O MERGULHO NAS ÁGUAS CORRENTES A expectativa por uma
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O MERGULHO NAS ÁGUAS CORRENTES A expectativa por uma
O MERGULHO NAS ÁGUAS CORRENTES A expectativa por uma catástrofe da natureza no fim dos tempos povoava o imaginário da época do segundo Templo. Três possibilidades de destruição estavam previstas para os últimos dias. Dentro dessa perspectiva o mundo se encontraria sob as forças das águas em um dilúvio ou estaria à mercê de um cataclisma provocado por um vento tempestuoso ou ainda pereceria sob um fogo devorador vindo do céu. Essas três possibilidades fundamentavam-se em narrativas mitológicas herdadas da Mesopotâmia e Egito, presentes nas releituras canônicas e apócrifas realizadas pelos escribas nos relatos do dilúvio (Gn 7,17-24), da Torre de Babel (Oráculos Sibilinos III,97-107) e de Sodoma e Gomorra (Gn 19,24-25)1. Os três elementos presentes nas catástrofes da natureza – água, vento e fogo – eram também símbolos do Espírito de Deus. Acreditava-se que, por meio de seu Espírito, YHWH haveria de purificar todas as gentes. Esses elementos deveriam estar em ação nos tempos finais como modalidades da visitação de Deus ao seu povo. Assim, se entendia a parusia (fim dos tempos) da mesma forma que as antigas tradições compreenderam o dilúvio. Então, no fim dos tempos surgiria um novo Noé. O nome desse personagem deriva de uma antiga palavra kematiana “Nu” que significa “águas primordiais” – ou elemento masculino primordial (o sêmen) – às quais os aluviões assemelhavam-se ao fertilizarem o solo às margens do Nilo. Os egípcios acreditavam que antes do mundo ser constituído, havia uma “massa” informe composta de água e trevas formando o caos no qual viviam quatro deuses rãs machos e quatro deusas serpentes. Essas divindades formavam os pares: Nun (Nu) e Naunet (água), Amun e Amaunet (invisibilidade), Heh e Hauhet (infinidade) e Kek e Kauket (trevas). Nun (Nu) era o nome da água primordial que deu origem a tudo. Nuakh era o responsável pelo transbordamento do Nilo e pelo cultivo dos campos, pois seu nome deriva de Nu/Nun, as águas primordiais do caos. Os antigos mitos foram, então, relidos em perspectivas futuras, sendo, entretanto, conservados certos elementos, principalmente a concepção de que a humanidade inteira seria destruída com exceção de um escolhido salvo por seguir as instruções exatas dadas por uma divindade. Algumas diferenças, porém, entre os mitos e as releituras feitas por Israel, devem ser destacadas. Em primeiro lugar, conforme os relatos do Gn, tanto a decisão de destruir os seres vivos quanto o desejo de salvar a humanidade são atribuídos ao mesmo Deus (Gn 6,13-18). A razão para a destruição também é distinta. No relato bíblico, o motivo encontra-se no âmbito da moral: os pecados da humanidade provocam a destruição de tudo, e a retidão de Noé o salva (Gn 6,9.11-12). Em segundo lugar, a ênfase nesse aspecto moral das narrativas do Gn é retomada pela literatura pós-bíblica. Esta destaca que Deus teria contido a própria ira para permitir o arrependimento das pessoas e que Noé teria exortado seus contemporâneos durante 1 Por água: dilúvio; por vento: Torre de Babel; por fogo: Sodoma e Gomorra. Uma advertência: para Martin McNamara, somente os livros III-V dos Oráculos Sibilinos são judaicos, os demais são cristãos. O livro III é muito antigo, foi finalizado por volta da segunda metade século II AEC, embora haja alguns acréscimos mais recentes. Cf. Martin MCNAMARA, Intertestamental Literature, Wilmington: Michael Glazier, 1983, p. 228-229. muito tempo sem que estes dessem crédito às suas palavras (cf. Talmud da Babilônia, tratado Sanhedrin 108a-b). Todas essas concepções foram envolvidas por uma roupagem escatológica. Um novo Noé, no fim dos tempos, tornaria possível o arrependimento (Teshuvah) e efetivaria um retorno do povo para Deus. E assim, ao contrário do que aconteceu aos contemporâneos do dilúvio e do primeiro Noé, no fim dos tempos uma multidão teria acesso à salvação, desde que as instruções dadas por Deus ao “escolhido” fossem rigorosamente seguidas. Também era usado o termo taev (aquele que retorna e faz retornar). Este estava em íntima conexão com o vocábulo nocham, que significa “está arrependido”, formando um jogo de palavras com Noé (Noach). Segundo a hermenêutica samaritana, Deus ordenou a Noé fazer uma conversão, um arrependimento (aramaico tubah) e não, como afirma na Escritura, a construção de uma arca (tevah)2. E, da mesma forma que a tevah de Noach o salvou do dilúvio da perdição, a tubah salvará o taev e o povo do dilúvio da perversão. Essas tradições sobre Noé foram unidas às de Elias em Ml 3,24 (texto hebraico) ou 4,6 (texto grego). Na época de João, apresentado pelo Novo Testamento como novo Elias, mergulhar nas águas correntes significava voltar às águas amnióticas. Era um recomeço da vida para o judeu. Mas não era um rito de iniciação à religião judaica. A única forma de ser imputado (antônimo de amputado) no corpo do povo israelita era através da circuncisão. O mergulho nas águas era para aquele que tendo sido amputado do povo pudesse retornar. Era para um ex-leproso, pois este tinha sido expulso e, para outras categorias de pecados ou impurezas que impedissem a plena participação no corpo social de Israel. Para os gentios, que quisessem se tornar membros do corpo de Israel só haveria uma possibilidade, a circuncisão, da mesma forma que um recém-nascido de família judaica. Mas o gentio poderia mergulhar nas águas correntes para ser curado da lepra ou de paralisia, etc. Esse rito para o gentio não tinha o mesmo significado que o rito para o judeu, porque não havia uma idéia de retorno a Deus e ao povo, pois não pode retornar a fazer parte alguém que o pertenceu. A igreja nascente dos Atos dos Apóstolos entendeu que a circuncisão deveria ser observada apenas pelos judeus e não pelos gentios. Esta e outras ordenanças eram constitutivas de Israel enquanto povo. Não deviam ser cobradas de outros povos com culturas diferentes. Os gentios estariam isentados dessas leis específicas para Israel (At 15,20; 21,25). O Concilio de Jerusalém relendo Am 9,11-12 (At 15,15-19) entendeu que não devia existir uma ruptura entre judeus e gentios. Contudo, o Novo Testamento registra que a inclusão dos gentios era uma ofensa para alguns judeus do primeiro século EC (cf. Mc 7,26–27; At 21,27–28). Uma inscrição, em grego, no Templo construído por Herodes, advertia aos gentios que evitassem entrar perímetro do Templo, sob pena de morte: MHQENA ALLOGNH EISPOREUESQAI ENTOS TOU PERI TO IERON TRUFAKTOU KAI PERIBOLOU OS D’AN LHFQH EAUTWI AITIOS ESTAI DIA TO EXAKOLOUQEIN QANATON. Tradução: “Nenhum estrangeiro entrará no pátio guardado do Santuário. Aquele que, porém, for aí encontrado, será responsável por provocar a própria morte”3. Essa inscrição pode ser o muro da inimizade que separava judeus e gentios ao qual Ef 2,14 se refere. 2 Além do termo nocham, em hebraico, há outro vocábulo para significar a idéia de arrependimento que é shuvah do qual deriva teshuvah, retorno ou arrependimento. 3 Cf. Elias J. Bickerman, “Warning Inscription of Herod's Temple” JQR 37 (1947) 387-405. Como resolver esse impasse? Foi aí que se aplicaram os ensinamentos de Hillel. No judaísmo houve a distinção entre o ger ha-tsedeq ou ger ha-berit (prosélito da justiça ou da aliança) que cumpria todos os mandamentos da Torah e o ger ha-sha'ar (prosélito da porta) que cumpria apenas as Leis Noéticas e eram considerados apenas semiprosélitos (Talmud da Babilônia, tratado Avodah Zarah 64b, cf. Dt 5, 14; 14,21). Esta distinção influenciou as primeiras comunidades cristãs, que aceitaram como membros plenos aqueles que no judaísmo eram considerados apenas semiprosélitos. A Comunidade Cristã fez então uma mudança no mergulho nas águas correntes. Este passou a ser o rito de iniciação, substituindo a circuncisão, para judeus e gentios. O mergulho não era mais um retorno, mas sim o ingresso.