newsletter - Durval Ferreira

Transcrição

newsletter - Durval Ferreira
newsletter
nº 1
julho 2010 semestral
Índice
- Responsabilidade civil do Estado pelo exercício da função jurisdicional não-penal – Breves Notas ……… DURVAL FERREIRA
- A Nova Acção Executiva - Após o DL 226/2008, de 20 de Novembro.………………………. LURDES VARREGOSO MESQUITA
- As Relações in House: Liberdade de Auto-Organização ou o Império do Mercado? ………………… DURVAL TIAGO FERREIRA
- A importância dos preços de transferência no contexto do planeamento fiscal .…………………….PATRÍCIA ANJOS AZEVEDO
- A (in)transmissibilidade da responsabilidade contra-ordenacional na reversão do processo de execução fiscal..…HÉLDER
FERNANDES PEREIRA
Responsabilidade civil do Estado pelo exercício da função jurisdicional não-penal – Breves Notas
DURVAL FERREIRA (Advogado)
O recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-12-2009 (1ª Secção) considerou que à luz do nº
2 do artº. 13º da L. 67/2007, de 31/12, não cabe aos Tribunais no âmbito da sua competência para decidir
pedidos de indemnização civil formulados contra o Estado com base em decisões jurisdicionais nãopenais “manifestamente” inconstitucionais ou ilegais, ou “injustificadas” por erro grosseiro na apreciação
dos respectivos pressupostos de facto, apreciar a eventualidade de tais vícios da decisão danosa.(1)
Pois que, “o pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela
jurisdição competente”.
Na exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 56/X, diz-se que se fez “uma opção arrojada: a de
estender ao domínio do funcionamento da administração da justiça o regime da responsabilidade da
Administração”, com as respectivas ressalvas constantes do nº 1 do referido artº. 13º e da não
responsabilidade solidária dos Juízes.
Assim, de acordo com tal interpretação do cit. artº. 13º teremos que não se pode exigir responsabilidade
do Estado com base em decisões jurisdicionais danosas transitadas em julgado.
Sejam elas do Supremo, da Relação ou da 1ª Instância.
Mas, também é óbvio, de acordo com princípios gerais, que não se pode exigir responsabilidade civil do
Estado com base em decisões jurisdicionais ainda recorríveis ou reformáveis. Pois que, antes de se exigir
tal responsabilidade, é curial que se esgotem os recursos disponíveis para alterar ou reformar as próprias
decisões jurisdicionais danosas.
Mas, se assim é, então o alcance do citado artº. 13º é limitado a certos e poucos casos de eficácia
intercalar de decisões não transitadas.
Como poderá ocorrer com a execução de decisões danosas proferidas em providências cautelares, ou
em execuções (intercalares) de decisões com recurso não suspensivo.
E, então, sempre caberá fazer duas observações. A primeira, é a de que, com esse alcance, a tal “opção
arrojada” mais se assemelha à “montanha que pariu um rato”. E, a segunda observação, é a de que o
referido nº 2 com tal conteúdo e alcance, poderá ser inconstitucional por ofensa do princípio da tutela
jurisdicional efectiva (artºs. 2 e 20 da C.R.).
(1) Acórdão comentado nos Cadernos de Justiça Administrativa, nº 79 (Jan./Fev. 2010), por Mª. José Rangel de Mesquita, Profª. da Fac.
de Dir. da Univ. de Lisboa.
A Nova Acção Executiva – Após o DL 226/2008, de 20 de Novembro
LURDES VARREGOSO MESQUITA
(Docente Universitária)
O aprofundamento da desjudicialização tem sido palavra de ordem nos últimos tempos em diversas
áreas, da Família às Sucessões e, sobretudo, na Acção Executiva. Entre outras razões, foi
essencialmente o descongestionamento dos tribunais e uma maior eficácia do sistema que motivou o
legislador a retirar dos Tribunais o andamento de alguns processos, remetendo-os para as
Conservatórias do Registo Civil, as Conservatórias do Registo Predial, os Notários e para os Agentes de
Execução. Naturalmente, por respeito ao princípio da Reserva de Juiz, o Tribunal continua a ser o
guardião das garantias fundamentais e para ele são remetidas as questões que só o poder jurisdicional
pode dirimir.
No caso concreto da Acção Executiva, em 2003 não se atingiu o patamar de desjudicialização,
porventura, desejado, fosse por falta de coragem política, fosse por consciência do grau de (i)maturidade
do sistema para acompanhar uma mudança de paradigma mais aprofundada, que afinal se concretizou
em 2008.(1)
Neste contexto, vem a ser publicado o DL 226/2008, 20 de Novembro de 2008, que alterou a acção
executiva a partir de 31 de Março de 2009. O resultado não foi especialmente feliz e o reflexo disso é o
facto de, em tão pouco tempo de vida, a Nova Acção Executiva já ter dado azo a múltiplas interpretações,
na tentativa, vã, de se procurar o sentido das palavras do legislador que, a maior parte das vezes, diga-se,
se enredou em redacções complexas, incoerentes e, até, desrespeitadoras da lógica do sistema e da
herança deixada pela Reforma de 2003 que, nos parece, não pode ser desconsiderada. Aliás, só o
elemento histórico nos poderá valer em algumas interpretações, tal foi a amputação que o legislador fez
em certas disposições, sobretudo as relacionadas com a fase introdutória da acção executiva, onde
facilmente encontramos um vazio para situações que antes estavam resolvidas, sem que, por outro lado,
houvesse um sinal claro da (nova) solução realmente pretendida pelo legislador. Esta circunstância
arrastar-se-á e, salvo se o legislador assumir os seus erros e os rectificar, só a jurisprudência e a doutrina
contribuirão para emendar a situação, o que levará, naturalmente, o seu tempo.
A fase introdutória da acção executiva constitui a fase mais sensível e determinante do processo
executivo e, não obstante, foi a mais sacrificada com a reforma de 2008. O legislador teve uma
necessidade obsessiva de referir «todas» as situações que entendeu configuráveis como situações de
despacho liminar e de dispensa de despacho liminar, esquecendo-se que ao construir disposições
fechadas corria o risco, como sucedeu, de criar vazios. Tendo abandonado a metodologia anterior, que
definia uma regra (prolação de despacho liminar) e, paralelamente, as excepções, o legislador optou por
fazer enumerações pretensamente taxativas, deixando omissos uma série de casos que acabam por não
se enquadrar nem no âmbito do 812º-C, nem no do 812º-D. Fez mal e dificultou a tarefa dos intérpretes.
Percebe-se que o legislador não quis manter uma disposição da qual resultasse que o processo, a não
ser que configurasse um situação de dispensa de despacho liminar, tinha de ser concluso ao juiz para
despacho liminar, pois, dessa forma contrariava a intenção de afastar o fantasma do «poder geral de
controlo do processo» por parte do juiz. Mas, já não se percebe que o tenha feito sem que criasse um
regime alternativo, inteligível e capaz de dar resposta a todas as situações, ainda que estatisticamente
menos relevantes.
O legislador limitou-se a introduzir um ou outro caso novo e, no mais, apenas arrumou os casos que a lei já
antes previa expressamente como execuções onde: havia sempre despacho liminar (anterior 812º-A.2;
actual 812º-D.a e b); havia citação prévia sem necessidade de despacho liminar (anterior 812º.7; actual
812º-F.2 a, b e c); o funcionário (agora o agente de execução) suscitava a intervenção do juiz (anterior
812º-A.3; actual 812º-D e, f, g).
Daqui resultou um circuito fechado, onde, perante uma situação concreta, somos levados a percorrer os
arts. 812º-C, 812º-D e 812º-F, na esperança de o subsumir nos casos previstos, sob pena de nenhuma
outra solução se extrair, expressamente, da lei, como acontece, por exemplo, com uma execução
baseada em documento particular assinado pelo devedor onde conste obrigação pecuniária vencida de
valor superior à alçada do tribunal da relação.
3
Perante casos deste tipo, a solução mais consensual tem sido a de aplicar o regime que vigorava antes da
reforma, ou seja despacho liminar e citação prévia, com apelo à racionalidade da solução e com
fundamento no elemento histórico-interpretativo.
(1) O próprio legislador veio afirmar: Decorridos mais de cinco anos desde a entrada em vigor da Reforma da Acção Executiva e após a
adopção de várias medidas que permitiram testar, com resultado, várias das suas inovações, foi então possível perceber efectivamente
o que devia ser aperfeiçoado no modelo então adoptado, aprofundando-o e criando condições para ser mais simples, eficaz e apto a
evitar acções judiciais desnecessárias.
As Relações in House: Liberdade de Auto-Organização ou o Império do Mercado?
DURVAL TIAGO FERREIRA (Advogado)
O Direito Europeu dos Contratos Públicos está consagrado num conjunto de princípios fundamentais
com previsão no Tratado de Roma e desenvolvidos quer pela jurisprudência comunitária, quer através de
sucessivas Directivas e Regulamentos comunitários.(1) Mas a europeização dá-se também pelos
diplomas nacionais de transposição das Directivas e pelo trabalho dos tribunais nacionais que vão
aplicando as normas comunitárias.(2)
Todo este ius commune, nas palavras de Maria João Estorninho, vem bulir com a tradicional clivagem
entre os clássicos modelos de contratação administrativa dos diversos países europeus e contribuir para
a uniformização do regime jurídico aplicável aos contratos públicos no mercado europeu.(3)
Para percebermos o alcance prático destas matérias, refira-se que na maioria dos Estados-membros,
cerca de 25 a 30% da despesa pública deriva dos contratos públicos e, ao nível global da União Europeia,
a contratação pública representa na economia cerca de 16% do PIB; representando um valor aproximado
de 1.500 biliões de euros!(4)
Com a publicação das Directivas 2004/17/CE e 2004/18/CE, ambas de 31 de Março, impunha-se aos
Estados que adoptassem novas disposições quanto à matéria da contratação pública, o que veio, em
Portugal, a concretizar-se no Decreto Lei 18/08 de 29 de Janeiro: o Código dos Contratos Públicos.
No artº 5 nº 2 deste diploma vem consagrada, em parte, a doutrina in house; que, em síntese, se pode
resumir no seguinte:
Se até determinado momento era ampla a liberdade de auto-organização por parte do Estado, com o
fortalecimento do Princípio da Concorrência, ou seja, com o surgimento de um conjunto de regras que
visam assegurar um mercado livre, a jurisprudência começa a olhar com redobrada atenção para este
tipo de relações contratuais.(5)
Daí a interrogação a que se procura dar resposta: podem as Administrações recorrer, sem mais, às
entidades por si criadas para se “abastecer” no mercado, ou têm de submeter esse procedimento às
regras a que estão sujeitos os operadores privados?(6)
A regra imposta tanto pelas normas de direito comunitário originário (Artºs 12, 43, 49 e 86 do Tratado CE)
como pelas normas de direito comunitário derivado (Directivas de 2004) é a da sujeição da Administração
ao mercado sempre que esta solicite produtos ou serviços a terceiros operadores económicos.
Destarte, o Tribunal de Justiça, no Acórdão Teckal, o leading case nesta matéria, veio clarificar as
situações em que a celebração de contratos entre dois entes públicos não implica necessariamente a
realização de um procedimento contratual, explicitando os casos em que uma entidade adjudicante se
pode abastecer num fornecimento, serviço ou numa obra, junto de um ente público; não cumprindo assim
as regras impostas para a contratação pública do ordenamento comunitário e nacional. (7)
Ainda que necessariamente incipiente, a fórmula encontrada põe a tónica na autonomia decisória por
parte da entidade adjudicatória e decompõe os seguintes requisitos, cumulativos e permanentes: (8)
desde logo, que o poder adjudicante detenha sobre a entidade adjudicatória um controlo análogo àquele
que exerce sobre os seus próprios serviços(9), e que esta entidade realize o essencial da sua actividade
para as entidades adjudicantes que a controlam.(10)
A verificação simultânea de ambas as condições significa uma excepção à aplicação das regras gerais da
contratação pública, impondo-se, por consequência, e seguindo quer a orientação jurisprudencial
comunitária, quer a orientação da doutrina, uma interpretação restritiva.(11)
Concepção esta que tem evoluído para uma posição mais flexível.(12)
De tal forma que nas conclusões apresentadas pelo Advogado Geral no decurso do processo Coditel
(processo C-324/07),(13) foi por este sublinhado que não obstante a importância das normas relativas à
contratação pública para a construção europeia, elas não podem utilizar-se irreflectidamente. Na
realidade, há que articular o seu objectivo com a valoração de outros domínios políticos. Não pode haver
uma prevalência desproporcionada nos objectivos do direito da concorrência e em simultâneo , uma
influência excessiva no direito dos Municípios à autonomia administrativa bem como nas competências
dos Estados-Membros.(14)
Atenta a complexidade crescente da auto-organização dos Estados e em simultâneo, as exigências
impostas por um mercado cada vez mais concorrencial, importa uma melhor clarificação dos critérios
assumidos em Teckal, para que todos os Estados-Membros os possam incorporar, sem reservas ou
dúvidas, nos respectivos ordenamentos jurídicos internos.
(1) Entre outros, Cláudia Viana, Os Princípios Comunitários na Contratação Pública, Coimbra Editora, 2007.
(2) Aliás, o fenómeno da europeização é antecedido pela própria globalização do Direito Administrativo. Vidé Suzana Tavares da Silva,
em Um Novo Direito Administrativo, Edições da Universidade Coimbra, 2010. Sobre o conceito de Direito Administrativo Global leia-se o
artigo de Richard B. Stewart, Il Diritto Amministrativo Globale, in Rivista Trimestrale di Diritto Publico, nº 3, de 2005.
(3) Maria João Estorninho, Direito Europeu dos Contratos Públicos, Um Olhar Português, Almedina, Novembro de 2006.
(4) Dados revelados por José F. F.Tavares, in Os Contratos Públicos e a sua Fiscalização pelo Tribunal de Contas, Estudos de
Contratação Pública I, Coimbra Editora, 2008.
(5) “Lo que se ha visto com normalidad o lo largo de muchos años, ahora se contempla bajo la lupa de essa nueva rama del
ordenamiento. Lupa que és de grand aumento. “ Francisco Sosa Wagner, in Pueden los contratos quedar en casa?, Diário La Ley, nº
6715, Año XXVIII de 17/05/07.
(6) Sobre o tema, Pedro Sanchez Fernandes, em Os Parâmetros de Controlo da Privatização Administrativa – Instrumentos de
Fiscalização Judicial da Decisão Jurídico-Política da Privatização, Almedina, 2010 e Pedro Gonçalves, Entidades Privadas com
Poderes Públicos, Almedina, 2005.
(7)(Processo C – 107/98, Teckal Srl/ Município de Viano AGAC (Azienda Gás-Acqua Consorziale).
(8) Características referidas no Acórdão Comissão/República da Áustria, processo C – 29/04.
(9) “ A noção de controlo análogo implica uma possibilidade de influência determinante tanto sobre os objectivos estratégicos como
sobre as decisões importantes”; Acórdão Coditel.
(10) A dificuldade maior deste critério reside no facto de saber a partir de quanta actividade é que se poderá considerar como uma parte
essencial. Na expressão de Meilán Gil, não resulta fácil determinar “ cuantos granos hacén un montón”. R. Perin e D. Casalini afirmam
que na ausência de uma percentagem mínima ex-lege de actividade que integre a destinação essencial, o natural é um volume de
actividade que supere os 50º%. Para Constantino Tessarolo, in La Gestione in House di Pubblici Servizi, indica um valor referência de
80%. Para Júlio Gonzalez Garcia, este critério padece de um excessivo grau de indeterminação para que possa ser totalmente
aplicável. Médios Próprios de la Administración, RAP nº 173, Mayo/Agosto de 2007.
(11) Neste sentido, o processo Stadt Halle, o processo Parking Brixen e as conclusões da Advogada Geral no processo Carbotermo,
apresentadas em 12/01/06.
(12) Veja-se também a decisão do processo C-480/06, Acórdão Comissão/Alemanha.
(13) Sobre o Acórdão Coditel, veja-se o artigo de Tiago Macieirinha, em Revista O Direito, De Teckal a Coditel Brabant,: evolução da
jurisprudência comunitária sobre o conceito de controlo análogo, Ano 141º, 2009.
(14) Na mesma esteira, Giannangelo Marchegiani, ao afirmar que não se pode caír no perigo da contratação in house violar princípios
do Tratado CE em matéria de política económica, tendo em conta que no presente, o objectivo daquele Tratado não se circunscreve ao
mercado comum, englobando também a união económica e monetária. Les relations in-house et le syndrome du cheval à bascule,
Quelques considerations à propos de l´arrêt Stadt Halle, RMCUE, 2006.
5
mercado comum, englobando também a união económica e monetária. Les relations in-house et le syndrome du cheval à bascule,
Quelques considerations à propos de l´arrêt Stadt Halle, RMCUE, 2006.
A importância dos preços de transferência no contexto do planeamento fiscal
PATRÍCIA ANJOS AZEVEDO
(Docente Universitária)
Apesar da conotação negativa da ideia do recurso ao planeamento fiscal, verifica-se que este revestirá,
em princípio, a natureza de actividade lícita, configurando-se num verdadeiro direito subjectivo do sujeito
passivo das obrigações fiscais, enquanto condição para a segurança jurídica das relações tributárias.
Será, no fundo, um conjunto de operações levadas a cabo por determinado contribuinte, com vista à
poupança de despesas fiscais. É o chamado planeamento fiscal legítimo ou intra legem (revestindo
práticas através das quais o contribuinte aproveita as soluções consagradas na lei no sentido de melhor
conformar as suas condutas), podendo apesar de tudo verificar-se práticas de planeamento fiscal
abusivo, excessivo, agressivo ou quaisquer fenómenos tendentes à chamada elisão fiscal, ou seja,
planeamento fiscal extra legem – que, não configurando ilícitos penais ou criminais contraria os princípios
fundamentais do sistema jurídico-tributário, não obstante não contrariar frontalmente os dispositivos
legais concretamente aplicáveis, pelo que as consequências apenas passarão por eventuais correcções
à matéria colectável. (1).
No outro extremo aparece-nos o planeamento fiscal ilegítimo, podendo este ser evasivo ou até mesmo
fraudulento, o que configura verdadeiras situações de planeamento contra legem.
As medidas anti-abuso aparecem definidas no art.º 63.º do CPPT como “(…) quaisquer normas legais
que consagrem a ineficácia perante a administração tributária de negócios ou actos jurídicos celebrados
ou praticados com manifesto abuso das formas jurídicas de que resulte a eliminação ou redução dos
tributos que de outro modo seriam devidos.” No entanto, verificamos que esta definição legal apenas
pretendeu introduzir no nosso sistema tributário um conjunto de normas com vista a eliminar (ou pelo
menos combater) situações de abuso.
Deste modo, é a própria Lei Geral Tributária (LGT) que vem consagrar a chamada “cláusula geral antiabuso” prendendo-se com situações de simulação de negócios jurídicos e postulando que todo o negócio
jurídico que não passe no “teste da substância” será nulo, um pouco à semelhança do que se passa no
direito civil quanto a negócios simulados (cfr. art.ºs 38.º e 39.º da LGT). Em paralelo, surgem uma panóplia
de cláusulas específicas, cirurgicamente pensadas para determinadas situações especiais, espalhadas
nos vários “códigos tributários” e a propósito de variadíssimas situações. Esta situação de
“especialização” faz com que a cláusula geral seja de aplicação prática bastante reduzida, uma vez que
temos um postulado geral no Direito segundo o qual “norma especial derroga a geral”.
Quanto às cláusulas anti-abuso específicas presentes no Código do Imposto Sobre o Rendimento das
Pessoas Colectivas (CIRC), interessa referir que a aplicação das medidas aí previstas extravasa o âmbito
do próprio CIRC, pois estas aplicam-se também quanto a contribuintes singulares, entidades isentas ou
até mesmo entidades sujeitas a regimes especiais. Assim, os actuais art.ºs 63.º a 67.º do CIRC
(anteriores art.ºs 58.º a 61.º) consagram entre nós os preços de transferência (art.º 63.º),
subcapitalização (art.º 67.º) e, finalmente, os chamados regimes de imputação e de não dedutibilidade
fiscal (art.ºs 65.º e 66.º).(2)
No que respeita aos preços de transferência, o n.º 1 do art.º 63.º do CIRC prevê que “nas operações
comerciais, incluindo designadamente, operações ou séries de operações sobre bens, direitos ou
serviços, bem como nas operações financeiras efectuadas entre um sujeito passivo e qualquer outra
entidade, sujeita ou não a IRC, com a qual esteja em situação de relações especiais, devem ser
contratados, aceites e praticados termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente
seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis”,
pelo que verificamos que a rácio será evitar a elisão fiscal internacional – conseguida através da
simulação ou da prática de preços demasiadamente altos ou excessivamente baixos entre entidades que
se enquadrem na situação de relações especiais (cfr. elenco exemplificativo bastante amplo presente no
n.º 4 do art.º 63.º do CIRS) – através do controlo do abuso de liberdade na contratação do preço quando a
fixação dos preços para as transacções em causa ocorram entre entidades relacionadas, presumindo-se
iuris tantum (ou seja, de forma ilidível; afastável mediante prova em contrário) o exercício de influência
significativa.
No fundo, exige-se que entre entidades que se enquadrem no conceito de “relações especiais” sejam
praticados preços justos, de acordo com o critério da independência ou da plena concorrência. (3) Em
virtude da pouca fiabilidade na concretização de tais critérios, a letra do art.º 63.º do CIRC indica-nos um
conjunto de métodos transaccionais e não transaccionais para ajudar na determinação desse preço.
Uma outra nota importante é que, com vista ao afastamento (ilisão) da presunção de abuso nos preços
transaccionados entre entidades relacionadas, o ónus da prova que impende sobre esses sujeitos
passivos de imposto é bastante oneroso, pois o peso das obrigações acessórias daí decorrentes (cfr. art.º
63.º, n.º 6 e seguintes) será bastante significativo e trará custos de cumprimento bastante elevados;
enquanto se poupam custos e esforços ao Estado, sobrecarregam-se as empresas que gastam grande
parte das suas verbas, recursos humanos e materiais no cumprimento das obrigações acessórias
exigidas por lei, ao serviço da Administração Fiscal. Não obstante tais problemas, o preenchimento do
ónus (através do cumprimento de determinadas obrigações acessórias) será vital no sentido de afastar a
ideia de abuso que redundará nas já referenciadas correcções à matéria tributável, com o agravamento
do imposto a pagar. Poderão, por isso, os contribuintes conseguir provar que existiram, no caso concreto,
razões substantivas que levaram à aplicação de determinado preço considerado anormal, facto que nos
força a concluir que o regime do art.º 63.º do CIRC não será de aplicação automática.
No âmbito do cumprimento das obrigações acessórias referenciadas no contexto dos preços de
transferência destaca-se a obrigatoriedade de elaboração de um dossier fiscal sobre preços de
transferência (cfr. art.ºs 13.º a 16.º da Portaria 1446-C/2001, de 21 de Dezembro). Assim, do processo de
documentação fiscal (exigido pelo próprio CIRC) terá de constar este dossier sobre preços de
transferência (obrigatório face a entidades que transaccionem entre si e que se subsumam à previsão de
“relações especiais”), contendo tal dossier detalhes acerca do negócio da empresa, desde a política de
preços, a margem de lucro obtida com a transacção dos produtos, a identificação de clientes e
fornecedores mais habituais, alguns detalhes quanto ao processo produtivo, etc.
Existindo tal documentação e estando os dados devidamente organizados, o contribuinte terá pretensas
divergências de preços detalhadas e eventualmente justificadas devidamente, revertendo para a
Administração Fiscal a tarefa de provar (inversão do ónus da prova) por que razão (quando seja caso
disso) pretende tributar de forma diferente daquela que decorreria dos elementos evidenciados na
documentação apresentada pelo contribuinte. Na eventualidade de, pelo contrário, não existir a dita
documentação organizada, a Administração Tributária poderá proceder a correcções à matéria
colectável (caso assim o entenda), nomeadamente emitindo liquidações adicionais, cabendo depois ao
sujeito passivo (caso discorde dessas correcções) a difícil prova de que não incorreu em situação de
abuso, com todas as consequências que daí poderão advir.
Finalmente, será também importante uma alusão à figura dos Acordos Prévios sobre Preços de
Transferência (APPT) ou, na terminologia da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Económico (OCDE), “Advance Pricing Arrangements” (APA). Esta realidade foi introduzida em Portugal
pelo actual art.º 138.º do CIRC (anterior art.º 128.º-A), aditado pela Lei 67-A/2007, de 31 de Dezembro,
com entrada em vigor no dia 01 de Janeiro de 2008. Configura-se esta “novidade” num dos primeiros
passos relativamente ao processo de mediação entre a Administração Tributária e o contribuinte
enquanto sujeito passivo de imposto.(4) No fundo, com estes acordos pretende negociar-se previamente
um conjunto de critérios, condições e requisitos a aplicar num determinado período de tempo
previamente fixado e, normalmente, não superior a 3 anos.(5)
(1) A distinção entre planeamento fiscal legítimo e abusivo é bastante ténue, dependendo muitas vezes da interpretação dada pela
Administração Tributária face às soluções que os contribuintes poderão adoptar. É neste contexto que aparecem as chamadas
medidas anti-abuso ou, na terminologia anglo-saxónica, anti-avoidance clauses.
(2) A nível internacional surgem cláusulas anti-abuso nas Convenções bilaterais sobre dupla tributação celebradas entre os Estados,
bem como em algumas directivas em matéria tributária, nomeadamente a Directiva do IVA.
(3) Para maiores desenvolvimentos, ANJOS AZEVEDO, Patrícia, "O princípio da transparência: entraves e algumas manifestações e
soluções práticas", in Os 10 anos de investigação do CIJE - Estudos Jurídico-Económicos, Almedina, 2010.
7
(4) Estes APPT poderão revestir a modalidade unilateral ou bilateral/multilateral, estando o procedimento aplicável e as obrigações que
lhes são subjacentes regulados na Portaria 620-A/2008, de 16 de Julho.
(5) Esta possibilidade mais não é do que uma medida preventiva no sentido de evitar litígios futuros, com ganhos em celeridade e
eficácia, conferindo-se maior certeza e segurança ao mercado e às relações das empresas com o Fisco, pois há a possibilidade de
dotar de maior previsibilidade o regime das operações internacionais. Tais acordos são obrigatoriamente publicitados, apesar de não
serem desprovidos de algumas desvantagens, nomeadamente os elevados custos que poderão implicar e a necessidade de uma
actuação proactiva por parte da Administração Fiscal que muitas vezes não ocorre por falta de tradição e/ou da devida preparação.
A (in)transmissibilidade da responsabilidade contra-ordenacional na reversão do processo de
execução fiscal
HÉLDER FERNANDES PEREIRA
(Advogado-Estagiário)
A relação jurídica tributária estrutura-se do seu ponto de vista subjectivo como uma relação complexa.
Isto porque, a mesma nem sempre se reconduz ao esquema sujeito activo – sujeito passivo, existido
situações em que terceiros se assumem face à norma tributária como sujeitos da relação.
Por sujeito passivo entende-se toda a pessoa ou entidade que está adstrita ao cumprimento de
obrigações tributárias, sendo que esta figura pode ser dividida em duas categorias, a de sujeito passivo
directo ou originário e a de sujeito passivo indirecto ou não originário.
Sujeito passivo directo é aquele que tem uma relação pessoal ou directa com o facto tributário, aquele
relativamente ao qual se verifica a presunção de benefício. O sujeito passivo indirecto é aquele que sem
ter uma relação directa com o facto tributário, é ainda chamado ao cumprimento de obrigações tributárias.
São os substitutos tributários, os sucessores tributários, e os responsáveis tributários pelas dívidas de
outrem. O paradigma da responsabilidade tributária por dívidas de outrem encontra-se previsto no artigo
24º n.º 1 alíneas a) e b) da LGT, e diz respeito à responsabilidade subsidiária dos gerentes e
administradores relativamente à pessoa colectiva ou entes equiparados onde exerçam ou tenha exercido
tais funções.
Esta figura verifica-se, quando alguém, por força da lei, é chamado subsidiariamente ao pagamento de
dívidas tributárias de outra pessoa ou entidade (devedor originário), por insuficiência do património desta.
Assim, após preclusão do prazo de pagamento voluntário da divida tributária, o devedor originário fica
sujeito a um processo de execução fiscal.
Se nesta fase se verificar a insuficiência de património do devedor originário, o processo de execução
fiscal passa a correr contra o responsável subsidiário, através da emissão do acto administrativo de
reversão.
Coloca-se a questão de saber se esta responsabilidade subsidiária pode ser extensível às dívidas,
relativas a coimas e multas imputáveis ao devedor originário nos termos do RGIT.
Estatui o artigo 8º n.º 1 do RGIT que “Os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda
que somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, ainda que
irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são subsidiariamente
responsáveis:
a) Pelas multas ou coimas aplicadas a infracções por factos praticados no período do exercício do
seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da
sociedade ou pessoa colectiva se tornou insuficiente para o seu pagamento;
b) Pelas multas ou coimas devidas por factos anteriores quando a decisão definitiva que as aplicar
for notificada durante o período do exercício do seu cargo e seja imputável a falta de
pagamento.”
Ora, parece a lei prever taxativamente a transmissibilidade da responsabilidade contra-ordenacional do
devedor originário para o responsável subsidiário, nos mesmos termos das demais dívidas tributárias.
No entanto, a doutrina e a jurisprudência recente do STA têm caminhado no sentido inverso ao da norma
citada.
Utilizam como argumentos de base o princípio da intransmissibilidade das penas, previsto no artigo 30º
n.º 2 da CRP, e o princípio da presunção de inocência, previsto no artigo 30º n.º 3 da CRP.
De facto, o princípio da intransmissibilidade das penas, embora previsto apenas para estas, deve aplicarse a qualquer outro tipo de sanções, de forma a harmonizar as finalidades que justificam a aplicação de
sanções, que são a prevenção geral e especial.
A aplicação de sanções tem por isso como finalidades, por um lado a reintegração da norma
sancionadora no ordenamento jurídico e por outro lado, uma intenção ressocializadora.
Portanto, a aplicação de sanções a quem não pode ser imputada responsabilidade pela prática da
infracção não prossegue nem satisfaz as finalidades que a previsão de sanções tem em vista.
Além disso, o artigo 30º n.º 10 da CRP, assegura ainda ao arguido os direitos de audiência e defesa, os
quais pela própria natureza do processo de execução fiscal, não são devidamente conferidos ao
revertido.
Conclui-se em face do exposto, que a transmissão para o responsável tributário, das dívidas relativas a
coimas e multas imputáveis ao devedor originário, através da reversão do processo de execução fiscal, é
materialmente inconstitucional.
Todavia, o TC, através de um acórdão proferido em Março de 2009, veio introduzir uma nova
interpretação ao artigo 8º do RGIT, deslocando a base do problema dos princípios do direito penal, para
ao âmbito do direito civil, não prevendo qualquer transmissão de responsabilidade contra-ordenacional
do devedor originário para o responsável subsidiário.
O que o artigo contempla é uma modalidade de responsabilidade civil dos administradores e gerentes
(responsáveis subsidiários), que resulta do facto culposo de terem colocado a empresa (devedor
originário) numa situação de insuficiência patrimonial, para proceder ao pagamento da coima ou da
multa.
Impõe aquele normativo um dever de indemnizar em virtude de um facto ilícito e culposo praticado pelo
gerente ou administrador, que teve como consequência um dano para a Administração Tributária, que
consiste na perda de receita em virtude do não pagamento da coima ou da multa.
Neste sentido, a correspondência entre o valor da coima ou da multa e o valor da indemnização
representa somente o dano sofrido pela Administração tributária e que ao lesante cabe reparar.
Esta responsabilidade subsidiária do Administrador ou gerente não assenta, por isso, na própria
infracção tributária, mas num facto autónomo, que se traduz num facto danoso para a Administração
tributária.
E é precisamente esse facto autónomo, ilícito, culposo e imputável ao responsável subsidiário que origina
a responsabilidade civil e o consequente dever de indemnizar.
Nestes termos, é seguro que a transmissibilidade da responsabilidade contra-ordenacional através da
reversão do processo de execução fiscal está ferida de inconstitucionalidade. Não obstante, a
responsabilização do devedor subsidiário pelo valor de coimas e multas imputáveis ao devedor originário
nos termos do artigo 8º do RGIT, efectua-se através do instituto da responsabilidade civil, pelo que, o
preceito, de acordo com o TC, encontra-se em plena conformidade com a CRP.
Avenida 25 de Abril, nº 50, 2º Esq. | 4760-101 V. N. Famalicão | Telefone 252 316 539 | Fax 252 322 392
http://www.durvalferreira-advogados.com/

Documentos relacionados