Íntegra da Carta Econômica

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Íntegra da Carta Econômica
Carta Econômica
Agosto-08
O nosso “conundrum”.
O balanço de risco para a economia brasileira aponta um enigma que envolve dois movimentos
sincronizados do mundo globalizado. Entendê-los, certamente, ajudará no entendimento de cenários
prospectivos. Um financeiro advindo dos problemas surgidos por causa da crise no setor imobiliário dos
EUA e outro produzido pelo aumento generalizado da inflação, por causa da súbita elevação de preços do
petróleo, dos metais e alimentos. Embora interajam entre si, têm implicações distintas para os países
desenvolvidos e emergentes. Enquanto os primeiros estão mais ameaçados pela possibilidade de um
colapso da sua indústria financeira e fazem de tudo para postergar um desaquecimento das suas economias
(que parece inevitável), os emergentes enfrentam uma maior pressão inflacionária e, de uma maneira
geral, têm evitado tomar medidas que a combatam e reduzam o atual ritmo de crescimento das suas
economias.
Na realidade, os dois problemas têm a mesma origem: as mudanças ocorridas na economia monetária
internacional a partir da crise asiática em 1997. A partir dali, muitos dos países daquela região atrelaram
em um nível fortemente depreciado as suas moedas ao dólar. Tal estratégia permitiu a aceleração do
crescimento econômico por meio da obtenção de superávits gigantescos nos saldos de suas transações
comerciais. O acúmulo das reservas internacionais desses países vem sendo reciclado no financiamento
dos déficits gêmeos dos EUA, mediante a compra de títulos do Tesouro. Esse arranjo, cunhado como o
acordo de Bretton Woods II pelos economistas Michael Dooley, David Folkerts-Landau e Peter Garber,
configurou uma nova arquitetura do sistema monetário internacional que até então serviu para
impulsionar o crescimento econômico, alimentar o consumo privado e a formar bolhas especulativas nos
países mais ricos.
Anos atrás, ainda sob a égide de Alan Greenspan, a análise econômica dos EUA já emitia alguns sinais
de alerta quanto à sustentabilidade dessa estrutura financeira. Eles estavam implícitos na busca do
entendimento de um dilema, conhecido popularmente pelo jargão do mercado financeiro como o
“conundrum”. O termo de origem latina que significa enigma mostrava a surpresa do presidente do
Federal Reserve (Fed) com a trajetória distinta das taxas de juros de curto e longo prazo dos títulos
públicos. Em fevereiro de 2005, as taxas de curto prazo tinham subido de 1% ao ano para 3% ao ano,
enquanto as dos títulos de dez anos continuavam praticamente inalteradas ao redor de 4,7% ao ano.
Naquele momento, foram levantadas algumas hipóteses para a compreensão do enigma, entre elas a
existência de um limite de alta para as taxas de longo prazo por causa da demanda cativa dos países
superavitários nas contas externas e a expectativa dos investidores de que as boas condições da economia
permitiriam a manutenção da taxa de curto prazo em um patamar baixo. A conjugação desses movimentos
propiciou as condições para que a taxa de juros real se mantivesse em um nível historicamente baixo e a
formação de um ”boom” no segmento imobiliário e no mercado de “commodities”.
Inicialmente, os riscos da formação de uma bolha no setor de residências foram exageradamente
minimizados pela autoridade monetária. Vale lembrar que, ainda em maio de 2007, quando os sintomas da
crise já eram bem pronunciados, o novo presidente do Fed, Ben Bernanke, ainda acreditava que os efeitos
das perdas com a crise do setor imobiliário, particularmente na modalidade “subprime”, seriam pequenos
e incapazes de afetar a economia como um todo. Contudo, o desenvolvimento da crise contrariou
amplamente essas expectativas e vem impingindo perdas consideráveis ao setor financeiro.
A quebra do Bear Sterns, em março de 2008, representou o epicentro do cataclismo que ainda ronda o
cenário da economia internacional. Naquela oportunidade, para impedir uma crise sistêmica e
contrariando as determinações do marco regulatório, o Fed assumiu o controle de US$ 30 bilhões de
créditos ruins do banco de investimento e facilitou a aquisição da instituição pelo JP Morgan Chase.
Como conseqüência da intervenção, houve uma relativa melhoria no humor do mercado que levou
importantes economistas e analistas a proclamar o final da tormenta do “subprime”. Porém a partir de
Este documento foi preparado pela Assessoria Econômica da ABBC, com finalidade única de prestar informações ao mercado. Esse trabalho reflete a opinião
pessoal, não devendo ser interpretado como oferta ou solicitação de oferta para comprar ou vender quaisquer títulos e valores mobiliários ou produtos e
instrumentos financeiros. É vedada a reprodução, distribuição ou publicação deste material, integral ou parcialmente.
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junho, essa expectativa otimista foi profundamente abalada pelos rumores de insolvência em outras
instituições e agora pelo socorro financeiro do governo às agências hipotecárias, Fannie Mae e Freddie
Mac. Ainda que não tenham participado da ciranda especulativa do mercado “subprime”, ambas sofreram
profundamente os efeitos da queda nos preços dos imóveis e no valor das hipotecas. Os ativos dessas
instituições representam cerca de 40% do PIB, o que dá uma noção do risco que envolveria uma eventual
quebra das duas agências. As preocupações com os possíveis efeitos negativos levaram o Congresso norteamericano a aprovar uma lei que contempla um grande pacote de ajuda para o mercado imobiliário e um
financiamento emergencial para as duas agências.
Assim, as incertezas que ainda permeiam os balanços patrimoniais das instituições financeiras impedem
a rejeição da hipótese de uma repetição do colapso vivenciado nos anos 30 do século passado. Todavia,
por causa da ação imediata e agressiva dos bancos centrais, não parece ser o cenário mais provável, como
sublinha Paul Krugman. A partir do estouro da bolha imobiliária, as autoridades monetárias reduziram
abruptamente as taxa de juros e atuaram como emprestadoras de última instância. Tal atitude, apesar de
poder estimular o “moral harzard”, tem evitado a eclosão de uma crise sistêmica.
Apesar de que a inflação nos EUA esteja ao redor de 5% a.a., alguns fatores sugerem a manutenção por
um bom período da taxa dos Fed Funds em 2%. Entre eles pode-se enumerar: a fragilidade nas condições
de liquidez do setor interbancário, a incerteza e extensão do montante das perdas, a manutenção do
processo de deflação dos preços dos imóveis e os sinais recessivos de alguns indicadores de desempenho
do lado real da economia. Como contrapartida dessa postura a ser adotada pelo Fed, poderá se ter uma
intensificação das pressões inflacionárias verificadas nas diversas economias de todo o planeta.
Embora o fator principal para o recrudescimento da inflação internacional seja o aumento de preço dos
alimentos, metais e do petróleo e derivados, a sua dinâmica está atrelada à arquitetura do sistema
monetário internacional que viabilizou uma bonança por um período extenso de tempo. Ainda que haja
também um movimento especulativo no mercado de derivativos das “commodities” e da forte depreciação
do dólar, a aceleração inflacionária internacional tem também como causa a expansão desbalanceada da
demanda mundial de determinados bens em relação à capacidade da oferta.
O ritmo de crescimento do consumo vem em desencontro com o esgotamento das reservas de petróleo e
de minérios e com a velocidade de produção de bens renováveis. Não se deve desprezar ainda o papel dos
gastos excessivos nas economias mais avançadas, notadamente nos EUA. O hiato entre a demanda e oferta
é amplificado pela crescente incorporação das camadas mais pobres da população dos países emergentes
ao mercado de consumo. Nesses países, ainda, já há sinais de reivindicações mais agudas dos
trabalhadores por melhores condições salariais. A possibilidade de que haja aumentos do custo da mão
sem a contrapartida de um aumento na produtividade é uma outra ameaça dado que provavelmente os
ajustes seriam repassados nos preços dos bens industriais exportados por esses países.
Nesse momento, todas essas pressões inflacionárias estão potencialmente intensificadas pela forma como
o Fed está reagindo à crise financeira. A razão refere-se, principalmente, à pujança da economia chinesa
e da praticamente paridade fixa da cotação cambial do remimbi em relação ao dólar. Esse regime cambial
impossibilita que a China tenha uma política monetária autônoma. Assim, manutenção de uma taxa de
juros baixa nos EUA implica na migração de dólares para lá, levando a um aumento da expansão
monetária e a uma acomodação das pressões inflacionárias lá existentes.
Esse ciclo inflacionário só será efetivamente combatido, quando houver um aperto monetário nos EUA,
na Europa e no Reino Unido. Uma opção que nesse momento parece descartada e só será efetivada quando
forem definitivamente afastados os riscos de uma crise bancária sistêmica. Não se pode precisar esse
momento quando ocorrerá tal aperto, mas que ele virá, ele virá. Até lá, é provável que a inflação
internacional se mantenha, ainda que haja um desaquecimento das economias e uma queda relativa nas
principais commodities.
No lado doméstico, há uma evidente aceleração da taxa de inflação, como sinaliza a variação acumulada
em 12 meses pelo IPCA que subiu de 3,1% em 2006 para 6,1% em junho de 2008. Ainda de forma
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inquietante, os índices relativos aos preços de atacado têm mostrado variações bem superiores às
observadas pelos os preços no varejo, o que no atual ritmo de expansão da atividade econômica pode
representar um risco de repasse aos demais preços da economia. Embora haja uma elevação na taxa de
inflação, não há sinais inequívocos de uma pressão incontrolável da demanda. Apesar da grande redução
da taxa de desemprego, não está evidenciado um acréscimo no custo de mão obra em ritmo superior ao
aumento da produtividade. Isso sem contar o crescimento potencial da oferta interna por causa da
acelerada elevação dos fluxos de investimento.
De forma distinta de grande parte dos países, reiteradamente, o Banco Central tem reagido aos riscos e
demonstrado a sua intenção em ancorar as expectativas inflacionárias em linha com as metas
estabelecidas pelo CMN. A autoridade monetária já elevou a taxa básica de juros em 175 pontos básicos e,
se necessário, se dispõe a continuar agindo de forma atitude tempestiva. Evidentemente, que além do
aumento da oferta sinalizado pelo aumento dos investimentos, um arrefecimento do ritmo de crescimento se
faz necessário. Contudo, é preciso ter em mente que quase 70% da inflação se devem a pressão dos bens
agrícolas e que os preços internos não são determinados exclusivamente pelas condições do mercado
interno.
Dessa forma, a política monetária tem seus limites no combate à inflação, dado que parte dos preços são
estabelecidos no exterior e internalizados pela taxa de câmbio que é flutuante. Há muitas incertezas, mas
pode-se afirmar que atual dinâmica inflacionária tem um componente importado que pode ter seu efeito
ampliado por uma demanda interna excessiva. Essas dúvidas dificultam a tarefa do Banco Central, pois
além de garantir o cumprimento das metas de inflação, não pode deixar de considerar as conseqüências de
um aperto monetário exagerado sobre o lado real da economia, as contas públicas e, principalmente sobre
as contas externas.
Com a perspectiva de manutenção da taxa de juros nas principais praças internacionais, há um aumento
no espaço para arbitragem que poderá aprofundar a valorização do real e deteriorar ainda mais o saldo
das transações externas. Adicionalmente, ainda que possa ser precipitada qualquer conclusão, os últimos
dias têm exibido alguns sinais de que o pior momento da inflação teria ficado para trás. Os mais recentes
indicadores de preços mostram uma menor pressão no preço dos alimentos e há alguns indícios de inflexão
no comportamento dos preços das ”commodities” por causa da desaceleração na atividade econômica dos
grandes centros. Porém, o fato concreto é que as incertezas permanecem e obrigam as autoridades a
decidir entre prosseguir com o ajuste monetário ou aguardar o movimento nos demais paises e os efeitos
das medidas até aqui tomadas. Este é o nosso “conundrum”.
Por fim, vale recordar que logo que finde a atual crise interbancária, inexoravelmente, os EUA vão
aumentar as suas taxas de juro e reduzir o déficit em conta corrente. Isto valorizará o dólar frente às
demais moedas e derrubará a cotação das “commodities”, o que atingiria em cheio a nossa pauta de
exportações. O impacto negativo da balança comercial brasileira, aumentaria ainda mais o déficit em
conta corrente. Definitivamente, um “revival” da era Paul Volcker, não seria um cenário desejado.
Agosto/2008
Everton P.S. Gonçalves
Assessor Econômico da ABBC e Dr em Economia pela FGV/SP - [email protected]
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