Cultura popular e educação - Base Integradora da TV Escola

Transcrição

Cultura popular e educação - Base Integradora da TV Escola
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Cultura
Popular e
Educação
LUCIA YUNES
1
PROPOSTA PEDAGÓGICA
O folclore e a cultura popular sempre estiveram
presentes nos programas e conteúdos escolares.
De um jeito formal ou de forma transversal, sempre há
um espaço na educação para se tratar desse assunto.
Mas antes de nos propormos a discutir esse campo
de conhecimento, seria bom termos uma conversa sobre
a relação da educação com a cultura, porque aí talvez
possamos encontrar algumas respostas às
preocupações cotidianas do educador no que toca
a essa área.
Cultura, como nós a entendemos, diz respeito ao modo de ser e de viver
dos grupos sociais: a língua, as regras de convívio, o gosto, o que se come, o
que se bebe, o que se veste vão formando aquilo que é próprio de um povo.
Em um país como o Brasil, tão diverso, tão grande, com tantas expressões diferentes, com tantos jeitos de ser, de brincar, de conviver e rezar, que
vão se modificando de lugar para lugar, e a toda hora, não podemos falar de
uma única cultura, mas das muitas culturas que o formam. Será que já paramos para pensar, por exemplo, quantas nações indígenas nós temos? E das
culturas africanas que para cá vieram – não foi uma nação, mas foram muitas a formar o que chamamos de cultura afro-brasileira.
1
Divisão Técnica. Centro
Nacional de Folclore e
Cultura Popular /
FUNARTE / Ministério da
Cultura. Consultora da
série
E os portugueses, foram os únicos? Na verdade, foram muitos os povos
europeus, cada um com suas tradições, línguas, expressões, jeito de ser e
crer, que vieram para cá e, misturados aos diferentes povos indígenas e africanos, ajudaram a formar um país plural e de muitas culturas.
A cultura popular é tudo isso bem misturado e refletido nos muitos jeitos de ser do brasileiro.
Diante de tudo que apontamos, será ainda possível falar de educação
sem integrá-la à questão cultural? Certamente não. E é não porque a educa-
PROPOSTA PEDAGÓGICA
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PROPOSTA PEDAGÓGICA
ção é resultado das práticas culturais dos grupos sociais. O próprio processo
de ensinar e aprender revela essas práticas.
A cultura é o fermento que alimenta, dá forma e conteúdo à educação.
Em sala de aula, experiências, vivências e singularidades estão reunidas. Alunos e professores trazem suas bagagens e histórias. Confrontos, trocas, negações e reafirmações de culturas pulsam o tempo todo nesse convívio. Se
não houver um saber pronto e acabado a ensinar, a educação tem suas chances
de sucesso ampliadas. Se o saber em construção for inclusivo das diferenças, renovam-se as esperanças de que na escola se entenda, como afirma
Carlos Rodrigues Brandão (2001, p.35) que “educar é fazer perguntas” e que
“ensinar é criar pessoas em que a inteligência venha a ser medida, mais pelas dúvidas mal formuladas, do que pelas certezas bem repetidas. De que
aprender é construir um saber pessoal e solidário, através do diálogo entre
iguais sociais culturalmente diferenciados.”
Na série Cultura popular e educação, que será apresentada no Salto
para o Futuro/TV Escola, de 24 a 28 de março, serão propostos temas
significativos para serem discutidos com os professores, em cada um dos
programas.”
Temas que serão debatidos nos programas desta série
PGM 1 O que é, o que é: folclore e cultura popular
A trajetória dos estudos de folclore no Brasil. Folclore e cultura
popular como sinônimos. O dinamismo como característica do folclore/cultura popular. O intercâmbio entre cultura popular, cultura
erudita e cultura de massa. A responsabilidade da escola na transmissão de uma perspectiva conceitual contemporânea sobre folclore e cultura popular.
PGM 2 No melhor da festa
A festa como valor simbólico. Suas razões e finalidades. A natureza
inclusiva das festas. A diversidade e a unidade encontradas em
folguedos populares. A festa como síntese entre sagrado e profano. A escola e as comemorações do dia do folclore.
PGM 3 Quem conta um conto...
A gênese e a estrutura do conto popular. As trocas entre literatura
oral (vocal) e escrita. Os estudos acerca da literatura oral no Oci-
CULTURA POPULAR E EDUCAÇÃO
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PROPOSTA PEDAGÓGICA
dente. A arte de contar histórias: técnicas e segredos. A contação
de histórias na sala de aula.
PGM 4 Engenho e arte
Arte e artesanato. A complexidade da arte popular. Os artistas populares: porta-vozes da sua coletividade e criadores individualizados. O processo e o produto artístico como aspectos do contexto
social e cultural em que estão inseridos. O papel da escola na valorização da arte popular.
PGM 5 Você sabe de quem está falando?
Os diversos modos de ser brasileiro. Patrimônio material e imaterial:
preservar? As questões socioculturais na prática educacional.
BIBLIOGRAFIA
Brandão, Carlos Rodrigues. De Angicos e ausentes: 40 anos de educação
popular. Porto Alegre: Mova-RS; Corag, 2001.
Arantes, Antonio Augusto. O que é cultura popular. São Paulo, Brasiliense,
1981.
Magalhães, Aloísio. E triunfo? A questão dos bens culturais no Brasil. Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1985
Magnami, José Guilherme Cantor. Festa no pedaço: Cultura popular e lazer
na cidade. São Paulo, Brasiliense, 1984.
Mendes, Durmeval Trigueiro. Realidade, experiência e criação. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, nº 130, 1973.
Garcia, Pedro. Subversão pela palavra – uma desordem poético-pedagógica.
Cadernos RioArte, Rio de Janeiro, Sec. Municipal de Cultura, 1985.
CULTURA POPULAR E EDUCAÇÃO
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PGM 1 - Texto 1
O QUE É,
O QUE É:
ENTENDENDO O FOLCLORE
FOLCLORE
E CULTURA
POPULAR
MARIA LAURA
CAVALCANTI 1
A palavra folclore provém do neologismo inglês folk-lore
(saber do povo), cunhado por Williem John Thoms, em
1846, para denominar um campo de estudos até então
identificado como “antigüidades populares” ou “literatura
popular”.
Nesse sentido amplo de “saber do povo”, a idéia de folclore designa
muito simplesmente as formas de conhecimento expressas nas criações culturais dos diversos grupos de uma sociedade. Difícil dizer onde começa e
onde termina o folclore, e muita tinta já correu na busca de definir os limites
de uma idéia tão extensa. É o frevo, o chorinho, o xote, o baião, a embolada,
mas será também o samba, o funk, o rock? É o Natal, a Páscoa, o Divino, o
Boi-Bumbá, mas será também o desfile das escolas de samba? É o artesanato em barro, madeira, trançado, mas será também a arte de Louco ou de
Geraldo Teles de Oliveira?
1
A antropóloga Maria
Laura Cavalcanti, do
IFCS/UFRJ, foi
pesquisadora do Centro
Nacional de Folclore e
Cultura Popular e hoje
dirige a Associação de
Amigos do Museu de
Folclore Edison Carneiro.
Pensamos e pesquisamos um bocado sobre o assunto. Chegamos à conclusão de que mais importante do que saber concretamente o que é ou não
folclore é entender que folclore é, antes de qualquer coisa, um campo de
estudos. Isso quer dizer que a noção de folclore não está dada na realidade
das coisas. Ela é construída historicamente e, portanto, a compreensão do
que é ou não folclore varia ao longo do tempo. Para se ter uma idéia, aqui no
Brasil, no começo do século, os estudos de folclore incidiam basicamente
sobre a literatura oral, depois veio o interesse pela música, e mais tarde
ainda, nos meados do século, o campo se amplia com a abordagem dos
folguedos populares. Para entender o folclore, é preciso conhecer um pouco
de sua história.
I
Os estudos de folclore são parte de uma corrente de pensamento mundial, cuja origem remonta à Europa da segunda metade do século XIX. Ao
O QUE É FOLCLORE E CULTURA POPULAR
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mesmo tempo em que procuravam inovar, esses estudos eram herdeiros de
duas tradições intelectuais que se ocupavam anteriormente da pesquisa do
popular: os Antiquários e o Romantismo.
Os Antiquários são os autores dos primeiros escritos que, nos séculos XVII
e XVIII, retratam os costumes populares. Colecionam e classificam objetos e
informações por diletantismo, e acreditam que o popular é essencialmente bom.
O Romantismo, poderosa corrente de idéias artísticas e literárias, emerge no séc. XIX em associação com os movimentos nacionalistas europeus.
Em oposição ao Iluminismo, caracterizado pelo elitismo, pela rejeição à tradição e pela ênfase na razão, o Romantismo valoriza a diferença e a particularidade, consagrando o povo como objeto de interesse intelectual. O povo,
para os intelectuais românticos, é puro, simples, enraizado nas tradições e
no solo de sua região. O indivíduo está dissolvido na comunidade.
A trajetória dos estudos de folclore no Brasil mantém relações com os
debates do contexto intelectual europeu. Essas duas tradições são incorporadas pelos estudiosos brasileiros que procuram também conferir cientificidade
a seus trabalhos. Entre os pioneiros desses estudos no país, estão autores
como Sílvio Romero (1851-1914), Amadeu Amaral (1875-1929) e Mário de
Andrade (1893-1945). Sílvio Romero é célebre pelas coletas empreendidas na
área da literatura oral e pelo desejo, de origem positivista, de uma visão mais
científica e racional da vida popular. Amadeu Amaral enfatiza a necessidade de
uma coleta cuidadosa das tradições populares, e empenha-se pelo desenvolvimento de uma atuação política em prol do folclore, visto como depositário da
essência do “ser nacional”. Mário de Andrade procura conhecer e compreender
o folclore em estreito diálogo com as ciências humanas e sociais então nascentes no pais. Para ele, o folclore, expressão da nossa brasilidade, ocupa um
lugar decisivo na formulação de um ideal de cultura nacional.
II
A década de 50 transforma o patamar em que se encontravam até então esses estudos. Ela marca o início de uma ampla movimentação em torno
do folclore, reunindo à sua volta nomes como Cecília Meireles, Câmara
Cascudo, Gilberto Freire, Artur Ramos, Manuel Diégues Júnior.
Institucionalmente, essa movimentação é articulada pela Comissão Nacional do Folclore, do Ministério do Exterior, e vinculada a UNESCO (organis-
O QUE É , O QUE É: FOLCLORE E CULTURA POPULAR
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mo da Organização das Nações Unidas). A Comissão é liderada por Renato
Almeida, diplomata e estudioso da música popular. No contexto do pós-guerra, a preocupação com o folclore enquadra-se na atuação em prol da paz
mundial. O folclore é visto como fator de compreensão entre os povos, incentivando o respeito às diferenças e permitindo a construção de identidades
diferenciadas entre nações que partilham de um mesmo contexto internacional. O Brasil de então orgulhava-se de ser o primeiro país a atender à recomendação internacional no sentido da criação de uma comissão para tratar
do assunto.
O conjunto das iniciativas desenvolvidas era designado pelo nome de
Movimento Folclórico. A Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro (CDFB),
criada em 1958 no então Ministério da Educação e Cultura, é o apogeu dessa
movimentação.
A Campanha é um organismo nacional destinado a “defender o patrimônio
folclórico do Brasil e a proteger as artes populares”. Ela traz uma proposta
de atuação urgente: no folclore se encontram os elementos culturais autênticos da nação, porém o avanço da industrialização e a modernização da sociedade representam uma séria ameaça. Por essa razão, a cultura folk deve ser
intensamente divulgada e preservada.
A Campanha participa dos debates intelectuais do país em intercâmbio
com as ciências sociais que se institucionalizam no mesmo período. Fomenta
pesquisas sobre o folclore em diferentes regiões, bem como sua documentação e difusão através da constituição de acervos sonoros, museológicos e
bibliográficos. Data dessa época o embrião do que viria a ser mais tarde o
Museu de Folclore Edison Carneiro e a Biblioteca Amadeu Amaral, da atual
Coordenação de Folclore e Cultura Popular.2
III
2
Posteriormente, a
Coordenação de Folclore
e Cultura Popular passou
a se chamar Centro
Nacional de Folclore e
Cultura Popular.
De lá para cá, os processos de modernização da sociedade se
aprofundaram, a televisão entrou decisivamente no cotidiano nacional, e ao
contrário do que supunha a Campanha em seus primórdios, o folclore não
acabou. O país transformou-se econômica e politicamente. Mudaram também os ideais de conhecimento. Como já diziam alguns folcloristas, o folclore
nasce e cresce também nas cidades: é dinâmico, transforma-se o tempo todo,
incorporando novos elementos. O campo dos estudos de folclore transforma-
O QUE É , O QUE É: FOLCLORE E CULTURA POPULAR
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se também, acompanhando a evolução do conhecimento no conjunto das ciências humanas e sociais. A noção de cultura não é mais entendida como um
conjunto de comportamentos concretos mas sim como significados permanentemente atribuídos. Uma peça de cerâmica é mais do que o material de
que é feita, e a técnica com que é trabalhada. Uma festa é mais do que a sua
data, suas danças, seus trajes e suas comidas típicas. Elas são o veículo de
uma visão de mundo, de um conjunto particular e dinâmico de relações humanas e sociais. Não há também fronteiras rígidas entre a cultura popular e a
cultura erudita: elas se comunicam permanentemente. O compositor erudito
Heitor Villa-Lobos reelaborou musicalmente cantigas de ninar tradicionais.
Muito freqüentemente, o enredo do desfile carnavalesco de uma escola de
samba elabora numa outra linguagem temas eruditos. Na condição de fato
cultural, o folclore passa a ser compreendido dentro do contexto de relações
em que se situa.
Essa abordagem contextualizadora, que faz do objeto um veículo de relações humanas, é a proposta do Museu de Folclore Edison Carneiro, cuja
exposição permanente, inaugurada em 1984, se pretende uma pequena mostra do que está vivo e se transformando no dia-a-dia.3
3
Uma nova exposição de
longa duração foi
inaugurada em 1994.
O QUE É , O QUE É: FOLCLORE E CULTURA POPULAR
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O QUE É,
O QUE É:
FOLCLORE
E CULTURA
POPULAR
BEATRIZ MUNIZ
FREIRE 1
CULTURA POPULAR E AÇÃO EDUCATIVA NO
CENTRO NACIONAL DE FOLCLORE E CULTURA POPULAR
O Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular vem-se
dedicando, desde sua criação (com o nome de
Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro), em 1958, a
pesquisar, documentar e divulgar a cultura popular
brasileira. Trata-se de uma instituição jovem, com pouco
mais de 40 anos, inteiramente comprometida com o
presente, com a cultura popular viva e mutante, sempre
recriada pelos homens e mulheres que são seus autores
e praticantes. Integram o CNFCP o Museu de Folclore
Edison Carneiro – MFEC, os setores de Ação Educativa,
Difusão Cultural, Pesquisa, Museologia e a Biblioteca
Amadeu Amaral, especializada em folclore.
A pesquisa e documentação realizada pelo CNFCP reuniu um acervo,
hoje constituído de objetos, livros, recortes de jornais e revistas, filmes e
vídeos, gravações sonoras em fita, discos e CDs. Esse acervo – museológico,
bibliográfico, sonoro e visual – sobre folclore brasileiro está à disposição do
público, para consulta, pois o propósito do museu ao guardá-lo é torná-lo
disponível para que todos os interessados possam conhecer melhor a cultura
popular dos brasileiros.
1
Beatriz Muniz Freire,
formada em História,
integrou a equipe do
Centro Nacional de
Folclore e Cultura Popular
até 2001.
Mas o que é, afinal, cultura popular? E a respeito de que brasileiros o
Museu de Folclore está falando em sua exposição permanente?
Há muitas maneiras de dizer o que é cultura. Para alguns é sinônimo de
conhecimento letrado, erudição. Para outros, cultura é expressão artística.
Há quem considere cultura um certo tipo de educação, polidez, bons modos.
Para a Antropologia – a ciência social que orienta nosso trabalho –,
cultura tem uma definição bem mais abrangente e se refere à capacidade
que só os seres humanos têm de dar significados às ações que praticam, à
O QUE É FOLCLORE E CULTURA POPULAR
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realidade natural e à realidade construída que os cerca, aos comportamentos de animais e de pessoas.
Essa capacidade é exercida em grupo, quer dizer, cada grupo de pessoas que vivem juntas vai dando significados próprios às coisas. Assim, dentro
de uma mesma sociedade, diferentes grupos (classes sociais, grupos de idades, membros de corporações profissionais, etc.) podem dar significados distintos para um mesmo fato ou fenômeno. Conseqüentemente, desenvolvem
maneiras distintas de vê-lo e de reagir a ele. A rede de significados e práticas
de um grupo social é o que chamamos de cultura.
Quer dizer, tudo o que os homens e mulheres aprendem com o grupo
em que vivem, a começar pela língua que falam, seu modo de definir o que é
feio ou bonito, certo ou errado, as técnicas, as regras sociais, as formas de
expressão, tudo isso é cultura.
Você já percebeu que cultura, no sentido antropológico, tem muito a ver
com comunicação, não é mesmo? Cultura é um mundo de significados, é um
código simbólico construído socialmente, isto é, em grupo, e compartilhado
por todos os seus integrantes. Cultura é construção.
Todos os seres humanos são capazes de criar cultura, todos têm cultura. Mas ninguém nasce assim – cultura é algo que se adquire, na convivência
em grupo. Quer um exemplo?
Um bebê, quando vem ao mundo, nada sabe, além de sugar o dedo. Ele
está biologicamente equipado para aos poucos desenvolver a fala. Mas a língua
que vai falar dependerá do grupo social ao qual pertence. Uma criancinha
Fulni-ô – que é um grupo indígena de Pernambuco – primeiro vai aprender com
os pais, irmãos e outros parentes a falar o Yathé, que é o idioma desses brasileiros indígenas. Só depois ela aprenderá o português. Se uma criança nascer
no Rio de Janeiro, vai aprender o jeito carioca de falar o português. Se nascer
numa cidade da fronteira do Rio Grande do Sul com países vizinhos, é bem
possível que aprenda, além do português, um pouco de castelhano... O que
essa criança vai comer, como vai se chamar, como será tratada, o que vai vestir, como vai brincar, que pessoas vai poder considerar parentes... Tudo isso
depende do grupo que a cerca e ao qual ela pertence. Cultura é, portanto, algo
que se adquire, não é natural, não está definido em nossa biologia
Exatamente por ser construída é que a cultura pode ser tão variada –
cada grupo desenvolve a sua – e pode ser, também, transformada, modifica-
O QUE É, O QUE É: FOLCLORE E CULTURA POPULAR
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da pelos próprios integrantes do grupo, por meio de contato e convivência
com outros grupos. Cultura é algo que pode ser trocado: temos nossa cultura, mas podemos compreender as alheias.
Cultura popular brasileira designa os saberes e fazeres do povo brasileiro. Mas que povo é esse? Quem são os brasileiros, afinal?
O povo brasileiro sobre o qual o MFEC fala (nas exposições que realiza) é
um povo plural, cuja trajetória, desde a formação até os dias de hoje, tem possibilitado o encontro e a combinação de tradições culturais diversas, recriadas
em combinações novas, brasileiras. A história desses encontros e criações –
que é a própria história brasileira – é marcada por conflitos e contradições.
Aprendemos na escola e ouvimos, a toda hora, os meios de comunicação repetirem que nosso povo é “o resultado da junção de representantes de
três raças; o branco, o negro e o índio”. Mas, pense bem, será que o conceito
de raça é adequado para explicar nossa formação social e cultural?
Historiadores dedicados ao estudo do período colonial comentam a dificuldade de comunicação enfrentada pelos primeiros africanos escravizados
que para cá foram trazidos. É que eles pertenciam a diferentes sociedades
tribais, que viviam em diferentes locais da África – Costa Ocidental, Costa
Austral e Costa Oriental – e falavam línguas distintas. O colonizador os igualava, denominando-os todos ‘negros’, vendo-os como mão-de-obra e não como
indivíduos dotados de uma história e de valores próprios dos diferentes povos dos quais se originavam. Um negro norte-africano não era igual ao negro
do centro do continente ou ao negro sul-africano. O que chamamos de cultura
afro-brasileira é o resultado das vivências de africanos de diferentes sociedades, que aqui se encontraram, combinaram e recriaram distintas tradições, hoje revividas e atualizadas por seus descendentes. Quer ver um exemplo? Segundo o percussionista Naná Vasconcelos, a capoeira e o berimbau
vieram da África, mas lá existiam em locais distintos; só aqui foram associados, de tal modo, que não somos capazes de imaginá-los separadamente.
O mesmo podemos dizer a respeito dos brancos, colonizadores. Quem
eram eles? Portugueses, espanhóis, franceses, holandeses, no início. Mais
tarde, outros brancos, alemães, italianos, ucranianos, judeus ortodoxos, libaneses, para cá migraram em busca de melhores oportunidades. Alguns
vinham do campo, outros da cidade. Tinham experiências de vida distintas,
conhecimentos distintos. Diferiam na fé – uns católicos, outros protestantes,
outros, ainda, seguidores do judaísmo e do islamismo.
O QUE É, O QUE É: FOLCLORE E CULTURA POPULAR
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E quanto aos índios que aqui viviam? Impossível saber em quantos povos se
organizavam. Hoje, são mais de 200 sociedades, cada qual com sua língua, seu
modo de agir e de pensar, sua política, suas regras sociais, sua ética, sua maneira
de adornar o corpo e de educar os filhos, seus rituais. O colonizador os igualava
no nome – índios –, mas soube, desde o início, tirar proveito das diferenças entre
eles, explorando, por exemplo, as inimizades entre tribos do litoral. Os portugueses aliaram-se aos Tupiniquim, enquanto os franceses ficaram “amigos” dos
Tupinambá. Esses povos indígenas se enfrentaram na disputa dos territórios que
os europeus haviam invadido. Ainda hoje as sociedades indígenas brasileiras lutam pelo reconhecimento de suas identidades e necessidades específicas, como
a demarcação de territórios onde possam viver, cada uma a seu modo.
O povo brasileiro, além de multiétnico, é pluricultural, desde os primeiros tempos. Não havia, como não há atualmente, uma única cultura branca,
outra negra e outra indígena. Brancos, negros e índios diferiam uns dos outros, e cada um desses grupos tinha suas diferenças internas.
A história que nos contam sobre nossa formação, apelidada pelo antropólogo Roberto Da Matta de ‘fábula das três raças’, procura apagar essas e
outras diferenças, reduzindo-as a um punhado de “contribuições de cada raça”,
das quais se teriam originado as “qualidades do povo brasileiro”. Uma fábula
cor-de-rosa que foi incluída nos currículos escolares nos anos 60 e 70, período em que sucessivos governos se esforçaram por difundir a imagem de um
Brasil integrado, coeso, cujo povo se constituiria numa unidade harmoniosa.
Na realidade, contudo, multiplicavam-se os conflitos resultantes da ocupação
do interior do país, das diferenças políticas, ideológicas, culturais e sociais
que sempre caracterizaram o povo brasileiro.
Podemos repensar a história de nossa formação, reconhecer as diferenças culturais e sociais e relacioná-las às situações que vivemos e observamos hoje em nosso país. Pense nisso ao estudar folclore com seus alunos,
pois o ‘saber do povo’ (que é o que a palavra inglesa folk-lore significa), os
modos de ser e de pensar dos diferentes grupos que integram o povo brasileiro se desenvolveram como parte de uma história que continua em curso.
Então, voltando à pergunta do início deste texto, o povo brasileiro, criador do folclore do qual o MFEC trata, é um povo culturalmente diversificado, é
plurilíngüe e é socialmente diferenciado.
Numa sociedade tão diversificada e dividida como a brasileira, a cultura popular é vista de diferentes maneiras. Mais correto seria dizermos que
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há culturas populares. Pode ser, então, que nosso discurso não coincida
com o que muitos livros didáticos afirmam. Nosso compromisso é difundir
uma visão contemporânea de folclore e cultura popular. Cada objeto, livro,
filme ou gravação sonora que integra nossos acervos é um documento dos
diferentes modos de ser e de viver dos brasileiros. Procuramos estudar
também as diferentes maneiras como a cultura popular é compreendida,
desde o fim do século XIX, quando se iniciaram os estudos de folclore no
país, até hoje.
Quando for estudar folclore com seus alunos, considere-se diante não
de uma disciplina bem delimitada e com fronteiras claramente definidas, mas
de um campo de estudos. A esse respeito, leia o texto de Maria Laura
Cavalcanti, “Entendendo o folclore”.
As formas de conceituar folclore e as metodologias empregadas em sua
pesquisa e documentação vêm mudando ao longo do tempo. Desde os anos
80 a equipe do CNFCP se orienta pelas concepções e utiliza as práticas de
pesquisa da Antropologia para interpretar o folclore brasileiro, afastando-se
da visão idealizada que marcou os primeiros anos de pesquisa folclórica no
país e que continua sendo veiculada, de forma resumida e padronizada, pelos
textos didáticos.
Quando falamos sobre cultura popular estamos nos referindo não apenas às manifestações festivas e às tradições orais e religiosas do povo brasileiro, mas ao conjunto de suas criações, às maneiras como se organiza e se
expressa, aos significados e valores que atribui ao que faz, aos diferentes
modos de trabalhar, aos jeitos de falar, aos tipos de música que cria, às
misturas que faz na religião, na culinária, na brincadeira.
Em vez de tentar definir o que é certo ou errado em matéria de folclore,
o que queremos é compreender os muitos caminhos pelos quais permanece
vivo e se transforma. Que encontros e combinações de tão distintas tradições são praticados pelos brasileiros? Que criações resultam das tantas misturas culturais que esse povo é capaz de fazer? Como o popular e o erudito se
combinam? Que relações são possíveis entre folclore e cultura de massa?
Você, professor(a), também se depara com essas questões no seu diaa-dia profissional. Talvez tenha dúvidas sobre o que fazer quando seus alunos insistem em comemorar o Hallowen ou quando um ‘alucinado’ pelo rap
pede para incluir esse tipo de música na festa junina da escola, alegando que
se trata de uma manifestação popular.
O QUE É, O QUE É: FOLCLORE E CULTURA POPULAR
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Pode não ser fácil pensar a cultura popular como sinônimo de movimento e troca, até porque os textos didáticos costumam, com raras exceções,
afirmar o inverso, repetindo que folclore é traje típico, comida típica, cultura
de região, é tradição que permanece, é essência que quase não muda. Mas,
pense bem, será que aquilo que não muda pode continuar vivo e significativo,
quando a vida dos brasileiros vem sofrendo tantas mudanças, nos últimos 50
anos de nossa história?
Muitos dos textos didáticos sobre folclore foram escritos nos anos 60 e
70, e reeditados sem qualquer revisão, apenas com ‘cara nova’. São textos
que associam cultura com a divisão geopolítica do país em cinco grandes
regiões, e falam de ‘cultura regional’ identificando o que seriam suas características “típicas”. Mas se cultura é um conjunto, uma rede de significados e
práticas, será que podemos apreendê-la por traços isolados?
Esses textos ignoram as mudanças provocadas no mapa cultural brasileiro pelas migrações internas e pelo avanço da comunicação de massa. Já
não há mais correspondência literal entre, por exemplo, o modo de ser nordestino e a Região Nordeste. Nordestinos migrados para o Centro-Oeste e
para o Sudeste criam e recriam o Nordeste em outros cantos do Brasil. Trabalhar a cultura nordestina com seus alunos – tomando por referência os
movimentos migratórios, a dificuldade de adaptação dos nordestinos decorrente do preconceito que sofrem, as influências que exercem sobre outros
brasileiros com os quais se relacionam – é uma maneira possível e interessante de estudar a cultura popular brasileira.
O propósito da ação educativa desenvolvida pelo Centro é justamente
auxiliar os educadores a encontrarem alternativas para o estudo de folclore,
dentro e fora da escola.
E, porque compreendemos educação não apenas como a transmissão
de informações, mas como o desenvolvimento da capacidade de relacionar
os conteúdos e criar interpretações pessoais, não temos dúvidas de que a
atuação do educador é sempre decisiva – é você, professor(a), quem vai auxiliar seus alunos a estabelecerem as relações possíveis entre o que já sabem e as descobertas que a escola e seus parceiros, como o museu, podem
propiciar.
O QUE É, O QUE É: FOLCLORE E CULTURA POPULAR
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O QUE É,
O QUE É:
FOLCLORE
E CULTURA
POPULAR
RICARDO
GOMES LIMA 2
CLAUDIA MARCIA
FERREIRA 3
O MUSEU DE FOLCLORE E AS ARTES POPULARES1
Quando, em 22 de junho de 1947, foi inaugurada na
Biblioteca Castro Alves do Instituto Nacional do Livro,
no Rio de Janeiro, a “Exposição de Cerâmica Popular
Pernambucana”, tornavam-se públicas a vida e a obra
de um dos maiores artistas brasileiros: o Mestre Vitalino
dos bonecos de Caruaru.
É provável que, naquela ocasião, o arte educador e também artista plástico Augusto Rodrigues, idealizador do evento, não tivesse vislumbrado toda
a dimensão de seu gesto. Mais do que se apresentar ao mundo a obra de
Vitalino Pereira dos Santos (1909 - 1963), escrevia-se um novo capítulo da
história da arte no país. Introduziam-se, no domínio da arte, até então centrada
em sua quase totalidade na produção de caráter marcadamente erudito, objetos dotados de uma estética particular, posto que originários de outro universo, que se convencionou denominar arte popular.
Segundo Lélia Coelho Frota, essa exposição
“(...) que representa o início da descoberta das artes populares pelas elites intelectuais, é conseqüência de um processo histórico-cultural ligado à filosofia do Movimento Modernista de 22 e do Movimento Regionalista do Recife,
iniciado naquela cidade em 1923. Tratava-se de recuperar, para a norma erudi-
1
2
3
Artigo originalmente
publicado na Revista do
Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional,
Brasília, n. 28, p. 101-119,
1999.
Ricardo Gomes Lima é
antropólogo e chefia o
setor de Pesquisa do
CNFCP.
Claudia Marcia Ferreira é
museóloga e coordena o
CNFCP.
ta, aqueles aspectos da realidade brasileira que constituem a cultura popular, e
que até hoje representam para a elaboração do nativismo um repertório de extraordinário vigor e riqueza.” (Frota, 1986:11)
De 1947 aos dias atuais, outros capítulos dessa história foram escritos.
Constituíram-se coleções públicas e privadas, realizaram-se exposições, foram editados livros, filmes e vídeos voltados à análise e à divulgação das
expressões de uma arte oriunda de indivíduos pertencentes às camadas populares ou resultante da ação de comunidades organizadas em torno da produção de objetos da cultura material.
o que é folclore e cultura popular
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Nesse período, observa-se também a criação de instituições
museológicas no país, cuja finalidade precípua inclui a coleta, a guarda e a
exposição de objetos de origem popular. Tais instituições surgem no contexto de implantação de mecanismos de proteção ao folclore nacional, a partir
da iniciativa de uma rede organizada de intelectuais, convencionalmente nomeada Movimento Folclórico Brasileiro (cf. Vilhena, 1997).
Com intensa mobilização, esse Movimento instituiu a Comissão Nacional
de Folclore no âmbito do Ministério das Relações Exteriores, comissões estaduais e a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, posteriormente Instituto Nacional do Folclore e hoje Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, órgão da Funarte, Ministério da Cultura.
Como estratégia de ação, o Movimento organizou sucessivos congressos e semanas de folclore com intuito de reunir folcloristas e pesquisadores
em torno de temas comuns a esse campo de conhecimento. Já no primeiro
congresso, realizado em 1951 no Rio de Janeiro, clamava-se por espaços
museológicos voltados para a cultura popular. Naquele encontro, foi elaborada a “Carta do Folclore Brasileiro”, documento que se propunha guia das
ações a serem implementadas pelos folcloristas e no qual, a respeito da criação de museus de folclore, se lê:
1. É inadiável a necessidade de preservar os produtos da inventiva popular,
tanto os de caráter lúdico e religioso como os de caráter ergológico. A
guarda desses objetos deve ficar a cargo de instituições apropriadas, e
sob a direção de órgãos ligados à pesquisa e ao estudo do folclore, devido
tanto ao caráter coletivo dessa tarefa como ao longo tempo indispensável
à coleta e classificação dos dados para lhes dar interesse didático.
2. Recomenda, pois, o Congresso a criação, no Distrito Federal, do Museu
Folclórico Nacional, com uma das suas divisões ou um museu subsidiário
dedicado ao folclore e às artes populares da Capital da República e de
museus folclóricos por parte das Comissões Regionais, nas Capitais e nos
Municípios em que a sua criação se revelar exeqüível, proveitosa e representativa (...).
3. Para a efetivação destas medidas, a Comissão Nacional de Folclore pedirá aos governos estaduais que auxiliem, na medida do possível, a criação
e organização dos Museus Folclóricos locais, seja assegurando-lhes facilidades de instalação, seja emprestando técnicos de museu, seja subvencionando no todo ou em parte as suas atividades (...) e as Comissões Esta-
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duais de Folclore se entenderão com os poderes públicos locais no sentido de obter deles a cessão, para a formação dos museus estaduais, de
objetos de uso e criação popular porventura existentes em repartições
não especializadas, como as chefaturas e delegacias de polícia (...)
Como resultado da mobilização empreendida pelos folcloristas, foram
feitas várias tentativas, algumas mais bem-sucedidas do que outras, visando
à criação de museus em diversos estados, destacando-se Espírito Santo e
Paraná em 1953, São Paulo em 1954, Distrito Federal em 1956 e Minas Gerais em 1965. Embora pudessem comportar objetos coletados nos mais diferentes pontos do país, esses organismos tinham seus acervos voltados primordialmente para a cultura material local. Permanecia, portanto, o país sem
uma instituição museológica dedicada ao folclore nacional e que abrigasse a
arte oriunda do povo brasileiro em sua totalidade.
A criação desse órgão no âmbito federal era reclamada por intelectuais
da época, como o antropólogo Manuel Diégues Júnior que, em 1954, constatava “quanto nos faz falta um Museu de Arte Popular, de Folclore, de Tradições Populares, de Técnicas Populares, de Etnografia, ou que outro nome
tenha, mas que seja um museu representativo de nossa cultura popular.”
(Diégues Júnior, 1954)
Esse quadro só foi revertido em 1968, com a fundação, no Rio de Janeiro, do Museu de Folclore que, em 1976, passou a ser denominar Museu de
Folclore Edison Carneiro - MFEC. Criado pela então Campanha de Defesa do
Folclore Brasileiro, em convênio com o Museu Histórico Nacional, o Museu de
Folclore foi inicialmente instalado numa das dependências do Palácio do Catete
e, no decorrer do tempo, ampliou gradativamente seus espaços, com a incorporação do prédio 179 da Rua do Catete, em 1975, da antiga garagem do
Palácio, em 1980, e do prédio 181 da mesma rua, em 1983.
De 1968 até os dias atuais, o MFEC fez crescer seu acervo, hoje composto de 14 mil objetos, em sua maioria coletados a partir de pesquisa de
campo, cuja tônica tem sido ditada, sobretudo a partir de 1982, pela antropologia social. Renovando critérios teóricos e museológicos, o Museu volta-se
para estudos etnográficos que contextualizam os objetos reunidos, respaldando-se em ampla documentação de campo e minucioso registro museológico
(cf. Lima, 1985).
Na constituição de seu acervo, o MFEC entende os produtos da cultura
em seu sentido antropológico contemporâneo, isto é, não como meros obje-
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tos cuja função se esgota na matéria de que são feitos, mas sim como formas
concretas que, em sua materialidade, comportam e expressam sistemas de
significação que lhe são permanentemente atribuídos e, portanto, constitutivos
de nossa humanidade. São bens culturais que participam do patrimônio de
toda a nação e estão disponíveis ao público sobretudo por meio das mostras
permanente, temporária e itinerantes que o museu organiza.
Entre as ações institucionais, a exposição permanente é um dos canais de
difusão da arte popular mais privilegiados pelo museu. Reformadas em 1994,
suas galerias ocupam hoje uma área de 1.600 m2. Para projetá-las, uma questão logo se colocou: como um museu de folclore e cultura popular, de abrangência
nacional, constrói um enredo, desenvolve um fio pelo qual seja possível abordar
o homem brasileiro em suas múltiplas faces? Como dar conta dos repertórios,
dos variados temas, das questões tratadas pelo museu?
A partir do entendimento de que folclore é um campo, permanentemente renovado, de significados atribuídos às “coisas” sociais, e da discussão
sobre a criação desse universo no Brasil, deu-se início ao debate sobre a
maneira de abordar questões a ele referenciadas, de forma ampla, isto é,
com o maior número possível de especialistas. Observações advindas dos
projetos educativos, da visitação de público e, sobretudo, o estudo do Livro
de opinião do visitante, tornaram-se a base para identificar lacunas, suprir
carências, “perceber ruídos” que comprometiam as mensagens implícitas no
circuito daquela montagem da exposição que, inaugurada em 1983, permanecera aberta a público por 10 anos. Ela serviu de laboratório de estudo do
qual resultou um fio que costura as seguintes unidades temáticas constituintes da atual exposição:
Apresentação da mostra e introdução da discussão sobre a diversidade
da cultura brasileira, resultante do encontro – e do confronto – de diferentes
etnias, não apenas genéricos colonizadores portugueses, índios e escravos
africanos, mas diferentes e particulares grupos culturais que para aqui vieram em épocas distintas e por razões várias.
Módulo Vida, que reúne representações sobre o ciclo de vida dos indivíduos e as marcas culturais que a ele se impõem. São objetos que retratam
cenas ritualizadas de nascimento, batizado, namoro, casamento, enterro; o
universo infantil da escola, dos brinquedos e das brincadeiras tradicionais,
masculinos e femininos; o trabalho da casa e da rua, desempenhado por homens e mulheres, e os momentos de lazer e ócio, tais como a batucada num
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botequim e a ciranda dançada em praias nordestinas; representações das
vidas que, ao longo do território nacional, são encontradas em constante
processo de transformação estimulado pelos meios de comunicação de massa, mas preservadas na memória, na transmissão oral, no resgate das marcas culturais e registradas por arte e engenho de mestres do barro – como
os do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, do Vale do Paraíba paulista ou
do Alto do Moura, em Caruaru/PE –, do tecido – que confeccionam, por
exemplo, bonecas de pano, como os da comunidade do Chapéu Mangueira e
da Cooperativa Abayomi, ambas no Rio de Janeiro – ou da madeira – como o
mineiro Antônio de Oliveira, que resume o módulo com a peça Escada da Vida
–, entre outros materiais.
O módulo Técnica apresenta, em ambientações, diversas tecnologias
tradicionais de produção de alimentos – por exemplo (uma “casa de farinha”
ou “retiro”, vinda do Pará e uma adega de produção familiar de vinho, de
tradição italiana da região de Caxias do Sul/RS), além de pólos produtores de
cerâmica (Maragogipinho/BA e Apiaí/SP), o universo das tecelãs goianas,
comunidades pesqueiras e seus implementos de linha e trançados, finalizando numa ambientação que remete o público para mercados e feiras populares, espaços privilegiados do escoamento da produção artesanal, e que também abrigam outros prestadores de serviços e artistas como lambe-lambes,
sábios praticantes da medicina popular, cantadores e cordelistas e
mamulengueiros com seus títeres.
No exercício de sua fé, não é raro o brasileiro aglutinar santos católicos, orixás do candomblé e entidades da umbanda. O estabelecimento de
laços entre os homens e suas divindades, meta da religiosidade popular, está
representado, no módulo Religião, por ex-votos coletados no Ceará, ferros
de assentamento de orixás recolhidos na Bahia e por uma procissão
ecumênica, diante da imagem de São Jorge que tem à frente uma bandeira
de São Benedito. Relevante marca cultural, a música – que permeia os vários
espaços – é aqui representada por atabaques rituais com suas especificidades
afro-brasileiras.
Na linguagem de danças, cantos, fantasias e comidas, o brasileiro fala
sobre a sociedade em que vive, seus valores e crenças. Nas festas, e por
meio delas, são permanentemente construídas maneiras de viver e ver o
mundo. Enfatizando o processo que culmina no grande evento, o módulo Festas destaca as rodas de candomblé presentes na Bahia, no Rio de Janeiro e
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em tantas outras partes deste país; o maracatu a encantar com seus caboclos de lança o carnaval pernambucano; as escolas de samba, os clóvis e
outros mascarados de rua dos múltiplos carnavais cariocas; as folias-de-reis
e sua devoção natalina, também em terras do Rio de Janeiro; a cavalhada
que mistura muitas cores ao vermelho do Divino de Pirenópolis/GO, as danças do cururu mato-grossense em honra de São Gonçalo e o boi – este do
Maranhão –, que bumba neste país de Norte a Sul.
No módulo que encerra a exposição, nomeado Arte, adentra-se o universo daqueles indivíduos provenientes de extratos populares que, na
materialidade dos objetos que criam, expressam sentimentos, visões de mundo
e vivências particularíssimos, posto que resultantes de processo criativo individual, ao mesmo tempo em que revelam experiências coletivas praticadas
pelos grupos culturais dos quais participam. São esculturas em barro ou
madeira, gravuras, pinturas, coletadas em diversas localidades, de autoria
de artistas da magnitude de Mestre Vitalino, Nhô Caboclo, Luzia Dantas, GTO,
Chico Tabibuia, Galdino, Antonio Poteiro, Waldomiro de Deus, Maria de Beni,
Conceição dos Bugres e outros mais.
A ação institucional deste museu, que as galerias de exposição permanente espelham, faz-se, assim, pautada no universo simbólico de vasto segmento da população brasileira ligado a formas tradicionais de produzir,
vivenciar e transmitir cultura. Nesse sentido, o MFEC, reconhecendo a
pluralidade cultural do país, busca também o reconhecimento das culturas
tradicionais populares, entendendo-as enquanto importante fator de constituição e fortalecimento das múltiplas identidades locais, regionais e nacional,
base da cidadania que hoje o país tanto discute.
O Museu está ciente do lugar que ocupa enquanto instância de consagração da arte popular junto aos diferentes segmentos da sociedade nacional, e
busca instigar no olhar, predominantemente estético, do público, a percepção
do espaço ocupado pelo objeto no seu contexto original de produção e fruição.
No entanto, lidar com a produção plástica de origem popular no Brasil
contemporâneo é tarefa bastante complexa. As dificuldades em definir
parâmetros que delimitem esse universo estão referidas a diferentes fatores,
alguns internos ao próprio campo teórico de conceituação de termos como arte
e povo e outros que dizem respeito à dinâmica de transformação social vivida
pelo país, sociedade plural em que convivem os mais diferenciados contextos e
dos quais emanam as mais diversas expressões de arte (Lima, 1997).
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Assim como folclore e cultura popular são noções surgidas a partir do
ideário romântico europeu do século XIX (Burke,1989), o conceito de arte
popular é uma criação social, historicamente elaborada que carrega em si
mesma inconsistências teóricas que diferentes trabalhos têm evidenciado
com propriedade (Neves, 1979; Soares, 1983).
Sem pretender ampliar em demasia considerações acerca de sua origem, é necessário salientar que folclore, cultura e arte populares são expressões há muito cunhados para designar visões de mundo, práticas e produtos sociais considerados diferentes daqueles próprios dos grupos
hegemônicos da sociedade.
Foi a partir da ênfase na diferenciação entre elite e povo, vistos como
universos apartados por fronteiras rígidas e claramente definidas, que o conceito de arte popular se estabeleceu. E é nesse contexto que a expressão é
entendida como uma categoria reversa, isto é, aquela que, para existir, necessita de seu anverso. Assim, numa dada realidade cultural, a condição de
existência de uma arte denominada popular decorre da presença, nessa mesma realidade, de outro tipo de arte, a que alguns estudiosos se referem como
sendo a ARTE, erudita ou de elite. Arnold Hauser é um dos estudiosos que
defende essa abordagem, argumentando:
“Não poderá mesmo se falar, de forma alguma em ‘arte popular’ enquanto
a diferenciação das sociedades rurais em classes não se estiver estabelecida; e
isto porque a ‘arte popular’ só tem sentido quando contraposta à ‘arte dos grupos ou classes dominantes’. A arte de uma coletividade que não se encontra
ainda dividida em camadas, em ‘dirigentes e dirigidos’, não pode ser considerada como ‘arte popular’ pela simples razão de que não existe a seu lado qualquer
outra espécie de arte.” (Hauser,1972:38)
No Brasil, a polarização em torno das noções de povo e elite determina
duas visões distintas: a que entende a arte popular como forma de
contracultura em relação à arte erudita, uma forma de resistência à dominação de classe, e aquela para a qual o popular nada mais é do que uma imitação rústica e deteriorada dos modelos da tradição acadêmica, uma cópia
empobrecida de expressões eruditas da arte (cf. Soares, 1984). Em ambos os
casos prevalece a noção de arte popular como “outro” espécime, distinto dos
cânones da cultura dominante e que, por extensão, participa de outro mundo,
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do passado, mundo esse que se define pela oposição à sociedade moderna,
vista como o locus da arte erudita, considerada de vanguarda.
Nesse sentido, as expressões da produção popular brasileira, quando
inseridas no campo que se denomina folclore, geralmente sob o rótulo de
arte ou artesanato populares, são tidas como sobrevivência de formas culturais que um dia foram atuantes mas já não o são mais. Sua existência é entendida como persistência, como um conjunto de objetos, práticas e concepções que, oriundos do passado, se conservam, como resíduos, comumente
nas áreas rurais e mais pobres do país, tidas como conservadoras e, portanto, menos permeáveis a mudanças.
Essa perspectiva traz, como conseqüência, a mistificação da noção de
popular, idealizada enquanto cultura “autêntica”, “pura”, testemunho de uma
realidade de outrora, mais nobre, que caberia a todo custo conservar e defender de influências espúrias, posto que lhe cabe o papel ora melancólico de
sobrevivência condenada ao desaparecimento, ora redentor de representante das “raízes”, da identidade e da nacionalidade.
“Desse modo, assim como a arte dos povos primitivos, dos loucos e das
crianças, enfim, formas de expressão estética estranhas ao domínio da arte
erudita ocidental, o objeto de origem popular é tido como algo ingênuo, pitoresco, curioso, no mínimo típico e original (no sentido de bizarro, extravagante e
não de inédito ou único), e contraposto a uma arte auto-eleita como normal,
paradigmática e não-popular. Como suas similares, por exclusão e inferioridade, a arte popular é então percebida, classificada e julgada de acordo com
parâmetros que lhe são externos, forjados por visão preconceituosa que confunde alteridade com inferioridade” (Neves, 1979).
A oposição elite x povo conduz ainda a outros desdobramentos, como
aquele que atribui às camadas dirigentes o saber, opondo-se-lhes o fazer,
associado aos estratos inferiores da sociedade. Ao dissociar a obra intelectual do trabalho manual, condena-se a arte popular ao domínio da
irracionalidade, da inconsciência, da espontaneidade do mero fazer, excluindo-se dela todo esforço consciente e intencional de produção. Isto tem implicado afirmações no mínimo equivocadas como a de imputar ao artista o “dom”
de simplesmente fazer, de deixar as mãos cumprirem espontaneamente a
missão de transmitir um sentimento de mundo, modelando-o a seu modo próprio. O ato de criação popular é, então, enaltecido como fenômeno por meio
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do qual se revela uma força ou entidade transcendental, externa ao homem,
possibilitando a criação de formas merecedoras do estatuto de arte, de difícil
explicação.
Tais premissas trazem subjacente o pressuposto de que as populações
pobres estão voltadas para a sobrevivência estrita, embotante, semi-animal e
que, portanto, suas criações, já por si motivo de admiração e estranhamento
por existirem em realidades sociais tão adversas à revelação do “belo”, são
produtos da instintividade distantes da reflexão e da sensibilidade. A arte popular seria, assim, composta de objetos que cercam o cotidiano de indivíduos
voltados apenas para a satisfação das necessidades práticas e imediatas de
sobrevivência, o que retira dos agentes sociais que lhe dão concretude a capacidade de abstração e de sofisticação, consideradas apanágios da arte da elite.
Em contraposição, o artista erudito é visto como aquele que,
deliberadamente, atua visando a resultados determinados por ele mesmo,
graças à razão consciente de que é dotado. Sua obra, quanto mais expressar
conteúdos e questões definidas como relevantes para um contexto de época,
mais atestará a capacidade de criação individual do autor e sua genialidade.
“Ao contrário do que propõem tais afirmações, com freqüência destituídas de
suporte teórico ou histórico, pesquisas realizadas junto a grupos sociais específicos
têm demonstrado que uma das características da arte popular, enquanto processo
de trabalho, reside exatamente na integração das atividades manual e intelectual, na
associação visceral entre a obra produzida e seu autor.” (Alvim, 1983).
Defender a existência de fronteiras rígidas que separem o fazer do pensar, o manual do intelectual, o povo da elite significa apostar na existência de
dois mundos radicalmente apartados, onde florescem artes de naturezas distintas. Nessa perspectiva, constata-se uma noção estática de realidade que
não atenta para o fluxo de valores e modelos de comportamento – as influências recíprocas que perpassam os diferentes estratos sociais que compõem
a sociedade. Ao contrário, no Brasil, o que verificamos na arte popular contemporânea é a presença de um intenso processo de criação, em permanente diálogo com a situação de vida de seus autores.
Da descoberta da produção plástica de origem popular pelas camadas
eruditas da sociedade, em 1947, aos dias de hoje, o país tem passado por
inúmeras transformações que se refletem na maneira pela qual os indivíduos
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se pensam e a sociedade se organiza. Diferenças marcantes que, até meados deste século, separavam as diversas regiões do país, distanciavam as
zonas rurais e urbanas, as metrópoles e as pequenas cidades de vilas, tendem a ser minimizadas sucessivamente por uma série de fatores como a
industrialização, os movimentos migratórios, o crescimento permanente dos
centros urbanos e a disseminação de um ethos que lhes era próprio pelos
veículos de comunicação de massa, sobretudo o rádio e a televisão, que hoje
fazem com que valores sociais e culturais sejam reinterpretados e compartilhados por um número cada vez maior de brasileiros. Entre eles, encontramse os artistas populares, que traduzem em suas criações a realidade histórica, de forma consciente, uma vez que a vivenciam e sobre ela agem, reagem
e refletem, pois são indivíduos portadores de um saber tradicional de grande
significado cultural, herdado dos grupos sociais dos quais se originam.
Para descrever esse universo, portanto, o termo arte popular não pode
ser utilizado como expressão de uma categoria explicativa a priori que, como
tal, aponta uma realidade homogênea. Ele abriga realidades diversas e particulares que é preciso desvendar para a compreensão do real significado das
expressões artísticas e culturais que aí residem. Uma das abordagens possíveis é aquela que, atentando para as categorias imanentes aos próprios sujeitos sociais, busca entendê-los a partir de seu próprio discurso, isto é, com
base em suas visões de mundo, a construção de suas redes de relações sociais e no sentido que atribuem a suas vidas, ações e representações. É fundamental, então, considerar a forma como os artistas definem seu cotidiano,
se vêem enquanto agentes sociais e constroem, por meio de categorias próprias, suas identidades. Exemplificando, é necessário saber o que leva o mestre
titereteiro Zé Lopes, de Glória do Goitá, cidade da zona da mata pernambucana,
a confeccionar mamulengos com madeira e tecido e, com eles, encenar um
espetáculo narrando uma história que o tempo consagrou, ou de sua própria
criação, para uma platéia reunida na feira semanal, num largo de igreja em
dia de festa que pode ser a do padroeiro de uma cidade do interior do país.
Que sentido tem essa espécie de ritual para aqueles que são atores e público? Que público e que história estão ali? Quando respondemos a questões
como essas, damos mais um passo na direção do significado que tem a arte
popular para aqueles que a produzem e para aqueles que a consomem no
cotidiano de suas vidas no Brasil de hoje.
Somente com base nessa perspectiva, poderão ser entendidas técnicas
como escultura, gravura, pintura e uma infinidade de outras que dão forma
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ao universo inesgotável da expressão humana que se processa nos mais diferentes contextos sociais deste país de dimensão continental.
BIBLIOGRAFIA CITADA
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VILHENA, Luis Rodolfo. Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro
(1947-1964). Rio de Janeiro, Funarte / Fundação Getulio Vargas, 1997.
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NO MELHOR
DA FESTA
CARLOS
MARIARODRIGUES
FERREIRA3
BRANDÃO 2
FESTAS POPULARES BRASILEIRAS
1
Obrigados ao tempo e à lógica do trabalho produtivo,
sempre fomos seres voltados à realização de um profundo
e permanente desejo de imaginação, de ócio e de festejo.
Inútil dizer que assim tem sido porque faz parte da
“natureza humana”. Os homens não se entregam à festa
apenas porque são naturalmente lúdicos.
Por certo, razões simbólicas da vida social levaram o homem de todas
as culturas a aprender a celebrar. A festa não é só contraponto da rotina
laboriosa que mantém a sociedade viva e ordenada; ela estende para muito
além do cotidiano a experiência da vida social.Tanto quanto lúdicos, somos
festivos, e não há cultura que possa dispensar a festa.
Se aqui ela comemora a colheita, mais adiante festeja os tempos da
natureza, como a primavera e o verão; se em um momento ela celebra o dia
do aniversário de uma pessoa, em outro comemora o nascimento de um deus,
de um herói ancestral ou de uma nação; alegre e mesclada em um momento
de fantasia, ela também lembra a morte e o pesar por não sabermos ainda
resolvê-la; enquanto outra cultura salienta com canto e dança a história real
ou mítica de sua sociedade.
1
2
Publicado
originalmente em
Festas populares
brasileiras. Carlos
Rodrigues Brandão.
Organização de
Cláudia Márcia
Ferreira. Ed. Pioneira,
1987. Este texto é a
introdução do livro.
Carlos Rodrigues
Brandão é
antrópologo e
professor da
UNICAMP.
Se algumas festas comportam o exagero de condutas e a aparente ruptura da ordem da vida fora dela, há de ser para que as pessoas possam
estabelecer com os seus símbolos, situações notáveis e privilegiadas, para
que realizem entre elas e sobre elas intenções e efeitos importantes. Assim,
no fundo nada há de inútil ou dispensável na vocação humana de festar, embora muitas vezes a festa aspire a ser o generoso reinado de um coletivo ócio
ativo e um momento de solidária e improdutiva gratuidade.
A festa se obriga também a simbolicamente traduzir a evidência da diferença e da desigualdade. Ela enuncia a diversidade das identidades sociais, propõe
hierarquias, sacraliza o poder e, na maioria dos casos, convoca homens e mulheres a se unirem no desejo de manter como está o mundo em que vivem e feste-
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jam, mesmo quando ela possa parecer que transgride sua ordem e sugere a
ruptura: “cantemos e dancemos como sempre foi, para que o mundo e nós continuemos sendo como os nossos antepassados foram e nós devemos ser”.
Ora, é a partir do que acontece com a própria pessoa, quando ela se
festeja ou é festejada, que ganha aqui o seu sentido mais evidente a idéia tão
antiga e tão atual de que a festa é uma fala, uma memória e uma mensagem,
em que cerimonialmente se separam aquilo que deve ser esquecido e aquilo
que deve ser preservado, festejado. Aqui e ali, eis que a cultura de que somos parte, dentro da família, da igreja, da associação profissional, a todo o
momento interrompe a seqüência dos dias da vida cotidiana e demarca
ritualmente momentos de festejar. Momentos alegres ou solenes em que
somos singular ou coletivamente chamados à cena, postos à cabeceira da
mesa, presenteados, honrados com falas ou lágrimas. Eis-nos por um breve
instante colocados em evidência para que alguma coisa indispensável como
sentido da vida e ordem do mundo seja lembrada e dita cerimonialmente por
meio de nós, que, festejados, durante um momento especial somos símbolo.
Mas, essencialmente, o que é a festa? O que a torna em todos os tempos e lugares tão universal quanto a família, tão necessária quanto o trabalho e tão desbragadamente gratuita como uma terça-feira gorda?
O Carnaval é festivo em excesso e aparentemente transgressor. Um
festejo de solturas ilimitadas, o seu personagem mais típico é o folião : figura
que se dissolve no malandro, esse Macunaíma que habita dentro de todos
nós. Já a Semana Santa é devota, e mais nela do que no Carnaval (civil e
popular), do que na Semana da Pátria (oficial e “das autoridades”), fica evidente uma dualidade de maneiras de festejar: as da Igreja Católica, como
instituição, e das nossas culturas e costumes populares. Ora, à exceção da
malhação do judas, das comilanças do domingo e da volta do Carnaval no
sábado de Aleluia, a Semana Santa é religiosa e marcada pela memória da
dor, até que se anuncie o momento da ressureição. Mas estejamos atentos
justamente aos seus opostos: a contrição que antecede o júbilo, o jejum que
precede a comilança, os festejos religiosos entremeados com os profanos.
Finalmente, tudo o que envolve o “espírito” dos festejos oficiais da Semana da Pátria tem a ver com uma sacralização da comunidade civil que o
Sete de Setembro enuncia com parada e ênfase como a Pátria.
Ora, nas três situações festivas, tomadas aqui como um mero exemplo
de passagem, assim como nos seus desdobramentos e nas festas de outras
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datas, existem situações e intenções comuns. Vejamos: 1ª: o excesso consciente do uso de símbolos (bandeiras, cores, músicas, caricaturas, máscaras,
uniformes, cantos e danças, dramas e celebrações) que suportem ênfases,
algo que se pretende viver ou evidenciar em escala muito acima da rotineira;
2ª: a celebração, a comemoração de alguma coisa, de alguma real ou suposta relação entre o homem e a natureza, entre ele e sua vida social, entre os
homens e seus deuses, seus heróis ou antepassados históricos ou míticos;
3ª: o contraste e a justaposição, pois o festejo e seus folguedos fazem com
que quase tudo que não é possível – ou não é permitido – fora deles passe a
ser possível.
Excesso, contraste, celebração, memória, ruptura, reiteração simbólica
da ordem, sucessão de opostos e justaposição, eis a matéria-prima da festa.
Mas a própria lógica com que tudo isso se combina para ser na vida da pessoa e da sociedade um momento inapagável de diferença precisa ser compreendida com cuidado. Ora, qualquer que seja a situação simbólica e a intenção proclamada de sua realização, tudo o que ela tem para celebrar é a
experiência da própria vida cotidiana.
O Divino Espírito Santo é festejado com muita pompa. É preciso que haja
fogos, muita comida, muito canto e muita dança. Nas cidades do Brasil onde
ele ainda é cultuado segundo os padrões do passado, como em Pirenópolis
(Goiás), São Luís do Paraitinga (São Paulo), Parati (Rio de Janeiro) ou
Diamantina (Minas Gerais), algumas figuras, ao olhar do observador distraído, parecem haver saltado do século XVIII: desafiam-se a cavalo, travam
lutas, viajam dias e dias cantando de casa em casa ou se deixam coroar e
ostentam o nome de Imperador do Divino. Armados de violas e lanças,
embandeirados de vermelho e branco, vestidos de seda e veludo, os personagens dos ritos e da “festa do Divino” trabalham um ano quase inteiro para
pôr na rua, na “Casa do Império”, na praça da cidade e até na igreja os dias
de reza da novena e o fim de semana do auge da festa. Em quase todos os
lugares do país onde ainda é celebrada por inteiro, o costume é que a festa
acabe no domingo de Pentecostes.
Eis um sistema inicial de trocas entre pessoas que configura a própria
essência da festa popular no Brasil. Troca-se o trabalho por honrarias, bens
de consumo por bênçãos, danças por olhares cativos, o investimento pelo
recolhimento do poder, a fidelidade da devoção pela esperança da bênção
celestial.
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Na festa tradicional há uma “parte religiosa”, composta invariavelmente
de novena, missa e procisão.
O folguedo acontece nas ruas, nas praças, em visitações cerimoniais de
casas na cidade, num campo de futebol por três dias transformado no terreno de jogos simulados e da batalha simbólica das cavalhadas de cristãos e
mouros. A esta parte se dá o nome, não raro indevido, de “folclórica”. Aqui se
realizam os momentos festivos dos ternos de dançadores do guerreiro, do
congo e do moçambique (cujas festas próprias são as de São Benedito e de
Nossa Senhora do Rosário, mas que se apresentam em outras também), do
caiapó, das danças de fita e das cavalhadas.
Alguns desses termos de folguedos acompanham o mastro da bandeira
do Divino que, solenemente, se hasteia ao lado da igreja. Mas eles participam
também, fora dos seus momentos de canto e dança, dos jogos simulados que
são a essência de seus ritos, das visitações devotas que fazem às casas das
famílias, das procissões que misturam, em tais festas, a intenção propriamente religiosa das autoridades da Igreja e o desejo festivo de torná-la um
alegre desfile, com banda de música, bandeiras vermelhas, toques de sinos e
o clarão dos fogos na noite da cidade. De resto, não apenas esse momento,
mas vários outros serão na festa o resultado de uma tensão de esforços e
intenções: os das autoridades da Igreja, para tornar as cerimônias mais “puras” e subordinadas à sua lógica versus os dos festeiros, foliões, capitães de
ternos de folguedos e outras tantas pessoas apegadas aos segredos tradicionais da devoção popular e ao desejo de manter vivos os costumes cerimoniais de seus antepassados – justamente aquilo que torna uma festa, como
outras, “a nossa festa”.
O leilão de gado e de prendas, que não raro ocupa todas as dez noites
entre o primeiro dia da novena e o “dia da festa”, é cercado de barraquinhas
de comidas e de fotos, circos e rodeios. É traçada a fronteira entre costumes
e gestos folclóricos e as situações mais inovadoras de circulação comercial
de bens, serviços e prazeres. Essa “parte profana” da festa é tão indispensável e tradicional quanto as outras.
Aqui, como em quase todos os países da América Latina, tudo se festeja. Esta é uma primeira notável diferença entre a herança de nossas festas
populares e a das culturas americanas de origem não-ibérica. Não apenas o
casto temor do homem só, diante da divindade todo-poderosa. Não só o desejo da comunidade ordenada de orantes para que a própria pureza do rito
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contida na oração e no canto de corpos imóveis simbolize o desejo de que o
mundo e a vida transcorram em precisa ordem. Mas entre nós, brasileiros,
somos cultura de povo que inventaria, na religião e como religião, todas as
mil faces da vida.
Ofertamos a deuses e santos, cujo ofício mais nobre é ocupar-se com a
dor dos humanos, a humanidade de nossa dor e de nossa esperançosa alegria. De resto, se os santos que as festas populares cultuam por toda a parte
foram um dia como nós – muitos deles pecadores notáveis, depois santificados –, bem podemos ser como eles.
Congos, cavaleiros, caiapós, todos os tipos de grupos rituais de nossos
folguedos populares possuem uma organização interna bastante rígida. Um
capitão, mestre, almirante ou chefe os dirige e ele é sempre secundado por
um contramestre. Algumas vezes, como nas folias, a equipe de artistas devotos ordena-se de acordo com sua hierarquia e também segundo a disposição
de vozes e instrumentos: o mestre canta “na primeira”, o contramestre na
“segunda”, os outros são o contrato, o contratinho e outros, até o tipo, re-
quinte ou finório, nomes que variam de uma para outra região. Há regras e
princípios para o ingresso de uma pessoa em uma companhia, terno ou guarda.
“Dono” do terno e senhor de sua arte e palavra, o mestre, o chefe, o
capitão é quem o mantém unido, quem ordena os ensaios e zela pela qualidade do desempenho de canto e dança de “sua gente”. Dele se espera a memória para reproduzir o conjunto do “cantório” ou a sabedoria do improviso, no
momento em que é preciso criar no ato um verso novo que saúde na rua ou
na casa de alguém uma pessoa, um santo festejado ou um acontecimento
inesperado.
A festa brasileira enuncia e põe na rua esses dois grandes mitos de
nossa cultura: “somos todos iguais” e “cada um pode ser livremente o que
quiser”. Por isso mesmo, mais do que muitos outros povos, possuímos festejos absolutamente universais, nos quais “entra quem quer, como quiser”, e o
Carnaval brasileiro é, melhor do que todos, um exemplo disso.
Por certo, seria difícil a outros povos compreender como os diversos
povos de um povo podem, no Brasil, dedicar tanto de seu tempo a se festejarem a si próprios. No Brasil a grande festa e a pequena podem ser: da Pátria,
de Nossa Senhora Aparecida, do Exército, da Prefeitura de São Tomé das
Letras, da Irmandade da Boa Morte, da Estação Primeira de Mangueira, do
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Centro Espírita Filhos de Aruanda, dos peões de boiadeiros do Triângulo Mineiro, dos vaqueiros do sertão de Alagoas, da “Turma da Miguel Lemos”, da
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos ou do PT.
Assim, mesmo os grupos indígenas do Brasil, mais incorporados à própria sociedade regional, lutam ainda por preservar os seus próprios ritos em
que, uma vez mais, um conteúdo religioso peculiar serve de base à comemoração da própria memória da tribo. Mais do que eles, os adeptos de sistemas
religiosos afro-brasileiros buscam reinventar hoje em dia cada vez mais valores de uma identidade étnica não apenas negra, mas ancestralmente africana. Alguns grupos recentes de negros remontam a festejos dedicados a Zumbi, por exemplo, e à memória antiga de lutas de libertação.
A festa de São Genaro e outras festas de italianos do Brás ou do Bixiga,
as de japoneses em Marília (São Paulo), dos poloneses de Curitiba ou de
descendentes de açorianos em Porto Alegre; a alegre festa de chope e de
bandas dos alemães de Blumenau e as danças de moços e meninas das “casas” dos povos portugueses no Brasil. Todas elas realizam, por meio da festa
uma mesma dupla intenção: trazer para o Brasil e repetir “aqui” alguma coisa
vivida pelos ancestrais como boa e necessária “lá”; e celebrar a memória da
origem com uma solidária afirmação de diferenças.
Assistimos hoje, na verdade, a uma acelerada multiplicação de grandes
e pequenos festejos em que uma ou algumas categorias peculiares de pessoas e grupos sociais se festejam a si mesmos pelo que são (negros, japoneses, caminhoneiros ou “josés”), do que criam (artesanato de barro, de pano
ou de palha) ou do que produzem (maçãs, milho ou flores).
Que cidade de região rural do Brasil vive hoje sem suas festas de vaqueiro, de peão de boiadeiro, de pescador? Por outro lado, como pensar qualquer “feira agropecuária” sem os cortejos a cavalo, os rodeios, as eleições da
“rainha da festa”, os concursos de “música sertaneja” e os bailes?
Se há muito tempo o circo, o rodeio, o leilão, o forró, o desfile e o concurso invadiram todas as festas de tradição religiosa católica no país, agora
a missa, a procissão breve, os pequenos ritos de devoção ameaçam invadir
as festas modernas de produto e produtor. Mas há mais. Durante muito tempo em todo o Brasil foi costume viver o próprio trabalho coletivo como um
momento de festejar. Os nossos mutirões rurais do passado – de um passado também recente e ainda vivo em algumas regiões do país – eram uma
solução inteligente para a necessidade de aplicação concentrada de força de
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trabalho entre nossos camponeses e constituíam também uma festiva e cerimonial celebração de solidariedade entre as pessoas.
Também se faz festa por ela: “brincar”, por “folgar”, por “pular”, por
“farrear”, nomes e desejos tão brasileiros. Não somos apenas um “país do
carnaval”; somos um povo que, quando pode, se apropria de todas as situações e sentidos possíveis para viver um momento de celebração; para usufruir momentos de concurso e concorrência e a pura celebração da alegria,
como no baile do clube, da rua ou da praça. Somos um povo alegre e folião.
Alguns analistas políticos surpreenderam-se com o fato de as recentes campanhas de mobilização popular nacional terem sido grandes e alegres festas
de multidões reunidas nas praças e diante de palanques.
Iguais ou diferentes, irmanados ou em conflito, que na festa e no folguedo
os homens aprendam a trocar com excessos os seus bens, serviços e significados. Em nome de deuses, de antepassados e heróis, mas também em nome
de pássaros , flores e desejos, que eles se troquem na festa com maior fervor e uma acentuada sabedoria.
A festa quer lembrar. Ela quer ser a memória daquilo que os homens
teimam em esquecer – e não devem – fora dela. Séria e necessária, a festa
apenas quer brincar com os sentidos e o sentimento. E não existe nada de
mais gratuito e urgentemente humano do que exatamente isso.
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QUEM
CONTA UM
CONTO...
MARIA FERREIRA3
MARIA LAURA
VAN BOEKEL
CHEOLA 1
“Quem conta um conto aumenta um ponto”... ou
diminui... ou altera. Tomando-se ao pé da letra este
ditado, descortina-se o mundo dos contos populares;
contos que, como a própria denominação diz, foram
criados e narrados pelo povo, nasceram da oralidade
(da boca) e do espírito inventivo de muitos. Não se
pode atribuir a eles um único autor, mas vários que,
com suas idéias, contribuíram para alargar o campo
da literatura oral. E como acontece o processo de
criação do conto popular?
Há muitos e muitos anos, ainda quando a vida amanhecia no planeta, o
homem já narrava. Primeiro, falava de seu cotidiano: seus hábitos e seus
revezes. Depois, em determinado momento, sentiu a necessidade de dar conta
de acontecimentos que escapavam a seu entendimento racional; precisava
encontrar explicações tanto para fenômenos da natureza quanto para o fato
de ser quem era e estar onde estava. Concebeu, então, o conto maravilhoso
que, com seus elementos mágicos, explicava o que a razão desconhecia.
Não se sabe precisar quando esse costume de contar histórias se instituiu como prática social, porém pode-se afirmar que é bem antigo, de ordem
universal, ocorrendo, portanto, em todas as civilizações, como vem sendo
comprovado por diferentes estudos etnográficos.
1
Maria Laura van Boekel
Cheola, formada em
Letras e contadora de
estórias, integrou a equipe
do Centro Nacional de
Folclore e Cultura Popular
até 2002.
Nas comunidades populares esses contos eram e são, mesmo hoje, normalmente narrados à noite, depois do trabalho – ou durante atividades de
ritmo lento, como a pesca e a confecção de renda – não só para relaxar e
divertir, mas para fazer as pessoas refletirem sobre suas vidas pessoais e o
contexto social em que estão inseridas.
Nesses encontros de “contação” de histórias, que devem ser considerados “processos comunicativos artísticos” (Bem Amos,1972) – construídos pelas pessoas que deles participam (contadores e platéias, entre os quais há
uma troca constante ) em tempo e espaço bem específicos – os contos nas-
o que é folclore e cultura popular
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cem e renascem. É o convívio de tradição e inovação. Uma mesma história
pode ser narrada em vários pontos do planeta, o que vem acontecendo há
séculos, mas, em cada um desses lugares, apesar de ser mantida sua “espinha dorsal”, ela apresenta variações. Como diz a pesquisadora Beth Rondelli
(1983):
“(...) as variações de uma narrativa podem diferir quanto às palavras empregadas, quanto à seqüência, quanto à introdução de novos elementos e quanto
ao próprio conteúdo das estórias, existindo, portanto, certo grau de criatividade
do contador que também é autor, na medida em que sua criação contém doses
de originalidade.(...)
Enfim, as estórias (...) são elementos de uma tradição compartilhada tanto pelo narrador como pelos ouvintes e transmitidas por meio de um processo
de reelaboração que os integra ao momento presente.”
Mas, cuidado: engana-se quem pensa que a criatividade do contador
não obedece a nenhuma regra. Toda invenção, para ser aceita, deve adequar-se às normas da estrutura da tradição oral. De acordo com Peter Burke
(1980):
“O indivíduo pode inventar, mas numa cultura oral, como ressaltou Cecil
Sharp, ‘a comunidade seleciona’. Se um indivíduo produz inovações ou variações
apreciadas pela comunidade, elas serão imitadas e assim passarão a fazer parte do repertório coletivo da tradição. Se suas inovações não são aprovadas, elas
morrerão com ele, ou até antes. Assim, sucessivos públicos exercem uma ‘censura preventiva’ e decidem se uma determinada canção ou estória vai sobreviver e de que forma sobreviverá. É nesse sentido (à parte o estímulo que dão
durante a apresentação) que o povo participa da criação e transformação da
cultura popular da mesma forma como participa da criação e transformação de
sua língua natal.”
Cabe esclarecer que essas inovações, essas variações, estabelecidas
com o aval dos ouvintes, são oriundas da combinação de elementos que vêmse reproduzindo na literatura oral. Portanto, a criatividade está na forma
como é feita a seleção e combinação das recorrentes fórmulas e motivos do
universo do conto popular.
Por fórmulas, entendem-se palavras, frases e expressões que se repetem em contos diferentes nas diversas sociedades ao longo do tempo. Como
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exemplo, tem-se a freqüente repetição da expressão “era uma vez” ou seus
equivalentes no início das histórias e da frase “viveram felizes para sempre”.
Por motivos, entendem-se temas, episódios, que transitam, com suas
variações, por versões de um mesmo conto ou por contos diferentes. Como
exemplo, a história de João e Maria; o motivo de seu abandono tem feições
distintas: os pais não têm dinheiro para alimentá-los e decidem deixá-los à
mercê da sorte, ou a madrasta, por ciúmes, convence o pai a abandoná-los.
É importante ressaltar que essa circularidade, apontada como característica da literatura oral, também acontece na literatura escrita. A diferença
está não na essência do fenômeno, mas no grau. Ambas trabalham com repetições, lugares-comuns, variações. Na literatura escrita, contudo, a incidência é menor, pois sua natureza gráfica propicia maior liberdade inventiva,
havendo, portanto, menor freqüência de repetições, descrições mais minuciosas e personagens bem mais demarcadas.
As relações entre essas duas formas de literatura não param aí. Uma
se alimenta da outra. Os contos populares influenciaram a literatura escrita:
temas encontrados naqueles eram reiterados nesta, como é o caso da obra
clássica de Goethe, Fausto, inspirada num tradicional teatro de bonecos. Por
sua vez, a tradição escrita também presenteou o mundo da oralidade com
bons argumentos para suas histórias.
No Brasil de hoje, há exemplo dessa comunicação recíproca entre as
duas tradições. No livro intitulado O narrado e o vivido, Beth Rondelli nos
mostra, a partir da realidade de Raposa – comunidade pesqueira do Maranhão,
onde a prática de contar histórias, depois de um dia de trabalho, é bastante
presente – que a literatura nordestina escrita e a oral mantêm fortes laços. É
comum ver um contador de histórias transformar um romance ou um folheto,
sob a forma de poema, em prosa oral, como também não é raro presenciar o
inverso: a história de Trancoso, que é o conto maravilhoso, sendo elaborada
na forma de poesia escrita.
Os próprios contos maravilhosos apresentam-se ora no registro oral, ora
no registro escrito, com características distintas, adequadas a cada um deles.
Segundo Robert Darnton, no livro O grande massacre de gatos, uma parte dos
contos recolhidos pelos irmãos Grimm e publicados no início do século XIX foi
conseguida com uma vizinha e amiga deles, Jeannette Hassenpflug. As histórias foram contadas a ela por sua mãe, que descendia de uma família francesa
huguenote. Os huguenotes levaram os contos para a Alemanha, mas o primei-
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ro contato que esse grupo de franceses teve com as narrativas foi, na própria
França, por intermédio de um livro publicado por Charles Perrault, que recolhera as histórias exclusivamente de fonte popular (ao contrário do que aconteceu
com os Grimm), consultando a babá de seu filho.
Perrault coletou contos populares, na França do século XVII, com o propósito de entreter o filho do rei Luís XIV e os freqüentadores dos salões. Os
contos passaram de um registro a outro – do oral ao escrito – até chegarem
aos irmãos Grimm no século XIX, que pesquisaram a literatura oral com o
objetivo de reafirmar a nacionalidade alemã. Nação recém-saída do jugo
napoleônico, a Alemanha passou a ser identificada pelos intelectuais por um
elenco de costumes e crenças de seu povo. Nesse percurso, as histórias folclóricas passaram da tradição oral (meio rural francês) à escrita (seleção de
Perrault), daí voltando à forma oral (narração dos descendentes huguenotes
na Alemanha) para, a seguir, retornar à literatura impressa (coleção dos
Grimm). As mudanças de ambientes (das cabanas para os salões da corte) e
de suporte (da palavra oral ao texto escrito) acarretaram alterações de forma e conteúdo – Perrault acrescentou conclusões morais que não existiam
originalmente. Além disso, fez cortes, acréscimos e mudanças de tom.
No Brasil também existem coleções de contos populares publicadas. No
final do século passado e início deste, aliás, estudar folclore, neste país, era
estudar a literatura oral. Nessa época, várias coleções foram editadas como
as de Basílio de Magalhães, Sílvio Romero e Figueiredo Pimentel.
Outro pesquisador foi o folclorista potiguar Câmara Cascudo que lançou, na década de 1940, Contos tradicionais do Brasil, reunindo narrativas de
todo o território nacional. Mas há que se ter atenção para o fato de a seleção
feita por Cascudo não possuir nenhuma intenção didática; ele apresenta as
narrativas exatamente como as ouviu, sem juízo de valor, sem as adocicar,
como diz:
“A linguagem dos narradores foi respeitada noventa por cento. Nenhum
vocábulo foi substituído. Apenas não julguei indispensável grafar ‘muié’, ‘prinspo’,
‘prinspa’, ‘timive’, ‘terrive’. Conservei a coloração do vocabulário individual, as
imagens, as perífrases, intercorrências.’ Sua preocupação era mostrar o povo
brasileiro com suas peculiaridades, suas idiossincrasias. Como afirma o
folclorista: ‘o conto popular revela informação histórica, etnográfica, sociológica, jurídica, social. É um documento vivo, denunciando costumes, idéias, mentalidades, decisões e julgamentos.”
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Todas essas coletâneas citadas atestam, uma vez mais, a circularidade
das narrativas. Motivos encontrados em contos dos Grimm e Perrault são
identificados nas histórias brasileiras, adaptados à realidade local. Os contos
brasileiros mantêm diálogos também com o imaginário de povos africanos e
indígenas.
Outra fonte de contato com a tradição oral são as novas versões dos
contos populares produzidas por escritores brasileiros contemporâneos que,
com mestria, dão um novo colorido às histórias tradicionais. Vale a pena conferir em publicações como Meu livro de folclore, de Ricardo Azevedo; O velho,
o menino e o burro, de Ruth Rocha; A festa no céu, de Ângela Lago.
Então, leitor(a), se você quiser conhecer um pouco mais do povo brasileiro, um mergulho no mundo das histórias populares torna-se indispensável.
E, assim, quem sabe, depois desse mergulho, você possa somar novas informações a este texto que agora se encerra...
Entrou pelo pé do pato
Saiu pelo pé do pinto
E quem quiser
Que conte cinco!
BIBLIOGRAFIA
AZEVEDO, Ricardo. Meu livro de folclore. São Paulo: Ática, 1997.
BURKE, Peter. A cultura popular na idade moderna: Europa, 1500-1800. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989.
CASCUDO, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. Rio de Janeiro:
Ediouro, 1998.
LAGO, Ângela. A festa no céu. São Paulo: Melhoramentos, 1994.
ROCHA, Ruth. O velho, o menino e o burro e outras histórias caipiras. São
Paulo: FTD, 1993.
RONDELLI, Beth. O narrado e o vivido. Rio de Janeiro: FUNARTE/IBAC, coordenação de Folclore e Cultura Popular, 1993.
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ENGENHO
E ARTE
RICARDO
GOMES LIMA 1
Existem palavras muito perigosas porque, quando
empregadas, podem encobrir a realidade ao invés de
desvelá-la e, mais do que isto, podem transformar-se
em instrumento de hierarquização e discriminação
entre pessoas, objetos, atos. Este é o caso dos termos
artesanato e arte popular. Senão vejamos.
Tomada em sua acepção original, a palavra artesanato significa um fazer – ou o objeto daí resultante – que tem por característica o fato de ser
eminentemente manual. Isto é, são as mãos que executam o trabalho. São
elas o principal, senão o único instrumento que o homem utiliza na confecção
do objeto. O uso de ferramentas, inclusive máquinas, quando e se ocorre, se
dá de forma apenas auxiliar, como um apêndice ou extensão das mãos, sem
ameaçar sua predominância.
Assim, esses instrumentos auxiliares – como um formão ou um pincel,
uma agulha ou um martelo, um torno de olaria ou um tear – não definem o
processo, pois no artesanato o que importa é o fazer com as mãos, o fazer
manual. É o gesto humano que determina o ritmo da produção. É o homem
que impõe sua marca sobre o produto.
Quando raciocinamos no sentido de associar artesanato e mãos, estamos
nos remetendo a uma dicotomia: aquela que opõe o fazer manual ao fazer
mecânico, sendo este aquele em que a interferência humana é mínima e está
subordinada à máquina que executa suas funções com quase total autonomia
(por vezes a autonomia chega a ser total mesmo!).
1
Professor do Instituto de
Artes da UERJ;
Pesquisador do Centro
Nacional de Folclore e
Cultura Popular / Funarte
/ Ministério da Cultura;
Doutorando do Programa
de Pós –Graduação em
Sociologia e
Antropologia/ IFCS/
UFRJ.
Esta oposição é muito recente na história da humanidade. Ela surge
com a Revolução Industrial, na Europa, no século XVIII e, desde então, vem
transformando a realidade de sociedades as mais distintas e aparentemente
isoladas na face da Terra. Podemos mesmo afirmar não existir hoje um único
agrupamento humano que não tenha arrolado, no inventário dos bens de seu
uso cotidiano, um objeto cuja origem se deve à máquina. Indigenistas envolvidos em frentes de atração para contatar grupos isolados em território brasileiro são unânimes em afirmar que, ao chegar a uma aldeia indígena nunca
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antes visitada, invariavelmente se deparam com objetos industrializados, oriundos de nossa cultura. Lá estão panelas de alumínio, latas e vasilhas de plástico, miçangas, facões e machados de ferro, frutos do escambo entre grupos
tribais, da pilhagem e incursões ao mundo branco regional. A importância
dos objetos industrializados é tamanha para o indígena que eles têm sido
utilizados como “presentes” nas frentes de atração. Num primeiro momento
são eles que atraem, uma vez que seduzem, cativam.
Se considerarmos a diversidade de culturas do passado e do presente,
nem vagamente conseguiremos ter uma idéia do montante de objetos que
foram produzidos pelo homem. E todos artesanalmente. Para uma idéia do
grau de dificuldade neste cálculo, basta que nos lembremos do fato de que a
existência da humanidade é estimada em milhões de anos e que, apenas há
três séculos, ocorreu a Revolução Industrial. Até então, o mundo vinha sendo
construído integralmente de modo artesanal.
Isto não significa, no entanto, que o artesanato seja algo do passado,
uma sobrevivência que necessariamente esteja fadada à extinção. Uma espécie que, obediente às leis da natureza, irá desaparecer, cedendo espaço a
outras formas de produção (sendo a industrial a atual). Se tal parece vir ocorrendo, é resultado de fatores de outra ordem. É decorrência da maneira pela
qual os grupos sociais se organizam, do modo como se pensam, das prioridades e hierarquias que constroem para eles mesmos e para os demais, do que
elegem como o melhor, o mais bonito, o mais perfeito.
Embora muitos não percebam, os objetos artesanais continuam a ser
produzidos e convivem com os produtos da indústria, compondo o dia-a-dia
de cada um de nós. Nota-se mesmo, nas últimas décadas, nos países de primeiro mundo, o ressurgir do interesse pelos objetos feitos à mão que alcançam altos preços de mercado.
Portanto, o artesanato é uma maneira de fazer objetos, existente há
milênios. Toda a Antigüidade foi assim construída e até a Idade Média européia, essa foi a forma pela qual a humanidade se fez. E porque essa era a
única maneira de confeccionar objetos durante esse longo período, quando
nos referimos a ele, o termo artesanato não é enfatizado. O termo é mais
empregado ao nos referirmos ao período pós- Revolução Industrial, quando
o objeto criado pela indústria passa a ser visto em oposição ao hand made.
Benita tem 40 anos e mora na comunidade de Candeal, no município
mineiro de Cônego Marinho. Lá, além de cuidar da casa, do marido e dos
ENGENHO E ARTE
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filhos, dos animais domésticos e do pequeno roçado em que a família planta
principalmente milho, feijão e abóbora, ela faz louça de barro. Modela peças
que usa no trabalho doméstico e também vende para atender à demanda da
vizinhança e do mercado regional. São potes, panelas, pratos e moringas
feitos com o bom barro que ela, assim como as outras mulheres de sua comunidade, sabe reconhecer muito bem. Um saber resultante do conhecimento
que vem sendo transmitido geração após geração pelas mulheres de seu
grupo.
Todo fim de tarde, Antonio Marques chega à praia de Iracema, em Fortaleza e arma sua barraca. Ali, junto a outros expositores, ele vende sandálias, cintos, bolsas, prendedores de cabelo, pulseiras, porta-retratos, molduras para espelho, caixinhas. Tudo feito em couro que ele amacia, corta, cola,
costura, decora com pirogravura, pinta e enverniza – etapas do processo que
vem aperfeiçoando há 40 anos. Desde que, ainda jovem, tornou-se “hippie” e,
contestando a sociedade de consumo, abandonou a vida de classe média,
escola e família em São Paulo e, mudando-se para a praia de Canoa Quebrada, adotou o que parecia a ele, e a muitos, uma maneira alternativa de viver.
Paulo Aguiar dá mais uma pincelada. O vermelho da tinta parece saltar
sobre o fundo grafite da tela. Falta pouco para finalizar a pintura com que
pretende se inscrever no Salão de Artes Plásticas. Sonha com o prêmio. Acredita que desta vez irá consegui-lo, afinal a crítica vem sendo elogiosa com
tudo que faz. Para isso tem se esforçado. Desde que se formou na Escola de
Belas Artes no Rio de Janeiro vem aperfeiçoando o que aprendeu. Além da
pesquisa de cores, formas, volume, seu trabalho tem sido marcado pela busca do único. Chegou ao ponto de, ele mesmo, fazer as telas que estica e
prende em chassis de madeira que serra e fixa no ateliê contíguo à casa em
que mora, em Curitiba.
Dona Alice dos Santos, viúva e professora, vê, no fim do mês, minguar a
pensão deixada pelo marido e o rendimento de sua aposentadoria. Também,
a farmácia consome quase tudo. Se não fosse a ajuda dos filhos! Hoje, ela
está atarefada. Aproxima-se o Natal e ainda há muito por fazer. No sofá da
sala, um olho na TV acompanhando a novela, e outro na agulha, dá acabamento às bonecas que fez com retalhos. Foi a forma que encontrou para
burlar a carência e presentear as netas. Ao lado, uma pilha de panos de prato
aguarda pelos biquinhos de crochê. Serão os presentes para as amigas. Dona
Alice sorri. Que bom ter aprendido ainda moça a costurar, bordar, fazer cro-
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chê e tricô. Artes que hoje lhe permitem fugir ao sufoco do orçamento apertado e expressar carinho pelos parentes e amigos, presenteando-os.
Vizinha a Dona Alice, mora Zenaide. Também ela não tem uma vida financeira folgada. Há dois anos está desempregada. Formada em química, de
início procurou emprego junto a indústrias, mas o mercado está em retração.
Tomou então a decisão de mudar de ramo. Pesquisando, encontrou um nicho
no mercado: a confecção de “botons”, imãs de geladeira e outros pequenos
objetos feitos com porcelana fria. Ir em frente depende de sua habilidade,
pois o capital para o negócio foi resolvido com o saque do FGTS. Precisou
comprar apenas a matéria-prima e poucas ferramentas para o trabalho. Após
freqüentar um cursinho no SENAC e sob orientação do Sebrae, acaba de abrir
um quiosque num shopping popular do centro de Salvador.
Gustavo Nogueira está feliz. Foram anos de tentativas após se formar
na Escola Superior de Desenho Industrial no Rio de Janeiro e passar por um
estágio em Milão, onde exercitou o olhar, estudou formas e estéticas diversas. Agora, acaba de receber uma encomenda que pode mudar sua vida.
Finalmente, as jóias que desenha e executa, uma a uma, chamaram atenção
de uma grande rede de joalherias que as quer nas vitrines de suas lojas,
espalhadas por importantes shoppings da cidade do Rio de Janeiro, onde
reside.
Ela colhe o algodão, descaroça, fia e tinge os novelos com que tece as
colchas que são a cara de Olhos D‘Água, cidade goiana próxima de Brasília.
Todo o longo processo de fiação e tecelagem, Maria de Fátima aprendeu com
sua avó, de quem também herdou o velho tear horizontal, marca da tradição
portuguesa. Enquanto sua avó tecia visando às necessidades da família, hoje,
Fatinha se desdobra para atender às encomendas dos mais diversos pontos
do país. Seus produtos tornaram-se conhecidos depois de uma exposição
que realizou num centro cultural da capital do país.
Em São Paulo, Ana Maria está feliz. Filha de um conceituado escultor
modernista, ainda cedo resolveu abraçar a carreira do pai, dedicando-se especialmente ao mármore e ao bronze, materiais em que busca colocar toda
sua emoção. Atualmente, mergulhada no trabalho, desenvolve uma nova proposta que espera ser bem recebida tanto pela crítica especializada quanto
pelo público.
Estas situações descritas guardam entre si uma unidade que o olhar
mais atento pode perceber: Se tomarmos como referência o sentido da pala-
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vra artesanato com que demos início a este texto, veremos que a louceira do
interior, o expositor da praça, o pintor, a professora aposentada, a vendedora
do shopping, a artista plástica, a tecelã e o designer de jóias, todos, sem
exceção, executam com as próprias mãos o que concebem. Todos eles são
artesãos.
artesãos
Por outro lado, essas histórias apresentam entre si disparidades por
vezes enormes. São diferenças que decorrem não apenas das distintas geografias do país, das distâncias entre os mundos rural e urbano, mas principalmente da diversidade de contextos socioculturais apresentados e das particularidades das histórias de vida de cada personagem que fazem com que
sejam classificados em posições diferenciadas.
Assim, posso dizer que a louceira e a tecelã fazem arte folclórica ou
artesanato tradicional ou cultural ou de raiz. Se Benita se aventura um
pouco mais e, deixando de lado a produção de louça utilitária, modela alguns
boizinhos, cavalos, patos e galinhas para brinquedo dos filhos, alguns dirão
que ela faz arte popular
popular; a professora aposentada participa do primeiro grupo quando costura bonequinhas de pano; já ao se dedicar à confecção de
panos de prato junta-se à vendedora do shopping fazendo trabalhos manuindustrianato); o exais ou manualidades (para alguns, esta última realiza industrianato
positor da praça faz artesanato hippie,
hippie o joalheiro produz design contemporâneo e o pintor e a escultora produzem arte erudita ou arte contemporânea ou a verdadeira arte.
arte Quantos termos, quanta classificação!
Há mil maneiras de ordenar o mundo e eu posso organizar nossos personagens de acordo com muitos critérios de classificação. Uma forma comum, e simplificada, é aquela que opõe artesanato e arte. Neste sentido, a
louceira de Minas Gerais, a tecelã goiana, a dona de casa aposentada, o
feirante de Fortaleza e a química do shopping são tidos como artesãos enquanto o designer de jóias, o pintor e a escultora são rotulados de artistas.
Por que isto? Qual a lógica que preside esse sistema?
Na realidade, se observarmos com atenção, veremos que esta questão
refere-se à distinção de classes sociais. Essa oposição resulta da dicotomia
elite e povo e remete à mesma matriz que atribui às camadas dirigentes, o
saber, opondo-se-lhes o fazer, necessariamente associado às camadas subalternas. Assim, supõe-se que tudo aquilo que advém da ação das elites é
resultante de um conhecimento superior, é fruto do pensar, é o fazer artístico, negando-se às camadas populares da sociedade a capacidade de pensar,
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a possibilidade de conceber e se expressar racionalmente. A estas só resta o
mero fazer. O fazer artesanal
artesanal.
Antonio Augusto Arantes, contribuindo para o entendimento dessa questão, argumenta que:
“Nas sociedades industriais, sobretudo nas capitalistas, o trabalho manual e o trabalho intelectual são pensados e vivenciados como realidades profundamente distintas e distantes uma da outra.
Reflitamos um minuto, por exemplo, sobre as diferenças sociais que há entre um engenheiro e um eletricista, ou entre um arquiteto e um mestre-de-obras.
Além da discrepância entre salários e ao lado das formações profissionais diversas, há um enorme desnível de prestígio e de poder entre essas profissões, decorrente da concepção generalizada em nossa sociedade de que o trabalho intelectual é superior ao material.
Embora essa separação entre modalidades de trabalho tenha ocorrido num
momento preciso da história e se aprofundado no capitalismo, como decorrência de sua organização interna, tudo se passa como se ‘fazer’ fosse um ato natu-
ralmente dissociado de ‘saber’.
Essa dissociação entre ‘fazer’ e ‘saber’, embora a rigor falsa, é básica
para a manutenção das classes sociais pois ela justifica que uns tenham poder
sobre o labor dos outros.” (ARANTES, 1988:13-4)
Portanto, na medida em que, na ideologia capitalista, se dissociam o
trabalho intelectual e o trabalho manual, respectivamente vinculados à elite
e ao povo, condena-se a produção popular ao domínio da irracionalidade, da
inconsciência, da espontaneidade do fazer. Daí ser comum vermos pessoas
encantarem-se com a beleza da produção popular e exclamar: “É inexplicável
o fato de que pessoas tão pobres possam produzir coisas tão belas!” Como se
o povo não pensasse sobre aquilo que realiza!
Ora, essa maneira de classificar é extremamente discriminatória, pois
confina as criações populares num gueto, resultando em reserva de mercado
para a produção de origem erudita, específica da camada dirigente ou daqueles que com ela se identificam. O objeto artesanal, destinado a feiras e mercados, tem seu valor diminuído em decorrência exatamente deste sistema de
classificação.
Ao contrário, pesquisas realizadas junto a grupos sociais específicos
têm demonstrado que uma das características da produção artesanal, en-
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quanto processo de trabalho, reside exatamente na integração da atividade
manual com a intelectual, na associação entre a obra produzida e seu autor,
o oposto do que ocorre na produção industrial onde, aí sim, em decorrência
do princípio da divisão social do trabalho e da especialização, essas instâncias se separam.
O estabelecimento dessas fronteiras é marcado pela história do país; acompanha o desenvolvimento da sociedade brasileira desde o período colonial.
Herdeiro da tradição européia de organização do trabalho, o Brasil Colônia adotou o sistema e a nomenclatura de trabalho do regime corporativo
surgido na Europa medieval. Assim como em Portugal, aqui, até o século XVIII,
se constata uma diferenciação entre oficiais mecânicos e artistas, sendo estes últimos considerados pintores, escultores, engenheiros e arquitetos. Com
a gradativa degradação das corporações de ofício, extintas oficialmente pela
Constituição liberal de 1824, essa nomenclatura foi abandonada. A partir dessa
data, sucessivos censos registram várias designações oficiais para as ocupações no país.
Em 1872, adota-se uma classificação que separa profissões liberais (incluindo a dos artistas), profissões manuais ou mecânicas (a dos artesãos ) e
profissões industriais e comerciais. Já em 1900, define-se o seguinte quadro: profissões industriais (compreendendo: agrícolas, pastoris, extrativas e
manufatureiras) e artes e ofícios, sem discriminação por setor de produção.
A partir de 1920, a designação artes e ofícios desaparece e o censo, refletindo o espírito da modernização desenvolvimentista que classifica os setores
produtivos da economia em primário, secundário e terciário, identifica quatro setores básicos de produção: agricultura, indústria, comércio e serviços
(cf. Porto Alegre, 1985 ).
Indaga Sylvia Porto Alegre:
“Onde ficam os ‘artistas’? Onde ficam os ‘artesãos’? Submergidos no interior da sociedade, sem reconhecimento formal, esses grupos passam a ser
vistos de diferentes perspectivas pelos seus intérpretes, a maioria das vezes
engajados em discussões que se polarizam entre cultura erudita x popular...”
(Porto Alegre, 1985:11)
O urbano, o escolarizado, o erudito, o intencional e o sofisticado são, de
acordo com esse discurso polarizado, o que qualifica e distingue a matéria
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com que opera: a “grande arte” ou simplesmente a arte. Ao popular, definido
por oposição ao erudito e a partir de categorias que lhe são estranhas, é
reservado um espaço de menor importância – é a “arte popular” ou apenas “o
artesanato”.
Esse discurso, resultante de uma postura elitista, deve ser abandonado em prol de uma análise da realidade social que incorpore as representações daqueles que, sob denominação de artistas populares ou artesãos, a
par de serem portadores de um saber de grande significado cultural refletido
em suas criações, são também integrantes de realidades históricas concretas, sobre as quais agem, reagem e refletem.
Como assinala Sylvia Porto Alegre,
“Toda discussão sobre fronteiras entre ‘arte’ e ‘artesanato’, entre ‘artista’ e ‘artesão’, a partir do discurso dominante, carece de sentido dentro da perspectiva do indivíduo que exerce essa atividade pois ele raramente separa a instância do trabalho manual ou mecânico (‘artesanal’) do trabalho intelectual e
confere a ambos igual dignidade.” (Porto Alegre, 1985: 10)
Portanto, para que se possa chegar à descoberta de categorias sociais
plenas de significado, é necessária a observação interna do universo da arte
dita popular. É necessária a análise que venha a aferir quais os modos de
vida, os valores e as perspectivas dos indivíduos e grupos sociais que dão
forma às múltiplas expressões de arte que se convencionou denominar populares. Importa perceber como os próprios artistas definem suas obras, e a
noção particular de “arte”, para que se possa, com suas categorias, chegar a
entendimentos da realidade que não sejam produtos de posturas
etnocêntricas.
O uso das categorias artesanato e arte deve ser redirecionado. É importante percebermos que se referem a termos aplicáveis a diferentes planos discursivos. Num certo sentido, trata-se mesmo de realidades distintas e
não das faces de uma mesma moeda.
Minha proposta é que reservemos o termo artesanato para nos referir
ao processo de produção do objeto, à tecnologia que, predominantemente
executada com as mãos, dá forma ao objeto, independente de sua origem
erudita ou popular. Assim, tanto a rendeira de bilro quanto o oleiro ou o escultor consagrado, para realizar seu trabalho lançam mão de uma tecnologia
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em que a manualidade é da maior importância. E isto é artesanato. Assim, ao
falar sobre a matéria-prima com que o objeto é confeccionado, ao descrever
as etapas do processo de feitura desse objeto, passo a passo, estamos transitando no domínio do artesanato.
Num outro plano, podemos discursar sobre este mesmo objeto, preocupados em desvelar questões de estética, de equilíbrio de massas, de proporções, de contrastes entre forma e fundo, de ritmo, de cores. De conteúdos simbólicos, de sistemas de significados, expressos ou latentes. Aí, estarei falando de arte. Não importa se o objeto é o pote de barro de Benita ou a
escultura em bronze de Ana Maria. Se erudito ou popular.
REFERÊNCIAS
ARANTES, Antonio Augusto. O que é cultura popular. São Paulo: Brasiliense,
1988. (Coleção Primeiros Passos, n.36)
PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Arte e ofício de artesão: história e trajetória
de um meio de sobrevivência. Águas de São Pedro, 1985. Trabalho
apresentado no IX Encontro Anual da ANPOCS, 22-25 out.
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VOCÊ SABE
DE QUEM
ESTÁ
FALANDO?
LETÍCIA VIANNA *
PATRIMÔNIO IMATERIAL: NOVAS LEIS PARA
PRESERVAR... O QUÊ?
Quando falamos em patrimônio, estamos nos referindo
a uma porção de coisas consagradas e que têm grande
valor para pessoas, comunidades ou nações. E também
de coisas que podem ter valor para todo o conjunto da
humanidade. A idéia remete à riqueza construída e
transmitida, herança ou legado que influencia o modo
de ser e a identidade dos indivíduos e grupos sociais.
Mas a noção exata do que seja patrimônio é relativa, pois depende de
quem fala e de que ponto de vista fala. As definições podem partir de diferentes perspectivas, que podem ou não se sobrepor, como a perspectiva afetiva,
a econômica, a ambiental, a cultural.
Patrimônio cultural diz respeito aos conjuntos de conhecimentos e realizações de uma sociedade, que são acumulados ao longo de sua história e lhe
conferem os traços de sua singularidade em relação às outras sociedades.
* Centro Nacional de
Folclore e Cultura
Popular/FUNARTE.
Uma das características mais marcantes da espécie humana é a grande diversidade de configurações socioculturais possíveis no tempo e no
espaço. Diferente das sociedades de abelhas e formigas, sempre idênticas,
as sociedades humanas são sempre únicas em função das especificidades
culturais nelas desenvolvidas. Cada sociedade possui um sistema cultural,
no qual, entretanto, vários sistemas simbólicos são incorporados e compartilhados.
Entende-se aqui por cultura os sistemas de significados, os valores, crenças, práticas e costumes; ética, estética, conhecimentos e técnicas, modos
de viver e visões de mundo que orientam e dão sentido às existências individuais em coletividades humanas.
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I
Desde pelo menos o século XIX e ao longo de todo o século XX, existem
dois grandes pressupostos teóricos que orientaram o entendimento científico e políticas relativas à diversidade cultural humana: a perspectiva do
etnocentrismo e a do relativismo cultural.
O etnocentrismo é uma tendência que considera a cultura (valores, princípios, conhecimentos, modo de vida) de um grupo específico, seja ele qual
for (uma nação, um país, um grupo religioso, uma tribo urbana de adolescentes, um time de futebol...), como medida para todos os outros. Sob essa perspectiva, o grupo a partir do qual se fala é comparado e valorado positivamente em detrimento dos outros grupos humanos.
No contexto das sociedades integradas ao mercado industrial globalizado
contemporâneo, por exemplo, o ponto de vista etnocêntrico tende a privilegiar o grau de desenvolvimento tecnológico e especialização da sociedade como
modelo de “vida de qualidade superior, mais evoluída” em relação à vida nas
sociedades menos integradas àquele modelo. A história oficial tende a reafirmar a idéia de que as sociedades industriais são mais desenvolvidas, com
qualidade de vida superior à das sociedades pouco ou diferencialmente integradas ao modelo de referência. E, sob a luz desses argumentos, legitimaram-se muitas guerras, genocídios e massacres imperialistas a culturas genuínas.
Na contra-tendência do etnocentrismo desenvolveu-se o relativismo cultural, pressuposto teórico construído não sob o ponto de vista de um grupo ou
coletividade específica, mas, pretensamente, sob o ponto de vista amplo, de
toda a humanidade. Entende-se, assim, que todas as sociedades e culturas, por
mais diversas, são análogas, pois têm suas próprias racionalidades e
irracionalidades intrínsecas, formas, funções e expressões específicas, e que
essa diversidade é característica de toda a espécie humana.
Tudo depende do ponto de vista de quem olha. Podemos ver que as
sociedades com alto grau de desenvolvimento tecnológico e industrialização
podem não ter encontrado as melhores soluções para sua existência no tocante à ecologia, questão relativamente bem resolvida em outras sociedades
distantes do modelo produtivo tecno-industrial, como as sociedades
seminômades, caçadoras e coletoras que fazem manejo rotativo de pequenas roças em meio à Floresta Amazônica, por exemplo.
VOCÊ SABE DE QUEM ESTÁ FALANDO?
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Enquanto a tendência da perspectiva etnocêntrica é subordinar o diferente sob a lógica da desigualdade econômica – na maioria das vezes de
maneira violenta e extrema –, a perspectiva relativista é ideologicamente
pontuada pelo pacifismo, justiça, eqüidade social e pluralidade cultural e pelo
esforço constante de conhecer para poder preservar essa pluralidade como
possibilidade concreta da experiência humana. Pois o potencial criativo é um
dos maiores patrimônios da humanidade; um dos traços mais marcantes que
nos distingue e define enquanto espécie.
II
Desde o final da Segunda Guerra Mundial as questões internacionais
gerais sobre o tema do patrimônio cultural da humanidade são conduzidas
para os fóruns da Unesco, seminários e conferências internacionais de diferentes ordens. E, de maneira geral, as bases de entendimento para as ações
cooperativas entre as nações estão no documento da Unesco “Recomendações sobre a salvaguarda do folclore e da cultura popular”, de 1989.
Esse documento enfatiza a necessidade de cooperação internacional para
o desenvolvimento de instrumentos de salvaguarda, tanto dos processos de
produção e transmissão de conhecimentos genuínos e tradicionais, quanto
dos direitos das coletividades sobre seus conhecimentos, cosmologias e técnicas aplicadas.
A atual legislação que trata da proteção do patrimônio cultural brasileiro tem seguido as recomendações da Unesco; é fundamentada em bases
relativistas que já vinham sendo construídas e amadurecidas ao longo da
história.
Nos artigos 215 e 216 da Constituição promulgada em 1988, o conceito
de Patrimônio Cultural abarca tanto obras arquitetônicas, urbanísticas e artísticas de grande valor – o patrimônio material – quanto manifestações de
natureza “imaterial”, relacionadas à cultura no sentido antropológico: visões
de mundo, memórias, relações sociais e simbólicas, saberes e práticas; experiências diferenciadas nos grupos humanos, chaves das identidades sociais. Incluem-se aí as celebrações e saberes da cultura popular – as festas, a
religiosidade, a musicalidade e as danças, as comidas e bebidas, as artes e
artesanatos, os mistérios e mitos, a literatura oral e tantas, tantas expressões diferentes que fazem nosso país culturalmente tão diverso e rico.
VOCÊ SABE DE QUEM ESTÁ FALANDO?
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O principal instrumento de preservação do patrimônio material é o instituto do tombamento, cuja legislação está sendo amadurecida desde pelo
menos a primeira metade do século XX.
A legislação para o patrimônio imaterial, entretanto, é recente. No Decreto n. 3.551 de 04 de agosto de 2000, os principais instrumentos de salvaguarda desse patrimônio, até hoje instituídos, são o inventário permanente,
o registro em livros análogos aos livros de tombo e as políticas de preservação e fomento que devem ser estabelecidas.
Esses instrumentos não são fechados, normativos e restritivos, mas
abertos aos pontos de vista e expectativas dos portadores de tradições culturais específicas. Pressupõem a dinâmica própria dessas tradições, sem
pretender, portanto, “engessar” suas formas e conteúdos no tempo e no espaço, o que é fundamental, pois a questão não é nada, nada simples.
Apenas a legislação não basta para garantir a salvaguarda desses bens.
De fato, muitas expressões culturais da maior importância se perderam por
falta de legislação eficiente, mas também existem muitos bens culturais que
se conservaram por séculos e séculos sob nenhuma ou apenas incipiente
legislação de proteção. As leis, sem dúvida, podem favorecer as condições
para a preservação do patrimônio cultural; mas ele só é efetivamente preservado por meio da vivência voluntária das pessoas.
Os documentos engavetados, os inventários, a descrição dos bens contidas nos livros do Iphan são apenas referências dos bens, mas não dão conta dos bens em si, que têm natureza dinâmica e intangível. O patrimônio
imaterial – como as festas e celebrações, as músicas, danças, comidas, saberes e técnicas próprias da cultura popular – só se conservarão, efetivamente, se vividos por pessoas em condições, com garantias, liberdade e interesses em vivenciá-los de modo dinâmico e criativo.
Assim, a nova legislação de preservação do patrimônio cultural só será
eficaz na medida em que seja amplamente conhecida pelos diferentes segmentos da sociedade e que as comunidades locais e a sociedade abrangente tenham condições de estar mobilizadas para a prática permanente, para a transmissão e aprendizado de saberes, a pesquisa, documentação, apoio e reconhecimento da riqueza cultural brasileira, de maneira crítica e participativa.
Destaca-se, então, o fundamental papel da escola, e dos educadores
em geral, na atualização constante dos princípios do relativismo cultural para
VOCÊ SABE DE QUEM ESTÁ FALANDO?
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as novas gerações; na valorização da diversidade cultural com respeito e
tolerância; no estímulo permanente à curiosidade pelas culturas e identidades tradicionais das comunidades locais, divulgando-as para que sejam conhecidas e reconhecidas na própria comunidade e na sociedade abrangente.
De modo que seja preservada a vontade de apreender, compreender, vivenciar,
repassar e reinventar as tradições com liberdade, criatividade e senso de
justiça social. Posto que a preservação da diversidade cultural e a superação
das desigualdades socioeconômicas são um dos maiores desafios que a sociedade brasileira enfrenta neste século XXI.
VOCÊ SABE DE QUEM ESTÁ FALANDO?
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Presidente da República
Luís Inácio Lula da Silva
Ministro da Educação
Cristovam Buarque
Secretário de Educação a Distância
João Carlos Teatini
MEC
SECRETARIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
TV ESCOLA – SALTO PARA O FUTURO
Diretora do Departamento de Política de Educação a Distância
Carmen Moreira de Castro Neves
Cordenadora Geral de Planejamento e Desenvolvimento de Educação
a Distância
Tânia Maria Magalhães Castro
Diretor de Produção e Divulgação de Programas Educativos
Jean Claude Frajmund
Supervisora Pedagógica
Rosa Helena Mendonça
Coordenadoras de Utilização e Avaliação
Mônica Mufarrej e Leila Atta Abrahão
Copidesque e Revisão
Magda Frediani Martins
Diagramação e Editoração
Norma Massa
Consultoria Pedagógica da série
Lucia Yunes
Email: [email protected]
Home page: www.tvebrasil.com.br/salto
Junho de 2003
Av. Gomes Freire, 474, sala 105. Centro. Rio de Janeiro (RJ).
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