A lebre da Patagônia - Blog da Companhia das Letras
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A lebre da Patagônia - Blog da Companhia das Letras
claude lanzmann A lebre da Patagônia FLIP-2011-lebre da patagonia.indd 1 6/28/11 3:23 PM FLIP-2011-lebre da patagonia.indd 2 6/28/11 3:23 PM O novo primeiro-ministro respondeu rapidamente a meu pedido e um encontro foi marcado em seu escritório de Jerusalém. Ficara combinado, fora isso, que o médico israelense tiraria meu gesso naquele dia à noite. Begin não me decepcionou, tudo correu conforme eu esperava, conforme minhas expectativas, e ele adquiriu para sempre minha gratidão. Mas os detalhes e as modalidades dessa nova ajuda tiveram de ser acertados com seus conselheiros, em particular com Eliahu Ben Elissar, homem reservado e sem emoções, veterano do Mossad, primeiro embaixador de Israel no Egito, mais tarde em Paris, onde foi levado por uma morte súbita. Para a ajuda que Israel estava disposto a me dar, eu tinha de me comprometer a terminar o filme nos seguintes dezoito meses e a que a duração não excedesse duas horas. Estava tão longe do que eu sabia ser a realidade que fiquei como que grogue, prometi e assinei tudo o que queriam. A soma que me alocavam me permitiria dar continuidade às minhas pesquisas mas sem iniciar a filmagem. Eu tinha a certeza interna de que necessitaria de alguns anos para botar o ponto final no meu tra3 FLIP-2011-lebre da patagonia.indd 3 6/28/11 3:23 PM balho e que o filme seria pelo menos quatro vezes mais longo do que estava prescrito. Na verdade, eu vivia esse subsídio que me concediam como uma condenação à morte do filme e me dizia, conforme já pensara várias vezes antes, que não adiantava nada me obstinar, que seria melhor largar tudo. Eu era o único a pressentir o que seria essa obra e me esfalfava tentando convencer os burocratas, que ignoravam o cinema tanto quanto ignoravam a shoah, a compartilhar ideias ainda opacas para mim mesmo como se elas fossem claras. A trama de Shoah se desenhava sem precisão, mas um filme como esse é uma aventura, que extravasa os limites que se pretende lhe dar. Eu estava mal, Angelika, que me acompanhara a Israel, me persuadiu a descansar um pouco de modo a ter tempo para refletir e, antes de tudo, recuperar o uso do meu pé. Partimos para Cesareia e sua magnífica praia de areia dura, ao longo da qual se estendia um aqueduto romano por cujos arcos o mar se oferecia, cintilante e tentador. Aqui e ali, entre os arcos, estacas tendo no topo uma caveira ou tíbias cruzadas, legendadas em hebraico, pareciam indicar um vago e incompreensível perigo. Apesar do alerta que recebi na primeira noite em Gesher Haziv, não lhes dei atenção. O tempo estava radiante, o mar naquele dia quase sem ondas, embora as praias do Mediterrâneo oriental fossem reputadas como um paraíso para os surfistas. Entrei com precaução na água, poupando meu pé sem força, e assim que pude fui entrando no mar cada vez mais vigorosamente. Ir para o fundo, perpendicularmente à praia, em vez de seguir seu contorno, sempre foi assim que nadei e teria sido minha divisa se o nascimento me houvesse gratificado com um brasão onde inscrevê-la. Sou bom nadador, minha braçada era eficaz e eu me dizia que o médico israelense tinha razão: com esse tratamento, logo recuperaria a musculatura. No entanto, afastar-me da praia como eu fazia era loucamente imprudente. Devo ter dado umas cinquenta braça4 FLIP-2011-lebre da patagonia.indd 4 6/28/11 3:23 PM das, vinte já teriam sido muito. Tratei de voltar, o sol estava a pino, as areias brilhantes, claramente recortadas, eu nadava, pareceume que elas não se aproximavam. Nadei mais forte, mais firme, e de repente me dei conta de que era exatamente o contrário que acontecia: a praia se afastava. Nesse instante da tomada de consciência, tudo se consuma e se cristaliza num clarão: a silhueta de Angelika, de pé à beira d’água, que me olha, já razoavelmente preocupada, o sol que me cega por momentos, marolas ou ondas de verdade que mascaram a praia de maneira intermitente e, acima de tudo, reunindo num só sentido esses sinais ainda disparatados, o cansaço. Ele me domina. Não aguento mais, meu pé dói, compreendo que não vou conseguir alcançar a praia, voltar. Começo a gritar, peço socorro, faço gestos com os dois braços para que Angelika, longíssimo e pequenina agora, me aviste e eu a adivinho correndo desesperada para a direita, para a esquerda, naquela praia deserta. Lembro que não havia vivalma quando entrei no mar, ela não sabe nadar direito e não pode fazer nada por mim, era preciso um barco. É a irrupção da tragédia em pleno sol, continuo nadando fracamente, engulo a água salgadíssima que me sufoca. E, de repente, uma voz próxima, a estibordo, me interpela em inglês. O homem que fala comigo e que percebo através da cortina de respingos das ondas, é um louro grandão, alertado por Angelika. Mas minha alegria dura pouco, ele mesmo já parece estar esgotado e me diz: “I am not a good swimmer, but I will try to help you”.* Põe-se atrás de mim e começa a me dar porradas nas costas para me obrigar a avançar. Sei que não é um bom método, ele próprio sabe disso e também que se cansa mais ainda, desiste quase em seguida: “I am very sorry, but I have to leave you, I have my wife and my little son on the beach, I am not even sure to succed * “Não sou um bom nadador, mas vou tentar ajudá-lo.” (N. T.) 5 FLIP-2011-lebre da patagonia.indd 5 6/28/11 3:23 PM to return. Good bye, forgive me”.* Ele desaparece como havia aparecido. Não há mais praia, não há mais sol, estou meio cego pelo sal, sufoco com frequência, parei de resistir, tenho de morrer. Estranhamente me acalmo e considero a morte por asfixia não como um fim, mas como uma passagem, um mau momento, um péssimo momento a passar, depois do qual poderei de novo respirar a pleno pulmão, livremente, grandes lufadas de ar puro; um estreito, um desfiladeiro, o buraco de uma agulha: do outro lado, a vida recomeçaria. Espero a morte, portanto, não me mexo mais, não nado mais, boio de costas, deixo-me levar, não perdi a consciência. Porém mais uma voz, outra voz, voz clara, sotaque inglês perfeito, me interpela bruscamente às minhas costas: “What is your name?”. Respondo. Depois: “What is your first name?”. “Claude, I will try to rescue you. Can you help me?” Respondo: “Yes, I think so”. “Move your legs... Move your arms... O.k., you will help me with your legs.”** Senti-me então firmemente agarrado pelas axilas, arrastado não para a praia mas para alto-mar. Sua voz imperiosa de profissional me ordenou que o ajudasse fazendo de costas com as pernas o movimento do nado de peito. Yossi — era o nome do meu salvador — nos fez descrever um enorme arco, ir ao largo, depois voltar para a praia, porém muito mais longe, onde as correntes traiçoeiras não existem, onde eu deveria ter nadado se conhecesse Cesareia. Levou quase duas horas para me rebocar até a praia. Se eu não tivesse podido ajudá-lo, ele teria me nocauteado, confiou-me mais tarde: é mais fácil arrastar um corpo inerte do * “Eu sinto muito, mas tenho de deixá-lo, minha mulher e meu filho pequeno estão na praia. Não tenho nem certeza se conseguirei voltar. Adeus, me perdoe.” (N. T.) ** “Qual é seu nome? Seu primeiro nome? Claude, eu vou tentar salvá-lo. Você pode me ajudar?” “Sim, acho que sim.” “Mexa suas pernas... Mexa seus braços... O.k., você vai me ajudar com suas pernas.” (N. T.) 6 FLIP-2011-lebre da patagonia.indd 6 6/28/11 3:23 PM que um vivo em pânico. Estudante de direito em Tel Aviv, natural de um moshav próximo fundado por judeus marroquinos, onde passava os fins de semana com os pais, Yossi Ben Shettrit, salva-vidas profissional diplomado, era, com o louro grandão, a única pessoa na praia de Cesareia naquele dia, e o milagre foi Angelika tê-lo encontrado. No domingo anterior, exatamente no mesmo lugar, o embaixador da Inglaterra se afogara e Yossi, chamado tarde demais, só trouxe para a praia seu cadáver. Seis empregados do hotel Dan Cesarea haviam perecido ali no espaço de seis meses. Yossi mandou me levar, assim que pisamos em terra, para uma enfermaria, a fim de se certificarem de que eu não tinha água nos pulmões. Tudo estava bem e o louro grandão — que ele me perdoe por não o chamar de outro modo, não pude gravar seu nome —, depois de um longo desvio, havia voltado, exausto, para junto da mulher e do filhinho. Convidei meus dois salvadores para jantar no dia seguinte e manifestei a eles uma gratidão que não sentia verdadeiramente. Viver não me fazia dar pulinhos de alegria e, repensando hoje nesse estranho episódio, digo-me que flertei voluntariamente com a morte, a tal ponto os compromissos firmados com Ben Elissar e Israel me pareciam impossíveis de ser cumpridos. Estávamos em 1977, Shoah seria concluído somente oito anos depois e eu sabia que teria de mentir um ano depois do outro para os que me ajudassem, israelenses, franceses, governos ou particulares, ricos, menos ricos e até pobres. Mentir para mim também, mentir a mim mesmo, porque eu precisava de esperança para continuar. Eu me dizia “ano que vem”, como se diz, na expectativa messiânica, “ano que vem em Jerusalém”, perfeitamente consciente no entanto de que eu nos contava lorotas, que eu seria inflexível e só obedeceria à minha lei. Shoah foi uma interminável corrida de revezamento: os que me apoiavam por um tempo abandonavam depois, eu tinha de convencer outros, que pegavam por sua vez o bastão, de7 FLIP-2011-lebre da patagonia.indd 7 6/28/11 3:23 PM pois mais outros, até o fim — depois do fim, inclusive, já que, terminado o filme, não havia dinheiro para pagar a primeira cópia. Quando me questionam sobre a maneira como Shoah foi realizado, às vezes respondo: “Se tivessem me dito ‘o filme tem de estar pronto em tal data, senão cortamos sua cabeça’, eu teria sido decapitado”, apesar do horror que, como vimos, essa forma de execução me inspira. Mas na verdade foi o que aconteceu na sala de Ben Elissar. Ainda que nenhuma alusão tenha sido feita à guilhotina, em todo caso foi assim que vivi a coisa. No entanto não cedi em nada nem a ninguém, minha única regra foi a exigência interna do filme, o que ele me ordenava. Fui senhor do tempo, e é certamente disso que mais me orgulho. Releio-me: estas duas últimas frases soam linda e pacatamente hoje em dia, mas sou o único a ter levado esse fardo de angústia, o único a saber o que me custaram essas mentiras, juramentos e falsas promessas. Eu era como o Estado de Israel com seus imigrantes. Quantas vezes, durante as dores do parto do filme, medi com um pavor incrédulo, como que despertado subitamente e chamado à razão, que dois anos, quatro, cinco, sete, nove, dez anos já tinham escoado? Afinal de contas, como todos sabem, não traí ninguém: Shoah existe como tinha de existir. Ein brera, é outra fórmula israelense para significar que não há outra opção. 8 FLIP-2011-lebre da patagonia.indd 8 6/28/11 3:23 PM Claude Lanzmann nasceu em 1925, em Paris. Antes dos vinte anos já combatia nas fileiras da resistência ao nazismo. Cineasta e jornalista, dirige há décadas a famosa revista Les Temps Modernes. FLIP-2011-lebre da patagonia.indd 9 6/28/11 3:23 PM [2011] Todos os direitos desta edição reservados à editora schwarcz ltda. Rua Bandeira Paulista 702 cj. 32 04532‑002 — São Paulo — sp Telefone (11) 3707‑3500 Fax (11) 3707‑3501 www.companhiadasletras.com.br www.blogdacompanhia.com.br FLIP-2011-lebre da patagonia.indd 10 6/28/11 3:23 PM FLIP-2011-lebre da patagonia.indd 11 6/28/11 3:23 PM FLIP-2011-lebre da patagonia.indd 12 6/28/11 3:23 PM