Baixar este arquivo PDF - Associação Educacional Sul
Transcrição
Baixar este arquivo PDF - Associação Educacional Sul
A construção do Estado no Timor-Leste: colonização, ocupação e independência Kamilla R. Rizzi* Resistir é vencer “Dos gritos da dor temos sonhos falados Sonhos lindos de Timor P'ra esquecer passados E sonho é ser livre E sonhamos a paz E sonhamos amor E sonhamos o futuro”. Xanana Gusmão (Díli, 1º de outubro de 1999). Resumo O Timor-Leste carrega consigo o status de mais jovem Estado asiático no sistema mundial, decidido por votação popular em agosto de 1999 e institucionalizado em maio de 2002. Após mais de quatro séculos de domínio colonial português, seguido por vinte e quatro anos de ocupação indonésia e, finalmente, um período de negociação e transição, o Estado timorense teve seu status de independência reconhecido. Status esse devido, em grande parte, ao papel sem precedentes desempenhado pelas forças das Nações Unidas, mas também pela resistência civil timorense. No entanto, a esperada independência dessa antiga colônia portuguesa não trouxe a paz e a efetiva consolidação do Estado timorense, mas uma continuidade da intervenção das Nações Unidas em razão das tensões sociais e políticas e da crise humanitária ascendente. Nesse sentido, o presente artigo busca refletir sobre a débil constituição desse Estado, levando em conta o legado colonial português, a ocupação indonésia e a independência tardia, sob a supervisão das Nações Unidas. Palavras-chave: Timor-Leste. História do Timor-Leste. Império colonial português. 1 Introdução O Timor-Leste possui um território de 14.874 km², ocupando a parte oriental da ilha de Timor, na Ásia (sua única fronteira ocorre com a Indonésia). O relevo do país é montanhoso e o clima tropical propicia * Professora Assistente de Relações Internacionais da Universidade Federal do Pampa e Pesquisadora Associada do Núcleo de Estratégia e Relações Internacionais (NERINT/ UFRGS). Mestre em Relações Internacionais/UFRGS e Doutoranda em Ciência Política/UFRGS. (E-mail: [email protected]). Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 51-75, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 51 períodos de chuvas intensas (monções), além das consequentes avalanches de terra e cheias de rios. O pequeno território possui como recursos naturais o ouro, o petróleo e o gás natural. No Timor existe ainda gás natural e mármore em Manatuto; petróleo, em Suai; manganês, em Vemasi e Loi Lubo; ouro, em Lacio e Elena; e os proventos da área do Timor Gap, com a exploração dos hidrocarbonetos em parceria com a Austrália. A ilha de Ataúro, ao norte de Díli, e o ilhéu de Jaco, a leste do país, também fazem parte do território timorense. Atualmente, o país possui mais de 1.130.000 habitantes1 – com crescimento demográfico de 3,3% nos últimos anos –, sendo que 62% dessa população encontra-se em idade economicamente ativa (entre 15 e 60 anos). Aproximadamente 28% da população vive em áreas urbanas, sendo que apenas 52% da população acima de 15 anos é alfabetizada. O Produto Interno Bruto foi de US$453 milhões em 2009, e o PIB per capita gira em torno de US$390. Em relação à infraestrutura, o Timor-Leste possui nove áreas portuárias (Díli, Hera, Karabela, Batugade, Suai, Beaco, Com, Pante Macassar), das quais se destaca a de Díli; seis aeroportos (Díli, Baucau, Maliana, Suai, Los Palos e Oecussi), sendo Baucau o único com capacidade para aviões de grande porte, e o de Díli, menor, mas com estatuto de aeroporto internacional. A rede viária do território foi destruída, quer pelos efeitos das condições climáticas, quer pela falta de manutenção, pelo que a circulação rodoviária faz-se com dificuldade (com algumas exceções), sendo a distância medida em tempo e não em quilômetros. A agricultura timorense ainda é de subsistência, em sua maioria, com a produção de café, arroz, batata, batata doce, milho e borracha. A pecuária é um setor relativamente desenvolvido no interior do país, com criação de búfalos, porcos e aves. No setor secundário, existem unidades de produção industrial de óleos vegetais, beneficiamento de sisal e algumas unidades de secagem de peixe. No artesanato, assinalase a tecelagem, a cestaria, os adereços de prata e algumas esculturas. O setor de serviços despertou gradualmente com a melhoria na infraestrutura, como restaurantes, bares e hotéis. A seguir apresenta-se uma reflexão sobre a débil constituição do Timor-Leste, considerando o legado colonial português, o período de ocupação Indonésia e a sua tardia independência, sob a supervisão das Nações Unidas. 1 Dados referentes ao ano de 2009, conforme a United Nations Statistics Division. Disponível em: <http://unstats.un.org/unsd/demographic/products/socind/population.htm>. Acesso em: 30 ago. 2010. 52 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 51-75, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 2 A colônia portuguesa na Ásia O primeiro contato dos portugueses com o Timor2 ocorreu no início do século XVI, quando esses ampliavam sua presença na Ásia,3 em busca de sândalo branco. Após Portugal conquistar Málaca em 1511, missionários portugueses construíram a primeira igreja na ilha do Timor, no ano de 1590. Esse é o início da colonização portuguesa, a partir de Lifau (Oecusse), na costa norte da parte ocidental do Timor, protagonizada por frades franciscanos, comerciantes de sândalo e os topasses (grupo miscigenado a partir de marinheiros, comerciantes e soldados portugueses, cujos descendentes subsistem ainda hoje, no Timor). Portugal estabeleceu colônias em outras ilhas da região, mas estas foram tomadas pelos holandeses, que também desalojaram os portugueses de Malaca, de Macassar e de Sulawesi e, em 1652, expulsaram-nos da sua recém-construída fortaleza de Kupang, no Timor Ocidental, apenas cinco anos depois de ser construída.4 As viagens portuguesas à Ásia, nessa época, relacionavam-se com a localização dos centros produtores e distribuidores de mercadorias de luxo e de bens de primeira necessidade. Assim, conforme Loureiro (2001, p. 145), [...] os mercadores lusitanos, por um lado, buscavam o cravo, a noz moscada e a maça, o almíscar e o benjoim, a cânfora e o lacre, as sedas e as porcelanas, e tantas outras mercadorias exóticas [...] Por outro lado, a cidade de Malaca necessitava desesperadamente de alimentos, pois era uma terra quase estéril, que de forma alguma produzia mantimentos suficientes para consumo dos seus próprios habitantes. Além do mais, este entreposto português não podia sobreviver sem um suprimento regular dos mais variados objectos de uso quotidiano, indispensáveis ao bom funcionamento de uma fortaleza e de uma marinha de guerra, como salitre e enxofre, componentes essenciais da pólvora, chumbo para balas, e também amarras, madeira, bréu, estopa, âncoras e outros variados apetrechos navais. 2 Os portugueses não foram os primeiros estrangeiros no Timor-Leste: o comércio de sândalo com os chineses e os javaneses era anterior à presença portuguesa (DUNN, 2003). 3 O império português naquela parte do mundo referia-se a um conjunto de portos e feitorias que, partindo da costa africana, passando por Ormuz, Dio, Goa, Calcutá, Colombo, Málaca, Java, as ilhas Molucas, chegavam ao seu extremo em Macau (litoral da China). Apesar da fragilidade desse império, reduzido com o passar do tempo ao porto indiano de Goa, à ilha de Timor Leste na Indonésia, e à cidade de Macau na China, foi o que mais tempo durou. 4 A batalha de Penfui, entre Portugal e Holanda, ocorreu em meados do século XVII e constituiu um ponto determinante para o controle português do Timor. Penfui localiza-se ao norte da cidade de Kupang, perto do local do aeroporto atual. A derrota portuguesa perante os militares holandeses resultou na expulsão efetiva dos topasses – apoiados pelos portugueses – do maior porto da ilha, em Kupang. Tratou-se de um claro indício da superioridade militar dos holandeses. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 51-75, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 53 Durante os primeiros dois séculos de contatos luso-timorenses, os diversos reinos da ilha de Timor mantiveram uma permanente autonomia face aos portugueses. As relações com os portugueses foram sempre de natureza esporádica, circunscritas a determinados entrepostos no litoral, com a exceção de algumas investidas missionárias. Não houve durante séculos ocupação plena da parte leste da ilha do Timor pelos portugueses. Em 1702, o governo português estabeleceu formalmente a sua presença em Lifau, administrando o Timor a partir da colônia de Goa.5 O artifício do governador, ao conceder patentes militares aos reis locais (liurai), criou no governo do Timor um precedente que perdurou até o século XX. No entanto, os portugueses tiveram de enfrentar desafios no território, originados nos liurai e nos topasses (que nessa época dominavam o comércio de sândalo e, apesar da sua ascendência portuguesa, só esporadicamente se mostravam cooperativos). Por volta de 1710, a imposição de um tributo em gêneros, a finta, provocou uma rebelião e descontentamento nos nativos, fato que forçou Portugal a transferir sua administração para Díli em 1769, onde os portugueses entraram em contato com o povo Belu, que habitava a zona oriental da ilha. Mesmo com sua nova base em Díli, os portugueses ainda dispunham de pouca influência e controle geográfico limitado sobre o TimorLeste. Durante algum tempo, Portugal viu-se confinado à costa norte, devido à resistência local e à sua capacidade militar limitada. Em 1851, o governador Lopes de Lima deu início a uma série de complexas negociações territoriais com as autoridades coloniais holandesas, implicando os liurai e centradas nos patrimônios de áreas fronteiriças como Maucata (no interior timorense), em Maubara e na ilha das Flores (controlada pelos portugueses). Depois, Portugal enfrentou uma resistência limitada, até que o governador Afonso de Castro recorreu à força militar para impor o cultivo do café. Esta impopular iniciativa provocou uma revolta em 1861, seguida de uma série de rebeliões localizadas, dirigidas pelos liurai, contra os excessos coloniais. Em resposta, em 1895, a administração portuguesa impôs o controle direto sobre o Timor-Leste, quando o governador Celestino da Silva afirmou a presença administrativa e militar na totalidade do território, dividindo-o em onze distritos, incluindo o enclave de Oecusse. É relevante frisar que, em 1859, Portugal cedeu a parte ocidental da ilha à Holanda. As negociações resultaram no princípio da troca de territórios entre os dois países, com vista ao estabelecimento de uma fronteira negociada com base numa divisão Leste-Oeste da ilha entre as potências coloniais rivais. Isto veio aliviar Portugal das guerras coloniais com os Países Baixos, permitindo-lhe reforçar o seu poder na parte orien5 Goa tornou-se o centro do comércio português na Ásia, local onde Afonso de Albuquerque fundou a primeira igreja em 1511, data do início do vice-reinado da Índia. 54 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 51-75, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> tal da ilha.6 Em 1895, Portugal criou unidades militar-administrativas em todos os dez distritos de Timor-Leste. Oecusse foi acrescentada, tornando-se o 11º distrito. Portugal construiu aquartelamentos militares, escritórios, algumas escolas, hospitais e prisões, antes dos finais do século XIX. Quando, no pós-Segunda Guerra Mundial, a Indonésia lutou pela independência e a conquistou, fundamentou as suas pretensões nacionais, junto às Nações Unidas, nas antigas fronteiras coloniais holandesas.7 Foi com base nesse princípio que manteve a luta, acabando por entrar em guerra, pela posse de Irian Jaya/Papua Ocidental, na década de 1960. Embora alguma retórica se exprimisse no conceito de “Grande Indonésia” durante a luta nacionalista, nela incluindo-se áreas da Malásia Britânica e do Bornéu, esta nunca foi seriamente proposta à ONU.8 Os portugueses exerceram uma autoridade indireta através dos liurai, cuja cooperação asseguraram, permitindo-lhes que retivessem autonomia nos seus territórios de origem. Os portugueses aproveitaram-se das rivalidades internas entre os liurai, ganhando acesso ao poder dos seus pequenos exércitos (grupos milicianos), dos quais se serviram para reforçarem os seus próprios recursos militares. Os colonizadores utilizaram pela primeira vez as milícias dos liurai em 1642, durante a campanha contra o reino de Wehale, e continuaram a fazê-lo até esmagarem a rebelião de Viqueque, em 1959. Dunn (2003, p. 4, tradução nossa) tece considerações sobre a relação entre a administração portuguesa e as comunidades locais timorenses: Até 1970, a maioria dessas pessoas só tinham contato direto com raros representantes do poder metropolitano. As relações oficiais, tais como eram, ascenderam a pouco mais do que a coleta anual de dados demográficos, a cobrança de impostos sobre cabeças de gado [...] Na maioria dos casos estas onerosas [...] tarefas não foram executadas pelos oficiais portugueses, mas pelo chefe de suco (chefe da tribo), um timorense nomeado pelo governo para exercer funções administrativas ao nível tribal, cujas responsabilidades eram bastante limitadas, com outros aspectos da política e autoridade social restantes nas mãos dos governantes locais tradicionais. 6 As negociações pela parte ocidental da ilha foram levadas ao Tribunal Internacional de Haia, onde uma decisão definitiva sobre as fronteiras coloniais ficou lavrada na Sentença Arbitral datada de 1913; a troca final de territórios entre os Países Baixos e Portugal, após a decisão, ocorreu em 1917. Como resultado, o Timor-Leste permaneceu a única possessão colonial portuguesa no arquipélago. Esta definição formal das fronteiras internacionais entre os Países Baixos e Portugal transformou-se num ponto de referência fundamental para o futuro político de Timor-Leste. 7 Em 1949, a metade ocidental da ilha do Timor, colonizado pela Holanda, passou a fazer parte da recém-independente República da Indonésia. 8 Em exposições apresentadas às Nações Unidas, nos finais da década de 1950, relativamente às suas reivindicações sobre Irian Jaya, a Indonésia negou explicitamente ter qualquer reivindicação a fazer relativamente ao Timor português. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 51-75, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 55 Para os portugueses, o preço pago por esta política de “dividir para reinar” foi o de uma persistente resistência em relação à sua autoridade. Para os habitantes locais, esse preço foi uma profunda debilidade e desunião da comunidade timorense. Essa sistemática de governança portuguesa no Timor gerou uma profunda distinção entre a elite e o povo, a cidade e o campo, ainda hoje percebidos. Durante a maior parte do século XX, Portugal confrontou-se com uma situação de instabilidade interna. Em 1910, a monarquia foi substituída por uma república, a qual, por sua vez, passou a regime de partido único depois de 1928. Durante este período, muitos chineses entraram na colônia do Timor português e desenvolveram o seu papel como negociadores intermediários. Portugal, apesar dos seus problemas internos, criou a Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho (SAPT), um conglomerado comercial que proporcionou nova infraestrutura para a produção e a exportação local.9 Ainda assim, o Timor continuou a ser um distante entreposto colonial que funcionava com níveis mínimos de apoio da metrópole, quer em quadro de pessoal quer na forma de investimentos diretos. Em 1929, existiam apenas 200 portugueses originários da metrópole, além de mais 300 soldados. Lisboa continuava a governar através de intermediários locais. Já em 1930, a Lei Colonial criou conselhos locais representativos, mas, em grande medida, desprovidos de poder, permitindo alguma elegibilidade dos nativos do Timor-Leste ao estatuto de cidadãos portugueses. Após o ataque do Japão a Pearl Harbor, em dezembro de 1941, a Austrália previu que o Japão ocuparia o Timor e, e em poucos dias, tropas australianas, britânicas e holandesas desembarcaram em Díli, numa intervenção classificada como medida preventiva, ignorando a neutralidade portuguesa. O Japão invadiu o Timor em 19 de fevereiro de 1942. As repercussões da invasão na sociedade timorense foram devastadoras. Entre 40 e 60 mil timorenses foram dados como mortos; muitos foram torturados e assassinados pelas tropas japonesas, com base na suspeita de prestarem auxílio aos guerrilheiros australianos. A escravidão sexual de mulheres timorenses pelas tropas japonesas era generalizada. Não só o território se viu empobrecido pela guerra, como foram semeadas divisões entre as pessoas consideradas apoiadoras dos japoneses e as pessoas consideradas apoiadoras da pequena força de guerrilheiros australianos. 9 A SAPT era gerida pela empresa brasileira de construção civil Moniz da Maia, Serra e Fortunato. 56 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 51-75, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> Cabe ressaltar que a difusão do cristianismo foi, a partir da década de 1940, rápida e em extensão, pecando por não ser profunda, pois, ainda hoje, apesar de a grande maioria da população estar convertida ao catolicismo, subsistem elementos da religião tradicional; mesmo assim, pode-se considerar que o cristianismo constitui, de fato, um dos pilares da identidade timorense. Os missionários não foram apenas responsáveis pela assimilação da cultura portuguesa por parte dos timorenses: em resposta ao processo de aculturação imposto pela Indonésia quando da sua permanência no território, traduziram os textos litúrgicos para tétumpraça e mantiveram ainda o ensino da língua portuguesa nas suas escolas, bem como alguns cânticos religiosos. Esta atitude permitiu conservar não apenas a religião católica no maior país muçulmano do mundo, como preservar a individualidade do Timor-Leste e transformar o tétum-praça na língua timorense mais falada. A Igreja local, como única estrutura subsistente, esteve sempre ao lado do povo timorense, principalmente durante o período de ocupação indonésia. Aqueles que tinham dificuldades ou problemas com os indonésios recorriam ao auxílio da hierarquia religiosa. O papel dessa instituição foi ainda determinante para a realização do referendo de 1999 e como forma de divulgar a grave situação que se vivia no Timor durante a ocupação indonésia, principalmente através da figura D. Carlos Ximenes Belo, bispo de Díli. 3 O início do movimento pela descolonização O acesso gradual à autonomia dos países colonizados era garantia do artigo 73º da Carta das Nações Unidas. À medida que parte dos países colonizadores concedia a independência às suas colônias no pós-Segunda Guerra Mundial, tal consenso internacional se ampliou, exprimindo-se através de mecanismos como a Assembleia Geral da ONU, que, em 1960, reconheceu o colonialismo como negação dos direitos humanos.10 Como tentativa de resposta à pressão internacional, em 1951, Portugal atribuiu às suas colônias a designação de Províncias Ultramarinas, uma iniciativa de cunho paternalista e emergencial; porém, sem teor efetivo: na prática, na isolada Timor não se desenvolveu qualquer movimento de independência semelhante aos nascidos nas colônias africanas de Portugal. Em 1959, um grupo de exilados indonésios participou do levante em Viqueque contra a administração colonial portuguesa. Os portugueses descobriram a conspiração e esmagaram-na com violência. Na sequência, o governo português abriu um escritório da Polícia Interna10 Resolução nº 1514 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1960, conhecida como a Declaração sobre a Concessão de Independência aos Países e aos Povos Coloniais. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 51-75, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 57 cional e de Defesa do Estado (PIDE), em Díli, para manter, sob sua vigilância, os movimentos indonésios e os sentimentos antiportugueses. Na década de 1950, a administração portuguesa buscou implantar planos de fomento, destinados a revigorar a estagnada economia colonial, incluindo o aumento da produção e exportação do café, a exploração de minas e o desenvolvimento turístico. Entre as relativas melhorias de infraestruturas11 contavam-se a construção de estradas, a reparação do porto de Díli e do aeroporto de Baucau, bem como a instalação de eletricidade e de um sistema municipal de abastecimento de água em Díli. A classificação de território não autônomo ocorreu em 1960, pela Assembleia Geral, através da Resolução nº 1542, de 14 de dezembro. Dessa forma, apesar da oposição de Portugal, o Timor-Leste beneficiava-se de um regime jurídico internacional definido pela Carta das Nações Unidas e por várias resoluções seguidas que desenvolveram as normas jurídicas sobre a autodeterminação. Conforme Teles (1999, p. 382), tal exercício do direito à autodeterminação [...] compreendia uma escolha de entre três alternativas, como foi clarificado pela Resolução 1541 (XV) de 14 Dezembro 1960 da Assembleia Geral e reafirmado na Resolução 2625 (XXV) de 24 Outubro 1970: a) emergência como Estado soberano e independente; b) livre associação com um Estado independente; ou c) integração num Estado independente. Apesar das resoluções da ONU (e da consequente pressão a Portugal), o regime de Salazar (e, mais tarde, de Marcelo Caetano) negligenciava a evolução da situação nas colônias, seja na Ásia, seja na África. Essa conjuntura somente se alterou com o acesso ao poder do general Antônio de Spínola, após a Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974. Uma série de fatores externos foi fundamental para a descolonização portuguesa na Ásia, principalmente levando-se em conta o sistema mundial estabelecido no pós-Segunda Guerra Mundial e condicionado durante a Guerra Fria. A pressão que os Estados ocidentais e (a própria ONU) fazia pela descolonização não chegou a redimensionar efetivamente a posição estratégica das colônias portuguesas orientais: Goa, Damão e Diu (tanto quanto o Timor) eram territórios pequenos e remotos das influências principais do centro imperial [...] Sendo pequenos, eles tinham pouco interesse 11 Porém, o acesso dos nativos à educação manteve-se limitado ao longo da presença portuguesa. Os filhos dos liurai conquistaram algum acesso ao ensino primário a partir de cerca de 1860; em 1904 os jesuítas abriram uma escola missionária em Soibada, que se tornou um importante lugar de aprendizagem para os timorenses de todo o território. No entanto, o sistema de ensino ocidental manteve-se propriedade quase exclusiva dos cidadãos portugueses. Em 1964, apenas 10 timorenses eram detentores de um grau acadêmico. Em 1975, havia 18 médicos a trabalho no hospital de Díli e em clínicas regionais (DUNN, 2003). 58 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 51-75, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> para a balança de poder entre os dois superblocos [...] Timor também era uma diminuta parte do império e seu mais remoto entre-posto. Inserido no arquipélago indonésio-muçulmano, era o mais ignorado por Salazar. (GONÇALVES, 2003, p. 55, tradução nossa). Diferente da descolonização africana, no sudeste asiático a colônia portuguesa não entrou em luta armada contra as forças imperialistas através de movimentos de libertação (como em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau). As forças portuguesas mantiveram-se nos territórios em número reduzido, ampliando a vulnerabilidade local (houve permanência do efetivo militar português em Angola e Moçambique), o território não se mostrou como local estratégico (e área de influência) para as duas superpotências e seus aliados e, também, não detinha amplas reservas minerais que causassem interesse entre facções internas e vizinhas. 4 Pró-independência, pró-Portugal, pró-Indonésia... Os anos de 1974 e 1975 foram cruciais para a evolução política no Timor: após a Revolução dos Cravos, o aumento das tensões sociais ocorreu associado à fundação de partidos políticos e movimentos sociais, nos mais variados setores e intenções. Em julho de 1975, a Assembleia da República portuguesa promulgou a Lei nº. 7/75, que garantia ao povo timorense o direito à autodeterminação, prevendo, para outubro de 1976, a realização das eleições legislativas livres no território, fato que definiria seu futuro status administrativo e político. Antes disso, e em função da referida Lei, a primeira associação a formar-se foi a União Democrática Timorense (UDT), fundada em 11 de maio de 1974. Os seus fundadores eram tendencialmente conservadores, e muitos encontravam-se unidos por laços à administração colonial portuguesa, o que refletia o seu estatuto social privilegiado e a função que desempenhavam como intermediários entre os timorenses e os colonizadores portugueses. O primeiro presidente da UDT foi Francisco Lopes da Cruz. O primeiro manifesto dessa União defendia uma autonomia progressiva, sob administração portuguesa, embora também apoiasse o direito à autodeterminação. Em agosto de 1974, anunciou-se uma mudança de posição, declarando como seu objetivo final a independência, após um período de federação com Portugal. Rejeitava-se também a integração com outros países. Com essa mudança, a UDT dera provas de sua maleabilidade política, em resposta às alterações ocorridas no panorama político português e à evidência de que o nacionalismo era uma força crescente no próprio Timor. Nove dias após a fundação da UDT, em 20 de maio, foi criada a Associação Social Democrata Timorense (ASDT). Os fundadores da ASDT eram, sobretudo, jovens intelectuais timorenses, com antecedentes diversos, alguns pertencentes à administração portuguesa, outros oriunCiências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 51-75, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 59 dos do grupo anticolonial do início da década de 1970. Mais velho e mais conhecido que os fundadores jovens da associação, Francisco Xavier do Amaral foi nomeado presidente. Outras figuras importantes eram Mari Alkatiri, José Ramos-Horta, Nicolau Lobato e Justino Mota. A ASDT publicou o seu manifesto no dia 22 de maio, afirmando o direito à independência e uma posição anticolonial e nacionalista. Nele se declarava igualmente o empenho da associação em garantir uma política de “boa vizinhança” com os países da região, sem comprometer os interesses do povo timorense; defendia a independência imediata e viria, em 12 de setembro, a denominar-se Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente (FRETILIN). A terceira agregação a constituir-se foi a Associação Popular Democrática Timorense (Apodeti), fundada em 27 de maio do mesmo ano. Inicialmente pensara-se em denominá-la Associação para a Integração do Timor na Indonésia, como forma de sintetizar seu objetivo principal. Teve como presidente fundador Arnaldo dos Reis Araújo, embora o estrategista fosse José Fernando Osório Soares, que deixara a ASDT para tornar-se secretário-geral da Apodeti. Outra figura fundamental foi Hermenegildo Martins, grande latifundiário local. O liurai de Atsabe, Guilherme Maria Gonçalves, aderiu à Apodeti pouco depois da sua formação, trazendo consigo parte do apoio da sua base regional de poder. O cônsul da Indonésia em Díli, Elias Tomodok, transformou-se num importante canal de aconselhamento e apoio financeiro à Apodeti, no período de 1974 e 1975. O manifesto da Apodeti declarava como seu objetivo a integração autônoma na Indonésia, de acordo com o direito internacional, embora essa pretensão fosse incompatível com a Constituição da Indonésia. Tal como os outros dois grandes partidos, partilhava a rejeição de várias mazelas atribuídas à administração portuguesa – por exemplo, a corrupção e a discriminação – e proclamava seu respeito pelos direitos humanos e liberdades individuais. Outros três partidos políticos, de menor atuação, foram fundados após esses três iniciais. Criado em setembro de 1974, o Partido Trabalhista tinha por objetivo a conquista da independência através da possibilidade de uma fase transitória federativa, ainda ligada à Portugal. José Martins desertou da Apodeti e criou um partido de caráter prómonárquico, a Associação dos Filhos dos Guerreiros Timorenses (Klibur Oan Timor Asswain – KOTA), em 20 de novembro de 1974. Um terceiro partido, a Associação Democrática para a Integração do Timor-Leste na Austrália (Aditla), propunha a integração com a Austrália, mas desapareceu depois de este país rejeitar essa hipótese em março de 1975. Apenas ASDT e a UDT se beneficiariam de apoio popular em todo o território. Somente em novembro de 1974, o General Lemos Pires assumiu como governador do Timor (ficando vago o cargo por sete meses, desde a Revolução em Lisboa). Estabeleceu-se a coligação entre UDT e FRETILIN em 20 de janeiro de 1975, com o objetivo de um processo de autonomia 60 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 51-75, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> que assegurasse, num prazo de 5 a 10 anos, a independência do TimorLeste. Em 20 de agosto seguinte, rompeu-se tal aliança, e a FRETILIN tomou o quartel-general de Díli. Uma semana após, as tropas portuguesas se retiraram para Ataúro, assim como o governador Pires. Aproximadamente 20 mil refugiados fugiram para Atambua e foram mantidos em campos de refugiados pelos indonésios. Assim, no dia 28 de novembro de 1975, a FRETILIN declarou unilateralmente a independência e chegou a constituir governo: Xavier do Amaral era o Presidente da República, Nicolau Lobato, o Primeiro Ministro, Ramos Horta, o Ministro das Relações Exteriores e Informação, Mari Alkatiri, o Ministro de Estado dos Assuntos Econômicos e Sociais. Os partidários contrários à FRETILIN se refugiaram no lado ocidental do Timor (província indonésia de Nusa Tengara Timur). Em consequência, a UDT, a Apodeti e o Kota formaram um movimento anticomunista, e, pressionados pela Indonésia, assinaram a declaração de Balibó,12 solicitando a integração à Indonésia. No início de dezembro, o Presidente indonésio visitou o Presidente norte-americano Henry Ford e seu Secretário de Estado, Henry Kissinger, os quais aconselharam Suharto a resolver a questão indonésia “pelo uso da força” (GONÇALVES, 2003, p. 60). Em 07 de dezembro seguinte, a Indonésia invadiu o Timor-Leste, através da Operação Komodo. Os dirigentes da FRETILIN foram obrigados a retirar-se para países estrangeiros (Ramos Horta, Mari Alkatiri e Rogério Lobato foram recebidos em Lisboa por Abílio Araújo; no Timor, Xanana Gusmão e MaHuno, entre outros líderes, refugiaram-se nas montanhas). A justificativa indonésia para a invasão – alegando a defesa contra o comunismo – rendeu a simpatia do governo dos EUA e da Austrália; porém, não impediu a sua condenação pela comunidade internacional. À invasão indonésia seguiu-se uma das maiores tragédias do pós-Segunda Guerra Mundial. A Indonésia recorreu a todos os meios para dominar a resistência: no campo, a guerrilha não se rendeu, embora com escassos recursos materiais, humanos e financeiros. Embora reduzida a poucas centenas de homens mal-armados e isolados do mundo, conseguiu ampliar a sua luta no meio urbano, com manifestações de massas, e manter no exterior uma permanente luta diplomática. O apoio da Igreja Católica local, liderada por D. Carlos Ximenes Belo, bispo de Díli, foi fundamental. A pretexto de liquidar as atividades do movimento guerrilheiro, o Exército indonésio praticou uma política de violência indiscriminada contra a população civil, tornada quase toda ela inimiga (estima-se, conforme as próprias Forças Armadas Indonésias, que houve em torno de 300 mil 12 Em 30 de novembro de 1975, representantes da UDT, Apodeti, KOTA e Partido Trabalhista assinaram, sob controle indonésio, a “Proclamação da Integração”, também conhecida por “Declaração de Balibó”, em que é defendida a integração do Timor-Leste à República da Indonésia, solicitando “medidas imediatas no sentido de proteger as vidas das pessoas que ora se consideram elas próprias como parte do Povo Indonésio vivendo sob o terror e práticas fascistas da FRETILIN consentidas pelo Governo de Portugal”. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 51-75, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 61 vítimas em 20 anos de repressão e fome). Em 1978, após a morte do presidente da FRETILIN, na altura, Nicolau Lobato, Xanana Gusmão assumiu o comando da luta armada. Depois dos combates de 1978 e 1979, Xanana mostrou uma capacidade notável de repensar toda a orientação da luta de resistência. Após concluir com êxito a reconstrução das Forças Revolucionárias da FRETILIN (Falintil) compreendeu que já não bastava considerar a luta como sinônimo de FRETILIN. O debate entre dirigentes sobreviventes da FRETILIN e das Falintil sobre as causas e consequências da derrocada militar, e a ideia de formar um novo Conselho Revolucionário de Resistência Nacional (CRRN) levaram à escolha, em março de 1981, na Conferência de Maubai, de Xanana como líder da resistência. Simultaneamente, a fim de dar à ocupação um caráter irreversível, foi baixada a Lei Marcial, desenvolveu-se uma política de descaracterização13 do território, quer no plano cultural (proibição do ensino do português e a islamização), no plano demográfico (javanização, aldeias de recolonização e esterilização forçada de mulheres timorenses), ou ainda no plano político (invasão efetiva das Forças Armadas Indonésias em junho de 1976 e integração do Timor na Indonésia como sua 27ª província, a partir de decreto do Presidente Suharto em 17 de julho de 1976). A essa descaracterização há que acrescentar a exploração das riquezas naturais através de um acordo com a Austrália para a exploração do petróleo no Mar do Timor (Timor Gap). Portugal, após esse episódio, rompeu relações com a Indonésia e usou os canais diplomáticos para forçar a retirada das tropas indonésias. 5 O longo processo de negociação Sob gradual pressão diplomática portuguesa, o Conselho de Segurança das Nações Unidas promulgou uma série de resoluções reconhecendo o direito da autodeterminação ao povo do Timor, além de condenar a ação indonésia. De fato, apenas com a Resolução nº 37/30, de 23 de novembro de 1982, a Assembleia Geral solicitou ao Secretário-Geral das Nações Unidas que iniciasse “conversações com todas as partes diretamente interessadas, com vista a explorar caminhos para alcançar uma solução global para o problema”. E, a partir de 1983, a questão do TimorLeste passou da Assembleia Geral para o Secretário-Geral. Em meados da década de 1980, foram criadas várias células estudantis clandestinas em escolas do ensino secundário em Díli. Em 1986, surgiu a Organização de Juventude Católica de Timor-Leste (OJECTIL), formada por ativistas estudantis baseados no Externato de São José, que se transformaria numa organização de base nacional. Nesse mesmo ano, 13 62 Gonçalves (2003, p. 61) define essa política como de indonesianização dos timorenses. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 51-75, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> a primeira universidade de Timor-Leste foi criada em Díli, com o nome Universitas Timor Timur (Untim). Na Segunda Conferência Nacional da FRETILIN (1984), Xanana anunciou que, apesar de continuar como comandante-chefe das Falintil, não continuaria a ser membro da FRETILIN, e de então em diante se colocaria acima da política partidária. Sob a sua direção política, a FRETILIN tinha já abandonado a sua posição esquerdista e aceitado publicamente a necessidade de um sistema multipartidário. Agora estabelecia contatos com o antigo parceiro de coligação a UDT. Em março de 1986, a delegação exterior da FRETILIN (em Lisboa) anunciou a formação da Convergência Nacionalista, baseada nos dois partidos, denominada Conselho Nacional da Resistência Maubere (CNRM), sob a presidência de Xanana. Ao mesmo tempo, as Falintil transformaram-se em exército nacional do Timor-Leste. Com a adesão da Resistência Nacional Estudantil de Timor-Leste (Renetil), passou a existir uma frente de âmbito nacional, conglomerando todos os partidos e aglomerações políticas dedicados à independência. A visita do Papa João Paulo II ao Timor-Leste, em outubro de 1989, foi marcada por manifestações pró-independência, que foram duramente reprimidas. Em 12 de novembro de 1991, as tropas indonésias dispararam sobre uma procissão pacífica no Cemitério de Santa Cruz, em Dili, que tinha transformado-se em uma manifestação pró-independência. Mais de 271 timorenses foram mortos naquele dia no cemitério de Santa Cruz ou em hospitais logo depois. O Massacre de Santa Cruz foi o estopim para o movimento de solidariedade internacional para a siutuação do Timor. Em consequencia, as conversações foram suspensas e reiniciadas apenas um ano depois. A partir de então, o Secretário-Geral e os Ministros dos Negócios Estrangeiros das duas partes discutiram, em reuniões regulares, acesso e visitas ao território por parte das Nações Unidas e de organizações humanitárias ou de direitos humanos, bem como a promoção de um fórum de diálogo para os timorenses para “trocar pontos de vista para explorar ideias de natureza prática que possam ter um impacto positivo na situação de Timor Leste e contribuir para a criação de uma atmosfera que permita alcançar uma solução para a questão de Timor Leste” (TELES, 1999, p. 387). Após 1995, rápidos progressos foram alcançados relativamente a uma solução global para o problema do Timor-Leste. A causa ganhou repercussão mundial com a atribuição do Prêmio Nobel da Paz ao bispo D. Carlos Ximenes Belo e a José Ramos Horta em outubro de 1996. Em julho de 1997, o presidente sul-africano Nelson Mandela visitou o líder da FRETILIN, Xanana Gusmão, que estava preso na Indonésia (entre 1992 e 1999).14 14 A visita aumentou a pressão para que a independência fosse feita através de uma solução negociada. A crise na economia da Ásia, no mesmo ano, afetou duramente a Indonésia. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 51-75, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 63 Em 1996, as partes começaram a discutir um eventual quadro para solucionar a questão do Timor e outros assuntos a ele relacionados, tais como a preservação da identidade cultural timorense e a retomada das relações bilaterais entre Portugal e Indonésia. Em 12 de fevereiro de 1997, o Secretário-Geral, Kofi Annan, nomeou Jamsheed Marker, do Paquistão, como seu representante pessoal para a questão de Timor Leste, que passou a representá-lo em todas as funções de bons ofícios. Jamsheed Marker visitou a Indonésia e o Timor Leste pela primeira vez entre 16 e 23 de dezembro de 1997. Após a renúncia do Presidente Suharto (maio de 1998), o Presidente Habibie e o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Ali Alatas, apresentaram uma proposta de autonomia especial para o Timor e de libertação de Xanana Gusmão (e de outros prisioneiros timorenses), caso Portugal e Nações Unidas aceitassem a integração do Timor-Leste na Indonésia. Em suma, após uma rodada de conversações em Nova Iorque, no início de agosto de 1998, Portugal e a Indonésia concordaram em, sem prejuízo para as respectivas posições de princípio, discutir a proposta indonésia de autonomia especial para o Timor-Leste; envolver os timorenses no processo de procura de uma solução para o território através de consultas com o Secretário-Geral; reduzir gradualmente a presença militar indonésia no território e acelerar a libertação dos prisioneiros políticos timorenses; estabelecer seções de interesses nas respectivas capitais até ao final de 1998 e facilitar a obtenção de vistos por parte dos respectivos cidadãos. Entretanto, em janeiro de 1999, a Indonésia anunciou, para surpresa de todos, que, se a proposta de autonomia fosse rejeitada pelos timorenses, estes poderiam então optar pela independência; em outras palavras, após a Consulta popular, a rejeição da autonomia levaria à independência do território, através de votação direta e universal supervisionada pelas Nações Unidas. Com efeito, Portugal e a Indonésia deveriam concluir um acordo, em que se preveria também a libertação do líder da resistência, Xanana Gusmão. Tendo presente a possibilidade de um Timor-Leste independente, Portugal e as Nações Unidas passaram a desenhar o período de transição para a independência. A Austrália, por seu turno, mencionou a necessidade de renegociar o Tratado do Timor Gap, cujos proveitos poderiam vir a constituir fonte de financiamento para um Timor independente. Portugal criou, em 25 de fevereiro, um grupo de trabalho interministerial para elaborar um plano de transição para Timor Leste, em caso de autonomia ou independência, e subsequentemente criou em maio o Alto Comissariado para a Transição no Timor Leste. O regime militar de Suharto começou a sofrer diversas pressões, com manifestações cada vez mais violentas nas ruas. Tais atos levam à demissão do general, em maio de 1998. 64 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 51-75, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> Enfim, em março de 1999, as partes concordaram que as Nações Unidas seriam responsáveis pelo arranjo e pela supervisão da Consulta popular, a qual abrangeria os timorenses que se encontravam tanto no interior do território como na diáspora. De acordo com a proposta de autonomia, o estatuto especial do Timor Leste (Região Autônoma Especial do Timor Leste – RAETL) seria baseado nos seguintes elementos, que, de certo modo, se contrabalançavam: a) b) governo, eleições e legislação autônomos (mas prevendo-se a possibilidade do direito indonésio continuar a ser aplicável aos casos em que o direito timorense fosse omisso ou não dispusesse em contrário, i.e. numa base de complementaridade para evitar lacunas); e sistema judicial autônomo (mas prevendo-se a possibilidade de recurso para o supremo tribunal indonésio). Esta autonomia não abrangia os negócios estrangeiros (embora a RAETL pudesse participar em certas organizações internacionais), defesa (mas com a possibilidade de o governo autônomo se poder pronunciar sobre o número de tropas no território) ou os assuntos económicos, fiscais ou financeiros (embora algumas competências fossem partilhadas). (TELES, 1999, p. 391). Um item relevante dessa proposta referia-se à “identidade timorense”, levando-se em consideração a capacidade de eleger e de ser eleito pelos nacionais. Apenas residentes no Timor-Leste anteriores a dezembro de 1975 (ou cujos pais ou avós eram residentes nessa data) eram considerados como possuindo tal identidade. O governo (a Autoridade Timorense) poderia assinar acordos e convenções com governos estrangeiros e organizações internacionais nas seguintes áreas: comércio, cultura, finanças, ambiente, ciência e tecnologia, turismo e desporto. O governo timorense poderia também solicitar ajuda internacional para o desenvolvimento do território, desde que em consulta com o governo indonésio; poderia, igualmente, permitir a instalação de representações de organizações internacionais e de um consulado português em Díli, e ainda tornar-se membro de organizações internacionais tais como a Comunidade de Países de Língua Oficial Portuguesa (CPLP). Esse plano de autonomia, composto de três fases, previa, entre outros itens, a escolha dos símbolos nacionais – hino e bandeira –, e a Autoridade Timorense teria amplas competências administrativas, fiscais e de ordem pública, incluindo uma força policial timorense. No entanto, as tropas indonésias permaneceriam no território. Acordou-se ainda a nomeação, pelo Secretário-Geral das Nações Unidas, de um conselho transitório para preparar as eleições. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 51-75, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 65 Em 05 de maio de 1999, Portugal e Indonésia concluíram os três acordos de Nova Iorque,15 sem prejuízo para as respectivas posições de princípio quanto ao estatuto de Timor Leste – que permitiram que os timorenses fossem finalmente consultados sobre o futuro do seu território: autonomia no seio da Indonésia ou independência. As Nações Unidas foram encarregadas de organizar a Consulta popular, bem como de supervisionar a implementação dos seus resultados. Nos termos dos Acordos de Nova Iorque e com a interpretação que lhes foi dada pelas partes, até a revogação do ato de anexação pelo parlamento indonésio – que ocorreu no final de outubro –, a Indonésia continuaria a ser a autoridade de facto. Subsequentemente, Portugal – autoridade de jure – e a Indonésia – autoridade de facto – transfeririam para as Nações Unidas a administração do território, e essa organização administraria o território até a sua independência. Até a transferência da administração para as Nações Unidas e a retirada por completo das tropas e administração indonésias, Timor Leste continuou a ser um território não autônomo sob ocupação indonésia. A principal tarefa atribuída à Missão das Nações Unidas no Timor Leste (UNAMET)16 foi a organização e a condução da Consulta Popular com base num voto direto, secreto e universal. A UNAMET desempenhou essa tarefa com eficiência, do ponto de vista eleitoral, não obstante as difíceis condições de segurança e um calendário extremamente apertado de apenas quatro meses. Na verdade, nunca durante todo o processo eleitoral – entre maio e agosto – as condições de segurança se encontraram reunidas. As atividades intimidatórias das milícias pró-integração levaram ao deslocamento de muitos timorenses e limitaram fortemente a capacidade dos apoiadores da independência de se exprimirem livremente.17 No período que antecedeu a Consulta Popular, e com base nas estimativas de organizações humanitárias, tais como o Alto Comissariado para os Refugiados (ACNUR), a UNAMET considerava que existiam pelo menos 50.000 deslocados internos no território timorense e cerca de 5.000 refugiados no Timor indonésio. A própria questão dos deslocados internos/refugiados foi uma das que mais preocupou a UNAMET durante todo o processo eleitoral. A violência praticada pelas milícias próindonésia resultou em aproximadamente 100 mortos depois da apuração do resultado da votação. Esse fato fez com que a Indonésia fosse denunciada como violadora dos direitos humanos dos timorenses e obrigada a 15 Acordo sobre as Modalidades da Consulta Popular, sobre Segurança e quanto à Autonomia Especial. 16 A Resolução nº. 1246 (11 de junho de 1999) do Conselho de Segurança das Nações Unidas autorizou a criação da UNAMET nos moldes propostos pelo Secretário-Geral. 17 Conforme Relatório do Secretário-Geral S/1999/803, 20 julho 1999 e Carta para o Conselho de Segurança S/1999/822, 26 julho 1999. 66 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 51-75, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> aceitar – depois da aprovação pelo Conselho Superior das Nações Unidas – uma força de intervenção. Em 30 de agosto de 1999, ocorreu a Consulta Popular, com taxa de participação impressionante, quando aproximadamente 98% da população compareceu às urnas. A contagem dos votos, determinada pela Comissão Eleitoral, revelou que, dos 438.968 votos válidos, uma maioria esmagadora tinha escolhido a independência: por 78,5% contra 21,5%, os timorenses expressaram o seu desejo de se tornarem independentes. Foi o que o Secretário-Geral das Nações Unidas comunicou ao Conselho de Segurança (S/1999/944, 3 setembro 1999) e ao mundo, e o que Ian Martin, Chefe de Missão da UNAMET, comunicou à população do Timor Leste no dia 4 de setembro de 1999. O número de observadores presentes durante o processo eleitoral chegou a atingir cerca de 2000 no dia da Consulta Popular.18 De acordo com Teles (1999), existem provas de que a violência que se verificou no Timor após a Consulta Popular, numa tentativa de boicotar os seus resultados, foi orquestrada pelas autoridades indonésias.19 Era claro, desde o início, que a fase de implementação dos resultados da Consulta popular (fase II) seria um período mais difícil do que o da sua preparação e realização, especialmente no caso de uma vitória da independência. Os timorenses avisaram frequentemente que os indonésios levariam tudo com eles, “incluindo as lâmpadas e as torneiras” – o que na verdade veio a acontecer, e o que ficou para trás ficou queimado ou destruído. Já o relatório do Secretário-Geral (9 de agosto de 1999, S/1999/862) afirmava que as Nações Unidas seriam “chamadas a desempenhar um papel mais substantivo no Timor no período pósConsulta” e reconhecia que durante a fase interina a situação no Timor Leste seria “bastante delicada”. A Resolução do Conselho de Segurança 18 Estiveram presentes, entre outros, representantes dos governos da Austrália, da Nova Zelândia, do Canadá, do Brasil e da Noruega, da União Europeia e da CPLP e representantes das organizações não governamentais IFET, CIIR, Carter Center, AFREL, AETIVP, APCET, PET e IPJET. Quanto aos observadores domésticos, destacaram-se as organizações não governamentais KIPER, Yassan HAK, Kontras e Comissão Justiça e Paz. 19 Teles (1999, p. 410) afirma sobre a existência de um documento confidencial elaborado pela Task Force indonésia em Díli (representação do Ministério dos Negócios Estrangeiros), intitulado “Avaliação da situação no caso de a Opção 1 falhar” e datado de 3 de julho de 1999, partindo de um ponto de vista pessimista quanto à possibilidade de a autonomia (opção 1) vencer na consulta popular, avalia a situação no território caso a opção 1 falhasse. Esse documento refere que as Forças Armadas Indonésias (TNI) sofreriam certamente grande humilhação se tivessem de abandonar o território, que haveria uma “carnificina” dos apoiadores da integração e que as consequências da independência seriam “extremamente assustadoras” para os funcionários públicos. Os principais autores dessa onda de violência encontravam-se, por um lado, entre membros das Forças Armadas Indonésias (Generais Wiranto, Parabowo, Zacky Anwar, Noer Muis e Adam Damiri, e os Coronéis Tono Suratman e Timbul Silaen, este último o comandante da polícia), e os líderes das milícias pró-integração, políticos (Domingos Soares e Francisco Lopes da Cruz, entre outros) e burocratas (João Tavares, Eurico Guterres, Hermínio da Costa, Câncio Carvalho). Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 51-75, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 67 nº. 1262 (27 de agosto) prorrogou o mandato da UNAMET até 30 de novembro e aprovou as propostas do Secretário-Geral quanto à composição e tarefas da UNAMET20 durante a fase II. Assim, a presença das Nações Unidas acabou por ser uma presença armada, devido à deterioração da situação de segurança, que, para além do mais, levou à quase total evacuação da UNAMET do Timor (houve cerco da sede). Ficou evidente que a Indonésia era incapaz de manter a segurança no Timor-Leste já durante o processo eleitoral, sendo que a própria Comissão Eleitoral denunciou-a por violação dos Acordos de Nova Iorque, pelo fato de não garantir as condições mínimas de segurança. Logo após a chegada da Força Internacional no Timor-Leste (INTERFET), já na fase III, em setembro de 1999, as Forças Armadas e autoridades indonésias começaram a abandonar o território, embora o governo indonésio continuasse a afirmar que manteria as suas responsabilidades com o Timor até o ato de anexação ser revogado pelo parlamento. Segundo os Acordos de Nova Iorque, nessa fase, as Nações Unidas administrariam transitoriamente o território no caso de uma vitória da independência. Após o parlamento indonésio ter aprovado, unanimemente, em 19 de outubro, a revogação do ato de anexação de Timor-Leste (de 1976) – tal como previsto no artigo 6.º dos Acordos de Nova Iorque –, o Conselho de Segurança aprovou a criação da Administração Transitória das Nações Unidas no Timor-Leste (UNTAET),21 para um período inicial até 31 de janeiro de 2001, devendo a componente militar da UNTAET22 substituir as forças da INTERFET. Os elementos fundamentais do mandato da UNTAET eram garantir a segurança e a ordem no território timorense; estabelecer sua administração efetiva; contribuir para o desenvolvimento dos serviços sociais e civis; assegurar a coordenação e distribuição de ajuda humanitária, reabilitação e assistência ao desenvolvimento; apoiar o desenvolvimento de capacidades de autogoverno; e apoiar a criação de condições para um desenvolvimento sustentável. O diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello foi nomeado pelo Secretário-Geral como Representante Especial da UNTAET em Díli (e, por consequência, administrador transitório para Timor Leste). De novembro de 1999 a abril de 2002, Vieira de Mello representava o governo em transição no Timor. Ainda no final de outubro, os últimos militares indonésios que ainda se encontravam no território deixaram o território timorense, pondo assim fim a 24 anos de ocupação militar. 20 O mandato da Missão das Nações Unidas no Timor-Leste (UNAMET) foi de junho a novembro de 1999. 21 Conforme proposto pelo Secretário-Geral, na Resolução nº. 1272 de 25 de outubro de 1999. 22 O mandato da Administração Transitória das Nações Unidas no Timor-Leste (UNTAET) foi de novembro de 1999 a maio de 2002. 68 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 51-75, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 6 A independência e os problemas posteriores A fase III do plano teve seu auge com as eleições legislativas (agosto de 2001), a promulgação da Constituição Nacional (março de 2002) e as eleições presidenciais (abril de 2002), quando Xanana Gusmão, da FRETILIN, se consagrou como o novo presidente timorense: em 20 de maio de 2002, o Timor-Leste tornou-se totalmente independente. Seu Primeiro-Ministro foi escolhido Mari Bim Amude Alkatiri. Foi criada uma Comissão Nacional de Acolhimento, Verdade e Reconciliação.23 A divisão administrativa do território fez-se em 13 distritos, cada um com uma capital, e que manteve, com poucas diferenças, os limites dos 13 conselhos existentes durante os últimos anos do período colonial português. Estes também são formados 67 subdistritos, variando o seu número entre três e sete subdistritos por distrito. Os subdistritos são divididos em 498 sucos, compostos por uma localidade sede e subdivisões administrativas, e que variam entre dois e dezoito sucos por subdistrito. A Missão das Nações Unidas de Apoio ao Timor-Leste (UNMISET), cujo mandato ocorreu de maio de 2002 a maio de 2005, tinha por objetivo prestar assistência ao recém-independente Estado, principalmente no que se referia às responsabilidades operacionais. Findo o mandato da UNMISET, estabeleceu-se uma missão política das Nações Unidas no Timor, o Escritório das Nações Unidas em Timor-Leste (UNOTIL), de maio de 2005 a agosto de 2006, apoiando o desenvolvimento das instituições estatais e fornecendo treinamento no âmbito da governança democrática e dos direitos humanos. Além de criarem condições para mudar o regime, as tropas apoiaram as estruturas de poder local. No entanto, a mais acentuada crise no Timor-Leste pós-independência começou com um motim de 600 soldados entre fevereiro e março de 2006. O Primeiro-Ministro Alkatiri demitiu-os. O choque entre os militares promoveu um levante nas Forças Armadas e generalizou a desordem civil: milhares de timorenses foram mortos nesses combates, e mais de 155 mil fugiram de suas casas. A situação só se acalmou com a prorrogação do mandato da UNOTIL (clamada pelo governo timorense e mesmo pelas forças políticas de oposição), em 20 de agosto de 2006, e do envio de tropas para assistência militar-policial da Austrália, Nova 23 A Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação (CAVR) foi criada em 2001 e funcionou de 2002 até dezembro de 2005; era independente, estatutariamente dirigida por sete comissários timorenses e tinha por objetivo procurar a verdade do período de 1974/1999, facilitar a reconciliação comunitária para os crimes menos graves, fazer relatórios do trabalho, apresentando conclusões e fazendo recomendações. O Relatório final, intitulado Chega!, foi apresentado ao Presidente, Parlamento e Governo de Timor-Leste logo após a sua conclusão, em outubro de 2005. Ver: CAVR-TR. Disponível em: <http://www.cavr-timorleste.org/po/home.htm>. Acesso em: 20 ago. 2010. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 51-75, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 69 Zelândia, Malásia e Portugal. O próprio governo timorense criou o “Joint Command”, uma força conjunta da polícia e do exército nacional, que durou quatro meses, para reforçar o policiamento nos centros urbanos e esclarecer as motivações dos rebeldes. O Conselho de Segurança das Nações Unidas, por meio da Resolução nº 1704, de 25 de agosto de 2006, estabeleceu a Missão Integrada das Nações Unidas no Timor-Leste (UNMIT), com o mandato de longo alcance para ajudar o país a superar as consequências e as causas do levante de 200624. A composição dessa missão passou a incluir aproximadamente 1.500 agentes policiais e militares de ligação e funcionários da organização. Xanana Gusmão não concorreu à reeleição presidencial de abril/ maio de 2007 e fundou o partido Congresso Nacional para a Reconstrução do Timor-Leste (CNRT). O acompanhamento de observadores internacionais continuou (principalmente Nações Unidas e CPLP). No segundo turno (09 de maio), José Manuel Ramos-Horta, representante da União Democrática Timorense (UDT) foi eleito Presidente da República, em disputa com Francisco Guterres Lu Olo (candidato da FRETILIN). Em 6 de agosto seguinte, Ramos-Horta indicou Xanana Gusmão como Primeiro-Ministro, que apesar de segundo classificado nas eleições legislativas de junho, costurou acordos pós-eleitorais com as restantes forças políticas da oposição, na tentativa de conferir ao seu governo relativa estabilidade. Em 2008, Xanana assumiu também o Ministério Conjunto de Defesa e Segurnaça timorense. 7 Considerações finais Entre os principais fatores de debilidade para a construção do Estado nacional timorense se encontram, por um lado, a pesada herança colonial portuguesa e de dominação indonésia, que deixaram marcas profundas na sociedade timorense, na burocracia estatal e na infraestrutura do país. Por outro lado, e em consequência direta dessa herança, o Timor-Leste não tem conseguido reverter o precário desenvolvimento econômico, que relaciona-se à permanência de uma economia quase totalmente de subsistência (ainda baseada na agropecuária – cafeicultura e avicultura), à ausência de planos de industrialização e, principalmente, à devastação da infraestrutura nacional no final da década de 1990 pelas tropas indonésias (e milícias pró-indonésias), no imediato pós-Consulta. Mesmo com o sucesso da Consulta de 1999 e da consequente independência, em 2002, a comunidade internacional tem assistido preocupada a evolução sócio-política timorense, principalmente em relação ao agravamento das tensões sociais e nas Forças Armadas. Em Relatório de 24 O mandato da UNMIT foi estendido, pela Resolução nº 1912, de 26 de fevereiro de 2010, do Conselho de Segurança das Nações, até 26 de fevereiro de 2011. 70 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 51-75, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> avaliação da situação no país, o Secretário-Geral das Nações Unidas, em 2006, referiu-se ao legado misto dos vinte e quatro anos de ocupação, o qual resultou em um abismo de compreensão que separa aqueles que passaram anos como combatentes da resistência, aqueles que viviam em cidades ocupadas (e aldeias) e os que ficaram no exílio. Continua o Relatório: Veteranos e jovens estão divididos por um fosso entre as gerações, que é o produto de um conflito que durou mais de uma geração e passou por várias fases distintas, [...] eles são unidos por um sentido comum de exclusão. As consequências do passado violento interno [...] legaram um medo arraigado profundamente de qualquer forma de disputa política. O fato de que a resistência era regionalmente fragmentada e operada clandestinamente durante grande parte da sua existência, muitas vezes obscureceu a verdadeira contribuição dos indivíduos e regiões determinadas à causa [...] (REPORT, 2006, p. 08, tradução nossa). Os recursos minerais escassos do novo Estado se relacionam diretamente à necessidade de cooperação com os Estados vizinhos, nesta exploração de riquezas. Esse é o caso do tratado assiando em 2001, entre a Austrália e o Timor-Leste (sob administração das Nações Unidas), relacionado à zona de desenvolvimento e partilha de receitas de áreas do Mar do Timor – especialmente em relação à extração de petróleo e gás natural – em vez de uma fronteira marítima, como se previa em 1972. Essa área é conhecida como Timor Gap, pois possui grande parte da riqueza mineral do Mar de Timor.25 Estimativas sobre o seu valor variam, mas as três principais reservas petrolíferas no Gap – Sunset, Bayu-Udan e Elang-Kakatua – contêm um total previsto de 500 milhões de barris. A divisão das receitas resultantes dos direitos de exploração na área (Zona de Cooperação, onde está localizada a quase totalidade das reservas), é atualmente de 50% para cada lado. Apesar de insignificantes em comparação com os padrões da Arábia Saudita, os lucros resultantes dos direitos de exploração e impostos serão de importância capital para o estado timorense. Pobreza e exclusão social agravam a crise, num país onde aproximadamente 42% da população vive abaixo da linha de probreza. 25 Em 1972, Indonésia e Austrália iniciaram as conversações sobre a exploração de petróleo no Mar do Timor; em 1989, os dois países assinaram um acordo para a exploração conjunta de petróleo; em 1991, Portugal, na qualidade de potência administrante de Timor, apresentou uma ação contra a Austrália no Tribunal Internacional de Justiça, no qual punha em causa o acordo celebrado entre esta e a Indonésia em 1989. Em janeiro e fevereiro de 1995, ocorreram audiências no Tribunal Internacional de Justiça; em junho de 1995, e perante a falta de consentimento da Indonésia, o Tribunal declarou-se impossibilitado de decidir sobre o litígio. Ver: Research Note nº 45 2001-02. The Timor Sea Treaty: Are the Issues Resolved? Disponível em: <http://www.aph.gov.au/Library/pubs/rn/2001-02/02rn45.htm>. Acesso em: 31 ago. 2010. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 51-75, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 71 Os indicadores sociais preocupam: a taxa de crescimento populacional é a mais elevada na região, e a incidência da mortalidade infantil, embora tenha melhorado, continua alta em relação a outros países da região. O país não produz alimentos suficientes para satisfazer o consumo mínimo diário, estimando-se que aproximadamente 350 mil pessoas estão na faixa de insegurança alimentar. A situação de determinados segmentos da população também foi deteriorando-se: as disparidades de gênero e na educação estão aumentando, e as oportunidades para a juventude urbana são particularmente limitadas, com o desemprego dos jovens urbanos em 44%. O Relatório citado também apontou que as raízes do desequilíbrio de poder entre as instituições do Estado é de teor político e constitucional, permitindo que o poder executivo funcione com poucas restrições. O único partido que dominou a vida política desde as eleições de 2001, a FRETILIN, tem sido gradualmente questionado pela relativa falha de seus líderes políticos, pela pretensão de sua posição original como de defensor da independência e dos seus serviços passados para a causa pró-independência de seu programa atual. A urgência da reforma do setor de segurança também é apontada por Relatório do Internatinal Crisis Group, pois não existe uma política nacional de segurança, há falhas profundas na legislação relativa ao setor, sem contar o estado de ruína da polícia e do exército nacional, depois da crise de 2006, em que as duas instituições se encontravam em lados opostos do conflito (TIMORLESTE, 2008). As causas profundas da crise de 2006 ainda não foram sanadas. Em 11 de fevereiro de 2008, Ramos-Horta sofreu um atentado, onde os guardas que faziam sua de sua casa mataram o ex-oficial do Exército de Timor-Leste, Alfredo Reinado (rebelado desde maio de 2006), acusado perante a Corte Suprema do país de homicídio, após a onda de violência causada por sua expulsão do exército junto com 598 outros militares por desobediência. O mesmo grupo também é acusado de efetuar disparos contra a residência do primeiro-ministro do país, Xanana Gusmão. Em meio a esse contexto, a demanda por ajuda internacional só faz crescer: medicamentos, alimentos, material educacional são enviados ao país e extensivamente demandados. Adicionalmente, a ação de organizações internacionais e de missões de organismos não governamentais também aumenta a presença de estrangeiros no país. Além disso, é falsa a ideia de uma identidade cultural timorense única e homogênea. Cada um dos vários grupos étno-linguísticos, apesar de próximos, possui um patrimônio cultural que sofreu, em maior ou menor grau, uma aculturação, com elementos introduzidos inicialmente pelo contato com a cultura portuguesa e depois com a indonésia. A primeira foi trazida, sobretudo pelos missionários, e é mais nítida no aspecto espiritual (religião, língua e arte) que no material. Como resulta72 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 51-75, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> do adicional das ligações pessoais da elite timorense com Portugal, por exemplo, pode-se citar a escolha da língua portuguesa como uma das línguas oficiais timorenses (sendo a outra o tétum-praça). O português é a língua oficial nas escolas, embora os professores muitas vezes dependam do tétum para explicar os conteúdos aos alunos, educados em língua tétum-praça. Mais do mesmo, após oito anos da independência, o Timor-Leste busca a estabilidade social, a evolução política e o amadurecimento de suas instituições e o consequente desenvolvimento econômico, como forma de ultrapassar a herança colonial, ou ainda, de despir-se da imagem de colônia “bastarda, a mais remota, rebelde, negligenciada”,26 primeiro por Portugal, depois pela Indonésia e agora pelo mundo. Recebido em setembro de 2010. Aprovado em outubro de 2010. The State Building in East Timor: Colonization, Occupation, and Independence Abstract East Timor carries the status of young Asian state in the world system, determined by popular vote in August 1999 and institutionalized in May 2002. After more than four centuries of Portuguese colonial rule, followed by twenty-four years of Indonesian occupation, and a period of negotiation and transition, the Timorese State has had its independent status recognized due to, in large part, the unprecedented role played by the United Nations forces and by the Timorese civil resistance. However, the expected independence of this former Portuguese colony has not brought peace and effective consolidation of the Timorese State, but a continuation of the United Nations intervention on grounds of social tensions, political, and rising humanitarian crisis. In that sense, this essay reflects on the weak constitution of this state, taking into account the legacy of Portuguese colonial rule, Indonesian occupation and late independence under the supervision of the United Nations. Keywords: East Timor. History of East Timor. Portuguese colonial empire. Referências CUNHA, João Solano Carneiro da. A questão de Timor Leste: origens e evolução. Brasília: FUNAG; IRBr, 2001. DOLAN, Cris. Reconciliation with Justice? The East Timor Experiment in Transitional Justice and Reconciliation. In: IDEA. Reconciliation Lessons Learned From United Nations Peacekeeping Missions: Case Studies: Sierra Leone and Timor L’Este. Report prepared by International IDEA for Annual Head of Field Presences (HOFP) Meeting Geneva, November 2004. 26 Conforme palavras do próprio Horta-Ramos (CUNHA, 2001, p. 27). Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 51-75, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 73 Disponível em: <http://www.idea.int/conflict/sr/reconciliation-lessonsfrom-sierra-leone-and-timor-l-este.cfm>. Acesso em: 31 ago. 2010. p. 33-57 DUNN, James. East Timor: a rough passage to independence. Sidney: Longeville, 2003. GUEDES, Armando Marques. Thinking East Timor, Indonesia and Southeast Asia. Lusotopie, p. 315-345, 2001. Disponível em: <http://www.lusotopie.sciencespobordeaux.fr/somma2001.html>. Acesso em: 10 ago. 2010. GONÇALVES, Arnaldo. M. A. Macau, Timor and Portuguese India in the context of Portugal’s recent decolonization. In: LLOYD-JONES, Stewart; PINTO, António Costa (Ed.). The last empire: thirty years of Portuguese decolonization. Dundee: Intellect Books, 2003. p. 53-66. GUNN, Geoffrey. Re-enter the United Nations: a role for the Peace-building Commission in East Timor? Lusotopie, v. XV, n. 02, fev. 2008. Disponível em: <http://www.lusotopie.sciencespobordeaux.fr/somma2008-2.htm>. Acesso em: 10 ago. 2010. HADAR, Leon T. East Timor and the “Slippery Slope” Problem. Foreign Policy Briefing, CATO Institute, n. 55, 1999. Disponível em: <http://www.cato.org/pubs/fpbriefs/fpb55.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2010. JARDINE, Matthew. East Timor: genocide in paradise. 2. ed. Berkeley: Odonian, 1999. LLOYD-JONES, Stewart; PINTO, Antônio Costa (Ed.). The last empire: thirty years of Portuguese decolonization. Dundee: Intellect Books, 2003. LOUREIRO, Rui Manoel. Discutindo a formação da presença colonial portuguesa em Timor. Lusotopie, p. 143-155, 2001. Disponível em: <http://www.lusotopie.sciencespobordeaux.fr/somma2001.html>. Acesso em: 10 ago. 2010. OERNATO, Joseph. Can East Timor Survive Independence? North Australia Research Unit. Discussion Paper, n. 17, 2000. Disponível em: <http://www.anu.edu.au/naru/welcome/dp17.htm>. Acesso em: 08 ago. 2010. 74 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 51-75, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> REPORT of the Secretary-General on Timor-Leste pursuant to Security Council resolution 1690 (2006). 08 ago. 2006. Disponível em: <http://www.un.org/Docs/sc/sgrep06.htm>. Acesso em: 31 ago. 2010. RESEARCH Note nº 45 2001-02. The Timor Sea Treaty: Are the Issues Resolved? Disponível em: <http://www.aph.gov.au/Library/pubs/rn/2001-02/02rn45.htm>. Acesso em: 31 ago. 2010. TELES, Patrícia Galvão. Autodeterminação em Timor-Leste: dos Acordos de Nova Iorque à consulta popular de 30 de agosto de 1999. Documentação e Direito Comparado, Lisboa, n. 79/80, p. 379-454, 1999. TIMOR-LESTE: Security Sector Reform. Asia Report, International Crisis Group, n. 143, 17 jan. 2008. Disponível em: <www.crisisgroup.org/en/regions/asia/south-east-asia/timor>. Acesso em: 09 set. 2010. TIMOR-LESTE: no time for complacency. Asia briefing, International Crisis Group, n. 87, 09 fev. 2009. Disponível em: <www.crisisgroup.org/en/regions/asia/south-east-asia/timor>. Acesso em: 02 set. 2010. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 51-75, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 75
Documentos relacionados
Geografia do Timor Leste - Prof. Maurício Waldman 2003
A isto se agrega o fato do país caracterizar-se, desde passado remoto, por densa presença humana. Em 1979, a população do Timor Oriental somava 740.000 almas, isto é, algo como 39 hab/km², cifra ba...
Leia mais