os círculos de leitura: espaço de constituição de leitores

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os círculos de leitura: espaço de constituição de leitores
OS CÍRCULOS DE LEITURA: ESPAÇO DE CONSTITUIÇÃO DE
LEITORES
Maria Helena da Rocha Besnosik (UEFS)
[email protected]
Este estudo apresenta a experiência dos Círculos de Leitura como uma prática tradicional de
leitura que tem contribuído na constituição de leitores. Esta prática está embasada na
concepção de que ler implica nos atos de reapropriar e reinterpretar os textos. Nos Círculos de
Leitura retoma-se a experiência da leitura em voz alta, muito difundida em épocas passadas,
antes da consolidação da leitura silenciosa e da expansão da alfabetização. Nessa prática
ressignificada um leitor guia faz a leitura em voz alta de um determinado texto para o grupo.
Logo depois da leitura as opiniões, as interpretações são compartilhadas. O Núcleo de Leitura
Multimeios da UEFS desde que foi implantado tem se utilizado dessa prática em seus vários
projetos de extensão e pesquisa com propostas que se direcionam para a constituição de
leitores, seja no âmbito da Universidade ou fora dela, nas escolas, nas associações de
moradores, nas bibliotecas, enfim em vários outros espaços. Os resultados dessa experiência
tem apresentado mudanças no comportamento das pessoas que dela participa no que se refere
ao envolvimento e a incorporação do hábito da leitura no cotidiano.
Palavras-chave: Leitura; Literatura; Círculo de Leitura.
O presente trabalho busca apresentar a prática dos Círculos de Leitura como uma
metodologia que contribui na constituição de leitores. A experiência dos Círculos de Leitura
foi instituída como uma das ações do Núcleo de Leitura Multimeios da Universidade Estadual
de Feira de Santana, a partir da nossa inserção no PROLER (Programa de Incentivo à
Leitura), no ano de 1992, da Fundação Biblioteca Nacional, cujo objetivo era assessorar e
articular nas várias regiões do país ações que visavam à formação de recursos humanos para o
desenvolvimento de atividades de leitura em diversos espaços.
O primeiro contato com o pessoal do PROLER aconteceu em Salvador, um encontro
de sensibilização. Depois, nos reunimos, na UEFS com professores e bibliotecárias da
Universidade, das redes estadual e municipal de ensino, e instalamos o comitê de leitura que
deveria dar andamento à organização dos módulos realizados anualmente.
Os encontros, organizados em dois tempos, foram consolidando um espaço de reflexão
sobre a leitura e a formação do leitor. O período da manhã era destinado às mesas redondas
que propiciavam discussões sobre determinados temas; à tarde, numa tentativa de associar
elementos da prática com a teoria, aconteciam as oficinas de leitura que contemplavam várias
linguagens.
No último dia de uma semana de trabalho, havia um momento para os chamados
círculos de leitura. Na medida em que essa prática ia sendo sedimentada, percebíamos que os
participantes saíam mais estimulados para ler. Sem sombra de dúvida, o PROLER trouxe uma
chama renovadora para o tratamento das questões da leitura dentro e fora da escola na cidade
de Feira de Santana.
A prática dos Círculos de Leitura está embasada na concepção de que ler implica os
atos de reapropriar e reinterpretar os textos. Nas palavras de YUNES (1996, p. 48), “O que se
quer alcançar com o círculo de leitura é a descoberta da condição de leitor e uma qualificação
maior para a leitura, por conta mesmo da troca, do intercâmbio, da interação de vivências e
histórias da leitura.”
Para analisar a experiência dos círculos tomamos como referência a História da
Leitura a partir dos estudos de CHARTIER (1996), HÉBRARD(1996), ABREU(1999),
MANGUEL (1997) entre outros estudiosos, que tem nos fornecido subsídios para
compreendermos que sentar em torno de um narrador, seja para escutar uma história lida ou
contada. Esta ação faz parte de uma prática social e cultural que tem se constituído ao longo
dos séculos como um dos espaços que tem contribuído na formação de leitores. Nos círculos
de leitura retoma-se a experiência da leitura em voz alta, muito difundida em épocas passadas,
antes da consolidação da leitura silenciosa e da consolidação da expansão da alfabetização.
Em estudos que investigam práticas de leitura na Antiguidade, a leitura oralizada tinha dois
propósitos, como afirma CHARTIER (1999, p. 22):
De um lado, uma função pedagógica: demonstrar que se é leitor, lendo em
voz alta, constitui um ritual de passagem obrigatório para jovens que
exibem, assim, seu domínio da retórica e do falar em público. Por outro, um
propósito literário: ler em voz alta é, para um autor, colocar um trabalho em
circulação, publicá-lo.
A leitura em voz alta teve, portanto, em tempos passados, uma estreita relação com
uma sociedade culta, de jovens privilegiados e escolarizados e de escritores preocupados com
a divulgação das suas obras. No entanto, essa prática, como afirma MANGUEL (1997, p.
138), principalmente na Idade Média fazia parte das leituras de uma população que não sabia
ler e que não tinha acesso aos livros, carecendo da ajuda dos poucos que sabiam ler:
Reunir para ouvir alguém ler tornou-se também uma prática necessária e
comum no mundo laico da Idade Média. Até a invenção da imprensa, a
alfabetização era rara e os livros, propriedade dos ricos, privilégio de um
pequeno punhado de leitores. Embora alguns desses senhores afortunados
ocasionalmente emprestassem seus livros, eles o faziam para um número
limitado de pessoas da própria classe ou família. As pessoas que queriam
familiarizar-se com determinado livro ou autor tinham amiúde mais chance
de ouvir o texto recitado ou lido em voz alta do que de segurar o precioso
volume nas mãos.
A História da Leitura tem nos apresentado uma gama de leitores que mais ouviam do
que liam o texto escrito. O não acesso a alfabetização não se constituía em impedimento para
que as pessoas pudessem ter contato com as obras da literatura. Diz CHARTIER (1999, p.
124):
A prática da leitura oralizada, descrita ou visada pelos textos, cria, pelo
menos na cidade, um vasto público de “leitores” populares que inclui tanto
os mal alfabetizados como os analfabetos e que, pela mediação da voz
leitora, adquire familiaridade com as obras e com os gêneros da literatura
culta, compartilhado muito além dos meios letrados.
Mesmo com a invenção da imprensa no século XVI, era comum em muitos países,
tanto no campo quanto na cidade, as pessoas se reunirem para escutar a leitura de um livro,
fosse no ambiente familiar ou no trabalho. Era época de uma leitura intensiva, em que o
mesmo texto era lido diversas vezes, como compensação para a escassez de material
impresso. Pesquisas francesas no campo da leitura revelam a existência de uma importante
instituição denominada “veillé” em que os camponeses se reuniam para namorar, cantar,
conversar, fazer trabalhos manuais, contar histórias e, por ventura existisse entre eles alguém
alfabetizado, livros eram lidos em voz alta para o grupo.
Aparece, então, a figura do ledor, indivíduo que ia um pouco além da usual decifração
das letras e tinha o privilégio de possuir livros. Saber ler e ter livros conferia-lhe status social.
O ledor, portanto, era uma figura importante, como atestam vários relatos sobre leitura do
século XVII e XVIII. Diz FABRE (1996, p. 205): “O lugar do ledor é sempre o mais
iluminado, contra o fogo, à noite, ou no vão da janela, quando há sol, senta-se na cadeira que
lhe é reservada.”
A leitura em voz alta sobreviveu durante muito tempo no interior da França do século
XIX. Embora na cidade fosse comum ler silenciosamente e individualmente, no campo ainda
persistiam a leitura coletiva e em voz alta. Segundo LYONS (1999, p. 197), os camponeses
“pertenciam às gerações de ouvintes que ainda não haviam se transformado em gerações de
leitores, ou seja, pessoas para as quais a leitura era muitas vezes coletiva, integrada em uma
cultura oral.”
Também no inicio do século XIX, a leitura em voz alta acontecia como “cultura” no
local de trabalho. Autores mencionam a leitura coletiva entre os carpinteiros franceses, no
inicio dos anos 1820, quando declamavam Racine e Voltaire. Essa prática não aconteceu
somente na Europa, relatos mostram que, numa fábrica de charutos em Cuba em 1866,
acontecia uma leitura pública de livros e do jornal dos trabalhadores, durante o turno de
trabalho. Um dos trabalhadores era escolhido como leitor oficial e os outros o pagavam por
esta tarefa, como nos relata MANGUEL (1997, p. 135 - 136):
O material dessas leituras, decidido pelos operários (que, como nos tempos
de EL Fígaro, pagavam do próprio salário o lector), ia de histórias e tratados
políticos a romances e coleções de poesia clássica e moderna. Tinham seus
prediletos: O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, por exemplo,
tornou-se uma escolha tão popular que um grupo de trabalhadores escreveu
ao autor pouco antes da morte dele, em 1870, pedindo-lhe que cedesse o
nome de seu herói para um charuto; Dumas consentiu.
Tais leituras foram desaparecendo aos poucos devido a proibições do governo, talvez
pela ameaça que pudessem trazer com a ampliação das possibilidades de críticas dos
operários. Contudo, elas reaparecem ainda no século XIX com trabalhadores que emigraram
para os Estados Unidos. Mesmo com as leis e ordenações ditadas pelo governo, o povo
encontra formas de transgressão e carrega consigo aquilo que já está incorporado e reativa as
suas práticas culturais em outros lugares. A leitura nas fábricas de charuto ultrapassou o
século XIX e sobreviveu até 1920.
Ainda no século XIX como atesta LYONS (1999), as mulheres nas famílias católicas
na França eram proibidas de ler jornais, então, os homens faziam essa leitura em voz alta.
Essa tarefa destinada aos homens lhes dava uma certa superioridade e eles tinham o dever de
censurar e selecionar as matérias a serem lidas.
Informações a respeito da história da leitura indicam que as “leituras partilhadas” não
são especificas do século XIX e já no XVI, lia-se publicamente nas tabernas, nos salões da
corte, nas estalagens, nos locais de trabalho, nos lares humildes, nos mosteiros, nas praças
públicas.
No Brasil, a leitura em voz alta e coletiva constitui-se uma prática comum nos serões
familiares. Segundo ZILBERMAN e LAJOLO (1996) foi uma prática que cresceu muito no
interior das famílias burguesas modernas no final do século XVIII e inicio do XIX,
intensificando o gosto pela leitura.
A figura do ledor e a leitura partilhada aparecem nos relatos de José de Alencar no
livro “Como e porque sou romancista”, ao mencionar sua participação ainda menino nos
serões familiares.
Machado de Assis fala da leitura em grupo e em voz alta. Em “Dom Casmurro”, o
personagem José Dias, o agregado da casa, tem a tarefa de ler à noite, depois do jantar, para as
pessoas da família, como forma de entretenimento.
CASCUDO (1953, p. 25) refere-se à leitura dos folhetos de cordel durante os serões
familiares nas casas dos sertanejos no século XIX:
A ausência de jornais, o isolamento das fazendas engenhos de açúcar
determinavam uma vida familiar mais intensa. Raramente o chefe da casa
saia à noite. A dona, filhos, noras, permaneciam fiéis ao serão habitual,
candeeiro aceso, depois da “janta”, fazendo sono, trabalhando nas obras
manuais, ouvindo a leitura tradicional desses folhetos que vinham de
séculos, mão em mão com seu público inalterável.
A leitura coletiva no Segundo Império é mencionada por Antonio Candido, que
destaca o papel das revistas e jornais familiares para a formação do público leitor feminino.
Ainda que a leitura em voz alta dirigida para determinados grupos não seja algo novo,
hoje se reinventa esta prática, contextualizada em uma sociedade contemporânea. Essa prática
ressignificada se caracteriza pela leitura em voz alta, por um leitor guia, de um determinado
texto para um grupo e logo depois da leitura é proposto uma conversa sobre o texto lido. É
importante salientar que nesta conversa não existe o certo ou o errado, a palavra está com o
grupo, que tece os seus comentários, constrói as suas interpretações a partir das suas histórias
de leitura. Os textos vão ganhando sentido à medida que vão sendo lidos.
Em todo país, os Círculos de Leitura vêm sendo utilizado em vários projetos que
tratam da formação do leitor com o objetivo de desenvolver o hábito da leitura seja no espaço
escolar ou fora dele.
O Núcleo de Leitura Multimeios vem praticando os círculos em seus vários projetos
de pesquisa e extensão. Na nossa experiência temos feito os círculos com o texto literário,
pois sendo este de natureza polissêmica possibilita uma diversidade de opiniões e de pontos
de vista dos sujeitos participantes.
No meu trabalho de doutorado, estudei essa prática entre os professores da zona rural
da Bahia. Durante 3 anos lemos diversos textos, diversos autores com estes professores, como
Mariana Colasanti, Cecília Meirelles, Guimarães Rosa, Rubem Fonseca, entre outros. As
interpretações dos textos eram respaldadas nas histórias de leitura dessas professoras e
professores, ancoradas nas tradições orais, seja na contação de histórias, na literatura de
cordel, nos cânticos de trabalho ou nas festividades religiosas. Cada professor à medida que
lia e conversava sobre o lido se apropriava aos poucos dessa experiência, que depois era
replicada em outros espaços das suas vidas cotidianas.
Na nossa pesquisa “Perfil do leitor da Escola Pública: um estudo de caso no Colégio
Estadual de Feira de Santana”, pesquisa aprovada em Edital da FAPESB, buscamos investigar
esse perfil, além dos dados coletados por meio das entrevistas, questionários e Grupo Focal,
também durante a realização dos círculos de leitura com professores e alunos. A atividade tem
sido realizada com professores e alunos que nas suas interpretações sobre os textos lidos
revelam as suas relações com a leitura e com os textos literários. Os bolsistas de iniciação
científica e iniciação à extensão tem inserido nos seus planos de trabalho a prática dos
círculos. São trabalhos que vão revelando diversos perfis de leitores, mostrando uma
diversidade de gostos que foge de uma imagem estereotipada do leitor que foi construída
pelos meios oficiais.
A experiência tem mostrado o quanto uma atividade que retoma a prática de ler em
voz alta, de uma leitura coletiva, pode contribuir para estimular o gosto pela leitura. Nos
diversos grupos que temos trabalhado dentro da Universidade com a leitura de contos,
poemas, crônicas, os leitores vão se familiarizando com os vários gêneros literários e com os
seus autores e aos poucos vão se apropriando dessas leituras e tornam-se multiplicadores
dessas práticas nos seus lugares de trabalho e nas suas comunidades. A experiência tem sido
muito bem vinda nas escolas, como também para além dos muros da Universidade.
Uma prática simples, sentar na roda para ler, tem sido capaz de mobilizar nos seus
participantes mudanças de atitudes no que se refere ao seu comportamento como leitor.
Alunos que demonstravam resistência com a leitura, depois de alguns encontros começam a
revelar nos seus comentários um certo prazer com o ato de ler, pois coletivamente vão
construindo sentidos para os textos que são compartilhados.
A nossa vivência com os círculos tem se concentrado em sua maioria no espaço
escolar, mas já estamos caminhando na perspectiva de ampliar a realização dessa prática em
outros espaços e hoje estamos trabalhando na elaboração de um projeto que articula pesquisa
e extensão com mulheres que recebem o leite do Bolsa Família do governo Federal de uma
pequena cidade do interior da Bahia, Antonio Cardoso. O objetivo é reativar com os círculos
de leitura a prática das narrativas orais tão presente nas comunidades rurais. Á medida que
estas narrativas vão reaparecendo, estimuladas pela leitura ou contação dos contos populares,
os sujeitos se reapropriam das suas próprias realidades e tornam-se sujeitos das suas histórias.
Como pesquisadores e extensionistas do Núcleo de Leitura Multimeios, acreditamos
que essa prática abre possibilidades na constituição de leitores por acolher desde o seu
surgimento uma gama de potenciais leitores que a história oficial sempre marginalizou.
REFERÊNCIAS
ABREU, Márcia. (Org.) Leitura, história e história da leitura. Campinas, SP: Mercado de
Letras: Associação de Leitura do Brasil; São Paulo: Fapesp, 1999.
CAVALLO, Guglielmo e CHARTIER, Roger. (Org.). História da Leitura no mundo
ocidental. São Paulo: Ática, 1998. V.1;2.
CASCUDO, Luis da Câmara. Cinco livros do povo: introdução ao estudo da novelística no
Brasil. Rio de janeiro: José Olyimpio, 1953.
CHARTIER, Roger. (Org.) Práticas de Leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.
FABRE, Daniel. O livro e sua magia. In: CHARTIER, Roger (org). Práticas da leitura. São
Paulo: Estação Liberdade, 1996.
LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. São Paulo:
Ática, 1996.
LYONS, Martyn. Os novos leitores no século XIX: mulheres, crianças, operários. In:
CAVALLO, Guglielmo e CHARTIER, Roger. (Org.). História da Leitura no mundo
ocidental. São Paulo: Ática, 1999.
MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
YUNES, Eliana. Para entender a proposta do PROLER (Programa Nacional de Incentivo à
Leitura). Fundação Biblioteca Nacional- Ministério da Cultura, maio 1992.

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