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CONCEITO DE TRIBUTO Publicado em 03/03/2012 13:43:20 por Alexandre Mazza
Leito de Procusto*
Na mitologia grega, Teseu era filho de Egeu, rei de Atenas, e de Etra. Ainda novo, precisando ir a Atenas
encontrar-se com o pai, decidiu fazer o percurso usando estradas infestadas de bandidos para pôr à prova sua bravura.
No primeiro dia de viagem, chegou a Epidauro, terra do temido selvagem Perifetes, conhecido pela violência com que
atingia suas vítimas a golpes de clava de ferro. Ao ver aproximar-se Teseu, Perifetes logo o atacou, mas foi vencido e
perdeu a famosa arma para o herói que, depois disso, levava-a consigo como recordação da sua primeira vitória.
Várias batalhas semelhantes sucederam-se, todas vencidas por Teseu. Entre tantas, uma das mais conhecidas foi a
luta contra um bandido chamado Procusto. Procusto era um salteador sanguinário conhecido por amarrar os viajantes
em uma cama de ferro. Se eles fossem mais curtos que o leito, estirava seus corpos com cordas e roldanas até
desconjuntá-los; se fossem maiores, cortava a parte que sobrava. Segundo a lenda, Teseu matou o bandido, fazendo-o
provar da mesma crueldade que aplicava aos outros.
Tornou-se comum utilizar a expressão “leito de Procusto” para designar qualquer tipo de padrão aplicado à força
sobre a realidade, sem levar em conta diferenças individuais, circunstâncias especiais ou peculiaridades do objeto.
No Direito, a figura mitológica pode ser invocada como metáfora de certos aspectos da atividade jurídica (cf. Renato
Alessi, Sistema Istituzionale del Diritto Italiano, Dott. Antonino Giuffrè, Milano, 1953). Age como Procusto quem tenta
enquadrar, de modo inadequado, determinada realidade em um conceito que a ela não se ajusta, equívoco que sempre
resulta em conseqüências negativas.
Inspirado na lenda grega de Procusto e seu leito de ferro, o objetivo deste artigo é analisar diversos tópicos
relacionados com a noção de tributo, enfocando especialmente casos concretos atuais em que o contribuinte é
surpreendido com exigências ditas tributárias, mas que “não cabem no leito” conceitual delineado por nosso
ordenamento.
Iniciemos por dizer que o artigo 3º do Código Tributário Nacional definiu tributo como “toda prestação pecuniária
compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e
cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”.
Em que pese o fato de tal conceituação legislativa não merecer reparos no que tange ao conteúdo, convém
realizar, para fins de desenvolvimento deste estudo, algumas adaptações formais visando ressaltar elementos ocultos
sob a letra do dispositivo em questão. Assim, temos que tributo é “toda obrigação legal, compulsória, de caráter
pecuniário, que não constitui sanção por ato ilícito, tendo no pólo ativo normalmente uma Pessoa Política e, no pólo
passivo, quem a lei assim o estabelecer, cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”.
A primeira parte do conceito acima apresentado envolve a idéia de que o tributo é uma obrigação legal. Isto
significa dizer que, no direito brasileiro, a lei é a fonte possível de obrigações tributárias, a teor do disposto no art. 150,
I, da CF, segundo o qual: “Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos
Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça”.
É preciso advertir ab initio que o termo “lei” está empregado em sentido amplo incluindo todas as espécies
normativas encontradas no art. 59 da Constituição, quais sejam: leis ordinárias, leis complementares, leis delegadas,
emendas constitucionais, resoluções, decretos legislativos e medidas provisórias.
Outra consideração importante: por descuido do constituinte, a redação do art. 150, I, da CF, sugere que o princípio da
legalidade apenas seria aplicável nas hipóteses de criação e majoração de tributos, mas não nos casos de redução ou
de sua extinção. Ora, o que a lei cria somente a lei pode extinguir. Trata-se de um princípio central do Estado de
Direito, verdadeiro alicerce do sistema republicano (art. 1º, § único, da Constituição Federal). Desse modo, descabido
cogitar da possibilidade de atos infralegais (decretos, portarias, instruções normativas ou contratos) alterarem aquilo
que foi estabelecido por lei.
Por justiça, lembremos que o Código Tributário Nacional não incidiu no mesmo equívoco da Carta Política na medida
em que os incisos I e II do art. 97 do CTN determinam que somente a lei pode estabelecer “a instituição de tributos ou a
sua extinção” (inc. I) e “a majoração de tributos ou sua redução” (inc. II).
Digna de nota, também, é a previsão constitucional de seis tributos cujas alíquotas, a par do princípio da
legalidade, podem ser alteradas por decreto do Poder Executivo: a) o imposto sobre operações financeiras – IOF (art.
153, § 1º, da CF); b) o imposto sobre produtos industrializados – IOF (idem); c) o imposto sobre importações – II (idem);
d) o imposto sobre exportações – IE (idem); e) a contribuição de intervenção no domínio econômico incidente sobre o
petróleo e combustíveis – Cide do petróleo (art. 177, § 4º, I, “b”, da CF); f) o imposto monofásico sobre operações com
lubrificantes e combustíveis derivados do petróleo – ICMS sobre lubrificantes e combustíveis (art. 155, § 4º, IV, “c”, da
CF).
Impropriamente chamados de “exceções” à legalidade, os seis casos acima apontados são na verdade “hipóteses
constitucionais de aplicação especial do princípio”, na medida em que, segundo a melhor doutrina, duas normas que
ocupam idêntico patamar no ordenamento nunca excepcionam uma à outra. O que ocorre é outro fenômeno, chamado
de “harmonização horizontal” ou “cedência recíproca”.
Em síntese, o fato de o tributo, nos termos do artigo 3º do CTN, constituir obrigação legal importa no
reconhecimento de que a lei é a única fonte de obrigações tributárias no direito brasileiro. Dizer que a instituição de
deveres de natureza tributária está sob reserva de lei significa ainda que a ordem jurídica pátria, vislumbrando o
impacto social da ação tributante, submeteu seu exercício ao procedimento legislativo (arts. 59 a 69 da Constituição
Federal), uma espécie de devido processo legal apto a conferir legitimidade democrática às inovações em matéria
fiscal.
Com isso, afasta-se, em primeiro lugar, a possibilidade de a Fazenda Pública estabelecer obrigações tributárias de
qualquer tipo por meio de atos administrativos, já que, em atenção ao disposto no inciso II do artigo 5º da Constituição,
o contribuinte não pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Em segundo
lugar, o caráter “ex lege” da obrigação tributária obriga-nos a concluir que os contratos privados não são dotados de
força jurídica para instituir ou alterar deveres na seara fiscal. Nesse sentido prescreve o art. 123 do CTN in verbis:
“salvo disposição de lei em contrário, as convenções particulares, relativamente à responsabilidade pelo pagamento de
tributos, não podem ser opostas à Fazenda Pública, para modificar a definição legal do sujeito passivo das obrigações
tributárias correspondentes”.
É bastante conhecida a cláusula em contratos de locação imobiliária em que o locatário “assume a responsabilidade”,
durante a vigência do contrato, de arcar com o IPTU e demais tributos relacionados ao imóvel locado. Tal cláusula,
entretanto, não produz efeitos no direito tributário, cabendo sempre ao proprietário, a par do contrato, responder
perante a Fazenda pelo pagamento dos tributos, restando-lhe somente o recurso, em face da inadimplência contratual,
a ação civil regressiva para obter ressarcimento do montante pago.
Curiosamente, o mesmo diploma legislativo que nega efeito à cláusula contratual de transferência de responsabilidade
define como contribuintes do IPTU “o proprietário do imóvel, o titular do seu domínio útil, ou o seu possuidor a qualquer
título” (art. 34 do CTN), dando margem a que muitos Municípios incluam indevidamente o inquilino (possuidor direto) no
pólo passivo de execuções fiscais referentes ao imposto predial e territorial. O absurdo dessa inclusão está em
reconhecer no contrato de locação eficácia tributária em favor do Fisco, negando-a quando o mesmo contrato é
invocado em defesa do contribuinte.
Já em relação à esfera federal o tema da reserva legal em matéria de obrigações tributárias tem sido discutido
principalmente em face do conteúdo do inciso IV do artigo 8º da Constituição Federal, segundo o qual “a assembléia
geral fixará a contribuição que, em se tratando de categoria profissional, será descontada em folha, para custeio do
sistema confederativo da representação sindical respectiva, independentemente da contribuição prevista em lei”.
Inicialmente é preciso notar que a denominada contribuição confederativa do art. 8º não deve ser confundida com
a contribuição sindical instituída no interesse de categorias profissionais ou econômicas, referida no art. 149 da CF, na
medida em que esta tem caráter tributário, é compulsória e depende de lei para sua criação (RE 198.092). Já a
contribuição do art. 8º, voltada a financiar a estrutura sindical confederativa, é de recolhimento facultativo, elemento
que, de per si, desfigura a aparência tributária da exação, retirando-lhe a compulsoriedade mencionada no art. 3º do
CTN (registre-se, todavia, que tal entendimento não é unânime no STF: para o Ministro Marco Aurélio, a contribuição
confederativa teria natureza compulsória para o empregado, filiado ou não à entidade sindical – RE 195.885).
Além disso, o Texto Maior é claro ao afirmar que a contribuição “será fixada pela assembléia geral da categoria”.
Ora, nitidamente não se trata de uma obrigação legal uma vez que a Constituição atribuiu ao sindicato, e não ao
legislador, a competência para instituir a contribuição (RE 178.052).
Nesse mesmo sentido leciona Hugo de Brito Machado: “Há quem sustente que a contribuição referida no art. 8º, inciso
IV, da Constituição Federal é uma espécie de tributo, em relação à qual não se aplica o princípio da legalidade. Não
nos parece que seja assim. Preferimos entender que se trata de contribuição de natureza não tributária, em tudo
idêntica à contribuição cobrada por qualquer associação civil” (Curso de Direito Tributário, 14ª edição, p. 317).
Cabe fazer menção, por fim, à interessante questão envolvendo a contribuição paga pelos segurados facultativos.
Diante do fato de que tal filiação não é obrigatória, a contribuição não tem natureza tributária, porquanto falta-lhe a
compulsoriedade exigida pelo art. 3º do CTN. Se deixar de efetuar o recolhimento, o interessado não se sujeita a
qualquer tipo de execução fiscal, mas perderá o direito à futura fruição do benefício em análise.
Em continuação à análise do conceito estabelecido no artigo 3º do CTN, o elemento seguinte da definição
legislativa resume-se na fórmula: o tributo não constitui sanção por ato ilícito.
A primeira lição que se extrai é que o legislador quis, claramente, diferenciar tributo de multa. Isso porque a causa
da obrigação é a ocorrência de um fato previsto na lei – o fato gerador tributário. Ao passo que o dever de pagar uma
multa nasce sempre como resposta ao descumprimento de normas jurídicas. Em síntese: a obrigação tributária tem
como causa uma ocorrência lícita; a multa, uma ilicitude.
Nessa esteira, o Supremo Tribunal Federal, ao ensejo do julgamento do Recurso Extraordinário 94.001/SP,
relatado pelo Min. Moreira Alves, declarou inconstitucional lei paulistana que determinou acréscimo de 200% ao IPTU
incidente sobre imóveis com construções irregulares. Entendeu a Corte Máxima que a referida lei utilizou
indevidamente o tributo como instrumento punitivo, verdadeira sanção administrativa. Conforme declara de modo
elucidativo a ementa do julgado: “o artigo 3º do CTN não admite que se tenha como tributo prestação pecuniária
compulsória que constitua sanção de ato ilícito. O que implica dizer que não é permitido, em nosso sistema tributário,
que se utilize de um tributo com a finalidade extrafiscal de se penalizar a ilicitude. Tributo não é multa, nem pode ser
usado como se o fosse. Se o município quer agravar a punição de quem constrói irregularmente, cometendo ilícito
administrativo, que crie ou agrave multas com essa finalidade. O que não pode - por ser contrário ao artigo 3º do CTN,
e, conseqüentemente, por não se incluir no poder de tributar que a Constituição Federal lhe confere - é criar adicional
de tributo para fazer as vezes de sanção pecuniária de ato ilícito”.
Outra discussão interessante consiste em saber se o art. 3º do CTN, ao afirmar que tributo não constitui sanção
por ato ilícito, estaria vedando a tributação de atividades ilegais. Segundo levantamento elaborado por Becker (Teoria
Geral do Direito Tributário, 3ª edição, pp. 598-600), autores do porte de E. Vanoni, B Griziotti, Rubens Gomes de
Souza, G. Tesoro, D´Angelillo, A. D. Gianinni, Berliri e F. Forte, por exemplo, admitem a tributação de atos ilícitos ao
argumento de que ao Direito Tributário interessaria apenas o fenômeno da vida sob o ângulo da relação econômica,
pouco importando sua repercussão em outras searas jurídicas. Para outros autores, como Petrônio Araújo, a tributação
sobre atos ilícitos representa um contra-senso se considerarmos que compete ao próprio Estado prevenir e reprimir
atividades criminosas e ilegais.
Os dois pontos de vista encontram lastro em decisões dos nossos Tribunais Superiores. Becker (ob. cit., p. 600,
nota 8) faz referência a diversos acórdãos do extinto Tribunal Federal de Recursos negando a tributação de imposto
sobre a renda do “jogo do bicho”. Em sentido contrário, o Supremo Tribunal Federal, no famoso julgamento do HC
77.530/RS, julgado em 25/08/98, tendo como relator o Min. Sepúlveda Pertence, firmou o entendimento de que o tráfico
de drogas, envolvendo sociedades comerciais organizadas, com lucros vultosos subtraídos à declaração de
rendimentos caracteriza, em tese, crime de sonegação fiscal. Trata-se, assim, do reconhecimento, pelo STF, de que o
exercício de atividade ilícita não afasta deveres de natureza tributária. Para redargüir a afirmação segundo a qual a
tributação de atividades ilícitas afrontaria a moralidade, a ementa do julgado arremata: “a exoneração tributária dos
resultados econômicos de fato criminoso - antes de ser corolário do princípio da moralidade - constitui violação do
princípio de isonomia fiscal, de manifesta inspiração ética”.
Em que pese as respeitáveis opiniões em contrário, a razão está com o STF. Entendo que a tributação de
atividades ilegais é um imperativo do princípio da igualdade tributária (art. 150, II, da CF), na medida em que, se assim
não procedesse, o Estado estaria dando tratamento privilegiado a quem pratica atos ilícitos, subtraindo tais pessoas de
encargos tributários, o que terminaria por criar um mecanismo de premiação em favor dos que praticam ilegalidades.
Tal conclusão merece destaque: a não-tributação resultaria em incentivo estatal à prática de atividades ilegais.
Além disso, é preciso relembrar que arrecadar o tributo é um dever incontornável do agente fiscal, ou, na
linguagem do CTN, “uma atividade plenamente vinculada” (art. 3º), cujo descumprimento implica responsabilidade
funcional (art. 142, parágrafo único), não havendo margem para que o agente deixe de efetivar a cobrança, ainda que
criminosa a atividade tributada.
Por fim, não se pode esquecer que o artigo 118, inciso I, do CTN, prescreve que: “a definição legal do fato
gerador é interpretada abstraindo-se da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes”. Assim,
verifica-se que o legislador brasileiro claramente optou pelo sistema do “pecunia non olet” (dinheiro não tem cheiro),
segundo o qual são irrelevantes, para o Direito Tributário, a licitude da atividade tributada e a origem do dinheiro do
contribuinte (a expressão “pecunia non olet”, de acordo com a História, originou-se na taxa instituída pelo imperador
Vespasiano, cobrada sobre os banheiro públicos romanos. Diante das piadas da população sobre a curiosa exação,
Vespasiano pediu a seu filho, Tito, que tomasse uma moeda e a cheirasse, após o que comentou: “o dinheiro não tem
cheiro”).
O passo seguinte da análise consiste em compreender o sentido e o alcance da afirmação contida no art. 3º do
CTN de que o tributo é uma obrigação pecuniária.
Como se sabe, obrigação é todo liame jurídico que une dois sujeitos em torno de uma prestação de fazer, de não-fazer
ou de dar. Nesse sentido, é correto dizer que para a teoria geral das obrigações existem obrigações de fazer, de
não-fazer ou de dar, conforme o objeto da prestação por elas veiculada.
Pois bem, a primeira conclusão extraída do art. 3º do CTN é que a legislação brasileira, ao contrário do que
ocorre em outros países, rejeita natureza tributária a certos deveres públicos de fazer ou não-fazer, como a prestação
de serviço militar obrigatório, a convocação para trabalhar em eleições ou a requisição para compor o corpo de
sentença nos tribunais do júri. Inútil, portanto, invocar garantias tipicamente tributárias – como a anterioridade e a
uniformidade geográfica – em favor de indivíduos obrigados a tais prestações, diante da evidente inaplicabilidade de
referidas garantias a sujeições não-fiscais.
Outro ponto importante: todo tributo é uma obrigação de dar quantia certa ao Estado, mas nem toda obrigação de
dar quantia certa ao Estado é tributo.
Além do caso evidente das multas administrativas – que não se enquadram na definição legislativa de tributo por
constituírem sanção por ato ilícito (vide artigo anterior) –, a participação das entidades federativas no produto da
exploração de recursos naturais, prevista no art. 22, § 1º, da CF (“É assegurada, nos termos da lei, aos Estados, ao
Distrito Federal e aos Municípios, bem como a órgãos da administração direta da União, participação no resultado da
exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros
recursos minerais no respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, ou
compensação financeira por essa exploração”), e regulamentada pela Lei n. 7.990/89, é obrigação pecuniária
compulsória de natureza não-fiscal, por não se enquadrar em nenhuma das espécies tributárias pátrias (nesse sentido:
STF, RE 228800/DF).
Semelhante raciocínio pode ser feito em relação a determinadas exações cobradas por agências reguladoras. A
legislação aplicável a tais entidades prevê “taxas” e “contribuições de intervenção no domínio econômico” que podem
ser exigidas de empresas e de particulares ligados aos setores regulados.
A Agência Nacional do Cinema – Ancine, com fundamento no art. 32, “caput”, da Medida Provisória n. 2.228-1/01,
posteriormente alterada pela Lei 10.454/02, arrecada a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria
Cinematográfica Nacional – Condecine, tendo como fato gerador a veiculação, a produção, o licenciamento e
distribuição de obras cinematográficas com fins comerciais.
No caso da Agência Nacional de Energia Elétrica – Aneel, os artigos 12 e 13 da Lei n. 9.427/96 autorizam a
cobrança da Taxa de Fiscalização de Serviços de Energia Elétrica, no valor anual de 0,5% do benefício econômico
anual auferido pelo concessionário, permissionário ou autorizatário dos serviços de energia elétrica.
A Agência Nacional de Telecomunicações – Anatel (art. 47 da Lei n. 9.472/97), a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária – Anvisa (arts. 23 a 26 da Lei n. 9.782/99), a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS (arts. 18 a 23 da
Lei n. 9.961/00), a Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT e a Agência Nacional de Transportes
Aquaviários – Antaq (as duas últimas com fundamento no art. 77, III, da Lei n. 10.233/01) também arrecadam “taxas de
fiscalização” semelhantes.
Ocorre que as pretensas taxas não se enquadram no desenho constitucional aplicável à espécie tributária em
questão. Taxas, a teor do disposto no art. 145, II, da CF, são tributos vinculados, contraprestacionais, sinalagmáticos,
na medida em que remuneram atividades estatais especificamente exercidas sobre o contribuinte, devendo ser
arrecadadas a partir de base de cálculo apta a medir o custo exato do serviço ou da fiscalização (poder de polícia)
motivadores da cobrança.
Entretanto, uma rápida leitura das normas legais acima referidas permite verificar a inexistência de qualquer
relação entre o valor cobrado e os gastos estatais despendidos com o exercício da atividade regulatória. Aliás, o
legislador sequer teve a preocupação de condicionar a cobrança à efetiva atuação estatal, pois as “taxas de
fiscalização” são devidas anualmente, tenha ou não a agência realizado alguma fiscalização, desatendendo
frontalmente o caráter retributivo inerente às taxas.
Portanto, é visível que a legislação das agências reguladoras, como já sustentei anteriormente (Agências
Reguladoras, Ed. Malheiros, p. 202), utilizou-se indevidamente dos rótulos “taxa” e “contribuição” para mascarar
exações desprovidas de natureza tributária. Trata-se, na verdade, de valores exigidos sem qualquer base
constitucional, representando contrapartida disfarçada ou, mais propriamente, uma estranha “outorga onerosa” do
direito de atuar no setor regulado.
Para finalizar enfrentaremos o tormentoso tema da natureza jurídica do pedágio, confrontando os diferentes
posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais acerca do assunto, especialmente quanto ao enquadramento, ou não,
do instituto na previsão do art. 3º do Código Tributário Nacional.
Importa recordar que a instituição do pedágio foi conseqüência do desenvolvimento da malha rodoviária brasileira
ocorrido a partir do final dos anos cinqüenta e impulsionado pela instalação das primeiras indústrias automobilísticas no
país. Até então o uso das rodovias era gratuito, sendo que a manutenção do serviço era custeada pela receita
orçamentária comum decorrente dos impostos. Nas décadas de setenta e oitenta, entretanto, a ampliação da rede
rodoviária alavancou os custos de conservação das estradas, obrigando a Administração Pública a buscar soluções
alternativas para o problema. A partir dos anos noventa, após a polêmica implementação do selo-pedágio – logo
declarado inconstitucional pelos tribunais –, a exploração das rodovias foi paulatinamente sendo delegada a
concessionárias privadas, cuja fonte primordial de receitas passou a ser o pedágio. Atualmente, a maioria das grandes
rodovias brasileiras é explorada em regime de concessão, o que confere ao tema acentuada importância prática,
tornando inadiável a necessidade de identificação do regime jurídico aplicável ao instituto em análise.
A Constituição de 1946 e a Carta de 1967 faziam referência ao pedágio nos capítulos atinentes à tributação,
considerando-o como exceção à proibição de utilizar tributos para limitar a circulação de pessoas e bens no território
nacional. Assim, apesar de não previsto no Código Tributário, o pedágio era considerado, pela doutrina, um tributo
enquadrado na espécie taxa.
A Constituição Federal de 1988, seguindo a tradição dos Textos anteriores, trata do pedágio dentro do capítulo “Do
Sistema Tributário Nacional” (cap I, título VI), afirmando, no art. 150, V, que: “Sem prejuízo de outras garantias
asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: V - estabelecer
limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais, ressalvada a
cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder Público”.
Nessa linha, importantes doutrinadores, como Roque Carrazza, Luciano Amaro, José Afonso da Silva e Misabel Derzi,
defendem a natureza tributária do pedágio, terminando por reconhecer aos usuários de rodovias garantias próprias de
contribuinte, como as decorrentes dos princípios constitucionais da legalidade (art. 150, I, da CF) e da anterioridade
(art. 150, III, “b” e “c”, da CF).
Para outros (v.g. Sacha Calmon e Ricardo Lobo Torres), o pedágio exigido em rodovias sob concessão teria natureza
de preço público ou tarifa, representando uma remuneração não-tributária paga pelo usuário à concessionária
exploradora do serviço.
Quanto à jurisprudência, há uma inclinação dos tribunais em prol do caráter não-tributário do pedágio (no STF: Adin
447/93, Adin 800/92, RE 181475/RS e RE 194862). Os julgados, todavia, partem do equivocado pressuposto de que a
natureza tarifária estaria assentada na contratualidade ou facultatividade (caráter não-compulsório) inerente ao serviço
prestado pela concessionária. Tal argumento é inaceitável porque nem sempre o motorista encontra via alternativa à
pista pedagiada, realidade que evidencia completa ausência de “liberdade contratual” por parte do usuário da rodovia.
O fato é que as duas correntes supra-referidas equivocam-se ao supor que o termo “pedágio” remete a um instituto
dotado de regime jurídico único e determinado.
Na verdade, o art. 150, V, da CF faz uma referência, sem qualquer preocupação de ordem técnico-formal, à
remuneração paga pela utilização de estradas. Isso porque se a rodovia for explorada por empresa privada
(concessionária), o pedágio terá natureza de tarifa, por ser este o instrumento remuneratório aplicável às concessões
em geral (Lei n. 8987/95). Verdadeiro disparate seria, em caso de rodovia concedida, conferir status tributário ao
pedágio, já que a necessidade de pronta alteração nas cláusulas contratuais (a chamada “mutabilidade dos contratos
administrativos”), com a conseqüente revisão de tarifas, é incompatível com as exigências estabelecidas pelos
princípios tributários da legalidade (art. 150, I, da CF) e da anterioridade (art. 150, III, “b” e “c” da CF).
Na hipótese de exploração direta da rodovia pelo Poder Público, não há falar-se em tarifa, diante da ausência da
figura do concessionário incumbido da manutenção da atividade. Tampouco de tributo se trata. O pedágio não se ajusta
a nenhuma das espécies tributárias existentes no ordenamento pátrio. Os empréstimos compulsórios (art. 148 da CF),
as contribuições de melhoria (art. 145, III, da CF) e as contribuições especiais (art. 149 da CF) têm hipóteses de
incidência inconciliáveis com a exação sub examine. Os impostos, por sua vez, são tributos desvinculados, cujo fato
gerador consiste em situação independente de atividade estatal (art. 16 do CTN), sendo inaceitável imaginar imposto
exigido para remunerar atuação do Estado.
Finalmente, ao contrário do que muitos afirmam, o pedágio também não pode ser taxa, já que não há serviço público
ou poder polícia sendo exercido em relação ao usuário (art. 145, II, da CF), pois, a rigor, o motorista paga para usar um
bem público (a rodovia), e não existe “taxa de uso” no Brasil. Portanto, no caso de rodovias exploradas diretamente
pelo Estado o pedágio é uma remuneração administrativa “sui generis”, desprovida de natureza tributária, não se
encaixando, portanto, no conceito do art. 3º do Código Tributário Nacional.
*Série publicada em cinco artigos no jornal Carta Forense (fevereiro a julho/2006)
CONTRIBUIçõES DE MELHORIA Publicado em 03/03/2012 13:47:00 por Alexandre Mazza
O Bacharel de Cananéia*
Em sua obra “Capital da Solidão – uma história de São Paulo das origens a 1900”, Roberto Pompeu de Toledo relata
a existência de um enigmático personagem da era colonial brasileira, conhecido pelo apelido, cuja origem se ignora, de
“Bacharel de Cananéia”. Segundo alguns historiadores, ele seria o Mestre Cosme Fernandes, um judeu de alta cultura
expulso de Portugal por motivos religiosos que, a mando de El-rei D. Manoel, teria sido abandonado pela expedição de
Gonçalo Coelho, em 1501, na região hoje pertencente ao município paulista de Cananéia, para ser devorado pelas
tribos nativas. Entretanto, de alguma maneira Cosme Fernandes entendeu-se com os índios e, vinte e cinco anos após
seu desterro, foi encontrado pela esquadra do espanhol Diego Garcia vivendo como uma espécie de rei branco entre
os nativos: casado com seis mulheres, dono de mais de 200 escravos e liderando mil guerreiros tupiniquins dispostos a
lutar por ele. Sabe-se que vendia mantimentos, água potável e pequenos barcos a navegadores europeus que
aportassem no litoral paulista, mas foi o comércio de índios, aprisionados nas guerras contra tribos vizinhas, que
constituiu sua principal fonte de lucro.
Passados cinco séculos, a sua surpreendente trajetória em solo brasileiro, bem como quase todos seus dados
pessoais, permanecem pouco conhecidos, podendo-se dizer que, ao menos por enquanto, o Bacharel de Cananéia é
praticamente um nome sem história.
Semelhantemente ao ocorrido com o personagem referido acima, existem, no Direito Tributário, institutos que, por falta
de uma significativa utilização, são nomes sem história. Inspirado nos relatos sobre Mestre Cosme Fernandes, o
Bacharel de Cananéia, o presente artigo versa sobre o tema da contribuição de melhoria, desde suas raízes no Direito
Comparado, até o detalhamento de aspectos de seu regime jurídico pouco analisados pela doutrina pátria.
A ampliação do rol de tarefas atribuídas ao Estado e o conseqüente crescimento da intervenção governamental na
regulação da vida social foram, sem dúvida, duas das mais notáveis características do conjunto de transformações que
marcaram o século XX. Em decorrência, a busca de instrumentos financeiros capazes de custear o agigantamento da
máquina pública tornou-se um problema crucial.
A fórmula mais utilizada para captação de recursos nos países ocidentais modernos foi a arrecadação de impostos,
lançando-se o peso de todos os gastos ordinários e extraordinários do Estado sobre os ombros de um limitado conjunto
de indivíduos economicamente capazes.
Porém, a cobrança generalizada de impostos, aqui entendidos como tributos exigidos sem o oferecimento de
contrapartida direta e imediata relacionada ao contribuinte, sempre teve o inconveniente de distribuir de maneira difusa
os custos do governo entre a população. Sabe-se que, para melhor repartição dos ônus da vida em sociedade, convém
que os gastos públicos gerais sejam financiados por meio de impostos. Já as despesas oriundas de serviços e obras
estatais que beneficiam grupos específicos devem ser custeadas prioritariamente por meio de exações cobradas dos
contribuintes favorecidos pela atuação estatal ensejadora do tributo.
É nesse contexto, de busca de novos instrumentos para o custeio de gastos públicos e da necessidade de uma
tributação socialmente mais justa, que ganhou maior destaque a utilização de taxas remuneratórias de serviços
governamentais e, especialmente, a cobrança de contribuições sobre o acréscimo patrimonial derivado da realização
de obras públicas, conhecidas como “benefit assessment”, no Direito Norte-Americano; “betterment tax”, no Direito
Inglês; “contributo di miglioria”, no Direito Italiano; “imposition sur les plus values”, no Direito Francês; “contribuición de
mejoras”, no Direito Argentino; ou “contribuição de melhoria”, na linguagem da legislação brasileira (cf. F. C. Pontes de
Miranda, “Comentários à Constituição de 1946”, vol. 1, p. 492, e Geraldo Ataliba, “Hipótese de Tributária”, 5ª edição, p.
150).
Assim, o instituto da contribuição de melhoria foi idealizado como instrumento financeiro capaz de propiciar uma
tributação socialmente mais justa, retirando da população em geral a responsabilidade pelo custeio de atividades
estatais que beneficiam de maneira direta determinados grupos de contribuintes.
A primeira constituição brasileira que tratou da espécie tributária sub examine foi a de 1934, cujo art. 124 estabelecia:
“provada a valorização do imóvel por motivo de obras públicas, a administração, que as tiver efetuado, poderá cobrar
dos beneficiados contribuição de melhoria”.
Em que pese o fato de o dispositivo citado não ter descido a detalhes, especialmente quanto ao problema
fundamental relativo aos limites do tributo, o Texto de 1934 já fixava duas condições indispensáveis para a arrecadação
da contribuição: a) realização de obra pública; b) comprovada valorização imobiliária decorrente da obra.
Pouco tempo depois, a Carta de 1937 representou um retrocesso na disciplina do tema, na medida em que o texto
não fazia qualquer referência às contribuições de melhoria, circunstância que levou alguns doutrinadores a concluir que
as contribuições passaram a constituir um tipo peculiar de taxa e não mais uma espécie tributária autônoma como no
regime anterior.
Com a promulgação da Constituição de 1946, as contribuições de melhoria recuperaram o status constitucional por
força da norma do art. 30, I, in verbis: “Compete à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios cobrar: I –
contribuição de melhoria, quando se verificar valorização do imóvel em conseqüência de obras públicas”.
A redação do inciso I não inovou o modelo criado pela Constituição de 1934. Entretanto, o parágrafo único do mesmo
artigo 30 agregou uma significativa novidade ao estabelecer dois limites para o valor cobrado do contribuinte: “A
contribuição de melhoria não poderá ser exigida em limites superiores à despesa realizada, nem ao acréscimo de valor
que da obra decorrer para o imóvel beneficiado”.
O estabelecimento dos referidos limites (custo da obra e valorização do imóvel causada pela obra) foi reforçado pelo
art. 19 da Emenda Constitucional nº 18/65, nos seguintes termos: “Compete à União, aos Estados, ao Distrito Federal e
aos Municípios, no âmbito de suas respectivas atribuições, cobrar contribuição de melhoria para fazer face ao custo de
obras públicas de que decorra valorização imobiliária, tendo como limite total a despesa realizada e como limite
individual o acréscimo de valor que da obra resultar para cada imóvel beneficiado”.
Porém, é preciso dizer que a redação do art. 19 da EC 18/65, ao mencionar que a contribuição de melhoria seria
cobrada “para fazer frente ao custo de obras públicas”, desencadeou uma sucessão de equívocos, legislativos e
doutrinários, que marcaram definitivamente a história do instituto no Brasil.
Em síntese, o art. 19 da Emenda Constitucional n. 18/65, ao estabelecer que a contribuição de melhoria seria cobrada
“para fazer frente ao custo de obras públicas”, agregou uma novidade ao regime jurídico da referida espécie tributária.
Isso porque, até então, as Constituições de 1934 e de 1946 tratavam da contribuição de melhoria como um instrumento
voltado, exclusivamente, a subtrair toda a mais valia do patrimônio privado decorrente da execução de obra pública.
Era, nesse sentido, uma exação vocacionada à realização concreta do princípio da proibição do enriquecimento sem
causa. Assim, primeiro o Estado deveria agir executando a obra e, só depois, o tributo poderia ser exigido, desde que
constatado algum acréscimo no valor do imóvel pertencente ao contribuinte. O custo da obra, antes da EC 18/65, não
possuía qualquer relevância jurídica na delimitação do valor exigido a título de contribuição de melhoria, admitindo-se
inclusive que o montante total arrecadado em toda a área de influência da obra superasse em muitas vezes o valor
despendido pelo Poder Público na sua realização.
É provável que, conforme entendimento de Geraldo Ataliba, o legislador brasileiro tenha se confundido ao importar
modelos do direito comparado e, inadvertidamente, misturou aspectos de dois institutos norte-americanos diferentes: o
“benefit assessment” e o “cost assessment”. O “benefit assessment” (cobrança do benefício) é a verdadeira
contribuição de melhoria, ou seja, uma exação destinada a subtrair do particular o acréscimo patrimonial causado por
obra pública. Já o “cost assessment” (cobrança do custo) tem um parentesco remoto com a primeira figura e constitui
uma técnica semicontratual de o Poder Público realizar melhorias públicas em favor de comunidades afastadas ou de
pequenos grupos sociais dispostos a pagar pelos respectivos custos, como seria “o caso de instalação de iluminação
pública, extensão de rede de água ou esgoto, construção de calçadas ou pavimentação, extensão de telefones, pontes
de interesse local etc., em núcleos comunitários distantes ou diferenciados” (Hipótese de Incidência Tributária, 5ª
edição, p. 159).
O certo é que o equívoco da EC 18/65 ganhou a legislação infraconstitucional e, já no ano seguinte, o novo Código
Tributário Nacional seria promulgado com o art. 81 declarando que “a contribuição de melhoria cobrada pela União,
pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios, no âmbito de suas respectivas atribuições, é instituída para
fazer face ao custo de obras públicas”. E, regulamentando o CTN, o art. 3º do Decreto-lei n. 195/67 prescreveu quase
com as mesmas palavras que “a contribuição de melhoria a ser exigida para fazer face ao custo das obras públicas
será cobrada pela unidade administrativa que as realizar”.
Como era de supor, o erro conceitual da EC 18/65 repercutiu também no plano concreto. Aproveitando os confusos
desenhos constitucional e legislativo do instituto, inúmeros municípios passaram a utilizar a contribuição de melhoria
como instrumento de captação dos recursos necessários à realização de obra futura, subvertendo a ordem natural dos
eventos. Ao invés de executar a obra antes, passou-se primeiro a cobrar o tributo. A circunstância inusitada obrigou
doutrina e jurisprudência a quebrar o silêncio para dizer o óbvio: é requisito intrínseco da contribuição de melhoria a sua
cobrança posterior à realização da obra.
Curioso notar que, apesar de tudo, a confusão entre o “benefit assessment” e o “cost assessment” não produziu
apenas conseqüências negativas. O erro conceitual levado a termo pelo legislador brasileiro resultou involuntariamente
em modelo “sui generis” – criação nacional sem paralelo no direito comparado – que combina um limite individual e
outro global para o valor da contribuição de melhoria (art. 81 do CTN), terminando por oferecer uma garantia dúplice
em favor do contribuinte.
À semelhança do ocorrido com Mestre Cosme Lopes, a metamorfose sofrida pelo instituto não estava nos planos de
El-Rei, no caso, o fisco.
Resumindo. O legislador brasileiro atribuiu um regime jurídico “sui generis” à contribuição de melhoria, combinando
indevidamente aspectos de dois institutos diferentes encontrados no direito estrangeiro: o “benefit assessment” e o
“cost assessment”. Como conseqüência da imprecisão legislativa o ordenamento pátrio nunca logrou oferecer balizas
seguras para determinar limites à arrecadação da contribuição de melhoria.
Nos países em que o “benefit assessment” é utilizado a valorização agregada ao imóvel serve de limite para a
cobrança. Já, onde se exige o “cost assessment” o valor arrecadado com a exação não pode superar o custo da obra
realizada. Assim, cada um dos institutos que serviram de inspiração para o legislador brasileiro possui, na sua origem,
um mecanismo apropriado e eficiente para a delimitação da quantia exigida dos particulares beneficiados com a obra
pública.
Como o Brasil não adotou nenhum dos referidos institutos em sua forma pura, mas concebeu um modelo peculiar de
contribuição de melhoria fundindo aspectos ora de um, ora de outro, a fixação de limites ao valor do tributo sempre
despertou acesas controvérsias estimuladas, em larga medida, por sucessivos diplomas normativos que oscilaram
entre quatro soluções distintas: a) silêncio legislativo sobre os parâmetros de delimitação do valor cobrado; b) fixação
apenas de um limite global vinculado ao custo da obra; c) determinação somente de um limite individual relacionado
com a valorização do imóvel; d) estabelecimento simultâneo de limites global e individual.
Com a promulgação da Constituição de 1988, cujo texto não faz qualquer referência a limites da contribuição de
melhoria, os vários entendimentos doutrinários e jurisprudenciais sobre o tema podem ser reconduzidos a duas
correntes principais: a) aplicabilidade somente do limite individual; b) subsistência concomitante dos limites individual e
global.
O mais destacado defensor da existência apenas do limite individual é Geraldo Ataliba, para quem: “a contribuição de
melhoria é instrumento puro e simples de realização do princípio constitucional e legal que atribui ao poder público a
valorização imobiliária causada por obra pública... é da sua natureza tomar por critério a valorização causada. A obra
pode custar muito e causar diminuta valorização. Pode custar pouco e causar enorme valorização. O gabarito da
contribuição de melhoria é sempre a valorização, não importando o custo da obra” (Hipótese de Incidência Tributária, 5ª
edição, pp. 150/151).
No mesmo sentido o Ministro Carlos Velloso, nos votos proferidos no RE 116.147 e no RE 115.863, entende que: “não
importa o custo da obra para a caracterização e para a cobrança do tributo. Importa, sim, o limite individual – o
acréscimo de valor que da obra resultar para o imóvel beneficiado – que isto, sim, é da essência do tributo”.
Cumpre destacar que, para seus defensores, o referido posicionamento teria lastro no próprio art. 145, III, da CF, que
prevê a arrecadação de contribuição de melhoria “decorrente de obras públicas”, redação esta que entendem ter
autorizado a cobrança do tributo apenas no sistema do “benefit assessment”, para retirar de cada contribuinte o
montante da valorização imobiliária, ainda que o valor total arrecadado de todos os beneficiados exceda o custo da
obra.
Todavia, em que pese o brilho dos seguidores da citada corrente, não parece adequado sustentar que o silêncio do
constituinte de 88 sobre a questão dos limites ao valor da contribuição de melhoria tenha o condão de, por si só,
revogar o disposto no art. 81 do Código Tributário Nacional que, textualmente, faz referência à existência de um limite
individual (o acréscimo de valor que da obra resultar para cada imóvel beneficiado) e de outro global (a despesa
realizada com a obra).
Recusar aplicabilidade ao art. 81 do CTN, negando a coexistência dos limites global e individual, significaria anular o
único aspecto positivo, para o contribuinte brasileiro, no contexto da lamentável confusão legislativa entre o “benefit
assessment” e o “cost assessment”.
Equivaleria a suprimir, pela via interpretativa, uma eficiente regra de contenção da voracidade fiscal, distanciando
ainda mais o Direito Tributário de sua missão primeira: proteger o contribuinte contra o fisco.
*Compilação da série publicada em quatro
artigos no jornal Carta Forense (fevereiro a maio/2007)
O DIREITO TRIBUTáRIO COMO FARSA Publicado em 03/03/2012 13:50:09 por Alexandre Mazza
Mônimos de Siracusa*
O direito tributário como farsa
Nascido na cidade grega de Siracusa, Mônimos foi um filósofo cínico que viveu no século IV a.C.. Assim como
Diógenes, de quem era discípulo, perambulava pelas ruas vestido como mendigo. Tornou-se conhecido pela frase que
repetia a quem lhe cruzasse o caminho: “é vão todo pensamento humano”. Conta-se que antes de abandonar tudo para
seguir Diógenes, Mônimos tinha sido serviçal de um banqueiro de Corinto e, decidido a livrar-se do aborrecido
emprego, passou a fingir-se de louco. Jogava fora moedas e todo o dinheiro que estivesse na mesa do banqueiro, até
que foi demitido. Apesar da reputação de pensador sério, Mônimos é hoje mais lembrado pela farsa engendrada do que
propriamente por suas virtudes filosóficas.
Inspirada no episódio acima narrado, a série de reflexões iniciada com a publicação deste artigo pretende explorar a
idéia do direito tributário como farsa, isto é, deixando de lado outras perspectivas possíveis de compreensão do
fenômeno da tributação, partirá do pressuposto de que o conjunto de princípios e normas tributários cumpre o papel de
instrumento legitimador de arbitrariedades praticadas pelo Estado em desfavor de certas categorias de contribuintes.
Antônio Cândido, em sua conhecida obra Literatura e Sociedade, afirma que: “Nada mais importante para chamar a
atenção sobre uma verdade do que exagerá-la. Mas também, nada mais perigoso, porque um dia vem a reação
indispensável e a relega injustamente para a categoria do erro, até que se efetue a operação difícil de chegar a um
ponto de vista objetivo, sem desfigurá-la de um lado nem de outro” (Coleção Grandes Nomes do Pensamento
Brasileiro, p. 5).
A advertência de Antônio Cândido, extraída da análise relacional entre a obra literária e seu contexto social, aplica-se
perfeitamente à história da visão marxista sobre o direito. Na primeira metade do século passado, a concepção do
direito visto como um instrumento de dominação atingiu, em certos setores da academia, o status de “verdade
exagerada”. De tão difundida, a idéia de considerar as regras jurídicas um mecanismo ideológico para a perpetuação
da elite dominante no poder virou uma espécie de lugar-comum. Daí porque, parafraseando Cândido, veio a reação
que rebaixou a concepção marxista para a categoria de falha de visão. Hoje é raríssimo encontrar estudiosos dispostos
a denunciar as engrenagens econômicas existentes por trás de certos institutos e determinadas concepções jurídicas.
É possível que o fracasso das experiências socialistas no mundo e a decepção da esquerda no poder (especialmente
no Brasil) tenham colaborado para reduzir essa importante corrente científica a uns poucos cultores confinados na
seara da filosofia do direito.
No campo específico da ciência tributária existe ainda um elemento complicador: erigido há pouco mais de cinqüenta
anos à condição de ramo autônomo, o direito tributário se ressente de uma produção científica contemporânea ao
apogeu do marxismo jurídico. Assim, toda a produção científico-tributária brasileira desenvolveu-se durante as décadas
de refluxo das correntes marxistas, circunstância que colaborou para deixar a seara da tributação praticamente imune à
influência desse posicionamento crítico.
Partindo da perspectiva de que o direito positivo é uma construção ideológica voltada a preservar os privilégios da
elite dominante, não faz sentido afirmar, como proclama a doutrina em uníssono, que os princípios e normas do direito
tributário compõem um sistema para a preservação dos direitos e garantias do contribuinte (ou de todos os
contribuintes). Ao contrário, seria mais adequado asseverar que o direito tributário representa uma ferramenta estatal
vocacionada para conferir legitimidade à absorção gradual da renda e do patrimônio das classes oprimidas em favor
dos governantes e do grande capital. De certo modo, tudo no direito tributário teria sido pensado para cumprir a missão
“extrafiscal” de preservar a desigualdade social e manter o dinheiro, e conseqüentemente o poder, sempre nas mãos
dos mesmos.
Interessante notar que o sistema principiológico-tributário (arts. 145 a 152 da Constituição Federal) não seria de todo
inútil para proteger o contribuinte contra o Fisco. Ele funcionaria somente em favor de algumas categorias de
contribuintes. Sempre que precisasse, a elite poderia invocar uma proteção qualquer com o objetivo de afastar
incursões inesperadas do Estado sobre seu patrimônio. O que ocorre é que o conjunto de garantias tributárias operaria
de modo seletivo, protegendo eficazmente as classes dominantes, mas deixando indefesos os contribuintes menos
favorecidos.
Em síntese daquilo que até aqui foi visto pode-se dizer que uma das perspectivas possíveis de compreensão do direito
tributário é encará-lo como um conjunto de princípios e normas ideologicamente estabelecido para conferir legitimidade
à absorção gradual da renda e do patrimônio das classes oprimidas em favor dos governantes e do grande capital.
A análise do direito tributário a partir desse ponto de vista revela aspectos perversos de institutos considerados
insuspeitos pela doutrina tradicional.
Os princípios tributários, por exemplo, são tidos como garantias fundamentais do contribuinte, verdadeiras barreiras
impostas pelo Texto Constitucional para conter e condicionar o exercício da atividade estatal tributante. Poucos
ousariam negar-lhes tal status na medida em que a própria Constituição de 1988 trata dos princípios tributários dentro
de uma seção intitulada “Das limitações ao poder de tributar” (seção II do capítulo referente ao Sistema Tributário
Nacional). A mesma idéia é reforçada pela redação do “caput” do art. 150 da CF, que, antes de listar diversos princípios
em seus incisos, declara: “Sem prejuízo de `outras garantias´ asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos
Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios...”.
Entretanto, nada mais simplista do que tratar dos princípios tributários como meras regras de proteção do contribuinte
frente ao Fisco. Na verdade, os princípios cumprem também a função de agentes sistêmicos conservadores,
preservando as estruturas de dominação contra alterações legislativas inoportunas. Pode ser assim interpretada a
regra que veda a promulgação de emendas constitucionais tendentes a abolir os princípios do Direito Tributário (art. 60,
§ 4º, IV, c/c art. 150, “caput”, ambos da CF): o próprio sistema criou mecanismos eficientes de autodefesa, impedindo
que o constituinte reformador e o legislador infraconstitucional ponham em risco os privilégios econômicos que o
ordenamento jurídico protege.
Essa maneira de compreender a função de um princípio explica sua inoperância concreta como instrumento limitador
da atividade tributante. Os mais importantes princípios tributários – como o da legalidade, da anterioridade e da
irretroatividade – não se aplicam ao conteúdo da exação, mas disciplinam seu alcance temporal e a forma como deve
ser instituída. Desse modo, ao invés de protegerem o contribuinte contra a tributação injusta ou desproporcional, tais
princípios operam uma “legitimação pelo procedimento” (Jünger Habermas), conferindo validade formal a exigências
tributárias cuja razoabilidade o sistema normativo não consegue garantir.
Curiosamente, os princípios voltados ao controle de aspectos substanciais (conteúdo) da tributação padecem de uma
imprecisão conceitual que esvazia sua aplicabilidade concreta. Relembre-se o exemplo do art. 150, IV, da CF, cuja
redação enuncia em termos bastante vagos ser vedada à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a
utilização de tributo com efeito de confisco. Ao contrário de constituições anteriores, o Texto de 88 não determinou um
limite percentual máximo para o estabelecimento de alíquotas. Assim, o princípio da vedação do confisco é dotado de
elevada carga simbólica (Marcelo Neves), mas desprovido de qualquer significação prática, representando uma espécie
de monumento à inoperância dos princípios tributários.
Do ponto de vista teórico tal princípio goza de especial prestígio entre as limitações constitucionais ao poder de tributar
precisamente por não representar um mero controle de procedimento, mas por constituir instrumento garantidor da
tributação materialmente justa.
Ocorre que o adequado cumprimento da missão sistêmica conservadora dos princípios tributários depende de uma
eficiente ocultação dessa sua função operacional. Os instrumentos de dominação social não podem se revelar como
tal. Quanto mais insuspeito o principio, maior seu potencial de veiculação ideológica. Nesse aspecto é preciso
reconhecer que a vedação do confisco merece destaque especial já que nenhum outro princípio tributário revela (plano
da aparência) semelhante preocupação em proteger o contribuinte e seus bens contra a voracidade fiscal do Estado.
A respeito da “face simpática” do princípio em análise podem ser colacionados, a título de exemplo, trechos da lavra de
alguns dos mais respeitados doutrinadores pátrios:
Luciano Amaro: “O art. 150, IV, veda a utilização do tributo com efeito de confisco, ou seja, impede que, a pretexto de
cobrar tributo, se aposse o Estado dos bens do indivíduo (...) O que se objetiva é evitar que, por meio do tributo, o
Estado anule a riqueza privada” (Direito Tributário Brasileiro, Saraiva, 11ª Edição, p. 144).
Hugo de Brito Machado: “A Constituição Federal estabelece que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e
aos Municípios utilizar tributo com efeito de confisco. Não obstante seja problemático o entendimento do que seja um
tributo com efeito de confisco, certo é que o dispositivo constitucional pode ser invocado sempre que o contribuinte
entender que o tributo, no caso, lhe está confiscando os bens” (Curso de Direito Tributário, Malheiros, 14ª edição, p.
35).
Roque Carrazza: “o princípio da não-confiscatoriedade limita o direito que as pessoas políticas têm de expropriar bens
privados (...) exige do legislador conduta marcada pelo equilíbrio, pela moderação e pela medida, na quantificação dos
tributos, tudo tendo em vista um Direito Tributário justo” (Curso de Direito Constitucional Tributário, Malheiros, 19ª
Edição, p. 89).
Porém, proteger a propriedade do contribuinte contra a tributação excessiva não é a finalidade maior do princípio da
vedação do confisco. A intencional imprecisão na redação do art. 150, IV, da CF, só faz confirmar seu caráter de
“garantia de fachada”. A razão de existir do princípio passa longe do seu sentido aparente. Trata-se, na verdade, de
regra garantidora da perpetuação da dominação econômica, na medida em que impede a absorção definitiva do
patrimônio individual pelo Estado, estabelecendo uma espécie de sujeição ininterrupta de certos contribuintes ao
aparelho governamental. Se o objetivo do princípio fosse, de fato, estabelecer um limite claro para a ação tributante
bastaria fixar um percentual máximo para as alíquotas, como ocorre em outros países. Mas a falta de balizas que
caracteriza o tratamento constitucional dado ao problema do tributo confiscatório abre uma margem de liberdade apta a
permitir um tratamento judiciário seletivo a respeito das classes sociais que serão, ou não, subtraídas da tributação
desproporcional. Assim, o princípio pode ser invocado de modo eficaz em favor da elite dominante e do grande capital,
mas não cria qualquer vantagem específica às camadas menos favorecidas, cumprindo somente o papel de mantê-las
na condição de fonte permanente de receitas para o Estado.
Concluindo. Tornou-se lugar-comum afirmar que o sistema tributário nacional representa um complexo normativo
estruturado para proteção do patrimônio privado contra a ação fiscal, estabelecendo um verdadeiro estatuto limitador
da atividade tributante.
Entretanto, cabe questionar se realmente tal é a razão de existir do Direito Tributário. Em certos casos, os princípios e
normas pertencentes à referida seara parecem cuidadosamente pensados para produzir um efeito contrário ao seu
sentido óbvio, representando mais um conjunto de proteções do fisco contra o contribuinte. Em outras situações, a
interpretação cuidadosa da norma revela a intenção do legislador de ocultar relações sociais de poder, submetendo
classes menos favorecidas à dominação permanente por parte do Estado.
Visto a partir de tal perspectiva, o Direito Tributário assume o papel perverso de processo legitimador das
desigualdades na sociedade, servindo de instrumento para perpetuação do poder nas mãos da elite dominante.
Para sustentar esse ponto de vista, apresentamos as seguintes teses:
1) A par de outras formas possíveis de compreensão do fenômeno jurídico, o Direito Positivo pode ser entendido
como uma construção ideológica voltada a preservar os privilégios da elite dominante;
2) O Direito Tributário é uma ferramenta estatal vocacionada para conferir legitimidade à absorção gradual da renda e
do patrimônio das classes oprimidas em favor dos governantes e do grande capital;
3) O Direito Tributário cumpre a missão “extrafiscal” de preservar a desigualdade social e manter o dinheiro nas mãos
dos mesmos;
4) Em razão de seu “caráter seletivo”, o sistema principiológico-tributário oferece mecanismos eficientes para defesa
dos interesses dos economicamente mais fortes, mas deixa indefesos os contribuintes menos favorecidos;
5) Os princípios tributários cumprem a função de agentes sistêmicos conservadores, preservando as estruturas de
dominação contra alterações legislativas inoportunas;
6) O caráter imutável dos princípios constitucionais tributários é um elemento de autodefesa do sistema, impedindo
que o constituinte reformador e o legislador infraconstitucional ponham em risco os privilégios econômicos que o
ordenamento protege;
7) Os princípios tributários operam uma legitimação pelo procedimento, conferindo validade formal a exigências fiscais
cuja razoabilidade o sistema normativo não consegue garantir;
8) O princípio da vedação do confisco (art. 150, IV, da CF) é o melhor exemplo de regra dotada de elevada carga
simbólica, mas desprovida de qualquer significação prática, representando uma espécie de monumento à inoperância
dos princípios tributários;
9) Proteger a propriedade do contribuinte contra a tributação excessiva não é a finalidade maior do princípio da
vedação do confisco. Antes, serve para impedir a absorção definitiva do patrimônio individual pelo fisco, mantendo as
camadas menos favorecidas na condição de fonte permanente de receitas para o Estado.
A ousadia com que submetemos as nove teses à apreciação dos leitores do jornal Carta Forense é conseqüência da
nossa indignação diante da ineficiência dos princípios tributários na tarefa de conter a voracidade fiscal do governo
brasileiro.
Que o modelo tributário vigente não reproduza o ocorrido com Mônimos de Siracusa, personagem mais lembrado pela
farsa engendrada do que propriamente por suas virtudes.
*Compilação da série de quatro artigos publicada
no jornal Carta Forense (nov./2006 a fev./2007
EMPRéSTIMOS COMPULSóRIOS Publicado em 03/03/2012 13:51:02 por Alexandre Mazza
Tristão e Isolda*
A lenda medieval sobre Tristão e Isolda relata o que muitos consideram um exemplo de amor absoluto e perfeito.
Popularizou-se por meio da versão escrita por Béroul, poeta francês do século XII, tendo, desde então, servido de
inspiração para incontáveis romances e obras de arte. No campo da música, a ópera “Tristan and Isolde”, de Richard
Wagner, tornou-se tão ou mais conhecida do que a própria história que inspirou o compositor alemão. Tristão era filho
do rei Rivalin e de Blanchefleur, irmã do Rei Mark de Cornuália, e como sua mãe morre no parto, foi batizado com o
nome derivado do vocábulo francês “triste”. Após Tristão ter sido gravemente ferido em uma batalha, suas cicatrizes
são cuidadosamente curadas por Isolda, a jovem “das brancas mãos”, por quem se apaixona depois de beber uma
poção de amor. Impedidos de permanecer juntos pela corte do rei Mark, os jovens fogem para a floresta, onde dormem
todas as noites “com uma espada de dois gumes separando seus corpos”. Por circunstâncias da vida, os amantes se
distanciam e a história termina contando que ele morre, de tristeza, esperando na praia pelo barco que traria Isolda. Ao
encontrar o amante morto na areia, Isolda morre ao seu lado. Na cova de Tristão nasce uma videira e na de Isolda,
bem ao lado, uma rosa. As duas plantas se entrelaçam e crescem juntas como um símbolo do amor dos jovens. Por
isso se diz que o amor de Tristão e Isolda restringiu-se ao platonismo, ficando marcado pela ausência de consumação
concreta.
Em certo sentido, semelhante sorte parece atingir alguns institutos do Direito Tributário vocacionados mais para uma
existência etérea do que para a realização fática, como ocorre com os empréstimos compulsórios, cujos casos até hoje
existentes de sua arrecadação nunca atenderam, na prática, à exigência constitucional que representa a característica
normativa mais destacada de seu regime jurídico: a restitutividade.
O objetivo deste artigo é analisar alguns dos aspectos fundamentais relacionados com essa peculiar exação tributária.
Antes da Emenda 1/69, os empréstimos compulsórios não eram considerados tributo, mas contratos coativos,
próximos ao mútuo civil (San Tiago Dantas, Evandro Lins e Vitor Nunes Leal), entendimento consagrado na Súmula
418 do STF, in verbis: “O empréstimo compulsório não é tributo, e sua arrecadação não está sujeita à exigência
constitucional de prévia autorização orçamentária” (conferir RMS 11.252, 11.671, 11.645, 11. 666, 11.894, 11.773,
11.933, 11.358 e 11.809).
No ano de 1966, foi promulgado o Código Tributário Nacional, cujo art. 15, de modo inovador, passou a disciplinar a
criação de empréstimos compulsórios pela União, nas hipóteses de: I) guerra externa, ou sua iminência; II) calamidade
pública; III) conjuntura que exija absorção temporária de poder aquisitivo.
O caráter tributário dos empréstimos compulsórios foi ratificado pela EC 1/69 (art. 21) e pela Constituição Federal de
1988 (art. 148), sendo certo que, atualmente, não remanescem dúvidas sobre sua verdadeira natureza jurídica (RE
146.615).
À luz da Carta Política vigente, os empréstimos compulsórios são tributos restituíveis, de competência exclusiva da
União, instituídos, mediante lei complementar, para fazer frente a situações de calamidade pública, guerra externa ou
investimento público urgente e relevante. Note-se, por oportuno, que a hipótese prevista no art. 15, III, do CTN, não foi
recepcionada pela Constituição de 1988, razão pela qual não se pode mais exigir tal tributo no caso de “conjuntura que
exija absorção temporária de poder aquisitivo”.
Curiosamente, apesar do inegável caráter tributário dado pelo Texto Maior, os empréstimos compulsórios não
constam do rol do art. 145 da CF, no qual o constituinte atribuiu à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios competência para “instituir os seguintes tributos: I) impostos; II) taxas; III) contribuições de melhoria”. O
silêncio parece ter sido intencional na medida em que, ao nosso sentir, os empréstimos compulsórios não constituem
uma quarta espécie tributária; antes, são tributos que podem adotar, dependo do caso concreto, a feição jurídica de
imposto, de taxa ou de contribuição de melhoria. O legislador complementar, diante das hipóteses autorizadoras
previstas no art. 148 da CF, tem a faculdade de instituir o empréstimo compulsório como um adicional de alíquota ou
por meio da ampliação da base de cálculo de tributo já existente, pelo que, a referida exação assumirá a natureza
jurídica do tributo a que estiver associada: ou imposto, ou taxa, ou contribuição de melhoria.
Estamos a defender, portanto, que os empréstimos compulsórios não se distinguem dos demais tributos em função de
seu fato gerador (não se lhes aplica o teor do art. 4º do CTN), mas pelo elemento da restitutividade, ausente nos outros
tributos. Assim, o critério usado para dar identidade aos impostos, às taxas e às contribuições de melhoria é diferente
daquele pelo qual é possível isolar os empréstimos compulsórios no universo das exações tributárias. Por isso revela
pouca acuidade científica quem adota a chamada “teoria quinária”, dividindo os tributos em cinco categorias –
impostos, taxas, contribuições de melhoria, empréstimos compulsórios e contribuições especiais – já que, visivelmente,
tal classificação não aparta as espécies tributárias por meio de um elemento diferenciador único, prejudicando assim a
análise da questão.
Além disso, é preciso dizer que o tratamento dado pela Constituição Federal de 1988 em matéria de empréstimos
compulsórios incidiu em imperdoável equívoco no que atine à hipótese de cobrança em caso de guerra externa ou
iminência de guerra (art. 148, I). Isso porque, como visto, os empréstimos compulsórios são criados por lei
complementar e o produto de sua arrecadação deve ser restituído ao contribuinte. Porém, inexplicavelmente, o art. 154,
II, da CF, conferiu à União a possibilidade de instituição de imposto extraordinário, também para o caso de guerra
externa ou iminência de guerra, sendo certo, porém, que sua criação depende apenas de lei ordinária e, pior, o valor
arrecadado não precisa ser devolvido. Em síntese: o art. 154, II, da CF, estabeleceu um mecanismo mais rápido e
menos oneroso para a União enfrentar a necessidade urgente de capitação de recursos na hipótese de guerra externa,
o que, na prática, acabou esvaziando por completo a razão de existir do empréstimo compulsório no caso do inciso II,
do art. 148, da Constituição.
Acerca da competência legislativa para instituição dos empréstimos compulsórios, a redação do art. 148 da
Constituição de 1988 não poderia ser mais direta ao fixar a referida aptidão no âmbito federal: “A União, mediante lei
complementar, poderá instituir empréstimos compulsórios...”. Nota-se que no plano normativo-constitucional inexiste
espaço para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios editarem leis versando sobre tal espécie tributária,
circunstância que não tem impedido a ocorrência de tentativas de usurpação indireta dessa competência. Na
jurisprudência do STF, receberam o nome de “empréstimos compulsórios disfarçados” as exações que propiciam
ingresso temporário de dinheiro nos cofres públicos. Foi o caso do RE 70.204, a respeito da Lei nº 3.985/67, do Estado
de Santa Catarina, cujo art. 25, declarado inconstitucional pela Suprema Corte, limitava o aproveitamento dos créditos
do ICMS ao montante de 80% sobre o valor do imposto na saída da mercadoria durante determinado período,
mecanismo que, em termos práticos, constituía um tipo de empréstimo compulsório embutido no tributo estadual.
Semelhante raciocínio fundamentou a decisão exarada liminarmente pelo Supremo Tribunal Federal na Ação
Declaratória de Inconstitucionalidade 2.022/00, a respeito do artigo 3º da Lei capixaba nº 5.827/99, que autorizava o
Executivo estadual a reter 20% dos vencimentos dos servidores públicos daquele Estado para posterior devolução.
Tratava-se, uma vez mais, conforme consta do teor da decisão do relator, Ministro Ilmar Galvão, de um empréstimo
compulsório disfarçado – uma forma oblíqua de o Estado-membro exercer ilegitimamente competência exclusiva da
União.
Quanto ao instrumento normativo exigido pelo Texto Maior para a criação dos empréstimos compulsórios, o art. 148
representou avanço em relação aos sistemas constitucionais pretéritos na medida em que incluiu o tema no rol de
assuntos reservados à legislação complementar, o que significa, entre outras coisas, uma maior dificuldade para
aprovação da lei no Congresso Nacional (maioria absoluta dos membros, conforme art. 69 da CF). Obviamente, apesar
de o art. 148 da CF referir apenas à “instituição”, deve-se entender que a alteração e a extinção de empréstimos
compulsórios também exigem o mesmo instrumento normativo.
Além de impor a necessidade de quorum qualificado para aprovação, a norma do art. 148 terminou também por
subtrair o assunto do campo de ação das medidas provisórias, já que o art. 62, § 1º, III, com redação dada pela
Emenda 32/01, proíbe a edição de MPs sobre temas sob reserva de lei complementar. Lamente-se apenas que,
conforme já dito, o art. 154, II, da Constituição Federal, autoriza a cobrança, por lei ordinária, de impostos
extraordinários em caso guerra externa ou iminência de guerra, disposição que acabou esvaziando o significado dos
empréstimos compulsórios, e, por conseqüência, a exigência de lei complementar para a hipótese descrita no inciso I
do art. 148 da C.F.
Nessa esteira, convém deixar registrado que a iniciativa dos projetos de lei complementar tributária é comum ao
Executivo e ao Legislativo, conforme já decidiu o STF na ADIMC 724.
Outra questão que vem provocando controvérsia é a atinente à possibilidade ou não de empréstimo compulsório incidir
sobre fato gerador ou base de cálculo de outro tributo. Como já dito, os empréstimos compulsórios não constituem uma
quarta espécie tributária, pois, na verdade, são instituídos com o formato de imposto, taxa ou contribuição de melhoria,
normalmente mediante a fixação de adicionais temporários agregados a alíquotas de tributos já existentes. Desse
modo, a bem da coerência, o raciocínio explanado induz à conclusão de que os empréstimos compulsórios podem ser
cobrados a partir de fato gerador e base de cálculo já utilizados para a arrecadação de outros tributos, não existindo,
segundo cremos, barreiras sistêmicas impeditivas da bitributação ou do “bis in idem” envolvendo empréstimos
compulsórios e outras exações tributárias, ainda que estranhas à competência da União (conferir, no mesmo sentido,
RE 121.336).
Interessante debate cerca o problema do princípio da vedação à tributação confiscatória em sede de empréstimos
compulsórios. É que o art. 150, IV, da Constituição Federal, afirma ser “vedado à União, aos Estados, ao Distrito
Federal e aos Municípios utilizar tributo com efeito de confisco”. O aludido dispositivo constitucional proíbe que, a
pretexto de tributar, o Estado subtraia a propriedade do contribuinte ou inviabilize o exercício de atividade econômica.
Em que pese o contorno impreciso do princípio no Texto Maior, constitui um dos poucos mecanismos jurídicos que
permitem pôr em causa aumentos excessivos de alíquotas, como ocorreu recentemente com a Cofins.
Infelizmente, o constituinte de 88 perdeu oportunidade de estabelecer, como há em outros países, um limite percentual
máximo para a carga tributária em comparação com o produto interno bruto (PIB), ou então de, como determinava o
art. 185 da Constituição Brasileira de 1934, prescrever que “nenhum imposto poderá ser elevado além de vinte por
cento do seu valor ao tempo do aumento”. Além disso, é preciso dizer que alguns doutrinadores têm contribuído para
diminuir ainda mais o alcance prático da vedação insculpida no art. 150, IV, da CF, ao entender que não se pode
analisar o caráter confiscatório de um tributo isoladamente sem considerar seu impacto sobre a totalidade da carga
tributária nacional. Se a avaliação sobre a natureza confiscatória de um tributo em si já é revestida de dificuldades
consideráveis, o que dizer então de agregar a isso a preocupação de compreender e julgar sua repercussão na
economia como um todo? O certo é que o referido posicionamento transporta o problema para fora das fronteiras do
Direito, o que só fortalece a inoperância do princípio em discussão.
Ora, em que pese toda a complexidade inerente ao tema, quer-nos parecer que o princípio da vedação do confisco é
inteiramente aplicável aos empréstimos compulsórios, sendo legítimo considerá-lo inconstitucional, por afronta ao art.
150, IV, da Carta Maior, se exigido de modo a subtrair do contribuinte o mínimo vital para sua subsistência e a de sua
família, ou, ainda, se inviabilizar o exercício de atividade econômica.
Bastante controvertida é a questão referente à sujeição dos empréstimos compulsórios ao princípio da
não-cumulatividade. Aplicável, por expressa determinação constitucional, ao ICMS (art. 155, § 2º, I, da CF), ao IPI (art.
153, § 3º, II, da CF) e a alguns casos da Cofins (art. 195, § 12, da CF, acrescentado pela Emenda 42/03), o referido
princípio estabelece mecanismo para neutralizar o impacto financeiro que a incidência dos chamados “tributos
plurifásicos” causaria no preço final das mercadorias. É que, como se sabe, o ICMS e o IPI, assim como a Cofins, na
hipótese do dispositivo constitucional acima citado, são devidos nas sucessivas etapas das cadeias produtiva e
circulatória (incidência plurifásica), de modo que o valor do próprio tributo recolhido nas fases anteriores passaria a
compor a base de cálculo na operação seguinte, produzindo o fenômeno da “tributação sobre tributação” ou “tributação
em cascata”. Para anular esse efeito, a Constituição Federal determina que tais exações serão não-cumulativas
“compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores” (art. 153, § 3º, II). O
princípio da não-cumulatividade, como se pode notar, tem aplicabilidade restrita a um conjunto diminuto de tributos. De
início, só há sentido em cogitar da sua aplicação sobre tributos plurifásicos, na medida em que, nos monofásicos
(maioria), o recolhimento se dá uma única vez, não ocorrendo a circunstância que o princípio pretende evitar –
tributação em cascata. Além disso, a doutrina afirma que o legislador infraconstitucional só está obrigado a instituir
tributos não-cumulativos em decorrência de explícita exigência do Texto Maior. Assim, o âmbito de aplicação
obrigatória do princípio estaria circunscrito ao IPI, ao ICMS e à Cofins. Fora esses três casos, o art. 154, I, da
Constituição Federal, ao disciplinar o exercício da competência impositiva residual, afirma que “a União poderá instituir,
mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam não cumulativos e não tenham
fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição”. Destarte, a aptidão para instituir
imposto novo – o mesmo valendo para nova contribuição previdenciária (art. 195, § 4º, da CF) – conferida ao legislador
federal, deve ser exercida atendendo-se à exigência de não-cumulatividade. Em outras palavras, se a novel exação for
plurifásica, deverá submeter-se às sucessivas compensações. O inciso I do art 154 é uma regra de contenção,
demonstrando que o próprio Texto Constitucional considera o sistema saturado com as hipóteses já existentes de
tributos cumulativos (v.g., arts. 8º a 10 da Lei 10.833/03).
Para alguns doutrinadores, a norma do art. 154, I, alcançaria também os empréstimos compulsórios na medida em
que, sendo dispositivo voltado a prevenir que imposto recém-criado tenha o indesejado “efeito cascata”, a restrição
valeria analogicamente para o caso de a União instituir outras espécies tributárias igualmente sujeitas à incidência
cumulativa. Ocorre, entretanto, que a tentativa de submeter os empréstimos compulsórios ao princípio da
não-cumulatividade esbarra na ausência de disposição constitucional expressa, fato que desautoriza a conclusão de
que a União estaria sujeita a tal limite. Portanto, nada obstante a existência de respeitáveis opiniões em contrário,
parece-nos que a criação de empréstimo compulsório não está condicionada ao acatamento do princípio da
não-cumulatividade.
A mais intrincada questão envolvendo os empréstimos compulsórios relaciona-se com a análise de duas das
hipóteses constitucionais ensejadoras de seu cabimento, a saber: calamidade pública e investimento público urgente e
relevante.
Esclareça-se, entre parênteses, que o art. 15, III, do CTN, prevê a instituição da espécie tributária em comento também
no caso de “conjuntura que exija absorção temporária de poder aquisitivo”, disposição que, não tendo sido incorporada
no texto da Constituição de 88, é considerada revogada.
O verdadeiro problema está em buscar contornos concretos para as noções imprecisas utilizadas no art. 148 da CF.
Por óbvio, é preciso repelir, de início, a idéia de que o Texto Maior deu um cheque em branco ao legislador federal para
interpretar livremente, conforme as conveniências de ocasião, o que significam “calamidade pública” e “interesse
público urgente e relevante”. Apesar das dificuldades inerentes ao tema, a Ciência do Direito oferece instrumental apto
a auxiliar o intérprete na obtenção de elementos que permitam extrair um conteúdo mínimo de enunciados normativos
como o sub examine.
Conforme lição do jurista platino Genaro Carrió, difundida no Brasil por Celso Antônio Bandeira de Mello, os conceitos
jurídicos imprecisos ou indeterminados permitem discernir, além da zona de penumbra que lhes é própria, uma “zona
de certeza positiva” (representada por situações em que necessariamente o conceito se aplica) e uma “zona de certeza
negativa” (marcada por casos em que o conceito certamente não se aplica).
A análise pormenorizada da questão exigiria desenvolvimento incompatível com a extensão deste breve trabalho, mas
é possível determinar limites ao exercício da competência para criação dos empréstimos compulsórios fixando
elementos da zona de certeza negativa do conceito de “calamidade pública”. Ora, calamidade é uma situação anormal
e extraordinária, um problema cuja solução depende de medidas não usuais. Por isso, se a circunstância concreta
(catástrofe da natureza, por exemplo) puder ser resolvida por meio da cobrança dos tributos então existentes, não será
calamidade, pelo que não se justificará a criação da exação excepcional. Pública é a questão que ultrapasse a esfera
individual de interesse. Assim, mesmo que ocorra calamidade, sendo ela privada, não se configura o permissivo
constitucional do art. 148.
Por fim, e na mesma esteira, a análise da zona de certeza negativa do conceito de “investimento público de caráter
urgente” permite concluir que não se pode instituir empréstimo compulsório, com supedâneo no art. 148, II, da CF, se o
investimento ensejador da cobrança for de interesse eminentemente privado (o investimento não será “público”), ou
então, se a sua realização não se configurar “urgente”, como no caso em que o aporte de verbas necessário para dar
conta do empreendimento puder ser retirado do próprio orçamento anual, sem prejuízo para os demais gastos públicos,
hipótese em que faltará a natureza emergencial própria a tudo que se pode chamar “urgente”.
*Série publicada em três artigos no jornal Carta Forense (janeiro a abril/2006)
REVOGAçãO DE ISENçõES Publicado em 03/03/2012 13:53:10 por Alexandre Mazza
Torre de Babel*
No livro do Gênesis é bastante conhecida a passagem que relata a construção, provavelmente em terras babilônicas,
de uma torre colossal, alta “a ponto de tocar o céu”. Segundo as Escrituras, a Torre de Babel foi erguida visando
imortalizar o nome de seus idealizadores e como forma de desafiar os limites impostos aos homens. A prepotência e a
insensatez do empreendimento despertaram a ira divina e como punição Deus “confundiu a linguagem dos povos da
terra” criando idiomas diferentes para as nações (Gn. 11). Comentando a referida narrativa, o historiador judeu Flávio
Josefo (37 a 103 d.C.), na obra História dos Hebreus, traz informações curiosas sobre o episódio. De acordo com
Josefo, teria partido de um certo Ninrode, neto de Noé, a idéia de fazer a torre. Ninrode ambicionava ser governador e,
aproveitando-se do temor generalizado de que a Terra voltasse a ser mortalmente coberta por águas (o famoso dilúvio
teria ocorrido poucos anos antes), prometeu ao povo construir uma torre altíssima, como refúgio, para o caso de nova
inundação.
Interessante notar que alguns dispositivos legais também possuem histórias ocultas. É o caso do art. 178 do Código
Tributário Nacional, in verbis: “A isenção, salvo se concedida por prazo certo e em função de determinadas condições,
pode ser revogada ou modificada por lei, a qualquer tempo, observado o disposto no inciso III do art. 104” (grifos
nossos). Nem todos conhecem a circunstância que justificou a inclusão da ressalva “salvo se concedida por prazo certo
e em função de determinadas condições” no dispositivo supra. Antes de tudo, porém, convém relembrar, para melhor
compreensão do tema, aspectos relacionados com o instituto da isenção.
Como se sabe as isenções tributárias constituem, na consagrada expressão da doutrina brasileira, “hipóteses de
não-incidência legalmente qualificadas”, a saber, prescrições normativas instituídas pelo legislador infraconstitucional
que dispensam o contribuinte do regular pagamento do tributo. Nesse sentido, distinguem-se substancialmente das
imunidades, já que estas últimas estão sempre previstas na Constituição Federal e atuam limitando a competência para
criar o tributo (conferir na jurisprudência do STF o RE 93.770 e a Adin 939).
Note-se que os dispositivos da Constituição Federal que atribuem às Entidades Políticas aptidão genérica para instituir
tributos têm seu alcance reduzido pela ação das normas imunizantes, que protegem determinadas pessoas e certas
operações contra exigências fiscais. Assim, o instituto jurídico da imunidade opera no interior do Texto Constitucional
gizando as fronteiras da competência tributária. A isenção, bem ao contrário, tem uma virtualidade operacional mais
modesta já que não é dotada de força jurídica para restringir o âmbito de ação de normas constitucionais, consistindo
em instrumento de política tributária por meio do qual o Ente Federativo pode abrir-mão, por vontade sua e
temporariamente, de arrecadar tributo, dispensando o contribuinte de efetuar o pagamento.
Sobre o tema versado cabe trazer à colação as autorizadas palavras de Luciano Amaro, para quem: “basicamente a
diferença entre a imunidade e a isenção está em que a primeira atua no plano da definição da competência, e a
segunda opera no plano do exercício da competência” (in “Direito Tributário Brasileiro”, 11ª Edição, Editora Saraiva, p.
152).
Importante frisar que as diferenças apontadas entre os dois institutos realçam o caráter meramente relativo da
terminologia empregada tanto pelo constituinte quanto pelo legislador infraconstitucional. Isso porque, não raras vezes,
o Texto Constitucional refere a isenção, quando na verdade o correto seria dizer imunidade. É o caso, e.g., do art. § 6º
do art. 195 da CF, in verbis: “São isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de
assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei” (original sem grifos).
Por oportuno, relembre-se que bastante peculiar é a norma contida no art. 155, § 2º, XII, “e”, da CF, que ordena ao
legislador complementar federal a exclusão do ICMS sobre exportações de bens e serviços. Tal dispositivo constitui
raríssimo exemplo da chamada isenção heterônoma, pela qual uma Entidade Federativa (União), por força de expressa
ordem constitucional, dá isenção de tributo da competência de outra (Estado-membro).
No Direito Tributário brasileiro a isenção é tratada como causa de exclusão do crédito tributário (art. 175, I, do CTN),
exigindo, para sua outorga, lei específica da Pessoa Política competente para criar o tributo (arts. 176 do CTN, 151, III,
e 150, § 6º, ambos da CF), sendo certo também que o contribuinte beneficiado pela isenção continua vinculado ao
cumprimento das obrigações tributárias acessórias (art. 175, parágrafo único, do CTN).
Dito isso, voltemos à questão inicial: qual a razão para o legislador ter criado a ressalva constante do art. 178 do CTN
acerca da irrevogabilidade das isenções temporárias e condicionadas.
Na década de 60, um município paulista precisava estimular a implantação de serviços odontológicos na periferia e,
para tanto, aprovou lei concedendo isenção tributária total pelo prazo de 20 anos (isenção por prazo determinado) para
os dentistas dispostos a transferir seus consultórios para bairros afastados do centro (isenção condicionada). Atraídos
pelo favor legal inúmeros profissionais atenderam à exigência legal. Pouco tempo depois, tendo alcançado os objetivos
que justificaram a criação da lei, o prefeito revogou a lei sob a alegação de que o erário não estaria suportando a
diminuição de receitas propiciada pela inaceitável isenção.
Com vistas a impedir que o mau exemplo fosse seguido alhures, o saudoso prof. Rubens Gomes de Souza, autor do
anteprojeto do CTN, acrescentou dispositivo deixando claro que “a isenção, salvo se concedida por prazo certo e em
função de determinadas condições, pode ser revogada ou modificada por lei (art. 178, sem grifos no original).
*artigo publicado no jornal Carta Forense (setembro/2005)
ANTERIORIDADE TRIBUTáRIA Publicado em 03/03/2012 13:53:47 por Alexandre Mazza
Complexo de Jackson*
A imprensa, por esses dias, vem noticiando interessadamente o desenrolar do julgamento de um conhecido cantor
americano acusado de assediar crianças. Traço curioso de sua personalidade, o referido artista, insatisfeito com a
aparência, submeteu-se a sucessivas cirurgias plásticas “embelezadoras” que terminaram por esculpir em seu rosto
uma caricatura grotesca e risível de si mesmo.
Guardadas as proporções, o fato é que perturbação psicológica semelhante acomete, em certo sentido, também o
constituinte derivado brasileiro. Incapaz de contentar-se com a fisionomia da Carta Política, e péssimo cirurgião, tem
promulgado, compulsivamente, seguidas emendas desfiguradoras da feição e do espírito democráticos da Constituição.
Para surpresa geral, entre as modificações na Carta Federal levadas a termo pela Emenda 42, de dezembro de 2003,
observa-se ao menos uma novidade positiva, a saber, o aprimorando na sistemática de incidência do princípio da
anterioridade tributária. Agora, ao inciso III, do artigo 150, foi agregada a alínea “c”, com força na qual a criação ou
majoração de tributos, sem prejuízo da anterioridade anual (alínea “b”), só pode produzir efeitos concretos noventa dias
após a publicação da lei criadora ou majoradora. Além disso, o teor do § 1º, do mesmo artigo 150, precisou sofrer
adaptações para compatibilizá-lo com o novo modelo, e, pasmem, ganhou essa truncada redação: “a vedação do inciso
III, b, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, IV e V; e 154, II; e a vedação do inciso III, c, não se
aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, III e V; e 154, II, nem à fixação da base de cálculo dos impostos
previstos nos arts. 155, III, e 156, I”.
Assim, compreender o sentido e o alcance atuais do princípio da anterioridade tributária deixou de ser tarefa fácil,
passando a exigir cuidadoso esforço para acomodar as novidades no contexto normativo do sistema tributário nacional.
De início, convém recordar que o princípio da anterioridade objetiva evitar que alterações repentinas na lei tributária
causem repercussão imediata no patrimônio do contribuinte, razão pela qual tem sido chamado também de “princípio
da não-surpresa”. Surgiu, entre nós, por força do artigo 153, § 29, da EC 1/69, guardando relação de parentesco com o
antigo princípio da anualidade, que proibia a criação ou majoração de tributos sem prévia autorização orçamentária,
vedação esta que não mais encontra amparo no ordenamento pátrio (sobre isso, conferir, na jurisprudência do STF,
Adin 939 e Adecon nº 1).
Antes da Emenda 42/03, o princípio da anterioridade, no corpo da Constituição de 88, vinha enunciado na letra do
artigo 150, III, “a”, da CF, que estabelece ser vedado à União, Estados, Distrito Federal e Municípios cobrar tributos no
mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou.
Com essa redação, o conteúdo do artigo 150, III, “a”, soava como “garantia pela metade” em favor do contribuinte já
que em alguns casos o intervalo entre a publicação da lei e a data da efetiva cobrança do tributo chegava ser menor do
que um dia (no RE 250.021, o STF entendeu válida a imediata cobrança do Imposto de Renda com alíquotas
majoradas pela MP nº 812, cujo texto chegou ao guichê da Imprensa Oficial para publicação somente às 19h45 do dia
31.12.94).
Após a Emenda 42/03, além da anterioridade de 1º de janeiro, passou a existir, como regra geral, a obrigatoriedade em
respeitar-se um hiato mínimo de noventa dias entre a publicação da lei e a exigência do tributo (anterioridade
nonagesimal). Desse modo, hoje vigoram, para a maioria dos tributos, as duas anterioridades combinadas, de sorte
que publicado o diploma criador ou majorador da exação esta só poderá ser efetivamente cobrada após 1º de janeiro
do ano seguinte, respeitado intervalo mínimo de noventa dias (art. 150, III, “c”, da CF).
É de notar que o parágrafo 1º, do mesmo artigo 150, definiu três grupos de tributos que se sujeitam a regras próprias
quanto à anterioridade: a) o imposto de importação, o imposto de exportação e o imposto sobre operações financeiras,
se tiverem as respectivas alíquotas manipuladas por decreto presidencial (art. 153, § 1º), não se submetem a
anterioridade alguma, podendo ser exigidos logo após publicação do decreto; o mesmo valendo para empréstimos
compulsórios em caso de calamidade pública, guerra externa ou sua iminência (art. 148, I), bem como aos impostos
ditos extraordinários (art. 154, II); b) o imposto sobre produtos industrializados e as contribuições sociais para custeio
da seguridade social estão vinculados apenas à anterioridade nonagesimal, sendo legítima sua cobrança passados
noventa dias da publicação da lei que os criou ou majorou, ainda que tal data recaia no mesmo ano da lei; c) ao
imposto sobre a renda, assim como à alteração nas bases de cálculo do IPTU e do IPVA, aplica-se apenas a
anterioridade anual, podendo ser cobrados após 1º de janeiro do ano seguinte ao da publicação da lei, não vigorando o
intervalo nonagesimal.
Por oportuno, vale destacar a curiosíssima situação do IPI, que pode ter alíquotas majoradas por decreto presidencial
(art. 153, § 1º), mas, como fruto de presumível erro na redação da emenda, passou a submeter-se à anterioridade
nonagesimal, esvaziando-se assim seu potencial para servir de instrumento hábil a operar intervenções regulatórias
emergenciais e imediatas no mercado se a circunstância concreta impuser o aumento de suas alíquotas.
Ultimada essa série de considerações sobre o panorama geral de aplicação do novo regime da anterioridade,
aproveitamos o ensejo para referir, ainda que de passagem, outros aspectos relacionados com o princípio sub
examine.
De início, asseveramos que, ao contrário do que se costuma dizer, o princípio da anterioridade não produz um
diferimento do termo inicial de vigência da lei tributária como um todo (é dizer, não se trata de uma vacatio legis
singular), pois nem todas as normas contidas em leis desse jaez disciplinam diretamente a criação ou majoração de
tributos, podendo-se concluir que uma parte da lei entra em vigor com a publicação do diploma legislativo (ou na data
nele indicada), e outra, só após 1º de janeiro do ano seguinte, respeitado o intervalo mínimo de noventa dias.
Outro tópico digno de nota, na esteira do disposto no art. 178 do Código Tributário Nacional, é a aplicação da regra de
anterioridade na hipótese de revogar-se isenção concedida por prazo indeterminado, na medida em que, para o
contribuinte que volta ou passa a pagar o tributo, a revogação de lei isentiva equipara-se à criação de novel exação.
Mencione-se também que, de acordo com reiteradas decisões do STF, a alteração do prazo de recolhimento do tributo
não se sujeita à regra da anterioridade (conferir RE 181.832, RE 205.686, RE 211.451, RE 219.878 e RE 193.349).
Por último, acerca do momentoso tema da aplicação ou não da anterioridade no caso de leis tributárias que prorrogam
a vigência de outras leis, advogamos, em que pese a existência de julgados em sentido contrário, a tese segundo a
qual o princípio da anterioridade é integralmente aplicável à hipótese, porque tal situação exige do contribuinte, como
no caso de revogação de isenção, aporte financeiro inesperado.
*artigo publicado no jornal Carta Forense (novembro/2005)
RESTITUIçãO DE TRIBUTOS INDIRETOS Publicado em 03/03/2012 13:54:23 por Alexandre Mazza
Lasciate Ogne Speranza*
Na obra A Divina Comédia, de Dante Alighieri, parte da narrativa sempre impressiona de modo especial: a viagem do
poeta ao Inferno e, em particular, a visão dos pecadores cumprindo suas penas eternas. Cada tipo de pecado ensejava
uma punição específica cruelmente relacionada com a natureza do mal praticado em vida. Os homicidas eram imersos
em sangue fervente. Os hipócritas desfilavam lentamente, vestidos de pesadas capas de chumbo, douradas por fora.
Quanto aos adivinhos, suas cabeças eram torcidas em relação ao corpo, o que os obrigava a caminhar para trás. Por
fim os invejosos, cujas pálpebras eram costuradas com arame.
Na imaginação de Dante, o Inferno seria uma instância de vingança divina contra o pecador, condenado em alguns
casos a sentir eternamente na pele o mal que impingira ao semelhante, e, em outros, a servir de caricatura bizarra e
ambulante do próprio pecado.
Dias atrás, ministrando aula em São Paulo, alguém indagou sobre o teor do art. 166 do CTN, com força no qual “a
restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será
feita a quem prove haver assumido referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este
expressamente autorizado a recebê-la”. O aluno perguntou como poderia o comerciante varejista, no caso de
recolhimento a maior de ICMS, obter de cada um de seus milhares de clientes autorização individual para receber a
restituição. Ocorreu-me, então, de imaginar, por pilhéria, o legislador condenado, à moda de Dante, a ocupar o papel
do contribuinte-comerciante, eternamente à procura de seus incontáveis e desconhecidos clientes, para conseguir
autorizações que permitissem cumprir a referida exigência legal.
O objetivo do presente artigo é apresentar breves apontamentos sobre o intricado tema da restituição dos tributos
ditos indiretos, especialmente o ICMS.
Diversas circunstâncias concretas podem conduzir à realização de recolhimentos indevidos ou a maior. Em muitos
casos, a imensa complexidade e as constantes alterações na legislação tributária brasileira impedem que o contribuinte
tenha certeza sobre qual a forma correta de efetuar o pagamento, obrigando-o a adivinhar o procedimento adequado a
ser adotado.
O art. 165, I, do CTN estabelece que “o sujeito passivo tem direito, independentemente de prévio protesto, à restituição
total ou parcial do tributo, seja qual for a modalidade do seu pagamento nos seguinte casos: I - cobrança ou pagamento
espontâneo de tributo indevido ou a maior que o devido em face da legislação tributária aplicável, ou da natureza ou
das circunstâncias materiais do fato gerador efetivamente ocorrido (...)”.
Nos tributos chamados diretos, como o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), a questão é
simples, pois quem paga o tributo é a mesma pessoa que arca com o ônus econômico decorrente da tributação, não
havendo dúvida sobre a legitimação para pleitear eventual restituição. Porém, se o tributo for indireto ou translativo,
como o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e o Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços
(ICMS), o tema se complica porque quem tem o dever legal de efetuar o recolhimento (contribuinte de direito) pode
repassar a terceiros (contribuintes de fato), embutindo no preço da mercadoria, o encargo financeiro oriundo da
tributação, hipótese em que, ocorrendo pagamento a maior, será preciso determinar qual entre os contribuintes (o de
fato ou o de direito) terá direito à restituição.
A questão foi submetida, por diversas vezes, à análise do Supremo Tribunal Federal, cujo entendimento sobre o tema
está sintetizado na Súmula 546: “Cabe a restituição do tributo pago indevidamente, quando reconhecido por decisão,
que o contribuinte de jure não recuperou do contribuinte de facto o quantum respectivo”. Foi no teor da Súmula 546 do
STF que o legislador se inspirou para criar a norma do art. 166 do CTN. A preocupação consiste claramente em evitar o
enriquecimento ilícito, na medida em que a restituição somente seria justa quando requerida por aquele cujo
patrimônio, em última análise, custeou o pagamento.
Percebe-se, porém, que a mesma norma que visa repelir o enriquecimento indevido do contribuinte de jure terminou
por criar uma forma direta de enriquecimento ilícito do Fisco. Isso porque nenhuma das alternativas dadas pelo art. 166
do CTN é realizável. Ora, sujeitar a restituição à prova de o requerente haver absorvido o encargo financeiro equivale a
exigir demonstração de que não repassou a terceiros o peso econômico do tributo, ou seja, o contribuinte ficaria
obrigado a provar fato negativo, o que sabidamente é algo inviável. E pior: não conseguindo provar a não-transferência
do encargo, o contribuinte necessitaria de expressa autorização dos terceiros para receber a restituição. Parece
evidente que a obtenção de autorização individual, junto aos contribuintes de fato – mormente se levarmos em conta a
situação das vendas a varejo – é exigência de cumprimento simplesmente impossível, já que pouquíssimos
contribuintes de direito reúnem condições materiais de chegar a todos aqueles que adquiriram produtos no
estabelecimento comercial, circunstância que impossibilita obter as tais autorizações referidas na lei.
Curioso lembrar que no ICMS a legislação impõe ao sujeito passivo o dever de realizar o pagamento antecipado do
tributo (lançamento por homologação), exonerando o Fisco de qualquer responsabilidade na apuração inicial dos
valores recolhidos. Assim, não bastasse o Estado transferir integralmente o ônus do lançamento tributário ao particular,
criando severas penalidades para a hipótese de não-pagamento, ainda torna irreversível eventual recolhimento a maior.
O art. 166 do CTN faz recordar a advertência gravada nos umbrais do Inferno: “lasciate ogne speranza, voi ch`intrate”
(deixai toda esperança, ó vós que entrais).
*artigo publicado no jornal Carta Forense (agosto/2005)
LEIS TRIBUTáRIAS INTERPRETATIVAS Publicado em 03/03/2012 13:55:24 por Alexandre Mazza
Bolero de Ravel*
A respeito das leis interpretativas
O italiano Arturo Toscanini é considerado o mais importante maestro de todos os tempos. Iniciou-se na regência
inesperadamente em 1886, quando, aos dezenove anos, viajou ao Rio de Janeiro como violoncelista para uma
apresentação da Aida. Durante a execução, o público vaiou o maestro e Toscanini foi convidado a assumir a batuta,
tendo então regido a obra de Verdi brilhantemente, feito que lhe rendeu notoriedade mundial. Criou fama também por
falar sempre o que pensava. Inimigo do fascismo, chegou a dizer: “abram as portas das prisões, soltem todos os
criminosos; não encontrarão nenhum bandido pior que Mussolini”. No ano de 1930, já em Nova Iorque, protagonizou
uma inusitada cena. À frente da sinfônica local, Toscanini regia o Bolero de Ravel, tendo na platéia a presença anônima
do próprio Maurice Ravel. Ao final da apresentação, o compositor francês, incomodado com o andamento acelerado da
música, procurou Toscanini e disse: “achei interessante o que ouvi, mas esse não é o meu Bolero”. Ao que, ríspido, o
regente italiano respondeu: “foi o único modo que encontrei de tornar a sua música tolerável”.
O curioso episódio mostra o divórcio, por vezes existente, entre a visão do autor sobre sua obra e o modo como esta
pode ser compreendida por outras pessoas. A história acima relaciona-se com o intrincado tema da interpretação e
seus limites, problema fundamental em todos os campos do saber humano.
Na seara do Direito a questão da interpretação envolve aspectos de acentuada complexidade, entre os quais merece
destaque o da interpretação autêntica realizada pelo próprio legislador por meio de diploma normativo editado com tal
finalidade.
O objetivo desta série de artigos é analisar o tema das leis interpretativas e sua repercussão na esfera de direitos
individuais do contribuinte, enfocando a compatibilidade de tais leis com o princípio da irretroatividade.
De início, convém recordar que o art. 5º, XXXVI, da CF afirma: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico
perfeito e a coisa julgada”.
No campo específico da tributação, prescreve o art. 150, III, “a”, da Constituição Federal: “Sem prejuízo de outras
garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: cobrar
tributos em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou
aumentado”.
O dispositivo citado, na esteira do art. 5º, XXXVI, enuncia o princípio da irretroatividade – verdadeiro corolário da noção
de Estado de Direito –, que proíbe a aplicação “ex tunc” da legislação tributária, preservando assim os valores da
segurança jurídica e da previsibilidade da atuação estatal.
Ocorre que o Código Tributário Nacional admite duas hipóteses de retroação da lei tributária: a) quando seja
expressamente interpretativa (art. 106, I); b) quando, mais benéfica, tratar-se de ato não definitivamente julgado (art.
106, II).
O caso da lei mais benéfica desperta menos controvérsia por cuidar de retroatividade em prol do contribuinte, não
podendo o princípio constitucional ser invocado em seu desfavor.
Entretanto, a respeito do disposto no art. 106, II, do CTN existe acesa disputa doutrinária.
É bem verdade que a hermenêutica jurídica, de há muito, sustenta a inconsistência científica da chamada
interpretação autêntica, ao argumento de que, uma vez introduzida no ordenamento, a norma jurídica desvincula-se da
vontade do legislador (“mens legislatores”) e passa a ter o sentido e o alcance condicionados pelos valores do sistema
(“mens legis”), sendo, por isso mesmo, descabido indagar-se qual a intenção de quem elaborou a lei.
Nessa linha, alguns autores simplesmente rejeitam a possibilidade de leis editadas com fins interpretativos. Para
Roque Carrazza, v.g.: “no rigor dos princípios, não há leis interpretativas. A uma lei não é dado interpretar uma outra
lei. A lei é o direito objetivo e inova inauguralmente a ordem jurídica. A função de interpretar leis é cometida a seus
aplicadores, basicamente ao Poder Judiciário, que aplica as leis aos casos concretos submetidos à sua apreciação”
(Curso de Direito Constitucional Tributário, Malheiros, 19ª edição, p. 320).
Porém, o fato é que leis tributárias ditas interpretativas são promulgadas com freqüência, não podendo a doutrina
desprezar sua existência fática.
Importante exemplo prático surgiu com a Lei Complementar 118/05, cujo art. 3º pretendeu oferecer interpretação
autêntica do art. 168, I, do CTN (“Para efeito de interpretação do inciso I do art. 168 da Lei no 5.172, de 25 de outubro
de 1966 – Código Tributário Nacional, a extinção do crédito tributário ocorre, no caso de tributo sujeito a lançamento
por homologação, no momento do pagamento antecipado de que trata o § 1o do art. 150 da referida Lei”).
Para espancar dúvidas, o art. 4º da LC 118 atribuiu eficácia retroativa ao dispositivo acima transcrito afirmando: “Esta
Lei entra em vigor 120 (cento e vinte) dias após sua publicação, observado, quanto ao art. 3o, o disposto no art. 106,
inciso I, da Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional”.
Sendo lei autodenominada interpretativa, despertou imediata controvérsia sobre sua força retroativa. Instados a se
manifestar, os tribunais foram obrigados a investigar se o dispositivo em análise seria, ou não, puramente interpretativo
devendo, no caso de resposta afirmativa, retroagir à data de publicação do CTN.
O deslinde da questão poderia repercutir diretamente no resultado de milhares de ações judiciais de repetição de
indébito em que se discute o termo inicial da prescrição nos tributos lançados por homologação.
*artigo publicado no jornal Carta Forense (junho/2006)
CONTRIBUIçãO DE ILUMINAçãO PúBLICA Publicado em 03/03/2012 13:56:03 por Alexandre Mazza
O Estandarte do Sanatório Geral*
No início dos anos 60, Alfredo Augusto Becker utilizou as expressões “manicômio jurídico tributário” e “carnaval
tributário” como metáforas ilustrativas da caótica condição das leis fiscais e do baixo desenvolvimento da ciência
tributária de então. Recentemente, essas duas imagens voltaram à nossa lembrança: manicômio e carnaval tributário...
Qual delas melhor expressa o estupor diante da Emenda Constitucional n 39/02 e da “nova” contribuição de
iluminação? Talvez, o mais adequado seria, parafraseando Chico Buarque, falar-se em “estandarte do sanatório geral
tributário”.
É que, há poucos dias, a contribuição de iluminação (Cosip) voltou a ser notícia. O presidente do STF, ministro Nelson
Jobim, em decisão datada de 27/01, cassou a antecipação de tutela obtida pelo Instituto Brasileiro de Defesa do
Consumidor (Idec), junto ao juízo da 12ª Vara da Fazenda Pública da Capital/SP, que suspendera a arrecadação, pelo
Município de São Paulo, da Cosip. Na capital paulista, a cobrança é feita com base na Lei municipal nº 13.479/02,
regulamentada pelo Decreto nº 43.143/03, sendo contribuinte “todo aquele que possua ligação de energia elétrica
regular ao sistema de fornecimento de energia” e tendo por finalidade “o custeio do serviço de iluminação pública, que
compreende a iluminação de vias, logradouros e demais bens públicos, a instalação , a manutenção, o melhoramento e
a expansão da rede de iluminação pública, além de outras atividades a estas correlatas” (arts. 2º e 3º do decreto).
O episódio obriga a revisitar alguns aspectos controvertidos do famigerado tributo, com o fito de manter viva a
indignação que essa verdadeira teratologia jurídica provocou nos meios acadêmicos.
Antes de tudo, relembre-se que a Emenda 39 inseriu, no Texto Maior, o artigo 149-A, com a seguinte redação: “os
Municípios e o Distrito Federal poderão instituir contribuição, na forma das respectivas leis, para o custeio do serviço de
iluminação pública, observado o disposto no art. 150, I e III. Parágrafo único. É facultada a cobrança da contribuição a
que se refere o caput, na fatura de consumo de energia elétrica”.
É preciso dizer que o tributo foi batizado como “contribuição”, porém, sua feição jurídica não se ajusta ao regime
constitucional das contribuições parafiscais. Ora, o sistema constitucional brasileiro contempla a existência de três, e
somente três, modalidades dessas contribuições: a) as sociais, para custeio da seguridade (art. 195); b) as
corporativas, de interesse das categorias profissionais ou econômicas (art. 149); c) as de intervenção no domínio
econômico, as Cides (art. 149). Pertenceria a Cosip a alguma entre tais categorias? Vejamos.
A simples leitura do art. 149-A afasta a possibilidade de enquadrar a Cosip como contribuição social já que se destina
a custear a prestação de serviço público, e não, financiar a seguridade. De contribuição corporativa também não se
trata, por faltar qualquer relação com categorias profissionais.
Restaria, por fim, a classe das contribuições interventivas (as Cides). Mas a Cosip não é uma Cide, na medida em que
não instrumentaliza intervenção estatal alguma no domínio econômico. De um lado, porque a iluminação pública é um
serviço público, e não uma atividade econômica. Os serviços públicos compõem a seara de atuação própria do Estado,
em outras palavras, pertencem ao domínio das tarefas que, por opção política do legislador, estão interditadas à livre
ação dos particulares. Desse modo, o domínio econômico contrapõe-se ao campo dos serviços públicos. São setores
antagônicos e incomunicáveis. Não se misturam. Sendo assim, quando o Estado cria tributo para custear serviço
público – como é o caso da Cosip – não há falar-se em intervenção na esfera dos interesses privados. Além disso, esse
argumento pode ser secundado por outro: ainda que, por absurdo que seja, algum desavisado pudesse ver o custeio
de um serviço público como instrumento de intervenção no domínio econômico, deve-se lembrar que a Cosip
paulistana é cobrada de “todo aquele que possua ligação de energia elétrica regular ao sistema de fornecimento de
energia”, ou seja, de praticamente toda a coletividade. Ora, intervenções do Estado no domínio econômico, por meio
das Cides, devem ser pontuais, atingindo grupos econômicos bem delimitados, sob pena de violar-se um dos princípios
informadores das contribuições – o princípio da proporcionalidade. Do modo como vem sendo cobrada, a Cosip não
observa relação alguma entre sua finalidade (custear a iluminação de vias públicas) e o universo de contribuintes
eleitos como fonte de custeio (os usuários do serviço de energia elétrica), isso porque a iluminação de vias públicas e o
fornecimento residencial de energia são serviços públicos distintos. As diferenças entre os dois serviços são visíveis: a)
a iluminação de vias públicas consiste em serviço prestado diretamente pelo Estado, enquanto que o fornecimento
residencial de energia está em regime de concessão; b) a iluminação é de fruição universal, propiciando comodidade
de gozo diluído por toda sociedade, já a energia residencial, é fruível individual e separadamente pelos particulares; c)
os beneficiários da iluminação pública não são, necessariamente, os mesmos usuários da energia fornecida em
residências.
Visto que a Cosip não se enquadra em nenhuma das espécies de contribuição previstas no ordenamento pátrio,
convém verificar se é possível qualificá-la como imposto.
Temos que de imposto também não se trata, pois seria verdadeiro disparate jurídico pensar em tributo dessa espécie
com receita diretamente vinculada ao custeio de serviço público (art. 167, IV, da CF), ou seja, cogitar de um imposto
contraprestacional, retributivo ou sinalágmático. Além do que, se o artigo. 145, II, da CF, afirma que só podem ser
criadas taxas para remunerar serviços públicos que sejam específicos e divisíveis, a instituição de imposto
remuneratório de serviços inespecíficos e indivisíveis tornaria inócua a restrição estabelecida pela citada norma
constitucional, bastando para fugir da limitação imposta pelo dispositivo, ao invés de criar uma taxa para custear
serviço público universal, fazê-lo por meio de imposto.
Assim, a Cosip não é nem contribuição parafiscal, nem imposto. Diante do fato de que os empréstimos compulsórios
(art. 148 da CF) e as contribuições de melhoria (art. 145, III, da CF) são espécies tributárias claramente incompatíveis
com a hipótese de incidência da contribuição de iluminação, inexiste outro caminho a não ser concluir o óbvio: a Cosip
não passa da velha taxa de iluminação pública, mascarada sob o rótulo de contribuição. A mesma taxa de iluminação
que o STF e o TJ/SP em tantas oportunidades declararam inconstitucional, ante a inarredável constatação de que, por
força do art. 145, II, da CF, a iluminação pública, como serviço público inespecífico e indivisível, não pode ser
remunerada por taxa (conferir no STF: AI 487.088/RJ, RE 233.332/6, RE 256.588-1/RJ, RO 35/RJ, RE 100.729/SC, AI
231.132 Ag/RS, RE 231.764-6 e RE 234.605/RJ. No TJ/SP, conferir: Adin 19.927-0, Adin 26.291-0, Adin 22.533-0 e
Adin 074.923-0/9).
Esse expediente – infelizmente comum no Brasil – de incluir no Texto Constitucional, via emenda, institutos
incompatíveis com o sistema normativo é de todo lamentável e produz como conseqüência principal a fragilização de
um entre os mais importante valores protegidos pelo direito: a segurança jurídica.
*artigo publicado no Jornal Carta Forense (julho/2005)
CPMF Publicado em 03/03/2012 13:56:43 por Alexandre Mazza
Dedalus e a CPMF*
A comunidade literária comemorou há pouco mais de um mês o chamado Bloomsday, o dia mundial dedicado à
memória e à obra do escritor irlandês James Joyce. A data escolhida para as homenagens foi, uma vez mais, o 16 de
junho, bastante significativo na literatura joyceana, já que a narrativa de Ulisses, obra maior do renomado autor, relata a
vida de seu personagem principal, Leopold Bloom, durante o dia 16 de junho de 1904. É, porém, no Retrato do Artista
Quando Jovem, outro consagrado livro do escritor – segundo alguns uma espécie de autobiografia – que se encontra o
marcante episódio contado a seguir. O protagonista do livro, Stephen Dedalus, ainda muito criança, foi enviado pelos
pais a um distante e rigoroso colégio jesuíta. Sempre consumido pelas saudades do lar e especialmente de sua mãe,
era um menino retraído e triste. Certa feita, Stephen, de compleição física bastante frágil, foi empurrado por um
malvado colega para dentro de uma vala enlameada, acidente humilhante que resultou na perda de seus óculos. Como
tinha deficiência visual avançada não podia fazer as lições até que chegassem novas lentes. Um dia, entrou na sala de
aula o Padre Dolan, figura cruel e grosseira, para inspecionar os alunos. Ao constatar que Dedalus não estava
escrevendo, indagou o motivo e, não tendo acreditado na história da perda dos óculos, golpeou violentamente a mão
da criança com uma palmatória. A forte pancada, nas palavras de Joyce, “ressoou como um pesado cair de madeira se
quebrando, fazendo sua mão trêmula revirar toda como uma folha ao fogo”. A sensação de injustiça despertada pelo
castigo brutal jamais se apagou da lembrança de Dedalus.
No Direito Brasileiro alguns tributos também desencadeiam nos contribuintes o sentimento de injustiça. É o caso da
Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira – CPMF.
Nos idos de 1996, a criação da CPMF foi anunciada pelo Governo FHC como panacéia capaz de solucionar
definitivamente os problemas de atendimento no SUS, já que os montantes arrecadados seriam destinados, com
exclusividade, à construção de hospitais e ao custeio de melhorias na qualidade do serviço público de saúde. Foi
pintado como tributo robin hood, arrecadado dos ricos (ricos?) para dar remédio aos pobres.
Aproveitando a credibilidade do então Ministro da Saúde, o respeitado Prof. Adib Jatene, que foi à TV defender com
entusiasmo a nova exação, o Congresso Nacional aprovou a Emenda Constitucional 12/96, autorizando a União a
cobrar a contribuição nos dois exercícios fiscais seguintes.
No mesmo ano, a Lei n. 9.311/96 (com redação posteriormente alterada pela Lei n. 9.539/97) deu contornos concretos
ao tributo, definindo como seu fato gerador, em síntese, o lançamento a débito, por instituição financeira, de valores em
contas bancárias do contribuinte, assim como qualquer outra movimentação ou transmissão de valores e de créditos e
direitos de natureza financeira (art. 2º da Lei 9.311/96).
Já no ano de 1999 foi promulgada a EC 21, portando três desagradáveis novidades: a) a dita “contribuição provisória”
poderia ser cobrada por mais trinta e seis meses; b) parte do montante arrecadado teria outra destinação que não o
custeio da saúde (o § 2º do art. 75 do ADCT assegurou repasses para a Previdência Social de verbas decorrentes da
contribuição); c) a alíquota seria elevada para os atuais trinta e oito centésimos por cento (0,38%).
Depois disso, por força da EC 37/02, a cobrança foi estendida até 31/12/04. Finalmente, a EC 42/03 ampliou a vigência
temporal da contribuição até 31/12/07 (art. 90 do ADCT).
As sucessivas prorrogações e o emprego do produto de sua arrecadação a finalidades estranhas à saúde são, sem
sombra de dúvida, aspectos que colaboraram para lançar a CPMF no rol dos tributos mais injustos e antipáticos
existentes no Brasil. Porém, há, além desses, outros vícios jurídicos maculando a contribuição.
Inegável constatar, de início, que o fato gerador da CPMF é o mesmo da Imposto sobre Operações Financeiras – IOF
(art. 153, V, da CF), realidade que contrasta com o teor do art. 195, § 4º, da CF, pelo qual novas contribuições não
podem ter fato gerador ou base de cálculo de impostos enunciados na Constituição.
Além disso, a legislação da CPMF não prevê mecanismos adequados para compensação dos montantes recolhidos
em cada operação com valores pagos nas anteriores, faltando-lhe, assim, característica essencial para atender à
exigência do art. 154, I, do Texto Maior, que veda a criação de impostos e contribuições cumulativos.
Infelizmente, instado a manifestar-se sobre a questão da identidade entre os fatos geradores do IOF e da CPMF, bem
como, acerca do tema da cumulatividade, o STF entendeu que tais restrições não vinculariam o constituinte derivado,
mas somente o legislador infraconstitucional, raciocínio escorado na circunstância de que a CPMF teve sua instituição
autorizada pela Emenda 12/96 (Adins 1.497, 1.501 e 2.031). Note-se, entretanto, que o STF não atentou para o fato de
que a vedação ao “bis in idem” (dois tributos sobre o mesmo fato gerador) e o princípio da não-cumulatividade são
verdadeiras garantias asseguradas ao contribuinte (art. 150, “caput”, da CF) e, nessa condição, incluem-se entre as
cláusulas pétreas previstas na Carta Política de 1988, cujo art. 60, § 4º, IV, prescreve textualmente que: “não será
objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: IV – os direitos e garantias individuais”.
As sucessivas decisões do STF terminaram, na prática, por convalidar os diversos aspectos controvertidos da criação
e cobrança da CPMF, tributo dito provisório, mas com o qual lamentavelmente vamos nos acostumando a conviver de
modo permanente. Colabora para isso o fato de que a CPMF é dotada, segundo expressão cunhada pela doutrina, de
“efeito anestésico”, sendo recolhida pelos bancos em doses diárias e praticamente imperceptíveis, disfarçando seu real
impacto sobre o patrimônio do contribuinte.
Em tempos de arrecadação tributária recorde, a redução ou – por que não? – o fim da famigerada CPMF traria grande
alívio para mãos permanentemente estendidas à palmatória. Com a palavra a criança do romance de Joyce.
*artigo publicado no jornal Carta Forense (agosto/2005)
IMUNIDADE TRIBUTáRIA DE IMPRENSA Publicado em 03/03/2012 13:57:25 por Alexandre Mazza
Ignorância é Força*
Na obra “1984”, George Orwell descreve o cotidiano de pessoas comuns submetidas aos horrores de um Estado
totalitário e onipresente. Dentro de cada casa havia uma “teletela” monitorando permanentemente os moradores, de
modo que “qualquer barulho que fizessem mais alto que um cochicho seria captado pelo aparelho”. Helicópteros negros
e silenciosos sobrevoavam a cidade, fiscalizando condutas suspeitas. Nos corredores dos prédios e em cada canto nas
ruas existiam fotos do “Grande Irmão” – o aterrorizante líder/ditador concebido por Orwell à imagem e semelhança de
Stálin – sempre ladeadas pelo lema “o Grande Irmão zela por ti”. O Ministério da Verdade promovia sessões públicas
durante as quais frases como “guerra é paz”, “liberdade é escravidão” e “ignorância é força” eram repetidas
exaustivamente pela multidão, operando uma espécie de lavagem cerebral coletiva, o que criava condições para o
regime perpetuar-se sem qualquer forma de resistência ou oposição.
Contudo, nenhum outro detalhe da narrativa impressiona tanto quanto a chamada “Novilíngua”, idioma que o Estado
tornara obrigatório e com pouquíssimas palavras, cuidadosamente construído para provocar o empobrecimento
deliberado da linguagem, reduzindo os horizontes intelectuais e a criatividade da população. Era, sem dúvida, o mais
eficiente mecanismo de dominação utilizado pelo Grande Irmão.
Essa conhecida passagem do livro de Eric Blair – George Orwell era seu pseudônimo – aponta para o papel relevante
que a difusão cultural e o livre acesso às informações cumprem como pressuposto para o adequado desenvolvimento
da democracia e, ao mesmo tempo, garantia das liberdades públicas.
O Texto Maior de 1988, em diversos dispositivos, revela a preocupação do constituinte em preservar tais valores, seja
declarando ser “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação” (arts. 5º, IX), seja
assegurando “a todos o acesso à informação” (art. 5º, XIV), ou, ainda, fixando como princípio norteador do ensino a
“liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” (art. 206, II).
É nesse contexto que deve ser compreendido o teor do art. 150, VI, “d”, da CF, pelo qual: “Sem prejuízo de outras
garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir
impostos sobre livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão”.
O referido dispositivo enuncia a conhecida imunidade tributária dos livros, jornais e periódicos, norma constitucional
que exclui tais itens do âmbito material de incidência das competências impositivas atribuídas às Entidades
Federativas, instituída com a finalidade clara de estimular a difusão cultural por meio do barateamento dos veículos
utilizados para tal mister. Sobre o tema, calham as palavras de Roque Antonio Carrazza, in verbis: “Estamos sempre
mais percebendo que o País não pode prescindir dos livros, dos jornais, dos periódicos e dos outros veículos de
comunicação, que lhe fazem as vezes e, em muitos casos, até os substituem com vantagens. É por intermédio de
todos eles que as pessoas têm acesso às informações, às artes, à cultura, ao lazer, às práticas religiosas, às ações
governamentais etc” (Curso de Direito Constitucional Tributário, 19ªedição, p. 691).
Para potencializar a eficácia social da imunidade é preciso estender-lhe o alcance também para os tributos incidentes
sobre as empresas responsáveis pelas publicações, afastando o dever de tais pessoas recolherem Imposto sobre
Serviços, Imposto sobre a Renda e Contribuições Sociais. Parece-nos que a norma do art. 150, VI, “d”, da CF, pode ser
interpretada extensivamente de modo a albergar a conclusão de que a regra imunizante tem a dimensão apontada
acima.
Entretanto, não tem sido essa a visão predominante nos tribunais pátrios, onde prevalece o entendimento de que a
imunidade em questão teria caráter meramente objetivo, recaindo somente sobre os livros, jornais, periódicos e o papel
destinado a sua impressão.
No STF, vários julgados reconhecem a destacada importância dessa norma imunizante, que seria forma de “proteção
da liberdade de expressão intelectual, da liberdade de informação e direito básico de manifestação do pensamento”
(Adin 939), mas o Pleno tem rechaçado a alegação de que a proteção constitucional abrangeria as receitas e lucros
das empresas jornalísticas e de publicidade (RE 206.774).
Quanto aos serviços prestados pela empresa jornalística na transmissão de anúncios e de propagandas, há alguns
julgados da Suprema Corte entendendo serem protegidos contra a incidência de impostos (v.g., RE 87.049 e RE
102.141).
Importa mencionar, nesse passo, a existência de debate acerca da aplicabilidade, ou não, da proteção constitucional
imunizante a livros e periódicos de conteúdo adulto. Para alguns estudiosos, inexistiria razão para sustentar-se o
cabimento da imunidade em favor de materiais eróticos ou pornográficos, ante a ausência, neles, do conteúdo
educativo justificador do favor fiscal previsto na Constituição. Ocorre que, bem pensada a questão, o Texto Maior não
alude ao tipo de informação veiculada pela publicação, podendo-se concluir que para a aplicação da imunidade
tributária sub examine constitui elemento irrelevante o conteúdo transmitido pelo livro, jornal ou periódico (cf. RE
101.441).
Registre-se, ainda, que o STF admite a aplicação da imunidade a apostilas (RE 183.403), listas telefônicas (RE
101.441), álbuns de figurinhas (RE 339.124 e RE 221.229), bem como ao papel fotográfico, ao papel para telefoto e
aos filmes fotográficos (Súmula 657 e RE 265.025). A Suprema Corte, todavia, rechaça a proteção constitucional sobre
tintas e soluções alcalinas (RE 203.859), agendas, cardápios e catálogos comerciais (RE 101.441).
Resta mencionar, por fim, a questão dos livros e periódicos no formato de CD-Rom. A respeito do tema, fazemos
nossas, uma vez mais, as palavras do mestre Roque Antonio Carrazza, para quem: “Entendemos , em harmonia com a
equação verbal da Lei Magna, que a regra imunizante contida no já citado art. 150, VI, “d”, da CF alcança também os
sucedâneos do livro (disquetes de computador, CR-Roms, vídeos etc.), que, embora não sejam fabricados com papel,
também são veículos de propagação de idéias” (Curso de Direito Constitucional Tributário, 19ª edição, p. 702).
Ao nosso sentir, a interpretação ampliativa do teor do art. 150, VI, “d”, da Constituição Federal, constitui importante
passo no sentido de evitar que a falta de informação torne real a ficção de “1984”.
*artigo publicado no jornal Carta Forense (novembro/2005)
MP 232 Publicado em 03/03/2012 13:58:11 por Alexandre Mazza
A Morte da MP 232*
Há algumas semanas a imprensa noticiou que a Câmara de Deputados, em votação simbólica, aprovou parte do texto
da famigerada Medida Provisória nº 232, de 30 de dezembro de 2004, cuja redação original previa a correção, em 10%,
da tabela do Imposto de Renda e, também, estabelecia a majoração de 32% para 40% das alíquotas da Contribuição
Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL) e do Imposto de Renda sobre as empresas prestadoras de serviços sujeitas ao
sistema de apuração pelo lucro presumido. De acordo com declarações do governo, o aumento de alíquotas da CSLL e
do IR consistiria em mecanismo de compensação para as “perdas” (de quem?) resultantes da atualização das faixas do
Imposto de Renda. Depois de muita celeuma, temendo a derrota no Congresso, o governo recuou e, às vésperas da
votação final, retirou do corpo da MP a majoração das alíquotas, submetendo à análise parlamentar apenas os artigos
relacionados com a correção da tabela do IR.
A apatetada história da MP 232 oferece-nos singular oportunidade para analisar alguns aspectos relacionados com o
tema da instituição de medidas provisórias em matéria tributária.
Diz-se que as medidas provisórias foram acrescentadas na Carta Política de 1988 ao influxo de tendências
parlamentaristas, diante da certeza de que, na revisão constitucional que seria realizada no ano de 1993, o sistema de
governo brasileiro seria modificado, tornando-se parlamentarista.
Desde a promulgação do Texto de 1988, ante a falta de tratamento expresso sobre o assunto, discutia-se a
possibilidade de medidas provisórias disciplinarem matéria tributária. A maioria da doutrina pátria recusava-se a aceitar
que o caráter efêmero das MPs fosse compatível com a instituição e majoração de tributos – seara sabidamente hostil
a modificações repentinas e transitórias. Infelizmente, porém, o Supremo Tribunal Federal, guardião maior da
Constituição, instado a manifestar-se, considerou, em diversas oportunidades, legítima a edição de MPs tributárias,
posicionamento cristalizado a partir do RE 146.733, publicado no DJ em 06/11/92.
No ano de 2001, em meio a uma crise envolvendo o governo FHC e o Congresso, foi promulgada a Emenda 32/01,
votada às pressas com o objetivo declarado de “moralizar” o uso indiscriminado de MPs. Por força da Emenda vários
temas foram subtraídos do âmbito material de incidência das medidas provisórias, tais como, nacionalidade, cidadania,
direitos políticos, além de assuntos pertencentes a ramos como o direito penal, direito processual e o direito
orçamentário (art. 62, § 1º).
Ao contrário do esperado pela comunidade jurídica, no entanto, não somente o direito tributário ficou fora do campo de
vedações, como passou a existir norma expressa na Constituição (o § 2º ao art. 62) regulando alguns efeitos de
medidas provisórias que versem sobre a instituição e majoração de impostos, in verbis: “medida provisória que implique
instituição ou majoração de impostos, exceto os previstos nos arts. 153, I, II, IV, V, e 154, II, só produzirá efeitos no
exercício financeiro seguinte se houver sido convertida em lei até o último dia daquele em que foi editada”.
O dispositivo mencionado é duplamente infeliz: de um lado, autoriza implicitamente a regulação de matéria tributária
por MPs; de outro, condiciona a produção de efeitos da MP à sua conversão em lei, respeitada a anterioridade, apenas
no que atine aos impostos, silenciando a respeito de situações equivalentes envolvendo as demais espécies tributárias.
Torna-se importante destacar que a aplicação do § 2º, do art. 62, da CF, a casos de medidas provisórias tributárias
multitemáticas, como a MP 232, é simplesmente desastrosa. Conforme dito, a referida MP tratou de três questões: a)
correção da tabela do Imposto de Renda; b) a majoração das alíquotas do IR dos prestadores de serviços; c) o
aumento da Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL) dos prestadores de serviços. Pois bem, dado que a
atualização da tabela do IR representa diminuição de tributo, a determinação não se sujeita à anterioridade e nem
precisa esperar a conversão em lei, passando a viger imediatamente. No que toca ao aumento do Imposto de Renda,
seria preciso esperar a conversão da MP 232 em lei, para que, no exercício seguinte, a majoração produzisse efeitos.
Por fim, a respeito do aumento da CSLL, por não constituir majoração de imposto, mas de contribuição social, a MP,
nesse tema, produziria efeitos antes da conversão em lei, respeitando, entretanto, a anterioridade especial de noventa
dias (art. 195, § 6º, da CF). Some-se a isso o fato de que MPs como a nº 232 podem simplesmente não ser convertidas
em lei – o que obrigaria a desfazer os efeitos provisórios de sua vigência.
É bom frisar que o Texto de 88 prevê vários instrumentos que permitem à União empreender providências tributárias
emergenciais: os empréstimos compulsórios em caso de calamidade pública ou guerra externa (art. 148, II); a
instituição de impostos extraordinários (art. 154, II); e a possibilidade de o Presidente da República alterar por decreto –
e com efeitos imediatos – as alíquotas de alguns impostos federais (art. 153, § 1).
Portanto, passou da hora de acrescentar-se à Constituição Federal dispositivo proibindo a edição de medidas
provisórias sobre direito tributário, pois, nesta área, além de produzirem incerteza e instabilidade social, o próprio
sistema constitucional oferece instrumentos mais adequados para lidar com circunstâncias excepcionais que exijam
soluções governamentais imediatas no campo da tributação.
* artigo publicado no jornal Carta Forense (maio/05)
PROTESTO DE CDA Publicado em 03/03/2012 13:58:58 por Alexandre Mazza
Estado: credor incompassivo*
Sobre o protesto de Certidões da Dívida Ativa
“Havia um rei que resolvera ajustar contas com os seus servos. Trouxeram-lhe um que lhe devia dez mil moedas. Não
tendo, porém, com que pagar, ordenou fosse vendido ele, a mulher, os filhos e tudo quanto possuía para pagar a
dívida. Então, o servo, reverente, rogou: Sê paciente comigo, e tudo te pagarei. E o rei, compadecendo-se, mandou-o
embora e perdoou-lhe a dívida. Saindo, porém, aquele servo, encontrou um de seus conservos que lhe devia cinco
moedas e, agarrando-o, o sufocava dizendo: Paga-me o que deves. O conservo, caindo-lhe aos pés, implorava fosse
paciente porque seria pago. Ele, entretanto, não quis, e lançou o conservo na prisão, até que saldasse a dívida”.
O relato acima descrito é conhecido, nas Escrituras, como “a parábola do credor incompassivo” (MT 18. 23-35) e foi a
primeira imagem que nos veio à mente quando, por esses dias, a imprensa noticiou que a Fazenda Paulista está
protestando, em cartório, certidões da dívida ativa (CDAs) referentes a débitos de ICMS.
A polêmica medida já vinha sendo utilizada há cerca de três anos por alguns municípios, como Araraquara e Londrina,
com o objetivo declarado de compelir contribuintes inadimplentes a pagar as dívidas fiscais sob pena de envio de seus
nomes para cadastros de proteção ao crédito. Em termos práticos, antes do início da execução fiscal o débito é
protestado, comunicando-se o contribuinte para que apresente defesa administrativa ou efetue o pagamento, no prazo
de três dias, após o que o nome é enviado ao SPC e ao Serasa.
O objetivo do presente artigo é enumerar alguns entre tantos argumentos técnicos que permitam ao amigo leitor formar
sua convicção a respeito do momentoso tema:
1 – O protesto de títulos é regulado pela Lei federal nº 9.492/97, cujo art. 1º declara que: “protesto é o ato formal e
solene pelo qual se prova e inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos
de dívida”. Consoante lição dos mais renomados doutrinadores pátrios, o protesto é um meio extrajudicial destinado a
incorporar ao título de crédito a prova de fato relevante para as relações cambiais (Fábio Ulhôa Coelho, “Curso de
Direito Comercial”, Saraiva, 4ª edição, vol. 1, p. 415). Ora, sendo instrumento próprio para produzir efeitos na seara do
direito cambiário, o protesto não pode ser aplicado no âmbito tributário porque a CDA, que é ato administrativo com
presunção de veracidade, já contém todos os elementos comprobatórios da inadimplência do contribuinte (art. 3º da Lei
6.830/80);
2 – A lei nº 9.492/97 foi promulgada como lei ordinária, não podendo ter sua aplicabilidade estendida para o campo
tributário, na medida em que a disciplina normativa de assuntos relacionados com obrigações e créditos de natureza
fiscal está constitucionalmente reservada ao legislador complementar (art. 146, III, “b”, da CF);
3 – Não existe, no ordenamento jurídico brasileiro, autorização legislativa permitindo que o fisco utilize o protesto como
instrumento para cobrança de dívidas. Como ao Estado só é dado fazer aquilo que a lei autoriza – ao contrário dos
particulares que podem fazer tudo o que a lei não proíbe –, inevitável concluir que o protesto de CDAs contraria o
princípio da legalidade (art. 37, “caput”, da CF);
4 – A lei nº 6.830/80 estabelece o procedimento por meio do qual o Estado realiza judicialmente a cobrança de débitos
de natureza tributária, nela não havendo nada semelhante à possibilidade de lançar o nome do contribuinte em listas
públicas de devedores inadimplentes. Por isso, se a lei prevê mecanismo específico com esse fim, não pode a
Fazenda, por sua conta, optar por caminho mais gravoso para o contribuinte, sob pena de violação dos princípios da
razoabilidade e proporcionalidade previstos no art. 2º da Lei do Processo Administrativo (9.784/99).
É bom esclarecer, caro leitor, que não estamos aqui fazendo apologia à inadimplência tributária. Bem ao contrário.
Parte significativa da culpa pela baixa qualidade na prestação de serviços públicos essenciais, como a saúde e
educação, pode ser atribuída à sonegação fiscal. Entretanto, deve-se ponderar que nem sempre os tributos deixam de
ser pagos por má-fé do contribuinte, e sim, devido à sufocante carga tributária brasileira.
Há, entretanto, um aspecto que parece estar sendo esquecido pela imprensa, e que, segundo cremos, submete a
questão do protesto de CDAs a reflexões de caráter ético e moral: o Estado é um péssimo devedor. Recorde-se que o
Estado de São Paulo ainda não terminou de pagar precatórios alimentares do ano de 1998. Assim como o servo
incompassivo referido no título deste artigo, existe algo estranho no fato de um devedor confesso ser implacável
quando ocupa a posição de credor.
Outras medidas simples e legítimas aumentariam a arrecadação, como, por exemplo, ajuste da carga tributária,
melhores condições de trabalho a servidores do setor fiscal, maior número de procuradores. Com isso, o Estado não
teria necessidade de recorrer a soluções ilegais e abusivas.
Do modo como foi feita, a novidade faz lembrar outra passagem bíblica: “Por que olhas a palha que está no olho do teu
irmão e não vês a trave que está no teu?” (Mt. 7.3).
*artigo publicado no jornal Carta Forense (abril/2006)
TAXA JUDICIáRIA Publicado em 03/03/2012 13:59:59 por Alexandre Mazza
Taxa Judiciária*
É da tradição do direito brasileiro atribuir aos litigantes o custeio de parte das atividades exercidas pelo Poder
Judiciário. Ao invés de cobrir tais despesas utilizando o montante arrecadado com impostos, o legislador optou por
onerar diretamente os beneficiários do serviço jurisdicional condicionando a propositura de ações ao recolhimento
antecipado das custas e dos encargos processuais.
No âmbito da Justiça Federal a Lei nº 9.289/96 disciplinou o tema fixando as custas de ações cíveis em 1% do valor
da causa, observado o mínimo de 10 e o máximo de 1800 Ufirs.
Já para demandas na Justiça comum os valores devidos foram determinados pela legislação estadual. No caso do
Estado de São Paulo, a Lei nº 11.608/03 instituiu a cobrança de taxa judiciária, cujo fato gerador consiste na “prestação
de serviços públicos forenses, devida pelas partes ao Estado, nas ações de conhecimento, na execução, nas ações
cautelares, nos procedimentos de jurisdição voluntária e nos recursos” (art. 1º).
De acordo com o art. 2º da lei paulista, a taxa judiciária abrange todos os atos processuais, inclusive os relativos aos
serviços de distribuidor, de contador, de partidor, encargos com hastas públicas, secretarias dos tribunais, além das
despesas com registros, intimações e publicações na Imprensa Oficial.
Dessa forma, ao contrário da esfera federal, o modelo adotado pela legislação de São Paulo e repetido em quase
todos os Estados da Federação considera que as funções desempenhadas pelo Poder Judiciário constituem serviço
público e conseqüentemente os valores exigidos do jurisdicionado seriam tributo na modalidade taxa.
Porém, em que pese a cristalina dicção legal, e inobstante a aceitação tácita de tal natureza por parte dos
doutrinadores, a taxa judiciária não é exação revestida de verdadeiro caráter tributário.
Ora, taxas são tributos remuneratórios, sinalágmáticos, contraprestacionais, cobrados para custear o exercício do
poder de polícia ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao
contribuinte ou postos a sua disposição (art. 145, II, da CF).
Em princípio, o art. 145, II, da CF parece legitimar a cobrança da taxa judiciária, na medida em que a exigência em
questão teria o escopo de custear a atividade prestada pelo Poder Judiciário aos litigantes, que constituiria verdadeira
espécie de serviço público.
De tão freqüente na doutrina e na jurisprudência, a qualificação da atividade jurisdicional como serviço público deixou
de ser questionada pelos estudiosos.
Entretanto, enfocando a questão da perspectiva técnico-jurídica pode-se afirmar, sem margem de dúvida, que o Poder
Judiciário não presta serviço público.
Conforme preleciona Celso Antônio Bandeira de Mello, “serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade
ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos
administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as
vezes, sob um regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições
especiais –, instituído em favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo” (“Curso de Direito
Administrativo”, 20ª edição, p.634).
Como se nota, serviço público, em termos técnicos, é uma atividade ampliativa da esfera de interesses do particular
caracterizada pela disponibilização de utilidades ou comodidades de fruição individual. Mas não é isso o que ocorre
com boa parte das manifestações do Poder Judiciário no exercício de suas funções constitucionais. A atuação
jurisdicional nem sempre agrega vantagens específicas ao campo de interesses privados, pois, ainda que vencedor da
demanda, o jurisdicionado experimentará em regra uma mera recomposição da situação jurídica violada pela parte
derrotada.
Portanto, se fosse taxa, o valor cobrado dos jurisdicionados paulistas estaria remunerando uma atividade estatal que
não é nem serviço público, nem poder de polícia, circunstância que induziria à inconstitucionalidade da exação, por
afronta ao art. 145, II, da CF.
E ainda: sendo tributo, qual sua base de cálculo? O percentual de 4% é calculado sobre o valor da causa (art. 4º da
Lei nº 11.608/03), fórmula que não permite mensurar o custo exato da atividade jurisdicional.
Parece claro que tratar a taxa judiciária como tributo implicaria no reconhecimento de sua inconstitucionalidade.
Na tentativa de interpretar o alcance do dispositivo que confere competência para a União, os Estados e o Distrito
Federal legislar sobre custas dos serviços forenses (art. 24, IV, da CF), alguns autores rejeitam natureza tributária ao
instituto e consideram a cobrança das custas processuais uma exigência qualificada como preço público ou tarifa. Tal
posição, porém, é incongruente, pois inexiste contratualidade no vínculo entre o Estado e os litigantes.
Para nós, o dever de recolhimento das custas processuais não tem natureza tributária ou de preço público. Antes,
trata-se de exação constitucional “sui generis”, cujas características não se assemelham a nenhuma das figuras
tradicionais reconhecidas pelo direito brasileiro.
* artigo publicado no jornal Carta Forense (maio/2007)
TAXA VS TARIFA Publicado em 03/03/2012 14:00:30 por Alexandre Mazza
Maçanização do Maracujá*
Sergio Buarque de Holanda, em sua obra Visão do Paraíso, conta que os primeiros europeus a aportarem no Brasil,
diante das maravilhas naturais por aqui encontradas, convenceram-se rapidamente de que haviam desembarcado no
paraíso bíblico descrito no livro de Gênesis. Entorpecidos pela beleza das aves e da flora nativa, os primeiros
navegadores passaram a buscar evidências definitivas na terra nova que confirmassem os relatos sagrados sobre o
Jardim do Éden. Serpentes, belas árvores, animais exóticos, tudo parecia compatível com a narrativa das Escrituras, a
não ser por um único detalhe: por mais que revirassem as matas brasileiras não encontravam por aqui a fruta-símbolo
do pecado original. Como poderia um paraíso sem maçãs? Foi então que, conforme relata nosso grande historiador,
alguém olhou para um pé de maracujá e, para que um simples detalhe não fizesse desmoronar toda a teoria da origem
edênica do descobrimento, passou-se a dizer que a verdadeira fruta do pecado seria o maracujá, e não mais a maçã.
Essa curiosíssima passagem da obra de Sergio Buarque alerta para os riscos da aplicação forçada de certos modelos
teóricos sobre realidades para as quais tais modelos não foram concebidos.
Estamos certos de que outra não é a natureza fundamental das dificuldades que atormentam estudiosos e operadores
do Direito Tributário acerca do cotejo entre os institutos da taxa e da tarifa.
Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o tema das diferenças entre taxas e preços públicos (o mesmo que
tarifas) foi enfrentado no RE 89.876 (DJ 10/10/80), em que se examinou a constitucionalidade da exigência de preço
público, pelo Município do Rio de Janeiro, para remunerar o serviço de coleta de lixo domiciliar. Na oportunidade,
entendimento que posteriormente foi sumulado no Enunciado nº 545, cristalizou-se a opinião segundo a qual “preços de
serviços públicos e taxas não se confundem, porque estas, diferentemente daqueles, são compulsórias e têm sua
cobrança condicionada à previa autorização orçamentária, em relação à lei que as instituiu”.
Assim, segundo a Súmula 545, se o serviço público fosse de utilização compulsória, não permitindo ao usuário
valer-se de outro meio para obter a prestação, a exação teria natureza de taxa. Ao contrário, se o serviço fosse de
fruição facultativa, a contraprestação paga pelo particular seria tarifa. O critério da compulsoriedade do serviço,
portanto, era considerado decisivo para definir a natureza jurídica da remuneração paga pelo usuário.
A fragilidade de tal elemento distintivo, no entanto, rapidamente foi notada. Tanto que, ainda no início da década de
80, houve quem emprestasse outro sentido ao teor da Súmula 545, dizendo que o fundamental na diferenciação entre
os dois institutos era que a tarifa seria uma exação cobrada exclusivamente pela prestação efetiva de um serviço, ao
passo que, na taxa, a exigência também alcançaria a mera disponibilidade do serviço.
No julgamento do RE 117.315 (DJ 22/06/90), o STF voltou a insistir no fato de que dependendo do caráter
compulsório ou facultativo do serviço a remuneração será taxa ou tarifa, posição predominante até hoje na
jurisprudência do Tribunal.
Registre-se, nesse passo, a inusitada opinião de alguns tributaristas que simplesmente rejeitam as diferenças entre
taxa e tarifa, ao argumento de que o legislador não teria a opção de subtrair do regime tributário qualquer forma de
obrigação exigida do particular que se beneficia de um serviço público. A noção de tarifa, segundo dizem, seria
manobra teórica para privar o contribuinte de garantias tributárias como as representadas pelos princípios da legalidade
e da anterioridade.
O deslinde da questão passa, a nosso sentir, pela constatação inicial de que parte significativa das controvérsias
decorre do caráter multidisciplinar do tema. A tarifa é instituto do Direito Administrativo; a taxa, do Direito Tributário. Por
isso, as formas, conceitos e modelos da Ciência Tributária não dão conta – e nem poderiam fazê-lo – de explicar o
sentido e o alcance do instituto da tarifa, cujas raízes estão assentadas além das fronteiras do Direito Tributário.
Não é por outra razão que o Texto de 88, afastando qualquer possibilidade de sustentar-se identidade conceitual entre
os dois institutos, disciplinou as taxas no art. 145, II, dentro do Título VI (Da Tributação e Do Orçamento), enquanto que
as tarifas são referidas somente no art. 175, parágrafo único, III, já no Título VII (Da Ordem Econômica e Financeira).
Nos termos do Direito Administrativo brasileiro, o legislador, desde que atendidos os parâmetros fixados na
Constituição Federal, tem liberdade para escolher a forma de prestação dos serviços públicos, isto é, a lei poderá optar
entre a prestação direta pelo próprio Estado e a prestação indireta por meio de particulares, via concessão ou
permissão de serviços públicos. Assim, a natureza da remuneração paga pelo usuário – taxa ou tarifa – é simples
conseqüência da escolha legislativa quanto à forma de prestação do serviço: havendo prestação direta pelo Estado, a
remuneração terá natureza jurídica de taxa; na hipótese de prestação indireta, por meio de concessionários ou
permissionários, a contraprestação será tarifa.
Como as taxas são espécies de tributos, sua criação ou majoração depende de lei formal e sujeita-se ao princípio da
anterioridade (arts. 150, I, e 150, III, “b” e “c”, da Constituição Federal, respectivamente). As tarifas, ao contrário,
constituem forma de remuneração do concessionário ou do permissionário, não tendo natureza tributária, razão pela
qual podem ser criadas e modificadas por ato administrativo do Poder Concedente e não estão submetidas ao princípio
da anterioridade.
Portanto, esses são os únicos termos em que a discussão sobre as diferenças entre taxas e tarifas pode ser colocada.
Todo o resto seria “maçanizar” o maracujá.
*artigo publicado no jornal Carta Forense (maio/2005)
TAXAS DE POLíCIA Publicado em 03/03/2012 14:01:02 por Alexandre Mazza
Taxas de Polícia*
Entre os autores que ocupam o Olimpo do Direito Público brasileiro – Pontes de Miranda, Rui Barbosa, Vitor Nunes
Leal, Seabra Fagundes, Frederico Marques, Hely Lopes Meirelles, Geraldo Ataliba e Oswaldo Aranha Bandeira de
Mello –, José Horácio Meirelles Teixeira merece lugar de destaque.
Exercendo suas funções de procurador municipal paulistano, Meirelles Teixeira elaborou inúmeros pareceres de
inestimável valor para os estudiosos da Ciência Jurídica, compilados, na década de 40, em dois volumes publicados
pelo Departamento Jurídico da Prefeitura do Município de São Paulo sob o título “Estudos de Direito Administrativo”,
cuja leitura recente nos motivou a indicar, neste artigo, as principais características das chamadas taxas de polícia,
diferenciando-as especialmente das taxas de serviço, tema cercado de dificuldades e que, via de regra, tem causado
confusões, tanto de ordem teórica, quanto de natureza prática.
As taxas são tributos contraprestacionais, retributivos ou sinalagmáticos, na medida em que remuneram atividades
desenvolvidas pela Administração Pública em relação ao contribuinte. Nesse sentido, diferenciam-se muito dos
impostos. Estes são “tributos sem causa”, isto é, desvinculados de uma atuação estatal específica descrita em lei,
surgindo a obrigação de pagá-los com a simples ocorrência de um fato que não envolve participação do Estado. Assim,
falta aos impostos o caráter de contrapartida próprio das taxas.
A criação e a cobrança de taxas relacionam-se com o ideal de justiça distributiva, ou de igualdade, pois permitem que
o Estado seja ressarcido por algo feito em relação ao contribuinte individualmente considerado, evitando que toda a
sociedade arque com o custeio de atividades exercidas em benefício exclusivo de algumas pessoas.
O art. 145, II, da Constituição Federal, regula a criação de taxas nos seguintes termos: “A União, os Estados, o Distrito
Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos: II – taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou
pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a
sua disposição”.
Da leitura do dispositivo extrai-se a conclusão de existirem no Brasil duas espécies de taxas: a) as que remuneram
serviços públicos; b) as pagas como contrapartida pela prática de atos de polícia administrativa.
A já aludida confusão entre as duas modalidades de taxas – freqüente até em textos de tributaristas – assenta-se no
fato de que “serviço público” e “poder de polícia” são institutos de Direito Administrativo, e não de Direito Tributário, de
modo que o estudioso é obrigado a atravessar a fronteira que separa os dois ramos e buscar na outra seara os
elementos necessários para realizar a diferenciação. Ocorre que essa verdadeira importação de conceitos nem sempre
é feita adequadamente, o que, em certos casos, tem produzido legítimas teratologias jurídicas, como, por exemplo,
dizer-se que uma taxa criada para remunerar a atividade de segurança pública seria taxa de serviço público, quando,
para o Direito Administrativo, a segurança pública evidentemente é caso de atividade de polícia, e não de serviço
público (tal equívoco pode ser encontrado em vários livros de doutrina e, há pouco tempo, apareceu até no gabarito de
um concurso público aqui em São Paulo!).
Pois bem. Comecemos pelas diferenças existentes entre as atividades administrativas que ensejam a cobrança das
duas modalidades de taxas.
O serviço público e o poder de polícia são atuações do Poder Público diametralmente opostas.
O serviço público constitui atividade estatal ampliativa da esfera de interesses privados, consistindo no oferecimento
de utilidades e comodidades fruíveis individualmente pelos usuários. Quando o Estado presta um serviço público,
oferece vantagens às pessoas, apresentando sua “feição simpática”. É o que ocorre, por exemplo, no transporte
público, no fornecimento de gás canalizado, no abastecimento de água, na energia residencial etc.
Já o poder de polícia, ao contrário, é manifestação da supremacia do interesse público sobre o privado, na medida em
que se expressa pela instituição de limitações e condicionamentos à liberdade e à propriedade particulares
(esclareça-se, antes de tudo, que na fala “poder de polícia”, o termo polícia designa, como visto, um tipo de atividade
estatal, não podendo ser confundido com o nome dos organismos públicos encarregados da segurança coletiva, tais
como polícia civil, polícia militar, polícia federal etc.). O ato de polícia, diferentemente do que ocorre com o serviço
público, restringe a esfera de interesses privados, em favor da coletividade, fazendo surgir a “face antipática” do
Estado. Nesse sentido, o art. 78 do CTN afirma: “considera-se poder de polícia a atividade da administração pública
que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão
de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do
mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à
tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos”.
Como conseqüência, constata-se que a taxa de polícia poderá ser cobrada, de um lado, a título de remuneração de
atividades estatais fiscalizatórias ou disciplinadoras de condutas privadas, como, por exemplo, a vigilância sanitária e
as guardas ambientais. De outro lado, há casos em que a legislação sujeita o exercício de certas atividades de
particulares à prática de ato estatal liberatório da atuação privada, o que, na excelente síntese de Geraldo Ataliba, pode
consistir em exames, vistorias, perícias, verificações, avaliações, cálculos, estimativas e atos preparatórios para a
outorga de autorizações, licenças, homologações, permissões etc.
Importante salientar que as taxas de polícia – como de resto todas as taxas – são tributos contraprestacionais, de
modo que só podem ser exigidas na hipótese de a atividade estatal ensejadora da cobrança preencher os requisitos de
especificidade e divisibilidade, isto é, a exação apenas será legítima, frente à Constituição Federal, se for possível
calcular com precisão o custo que o ato de polícia teve em relação ao contribuinte individualmente considerado. Assim,
se a atuação do Estado for difusa sobre toda a sociedade, como a segurança pública preventiva, a arrecadação de taxa
remuneratória da atividade seria inconstitucional.
Por maioria de razão, será inconstitucional, também, a taxa cobrada sem o efetivo exercício de atos de polícia,
hipótese em que o caráter retributivo, próprio das taxas, deixaria de ser atendido.
Outra consideração relevante é que, ao contrário das taxas de serviço, não se admite, sob pena de violar-se o
elemento contraprestacional, a exigência de tributo pelo exercício meramente potencial da atividade de polícia.
Por fim, nunca é demais relembrar que as taxas se sujeitam a todos os princípios gerais de Direito Tributário, tais
como legalidade, igualdade, irretroatividade, anterioridade, vedação do confisco e uniformidade geográfica, previstos,
respectivamente, nos arts. 150, I, II, III, a, b e c, IV e 151, I, todos da Constituição Federal.
* artigo publicado no jornal Carta Forense (abril/2005)

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