desafios históricos e contemporâneos das igrejas na

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desafios históricos e contemporâneos das igrejas na
DESAFIOS HISTÓRICOS E CONTEMPORÂNEOS
DAS IGREJAS NA AMÉRICA LATINA
FRENTE À DIVERSIDADE CULTURAL1
Paulo Suess
[email protected]
O Brasil é uma “democracia racial” como é uma "democracia política". Ambas as
democracias favorecem desigualdades pela origem étnica e o lugar social do nascimento.
Ser índio, negro ou branco determina as oportunidades sociais no país. Nesta constelação,
fronteiras étnico-culturais são, ao mesmo tempo, fronteiras de desigualdade e exclusão
social. Fronteiras étnico-culturais não são, necessariamente, fronteiras de exclusão.
Podem também marcar - como certos condomínios ou bairros da classe A – espaços
privilegiados da classe dominante. As fronteiras sociais não são naturais, nem fatais. São
historicamente construídas, a partir de interesses econômicos e ideológicos. Onde as
fronteiras sociais são conjugadas com as fronteiras étnico-culturais, podem ser
indicadores de etnocentrismo e racismo. A classe socio-politicamente dominante,
geralmente, considera-se a "raça superior".
O presente texto busca trabalhar a questão da diversidade cultural a partir da
"comunidade de argumentação" eclesial latino-americana. Em sua primeira parte são
apresentados oito cenários que, com suas rápidas mudanças, se assemelham ao roteiro de
um documentário cinematográfico. O "roteiro" articula o não-contemporâneo com o
1
Seminário Nacional: Fronteiras étnico-culturais e fronteiras da exclusão. O desafio da interculturalidade e
da equidade. Tema: A etnicidade no contexto de uma sociedade intercultural, Campo Grande/MS,
Universidade Católica Dom Bosco, 16 a 19 de setembro de 2002. O texto foi apresentado na Mesa:
“Diversidade cultural no Brasil”, no dia 17.9.2002.
contemporâneo e permite o livre trânsito (transdisciplinaridade!) entre filosofia e história,
entre antropologia e teologia, entre arte cinematográfica e poesia. Na segunda parte,
procura-se em cinco passos traçar perspectivas que permitem à já mencionada
"comunidade de argumentação", as igrejas, assumir a diversidade cultural como parte
integrante de sua identidade.
I. Cenários
Cenário 1: Jardim Itápolis
Na frente do Museu da Independência, em São Paulo, passa, de quinze em quinze
minutos, um ônibus que é um lembrete da diversidade cultural da cidade e do país, e isso
não pela diversidade dos passageiros, mas pelo shiboleth na sua testa: “Jardim Itápolis”.
“Jardim” lembra a herança portuguesa do país; “itá”, em guarani, significa “pedra” e
aponta para a herança indígena, e “pólis” representa o berço da civilização ocidental em
Atenas. “Jardim Itápolis": "Jardim Cidade de Pedra”. Os nomes das ruas de São Paulo, as
estações de metrô, as estátuas e, sobretudo, as pessoas – tudo está prenhe de diversidade
cultural e religiosa, prenhe do prazer e das tensões da diversidade em nível real e
simbólico.
Nas ruas paulistanas, estátuas de Anchieta e de Anhangüera2 disputam a atenção dos
transeuntes. A Grande São Paulo é atravessada por uma "Via Anchieta", por uma "Via
dos Bandeirantes" e uma "Raposo Tavares", lembrando o chamado "ciclo de caça ao
índio". O povo herdou a alquimia de sua sobrevivência dos índios colonizados,
homenageia seus anjos da guarda e respeita seus demônios porque sabe como pode ser
útil acender uma vela a Deus e outra ao diabo. O embate do bem contra o mal – tantas
vezes invocado nos autos de Anchieta e recentemente nos discursos pseudo-messiânicos
contra o terrorismo –, o povo o enfrenta nas ruas, onde a violência real supera a
imaginação alegórica dos missionários quinhentistas.
Cenário 2: Atenas explica
2
Anhangüera significa Diabo Velho, nome dado pelos índios ao bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva.
2
Os
missionários
quinhentistas
chegaram
às
Américas
despreparados
para
o
reconhecimento da alteridade, ou melhor, chegaram teologicamente preparados para o
não-reconhecimento do outro. A questão do reconhecimento da “diversidade cultural”
estava hipotecada pelo tratamento filosófico que a questão da unidade e multiplicidade
historicamente recebeu. Em toda idade média - e a teologia dominante da conquista era
medieval -, o valor da unidade e multiplicidade estava marcada pelo pensamento
metafísico, com sua origem na Academia da pólis na Grécia.3
Desde Constantino que transformou o cristianismo marginal do Império Romano em
religião oficial, a Igreja assume progressivamente estruturas imperiais. Suporte
ideológico para esta transformação forneceu o pensamento metafísico que tem as suas
raízes em Platão: como o unum representa o totum, assim a ponta da pirâmide
administrativa representaria o essencial de todo o corpo social da Igreja. O que pôde
parecer uma certa historização do pensamento metafísico-transcendental, de fato foi uma
espécie de alegorização e mitificação dos mistérios da fé na história.
Um exemplo para esta mitificação alegorizante: Assim como para o povo yanomami, no
norte do Brasil e na Venezuela, a casa representa a sua cosmologia mitológica, as
estruturas sociais da Igreja representariam o universo metafísico de sua cosmologia
religiosa. Esta Igreja, representante do unum, do uno metafísico e histórico, se entendeu
como sujeito do poder espiritual e temporal.
Seguindo os precedentes políticos, Agostinho (354-430) e seus seguidores se apropriaram
das especulações metafísicas de Platão (427-347 a.C.) até Plotino (205-270), pensamento
esse que reduziu a realidade a uma origem e/ou substância: unum est totum (o Uno é o
Todo). Hoje diríamos, os teólogos inculturaram a teologia na filosofia de Atenas e os
canonistas inculturaram a administração eclesial nas práticas administrativas do Império
Romano. Se o Uno é o Todo, o múltiplo carrega em si deficiências do “ser” e da
“substância”. O múltiplo representa a depravação do uno.
A doutrina da origem única desqualificou a diversidade dos caminhos como desvios.
Portanto, os missionários consideravam o passado dos povos autóctones não só
irrelevante para a história de sua salvação; o consideravam um estorvo para a transmissão
3
Cf. J. Habermas, La unidad de la razón en la multiplicidad de sus voces, in IDEM, Pensamiento
postmetafísico. Madrid: Taurus, 1990. Orignialmente („Die Einheit der Vernunft in der Vielfalt ihrer
Stimmen“) in: J. Habermas, Nachmetaphysisches Denken. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 153-186.
3
da "verdadeira religião". Para os catequistas da conquista e sua teologia ainda inspirada
pelo neoplatonismo e a relativa unidade do mundo medieval, o plural das vozes e dos
modos de ser encontrados nas Américas representava um afastamento da verdade única e
padronizada nas experiências históricas e expressões culturais da Europa.
Cenário 3: Os encontros de Porto Seguro e a mesmice
Se a multiplicidade é viciada por deficiências do ser, também a alteridade é impregnada
por uma falta substancial. Os missionários compreenderam, por conseguinte, seu trabalho
como redução da multiplicidade e como incorporação na própria identidade. Fazer do
outro alguém que é semelhante ou igual ao pregador europeu parecia uma proposta
generosa. A primeira Missa celebrada por Frei Henrique de Coimbra na Terra da Santa
Cruz, reflete este pensamento mimético, nas palavras do cronista Pero Vaz de Caminha
que destaca os índios como aqueles que fazem tudo como nós:
"Ali estiveram conosco, assistindo a Missa, perto de cinqüenta ou sessenta índios,
assentados todos de joelhos, assim como nós. E quando se chegou ao Evangelho,
ao nos erguermos todos em pé com as mãos levantadas, eles se levantaram
conosco e alçaram as mãos, estando assim até se chegar ao fim; e então tornaram
a assentar-se, como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de
joelhos, eles se puseram todos assim como nós estávamos."4
Ao concluir a descrição do evento de Porto Seguro, Pero Vaz resume: "E segundo o que a
mim e a todos pareceu, esta gente, não lhes falece outra coisa para ser toda cristã do que
nos entenderem, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer como nós mesmos."5
Procuraram evitar o pior, o encontro, 500 anos mais tarde, 22 de abril de 2000. A Polícia
Militar baiana tentou impedir a marcha dos povos indígenas e dos seus aliados do
movimento popular de Porto Seguro a Coroa Vermelha. Os índios que se recusaram a
fazer tudo como nós, foram violentamente reprimidos, com bombas de efeito moral,
numa operação militar sem precedente. Algumas cenas daqueles dias jamais
esqueceremos: Gildo Terena tentando impedir a repressão contra os índios, colocando-se
de joelhos em frente à tropa de choque; um grupo Kayapó, rasgando as roupas que
4
5
S. CASTRO (ed.), A carta de Pero Vaz de Caminha. Porto Alegre: L&PM, 1985, p. 95.
Ibidem, p. 96.
4
vestiam, num grito de revolta contra a humilhação; Matalawé (Jerri Adriani dos Santos),
Pataxó sobrevivente da região, no dia 26 de abril, interrompe a missa oficial de
comemoração do descobrimento da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil com um
pronunciamento contundente:
"Hoje é um dia que poderia ser um dia de alegria para todos nós. (...) Onde vocês
estão pisando vocês têm que ter respeito porque essa terra pertence a nós. (...)
quinhentos anos de sofrimento, de massacre, de exclusão, de preconceito, de
exploração, de extermínio de nossos parentes, aculturamento, estupro de nossas
mulheres, devastação de nossas terras, de nossas matas que nos tomaram com a
invasão. (...) Estamos de luto. Até quando?"6
Porto Seguro 2000: massacraram o encontro e substituíram a festa por seu simulacro.
Mesmo indo a pique a bordo de um navio com mastro quebrado, levantam as suas taças
com cachaça e sangue, dando vivas à morte dos índios sem terra. Apenas uma réplica.
Mesmice, nada original.
Cenário 4: Confusão babilônica
A diversidade lingüística encontrada nas Américas, os missionários quinhentistas a
comparavam, muitas vezes, com a confusão babilônica. O padre José de Acosta (15401600), primeiro provincial dos jesuítas no Peru, por exemplo, constata em seu tratado De
procuranda indorum salute (1576) com uma certa resignação: "Dizem que em outros
tempos com 72 línguas entrou a confusão no gênero humano; mas estes bárbaros têm
mais de 700 línguas (...)".7
Também o padre Antônio Vieira (1608-1687), em seu Sermão da Epifania, aponta entre
as dificuldades para a catequese dos índios a questão lingüística. "Na antiga Babel houve
setenta e duas línguas; na Babel do rio das Amazonas já se conhecem mais de cento e
cinqüenta, tão diversas entre si como a nossa e a grega; e assim, quando lá chegamos,
todos nós somos mudos e todos eles surdos".8
6
Cf. Porantim XXII/225 (Maio 2000): 18.
. J. de ACOSTA, De procuranda indorum salute. In: Obras del padre José de Acosta. Madrid: Atlas
(B.A.E. 73), 1954, p. 399 (liv. 1, cap. 2).
8
A. VIEIRA, Sermão da Epifania (1662). In: Sermões. Porto: Lello & Irmão, 1959, p. 24 (vol. 1, tomo 2,
I/4).
7
5
A redução da diversidade é uma luta antibabélica. A redução ao Uno era interpretada
como a “recapitulação” em Jesus Cristo, da qual São Paulo fala. Salvação significava,
portanto, reverter a confusão e dispersão de Babel. Frente às exigências de uma origem e
de um caminho único e frente à diversidade cultural dos povos autóctones das Américas,
os termos "tutela" e "redução" se tornaram palavras chave da "conquista espiritual".
A "tutela" - o cuidado com as ovelhas perdidas no mundo! - foi praticada ou na forma
branda do paternalismo de um Frei Mendieta para quem os seus confrades franciscanos
são os "pais desta mísera nação"9 de índios; ou na forma mais severa de Juan de
Zumárraga, inquisidor e primeiro bispo do México, admoestado pela rainha, em carta de
26 de junho de 1536, para moderar a sua maneira de castigar os neófitos.
O termo "redução" podia significar redução da pluralidade cultural e religiosa aos
padrões europeus em "doutrinas" mais ou menos abertas ou em "missões" fechadas;
podia significar redução da "margem da humanidade" ao centro e redução da
complexidade social entre conquistados e conquistadores no interior de uma cristandade
única. A "redução" como experiência missionária não transformava uma multiplicidade
arbitrária em diversidade articulada; não gerava, em reposta a uma suposta confusão
babilônica, um novo pentecostes. Gerava, sim um abrigo contra "excessos" de violência
estrutural ("sistema colonial") ou individual, pago com a perda da liberdade e da
diversidade dos povos indígenas.
Cenário 5: Mundo às avessas
Ao atravessar o Equador com 44 companheiros, no dia 22 de fevereiro de 1691, o jesuíta
Antônio Sepp anota em sua carta-diário “Viagem às missões jesuíticas e trabalhos
apostólicos”10: “Costuma-se mudar tudo sobre o equador. A água apodrece, a carne fica
fedorenta, morrem percevejos, pulgas e outra bicharia.” A agulha magnética da bússola,
porém, não se desloca. Ela continua apontando
9
Carta del padre Fray Gerónimo de Mendieta (1562). In: J. GARCÍA ICAZBALCETA, Coleccion de
documentos para la historia de México. Vol. 2, México: Porrúa, 1980, p. 522. - Tb. integralmente em port.
in: P. SUESS, A conquista espiritual da América Espanhola. 200 documentos – século XVI. Petrópolis:
Vozes, 1992, p. 884-903, aqui 889 (Doc. 184).
10
A. SEPP, Viagem às missões jesuíticas e trabalhos apostólicos. Belo Horizonte/São Paulo:
Itatiaia/EDUSP, 1980, p. 73, 82, 85.
6
“fiel e exatamente para a Estrela Polar. A diferença está toda em nós mesmos, que
precisamos modificar nosso conceito. Quando é meio-dia na Europa, é meia-noite
aqui entre nós. (...) O vento norte gélido da Europa é aqui bem morno. Tudo às
avessas. (...) Em dezembro e janeiro, quando na Europa tudo gela, comemos figos
e colhemos lírios. Numa palavra, tudo aqui é diferente, e está a cunhar a
expressão, chamando a América de ‘mundo às avessas’. (...) No dia 28 de
fevereiro entramos para o jejum quaresmal, aliás de acordo com o calendário, e
não com a realidade.”
Como organizar calendários supostamente universais de acordo com a realidade, ao
mesmo tempo cosmológica e local? Como aprender que o “mundo às avessas” é um
mundo culturalmente diferente que participa de um universalismo moral com toda a
humanidade (Kant)? Como transformar o imaginário do visitante para que caiba nele o
“bárbaro” como outro e o outro como irmão? Como potencializar a sabedoria dos
contextos para que o mundo globalizado não ameace a sua identidade, mas fortaleça suas
raízes e amplie seus horizontes? Não se trata aqui de uma oposição entre “tradicional” e
“moderno”, mas entre alteridade hegemônica com fantasias de universalidade e alteridade
cooperativa que tem consciência dos seus limites regionais. A ideologia dominante, hoje
é contestada por causas que lutam contra o monopólio e a hegemonia, como o feminismo,
o comunitarismo e o pos-modernismo, as lutas indígenas e afro-americanas, as causas das
minorias étnicas e das maiorias sociais marginalizadas ou excluídas.
Cenário 6: Inocência perdida
O que o jesuíta André João Antonil escreveu no início do século XVIII, ainda hoje
encontra seus reflexos no espelho da realidade. Existem três Brasis, escreve Antonil: O
Brasil inferno, o Brasil purgatório e o Brasil paraíso. Estes três Brasis são povoados e
dominados, leiloados e repartidos segundo a cor e a origem cultural dos seus habitantes.
Escreve o jesuíta italiano em Cultura e opulência do Brasil (1711): “O Brasil é inferno
dos negros, purgatório dos brancos e paraíso dos mulatos e das mulatas”.11 O religioso,
ainda muito distante de uma “Pedagogia dos Oprimidos” de Paulo Freire, nos deixou
também outras palavras de efeito, como por exemplo: “Para o escravo são necessários
11
A. J. ANTONIL, Cultura e opulência do Brasil (1711). Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/USP, 1982, p.
90 (livro I, cap. 9).
7
três PPP, a saber, pau, pão e pano”.12 Sem entrar no mérito da questão de quem estaria
mais perto do purgatório, do inferno ou do paraíso, pode-se afirmar que, desde a
conquista do Brasil, a diversidade cultural perdeu a sua inocência paradisíaca. Ser índio,
negro ou branco não só determina as oportunidades sociais no país, mas também - pelo
menos pela leitura que nosso teólogo de colonização faz - as chances de - salvação. A
luta social acoplada à diversidade cultural está na cara do povo e nas ruas de cada cidade.
Mas, também os apologetas dos 500 anos como apologetas da "salvação possível"
perderam a sua inocência. A partir de sua convivência com os Tupinambá, Anchieta tinha
boas condições de conhecê-los em sua originalidade. Conhecer, no paradigma ocidental,
significa "objetivar". Anchieta tinha - assim os apologetas - poucas possibilidades de
reconhecê-los em sua alteridade subjetiva. A teologia colonial dissocia o conhecimento
do reconhecimento. É claro, não podemos cobrar-lhe leituras antropológicas e chaves
hermenêuticas do século XXI. Mas, em todas as épocas encontramos pessoas que
romperam com o cerco etnocêntrico de tradições, na respectiva época, culturalmente
corretas. A consciência quinhentista possível encontramos, por exemplo, na consciência
leiga de Montaigne e Gil Vicente.13
Cenário 7: Exclusividade do poder
Os missionários que atuavam na microestrutura tentavam reproduzir a constelação do uno
que representa o todo. Em nome da "salvação integral" lutavam pelo poder total,
chamado policía mixta14 (poder temporal e espiritual) e pela reconstrução do mundo no
singular. "Pois esta gente (os índios) é tão mísera e baixa que, se não tem com eles toda
autoridade, não tem nenhuma", escreve Gerónimo de Mendieta a Francisco de
Bustamante, comissário geral dos franciscanos nas Índias.15 E Antônio Vieira lamentou
um século mais tarde: "Querem que tragamos os gentios à fé, e que os entreguemos à
cobiça; querem que tragamos as ovelhas ao rebanho, e que as entreguemos ao cutelo".
12
Ibidem, p. 91.
Cf. P. SUESS, José de Anchieta – Enigma e paradigma frente à alteridade tupinambá. In: Actas do
Congresso Internacional Anchieta em Coimbra - Colégio das Artes da Universidade, tomo III, Porto:
Fundação Eng. António Almeida, 2000, p. 1119-1132.
14
. Cf. V. de QUIROGA, Información en derecho (1535). México: Secretaría de Educación Pública, 1985,
p. 175s.
15
. Carta del padre Fray Gerónimo de Mendieta, l.c., p. 519. – Tb. P. SUESS, A conquista espiritual, l.c.
887.
13
8
Como se pode ver, os motivos para a reivindicação do poder espiritual e temporal pelos
religiosos eram nobres: proteção dos índios da cobiça do conquistador e colonizador.
Vieira resume em seguida a ideologia da cristandade em poucas palavras:
"Acabe de entender Portugal que não pode haver cristandade nem cristandades
nas conquistas, sem os ministros do Evangelho terem abertos e livres estes dois
caminhos, que hoje lhes mostrou Cristo. Um caminho para trazerem os Magos à
adoração, e outro para os livrarem da perseguição: um caminho para trazerem os
gentios à fé, outro para os livrarem da tirania: um caminho para lhes salvarem as
almas, outro para lhes libertarem os corpos. Neste segundo caminho está toda a
dúvida, porque nele consiste toda a tentação. Querem que aos ministros do
Evangelho pertença só a cura das almas, e que a servidão e cativeiro dos corpos
seja dos ministros do Estado. (...) Querer dividir estes caminhos e estes cuidados,
é querer que não haja cuidado, nem haja caminho. Ainda que um destes caminhos
pareça só espiritual, e o outro temporal, ambos pertencem à Igreja e às chaves de
S. Pedro, porque por um abrem-se as portas do céu, e por outro fecham-se as do
inferno. (...) Que importa que Pedro tenha chaves das portas do céu, se
prevalecerem contra ele e contra a Igreja as portas do inferno? Isto não é fundar
nova Igreja, é destruí-la em seus próprios fundamentos."16
Em certas circunstâncias históricas poder-se-ia delegar o poder ao braço secular; nunca,
porém, poder-se-ia repartir este poder com o Estado, com os conquistados ou com os
quadros subordinados da própria Igreja, representados, aos olhos da hierarquia nascente,
pelos religiosos.
Os religiosos, por sua vez, alegavam, perante os bispos, o direito do primogênito das
Américas e o poder de privilégios papais bem circunscritos no Breve Exponi nobis, de
1522, logo chamado de "bula Omnimoda".17 A reconstrução de um mundo no singular
com uma origem única exclui também a possibilidade da repartição do poder no interior
da Igreja. Na cristandade, a reivindicação de “participação interna” na Igreja – que
configuraria uma espécie de democracia - é suspeita como "poder paralelo" e desrespeito
da ordem divina.
16
. A. VIEIRA, Sermão da Epifania, l.c. p. 32s.
. Cf. P. TORRES, La bula Omnimoda de Adriano VI. Madrid: Instituto Santo Toribio de
Mogrovejo/C.S.I.C. (Bibl. "Missionalia Hispanica"), 1948. O breve Exponi nobis, mais conhecido como
"bula Omnimoda", concedeu extraordinários poderes espirituais às ordens mendicantes, poderes que logo
causaram conflitos com os respectivos prelados. - Texto integral em port. in: P. SUESS, A conquista
espiritual da América Espanhola, l.c. p. 256-258 (Doc. 36).
17
9
Cenário 8: Desaparecidos, não esquecidos
Hoje, os interlocutores principais de Anchieta, Vieira e Antonil são "outros"
desaparecidos, e lembram o pecado histórico das missões, a redução da diversidade. Falar
da diversidade cultural no Brasil significa falar de desaparecimentos, de exclusão e
redução, de mestiçagem e sincretismo e de luta contra o esquecimento. A memória dos
desaparecidos pode-se tratar na arqueologia, na história, na antropologia ou na teologia.
A invocação desta memória dos desaparecidos pode significar: chegou
a “hora da
verdade”, verdade no sentido original de não-esquecimento e memória.
O rio Lete (ληθη), na mitologia grega, é o rio que atravessa o reino dos mortos. Quem
bebe de suas águas perde a memória de si mesmo. Portanto, “a-lete” – αληθεια (aletheia) que significa no grego, na língua do Novo Testamento, verdade - é “nãoesquecimento” e memória. E essa memória pode significar lembrança e saudade, mas
também indignação que visa à ruptura com a barbárie contemporânea.
A comemoração, como vimos, pode ser uma maneira sofisticada de reprimir a memória
histórica e de fazer esquecer. O culturalmente correto e lembrado, as respectivas ondas de
uma época, o padrão de santidade que serve, em correspondência com determinadas
prioridades políticas e espirituais de um pontificado, para as canonizações, e o
mainstream da ciência são afluentes do rio Lete. O que não foi publicado em inglês, de
cinco anos para cá e em determinadas revistas de renome, recebe o carimbo do forget it.18
Mártires e hereges, pobres e excluídos, outros e minorias que são a memória
evangelicamente significativa de sua época, questionam a conveniência política do forget
e delete.
II. Perspectivas
1. Modernidade, ilustração e secularização questionaram certas premissas metafísicas
(unum est totum) do trabalho missionário. Após um tempo vivido como nãocontemporaneidade ou exílio, a Igreja aderiu, através do Vaticano II, ao mundo moderno
e suas conquistas de igualdade, liberdade, solidariedade, de autodeterminação e
18
Cf. H. WEINRICH, Lete. Arte e crítica do esquecimento, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p.
293ss.
10
participação democrática. Os anos de ‘70 forjaram uma nova sensibilidade e lucidez
eclesial. O Cimi, a CPT e as CEB’s são reflexos desta nova sensibilidade sócio-cultural
no Brasil. As Igrejas descobriram que estão diante dos mesmos desafios como a maioria
da humanidade, diante da dialética do progresso ilustrado e contraditório, diante dos
desafios da pauperização, da migração, do racismo, das questões da terra e da ecologia,
do multiculturalismo e, desde a queda do muro de Berlim, em 1989, da hegemonia do
Império.
A partir da segunda metade do século XIX, a antropologia cunhou o conceito “cultura”
para descrever a experiência humana. Originalmente, a noção de cultura era aplicada no
singular, quase idêntica com o conceito de “civilização ocidental”. Hoje, o conceito
“culturas”, quase sempre usado no plural, nos permite observar e pensar positivamente a
diversidade das experiências humanas.
O conceito “cultura” modificou para uns e substituiu para outros o conceito “filhos e
filhas de Deus” vinculado a uma visão teológica monogenista que presumiu - na origem
de toda a humanidade - um casal perfeito, criado por Deus (Adão e Eva). O
monogenismo bíblico induziu a ler as diferenças humanas em chave de degeneração
(causada pelo pecado original) e rebeldia contra a lei de Deus, inscrita na natureza e na
ordem cosmológica imutável; em chave de perda (do estado de graça) e de castigo
(expulsão do paraíso e confusão babilônica), de desvios do caminho único traçado por
Deus na Igreja Católica (fiéis versus hereges e infiéis). A partir de uma visão mais ampla
e científica da evolução da vida, hoje prevalece na antropologia e na teologia a visão
monogenista, não a partir de um casal primordial perfeito, mas a partir de um ramo da
linha evolutiva da vida.
2. A reflexão sobre os legítimos protestos contra o pensamento unitário que exclui, sob o
ângulo da utilidade e da eficácia, a diversidade das vozes, a alteridade dos projetos e a
multiplicidade das experiências religiosas, não dispensa a reflexão sobre o resgate dos
legítimos anseios da universalidade de projetos de vida diferentes. Isso obriga a recorrer à
distinção entre uma universalidade hegemônica e uma universalidade articulada (agir
piramidal versus agir em rede). O contextualismo míope (“paroquialismo”, “tribalismo”,
“fundamentalismo”), incapaz de fazer convergir processos sociais e projetos de vida para
11
uma articulação maior que poderá configurar uma utopia partilhada, pode ser tão
destrutivo como o universalismo hegemônico. Frente ao projeto de Jesus de Nazaré –
Reino de Deus como “utopia partilhada” -, tanto a universalidade hegemônica como o
contextualismo míope configuram o anti-projeto e a tentação histórica de cada época.
3. No mundo pós-moderno e pós-metafísico de hoje, o antigo pensamento unitário e seu
substrato autoritário é denunciado como totalitarismo do “grande relato”. A Pax Romana
é, como a Pax Americana, uma forma peculiar de guerra que elimina as pequenas
histórias, despreza o saber local e esmaga os contextos. O sofrimento dos pobres e dos
outros apontam para o núcleo provincial da civilização ocidental e sua racionalidade
destrutiva. Quando esta racionalidade produziu uma civilização capitalista mundial que
coopta as culturas e corrompe a convivência através da redução de tudo ao “lucro logo
existo”, percebemos, definitivamente, que as corujas de Atenas – símbolos desta
racionalidade – são pássaros da noite, cegos, como a justiça que dá aos ocupantes de
terras indígenas todos os recursos sofisticados de protelação (cf. o Decreto 1775!),
enquanto despeja os índios de suas terras com “mandatos de insegurança”.
4. A herança de Israel lembra uma outra racionalidade e uma outra justiça. Para o Deus
da Bíblia lembrar – sobretudo lembrar-se dos pobres - é uma questão de verdade. Sua
palavra é verdade e sua verdade é não-esquecimento (a-letheia) e memória, não doutrina
ou letra morta. Ele não particulariza, nem privilegia; não exclui, nem esquece. Sua
universalidade cresce com sua proximidade que é "cognitiva" em sua memória,
"sensitiva" em seu olhar e em sua escuta, e "emocional" em sua compaixão. Razão,
religião e justiça sem compaixão são capazes de andar, não sobre as águas, mas sobre
cadáveres (“guerra santa”). Lembrar é a essência da "verdadeira religião". O cultivo da
memória é a melhor herança que os cristãos receberam de Israel.
A universalidade que tem a sua raíz na memória (verdade) universal de Deus não pode
ser uma universalidade hegemônica ou piramidal pregada pela “missão clássica”, na
perspectiva de incorporação, submissão ou triunfo da fé do “povo escolhido” sobre os
demais. A escolha do novo povo de Deus significa escolha da memória do Êxodo e do
Exílio para o serviço de um mundo sem êxodo e exílio, sem exclusão e sem hegemonia.
12
Já no Antigo Testamento surge a perspectiva profética que rompe com o exclusivismo
privilegiado do povo de Deus: “Não basta que sejas meu servo para restaurar as tribos de
Jacó e reconduzir os fugitivos de Israel. Vou fazer de ti a luz das nações para propagar
minha salvação até os confins do mundo” (Is 49,6). “Ser luz das nações” numa dimensão
de responsabilidade universal da fé não significa necessariamente uma universalidade
representativa que faz de Israel ou, mais tarde, dos cristãos os representantes da salvação
no mundo. “Ser luz das nações” aponta para uma universalidade participativa e
articulada.
Portanto, a universalidade da fé não exige a inclusão do outro, mas a sua não-exclusão.
Os profetas mostram que não é impossível viver na “vida falsa” do sistema que exclui,
uma “vida autêntica” (contra Adorno). Mas, a “vida autêntica” ainda não é a “vida
plena”. A reversão da exclusão não aponta para a vida heróica na “vida falsa” (depois da
inclusão), mas para rupturas sistêmicas através da articulação entre iguais com projetos
de vida (culturas) diferentes. Os acontecimentos de Porto Seguro representam uma destas
rupturas. Os povos indígenas romperam as molduras das imagens do indigenismo oficial
e pularam da parede do museu para o chão da história. Com suas reconquistas, mas
também com seu “comunitarismo” mexem, diariamente, com fronteiras étnico-culturais
impostas.
A própria leitura bíblica perde, através dos povos indígenas, seu autoritarismo
monocultural e ganha autoridade profética. Nesta perspectiva pode-se fazer a leitura de
Isaías à luz de Amós: “Ó filhos de Israel, disse Jahvé, não sois para mim como os
cuchitas (etíopes)? Se tirei Israel do Egito, não tirei também os filisteus de Cáftor e os
sírios de Quir” (Am 9,7)? Êxodo, exílio, libertação aqui não são privilégios de Israel, mas
experiências paradigmáticas ou arquetípicas de todos os povos oprimidos.19 O Deus de
Israel se inclina também a outros povos como, mais tarde, o Deus de Jesus de Nazaré.
Nesta nova compreensão da universalidade como articulação e não como representação
ou integração ao caminho único, a missão não é mais incorporação ao próprio, mas, a
partir do próprio, articulação de uma peregrinação macroecumênica ao monte de Javé. A
partir do Evangelho compreendemos a unidade como diversidade de núcleos de vida
19
Cf. M. Walzer, Zwei Arten des Universalismus. Babylon. Beiträge zur jüdischen Gegenwart, 7 (1990): 725, aqui 10.
13
articulados, relacionados e conectados na construção de um projeto de vida que inclui a
todos numa caminhada para o novo.
5. O cristianismo eurocêntrico e monocultural que se copulou, pelo preço da amnésia, no
vôo cego da coruja, hoje se junta ao vôo da gaivota que simboliza sua origem no Espírito
Santo. Pentecostes, onde todas as vozes convergem para um projeto – a unidade no
Espírito Santo -, representa a universalidade contextualizada e articulada entre razão,
lógica e memória locais com um projeto que prevê a partilha simétrica dos bens da terra e
as chances do futuro.
Hoje, uma das condições prévias da fraternidade é a recuperação da memória dos
esquecidos e a abolição da tutela sobre os excluídos, mesmo na forma sutil do porta-voz
dos sem-voz. A recuperação e articulação da multiplicidade das vozes dos oprimidos de
ontem é um ato de justiça para com os injustiçados e os excluídos da memória oficial e da
vida real de hoje. Os povos indígenas guardam na particularidade de seus projetos os
anseios de um mundo novo. Carregam em seus projetos de vida a memória de toda a
história. Vejo nos ciscos de esperança em seus olhos a promessa de um mundo novo para
todos.
Desenvolvimento e interculturalidade ? Notas para um debate.
Gilberto Azanha
Antropólogo – CTI
O que, talvez, se espere que eu diga aqui enquanto antropólogo, é se
existe a possibilidade, ao menos teórica, de se traçar uma política de
desenvolvimento que leve em conta a diversidade cultural. Ou posto em
outros termos: se é factível traçarmos parâmetros aceitáveis para políticas
públicas que não só contemplem as “fronteiras étnicos-culturais” mas que
não transformem estas fronteiras em “fronteiras de exclusão”. E ainda - já
que os sub-títulos do seminário apontam explicitamente – se isso é possível
que ela, além de respeitar a diversidade cultural, o faça com algum grau de
eqüidade.
14
Bem, os conceitos de “etnicidade”, “diversidade cultural” e “fronteiras
étnicas” são familiares aos antropólogos, que os construíram para tentar
explicar certos fatos sociais; porém quando se trata de juntá-los a conceitos
dúbios como “desenvolvimento” e “eqüidade” as questões envolvidas ficam
um pouco mais complexas, ao menos para mim. Pois como a perspectiva
teórica da antropologia é muito centrada no relativismo cultural (isto é,
assumimos em certa medida o ponto de vista dos grupos sociais ou
sociedades humanas com as quais trabalhamos), sempre corremos o risco de
frustar algumas expectativas. Por exemplo: se vamos levar em conta, no
desenho de uma política de desenvolvimento para o Mato Grosso do Sul, a
diversidade cultural aqui presente e se dermos a um antropólogo um cargo
onde sua visão tenha realmente peso nesse desenho – correremos o risco de
terminar formatando não uma política, mas a política para os Kaiowá, a
política para os Terena, para os Kadiwéu, para os Guató ou para os
quilombolas.
Ao contrário do antropólogo, o planejador público é generalista, por dever
de ofício: ele deve levar em conta no planejar um (in)certo equilíbrio de
forças (políticas) originadas ou conduzidas por grupos sociais (específicos
agora) considerados por ele como beneficiários da política de
desenvolvimento, política esta que implica sempre uma repartição dos
recursos (por definição escassos). Se o grupo político que detém o poder de
repartir for sério, pode utilizar alguns critérios aparentemente neutros para
efetuar tal repartição (como por exemplo, a densidade e o crescimento
demográfico da região, o estado dos equipamentos coletivos disponíveis, a
qualidade dos serviços públicos prestados etc.) para tentar atingir um certo
grau de equanimidade na repartição e distribuição os benefícios. Se o grupo
social no poder não for sério, ele fará da repartição dos recursos “uma ação
entre amigos”, privilegiando seus próprios grupos de interesse (seus
correligionários, como se diz por aqui).
Para um antropólogo sério, a questão das alternativas ou novos modelos de
desenvolvimento estará sempre centrada na imposição de políticas que
levem em conta os interesses dos grupos sociais com os quais trabalha. Ele
estará agindo como um planejador não-sério, no contexto do exemplo acima:
ele jamais buscará uma equidade. Como antropólogo dos Kaiowá, por
exemplo, não estou muito interessado em uma política para os índios em
geral (como o planejador generalista) mas sim no que, e em que, tal política
pode beneficiar as aldeias Kaiowá para as quais me sinto autorizado a me
15
colocar como interlocutor e vou agir, se espaço houver pata tanto, como um
lobista dos interesses daquelas aldeias. Ou seja, vou atuar para influenciar a
política tendo em conta o meu grupo de interesse. Não sou sério
então...como planejador, apesar de o ser enquanto antropólogo envolvido por
seu objeto de estudo.
Ocorre que, em um espaço político dado, diferenças culturais implicam em
fronteiras sociais, mais ou menos marcadas em função dos preconceitos
construídos por ambos os lados no processo de vivência “intercultural”,
pois, como diria Ruth Benedict “não há ninguém no mundo com uma visão
isenta de preconceitos. Vê-o sim, com o espírito condicionado por um
conjunto definido de costumes, e instituições e modos de pensar. Nem
mesmo nas suas concepções filosóficas ele consegue subtrair-se a esses
estereótipos; até seus conceitos do verdadeiro e do falso são ainda referidos
aos seus particulares costumes tradicionais”. A este sentimento, comum a
todos os povos e grupos sociais, a antropologia dá o nome de etnocentrismo.
Estamos, pois, nos referindo aos conceitos de cultura e de etnocentrismo e a conseqüência positiva deste
último conceito, que é o relativismo cultural. Este conceito diz respeito aos diferentes significados que os
grupos sociais dão para um mesmo elemento do mundo natural. Pode-se utilizar exemplos ligados a fatos
biológicos - como a menstruação, a gravidez, a concepção - que ocorrem em todas as sociedades humanas,
mas para o qual são atribuídos significados próprios a cada grupo. A diversidade cultural deve ser
explorada; isto é, a comparação sem julgamento de valor entre as formas que diferentes povos encontraram
para uma mesma questão permite que relativizemos a nossa própria forma e possamos desenvolver uma
postura mais aberta e de respeito as diferenças étnicas e culturais. Dado que toda “cultura é um código
simbólico construído socialmente, compartilhado por todos os membros do grupo social que a construiu”, é
possível então aprender modos novos, diferentes dos nossos, de ver o mundo e de dar significado às coisas.
Ou seja, a comunicação é possível entre culturas diversas. Enquanto integrado a um determinado grupo
social todo e qualquer indivíduo tende a tomar a sua própria cultura (significados, valores e regras) como
padrão para julgar todas as outras, concebendo-a inclusive como característica natural da sociedade
humana.
Entendo, dadas as premissas acima, a expressão interculturalidade como o
processo de comunicação entre culturas diferentes num mesmo espaço
político (estado-nação ou estado federado ou município etc.); ou sobre como
se efetuam as trocas de significados ou sentidos num ambiente onde os
interlocutores obedecem a códigos culturais diferentes. Trata-se de saber o
que passa e como se passa essa diferença. E o antropólogo é o especialista
nisso: é ele que, ao privilegiar o outro (e seu ponto de vista) por dever de
ofício e sendo ele próprio portador dos códigos de um dos lados, está
autorizado a agir como ponte ou correia de comunicação entre os dois lados.
Se o prefixo inter da culturalidade diz alguma coisa é sobre uma ponte que
pode ser lançada entre dois abismos, entre dois fossos ou duas “fronteiras”
16
cavadas historicamente por preconceitos de ambos os lados e que forjam
suas visões etnocêntricas; o prefixo não pode dizer nada sobre um
pretendido compartilhamento democrático de códigos, símbolos etc; mas diz
muito sobre as apropriações mútuas de bens culturais, processo este
responsável inclusive pelas mudanças verificadas nas diferentes culturas ao
longo da história.
Portanto, entendo que as fronteiras étnicas ou culturais são construções
sociais em constante e permanente renovação; ultrapassa-las ou anula-las
(mesmo em um sentido cheio de boas intenções politicamente corretas)
significa anular um dos lados, pois uma das visões será amputada no mesmo
movimento. Por outro lado, sempre é possível constatar que, do ponto de
vista do poder, um dos lados é o mais fraco e o lado mais forte pode – e a
história demonstra que o faz – usar seu poder para, senão excluir de todo,
minimizar os interesses do outro lado. Mas as boas intenções em voga das
chamadas “políticas de inclusão social” temo que só seriam bem sucedidas
se aplicadas exclusivamente em contextos de homogeneidade cultural, onde
as tais fronteiras fossem suspensas ou abolidas de todo.
Em suma e para finalizar: para os povos indígenas que se esforçam e têm se
esforçado ao longo do tempo em marcar sempre suas fronteiras étnicas e
culturais (como os Kaiowá, os Terena, os Kadiwéu, os Guató...), o que se
verifica é na verdade um processo de “auto-exclusão” cultural, apesar das
aparências. O que não quer dizer que não lutem por um espaço de poder
onde o reconhecimento das suas diferenças possa ser traduzido em respeito
às suas reivindicações por condições mais dignas de existência, refletidas,
quiçá, em políticas de desenvolvimento centradas em seus pontos de
vistas...e seus “preconceitos”.
Tabatinga, 18 de setembro de 2002
Diferenças étnicas e educação intercultural: a partir de que entendimento de
etnicidade?
Lúcio Kreutz
PPGed – UNISINOS
São Leopoldo – RS
17
Resumo
A temática das diferenças culturais e sua conjugação com o
processo educacional em perspectiva de interculturalidade está
tendo
presença
mais
freqüente
no
cenário
da
educação.Normalmente é apresentada de forma a sensibilizar
para a riqueza das diferenças étnicas, como expressão da
caminhada histórica dos diversos grupos, realçando-se os
aspectos positivos vinculados com a possibilidade de um
diálogo
intercultural.
E
a
escola,
tendo
desempenhado
historicamente uma função homogeneizadora, começa a ser
vista como um espaço favorável para se articular iniciativas na
perspectiva da interculturalidade. De fato, vejo que este pode
ser um caminho promissor. No entanto, é fundamental que nos
perguntemos sobre a concepção de etnicidade e de identidade
que se veicula. Desenvolvo a reflexão a partir de autores que
apontam para a desubstancialização da categoria de etnia, de
identidade
e
para
o
descentramento
da
subjetividade,
facultando, assim, realçar na análise mais o processo e a trama
histórica na qual os grupos étnicos foram se constituindo em
dinâmica permeada pelas relações de poder.
18
Introdução
A crescente ênfase na interculturalidade parte do pressuposto que o processo
identitário étnico é um dos elementos constitutivos da dinâmica social.A dimensão
cultural constitui-se em eixo desencadeador de confrontos e de interações que repercutem
no processo educacional. O fato novo na educação é o crescente reconhecimento da
legitimidade
das
diferenças
culturais
e
sua
importância
para
o
processo
educacional/escolar. A partir da última década, ampliando-se gradativamente o diálogo
com outras áreas da ciência, os atores do processo escolar percebem-se envolvidos numa
complexa rede de interações em que seu pertencimento étnico interfere na construção de
significados. Neste sentido, configura-se de forma crescente o entendimento que a escola
pode ser concebida como espaço para o encontro entre as diferentes formas de ser, de
pensar, de sentir, de valorizar e de viver.
Diversos autores começaram, também nestes últimos anos, a ensaiar novas
configurações para a dinâmica educacional/escolar, atentos para a importância da
dimensão cultural em todo este processo. Colom (apud Rodrigues, 1998, p.1) realça que a
escola começa a fazer sentido na medida em que seja capaz de preparar o aluno “para
viver no meio de culturas diferentes, compreendendo as variadas situações
multiculturais.” Diz que isto facilita o domínio de outros costumes e de formas de
pensamento diferentes do próprio. Dayrell (1996, p.136) entende que falar da escola
como espaço sócio-cultural implica “resgatar o papel dos sujeitos na trama social que a
constitui enquanto instituição”. Juliano (1993, p.66) salienta que importa enfatizar os
pontos de contato e de diálogo entre as culturas, sendo que “a escola poderá ser um
espaço propício para desenvolver com os alunos a percepção das especificidades étnicoculturais próprias, a distinção e o reconhecimento das especifidades de outros grupos
étnicos”. Parece-lhe que assim se pode estimular os alunos a um diálogo intercultural.
Muitos outros começaram a enfatizar idéias semelhantes nos últimos anos. Arroyo talvez
esteja sintetizando a compreensão de muitos ao dizer que buscamos novos horizontes e
uma base epistemológica que
“reflita ao mesmo tempo a complexa diversidade de
19
identidades, grupos, etnias, gênero, diversidade demarcada
não apenas por relações de perda, de exclusão, de
preconceito e discriminação, mas demarcada por processos
ricos de afirmação de identidades, valores, vivências,
cultura. (1996, p.7)
No entanto, a interculturalidade entra em cena, entre os educadores, ainda de
forma incipiente. As manifestações estão mais em nível de desejo, de aspirações, do que
de encaminhamentos e práticas consistentes. Já se avançou bastante nos estudos
históricos em que se aponta a predominância de uma prática monocultural na escola.
Sabemos através de todo um conjunto de pesquisas que a escola tem sido a instituição
envolvida predominantemente pelas diversas formas de regulação social e moral,
tendendo a concepções fixas, substancializadas, de identidade e de cultura. A partir da
modernidade, no contexto de formação dos Estados/Nação, a diferença cultural foi
considerada um obstáculo para a formação da nacionalidade e do “povo”, sob o prisma de
um pretenso coletivo. Giroux (1995, p.86) talvez expresse uma boa síntese do
entendimento de um conjunto de estudos históricos nos quais se realça que a escola, pelo
seu envolvimento com uma noção de identidade nacional ligada a uma cultura
tradicional, ocidental, “tem ignorado as múltiplas narrativas, histórias e vozes de grupos,
cultural e politicamente subordinados”.
O que ocorre na educação é expressão de uma tendência mais ampla em que,
segundo Guibal (1997), há um movimento de superação do centrismo epistemológico que
leva a significações absolutas. Avança-se na desconstrução crítica e entende-se que
nossas concepções devem ser interpretadas a partir da significação cultural múltipla,
sendo que a educação é um campo em que as relações de poder e as contradições da
sociedade se manifestam de forma significativa.
Perguntamo-nos: para onde aponta o discurso da interculturalidade? Bell (apud
Rodrigues, 1998, p.1) entende a interculturalidade como “o desenvolvimento de um
processo ativo de comunicação e de interação entre as culturas para seu enriquecimento
mútuo”. E Betancourt (1997) salienta que a interculturalidade “não é a incorporação do
outro no próprio, mas que é a transformação do próprio e do alheio, visando à interação e
à criação de um espaço compartilhado e determinado pela convivência”.
20
Nosso objetivo, aqui, é pensar, talvez ajudar a repensar as bases epistemológicas
para a perspectiva da interculturalidade na educação. Esta tarefa nos motiva a lançar
perguntas sobre o fundamento a partir do qual se articula este discurso e sobre as
implicações do mesmo. Talvez Stein (in UNIJUÍ, 1994) colabore neste questionamento
inicial ao lembrar um princípio epistemológico básico, segundo o qual “mais do que
entender idéias e teorias, o que importa é entender os pressupostos a partir dos quais as
idéias e as teorias são articuladas”. Recorrendo a este princípio, perguntamo-nos sobre os
pressupostos subjacentes ao discurso de interculturalidade. A questão a ser posta é: em
que perspectivas este discurso pode fomentar ações educacionais favoráveis a uma
dimensão desejável de interculturalidade?
A reflexão sobre a interculturalidade remete à análise da concepção que temos de
etnicidade. Poutignat e Streiff-Fenart (1998, p.184) salientam que “o fato étnico não é
algo que deve ser definido, mas descoberto”, importando perceber o sentido que sua
presença, constante e multiforme, tem para nós. Segundo estes autores, o avanço mais
significativo obtido na antropologia social, a fundamentar as pesquisas atuais sobre
etnicidade, consiste na “desubstancialização dos grupos étnicos”. Significa dizer que
aquilo que deriva do domínio da etnicidade não são as diferenças culturais empiricamente
observadas, mas as condições nas quais determinadas diferenças culturais são utilizadas
para estabelecer a diferença entre in-group e out-group. O que importa é descobrir em
que dinâmica, sob quais processos, este sentido é socialmente construído.
No intuito de participar da reflexão sobre as bases epistemológicas para a
interculturalidade, pretendo centrar os questionamentos em três categorias que, pareceme, são bastante centrais nesta temática. Trata-se:
a) do entendimento do real como processo, o que resulta em falar de processos
identitários e não de identidade;
b) do entendimento de subjetividade em perspectiva de descentramento;
c) da desubstancialização da etnicidade.
O real como processo
21
Ao se refletir sobre os pressupostos epistemológicos do
conhecimento,
relacionando-os
com
a
questão
da
interculturalidade, é preciso salientar que não entendemos o
real nem como um dado sensível nem como um dado
intelectual. O real é um processo, é um movimento cultural de
constituição dos seres e de suas significações (Chauí, 1980).
Significa uma
tradicional
ruptura
segundo
independentemente
das
com a
a
concepção
qual
a
representações
epistemológica
realidade
existia
humanas
e
da
linguagem. Pensava-se a verdade como sendo a precisão da
representação,
o
que
refletia
a
objetividade.
Na
base
epistemológica tradicional desvalorizava-se os fatores culturais
e simbólicos da vida coletiva.
Ao se entender o real como processo no qual vão se constituindo os seres e suas
significações, percebe-se, então, que o que mais interessa não é aprender as idéias sobre
as coisas como se estas efetivamente representassem a realidade. O que importa é
compreender o processo que levou ou leva a caracterizar idéias ou teorias da forma
específica como nos são apresentadas. Significa dizer que, mais importante do que
procurar entender as proposições em que se articulam os conhecimentos, de fato é
procurar entender as razões pressupostas na articulação dos mesmos. Interessa perceber
como se dá a dinâmica sócio-cultural do processo de elaboração de idéias, de
representações, em suas tensões e contradições. Como idéias e teorias resultam de um
processo humano complexo, permeado por interesses e relações de poder, torna-se
fundamental, em termos epistemológicos, dar especial atenção para se perceber o
22
processo de construção das explicações apresentadas, problematizando-o.
Este ponto de partida para a concepção do real leva-nos a problematizar da
mesma forma as noções tradicionais de identidade e de subjetividade, categorias centrais
para a reflexão sobre a interculturalidade e a educação.
Também a identidade étnica não deve ser entendida como algo constituído,
naturalizado. Trata-se de percebê-la como processo identitário (Nóvoa, 1992; Hall, 1997
e outros). Hall (1997, p. 13 e 75) diz que a identidade unificada, completa, segura e
coerente é uma fantasia, pois ela está diretamente envolvida com o processo de
representação que se localiza no tempo e no espaço simbólicos, ela tem uma “geografia
imaginária”. Bernd (1992, p.10) afirma que “a busca da identidade deve ser vista como
um processo em permanente movimento. A identidade não é construída sobre um
referente empírico, mas sobre o simbólico e cultural”. O fundamental é que se entenda o
étnico como um processo e não como um dado resolvido no nascimento. Constrói-se nas
práticas sociais, num processo de relação.
O descentramento do sujeito conhecedor
Nesta mesma perspectiva de entender o real como
processo, é básico também operar um descentramento do
sujeito conhecedor. A problematização que se faz no pósestruturalismo em relação à subjetividade permite, na minha
forma de entender, um auspicioso avanço na questão das bases
epistemológicas para tratar do tema da interculturalidade. Na
tradição iluminista, colocava-se o sujeito no centro da análise e
da teoria, vendo-o como fonte do pensamento e da ação.
Predominava a concepção de um eu estável, coerente,
apreensível, capaz de desenvolver um conhecimento sobre si
23
próprio e sobre o mundo, por meio da razão (Peters, 2000; Rose,
2001).
Já em Nietzsche e, fortemente em Foucault (1987; 1990 e 1996), lança-se as bases
para a perspectiva pós-estruturalista na qual se questiona os pressupostos universalistas
da racionalidade, da individualidade e da autonomia subjacente ao sujeito humanista. A
idéia de autoconhecimento entra em suspeita, entendendo-se que o ser-no-mundo tem
precedência sobre o conhecimento e a autonomia do sujeito. Enfatiza-se a consciência
discursiva do eu, sua localização histórica e cultural. Segundo Peters (2000), entende-se a
linguagem e a cultura em termos de sistemas lingüísticos e simbólicos nos quais as interrelações entre os elementos que os constituem são considerados mais importantes do que
cada um destes elementos examinado de forma isolada e autônoma. Metodologicamente
enfatiza-se a desconstrução, tornando-se mais central a noção de diferença, de
determinação local, de rupturas e descontinuidades históricas. O conhecimento não é tido
como uma representação precisa da realidade. O limite entre razão e desrazão não é tão
claro quanto se pretendia que fosse, na ótica do iluminismo. Duvida-se da pretensão
estruturalista de identificar as estruturas universais que seriam comuns às culturas e
mentes humanas. A inflexão recai mais na análise diacrônica, na mutação, na
transformação e descontinuidade das estruturas. Interessa mais a genealogia do que a
ontologia.
Questiona-se, especialmente em Derrida e Deleuze (1988; 1991), os pressupostos
que governam o pensamento binário, mostrando-se como as oposições binárias sempre
sustentam uma hierarquia. O conceito de diferença torna-se central. Na perspectiva do
descentramento, passa-se a estudar e a descrever o sujeito em sua complexidade histórica
e cultural. Entende-se que o sujeito é discursivamente constituído, é visto em termos
concretos: posiciona-se na intersecção entre as forças libidinais e as práticas sócioculturais. Não se trata de uma essencialidade humana, mas de um ser humano concreto,
corporificado, generificado, temporal, sempre maleável e flexível.
Quando Birman (2000, p. 80) afirma que, a partir de Foucalt, a subjetividade
passou a ser um campo teórico, entende que isto ocorre em decorrência da percepção que:
1. a subjetividade não é nem um dado nem um ponto de partida, mas que ela é algo
24
da ordem da produção;
2. a subjetividade não está na origem, como uma invariante vista de maneira
naturalista. Ela é tida como um devir, considerada mais como um ponto de
chegada, após longo processo;
3. a subjetividade é múltipla e plural, não há fixidez no seu ser;
4. o que existe de fato são formas de subjetivação. A rigor, significa dizer que não
existe o sujeito, mas apenas as formas de subjetivação. Fundamentalmente, o que
está em questão é a inconsistência ontológica do sujeito;
5. o foco central da questão passa a ser, então, como se deu e está se dando a
dimensão de produção do sujeito, considerado o resultado de um longo e tortuoso
processo de modelagem e remodelagem, ocorrendo em jogo de poder,
historicamente regulado. O engendramento da subjetividade realiza-se em
decorrência da forma como tecnologias de si são acionadas historicamente.
Segundo Birman, o ponto fulcral em Foucault, na questão epistemológica, é a
desconstrução da tradição da filosofia do sujeito. Na modernidade, a filosofia do
sujeito definiu o pensamento como condição de verdade e de existência para a
subjetividade: “penso, logo sou”. Foucault entendia que, com os avanços na
psicologia e na semiótica, a posição descentrada do inconsciente e a exterioridade
do campo da linguagem ajudaram a provocar uma ruptura crucial com a tradição
da filosofia do sujeito. Porém, como realça Birman (2000, p. 95), em Foucault a
idéia do pensamento de fora como constituinte da subjetividade foi se deslocando
do registro da linguagem para o de poder, ao qual o pensamento de fora estaria
subsumido.
Em relação à subjetividade, a questão epistemológica central, na perspectiva pósestruturalista, é desconstruir as categorias de sujeito e de verdade produzidas em
determinada tradição, substituindo-as pelas categorias de formas de subjetivação e
de tecnologias de si. Neste sentido, a subjetividade vincula-se a uma dimensão de
destino e de produção pelo fato de contrapor-se à idéia ontológica de origem e de
consistência ontológica.
Mas Foucault deixa claro que estas tecnologias de si através das quais vão se
produzindo formas de subjetivação são ativadas sempre em contexto de relações
de poder, de relações entre saber e poder, o que o leva a introduzir a categoria de
jogos de verdade. O que interessa é perceber quais agenciamentos produzidos
pelas estratégias de poder levaram à afirmação e à cristalização de verdades que,
afinal, foram sendo instituídas pela tradição e aí, aos poucos, essencializadas,
substancializadas.
Parece-me que as categorias de formas de subjetivação e tecnologias de si,
quando relacionadas com processo identitário e grupos étnicos, podem ter grande
25
potencialidade explicativa para o entendimento das bases epistemológicas com as
quais os discursos sobre estas temáticas estão sendo constituídos. São categorias
férteis para ajudar a desconstruir discursos e desubstancializar conceitos
relacionados com a interculturalidade.
Desubstancializando a etnicidade.
Na interculturalidade deseja-se o diálogo e a interação construtiva entre etnias.
Uma questão central é perguntar-nos, então, sobre nosso conceito de etnia.
Glazer e Moynihan(1975), autores de muita influência na década de 1970,
entendiam a etnicidade como o conjunto de traços como a língua, a religião, os costumes,
o que a aproximava da noção de cultura. Mas também poderia significar a presumida
ascendência comum dos membros e, neste caso, o conceito de etnicidade aproximava-se
do de raça. Parece-me que este entendimento do conceito de etnicidade ainda está
fortemente presente na literatura educacional. Mas não ajuda a pensar a questão da
interculturalidade.
Poutignat e Streiff-Fenart (1998, p.86) alertam que nesta concepção entende-se a
etnicidade como um dado primordial, substancializado, privilegiando-se atributos dos
quais decorre um sentimento de pertença, uma afinidade considerada natural. É uma
concepção que se embasa num presumido vínculo de sangue, de traços fenotípicos, de
religião, de língua, de costume e de pertença regional.
Estará nisto o essencial da etnicidade? Parece-me que um caminho mais fecundo
para se entender o fenômeno da etnicidade e sua importância para a educação é o que
veio a se constituir a partir de Barth, em Grupos Étnicos e suas Fronteiras (1969).
Poutignat e Streiff-Fenart afirmam que a partir de Barth cria-se uma nova forma de
entender e trabalhar com o fenômeno de etnicidade, salientando-se que:
a) o pertencimento étnico só pode ser determinado na demarcação entre
membros e não-membros;
b) as identidades étnicas só se mobilizam com referência a uma alteridade. A
etnicidade implica a organização de agrupamentos dicotômicos Nós/Eles;
c) o que define o grupo étnico são as fronteiras étnicas e não seu conteúdo
cultural interno ( Poutignat e Streiff-Fenart, 1998, p.152).
26
Significa dizer que, para entender os fenômenos da etnicidade, o mais importante
é buscar entender em que contexto e sob quais condições foi se dando o estabelecimento,
a manutenção e a transformação das fronteiras entre os grupos étnicos. Significa também
que o conceito de etnicidade chama para novas questões teóricas. A etnicidade começa a
ser trabalhada em termos menos essencialistas, operando-se a desubstancialização dos
grupos étnicos.
Assim, nas pesquisas, o ponto de partida comum
“é a distinção analítica entre a organização das relações étnicas e o
conjunto dos modos de vida e dos costumes compartilhados por uma
população. O que deriva do domínio da etnicidade não são as diferenças
culturais empiricamente observadas, mas as condições nas quais certas
diferenças culturais são utilizadas como símbolos da diferenciação entre
in-group e out-group”.(Poutignat e Streiff-Fenart, 1998, p.129).
Os mesmos autores ainda afirmam que
“a etnicidade não é vazia de conteúdo cultural ( os grupos encontram
‘cabides’ nos quais pendurá-la), mas ela nunca é também a simples expressão de
uma cultura já pronta. Ela implica sempre um processo de seleção de traços
culturais dos quais os atores se apoderam para transformá-los em critérios de
consignação ou de identificação com um grupo étnico”(ibidem).
A partir desta perspectiva de entendimento da etnicidade, infere-se que os valores
e as características que as pessoas geralmente atribuem a seu processo identitário,
normalmente se explica mais através das atividades socialmente organizadas nas quais
encontram suas pertinências práticas, do que pela importância abstrata das mesmas. Na
expressão de Barth podemos dizer que é a fronteira étnica que define o grupo e não o
material cultural que ela engloba. Molohon et al. (apud Poutignat e Streiff-Fenart, 1998,
p.136), ao perguntarem-se sobre os motivos que levam os seres humanos a investir tanta
energia na construção de fronteiras étnicas, concluíram que o motivo está no fato de que a
reivindicação da identidade étnica implica interesses. No contexto dos estudos culturais
diz-se que a etnicidade ocorre num processo humano permeado por relações de poder.
Por isto, o que mais importa é centrar a atenção nas relações de poder de determinada
27
sociedade, pois, aí estará a chave para o entendimento da forma como o fenômeno da
etnicidade se manifesta.
Poutignat e Steiff-Fenart (1998, p.17) apresentam uma contribuição importante
para o estudo/debate da interculturalidade quando afirmam que teorizar a etnicidade não
significa fundar o pluralismo étnico como modelo de organização sócio-política, mas que
significa examinar as modalidades segundo as quais uma visão de mundo “étnica” é
tornada pertinente para os atores. Drummond (1980, p.368) já tratava a etnicidade como
um sistema simbólico tido como “um conjunto de idéias coercitivas sobre a distintividade
entre si e os outros, que fornece uma base para a ação e a interpretação do outro”. Neste
mesmo sentido, para Poutignat e Streiff-Fenart
“as categorias étnicas são símbolos cujo conteúdo varia em função das
situações, mas que formam em conjunto um sistema
de significações
interligadas.(...) A realidade primeira da etnicidade é a do quadro cultural ( o
intersistema), no qual ela se realiza como comunicação signifcativa da
diferença”(1998, p.110).
O que interessa investigar é a forma como um conteúdo cultural e como as
interrelações entre as categorias étnicas foram ou são postas em operação em um
intersistema. Eriksen(1991) enfatiza que não nos relacionamos com grupos étnicos, mas
com contextos interétnicos.
Barth (1969) coloca o processo de atribuição categorial e de interação no centro
da análise. E assim, o problema fundamental na etnicidade é o de estudar as condições
que geram o surgimento das distinções étnicas e a articulação destes com a variabilidade
cultural. O centro da questão não está nos diversos tipos de agrupamentos étnicos, mas
nos tipos de organização social nas quais se trata desta ou daquela forma estes
agrupamentos étnicos ( Poutignat e Streiff-Fenart, p. 112).
“Logo, não é a diferença cultural que está na origem da etnicidade, mas a
comunicação cultural que permite estabelecer fronteiras entre os grupos por meio
dos símbolos simultaneamente compreensíveis pelo insiders e pelo outsiders”(
Schildkrout, 1974, apud Poutignat e Streiff- Fenart, p.124).
28
Percebemos, assim, que na etnicidade os limites são múltiplos e instáveis.
Seyferth (1994, p.23) realça-o dizendo que estes limites podem mudar com freqüência
porque a “etnicidade é situacional”. O importante, o mais fundamental é que se perceba o
étnico como um processo e não como um dado resolvido no nascimento. O étnico
constrói-se nas práticas sociais, num processo de relação, por isto importa estar atento
para as relações de poder entre os diversos grupos sociais e culturais. Por isto, também é
fundamental buscar entender a forma pela qual os fenômenos manifestos de etnicidade
são produzidos por intermédio de sistemas de significação e de estruturas de poder. Neste
sentido, entende-se que a nominação é “produtora de etnicidade”, é um dos constituintes
da dinâmica social. Os grupos étnicos surpreendem-se, freqüentemente, com a identidade
étnica que lhes é atribuída de fora de seu grupo e que se impõe socialmente. Hugues (in
Poutiguat e Streiff-Fernart, 1998, p. 143) salienta que a nominação “é por si própria
produtora de etnicidade (...) o fato de nomear tem poder de fazer existir na realidade”.
Esta perspectiva teórica com a qual se desubstancializa a etnicidade, é de um
grande significado para a educação. Alerta para a necessidade de se trabalhar sempre na
perspectiva da historicidade, procurando perceber através de que processos e com que
relações de poder foram elaboradas as propostas e os valores que estão sendo
apresentados. É uma perspectiva que tem um significado todo especial quando se trata de
educação, campo em que entram em jogo valores e propostas, normalmente apresentadas
de forma substancializada. Ainda são relativamente poucos os autores que vinculam a
categoria de etnia com a dinâmica educacional e entre os que o fazem, ainda há uma
predominância de análises em que se substancializa as referências do étnico.
Perspectivas
A temática da interculturalidade relacionada com a
educação poderia levar-nos a pensar as diferenças culturais
como um maravilhoso legado, construído pelos grupos em
29
longo processo histórico, sendo que, por intermédio de uma
educação
intercultural,
oportunidades
e
de
fomentar-se-ia
espaços
para
a
a
criação
interação
de
e
o
enriquecimento mútuo destes grupos.
As questões epistemológicas acima apontadas, de forma muito esquemática,
alertam-nos que não é assim, que isto não é o suficiente. Primeiramente, não se trata de
reivindicar uma relação mais freqüente e intensa entre os grupos étnicos como base para a
interculturalidade, pois a mesma já se forma a partir de um processo de relação. O mais
importante é ver a partir de quais relações de poder entre os grupos étnicos e a partir de
quais comprometimentos, privilegiamentos e/ou silenciamentos foram sendo construídas
as caracterizações atribuídas a cada grupo. Por isto o conceito de multicultural não é
apropriado. Ele induz a imaginar-se uma sociedade construída como um mosaico,
formada por culturas diferentes, cada uma autônoma e substancializada.
Com as referências apresentadas através do recurso a vários teóricos, entendemos
que a etnicidade é uma questão de suma importância, com grande significado para a
educação, quando entendida como um processo que vai se constituindo de forma
relacional, em contexto de disputa por espaço e reconhecimento. Vimos, a etnicidade
constitui-se num processo de relações de poder muito pronunciadas, através
especialmente de mecanismos simbólicos de privilegiamentos e/ou silenciamentos. Por
isto entendo com Moermann (apud Poutiguat e Streiff-Fenart, 1998, p. 167), que a
questão básica não é saber quem é o grupo étnico X, quais suas especificidades, mas o
importante é saber por que, quando e como a identificação X é preferida e o que significa
esta identificação em termos de relações de poder no cotidiano. Importa descobrir o
sentido que sua presença obstinada e multiforme tem em nossas vidas, procurando-se
detectar os processos organizacionais através dos quais este sentido é socialmente
construído.
Chartier (1990, 1991 e 1994) pode ajudar-nos com algumas
orientações úteis para ir descobrindo a trama das relações de
30
poder presentes no processo que levou os grupos étnicos a
aparecerem com as características que lhe são imputadas.
Chartier ajuda-nos a perguntar se, ao constituir-se este
processo, os atores do processo estavam todos no mesmo
lugar social e cultural. Quem estava e está presente neste
processo de constituição e nominação étnica? Qual seu lugar
no conjunto das relações de poder? Quais suas referências,
seus comprometimentos?
A partir destes questionamentos podemos pensar na interculturalidade como um processo no qual
os diversos grupos culturais estabelecem um diálogo que não se restringe apenas à ênfase e celebração de
características consideradas próprias deste grupo. Neste diálogo procura-se ir além, entender a gênese de
constituição das características próprias e dos outros grupos, redesenhando-se espaços nas relações de
poder aí presentes, de modo que este processo nos ajude a construir novos horizontes, unindo a rica e
variada expressão de manifestações culturais, com uma perspectiva de sociedade em que todos estes grupos
étnicos tenham o mesmo grau de reconhecimento e o mesmo nível de acolhimento.
Se conseguirmos pensar a interculturalidade nesta perspectiva, então sim, pareceme que o processo escolar poderia ter uma função importantíssima para fomentar
iniciativas para a educação intercultural.
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Diversidade Cultural e Política Indigenista no Brasil
Antonio Carlos de Souza Lima20.
Gostaria de começar apresentando-lhes, à guisa de expediente de retórica, um texto do
início do século XX, retirado de Rondonia, de Edgard Roquette-Pinto, professo
r de Antropologia do Museu Nacional, texto gerado pela sua experiência como expedicionário nas
terras do Mato Grosso e do atual estado de Rondonia, livro premiado pelo IHGB em 1917, publicado em
diversas edições, inclusive em alemão. Em suas páginas finais, Roquette-Pinto, personagem importante das
Ciências e da vida político-cultural brasileira até os anos 1950, diz-nos:
20
Antonio Carlos de Souza Lima é Professor Adjunto IV de Etnologia/Departamento de
Antropologia/Museu Nacional-UFRJ. É pesquisador do CNPq, coordenador do Laboratório de Pesquisas
em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (LACED/Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional).
Vice-presidente da Associação Brasileira de Antropologia e presidente de sua Comissão de Assuntos
Indígenas para o biênio 2002/2004, é autor de Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e
formação do Estado no Brasil (Vozes, 1995); organizador de Gestar e Gerir: estudos para uma
antropologia da administração pública no Brasil (Rio de Janeiro, Nuap/Relume-Dumará, 2002) e, com
Maria Barroso-Hoffmann, de Etnodesenvolvimento e políticas públicas: bases para uma nova política
indigenista (Rio de Janeiro, LACED/Contra Capa Livraria, 2002). Orienta pesquisas e ministra cursos no
Progama de Pós-Graduação em Antropologia Social (Departamento de Antropologia, Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro).
33
Não quero terminar a transcrição de meu caderno de viagem sem registar algumas
reflexões, ali existentes, sobre a situação social dos índios e dos sertanejos. Falando sem
devaneios nem brutalidades utilitárias.
Há índios perfeitamente assimilados pela nossa modesta cultura brasileira do
interior; esses estão fora de questão. São de fato sertanejos. Trabalham, produzem,
querem aprender. Não são mais índios.
Outros porém, infiltrados de maus costumes pelos seringueiros viciosos,
naturalmente vadios, não podem e não devem ser contados como produtores. Protegidos
vivam como for possível.
(...)
Nosso papel social deve ser simplesmente proteger, sem procurar dirigir, nem
aproveitar dessa gente. Não há dois caminhos a seguir. Não devemos ter a preocupação
de fazê-los cidadãos do Brasil. Todos entendem que indio é índio; brasileiro é brasileiro.
A nação deve ampará-los, e mesmo sustentá-los, assim como aceita, sem
relutância, o ônus da manutenção dos menores abandonados ou indigentes e dos
enfermos.
As crianças desvalidas e mesmo os alienados trabalham; mas a sociedade não os
sustenta para aproveitar-se do seu esforço.
Além disso, temos para com os índios, a grande dívida, contraída desde os
tempos dos nossos maiores, que foram invadindo seu território, devastando sua caça,
furtando o mel de sua matas, como ainda nós mesmos fazemos.
O direito é um só. Quem a pretexto de civilizar, esmaga tribos e nações, que
sempre viveram independentes, pratica politica perigosa para si mesmo porque a moral
dos conquistadores nunca teve outra razão. E o dominador de hoje poderá ser abatido
amanhã, por um terceiro que invoque os mesmos princípios.
Ainda mais, quem pretender governá-los cairá no erro funesto e secular; na
melhor das intenções, deturpará os índios. O programa será proteger sem dirigir, para não
perturbar sua evolução espontânea.
Na economia nacional, do ponto de vista republicano, a questão indígena deve ser
escriturada unicamente, nos livros da Despesa...
E assim dará lucro.
34
O sertanejo encontra, nos documentos de que procurei rechear este trabalho,
simples e sincero, a sua melhor defesa. A conquista da RONDONIA foi obra de sua
abnegação, de seu talento, e de sua resistência. Os milheiros de Kms de estrada que lá se
estendem, hão de figurar, nos mapas do Brasil, em traço largo, afirmando ao mundo o
valor dos seus filhos. (Edgard Roquette-Pinto. Rondonia. 3a. ed.. São Paulo, Cia Editora
Nacional, 1935, pp. 299-301. Grifos do próprio autor).
Seguidor de Euclides da Cunha, Roquette-Pinto, aliado próximo de
Cândido Mariano da Silva Rondon, emblema das políticas de Estado pró-índio no
Brasil, dá-nos uma idéia concisa e ao mesmo tempo profunda, de um conjunto de
temas que orbitaram a construção de imagens nacionais e o solo mais abrangente
onde medraram as bases das ações de governo para os índios no Brasil daquele
período. Estão nele presentes uma classificação implícita dos índios (os que ainda
o são, os que estão corrompidos, os que deixaram de sê-lo, transformando-se em
sertanejos, material humano para construção e expansão do Brasil). Há um ponto
de vista moral e ético, em que a sociedade e o Estado conquistadores do território
brasileiros e dos povos nele habitantes são os responsáveis pela dívida da
conquista, uma separação suposta entre brasileiro e índio, uma das bases
ideológicas da tutela, que o o papel de proteger sem dirigir nem aproveitar como
horizontes. A evolução espontânea seria o desejável, e o certo de acontecer, caso
deixados à sua própria sorte. Sinaliza ainda Roquette-Pinto, para o quanto o
conquistador poderia se ver submetido às mesmas regras de “direito”, sendo
colocado em igual posição subalterna. Há também um pressuposto, presente ainda
hoje, que deve ser relativizado: o de que as populações indígenas “sempre viveram
independentes”. Desconhecia Roquette-Pinto, como hoje que temos pesquisas
sobre o tema, ainda, por vezes, desconhecemos suas redes de relações précoloniais, e o fato de que a chegada do europeu à América circulou para muito
além do facultado pelo contato direto. Estamos, pois, longe da idéia de história
35
interconectadas, que restitui a complexidade do processo de colonização e das
histórias indígenas.
O trecho dá-nos conta, por um lado, de aspectos importantes das idéias
relativas à proteção fraternal, como cunhada por Rondon e seus aliados, que tentei
explorar em alguns de meus trabalhos (Souza Lima, 1987; 1991; 1995). Por outro,
sugere-nos aspectos do pensamento antropológico da época, alguns dos quais se
desdobrariam e afirmariam como configurando elementos para ação de Estado,
sobretudo nos anos posteriores à década de 1950 (Souza Lima, 1998). Num
momento como o atual, em que celebramos precipitadamente o fim da tutela –
entendida como instituto jurídico –, pela nova regulação proposta pela
Constituição de 1988 e pelo Código Civil de 2001, recordar as bases históricas
sobre as quais assentaram as políticas indigenistas no Brasil não me parece ocioso
e agradeço aqui a oportunidade de apresentar algumas idéias sobre como temos
enfrentado a sociodiversidade e a diversidade cultural, nesse país surgido da
colonização européia, pejado por uma ideologia de Estado nacional (Reis, 1998)
que nos colocou a correspondência entre 1 Estado e 1 nação, e 1 direito.
Uma maneira de fazê-lo seria colocar temas que circundam o da
diversidade sócio-cultural, como os do reconhecimento político de uma situação
de pluralismo cultural de fato e sua contradição com as estruturas políticojurídicas vigentes (Maybury-Lewis, 1984; Souza Filho, 2001), os da moralidade
e da eticidade, como tem proposto Roberto Cardoso de Oliveira (1996; 1998;
2001) no indigenismo; ou na discussão sobre cidadania e pluralismo (Pacheco de
Oliveira, 1999). Espero porém, contribuir para o debate com o que tem sido
minhas preocupações mais recentes, aquelas que têm circundado uma análise da
política indigenista brasileira do ponto de vista histórico. Não o que ela deveria
ser, mas o que tem sido, seus horizontes de transformação e obstáculos possíveis
que devem ser conscientizados, abordados com sistemático empenho, para serem
vencidos.
36
Neste sentido, tenho desejado entender como algumas das melhores
intenções de que se revestem os “brancos” em seus contatos com os índios têm
redundado na atualização de formas tutelares e e clientelísticas. E não desconheço
que paternalismo, tutela, clientelismo são algumas das categorias nos jogos de
acusação que os participantes do “mundo do indigenismo” atiram com facilidade
uns aos outros, sejam índios ou brancos, antropólogos, advogados ou dotados de
qualquer outra formação, missionários ou leigos, funcionários governamentais ou
não. Se tenho pesquisado sobre a administração pública é porque, dentro de um
Estado nacional como o que se procurou implantar no Brasil desde o século XIX,
ela é um dos principais vetores cotidianos das formas de dominação. Meu intuito é
não só o de refletir intelectualmente, mas também de pensar que posturas e
medidas podem ser adotadas para tentarmos estabelecer algumas vias de superação
deste aparente círculo fechado.
É para pensar historicamente, mas do ângulo das descontinuidades, que
tenho procurado usar as idéias de Fredrik Barth (2000) relativas ao conhecimento
necessário a atribuir sentido às interações da vida cotidiana, que tenho
experimentado utilizar-me da idéia de tradições de conhecimento para a gestão
colonial como instrumento para explicarmos como, mesmo quando os atores
sociais (sobretudo os posicionados em aparelhos administrativos) parecem
imbuídos do desejo de suplantarem as desiguldades duráveis (Tilly, 1999), elas se
reproduzem. Permito-me citar algumas dessas idéias nesta conferência, para
chegar onde pretendo (cf. Souza Lima, 2002: 156-157).
“Uma tradição de conhecimento para gestão colonial, neste caso, poderia ser pensada como um
conjunto de saberes, quer incorporados e reproduzidos em padrões costumeiros de interação, quer
objetivados em dispositivos de poder, codificações, elementos materiais de cultura (arquitetura,
indumentária etc) e incorporados em etiquetas, disposições corporais, gestos esteriotipados
Descobrir e disseminar informações, submeter e definir, classificar e hierarquizar, aglutinar e
localizar os povos conquistados e os espaços por eles habitados, são operações desenvolvidas
pelo que chamo de saberes de gestão e pelos poderes pelos quais se exercem e geram. Mas tais
formas de conhecimento incidem também sobre os povos e organizações que conquistam e
colonizam novos espaços geográficos e seus habitantes, num necessário e transformador efeito de
retorno. Os conhecimentos assim gerados reordenam as representações dos povos colonizadores,
e de suas organizações administrativas, sobre a natureza e as sociedades humanas, conferindolhes novas posições em seus próprios mapas mentais. Sugiro, pois, que os poderes de gestão de
37
populações em contextos coloniais definem simultaneamente, espaços sociais e geográficos,
criando-se, por vezes, verdadeiros territórios entretecidos a hierarquias sociais. Mesmo quando
aparentemente voltados para uma integração crescente entre povos conquistador e conquistado, o
trabalho de gestão colonial perpetua a desigualdade de capacidade de realização, de mando e de
ver seu mando obedecido, assegurando o domínio do colonizador. Quando protegem a diferença
cultural à guisa de permitir a continuidade dos modos e estilos de vida que nelas se baseariam,
como em uma espécie de estado in vitro, os saberes e poderes postos em jogo pelos
colonizadores numa situação colonial exacerbam-na, e criam a necessidade de mediação para que
os colonizados possam acessar as formas sociais que lhe são impostas como dominantes. Quando
aproximam as diferenças entre as tradições de colonizadores e colonizados, na busca de uma
maior integração social, amesquinham as correntes culturais dos povos colonizados,
circunscrevendo-as, delas se apropriando, objetificando e exotizando o cotidiano dos povos que
dominam. Em ambos os casos reproduzem a desigualdade social.
Pensando a partir do caso brasileiro, em especial do exercício dos poderes de Estado sobre as
populações indigenas, e tendo como horizonte de reflexão o contexto colonial, poder-se-ia
distinguir quatro grandes tradições de conhecimento para gestão colonial da desigualdade entre
os povos indígenas e os africanos transplantados, além dos contingentes populacionais que aqui
surgiram. Elaborando-as como tipos ideais para pensá-las, pode-se denominá-las de “ tradição
sertanista ”, “ tradição missionária ”, “ tradição mercantilista » e « tradição escravista».
Por “ tradição sertanista ” entendo um conjunto de saberes que, alterando-se ao longo do tempo,
podem ser reportados ao início da exploração portuguesa de África, notadamente à dos espaços
afastados do litoral, os chamados, desde o século XV e já em África, sertões. Explorar e registrar
os contornos de espaços geográficos incógnitos, inserindo-os no conjunto de representações
acumuladas como partes do “mundo conhecido” pelo explorador, gerando assim conhecimentos
com freqüência de valor estratégico no plano geopolítico e econômico, por vezes transformados
em cartas e mapas geográficos, avaliá-los enquanto fontes para exploração comercial, esboçar
uma descrição das populações humanas nativas desses espaços, mantendo com elas contatos e
trocas iniciais, muitas vezes estabelecendo algumas das primeiras operações de uma guerra de
conquista, são apenas algumas das ações características da “tradição sertanista”. No caso
brasileiro, no contexto da proteção oficial aos índios, logo no século XX, o termo sertanista
designa o especialista nas técnicas de atração e pacificação (Souza Lima, 1995) de índios ainda
arredios à interação regular com os aparelhos de governo, fossem hostis ou não.
Por “ tradição missionária ” é possível designar o conjunto de saberes que têm na Igreja Católica
seu ponto de dispersão, e no Cristianismo em geral sua referência básica, sobretudo através do
dispositivo da “ conversão ” e das técnicas de pastorado. Era necessário entender os “ usos e
costumes dos povos gentios ” para explicar e impor os modos de ser e agir europeus, produzindo
não apenas aliados e mão-de-obra, mas transformar pagãos em catecúmenos. Tratava-se, pois, de
assegurar que porções cada vez mais significativas das realidades construídas pelo colonizador
adquirissem o automatismo dos efeitos de verdade, fossem incorporados, e por vezes, a partir de
negociações variadas, sincretizados com correntes culturais dos colonizados. A visão de mundo
do conquistador, presente em estado incorporado em valores, disposições para a ação, em modos
de percepção e interação, disposições corporais, formas de sentir e expressar-se ; e objetivadas em
crenças disseminadas e submetidas a dispositivos de controle social, instituições, códigos,
tecnologias, monumentos e em narrativas que passam a construir e constituir a “ história ” dos
que nela se reconhecem. As elites crioulas são um particular exemplo do triunfo da « tradição
missionária » . Também a “ tradição missionária ” delimita lugares (missões, aldeiamentos,
escolas, seminários, faculdades, universidades etc), modos de intervenção sobre o espaço e sobre
38
o tempo através das populações com que se defronta, exercendo-se sobretudo enquanto uma
« pedagogia do exemplo ». »21
Parece-me desnecessário apresentar a ampla literatura sobre os sertões, sobre a necessidade de se
desbravar e se ocupá-los, sobre a fronteira enquanto ideologia de Estado para fazer a ligação entre a
21
“Pode-se chamar de “ tradição mercantil ” um conjunto de saberes pouco voltado para
o assenhoramento de espaços ou populações como fins em si : trata-se aqui de e produzir
e controlar fluxos de interação para a troca de produtos entre povos dotados de radical
alteridade cultural. Estão em circulação, portanto, também os conhecimentos e as formas
de ação que permitem mercadejar com lucro, transpondo mundos sociais dotados de
valores distintos quanto à troca, às regras de reciprocidade, ao mercado produzindo
interferências profundas na vida social dos povos vinculados por relações comerciais em
contexto colonial. Algumas das operações a que os saberes mercantis procedem nesse
quadro de alteridade característico das empresas coloniais são : 1) perceber a natureza e
as sociedades exóticas como fornecedoras e consumidoras de bens (desde produtos até
hábitos mentais e representações) inexistentes em outros pontos da geografia articulada
pelas redes de comércio, 2) redimensionar os significados desses bens, de modo a que
possam ser objeto de consumo progressivamente mais extenso nos universos sociais em
que são total ou parcialmente indisponíveis, tornando-as necessidades, 3) conceber e
regular relações que permitam obter, transportar, circular amplamente e vender de
maneira extensiva, dentro da órbita de mercado percebida como privilegiada para esses
“ novos ” produtos.
Talvez seja o funcionamento de sistemas escravistas o melhor conhecido no
tocante ao império português e ao Brasil. Todavia, a perspectiva de abordar uma
dimensão do escravismo enquanto uma tradição de conhecimento para gestão colonial
pode ajudar a suscitar outras questões. Cabe indagar de que modo se construiram,
comunicaram e reproduziram os conhecimentos necessários a : 1) reduzir e transportar,
desenraizar culturalmente e inserir parcialmente em outro meio cultural (em especial
quanto aos modos de trabalho) mantendo a hierarquização e a desigualdade, 2) imobilizar
e controlar, fazer produzir e reproduzir-se, docilizar e cooptar, reprimir e dividir
contingentes populacionais estrangeiros, transformados em um tipo de mão-de-obra em
aparência destituído de outro valor que não o de seu uso como força de trabalho ? De que
modo surgem, são elaborados e transmitidos os conhecimentos para a administração de
plantéis de escravos ? Qual sua genealogia, desde a escravidão no mundo antigo, até os
alvores do mundo dos descobrimentos ? Como são transformados e em que idiomas de
comunicação são veiculados e retidos ? Quais os seus especialistas e os públicos a que se
destinam ?
O âmbito próprio da « tradição escravista » não deve ser confundido com o da « tradição sertanista », que
se remete à exploração dos espaços e aos momentos iniciais da conquista de povos pela empresa
colonizadora, embora comporte o apresamento de cativos parao trabalho. Tampouco é o mesmo da
«tradição mercantil», onde é a mercadoria escravo – e não seu trabalho e a riqueza que pode produzir – que
está em jogo. Muito menos o estatuto de populações escravizadas – não só as de origem nativa ao espaço
da colonia mas também e, sobretudo, as para ele transplantadas – é matéria de indagação similar à da
« tradição missionária », que supõe a liberdade potencial ou futura dos gentios, e espaços como as missões
e aldeamentos. O espaço próprio à geração e operação dos saberes que se pode agregar como uma
« tradição escravista » é o das unidades domésticas, e suas formas de exercício de poder são coextensivas à
gestão de famílias extensas e de suas clientelas associadas. São saberes para a gestão cotidiana, os padrões
de interação que se desenvolvem (e permitem que estes se desenvolvam) em espeaços domésticos (como
em propriedades rurais), ou a partir deles (como em situações urbanas) que configurariam uma « tradição
escravista ». Nesta escala, os poderes de Estado, e os processos de sua formação, são indissociáveis das
relações familiares e pessoais, sendo estas elas mesmas relações de poder, uma variedade de ação sobre
ações, das quais a violência física é um limite emblemático e sua caução última : trata-se aqui de extrair o
máximo de valor através da compulsão extra-econômica ao trabalho »(Souza Lima, 2002 : 158-159).
39
expansão territorial e os desígnios que gerariam uma política idnigensita republicana e leiga em noso país.
O Brasil republicano (1899) emergia de um recente passado colonial trazendo consigo os legados
institucionais e simbólicos da monarquia, da escravidão, e da fusão entre Igreja e Estado. Em que pese o afã
modernizador do Segundo Império brasileiro, as elites mestiças governantes da República tinham grandes
desafios a enfrentar: um heteróclito e enorme território, mitificado como a sede de inúmeros eldorados e
quimeras desde a chegada dos colonizadores portugueses; um contingente humano composto por
populações díspares - imigrantes vindos da Europa do Norte, negros de origem africana, negros crioulos, as
populações indígenas dessa porção das Américas e uma massa de mestiços que consistiria nos quadros da
burocracia de um Estado nacional em expansão; um vasto litoral.
Em suma, o mapa de um país, entidade jurídica, em que a palavra “desconhecido”, tarjada sobre
grandes extensões, era dos mais freqüentes termos. Aí vemos o significado do elogio de Roquette-Pinto à
abnegação e ao talento do sertanejo na abertura de estradas a inscrever o Brasil em mapas. Como, de tal
caleidoscópio, forjar um povo, que se sentisse pertencente a uma pátria brasileira. Como fazer este povo
brasileiro ocupar, em nome de uma soberania nacional, e tornar-se guardião de tão vastos espaços,
seguindo o dístico da bandeira republicana, ordem e progresso? Seria possível conceber que de tal
emaranhado saísse uma civilização? Seria possível conservar íntegro um território apenas juridicamente
brasileiro, mas em realidade incógnito, agora que o emblema imperial esvanecera-se enquanto forma de
totalização, evitando-se o fantasma da fragmentação das colônias espanholas na América, fantasma
permanente dos militares brasileiros? Como defender esta vastidão das entradas de estrangeiros? Que
métodos utilizar para tanto? Como fixar as fronteiras da nação?
Foi sob esse quadro de representações que se constituiram diversas comissões telegráficas, parte
de um esforço mais amplo de interligação de regiões do Brasil através de meios de comunicação e
transporte. Dentre elas entraria para as páginas da história brasileira, como se singular fosse, a Comissão de
Linhas Telegráficas Estratégicas do Mato Grosso ao Amazonas (1907-1915), composta, como sabemos,
por militares inspirados pelos preceitos da Religião da Humanidade de Auguste Comte, a viabilizadora da
expedição de Roquette-Pinto. As técnicas jesuítas de penetrar os sertões distribuindo presentes, vestindo os
indígenas, tocando música (que acalmaria as almas selvagens) Rondon as aprendera com seu primeiro
comandante em sua primeira comissão telegráfica. Mas agora não eram mais catecúmenos ou súditos que
40
se esperava conquistar através das almas indígenas: eram cidadãos brasileiros, parte de um povo que se
pudesse exibir como civilizado e ocupante da vastidão encompassada nos mapas. A Comissão Rondon
seria, desde então, sempre representada como uma espécie de “laboratório” de nossa política indigenista,
onde os “leigos”demonstrariam sua capacidade de não apenas suportar as agruras dos sertões, mas também
a abnegação, a brandura e a bondade do missionário.
Pretendendo primar por métodos científicos, dos quais Roquette-Pinto, dentre outros seria uma
caução, e contribuir para a expansão de uma ciência nacional sobre o Brasil, a Comissão Rondon acabou
por se constituir numa das principais fontes de peças etnográficas e espécimes naturais para os Museus
brasileiros. Estava aí entrelaçada nossa nascente antropologia. Muitos desses objetos serviriam às permutas
com numerosas instituições congêneres pelo mundo, integrando um circuito de trocas singular: um dos
modos privilegiados de fazer circular as imagens do exótico, do diferente e do inferior, tão caras à grande
tradição ocidental.
Simultaneamente também um dispositivo midiático, a Comissão Rondon deu ensejo à produção de
abundante material fotográfico, posteriormente filmográfico, a inúmeras conferências realizadas nas
grandes cidades brasileiras. Desses registros assomavam as imagens do futuro da nação: do índio feroz,
inimigo, canibal e assassino – um dos legados do nosso arquivo imagético colonial a perdurar ainda hoje,
por mais que os atuais nativos se sintam revoltados com esse tipo de evocação – assomava o aliado,
protótipo do brasileiro sertanejo, do caboclo. Também índice reportável a um estoque de representações de
matiz colonial, imagem retomada pela literatura do Brasil pós-independência na figura do índio herói
romântico, princípio nativista dessa nova pátria que se pretendia criar, a passagem do hostil, arredio e
errante, para o manso, integrado e sedentarizado, seria possível através dos métodos que esses missionários
do Estado nacional puseram em ação. Era necessário atrair com presentes em abundância, gerando dívida e
uma suposta imagem de esplendor e riqueza; pacificar, demonstrando capacidade técnica de resistir aos
embates guerreiros, mostrando-se tecnologicamente superior, dando tiros para o alto, como a dizer “matalo-emos se o quisermos, mas desejamo-los vivos, porque somos benévolos, porque nos propomos irmãos”.
O SPI, surgido, primeiramente, como Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), abarcou assim as tarefas de pacificação e proteção dos grupos indígenas
bem como as de estabelecimento de núcleos de colonização com base na mão-de-obra sertaneja (Decreto
41
nº. 8.072, de 20 de junho de 1910). Foi pelo Decreto-Lei nº. 3.454, de 6 de janeiro de 1918, que as duas
atribuições separam-se e a instituição passou a SPI tão-somente22. É bom destacar que no quadro da
América do Sul o SPI foi um instrumento de distinção do Estado brasileiro: quando da denúncia da
escravidão indígena no Putumayo, em 1912, o governo divulgaria amplamente nos jornais nacionais e
estrangeiros a exist6encia do SPI como resposta de um país até recentemente escravistas na defesa de suas
populações indígenas.
Tendo os “selvícolas” sido incluídos entre os “relativamente incapazes”, junto a maiores de
dezesseis/menores de vinte um anos, mulheres casadas e pródigos, através do artigo 6º do Código Civil
brasileiro, em vigor desde 1917, os integrantes do SPI formularam e encaminharam o texto da lei que, após
dezesseis anos de tramitação no Congresso Nacional, seria aprovado como lei nº 5.484, em 27 de junho de
1928. Esta lei atribuiu ao SPI a tarefa de executar a tutela de Estado sobre o status jurídico genérico de
índio, sem no entanto defini-lo enquanto categoria sobre a qual incidia. Aliavam-se, assim, numa mesma
forma social - a do poder tutelar -, um projeto de gestão de segmentos populacionais definidos como
dotados de uma participação civil necessariamente mediada pelo Estado e, por meio desta, de controle
sobre o interior e os lindes do território nacional, intromissão à época na esfera de competência fundiária
dos estados da União. A trajetória do SPI demonstraria o escopo das funções administrativa de Estado,
através das quais o problema indígena circulou: de 1910 a 1930 o SPI fez parte do então Ministério da
Agricultura, Indústria e Comércio, de 1930 a 1934, do Ministério do Trabalho, de 1934 a 1939, do
Ministério da Guerra, como parte da Inspetoria de Fronteiras, em 1940, voltou ao Ministério da Agricultura
e, mais tarde, passou para o do Interior (Lima, 1987; 1995).
Em 1939, seria instituído o Conselho Nacional de Proteção aos índios (CNPI), pelo Decreto nº. 1.794, de
22 de novembro de 1939, com o objetivo de atuar como órgão formulador e consultor da política
indigenista brasileira. O CNPI deveria ser composto por sete membros designados por decreto presidencial.
Supunha-se que o SPI teria, daí por diante, só atribuições executivas (Freire, 1990), o que não aconteceria.
A partir dos inícios da década de 1960, no período final de existência do SPI, o CNPI foi a instância em que
se continuou a ter a presença de antropólogos e indigenistas compromissados com a idéia de proteção ao
22
Para uma interpretação do Serviço do Povoamento do Solo Nacional, para o qual seria transferida a tarefa
de “localização dos trabalhadores nacionais”, cf. Ramos, 2002.
42
índio, após mudanças intensas nas políticas de Estado no pós-1954/55. No CNPI proceder-se-ia, então, a
inúmeras discussões que se veriam refletidas num primeiro desenho da Fundação Nacional do Índio.
Tais discussões, por sua vez, achavam-se referidas aos contornos institucionais oriundos do
indigenismo latino-americano (Souza Lima, 2000). Outras referências em escala mais ampla seriam as
susrgidas a partir do sistema das Nações Unidas, com a Declaração Universal de Direitos do Homem, de
10/12/1948, dos quais também redundaria a Convenção nº 107, de 26 de junho de 1957, da Organização
Internacional para o Trabalho (OIT), “sobre a Proteção e Integração das Populações Indígenas e outras
Populações Tribais e Semitribais de Países Independentes”, só ratificada no Brasil nove anos após, pelo
Decreto nº 58.824, de 14 de julho de 1966 (DOU, 20/07/1966)23. Sabemos todos da substituição da
Convenção n. 107, pela de número 169, de 1989, tardia e recentemente (em Junho do presente ano)
aprovada pela Congresso Nacional, em que, a exemplo de outras leis referentes aos problemas indígenas,
esperou longo tempo para ser ratificada.
As pretensões de conferir à FUNAI planejamentos sólidos e baseados numa orientação
antropológica, propostas marcadas nas discussões que a antecederam ainda no CNPI, ou na admissão de
antropólogos academicamente legitimados entre 74/76, e em numerosas tentativas dos setores mais
progressistas da instituição de estabelecer diálogos e diretrizes mais seguras, nunca se efetivaram como
parte de suas rotinas administrativas. Longe de uma antropologia da ação, têm sido os diversos matizes do
sertanismo, como conjunto ideológico, a nortear o cotidiano da FUNAI. Muito de sua organização
regimental foi (ou é) inoperante, de acordo com as contingências de cada gestão, e a ação do aparelho
marca-se com muita freqüência pelo que se tem denominado de emergencialismo (Oliveira & Almeida,
1998): atua-se amenizando-se o impacto de crises, sem planos seqüenciados de médio e longo prazos, como
os diferentes problemas das populações indígenas demandariam. Um espelho disso é a rarefação
progressiva dos atores que deveriam coordenar e implementar a ação direta, os chamados técnicos em
indigenismo. Apesar de breves cursos de treinamento, ministrados quando da admissão por concurso destes
quadros institucionais, desde 1970 até 1985, a formação deste tipo de técnico permaneceu difusa e
imprecisa, regulando-se mais pela prática cotidiana e por impressões transmitidas por seus predecessores
23
Enquanto organismo a OIT antecedeu a ONU, sendod atada da década de 1920.
43
do que por um código de conduta e por planos de intervenção estruturados. Tal expressa a plasticidade das
metas da Fundação no tocante a numerosas atividades-fim que deveria desenvolver.
Enquanto organização, portanto, a FUNAI - de resto como boa parte da administração pública
direta - está longe dos supostos de uma burocracia, no sentido weberiano do termo: inexistência de metas
claras, de rotinas para alcançá-las, de sistemas de aferição de méritos e, baseados neles, de sistemas de
cargos e salários correspondentes, são apenas algumas de suas características marcantes. O funcionamento
real da instituição está condicionado às interações das múltiplas redes de relações que a perpassam
nacionalmente, estendendo-se para muito além da esfera de seus limites. Estas redes e seus conjuntos
organizam-se a partir de diversos princípios de recrutamento (parentesco, relações afetivas e de amizade,
pertencimento a partidos políticos e sociedades secretas, como a certas lojas da maçonaria etc), abarcando
ainda numerosos integrantes indígenas dispersos por facções de diferentes povos. Nas representações que
foram amplamente veiculadas pela midia, tais povos aparecem como homogeneamente aliados (ou
inimigos) de funcionários da FUNAI, que atacam ou protegem. Invadem e ocupam a sede da Fundação, em
Brasília, segundo uma dinâmica pouco perceptível ao público externo: na maior parte das vezes são facções
de grupos indígenas, não representativos de povos em sua totalidade, que agem como integrantes de redes
internas ao aparelho, lideradas por atores situados em pontos distintos de sua malha administrativa e
articulados com outras instâncias administrativas do Executivo e com setores do Legislativo. Nessas
situações essas redes manipulam representações do arquivo da sociedade colonial como a brasileira,
encenando os perigos de um “ataque indígena”, calcando-se, sobretudo, nas imagens veiculadas sobre
situações de desbravamento de espaços geográficos pouco conhecidos e em estereótipos consolidados,
como o da antropofagia. Olhados de um certo ângulo poderiam ser os índios que Roqutte-Pinto dizia que
devíamos “proteger sem dirigir”; de outro, talvez, sejam os seus “infiltrados de maus costumes”.
De 1967 até o presente foram vinte e oito presidências na Fundação. Pouco é necessário para se
perceber que presidir o aparelho tem sido tarefa espinhosa e comprometedora, a ponto de seus sucessivos
presidentes terem sido apresentados como uma “galeria da crise permanente”24. De um modo geral, pelos
seus titulares e suas vinculações, pode-se perceber o caráter de interesse estratégico que o aparelho
entreteve para o aparato de segurança nacional ao longo da maior parte de sua trajetória. Os governos de
24
Cf. RICARDO, 1986: 27-29; 1991: 41-42; 1996: 50-51.
44
Collor, Itamar Franco, e Fernando Henrique Cardoso, que não mantiveram este direcionamento, também
não envidaram maiores esforços no sentido de reestruturar a morfologia e as funções da FUNAI. A
presença de inúmeras populações indígenas em regiões cortadas pelos limites internacionais do Brasil
colocou, porém, nos últimos anos, a diplomacia brasileira como outro ator importante no cenário
indigenista. Se alguns dos mesmos problemas estão presentes desde o período colonial, a maneira de
coloca-los mudou, assim como os agentes que os representam: não mais militares mas agora diplomatas, a
“ameaça indígena” aos projetos de soberania continua sendo invocada. Mas os foros de decisão e
interlocutores se alteraram.
Desde 1993, e particularmente de 1995, sabemos que a FUNAI vem recebendo recursos para
demarcação de terras indígenas na região da Amazônia Legal, por meio do PPTAL - Programa de Proteção
às Terras e Populações Indígenas da Amazônia Legal - subcomponente do mais amplo PPG-7 - Programa
Piloto para Proteção das Florestas Tropicais Brasileiras-Grupo dos Sete -, cujos recursos implicam formas
variadas de intervenção de organimos multilaterais - como o Banco Mundial - e da cooperação técnica
estrangeira (sobretudo alemã, mas não só, via o organismo estatal denominado Sociedade Alemã de
Cooperação Técnica, a GTZ) em aparelhos de governo no Brasil. Até o momento os resultados dessa
tentativa de transformação das práticas da FUNAI têm-se circunscrito à esfera fundiária na Amazônia. A
entrada em cena da cooperação técnica internacional – além dos financiamentos multilaterais – aponta-nos
para a presença de outras vertentes que escapam (ainda que não totalmente) aos elos estabelecidos pelas
tradições de conhecimento que elenquei. Trata-se agora de, segundo uma pauta “universal” da
“universalidade dos direitos humanos” (como aponta Souza Filho, 2001), propiciar as condições
(capacitar) à participação (cf., por ex., Salviani, 2001) culturalmente diferenciada, mas igualitária.
Enquanto agenda, creio que estamos no pleno terreno da “política de identidades” (Calhoun, 1996), ou
melhor, de sua retórica, que emana sobretudo do multiculturalismo surgido no contexto norte-americano,
fato bastante recente na história dos EUA e da Europa Ocidental25. Alia-se, por outro lado, às noções
25
“We rarely encounter the word culturalism by itself: it is usually hitched as a noun to certain prefixes like
bi, multi and inter, to name the most prominent. But it may be useful tobegin to use culturalism to
designate a feature of movements involving identities consciously in the making. These movements,
whether in the United States or elsewhere, are usually directed at modern nation-states, which distribute
various entitlements, sometimes includinglife and death, in accordance with classifications and policies
regarding group identity. Throughout the world, faced with activities of states that are concerned with
encompassing their ethnic diversities into fixed and closed sets of culutral categories towhich individulas
45
relativas a um certa leitura da “democracia participativa”, aplicando-se a numerosos segmentos sociais no
país (Macedo e Castro, 2002).
Estamos longe e perto dos quadros que permitiram as observações que Roquette-Pinto fez ao final
de seu livro, daquilo que se engendrou no entrelaçamento de tradições de conhecimento para gestão
colonial da desigualdade com os quadros jurídico-políticos do Estado liberal republicano que se pretendeu
instalar no início do XX. Se podemos reconhecer sem dificuldades que o modelo tutelar que constituiu a
FUNAI, em termos gerais, encontrou seu fim legalmente com a Constituição de 1988 e seus
desdobramentos, creio que não podemos nos orgulhar de ter gerado, desde então, alternativas consistentes
que o ultrapassassem. À luz daquele momento, significou um horizonte de proteção e compromisso de
nossa titubeante república com as populações indígenas marcado pelo regime tutelar, hoje soando-nos
ultrapassado e iníquo.
É importante destacar que como estamos, alguns dos piores aspectos da tutela podem sempre
aflorar ou se instilar: sem avaliações claras e objetivas da complexidade da situação indígena no Brasil que
tenham atingido o nível de um consenso objetivado, de sua diversidade e relação a outros aspectos da
sociedade brasileira, na perspectiva do entrecruzamento que as histórias indígenas apresentam com as
“histórias brasileiras”, sem novos projetos de futuro delineado de maneira clara, fruto de um padrão de
diálogo intercultural e inter-social, sem novos instrumento de regulação das relações com os povos
indígenas no Brasil. A tramitação desde 1991 do “Estatuto das Sociedades Indígenas” é só um capítulo
desta lacuna. Isto é, reconhecer o “fim jurídico” da tutela da União sobre os povos indígenas pela
Constituição de 1988, não deve nem nos iludir quanto ao fim de formas de exercício de poder, de
moralidades e de interação que poderíamos qualificar de tutelares, nem tampouco dar a entender que temos
um novo projeto das funções de Estado para o relacionamento entre povos indígenas, poderes públicos e
segmentos dominantes da sociedade brasileira, delineado e assumido com clareza pelas instâncias
governamentais responsáveis ou mesmo pelas forças sociais que se configuram, partidarizadas ou não, em
oposição ao governo. Uma breve análise dos programas de governo dos candidatos às eleições transmite
desânimo. A crença em certas palavras de ordem, muitas delas coincidentes com a agenda da cooperação
are often assigned forcibly, many groups are consciously mobilizing themselves according to identitarian
criteria. Culturalism, put simply, is identity politics mobilized at the level of the nation-state” Appadurai,
2000: 15. Cf. Pagden, 2002, para o caráter recente das lutas de caráter identitário na definição de Estados
Nacionais europeus.
46
técnica, uma certa destilação dos idéias de uma “democracia participativa”, acabaram por gerar um certo
glossário de significantes mais ou menos dotados de significado estáveis de acordo com o emissor, mas
capazes de gerar a sensação de entendimento mútuo.
No plano da administração pública, sabemos todos, inexiste na atualidade uma política indigenista
federal, isto é, um planejamento de governo transformado em diretrizes para ação, alocando recursos
captados pelo Estado brasileiro e por ele redistribuídos, abordando diferentes aspectos da vida dos povos
indígenas, pautado na interlocução com os mesmos, seja através de suas “organizações” ou outras formas
nativas de gestão política. Um planejamento desta natureza deveria ser articulado, racionalmente
concebido, executado e avaliado através de ações de um conjunto de agências e agentes governamentais e
não-govenramentais (e aqui é necessário registrar a presença das universidades dentre elas as federais, em
parte “externa” e “interna” aos aparelhos de governo), onde os índios, assegurados os suportes à
compreensão que a diversidade cultural coloca a uma situação dialógica, deveriam ser ouvidos como os
mais importantes interlocutores. Tal ausência é tanto mais significativa quanto percebemos os contornos
mais abrangentes das transformações que os mandatos de Fernando Henrique Cardoso imprimiram à
administração pública, sob a idéia de reforma do Estado, processo no qual novas morfologias
organizacionais têm sido concebidas, novas figuras jurídicas têm sido propostas para ordenar as ações
administrativas do Estado que articulam o “governo real”, sem que os circuitos de clientelismo de Estado
tenham sido rompidos26.
Se devemos destacar que áreas como a da regularização das terras indígenas (mormente no tocante
à região amazônica) têm sido viabilizadas através do PPTAL/PPG7, se o PDPI está se implantando com
amplas possibilidades de inovação, se a gestão da saúde por meio dos distritos sanitários indígenas pela
Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), ou os projetos para educação que se multiplicam pelos estados,
com anúncios ominosos de mais de um formato de “universidade” indígena, são sinais de ação, no geral o
26
Souza Lima (1995) utilizou a expressão “clientelismo de Estado” para designar um certo tipo de
arregimentação de redes de clientela que tem na distribuição de “bens” (cargos, sobretudo, mas também
verbas etc) a partir da administração pública federal apenas um de seus aspectos. Pensado pelo autor como
dimensão do processo de formação de Estado no Brasil, a idéia demanda burilamento, mas afasta a idéia de
uma burocracia meritocrática como horizonte de reflexão para a análise da FUNAI, e permite alcançar
alguma inteligibilidade para além da denúncia do “paternalismo” e da “corrupção” de funcionários e índios
quanto às inúmeras crises pelo controle da máquina administrativa da FUNAI. Foi Marcos Otávio Bezerra
(1995 e 1998) que fez os esforços mais importantes e instigantes para pensar estas questões(,) como
articuladas ao funcionamento do Legislativo (mas não só) no Brasil. Para uma interpretação importante
desse período das relações entre FUNAI e povos indígenas, ver RAMOS, 1998.
47
panorama governamental é de estase e de desmantelamento de serviços públicos federais que, se sempre
foram deficitários, hoje tornam-se parcos ou nulos27. Há muito por ser concebido, discutido e exercitado no
plano do diálogo inter(sócio)cultural. Há muito por ser avaliado de maneira mais distanciada sobre estas
experiências esboçadas na área da saúde e da educação, da regularização fundiária, do direito, da
antropologia e do “desenvolvimentismo”, termo que uso aqui para designar, provocativamente, as
intervenções voltadas à melhoria do nível de vida das populações indígenas, entendido sobretudo como
crescimento econômico. Tal como colocado por Roberto Cardoso de Oliveira (1996), discutindo a proposta
de Rodolfo Stavenhagen (1985) para o etnodesenvolvimento (ou desenvolvimento alternativo), há muito o
que ser feito no sentido de produzir uma “comunidade de comunicação de natureza interétnica” (Cardoso
de Oliveira, 1996:38) pautado pela responsabilidade moral daqueles que estão efetivamente no campo dos
poderes públicos dominantes28. É preciso que pensemos e com urgência nestes termos: o anúncio
governamental de programas de ação afirmativa, e discriminação positiva no terreno das relações raciais
deveria supor, como acúmulo de experiência de governo, o debate dos processos de reconhecimento
fundiário que se alicerçam sobre políticas étnicas que stricto sensu têm pouco a ver com a “política de
identidades” de inspiração culturalista. Estas “viagens da volta”, “entrando e saindo da mistura”, para usar
as expressões de João Pacheco de Oliveira (1999), tem histórias próprias que devem ser reportadas, no
plano extra-local, à história dos conhecimentos produzidos na territorialização dos povos indígenas ao
longo da história brasileira. Não será na agenda da cooperação, em que pese o refraseamento que sofrem no
momento, que entenderemos suas lógicas e premissas.
Não se trata, pois, simplesmente de “reformar” a Fundação Nacional do Índio, de constatar um
“sucateamento” desse aparelho de governo (assim como de outros) e reestruturá-lo. Afinal a FUNAI
continua a existir, as redes de clientelas que a organizam encompassam agentes com amplas possibilidades
27
Cf. LIMA, 2000 e 2002 para o PPTAL. Destacamos novamente o trabalho de PARESCHI, 2002 quanto
ao PPG7.
28
Esse estado de coisas, verifica-se, é claro, também em outras áreas de ação social do
governo. De modo geral, a retórica governamental em torno de idéias como as de
parceria, participação das comunidades etc., não deve obscurecer o quanto as
responsabilidades do poder público vêm sendo descuradas, o quanto o Brasil não dispõe
de mecanismos de redistribuição social e divisão de renda como aqueles parcialmente
propiciados pelo que podemos chamar muito genericamente de filantropia, sobretudo de
estruturas de financiamento baseadas no estímulo à ação de fundações privadas etc.
48
de ação local e regional, sobre os quais o controle de governo é muito baixo, para não dizer inexistente. E
muitos desses são índios. Como lidar com estas redes na negociação de novos projetos de futuro
De qualquer modo, a perspectiva do etnodesenvolvimento (Azanha, 2002) vem, sob este ou outro
termo, buscando se afirmar como base da vontade de ultrapassar de modo diferenciado, segundo as
perspectivas de cada povo, as formas de exclusão social e de produção da desigualdade, da vontade de lidar
até mesmo com formas sócio-políticas como as da democracia participativa, também alienígenas às pautas
propriamente indígenas. A idéia de etnodesenvolvimento pode se tornar um bom pretexto e um bom eixo
em torno do qual construir a crítica às maneiras como as sociedades dominantes se relacionam com os
povos etnicamente distintos em espaços surgidos da conquista européia. Isto implica, antes de mais nada,
numa reflexão sobre estas sociedades de modo mais abrangente, sobre imagens e mecanismos de
totalização que as tornaram possíveis como via de integração sob a forma de Estados nacionais. Isto é, se as
observações de Roquette-Pinto, com que comecei esta apresentação, nos colocam diante de uma pauta dos
intelectuais brasileiros de seu tempo frente às populações indígenas, pauta diretamente vinculada a um
projeto de expansão para os sertões, de realização de uma “obra civilizatória”, como poderíamos
ironicamente qualificar, agora já acontecida, qual a nossa pauta atual? Sobre que solo operam nossas
idéias? Quem delas comunga? São perguntas que podem ser sempre respondidas com retóricas muito
disseminadas, com significantes que circulam a pauta dos “direitos humanos”, que agora parece vir a se
alastrar na direção de abarcar o “combate à pobreza”, de resto moto da missão do Banco Mundial29. Se
posso parecer ingênuo, creio que as fronteiras sociais hoje estão o suficientemente borradas para que
tenhamos a cautela de nos indagarmos acerca de nossas boas intenções. Creio que seminários como este são
um excelente ponto de partida para começarmos a afinar nossas idéias e propostas.
Sendo menos implacável com a proteção fraternal rondoniana, reconheço as “boas intenções” daquele
tempo e, ao invocar nosso predecessor no Museu Nacional, coloco-me o questionamento sobre as minhas
próprias idéias. Afinal, deve-se frisar que se na década de 90 as fontes financiadoras direcionaram recursos
primordialmente para iniciativas locais e aplicadas, desenvolvidas por ONGs e organizações indígenas, é
bastante evidente que o saber disciplinar que tem articulado os diversos problemas envolvidos na
29
Refiro-me à intervenção do Dr. Pierre Sané, Diretor Geral Adjunto da UNESCO, na mesa “A
unversalizaçào das políticas públicas de combate à pobreza”, no dia 13 de junho de 2002, nos quadros do
evento “Encontro Nacional de Experiências Sociais Inovadoras”, realizado do Hotel Nacional, em Brasília,
pelo Banco Mundial.
49
implementação de novos padrões de relacionamento entre sociedades indígenas, Estado e terceiro setor tem
sido a Antropologia, uma produção sobretudo das Universidades através das pós-graduações.
É importante considerar, por fim, que não se pode mais simplesmente propor e executar um
planejamento geral, único, para todas os povos indígenas no Brasil, uma política de Estado que desconheça,
desde os princípios para sua formulação, a sociodiversidade indígena e a sociodiversidade brasileira em
geral. É preciso afastar de vez a imagem do “índio dos cronistas e viajantes”, um ser eternamente imerso na
natureza, signo por excelência do exotismo dos trópicos americanos, parado num tempo estagnado, como o
horizonte a partir do qual se raciocina para se calcular (quer se a valore positivamente ou não) uma
transformação radical dessa condição, segundo os valores do próprio povo com que se lida. Mantendo-se
esta imagem, e vendo-se um “índio profundo” inconquistado, a “retórica do resgate” pode solucionar
nossas dúvidas e angústias. Creio que se aceitamos as idéias do caráter insidioso das tradições de
conhecimento na gestão colonial da desigualdade e a da complexidade das histórias indígenas e brasileiras
interconectadas, pensar as políticas sociais que alicercem novas políticas indigenistas e a produção de
diversidades torna-se uma operação delicada. Não será através de um ato de nossa própria vontade que elas
se simplificarão.
Se é evidente hoje que qualquer operação e cálculo administrativos para as sociedades indígenas
deve ser feito sobretudo em escala local ou regional, de acordo com formas de articulação específicas aos
distintos povos indígenas, se estas formas sociais - as de organização étnica – são as que devem presidir
inclusive os cálculos de fomento, o que não exclui que se possa pensar em dispositivos em escala
nacional/federal, é necessário ter em mente que elas nem sempre existem de pronto e que o próprio
processo de sua constituição deve ser matéria para reflexão. Por melhores que sejam algumas idéias
disponíveis, há que se ser humilde e adotar um espírito de experimentação compartilhada, reunindo em
algum plano diversos setores sociais, indígenas e não indígenas, empenhados na quebra das situações de
desigualdade. Afinal, julgo que ninguém deseja ver, à reboque do dito “enxugamento do Estado”, sua
capilarização sob novas formas (talvez agora indígenas) de produção da desigualdade. É impossível fazer
qualquer movimento conseqüente sem a tentativa de estabelecimento de comunidades de argumentação
como princípios estruturantes das propostas de ação indigenista. E se pensamos nas escalas local e regional,
temos que pensar nas redes de poder que as estruturam, sua potência e articulação, nos planos federal e
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internacional. A administração indigenista ainda vigente iludiu sua presença no plano do discurso, mas se
defrontou com elas, absorvendo-as na prática.
Sem condições político-morais para um diálogo intercultural, construído desde o local e o
regional, baseado no respeito à diferença de projetos de futuro não há o que planejar: arriscamo-nos sob as
novas vestes da década (sustentabilidade, parceria, participação etc.) a repetirmos o pior da tutela e do
clientelismo de Estado. Julgo que esta deveria ser parte da nova utopia para uma política indigenista
adequada ao Brasil contemporâneo; a de uma política co-construída, sem mediadores, sem “reserva
indígenas” ou ghettos. Estamos longe ainda de termos as suas bases delineadas, em que pese a existência de
sinais de transformação. Há muito por fazer.
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