Araújo, embora o estrategista
fosse José Fernando Osório Soares, que deixara a ASDT para tornar-se
secretário-geral da Apodeti. Outra figura fundamental foi Hermenegildo
Martins, grande latifundiário local. O liurai de Atsabe, Guilherme Maria
Gonçalves, aderiu à Apodeti pouco depois da sua formação, trazendo consigo parte do apoio da sua base regional de poder. O cônsul da Indonésia
em Díli, Elias Tomodok, transformou-se num importante canal de aconselhamento e apoio financeiro à Apodeti, no período de 1974 e 1975. O manifesto da Apodeti declarava como seu objetivo a integração autônoma na
Indonésia, de acordo com o direito internacional, embora essa pretensão
fosse incompatível com a Constituição da Indonésia. Tal como os outros
dois grandes partidos, partilhava a rejeição de várias mazelas atribuídas à
administração portuguesa – por exemplo, a corrupção e a discriminação – e
proclamava seu respeito pelos direitos humanos e liberdades individuais.
Outros três partidos políticos, de menor atuação, foram fundados
após esses três iniciais. Criado em setembro de 1974, o Partido Trabalhista tinha por objetivo a conquista da independência através da possibilidade de uma fase transitória federativa, ainda ligada à Portugal. José
Martins desertou da Apodeti e criou um partido de caráter prómonárquico, a Associação dos Filhos dos Guerreiros Timorenses (Klibur
Oan Timor Asswain – KOTA), em 20 de novembro de 1974. Um terceiro
partido, a Associação Democrática para a Integração do Timor-Leste na
Austrália (Aditla), propunha a integração com a Austrália, mas desapareceu depois de este país rejeitar essa hipótese em março de 1975. Apenas
ASDT e a UDT se beneficiariam de apoio popular em todo o território.
Somente em novembro de 1974, o General Lemos Pires assumiu
como governador do Timor (ficando vago o cargo por sete meses, desde a
Revolução em Lisboa). Estabeleceu-se a coligação entre UDT e FRETILIN
em 20 de janeiro de 1975, com o objetivo de um processo de autonomia
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que assegurasse, num prazo de 5 a 10 anos, a independência do TimorLeste. Em 20 de agosto seguinte, rompeu-se tal aliança, e a FRETILIN
tomou o quartel-general de Díli. Uma semana após, as tropas portuguesas se retiraram para Ataúro, assim como o governador Pires. Aproximadamente 20 mil refugiados fugiram para Atambua e foram mantidos em
campos de refugiados pelos indonésios. Assim, no dia 28 de novembro
de 1975, a FRETILIN declarou unilateralmente a independência e chegou
a constituir governo: Xavier do Amaral era o Presidente da República,
Nicolau Lobato, o Primeiro Ministro, Ramos Horta, o Ministro das Relações Exteriores e Informação, Mari Alkatiri, o Ministro de Estado dos
Assuntos Econômicos e Sociais.
Os partidários contrários à FRETILIN se refugiaram no lado ocidental do Timor (província indonésia de Nusa Tengara Timur). Em consequência, a UDT, a Apodeti e o Kota formaram um movimento anticomunista, e, pressionados pela Indonésia, assinaram a declaração de Balibó,12
solicitando a integração à Indonésia. No início de dezembro, o Presidente
indonésio visitou o Presidente norte-americano Henry Ford e seu Secretário de Estado, Henry Kissinger, os quais aconselharam Suharto a resolver a
questão indonésia “pelo uso da força” (GONÇALVES, 2003, p. 60).
Em 07 de dezembro seguinte, a Indonésia invadiu o Timor-Leste,
através da Operação Komodo. Os dirigentes da FRETILIN foram obrigados a retirar-se para países estrangeiros (Ramos Horta, Mari Alkatiri e Rogério Lobato foram recebidos em Lisboa por Abílio Araújo; no Timor, Xanana Gusmão e MaHuno, entre outros líderes, refugiaram-se nas montanhas). A justificativa indonésia para a invasão – alegando a defesa contra o
comunismo – rendeu a simpatia do governo dos EUA e da Austrália; porém, não impediu a sua condenação pela comunidade internacional.
À invasão indonésia seguiu-se uma das maiores tragédias do pós-Segunda
Guerra Mundial. A Indonésia recorreu a todos os meios para dominar a
resistência: no campo, a guerrilha não se rendeu, embora com escassos
recursos materiais, humanos e financeiros. Embora reduzida a poucas centenas de homens mal-armados e isolados do mundo, conseguiu ampliar a
sua luta no meio urbano, com manifestações de massas, e manter no exterior uma permanente luta diplomática. O apoio da Igreja Católica local,
liderada por D. Carlos Ximenes Belo, bispo de Díli, foi fundamental.
A pretexto de liquidar as atividades do movimento guerrilheiro, o
Exército indonésio praticou uma política de violência indiscriminada contra a população civil, tornada quase toda ela inimiga (estima-se, conforme
as próprias Forças Armadas Indonésias, que houve em torno de 300 mil
12
Em 30 de novembro de 1975, representantes da UDT, Apodeti, KOTA e Partido Trabalhista assinaram, sob controle indonésio, a “Proclamação da Integração”, também conhecida
por “Declaração de Balibó”, em que é defendida a integração do Timor-Leste à República da
Indonésia, solicitando “medidas imediatas no sentido de proteger as vidas das pessoas que
ora se consideram elas próprias como parte do Povo Indonésio vivendo sob o terror e práticas fascistas da FRETILIN consentidas pelo Governo de Portugal”.
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vítimas em 20 anos de repressão e fome). Em 1978, após a morte do presidente da FRETILIN, na altura, Nicolau Lobato, Xanana Gusmão assumiu o
comando da luta armada. Depois dos combates de 1978 e 1979, Xanana
mostrou uma capacidade notável de repensar toda a orientação da luta de
resistência. Após concluir com êxito a reconstrução das Forças Revolucionárias da FRETILIN (Falintil) compreendeu que já não bastava considerar a
luta como sinônimo de FRETILIN. O debate entre dirigentes sobreviventes
da FRETILIN e das Falintil sobre as causas e consequências da derrocada
militar, e a ideia de formar um novo Conselho Revolucionário de Resistência Nacional (CRRN) levaram à escolha, em março de 1981, na Conferência
de Maubai, de Xanana como líder da resistência.
Simultaneamente, a fim de dar à ocupação um caráter irreversível,
foi baixada a Lei Marcial, desenvolveu-se uma política de descaracterização13 do território, quer no plano cultural (proibição do ensino do português e a islamização), no plano demográfico (javanização, aldeias de recolonização e esterilização forçada de mulheres timorenses), ou ainda no
plano político (invasão efetiva das Forças Armadas Indonésias em junho
de 1976 e integração do Timor na Indonésia como sua 27ª província, a
partir de decreto do Presidente Suharto em 17 de julho de 1976). A essa
descaracterização há que acrescentar a exploração das riquezas naturais
através de um acordo com a Austrália para a exploração do petróleo no
Mar do Timor (Timor Gap). Portugal, após esse episódio, rompeu relações
com a Indonésia e usou os canais diplomáticos para forçar a retirada das
tropas indonésias.
5 O longo processo de negociação
Sob gradual pressão diplomática portuguesa, o Conselho de Segurança das Nações Unidas promulgou uma série de resoluções reconhecendo o direito da autodeterminação ao povo do Timor, além de condenar a ação indonésia. De fato, apenas com a Resolução nº 37/30, de 23 de
novembro de 1982, a Assembleia Geral solicitou ao Secretário-Geral das
Nações Unidas que iniciasse “conversações com todas as partes diretamente interessadas, com vista a explorar caminhos para alcançar uma
solução global para o problema”. E, a partir de 1983, a questão do TimorLeste passou da Assembleia Geral para o Secretário-Geral.
Em meados da década de 1980, foram criadas várias células estudantis clandestinas em escolas do ensino secundário em Díli. Em 1986,
surgiu a Organização de Juventude Católica de Timor-Leste (OJECTIL),
formada por ativistas estudantis baseados no Externato de São José, que
se transformaria numa organização de base nacional. Nesse mesmo ano,
13
62
Gonçalves (2003, p. 61) define essa política como de indonesianização dos timorenses.
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a primeira universidade de Timor-Leste foi criada em Díli, com o nome
Universitas Timor Timur (Untim).
Na Segunda Conferência Nacional da FRETILIN (1984), Xanana anunciou que, apesar de continuar como comandante-chefe das Falintil, não
continuaria a ser membro da FRETILIN, e de então em diante se colocaria
acima da política partidária. Sob a sua direção política, a FRETILIN tinha já
abandonado a sua posição esquerdista e aceitado publicamente a necessidade de um sistema multipartidário. Agora estabelecia contatos com o
antigo parceiro de coligação a UDT. Em março de 1986, a delegação exterior da FRETILIN (em Lisboa) anunciou a formação da Convergência Nacionalista, baseada nos dois partidos, denominada Conselho Nacional da
Resistência Maubere (CNRM), sob a presidência de Xanana. Ao mesmo
tempo, as Falintil transformaram-se em exército nacional do Timor-Leste.
Com a adesão da Resistência Nacional Estudantil de Timor-Leste (Renetil),
passou a existir uma frente de âmbito nacional, conglomerando todos os
partidos e aglomerações políticas dedicados à independência.
A visita do Papa João Paulo II ao Timor-Leste, em outubro de
1989, foi marcada por manifestações pró-independência, que foram duramente reprimidas. Em 12 de novembro de 1991, as tropas indonésias
dispararam sobre uma procissão pacífica no Cemitério de Santa Cruz,
em Dili, que tinha transformado-se em uma manifestação pró-independência. Mais de 271 timorenses foram mortos naquele dia no cemitério
de Santa Cruz ou em hospitais logo depois. O Massacre de Santa Cruz
foi o estopim para o movimento de solidariedade internacional para a
siutuação do Timor. Em consequencia, as conversações foram suspensas
e reiniciadas apenas um ano depois.
A partir de então, o Secretário-Geral e os Ministros dos Negócios
Estrangeiros das duas partes discutiram, em reuniões regulares, acesso
e visitas ao território por parte das Nações Unidas e de organizações
humanitárias ou de direitos humanos, bem como a promoção de um
fórum de diálogo para os timorenses para “trocar pontos de vista para
explorar ideias de natureza prática que possam ter um impacto positivo
na situação de Timor Leste e contribuir para a criação de uma atmosfera
que permita alcançar uma solução para a questão de Timor Leste” (TELES, 1999, p. 387).
Após 1995, rápidos progressos foram alcançados relativamente a
uma solução global para o problema do Timor-Leste. A causa ganhou
repercussão mundial com a atribuição do Prêmio Nobel da Paz ao bispo D.
Carlos Ximenes Belo e a José Ramos Horta em outubro de 1996. Em julho
de 1997, o presidente sul-africano Nelson Mandela visitou o líder da
FRETILIN, Xanana Gusmão, que estava preso na Indonésia (entre 1992 e
1999).14
14
A visita aumentou a pressão para que a independência fosse feita através de uma solução
negociada. A crise na economia da Ásia, no mesmo ano, afetou duramente a Indonésia.
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Em 1996, as partes começaram a discutir um eventual quadro para
solucionar a questão do Timor e outros assuntos a ele relacionados, tais
como a preservação da identidade cultural timorense e a retomada das
relações bilaterais entre Portugal e Indonésia. Em 12 de fevereiro de 1997,
o Secretário-Geral, Kofi Annan, nomeou Jamsheed Marker, do Paquistão,
como seu representante pessoal para a questão de Timor Leste, que passou a representá-lo em todas as funções de bons ofícios. Jamsheed Marker visitou a Indonésia e o Timor Leste pela primeira vez entre 16 e 23 de
dezembro de 1997.
Após a renúncia do Presidente Suharto (maio de 1998), o Presidente Habibie e o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Ali Alatas, apresentaram uma proposta de autonomia especial para o Timor e de libertação de
Xanana Gusmão (e de outros prisioneiros timorenses), caso Portugal e
Nações Unidas aceitassem a integração do Timor-Leste na Indonésia. Em
suma, após uma rodada de conversações em Nova Iorque, no início de
agosto de 1998, Portugal e a Indonésia concordaram em, sem prejuízo
para as respectivas posições de princípio, discutir a proposta indonésia
de autonomia especial para o Timor-Leste; envolver os timorenses no
processo de procura de uma solução para o território através de consultas
com o Secretário-Geral; reduzir gradualmente a presença militar indonésia no território e acelerar a libertação dos prisioneiros políticos timorenses; estabelecer seções de interesses nas respectivas capitais até ao final
de 1998 e facilitar a obtenção de vistos por parte dos respectivos cidadãos.
Entretanto, em janeiro de 1999, a Indonésia anunciou, para surpresa de todos, que, se a proposta de autonomia fosse rejeitada pelos timorenses, estes poderiam então optar pela independência; em outras palavras, após a Consulta popular, a rejeição da autonomia levaria à independência do território, através de votação direta e universal supervisionada pelas Nações Unidas. Com efeito, Portugal e a Indonésia deveriam
concluir um acordo, em que se preveria também a libertação do líder da
resistência, Xanana Gusmão. Tendo presente a possibilidade de um Timor-Leste independente, Portugal e as Nações Unidas passaram a desenhar o período de transição para a independência.
A Austrália, por seu turno, mencionou a necessidade de renegociar o Tratado do Timor Gap, cujos proveitos poderiam vir a constituir
fonte de financiamento para um Timor independente. Portugal criou, em
25 de fevereiro, um grupo de trabalho interministerial para elaborar um
plano de transição para Timor Leste, em caso de autonomia ou independência, e subsequentemente criou em maio o Alto Comissariado para a
Transição no Timor Leste.
O regime militar de Suharto começou a sofrer diversas pressões, com manifestações cada
vez mais violentas nas ruas. Tais atos levam à demissão do general, em maio de 1998.
64
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Enfim, em março de 1999, as partes concordaram que as Nações
Unidas seriam responsáveis pelo arranjo e pela supervisão da Consulta
popular, a qual abrangeria os timorenses que se encontravam tanto no
interior do território como na diáspora. De acordo com a proposta de
autonomia, o estatuto especial do Timor Leste (Região Autônoma Especial do Timor Leste – RAETL) seria baseado nos seguintes elementos,
que, de certo modo, se contrabalançavam:
a)
b)
governo, eleições e legislação autônomos (mas prevendo-se a possibilidade do direito indonésio continuar a ser aplicável aos casos em que o direito timorense fosse omisso ou não dispusesse em contrário,
i.e. numa base de complementaridade para evitar lacunas); e
sistema judicial autônomo (mas prevendo-se a possibilidade de recurso para o supremo tribunal indonésio). Esta autonomia não abrangia os negócios estrangeiros (embora a RAETL pudesse participar em
certas organizações internacionais), defesa (mas com
a possibilidade de o governo autônomo se poder
pronunciar sobre o número de tropas no território)
ou os assuntos económicos, fiscais ou financeiros
(embora algumas competências fossem partilhadas).
(TELES, 1999, p. 391).
Um item relevante dessa proposta referia-se à “identidade timorense”, levando-se em consideração a capacidade de eleger e de ser eleito
pelos nacionais. Apenas residentes no Timor-Leste anteriores a dezembro
de 1975 (ou cujos pais ou avós eram residentes nessa data) eram considerados como possuindo tal identidade. O governo (a Autoridade Timorense) poderia assinar acordos e convenções com governos estrangeiros e organizações internacionais nas seguintes áreas: comércio, cultura,
finanças, ambiente, ciência e tecnologia, turismo e desporto. O governo
timorense poderia também solicitar ajuda internacional para o desenvolvimento do território, desde que em consulta com o governo indonésio;
poderia, igualmente, permitir a instalação de representações de organizações internacionais e de um consulado português em Díli, e ainda tornar-se membro de organizações internacionais tais como a Comunidade
de Países de Língua Oficial Portuguesa (CPLP). Esse plano de autonomia,
composto de três fases, previa, entre outros itens, a escolha dos símbolos
nacionais – hino e bandeira –, e a Autoridade Timorense teria amplas
competências administrativas, fiscais e de ordem pública, incluindo uma
força policial timorense. No entanto, as tropas indonésias permaneceriam
no território. Acordou-se ainda a nomeação, pelo Secretário-Geral das
Nações Unidas, de um conselho transitório para preparar as eleições.
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Em 05 de maio de 1999, Portugal e Indonésia concluíram os três
acordos de Nova Iorque,15 sem prejuízo para as respectivas posições de
princípio quanto ao estatuto de Timor Leste – que permitiram que os
timorenses fossem finalmente consultados sobre o futuro do seu território: autonomia no seio da Indonésia ou independência. As Nações Unidas foram encarregadas de organizar a Consulta popular, bem como de
supervisionar a implementação dos seus resultados.
Nos termos dos Acordos de Nova Iorque e com a interpretação
que lhes foi dada pelas partes, até a revogação do ato de anexação pelo
parlamento indonésio – que ocorreu no final de outubro –, a Indonésia
continuaria a ser a autoridade de facto. Subsequentemente, Portugal –
autoridade de jure – e a Indonésia – autoridade de facto – transfeririam
para as Nações Unidas a administração do território, e essa organização
administraria o território até a sua independência. Até a transferência da
administração para as Nações Unidas e a retirada por completo das tropas e administração indonésias, Timor Leste continuou a ser um território não autônomo sob ocupação indonésia.
A principal tarefa atribuída à Missão das Nações Unidas no Timor
Leste (UNAMET)16 foi a organização e a condução da Consulta Popular
com base num voto direto, secreto e universal. A UNAMET desempenhou essa tarefa com eficiência, do ponto de vista eleitoral, não obstante
as difíceis condições de segurança e um calendário extremamente apertado de apenas quatro meses. Na verdade, nunca durante todo o processo
eleitoral – entre maio e agosto – as condições de segurança se encontraram
reunidas. As atividades intimidatórias das milícias pró-integração levaram
ao deslocamento de muitos timorenses e limitaram fortemente a capacidade dos apoiadores da independência de se exprimirem livremente.17
No período que antecedeu a Consulta Popular, e com base nas estimativas de organizações humanitárias, tais como o Alto Comissariado
para os Refugiados (ACNUR), a UNAMET considerava que existiam pelo
menos 50.000 deslocados internos no território timorense e cerca de 5.000
refugiados no Timor indonésio. A própria questão dos deslocados internos/refugiados foi uma das que mais preocupou a UNAMET durante
todo o processo eleitoral. A violência praticada pelas milícias próindonésia resultou em aproximadamente 100 mortos depois da apuração
do resultado da votação. Esse fato fez com que a Indonésia fosse denunciada como violadora dos direitos humanos dos timorenses e obrigada a
15
Acordo sobre as Modalidades da Consulta Popular, sobre Segurança e quanto à Autonomia Especial.
16 A Resolução nº. 1246 (11 de junho de 1999) do Conselho de Segurança das Nações Unidas
autorizou a criação da UNAMET nos moldes propostos pelo Secretário-Geral.
17
Conforme Relatório do Secretário-Geral S/1999/803, 20 julho 1999 e Carta para o Conselho de Segurança S/1999/822, 26 julho 1999.
66
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aceitar – depois da aprovação pelo Conselho Superior das Nações Unidas
– uma força de intervenção.
Em 30 de agosto de 1999, ocorreu a Consulta Popular, com taxa de
participação impressionante, quando aproximadamente 98% da população compareceu às urnas. A contagem dos votos, determinada pela Comissão Eleitoral, revelou que, dos 438.968 votos válidos, uma maioria
esmagadora tinha escolhido a independência: por 78,5% contra 21,5%, os
timorenses expressaram o seu desejo de se tornarem independentes. Foi o
que o Secretário-Geral das Nações Unidas comunicou ao Conselho de
Segurança (S/1999/944, 3 setembro 1999) e ao mundo, e o que Ian Martin, Chefe de Missão da UNAMET, comunicou à população do Timor
Leste no dia 4 de setembro de 1999. O número de observadores presentes
durante o processo eleitoral chegou a atingir cerca de 2000 no dia da
Consulta Popular.18 De acordo com Teles (1999), existem provas de que a
violência que se verificou no Timor após a Consulta Popular, numa tentativa de boicotar os seus resultados, foi orquestrada pelas autoridades
indonésias.19
Era claro, desde o início, que a fase de implementação dos resultados da Consulta popular (fase II) seria um período mais difícil do que o
da sua preparação e realização, especialmente no caso de uma vitória da
independência. Os timorenses avisaram frequentemente que os indonésios levariam tudo com eles, “incluindo as lâmpadas e as torneiras” – o
que na verdade veio a acontecer, e o que ficou para trás ficou queimado
ou destruído. Já o relatório do Secretário-Geral (9 de agosto de 1999,
S/1999/862) afirmava que as Nações Unidas seriam “chamadas a desempenhar um papel mais substantivo no Timor no período pósConsulta” e reconhecia que durante a fase interina a situação no Timor
Leste seria “bastante delicada”. A Resolução do Conselho de Segurança
18
Estiveram presentes, entre outros, representantes dos governos da Austrália, da Nova
Zelândia, do Canadá, do Brasil e da Noruega, da União Europeia e da CPLP e representantes das organizações não governamentais IFET, CIIR, Carter Center, AFREL, AETIVP,
APCET, PET e IPJET. Quanto aos observadores domésticos, destacaram-se as organizações
não governamentais KIPER, Yassan HAK, Kontras e Comissão Justiça e Paz.
19
Teles (1999, p. 410) afirma sobre a existência de um documento confidencial elaborado
pela Task Force indonésia em Díli (representação do Ministério dos Negócios Estrangeiros),
intitulado “Avaliação da situação no caso de a Opção 1 falhar” e datado de 3 de julho de
1999, partindo de um ponto de vista pessimista quanto à possibilidade de a autonomia
(opção 1) vencer na consulta popular, avalia a situação no território caso a opção 1 falhasse.
Esse documento refere que as Forças Armadas Indonésias (TNI) sofreriam certamente
grande humilhação se tivessem de abandonar o território, que haveria uma “carnificina”
dos apoiadores da integração e que as consequências da independência seriam “extremamente assustadoras” para os funcionários públicos. Os principais autores dessa onda de
violência encontravam-se, por um lado, entre membros das Forças Armadas Indonésias
(Generais Wiranto, Parabowo, Zacky Anwar, Noer Muis e Adam Damiri, e os Coronéis
Tono Suratman e Timbul Silaen, este último o comandante da polícia), e os líderes das
milícias pró-integração, políticos (Domingos Soares e Francisco Lopes da Cruz, entre outros) e burocratas (João Tavares, Eurico Guterres, Hermínio da Costa, Câncio Carvalho).
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nº. 1262 (27 de agosto) prorrogou o mandato da UNAMET até 30 de novembro e aprovou as propostas do Secretário-Geral quanto à composição
e tarefas da UNAMET20 durante a fase II. Assim, a presença das Nações
Unidas acabou por ser uma presença armada, devido à deterioração da
situação de segurança, que, para além do mais, levou à quase total evacuação da UNAMET do Timor (houve cerco da sede). Ficou evidente que
a Indonésia era incapaz de manter a segurança no Timor-Leste já durante
o processo eleitoral, sendo que a própria Comissão Eleitoral denunciou-a
por violação dos Acordos de Nova Iorque, pelo fato de não garantir as
condições mínimas de segurança.
Logo após a chegada da Força Internacional no Timor-Leste
(INTERFET), já na fase III, em setembro de 1999, as Forças Armadas e
autoridades indonésias começaram a abandonar o território, embora o
governo indonésio continuasse a afirmar que manteria as suas responsabilidades com o Timor até o ato de anexação ser revogado pelo parlamento. Segundo os Acordos de Nova Iorque, nessa fase, as Nações Unidas
administrariam transitoriamente o território no caso de uma vitória da
independência.
Após o parlamento indonésio ter aprovado, unanimemente, em 19
de outubro, a revogação do ato de anexação de Timor-Leste (de 1976) –
tal como previsto no artigo 6.º dos Acordos de Nova Iorque –, o Conselho
de Segurança aprovou a criação da Administração Transitória das Nações
Unidas no Timor-Leste (UNTAET),21 para um período inicial até 31 de
janeiro de 2001, devendo a componente militar da UNTAET22 substituir
as forças da INTERFET. Os elementos fundamentais do mandato da
UNTAET eram garantir a segurança e a ordem no território timorense;
estabelecer sua administração efetiva; contribuir para o desenvolvimento
dos serviços sociais e civis; assegurar a coordenação e distribuição de
ajuda humanitária, reabilitação e assistência ao desenvolvimento; apoiar
o desenvolvimento de capacidades de autogoverno; e apoiar a criação de
condições para um desenvolvimento sustentável. O diplomata brasileiro
Sérgio Vieira de Mello foi nomeado pelo Secretário-Geral como Representante Especial da UNTAET em Díli (e, por consequência, administrador
transitório para Timor Leste). De novembro de 1999 a abril de 2002, Vieira de Mello representava o governo em transição no Timor. Ainda no
final de outubro, os últimos militares indonésios que ainda se encontravam no território deixaram o território timorense, pondo assim fim a 24
anos de ocupação militar.
20
O mandato da Missão das Nações Unidas no Timor-Leste (UNAMET) foi de junho a
novembro de 1999.
21 Conforme proposto pelo Secretário-Geral, na Resolução nº. 1272 de 25 de outubro de
1999.
22
O mandato da Administração Transitória das Nações Unidas no Timor-Leste (UNTAET)
foi de novembro de 1999 a maio de 2002.
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6 A independência e os problemas posteriores
A fase III do plano teve seu auge com as eleições legislativas (agosto de 2001), a promulgação da Constituição Nacional (março de 2002) e as
eleições presidenciais (abril de 2002), quando Xanana Gusmão, da
FRETILIN, se consagrou como o novo presidente timorense: em 20 de
maio de 2002, o Timor-Leste tornou-se totalmente independente. Seu
Primeiro-Ministro foi escolhido Mari Bim Amude Alkatiri.
Foi criada uma Comissão Nacional de Acolhimento, Verdade e
Reconciliação.23 A divisão administrativa do território fez-se em 13 distritos, cada um com uma capital, e que manteve, com poucas diferenças, os
limites dos 13 conselhos existentes durante os últimos anos do período
colonial português. Estes também são formados 67 subdistritos, variando
o seu número entre três e sete subdistritos por distrito. Os subdistritos
são divididos em 498 sucos, compostos por uma localidade sede e
subdivisões administrativas, e que variam entre dois e dezoito sucos por
subdistrito.
A Missão das Nações Unidas de Apoio ao Timor-Leste (UNMISET), cujo mandato ocorreu de maio de 2002 a maio de 2005, tinha por
objetivo prestar assistência ao recém-independente Estado, principalmente no que se referia às responsabilidades operacionais. Findo o mandato da UNMISET, estabeleceu-se uma missão política das Nações Unidas no Timor, o Escritório das Nações Unidas em Timor-Leste (UNOTIL),
de maio de 2005 a agosto de 2006, apoiando o desenvolvimento das instituições estatais e fornecendo treinamento no âmbito da governança democrática e dos direitos humanos. Além de criarem condições para mudar o regime, as tropas apoiaram as estruturas de poder local.
No entanto, a mais acentuada crise no Timor-Leste pós-independência começou com um motim de 600 soldados entre fevereiro e março
de 2006. O Primeiro-Ministro Alkatiri demitiu-os. O choque entre os militares promoveu um levante nas Forças Armadas e generalizou a desordem civil: milhares de timorenses foram mortos nesses combates, e mais
de 155 mil fugiram de suas casas. A situação só se acalmou com a prorrogação do mandato da UNOTIL (clamada pelo governo timorense e mesmo pelas forças políticas de oposição), em 20 de agosto de 2006, e do envio de tropas para assistência militar-policial da Austrália, Nova
23
A Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação (CAVR) foi criada em 2001 e funcionou de 2002 até dezembro de 2005; era independente, estatutariamente dirigida por sete
comissários timorenses e tinha por objetivo procurar a verdade do período de 1974/1999,
facilitar a reconciliação comunitária para os crimes menos graves, fazer relatórios do trabalho, apresentando conclusões e fazendo recomendações. O Relatório final, intitulado Chega!,
foi apresentado ao Presidente, Parlamento e Governo de Timor-Leste logo após a sua conclusão, em outubro de 2005. Ver: CAVR-TR. Disponível em:
<http://www.cavr-timorleste.org/po/home.htm>. Acesso em: 20 ago. 2010.
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Zelândia, Malásia e Portugal. O próprio governo timorense criou o “Joint
Command”, uma força conjunta da polícia e do exército nacional, que
durou quatro meses, para reforçar o policiamento nos centros urbanos e
esclarecer as motivações dos rebeldes.
O Conselho de Segurança das Nações Unidas, por meio da Resolução nº 1704, de 25 de agosto de 2006, estabeleceu a Missão Integrada das
Nações Unidas no Timor-Leste (UNMIT), com o mandato de longo alcance
para ajudar o país a superar as consequências e as causas do levante de
200624. A composição dessa missão passou a incluir aproximadamente
1.500 agentes policiais e militares de ligação e funcionários da organização.
Xanana Gusmão não concorreu à reeleição presidencial de abril/
maio de 2007 e fundou o partido Congresso Nacional para a Reconstrução do Timor-Leste (CNRT). O acompanhamento de observadores
internacionais continuou (principalmente Nações Unidas e CPLP). No
segundo turno (09 de maio), José Manuel Ramos-Horta, representante da
União Democrática Timorense (UDT) foi eleito Presidente da República,
em disputa com Francisco Guterres Lu Olo (candidato da FRETILIN). Em
6 de agosto seguinte, Ramos-Horta indicou Xanana Gusmão como
Primeiro-Ministro, que apesar de segundo classificado nas eleições
legislativas de junho, costurou acordos pós-eleitorais com as restantes
forças políticas da oposição, na tentativa de conferir ao seu governo
relativa estabilidade. Em 2008, Xanana assumiu também o Ministério
Conjunto de Defesa e Segurnaça timorense.
7 Considerações finais
Entre os principais fatores de debilidade para a construção do
Estado nacional timorense se encontram, por um lado, a pesada herança
colonial portuguesa e de dominação indonésia, que deixaram marcas
profundas na sociedade timorense, na burocracia estatal e na infraestrutura do país. Por outro lado, e em consequência direta dessa herança,
o Timor-Leste não tem conseguido reverter o precário desenvolvimento
econômico, que relaciona-se à permanência de uma economia quase
totalmente de subsistência (ainda baseada na agropecuária – cafeicultura
e avicultura), à ausência de planos de industrialização e, principalmente,
à devastação da infraestrutura nacional no final da década de 1990 pelas
tropas indonésias (e milícias pró-indonésias), no imediato pós-Consulta.
Mesmo com o sucesso da Consulta de 1999 e da consequente independência, em 2002, a comunidade internacional tem assistido preocupada a evolução sócio-política timorense, principalmente em relação ao
agravamento das tensões sociais e nas Forças Armadas. Em Relatório de
24
O mandato da UNMIT foi estendido, pela Resolução nº 1912, de 26 de fevereiro de 2010,
do Conselho de Segurança das Nações, até 26 de fevereiro de 2011.
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avaliação da situação no país, o Secretário-Geral das Nações Unidas, em
2006, referiu-se ao legado misto dos vinte e quatro anos de ocupação, o
qual resultou em um abismo de compreensão que separa aqueles que
passaram anos como combatentes da resistência, aqueles que viviam em
cidades ocupadas (e aldeias) e os que ficaram no exílio. Continua o
Relatório:
Veteranos e jovens estão divididos por um fosso entre as
gerações, que é o produto de um conflito que durou mais
de uma geração e passou por várias fases distintas, [...]
eles são unidos por um sentido comum de exclusão. As
consequências do passado violento interno [...] legaram
um medo arraigado profundamente de qualquer forma de
disputa política. O fato de que a resistência era regionalmente fragmentada e operada clandestinamente durante
grande parte da sua existência, muitas vezes obscureceu a
verdadeira contribuição dos indivíduos e regiões determinadas à causa [...] (REPORT, 2006, p. 08, tradução nossa).
Os recursos minerais escassos do novo Estado se relacionam
diretamente à necessidade de cooperação com os Estados vizinhos, nesta
exploração de riquezas. Esse é o caso do tratado assiando em 2001, entre
a Austrália e o Timor-Leste (sob administração das Nações Unidas),
relacionado à zona de desenvolvimento e partilha de receitas de áreas do
Mar do Timor – especialmente em relação à extração de petróleo e gás
natural – em vez de uma fronteira marítima, como se previa em 1972.
Essa área é conhecida como Timor Gap, pois possui grande parte da riqueza mineral do Mar de Timor.25 Estimativas sobre o seu valor variam,
mas as três principais reservas petrolíferas no Gap – Sunset, Bayu-Udan e
Elang-Kakatua – contêm um total previsto de 500 milhões de barris.
A divisão das receitas resultantes dos direitos de exploração na área (Zona de Cooperação, onde está localizada a quase totalidade das reservas),
é atualmente de 50% para cada lado. Apesar de insignificantes em comparação com os padrões da Arábia Saudita, os lucros resultantes dos direitos de exploração e impostos serão de importância capital para o estado timorense.
Pobreza e exclusão social agravam a crise, num país onde
aproximadamente 42% da população vive abaixo da linha de probreza.
25
Em 1972, Indonésia e Austrália iniciaram as conversações sobre a exploração de petróleo
no Mar do Timor; em 1989, os dois países assinaram um acordo para a exploração conjunta
de petróleo; em 1991, Portugal, na qualidade de potência administrante de Timor, apresentou uma ação contra a Austrália no Tribunal Internacional de Justiça, no qual punha em
causa o acordo celebrado entre esta e a Indonésia em 1989. Em janeiro e fevereiro de 1995,
ocorreram audiências no Tribunal Internacional de Justiça; em junho de 1995, e perante a
falta de consentimento da Indonésia, o Tribunal declarou-se impossibilitado de decidir
sobre o litígio. Ver: Research Note nº 45 2001-02. The Timor Sea Treaty: Are the Issues Resolved? Disponível em:
<http://www.aph.gov.au/Library/pubs/rn/2001-02/02rn45.htm>. Acesso em: 31 ago. 2010.
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Os indicadores sociais preocupam: a taxa de crescimento populacional é a
mais elevada na região, e a incidência da mortalidade infantil, embora
tenha melhorado, continua alta em relação a outros países da região.
O país não produz alimentos suficientes para satisfazer o consumo
mínimo diário, estimando-se que aproximadamente 350 mil pessoas estão
na faixa de insegurança alimentar. A situação de determinados segmentos da população também foi deteriorando-se: as disparidades de
gênero e na educação estão aumentando, e as oportunidades para a
juventude urbana são particularmente limitadas, com o desemprego dos
jovens urbanos em 44%.
O Relatório citado também apontou que as raízes do desequilíbrio
de poder entre as instituições do Estado é de teor político e constitucional, permitindo que o poder executivo funcione com poucas restrições.
O único partido que dominou a vida política desde as eleições de 2001, a
FRETILIN, tem sido gradualmente questionado pela relativa falha de
seus líderes políticos, pela pretensão de sua posição original como de
defensor da independência e dos seus serviços passados para a causa
pró-independência de seu programa atual. A urgência da reforma do
setor de segurança também é apontada por Relatório do Internatinal
Crisis Group, pois não existe uma política nacional de segurança, há
falhas profundas na legislação relativa ao setor, sem contar o estado de
ruína da polícia e do exército nacional, depois da crise de 2006, em que as
duas instituições se encontravam em lados opostos do conflito (TIMORLESTE, 2008).
As causas profundas da crise de 2006 ainda não foram sanadas.
Em 11 de fevereiro de 2008, Ramos-Horta sofreu um atentado, onde os
guardas que faziam sua de sua casa mataram o ex-oficial do Exército de
Timor-Leste, Alfredo Reinado (rebelado desde maio de 2006), acusado
perante a Corte Suprema do país de homicídio, após a onda de violência
causada por sua expulsão do exército junto com 598 outros militares por
desobediência. O mesmo grupo também é acusado de efetuar disparos
contra a residência do primeiro-ministro do país, Xanana Gusmão.
Em meio a esse contexto, a demanda por ajuda internacional só faz
crescer: medicamentos, alimentos, material educacional são enviados ao
país e extensivamente demandados. Adicionalmente, a ação de organizações internacionais e de missões de organismos não governamentais
também aumenta a presença de estrangeiros no país.
Além disso, é falsa a ideia de uma identidade cultural timorense
única e homogênea. Cada um dos vários grupos étno-linguísticos, apesar
de próximos, possui um patrimônio cultural que sofreu, em maior ou
menor grau, uma aculturação, com elementos introduzidos inicialmente
pelo contato com a cultura portuguesa e depois com a indonésia.
A primeira foi trazida, sobretudo pelos missionários, e é mais nítida no
aspecto espiritual (religião, língua e arte) que no material. Como resulta72
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do adicional das ligações pessoais da elite timorense com Portugal, por
exemplo, pode-se citar a escolha da língua portuguesa como uma das
línguas oficiais timorenses (sendo a outra o tétum-praça). O português é a
língua oficial nas escolas, embora os professores muitas vezes dependam
do tétum para explicar os conteúdos aos alunos, educados em língua
tétum-praça.
Mais do mesmo, após oito anos da independência, o Timor-Leste
busca a estabilidade social, a evolução política e o amadurecimento de
suas instituições e o consequente desenvolvimento econômico, como
forma de ultrapassar a herança colonial, ou ainda, de despir-se da imagem de colônia “bastarda, a mais remota, rebelde, negligenciada”,26 primeiro por Portugal, depois pela Indonésia e agora pelo mundo.
Recebido em setembro de 2010.
Aprovado em outubro de 2010.
The State Building in East Timor: Colonization, Occupation, and Independence
Abstract
East Timor carries the status of young Asian state in the world system, determined
by popular vote in August 1999 and institutionalized in May 2002. After more than
four centuries of Portuguese colonial rule, followed by twenty-four years of Indonesian
occupation, and a period of negotiation and transition, the Timorese State has had its
independent status recognized due to, in large part, the unprecedented role played by the
United Nations forces and by the Timorese civil resistance. However, the expected
independence of this former Portuguese colony has not brought peace and effective
consolidation of the Timorese State, but a continuation of the United Nations intervention
on grounds of social tensions, political, and rising humanitarian crisis. In that sense,
this essay reflects on the weak constitution of this state, taking into account the legacy
of Portuguese colonial rule, Indonesian occupation and late independence under the
supervision of the United Nations.
Keywords: East Timor. History of East Timor. Portuguese colonial empire.
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Leone and Timor L’Este. Report prepared by International IDEA for
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26
Conforme palavras do próprio Horta-Ramos (CUNHA, 2001, p. 27).
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