A Saliva de Jesus
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A Saliva de Jesus
A força da saliva de Jesus Página 1 de 5 - Análise de Mc 8,23 e Jo 9,6 – Introdução Certamente todos já nos perguntamos alguma vez qual o significado da saliva de Jesus quando lemos os textos da cura do cego (Mc 8,23 e Jo 9,6). Parece um tanto agressivo à nossa mentalidade quando a Bíblia diz que Jesus cuspiu nos olhos do cego (Mc 8,23), ou então, que cuspiu no chão, fez barro para aplicar nos olhos do cego (Jo 9,6). Seria a saliva de Jesus medicinal? Teria ele poderes divinos que se transmitissem através da sua saliva? Havia, de fato, a crença de que a saliva tivesse propriedades terapêuticas. Os relatos de cura com saliva estão neste contexto? Ou será que estamos diante de um significado teológico que vai bem além de uma simples cura de deficiência física e de saliva? No presente estudo veremos dois textos onde Jesus cura cegos através da saliva: Mc 8,23 e Jo 9,6. Análise de Mc 8,23 Para entender o significado da ação restauradora de Jesus através da saliva em Mc 8,23, bem como em Mc 7,33, é preciso lembrar alguns textos do Antigo Testamento. Podemos nos reportar a Is 35,5-6; a Gn 1,1-2,4a e também a Ez 37,1-14. [1] e - Is 35,5-6. Depois de descrever momentos trágicos (Is 34) Israel volta a Sião nesta volta se abrirão os olhos dos cegos. Portanto, Mc 8,23 e também Mc 7,33 realizam os [2] tempos messiânicos de Isaías . Ou seja, Jesus realiza em sua missão, a obra messiânica que vai bem além de uma simples cura física. Abrir os olhos dos cegos e os ouvidos dos surdos não são fatos isolados que se referem a certas pessoas agraciadas, enquanto a cegueira e a surdez continuam em outras pessoas. Trata-se antes, da ação de Jesus em favor dos seus discípulos. Não tanto de curas físicas, mas de um abrir de olhos e ouvidos para enxergar e ouvir outras realidades que a simples natureza humana não permite. - Gn 1,1-2,4a. O texto nos relata a Criação do mundo em seis dias e o descanso no sétimo. Diante de todos os dias da criação o texto afirma: “Deus disse, façase” (vv.3.6.9.11.14.20.24.26). É a Palavra de Deus que cria. Para entendermos esta Palavra [3] de Deus teremos de pensar nos exilados da Babilônia . Lá estavam separados templo, nem podiam fazer sacrifícios. A religião javista estava se apagando e com ela a identidade dos exilados estava se diluindo. No exílio o povo de Jerusalém estava voltando ao caos. O que ainda poderia manter a identidade do povo, ou reconstruir a liberdade ou a esperança de voltar à pátria? A Palavra de Deus, ou seja, o anúncio profético poderia manter a identidade do povo nesta terra distante e manter nele a esperança de um retorno. Assim, a Palavra de Deus anunciada pelos profetas era sinal de criação, ou de recriação. É a Palavra de Deus que mantinha a religião javista e a identidade do povo, bem como a possibilidade de reconstruir a liberdade no retorno. Assim é ela que recria a ordem do caos. - Ez 37,1-14. O vale dos ossos secos é símbolo do povo de Israel no exílio, sem nenhuma esperança. Estão como ossos secos, sua esperança está destruída e sua identidade, apagada. Porém, há uma saída: a Palavra de Deus. Para estes exilados só resta ouvir e praticar a Palavra de Deus para que se reacenda a esperança de voltar para sua pátria. Por isto [4] o profeta é exortado a profetizar : “Profetiza a estes ossos” (Ez 37,4.9.12). Ou seja, a Palavra de Deus anunciada pelo profeta, recria a identidade do povo assim como reconstruiu a vida dos ossos ressequidos que voltaram à vida. Numa terra distante, em cultura estranha, religião idolátrcia, depravação de costumes, só restava a esperança que brotava do anúncio file://C:\Documents and Settings\Bruno\Desktop\A força da saliva de Jesus.htm 2/8/2005 A força da saliva de Jesus Página 2 de 5 da Palavra de Deus, feito pelo profeta Ezequiel. [5] A cura do cego de Betsaida (Mc 8,22-26) é uma cura simbólica . Quer se apontar [6] para a cegueira dos discípulos e dos fariseus . Portanto, a cegueira da qual o discípulo é curada, nada tem a ver com olhos físicos, mas sim, com a maneira de ver Cristo. Para o evangelista Marcos, Jesus realiza as esperanças messiânicas de Is 35,5-6. Ele faz cegos ver e surdos ouvir. A ação de Jesus vem de sua Palavra (saliva), que a exemplo da Palavra de Deus, criou o mundo, tirando-o do caos (Gn 1,3.6.9.11.14.20.24.26). Ou ainda, como a Palavra de Deus anunciada pelo profeta Ezequiel (Ez 37, 4.9.12) revitalizou os ossos, agora a Palavra de Jesus (saliva) tem o poder de revitalizar todos os humanos que jazem à margem da vida (cegueira e surdez). Convém ainda situar Mc 8,23 dentro de sua unidade maior. O referido versículo se situa na perícope de Mc 8,22-26 (o cego de Betsaida), que por sua vez, juntamente com Mc 10,46-52 (o cego de Jericó) forma uma moldura de uma unidade onde a cegueira é tratada [7] com a iluminação que vem de Jesus . Tudo nesta unidade tem a ver com cura de cegueira: A – A cura do cego de Betsaida (8,22-26) – Moldura B – A confissão de Pedro (8,27-30) – cegueira se iluminando C – Três momentos de iluminação de cegueira (8,31-10,45): 1º) Anúncio de morte (8,31), cegueira de Pedro (8,32), Jesus ilumina (8,33ss). 2º) Anúncio de morte (9,30s), discípulos cegos (9,32s), Jesus ilumina (9,35ss) 3º) Anúncio de morte (10,32ss), discípulos cegos (10,35ss), Jesus ilumina (10,42ss) D – A cura do Cego de Jericó (Mc 10,46-52) – Moldura Representação gráfica: Anúncio Mc 8,31 Moldura Base Mc 8,22-26 Mc 8,27-30 Cegueira Mc 8,32 Iluminação Mc 8,33ss Moldura Mc 9,30s Mc 9,32s Mc 9,35ss Mc 10,32-34 Mc 10,35-41 Mc 10,42-45 Mc 10,46-52 Legenda: a representação gráfica mostra como os textos de Mc 8,22-26 e Mc 10,4652 servem de moldura para um trabalho metodológico do evangelista. A unidade de Mc 8,3110,45 se desenvolve em três fases, onde se realça a incompreensão (cegueira) dos discípulos diante dos anúncios da paixão de Jesus. Três vezes Jesus anuncia a sua morte. Três vezes os discípulos não entendem (cegueira), três vezes Jesus ilumina sua cegueira. Assim, a figura dos dois cegos (Betsaida e Jericó) não deve ser vista como pessoas concretas, mas como figura dos discípulos dos tempos da redação do evangelho de Marcos, que têm dificuldades em entender a pessoa de Jesus. De acordo com o acima exposto, percebe-se que Marcos dispôs seu material em forma pedagógica. Ele quer mostrar aos seus leitores que diante de Jesus, os discípulos são cegos. Só Jesus pode tocá-los e, pela graça, abrir os olhos para que vejam a verdade. Tudo, na unidade de Mc 8,22-10,52 gira em torno da incompreensão dos discípulos, ou seja, da cegueira. Assim, nem Pedro, nem Tiago e João, nem os demais entenderam a pessoa de Jesus. Somente o centurião que comandou a crucifixão de Jesus e nada viu a não ser um aparente fracasso de um condenado, teve as vistas abertas para proclamar: “De fato, este homem era mesmo o Filho de Deus” (Mc 15,39). Os discípulos tiveram de reler a história de Jesus a partir do fracasso da cruz. Quem não acompanhar Jesus até a cruz, não pode entende- file://C:\Documents and Settings\Bruno\Desktop\A força da saliva de Jesus.htm 2/8/2005 A força da saliva de Jesus Página 3 de 5 lo de verdade. Nesta perspectiva de cegueira e iluminação trabalhada habilmente por Marcos, o que dizer dos dois cegos (Betsaida e Jericó)? Certamente não estamos diante de relatos de milagres onde se cura as vistas de duas pessoas concretas. Antes, estamos diante de outra realidade. Os dois cegos são protótipos de todos os discípulos que ao longo de todos os tempos precisam receber a saliva (Palavra de Jesus) e assim abrir seus olhos. O milagre da saliva de Jesus com o cego de Betsaida não é um fato do passado contado para a memória gloriosa dos discípulos. Antes, é um fato presente, não de forma física, mas teológica, que ainda hoje impregna os discípulos que sempre de novo devem se confrontar com as palavras do Mestre e assim abrir os olhos e ver os verdadeiros valores da pessoa de Jesus Cristo. Como outrora a Palavra de Deus criara o mundo (Gn 1,1-2,4a) no contexto do exílio e como a mesma Palavra de Deus vivificara os ossos ressecados (Ez 37,114), agora a Palavra de Jesus (saliva) quer criar em cada discípulo a nova realidade do Reino de Deus. Análise de Jo 9,6 O texto de Jo 9,6 difere de Mc 8,23 apenas no sentido de que Jesus cuspiu no chão, fez lama e com ela ungiu o cego. Também neste relato, a saliva de Jesus é a cura do cego. O barro alude à criação do homem (Gn 2,7), bem como ao trabalho do oleiro que molda a sua [8] obra (Is 64,7). Jesus recria o homem, ou seja, o novo homem . A saliva, neste amálgama, cumpre a função da água. E a água, no quarto evangelho, às vezes, tem função de Espírito Santo. Isto se verifica nas palavras de Jesus no templo: “Quem tem sede venha a mim e beba.... Jesus disse isso, referindo-se ao Espírito que deveriam receber os que acreditassem nele. De fato, ainda não havia Espírito, porque Jesus ainda não havia sido glorificado” (Jo 7,37-39). Quando Jesus morre sobre a cruz, de seu lado aberto derrama sangue e água (Jo 19,34). Também neste versículo, a água, como em Jo 7,37-39, é o Espírito Santo derramado sobre a comunidade dos discípulos. Voltando a Jo 9,6 pode-se então dizer: a terra representa [9] a natureza carnal ou física e a saliva, a nova natureza haurida do Espírito . É o Espírito de Jesus agindo na natureza humana. “O barro modelado com o Espírito é o projeto de Deus realizado, cujo modelo é o próprio Jesus, a sua humanidade cheia de glória/amor de Deus. Isto é o que se põe diante dos olhos daquele que nunca viu [10] e não sabe o que é ser homem” . O cego é ungido com o barro (epechrisen). A unção lembra a pessoa do próprio Cristo, o ungido. Assim, o cego é ungido no Espírito por Jesus e este novo homem ungido, enxerga. É a ação do Ungido por excelência (Jesus) transformando o homem limitado no discípulo verdadeiro. Aquele que disse: “Eu sou a luz do mundo” (Jo 8,12) transforma aquele que não entende, pela sua própria condição humana, o que deve ser o ser humano. Aqui também, o cego, mais do que um deficiente físico, é a figura de todo discípulo que sem a luz de Cristo não realiza a sua verdadeira vocação. A iluminação de Jesus se dá como triunfo da luz sobre as trevas (Jo 1,4-5), pois ele mesmo afirma: “Eu sou a luz do mundo” (Jo, 8,12). Em dia de sábado era proibido fazer lodo, mas isto também é cegueira e Jesus transgride este preceito, que nada mais é do que cegueira. “O lodo que o cego deve tirar dos olhos com a água da piscina talvez seja uma [11] imagem plástica da profunda cegueira do homem que Cristo veio dispersar com sua luz” . Também aqui há uma alusão ao Antigo Testamento. O barro lembra a criação do homem (Gn [12] 2,4b-25) . Jesus recria o homem e manifesta as obras de Deus. Como Deus criou a luz (Gn 1,3) e depois completou sua obra, também Jesus recria a luz para este discípulo e depois file://C:\Documents and Settings\Bruno\Desktop\A força da saliva de Jesus.htm 2/8/2005 A força da saliva de Jesus Página 4 de 5 completa nele a sua obra. No cego agraciado de Jo 9,6 pode-se ver todos os humanos que, através do pecado, se tornaram cegos. A iluminação vem de Jesus através de sua palavra e de seu espírito que agem na natureza humana e a transformam. Em outras palavras, o cego é o ser humano entregue a sua situação limitada, incapaz de por si só realizar a sua vocação. O iluminado é figura daqueles seres humanos que se aproximaram de Jesus, que aceitaram a sua graça e [13] com ele fazem novo caminho , ou ainda, aqueles que nascem do alto (Jo 3,3ss), ou como diz Paulo, aqueles que em Cristo se tornaram homem novo (Ef 2,11ss; 4,24). Conclusão Tanto Mc 8,23 quanto Jo 9,6 são textos teológicos e, portanto, não devem ser lidos como relatos históricos. Não se trata de curas físicas, nem tampouco de pessoas concretas agraciadas. Trata-se antes, de textos altamente simbólicos, expressos no contexto bíblico, com base no Antigo Testamento, para mostrar que Jesus de fato é a realização da revelação plena do Pai. Os cegos agraciados são os discípulos de todos os tempos. A saliva é símbolo da Palavra de Jesus e também da água como símbolo do Espírito. Enfim, o cego é o ser humano marcado pelo pecado. O iluminado é a nova criatura que se deixou trabalhar pela graça de Jesus e assim se tornou o homem novo. Bibliografia FABRIS, Reinaldo e MAGGIONI, Bruno. Os evangelhos. S. Paulo: Ed. Loyola, 1992, Vol. III GONZÁLES RUIZ, José Maria. Evangelio según San Marcos. Estella: Verbo Divino, 1998 MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O evangelho de São João. S. Paulo: Paulinas, 1989 MAZZAROLO, Isidoro. Nem aqui, nem em Jerusalém. Rio de Janeiro: Edição do autor, 2000 MINEAR, P. S. Saint Mark. London: SCM Press, 1962 MYERS, Ched. O evangelho de Marcos. S. Paulo: Paulinas, 1992, Col. Grande Comentário Bíblico ZAVINI, Giorgio. Evangelio según San Juan. Salamanca: Sigueme, 1995 [1] [2] [3] [4] [5] [6] [7] [8] [9] ALONSO SCHÖKEL, L. Profetas. p.253. MYERS, Ched. O evangelho de Marcos. p.292 SCHWANTES, M. Projetos de esperança. p.26ss. SCHWANTES, M. Sofrimento e esperança no exílio. p.81. GONZALES RUIZ, J. M. Evangelio según Marcos. p.142. MINEAR, P.S. Saint Mark. p.91. MYERS, Ched. O evangelho de Marcos. p.289. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O evangelho de S. João. p. 410. ZEVINI, Giorgio. Evangelio según San Juan. p.238. [10] MATEOS, J. Op. Cit. p.410. [11] FABRIS, R.; MAGGIONI, B. Os evangelhos. III. p.381. [12] MAZZAROLO, I. Nem aqui, nem em Jerusalém. p.125. file://C:\Documents and Settings\Bruno\Desktop\A força da saliva de Jesus.htm 2/8/2005 A força da saliva de Jesus [13] Página 5 de 5 ZEVINI, Giorgio. Evangelio según San Juan. p. 239. file://C:\Documents and Settings\Bruno\Desktop\A força da saliva de Jesus.htm 2/8/2005