A Doença de Van Gogh

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A Doença de Van Gogh
Leituras / Readings
A Doença de Van Gogh
Van Gogh’s illness
Resumo
No seu percurso experimental e de busca de espaços inovadores de expressão formal, a arte do passado século XX foi
testemunha de um interesse renovado por áreas artísticas marginais, entre as quais se situava a arte produzida pelos doentes
mentais. Este interesse cristalizou na formação de duas colecções dedicadas à arte criada por doentes psiquiátricos: a Colecção
Prinzhorn e a Colecção de Art Brut. A primeira, actualmente em exposição permanente na Clínica Psiquiátrica da Universidade
de Heidelberg, teve um papel de relevo no desenvolvimento da arte de vanguarda de entre-guerras graças à repercussão que teve
no expressionismo e no surrealismo, através de autores destacados como Paul Klee e Max Ernst. A Colecção de Arte Brut, criada
por Jean Dubuffet nos anos 40, teve grande transcendência na arte do pós-guerra, em especial no informalismo europeu.
Abstract
The XXth century art witnessed an interest for outside artistic areas, which included the art created by mentally ill patients.This
Adrian Gramary
Médico Psiquiatra
Centro Hospitalar
Conde de Ferreira,
Porto
interest led to the development of two collections dedicated to the art created by psychiatric patients: the Prinzhorn Collection
and the Art Brut Collection.The first one, in permanent exibition in Psychiatric Clinic of Heidelberg University, had a relevant
role in the vanguard art of between-wars period, through important artists like Paul Klee and Max Ernst. The Art Brut
Collection, created by Jean Dubuffet at 40’s, was important in post-war period, specially in european informalism.
“Sinto que o supremamente artístico é amar as pessoas”.
“Após a experiência dos ataques repetidos, convém-me a humildade. Assim pois: paciência. Sofrer sem se queixar é a
única lição que se deve aprender nesta vida”.
“Longe de me queixar, é justamente com a vida artística que me sinto quase tão feliz como poderia ser com a vida ideal
verdadeira, embora esta não seja propriamente a verdadeira.”
Vincent Van Gogh: Cartas a Theo
Direcção:
Adrian Gramary
Centro Hospitalar
Conde de Ferreira
Rua Costa Cabral, 1211
4200-227 Porto
Tel: 225 071 200
Fax: 225 071 295
e-mail: [email protected]
O conhecido livro “Cartas a Theo” é um texto
epistolar cheio de paixão e de cores, formado pelas
cerca de 800 cartas dirigidas pelo pintor ao seu irmão
e confidente, Theo Van Gogh. Nelas, o autor fala do
seu sofrimento, das esperanças e dos desesperos, dos
achados artísticos, das inúmeras dificuldades económicas
e da terrível evolução da doença. Após virar a última
folha do livro, uma ausência destacada chama a atenção
ao leitor: em nenhuma destas cartas, até naquelas
escritas nos piores momentos da vida pouco fácil do
nosso pintor, é possível encontrar uma única linha de
crítica dirigida a outra pessoa. O comum leitor, humano
e sem perfil de santo, fica atónito ao aperceber-se que,
neste testamento dos últimos quinze anos da sua vida,
este homem apaixonado, impulsivo, inadaptado e
estranhamente bom (até à ingenuidade), para o seu
escândalo, não encontra nenhum motivo de queixa em
relação aos seus contemporâneos. Numa segunda
leitura das cartas, e à procura da chave para a resolução
deste enigma, na carta 582, encontramos o que poderia
ser a resposta à nossa humana interrogação. No início
desta carta, o pintor refere ao irmão o encontro casual,
folheando um jornal atrasado, da descrição da frase
escrita sobre uma antiga tumba perto de Arles, em
Carpentras. No epitáfio da campa, que chama a atenção
de Van Gogh, encontramos aquilo que bem poderia
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servir como epitáfio adequado para o próprio pintor: “Thebe, filha
de Thelhui, sacerdotisa de Osiris, que nunca se queixou de ninguém”.
Quase como arrastadas pela iluminação deste achado, começam
a brotar, espalhadas pelas cartas, outras variações sobre este “sofrer
sem se queixar”, que parece ter sido o leit-motiv da vida do pintor
(vide supra).
Um artigo de revisão recente no American Journal of Psychiatry
(2002), intitulado “The Illness of Van Gogh”, e a publicação em
português do livro de Antonin Artaud “Van Gogh: o suicidado
da sociedade” (2004) são dois novos pretextos para abordarmos
o enigma sem resposta do pintor.
Dietrich Blumer, o autor do artigo do American Journal of Psychiatry,
retoma o diagnóstico de epilepsia do lobo temporal defendido
pelos médicos que acompanharamVan Gogh nos seus internamentos
psiquiátricos no Hospital de Arles e no Hospital Psiquiátrico de
Saint Rémy. Blumer defende que os sintomas de Van Gogh podem
ser explicados como crises parciais complexas no contexto de
uma epilepsia do lobo temporal, provavelmente desencadeadas
pelo abuso de absinto, bebida alcoólica feita com o extracto da
planta Artemisia absinthium, que tem uma substância com potentes
efeitos epileptogénicos.Van Gogh iniciou-se nesta bebida - conhecida
como a bebida verde da bohême literária francesa do século XIX
- durante a sua estadia em Paris. O autor argumenta que as
alterações do humor e os sintomas psicóticos podem ser explicados
como devidos, respectivamente, a uma perturbação disfórica interictal e a episódios psicóticos provocados pela epilepsia.
Inúmeros autores têm aportado teorias explicativas para a doença
de Van Gogh. Assim, Jaspers, no seu livro “Génio artístico e
loucura: Strindberg e Van Gogh”, foi um dos primeiros que
defendeu o diagnóstico de esquizofrenia, reconhecendo, no entanto,
a ausência de sintomatologia deficitária característica desta doença.
Outros autores têm defendido os diagnósticos de neurosífilis e
doença bipolar (por exemplo, a Professora Kay Redfield Jamison,
no seu conhecido livro “Touched with fire. Manic-Depressive
Illness and the Artistic Temperament”).
O livro de Antonin Artaud foi escrito em 1947, partindo de uma
perspectiva nitidamente anti-psiquiátrica, tentando fazer coincidir
a sua experiência pessoal com a do pintor holandês. Esta atitude
é compreensível tendo em conta o profundo traumatismo pessoal
de Artaud, que esteve internado múltiplas vezes por episódios
psicóticos e sentia uma intensa rejeição para tudo o que dissesse
respeito a médicos e tratamentos psiquiátricos. Apesar disto, o
livro reserva, para o leitor interessado em Van Gogh, páginas de
beleza deslumbrante: “Cardadas pelo prego de Van Gogh as paisagens
mostram a carne hostil, o azedume das sinuosidades esventradas, ao
ponto de não sabermos que força estranha se encontra, por outro lado,
a fazer metamorfoses”. (...) “Ao pintar, Van Gogh renunciou a contar
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Figura 1. Ala do Hospital de Arles. Arles, Janeiro de 1889. Óleo sobre
tela, 74 x 92 cm. Winterthur, Collection Oskar Reinhart.
Figura 2. Campo de Trigo com um Ceideiro por trás do Hospital
Saint-Paul. Saint-Rémy, Setembro de 1889. òleo sobre tela, 59 x 72,5 cm.
Essen, Museum Folkwang.
histórias, mas o maravilhoso é este pintor apenas pintor, e mais pintor
do que os outros pintores por ser aquele em que o material, a pintura,
tem lugar de primeiro plano, com a cor apanhada como que espremida
para fora da bisnaga, com a marca, como que uns atrás dos outros,
dos pêlos do pincel na cor, com a pincelada da pintura pintada, como
que distinta no seu próprio sol, com o i, a vírgula, o ponto da ponta do
próprio pincel enroscada na própria cor em gritaria, e que espirra em
faíscas, que o pintor macera e arrepanha por todos os lados”. O texto
de Artaud, livre de qualquer intuito de esclarecimento científico,
tenta compreender o enigma do homem Vincent Van Gogh, que
continua a interrogar-nos por trás dos seus quadros.
Leituras / Readings
O que iria tornar-se o primeiro mito da arte contemporânea
nasceu no ano de 1853 em Zundert, numa pequena vila da região
de Brabante, no sul da Holanda. Era o mais velho de uma família
de seis irmãos, que se tinha especializado havia muito tempo em
duas direcções: o comércio de pintura e a prática religiosa. Um
antepassado do Vincent tinha sido bispo de Utrech e o seu próprio
pai e o avô eram pastores da Igreja Reformada.
Após algumas tentativas falhadas para trabalhar em galerias de
arte pertencentes a amigos da família, virou-se então para os
pobres e necessitados, descobrindo a que considerava que seria
a sua verdadeira vocação: seria pastor como o seu pai e como o
seu avô. Decidido a exercer o apostolado por conta própria, em
Dezembro de 1878 saiu para a região mineira de Borinage, o “país
preto”, na Bélgica. Alojado no início em casa de um padeiro, não
tardou em mudar-se para uma choça. Lá dormia no chão, sobre
um monte de palha. Após repartir à sua chegada toda a sua roupa
entre aqueles desgraçados, vestia uma velha roupa de soldado e
um boné estragado. Levava a vida dos mineiros e a sua cara estava
sempre preta de carvão. Pregava, repartia o seu dinheiro e, de vez
em quando, fazia desenhos. Tais excessos alarmaram o Comité de
Evangelização de Bruxelas, que lhe retirou o nomeamento e o
subsídio.Vincent persistiu lá, sem comida e sem abrigo, durante o
terrível inverno, até que o seu pai veio resgata-lo.
Na vida afectiva, o fracasso também será absoluto. As quatro
tentativas de relacionamento estável terminaram de forma dramática.
Em Londres, apaixonou-se pela filha da sua patroa e a rejeição por
parte desta sumiu-o num total abatimento. Em Ethem, ficou
apaixonado por Kee Vos, uma prima sua que tinha ficado
recentemente viúva e com um filho, que o rejeitou categoricamente
e motivou a inimizade com o seu pai, que não vacilou em qualificar
a paixão como “incestuosa”. Ao verificar que lhe dedicava uma
amor não correspondido,Vincent mostra o seu desespero mantendo
a mão direita sobre a chama de um candeeiro, até cair inanimado.
Em Haia, apaixona-se por uma prostituta chamada Sien, grávida e
alcoólica. “Este inverno - explica ao irmão Theo - encontrei uma mulher
grávida, abandonada pelo pai da criança que levava no seu seio... cheia
de frio, errava pelas ruas, tratando de ganhar o pão da maneira que
podes imaginar.Tomei-a como modelo e trabalhei com ela todo o inverno.
Não pude dar-lhe um ordenado completo de modelo, mas paguei-lhe
as suas horas de pose, e pude salvá-la, a ela e à criança, da fome e do
frio, dividindo com ela o meu próprio pão.” Com Sien viveu numa
felicidade progressivamente deteriorada, ponderando a ideia do
casamento como forma de a recuperar. No limite das suas forças
físicas,Vincent chamou o irmão Theo para o ajudar, o qual o afastou
daquela mulher irrecuperável, que se entregara de novo à bebida.
Nuenen foi o cenário de uma nova - e falhada - relação sentimental:
uma solteirona cândida, Margot Begeman, que tentou suicidar-se
Figura 3. Árvores no Jardim do Hospital Saint-Paul. Saint-Rémy,
Outubro de 1889. Óleo sobre tela 90,2 x 73,3 cm. Los Angeles,The Armand
Hammer, Museum of Art.
perante a oposição familiar ao seu matrimónio com o
desencaminhado filho do pastor.
A partir dessa altura, começa a frequentar prostíbulos, refúgio
onde consegue obter o afecto feminino que parece que lhe é
negado fora. Em Antuerpia recorre ao médico por causa de “certo
mal-estar ”, sendo-lhe diagnostica sífilis avançada.
É pouco conhecido o autêntico motivo que permite explicar a
interminável quantidade de auto-retratos feitos por Van Gogh. O
ruivo pintor decidiu comprar um espelho que lhe permitisse a
realização dos auto-retratos, não por uma pulsão narcisista, senão
devido às imensas dificuldades que tinha para arranjar modelos
para os seus retratos. Não podia pagar a profissionais e a maioria
das pessoas recusava-se a pousar pois achavam os seus retratos
distorcidos, quase como caricaturas, e até as prostitutas que
frequentava temiam que fizessem pouco delas e consideravam um
sério risco para a sua reputação aqueles estranhos quadros. Um
funcionário do Hospital Psiquiátrico de Arles, não aceitou o retrato
que tinha pintado para ele: “o que é que eu ia fazer com isto?”
retorquiu.Após a sua morte, o retrato que tinha feito do psiquiatra
do Hospital de Arles, Félix Rey, apareceu tapando um buraco na
chaminé do seu quarto. Outro quadro, que ofereceu ao director
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do Hospital de Saint-Rémy, foi usado durante muito tempo como
alvo para os dardos dos filhos do médico. Este visionário, rejeitado
e desprezado em vida, só conseguiu vender um quadro (“As vinhas
vermelhas”, comprado pela filha de um pintor amigo) e, no entanto,
manteve sempre uma fé inquebrantável e tenaz no seu destino e
vocação artística, desenvolvendo o seu esforço titânico em solidão,
passando fome, vítima de uma terrível doença agravada pelos
abusos de álcool e com o único apoio incondicional do irmão. “De
qualquer maneira, quer as pessoas gostem, quer não do que eu faço
e de como o faço, não vejo outro caminho pela minha parte senão o
de lutar com a natureza todo o tempo que seja necessário, para que
ela me confie o seu segredo” refere ao seu irmão, explicando esta
vocação inamovível. Às vezes, porém, a dura realidade impõe-se
e surgem as dúvidas: “e não posso fazer nada, se os meus quadros
não se vendem; chegará um dia, no entanto, em que se verá que eles
valem mais do que o preço que nos custam as cores e a minha vida,
em verdade muito pobre.” Com ironia trágica, num momento de
fraqueza, este mártir da arte confessa ao irmão: “não posso imaginar
o pintor do futuro vivendo em modestos restaurantes, trabalhando com
dentadura postiça e frequentando prostíbulos para a tropa”. Afinal,
mais do que a discussão técnica sobre o diagnóstico e a obra genial
do artista, o que permanece e nos desconcerta é o mistério do
sacrifício deste homem que, se calhar, com sobrados motivos reais
para se queixar, nos deixou a sua comovedora verdade nua: “sofrer
sem se queixar é a única lição que se deve aprender nesta vida”. Na
altura da acabar este artigo, ficam a pairar no ar as palavras do
psiquiatra espanhol Juan-António Vallejo-Nágera, na sua patobiografia
sobre o pintor: “Também com «santo» resulta original; mas não estou
seguro de que não o tenha sido. De um modo extravagante, levando
até o absurdo a aplicação prática da virtude, mas atingindo esta
dimensão heróica, pelo menos em certas etapas da sua desconcertante
biografia”.
O nosso holandês errante tinha, parafraseando o título do filme
de Minnelli sobre a sua biografia, “luxúria pela vida”, e deixou-nos
como herança uma visão luminosa e exultante da natureza. A voz
de Kirk Douglas, no fim do filme “Lust for life”, lembra-nos que,
quando Van Gogh pensou na morte e tentou representa-la
plasticamente - no quadro “Campo de trigo com um ceifeiro” imaginou uma morte também luminosa, num campo de trigo,
“ocorrendo à plena luz do dia, sob um sol que inunda tudo, com claridade
de oiro puro…” Porque é que o pintor decidiu pôr fim aos seus
dias nesse cenário, numa fase de criação máxima, quando a doença
parecia estar em remissão? Sentiu-se mais isolado após o nascimento
do primeiro filho do irmão? Sentiu-se mais uma vez fracassado no
amor? Foi a angústia perante a inevitável recorrência da doença?
Apesar dos nossos esforços para resolver o enigma de Van Gogh,
este persistirá incontestável, como a sua obra.
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REFERÊNCIAS
Artaud A (2004): Van Gogh, o suicidado da sociedade. Assírio & Alvim.
Lisboa.
Blumer D (2002): The Illness of Van Gogh. Am. J. Psychiatry; 159: 519-526.
Jamison KR (1993): Touched with fire. Manic-Depressive Illness and the
Artistic Temperament. New York.
Jaspers K (2001): Genio artístico y locura. Strindberg y Van Gogh. El
Acantilado. Barcelona.
Vallejo Nágera JA (1996): Locos egregios. Planeta. Barcelona.
Van Gogh V (2004): Cartas a Theo. Paidós Estética. Barcelona.
Filmes:
Lust for life (1956)-Vincente Minnelli
Vincent e Theo (2000)-Robert Altman

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