ISSN 2177-4633 UFJF UFJF

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ISSN 2177-4633 UFJF UFJF
ISSN 2177-4633
ἀληθής
PeRIÓDICO CIeNtÍFICO DOs GRADUANDOs eM DIReItO DA UFJF
Nº 2 – MAIO /OUtUBRO De 2010
Alethes
PeRIÓDICO CIeNtÍFICO DOs GRADUANDOs
eM DIReItO DA UFJF
Alethes
Periódico Científico dos Graduandos em Direito
UFJF nº 2 - Ano 1
Diagramação: Francislene Pereira de Paula
Capa: L’Aile, Bertrand-Jean Redon.
ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito
da UFJF. n. 2. Vol. 1. (Maio/Outubro de 2010) – Juiz de Fora:
DABC, 2010.
Semestral. 1. Direito – Periódicos. ISSN 2177-4633
Normas para publicação e Revista online:
www.alethes.com.br
Alethes
Periódico Científico dos Graduandos em Direito
CONSELHO EDITORIAL
Dr. Alexandre Travessoni Gomes - UFMG
Dr. Andityas Soares de Moura Costa Matos - UFMG
Dr. Antônio Márcio da Cunha Guimarães - PUC-SP
Dra. Cláudia Toledo - UFJF
Dr. Denis Franco Silva - UFJF
Dr. Marcos Vinício Chein Feres - UFJF
Dr. Noel Struchiner - PUC-RIO
Mestre Renato Chaves Ferreira - UFJF
Dr. Thomas da Rosa de Bustamante - UFMG
EDITORES
Brahwlio Soares de Moura Ribeiro Mendes
Victor Freitas Lopes Nunes
Sumário
Editorial I..............................................................................................................09
Editorial II............................................................................................................11
Artigos
Desafios à celeridade processual: análise e crítica sobre a (des)formalização
do procedimento, e a necessidade de mutação axiológica das condutas do
juiz, demandante e demandado na relação jurídica processual
Douglas Borges de Vasconcelos....................................................................................13
Aborto de anencéfalos sob a perspectiva do direito fundamental à vida
Abby Ilharco Magalhães............................................................................................31
Democracia e Segurança Cidadã na América Latina: uma analise das políticas
de segurança na Colômbia e no Chile
Thiago Augusto Schmidt de Melo..............................................................................41
Exigência de diploma do curso de Jornalismo e não recepção RE 511961
Daniel Dore Lage
Nathan Ramalho dos Reis.........................................................................................59
O Valor da pureza de Hans Kelsen
Brahwlio Soares de Moura Ribeiro Mendes.................................................................73
Perspectivas democráticas à judicialização da política no Brasil
Luiz Carlos Silva Faria Junior...................................................................................87
Editorial I
Com a edição deste segundo número vemos a consolidação da Alethes,
que, dessa forma, se firma como periódico científico semestral. A revista se
orgulha em não ter sido apenas uma chama momentânea de esperança para
publicação de graduandos. Alcançado este segundo número o prognóstico é
de que a chama queime por muito tempo e cada vez mais.
Este número conta, assim como o primeiro, com seis artigos. Quatro da
própria UFJF e dois externos, sendo um da UFMS e um da UFOP. Com isso
vemos se alastrar a chama deste periódico de graduandos, que já publicou
artigos de alunos de quatro instituições, UFJF, UFMG, UFMS e UFOP.
A Alethes aproveita esse editorial para agradecer a todos que vêm colaborando para sua perpetuação, entusiastas, articulistas, leitores. Sem todo o
apoio que vem recebendo seria muito mais difícil manter vivo esse importantíssimo projeto. Pedimos, portanto, que continuem alimentando esse fogo,
para que se alastre cada vez mais.
Que o fogo da verdade defendida pela proposta da Alethes continue queimando os preconceitos criados sobre a pesquisa científica e continue iluminando os graduandos para que se formem críticos e criativos, podendo
compartilhar seu criticismo e criatividade com a comunidade científica.
Brahwlio Soares de Moura Ribeiro Mendes
Editor da Alethes – Graduando em Direito pela UFJF
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
Editorial II
O mundo real não é o mundo ideal, e ainda bem que é assim. Se vivêssemos em meio à perfeição que graça teria sonhar? A magia das coisas, no mais
das vezes, está em lutar, batalhar incansavelmente até consegui-las. São os
sonhos que alimentam nosso espírito, que nos fazem continuar caminhando,
ainda que não saibamos para onde, e nem sequer tenhamos certeza do caminho. Sonhamos e caminhamos.
Alethes é mais um sonho, que há um ano era só sonho, mas hoje se tornou
realidade. Em nossa segunda edição, damos mais um passo rumo à afirmação
do Periódico Científico dos Graduandos em Direito da UFJF como sendo
importante veículo de publicação e divulgação de teses, trabalhos, idéias e,
principalmente, sonhos.
Estamos imensamente felizes, de poder com a realização de nosso sonho,
ajudar você, graduando, a realizar o seu. Esperamos que juntos possamos
continuar rumando à realização profissional, pessoal e ao engrandecimento
de nossa faculdade.
Em momentos como esses, não poderíamos nos esquecer de agradecer
aos parceiros nessa jornada, nossos amigos e irmãos em armas. Este editor,
pede licença para agradecer pessoalmente, aos seus pais, Elio e Maria Ângela,
sua namorada, Tatiana que o apóiam e o mantém caminhando.
A vocês, amigos e colegas um pedido travestido de conselho. Sejam o que
vocês sonham ser, nunca deixem de olhar para frente, porque somente lá está
o novo, a mudança, e a realidade. O agora já se foi e o que se foi nunca mais
será de novo. Sejam o novo, sejam seus sonhos.
Victor Freitas Lopes Nunes
Editor da Alethes – Graduando em Direito pela UFJF
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
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Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
Artigos
Desafios à celeridade processual: análise e crítica sobre a
(des)formalização do procedimento, e a necessidade de mutação axiológica das condutas do juiz, demandante e demandado na relação jurídica processual
Douglas Borges de Vasconcelos*
RESUMO:
O raciocínio ora estruturado analisa – criticamente – lastimável problemática que paira
sobre o Poder Judiciário brasileiro: a morosidade da prestação da atividade jurisdicional.
Enfocando a necessidade de operar-se a eficácia social do artigo 5º, inciso LXXIV, da
Constituição de 1.988 – que prevê como direito do jurisdicionado (e dever do Estado)
a segurança de que o processo tenha uma razoável duração – expõe-se que promover
apenas a (des)formalização do procedimento – com alterações legislativas que o simplifique
– será insuficiente caso não se realize uma mudança na mentalidade arcaica da maioria dos
Juízes, e nos valores das Partes: os primeiros apegados ao procedimentalismo, e os últimos insolentes ante a boa-fé, lealdade, e justiça. Por derradeiro, evidencia-se que na inocorrência
de mutação em todos os elementos que compõem o processo – aqui compreendido como
o procedimento em contraditório animado por uma relação jurídica processual – a elaboração de um
novo código de processo civil será ofuscada pela ineficácia.
PALAVRAS-CHAVE: Morosidade da Atividade Jurisdicional. (Des)formalização do
Processo. Celeridade Processual.
Graduando em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (Campus de Três Lagoas); Pesquisador bolsista do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico (CNPq), discente pesquisador PIBIC (UFMS/
CNPq).
E-mail: [email protected]; Perfil no Sistema de Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.
br/4289358290618072
*
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
ABSTRACT:
The reasoning now structured analysis - critically - unfortunate problem that hangs over
the Brazilian Judiciary: the slow pace of delivery of judicial activity. Focusing on the need
to operate the social effectiveness of Article 5, subsection LXXIV, Constitution of 1988
– which provides as a right of court (and the duty of the State) the assurance that the process has a reasonable duration – states that promote only the (non)formalization of the procedure – with legislative changes to simplify it – will be insufficient if not effected a change in the archaic mentality of most judges, and the values of the Parties: the first attached
to proceduralism, and the last insolent in face of good faith, loyalty, and justice. For last, it
is evident that in non-occurrence of change in all the elements that comprise the process
– here understood as the procedure in contradictory animated by a procedural legal relationship – the
drafting of a new code of civil procedure will be overshadowed by inefficiency
KEYWORDS: Slowness of the judicial activity. Procedure (non)formalization. Procedural Speed
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Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
1 Delineamentos introdutórios
Não é necessário elevado esforço cognitivo para a compreensão da assertiva de que os
homens – desde os tempos mais primórdios – necessitam da apoderação de bens existentes no meio que estão imersos para sobreviverem e evoluir. Nesse urdir, a razão existente
entre o homem e os bens sujeitos à satisfação de suas necessidades denomina-se interesse,
que – na precisa definição de Moacyr Amaral Santos – consiste na posição favorável a satisfação de uma necessidade, sendo o homem o seu sujeito, e o bem o seu objeto1. Ocorre que os
bens passíveis de apropriação do homem são finitos, enquanto as necessidades humanas
ilimitadas: situação que resulta na conflitante realidade fática de duas ou mais pessoas
manifestarem interesse em relação a um bem que não seja capaz de satisfazê-las com a
mesma intensidade.
Como nos evidencia a história e experiência da práxis social, os conflitos e insatisfações são fatores de angústia, que criam verdadeiro Estado Patológico na regência das
relações da sociedade. Tal mácula instigou o homem a criar – por necessidade existencial – mecanismos para defenestrar essa problemática, missão que – hodiernamente – é
atribuída precipuamente ao Estado-juiz, mediante aplicação do direito ao caso concreto:
atividade que se realiza por meio do exercício da jurisdição2, que – na dicção de Alexandre
Freitas Câmara, embasado na clássica definição de Chiovenda3 – é a função do Estado de
atuar a vontade concreta do direito objetivo, seja afirmando-a, seja realizando-a praticamente, seja assegurando a efetividade de sua afirmação ou realização prática4.
O processo é o meio pelo qual o Estado-juiz realiza a jurisdição, sendo ele – na
insuperável lição de Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido
Rangel Dinamarco – indispensável à função jurisdicional exercida com vistas ao objetivo de eliminar
conflitos e fazer justiça mediante a atuação da vontade concreta da lei 5.
Destarte, a higidez do processo – in globo – é de vital importância para a efetividade
da atuação jurisdicional que tenha por escopo proporcionar a estabilidade das relações sociais,
já que qualquer irregularidade em seu desenvolvimento acarreta lesões e injustiças na orbita material e subjetiva de cada jurisdicionado, razão pela qual não se deve buscar apenas o
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil – Processo de Conhecimento. v.1, atualizado por Maria
Beatriz Amaral Santos Köhnen. 25 ed. rev. e atual. São Paulo: SARAIVA, 2007. p. 4.
2
Expressão derivada do latim iuris diccio que – ipsis litteris – significa dicção do direito.
3
O conceito originalmente veiculado por Chiovenda é o de que a jurisdição consiste na “função do estado que tem por
escopo a atuação da vontade concreta da lei por meio da substituição, pela atividade de órgãos públicos, da atividade
de particulares ou de outros órgãos públicos, já no afirmar a existência da vontade da lei, já no torná-la, praticamente,
efetiva”. Vide CÂMARA, 2.009, p. 66.
4
CÂMARA, Alexrandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. v.1. 19 ed. rev. RIO DE JANEIRO: Lumen Juris, 2009.
p. 69.
5
CINTRA, Antonio Carlos Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 13 ed. SÃO PAULO: Malheiros, 1.997. p. 279.
1
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
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acesso à justiça ou a ordem jurídica, e sim o acesso à justiça ou ordem jurídica justas, aptas
não só a concretizar a vontade da lei, mas – mormente – a tutelarem interesses legítimos.
A doutrina reconhece três grandes fases que retratam a busca ao pleno acesso à ordem
jurídica justa, traduzidas nas três ondas do acesso à justiça, idealizadas pelo italiano Mauro Cappelletti. Ab initio, os esforços dirigiram-se para a viabilização da assistência judiciária gratuita, já que a onerosidade da prestação jurisdicional consiste em óbice para os desfavorecidos
economicamente. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1.988 – felizmente
– concretizou normativamente essa onda no inciso LXXIV, do seu artigo 5º, ao assegurar que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de
recursos6. Entretanto, no preciso apontamento de CÂMARA, após tal implementação, se
verificou que
embora todos pudessem levar suas demandas e pretensões ao Judiciário,
qualquer que fosse sua situação econômica, nem todos os interesses e posições jurídicas de vantagem eram ainda passíveis de proteção através da prestação jurisdicional. Isso resultava do fato de o Direito Processual ter sido
construído com base [...] no liberalismo, no qual se instituiu um culto ao
individualismo. [...] só se permite que alguém vá a juízo na defesa de seus
próprios interesses (veja-se, a propósito, a primeira parte do disposto no art.
6º do Código de Processo Civil: “Ninguém poderá pleitear, em nome próprio direito alheiro”). [...] O Problema, porém, se mantinha com referência
a interesses que pudessem ser considerados supra-individuais (ou metaindividuais), já que estes, por estarem acima (ou além) dos indivíduos, não são
próprios de ninguém, o que impedia que qualquer pessoa levasse a juízo
demanda em que manifestasse a pretensão de defendê-los. [...] Permaneciam
desprotegidos os chamados interesses coletivos e difusos [...] 7
Não se pode omitir que embora se tenha imposição constitucional de que se deve assegurar aos economicamente necessitados o acesso à justiça, ainda há muito que se realizar para a sua eficácia social tenha as dimensões idealizadas pelo
legislador constituinte. Nesse sentido é o raciocínio de José Celso de Mello Filho, ao expor que a proteção jurisdicional, ao materializar o acesso ao sistema normativo, permite tornar efetivos e reais os direitos abstratamente proclamados pela ordem positiva. A frustração
do acesso ao aparelho judiciário do Estado, motivada pelo injusto inadimplemento do dever governamental de conferir expressão concreta à norma
constitucional que assegura aos necessitados integral assistência de ordem jurídica (CF, art. 5º, LXXIV), culmina por gerar situação sociamente
intolerável e juridicamente inaceitável. Dentro dessa perspectiva, torna-se imperioso cumprir a Constituição (art. 134) e, em conseqüência, fortalecer e consolidar a Defensoria Pública como expressão orgânica e instrumento constitucional de realização do postulado segundo o
qual a Justiça deve ser efetivamente acessível a todos, inclusive aos que sofrem o injusto estigma da exclusão social. Na realidade, mais do que o
simples acesso ao processo, impõe-se identificar, na perspectiva mais abrangente do acesso à Justiça, o reconhecimento da necessidade de formular e
implementar um decisivo programa de reforma que vise à remoção dos obstáculos jurídicos, sociais, econômicos e culturais que injustamente frustram ou inibem a utilização, por vastos contingentes da população brasileira, do sistema de administração da justiça. Vide: MELLO FILHO,
José Celso. Algumas reflexões sobre a questão judiciária. In Revista do Advogado – Reforma do Judiciário. Ano XXIV,
abril de 2.004, n.º 75, p. 43. São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo.
7
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. v.1. 19 ed. rev.atual. RIO DE JANEIRO: Lumen Juris, 2.009.
p. 37-38.
6
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Diante desse contexto, se fez necessário implementar a segunda onda, qual seja, a
defesa dos interesses difusos e coletivos em juízo, por meio de mecanismos previstos pelo ordenamento jurídico brasileiro – como exempli gratia – a Ação Civil Pública; Ação Popular; e o
Mandado de Segurança Coletivo.
Positivadas primeira e segunda ondas do acesso á justiça, a doutrina aponta um novo
enfoque a ser analisado, qual seja, o da satisfação do jurisdicionado. Conforme se viu, houve
a facilitação do acesso ao Poder Judiciário, que recebe demandas em quantidades muito
superiores a sua capacidade infra-estrutural, havendo excessos e deficiências: as principais
causas da mora da jurisdição8.
2 Delineamentos da morosidade jurisdicional
Em consonância com a conceituação já supramencionada, o processo é o meio pelo qual
se realiza a jurisdição. Ele consiste – conforme leciona a melhor doutrina – no procedimento,
realizado em contraditório, e animado pela relação jurídica processual9.
Das lições de CÂMARA, se extrai que
[...] o processo é uma entidade complexa, de que o procedimento é um
dos elementos formadores. O procedimento [...] é o aspecto extrínseco
do processo. O processo não é o procedimento, mas o resultado da
soma de diversos fatores, um dos quais é exatamente o procedimento10
[...] (Grifo nosso)
Destarte, como forma de viabilizar a concretização da terceira onda do Acesso à Justiça, arquiteta-se – na seara jurídica – o ataque ao elemento constitutivo de maior enfoque
no processo – qual seja, o procedimento – para solucionar o problema de sua mora, e – por
conseqüência – garantir a prestação jurisdicional célere aos titulares de posições jurídicas
de vantagem, que buscam – no Poder Judiciário – a concretização de suas pretensões.
Para essa concepção de mudança, se faz necessária a (des)formalização dos procedimentos
processuais, para que de modo definitivo a atividade jurisdicional desapegue-se – normativamente – do procedimentalismo exacerbado, que é afronta a observância da instrumentalidade das
formas, viabilizadora até mesmo da validade dos atos processuais que – mesmo praticados
em dissonância com a forma prescrita por lei – podem legitimarem-se caso alcancem o
Pertinente é a indagação do magistrado José Renato Nalini: O volume de ações judiciais em curso no Brasil é insuportável para o
arcaísmo das instituições e reflete outro paradoxo: excesso de demandas é termômetro do grau de cidadania que se atingiu, ou apenas evidencia a
falência do modelo de Estado-providência, que nunca mais consegue atender às exigências da população? Vide: NALINI, José Renato. Os
três eixos da Reforma do Judiciário. In Revista do Advogado – Reforma do Judiciário. Ano XXIV, abril de 2.004, n.º 75, p. 68.
9
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. v.1. 19 ed. rev. atual. RIO DE JANEIRO: Lumen Juris,
2.009. p. 133.
10
Ibidem.
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escopo da ratio legis, vale dizer: na busca da celeridade processual, mais vale o conteúdo de
um ato do que sua forma, já que – no preciso apontamento de Fredie Didier Júnior – a
forma só deve prevalecer se o fim para o qual ela foi desenvolvida não lograr ter sido atingido11.
Entretanto, indaga-se: são somente os procedimentos positivados em leis processuais que causam a morosidade da atividade jurisdicional? A (des)formalização apenas do
procedimento trará – a hoje onírica – celeridade do processo? Certamente não. Data venia,
se faz necessário evidenciar aos que assim pensam, o quão equivocada – ou melhor, irracional – é a crença de que tal medida – de per si – trará a tão sonhada eficácia social do inciso
LXXVIII, do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1.98812. A
mudança legislativa em busca da simplificação é uma necessidade, mas sua implementação
isolada é insuficiente. Como bem expõe Flávio Luiz Yarshell,
É ilusão imaginar que [...] a aprovação da proposta de Emenda à Constituição da República de n.º 96-E/92, que introduz modificações na
estrutura do Poder Judiciário, resolverá o grave, crônico e perverso
problema da morosidade desse último; o que nem mesmo poderá ser
afastado pela proclamação, constante do inciso LXXVIII do artigo 5º,
de que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados
a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. É ingenuidade ou desconhecimento supor que
problema de tal complexidade possa ser resolvido com uma penada do
legislador que, por melhor técnica que tivesse (e nem sempre tem), não
seria capaz de, mantidas as condições estruturais do sistema, alterar a
realidade das coisas “por decreto”.13
Ora, para compreender o motivo de se taxar como errônea – ou incompleta – a
proposição dos que defendem tão só a (des)formalização procedimental, basta analisarmos
o objeto sobre o qual se quer que recaia a celeridade, ou seja, é necessário entender que o
processo não é composto apenas por procedimento. Conforme supra expôs-se, o processo
consiste no procedimento, realizado em contraditório, e animado pela relação jurídica processual14. Desta
forma, toda e qualquer mudança que se opere apenas sobre o procedimento será inapta a – de
per si – proporcionar celeridade ao mesmo, pelo fato de que gravitam em torno dele outros
elementos que também necessitam de mutação, quais sejam, o contraditório e a relação jurídica
DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 11 ed., v. 1. Salvador: PODIVM, 2.009. p. 64.
Artigo 5º, LXXVIII, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1.988: a todos, no âmbito judicial e administrativo,
são assegurados a razoável duração do processo, e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
13
YARSHELL, Flávio Luiz. A Reforma do Judiciário e a promessa de “duração razoável do processo”. In Revista do Advogado
– Reforma do Judiciário. São Paulo, ano XXIV, abril de 2.004, n.º 75, p. 43
14
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. v.1. 19 ed. rev. atual. RIO DE JANEIRO: Lumen Juris,
2.009. p. 133.
11
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Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
processual que o anima, sob de pena de uma incompatibilidade substancial entre os mesmos.
Ada Pellegrini Grinover já em 1.988 relatava de modo global e hígido a problemática que aqui se analisa, expondo que:
[...] é preciso reconhecer um grande descompasso entre a doutrina e a
legislação, de um lado, e a prática judiciária, de outro. Ao extraordinário
progresso científico da disciplina não correspondeu o aperfeiçoamento
do aparelho judiciário e da administração da justiça. A sobrecarga dos
tribunais, a morosidade dos processos, seu custo, a burocratização da
justiça, certa complicação procedimental; a mentalidade do juiz, que
deixa de fazer uso dos poderes que o código lhe atribui; a falta de
informação e de orientação para os detentores dos interesses em conflito; as deficiências do patrocínio gratuito, tudo leva a insuperável obstrução das vias de acesso à justiça, e ao distanciamento cada vez mais
forte entre o Judiciário e seus usuários. O que não acarreta o descrédito
na magistratura e nos demais operadores do direito, mas tem como
preocupante conseqüência a de incentivar a litigiosidade latente, que
freqüentemente explode em conflitos sociais, ou de buscar vias alternativas violentas ou de qualquer modo inadequadas (desde a justiça de
mão própria, passando por intermediações arbitrárias e de prepotência, para chegar aos “justiceiros”).15 (Grifo nosso)
Grifou-se alguns pontos específicos da colocação da eminente processualista, quais
sejam: a sobrecarga dos tribunais; a morosidade dos processos; a complicação procedimental; e a mentalidade do juiz. Objetivando a construção lúcida do raciocínio que aqui se propõe, se acrescenta mais dois pontos: o contraditório e os sujeitos da relação jurídica processual (Demandante/Demandado/Juiz).
Para revestir de didática essa formulação, e – valendo-se dos pontos acima selecionados – se faz a seguinte alocação espacial tópica em observância ao que até o presente
momento se expôs in totum:
I. É ilimitado o interesse humano em apropriar-se dos bens da vida para a satisfação
de suas necessidades;
II. Os bens da vida são – quantitativa e qualitativamente – limitados e finitos;
III. Os bens da vida não suprem as necessidades humanas, e – diante da escassez
daqueles – se inicia a colisão de interesses que recaem sobre os mesmos objetos;
IV. As relações interpessoais no âmbito social caracterizam-se pelo constante con-
GRINOVER, Ada Pellegrini. Deformalização do processo e deformalização das controvérsias. Revista Inf. Legislativa. Ano 25,
nº 97. Brasília: jan/mar, 1988. p. 193.
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Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
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flito de interesses, que – conforme já apontava Carnellutti – na maioria dos casos
qualificam-se por pretensões resistidas ou não satisfeitas, surgindo as lides, e instaurando-se verdadeiro Estado Patológico na sociedade;
V. Atribui-se precipuamente ao Estado-juiz a função de – mediante a substituição
das partes – solucionar tais conflitos por meio da aplicação da lei ao caso concreto:
é o exercício da atividade jurisdicional;
VI. Com a evolução humana e aperfeiçoamento das relações sociais e técnicas normativas, o número de conflitos eleva-se sobremaneira, mas nem todas as lides chegam a análise do Poder Judiciário;
VII. Ao se implementar as duas primeiras ondas do acesso à justiça há sobrecarga do
Poder Judiciário, que não se adéqua a essa nova realidade;
VIII. Há complicação do procedimento, sendo necessária sua simplificação;
IX. O Juiz – com mentalidade obsoleta – não coaduna sua conduta com valores e
delineamentos constitucionais, bem como aos poderes que o código lhe atribui para a
busca da realização da justiça; e as Partes – demandante e demandado – nem sempre
atuam com boa-fé e lealdade, sendo corriqueiro o intuído de valer-se do contraditório
com o único propósito protelatório, de modo a intensificar o Estado Patológico;
X. Para a obtenção da celeridade processual faz-se necessária uma mutação que
recaia não só sobre o procedimento, por meio de sua simplificação via alteração
legislativa, como – também – sobre a mentalidade do Juiz, e dos valores das Partes.
Da sintética ordenação – em pontos enumerados – acima realizada, se chega ao clímax
da discussão proposta, que se concentra no ponto X (dez). Partindo da premissa de que para
proporcionar celeridade ao processo far-se-á necessária uma mutação global, que recaia sobre
todos os elementos que o constitui – nos moldes aqui propostos –, tendo pertinência a realização – nesse momento – de análise daqueles que aqui ainda não foram criticamente contextualizados: o Juiz e as Partes (Demandante e Demandado), já que – ainda que de modo perfunctório – explicitou-se a necessidade da simplificação do procedimento via alteração legislativa.
3 A contramarcha do juiz e das partes na busca da celeridade processual
Conforme leciona Humberto Theodoro Junior, o direito comum – de tempos – já
propalava a assertiva de que o iudicium est actus trium personarum: judicis, actoris et rei – o processo é a atividade de três pessoas: juiz, autor e réu16. Destarte, é de importância para o desenvolvimento do curso processual não só a atuação do Juiz, mas – outrossim – a conduta
das partes, na medida em que elas participam do desenvolvimento da atividade estatal
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria Geral do Direito Processual Civil e Processo de
Conhecimento. v.1. 49 ed. RIO DE JANEIRO: Forense, 2.008. p. 304.
16
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Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
de decidir17. Desse modo, ainda que se encontrem problemas físicos no Poder Judiciário
– como sua arcaica infra-estrutura; o déficit de servidores e juízes, e o elevado número
de estagiários realizando atividades típicas e exclusivas do magistrado18 – aqui se terá por
enfoque apenas a conduta do Juiz e das partes, dada a relevância de suas condutas para o
processo: fato olvidado pela maioria da doutrina e seus estudiosos.
3.1 O Juiz
De notoriedade incontestável, o Juiz e as Partes – observadas suas peculiaridades
subjetivas individuais e funcionais – são os sujeitos de destaque da relação jurídica processual, sendo o magistrado o responsável pela atuação funcional de preponderância no
exercício da atividade jurisdicional. Como bem sintetiza Moacyr Amaral Santos, o Juiz:
[...] é a figura central do processo (Gabriel de Rezende Filho); é
a coluna vertebral da relação processual (Chiovenda); é o sujeito
mais eminente da relação processual (Manzini, Frederico Marques). Distingue-se das partes – diz Carnelutti – não só porque
lhe são atribuídos poderes, mas, especialmente, pela sua posição
superior às mesmas. Compreensível a razão de ser da predominância na relação processual. Desta ele participa como órgão do
Estado, como órgão de poder (poder jurisdicional), no interesse
da coletividade, qual seja, o de compor conflitos com justiça, isto
é, conforme a vontade da lei. Se a relação processual se instaura
com a finalidade de se alcançar a prestação jurisdicional num caso
concreto, assegurando a paz social, a soberania da lei, ao interesse
das partes, no desenvolvimento da relação, sobreleva o interesse público de que esta se desenvolva e atinja a sua finalidade na
consonância das normas e princípios que as regem, orientados
pelos mais elevados princípios de justiça. Por isso mesmo, ao juiz
são concedidos no exercício de suas atividades processuais, largos
Ibi idem, p. 305.
Lastimavelmente, se tornou corriqueiro o relato de alunos do curso de direito que estagiam no Poder Judiciário de
que – diante do excesso de demandas – os mesmos – acabam recebendo atribuições exclusivas do magistrado, como
– exempli gratia – elaboração de decisões interlocutórias e sentenças, que nem sempre são revisadas pelos Juizes, que
apenas assinam tais atos; tal realidade encontra-se inclusive na realização de juízos de admissibilidade de recursos em
Tribunais Superiores, como o Superior Tribunal de Justiça. É a realidade do Poder Judiciário brasileiro. De que adiante
exigir-se como pré-requisito daqueles que pretendem ingressar na magistratura três anos experiência adquirida pela
efetiva prática de atividade jurídica, se – na prática – atos jurisdicionais são praticados por acadêmicos que nem mesmo
são bacharéis, e – em determinados casos – não conhecem o mínimo do direito principiológico e positivo, pior: não
conseguem nem mesmo a aprovação no Exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), diante do explícito déficit
do ensino jurídico no país.
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21
poderes, sem os quais não se lhes seria possível conhecer, decidir,
e dar execução às suas decisões, satisfazendo desse modo a satisfação jurisdicional visada pelo processo 19.
O Poder atribuído aos Juízes não se limita apenas aos delineamentos da normatização constitucional e infraconstitucional, já que sua maior fonte de sustentação
advém da própria cultura social. Prova disso é evidenciada na laudável obra de Dalmo
Dallari Abreu, que bem retrata o poder dos juízes20 nesses moldes. Ser juiz – independente da atuação benéfica ou não daquele que é togado – é ter status. É ser respeitado
por ser, e não por fazer merecer. A manutenção dessa esdrúxula concepção pela sociedade
e por alguns operadores do direito, apenas pode ser qualificada como arcaica e obsoleta. Será que os magistrados de hoje, diante de toda a onipotência que ostentam, e
que – na maioria das causas – não é utilizada em pró da efetiva realização da justiça,
merecem ser aclamados – em verdadeira submissão de vassalagem – como “Excelências”? Crê-se que não. Para complementar o raciocínio que aqui se expõe, é digna
de louvor a precisão das palavras do ilustre professor Gelson Amaro de Souza, ao
descrever que,
[...] ao que se percebe, o que falta mesmo é vontade de julgar, amparada pelas formalidades procedimentais. Quando não se quer julgar, se
apega nas formalidades. Se existe algo que sempre atravancou o judiciário é as formalidades. O exagero nas formalidades pode ser uma das
causas mais evidentes da morosidade da justiça21.
Ora, como já se mencionou, Ada Pellegrini Grinover no final da década de 1.980
já apontava a mentalidade do juiz que deixa de fazer uso de seus poderes como sendo um dos
fatores que obstam a efetividade da justiça. Assim, de que adianta a moderna doutrina
processual lecionar que o processo é um meio, se na prática a maioria juízes insistem
em atuar de modo a estabelecê-lo como um fim em si mesmo? Já passou – a muito – o
momento de o juiz mudar sua mentalidade, e refletir sobre o que é ser Juiz num Estado
que clama por justiça célere, pois – no escólio de Dalmo Dallari Abreu – infelizmente
no Poder Judiciário
[...] as mudanças foram mínimas, em todos os sentidos. A organização
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil – Processo de Conhecimento. v.1, atualizado por Maria
Beatriz Amaral Santos Köhnen. 25 ed. rev. e atual. São Paulo: SARAIVA, 2.007. p. 339.
20
DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva.
21
SOUZA, Gelson Amaro de. A morosidade da Justiça atravanca o desenvolvimento do país – entrevista. In Jornal da
FAI – Faculdades Adamantinenses Integradas. Ano X, nº 92, Adamantina-SP – 2.009. página 05.
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de executar suas tarefas, a solenidade dos ritos, [...] e até o traje dos
julgadores nos tribunais parecem os mesmos a mais de um século. Mas,
o que é de maior gravidade, a mentalidade do judiciário permaneceu a
mesma, tendo começado a ocorrer, recentemente, um movimento de
mudança dentro da própria magistratura. Um aspecto importante da
velha mentalidade é a convicção de que o judiciário não deve reconhecer que tem deficiências, nem pode ser submetido a críticas, pois tamanha é a magnitude de sua missão que seus integrantes pairam acima do
comum dos mortais22.
É pertinente – e ético – ressalvar que não são pode dirigir a todos os magistrados o
demérito de receber as relevantes críticas inerentes ao seu modo de atuação em desconformidade com sua missão de pacificação social. Embora a maioria realize suas atividades jurisdicionais com a mácula do arcaísmo de suas mentalidades, existem – felizmente
– poucos juízes que atuam não só na busca pela efetivação de suas missões e de modo a
interferir no status quo, como – também – veiculam suas idéias no sentido do reconhecimento das mazelas da instituição que pertencem. Exempli gratia, se cita José Renato Nalini,
que com – com brilhantismo – enfrenta o problema da morosidade da justiça. Em estudo
direcionado, o mesmo apresenta três eixos a serem seguidos na busca pela Reforma do Judiciário23. O primeiro eixo residiria numa reforma constitucional que – embora insuficiente
– seria necessária para iniciar uma profunda mutação no que tange a estrutura do Poder
Judiciário. O segundo eixo implicaria nas conseqüentes alterações legislativas no plano
infraconstitucional, como – verbi gratia – a alteração dos códigos processuais. Vale registrar
que – hodiernamente – vivemos intensa celeuma acerca da atual vinda de um Novo Código de Processo Civil, cuja coordenação dos trabalhos de elaboração de seu anteprojeto
incumbe a Luiz Fux – ministro do Superior Tribunal de Justiça – acompanhado de uma
comissão composta por processualistas que prometem a simplificação do procedimento
para a satisfação do jurisdicionado. Por fim, o terceiro eixo é traduzido na reforma da
mentalidade, ou melhor, da consciência do Juiz. NALINI não dispensa críticas, apontando que
[...] O mundo mudou e as ciências jurídicas nem sempre acompanharam o ritmo da mudança, nem pressentiram o alcance desse revolver
de valores, nem avaliaram as conseqüências da rapidez no desempenho
Obra citada em MATTOS, Karina Denari Gomes de; SOUZA, Gelson Amaro de. O PAPEL DO JUIZ NA
(DE)FORMALIZAÇÃO DO PROCESSO. in VI ENPEC – Encontro Internacional de Produção Científica CESUMAR.
23
NALINI, José Renato. Os três eixos da Reforma do Judiciário. Reforma do Judiciário. Ano XXIV, abril de 2.004, n.º 75. São
Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo.
22
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23
da missão pacificadora. O recrutamento de juízes continua a obedecer
um modelo que produziu bons frutos, mas que também se ressente de
obsolescência. Fazer o jovem decorar textos legislativos, doutrinários e
jurisprudenciais pode apurar a sua capacidade de memorização, nunca
as qualidades exigíveis de um julgador. Assim que admitido, o juiz se vê
imerso numa realidade impregnada de tradição e ritualismo. Embora
se proclame a inexistência de hierarquia, ele se vê às voltas com rotinas e praxes preservadoras de um premeditado distanciamento com
as cúpulas. O sistema de promoções estimula uma postura comedida,
esterilizadora de qualquer ousadia ou criatividade. Técnicas exitosas de
persuasão convertem os mais afoitos em disciplinados burocratas. [...]
O estimulo à adesão incondicional derivada do ensinamento dos mais
antigos faz dele um disciplinado colecionador de jurisprudência e, com o
tempo, corre o risco de abdicar de ter suas próprias idéias. A necessidade
de sobreviver com equilíbrio o faz cada vez mais distanciado do cerne
dos conflitos e um repetidor de fórmulas processuais, muito mais do que
um solucionador de problemas humanos.24
Concluindo seu relato acerca do terceiro eixo da reforma, o ilustre – e crítico – magistrado expõe a necessidade de o Juiz brasileiro conscientizar-se de que a realização do
justo depende dele, e que para isso é necessário se munir de enorme capacidade patriótica, amor à
Justiça, vontade de enfrentar desafios e, principalmente, criatividade, deixando – destarte – de ser um
robotizado repetidor de praxes longevas e formalismos estéreis25.
Se todos os magistrados coadunassem com os pensamentos de José Renato Nalini;
com o amor à função e a preocupação com os jurisdicionados exalada por Pablo Stolze, e
com a visibilidade racional do julgar veiculada por Amilton Bueno de Carvalho, certamente o Poder Judiciário viveria uma realidade completamente distinta.
Por fim, se vale do sugestivo apontamento de Karina Denari Gomes de Mattos e
Gelson Amaro de Souza, no sentido de que para – realmente – se desempenhar um papel
que contribua de modo efetivo para a melhoria da prestação jurisdicional,
[...] espera-se do magistrado, além de outras virtudes, não só uma
boa formação acadêmica, mas também, conhecimentos de outros
ramos das ciências sociais, que complementem sua cultura. Sem
desprezar o aperfeiçoamento da linguagem jurídica, herança do
24
25
24
Ib idem. p. 71.
Ib idem.
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
positivismo de Kelsen, o magistrado brasileiro deve agregá-lo ao
conhecimento multidisciplinar, chave para a compreensão do conhecimento moderno. 26
3.2 As Partes
Conforme supramencionado, relevante é a atividade das partes para o processo, na medida
em que elas participam do desenvolvimento da atividade estatal de decidir27. É justamente a maior
– ou menor – boa-fé e lealdade das partes nessa participação que influenciará na celeridade ou não do processo. O próprio Código de Processo Civil em seu artigo 15, inciso II
normatiza que são deveres das partes, e de todos aqueles que participam do processo,
proceder com lealdade e boa-fé, entendida essa última como uma norma de conduta: a
boa-fé objetiva. Mas a ausência da boa-fé subjetiva também é repelida pelo CPC, ao tratar do
manifesto propósito protelatório, apto a permitir a antecipação dos efeitos da tutela nos moldes no inciso
II do artigo 273 do CPC28. Na práxis, são exatamente a lealdade e boa-fé os valores ausentes
na conduta das partes.
Quando demandante ou demandado – diante da certeza de que sua pretensão não
será tutelada – se valem com má-fé de instrumentos garantidores da ampla defesa para
protelar o andamento processual, além de inevitavelmente ceifar-se a celeridade jurisdicional, se coloca em risco a própria satisfação do jurisdicionado, diante da mora da tutela.
Nesse contexto, não se pode deixar de registrar o repúdio a inaceitável conduta estatal de
manifestar resistência injustificada a pretensões que – embora legítimas – não são satisfeitas
pelo simples animus do Estado em litigar, enquanto indivíduos, pessoas e cidadãos de boa-fé,
se vêem adstritos ao constrangimento de provocar o Juiz – aquele, de cognição arcaica e
obsoleta, apegado ao procedimentalismo – para solucionar o seu problema, de modo a
gerar desnecessária multiplicação de demandas contra o Estado29: mais um fator que atravanca a
celeridade da atividade jurisdicional. Mas não é só. Grande parcela dos particulares – de
modo lastimável – assimilou bem o lema do ente público de que protelar é necessário, e mais:
Vale registrar a pertinência do estudo científico realizado por Karina Denari Gomes de Mattos e Gelson Amaro de
Souza, que – pelo prisma evidenciado por José Roberto Nalini – e segundo análise da construção histórico-institucional da magistratura [...] pretende abordar o essencial papel do juiz na Reforma do Poder Judiciário e do atual sistema processual, valendo-se – comparativamente – dos três modelos de magistrado apresentado pelo pensador belga François Ost, sendo analisada como resultado dessa
mudança de postura do juiz, a sentença e seus aspectos lógicos. Vide: MATTOS, Karina Denari Gomes de; SOUZA,
Gelson Amaro de. O PAPEL DO JUIZ NA (DE)FORMALIZAÇÃO DO PROCESSO. in VI ENPEC – Encontro
Internacional de Produção Científica CESUMAR.
27
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria Geral do Direito Processual Civil e
Processo de Conhecimento. v.1. 49 ed. RIO DE JANEIRO: Forense, 2.008. p. 305.
28
DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil – Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. v.1. 11 ed. SALVADOR: Podium, 2.009. p. 46.
29
MELLO FILHO, José Celso. Algumas reflexões sobre a questão judiciária. In Revista do Advogado – Reforma do Judiciário. Ano XXIV, abril de 2.004, n.º 75. São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo, p. 45.
26
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25
em alguns casos encara-se a declaração da legitimidade da pretensão da outra parte – pelo
Poder Judiciário – como verdadeira derrota, que deve ser revista a qualquer custo pelas
instâncias superiores. Quando se instaura uma relação jurídica processual, demandante e
demandado – na maioria das lides postas em juízo – não possuem – ab initio – a convicção
quanto a procedência ou não de seus interesses, mas portam a certeza de que – diante de
resultado negativo – se valerão dos meios recursais para reformá-lo. Indaga-se: somente
o jurisdicionado é o culpado por tal ocorrência? Certamente não. O problema também
está nos operadores do direito que atuam pelos interesses das partes: os Advogados. Esses
muitas vezes constroem – nas mentes de seus clientes – posições jurídicas de vantagem
que inexistem no plano da realidade. E mais, crêem que o reconhecimento de seu trabalho
somente se dará caso obtenham a vitória da declaração judicial em consonância com os
interesses daqueles que contrataram seus serviços, quando uma conciliação poderia pacificar o problema, reduzir custos com a movimentação do processo, evitar a desgastante
litigância processual, e valorizar o trabalho dos advogados de ambas as partes, que conseguiriam obter a resolução do conflito. Mas esse é um problema de formação acadêmica,
já que – no Brasil – os mais de mil cursos de Direito não preparam seus alunos para a
pacificação de conflitos, e sim, para litigar perante o Poder Judiciário, alegando, contestando,
recorrendo, protelando, e se esquecendo da existência dos equivalentes jurisdicionais30, como a
auto-composição, a mediação e a arbitragem: meios legítimos que ainda são ignorados
por ignorantes que não conseguem abdicar do apego ao conflito, ao litígio, ao processo.
A prova dos benefícios dos equivalentes, como a arbitragem – exempli gratia – é a grande
utilização desse meio de resolução por grandes empresas, que tiveram a sensibilidade
– ainda que pela perspectiva do capital – de compreender que esse mecanismo – além de
econômico – é um meio célere de solucionar os conflitos que poderiam constituir verdadeiros óbices para o desenvolvimento de suas atividades empresariais caso fossem levados
para o Poder Judiciário. Infelizmente, muitos dos poucos cursos que foram agraciados com
selos de recomendação do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil sequer
oferecem em suas grades curriculares uma disciplina específica para a inclusão de importantes mecanismos – como a arbitragem, mediação, e conciliação – na formação dos futuros
operadores do direito, que absorvem tal assunto – quanto muito – em uma ou duas curtas
Conforme leciona Fredie Didier Júnior, os Equivalentes Jurisdicionais são as formas não-jurisdicionais de solução de conflitos.
São chamados de equivalentes exatamente porque, não sendo jurisdição, funcionam como técnica de tutela dos direitos, resolvendo conflitos
ou certificando situações jurídicas. [...] sendo os principais exemplos: autotutela, autocomposição, mediação e o julgamento de conflitos por
tribunais administrativos (solução estatal não jurisdicional de conflitos). Entretanto, o ilustre processualista baiano registra que não
encara como um equivalente jurisdicional a arbitragem (regulada pela lei n.º 9.307 de 1.996), entendendo que se trata de
exercício de jurisdição por autoridade não-estatal. Vide: DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil
– Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. v.1. 11 ed. SALVADOR: Podium, 2.009. p. 76-84. Em sentido contrário, não atribuindo a natureza jurisdicional para a arbitragem: MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do
Processo. São Paulo: RT, 2006, p.147 e seguintes.
30
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aulas, ministradas na disciplina de Direito Processual Civil: direcionada ao procedimentalismo. Na laudável lição de Ada Pellegrini Grinover,
[...] A pacificação social não é alcançada pela sentença, que se limita
a ditar autoritativamente a regra para o caso concreto; que, na grande
maioria dos casos, não é aceita de bom grado pelo vencido, o qual contra ele costuma insurgir-se com todos os meios na execução; e que, de
qualquer modo, se limita a solucionar a parcela da lide levada a juízo,
sem a possibilidade de pacificar a lide sociológica, em geral mais ampla,
da qual aquele emergiu, como simples ponta do iceberg31.
Destarte, é necessária – além da (des)formalização do processo – a (des)formalização das
controvérsias32, ou seja, se deve aviventar a utilização dos equivalentes, desobstruindo os
tribunais de causas que poderiam ser solucionadas no âmbito pré-processual, sendo essa
iniciativa – quando possível – uma decisão das partes, que são racionais o suficiente para
detectar se devem ou não formalizar perante o Poder Judiciário controvérsias que – se
submetidas a apreciação morosa daquele – terão mais chances de se transformarem em
conflitos de maior magnitude, sendo pouca probabilidade de resolução dos mesmos. É
necessária a construção de uma cultura que privilegie a resolução justa e extra-judicial dos
conflitos, e provocando a atuação do Estado-juiz apenas como uma ultima ratio.
4 Delineamentos conclusivos
Não é tarefa fácil chegar aos delineamentos conclusivos dessa exposição, tendo a
consciência de que ontem, hoje, e talvez por todo o sempre:
• O procedimento em contraditório será animado por relações jurídicas processuais
em que Juízes pouco se importam com as vidas e angústias dos que aguardam a
tão sonhada realização da justiça, concretizada pela decisão judicial: remédio para a
cura do Estado Patológico instaurado pelos conflitos, e que – muitas vezes – são óbices
não só a felicidade, como também a própria dignidade dos titulares de interesses
legítimos;
GRINOVER, Ada Pellegrini. Deformalização do processo e deformalização das controvérsias. Revista Inf. Legislativa. Ano 25, nº 97. Brasília: jan/mar, 1988. p. 206-207.
32
Ib idem. p. 206-207.
31
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27
• Que o Estado é indiferente quanto aos interesses que contrariem aos seus, independente de sua legitimidade ou não, assumindo o papel rechaçável de improbus
litigator33;
• E que alguma das partes – ou até mesmo ambas – sempre atuarão sem a lealdade
e boa-fé necessária não só nas relações processuais, mas em toda e qualquer relação
interpessoal.
Ex positis, não há como negar a necessidade de superação de um problema axiológico, uma mutação com um grau a mais de generalidade e abstração: uma mudança cultural,
que resgate os valores da justiça, lealdade, igualdade, confiança, fraternidade, cooperação. Talvez se
eles existissem em nossos ideais e se exteriorizassem em nossas condutas, não seria necessária qualquer reforma normativa, já que o erro pode estar em nossa interpretação do
código em desconformidade com a Constituição; na utilização dos instrumentos processuais – que já possuímos – sem a compreensão da magnitude de seu poder; e, até mesmo,
na nossa cultura litigiosa, que fecha os olhos para a resolução extra-judicial dos conflitos.
Diante de tanta morosidade e resistência em operar a mudança do status quo, a realização da justiça parece ser utópica, e a celeridade processual um sonho. Entretanto, embora estudiosos e jurisdicionados aclamem por rapidez, devemos ter cautela com toda e
qualquer busca desenfreada para que se atinja essa meta onírica, pois como bem evidencia
Miguel Reale Júnior, não há nada pior do que a injustiça célere. Aí reside a verdadeira
denegação da justiça34. Destarte, ainda que não se negue a existência de mazelas procedimentais em nosso sistema processual, é pertinente frisar: toda e qualquer alteração legislativa
– inclusive a elaboração de um novo Código de Processo Civil – será ofuscada pelo descompromisso do judicis, actoris et rei: os personagens que constroem o início, meio e fim
das histórias processuais. Se não realizarmos uma revolução em nossas mentalidades, uma
redefinição de nossos valores, nada mudará.
Valho-me de iluminada lição, deixada por Yumi Faraci, para encerrar essa explanação com o apelo de que a necessidade de mudança está dentro de nós. Essa jovem mineira
deixou-nos – na magnitude de suas palavras – o estímulo para superar todas as dificuldaMELLO FILHO, José Celso. Algumas reflexões sobre a questão judiciária. In Revista do Advogado – Reforma do Judiciário. Ano XXIV, abril de 2.004, n.º 75. São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo, p. 46. Em lição lúcida, Nelson
Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery discorrem que improbus litigator é aquele que se utiliza de procedimentos escusos com o
objetivo de vencer ou que, sabendo ser difícil ou impossível vencer, prolonga deliberadamente o andamento do processo, procrastinando o feito.
Arrematam os ilustrem processualistas com a assertiva de que tais condutas [...] são exemplos do descumprimento do dever de
probidade estampado no art. 14 do CPC. Vide: NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil
e Legislação Processual Extravagante em Vigor. São Paulo: RT, 1.996. pág. 248.
34
REALE JÚNIOR, Miguel. Valores fundamentais da reforma do Judiciário. In Revista do Advogado – Reforma do Judiciário.
Ano XXIV, abril de 2.004, n.º 75. São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo, p. 80.
33
28
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des que enfrentamos na busca pela concretização de nossos objetivos. Dizia ela: Contanto
que você faça o melhor que possa, tudo é possível. Coloque esse desafio em mente, e siga em frente! Ora,
se queremos uma atividade jurisdicional célere e justa, esse é o nosso desafio. Compete
a nós colocá-lo em nossas mentes e operar as mudanças necessárias para concretizá-los:
tarefa árdua, mas não impossível. Basta quereremos. A única certeza – incontestável – é
que na ausência de uma mutação axiológica dotada de um grau a mais de generalidade e
abstração, tudo continuará a ser conflitante, litigioso, ardiloso, moroso, injusto e utópico,
sendo inútil o iuris dictum.
5 Referência
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. v.1. 19 ed. rev. atual. RIO DE JANEIRO:
Lumen Juris, 2.009.
CINTRA, Antonio Carlos Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria
Geral do Processo. 13 ed. SÃO PAULO: Malheiros, 1.997.
DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil – Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento.
v.1. 11 ed. SALVADOR: Podium, 2.009.
GRINOVER, Ada Pellegrini. Deformalização do processo e deformalização das controvérsias. Revista Inf. Legislativa.
Ano 25, nº 97. Brasília: jan/mar, 1988.
MATTOS, Karina Denari Gomes de; SOUZA, Gelson Amaro de. O PAPEL DO JUIZ NA
(DE)FORMALIZAÇÃO DO PROCESSO. in VI ENPEC – Encontro Internacional de Produção Científica CESUMAR.
MELLO FILHO, José Celso. Algumas reflexões sobre a questão judiciária. In Revista do Advogado – Reforma do
Judiciário. Ano XXIV, abril de 2.004, n.º 75. São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo, p. 43.
NALINI, José Renato. Os três eixos da Reforma do Judiciário. Reforma do Judiciário. Ano XXIV, abril de 2.004,
n.º 75. São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo, p.68.
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil e Legislação Processual Extravagante em Vigor. São Paulo: RT, 1.996.
REALE JÚNIOR, Miguel. Valores fundamentais da reforma do Judiciário. In Revista do Advogado – Reforma do
Judiciário. Ano XXIV, abril de 2.004, n.º 75. São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo.
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil – Processo de Conhecimento. v.1, atualizado
por Maria Beatriz Amaral Santos Köhnen. 25 ed. rev. e atual. São Paulo: SARAIVA, 2.007.
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
29
SOUZA, Gelson Amaro de. A morosidade da Justiça atravanca o desenvolvimento do país – entrevista. In
Jornal da FAI – Faculdades Adamantinenses Integradas. Ano X, nº 92, Adamantina-SP – 2.009. página 05.
ISSN: 1806-8227.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria Geral do Direito Processual Civil e
Processo de Conhecimento. v.1. 49 ed. RIO DE JANEIRO: Forense, 2.008.
YARSHELL, Flávio Luiz. A Reforma do Judiciário e a promessa de “duração razoável do processo”. Reforma do Judiciário. Ano XXIV, abril de 2.004, n.º 75. São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo, p. 28.
30
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Aborto de anencéfalos sob a perspectiva do direito
fundamental à vida
Abby Ilharco Magalhães*
RESUMO:
Este artigo traz as principais controvérsias em torno do aborto de anencéfalos, passando
pela (in)definição da vida e da morte e pela legitimidade do Judiciário para decidir a questão. Através de soluções em outros ordenamentos e das possibilidades no Direito brasileiro, pretende mostrar que, ao contrário do que parece, os argumentos contra o aborto não
são somente de ordem moral ou religiosa. O objetivo não é trazer uma solução definitiva
para a problemática, mas propiciar argumentos e reflexões sobre o nebuloso assunto.
PALAVRAS-CHAVE: aborto, anencefalia, dignidade humana, direito à vida.
*
Acadêmica do 6º período da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
ABSTRACT:
This paper brings the main controversies around anencephalic abortion, such as the
(in)definition of life and death and also the courts’ legitimacy to decide such matter.
Through the solutions from other systems and the possibilities in Brazilian Law, it intends
to show that, contrary to what seems, the arguments against abortion are not purely moral
or religious arguments. The goal here is not offer a final solution to the problem, but raise
questions and new debates about such misty subject.
KEY-WORDS: abortion, anencephaly, human dignity, right to life.
32
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
1 Introdução ao tema
Tema assaz controverso no direito contemporâneo diz respeito à permissão ou proibição
do aborto de anencéfalos. Afirma-se haver um desacordo moral razoável em torno da questão, expressão utilizada pela filosofia moderna para designar que para o problema há soluções diametralmente opostas, porém igualmente aceitáveis sob o ponto de vista racional e argumentativo.
Antes de tudo, é necessário esclarecer o que é a anencefalia. A anomalia é popularmente conhecida como “ausência de cérebro”, o que não é de todo correto. Mais precisamente, ocorre falha no fechamento do tubo neural durante a formação embrionária, o
que acarreta a ausência dos hemisférios cerebrais e do córtex, restando apenas o tronco
encefálico. A doença importa na falta das funções superiores do sistema nervoso central,
em especial, na inexistência da consciência e da cognição1, sem afetar funções orgânicas
como a respiração ou os batimentos cardíacos. Até o momento, a Medicina afirma não ser
possível a reversão da anencefalia.
2 A problemática do início da vida
Parte da polêmica em torno da anencefalia está ligada à indefinição do início da
vida. Sendo improvável o consenso, inúmeras correntes disputam o posto de “entendimento mais adequado”, partindo dos mais variados critérios.
Para a corrente concepcionista2, a vida tem início quando da concepção, isto é, da
fusão dos gametas feminino e masculino, e goza desde então da proteção constitucional.
São invocados a favor desse posicionamento diversos dispositivos jurídicos3. Primeiramente, a Constituição Federal, que, ao erigir a fundamento da República a dignidade da
pessoa humana (art. 1º, III), garante o direito à vida sem fixar um termo inicial. Outro
importante respaldo jurídico é o Pacto de São José da Costa Rica4, do qual o Brasil é signatário, e segundo o qual pessoa é todo o ser humano e a vida será tutelada por lei desde a concepção.
Luís Roberto Barroso. Gestação de Fetos Anencefálicos e Pesquisas com Células-Tronco: Dois Temas Acerca da Vida e da Dignidade
na Constituição. Pg.8 a 9.
2
A corrente em questão reflete o posicionamento dos embriologistas Moore e Persaud, segundo os quais o zigoto é
organismo vivo no qual já está fixada toda a base do indivíduo adulto.
3
Cite-se, p.ex., a Declaração Universal dos Direitos da Criança, em seu art. 1º, in verbis: toda criança necessita de proteção
e cuidados especiais, inclusive a proteção legal, tanto antes quanto após seu nascimento.
Também a lei federal nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), que afirma em seu art. 7º: a criança e o adolescente tem direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio
e harmonioso, em condições dignas de existência. - grifo nosso4
Artigo 1º - Obrigação de respeitar os direitos
2. Para efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano.
Artigo 4º - Direito à vida
1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o
momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.
1
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
33
Nesse mesmo sentido, o art. 2º do Código Civil de 2002 proclama que a personalidade começa com o nascimento com vida, mas a lei põe a salvo os direitos do
nascituro desde a concepção. A redação do dispositivo é confusa e não esclarece se
o nascituro possui direito à vida ou se existiria um dever objetivo de preservar-lhe
a vida sem que haja esse correspondente direito. Só pode ser sujeito de direitos,
afinal, quem tem personalidade, e o Código Civil afirma que a personalidade se adquire com o nascimento com vida. Independentemente do posicionamento que se
adote, contudo, é forçoso reconhecer que o problema do dispositivo está na definição de pessoa e não no conceito de vida. O Direito optou por resignificar a palavra
pessoa, o que denota que existe um conceito jurídico de pessoa, mas não um conceito
jurídico de vida – esta pautada em critérios biológicos. O Código Civil, então, pode
não ter atribuído personalidade ao nascituro, mas reconhece-lhe a vida ao garantir
sua proteção legal.
Corrente diversa defende que a vida existe a partir da nidação, ou seja, da fixação
do embrião no útero feminino, o que ocorre por volta do 6º ou 7º dia de gestação. Outros
entendem o começo da vida como sendo o 14º dia a partir da concepção, tomando como
critério o início da formação dos tubos neurais. Tal corrente é criticada porque a formação
dos tubos neurais coincide com a diferenciação celular. Assim, fixar o início da vida no
14º dia seria uma maneira fácil e conveniente de abrir portas para as pesquisas com células
embrionárias totipotentes. Para uma quarta e menos expressiva corrente, a vida se inicia
quando o feto tem condições de sobreviver autonomamente, o que se dá quase no fim da
gestação. Além de inúmeras outras correntes intermediárias entre essas quatro principais,
há ainda quem se esquiva da controvérsia argumentando que não caberia ao homem ou
tampouco ao Direito decidir questão de tamanha complexidade.
3 O Supremo Tribunal Federal, o Código Penal Brasileiro e a ADPF Nº 54
O Supremo Tribunal Federal, na ADI 3510 – referente à pesquisa com célulastronco – não chegou a entrar no mérito da definição da vida, mas aparentemente afastou a corrente concepcionista ao permitir a pesquisa com células-tronco embrionárias,
decorrentes da fertilização in vitro, desde que inviáveis e com o consentimento dos
respectivos genitores. É necessário ressaltar que na ocasião o STF tratou de embriões
absolutamente inviáveis, os quais seriam simplesmente descartados caso não fossem
destinados à pesquisa.
A questão do aborto é certamente mais tormentosa e ainda não há a respeito um
posicionamento claro do Supremo Tribunal Federal. Tramita atualmente no referido
Tribunal a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, que objetiva, em
síntese, afastar a reprimenda criminal sobre o aborto de feto anencefálico, o qual, sem
qualquer perspectiva de vida fora do útero da mãe, não seria objeto de tutela da lei penal.
34
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
A ADPF 54, ajuizada em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde
– CNTS, pede pela interpretação conforme a Constituição5, tendo em vista a dignidade
da pessoa humana (art. 1º, IV, CF/88) e o direito fundamental à saúde (art. 6, caput e art.
196, CF/88)6. O pedido é no sentido de que seja garantido à mulher o direito subjetivo
de abortar na hipótese de o feto ter sido diagnosticado com a anencefalia por médico
habilitado.
Enquanto não se pronuncia o Supremo, cabe indagar qual pode ser o alcance da
decisão, tendo em vista a restrita legitimidade do Poder Judiciário. Todo o cuidado deve
ser tomado para que o Supremo não utilize a interpretação constitucional para arrogar
para si competências legislativas, como o fez a Suprema Corte Americana no lendário
caso Roe x Wade7. Nosso legislador penal elaborou taxativamente as hipóteses de aborto
escusável, e se estas hipóteses porventura se tornaram desatualizadas ou insuficientes
diante do surgimento de novos fatos sociais, caberia tão somente ao Legislativo a iniciativa
de ampliá-las8.
Em sua redação atual, afirma o Código Penal Brasileiro em que circunstâncias o
aborto não é punido9: em primeiro lugar, o aborto necessário, que se configura quando do
alto risco da gravidez somado à inexistência de outro meio de salvar a gestante; a seguir,
o dito aborto moral, na hipótese de a gravidez ser resultante de estupro. A vida continua
Pede a ADPF 54 que o Supremo declare inconstitucional, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, a interpretação
dos dispositivos penais como óbices ao aborto de feto anencéfalo. A gestante teria o direito de abortar independentemente de autorização judicial prévia.
6
A petição inicial alega também o princípio da legalidade (art. 5º, II, CF/88) e a inexistência de norma que proíbe a
antecipação terapêutica do parto. Esquecem-se da norma penal que proíbe o aborto...
7
Em 1973, no caso Roe versus Wade, a Suprema Corte americana permitiu o aborto nos EUA. Por sete votos a dois, ficou
declarada a inconstitucionalidade da lei do Texas que proibia o aborto. Aproveitou-se a ocasião para declarar inconstitucional qualquer lei dos demais estados-membros que proibisse o aborto até o sexto mês de gestação. O precedente,
entretanto, não pôs fim à discussão no país, que até hoje é dividido entre as correntes Pro Life e Pro Choice (pró-vida ou próescolha). Roberto Martins sintetiza os argumentos utilizados pela Corte à época: 1) o nascituro não é pessoa e pertence
à sua mãe; 2) não é pessoa perante a lei, mesmo que seja tido por ser humano; 3) só adquire personalidade ao nascer;
4) quem julgar o aborto mau, não o faça, mas não deve impor essa forma de pensar aos outros; 5) a mulher tem direito
de fazer o que quiser com o seu corpo; 6) é melhor o aborto do que deixar uma criança malformada enfrentar a vida.
(MARTINS, Roberto, Aborto no Direito Comparado, in A Vida dos Direitos Humanos, Sérgio Antônio Fabris Editor,
1999).
8
Cabe indagar, ainda, se estaria toda a discussão sepultada com uma simples “canetada” legislativa que descriminasse o
aborto de anencéfalos. Certamente caberiam críticas à medida do legislador no sentido de que a vida é valor principal,
sem o qual não faria sentido tutelar outros valores. Entretanto, como o Direito Penal trabalha com a legalidade estrita,
é certo que ninguém mais poderia ser punido pela conduta expressamente permitida pela lei penal, tendo em vista a
proibição da analogia in malam partem.
9
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu
representante legal.
5
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
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tutelada pelas normas penais que incriminam o aborto10, mas o próprio ordenamento
informa quando o aborto será permitido. Nessas hipóteses, o legislador já fez uma ponderação ex ante e concluiu pelo sacrifício da vida do feto em nome de valores maiores. No
caso do aborto necessário, opta-se pela prevalência da vida da mãe. Já no caso do aborto
moral, a mulher não assume o risco da gravidez porque o ato sexual não foi consentido.
Nessa situação, não há como obrigá-la a assumir a responsabilidade de um ato que não
resultou da sua livre vontade.
Através da mesma técnica de ponderação de valores, o direito autoriza intervenções
até mais graves no direito à vida: o homicídio é crime, mas é lícito que um homem retire
a vida de outro homem, p.ex., se estiver amparado pela legítima defesa11.
É nítido que a vida é um valor primordial, como confirma a tipificação dos crimes
contra a vida, que inauguram a parte especial do Código Penal Brasileiro. Essa análise do
nosso atual diploma repressivo revela que a vida não só é um bem penalmente tutelado,
como é o centro da tutela do ordenamento jurídico. Uma retrospectiva histórica mostra
que os Códigos da Idade Média reputavam como mais importantes os crimes relativos às
práticas contra a religião. Com a formação dos Estados Nacionais, ganham destaque os
crimes contra a soberania estatal e contra a organização do Estado. Os Códigos contemporâneos, por sua vez, revelam Estados humanistas que tutelam em primeiro plano a vida
e a dignidade humanas.
A ADPF 54 pede pela inclusão do aborto de feto anencefálico como terceira hipótese de não incriminação do aborto. Argumenta-se que o feto nessas condições não apresenta qualquer chance de sobrevida extra-uterina e que o aborto seria apenas a antecipação terapêutica do parto. O raciocínio nesse sentido leva à conclusão de que a conduta em
tela seria atípica, em razão do critério da morte cerebral: se o feto anencefálico está morto
de acordo com esse critério, então não há crime de aborto por impropriedade absoluta do
objeto (“não se pode matar quem já está morto”). Afirma-se ainda que a não realização
do aborto traz tormento à gestante, obrigada a suportar nove meses de sofrimento físico
e moral, ciente de que sua criança não teria perspectiva de sobrevivência.
O primeiro ponto a ser esclarecido concerne à denominada antecipação terapêutica do
parto. Pois bem, a antecipação terapêutica do parto é um tratamento médico adequado
para situações nas quais não há outro meio de salvar a mãe senão pela retirada do feto
antes do tempo. Ora, tal hipótese já está abarcada pelo art. 128, I, CP (aborto necessário)
e não se aplica aos casos de anencefalia, a menos que haja o real perigo de vida para a
grávida. Assim, é possível falar em aborto terapêutico se, porventura, a gravidez de feto
Art. 124 a 127, CP
Art. 121 c/c art. 23 e art. 25, CP. Justifica-se a permissão pelo fato de o Estado não se ter feito presente naquele
momento.
10
11
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Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
anencefálico vier a comprometer a saúde da gestante de tal forma que não haja meios para
salvá-la senão o aborto. Ocorre que tal conduta já está abrangida pelo aborto necessário,
não havendo motivos para maiores controvérsias.
Já a alegação da atipicidade da conduta é condicionada à validade da definição de
morte pelo critério da morte cerebral. O critério tem aceitação ampla nos mais diversos
ordenamentos, mas isso não significa que é isento de contradições e críticas, como mostrarei no próximo tópico.
Outro ponto digno de nota é o argumento que a dignidade da gestante fica comprometida ao carregar um feto anômalo. Esse argumento é válido apenas em termos. Não
há dúvida de que o diagnóstico da anencefalia fetal deixa a mãe abalada psicologicamente,
assim como fica abalada a gestante que descobre que seu filho é portador da síndrome de
down, ou que nascerá sem um membro, etc. Em nenhuma dessas hipóteses estaria a mãe
autorizada a abortar. Ainda que estivesse, o aborto não faria desaparecer seu sofrimento
ou sua angústia. Pelo contrário: permaneceria viva a lembrança daquele que não chegou a
nascer, e a mulher se perguntaria constantemente o que teria acontecido caso não tivesse
abortado.
4 A problemática da definição da morte
Além da tormentosa questão quanto ao início da vida, outro problema que parece
ser intransponível é o critério de aferição de morte. À pergunta “quando alguém está morto?”
o mundo sempre teve a resposta “quando morre!”. E a morte ocorria quando da constatação de que todos os órgãos e funções paravam de funcionar (critério da parada cardiorrespiratória).
Milênios de certeza foram desconstruídos com o mundialmente conhecido relatório do Ad Hoc Committee of the Harvard Medical School to Examine the Definition of Brain Death,
em 1968, a partir do qual o critério para a aferição da morte convencionalmente passou
a ser o da morte encefálica. O comitê – composto por dez médicos, um advogado, um
historiador e um teólogo – definiu o coma irreversível como novo critério de morte, sob o
argumento de que esse estado de inconsciência impõe sofrimento ao paciente e à família.
Somado a isso, a ocupação de leitos hospitalares que poderiam servir para outras pessoas e a impossibilidade de transplantar órgãos enquanto o indivíduo não fosse declarado
morto.
Em suma, o Comitê de Harvard concluiu que a morte se dá com a cessação da atividade do córtex cerebral, apesar de o indivíduo nessas condições apresentar ativas outras
funções, como as respiratórias e hormonais. Os argumentos que levaram à conclusão merecem maior reflexão. Primeiramente, se se reconhece que o paciente está morto, não há
como falar que lhe é imposta qualquer espécie de sofrimento. Em segundo lugar, é preciso
perceber que o critério da morte cerebral é pautado na conveniência, uma vez que tem por
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
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objetivo declarado esvaziar os leitos hospitalares e aumentar o número de transplantes.
Atualmente, não é possível reverter o quadro clínico de um paciente com morte cerebral.
Daí se depreende duas coisas: a reversão pode algum dia ser possível; enquanto isso, a
impossibilidade não significará autorização para matar pacientes nesse estado. Estamos
tratando da vida, e esta nunca pode ser manipulada de acordo com a conveniência.
Não obstante, o critério da morte encefálica foi recepcionado por ordenamentos do
mundo todo, incluindo o ordenamento brasileiro, com a Lei de Transplantes12. Evidente
que tal critério dá prevalência à vida com consciência em detrimento da vida como valor
em si. Os fetos com a anomalia anencefálica são capazes de respirar por conta própria
e alguns conseguem continuar a respirar sem ajuda de aparelhos também fora do útero.
O tronco cerebral lhes permite a respiração, os batimentos cardíacos e também reflexos
como o piscar de olhos e a deglutição. Asseverar categoricamente que não se trata de
forma de vida é uma afirmação que assusta. A sociedade dificilmente se acostumará com
o fato de um “morto” respirar. Além do mais, a medicina moderna aponta que existem diferentes graus de anencefalia, o que permite a alguns de seus portadores uma consciência
primitiva13.
Não há como falar da dignidade da pessoa humana sem se recordar do pertinente
ensinamento de Immanuel Kant14, para quem o homem é fim em si mesmo em razão
da sua autonomia enquanto ser racional, e jamais instrumento para a realização de fins
alheios. Podemos ir um pouco além de Kant: a vida não requer adjetivos ou qualificativos
– como a consciência ou a racionalidade, p.ex. – mas simplesmente se basta enquanto si15.
Qualquer ação tendente a coisificar ou instrumentalizar o homem não pode ser tolerada.
5 Conclusão
Quando se trata de um tema tão controverso, é preciso se afastar de uma visão
meramente objetiva e simplista dos fatos. Qualquer posicionamento adotado deve ser
antecedido de séria reflexão acerca de inúmeros pontos.
No que tange à valoração da vida e da liberdade, não há um valor abstratamente
Lei nº 9.434/97 dispõe sobre a retirada de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento.
13
Candace Pert, PhD: “consciousness is like light (…) emotions exist both as energy and matter, in the vibrating receptors on every cell in the body”. A neurocientista mostra que a consciência não se resume ao cérebro, mas se faz presente
em todo o corpo, através de neuropeptídios que conectam os sistemas imunológico, nervoso e endócrino.
No mesmo sentido já se pronunciou o Comitê de Bioética do Governo Italiano.
Ainda sobre o tema, vale à pena conferir: LEWIN, Roger. Is Your Brain Really Necessary?
14
KANT, Immanuel – “Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos”; tradução de Leopoldo Holzbach
– São Paulo: Martin Claret, 2004.
15
A questão foi levantada na ADPF 54, pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB.
12
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Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
preponderante. Tribunais que concederam a permissão para o aborto tem se esquivado
da problemática. Já se afirmou que a decisão de abortar não é cabida ao Estado e que ao
indivíduo cabe se defrontar com as consequências de suas próprias escolhas. Em primeiro lugar, merece consideração que os neurocientistas mais conceituados
do planeta revelam que o cérebro não é imutável, como sempre se pensou, mas apresenta
a neuroplasticidade – característica que permite a reprogramação cerebral. Pacientes que
tiveram lesões cerebrais são capazes de recuperar os danos sofridos porque a parte não
afetada do cérebro é capaz de assumir funções típicas de outra área cerebral16. E por que
isso é relevante? É sabido que o Direito tem a função de regular a coletividade e, para
tanto, deve ficar constantemente atento às mudanças sociais e também à evolução das
demais ciências que lhe são conectadas. Se o Direito resolve permitir o aborto de fetos
anencéfalos, tem que estar ciente de todas as implicações dessa opção – p.ex., o risco do
aborto resultante de um falso diagnóstico ou o fato de a reversão da anencefalia ser possível num futuro muito breve.
É consensual que o feto portador da anencefalia tem expectativa de vida reduzida
– pelo menos naqueles casos de anencefalia mais grave. Por outro lado, o ordenamento
tutela a vida independentemente de qualquer estatística de duração, fato que não pode ser
esquecido. O feto anencefálico é merecedor de proteção jurídica assim como qualquer
outro feto, uma vez que o Direito, sob pena de fortes incoerências, não pode tutelar a
vida apenas por sua viabilidade. O contrário poderia servir de irreversível precedente para
outras práticas repugnantes, a exemplo do aborto eugênico17.
Aqueles que afirmam que a morte do anencéfalo é inevitável e certa se esquecem de
que a morte de qualquer ser humano é inevitável e certa, e de que nem por isso o Direito
deixa de tutelar individualmente a vida. Seria somente a vida do ser “útil” que deveria
ser guarnecida de proteção legal? E afinal, quem é útil? A melhor interpretação do nosso
ordenamento é aquela que conclui pela tutela a vida em sua plenitude, sem confundir vida
com vida consciente ou com qualquer outra forma rotulada de vida.
O neurocientista Jordan Grafman traz o relato surpreendente de Michelle, uma menina que nasceu com metade do cérebro (faltava-lhe todo o hemisfério esquerdo). Nasceu no interior dos EUA e só foi diagnosticada na infância. Já adulta,
conseguia levar uma vida normal: andava e comia sozinha; desenvolvia conversas fluentemente e trabalhava. Grafman
explica que o hemisfério direito do cérebro foi treinado para assumir funções do hemisfério esquerdo: o cérebro é capaz
de realizar funções por vias alternativas.
17
A eugenia humana é a seleção artificial do ser humano com o fim de eliminar características indesejáveis através da
manipulação genética. O tema requer a consideração de inúmeros questionamentos éticos, principalmente depois do
nazi-fascismo e da ideologia da pureza racial. Permitir o aborto eugênico sob pretexto de “melhoramento genético”
seria também aclamar a discriminação e a eliminação da diversidade, seja esta estética, ética, religiosa, sexual, econômica
ou racial, o que é absolutamente inaceitável em face dos postulados fundamentais do Estado Democrático de Direito.
16
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
39
Referência:
AD HOC COMMITTEE OF THE HARVARD SCHOOL. A Definition of Irreversible Coma: report of the Ad
Hoc Committee of the Harvard School to Examine the Definition of Brain Death. Journal of the American Medical
Association, Chicago, v. 205, n. 337, p. 340, 1968.
BACH-Y-RITA, Paul. Brain Mechanisms in Sensory Substitution. New York: Adademic, 1972.
BACH-Y-RITA, Paul: Nonsynaptic Diffusion Neurotransmission and Late Brain Reorganization. New York: Demos,
1995.
BEHE, Michael. A Caixa Preta de Darwin. O Desafio da Bioquímica à Teoria da Evolução. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1997.
CAMARGO, Marcelo Novelino. Leituras Complementares de Direito Constitucional. Editora Jus Podium, 2002.
Capítulo VII: Gestação de Fetos Anencefálicos e Pesquisas com Células-Tronco: Dois Temas Acerca da Vida e da Dignidade na Constituição - por Luís Roberto Barroso.
DOIDGE, Norman. The Brain That Changes itself: stories of personal triumph from the frontiers of brain science. New
York, NY: Viking, 2007.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. Tradução de Leopoldo Holzbach
– São Paulo: Martin Claret, 2004.
LEVIN, Harvey S.; GRAFMAN, Jordan. Cerebral Reorganization of Function after Brain Damage. Oxford:
Oxford University Press: 2000.
LEWIN, Roger. Is Your Brain Really Necessary? Science, 12 Dec. 1980: 1232-1234.
MARGULIS, Lynn, SAGAN, D. O Que é Vida? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
MARTINS, Roberto. Aborto no Direito Comparado. A Vida dos Direitos Humanos. Sérgio Antônio Fabris Editor,
1999
MENDES, Gilmar Ferreira. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental – Comentários à Lei n. 9.882, de
03.12.1999. São Paulo: Saraiva, 2007.
MOORE, Keith L. e PERSAUD, T.V.N. Embriologia Clínica. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2000.
SINGER, PETER. Repensar la Vida y la Muerte. El Derumbe de Nuestra Ética Tradicional. Bacelona, Paidós,
1997.
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Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
Democracia e Segurança Cidadã na América Latina:
uma analise das políticas de segurança na
Colômbia e no Chile
Thiago Augusto Schmidt de Melo*
ResumO:
Sobre a égide da democracia e da segurança cidadã será trabalhada a segurança no que tange a busca por um futuro em comum, para que haja maiores investimentos na segurança
do cidadão. Este artigo buscará desenvolver uma análise de dados abordando a segurança
dos cidadãos na América Latina, à luz de países como a Colômbia e o Chile. A escolha
de tais países deve-se ao fato de que estes apresentam indicadores de violência em níveis
que merecem destaque, sendo que: o primeiro é considerado o mais violento da América
Latina enquanto o segundo o mais pacífico, de acordo com o estudo da Global Peace Index
(GPI), de 2008. Serão vistos políticas e programas de segurança cidadã, tendo como base
a Declaração Sobre Segurança nas Américas, da OEA, e uma pesquisa feita a partir do
Center for Latin American Studies (CLAS) em parceria com a Georgetown University. Também
serão analisados os pontos conflitantes e convergentes de programas desses dois países
desde o início do século XXI, como os programas governamentais “Estratégia Nacional
de Seguridad Pública 2006 – 2010: Sumate por um Chile más Seguro”, do governo chileno, e
“Política de Consolidacion de la Seguridad Democrática”, do governo colombiano. A partir dessa
análise, o foco passará para as possibilidades da resolução de conflitos e amenização da
violência a partir de medidas já existentes e que surtiram efeito. Com isso, esperara-se que
os programas analisados, que tiveram maiores resultados no combate à violência, passem
a servir como modelo para outros países da América Latina para a resolução de problemas relacionados à segurança cidadã, respeitando sempre as peculiaridades de cada um.
Palavras-chave: Violência, América Latina, Chile, Colômbia, Políticas de segurança cidadã.
Graduando em Administração de Empresas, cursando o 9º período, pela Universidade Federal de Lavras; Graduando
em Direito, cursando o 6º período, pela Universidade Federal de Ouro Preto; Pesquisador-Extensionista do Núcleo
de Direitos Humanos (NDH) da UFOP e do projeto de extensão “Incorporação imobiliária: uma análise do mercado
imobiliário ouropretano”; bolsista do CNPq.
*
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
Abstract:
Under the support of democracy and citizenship security, the matter of security related
to the pursuit of a common future is going to be studied in order to magnify investments
in this area. This article is going to develop an analysis of some citizenship security statistics in Latin America, focusing on two countries: Colombia and Chile. The reason why
these countries were chosen is because they have some violence indicators that deserve
special attention: the first is considered to be the most violent country in Latin America,
as long as the second is seen as the most pacific one, according to Global Peace Index
(GPI), 2008. Policies and citizenship security programs are going to be studied, based on
the Declaration on Security in the Americas, from Organization of American States, and a
research form the Center for Latin American Studies (CLAS) and Georgetown University.
Some convergent and conflictive points between the programs developed by each country is also going to be analyzed since the begging of the XXI century, like the following
governmental programs: “Estratégia Nacional de Seguridad Pública 2006 – 2010: Sumate
por um Chile más Seguro”, from Chilean government, and “Política de Consolidacion de
la Seguridad Democrática”, from Colombian government. Starting from that, the main
point to be studied is going to be the conflict resolution possibilities and ways to mitigate
violence, looking to what has already been successfully done. This could be worth-valuing
as a way to build a benchmark for policies related to the fight against violence, to other
Latin American countries which have similar problems, taking into account each country
peculiarities.
Keywords: Violence, Latin America, Chile, Colombia, Citizen security policies.
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Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
Lista de Siglas
OEA – Organização dos Estados Americanos
GPI – Global Peace Index
DSA – Declaração sobre Segurança nas Américas
PCSD – Política de Consolidación de La Seguridad Democrática
GAI – Grupos Armados Ilegais
FARC – Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia
ELN – Exército de Libertação Nacional
ENSP – Estrategia Nacional de Seguridad Pública
PNSC – Política Nacional de Seguridad Ciudadana
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
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1 Introdução
A América Latina enfrenta problemas com a segurança e com o crime organizado.
O narcotráfico, que engloba a criminalidade infanto-juvenil, a corrupção e as facções criminosas é um problema que aflige muitos desses países transcendendo fronteiras.
A partir dessa problemática, será feita uma análise das políticas de dois países que
representam a América Latina em seus extremos quanto se trata de segurança: a Colômbia e o Chile. Tais políticas serão trabalhadas e analisadas para que se possa ter uma visão
sobre a existência de similaridades e pontos comuns.
Após essa análise, buscar-se-á saber o porquê da diferença existente em ambos
países, quando se trata de violência e qual seria o caminho para sanar tais diferenças, pois
enquanto o Chile é considerado o mais pacífico da América Latina, a Colômbia é considerado o país mais violento, segundo levantamentos da Global Peace Index.
2 Democracia e Segurança Cidadã
A busca pela democracia é um objetivo comum e defendido por tratados internacionais, como a Carta Democrática Interamericana que diz “que a democracia representativa é indispensável para a estabilidade, a paz e o desenvolvimento da região, e que um
dos propósitos da OEA é promover e consolidar a democracia representativa, respeitado
o princípio da não-intervenção.” Tendo em vista a amplitude do conceito de democracia
ela passa a ser um “meio e instrumento de realização de valores essenciais de convivência
humana, que se traduzem basicamente nos direitos fundamentais do homem” (SILVA,
2001: 129-130). A partir disso, pode-se concluir que ao se falar em um país democrático,
consequentemente, se estará falando de um país que busca a segurança dos seus cidadãos
e a paz.
A presença da violência e da criminalidade em um Estado tem impactos diretos
na sociedade. A violência afeta de maneira direta a credibilidade do Estado e de suas
instituições, aumenta a segregação social, atinge a economia, aumenta a insegurança da
população, fere os Direitos Humanos, ou seja, coloca em risco preceitos de um Estado
Democrático. Vale ressaltar que o conceito de violência trabalhado é um conceito amplo
e expressivo, que abarca vários segmentos e camadas sociais. É a partir dessa visão que se
deve analisá-la.
A violência na América Latina é algo real e presente, que merece ser debatido e trabalhado, pois envolve diretamente a vida de milhões de pessoas. O terrorismo, o narcotráfico, que engloba a criminalidade infato-juvenil, a corrupção e as facções criminosas, são
problemas que transcendem fronteiras e causam insegurança à população. Dessa forma, a
busca pela segurança é algo sempre a se alcançar pelos países latino-americanos, tendo em
44
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
vista que a América Latina, numa perspectiva global, apresenta índices de violência e criminalidade que merecem destaque. No ranking geral dos 144 países analisados em 2009,
pela Global Peace Index (GPI), 23 são latino-americanos. Desses, o Chile é o que aparece
mais bem colocado, na 20º posição, contudo,15 estão abaixo da 70º posição, sendo que
Haiti, Venezuela e Colômbia ocupam a 116º, 120º e 130º posição, respectivamente.
Para tentar amenizar o problema com a segurança, em 28 de outubro de 2003, na
Cidade do México, foi aprovada pela Organização dos Estados Americanos a Declaração
sobre Segurança nas Américas (DSA). Tendo em vista a promoção e o fortalecimento da
paz no hemisfério, a Declaração reconhece a multidimensionalidade que envolve a busca
pela segurança, além das ameaças a ela, que tem um caráter complexo que envolve aspectos sociais, econômicos, políticos e ambientais.
Com a aprovação da DSA a busca pela segurança ganhou uma nova diretriz e serve como texto base para a criação de leis, projetos, programas e políticas públicas que
envolvam esse tema, como as que serão trabalhadas mais adiante. A Declaração leva em
consideração a individualidade de cada país, além de contribuir “para a consolidação da
paz, para o desenvolvimento integral e para a justiça social e baseia-se em valores democráticos, no respeito, promoção e defesa dos direitos humanos, na solidariedade, na cooperação e no respeito à soberania nacional”.
O problema com a segurança na América Latina passa a ser visto sobre uma nova
perspectiva, em que ameaças comuns e novas ameaças à segurança são trabalhadas à luz
dessa declaração.
Quando se fala em Segurança Cidadã, deve-se levar em consideração a amplitude
do tema e o que ele envolve, levando em consideração o conceito de cidadania e o respeito aos Direitos Humanos. A questão da segurança vai muito além do poder de polícia
que o Estado exerce sobre a população. Ela engloba, dentre vários fatores, a efetivação da
cidadania, o acesso à informação, a inclusão tecnológica, uma educação de qualidade e a
busca pela paz. E quando se fala em paz, a própria DSA prediz que ela “é um valor e um
princípio em si e baseia-se na democracia, na justiça, no respeito aos direitos humanos,
na solidariedade e no respeito ao Direito Internacional.” Com isso, pode-se dizer que a
segurança envolve uma série de direitos que buscam consolidar uma condição de vida
mínima para o ser humano e o desenvolvimento dos Estados.
À luz desses conceitos sucintos de democracia e segurança, será trabalhada a segurança cidadã na América Latina, que envolve aspectos complexos e individuais de cada
país, quando se trata de sua análise. Para isso, serão analisadas de forma comparada políticas públicas do Chile e da Colômbia, com o intuito de termos uma visão mais detalhada
da segurança em dois importantes países da América do Sul, para que se tenha uma base
para futuros estudos. A escolha de tais países se deve ao fato das respectivas posições, já
ditas, no ranking da Global Peace Index. Enquanto o Chile desponta na primeira colocação (20ª no mundo) entre os países latino-americanos, a Colômbia está em último lugar
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
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(130ª posição no mundo). Deve-se lembrar que dados estatísticos estão sujeitos à falhas e
nem sempre correspondem com a realidade. Afinal, cada país apresenta suas peculiaridades com diferenças sociais, culturais, étnicas e políticas, de cunho interno e externo. Um
índice global, com os mesmos parâmetros de avaliação para todos os países, irá apresentar
discrepâncias com a situação real de cada um e isso deve ser levado em consideração para
sua análise. Contudo, levando em consideração as instituições de ensino superior que estão por trás desse estudo, como a Universidade de Sydney, a Universidade de Londres e a
Universidade de Uppsala, e a ampla abordagem dos dados trabalhados pelo GPI, acreditase que a posição desses países no ranking, se não corresponder à realidade, ao menos se
aproxima da mesma.
Esse estudo comparativo, levando em consideração as diferenças existentes entre o
Chile e a Colômbia, respeitando cada uma delas, enfatiza o que a Declaração sobre Segurança nas Américas destaca:
“Cada Estado tem o direito soberano de identificar suas próprias prioridades nacionais de segurança e definir as estratégias, planos e ações
para fazer frente às ameaças à sua segurança, em conformidade com
seu ordenamento jurídico e com pleno respeito do Direito Internacional e das normas e princípios da Carta das Nações Unidas e da Carta
da OEA.”
3 Políticas Públicas de Segurança
As políticas públicas que buscam efetivar a segurança são de fundamental importância para o alcance da mesma, pois o Estado é o ente principal no combate a violência
e a criminalidade. Uma política pública de segurança pode ser o início, ou a concretização, de um Estado Democrático em que a segurança esteja presente de forma efetiva e
concreta. Tais políticas, “contribuem para aumentar a estabilidade, salvaguardar a paz e a
segurança hemisférica e internacional e consolidar a democracia”, segundo a DSA. Dessa
forma, analisaremos as duas atuais políticas públicas, cujo foco principal é a segurança,
da Colômbia e do Chile, destacando seus pontos principais. Tais políticas são: “Política de
Consolidación de La Seguridad Democrática”, do governo da Colômbia; e “Política Nacional de
Seguridad Ciudadana”, do governo chileno, que culmina na “Estrategia Nacional de Seguridad
Pública.”
3.1 Política de Consolidación de La Seguridad Democrática (PCSD)
A situação da Colômbia no âmbito mundial e sobretudo latino americano, no que
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Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
tange a segurança, é delicada. Os índices que abordam a violência, o terrorismo e o narcotráfico são alarmantes. Devido a isso, o objetivo do atual governo do presidente Álvaro
Uribe Vélez, desde sua posse, tem sido melhorar a segurança. Nas palavras do ex-Ministro
da Defesa, presente no início da PCSD, Juan Manuel Santos: “El objetivo fundamental del
gobierno del presidente Uribe ha sido, desde el primer día, avanzar hacia una Colombia más segura, libre
de las amenazas que atentan contra la seguridad de los ciudadanos (...)”.
A Política de Consolidación de La Seguridad Democrática foi uma plano desenvolvido pelo
Ministério da Defesa da Colômbia, na gestão de governo 2006 – 2010, tendo como base
a Política de Defensa y Seguridad Democrática, elaborada no primeira gestão de Uribe, 2002
– 2006. Essa política, segundo o governo, obteve resultados contundentes diminuindo de
forma expressiva os números de homicídios em 40%, o número de seqüestros em 83% e
de atentados terroristas em 61%.
Apesar dos resultados positivos do plano da primeira gestão, novos paradigmas
sociais e ameaças à segurança surgiram. Dessa forma, o governo colombiano viu-se numa
situação que seria preciso elaborar um novo plano de segurança para enfrentar essas novas
necessidades. Como enfatiza a DSA:
“As novas ameaças, preocupações e outros desafios à segurança hemisférica são problemas intersetoriais que requerem respostas de aspectos
múltiplos por parte de diversas organizações nacionais e, em alguns casos, associações entre os governos, o setor privado e a sociedade civil,
todos atuando de forma apropriada em conformidade com as normas
e princípios democráticos e com as normas constitucionais de cada
Estado. Muitas das novas ameaças, preocupações e outros desafios à
segurança hemisférica são de natureza transnacional e podem requerer
uma cooperação hemisférica adequada.”
Com isso surgiu a Política de Consolidación de La Seguridad Democrática que
“establece los objetivos estratégicos prioritarios hacia los cuales se deben enfocar todos los esfuerzos de cada
una de las instituciones del sector defensa”. É a partir desse plano que desenvolvem-se todas as
políticas e programas de segurança colombianas desde 2006. A PCSD segue o princípio
da flexibilidade, tendo em vista as constantes adaptações das ameaças, ela também estará
sujeita a se modificar. Além disso,
“(...) incluirá reformas estructurales en diversas áreas como la justicia penal militar,
la definición de roles misiones, y la educación de la Fuerz Pública, entre otros.
Se configurará y aplicará uma política integral de derechos humanos que genere um
proceso sistemático de transformación a largo plazo hacia una cultura fortalecida de
respeto a los derechos humanos por parte de la Fuerza Pública” (PCSD).
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
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Dentre as ameaças enfrentadas pela Colômbia, a primeira e a mais importante são
os Grupos Armados Ilegais (GAI), em particular as Forças Armadas Revolucionárias da
Colômbia (FARC) e o Exército de Libertação Nacional (ELN), que enfrentam o Estado
e promovem atentados pelo país.
No caso das FARC, a principal ameaça provém de seus atos terroristas e o controle que exercem sobre o narcotráfico. Concentram seus esforços armados na defesa de
suas plantações ilícitas, das pessoas que mantém sequestradas e na manutenção de suas
atividades. A principal estratégia para causar instabilidade no Estado é através de táticas
de guerrilha, com ataques terroristas e atos dispersos. Além disso, atua em áreas de difícil
acesso, dentro da floresta amazônica, como nas regiões de fronteira, ameaçando não só a
Colômbia, mas seus países vizinhos.
O ELN, por outro lado, vem mostrando sinais de negociação com o governo, realizando eventuais conversações. Contudo, essa organização continua realizando atos terroristas por todo o país, atuando no narcotráfico, além de espalhar minas terrestres nos
territórios onde atua.
Com o enfraquecimento e a desarticulação dos grupos paramilitares, houve espaço para o surgimento de facções criminosas, que vem sendo uma ameaça crescente no
território colombiano. Elas aproveitaram o vazio deixado em algumas áreas pelos grupos
paramilitares e tomaram o seu lugar. Os principais crimes praticados por tais grupos consistem no sequestro e na extorsão, exigindo do governo concessões políticas e militares.
Para que se acabe com tais tipos de crime, é necessário desarticular essas facções.
Outra ameaça a segurança dos colombianos são os diversos cartéis do narcotráfico.
Os narcotraficantes,
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“han sabido responder y adaptarse a la estrategia antinarcóticos del gobierno. Con
respecto a la siembra de la coca, pasaron de los grandes cultivos industriales a
múltiples cultivos pequeños y dispersos, sembrados em zonas de difícil acceso y su
erradicación. Así mismo, vienen incrementando la utilización de los parques naturales y zonas de frontera para evadir la aspersión aérea. Estas áreas también están
siendo utilizadas para el montaje y operación de laboratorios clandestinos para la
producción de drogas” (PCSD).
É de se preocupar também a participação de grupos estrangeiros no trafico de
drogas, juntamente com os cartéis colombianos, levando a droga para países de todo o
mundo. Por isso, a cooperação internacional para combater essas redes é fundamental
para diminuir o tráfico de drogas em todo o mundo.
Outra ameaça consiste na formação e existência de grupos criminosos em áreas
urbanas, que praticam desde furtos e assaltos, à extorsão, sequestro e homicídio.
Esse novo contexto que envolve a segurança,
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
“(...) establece una serie de retos institucionales que no dan espera y que es necesario
afrontar como un aspecto prioritario. La legitimidad y credibilidad de la Fuerza
Pública constituyen su centro de gravedad y son la base de todas sus acciones. Por
ello, es necesario realizar reformas estructurales que apunten a fortalecer y elevar los
estándares éticos y profesionales, y que redunden en un mayor respeto y protección
de los derechos humanos y al mismo tiempo, mantengan el apego a la Constitución
y las leyes en todas sus actuaciones” (PCSD).
A partir dessas ameaças é que a PCSD estabelece as prioridades e os objetivos políticos específicos nos quais servirão de guia para as ações do Ministério da Defesa, das
Forças Militares e da Polícia Nacional. Tais ações seguem alguns princípios de implementação, descritos a seguir:
• “Conquistar la seguridad y la paz”: Estabelecer um cenário duradouro em que haja
paz e segurança;
• “Actuar con legalidad”: Todas as atuações das Forças Públicas serão baseadas no respeito aos Direitos Humanos e dentro do paradigma do Estado de Direito.
• “Hacer presencia permanente”: A Força Pública não deixará nenhuma área em que está
presente e ocupará novas áreas em que atuar.
• “Promover la seguridad como garante del funcionamiento de la justicia”: O Estado irá contribuir para administração de qualidade na justiça, garantindo as condições de segurança para seu funcionamento.
• “Promover la seguridad como generadora de crecimiento económico y rentabilidad social”: A
atuação das Forças Públicas deverá contribuir para gerar um clima de confiança e
estabilidade, atraindo investimentos privados e produza crescimento econômico e
desenvolvimento social, através da diminuição da pobreza e do desemprego. Como
a DSA mesmo defende, deve-se fortalecer “os mecanismos e ações de cooperação
para enfrentar com urgência a pobreza extrema, a desigualdade e a exclusão social.”
• “Ser flexibles y adaptables”: A Força Pública deverá adaptar-se com flexibilidade e
efetividade, de acordo com as mudanças dos grupos armados ilegais e de todos os
agentes que constituem uma ameaça à segurança.
• “Coordinar entre las Fuerzas”: As forças militares deverão atuar em conjunto, existindo cada vez mais uma maior coordenação e complementação entre suas atividades.
• “Coordinar con las demás entidades del Estado”: A Força Pública deverá atuar em coordenação com as demais instituições do Estado, principalmente com aquelas que
promovem ações sociais e da administração da justiça.
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
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À luz de tais princípios, a PCSD terá cinco objetivos estratégicos que nortearão suas
atividades:
I – “Consolidar el control territorial y fortalecer el Estado de Derecho en todo el Território Nacional”
A Colômbia passa por problemas para controlar parte de seu território. A soberania do Estado é ameaçada constantemente pelas organizações paramilitares que detém o
controle territorial de certas áreas. Dessa forma, a estratégia para consolidar tal objetivo
“se concentrará en alinear los esfuerzos militar y policial, con el esfuerzo antinarcóticos y los esfuerzos en
el área social, de justicia, desarrollo econômico y fortalecimiento institucional del Estado” (PCSD).
Nesse primeiro objetivo, o ponto principal proposto pela PCSD é controlar áreas
em que o Estado não está presente e que são dominadas por grupos armados ilegais, além
de estabilizar zonas de recuperação e consolidar as áreas já estabilizadas. Para se efetivar
o controle e a estabilização, o governo utilizará de forma intensa a força militar e policial.
Já a consolidação se dará através de uma política eficaz, em que as instituições estatais
estejam presentes, atendendo as necessidades básicas da população, além de programas
sociais.
II – “Proteger a la población, manteniendo la iniciativa estratégica en contra de todas las amenazas a la
seguridad de los ciudadanos”
A proteção da população será a preocupação principal das forças públicas. Estas
farão operações militares em todo o território colombiano, principalmente em áreas mais
remotas do país, onde se encontram o centro estratégico dos grupos armados ilegais, dos
narcotraficantes e de chefes das facções criminosas, com o objetivo de desarticulá-los.
Para isso, será fundamental o uso da inteligência militar e policial, “a quien corresponderá
proveer el análisis e información oportuna para la realización de las operaciones ofensivas efectivas, que
permitan a su vez mantener la iniciativa estratégica en contra de todas las amenazas a la población”
(PCSD).
III – “Elevar drásticamente, los costos de desarrollar la actividad del narcotráfico en Colômbia”
Esse terceiro objetivo busca a implementação de barreiras que interrompam e desmantelem o narcotráfico, levando em consideração a interdependência de todo o complexo da droga, atacando, dessa forma, simultaneamente vários pontos estratégicos para os
narcotraficantes. Essa ação levará em conta um “contexto de recursos limitados y disponibilidad
de múltiples herramientas, se implementarán con prioridad y mayor intensidad, las acciones que más
contribuyan a desestabilizar el sistema del narcotráfico” (PCSD). Atacando todas as frentes haverá
uma desestabilização no do narcotráfico, aumentando os custos e as dificuldades para a
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Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
manutenção desse sistema. Dessa forma, haverá uma limitação das atividades concernentes ao tráfico de droga e, consequentemente, uma diminuição dos efeitos negativos
provenientes de tal atividade.
IV – “Mantener una Fuerza Pública legítima, moderna y eficaz, que cuente con la confianza y el apoyo
de la población”
Esse objetivo será efetivado com uma série de reformas estruturais em todos os
setores de defesa, para que se possam atender todas as necessidades concernentes à segurança, desde cunho estrutural ao de treinamento. Dessa forma, buscar-se-á uma maior
mobilidade, inteligência e aprimoramento, logístico, das forças de segurança. Assim, além
de atender as populações das áreas em que há a presença das forças de segurança, serão
beneficiadas aquelas em que o Estado, até então, não se faz presente. Com isso, busca-se
uma maior confiança e cumplicidade da população, importantes para as ações policiais e
militares, principalmente em áreas mais remotas.
V – “Mantener la tendencia decreciente de todos los indicadores de criminalidad em los centros urbanos
del país”
A Colômbia é um país majoritariamente urbano, tendo a maioria de sua população
concentrada nas cidades. A existência de grupos armados ilegais e dos cartéis de narcotráfico, apesar de ter um impacto negativo em toda a Colômbia, faz com que suas ações
afetem diretamente e com maior intensidade as populações rurais. Nos centros urbanos,
a percepção que se tem de segurança está mais ligada a ações criminais comuns, como
roubos, extorsão e, principalmente, os homicídios. Dessa forma, esse último objetivo fará
com que a “Policía Nacional tendrá la misión de reforzar su estrategia de seguridad ciudadana, con el
fin de neutralizar y desarticular las bandas organizadas y grupos de criminalidad común que afectan la
seguridad y convivencia armónica de la población urbana” (PCSD).
Todos essas metas da PCSD serão trabalhadas de forma integrada e conjunta, inclusive em várias esferas políticas. Dessa forma, elas terão mais chances de serem concretizados e obterem resultados mais efetivos. Além desses objetivos, é intuito do governo
colombiano atuar em parceria com outros Estados para a consolidação da segurança. A
cooperação internacional, no que tange problemas que transcendem fronteiras, é fundamental para a eliminação, por exemplo, de cartéis de drogas que atuam em vários países. O
alcance dessas organizações criminosas vai além das divisões entre Estados, tornando-se
um problema de caráter global. Sendo assim, é do interesse da Colômbia que países, que
tenham os mesmos objetivos, atuem conjuntamente para contribuir com a segurança no
âmbito regional e mundial.
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
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3.2 Estrategia Nacional de Seguridad Pública (ENSP)
O Chile, diferentemente da Colômbia, apresenta uma outra realidade no que tange a
segurança. Ele é considerado, pela Global Peace Index, como sendo o mais seguro da América Latina e o 20º mais seguro do mundo. Com uma posição assim, é concludente que
a realidade dele é bem mais tranquila no que tange a segurança e os desafios do governo
serão bem menores, se comparados com um país como a Colômbia. Entretanto, o Estado
tem a obrigação de manter os níveis de segurança no atual patamar, almejando sempre
melhorá-los.
Dessa forma, buscando se consolidar como um dos países mais seguros do mundo,
o governo da presidente Michelle Bachelet, eleita para a gestão de 2006 – 2010, implementou a Estrategia Nacional de Seguridad Pública (ENSP), com base na Política Nacional de
Seguridad Ciudadana (PNSC). Segundo dados do governo chileno, a ENSP ajudou a baixar
os índices de homicídios, roubos e furtos, do primeiro trimestre de 2008 para 2009, em
24,7%, 11,3% e 0,4%, respectivamente.
O debate sobre segurança no Chile é algo recente, que se deu a partir da década de
1990, que foi fomentado mais “por su contenido emotivo e ideológico que por su sustento técnico”
(PNSC). A PNSC, implementada em 2004, foi oriunda de uma decisão do Ministério do
Interior que, em meados de 2003, convocou um fórum que se reuniram especialistas em
segurança cidadã de vários institutos e universidades chilenos. O objetivo desse fórum era
discutir os assuntos concernentes à segurança que se tornava uma questão central no país,
pois, desde 1998, os índices que registravam os delitos de maior conotação social (DMCS)
– como furto, roubo, homicídio – aumentavam. A partir desse fórum, foi feito um diagnóstico sobre a segurança chilena que culminou com a elaboração da PNSC.
O diagnostico mostrou que havia um crescimento nos delitos com uma maior motivação econômica – furto e roubo. Além disso, registrou-se um aumento no tráfico de
drogas, que também foi classificado como um delito de motivação financeira. Com isso,
os especialistas concluíram que o problema de delinquência no Chile estava associado
aos delitos que tinham alguma conotação econômica. Entretanto, os crimes de natureza
violenta, como homicídios, estupros e violência familiar, também apresentavam níveis
preocupantes e mereciam atenção.
Dessa forma, a partir da PNSC, foi feita a Estrategia Nacional de Seguridad Pública
que tem como objetivo “focalizar, coordinar y temporalizar las líneas de ación señaladas en la Política Nacional de Seguridad Ciudadana” (ENSP), destacadas a seguir:
• Prevención social: “Fortalecer y potenciar la capacidad de la familia para promover conductas
prosociales y disminuir la violencia; Fortalecer y potenciar la capacidad de la comunidad educativa
para promover conductas prosociales y disminuir la violencia; Fortalecer la integración social y
desarrollar comunidades fuertes” (PNSC).
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Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
• Prevención situacional: “Crear o recuperar espacio público urbano para generar ciudades amables
y acogedoras” (PNSC).
• Control: “Promover el acceso a la justicia; Fortalecer y modernizar la gestión policial”
(PNSC).
• Desarrollo institucional: “Fortalecer la confianza ciudadana y disminuir el temor al delito mediante la provisión de servicios públicos oportunos y eficaces” (PNSC).
• Información y tecnologias: “Mejorar los sistemas de acopio y análisis de la violencia, los delitos
y el temor” (PNSC).
Com base nesses elementos da PNSC, em que foram estabelecidos os critérios e
os objetivos no âmbito da segurança chilena, a Estrategia Nacional de Seguridad Pública desenvolveu suas diretrizes para efetivar os elementos elencados na PNSC. Tais diretrizes se
baseiam em seis eixos essenciais que irão nortear os parâmetros para se tratar de maneira
conjunta e coordenada a estratégia de segurança. São eles:
I – Institucionalidad
O primeiro eixo refere-se às instituições. “Eje fundamental que se dirige a modernizar
la actual estructura pública en materia de seguridad” (ENSP). Com instituições especializadas e
bem estruturadas, a segurança passaria a ser trabalhada com uma maior qualidade e eficiência. Os órgãos públicos estariam preparados para enfrentar os problemas relacionados
com a segurança de uma maneira mais plena e eficaz.
II – Información
As instituições públicas passarão a disponibilizar um sistema de informação confiável que ajudará nas tomadas de decisões. Além disso, será publicizado uma parte dessa
informação, o que permitirá à população acessar dados das investigações e estudos sobre
a segurança e a violência. Esses dados serão divulgados através de prognósticos anuais feitos pelo Ministério do Interior. Tendo uma informação precisa, vários organismos do governo passariam a trabalhar de forma mais coesa e coordenada no combate à violência.
III – Prevención
“Su finalidad es intervenir en las condiciones sociales y ambientales para disminuir y evitar el
aumento de la violencia y la ocurrencia de delitos” (ENSP). Busca-se na prevenção que, por exemAlethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
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plo, crianças, jovens e adultos não passem a ter na criminalidade sua forma de sustento
ou meio de vida, ou mesmo que venham a se tornar dependentes de álcool ou drogas. “A
través de la implementación coordinada de planes y programas destinados a disminuir las condiciones de
riesgo social, se pretende ofrecer alternativas lícitas de desarrollo como escolarización, emprendimiento o
empleabilidad” (ENSP). Programas que irão desde a pré-escola conscientizarão desde cedo
as crianças e os jovens sobre o risco das drogas. Também serão oferecidos programas para
que esses mesmos jovens possam ficar longe da violência, através de programas sócioculturais, ambientais e esportivos.
Sabe-se que as condições de vida do cidadão influenciam diretamente na segurança. Dessa maneira, pretende-se melhorar as condições no que tange a segurança urbana,
tendo como atores os órgãos públicos e privados. Assim, buscar-se-á o desenvolvimento
em áreas como a educação, saúde, moradia, lazer e até mesmo incentivando a criação de
empregos para jovens de baixa renda.
IV – Control y Sanción
Juntamente com as ações de prevenção, esse eixo buscará reprimir ações delituosas
de uma parcela da população que faz da criminalidade um hábito. O governo deve ser
capaz de proteger a população, garantindo direitos básicos como a vida e a liberdade. A
legislação passará por uma modernização e um enquadramento social para atender os
contextos atuais e as necessidades da população. Além disso, as autoridades de segurança
trabalharão em conjunto, dando uma maior eficiência às ações das polícias e centros de
inteligência. “También se implementará un trabajo coordinado respecto de los infractores de ley penal; se
potenciará la construcción de nuevos recintos penales; se modernizarán los sistemas de control fronterizo;
se perfeccionarán los sistemas privativos y no privativos de libertad” (ENSP).
V – Rehabilitación
O processo de reabilitação será um outro eixo essencial para encerrar-se o ciclo da
criminalidade por quem o pratica. Com isso pretende-se dar oportunidades para aqueles
que passam por sanções penais, viciados em álcool ou drogas de poderem se reinserirem
novamente na sociedade, através de programas de reabilitação e capacitação. O governo
incentivará a sociedade a aceitar e dar novas oportunidades para essas pessoas, dando, por
exemplo, incentivos fiscais para aqueles empregadores que aceitarem como funcionário
um ex-presidiário.
VI – Víctimas
Sabe-se que aquelas pessoas que são vitimas de algum delito violento sofrem por
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constrangimentos físicos e psicológicos, necessitando, assim, de apoio e atenção especial.
Tendo em vista tal necessidade, o governo chileno criará Centros de Atención de Víctimas.
Esses centros darão um apoio psicológico e humano às vitimas de crimes violentos, como
abuso sexual e violência familiar, para que as consequências que esses atentados possam
vir a provocar sejam minimizadas na medida do possível.
A interrelação entre esses eixos fará com que eles sejam trabalhados de forma conjunta e coordenada, pois é essa cooperação que será responsável pela implementação da
Estrategia Nacional de Seguridad Pública de forma abrangente e eficaz. Cada um desses eixos
descritos será posto em prática através uma série de planos e programas. Tais programas
serão acompanhados por sistemas e serão avaliados constantemente por especialistas, e
até mesmo pela população, para que se possa saber qual o nível de eficiência e eficácia de
cada um.
4 Conclusão
Ao se fazer uma análise dos programas de segurança da Colômbia e do Chile, pode-se
perceber que há uma consonância entre eles, no que tange o respeito aos Direitos Humanos,
além de outros preceitos defendidos pela Declaração sobre Segurança nas Américas.
Ambas as políticas, preocupam-se em analisar a segurança de uma forma complexa
e relativizada, trabalhando-a a luz de diversos fatores. Os governos colombiano e chileno
combatem a criminalidade investindo tanto em educação e saúde, quanto em programas
sociais e culturais, demonstrando que para diminuir os índices de violência e delitos, é
necessário integrar vários aspectos do desenvolvimento de um país.
Contudo, mesmo tendo programas de segurança semelhantes, principalmente no
que tange a sua essência, a discrepância dos problemas enfrentados pela Colômbia e pelo
Chile é enorme. O que leva, então, essa diferenciação no que tange a segurança? Um trecho, retirado da Política Nacional de Seguridad Ciudadana do Chile, esboça o início de uma
resposta:
“Puesto que la criminalidad es un fenómeno heterogéneo, que responde a procesos
sociales complejos y multicausales, resulta difícil identificar el o los factores que
expliquen el incremento en cuestión. Con todo, los antecedentes disponibles permiten
descartar algunas hipótesis y seleccionar algunas más probables.”
Dessa forma, pode-se dizer que os contextos históricos, geográficos, sociais, culturais e financeiros, de ambos os países, influenciam de maneira direta nessa questão. Dados
do Global Peace Index demonstram bem essas diferenças. A educação é uma delas. EnquanAlethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
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to na Colômbia a média de escolaridade da população é de 12,4 anos, no Chile é de 14. A
economia é outro fator importante. A renda per capita colombiana gira em torno de U$
5.070,00, já a chilena é de U$ 10.110,00. A taxa de desemprego entre os colombianos é
de 11,3%, e para os chilenos fica por volta de 7,8%. A saúde evidencia essa desigualdade,
sendo que para cada 1000 crianças que nascem na Colômbia, 16,7 morrem antes de completar 2 anos, enquanto no Chile esse número encontra-se em 8,1.
A partir desses dados, pode-se perceber o porquê da diferença da segurança entre
esses dois países. Por mais que se tenha uma política de segurança de qualidade, que abarque vários fatores, ou se aumente o rigor da legislação penal, ou até mesmo especializando
e incrementando o efetivo policial e militar, é preciso criar programas e políticas nas mais
diversas áreas do desenvolvimento de um país. Para que possam ser trabalhados de forma
conjunta e coordenada, desenvolvendo diversas áreas necessárias para o bem-estar do ser
humano.
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Exigência de diploma do curso de Jornalismo e não
recepção RE 511961
Daniel Dore Lage*
Nathan Ramalho dos Reis**
Resumo:
Este artigo trata sobre a recente decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a não-exigência de diplomas de nível superior para exercer profissões relacionadas ao curso de comunicação como o ‘jornalismo’. Em uma análise do acórdão, todos os argumentos jurídicos,
tanto de ministros quanto de militantes, são levantados e expostos de forma a embasar
tal embate. Logo após a apresentação de tais argumentos chegamos à conclusão de que
o Supremo Tribunal Federal emitiu uma resolução acertada, que não altera a estrutura do
mercado midiático de forma imediata, porém, à longo prazo, estimula a concorrência e a
melhora nos serviços relacionados ao jornalismo.
PALAVRAS-CHAVE: Jornalismo – Exigência – Diploma – Resolução
*
Graduando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
Graduando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
**
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
Abstract:
This article discusses the recent decision of the Supreme Court on not requiring a
bachelor’s degree to perform work-related to communication courses like ‘journalism’.
In an analysis of resolution, all the legal arguments, both as ministers’ and militants’, are
raised and exposed in order to justify such clash. Soon after the presentation of these
arguments we conclude that the Supreme Court issued a wise resolution, that does not
alter the structure of the media market immediately, but in the long run, stimulates competition and improvement in services related to journalism.
KEYWORDS: Journalism – Requiring - Bachelor’s degree - Resolution
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Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
1 Revisão literária
O presente trabalho tem por objeto o estudo da decisão tomada no julgamento do
Recurso Extraordinário (RE) 511961 , no dia 17 de junho de 2009, que dispõe sobre a
inconstitucionalidade da exigência de diploma para o exercício da profissão de jornalista.
A compreensão foi de que o artigo 4º, inciso V, do Decreto-Lei 972/1969 é inconstitucional, já que não foi recepcionado pela Carta Magna de 1988.
As exigências do referido artigo, contrariam também o disposto no artigo 13 da
Convenção Americana dos Direitos Humanos, também chamada de Pacto de San Jose
da Costa Rica, que foi subscrita durante a Conferência Especializada Interamericana de
Direitos Humanos, de 22 de novembro de 1969 e entrou em vigência em 18 de julho de
1978. Porém, o Brasil só se tornou signatário no ano de 1992, adotando-o com caráter de
lei ordinária e, posteriormente, adquirindo o status de norma supralegal (RE 466343/SP)
em 2008. O Recurso Extraordinário foi proposto pelo Ministério Público Federal (MPF) e
pelo Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão do Estado de São Paulo (Sertesp)
contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região que confirmou ser necessária a
posse do diploma, decisão contrária a da 16ª Vara Cível Federal em São Paulo, sobre uma
ação civil pública.
A motivação da lide pôs em cheque as seguintes garantias constitucionais:
a) De um lado, a primazia da livre manifestação de pensamento e da atividade intelectual, baseada no
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros (...) nos termos seguintes:
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independentemente de censura ou licença;
b) de outro lado, o “artigo 5º, XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício
ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;” que ao aplicar
a hermenêutica pode ser interpretado como sendo de eficácia contida, dando margem
para que o legislador restringisse a exigência de qualificação.
Entendendo-se que tais normas possuem caráter principiológico, faz-se necessária
a aplicação da ponderação em sentido lato, também entendida como a aplicação do princípio da proporcionalidade e seus três filtros, que será analisada a posteriori.
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2 Sobre o Decreto-Lei °972, de 17 de outubro de 1969
O Referido decreto que regulamenta a profissão de jornalistas tem, em seu artigo
4º, V, uma restrição que deve ser analisada teleologicamente, pois, foi criado à época do
auge do regime totalitário no Brasil.
Foi uma importante manutenção a favor do governo ditatorial porque servia para
impedir a divulgação de notícias sobre torturas, mortes e sua finalidade perseguida era a
restrição do acesso de intelectuais opositores aos meios de comunicação.
Deixamos em evidência que a polêmica se estabelece somente sobre o inciso V do
artigo 4º, não sendo questionada a relevância da regulamentação da atividade jornalística,
crucial em um Estado Democrático de Direito, proposta como um todo.
3 Da Argumentação
Iremos expor agora sobre a argumentação favorável e contrária, exibindo e analisando os possíveis argumentos de cada lado e, posteriormente, a que embasou o Supremo
Tribunal Federal em sua resolução.
Argumentação a favor da exigência do diploma
Passando a analisar mais detalhadamente o ponto de vista daqueles que são favoráveis à manutenção da exigência do diploma de jornalismo para o exercício da profissão,
observa-se que existem vários argumentos. Segundo Beth Costa, presidente da Federação
Nacional dos Jornalistas, essa exigência interessa a sociedade, e o principal argumento é o
de que a população tem direito à informação de qualidade, e esta informação depende de
uma prática profissional qualificada e de conhecimentos técnicos, condições estas que só
são possíveis através de um curso superior de jornalismo.
O advogado João Roberto Piza Fontes afirmou que o RE é apenas uma defesa
das grandes corporações e uma ameaça ao nível da informação se o jornalismo vier a ser
exercido por profissionais não qualificados, assim como um aviltamento da profissão pois
é uma ameaça à justa remuneração dos profissionais de nível superior que hoje estão na
profissão.
Também em favor do diploma se manifestou a advogada Gracie Maria Mendonça,
da advocacia geral da união. Ela questionou se alguém se entregaria na mão de um médico
ou odontólogo ou então de um piloto não formado. Segundo a advogada, não há nada no
DL 972 que contrarie a Constituição Federal.
Outro argumento relevante e que confirma essa tese é o do presidente do Sindicato
dos Jornalistas Profissionais do Rio de Janeiro, José Ernesto Viana, defendendo que o
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Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
fim da obrigatoriedade do diploma para o exercício do jornalismo poderá comprometer
a qualidade da informação levada ao público. Ele ainda ressalta que a decisão do STF irá
derrubar todas as conquistas que os jornalistas brasileiros tiveram ao longo das últimas
décadas, acarretando muitos prejuízos aos profissionais dessa área, o que provocará inclusive a redução de salários. Segundo ele, a maioria dos estudantes de jornalismo gasta
muito dinheiro em sua formação, para depois dar lugar às pessoas sem diploma, que não
tiveram tanto esforço e dedicação.
Muitos argumentam que um artigo escrito por uma pessoa que não possui os conhecimentos necessários poderá ter um efeito devastador, transformando os muitos leitores em vítimas da má informação. Alguns tentam refutar a tese contrária de que a exigência do diploma impede o acesso à informação, afirmando que isso não é verídico, pois
todo cidadão tem acesso a ela.
Necessário se faz um maior aprofundamento do posicionamento do Ministro Marco Aurélio, o único a votar a favor da obrigatoriedade do diploma. Segundo ele, os conhecimentos e as técnicas da área do jornalismo são muito importantes, e o profissional de
nível superior estará mais habilitado a prestar serviços proveitosos à sociedade brasileira.
È importante notar que o Ministro também se vale de argumentos consequencialistas para
sustentar seu posicionamento, onde leva em conta as possíveis consequências da inconstitucionalidade do Decreto-Lei em questão para a sociedade brasileira como um todo. Ele
afirmou que a norma que exige o diploma de jornalismo está em vigor há várias décadas,
e nesse tempo muitas faculdades de jornalismo foram criadas. A partir de agora, com o
fim da obrigatoriedade do diploma, haverá muitos jornalistas com ensino superior, mas
também muitos somente com o ensino médio e talvez até alguns que não passaram do
ensino fundamental. Ele ressaltou também que várias pessoas entraram na faculdade de
Jornalismo acreditando que exerceriam uma profissão regulamentada. O maior problema
é em relação às expectativas que os estudantes dessa área terão do futuro, gerando certa
insegurança em relação à profissão quando se formarem.
O último argumento de peso refere-se à aplicação do princípio de proporcionalidade pois não há de se falar em necessidade nem em adequação neste caso. O ministro
Marco Aurélio também fez um juízo de proporcionalidade, defendendo que a regra da
obrigatoriedade não é desproporcional, e não é incompatível com as normas constitucionais que garantem a liberdade de expressão e o livre exercício de qualquer profissão.
Argumentação contra a exigência de diploma
Para o relator do RE e presidente do STF, Ministro Gilmar Ferreira Mendes, “o
jornalismo e a liberdade de expressão são atividades que estão imbricadas por sua própria
natureza e não podem ser pensados e tratados de forma separada”. Segundo o relator,
o Jornalismo seria a própria manifestação e difusão do pensamento e da informação de
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forma contínua, profissional e remunerada.
Segundo a advogada da Sertesp,Thaís Borja Gasparin “o DL 972/69 foi baixado
durante o regime militar e teve como objetivo limitar a livre difusão de informações e
manifestação do pensamento”. Para a advogada, o jornalista apenas exerce uma “técnica
de assimilação e difusão de informações, que depende de formação cultural, retidão de
caráter, ética e consideração com o público”, sendo de tal forma desnecessária a obrigatoriedade do diploma de curso superior para o exercício da profissão de jornalista.
Apoiando essa tese, o procurador-geral da República, Antônio Fernando Souza,
afirma que a atual legislação contradiz o disposto no artigo 5º, incisos IX e XIII, e o artigo
220 da Constituição Federal, nos quais é tratada a liberdade de manifestação do pensamento e da informação e a liberdade de exercício da profissão.
Ademais, como exposto pelos ministros do STF, o Jornalismo não prescinde de
diploma, mas sim de uma sólida formação cultural, domínio do idioma, formação ética e
compromisso com os fatos. Além disso, a exigência do diploma não impediria que profissionais descomprometidos com a ética e possuidores de diplomas, continuassem a distorcer a realidade, gerando mal-estares à sociedade. Tais questões não passam pelo quesito
formação técnica, mas sim por questões de consciência ética.
4 A resolução do STF sobre o assunto
O supremo tribunal federal, ao julgar o RE 511961/SP, em 17/06/2009, por maioria
(8X1 votos), declarou a inconstitucionalidade de dispositivos de Decreto-Lei nº 972/69,
que regulamenta a profissão de jornalista. A seguir, analisaremos o fundamento do voto
de cada um dos ministros presentes na corte:
O ministro Gilmar Mendes, relator do caso, alega a não recepção do art. 4º, inciso
V, do Decreto-Lei 972/69, pois entendeu que a norma impugnada seria incompatível
com as liberdades de profissão, de expressão e de informação previstas nos artigos 5º,
IX e XIII, e 220, da Constituição Federal bem como o disposto no art. 14 da Convenção
Americana de Direitos Humanos. O ministro afirmou que o tema envolveria a delimitação da esfera protetiva da liberdade de exercício profissional assegurada pelo art. 5º, XIII, da Constituição Federal,
assim como a identificação das limitações e legais permitidas pela Constituição. Assim,
asseverou que se teria no preceito citado uma inequívoca reserva legal qualificada, ou seja,
a Constituição remeteria à lei fixação das qualificações profissionais como restrições ao
livre exercício profissional. Contudo, o relator considerou que, no âmbito desse modelo de reserva legal qualificada, pairaria uma imanente questão constitucional quanto à razoabilidade e proporcionalidade das leis restritivas, de forma que não seria conferido ao legislador o poder de restringir o exercício da liberdade a ponto de atingir seu núcleo essencial, declarando então
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que é necessária a verificação da lei à luz da Constituição para evitar que essa transborde
os limites da proporcionalidade previstos constitucionalmente.
Tendo em conta essas avaliações, aduziu-se, relativamente ao inciso V do art. 4º
do Decreto-lei 972/69, ser necessária aferição se o exercício da profissão de jornalística
exigiria qualificações profissionais e capacidades técnicas específicas e especiais e se, dessa forma, estaria o Estado legitimado constitucionalmente a regulamentar a matéria em
defesa do interesse da coletividade. Frisou-se que a doutrina constitucional consideraria
que as qualificações profissionais a que se refere o art. 5º, XIII, da CF somente poderiam
ser exigidas, pela lei, daquelas profissões que, de alguma forma, poderiam trazer perigo
de dano à coletividade ou prejuízos diretos a direitos de terceiros, sem culpa das vítimas,
como a medicina e as demais profissões ligadas à área da saúde, a engenharia, a advocacia
e a magistratura, dentre outras. Dessa forma, a profissão de jornalista, por não implicar
tais riscos, não poderia ser objeto de exigências quanto às condições de capacidade técnica para o seu exercício, sendo que eventuais riscos ou danos efetivos provocados por
profissional do jornalismo a terceiros não seriam inerentes à atividade e, dessa forma, não
seriam evitáveis pela exigência de um diploma de graduação. Tais entendimentos, que
apreenderiam o sentido normativo do art. 5º, XIII, da CF, demonstrariam, portanto, a
desproporcionalidade das medidas estatais que visam restringir o livre exercício do jornalismo mediante a exigência de registro em órgão público condicionado à comprovação de
formação em curso superior de jornalismo. Afirmou-se que as violações à honra, à intimidade, à imagem ou a outros direitos da
personalidade não constituiriam riscos inerentes ao exercício do jornalismo, mas sim o resultado do exercício abusivo e antiético dessa profissão. Depois de distinguir o jornalismo
despreparado do abusivo, destacou-se que o último não estaria limitado aos profissionais
despreparados ou que não frequentaram um curso superior, e que as notícias falaciosas e
inverídicas, a calúnia, a injúria e a difamação configurariam um grave desvio de conduta,
passível de responsabilidade civil e penal, mas não solucionado na formação técnica do
jornalista. No ponto, afastou-se qualquer suposição no sentido de que os cursos de graduação em jornalismo seriam desnecessários após a declaração de não recepção do art. 4º,
V, do Decreto-lei 972/69, bem como se demonstrou a importância desses cursos para o
preparo técnico e ético dos profissionais.
Apontou-se que o jornalismo seria uma profissão diferenciada por sua estreita vinculação
ao pleno exercício das liberdades de expressão e informação, constituindo a própria manifestação e
difusão do pensamento e da informação de forma contínua, profissional e remunerada, razão por
que jornalismo e liberdade de expressão não poderiam ser pensadas e tratadas de forma separada.
Por isso, a interpretação do art. 5º, XIII, da CF, na hipótese da profissão de jornalista, teria de ser
feita, impreterivelmente, em conjunto com os preceitos do art. 5º, IV, IX, XIV, e do art. 220, da CF,
os quais asseguram as liberdades de expressão, de informação e de comunicação em geral. Mencionou-se, também, que as liberdades de expressão e de informação e, especiAlethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
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ficamente, a liberdade de imprensa, somente poderiam ser restringidas pela lei em casos
excepcionalíssimos, sempre em razão da proteção de outros valores e interesses constitucionais igualmente relevantes, como os direitos à honra, à imagem, à privacidade e à personalidade em geral. Nesse sentido, aduziu-se que o constituinte de 1988 não concebeu
a liberdade de expressão como direito absoluto, insuscetível de restrição pelo Judiciário
ou pelo Legislativo, mas apenas estabeleceu ser inadmissível que a disciplina legal criasse
embaraços à liberdade de informação. Assim, no caso da profissão de jornalista, a interpretação do art. 5º, XIII, em conjunto com os seus incisos IV, IX, XIV e o art. 220, da
CF, levaria à conclusão de que a ordem constitucional somente admitiria a definição legal
das qualificações profissionais na hipótese em que fossem elas fixadas para proteger, efetivar e reforçar o exercício profissional das liberdades de expressão e de informação por
parte dos jornalistas. Disso se perceberia que a exigência de curso superior para a prática
do jornalismo não estaria autorizada pela ordem constitucional, por consubstanciar uma
restrição, um impedimento, uma verdadeira supressão do pleno, incondicionado e efetivo exercício da liberdade jornalística, expressamente proibido pelo art. 220, § 1º, da CF.
Portanto, em se tratando de jornalismo, atividade intimamente ligada às liberdades de
expressão e informação, o Estado não estaria legitimado a estabelecer condicionamentos
e restrições quanto ao acesso à profissão e ao respectivo exercício profissional. Ressaltou-se, ademais, que a impossibilidade do estabelecimento de controles estatais sobre a profissão jornalística também levaria à conclusão de que não poderia o Estado
criar uma ordem ou um conselho profissional (autarquia) para a fiscalização desse tipo de
profissão e que o exercício do poder de polícia do Estado seria vedado nesse campo em
que imperam as liberdades de expressão e de informação. Por outro lado, observou-se
que a vedação constitucional a qualquer tipo de controle estatal prévio não desprezaria o
elevado potencial da atividade jornalística para gerar riscos de danos ou danos efetivos à
ordem, segurança, bem-estar da coletividade e a direitos de terceiros. Asseverou-se que,
no Estado Democrático de Direito, a proteção da liberdade de imprensa também levaria
em conta a proteção contra a própria imprensa, sendo que a Constituição garantiria as
liberdades de expressão e de informação sem permitir, entretanto, violações à honra, à
intimidade e à dignidade humana. Entendeu-se ser certo que o exercício abusivo do jornalismo ensejaria graves danos individuais e coletivos, mas que seria mais certo ainda que os
danos causados pela atividade jornalística não poderiam ser evitados ou controlados por
qualquer tipo de medida estatal de índole preventiva. Dessa forma, o abuso da liberdade
de expressão não poderia ser objeto de controle prévio, mas de responsabilização civil e
penal sempre a posteriori. Em decorrência disso, não haveria razão para se acreditar que a
exigência de diploma de curso superior de jornalismo seria medida adequada e eficaz para
impedir o exercício abusivo da profissão. Portanto, caracterizada essa exigência como típica
forma de controle prévio das liberdades de expressão e de informação, e verificado o embaraço à
plena liberdade jornalística, concluir-se-ia que ela não estaria autorizada constitucionalmente.
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Como crítica, o voto do relator e sua respectiva fundamentação são bem claros e
objetivos, contudo vale ressaltar e explicitar alguns conceitos que o ministro utiliza em sua
fundamentação como forma de esclarecimento do que se fundamenta. Em seu relatório,
o ministro cita o fenômeno da não recepção do art. 4º, V, do Decreto-lei 972/69. Entretanto é preciso aclarar as premissas de tal fenômeno.
Ao se promulgar (ou outorgar) uma nova Constituição, o constituinte originário dá
inicio à ordem jurídica. Isso, porém, não significa que todos os diplomas infraconstitucionais perdem vigor com o advento de uma nova Constituição, pois caso isso ocorresse,
inviabilizaria a ordem jurídica. Por isso se entende que aquelas normas anteriores à Constituição, que são com ela compatíveis no seu conteúdo, continuam em vigor.
Diz-se que, nesse caso, opera o fenômeno da recepção, que corresponde a uma
revalidação das normas que não desafiam, materialmente, a nova Constituição. Às vezes a
recepção é expressa (como da CF de 1937), mas isso não ocorreu na nossa Constituição,
ocorrendo a recepção implícita.
O importante, então, é que a lei antiga, no seu conteúdo, não destoe da nova Constituição.
No caso de houver uma norma antiga que não guarde compatibilidade com a nova
Constituição considera-se que esta apenas deixa de operar, através de revogação. Através
dessa breve consideração pode-se analisar o fenômeno da não recepção do art. 4º, V, do
Decreto-Lei 972/69. Temos nesse ponto um complexo caso em que para considerar tal
norma como não recepcionada, deve-se afirmar que seu conteúdo é completamente incompatível com nosso sistema constitucional. E foi essa apreciação que o ministro Gilmar
Mendes fez, alegando que a restrição é desproporcional e fere direitos fundamentais. Outro ponto citado como crucial no voto do relator é a lesão ao princípio da proporcionalidade. Todavia, é importante esclarecer como se dá a aferição da proporcionalidade de uma norma e porque essa norma específica pode ou não ser considerada desproporcional. A doutrina identifica como típica manifestação do excesso de poder legislativo a
violação do princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que se revela
mediante “contrariedade, incongruência e irrazoabilidade ou inadequação entre meios e
fins”. (Mendes, Curso de Direito Constitucional, cit., p. 384). A proporcionalidade divide-se em subníveis, a partir dos quais se afere a proporcionalidade em sentido lato que pressupõe a legitimidade dos meios utilizados e dos fins
perseguidos pelo legislador, mas também a adequação desses meios para a consecução
dos objetivos pretendidos e a necessidade de sua utilização. O subprincípio da adequação exige que as medidas interventivas adotadas se mostrem aptas a atingir os objetivos pretendidos. O subprincípio da necessidade significa que nenhum meio menos gravoso para o
indivíduo se revelaria igualmente eficaz na consecução dos objetivos pretendidos. Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
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Finalmente o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito ou da ponderação que significa que de qualquer forma, um juízo definitivo sobre a proporcionalidade da
medida há de resultar de rigorosa ponderação e do possível equilíbrio entre o significado
da intervenção para o atingido e os objetivos perseguidos pelo legislador.
Esclarecido o conceito do argumento citado no relatório do ministro, basta-se submeter a norma em questão aos subníveis da proporcionalidade e aferir se há alguma
incongruência com tal princípio. Primeiramente deve-se buscar a finalidade da norma,
que, fazendo uma interpretação pelo método científico-espiritual, pode-se concluir que
o legislador, dado o momento histórico em que se encontrava e sua posição em um regime ditatorial, é possível concluir que sua finalidade era restringir o acesso à atividade
jornalística. Contudo, fazendo uma interpretação histórica, ou seja, adequando a norma
à realidade hodierna temos uma finalidade de garantir maior qualidade da informação, e
maior ética nas publicações jornalísticas. Tal finalidade, por ser inequívoca, contudo, deve ser analisada juntamente com a
norma que a propõe, ao analisarmo-nas sob a luz do subnível da adequação, podemos
concluir que a medida interventiva adotada não é apta a atingir o objetivo pretendido, uma
vez que, não resguarda a qualidade, nem a veracidade da informação, não sendo capaz de
proteger a sociedade do abuso e do mau exercício do jornalismo. Basta analisar um subprincípio para asseverar a desproporcionalidade da norma em
questão, contudo devemos seguir em nossa análise. Quanto à necessidade, pode-se afirmar que o meio é deveras desnecessário, pois
além de ser inadequado, ainda que o fosse, há maneiras menos restritivas de atingir a finalidade proposta. Maneiras essas, como as de caráter penal, através da punição de jornalistas
que lesionem direitos de outrem através do mau exercício da profissão. Por fim, quanto à proporcionalidade em sentido estrito, a intervenção parece-nos
assaz restritiva tendo em vista o objetivo (inadequado) que busca. De forma que é excessivamente gravosa para o bem que traz à sociedade. Portanto, além dos argumentos inequívocos do ministro, temos, através de minuciosa análise conceitual a conclusão de que o voto do relator é integralmente válido e
coerente com nosso ordenamento jurídico.
A ministra Carmen Lúcia vota contra a exigência de diploma, argumentando que
o artigo 4º,V do DL não foi recepcionado pela CF/88, nem formalmente, com relação
aos procedimentos devidos, e nem materialmente, em relação ao conteúdo que não era
compatível.
Segundo o doutrinador Alexandre de Moraes, o fenômeno da recepção seria o
“acolhimento que uma nova constituição posta em rigor dá às leis e atos normativos editados sob a égide de carta anterior desde que compatíveis consigo”. Tal fenômeno, além
de receber materialmente as leis e atos compatíveis com a nova carta, também garante a
sua adequação à nova carta. Tomemos como exemplo: Não existe sob a vigência da Cons68
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
tituição brasileira de 1988 a espécie normativa “Decreto-Lei”. No entanto, o código penal
continua em vigor, uma vez que foi recepcionado materialmente e formalmente, sob nova
roupagem de lei ordinária.
No caso do inciso V do Decreto-Lei 972/1969 não houve recepção, já que não se
verifica que o conteúdo disposto em tal inciso tenha sido abordado no novo ordenamento
jurídico. A profissão de jornalista não está regulada; fala-se, nesse caso, que não houve
recepção material. Tampouco houve submissão de tal inciso ao processo legislativo legal,
o que significa que não houve recepção formal.
Ricardo Lewandowski, em seu voto, argumentou que “o jornalismo prescinde de
diploma” e que esse ofício apenas exige de seus profissionais “uma sólida cultura, domínio do idioma, formação ética e fidelidade aos fatos”. Ele faz uma interpretação teleológica da norma, interpreta-a buscando seu fim, ao afirmar que tanto ela quanto a antiga
lei de imprensa – também extinta por decisão do STF – tinham como objetivo restringir
informações dos profissionais que faziam oposição à ditadura militar.
O ministro Carlos Ayres Britto, ao também votar pelo fim da exigência do diploma de jornalismo, faz uma distinção entre matérias nuclearmente de imprensa, como o
direito à informação, criação, a liberdade de pensamento, inscritos na CF, e as matérias
reflexamente de imprensa, como direito à indenização e o direito à resposta. Enquanto
estas podem ser objeto de lei específica, monotemática, aquelas não podem ser objeto de
nenhum tipo de lei, são “matérias tabu para o Estado-Legislador”. Ele também faz uma
análise da proporcionalidade em sentido estrito dessa norma, considerando que a exigência do diploma de jornalismo não protege a sociedade de modo a justificar tal restrição ao
exercício da atividade jornalística. O ministro também afirma que o ofício será exercido
por qualificados profissionais, sem a necessidade de restrições, como já foi exercido por
destacados jornalistas como Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Manuel
Bandeira, etc.
Segundo o ministro Cezar Peluso, se houvesse uma aferição de conhecimentos
suficientes de verdades científicas exigidas para a natureza da profissão, o diploma se
justificaria. Entretanto, não há essas verdades indispensáveis no jornalismo, o curso de
Comunicação Social não garante o bom exercício da profissão e não diminui os riscos que
podem ser causados pelo seu mau exercício. Ele também fundamenta seu voto no fato do
jornalismo sempre haver sido bem exercido ao longo dos séculos, independentemente da
exigência do diploma para seus profissionais.
O ministro Celso de Mello, acompanhando o voto do relator, analisa historicamente as Constituições brasileiras desde a época do Império até o período atual, nas quais
sempre foi ressaltada a questão do livre exercício da atividade profissional e acesso ao
trabalho. Ele faz uma interpretação histórica do Decreto-Lei 972/69, procura entender o
contexto de criação da norma e adaptar sua aplicação ao contexto atual, o que ele conclui
não ser possível, devido à origem espúria da lei, editada no período da ditadura militar,
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marcado pela repressão e violência estatal. Para o ministro, “todas as profissões são dignas
e nobres”, mas há de se observar os preceitos constitucionais.
Por fim, os ministros Eros Grau e Ellen Gracie acompanharam o voto do relator
Gilmar Mendes, sem acrescentar algum argumento inédito.
O único ministro a abrir divergência e votar a favor da exigência do diploma para
o exercício da profissão de jornalista, Marco Aurélio trata da questão da segurança jurídica em seu voto. Segundo ele, nos últimos 40 anos, a sociedade se organizou para dar
cumprimento à norma em vigor e vários cursos superiores de jornalismo foram abertos.
Extinguir o DL 972/69 afetaria a crença de milhares de pessoas, que se matricularam em
faculdades, no ordenamento jurídico. Ele também se utiliza de argumentos consequêncialistas, analisando as consequências que o fim da exigência do diploma acarretaria como a
existência de jornalistas de gradações de estudo diversas. O ministro Marco Aurélio também não considera a norma desproporcional a ponto de ser incompatível com as regras
constitucionais que garantem a liberdade de expressão. Segundo ele, é necessário que o
jornalista tenha uma formação básica que viabilize sua atividade profissional, tenha técnicas específicas para exercer bem a profissão e prestar um serviço profícuo à sociedade.
5 Análise crítica
“Artigo 5º, XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;” No caso da profissão jornalista
não existe lei que estabeleça a exigência de diploma de nível superior para quem a exerça;
entende-se que o inciso XIII do artigo 5°, CF/88 está sendo cumprido, de modo que a
decisão do STF não configura inconstitucionalidade.
Sobre o “inciso IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e
de comunicação, independentemente de censura ou licença – trata do direito à liberdade
de expressão e manifestação de pensamento.” O texto constitucional repele frontalmente
qualquer possibilidade de censura prévia. Essa previsão, porém, não significa que a liberdade
de imprensa é absoluta, não encontrando restrição nos demais direitos fundamentais
(grifo nosso), pois a responsabilização posterior do autor ou responsável por injúrias e difamação sempre será cabível em relação a eventuais danos materiais e morais. Podemos pegar no
direito comparado uma disposição sobre o tema: Julgado da Suprema Corte Argentina:
“apesar de no regime democrático a liberdade de expressão ter um lugar
eminente que obriga a particular cautela enquanto se trata de decidir responsabilidade para seu desenvolvimento, pode-se afirmar sem vacilação que ela
não se traduz no propósito de assegurar a impunidade da imprensa.”
A liberdade de expressão deve ser exercida com a devida responsabilidade que se
exige em um Estado Democrático de Direito, de modo que, em caso de desvirtuamento
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para cometimento de atos civis e penalmente ilícitos, possibilite aos prejudicados plena e
integral indenização e efetivo direito de resposta.
Se a exigência de diploma seria a garantia de que tais atos não aconteceriam, estamos diante de um argumento fraco. Não é o diploma que irá determinar o bom uso que
o jornalista fará de tal liberdade, mas sim uma questão de formação ética.
6 Conclusão
Como consequências práticas para a sociedade, deve-se admitir, até mesmo os contrariamente posicionados, que a resolução apresentada pelo STF contra a exigência dos
diplomas baseia-se em argumentos muito mais consistentes e com devido respaldo constitucional; O decreto-lei realmente vai de encontro ao sentido de liberdade da Constituição Federal, confirmando a acertada postura do Supremo Tribunal Federal.
Porém pouca coisa irá mudar na prática, pois o jornalismo não diplomado, antes
informal e agora legalizado, continuará existindo, só que de tal forma que passa a facilitar
o acesso às informações em centros urbanos e rurais de menor porte e afastados dos
grandes centros, que por não possuírem universidades e/ou cursos técnicos, gerariam
uma nova categoria de emprego e um novo serviço social.
Há de se falar também das consequências para o mercado de trabalho, pois agora
existirão mais trabalhadores em busca de emprego nos grandes centros urbanos. Esse
aspecto não é positivo a priori, pois, na prática, os jornalistas que terão melhores funções
e empregos provavelmente serão os que têm curso superior na área de comunicação.
Poderíamos pensar o seguinte: “mas agora nenhum empregador poderá exigir o diploma
para contratar!” Isto, porém, é uma grande falácia, pois uma sociedade empresária como
a Globo, por exemplo, criará exames de seleção para escolher os jornalistas com maiores
conhecimentos específicos, isso sem considerar um eventual exame a partir do critério
subjetivo (e muito questionável) da entrevista.
Sobre os institutos que lecionam conhecimento técnico-superior, estes continuarão
a existir, com a demanda mais ou menos estabilizada no mesmo nível que antes da resolução, pois os profissionais da comunicação que tiverem acesso ao ensino poderão buscar
um melhor conhecimento sobre sua área de atuação.
Para a sociedade como um todo, a qualidade do serviço jornalístico não deverá se
alterar, pois como argumentado acima, o diploma não garante a qualidade do exercício do
profissional, mas sim seu esforço. Ao contrário do que se pensa, com uma maior concorrência no mercado, a qualidade do serviço tende até a melhorar.
Seguindo a questão, podemos concluir que a decisão do STF não é errônea e nem
acarreta tantas mudanças de imediato; porém, materialmente, à longo prazo, existe uma
tendência de melhoria no serviço midiático, facilitando seu acesso à população de menores centros urbanos.
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
71
Referência
CARDOSO, Oscar Valente. Exercício do jornalismo e livre manifestação do pensamento. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2183, 23 jun. 2009. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.
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www.fenaj.org.br/diploma/interesse.htm>. Acesso em: 10 nov. 2009.
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Brasília. 17 jun. 2009. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,por-8-votos-a-1-stf-derruba-exigencia-de-diploma-para--jornalistas,388942,0.htm>. Acesso em: 09 nov. 2009
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Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco. 4ª Ed. São Paulo. Editora Saraiva. 2009
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72
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
O Valor da pureza de Hans Kelsen*
Brahwlio Soares de Moura Ribeiro Mendes**
Resumo:
O artigo esclarece sentidos da obra de Hans Kelsen, buscando demonstrar o verdadeiro
valor intrínseco à pureza metodológica, a saber, o valor da liberdade moral.
Palavras-chave: Hans Kelsen; Pureza; Liberdade moral; Ciência.
Dois professores foram fundamentais para que esse artigo viesse a existir, gostaria de agradecer imensamente a ambos:
Dr. Andityas Soares de Moura Costa Matos e Dra. Cláudia Toledo. Devo, ainda, agradecer a alguém muito importante
que incentivou de todas as maneiras a produção deste trabalho: Letícia Fonseca Braga Machado.
**
Aluno do sexto período do curso de Direito da UFJF.
*
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
Abstract:
The article explains meanings of Kelsen’s works, seeking to demonstrate the true intrinsic
value of methodological purity, the value of moral freedom.
Key words: Hans Kelsen; Purity; Moral freedom; Science.
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Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
1. Introdução
Este trabalho objetiva analisar o pensamento kelseniano, desconstruindo algumas
falsas concepções sobre o Mestre de Viena e sua obra. Em regra os pesquisadores de
índole kelseniana, assim como Kelsen, procuram fazer uma ciência sem conotações ideológicas, ao contrário de seus adversários que encontram na ideologia um grande motor
para suas produções “científicas”. Com isso, muitos dos ataques contra Kelsen, ao invés
de serem lançados contra a coerência de sua teoria, são lançados contra os valores subscritos à pureza kelseniana.
Mesmo que assumamos o pressuposto pregado pelos críticos de Kelsen, segundo
o qual não é possível uma ciência livre de ideologias1, não podemos aceitar que a suposta
ideologia kelseniana seja desvendada somente por seus adversários. Aqui pretendemos encontrar os interesses ocultos na obra do eminente jurista austríaco através de referências à
sua própria obra e não através de distorções alimentadas pelo nosso próprio interesse.
Hans Kelsen nasceu em Praga em 11 de outubro de 1881, período no qual vigia
a monarquia Austro-Húngara (JABLONER, 1998:368) e morreu em Berkeley em 19 de
abril de 1972, tendo deixado cerca de 400 trabalhos, vários deles contando com traduções
em até 24 idiomas (LADAVAC, 1998:394). Georg Henrik von Wright chegou a afirmar
que Kelsen e Weber foram os pensadores que mais profundamente influenciaram a ciência social no século passado, sendo comparáveis somente à influência exercida, mais anteriormente, por Karl Marx2. Neste contexto acreditamos ser possível fazer mais uma conexão entre Kelsen e Marx, mas agora deplorável, assim como Marx, Kelsen é a todo tempo
criticado por pessoas que, quando muito, conhecem partes fragmentárias de sua obra, o
que gera uma espécie de (des)conhecimento popular distorcido de seus pensamentos.
Iniciaremos cada capítulo deste artigo com a citação direta de trechos sobre a obra
kelseniana. Tal será feito para que não sejamos acusados de combater moinhos de vento,
assim pretendemos colaborar para um esclarecimento do verdadeiro sentido da obra de
Kelsen, que nos parece bem diverso do que propõem seus adversários.
Não somente em seus críticos, mas em alguns de seus comentadores, como Óscar Correas, cujas palavras exprimem
bem a idéia deste trabalho: “Me parece que las cosas comienzan a aparecer de otra manera si pensamos el libro de que él llamó Teoría
pura Del derecho como una teoría – una filosofía – de ninguna manera “pura” , que por razones políticas intentó fundar una ciencia pura.”
(CORREAS. El otro Kelsen. p. 28)
2
Referimo-nos a este trecho: “The two figures of this century who have most deeply influenced its social science are – there can be no
doubt – Hans Kelsen and Max Weber. (A comparable influence has been exerted only by Karl Marx but he died long before the century
was born.)” (WRIGHT, Is and Ought. p. 365)
1
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
75
2. A pureza como esquecimento da realidade
O maior perigo desta science pour la science surge quando, prescindindo
olimpicamente dos dados da realidade, eleva ao absoluto um fator social parcial, com o qual pode, certamente, construir um sistema sem
contradições que apresenta, sobretudo, um valor estético, porém que,
na mesma medida, se distancia do conhecimento, cheio de sentido, da
realidade e da direção da conduta social de acordo com um fim. Isto
é aplicável tanto à lógica normativa sem Estado de Kelsen como ao
decisionismo sem normas de Carl Schmitt. (HELLER,1968:8-9)
A crítica exemplificada com o texto de Heller se tornou lugar comum entre os
detratores de Kelsen, para os quais a tentativa de construção de uma ciência pura era, na
verdade, um afastar-se da realidade social e valorativa.
Kelsen, por diversas vezes mostrou não ser esse o sentido de seu trabalho, que ele
mesmo denominou de uma ciência empírica, que, obviamente, não pode prescindir dos
dados da realidade, de modo que “uma teoria do Direito perde o seu caráter empírico e torna-se metafísica apenas se for além do Direito positivo e fizer enunciados sobre algum pretenso Direito Natural”
(KELSEN, 2005:236).
A ciência do direito juspositivista não prescinde da realidade e nem vai além dela,
como pretendem os jusnaturalistas, ela apenas centra-se em seu objeto, como fazem todas as ciências, entretanto o objeto da ciência jurídica não é um dado da natureza, não é
um fenômeno físico, seu objeto é a norma jurídica. Por isso discordamos da acusação de
Heller, Kelsen não prescinde olimpicamente dos dados da realidade, ele estuda profundamente
seu objeto, embora este seja um conjunto de normas e não de fatos. Assim, tanto a ciência
jurídica como a Ética “descrevem normas que constituem valores e, nesse sentido, podem ser chamadas
de ciências ‘normativas’” (KELSEN, 1998:357).
O normativismo kelseniano não pretende excluir outras ciências da apreciação do
fenômeno jurídico, apenas esclarece seus limites. Provavelmente os dados da realidade mencionados por Heller sejam objeto da Sociologia Jurídica, cujo método é mais uma forma
de se apreciar o direito, devendo somar-se ao método da ciência jurídica em sentido estrito
na busca de uma compreensão plena da realidade jurídica e seus efeitos sociais. O próprio
Kelsen mostra não estar alheio à relevância de fatos sociais que sua ciência não tratará,
mas que estarão sob o abrigo da Sociologia:
La frontera importante entre el método jurídico y el sociológico, que
resulta de la diversidad de las formas de ser consideradas ambas ciencias en la medida que una se dirige a un ser determinado, a saber, al
hecho social, y la otra a un deber ser determinado, a saber, el legal, esta
76
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
frontera es la que los juristas se sienten tentados a cruzar cuando, más
allá del reconocimiento de un deber, más allá de normas legales, aspiran a dar una explicación del hecho efectivo que ha de ser reglamentado
por esta norma jurídica. (KELSEN, 1989a:290-291)
A título exemplificativo da conotação prática da ciência kelseniana podemos citar
sua constatação científica da representação democrática como ficção, tratada em um tópico chamado A ficção da representação em sua Teoria geral do direito e do Estado (KELSEN,
2005:413). Em tal tópico o autor analisa as normas vigentes na maioria das atuais democracias que não dão ao cidadão qualquer poder jurídico sobre os atos políticos de quem
elegeu para representá-lo. Dessa forma o político eleito está juridicamente autorizado a
agir em desconformidade com a vontade de quem supostamente representaria, ou seja,
perante o direito não está mais obrigado a seguir a vontade dos eleitores do que estaria
um monarca absolutista em seu trono. Não vemos como tachar de apartada da realidade
e possuidora apenas de valor estético uma ciência que conclui:
A independência jurídica do parlamento em relação ao povo significa
que o princípio de democracia é, até certo ponto, substituído pelo de
divisão de trabalho. A fim de dissimular essa mudança de um princípio
para outro, usa-se a ficção de que o parlamento “representa” o povo.
(KELSEN, 2005:418)
Acreditamos que Kelsen não se afasta da realidade social, e nem nega que ela se destina a um fim, apenas assume a posição honesta de que esse fim não pode ser logicamente
encontrado em nenhuma ciência. Um cientista pode afirmar que a Democracia é ou não
um meio adequado para se atingir o fim da liberdade, mas jamais poderia, sem deixar de
fazer ciência, pôr a liberdade como fim supremo a ser alcançado, “a ciência pode determinar os
meios, mas não pode determinar os fins” (KELSEN, 1998:351). Daí o valor oculto nessa posição
epistemológica kelseniana ser o reconhecimento da autonomia moral dos indivíduos, que
não têm razões lógicas para abdicar de suas consciências em favor da ciência, podendo
esta mostrar apenas meios e jamais os fins da existência humana.
3. A pureza como imperativo de normas sem finalidades
“Para o imperativo puramente jurídico, isto é, incondicionalmente heterônomo, a finalidade é, por
si própria, secundária e indiferente. ‘Tu deves a fim de que...’, esta formulação, para Kelsen, não é mais o
‘Tu deves’ jurídico.” (PASUKANIS, 1989:16).
Se tal afirmação pretende dizer que para Kelsen a norma jurídica se formula apenas
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
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como um “Tu deves” categórico, está completamente equivocada. A ciência do direito kelseniana constatou que as normas jurídicas não são nem um “Tu deves a fim de que” e nem um
“Tu deves”. As normas jurídicas são imperativos hipotéticos de imputação e não categóricos
ou causais, estruturando-se da conhecida forma: “se X, então deve ser Y”, sendo X hipótese
para a aplicação da conseqüência jurídica Y. Tal raciocínio é presente em toda teoria kelseniana, o que o permite entender o delito não como negação do direito, o que de fato seria
se as normas jurídicas se estruturassem sob a forma do “Tu deves”, mas como pressuposto
do direito, no sentido de ser a concretização da hipótese X à qual é imputada a conseqüência
Y. Tal construção possui um tópico específico em sua Teoria pura intitulado O ilícito (delito)
não é negação, mas pressuposto do direito (KELSEN, 2006:124). Inobstante à lógica científica
do argumento kelseniano, o valor que encontramos sob essa construção é, novamente, o
fortalecimento da liberdade moral dos indivíduos. A introjeção das normas jurídicas como
imperativos categóricos geram a ilusão, tão comum, de que aquelas normas têm de necessariamente ser obedecidas, mas na verdade o que há é apenas uma sanção vinculada a uma
conduta. Isso deixa claro que o individuo pode, e para nós também deve, fazer o que suas
convicções morais exigirem, ainda que o direito recomende o contrário. Dessa maneira não
se renuncia irrefletidamente à própria consciência em favor da consciência do legislador.
De outra forma, Pasukanis não encontra maior sucesso se sua intenção for apenas
afirmar que em Kelsen a finalidade da norma jurídica é irrelevante. A finalidade da norma
pode ser encontrada por diversos métodos, que provavelmente darão respostas diferentes.
O resultado vai depender do método que utilizamos para interpretar a norma, “Existem,
é claro, diferentes métodos de interpretação. [...] Se o próprio direito não prescreve um desses métodos,
cada um deles é aplicável e pode levar a um resultado diferente de outro.” (KELSEN, 1998:367). O
intérprete oficial do direito vai interpretar a norma no caso concreto, consubstanciando o
que acreditar ser sua finalidade e a ciência jurídica não é inútil nesse processo. O cientista
do direito pode analisar a norma encontrando suas possíveis interpretações, dessa forma
“Ao mostrar as possibilidades que a lei a ser aplicada abre à autoridade jurídica, o cientista jurídico
serve cientificamente à função aplicadora do direito” (KELSEN, 1998:367). O que a ciência do
direito não tem capacidade para fazer honestamente é eleger entre essas possibilidades
de interpretação aquela que seja a mais correta cientificamente. Visto que vários métodos
interpretativos estão autorizados pelo direito, a escolha entre as possibilidades transcende
questões científicas. Nesse ponto podemos notar mais uma característica kelseniana, a de
não superestimar a ciência, reconhecendo a influencia de fatores não científicos, mas nem
por isso menos importantes, na aplicação e criação do direito.
Por fim, se o que Pasukanis pretende é afirmar que para Kelsen o direito não dá a
resposta sobre sua própria finalidade, no sentido de que não diz a razão pela qual devemos
cumprir suas normas, então o autor russo está correto. A pureza kelseniana não o permite
dar ao direito nenhum fundamento conteudístico, por isso Kelsen afirmou por diversas
78
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
vezes a neutralidade axiológica de sua norma fundamental3, mas isso não significa que
Kelsen legitime qualquer ordenamento, justificando a obediência a qualquer direito. Pelo
contrário: “La razón para fundar una ciencia pura del derecho no consiste en justificar todo poder, sino
en lo contrario: despojar de toda justificación “científica” a cualquier poder” (CORREAS, 1989:28).
Com isso vemos que a norma fundamental exprime um valor, o de não colocar uma pedra sobre a pergunta acerca da razão da obediência ao direito. A grundnorm não encerra
esse problema invocando a autoridade divina, natural ou racional abstrata, ela deixa isso
em aberto, para que cada cidadão possa decidir subjetivamente, não apenas o porquê de
se obedecer ao direito, mas também se ele deve ou não ser obedecido. Vemos, portanto,
novamente a liberdade moral como valor intrínseco à pureza kelseniana.
4. A pureza como subserviência ao Estado
Em outras palavras, levar a sério o direito que o indivíduo possui de
rebelar-se contra esta ou aquela lei existente, quando ela lhe parece
injusta, mesmo que a lei em questão tenha sido objeto de uma decisão
democrática refletindo a opinião da maioria dos cidadãos. [...] É uma
tese audaciosa, pois equivale a restituir (contra Hobbes, contra Kant e
contra o “positivismo” de um jurista kantiano como Hans Kelsen) um sentido forte ao direito de “desobediência”, direito invocado, com todas as letras, na Declaração de Independência americana e
depois reivindicado por Henry David Thoreau (DELACAMPAGNE,
2001:129)
É curioso Christian Delacampagne ter colocado Kelsen e Thoreau como antípodas, tal não parece ser a opinião de um dos grandes especialistas em Kelsen, que em seu
estudo Filosofia do Direito e Justiça na obra de Hans Kelsen, escolheu como epígrafe um trecho
da Desobediência Civil de Thoreau (MATOS, 2005:IX). Matos demonstra que “faz parte da
essência do positivismo jurídico negar a teoria da obediência absoluta à lei” (MATOS, 2008:122), sendo particularmente notável tal posicionamento na teoria kelseniana, na qual fica à consciência de cada homem a decisão de obedecer ao direito ou rebelar-se contra ele (MATOS,
2008:123). A pureza em Kelsen se deve, em boa medida, ao seu relativismo filosófico, pilar fundamental a toda teoria verdadeiramente juspositivista. No seguinte trecho, também
citado por Matos, percebemos que o mestre de Viena, ao contrário de combater, parece
se aliar a Thoreau:
Como bem nota Adreas Kalyvas: “Kelsen repeatedly emphasized the emptiness of the basic norm. Devoid of any substantive meaning
or value, the basic norm is free from material or axiological elements.” (KALYVAS, The basic norm and democracy in Hans Kelsen’s legal
and political theory. p. 577)
3
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
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o relativismo impõe ao indivíduo a difícil tarefa de decidir por si mesmo o que é certo e o que é errado. Isso implica, sem dúvida, uma séria
responsabilidade, a mais séria responsabilidade moral que um homem
pode assumir. O relativismo juspositivista significa autonomia moral
(KELSEN, 2000:382)
Portanto, não é correto atribuir a Kelsen qualquer caráter subserviente ao Estado,
sua ciência é neutra – imprestável a qualquer justificação política – e sua filosofia é relativista, ou seja, não o permite renunciar à própria consciência em favor do quer que seja.
O próprio Kelsen, em texto interessantíssimo intitulado Dios y Estado, denunciou
a tendência de renuncia à autonomia moral em favor da ordem social, fenômeno no qual
o Estado, assim como Deus no contexto religioso, é introjetado como um pai, o qual deve
nos mostrar como viver e ao qual devemos respeito, gerando uma relação de subordinação e dependência do indivíduo com o Estado (KELSEN, 1989b:243). O autor menciona
como pode ser avassaladora a dominação do Estado sobre o sujeito,
no es cosa rara observar el enorme y sorprendente poder con el que
la autoridad social constriñe a los hombres, en contra de sus instintos
más profundos, a renegar de su fundamental voluntad de vivir y de su
instinto de conservación, empujándolos a autosacrificarse con el máximo júbilo. (KELSEN, 1989b:244)
No mesmo escrito Kelsen confessa as conseqüências éticas e políticas de sua conhecida teoria de superação do dualismo entre direito e Estado. A igualação kelseniana,
ao identificar direito e Estado, dizendo ambos serem a mesma coisa, não menospreza a
importância do povo ao desconsiderá-lo como elemento extrajurídico do conceito de Estado, ao contrário, reconhece a importância dos homens independentemente do Estado.
Nas palavras do positivista:
Al enseñarle a concebir al Estado como el simple orden jurídico, este
tipo de anarquismo despierta en el individuo la conciencia de que este
Estado es obra humana, hecha por hombres para hombres y que de
la esencia del Estado, por consiguiente, no puede deducirse nada que
vaya en contra del hombre. (KELSEN, 1989b:265)
Por fim, restaria uma última possibilidade de salvação do posicionamento de Delacampagne, seria dizer que o autor está se referindo especificamente à desobediência de
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Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
normas democraticamente postas. Com isso, sendo Kelsen um notório partidário da democracia, poderíamos inferir que a própria democracia justificaria a necessidade de obediência à ordem jurídica, tal, para ele, não ocorre. Esse ponto merece um tópico especifico,
no qual ficará clara a completa danação da afirmação do autor francês sobre Kelsen.
5. O reflexo da pureza kelseniana em sua teoria democrática
El relativismo —concluye Radbruch— es tolerancia, en general, menos con respecto a la intolerancia”. De esta manera, el relativismo de
Kelsen, esto es, su convicción acerca de la imposibilidad de zanjar por
métodos racionales la controversia entre las diversas ideas o doctrinas
acerca de lo justo o conveniente en relación con el contenido del orden
social, no es absoluto, o sea, ese relativismo es en sí mismo relativo,
puesto que, para favorecer precisamente la concurrencia de todas las
opiniones, valora positivamente la democracia y la tolerancia, estimadas ambas como condiciones indispensables para que pueda tener lugar, en el hecho, la confrontación de los distintos puntos de vista y la
transacción razonada y pacífica que pone fin a la lucha de las opiniones.
(SQUELLA, 1984:60)
Squella, como se nota no trecho acima, pretende aplicar a conclusão de Radbruch ao relativismo kelseniano e, conseqüentemente, à sua teoria democrática. Assim, a
democracia não aceitaria a veiculação de idéias autocráticas e a tolerância seria negada
aos intolerantes. Tal constitui uma espécie de paradoxo, no qual se acredita fortalecer a
tolerância negando-a aos intolerantes, e, conseqüentemente, fortalecer a democracia ao
negar o direito de expressão de idéias autocráticas (MENDES, 2009:138). Kelsen rejeitou
expressamente esse paradoxo.
Kelsen, assumidamente partidário da democracia em suas convicções pessoais
(KELSEN, 1998:25), jamais a afirmou como o bem absoluto. O trecho supracitado
obscurece e distorce a idéia kelseniana ao falar de duas espécies de relativismo, a saber,
o relativismo relativo, ao qual, segundo Squella, se filia Kelsen, e o relativismo absoluto. Ocorre que ao qualificar o relativismo como relativo ou absoluto, esses termos
qualificadores já não tem nenhuma ligação com o sentido kelseniano de absolutismo e
relativismo filosófico. Da maneira utilizada por Squella o “relativo” passa a significar aderência parcial à idéia do relativismo filosófico e o “absoluto” significaria aderência total ao
relativismo filosófico. Caso adotássemos essa classificação o relativismo relativo não seria
mais do que um absolutismo favorável à democracia. Como adversário do absoluto, Kelsen
não o adotou nem para “proteger” sua forma preferida de governo, a democracia. Pois,
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
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O princípio moral que fundamenta – ou do qual se pode deduzir
– uma doutrina relativista de valores é o princípio da tolerância:
é a exigência de compreender com benevolência a visão religiosa
ou política dos outros, mesmo que não a compartilhemos, e, exatamente porque não a compartilhamos, não impedir sua manifestação pacífica. (KELSEN, 1998:24)
e, ao contrário do que afirma Squella, esse direito de manifestação é garantido inclusive
aos adversários da democracia e da tolerância, como podemos notar nas corajosas palavras de um judeu que conheceu pessoalmente o peso de uma autocracia4:
Mas a democracia pode continuar tolerante, se precisar se defender
de intrigas antidemocráticas? Pode! – na medida em que não reprimir
demonstrações pacíficas de opiniões antidemocráticas. É exatamente
nessa tolerância que reside a diferença entre democracia e autocracia.
Teremos o direito de negar a autocracia e de ter orgulho de nossa forma de governo democrática apenas enquanto mantivermos essa diferença. (KELSEN, 1998:24)
Vemos nesse posicionamento de Kelsen mais um traço de sua pureza, que o permitiu ver que a democracia não é protegida e muito menos sai fortalecida ao proibir a
propagação de idéias antidemocráticas. Ao contrário, tal significa o próprio colapso da
democracia, que ao proibir a expressão de idéias antidemocráticas absolutiza o ideal democrático, fundando, portanto, uma autocracia. A postura kelseniana, ao defender a livre
formação das consciências, que devem poder ter acesso a todas as ideologias, não somente a democrática, reafirma que Kelsen valoriza mais o homem que o Estado, ainda que
seja um Estado democrático.
A manifestação da pureza kelseniana em sua teoria da Democracia é evidenciada no
trecho acima não por sua neutralidade valorativa, mas pela constatação corajosa de que
uma democracia que não garanta o livre discurso inclusive aos antidemocráticos não se diferencia axiologicamente de uma autocracia. Qualificamos como corajoso o pensamento
kelseniano por percebermos que os teóricos democráticos que advogam postura diversa
Referimo-nos ao período entre 1933 e 1940, ao final do qual, devido ao anti-semitismo, Kelsen, aos 60 anos de idade
e sem dominar a língua inglesa, mudou-se para os Estados Unidos da America, onde teve de construir uma nova vida,
sem possuir qualquer certeza sobre sua carreira ou futuro. (LADAVAC, Hans Kelsen (1881-1973) Biographical note and
Bibliography. p.393)
4
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Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
parecem não se pautar em critérios científicos, apenas inserem em sua “ciência” seu medo
pessoal de que as idéias antidemocráticas prevaleçam no mercado de idéias (MENDES,
2009:139).
6. Conclusão
Acreditamos que o problema é mais sério do que coloca Matos (MATOS, 2008:127),
é urgente a leitura inclusive da Teoria Pura do Direito, cujo conhecimento já bastaria para
desmentir diversos (des)entendimentos que caminham livremente no “boca-a-boca” de
alunos, professores e escritores de Direito.
Esperamos que esse trabalho, cujo próprio objetivo exigiu um grande número
de citações diretas, tenha mostrado ao leitor quão problemático pode ser estudar Kelsen
através de comentadores. Afinal, num meio onde a maioria parece estar mais interessada
em justificar a bondade intrínseca ao direito do que em vê-lo como ele é, um autor que
denuncia,
O problema do direito natural é o eterno problema daquilo que está
por trás do direito positivo. E quem procura uma resposta encontrará
– temo – não a verdade absoluta de uma metafísica nem a justiça absoluta de um direito natural. Quem levanta esse véu sem fechar os olhos
vê-se fixado pelo olhar esbugalhado da Górgona do poder. (KELSEN.
2001:XX)
realmente não será visto com bons olhos.
Sob a perspectiva adotada nesse trabalho, que se valeu primordialmente de citações
diretas às obras kelsenianas, nos parece que o valor oculto na pureza do pensamento de
Kelsen não é o da idolatria ao Estado, não é o da ciência cega à realidade e nem o do
direito sem finalidades, o valor que integra sua pureza é o valor da liberdade moral, colocada muito acima do valor da ordem social, posição problemática para os que servem
cegamente ao direito ou Estado. Assim, uma ciência pura não somente garante a liberdade científica perante a política, garante também a liberdade política e moral do individuo
perante a ciência.
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
83
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Perspectivas democráticas à judicialização da
política no Brasil*
Luiz Carlos Silva Faria Junior**
RESUMO:
O presente trabalho tem por escopo apresentar diversas perspectivas democráticas acerca
da judicialização da política no Brasil, partindo de diferentes referenciais teóricos, como
Cass Sustein, Robert Alexy e David Hume, e se valendo do direito comparado para discutir questões centrais da temática. Trata-se da questão da reserva do possível ter sido
“importada” e utilizada sem uma adequação prévia à realidade brasileira, do princípio
da separação dos poderes e o déficit democrático brasileiro e da questão da democracia
como pressuposto para a fruição de direitos básicos.
PALAVRAS-CHAVE: Judicialização da Política, Democracia, Direitos Fundamentais,
Cass Sustein, Robert Alexy, David Hume.
Agradecimentos especiais às colegas acadêmicas Franciene Almeida Vasconcelos, Natália Sales, Luciana Tasse, Bárbara
Machado e Maíla Lúcia Leal de Oliveira, que contribuíram flagrantemente para a formulação das conclusões contidas
no trabalho.
**
Graduando em Direito no 5º Período pela Universidade Federal de Juiz de Fora.
*
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
ABSTRACT:
The present article has for target introduce varied democratic perspectives about the judicialization of politics in Brazil, basing itself in different theoretical referentials, like Cass
Sustein, Robert Alexy and David Hume, and using the comparative law to discuss central
questions of the theme. The article treats about the topic of the possible reserve had been
“imported” and used without a previous adequacy to the brazilian reality, about the principle of separation of powers and the brazilian democratic deficit, and about democracy
as a presupposition to the basic rights fruition.
KEYWORDS: Judicialization of Politics, Democracy, Fundamental Rights, Cass Sustein,
Robert Alexy, David Hume.
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1 Introdução
Em um Estado Democrático de Direito como no Brasil, não há mais que se dizer
que a judicialização da política é uma tendência, ela é um fato, como bem aduz Cappelletti1. A Constituição de 1988 trouxe consigo esse fenômeno que a cada dia se torna mais
presente no mundo. As Constituições do moderno Estado Dirigente2 impõem objetivos
certos aos órgãos estatais e à sociedade civil. Na Constituição brasileira, por exemplo, há
no art. 3º orientações para o funcionamento estatal e organização da sociedade3, no art.
203 há as finalidades próprias da atividade de assistência social4, e os exemplos não se
esgotam5.
O debate sobre a judicialização da política, tão presente ultimamente, só recentemente entrou a fazer parte das cogitações da teoria jurídica, pois era uma realidade inexistente e desimportante antes da revolução industrial. E com os anos atingiu relevância
com as constituições sociais. Ao adotar uma constituição, por muitos classificada como
social, incluindo um extenso rol de Direitos Fundamentais6, o constituinte entregou ao
Legislativo e ao Executivo uma grande missão, a de concretizar tudo o que foi posto. O
que antes já era difícil, com a concepção dos princípios constitucionais como normas de
eficácia plena e, portanto, exigíveis positivamente, se tornou uma tarefa quase impossível
para o quadro administrativo nacional, o que abriu espaço para a atuação do Judiciário7.
O seguinte estudo possui uma evolução muito clara da sua linha de raciocínio:
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? – Tradução de Carlos Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris Editor, 1999.
2
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Política: Uma Relação Difícil. Revista Lua Nova, n.61, 2004.
3
Art. 3º. Constituição Federal de 1988 - “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I
- construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e
a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
4
Art. 203. Constituição Federal de 1988 – “A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente
de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; II - o amparo às crianças e adolescentes
carentes; III - a promoção da integração ao mercado de trabalho; IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras
de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; V - a garantia de um salário mínimo de benefício
mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção
ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.”
5
COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o Juízo de Constitucionalidade das Políticas Públicas. In Revista dos
Tribunais. São Paulo: RT, ano 86, v. 737, mar. 1997, Pags. 11/22.
6
“Não só os direitos do homem, considerado em sua individualidade, mas todos os direitos consagrados positivamente na constituição.” – GUERRA FILHO, W. S. A Jurisdição constitucional no Brasil: observações a partir do Direito
constitucional Comparado. Anuário Iberoamericano de Justiça Constitucional Centro de Estudios Politicos y Constitucionales, Madrid, v. 5, p. 151-168, 2001.
7
“A Judicialização da Política ocorre porque os tribunais são chamados a se pronunciar onde o funcionalismo do Legislativo e do Executivo se mostra falho, insuficiente ou insatisfatório.” – CASTRO, Marcos Faro de. O Supremo Tribunal
Federal e a Judicialização da Política. 2009. In <www.anpocs.org.br>.
1
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primeiro uma análise de alguns referenciais teóricos sobre a temática; o que se encontra
na primeira parte do trabalho. Na segunda parte discute-se a evolução do Estado até o
contexto presente de ativismo judicial, discutindo muitos dos argumentos levantados por
grande parte da doutrina e estabelecendo um debate sobre a judicialização da política no
Brasil à luz da democracia, valendo-se também do Direito comparado para analisa quais
as influências que esta traz para temática no país, que possui um sistema judiciário peculiar
e um quadro político ímpar.
I. Referenciais teóricos acerca da judicialização da política
1. A evolução do conceito de democracia
A Democracia sempre gerou grandes discussões acerca da sua definição, tão buscada por tantos teóricos desde a sua primeira oficial aparição. Tal pluralidade de definições se deu pela mudança do sentido social da forma de governo. No contexto do seu
surgimento, a “democracia dos antigos” pregava uma liberdade política8, “um governo
do povo, pelo povo e para o povo”9, em que a noção de povo não englobava todos os
cidadãos da polis grega. Era um regime submetido às tradições pretéritas, marcado pelo
preconceito e discriminação, mas que mudou os rumos da política antiga e deixou de ver
a religião como criadora da lei, para ter o interesse comum como objetivo de governo,
possibilitando que os cidadãos participassem efetivamente da política10. Tal revolução
possibilitou que o indivíduo comum, porém abastado, pudesse participar da formação da
vontade coletiva e lutar diretamente pelos direitos necessários a toda a comunidade.
Entretanto, essa idéia do governo do povo ficou adormecida por muito tempo após
a conquista da Grécia por Roma e da queda do Império Romano. A religião retomou o
seu lugar como criadora da lei através do Direito Divino dos Reis11, sendo redescoberta
a hibernante democracia pelos filósofos iluministas do século XVIII. Mas não era mais
viável adotar o modelo de Democracia direta utilizado pelos gregos, sendo necessário
agregar a ele a idéia de representação. O povo elegeria periodicamente seus representantes, que elaborariam as normas e regeriam a res publica.
Dentro do Estado Social, a Democracia ganhou uma nova conotação, de modo a
evitar que esta se tornasse uma ditadura da maioria. A democracia seria o governo em que
CONSTANT, Benjamim. De la liberté des anciens comparée à celle des modernes; 1819.
Abraham Lincoln.
10
COULANGES, Fustel. A cidade Antiga. Ed. Martin Claret, 2002.
11
BURGESS, Glenn. “The Divine Right of Kings Reconsidered” The English Historical Review 107 No. 425 (October
1992:837-861)
8
9
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o povo escolhe seus representantes que tomam as decisões salvaguardando os interesses
das minorias. A expansão do poder de controle exercido pelo Judiciário não prejudica a
democracia representativa, antes lhe favorece, pois dá às minorias sem representatividade
a possibilidade de se utilizar do processo judicial contra as instâncias do poder12.
2. Judicialização da Política: de Sustein a Alexy
A justiça brasileira é uma das mais ativistas do mundo, se desprendendo do minimalismo antes predominante, que valorizava mais a estrutura do poder tripartido do Estado
do que o bem-estar e a dignidade da pessoa humana. O constitucionalismo tradicional13
vê nos direitos sociais normas de caráter programático14, o que veda a exigência de prestações positivas e deixa os direitos sociais praticamente desprotegidos diante das omissões
estatais, contrariamente ao texto constitucional15.
Cass R. Sustein defende o minimalismo judicial, a limitação do papel das cortes,
baseado no fato do Poder Judiciário possuir sérios limites institucionais que ensejam uma
diminuição do seu potencial transformador (reforma social).
De forma bastante resumida, os problemas de uma postura ativa do judiciário definidos por Sustein16 são a “democracia, cidadania, compromisso”, no sentido de que a dependência nas cortes reduz os canais democráticos de procura por mudanças, desviando recursos da política e enfraquecendo o sentimento de cidadania da população pela distância da
condução das políticas públicas; a “falta de eficácia”, segundo a qual as decisões Judiciais são
geralmente ineficazes em promover mudanças sociais17; e “o foco limitado da adjudicação”,
pois a adjudicação é um sistema pobre para se atingir uma reforma social em larga escala,
a atenção no litígio torna mais difícil que os juízes entendam a questão, freqüentemente de
efeitos imprevisíveis na intervenção legal (gerando desequilíbrio orçamentário).
Segundo Stein, somente em raros casos é que as cortes deveriam interferir em políticas aprovadas por processos democráticos no minimalismo judicial, como quando envolve
VERBICARO, Loiane Prado. A Judicialização da Política à Luz da Teoria de Ronald Dworkin. Pag. 7.
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Política: Uma Relação Difícil. Revista Lua Nova, n.61, 2004.
14
BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. P. 116-120
15
Constituição Federal. Art 5º. §1º: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.”
16
SUSTEIN, Cass. The Partial Constitution. Cambridge: Harvard University Press, 1994, pp. 142-149.
17
Caso Brown v. Board of Education - a decisão da Suprema corte em Brown é aclamada por ter mostrado a habilidade do
judiciário em reformar grandes instituições sociais, e de ter abolido o apartheid nos EUA. Na verdade, Brown confirma a
fraca posição institucional do judiciário. Dez anos após a decisão, não mais que 1.2% das crianças negras no Sul participavam de escolas que haviam abolido a segregação. Segundo ele, é possível que as ações do legislativo e do executivo
não teriam ocorrido sem a influência do caso Brown. Mas mesmo isto é altamente incerto. Existe pouca evidência de
que o caso Brown tenha dado um ímpeto à ação política. – VERBICARO, Loiane Prado. A Judicialização da Política à
Luz de Ronald Dworkin.
12
13
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direitos centrais para o processo democrático e cuja solução deve ser estranha à política (direito ao voto), ou quando envolve grupos ou interesses que pela natureza são incompatíveis
a uma justa deliberação em processos democráticos (proteção das minorias).
No lado oposto da balança está o modelo proposto por Robert Alexy18, o modelo
dos direitos subjetivos prima facie. Segundo ele, os direitos sociais são direitos subjetivos de
aplicação imediata prima facie, mas que possuem natureza principiológica, devendo haver
ponderação no caso concreto anteriormente ao reconhecimento definitivo. Nesta ponderação pesa-se o direito em si, os princípios básicos do Estado e a situação concreta, mas a
ponderação necessita ser racional, como propõe Sarmento19, ela precisa ser acompanhada
de Standards que a estruturem e a limitem.
Luís Roberto Barroso20 classifica as normas constitucionais em normas definidoras de direitos, normas de organização e normas programáticas. O autor caracteriza os
direitos fundamentais como normas definidoras de direitos, ou seja, normas que podem
produzir de imediato, com a entrada em vigor da Constituição, todos os efeitos jurídicos
a que se dispõem, não necessitando de normatização ou complementação infraconstitucional, possuindo aplicabilidade plena. Dando ao judiciário a liberdade para questionar a
aplicação de tais direitos e para agir de forma a compelir as esferas governamentais ao seu
cumprimento.
Mas não devemos também ver os direitos sociais como “direitos subjetivos defini21
tivos” , visto que diante da escassez de recursos do Estado, a prestação plena de todos
os direitos sociais acabaria com a instituição, comprometendo todo seu orçamento e engessando o governo.
A democracia funciona como argumento indireto das duas teorias que caminham
para lados opostos. Para Sustein, uma postura muito ativa do judiciário é contrária a democracia, pois reduz a procura pelos canais democráticos, levando a uma baixa no sentimento de cidadania do povo.
Já Alexy defende uma aplicação imediata das normas constitucionais, de modo a
autorizar indiretamente o judiciário a compelir o poder público à efetivação dos direitos
positivados, em nome da democracia, pois os governantes devem buscar a vontade do
povo, que se encontra positivada na constituição.
ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos fundamentales. Madrid: Centro de estúdios constitucionales, 1993.
SARMENTO, Daniel. A Proteção Judicial dos Direitos Sociais: Alguns Parâmetros Ético-Jurídicos. In: SOUZA
NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel. (Orgs.). Direitos Sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais
em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 570.
20
BARROSO, Luís Roberto. Constituição Federal do Brasil Anotada. São Paulo: Saraiva, 1998, 1296 p.
21
SARMENTO, Daniel. A Proteção Judicial dos Direitos Sociais: Alguns Parâmetros Ético-Jurídicos. In: SOUZA
NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel. (Orgs.). Direitos Sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais
em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 570.
18
19
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3. A Lei de Hume e o custo dos direitos
Um dos argumentos mais utilizados contra a judicialização da política é a falta de
recursos de que o Estado dispõe para que se faça cumprir integralmente as necessidades
do cidadão. E realmente a premissa é verdadeira, o Estado não possui recursos suficientes
para prestar plenamente todos os direitos fundamentais positivados na constituição de 1988,
mas nem por isso esses direitos devem ser negligenciados e a constituição preterida.
Assim como os direitos sociais, todo e qualquer direito demanda gasto ao ser concretizado. Tomemos como exemplo os direitos políticos, as eleições municipais de 2008
demandaram 600 milhões de reais dos cofres públicos em estrutura para sua realização,
fora as verbas de propaganda, segundo o TSE22. E nesse caso dos direitos políticos, o
esforço para que todas as pessoas do território nacional tenham a possibilidade de votar e
ajudar a compor a vontade política do país se baseia na liberdade e na democracia tão valorizadas na Grécia antiga, direito igualmente fundamental ao direito à vida e à educação
protegido pelo “ativismo” dos tribunais brasileiros.
Tomando como referencial teórico David Hume, em seu Tratado da Natureza Humana23, este traz uma interessante máxima lógica.
A Primeira Lei de Hume diz que o que pertence ao domínio do dever ser nunca
pode ser deduzido somente do que pertence ao domínio do ser. O que a grosso modo significa que o que deve ser não pode ser retirado exclusivamente do que é. Uma conclusão
pertencente ao dever ser não pode advir de um conjunto relevante de premissas contido
no ser.
De modo simples traduz-se quatro das treze formulações de barreiras lógicas entre
o âmbito do dever ser e o âmbito do ser trazidas no trabalho de Frank Thomas Sautter24,
estudioso do trabalho de David Hume:
“- Se uma conclusão pertence ao âmbito do dever ser, então nenhum conjunto relevante de premissas para essa conclusão tem elementos pertencentes exclusivamente
ao âmbito do ser.
- Se há um conjunto relevante de premissas para uma conclusão cujos elementos
pertençam exclusivamente ao âmbito do ser, então essa conclusão não pertence ao
âmbito do dever ser.
- Se uma conclusão pertence ao âmbito do dever ser, então todos os conjuntos relevantes
Para a informação sobre o custo das eleições municipais de 2008 vide: <http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/
perguntas_respostas/eleicoes_2008/index.shtml#4>
23
HUME, David. Tratado da Natureza Humana: uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos
assuntos morais. Trad. Débora Danowski. – 2.ed. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
24
SAUTTER, F. T. A brief historic-analytical study of Hume’s Law. Trans/Form/Ação. São Paulo, v.29(2), 2006.
22
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
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de premissas para essa conclusão têm ao menos um elemento pertencente ao âmbito
do dever ser.
- Se há um conjunto relevante de premissas para uma conclusão que não tem elementos pertencentes ao âmbito do dever ser, então essa conclusão não pertence ao âmbito
do dever ser.”
Essas quatro formulações já explicitam a relação lógica entre o ser e o dever ser.
As outras nove trazidas por Sautter apenas detalham e reafirmam as conclusões tiradas
nas quatro primeiras. Uma conclusão pertencente ao âmbito do ser apenas pode conter
premissas pertencentes ao âmbito do ser, enquanto que uma conclusão do dever ser deve
possuir pelo menos uma premissa calcada no dever ser, mesmo que todas as outras se
estabeleçam no ser.
Trazendo essa análise lógica da Lei de Hume para a problemática da judicialização
da política no que tange aos direitos sociais como normas de aplicação imediata, tem-se
basicamente que a premissa da real (ser) escassez de recursos do Estado não gera a conclusão de que não se deve prestar de forma suficientemente protetiva os direitos sociais.
Pelo contrário, as premissas de que os direitos sociais devem ser protegidos e devem ter
aplicabilidade imediata leva à conclusão de que os direitos sociais devem ser aplicados e
prestados de forma eficaz.
Ii. Judicialização da política sob uma perspectiva democrática
1. A judicialização da política como resultado da atividade legislativa
Uma análise mais atenta à evolução do fenômeno da judicialização da política nos
leva aos modelos de Estado Social, mais especificamente ao Estado do bem-estar social,
resultado da atividade legislativa, como bem relatou Koopmans:
“o tipo de estado que, com expressão aproximativa, chamamos welfare state, foi
principalmente o resultado da atividade legislativa. Os primeiros passos foram tomados na área da política social, mediante legislação pertinente ao direito do trabalho, da saúde e da seguridade social.”25
O Brasil não adotou o modelo do Estado Social de forma tão determinada e esclareci-
25
94
KOOPMANS, T. Legislature and Judiciary – Present Trends, em New Perspectives, Pag. 309.
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
da como os países da Europa, porém o Estado vem adotando algumas medidas positivas em
relação a problemas conjunturais, como a CLT no período getulista, e a Constituição Federal
de 1988 trouxe diversas prescrições notadamente características de um Estado social26.
O Estado social levou o governo a tomar decisões positivas no sentido de implantar
políticas públicas, gerando um problema em relação aos efeitos colaterais das decisões e
o seu necessário controle, o problema das “externalities”27. Esse problema impôs e impõe
aos governos o desafio de direcionar decisões individuais para que rumem de acordo com
as finalidades sociais sem estrangular o crescimento econômico.
A solução encontrada pelos países possuidores de uma constituição social, como
a brasileira, foi a formulação de preceitos legislativos de modo a controlar os efeitos das
decisões governamentais. No entanto, o excesso de leis levou ao fenômeno da “Orgia
das Leis”28, mudanças legislativas constantes criando certa insegurança jurídica e falta de
conhecimento legal por parte dos operadores do direito.
Com o Estado do bem-estar social a estrutura legislativa se alterou. A técnica antiga se mostrou insuficiente ao trazer somente regras de conduta, quando se tratava de
legislação social. Esta dispôs nas leis sobre a criação de entes governamentais sociais que
receberam certas atribuições decisórias e de regulamentação, as agências reguladoras29.
Diante de tal situação, o welfare state que originalmente constituía um Estado Legislativo, passou a cada vez mais dar espaço ao Executivo, tornando-o um Estado Administrativo, permitindo que certas matérias sociais fundamentais fossem reguladas por atos
administrativos, de modo a viabilizar políticas públicas.
O papel do governo não pôde mais se restringir à proteção e repressão, teve também que ser promocional. É neste ponto, de exigência de intervenção ativa do Estado de
forma continuada, que o Judiciário é inserido, de modo a cobrar que o Executivo torne
efetivos os princípios sociais constitucionais e legais, exigindo sua intervenção ativa na
esfera social, de modo a proteger a lei.
As leis, por sua vez, cada vez mais abertas e genéricas em suas definições para dar
espaço à atuação do Executivo, criaram maior espaço interpretativo para o judiciário, que
diante de uma ineficiência da administração tomou uma postura mais criativa e positiva.
Como exemplo o Artigo 6º. Constituição Federal 1988: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o
trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição.”
27
“Quanto mais a sociedade se torna ‘próspera, urbana, tecnologicamente avançada, economicamente dinâmica, e inovadora no campo da química’, mais complexo e urgente se torna o problema das externalities, pelo que se acentua a
necessidade de intervenção e controle governamental.” - CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? – Tradução de
Carlos Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999. Pag. 36
28
CALABRESI, Guido, “A Commom Law for the Age of Statutes”, Cambridge Mass., Harvard University Press.
29
Como exemplos de agências reguladoras: ANATEL, ANCINE, ANEEL.
26
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95
“toda interpretação é criativa, e sempre se mostra inevitável um mínimo de
discricionariedade na atividade jurisdicional. Mas, obviamente, nessas novas
áreas abertas à atividade dos juízes haverá, em regra, espaço para mais elevado
grau de discricionariedade e, assim, de criatividade, pela simples razão de que
quanto mais vaga a lei e mais imprecisos os elementos do direito, mais amplo
se torna também o espaço deixado à discricionariedade nas decisões judiciárias.
Esta é, portanto, poderosa causa da acentuação que, em nossa época, teve o
ativismo, o dinamismo e, enfim, a criatividade dos juízes” 30
O judiciário não seria capaz de criar o Estado Social, este é produto da atividade
legislativa, que ao criá-lo se sobrecarregou. O que somado a falta de eficiência e abusos
do executivo, levou o judiciário a uma posição mais criativa, este foi elevado a condição
de terceiro gigante estatal, capaz de controlar o mastodonte legislador e o leviatanesco
administrador31.
2. A reserva do possível como distorção de um direito comparado32
Assim como grande parte das doutrinas aplicadas no Brasil, a idéia da reserva do
possível também é proveniente do Direito Europeu, em seu contexto de Estado do bemestar social. Canotilho33 vê, no contexto português, a efetivação dos direitos sociais dentro
da reserva do possível. Quanto maior a quantidade de recursos, maior o volume de prestações. Dentro do universo econômico luso, em que as prestações sociais são uma realidade, o raciocínio da reserva do possível seria de um ser, efetiva prestação que precisa ser
limitada, para uma conclusão pertencente ao âmbito do ser, a reserva do possível limitaria
as prestações sociais para não haver excessos e quando houver maior disponibilidade de
recursos os serviços seriam aumentados.
No contexto brasileiro ficaria difícil encaixar as mesmas proposições feitas nos Estados europeus. Essa visão de Canotilho seria atentatória à Lei de Hume se aplicada ao direito brasileiro. A limitação dos recursos públicos (ser) levaria à conclusão da necessidade
de limites para a positivação dos direitos sociais prestacionais (dever ser).
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores?- Tradução de Carlos Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris Editor, 1999. Pag. 42.
31
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? – Tradução de Carlos Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris Editor, 1999. Pag. 47.
32
KRELL. Andreas J. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha: os (des) caminhos de um Direito
Constitucional “comparado”. Porto Alegre: Fabris, 2002
33
CANOTILHO, J. J. Gomes/ Moreira, Vital – Fundamentos da Constituição, Coimbra, 1991.
30
96
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A reserva do possível entende que a efetivação de direitos subjetivos à prestação
material de serviços públicos pelo Estado está sujeita à condição de disponibilidade dos
respectivos recursos. Porém a decisão sobre a disponibilidade está localizada no âmbito
da discricionariedade do executivo e do legislativo na composição dos orçamentos. Um
raciocínio lógico bastante simplório nos levaria a conclusão de que as prestações sociais
ficariam a mercê das vontades políticas do governo. O que levanta mais um questionamento: Seria possível que algo tão importante, como os direitos fundamentais trazidos
na carta magna do Brasil, fossem submetidos às vontades políticas dos governantes do
país? Uma resposta positiva para essa questão relativizaria todas as garantias fundamentais, as submetendo ao governante do momento. Os direitos fundamentais deixariam de
ser valores imunes às concepções políticas para serem instrumentos políticos de governo,
dependendo do governante se a constituição seria ou não respeitada.
Todos os direitos fundamentais, no entanto, não devem ser encarados da mesma
forma e sob os mesmos pressupostos econômicos, visto que implicam situações diferentes.
Von Munch34, jurista alemão, divide os direitos fundamentais em valores fundamentais, direitos sem os quais se torna impossível um desenvolvimento básico e satisfatório do cidadão,
e em fins de Estado, finalidades do Estado que colaboram para o pleno desenvolvimento
do cidadão, mas que faticamente não são plenamente exigíveis. Para Von Munch, a reserva
do possível seria aplicável àqueles direitos que se englobam na categoria de fins de Estado,
como o direito a um emprego digno. É impossível ao Estado garantir emprego para todos
os cidadãos, mas é finalidade deste que todos o tenham para um máximo bem-estar.
No Brasil cabe analisar quem possui a legitimidade para definir o “possível” frente
a distorção dos orçamentos. O Brasil possui problemas de desigualdade social que não
existem na Europa, e condicionar a realização dos direitos sociais à existência de recursos
significa reduzir sua eficácia a zero, relegando-os a uma segunda categoria de direitos que
se subordinam às situações fáticas para serem exigíveis.
O papel do executivo enquanto criador de políticas públicas e programas para realização dos ordenamentos é de suma importância, no entanto, o problema brasileiro se
encontra nos orçamentos, que não são vistos de forma vinculativa na aplicação de seus
valores. Pelos governantes dos três níveis federativos o orçamento é visto apenas como
uma autorização para os gastos. Por diversas vezes a proposta orçamentária é preocupada
com os direitos sociais e sua efetivação, mas a sua aplicação não se mostra da mesma forma, devido a essa desvinculação.
Política pública, em essência é diferenciar realizando a distribuição dos recursos disponíveis. E diante dessa falta de correspondência entre orçamento e situação fática, quando falham o
34
VON MUNCH, Ingo. “Das Strapazierte Grundgesetz”. In: Die Welt (15.08.1998).
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executivo e o legislativo, cabe ao judiciário atuar na correção da prestação dos serviços básicos.
Uma solução para a dedicação insuficiente de recursos para as prestações sociais seria o controle e
a contestação das leis orçamentárias por ADIn toda vez que contrariarem dispositivos constitucionais35.
3. O princípio da separação de poderes e o déficit democrático brasileiro
O Estado Democrático de Direito Brasileiro, assim como a maioria das democracias contemporâneas, adota o sistema tripartido de Poderes, em que 2 (dois) Poderes são
legitimados popularmente, o Executivo e o Legislativo, e o terceiro Poder, o Judiciário,
possuidor de certa liberdade a despeito da não eleição popular de seus membros. Porém,
essa falta de legitimação está cada dia mais mitigada, devido a escolha dos ministros do
Supremo Tribunal Federal pelo Presidente da República, a convocação de Audiências
Públicas para a participação popular na discussão dos temas a serem tratados nos julgamentos, configurando-se uma legitimidade indireta.
Segundo Montesquieu36, o Poder do Estado deveria ser tripartido de forma que os 3
(três) atuassem de forma interdependente, cada um atuando em sua esfera própria de competências e auxiliando e controlando os demais, Teoria da Equipotência dos Poderes37.
O processo encabeçado pelo Legislativo culminou no overload próprio e no ativismo judicial, este combatido fortemente sob o argumento, por muitas vezes deslocado do
contexto moderno, da separação de poderes e da falta de legitimidade democrática do
judiciário para decidir sobre questões que interseccionam com a política.
Hoje, nos encaminhamos para uma visão mais livre que a Teoria da tripartição dos
Poderes de Montesquieu, a visão de um sistema de checks and balances38, com um Executivo
forte, um Legislativo forte e um Judiciário forte, em um tenso equilíbrio de forças, contrapesos e controles, com competências secundárias fiscalizatórias e controlatórias que
ultrapassam a ficta separação dos poderes.
Em soma ao sistema de controles e contrapesos entre os três Poderes do Estado,
a Constituição Brasileira trouxe em seu corpo o princípio da inafastabilidade do controle
jurisdicional39, princípio que obriga o Judiciário a agir quando provocado, ou quando houver desrespeito aos princípios contidos na Carta Magna.
LOPES, José Reinaldo Lima. “Direito subjetivo e direitos sociais: o dilema do Judiciário no Estado Social de Direito”,
in: Faria, José E. (org.). Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça, 1998.
36
MONTESQUIEU, Do Espírito das Leis, São Paulo, Edições e Publicações Brasil Editora S-A, 1960.
37
MONTESQUIEU, Do Espírito das Leis, São Paulo, Edições e Publicações Brasil Editora S-A, 1960.
38
FRIEDMAN, Milton. Capitalism and Freedom. Chicago & London, The University of Chicago Press, 1962. 14ª.ed.
39
Artigo 5º. XXXV. Constituição Federal de 1988: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça
a direito”
35
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Diante de um desrespeito à lei suprema nacional, seja este comissivo ou omissivo,
o judiciário não pode se manter inerte quando provocado. A efetividade de tal princípio
vem reforçar a criatividade dos juízes, que não podem se escusar de tecer juízo sobre
determinadas matérias, muitas vezes se colocando de forma ativa e taxativa para a concretização de políticas públicas em nome da defesa de um princípio constitucional.
Diante de um judiciário ativo e de uma política cada vez mais desacreditada diante da opinião pública, os representantes do povo tem deixado de ser os Poderes Executivo e Legislativo
e passado a ser o Judiciário, que tem defendido os reais interesses da população, determinando a
abertura de vagas em creches e escolas40, a concessão de medicamentos41, dentre outros.
E esse descrédito mundial das entidades representativas, se agrava ainda mais no
Brasil, que periodicamente se encontra diante de um escândalo envolvendo corrupção,
além de cada vez menos se enunciar a vontade popular e cada vez mais a vontade de grupos que estabelecem jogos políticos de poder, como bem diz Cappelletti:
“o que realmente emerge da análise do Congresso e da Presidência não é o simples
retrato de organismos democráticos e majoritários, que dão voz à vontade popular e
são responsáveis perante ela, mas antes a complexa estrutura política na qual grupos variados procuram vantagem, manobrando entre vários centros de poder. O que
daí resulta não é necessariamente a enunciação da vontade da maioria (...), e sim,
frequentemente, o compromisso entre grupos com interesses conflitantes.” 42
Não é pela ocorrência de um descrédito em relação ao Legislativo e ao Executivo
que o Judiciário pode se achar no direito de atuar como “justiceiro social”, desrespeitando todos os limites legais e suas competências originárias para fazer valer a sua vontade,
constantemente apoiada pela vontade popular.
ADMINISTRATIVO. CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA. Legitimatio ad causam do Parquet.
Art. 127 da CF/88. Arts. 7º, 200, e 201 da Lei nº 8.069, de 1990. Direito à creche extensivo aos menores de zero a seis
anos. Norma constitucional reproduzida no art. 54 do Estatuto da Criança e do adolescente. Norma definidora de direitos não programática. Exigibilidade em juízo. Interesse transindividual atinente às crianças situadas nessa faixa etária.
Cabimento e procedência. (Ac. no REsp. nº 736.524/SP, Primeira Turma, rel. Min. Luiz Fux, j. em 21.03.2006, DJU de
03.04.2006, p. 256, in www.stj.gov.br).
41
MANDADO DE SEGURANÇA - FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO - SAÚDE - DIREITO GARANTIDO CONSTITUCIONALMENTE. - Comprovada a imprescindibilidade de utilização de determinado medicamento
por pessoa necessitada, este deve ser fornecido de forma irrestrita, sendo que a negativa do Estado nesse sentido implica
ofensa ao direito à saúde, garantido constitucionalmente. - Receita de médico, seja particular ou do serviço público é documento hábil para instruir a Ação Mandamental. - Preliminares rejeitadas e segurança concedida. V.V. (AC. Nº 441013761.2006.8.13.0000, TJMG, rel. Des. Edgard Penna Amorim, j. em 18.04.2007, DJU de 01.08.2007, in www.tjmg.jus.br).
42
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? – Tradução de Carlos Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris Editor, 1999. Pag. 95. Veja também, SHAPIRO, Martin. Freedom of Speech: The Supreme Court and Judicial
Review. Englewood Cliffs, N.J., Prentice Hall, 1966. Pag. 24.
40
Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 2 - Ano 1
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4. A democracia como pressuposto para a fruição de direitos básicos
Há quem veja a democracia apenas como mera competição das elites pelo voto dos
eleitores43, porém a visão que majora é contrária a essa tese. Existe um razoável consenso
no sentido da “verdadeira democracia” ser mais do que apenas eleições periódicas, com
sufrágio universal e possibilidade de alternância de poder.
A democracia pressupõe principalmente a fruição de direitos básicos para e por
todos os cidadãos, permitindo a livre formação das convicções e possibilitando a participação destes nos diálogos políticos.
Chega a parecer utópica a idéia de uma democracia que assegure a fruição de direitos básicos, e até desrespeitosa a idéia do senso comum de que a “nossa democracia” é algo quase divino de tão evoluído como pensamento político. Se a nossa pífia realidade é comparada a algo
evoluído politicamente, a aplicação plena daquilo de que somos sombra seria uma utopia.
A “verdadeira democracia” não contribui apenas para a existência de direitos individuais clássicos, como a liberdade, mas também para o direito às condições básicas de vida,
que possibilitem o exercício da cidadania. A ausência de condições mínimas de existência
somada à flagrante desigualdade social praticamente extinguem a “moralidade independente”44 dos cidadãos, os impedindo de se ver como parceiros na formação da vontade
política da sociedade, e os relegando à figura de marginalizados.
Apesar do conceito de mínimo de existência ser bastante aberto e indefinido, há um
consenso quando se fala em alimentação, saúde e segurança, além de muitos outros direitos
básicos, no sentido da sua ausência descaracterizar o conceito de vida de um ser humano45.
Assim, quando o Poder Judiciário garante aos cidadãos esses direitos fundamentais em
seu mínimo existencial, contra as arbitrariedades das elites políticas, pode-se afirmar que ele está
protegendo os pressupostos para o funcionamento da democracia, e não atuando contra ela46.
SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Londres: Unwin University Books.
Utiliza-se a expressão “moralidade independente” no sentido da capacidade do cidadão se auto-determinar politicamente e se ver como agente político, podendo tomar suas próprias decisões morais e políticas, sem se ver à margem da
sociedade e ter seu valor político-deliberativo diminuído socialmente.
45
BARROS, R. P. De / Henriques, R. / Mendonça, R. Evolução Recente da Pobreza e da Desigualdade: Marcos Preliminares
para a Política Social no Brasil, in: Cadernos Adenauer I – Pobreza e Política Social, 2000. Pag. 44. Pesquisa feita em 1998
demonstrou que 14% da população brasileira se encontrava abaixo da linha da indigência e 33% da população se encontrava
abaixo da linha da pobreza. O que estabelece um claro patamar de definição do que seria o mínimo de existência.
46
SARMENTO, Daniel. A Proteção Judicial dos Direitos Sociais: Alguns Parâmetros Ético-Jurídicos. In: SOUZA
NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel. (Orgs.). Direitos Sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais
em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 570.
43
44
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Conclusão
A noção de democracia que rege o Estado hoje é mais do que apenas participação popular e representatividade, é uma idéia que pressupõe ação do Estado,
e se este se mostra ineficiente, lesando os preceitos constitucionais, o Judiciário
deve agir de forma positiva e criativa, de modo a salvaguardar os reais interesses da
população.
Porém, esta intervenção do Judiciário deve se limitar à defesa dos valores constitucionais, abandonando qualquer traço partidário e midiático. O ativismo judicial visto como
criatividade judiciária não se mostra nocivo ao Estado e à democracia se acompanhado de
Standards que a limitem, pode ser até muito positiva se assegurar a efetivação dos princípios
constitucionais e controlar os poderes políticos estatais, como conclui Cappelletti47:
“Parece bem evidente que a noção de democracia não pode ser reduzida a uma simples idéia majoritária. Democracia, como vimos, significa
também participação, tolerância e liberdade. Um judiciário razoavelmente independente dos caprichos, talvez momentâneos, da maioria,
pode dar uma grande contribuição à democracia; e para isso em muito
pode colaborar um judiciário suficientemente ativo, dinâmico e criativo, tanto que seja capaz de assegurar a preservação do sistema de
checks and balances, em face do crescimento dos poderes políticos, e
também controles adequados perante os outros centros de poder (não
governativos ou quase-governativos), não típicos das nossas sociedades contemporâneas.”
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Sumário
Editorial I..............................................................................................................09
Editorial II............................................................................................................11
Artigos
Desafios à celeridade processual: análise e crítica sobre a (des)formalização
do procedimento, e a necessidade de mutação axiológica das condutas do
juiz, demandante e demandado na relação jurídica processual
Douglas Borges de Vasconcelos....................................................................................13
Aborto de anencéfalos sob a perspectiva do direito fundamental à vida
Abby Ilharco Magalhães............................................................................................31
Democracia e Segurança Cidadã na América Latina: uma analise das políticas
de segurança na Colômbia e no Chile
Thiago Augusto Schmidt de Melo..............................................................................41
Exigência de diploma do curso de Jornalismo e não recepção RE 511961
Daniel Dore Lage
Nathan Ramalho dos Reis.........................................................................................59
O Valor da pureza de Hans Kelsen
Brahwlio Soares de Moura Ribeiro Mendes.................................................................73
Perspectivas democráticas à judicialização da política no Brasil
Luiz Carlos Silva Faria Junior...................................................................................87
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