Cidadania da mulher- uma questão de justiça
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Cidadania da mulher- uma questão de justiça
Maria Avelina Imbíriba Hesketh (Organizadora) CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA Maria Avelina Imbiriba Hesketh (Organizadora) CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA 8^ % EDITORA R u b e n s A p p r o b a te M achado P residente da OAB e P residente Honorário da OAB EDITORA Jefferson Luis K ravchychyn P residente E xecutivo d a OAB EDITORA Projeto Gráfico F. J. Pereira Capa e Diagramação R od rigo Pereira R evisão D acio Lu iz Osti Conselho Editorial Jefferson Luis K ravch ych yn (Presidente) Cesar Luiz P asold H erm a n n A s s is Baeta P aulo B o n a v id es R a im u n d o César Britto Aragão S ergio Ferraz Ficha Catalográfíca E laborada pela Bibliotecária Beatriz Costa Ribeiro - CR B-14/647 H584C Cidadania da mulher, uma questão de justiça / Maria Aveiina Imbiriba Hesketh (Org.). Brasília : OAB Editora, 2003. 184p. 1. Direito, 2. Direito da mulher. I. Hesketh, Maria Aveiina Imbiriba. CDD 340 ISBN - 85-87260-25-1 EDITORA SAS Q uadra 05 Lote 01 Bloco M - Edifício OAB Brasília. DF - CEP 70070-050 Tel. (61) 316-9600 www.oab.org.br e-mail: gabpre®oab.org.br [email protected] SUM ÁRIO A P R E S E N T A Ç Ã O ..........................................................................7 R u b e n s A p p ro b a te M achado IN T R O D U Ç Ã O .............................................................................11 M aria A v elina Im b irib a H e sk e th C ID A D A N IA D A M ULH ER, U M A Q U ESTà O DE J U S T IÇ A ............................................... 17 M aria José de F igueiredo Cavalcanti M ULH ER: C Ó D IG O S LEGAIS E CÓ D IG O S SOCIAIS - O PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE P A P E L .................................................................75 O d ila d e M élo M ach ad o M ULHERES: U M A VIDA DE LUTAS E C O N Q U IS T A S ................................................. 135 M aria n a O liveira Pinto REGIME DE BENS N O C A SA M EN TO À L U Z D O N O V O C Ó D IG O C I V I L .................................... 163 M aria B ern a d eth G onçalves d a C u n h a M U L H E R DE H O J E .................................................................. 171 M aria R egina P urri Arraes ÉTICA E P R O F IS S à O ...............................................................177 R osangela M aria C arvalho V iana K arinn e M atos de Lima e M elo 7 APRESENTAÇÃO Em m e a d o s d a d é c a d a d e 1990, q u a n d o P re sid e n te d o Ins titu to d o s A d v o g a d o s d e São P aulo, escrevi u m a rtig o sob o títu lo " A s m u lh e r e s n o m u n d o d o D ire ito " , n o q u a l, a lé m d e c o n sid e raç õ e s conceituais sobre a a tu a ç ã o d a s m u lh e r e s n o c a m p o d a s a tiv id a d e s jurídicas, m o stre i m in h a firm e in d ig n a ção d e q u e , a té a q u e le m o m e n to , n e n h u m a m u lh e r c o m p u n h a os q u a d ro s d e ju lg a d o res d o S u p re m o T rib u n a l Federal e d o S u p e rio r T rib u n a l d e Justiça. P a ssad o s q u a se d e z a n o s d a q u e le tra b a lh o , a lg u n s avanços se fizeram , n o s e n tid o d e ser re c o n h e c id o o p ro fícu o tra b a lh o q u e as m u lh e re s d a s d iv ersa s c a rre ira s ju ríd ic a s v ê m rea liz a n d o . A o a p re s e n ta r, a g o ra , a edição p r o d u z id a pela C om issão N acio n al d a M u lh e r A d v o g a d a , c ria d a n a a tu a l gestão, p e rm ito -m e h o m e n a g e a r to d a s as a d v o g a d a s b ra sile ira s n a fig u ra ím p a r d a C o n s e lh e ira e p r im e ira P r e s id e n te d a C o m issã o N a c io n a l d a M u lh e r A d v o g a d a , c ria d a n esta gestão, M A R IA A V E L IN A IM B IR IB A H E S K E T H , e to d a s as d e m a is p rofissionais d a s carre ira s ju rí dicas n a s p e sso a s d a s p rim e ira s m u lh e re s a c o m p o r as m ais A ltas C o rtes d e Justiça brasileira. M inistras ELLEN G R A C IE d o STF; F Á T IM A N A N C Y A L D R IG H I, E L IA N A C A L M O N A LV ES e L A U R IT A H IL Á R IO VA Z, d o STJ, q u e q u e b ra ra m b a rre ira s e a b riram , p o r m érito s p ró p rio s, ca m in h o s, tra z e r à re c o rd a çã o a q u e le a rtig o q u e p r o d u z i h á q u a s e u m d e c ê n io , tr a n s c r e v e n d o - o , c o m a d e v id a v ê n ia , n a ín te g r a , a saber: 8 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA M s mulheres no mundo do Direito. É inconcebível que, n u m pa ís com m ais d e 150 m ilhões d e h ab itan tes, n ã o haja, ainda, u m a única m u lh e r n o S u p re m o T rib u n a l Federal e n e m no S u p e rio r T rib u n al d e Justiça. Ao g ra n d e n ú m e r o d e m inistros, e m a m b a s as C ortes, q u e já têm se m an ifesta d o , em público o u e m p a rtic u la r, n o sen tid o d e p ro flig a r a lac u n a existente, desejam os s o m a r a nossa voz. À s m u lh e res, p o r esforço p r ó p rio, foi aberto, nestes ú ltim o s cinqüenta anos, a m p lo espaço, a n te rio rm e n te re s e rv a d o aos h o m en s, tan to n a v id a e c o n ô m i ca, p r o d u tiv a , q u a n to na v id a pública. N a s letras, n a s artes, n a s ciências, as m u lh e re s v ê m rec e b e n d o lá u re a s e ju sto real ce. Esse e sp aço foi aberto n ã o p o r concessão, m a s p o r c o n quista, n u m a co n stan te, d e n o d a d a e sofrida luta co n tra o p r e conceito que, infelizm ente, até hoje se faz p re se n te , m esm o n o s m ais d e m o c rá tic o s m eios d e com unicação, referindo-se às m u lh e re s co m o s e n d o o "sexo frágil". A força d a s m u lh e re s n ã o está n o s m ú sc u lo s, m as no cérebro; n a ex tre m a d e d ic a ção; n a v o n ta d e d e vencer. Essas são as a rm a s u tiliz a d a s na v e rd a d e ira g u e rra q u e v ê m tra v a n d o , p e la ju sta c o n q u ista d e espaço e p e lo rec o n h e c im e n to d e seus m érito s p o r p a rte de to d a a sociedade. P rim eiro n a advocacia e n a s letras, d e p o is n a m a g is tra tu ra e no M inistério Público, e m s e g u id a n o s m e i os políticos e econôm icos, as m u lh e re s im p u s e ra m -s e à p r e co n c eitu o sa estuitice d o s q u e q u e ria m fazer crer s e re m elas física e m e n ta lm e n te inferiores ao sexo m asculino. A sua m e n o r a p tid ã o à força física tem , com o c o n tra p a rtid a , o estoicism o, a a g u d e z d e espírito, a inteligência e a in d ô m ita p e rs is tência n a consecução d e seus objetivos. A lu ta - se m os "fem in ism o s " - foi e é á rd u a e extenuante. M u ito esp ec ia lm e n te do p o n to d e vista psicológico: é q u e n o inconsciente coletivo de u m a so c ie d a d e m u ltisse c u la rm e n te c o m a n d a d a p o r h o m e n s . APRESENTAÇÃO à m u lh e r teria sid o re s e rv a d o u m lu g a r se c u n d á rio , d e m era c o a d ju v a n te d o c o m p a n h e iro n o s seus êxitos, o u fracassos. N e s s e q u a d r o p rec o n c e itu o so , as m u lh e r e s - c o m especial m en ç ã o às a d v o g a d a s - s o u b e ra m im p o r a sua presença. São hoje in fo rm a d a s e info rm a tiz a d a s; cultas; firm es; corajosas e b e m p r e p a r a d a s p a ra seus m isteres. E stão forjadas, co m o se forja 0 aço, já q u e n a sociedade m ach ista n ã o se exige d o s h o m e n s ficarem " p ro v a n d o " d e q u e são capazes. E o re p ú d io q u e a in d a a lg u n s setores insistem em lhes d e v o ta r, p r o c u r a n d o o c u lta r o seu brilho, faz com q u e sejam elas o b rig a d a s a u m a c o n sta n te n e c essid ad e d e resp la n d ec e r. E co m o re s p la n decem ! A toga o u a beca, v e stid a p o r u m a m u lh e r, p a re c e c o n tra ria r as leis d a física: a ve stim e n ta e scu ra d a toga o u d a beca e m ite LUZ. N ã o é a toga o u beca, m a s o cé re b ro d a m u lh e r q u e a veste, d a n d o form a e força aos a rg u m e n to s q u e expende. D á ela v id a e b rilh o p ró p rio a essas v e stim e n ta s p a ra m e n ta is. À s m u lh e re s foi re s e rv a d o o d iv in o d o m d e g e ra r a v ida. M as n ã o o fazem só n o sen tid o biológico. Elas d ã o v id a aos a r g u m e n to s e às e xpressões d e seus p e n sam e n to s. A sua p ró p ria p e rs o n a lid a d e é o e lo q ü en te sím bolo d a v ida. A s m u lh e res, n a ad v o cacia e n a s carreiras jurídicas, têm tra n s m itid o esse seu p o d e r d e d a r vida a to d o s os seus trabalhos. À s in ú m e ra s m u lh e re s que, ao lo n g o d o tem p o , se d e d ic a ra m à justa c o n q u ista d e sse s espaços - a in d a in ju stam e n te p e q u e n o s - as n o s sas h o m e n a g e n s . À quelas q u e a in d a virão, a nossa fraterna a colhida. N e n h u m a , p o ré m , iso la d a m e n te, d e v e m ere c er h o m e n a g e m especial, p o rq u e o m a io r fulgor d e u m a estrela não p o d e e n e m d e v e a p a g a r o das dem ais, sob p e n a d e se p e rd e r a visão d e c o n ju n to d a constelação. A constelação - e n o rm e é a in d a vista e co n sid e rad a , p o r a lg u n s setores, d e form a p e q u e n a . P o rq u e , se m u ito s as a d m ira m , o u tro s o tê m feito com o 9 10 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA se a constelação p ro c u ra s se m n ã o ver. T êm elas, c o n tu d o , luz p r ó p ria e irra d ia m vida, graça, constância, força, firm eza e equilíbrio. V ida, graça e constância a g ra d a m e a tra e m os olhos m asculinos. Força, firm eza e equilíbrio pa re c e m , p o ré m , fazer com q u e a lg u n s olhares se d esv iem , p ro c u r a n d o ignorá-las. E, se o p rim e iro o lh a r é d e a dm iração, o s e g u n d o está, a inda, e iv a d o d o m u ltisse c u la r preconceito. N a lu ta p a ra a definitiva s u p e ra ç ã o d e tã o d e sca b id o s atos discrim inatórios, n este m o m e n to e m q u e e sta m o s à beira d o terceiro m ilê n io d a era cris tã, é q u e c o n c la m am o s os m eios jurídicos e e m especial a O r d e m d o s A d v o g a d o s d o Brasil, o P o d e r Judiciário, o M inisté rio Público, a reco n h ecerem o fato óbvio d e q u e as m u lh e re s re p re s e n ta m , q u a n tita tiv a e q u alitativ am e n te , m e ta d e d a p o pulação; a a d m itire m a justiça d e sua luta; a c o n s id e ra re m q u e o a m p lo e sp a ç o c o n q u is ta d o é d im in u to fre n te à rele v a n te p a rticip a ç ão fem in in a n a v id a jurídica. P o r isso é q u e re ite ra m o s o b r a d o d e to d a s as forças a se re m so m a d a s, irm a n a d a s n a lu ta d a ig u a ld a d e , p a ra v erm o s, p o r justiça, n a s m ais A ltas C ortes, a figura segura, soberana, d e d ic a d a , in teligente, p e r sistente, d a m u lh e r, a fim d e q u e os nossos p retó rio s, e m to d o s os s e u s g ra u s d e jurisdição, p o s s a m c o n ta r com o brilho, a c u ltu ra , o equilíbrio, a firm eza e a força d a s m u lh e re s q u e ta n to h o n r a m e dignificam as no b res carreiras ju ríd icas q u e a b ra çaram : p elo D ireito e p e la Justiça!" Rubens Approbate Machado Presidente Nacional da OAB 11 IN T R O D U Ç Ã O N ã o m u ito d ista n te , q u a n d o se falava n a m u lh e r, d e im e d i ato se associava a idéia d e fitas, rosas, sedas, re n d a s , laços, saias ro d a d a s , c u rv a s sensuais, d e n tr o d e lo n g u in h o s pretos o u fora deles. A ssociava-se, a inda, lágrim as, fra g ilid a d e, p r o teção e cu id ad o s. D iante dessa m agia fem inina d e scendente d e Eva, longe de se im a g in ar a existência das m ãos calejadas d a M aria, auxiliar dom éstica; d a pele d a Benedita, e n ru g a d a e tostada, pelo trab a lho na roça; d a Tereza que, às cinco d a m an h ã , enfrenta d u a s con d u çõ es p a ra chegar ao trabalho, a p ó s o p rim e iro tu rn o d o méstico; d o stress d a M árcia, para ver c u m p rid a a a g e n d a de executiva; d o corre-corre d a Sonia nos co rred o res d o F órum , v e n c en d o p ra z o s e enfre n ta n d o juizes e oficiais d e justiça, e de tantas outras situações q u e m arcam a presença d a m ulher, com o força p r o d u tiv a e in o v ad o ra, na construção d a sociedade. Isso p o rq u e , o te m p o em q u e as m u lh e re s sa ía m d e d e n tro d a casa d e seus pais, p a s sa v a m p a ra d e n tr o d a casa d o m a rid o e c u id a v a m d o s filhos... até m o rre r, já p a sso u . N a q u e le te m po, elas e ra m tranqüilas, devotas, a n ô n im a s, eficientes, m as su b m issas. V o lta n d o n a história, n a R om a A n tig a ’ , q u a n d o a p á tria corria p e rig o , e m ap o io aos seus h o m e n s e m a rid o s, as m u lh e ’ Em G randes D iscursos da História, de Hernâni Donato, Ed. Cultrix, São Paulo, pág. 17. 12 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA res c o n trib u ía m p a ra o sucesso d a gu e rra , com u m a p arcela d e sacrifício pessoal; q u a n d o h a v ia n e c e ssid a d e d e a c alm ar a fúria d o s d eu ses, p o r q u a lq u e r razão, a p a rc e la d e sacrifício d elas era m aior; d u r a n te as g u e rra s h a v ia n e c e s s id a d e d e re forçar o â n im o d o s so ld a d o s, d a n d o -lh e s s e g u ra n ç a e m o s tra n d o a os céus q u e as m u lh e res c o n tin u a v a m castas, m o d e s tas e p u d ica s; e n q u a n to o inim igo ro n d a s s e a m u ra lh a e os d e u s e s n ã o m u d a s s e m o d estino d a g u e rra , c o m o sacrifício, as m u lh e re s , n o m e a d a s p ro c u ra d o ra s d e seus h o m e n s d ia n te d o juízo e d a ira celeste, d e v e ria m privar-se de qualquer m eio de condução, transitavam unicam ente a pé, não usavam ador nos, n e m tecidos de cores, pois só p od iam se vestir com rou pas escuras. Era a Lei Oppia. Irre sig n a d a s, as m u lh e re s foram às ruas, lev a n ta ra m -se em m o v im e n to d e p re ssã o sobre o S enado e c o n se g u ira m re v o g a r a Lei O p p ia , n o a n o 195 a.C. E ntão Marco Pórcio Catão^, censor d e Rom a, h o m e m d u ro , eruditOy v isionário e p r e o c u p a d o com aquele m o v im e n to d a s m u lh e res, p ro fe riu o seg u in te discurso: "Senhores: Se cada u m de n ó s tiv e sse sab id o conservar a a u to rid a d e e os d ire ito s do m a rid o , no interior do lar, não te ría m o s chega do a este p o n to . Eis e x a ta m e n te onde e sta m o s neste m o m e n to : após h a ver a n iq u ila d o no ssa liberdade de ação em f a m í li a , a tira n ia d a s m ulheres e stá p r o n ta a destruí-la ta m b é m no Senado. L em brem -se do grande trabalho que te m o s tid o para m a n ter n o s s a s m ulheres tra n q ü ila s e para refrear-lhe a licenciosidade, o que sucederá, d a q u i p o r diante, se ta is leis fo r e m revo- ^ Idem, págs. 15/16. INTRODUÇÃO g a d a s e se as m ulheres se puserem , legalm ente considerando, em p é de igua ld a d e c o m os hom ens! O s senhores s a b e m com o são as m ulheres: f a ç a m - n a s suas iguais e im e d ia ta m e n te elas quererão subir às suas co sta s para g o v e rn á -lo s. A ca b a re m o s p o r a s s is tir a isto: os h o m e n s do m u n d o inteiro, que são h om ens que g o v e rn a m as s u a s m u lh e res, serem g o v e rn a d o s p e lo s línicos h o m e n s que se d e ix a m g o vern a r p e la s s u a s m ulheres - os ro m a n o s." C atão tin h a razão. N ã o q u a n to à su b m issão d a m u lh e r, mas, p o rq u e v islu m b ra v a q u e n o fu tu ro a m u lh e r c o nquistaria, pela s u a c a p a c id a d e , o p o d e r, sob q u a lq u e r d e su a s form as. R e a g in d o a essas p o stu ra s, d e fo rm a iso la d a o u e m m o v i m e n to s o rg a n iz a d o s, a luta pelos D ireitos d a m u lh e r p a u la ti n a m e n te rec ru d e sc e u , e, o m o v im e n to fem inista d o século XX, c o m o re s u lta d o d e sse e m b a te m ilenar, re p a g in o u a história d a m u lh e r. A ssim , a O r d e m Jurídica Internacional e, p a rtic u la rm e n te , a d o s p a ís e s o c id e n ta is , r e c o n h e c e u a C I D A D A N I A D A M U L H E R e, s in a liz a n d o a seg u ra n ç a ju ríd ic a d a re g ra d e q u e h o m e n s e m u lh e re s são iguais em d ireito s e obrigações, lev o u a c rer q u e n a d a m ais precisaria ser feito, p o r q u e a co n q u ista d o D ireito n o r m a tiz a d o teria o p o d e r d e m o d ific a r o coração, a consciência e a v id a d o seres h u m an o s. Q uiçá fosse possível! A d u r a re a lid a d e m o stra as ro m a n a s e os C atõ es d e o n tem , com u m a r o u p a g e m c o n te m p o râ n e a . E a d e sp e ito d a rep a g in a çã o d a m u lh e r, a im p re n s a d e la ta as d o re s e os receios q u e m u d a r a m a p e n a s d e te m p o e lugar. A ssim , s u rp r e e n d e n te m e n te , no a n o d e 1998 d.C ., p o r t a n to, 2.193 a n o s a p ó s C a tã o , a m e s m a p re o c u p a ç ã o . A rev ista V e ja , n a e d iç ã o d e 25 d e fevereiro, a d v e rte : O s H o m e n s que se C uidem . 14 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA E os reg istro s policiais, os d a d o s históricos e estatísticos c o n ta m situações m ais d o lo rid a s d o q u e a q u e la d a R om a A n tiga. E m to d o s os países d a A m érica Latina e C aribe, m ais de se te n ta p o r cento d a violência contra a m u lh e r é d o m éstic a e p e r p e tra d a p o r m a rid o s, c o m p a n h e iro s, p a is e irm ãos; os n í veis salariais d a s m u lh e re s é m ais baixo d o q u e o d o s h o m en s, a té e m países d o p rim e iro m u n d o , com o E stad o s U n id o s , Ja p ã o e A le m a n h a ; e m a lg u m a s c o m u n id a d e s africanas, as m u lheres são d esclitorizadas; o acesso ao p o d e r, sob q u a lq u e r d e s u a s form as, é v isiv e lm e n te b o icoitado etc. Pois bem . Essa ig u a ld a d e jurídica q u e tem a s se g u ra d o ta n tos a v a n ço s n a c id a d a n ia d a m u lh e r, n ã o c o n se g u iu vencer, a in d a , a d e s ig u a ld a d e d a vida, q u e é se n tid a n a a tu a lid a d e , i n d e p e n d e n te m e n te d e países, econom ias e índices d e d e s e n v o lv im e n to h u m a n o . A d e s ig u a ld a d e é real e m to d a s as ca m a d a s sociais, esferas d e trabalho, categorias p ro fissio n a is e re p re se n ta ç ã o política, p o n d o -se a exigir, p o r re s p o n s a b ilid a d e histórica, m e d id a s afirm ativ as v isa n d o refrear e m in im iz a r os efeitos p e rv e rs o s d e sse descom passo. P o rtan to , sensível a essa rea lid a d e , e a c re d ita n d o n a tra n s fo rm ação e v o lu tiv a d a sociedade, o Dr. R u b e n s A p p ro b a to M a ch a d o , corajoso P re sid e n te d o C onselho Federal d a O r d e m d o s A d v o g a d o s d o Brasil, e m sintonia com a h istó ria , criou a C N M A - C om issão N acional d a M u lh er A d v o g a d a , a qual vem d e s e n v o lv e n d o u m tra b a lh o v o lta d o p a ra fo rm a r u m a g ra n d e r e d e d e consciência d a m u lh e r a d v o g a d a , sobre a potencializ ação d e se u s direitos, com o reto rn o social. A ssim , o re s u lta d o d o I C o n c u rso d e M onografia Jurídica, in titu la d o C id a d a n ia d a M u lh e r - U m a Q u e s tã o d e Justiça, rea liz a d o pela C N M A , é u m d o s fru to s dessa c o n q u ista da m u lh e r a d v o g a d a . Dos q u in ze tra b a lh o s a p re s e n ta d o s , tem os INTRODUÇÃO a alegria d e p u b lic a r, ju n ta m e n te com as reflexões d a s c o m p a n h e ira s M a ria B ernadete C u n h a e M a ria R egina P u rri A rraes, os três vencedores: "M u lh eres, u m a V ida d e L utas e C o n q u is tas Profissionais", d a e s tu d a n te M a ria n a O liveira Pinto; "C i d a d a n ia d a M ulher, u m a Q u e stã o d e Justiça", d e M aria José d e F ig u e ire d o C avalcanti, e "M ulher: C ó d ig o s Legais e C ó d i gos Sociais - O Papel d o s Direitos e os D ireitos d e P a p e l", d e O dila d e M êlo M a chado, a m b o s n a categoria profissional. Tais tra b a lh o s d isc u te m a c id a d a n ia d a m u lh e r, não, a p e nas, com o u m d ire ito fu n d a m e n ta l d isp o s to n a O r d e m C o n s titucional, m a s com o o d ire ito d a m u lh e r ser u m s e r q u e tem v o n ta d e . V o n ta d e n ã o a p e n a s d e chorar, a m a r, ser c o n q u is ta da , p a rir, receber rosas, cobrir-se, s e d u to ra m e n te , com re n das, s e d a s e saias, longas, cu rta s ou ro d a d a s , d e ser fem inina m a s v o n ta d e d e ser c id a d ã e ver rec o n h e c id o s e u d ire ito d e ser m u lh e r, n a d im e n sã o d o biológico, d o social e d o político; d e v e r re s p e ita d o seu direito d e gritar, d e d iz e r n ã o , d e d izer sim , d e p ro te sta r, escolher e lutar; d e p a rtic ip a r d o processo de c o n stru ç ã o d a h u m a n id a d e e c o n stru ir s u a p r ó p ria h istó ria e id e n tid a d e , d e form a real, sem tra u m a s e e s p o n ta n e a m en te. D e ser m u lh e r, d e ser parceira, c o m p a n h e ira e c ú m p li ce d o p ró p rio h o m e m , p a rtilh a n d o com ele, p o r inteiro, com resp e ito e in te g rid a d e , u m a vida d e s o n h o e rea lid a d e . C o m estas p a la v ra s, a C o m issã o N a c io n a l d a M u l h e r A d v o g a d a e n tre g a à c o m u n id a d e jurídica o livro C ID A D A N IA D A M U L H E R , U M A Q U E S T à O D E JU S T IÇ A . Maria Avelina Imbiriba Hesketh Presidente da Comissão Nacional da M ulher Advogada 17 C ID A D A N IA D A MULHER, U M A Q UESTÃO DE JUSTIÇA M a ria Jo sé d e F ig u e ire d o C a v a lc a n ti INTRODUÇÃO O escorço e m tem a dessa v a stid ã o e p r o f u n d id a d e e s p e c u lativas le v o u -m e a p e rc o rre r u m c a m in h o q u e se b ifu rc a em dois. O p rim e iro , se reveste d a an álise filosófica d o c o n te ú d o p lac e n tário d o D ireito Positivo, fo rm alista e d o g m á tic o , q u e v ige p o r u m d e te r m in a d o espaço d e te m p o e e m u m a d im e n são espacial. O u, em o u tra s p a la v ra s, ver-se-á o tem a in cu rso n o D ireito d o d e v e r- s e r a o q u a l se c o n tra p õ e o D ireito d o s e r e q u e p o r essa ra z ã o m e s m a é suscetível d e ser re d is c u tid o em nível d e instância filosófica. D estarte, faz-se a q u i u m exam e crítico d e sse p rec e itu á rio p o sitiv o a oferecer n o r m a s d e c o n d u ta aos p ro b le m a s d e c o n vivência e resp o stas à p ro b lem ática d a m u lh e r, e m v á ria s e ta p a s d a H istória d a H u m a n id a d e . Portanto, coteja-se o ideal de justiça, n o pertinente, e m épocas diferenciadas. E o procedim ento aqui ad o tad o é trazer à colação vários exem plos d e m ulheres que ro m p e ram com o status quo e decidiram viver o o u tro lado dessa ru p tu ra , a despeito d a contra p a rtid a q u e se lhes ofereceu em term os d e p u n içã o o u até de transm utação d e sua condição d e integrante d o sexo fem inino. 18 CIDAOAN/A OA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA E sp e c u la r a essência d a Justiça n o q u e ta n g e aos d ireitos d a s m u lh e res, n a s m ais d iv ersa s fases d a H u m a n id a d e , foi o n ú c le o d e n o sso in te n to a o realizar esta m o nografia. A s m u d a n ç a s nessa seara são palp áv eis, e isso v e m se d e se n c a d e a n d o d e sd e os clássicos p e n sad o re s até aos nossos dias. M eto d o lo g icam en te, a visão d o g m ática d o D ireito será c o n tra sta d a p e lo estofo filosófico d a n o rm a jurídica, este, cam bia n te e d e e te rn a discussão, e aquela, fixada em critérios de p e rm a n ê n c ia . A "ex p e riê n c ia" d o Direito c o n d u z a c a m in h o s to rtu o so s e m face d e u m a antítese c o n sta n te e n tre a d o g m ática jurídica e a h isto ric id a d e d o ser h u m a n o . Q u a n t o à s e g u n d a trilh a p e r c o r r id a - n a v e r d a d e e n tre c r u z a n d o - s e c o m a p r im e ir a - d iz r e s p e ito à p o litiz a ç ã o d o D ireito , e m e s tá g io p o s te rio r, p ro c e s s o e s se e m q u e as m u lh e re s fa z e m H is tó r ia e a ssim c o n tr ib u e m c o m c o n te ú d o s con cretos p a r a a in se rç ã o d e le s n o n o v o c o n te x to d o D ir e i to. O fe re c e -se , a s sim , u m a n o v a a r g a m a s s a p a r a q u e se e fe tu e o D ireito d e n tr o d a s re a lid a d e s sociais n a q u e le m o m e n to, g e r a n d o n o v a id e a ç ã o d e D ireito-Ju sto, e m m o m e n to s c ru c ia is d a m a io r significação. E, e v id e n te m e n te , g i r a n d o o eixo d a H is tó ria . C aso assim n ã o fosse, teríam os tão -so m e n te u m ideal u tó p ic o , i r r e a liz á v e l, u m a i n ó c u a voeis, e n g e s s a n d o a va lo ra ç ão co m o ideação, em c h o q u e com as c a m b ia n te s cir cu n stâ n c ia s d a vida. É só a n a lis a r a c a m in h a d a d e co n q u ista d o s d ire ito s d a m u lh e r p a ra q u e se afira a consistência d a a firm ação d e q u e a V id a H um an a objetivada d e s b o rd a n a p re m ê n c ia d a m u d a n ça d o s v a lo re s d a v id a e, co n seq ü e n te m e n te, d a q u e le s referi d o s à A xiologia Jurídica. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA É nessa d is p u ta e n tre id e a lid a d e e re a lid a d e q u e o Direito recolhe os c o n te ú d o s concretos q u e re v e s te m a a v e n tu r a h u m a n a n o c ria r n o v o s v a lo re s , n o v o s m o d e lo s , n o v o s p a ra d ig m a s . CAPÍTULO 1 DIREITOS COMO JUSTIÇA - QUAL JUSTIÇA? A c o n s id e ra r to d a a h istória d e co n q u ista d o s d ire ito s das m u l h e r e s e a te r c o m o p a n o d e f u n d o e s s a q u e s t ã o n a lo b re g u id ã o e m q u e a m esm a se d e s e n v o lv e u le n ta m e n te ao lo n g o d o s séculos, h á q u e se c o n sid e rar a q u i u m corte epistem o lógico a fim d e q u e se d istinga o conceito d e justiça com o algo m ate ria l e q u e vem se s u b sta n c ia liz a n d o a o correr dos tem pos. Essa linha m etodológica certam ente é c o n sid e ra d a em cotejo com o conceito d e justiça form al, q u e se d e s e n v o lv e u ig u a lm e n te e m p reté rito m ais a c u m u la d o n o â m b ito d o e s tu d o d o D ireito e d a M oral, com o e s tu d o s ideais, p ro sp e c tiv o s, m as d ista n c ia d o s d e u m a rea lid a d e v iv en ciad a e experienciada n o Ser (na realid ad e), em relação ao D ever-Ser d o D ireito e d a filosofia d a M oral. A ssim é q u e n o processo histórico, n o q u e d iz re s p e ito à p o siç ã o d a m u lh e r a s su m in d o espaço público, existem m u i tas c ontradições, pois o p e n s a m e n to h u m a n o n e ssa seara p e r corre u m c a m in h o linear, p o ré m d e lu ta s e n tre a cognoscibilid a d e d o d o g m a tism o , a p a r d e u m a estim a tiv a jurídica que p r e s s u p u n h a a m u lh e r co m o sexus imhecilitater, e tão-som ente p ro c ria d o ra , sexo fraco e a priori sexo d e p e n d e n te e m face d e u m a leitu ra p a triarc a l d a sociedade, q u e in fu n d iu a os séculos s u b s e q ü e n te s u m a invariável in te rp re taç ã o d e có d ig o s s im bólicos d e trim e n to so s ao sexo fem inino. 20 CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA N a v e rd a d e , n a lógica d o Direito, a p e n a s p a ra fala rm o s d o s e n tid o ju ríd ic o d a justiça, com o conceito filosófico tra b a lh a d o e h a u r id o p e la Civilização H u m a n a , p e rm ito -m e d iz e r que a e iucu bração d o significado d e justiça d e te rm in o u a priori u m a idéia d e u m d ire ito d e n tro d e u m a ótica d o g m a tista , o u seja, d e u m d o g m a tis m o ju ríd ico v iv en c ia d o p o r séculos, e alicerce c o n s tru íd o p a ra a recepção d o D ireito Positivo. E n ã o h á q u e se d e sp re z a r, a qui, esse p rim e iro se n tir d o ser h u m a n o , n a b u sc a e a p re e n sã o desse valor, q u e é a ig u a ld a d e , lin h a -m e stra d a e speculação d o s p rim e iro s filósofos, p e n s a d o re s d a m atéria. E a q u i se recolhe a idéia d o u n iv e rs a l q u a n d o se in v estig a o c onjunto d o m u n d o q u e n o s cerca. É e m to r n o d e sse n ú c le o - u n iv e rs o e a sua v a rie g a d a c o m p le x id a d e q u e o D ireito co m o C iência esp ecu lativ a vai b u s c a r n a Filoso fia os arte fa to s ideais p a ra a c o n stru ç ão d e se u s conceitos d e i g u a ld a d e e d e ju stiç a , o u m elhor, d a ju stiç a , cuja essência se revela n a ig u a ld a d e . 1.1 - A que região da filosofia do direito pertence a igualdade A h istó ria d a idéia form al d e justiça, co m o v alo r ju ríd ic o e d e n a tu r e z a especulativa, veio, n o a m a n h e c e r d a filosofia, d o s pitagóricos, com o, aliás, n o s ensina RECASENS STCHES.' S egundo aqueles, o conceito de justiça está atrelado a u m a relação d e igualdade. E que aquela se tra d u z e m m ed id a e em form a m atem ática, ou seja, "a justiça é u m n ú m e ro q u a d ra d o '\^ ’ o c o n c e ito p ita g ó ric o de ju s iiç a está e xp la n a d o em Luis R e ca s e n s S iches, in: T ratado G e n e ra l de F ilo s o fia d e i Derecho, 7. ed. M é xico/D F ; E d ito ria l P orrua, 1981, p. 482. 2 A q u i R e c a s e n s S ic h e s c ita A ris tó te le s , a trib u in d o a fra se a P itá g o ra s . Ibidem , p. 482. CIDADANIA PA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA P o rtan to , estabelece-se, com a justiça, u m a relação d e ig u a l d a d e e n tre as pessoas, se n d o estas ú ltim a s os term o s d a rela ção. E n tã o , d e n t r o d e u m a p e r s p e c ti v a p o r a s s i m d i z e r cabalística, P itágoras c o n tin u a a firm a n d o q u e o n ú m e r o q u a tro é u m e s p lê n d id o e x e m p lo d e h a rm o n ia e q u e , p o rta n to , este v alo r é reg u la d o r d e relações, que limita o ilim itad o e ig u a la o d esig u a l. D estarte, c o n s id e ra m os p ita g ó ric o s o q u a d r a d o g eo m é tric o co m o a im a g e m d a justiça, p o r q u e tem ele q u a tro la d o s iguais. N a v e rd a d e , estabelecia-se, aí, u m p rin c íp io filosófico q u e seria r e to m a d o e m in te rp re taç ã o m ais a b ra n g e n te e a p r o f u n d a d a p o r filósofos q u e v iria m e m linha diac rô n ic a d o s te m pos, q u a is sejam , s o b re tu d o , P latão e A ristóteles. Q u a is as contribuições a d v in d a s d esses p e n s a d o r e s n o to cante a o incansável d e s v e la m e n to d o conceito d e ig u a ld a d e ? E a q u e se rv e ele à m ulher? Sabe-se q u e P latão e rigiu o conceito d e justiça co m o se n d o u m a v ir tu d e u n iv ersa l, d a qual to d a s as d e m a is v irtu d e s p r o vêm . T o davia, a diké é u m valor, o q u a l d iz resp e ito originaria m e n te a u m a tra n sg re ssã o q u e m erecia co m p e n sa ç ão . À m e d id a q u e o reg im e político m u d a os seus característicos q u e e n v o lv e m u m a so c ie d a d e aristocrática, d e s b o r d a n d o n a d e m ocracia, a justiça p a s sa a ser in c o rp o ra d a à so c ie d a d e , com o v a lo r u n iv e rs a l e tra d u z id a n a lei escrita, n a nómos, a a tin g ir a to d o s q u e e ra m d isc ip lin a d o s p o r essa lei. Por o u tro lado , tal v a lo r n ã o se in c o rp o ra à to ta lid a d e d a quela sociedade, sa b id o q u e a c id a d a n ia era restrita a alg u n s atenienses, excluídos vário s se g m e n to s, c o m o o d a s m u lh e res, o d o s estra n g eiro s e o d o s servos. O re g im e d em o crático grego, a s se n ta d o n a de m o c ra cia dire ta, tin h a as s u a s p e c u lia rid a d e s, pois a de m o c ra cia era p len a o u lim ita d a , o u c o m o no 22 CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA caso d a s m u lh e res, n ã o existia. H a v ia u m d iv is o r d e á g u a s e essa in c a p a c id a d e relacionada à m u lh e r tin h a a s u a base id e o lógica, até m e s m o e m ARISTÓTELES, ele q u e ta m b é m n ã o era c o n s id e ra d o c id a d ã o ateniense p o r ser meteco (estrangeiro).-^ A filosofia aristoteliana q u e v in d a à p o s te r id a d e calçou o s e n t i d o d e ju s tiç a n o D ir e ito d e n o s s o s d i a s , c o m o q u e d o g m a tiz o u os conceitos d e justiça d is trib u tiv a e justiça c o r retiva, esta ú ltim a s u b d iv id id a e m justiça c o m u ta tiv a e justiça judicial, o u judiciária. V ê -se, a s s im , q u e o c o n c e ito d e j u s tiç a , d e s d e o s e u n a s c e d o u ro , v e m se m e ta m o rfo se a n d o e m face d e a v a n ç o s ci entíficos d e o u tra s disciplinas, inclusive d o c a m in h a r d a p r ó p ria T eologia, esta, q u e e m u m m o m e n to d a h u m a n i d a d e c o n su b sta n c ia v a -se n o p ró p rio D ireito o u este se e n c o n tra v a com a q u e la d e form a inco n fu n d ív el, p o is o ra m o d o p o d e r civil ac h av a -se um b elica im e n te u n id o ao p o d e r d e d iz e r as " v e r d a d e s a b so lu ta s" fora d o contexto d a n o ç ã o d e DEUS. N a v e rd a d e , a lin g u a g e m q u e e m p e d e r n iu as m e n ta lid a d e s dizia resp e ito a calar a m u lh e r, p o is se fazia coro d o v e rso d o poeta que, " u m m o d e s to silêncio é a h o n ra d a mulher".** C o n te x tu a liz a v a -se a q u e stã o te m p o ra l - social, e c o n ô m i ca, política - com as g ra n d e s in d ag a ç õ e s teológicas, a d e s p e i to d e q u e a idéia central d e justiça n ã o im p lic a v a e m m u d a r a 3 A ristóteles era m acedónio; em havendo fundado o seu Liceu, lucubrou as suas idéias filosóficas e políticas, m áxim e as contidas em A Política, na qual categoriza a condição de se r hum ano em a n im a l c ív ic o , o que m ostra a aptidão natural do h um ano de vive r no seio da C idade. Sabe-se que o seu suce sso r no Liceu foi Teofrasto, tam bém não-cidadão ateniense. A posse do terreno onde se situava a E scola P eripatética só foi possível graças à influência de Dem étrio, este, cidadão ateniense. Sobre essa sucessão e o fato aludido, v e r Luciano C anfora, in: A B ib li oteca D e s a p a re c id a - Histórias da Biblioteca de Alexandria, trad, de Federico Carotti, S ão Paulo; C om panhia das Letras, 1989, pp. 29/32. A frase refere-se à citação feita por AR IS TÓ TELES e atribuída a G órgias. Ver Aristóteles, in: A Política, trad, de Roberto Leal Ferreira, 2, ed. São Paulo: M artins Fontes, 1998, p. 36. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTiÇA cu ltu ra d a m isogenia o u d o a n tifem in ism o (p ara u s a r d e u m a ex p re ssã o m o d e rn a ), ou, em o u tra s p a la v ra s, ten ta v a -se a p a g a r q u a lq u e r v estíg io d e u m a e ra q u e p o r v e n t u r a p o s s a ter ex istid o e m q u e a m u lh e r situava-se e m u m p la n o d e p o d e r p o r a lg u n s c o n sid e ra d o d e era m atriarcal; ou, em te m p o s m ais recentes, a a d o ra ç ã o d e d e u s a s com o era o caso d a v en eração d o s e gípcios a ntigos à Isis, d e u s a p o d e ro s a p o r h a v e r lib e rta d o o seu filho H o ru s d e toda a m a ld a d e q u e lhe h a v ia infligi d o o irm ã o Seth a p ó s h a v e r m a ta d o o seu pai, Osíris. O D ireito ro m a n o a p ro p rio u -s e d a filosofia g reg a a fim de siste m a tiz a r e d a r epnstéme aos seus institutos. U m deles, o da justiça, referia-se ao ius sim m cíiique tribuere, conceito form al q u e tr a d u z u m a idéia d e m e d id a , ou seja, d a r "a. c a d a u m o q u e lhe é d e direito". O q u e significa se g u ir d e volta o c a m i n h o p a ra Aristóteles. A partir d a í especula-se igualm ente se esse direito é resu ltan te d e n o rm a s jurídicas positivas ou d e princípios jusnaturalistas, isto é, se esse co n h ecim en to está relacio n ad o a u m a reg ra d e d ire ito n a tu ra l, o u a u m a n o r m a d e direito escrito. O b ro ca rd o jurídico antes enunciado, atrib u íd o a ULPI AN O, d á n o v a d ire triz ao c h a m a d o direito n a tu ra l q u e p a s s a a ser e n te n d id o co m o u m c onjunto d e leis d a n a tu r e z a , q u e im pele os h o m e n s a d e te rm in a d a s ações. E a q u i e sta m o s a p e n a s d i a n te d e ações m ecânicas com o a procriação, p r o p a g a ç ã o d a espécie etc. T rata-se, antes, d e u m a d e tu r p a ç ã o d o s e n tid o ou a in d a d a p rim itiv id a d e d o conceito q u e veio a ser refo rm u la d o p o r Ju stin ian o , ao ser im p rim id o n a q u e le u m c a rá ter clara m e n te teológico, o u seja, tal espécie d e d ire ito p r o m a n a d e DEUS, p o rta n to , c o n te m p o râ n e o d o h o m e m d e s d e sem pre. N e ssa linha d e raciocínio vê-se q u e a i g u a l d a d e d e todos os h o m e n s p e rm a n e c e v in c u la d a à co n d iç ã o d e direito. N o 24 CIOADANiA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA e n tre ta n to , no tocante à m u lh e r, o d ire ito n a tu ra l p e rm a n e c e u restrito à n a tu re z a p r o p ria m e n te dita, ou seja, a m u lh e r na s u a m issã o d e re p ro d u ç ã o d o gê n e ro h u m a n o . CAPÍTULO 2 “CIDADANIA” PARA CERTAS FUNÇÕES; A MULHER VIRIL A c id a d a n ia s e m p re esteve ligada à q u e stã o d o p o d e r. Foi assim n o Egito A ntigo, n a G récia Clássica e e m R om a, sem fala rm o s n o p o d e r d a Igreja C atólica d u r a n te to d a a Id a d e M édia. O domus e ra espaço q u ase sa g ra d o n a R om a A ntiga. Era d e n tro dele q u e se exercia o am plíssim o p o d e r d o paterfamilias. O patria potestas era d e u m a g ra n d e z a a bsoluta. A b ra n g ia o p a trim ô n io , os filhos, a m u lh e r c asad a ciim manu, p o is o c a sa m e n to sine manu deix av a a esp o sa sob o p o d e r d o pater d a fam ília d e q u e p ro v in h a . P o rtan to , a in c a p a c id a d e civil e p o lí tica d a m u lh e r era absoluta. O fato curioso é q u e a m u lh e r p a ra a d q u ir ir u m a certa li b e r d a d e - e aí n ó s c o n sta tam o s u m a " c id a d a n ia " in cip ien te d e v e ria ela dirigir-se às organizações religiosas p a ra u m a vida co n v e n tu a l. Foi assim e m R om a, foi assim d u r a n t e to d a a Id a d e M é d ia e inclusive e m te m p o s m ais recentes. A v id a c o n s a g ra d a à religião tro u x e u m e sp aço p ú b lic o à m u lh e r, este q u e lhe era in te ira m e n te defeso. A m u lh e r ao a b ra ç a r o Sacerdócio p a s sa v a a g o z a r d e d e te r m in a d o s p r iv i lé g io s d a esfera m ascu lin a, com o o a p r e n d e r a ler e a escrever e a d a r v a z ão à sua in te lec tu a lid a d e etc. A s V estais e m Rom a, p o r ex em plo, p o d ia m te s te m u n h a r e m trib u n a is, fazer te sta m e n to , d is p o n d o liv re m e n te d e seus bens, d ire ito s esses n e g a d o s às m atro n as. E mais: a n d a v a m n a s ru a s p re c e d id a s d e CIDADftN'AOA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA lictor (oficial r o m a n o q u e a c o m p a n h a v a os magistrados).-" N o e n tre ta n to , p a ra q u e assim fossem reconhecidas, o seu status sexual e ra c o m p a ra d o ao d o h o m e m , p o r ta n to refe rid a a o a r q u é tip o viril.^ A fora as restrições q u e lhes e ra m exigidas, to d a s d e n a tu r e z a fisiológica: n ã o terem defeitos físicos, p e rm a n e c ere m v irg e n s etc. A m u lh e r q ualificada p a ra p a rtic ip a r d o e sp aç o público, u s a n d o o seu intelecto, d ev eria ser e q u ip a r a d a a o h o m e m , o q u e se c o n stitu ía u m "en c ô m io ", p o r ser-lhe rec o n h e c id a essa c ap acid ad e. Foi assim q u e p o r interm édio de u m am igo C ristina d e Pisan (1364) foi reconh ecida pela sua p re p a ra ç ã o intelectual e m co p ia r m a n u s c rito s e em realizar escritos, in clu siv e p o rta d o re s d e reclam ações d e m u lh e res. O elogio p a rtiu d e s e u am igo Joào G e rs o n ao afirm ar q u e C ristin a e ra insígnis femína virilis fem ina (m u lh e r insigne, m u lh e r viril). Era necessário atingir essa c o n d ição e ser reconhecida co m o tal a fim d e q u e fosse p o ssív e l 0 exercício d e certas capacidades.^ F oram necessários alg u n s séculos p a ra q u e "o d ire ito da m u lh e r a ser v a lo riz a d a e e d u c a d a livre d e p a d rõ e s este reo ti p a d o s d e c o m p o rta m e n to e co stu m e s sociais e c u ltu ra is b a se a d o s e m conceitos d e in fe rio rid a d e o u subordinação"® fosse p ro c la m a d o e re s p e ita d o pelo E stado e p ela Sociedade. ^ Do que se deduz que o seu status era com parado ao dos m agistrados, A sua im p od â n cia era tam anha que a elas eram confiados os segredos dos particulares, e às vezes até m esm o os do Estado. ®Sobre as vestais, ver S antiago M ontero. in: Deusas e A d vinhas - M ulher e A d ivi nhação na Rom a Antiga, trad, de Nelson Canabarro, S ão Paulo: M usa Editora. 1998, pp. 86-88. ' Ver José Rivair M acedo, in: A m ulh e r na Idade Média. 5, ed. (rev. e am p.). São Paulo: Editora Contexto, 2002, pp. 93-97. ®C o nvenção Interam ericana para Prevenir, Punir e E rradicar a Violência C ontra a M ulher - Art. 6®, "b". prom ulgada pelo Decreto n° 1.973. de 01/08/1996, publicado no DOU de 02/08/1996, pp. 14470-14473. 26 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA E o b v iam e n te pelo conceito d a ig u a ld a d e e d a e q ü id a d e , n ã o se h a v e rá d e e d u c a r as m u lh e re s a p e n a s p a ra se re m v ir tuosas, co m o q u e ria ARISTÓTELES; e, sim , ta m b é m p a ra se r e m p a rtic ip a tiv a s d o p rocesso político, até p o r q u e a n o ç ã o d e justiça, hoje, é lida sob o u tro â n g u lo a fim d e v e r a m u lh e r co m o o O u tro d a parcela d a H u m a n id a d e , o u seja, o tem a d a im a g e m d e DEUS, n o ser h u m a n o , a ssu m e h o d ie r n a m e n te u m c a rá te r an tro p o ló g ic o , a se v e r aí a id e n tid a d e h u m a n a d a m u lh e r e m s u a relação d e a lte rid a d e com o h o m e m . D e p re e n d e -se q u e o caráter d o g m ático d e justiça se i m p u n h a n a S ociedade a ser v iv id o com o ideal jurídico-político nas so c ie d a d e s q u e n o s an tecederam . A p a r , e c o n tra d ito ria m e n te , d e u m e lu c u b ra çã o b rilh a n te d o c o n te ú d o d a ju stiç a d istrib u tiv a,^ ARISTÓTELES e x o rta v a que: "... a te m p e ra n ç a e a justiça d iferem até e n tre p essoas livres, d a s q u a is u m a é s u p e rio r e a o u tra inferior, p o r e x e m plo, e n tre h o m e m e m ulher. A coragem d e u m h o m e m se a p r o xim aria d a p u s ila n im id a d e se fosse a p e n a s ig u al à d e u m a m u lh e r, e a m u lh e r pa ssa ria p o r a tre v id a se n ã o fosse m ais r e s e rv a d a d o q u e u m h o m e m e m su a s p a la v ra s C o m isso se v ê q u e o p r ó p r io co n ceito d e ju stiça sofre g ra d a ç ã o e to n a lid a d e s, haja vista que, m e s m o e n tre as p e s so as livres, h á d e sig u a ld a d e s. A p u s ila n im id a d e d iz resp eito à m u lh e r; o a tre v im e n to , ao h o m em . Ao h o m e m , a virtude; à m u lh e r, é co n ferid a a honra. Esses d o is v o cáb u lo s so freram m u d a n ç a s e m sua se m â n ti® Em Aristóteles, a idéia de justiça distributiva, a qual integrou o Direito e hoje é um ideal igualm ente d e natureza estruluralm ente poUlica, aplica-se à divisã o da s h o n ras e do s bens públicos e se direciona ao objetivo de que cada cidadão receba dessas honras e bens a porção adequada a seu m érito com o qual se afirm a o princip io da igualdade. Ver Aristóteles, op. c il, p. 51. O destaque na citação é meu. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA ca, pois n a lin g u a g e m d o s e stereó tip o s e x istentes e n tre os se xos, aq u e le s v o c á b u lo s d e significados p a s s a r a m a significantes, isto é, a v irtu d e é u m a p a la v ra q u e d e n o ta c o ra g e m , v a lentia, força, v ig o r m asculino, e n q u a n to a h o n r a p a s s o u a tra d u z ir o p a p e l q u e a m u lh e r d ev eria exercer c o m relação ao s e u c o m p o rta m e n to p riv a d o e p úblico. A h o n r a é a trib u to d a n a tu r e z a fem inina. A justiça form al d e scu ro u -se , p o is o d ire i to e scrito estabelecia a ig u a ld a d e jurídica, m a s n ã o h a v ia u m a p re s ta ç ã o p o sitiv a n o p rec e itu á rio ju ríd ic o -p o sitiv o n o se n ti d o d e d a r c u m p rim e n to ao estabelecido d o g m a tic a m e n te . Isso q u e r d iz e r q u e a re a lid a d e q u e c irc u n d a v a a lei era outra. M esm o as m u lh e res q u e escreviam sobre as p e ssoas d e seu sexo - m ulher viril - eram em sua m aioria co n sid e rad a s rigoro sas em su a s p réd icas e enunciados, ao se referirem à m ulher. A p ró p ria C ristin a d e Pisán, c itada lin h a s atrás, é vista po r LEILA M E Z A N ALG RA N TI co m o a u to ra rig o ro sa e m seus preceitos sobre a m ulher. Diz essa A utora: "O livro d e Christine d e P izan , escrito n o início d o século XV e d irig id o às m u lh e res d e to d a s a s o rigens e classes, r e ú n e u m c o n ju n to d e a d v e r tências so b re a c o n d u ta e a m o ra l fem ininas, e n a d a deixa a d e seja r frente à s e v e rid a d e d o s conselhos m a sc u lin o s A h o n r a é e x plicitam ente u m su b sta n tiv o d u p la m e n te fe m in in o : p e la su a etim ologia e pela lin g u a g e m c o n s tru íd a so b re o im a g in á rio social d a época. E m ais: v in c u la d o à sexuali d a d e d a m u lh e r. Daí, o q u e não é d e a d m ir a r q u e n a práxis d a legislação p e n a l b rasileira, "n a legítim a defesa d a h o n r a " , foi e stabelecido u m co stu m e em q u e esse conceito d iz respeito n ã o a u m a v irtu d e pessoal, m as ao c o m p o rta m e n to sexual fe" Sobre o conceito de honra da m ulher colonial brasileira v e r Leila M ezan Algranti, in: H onradas e D evolas: M ulheres da Colônia - C ondição fem inina nos conventos e recolhim entos do Sudeste do Brasil, 1750 - 1822. Rio de Janeiro: José O lym pic, Brasília: Edunb, 1993, C apítulo 3, pp. 109-156. 28 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA m in in o , q u e d e s b o rd a p a ra o espaço p ú b lic o m asc u lin o , s e n d o rejeitado p elo q u e se considera u m d esvio d e c o m p o rta m e n to social, p o r e s ta r lig a d o a o a d u lté rio fem in in o . Pelo m enos, esse conceito vig eu p o r m u ito tem po. Fala-se ig u a lm e n te d o rigor com q u e tra to u as m u lh e re s H ild eg ard Von Bingen, a p o n tad a com o u m a m u lh e r q u e foge aos pad rõ es culturais da época em q u e viveu. Foi abadessa de u m m osteiro beneditino, no século XII, na A lem anha, e que exer ceu u m a forte influência sobre as lideranças d e seu tem po. Q u a n d o se le v a n to u a q u e stã o d e q u e H ild e g a rd escrevia a le n ta d o s livros, livros q u e m a ra v ilh a v a m e q u e e ra m p r o d u to d e rev elação d iv in a , foi tal fato lev a d o ao P a p a , o q u a l d e s ig n o u u m a c o m issão q u e ex am in aria o fato in locum. C onsta q u e e m p a la v ra d irig id a ao P a p a A nastácio IV, H ild e g a rd te ria im p re c a d o q u e o S u m o Pontífice e stav a n e g lig e n c ia n d o a régia virtude da justiça.’^ '2 0 costum e vem de m uito longe em projeção de tem po passado. As O rdenações Filipinas concediam ao marido da adúltera o direito de a matar, havendo de ser a morte civil ou natural, a depender das circunstâncias. (Livro 5, T ítulo XXV). Igual mente 0 m arido podia m atar o adúltero, desde que esteja certo que am bos cometem adultério. Na hipótese de flagrante delito ou em decorrência de decisão judicial que aplicasse a pena de morte à m ulher adúltera, todos os bens dela revertiam a favor do m arido. (Livro 5, Título XXV). Hildegard escreveu muito. Dizem que o C onvento por ela fundado no monte Rupert, em Bingen, Alem anha, tornou-se a sa la de e s p e ra d a E u ro p a e que pessoas pro em inentes da época vinham aconselhar-se com ela: papas, bispos e príncipes, Cfr Kurt Allgeier, In: Receitas M ilagrosas de Médicos e M ísticos - Rem édios Naturais de Dois M ilênios. Trad, de Célia Maria W ürth Teixeira, [s. local]: Editora Tecnoprint, 1986, p, 61. Ainda sobre Hildegard Von Btngen, ver José Rivair M acedo. In: A M u lh e r na Idade Média, 5. ed. (rev. e amp,). São Paulo: Contexto, 2002, p. 87. Igual mente, com a inform ação de que Hildegard foi estigm atizada por cria r problem as em função de sua inteligência e de suas idéias e em face disso haver sido-lhe nega dos os sacram entos por seis meses, retirando-lhe, também, o direito de ser musicista, v e r Peter Stanford, In: A Papisa ~ A Busca pela Verdade Atrás do M istério da Papisa Joana. Trad, de M árcia Frazão, Rio de Janeiro: Gryphus, 2000, p. 131. E com a conotação de que Hildegard von Bingen adotou a doutrina de Agostinho quanto ao pecado original, e tam bém fazendo alusão ao livro sobre m edicina natural escrito por aquela Abadessa, no que tange à questão da contracepção, v e r u ta RankeHeinem ann, In: Eunucos Pelo Reino de Deus ■ M ulheres, S exualidade e a Igreja Católica, 3. ed. Rio de Janeiro: Record - Rosa dos Ventos, 1996. pp. 199 e 216. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO OE JUSTIÇA O d isc u rso d a justiça im p rim ia a d e s ig u a ld a d e e n tre os sexos, ao m e s m o te m p o q u e se d e b la te ra v a sobre u m conceito p u r a m e n te d o g m á tic o e d e justiça terrena. H ild e g a rd v iv eu e n tr e 1098 a 1179, m a is d e u m sé cu lo a n te s d e T o m á s de A q u in o , p o ré m a T eologia, p ro d u to r a d o D ireito d e e n tão , v i via a florescência d a Patrística, q u e exaltava o p e c a d o origi nal, a q u e d a d o h o m e m e com fortes a c en to s d o conceito m an iq u e ísta , d o b e m e d o mal. O ra , a c u ltu r a re lig io s a a g o s tin ia n a i m p r e g n o u o D ireito e aí se s e g u e u m e sfo rço d e t r a n s c e n d e n ta liz a r a d o u t r i n a ju ríd ic a , a o l a d o d e u m a c o n c e p ç ã o p e s s im is ta e d e m e ritó ria d a n a tu r e z a h u m a n a , o q u e le v o u a e s ta b e le c e r d e s ig u a l d a d e s e n tr e o s sexos, e m v ir tu d e d o p e c a d o o rig in a l. A m u lh e r, re s p o n s á v e l p e la f ra q u e z a n o É d e n , le v o u o s e u c o m p a n h e ir o a p e c a r, e d a í a d e c a íd a d o se r h u m a n o e m to d a a s u a d e s c e n d ê n c ia . A filosofia d a justiça passa a in te g rar a recolha d a iusfilosofia d o Bispo d e H ip o n a . A questão da justiça d o s d ire ito s d a m u lh e r achava-se n o continente d o m an iq u e ísm o c u ltu a d o p o r S anto A g o stin h o d u r a n te a n o s d e s u a ju v e n tu d e e p re se n te em s u a s obras, inclusive n a auto b io g rafia q u e e s c r e v e u . E r a a lu ta d o b e m c o n tra o m al. A n a tu re z a c o n tra o intelecto. A Biologia c o n tra a C u ltu ra . R estou à m u lh e r, a n a tu r e z a com a s u a c a p a c id a d e p ro c ria d o ra , p o ré m frágil p e lo s e u p e c a d o d e te n ta r o h o m e m A d ã o n o Paraíso. A idéia d e ig u a ld a d e c o n stru íd a p e lo s filósofos g reg o s so fria injunção d e u m a exegese q u e p a rtia d o m al e d o b e m d o u trin a m a n iq u e ís ta re s v a la n d o p a ra a q u e stã o d a subor- Os seus livros m ais conhecidos são: De Civitate D e i (A C idade de Deus), inicia do em 424 d.C., e Confissões, iniciado em 396 e co m pletado em 399, com um C a p itu lo sobre a su a v id a após a conversão. Trata-se, aqui, de sua autobiografia. C ID A D A N IA D A MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA d in ação , d a p o larização d a existência d e u m ser s u p e rio r (sexo m asculino), e d e u m ser inferior (sexo fem inino).’^ A q u e s tã o d a m a te rn id a d e foi ele v a d a à co n d ição d e s e r a f u n ç ã o e x c lu s iv a d a m u lh e r , p o is a r e p r o d u ç ã o n ã o se c o m p a tib iliz a v a com a p ro d u ç ã o , o u seja, era u m a p r o d u ç ã o p a ra trá s - re -p ro d u ç ã o u m a função m e ra m e n te biológica e so c ia lm e n te genealógica. Esse era o p re d ic a m e n to a ceito pela C u ltu ra d a época e se d im e n to u -se co m o tal. CAPÍTULO 3 A CIDADANIA: SUBSTANTIVO DUPLAMENTE FEMININO EM MEIO AOS MOVIMENTOS DE MASSA O s d ire ito s d a m u lh e r e e m p a rtic u la r os seus d ire ito s de c id a d a n ia p ro v ê m n ã o d e v alo res s e d im e n ta d o s n a C u ltu ra d a H u m a n id a d e , e, sim , d e contravalores d e fe n d id o s e m m o v im e n to s d e m assa d a C on tracu ltu ra. N o s an o s sessenta d o século XX, irro m p e m m o v im e n to s d e g r u p o s q u e le v a n ta m b a n d e ira s com o as q u e tra d u z ia m a em e rg ê n cia d o pacifism o, d o m o v im e n to ecológico, e d o m o v im e n to d e ig u a ld a d e d e d ireitos en tre h o m e n s e m u lh e res, d e n tre o utros. São os c h a m a d o s g ru p o s d e p ressã o , o u seja, p e s so a s a g ru p a d a s e m face d e u m a p a u ta d e reivindicações 0 m aniqueísm o é apontado com o o últim o grande m ovim ento reiigioso no O rie n te. surgido após o Cristianism o e anterior ao Islamismo. Foi fu n da d o por M ani, de origem persa, o qual se dizia ser o Espírito Santo prom etido por Jesus Cristo. A sua doutrina considerava a procriaçào um ato diabólico, de vez que o hom em era um ser g e rado p o r um a partícula de luz presa em um corpo g estado p o r dem ônios. Por aí se d eduz a forte influência dessa doutrina nos conceitos teológicos e filo só ficos desenvolvidos por Agostinho, o que levou a C ultura R eligiosa a perpassar séculos com conceitos antinóm icos sobre o que é bom e o que é mal. Essa c o n cepção, no que tange à exegese religiosa cristã, tem se m odificado em função de enfoque antropológico, trabalhado por teólogas, que utilizam a noção de anthrópos. isto é, do m asculino e do fem inino com o conceito universal de hum anidade. Sobre Mani e a sua doutrina, ve r Uta R anke-Heinem ann, in: op. cit., p. 93. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO OE JUSTIÇA. q u e tê m u m a lin g u a g e m d e su b sta n c ia lid a d e , q u a n to a o d i reito à v id a e à d ig n id a d e . N o bojo d o expressar d a C ontracultura, a m u lh e r reivindica direitos d e cidadania, vistos estes com o u m a g a m a d e direitos q u e incluem direitos civis - o de livre expressão, d e reunião e de ser tratada com igualdade perante a lei; direitos políticos que abrangem u m a ação positiva que, além d e votar e ser votada, seja m ais participante do processo político, com lideranças em com unidades, paróquias etc.; e direitos d e natureza socioeconômica, a ter em conta aqui o direito a p ro d u zir econom icam ente, a ser m em b ro ativo d a sociedade p ro d u tiv a e d e c o n su m o etc., afora o direito a lid a r com o seu corpo e a su a sexualidade. H á a q u i u m ro m p im e n to com a H istória C o n tín u a , com o d iz FO U CA U LT, o u seja, há u m a r u p tu r a c om os conceitos de c o n tin u id a d e histórica. N asce aqui o u tra v e rs ã o d e p o d e r, n ã o m ais 0 q u e inculca e stig m a s ao c o rp o e à alm a, m a s u m a s u p e ração d o patria protestas, p o r m eio d e u m a tra n sfo rm a ç ã o c u l tu ra l, q u e v e m a p a g a n d o a noção trad icio n al rom anística. Essa tra n sfo rm a ç ã o , n a v e rd a d e , é p a rte d o m o v im e n to racionalista d o Ilu m in ism o q u e detecta n o s a g ra d o - e aqui o v o c á b u lo é extensivo a a te n d e r várias fo rm a s d e m an ifestação religiosa - a raz ã o m a io r d e p o s tu ra s id en tific ad a s com n o ções alegóricas d e se p a ra ç ã o e n tre h o m e n s e m u lh e re s , s o b re tu d o q u a n d o essas ú ltim a s u tiliz a m fo rm a s racio n ais o u n ã o d e d e te n ç ã o d e p o d e r. D o ra v a n te o p o d e r é rac io n a liz ad o , diz WEBER, a tra v é s d e c o n d u ta s racionais - legais. O direito político a ser estendido à m u lh e r é m ed id a m aior a ser conquistada, algo m ais que o p o d er d e votar e d e ser votada. N a s p e g a d a s d a H istória, com relação ao d ire ito d e voto, há q u e se d iz e r q u e n o Brasil, d e s d e a n te s d e s u a i n d e p e n d ê n cia fo rm al, u m d e p u ta d o b a ia n o , r e p r e s e n ta n te n a s C ortes CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO OE JUSTIÇA G erais p o r tu g u e s a s (1822), c o n trib u iu c om u m a d ita m e n to ao a rtig o 33 d o p rojeto d a C o n stituição q u e e n tã o se e laborava, n o q u a l p r o p u n h a q u e a m u lh e r q u e fosse m ã e d e seis filhos legítim os tivesse d ireito a v o tar n a s eleições. A p ro p o siç ã o foi d e rro ta d a p o r u m d e p u ta d o p o rtu g u ê s , ao a firm a r este e m seu p a recer q u e se tra ta v a d o exercício d e u m d ire ito político e q u e as m u lh e re s n ã o o têm p o r se re m in ca p a z e s.’^ E acrescenta e m latim: "M ulier in ecclesia taceat" (a m u lh e r d e v e se calar n a s reu n iõ e s).’^ Infere-se assim o estig m a social im p u ta d o à m u lh e r, pois m e s m o o c ritério biológico d e ser m ãe d e seis filhos n ã o a u to riz o u a concessão d o d ire ito d e sufrágio, N ã o consta o n o m e d e sse d e p u ta d o b a ia n o n o s a n a is d a C o n stitu in te b rasile ira d e 1823, e o p rojeto d e s e n v o lv id o p e los d ez m e m b ro s n o m e a d o s pelo Im p e rad o r, a p ó s a dissolvição d a A s s e m b lé ia C o n s t it u i n te , a p a r d e a d o t a r o s u f r á g io censitário, n ã o a d m itiu o v oto d a m u lh e r, d e fo rm a a p e rm itir o d ireito d e p a rticip a ç ão n o p rocesso eleitoral. (Arts. 91 a 97 d a C o n stitu içã o brasileira d e 1824). O I lu m in is m o n ã o h a v ia d is p e r s a d o a in d a o e s te re ó tip o d a m u lh e r b iológica e a s u a in c a p a c id a d e p a ra o tra to d o e s p a ç o p úblico. Este ú ltim o era a n tô n im o d o e s p a ç o d o m é s ti co e este u m sig n ific a n te u n ív o c o a p lic a d o a p e n a s às tare fa s fe m in in a s m a n u a is . Tratava-se do Deputado D om ingos Borges de Barres, representante da P rovín cia da Bahia às Cortes G erais portuguesas incum bidas de elaborar a prim eira C o n s tituição de Portugal. A inform ação colhida de João Batista C ascudo Rodrigues acres centa ser aquele d eputado pai da futura C ondessa de Barrai, a q uem ajunto a inform ação de te r sido aquela por seu turno uma m ulher do tipo “viril", pela sua participação intensa na vida social do Segundo Im pério, havendo troca d o co rre s pondência com o Im perador Pedro II. A inform ação de C a scudo R odrigues está contida em A M u lh e r Brasileira - Direitos Políticos e Civis, 3, ed. Brasília; Centro G ráfico d o S e n a d o Federal. 1993, pp. 43-44. A tradução é minha. CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA CAPÍTULO 4 A MULHER E A POLÍTICA DO PODER; A CAÇA ÀS BRUXAS O p o d e r, p a la v ra polissêm ica e q u e foi tr a d u z id a em lin g u a g e n s v a ria d a s, subjaz às políticas d e m a n d o , d e o b e d iê n cia ou, co m o d iz MAX WEBER, às relações d e dominação.^® In c u rs io n a n d o n a H istória d a Inquisição h á d e se verificar q u e literalm en te a caça às b ru x as foi u m a fo rm a d e m arg in a li z a r as m u lh e re s q u e a g iam n a in fo rm a lid a d e d o p o d e r, n o tra to d a s forças d a n a tu re z a , e p o rta n to u m a espécie d e cercea m e n to d a v o z fem inina d o n ã o -d ito , c o m b a tid o p elo P o d e r Oficial co m o apostasia. A b ru x a tra b a lh a v a às c a la d a s e esse silêncio tin h a voz a lta m e n te incôm oda. U m a fo rm a d e n ã o -d e c la ra r d ire ito s e ra a d e p e rs e g u ir m e d ia n te a abjuração, q u e tan to se rev estiu d e e stig m a s soci ais q u a n to d e co n d e n aç ã o religiosa. E a q u i o im a g in á rio d o s a c u sa d o re s vai longe ao p o n to d e rev e la r q u e os d e m ô n io s p o d e m p a rtic ip a r d a geração de h u m a n o s , a tra v é s d a s b ru x as q u e e m conluio carnal com íncubos e súcubos,'^ g e ra m seres h u m a n o s . São, assim , m u lh e res d e n o m in a d a s d e b ru x a s ou feiticeiras p o r causa d a " m a g n itu d e d e seus a to s m aléficos". E "enfeitiçam a m en te d o s hom ens, levando-os à loucura, ao ódio in sa n o e à lascívia d e sre g rad a ". Para o e slu d o da Sociologia da Dom inação, ve r M AX W E B E R , in: Econom ia y S o c ie d a d - E.sbozo de ‘S ociologia C om preensiva’. Trad, de José M edina Echavaría et allii. M éxico: Fondo de C ultura Econôm ica, 1992, pp. 695 a 889. íncubos e Súcubos são dem ônios m asculinos e fem ininos que em conluio carnal com as bruxas faziam -nas procriadoras de seres m onstruosos. Sobre a matéria, ver verbetes ín c u b o s e s ú c u b o s in: M anfred Lurker, Dicionário de D ioses y Diosas, D iablos y Dem ônios. Barcelona/B uenos Aires/M éxico; E diciones Paidos Ibérica (s.d,], " Ver sobre o tem a O M artelo das Feiticeiras - Malleus M aleficarum Paulo Fróes, 12, ed. Rio de Janeiro: R ecord/Rosa dos Tempos, 1997. Ver Introdução Histórica, de Rose M arie Muraro. Ibidem, pp. 5 a 17, trad, de CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA É m ister deixar claro q u e aqui é feita u m a referência científi ca n o sen tid o d a H istória d a s M entalidades. Trata-se d e ação situada n o te m p o histórico, que se apóia em saber teórico, com o tam b é m e m regras im aginárias, os quais lev a ra m à p rática for m as d e agir q u e vistas a distância d o te m p o e m q u e aquelas foram p ro d u z id a s p o d e p arecer - e parece, efetivam ente - em evento d eclaradam ente esdrúxulo e sem cabida nos dias d e hoje. O p o d e r, e n tre ta n to , secularizou-se e se a g a sa lh a n o d o m í nio d a Sociologia, d a Ciência Política e d o Direito. A secularização é d e a lg u m a form a u m m o d o d e d essacralizar. E p a ssa a ser u m v a lo r n o com plexo d e v alo res d a Era M o d ern a. O u d ito em o u tra s palavras: com a secu larização h á u m e n te n d im e n to e n tre religião e c ultura, d e n tro d e u m p rocesso d e historicização e d e m u n d ificação d o se n tim e n to religioso. Este é e x p u rg a d o d o s elem entos q u e lhe in q u in a v a m p o r p e r p e tr a r a titu d e s orto d o x as, o u fu n d a m e n ta lis ta s e com ap o io d o p o d e r civil, e s ta n d o este a tre la d o àquele, c om o acontecia na Id a d e M édia, e, ain d a, n o início d a Era M o d e rn a . A q u e s tã o d o p o d e r e m conexão c om o tem a d a s b ru x a s há de ser v ista p o r u m p ris m a "político" d o conceito u n o d o Es tad o , ao m e s m o te m p o tem p o ral e espiritual, a n c o ra d o n a Ig re ja C atólica q u e e n tã o se institucionalizava. É o b ra resu lta n te de vário s fatores, inclusive n a o rd e m sincrônica e diacrônica do s fatos. H á u m d e lin e a m e n to p r o lo n g a d o a tra v é s d o s te m p o s, na c o n fig u ração d o Estado. D e sd e a Bula d e Inocêncio VIII (1484), a q u a l refo rço u o a p a re lh a m e n to d o T ribunal Inquisitório, o u d e antes, d e vez q u e o T r ib u n a l d o S a n to O fício foi i n s t i tu í d o p e lo P a p a G reg ó rio IX (1170-1241)^^ com o instituição p e rm a n e n te , wrfe; Foi esse Papa quem instituiu a Inquisição sob a direção dos dom inicanos. C o n tudo, s a b e -se q ue o P apa que ap ro vo u o uso de to rtu ra na In q uisição , a fim de CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA et orbi, e com vistas ao com bate d a s heresias. Esse T rib u n a l s e d ia d o e m T o u lo u se torna-se a m p lia d o ju risd ic io n alm en te p a ra a tin g ir a França, E sp an h a, A le m a n h a e, e m m e n o r esca la, P ortugal. H avia, e v id e n te m e n te, o a p o io d o b ra ç o secular, p o is sabe-se q u e os juizes eclesiásticos n ã o p r o n u n c ia v a m p e n a s capitais, d e v e n d o os réu s ser e n tre g u e s a o ju lg a m e n to do p o d e r civil. P raticam ente, este fun cio n av a co m o o a p a re lh am e n to ideológico d a q u e le T ribunal, haja v ista q u e o s u b stra to filosófico d o s processos foi e m b a s a d o e m textos religiosos. M ais u m a vez, a sim bologia está fortem ente p resente, pois aqui 0 religioso m escla-se com o m ágico, o u seja, a perseguição às b ru x a s tem s u p e d â n e o n o m u n d o d o im aginário, em q u e se creu q u e o " p o d e r" delas em certa m e d id a é objeto d a im agina ção d e q u e m tu d o p o d ia fazer, o u seja, ter o p o d e r aliado ao D em ônio, p a ra tu d o realizar, inclusive operações inacreditáveis, com o, p o r exem plo, criar seres p o r m etam orfose. E, ain d a, apoi a d o s os a u to res d o Malleus Melleficaram em filósofos m u ç u lm a nos, su g e re m aqueles que o p o d e r d a im aginação é capaz de, na rea lid a d e o u n a aparência, m odificar os corpos d e o u tra s p es soas, d e s d e q u e esse p o d e r d e im aginação n ã o seja reprimido.^^ colher co nfissões de heresia, foi Inocèncio IV {1200-1254), Assim , o Papa G regório IX é v is to c o m o um P o n tífic e v irtu o s o , h a v e n d o sid o um fo rte d e fe n s o r dos franciscanos. Foi ele quem canonizou Francisco de Assis, seu am igo pessoal, em 1228, A n to n io de P ádua (ou de Lisboa), em 1232, e Dom ingos, em 1234. Ao criar a Inquisição, deliberou passar às m ãos das autoridades civis a questão da pena de m orte. Foi o m esm o Papa quem determ inou a reabertura da U niversidade de Pa ris, em 1231, m odificando o interdito contra obras filosóficas de Aristóteles. Ver verbetes G regório IX e Inocéncio IV, in: Richard P. M cBrien, O s P a p a s - O s P ontí fices de São Pedro a João Paulo II, trad, de Bárbara Theoto Lam bert. São Paulo: Edições Loyola, 2000, pp. 218-220 e 221-222, respectivam ente a o s dois verbetes. 22 O s filósofos m uçulm anos citados são AL-G AZALI e AVICENA, o prim eiro com uma fo rm a çã o eclética, havendo sofrido várias influências do pen sam e n to de sua época (1059/1111), tais como, da filosofia, teologia e do e soterism o e o segundo, na verdade, a nterior a este. conhecido pelo nom e de AVICENA, nascido em 980 da era cristã e fam oso com o o m aior nom e da filosofia neopla tô n ica islâm ica, bem com o da m edicina medieval. 36 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA C o n tu d o , a q u e s tã o d a p e rs e g u iç ã o n o to ca n te às b r u x a s é sig n ificativ o d e u m a é p o c a e m q u e se co m e ç a v a a d e s c o b rir q u e o s a b e r g e ra p o d e r. Essa id e n tid a d e com eça a se e sb o ça r a p a r t i r d o m a r c o g a l i l e a n o , m a r c o q u e fo i c a p a z d e d e s c o n s tru ir d o g m a s f o rm a d o s e aceitos ao lo n g o d o s sé c u los. É c o m o d ito p o r H IL T O N JAPIASSU, q u e "... o s e n tid o d o c o n h e c e r se c o n v e rte e m ação, e m a to d e a p o d e ra r-s e , em d o m in a ç ã o o u apropriação".^^ N a v e rd a d e , a Ciência d e to n o u o sa b er co m o fonte d e p o d er, c o n h e cim en to u n iversal, ca p az d e m u d a r o c o n h e c im e n to estabelecido, n a interferência d a N a tu re z a e n o p o d e r d a d e te n ç ã o d e sse conhecim ento. É o desafio d o h o m e m d o s a b e r q u e altera a c om posição d a s e s tru tu ra s d o p o d e r. T orn a-se " in s u p o rtá v e l" v e r a b ru x a m a n ip u la n d o as for ças d a N a tu re z a , co m o aq u e la s d e se n v o lv id a s p o r b e n z e d e i ras, c u ra n d e ira s e p rin c ip a lm e n te p o r p arteiras. A in d a q u e d e u m a fo rm a não-científica. E era tão forte essa questão d a crença nesses elem entos que todo 0 arcabouço d a Justiça Civil se prestava a colaborar na ulti m ação desses processos. O próprio Malleus Maleficariirn é um a peça jurídico-ideológica, d ifundida p o r toda a E uropa, e m sua prim eira versão latina e, após, em traduções, e u m a peça essenci al para o e stu d o d a m entalidade d a época, na qual dois teólogos dom inicanos - H en ry K ram er e James Sprenger - eram professo res e delegatários para os fins d e realização d a "justiça", com plenos e irrestritos poderes para o exercício d e seus misteres. C u rio sa m e n te , e m época m ais recente, ISAAC N E W T O N serve-se d e con h ecim en to s esotéricos, a lq u im istas, ocultistas, a p o n to d e K eynes, e m 1946, h a v e r d e c la rad o q u e N E W T O N , Cfr. Hilton Japiassu, in: / is Paixões da Ciência - Estudos de História das C iê n ci as. São Paulo: Editora Letras & Letras, 1991, p, 300, CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA s e n d o o m a io r filho d e C a m b rid g e , foi n ã o o p r im e iro p e n s a d o r d a era d a razão, p o ré m o ú ltim o d o s m ágicos/'^ A in d a s e g u n d o JAPIASSU, foi rele v a n te o trato d a tra d i ção m ágica o u h erm ética n o p e n s a m e n to d e N E W T O N , in clu sive h a v e n d o este p r e c u rs o r cientista d o M u n d o M o d e rn o h a v e r re a liz a d o u m e s tu d o tra n sd isc ip lin a r, e m q u e são e s tu d a d o s P itá g o ra s - o q u e c o m p a ro u a Justiça à p erfeição d e u m n ú m e r o q u a d ra d o - , Virgílio, São Paulo, M oisés, S alom ão e o u tra s fig u ra s d e expressão no m u n d o d o p e n s a m e n to filosó fico e religioso, inclusive a firm a d o q u e P itá g o ra s conhecera n o seu te m p o a lei d a gravitação. São p o stu la ç õ es d e n o v a s épocas, n as q u a is falar d e " p o d e res ocu lto s" já n ã o d e n o d a v a m p rocessos d e e x te rm in a ç ão d e a postasias. E, p o r via d e conseqüência, já se via G alileu em o u tra ótica, e a justiça tran sfig u ra-se e m n o m e d e u m o u tro e le m e n to c h a m a d o razão, e q u e às vezes n ã o c o n firm a v a essa confluência em to rn o d a perfeição d a igu ald ad e da justiça do quadrado. H á u m a s e g u n d a conciliação e n tre a ra z ã o e a fé. E o D irei to a b re c a m in h o p a ra q u e o ser h u m a n o com p le te a s u a obra social e política. D issem os acim a q u e se tra ta v a d e u m a r u p t u ra, m ais ao sa b o r foucaultiano. C o m efeito, h á u m a m u d a n ç a d e r u m o d e n tro d o conceito d e sexo, p o is a d isc rim in aç ã o aí c o n s tru íd a parece fazer p a rte d e u m a tessitu ra política e lin güística. E co m o o D ireito é tam b é m política e lin g u a g e m , é de se inferir q u e a m u d a n ç a d o ru m o p e rm e ie as r eg ra s d o D irei to Positivo, com u m in g re d ie n te novo: a justiça v a lo ra d a pelo e le m e n to m aterial. H á u m a interação e n tre a m u d a n ç a social ** A frase atribuída a John Keynes acha-se citada em Hilton Japiassu, op. cit., pp. 123 0 segs-, dentro do C apítulo 4. O Contexto M ágico - R eligioso - Político de Newton, 38 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA e o a p a re lh o re c e p to r d o D ireito q u e se im p re ssio n a e p e rc u te a n te o s fen ô m e n o s d a v id a social. E a justiça m ate ria l se inflete n a ig u a ld a d e e x o rta d a e m to d o s os prism as: n a c o n stru ç ão d e u m m u n d o m a is ig u al, nas relações p r o d u tiv a s m ais e q u ilib ra d a s e e q ü ita tiv a s, n o e n c u r t a m e n t o d a s d e s i g u a l d a d e s s o c ia i s e r e g i o n a i s {vide p r o g r a m á t i c a d a C o n s titu iç ã o b r a s ile ira d e 1988, e m s e u exó rd io , art. 3° e incisos) e n a efetivação d a ig u a ld a d e en tre h o m e m e m u lh e r, d e n tro d o espírito d a filosofia d o s D ireitos H u m a n o s . A í se inicia o p rocesso d e c id a d a n ia d a o u tra m e ta d e d a H u m a n id a d e . A c id a d a n ia é vista n o contexto d e u m a justiça m aterial, esta, n a concepção d e ser a rea liz a d o ra d a ig u a ld a d e jurídicoform al. É o c o n stru c to m aterial, isto é, a re a lid a d e c irc u n d a n te d o D ireito, q u e v e m a se r to m a d a e m c onta p a ra q u e haja u m e n c o n tro efetivo d o juspo sitiv ism o com a r e a lid a d e histórica e social, já q u e n a p ró p ria tessitu ra d o D ireito fo rm al d e há m u ito se in se riu o ele m e n to subjacente d o ius e d a aequitas, v in d o a faltar, a p e n a s, a concreção d a s re a lid a d e s sociais na c o n stru ç ão form alística d a lei. H á , p o r o u tro lad o , u m crescim ento o u tran sição n a co n s trução sim bólica d a cidadania, até, q u e m sabe, p o r u m ac ú m u lo d a m e n te social coletiva ou p a ra u s a r d a in su p e rá v e l e x p re s são d e JU N G , m e d ia n te a r q u é tip o s ancestrais. Jung nos dá a idéia de arquétipos no seguinte exem plo: “ P erm itam -m e a seguin te c o m paração: su ponham os que nos incum biram de de scre ve r e explicar um e d i fício cujo andar m ais alto foi construído no século XIX e cujo andar térreo data do século XVI. Investigações mais acuradas das paredes nos revelam ainda que esse edifício foi reconstruído a partir de uma torre do século XI, No porão descobrim os alicerces rom anos e abaixo do porão encontra-se um a caverna soterrada. No fu n do dela se encontram instrum entos de pedra na cam ada superior e restos da fauna da é poca na ca m ada inferior. Essa construção se a ssem elha de certa fo rm a à im agem de nossa estrutura psíquica: vivem os no andar m ais alto e só v a g a m e n te s a b e m o s que o a n d a r té rre o é re lativa m e n te an tig o. E so b re o que se e n co ntra CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA A c o nsiderar essa revivescência há q u e se v er q u e os concei tos d e cid ad an ia e d e justiça atribuídos à m u lh e r v ê m d e ser reto m ad o s e m p leno século XX, a inda q u e a princípio sob um a ótica d e D ireito N a tu ra l a ser p o sitivado - D eclaração U niver sal d o s D ireitos H u m a n o s d a O N U , d e 1948 e posteriores A cor d o s e C onvenções assinados com vistas à ig u a ld a d e n a política, n o trabalho, n a vida social, enfim , n o espaço público. O u n a ótica d o s a rq u é tip o s, quiçá há u m a r e to m a d a d a p a r ticipação política d a m u lh e r, igual ao o u tro g ê n e ro , c u ltu ra essa q u e s e g u n d o e stu d io so s p ro s p e ro u e m civilizações e é p o cas arcaicas, o u m ais antigas, n ã o o b sta n te tal v e rte n te não h a v e r s id o v e rs a d a p e lo p rec la ro JU N G , a té p o r q u e d u r a n te a su a época, o a rq u é tip o d a m u lh e r se circunscrevia à m ãe, que é id en tific ad a ao yin chinês, e n q u a n to o a rq u é tip o d o pai, re la c io n a d o ao yang, d e te rm in a v a a relação com a lei e com o E stado, p o rta n to , acrescento eu, com o p o d e r. O ra, h á e s tu d o s a rqueológicos q u e n o s lev a m a asse v e rar q u e n ã o é d e to d o im p ro c e d e n te tal p o ssib ilid a d e . N ã o se qu er com isso criar n o v a tese, c o n tu d o h á q u e se ressa lta r q u e os e s tu d o s e p e sq u isa s sobre a v id a arcaica d a H u m a n id a d e d ã o c onta d e q u e h á u m im p u lso inicial p a ra c o n s id e ra r u m a e ta pa d a h u m a n id a d e q u e se assentava em u m a igualdade entre ho m en s e m ulheres, ou até d e desequilíbrio nessas relações em d etrim ento d o hom em . Tal assertiva nos vem d e BACHOFEN,^^ abaixo da superfície não tem os conhecim ento algum ” . Esse exem plo com a infor m ação da com plexidade da questão acha-se em CAR L G. JUNG , in: Civilização em Transição. Trad, de Lúcia M athilde Endiich Orth, 2. ed. Petrópolis: Editora Vo zes, 2000, pp. 35 e segs. " Bachofen é citado por Joseph C am pbell et allii, in: Todos os n om es da Deusa. trad, de Beatriz Pena, Rio de Janeiro; Record - Rosa d o s Tem pos, 1997, p. 63. Ver, igualm ente, Friedrich Engels, in: A Origem da Família da Propriedade Privada e do Estado, trad, de João Pedro G omes, Lisboa-M oscou: Editorial “A vante!", 1985, O a u to r citado é Johann Ja kob Bachofen (1815-1887), historiador e jurista suíço, autor de “0 Direito M aterno” . CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA q u e c o n sid e rav a o m atria rca d o com o a form a m ais prim itiv a d a so c ie d a d e h u m a n a . Aliás, esse ú ltim o p e s q u is a d o r é u m d o s a u to re s e s tu d a d o s p o r ENGELS q u a n d o d o d e se n v o lv i m e n to d e su a s p e sq u isa s q u e v ieram e m b a sa r a su a ob ra so b re a Fam ília e a P ro p rie d a d e. P o r o u tro lado, h á evidências d e u m e q uilíbrio d e direitos e n tre h o m e m e m u lh e r n o Egito Antigo. P rim eiro, pela rele vância d e su a d e u s a ISIS, q u e en c arn a v a a p ró p ria im a g e m d o Egito, s e g u n d o a p a la v ra a u to riz a d a d a e g ip tó lo g a CHRISTIA N E DESRO CHES NOBLECOURT. Era o u to rg a d a lib e rd ad e à m u lh e r egípcia q u e n ã o c o n h e cia a tutela, com o ocorreu com a m u lh e r ro m a n a ; em m até ria d e d ire ito s d e sucessão, os q u in h õ es e ra m ig uais p a ra os h o m e n s e p a ra as m u lh e re s e p o d ia m elas escolher o seu m a ri d o, o q u e n ã o acontecia com as ro m a n a s, e p o r a ta v ism o cul tu ra l n ã o existia tam b é m tal lib e rd a d e às m u lh e re s d o m u n d o o cidental, p a rtic u la rm e n te d a P e n ín su la Ibérica. P o r via de conseqüência, as m u lh e re s brasileiras d a época colonial não g o z a v a m d e ssa lib erd ad e, h a v e n d o tal fato se e s te n d id o até a lg u m a s d é c a d a s atrás. D á-nos conta NOBLECOURT q u e a m u lh e r egípcia gozava d e a m p la cap acid ad e jurídica - referindo-se à m u lh e r não-escrava - e o q u e é m ais curioso é q ue a m u lh e r casada, n o início d a XIII dinastia - cerca d e 1785 a.C. - era d e tentora d e u m a a m p liad a cap acid ad e legal, p o d e n d o até convocar o seu pai em Juízo, a fim d e p ro teg er os seus p ró p rio s interesses p r iv a d o s /' A o revés, até 1962, em nosso país, à m u lh e r c a sa d a era im p u ta d a u m a in c a p a c id a d e relativa, em face d o C ó d ig o Civil q u e assim o d e te rm in a v a e m seu artigo 6 ° . Era a m arca pro2’’ Sobre a m ulher no Egito Antigo, ver C hristiane Desroches N oblecourt, in: A M u lh e r no Tempo dos Faraós, trad, de Tânia Pellegrini. Cam pinas, SP: Papirus, 1994, Sobre as inform ações acim a, ve r pp. 207 a 216, passim. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA fu n d a d o D ireito R om ano, tra z id a até n ó s via C ó d ig o Civil N apoleònico, este, d esp restig iad o r d o direito d a s m u lh e res po r força d a v elha tese d a in ca p a c id a d e d o sexo fem inino. Foi essa v e rte n te q u e se d ifu n d iu no D ireito O cidental, fo rm u la d o ao longo d o s séculos e d e forte laivo religioso e m face d a s d o u tri nas d e se n v o lv id a s d u r a n te a Id a d e M édia, e q u e n o fen ô m e n o d a a c u ltu ra ç ã o p e rm e o u os vários o rd e n a m e n to s jurídicos d o s p aíses e u ro p e u s ocidentais. Em re s u m o d o C apítulo, im p e n d e d iz e r q u e h á u m a lin g u a g e m re d u c io n ista c o n stru íd a em face d e excluir a m u lh e r d a u s u fru iç ã o d e d e te rm in a d o s e stados, s o b re tu d o q u a n d o se trata d e e sta d o s d e "graça intelectual", forjadora d o p o d e r, a p o n ta n d o - s e a q u i u m a p r ó p r i a r u p t u r a c o m o d is c u r s o h e u rístic o sobre o q u a l a Justiça em su a o rig e m está a s se n ta d a . N a v e rd a d e , h á u m a lu ta im plícita e silenciosa d e n tr o d a qual se o p e ra m interesses c om o os d e se n v o lv id o s p elo T rib u nal In quisitório, o q u a l o p e ra v a com a ap rio riz a ç ão d e certos conceitos com o os e x p e n d id o s em Bulas e n o fam o so Malleus Malleficarum, q u a n d o " d o g m a s " e ra m estabelecidos p o r v á ri o s p ro c e sso s intelectivos e, p o r via d e co n seq ü ê n c ia, pelos p ro cesso s judiciais d e n a tu re z a nâo-dialética. A o sa b o r d o s séculos, ver-se-á u m a r u p tu r a epistem ológica n o d isc u rso jurídico e p a rtic u la rm e n te no tem a d o p o d e r. CAPÍTULO 5 O CONVENTO: LOCUS DE CIDADANIA DAS MULHERES? T em os v isto ao lo n g o de ste trabalho q u e a c id a d a n ia é h is to ric am e n te e x pressão d e u m gênero - m a sc u lin o - e d e u m a elite econôm ica e c u ltural d u r a n te o p ro ce sso d e co n q u ista d a q u e le s direitos. 41 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA Foi assim e m A te n a s e e m Rom a. Foi assim d u r a n te a Id a d e M édia, cujos e sta m en to s senhoriais, ao lad o d o C lero, d e ti n h a m a p a la v ra e o p o d e r decisório. Foi ig u a lm e n te a ssim p o r ocasião d o Ilu m in ism o , pois afora a m arg in aliza ç ã o d a m u lh e r n o p rocesso político, com o v im os, p o r e xem plo, n a C o n s titu iç ã o francesa d e 1793, esta e a p ró p ria R evolução F rancesa p riv ile g ia ra m o p rin cíp io censitário, afora o h a v e r excluído o d ire ito d e v o to às m ulheres. O q u e se verifica em v e rd a d e é a p revalência d a lei d o p r o cesso legal form al, v ale dizer, q u e os d ire ito s e fa c u ld a d e s le gais estã o g a ra n tid o s, sem q u e haja q u a lq u e r ten ta tiv a d e se assistir o in d iv íd u o , n o u so d esses p o d e re s. S o b re tu d o , q u a n d o esse in d iv íd u o tem p a p é is sociais fem ininos. P o r o u tra p a rte , os critérios p ohticos d e se n v o lv id o s d u r a n te e a p ó s a crescente vaga d o Ilu m in ism o e s b a rra v a m -s e na face d a justiça form al, p o is o su frágio era exercido o u p elo re g im e censitário o u p elo p rin cíp io capacitário. Pelo p rim e iro , os negócios d a c o m u n id a d e n acio n al d e v e m e s ta r afetos à q u e le s q u e d etêm interesses rea is o u p o r p o s s u í re m b e n s o u p o r terem re n d a s q u e ju stifiq u em o d ire ito ao v o to e à p articip a ç ão n o n egócio público. M e d ia n te o se g u n d o princípio, esse d ireito seria conferido n ã o a p e n a s à q u e le s q u e c a p itu la v a m n a s itu a ç ã o a n te rio r, p o ré m e ra b a s e a d o tam b é m n a ca p ac id a d e, n o d isc e rn im e n to, n o ter títulos acadêm icos e n o ter in d e p e n d ê n c ia suficien te, p re s s u p o s to s , s e g u n d o a teoria, d e q u e só esses c id a d ã o s tê m tirocínio p a ra a decisão d a s políticas a se re m a d o ta d a s p e lo s governos.^® H ouve um critério de voto plural existente no sistem a belga de votação, em 1893, O sufrágio m asculino universal foi aí adotado, porém com ca ra cte rísticas no m ínim o curiosas. T ratava-se dos votos extras concedidos a p è re s de famille. que houvessem atingido a idade de 35 anos. Essa inform ação está contida em Reinhard CIDADANIA DA MULHER, LIMA QUESTÃO DE JUSTIÇA, C o m o incluir aí as m u lh e res, q u e n ã o sa b ia m ler o u escre v e r n a m a io r p a rte delas? O ra, o sa b er n as m u lh e re s se m p re foi e s tig m a tiz a d o e m função d e a rg u m e n to s q u e jam ais su b sistiriam n o m u n d o atual. A saída p a ra o acesso à in stru çã o e à c u ltu ra era a v id a religiosa, sem , e n tre ta n to , h a v e r co m o ex p a n d ir d e te rm in a d a s vocações literárias o u a p tid õ e s intelec tu ais m ais conspícuas. A o contrário, ten ta v a -se o b staculizar o u a té p u n ir essas m anifestações o u " d e s v a rio s " d a m e n te fe m in in a m e r g u lh a d a n a e scu rid ão d a s letras. A Inquisição e s p a n h o la lev a n to u s u sp e ita s s o b re S an ta T e resa D 'Á v ila , q ue, s e g u n d o A R TH U R STANLEY TURBEVILLE, é a m a io r e m ais a m á v e l d e to d o s os m ísticos espanhóis. M e s m o a s u a a u to b i o g r a f i a e s p i r i t u a l foi d e n u n c i a d a à Inquisição, a q u a l lev o u d e z anos p a ra d e c id ir se a leitura era o u n ã o c o n v e n ie n te p a ra os cristãos. U m destin o assem elhado ocorreu com Juana Ines d e la Cruz. Im p e lid a p e la v o n ta d e d e d e s e n v o lv e r a le itu ra e h a v e n d o d e sco b e rto q u e n ã o era p e rm itid o às m u lh e re s de d ic a r-se a estu d o s, to m o u a decisão d e e n tra r e m u m c o n v e n to , o n d e leu u m a im e n sid ã o d e livros d e C iências, d e H istó ria e d e p o e s i as, afora ser le v a d a a u m m isticism o p r ó p rio d a época. Fez p r o fu n d a s m ed itaç õ e s e e screveu bastan te. E c o n s id e ra d a a p rim e ira voz fem in in a d a s A m é ric a s que teve a c o ra g e m d e d iz e r q u e to d a s as p e sso a s tin h a m o m e s m o d ire ito à educação. N ã o foi, e n tre ta n to , c o m p re e n d id a p e la s u a c o m u n id a d e , Bendix, in: Construção N acional e Cidadania, trad, de M ary A m azonas Leite de Barros. São Paulo: Editora da Universidade de Brasília, 1996, p. 133. A expressão em francês é do original. ^ Ver A rthur Stanley Turbeville, La Inquísicion EspaHola. M éxico/D F: Fondo de C ultura Econôm ica, 1985, p. 96. 44 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA h a v e n d o sid o p ro ib id a d e co n tin u a r a escrever sob p e n a d e ser e x p u lsa d o convento. M u ito s são os casos o corridos e m q u e m u lh e re s d 'a n ta n h o v ira m n a v id a religiosa e c o n v e n tu a l a form a m a is viável d e exercer u m a cid a d a n ia, a in d a q u e lim itada. NATALIE Z E M O N D A VIS pesquisou a história d e M arie de rin c a m a tio n , que em igrou para a América, im pulsionada pela v ida religiosa, in d o ao C anadá onde se d edicou à instrução dos autóctones. A princípio, escreveu em língua francesa e, após, nas línguas am eríndias locais. Corria o início d o século XVII.^’ Só o C o n v e n to p ro p ic iav a o direito básico d e c id a d a n ia , ou seja, o sa b er ler e o escrever. E em e scalada g ig an te , v e r p u b li cad o s os se u s escritos. N a s p a la v ra s d e M Ô N IC A RECTOR: "As religiosas ocupam uma posição ambígua dentro da socieda de patriarcal. A representação das freiras, até o século XX, sem pre ofereceu ao leitor estereótipos que variam desde criaturas impotentes, até seres perversos e até mesmo imorais. Apesar de o convento ser considerado abrigo para mulheres, tornar-se freira muitas vezes significava uma rebelião contra o sistema patriar cal Quando as religiosas puderam escrever, passaram a es crever sobre elas mesmas e a desconstruir os estereótipos, desafi ando 0 conceito tradicional associado às freiras" 30 Juana Ines de Ia Cruz era m exicana e desenvolveu os seus do le s de poetisa no âm bito do C onvento para o qual entrara, “Convidada” a renunciar à literatura religi osa, abandona os seus escritos, vende a sua biblioteca em favor dos pobres. Para m ais detalhes, ver Cadernos de M ulheres da Europa, n° 37, 1492: P re s e n ç a s de M u lh e re s , C om issão das Com unidades Européias, Bruxelas, [s.d.]. Ver Natalie Z em on Davis, A/as M a rg e n s -T rê s M ulheres do século XVII, Trad, de Hitdegard Feist, S ão Paulo: C om panhia das Letras, 1997, pp. 65-131. = Ver M ônica Rector, in: M ulher Objeto e Sujeito da Literatura Portuguesa, PortoPorluga!: Edições Universidade Fernando Pessoa, 1999, p. 112. A Autora relaciona várias religiosas que usaram de sua aptidão intelectual para escre ve r poesias (S óror Violante do Céu); autos, com édias e hagiograíias (Sóror M aria do Céu): novelas (Sóror M adalena da G lória). E Sóror M ariana Alcoforado, que a Autora considera em lugar de realce. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA O ra, a Id a d e M édia, longa com o foi, p o is d u r o u q u a se 11 (onze) séculos, é u m a e ta p a d a h u m a n id a d e b a s ta n te c o m p le xa p a ra u m a análise rá p id a no q u e tan g e ao tem a q u e aqui é d e sen v o lv id o . De q u a lq u e r â n g u lo , h á q u e se ratificar q u e a relig io sid ad e e tu d o q u e lhe foi in ere n te - a criação d e v á ria s o rd e n s religi osas, a sa cra lid a d e d o Direito, o m isticism o etc. - a lav an co u u m estilo d e v id a p ró p rio , s o b re tu d o n o q u e d iz resp e ito à co n d ição d a m u lh e r, esta q u e se d e s e n v o lv e u in te le c tu a lm e n te n o recinto d e ssa s instituições. P o rtan to , a " c id a d a n ia " , q u e tim id a m e n te d a í em ergia se c ircunscrevia n o â m b ito d o s c on v e n to s e d a v id a religiosa. O ra, é p rec isam e n te n o s c o n v en to s e m o ste iro s o local e m q u e se e n c o n tra v a m bibliotecas, pelo m e n o s d e n tro d e u m m arco tem p o ral p o r vo lta d o século oita vo (VIII) e m d ian te. O D ireito escrito era lim ita d o a d e te rm i n a d a s regiões e m fu n ção d a s U n iv e rsid a d e s, c ria d a s a p a rtir d a d e B o lo n h a e circunscritas ao m u n d o c o n v e n tu a l, o q u e d e u à Igreja u m a função d e v a n g u a rd a q u a n to ao a sp ec to in telectual e d e p ro p a g a ç ã o d a Teologia. M as, p o r o u tro lado, às m u lh e re s n ã o cabia e n ã o lhes era p e rm itid o in g re ssa r n essas Escolas, as q u a is só a d m itia m h o m e n s q u e p u d e r a m se n o ta bilizar, co m o o c o rre u com Santo A lberto M agno, São T om ás de A q u in o , Santo Ivo, A b elardo e o u tro s tantos. P o r o u tro tu rn o , sabe-se q u e n o v e m u lh e re s freiras d e s e n v o lv e ra m a tiv id a d e d e copista; tal fato é c o n h e cid o e m d o c u m e n to religioso existente, o q ual foi c o p ia d o p a ra o A rcebispo d e C o lônia, e m p len o século IX, sa b id o q u e essa era u m a ati v id a d e in telectual d e m u ita relevância ex ercida n o s scriptoria d o s c o n v e n to s e m osteiros. A posteridade tom ou conhecim ento dessas m ulheres pelos seus nomes, assina dos no próprio docum ento. São elas: G irbalda, G isliidis, A gleberta, Aduhic, Altildes, 45 46 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA P o rta n to , o s a b er e os livros n ã o e ra m d e acesso público. O sa b er e stav a p ra tic a m e n te c o n c en trad o n o recinto d a s O rd e n s Religiosas e, após, já n a Baixa Id a d e M édia, n a s U n iv e rs id a d e s c ria d a s n o â m b ito d a s g ra n d e s C ated rais, e.g., d e O xford, Paris, S alam anca, P á d u a etc. M e sm o assim , a lg u n s d o s r e g u la m e n to s d a s bibliotecas d a Id ad e M édia e ra m rigorosos, q u a n to ao u so d a s m esm a s, com o o re g u la m e n to d a Biblioteca d a U n iv e rs id a d e d e O xford, o n d e foi estabelecido q u e só os g r a d u a d o s o u religiosos, a p ó s oito an o s d e e s tu d o d a filosofia, p o d e ria m utilizá-la. A o la d o de q u e só p o d e ria m u s a r os livros com o zelo n e cessário p a ra q u e n e n h u m d a n o o u p rejuízo p u d e s se a d v ir d o m a n u se io , com o ra s u ra s e e stra g o s n o s ca d ern o s o u fólios. A p ro p ó sito , RÉGINE PE R N O U D noticia q u e o status d a m u lh e r n a Igreja d a Id a d e M édia é o m e s m o q u e o v iv id o na so c ie d a d e civil e o q u e conferia a u to n o m ia , in d e p e n d ê n c ia e in strução, foi aos p o u c o s se n d o retira d o d a m u lh e r a p ó s a I d a d e M édia. E cita aq u e la A u to ra a d e g ra d a ç ã o oco rrid a em te m p o s m o d e rn o s q u a n d o o c o n v e n to d a O rd e m d e F o n te v ra u lt, 0 q u a l n o s p rim e iro s anos d o século XII, R obert D 'A rb rissel h o u v e ra ali f u n d a d o dois conventos, u m m a sc u lin o e o u tro d e m u lh e res. Tal m o ste iro foi p o sto sob a a u to r id a d e d e u m a a b a d essa , P etro n ila d e C hem illé, a su a p rim e ira d ire to ra , que e stav a e n tã o com 22 anos. N o século XVI, o rei d a França, t o m a n d o a si a c o m p e tê n cia G isledrudis, Eusebia, Vera e Agnés. Essa inform ação acha-se con tid a no prefácio de autoria de M arina Colasanti, na obra Lais de M aria de França, trad, de Antonio L. Furtado, Petrópolis, RJ: Vozes. 2001, p. 12, Há d o c u m e n to intitulado M onum enta A cadêm ica o r D o cu m e n ts llustrative o f A ca d e m ica l Life a n d Studies a t Oxford, transcrito por M aria G uadalupe Pedrero Sanchez, in: História da Idade t^édia - Textos e Testem unhas. S ão Paulo; Editora UNESP, 2000, pp. 187-188. CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTiÇA d e n o m e a r a b a d e s s a s e abades, fez d e F o n tre v ra u lt u m asilo p a ra as s u a s velhas am antes. D o q u e se infere se r a m onja u m a p e sso a g o z a n d o d e " re g a lia s” q u e d e o rd in á rio n ã o era c o m u m ter n a casa d o s pais^ a m e n o s q u e se tra tasse d e m u lh e res n o b res, s e n d o e d u c a d a s n o s c o n v e n to s e a elas era d e s tin a d a u m a e d u c aç ã o e sm erad a. D e q u a lq u e r sorte, n o s co n v en to s a p re n d ia -s e a ler, a escre ver, a cantar. A lg u m a s a p re n d ia m o latim e h á casos d e m o n jas q u e sa b ia m o g reg o e o h ebraico. É o caso d a p rin c e sa Isa bel, irm ã d e São Luís, f u n d a d o ra d a A b a d ia d e L o n g ch am p , q u e , s e g u n d o relato d e GENEVIEVE D 'H A U C O U R T , c o n h e cia o latim tão b e m o u m elh o r q u e os seus capelães.^^ A c id a d a n ia relacionada à m u lh e r, e m s u a acepção m ais a m p la , n ã o e ra a p a n á g io d a v id a civil, pois o lócus o n d e era possível vivê-la d e n tro d o s p a d rõ e s d a época, situ a v a -se na v id a c laustral, p ois a q u i as tarefas fem ininas n ã o e ra m a p e n a s as e sse n c ialm en te d e feitio p riv a d o , com o c u id a r d a s a tiv id a d es do m ésticas, o u o u tra s tarefas q u e se d ire c io n a v a m a o p a pel fem inino: saber ler os livros d e H oras, q u a n d o se tra ta v a d e castelãs o u b u rg u e s a s e n v ia d a s aos c o n v e n to s p a ra b u r ila re m a ed u c aç ã o , b o r d a r p a ra si e p a ra a s igrejas etc. O s p a p é is d ito s " m a s c u lin o s " ta m b é m e ra m ali e x e c u ta d o s , c o m o já m o stra m o s antes. F alam os atrás q u e a A b a d e ssa H ild e g a rd V on B ingen foi u m a cientista, m usicista, c o m p o sito ra e escri tora d e livros sobre M edicina, além d e h a v e r escrito vários tra b a lh o s m ísticos. P E R N O U D n o s revela, ig u alm en te , q u e foi u m a m u lh e r, D 'h u e d a , q u e m e la b o ro u u m p rim e iro tra ta d o Dados colhidos em Régine Pernoud, in: Idade M édia: o que não nos ensinaram , trad, de M aurício B rett M enezes, 2. ed. (rev.). Rio de Janeiro: Agir, 1994, pp. 112114. " Ver G enevieve D’Haucourt, in: A Vida na Idade Média, trad, de O linda Fernandes, Lisboa: Edição Livros do Brasil, [s.d.J, p. 112. 48 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA sobre educação, aliás, escrito e m latim e esse fato se d á em to rn o d e 841-843."" E tu d o isso ocorria e n q u a n to d o lad o d e fora d o s claustros, e m a m b ie n te fec h a d o d a s U n iv e rsid a d e s, esp ec u la v a-se so b re te m a s p r o fu n d o s d a T eologia, d a Justiça e d a M oral. Pois, n a Baixa Id a d e M édia, renascia o interesse p o r ARISTÓTELES, rev iv id o p o r seu c o m e n ta d o r á rabe AVERRÓIS (1126-1198),^® c a b e n d o a este a in g en te tarefa d e te n ta r in stitu ir u m d iálogo e n tre a tra d içã o m u ç u lm a n a , o p e n s a m e n to d e s u a co n tem p o ra n e id a d e com a c u ltu ra grega clássica. A lógica aristotélica era tra z id a à tona pe la s trad u çõ es rea liz a d a s p o r esse filósofo m u ç u lm a n o , te n d o com o fio c o n d u to r a h isto ric id a d e e a u n i v e rs a lid a d e d o conhecim ento, le v a n d o a E u ro p a a s e r d e p o s i tária d o s a b er racional, a p ó s a a p re e n sã o d a tra d u ç ã o d o s tex to s clássicos p o r A lberto M a g n o e T o m á s d e A q u in o , d u r a n te a Escolástica, e, após, ser rev iv id o p elo Ilu m in ism o ao sa b o r d a s idéias d o s enciclopedistas e d o s cientistas cartesianos. Assim, a categoria d o racional foi apropriada pelo m o v im en to ilum inista, sep aran d o o religioso do laico, o p o d e r espiritual d o tem poral, v in d o a atropelar a própria Igreja, acusando-a de paralisia, d e imobilismo, d e usufruidora de privilégios, acarre tan d o u m a m u d an ça abrupta de rum o no M u ndo Ocidental, após e a partir da Revolução Francesa. A cidadania continuou sendo privilégio d o gênero m asculino, nas relações m ais contraditórias d e u m m ovim ento d e m assas que deslocou o eixo d a História p a ra frente e p a ra trás, com m archas e recuos, e m m eio a u m processo quase irracional e incongruente pelos m étodos adotados. Ver Règine Pernoud, op. cit., p. 117. Averróis considerava AR IS TÓ TELES o mais sábio dos gregos. Dizia o filósofo m uçulm ano que todos os que até então sucederam o insigne filósofo grego não haviam sido capazes de acrescentar nada aos seus escritos. Ver AVERRÓ IS, tra n s crito em Pedrero-Sánchez, op. cit., p. 65. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA CAPÍTULO 6 RAZÃO l/ERSUS DESRAZÃO: A REVOLUÇÃO FRANCESA N a d a foi m ais real q u e a Revolução Francesa. N a d a foi m ais sim bólico q u e a m esm a R evolução Francesa. N e sta, a Razão foi erigida a u m n icho d e adoração. Por ela, criaram -se e d e stru íra m -se m itos q u e ro la ra m ao m e sm o tem p o e m q u e ro la v a m as cabeças na guilhotina. O liberalism o a co n ch e g a d o n a s idéias ilu m in ista s tro u x e o p o sitiv ism o e m su a s m ais a m p la s concepções, e n o s m ais d i ve rso s dom ínios. A concepção do m o n u m en to jurídico, form ado e form ador da lei com o expressão da justiça, destronca-se d aq u ela junção aca dêm ica d o }us e d o Fas, q u a n d o leis e cânones se fu n d iram para a form ação d o Direito C om um . Em outras palavras, d o In utroque iure, com vistas a obter o jurisconsulto com pleto, aquele q ue fos se versado tanto no Direito Canônico com o n o Direito Civil. Esta é u m a fase q u e se inicia a in d a no século XII, q u a n d o D ireito R o m a n o e D ireito C anônico e ra m braços d ife ren te s d a realização d a Justiça, p a ra , após, se e n c o n tra re m n a fo rm ação d o D ireito C o m u m . A p a rtir d a s e p ara ç ão d o cânone d a v e rd a d e científica, com GALILEU, e d a div isão d o e speculativo d o e m p iris m o , com N E W T O N , m u d a o contexto e a face d o m u n d o , e m q u e q u ase c o m o u m m o v im e n to p e n d u la r, sai d e cena o e le m e n to m á g i co e e n tra n o p ro sc ê n io a R azão e o P ositivism o q u e se a n u n c i ará em seguida. P rim e iro , A U G U S T O C O M TE, n a e s te ira d a s id é ia s ilu m in ista s, tra ç a n d o os p a sso s d a Sociologia; d e p o is, o e n c o n tro d e sta com a Biologia (SPENCER). O D ireito n ã o ficaria infenso a essa vaga retu m b an te d o im pério d a razão , pois d esd e 50 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA JO H N LOCKE, 0 princípio s u p re m o d a justiça é o d e q u e a todos é lícito fazer o q u e lhes apeteça, n a m e d id a q u e n ã o le sem com isso a lib e rd a d e igual d o s o utros. É a p ro v a d e q u e o d ire ito d e u m é lim ita d o p e lo direito d o o utro. P o s tu la d o p e r feito d o racionalism o. As idéias ferv ilh a v a m e a q u e stã o d a lib e rd a d e -ig u a ld a d e foi p o s ta n a p a u ta d a s discussões, n a m e d id a q u e se conferiu u m p r im a d o p a ra a Razão. A R azão foi u m a teorética e u m a experiência d a s m ais d e v a sta d o ras, já n a I d ad e M oderna. A via p o r in te rm é d io d a qual o fluxo e refluxo d e ssa s idéias to m o u c o rp o foi n o p r ó p rio d e s e n ro la r d a R evolução Francesa. E e m o p e ra ç ã o m u ito reflexi va. p o is as ações o u o objeto d o M o v im e n to recaem n o p r ó p rio sujeito d a R evolução. N u n c a se falou tan to d e cidadania. E n u n c a ela foi tã o n e g a d a e m term o s d e u m a ação d e reflexividade. A p a la v ra li b e rd a d e foi e n to a d a a to d o s os p u lm õ e s, ao m e s m o te m p o em q u e a R evolução d e u u m se n tid o u n ív o co aos se u s sím bolos. A s m u lh e re s a b rira m o seu espaço n a trajetória d o M o v i m e n to R ev o lu cio n ário e, o q u e é curioso, n ã o p e n s a v a m elas d e fe n d e r a p e n a s a s s u a s v idas, o seu sexo, o seu d e s tin o in d i v id u a l. A p r e n d e ra m n o s tu m u lto s, n a s d e rrib a d a s d e prisões, n a s re u n iõ e s d a A ssem bléia, n a s p a sse a ta s p a ra V ersailles, a a g ire m d e form a coletiva, n ã o com o b a n d o , m a s c om o g ru p o , a exigir u m a a g e n d a d e reivindicações. D esv elar a R evolução F rancesa é m ex er n u m m u n d o s im bólico, sibilino, aliás, "tarefa difícil, p o is os m ito s e as im a g e n s rec o b re m essa h istória com u m a e sp essa m o rta lh a tecida p e lo desejo e p e lo m e d o d o s h o m en s". Ver M ichelle Parrot, in: Os Excluídos da História - O perários, M ulheres e P risio neiros. Trad, de Denise Bottm ann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 187. CIDADANIA Oft MULHER, UMA QUESTÃO D£ JUSTIÇA A m u lh e r se e rg u e u d ian te d a q u e le s fatos e foi-lhes p e r m i tid o c ria r associações em to rn o d e seus interesses: associações essas q u e v iria m a ser fechadas em n o v e m b ro d e 1793, q u a n d o foram d isso lv id o s to d o s os clubes d e m ulheres. L ev ad a a q u e stã o à C onvenção, fo ra m p o s ta s três in d a g a ções ao s d e p u ta d o s d o s E stados-G erais, d u r a n te o p rocesso rev olucionário: T’) p o d e m as m u lh e re s e x ercer d ire ito s políti cos e to m a r p a rte ativa n o s a ssu n to s d o G ov ern o ?; 2^) a re u n ião d e m u lh e re s e m P aris d e v e ser p e rm itid a ? ; e 3‘") p o d e m elas d e lib e ra r, re u n id a s e m associações p olíticas o u so c ie d a d e s p o p u la re s ? D ian te d e ssa s q uestões, re s p o n d e r a m os co n v e n c io n a is u m categórico “n ã o ", e sta b e le c e n d o a p a rtir d a í a morte política d a s m u lh e res, já q u e p o u c o d e p o is o C ó d ig o Civil N a p o le ô n ic o p re p a ra v a a su a morte civil. E n q u a n to isso acontecia, p a ra d o x a lm e n te , a figura fem in i n a to rn o u -se sím bolo d a N ação, p ois foi a d o ta d a c o m o e m b le m a d a R epública a d e u s a ro m a n a d a L ib erd ad e, a q u a l p a s so u a se r c u n h a d a nos sinetes oficiais, n a s e s tá tu a s e n a s vin h etas. A p re s e n ta v a a efígie o ar d e u m a jo v em o u d e m ãe , d e aspecto f a m ilia r e q u e p a s s o u a s e r c a r in h o s a m e n te c h a m a d a d e M A R IA N N E . O q u e d e n o ta a forte carga d e sim b o lism o e m q u e a m u lh e r e a m ãe, n ã o -d e te n to ra s d e c a p ac id a d e política, foram , e n tre tan to , c o n v e rtid a s em e m b le m a s d a jo v em R epública q u e n a s cia d o s esco m b ro s d a M o n a rq u ia A b so lu ta e d e c ad e n te . E nesse contexto e m e rg e m as figuras d e O ly m p e d e G ouges, d e M a d a m e R o lan d e d e ta n ta s o u tra s , q u e a s so m a ra m u m lu g a r d e p ro a ju n to aos h o m e n s e a d e s p e ito d a s restrições q u e d e fo rm a v e la d a o u ostensiva se n tia m n a pele. M e sm o assim , n o s d e b a te s d a C onvenção, foi te m a tiz a d a a q u e stã o d o v e s tu á rio fem inino, p o is a lg u m a s m u lh e re s u s a ra m touca 52 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA v e rm e lh a e assim o b rig a ram as o u tra s a im itá-las. Tal n ã o foi v isto com a g ra d o p e lo s d e p u ta d o s , p o is te m ia m q u e a m u lh e r se m ascu lin izasse, a p a rtir d o b a rre te v e rm e lh o e p o d e ria m ta m b é m v ir a exigir o cinto com p istolas. Era a v e lh a q u e stã o d a m u lh er viril d a Id a d e M édia e q u e a p arecia sob o u tra ótica e e m o u tro contexto, a q u i m ais e x plicitam ente político. De q u a lq u e r â n g u lo , no discu rso oficial d a R evolução, o lu g a r d a m u lh e r e ra o lar, o espaço p riv a d o e a s u a re p re s e n ta ção n o s am b ien tes públicos foi cerceada d e form a b a s ta n te c ru el. P ara as m ais ativistas o u recalcitrantes, re s to u o cadafalso. H a v ia , é certo, elem en to s q u e se p o d e ria c h a m a r hoje d e a v a n ç a d o s p a ra a época. U sa v a m a su a v e rv e p a ra d e n u n c ia r 0 e s ta d o sob o q u a l e ra m s u b m e tid a s as m u lh e res. Foi o caso d e T h o m a s P aine, o q u al, p a rticip a n te d o m o v im e n to re v o lu cionário, d iz e m u m d e s e u s ensaios, q u e teve p o r títu lo " C a r ta d e circu n stân cia sobre o sexo fem inino", p a la v ra s d e u m a análise sobre a situação d a m ulher: "Em todas as eras e todos os climas, o homem foi para [as mulheres] um marido insensível ou um opressor, mas elas também suportaram ora a opressão fria e deliberada do orgu lho, ora a tirania violenta e temível do ciúme Têm quase tanto a temer da indiferença quanto do amor. Em três quar tos do globo, a natureza as colocou entre o desprezo e o desvaUmento” N ã o foi a n atureza responsável p o r esse desvalim ento; foram os ho m en s em sociedade. A s m ulheres foram d e sp re z a d as p o r B ernard Vincenti, in: Thom as P a in e - revolucionário da liberdade. Trad, de Sieni M aria C am pos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p. 41. Diz B ernard Vincent que Paine e scapou da guilhotina e que dele m uitos se afastaram em virtude de seu “igualitarism o social” e de seus ataques im piedosos contra o cristianism o, Ibidem, p. 13. Sem pre a questão da política e da justiça esteve presente nos m om entos de m aior tensão e de decisão da História. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA não terem a força física que passou a estabelecer os estereótipos sociais, inclusive o d e sexo frágil, Era o "valor" d a época. E n ã o o b sta n te o cutelo, já era ta rd e p a ra re p rim ir n o p r o cesso histórico a m arc h a d o m o v im e n to d a s m u lh e res. A lib e rd a d e era u m lem a; foi ta m b é m u m a a v e n id a aberta n a e m a n c ip a ç ã o d a v id a d om éstica e - o m ais r e le v a n te - foi o c a m in h o p a ra a libertação d e m a u s casam entos. C o m a Lei d o D ivórcio, d e 20 d e s e te m b ro d e 1792, e com a institu ição d o s trib u n a is d e fam ília, em a g o sto d e 1790, foi a s e n d a a b e rta p a ra a solução d e c o n te n d a s fam iliares. A Lei d e 1792 tin h a u m viés a c e n tu a d a m e n te liberal, pois p re v ia sete m o tiv o s p a ra justificar o p e d id o d e divórcio. E ram eles: 1) a in sa n id a d e ; 2) a c o n d en ação d e u m d o s cônjuges a p e n a s aflitivas o u infam antes; 3) os crim es, sevícias o u in jú ri as g ra v e s d e u m cônjuge contra o o utro; 4) o d e s re g ra m e n to p ú b lic o d e costum es: 5) o a b a n d o n o d o lar p o r d o is anos, no m ín im o ; 6) a ausência d e u m deles, sem notícias, d u r a n te cin co anos, n o m ín im o ; e, finalm ente, 7) a em igração. Ideolo g izo u -se d o ra v a n te a q u e stã o d o s d ire ito s d o c id a d ã o , p o is d e d ire ito s n a tu r a is p a s sa m a d ire ito s h u m a n o s , p o sitiv a d o s, d e n tro a in d a d e u m a ótica religiosa c u n h a d a em d e trim e n to d a m u lh e r. A D eclaração d o s D ireitos d o H o m e m e d o C id a d ã o , v o ta d a e m 26 d e a g o sto d e 1789, faz a inserção d e p rin c íp io s d e atu a ç ã o in d iv id u a l, d e e s tru tu ra d o E stado, d a etiologia d o p o d e r, a tra v é s d a lei e d o in stitu to d a rep re sen ta ç ão ; d e q u e s tões d e n a tu re z a p ú b lic o -trib u tá ria e d e fo rm a re le v a n te tra to u -se d e erigir a p r o p rie d a d e com o d ire ito inv io láv el e s a g ra d o , o q u e era q u e stã o reco rren te d e s d e o D ireito R om ano. E a q u i resid e o p ara d o x o : o m o v im e n to r e v o lu c io n á rio tra ta o p ú b lic o d e form a d ire ta e c o n tu n d e n te , d e v a s s a n d o , in- 54 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA elusive, 0 m u n d o p riv a d o ; m as, p o r o u tro lad o , a p r o f u n d a n d o os lim ites d o p ú b lic o e d o p riv a d o , d iferenciou os p a p é is soci ais, já há séculos diferenciados; o territó rio p ú b lic o p a ra os h o m e n s, o p r iv a d o p a ra as m ulheres. O m o v im e n to d a s m u lh e re s n o s e n tid o d e su a p a rticip a ç ão política n o s d e stin o s d e seu p a ís foi a b o rta d o e m u m p rim e iro m o m e n to , com a rad icalização d o reg im e e a s u a co n v ersão n o T error, n a c o n tra m a rc h a d o m o v im e n to revolucionário. E o p asso s eguinte foi a m u d a n ç a d o p o d e r p a ra as m ão s de N apoleão, q u a n d o e m su a obra d e codificação d o D ireito Civil francês, estabeleceu u m a condição ancilar p a ra a m u lh e r c a u sa n d o inveja até p a ra a instituição fam iliar d o D ireito R om ano. E a q u i se inicia o século d a técnica jurídica, d o p ositivism o, d o s C ó d ig o s, d o fo rm alism o jurídico, d a s siste m a tiz a ç ò es e d a s classificações a b stra ta s e genéricas. D e n t r o d e s s a a b s t r a ç ã o e g e n e r a l i z a ç ã o h á q u e se r e m e m o ra r q u e se o artigo 1° d a refe rid a D eclaração afirm a q u e "O s h o m e n s n a sce m e p e rm a n e c e m livres e ig u ais e m d i reitos", esse p o s tu la d o é fruto d e discussões v ig o ro sa s h a v id a s n a A ssem b léia e p r o d u to d e cadernos de queixas a p re s e n ta d o s a o ensejo d o s E stados-G erais, m o m e n to n o q u a l as m u lheres ta m b é m relacio n aram em cerca d e trin ta c a d e rn o s as s u a s q u eixas e reclam ações d a condição v iv en c ia d a p o r elas. Em n o m e d a ab stração e d a im p e s s o a lid a d e d a lei, to rn o u se a q u e la ig u a ld a d e in o p era n te , já q u e se v isu a liz a v a a p e n a s a rac io n a lid a d e, s e m q u a lq u e r atenção às co n d içõ es subjeti v a s d a q u e la m in o ria social. P e rd e ra m -se n o te m p o a q u e la s reivindicações; a b e m d a v e rd a d e , p o r u m lap so d e tem p o , p o is a a re n a social d o s g ra n d e s e m b a te s e d e b a te s ideológicos su b stitu irá a a re n a d a g u e rra rev o lu c io n á ria d a q u a l p a rtic i p a r a m ig u a lm e n te as m ulheres. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA N o front, m u ita s m u lh e res a c o m p a n h a ra m os m a rid o s; o u tras, d isfa rç a d a s com v e stu á rio m asculino, a c o rria m na d ire ção d o p e rig o d o s com bates. Foi e le triz a n te o c h a m a d o d a Revolução. A ssim , é q u e o C o m a n d a n te D u b o is c o m b a te u ao la d o d e s u a m u lh e r n o 7° B atalhão d e Paris. A m b o s e n v e rg a n d o u n ifo rm e s m ilitares. O e sp aço p úblico com eçava a ser in v a d id o p e lo s a to re s h isto ri c a m e n te rele g a d o s ao espaço priv ad o . O u tra francesa d e n o m e M adeleine P eittjean foi ao en c o n tro d o m arid o , s o ld a d o c a v a d o r d e trincheiras, q u e se achava e m co m b ate contra os rebeldes d a Vendéia.'^' A s irm ã s M arie e M aglom ar T e n a sso n e stiv e ra m ao la d o d e irm ã o s co m o g ran a d e iro s, fa z e n d o as c a m p a n h a s d e 1792 a 1794, com os fed e ra d o s d e 83 d e p a rta m e n to s. A lg u m a s m u lh e re s c o m b aten tes foram a g ra c ia d a s com o títu lo d e alferes. Foi o caso d e A n g élique D u c h e m in , p e rte n cente ao 42"^ R e g im e n to d e Linha; o m e s m o aco n teceu com C a th e rin e P o c h e la t, p a rtic ip a n te d a to m a d a d a s T u lh e rie s, u s a n d o u m ca n h ão e q u e e m v irtu d e d e s u a c o ra g e m , foi-lhe d efe rid a a p a te n te d e alferes. N a b a ta lh a d e Je m m a p es, M arie Schellink saiu ferida, h a v e n d o s id o a ela c o ncedido, pelo G eneral R osières, a igual p a te n te d e alferes. D is s im u la n d o o s e u p r ó p r i o sexo, a v i ú v a d o c a ç a d o r S o u te m a n n a , lu ta ra ao la d o d o m a rid o e h a v e n d o sid o este m o rto e s a in d o ela ferida n a coxa, n a Batalha d e M arengo, retiro u -se d o regim ento. N ã o fazia sen tid o , p o rta n to , o d e s m e re c im e n to a q u e foA Vendéia se insurgiu contrarevolucionariam ente, em 1793, e pa ra enfrentar essa dissidência foi convocado um exército de 300.000 hom ens. E ssa convocação foi decid id a pela C o nvenção e a Vendéia esteve inflam ada até 1796. 56 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA ra m re le g a d a s as m u lh e res, n e m o refrea m e n to d e se u s d ire i tos, havendo-lhes sido indicado o cam inho d e volta ao território dom éstico. N a contram archa da Revolução, foram pisados os ideais d e liberdade, esta, q u e era o norte e a razão d e ser d o p r ó prio m ovim ento sedicioso. Aliás, o hiato que se seguiu foi longo, pois as m ulheres francesas e certam ente as d e to d o o m u n d o oci dental só retom ariam o elo p erdido no século XX, q u a n d o m an i festações d e rebeldia ocorreram no enfrentam ento d e forças con servadoras, para n ã o dizer m isógenas e antifeministas. É o caso d a explosão d e m u lh e res oco rrid a e m 29 d e o u tu b ro d e 1904, n a qual, em p ro te sto contra o re g im e d a m u lh e r c a sa d a in stitu íd o n o D ireito Civil francês, d e c id ira m q u e im a r e m p raç a pública - Quartier Latin - o C ó d ig o Civil.'*^ N o e n tre ta n to , o C ó d ig o Civil francês tin h a a m a rc a reg is tra d a d e N a p o le ã o B onaparte, o q ual fez q u e stã o d e fazer dela a su a ob ra m ajestosa, p restig ia n d o as sessões d o C o n se lh o d e Estado, e n c a rre g a d o d a feitura d o an tep ro jeto d e red a ç ã o d o C ódigo, p re s id in d o ele p ró p rio 57 sessões d a s 140 e fe tu a d a s p e lo C onselho, n a s q u a is d e c id iu im p o r as su a s op in iõ es p e s soais n a elaboração d o s capítulos c oncernentes a o c a sa m e n to e ao divórcio. Ele q u e dizia: "Será q u e n ã o v ã o fazer p ro m e te r a o b ed iên cia d a s m u lh e res? ... Ela (m ulher) tem q u e s a b e r q u e ao sair d a tu tela d a fam ília, p a s sa p a ra a d o m a rid o . O b e d iê n cia! Esta p a la v ra aplica-se s o b re tu d o e m Paris, o n d e as m u lheres p e n s a m te r o d ireito d e fazer tu d o o q u e querem .. o m esm o Código que serviu de paradigm a ao nosso Código Civil de 1917, o qual em seu artigo 6°, inciso II, considerava as m ulheres ca sadas relativam enie incapazes, enquanto subsistisse a sociedade conjugal. Essa condição civil restritiva de direitos só foi alterada por ocasião d o Estatuto da M ulher C asada, votado em 1962, pela Lei n° 4.121, de 27 de agosto, cham ada Lei Nelson Carneiro. Na v e rd a de, a fonte primeira é d o D ireito Rom ano que considerava a s F em in a e (ou m ulieres) relativam ente incapazes. •*^0 p a rê n te s e é m eu. F ra se c ita d a em C a d e rn o s d e M u lh e re s d a E u ro p a , A s CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA C om efeito, o C ó d ig o Civil N a p o le ô n ic o foi u m m arco no escopo d a re stritiv id a d e d o d ireito d a s m u lh e res, o q u e d e for m a d ire ta im p lico u n o re ta rd a m e n to d a c o n q u ista d a c id a d a nia. A ssim , o p r ó p rio E stad o red u zia e p ro c ra s tin a v a a liber d a d e e a c a p ac id a d e d e ação d aq u elas. A ntes d o C ó d ig o a lu d id o , a in d a n o século XVI, foi a lte ra d a a m a io rid a d e d e m en in o s e m en in a s q u e era aos q u a to rz e anos p a r a os jo v e n s m a s c u lin o s e d e d o z e p a ra as m e n in a s ; foi tra n sfe rid a p a ra os vin te e cinco anos, e x a ta m e n te a id a d e da c o n q u ista d a m a io rid a d e n o D ireito R om ano. E com a caracte rística d e q u e o p a i exercia u m p o d e r d e p ro p rie tá rio sobre os filhos, p re c isa m e n te com o ocorria n a R om a A n tig a, o n d e o pater familias tin h a e g o z a v a d o status de ãominus sobre to d a a fam ília. D e tin h a o chefe da fam ília a potestas e a maniis. O C ó d ig o C ivil tro u x e sérias restriçõ es à c a p a c id a d e da m u lh e r q u a n to aos d ireitos civis - esses m ais a b ra n g e n te s - e q u a n to à c id a d a n ia. A p ró p ria Lei d o D ivórcio, a n te s referida, q u e foi c o n s id e ra d a p o r LY NN H U N T , a lei m ais liberal d o m u n d o à época,"*^ foi m o d ificad a p elo C a p ítu lo VI d o C ó d ig o Civil, r e d u z in d o -s e as c ausas p a ra o p e d id o e m a p e n a s três: a) p o r c ondenação; b) p o r sevícias; e 3) p o r a d u lté rio . N o caso dessa ú ltim a razão, o m a rid o p o d ia solicitar o d ivórcio, sob a alegação d o a d u lté rio d a m u lh e r, e n q u a n to q u e esta só p o d eM ulheres na Fievolução Francesa. C om issão das C om unidades Européias, B ruxe las: n° 33, p. 24. É sintom ático aferir que Napoíeão tinha internalizado os valores fam iliais do Direito Rom ano que punha as m ulheres sob tutela, q u alquer que fosse a sua idade, ou estado civil - solteiras, casadas ou viúvas. A tu te la era perpétua, pois as m ulheres se a chavam sem pre sob o p o d er do hom em . Se solteira, do próprio pater; se ca sa d a cum manu, dependia do m arido ou d o p a te r íamiíias d e s te. Se casada sine manu, a tutela recaía em seu próprio pater. As solteiras sem p a ter e as viúvas, achavam -se sob a proleção do tutor. Sobre a matéria, ver José Cretella Júnior, in: Direito Rom ano t^oderno. 4, ed. Rio de J aneiro: Forense, 1986. Cfr. Lynn Hunt, Revolução Francesa e Vida Privada in: História da Vida Privada - Da Revolução Francesa à Prim eira G uerra, trad, de Denise Bottm ann (partes 1 e 2) e Bernardo Joffily (partes 3 e 4), São Paulo: C om panhia d a s Letras, 1991, p, 39. 58 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA ria fazê-lo n a h ip ó te se d e o m arid o m a n te r " s u a c o n c u b in a na casa e m c o m u m " . (Art. 230). N a q u e s tã o d a p u n ib ilid a d e , reco n h ecid a a culpa d a m u lher, esta e staria sujeita a d o is an o s d e p risão , e n q u a n to ao m a rid o n a d a acontecia e m hip ó tese sem elhante. O liberalism o a c en tu o u , pois, a noção d o p ú b lic o e d o p r i v a d o e d o s p a p é is m ascu lin o s e fem ininos. E o E stad o p o d ia d is p o r d e tu d o : re g u la m e n ta v a a v id a nacional, a v id a fam ili ar; a lte ro u o calen d ário , in stitu in d o o d a R evolução; d e c id ia o n o m e d o s filhos, a escolha d a s r o u p a s etc. E o racio n alism o crio u a M A R IE N N E q u e se co n su b stan ciav a n o e m b le m a da R epública, a d e u s a ro m a n a d a L iberdade, a q u a l era m o stra d a e s ta m p a d a com face d a m u lh e r e d a m ãe, estas "tão d e s p ro v i d a s d e q u a lq u e r d ire ito po lítico ", n a e x p re s s ã o d a m e sm a LY N N HUNT.^5 É in q u estio n á v e l q u e o sim bólico se im p re g n o u n o modus vivendi d o p r ó p rio c o rp o social d a R evolução, m itifica n d o esse social e o D ireito e faz e n d o com q u e to d a a H istó ria d essa C o m o ç ã o seja m a rc a d a pelo rac io n a lism o e, ta m b é m , p elo irracion alism o, d e form a b a sta n te contraditória. O irracio n alism o era visível e fazia p a rte d a m ecânica do M o v im e n to R evolucionário e d e seus paro x ism o s. E n q u a n to o a rtig o 1° d a D eclaração d o s D ireitos d o H o m e m e d o C id a d ã o p ro c la m a v a a ig u a ld a d e d e direitos e n tre os h o m e n s e o a rtig o 7° ex o rta v a q u e " N e n h u m h o m e m p o d e ser a c u sa d o , p re s o n e m d e tid o fora d o s casos d e te rm in a d o s p o r lei e se g u n d o as fo rm as p o r ela prescritas....", a g u ilh o tin a n ã o p a ra v a d e co n tab ilizar o n ú m e ro d e sacrificados. A m u lh e r a tra v é s d e seus espíritos m ais v ig o ro so s foi alvo d a R evolução, p o r razões a p a re n te m e n te d istintas. U m a, pela Ibidem, p. 31. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA o u s a d ia d e falar n a s A ssem bléias e d e h a v e r re d ig id o a sua 'Declaração d o s D ireitos da M ulher e da Cidadã" - O ly m p e d e G ouges; o u tra , M a d a m e R oland, p o r se r u m a m u lh e r le tra da e p articipante, h a v e n d o se to rn a d o egéria, isto é, conselheira d o G ru p o Girondino,**^ foi igualm ente sacrificada. A p e n a s p ara d a r e x e m p lo s m ais relevantes. F oram a m b a s g u ilh o tin a d a s em n o v e m b ro d e 1 7 9 3 /' C u rio sa m e n te , d ia n te d a abstração e g e n e ra lid a d e d o arti go 1° d a D eclaração d o s D ireitos d o H o m e m e d o C id a d ã o , su rg e d esse M o v im en to , e até d e form a p a ra d o x a l, u m c o n h e c im e n to d o Outro, com o u m sem elh an te, c o m o a q u e le q u e p o d e o c u p a r o lu g a r d o eu, a quele c om q u e m o eu se iden tifi ca e q u e , p o r isso, é ta m b é m d e te n to r d e d ire ito s e obrigações. D e n tro d e s s a c a te g o ria d o O u tro , a m u lh e r e m u m a e sca l a d a a s c e n s io n a l v e m a o c u p a r o s e u e s p a ç o , c o m o u m a d ire tiv a v o lta d a a p len ific a r o conceito d e Justiça, este q u e está s e m p r e e m m o v im e n to d in â m ic o , isto é, o " d ir e ito " é c o n fe rid o p a ra d e s ig n a r o b e m d e v id o p o r injustiça, o u em u m a re le itu ra m o d e r n a e m ais justa d o p e n s a m e n to d e S anto T o m á s d e A q u in o , é d ire ito o q u e é d e v id o a o u tre m , s e g u n d o u m a ig u a ld a d e . A q u i, a Justiça se c o n fu n d e c o m a ig u a l d a d e , o u a ela é e q u ip a r a d a d e form a c o n c re ta e re a liz a d a , p o r a n tô n im o d a injustiça. Os girondinos constituíam uma facção dissidente de grupos radicais que p a ssa ram a predom inar entre os jacobinos. Na Assem bléia Constituinte, eles perfaziam a ala de centro-direita e tinham esse nome em função da origem de deputados que v inham da província da Gironde. Durante o m ês de junho de 1794, 2.000 p e ssoas foram executadas em Paris e consta que a guilhotina chegou a funcionar até seis horas por dia. Cfr. Frédéric B luche e t allii, in: A R evolução Francesa, trad, de Lucy M agalhães, Rio de Janeiro: Jorge Z ah a r Editor, 1989, p. 130. 60 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA CAPÍTULO 7 DIREITO - JUSTO ENTRE A RATIO E A DIGNIDADE HUMANA O s e stu d io so s d a Filosofia d o D ireito têm e m m e n te q u e o conceito d e "d ire ito " é passível d e significações. N o se n tid o nu c le a r, acha-se acrisolada a p e rsp e c tiv a d e u m d ire ito in te i ra m e n te ju n g id o ao conceito d e justiça. É o d ir e ito - ju s to , a q u e le q u e p o r excelência form a e inform a as reg ra s d a n o rm a tiv id a d e jurídico-legal. A ju stiç a está e n c a s to a d a n o c írc u lo d e v a lo r e s d a s n o r m a s j u r í d i c a s . O s v a l o r e s sã o , n o d i z e r c o n s p í c u o d e R E C A S E N S SIC H ES, s e re s id e a is o u o b jeto s id e a is c o m o q u e r e m o u tr o s jusfiló so fo s. S e g u n d o R E C A SEN S, p o d e m o s d e s c o b r ir os v a lo re s n a s coisas o u e m c o n d u ta s q u e c o n s i d e r a m o s v a lio s a s, m a s q u e n ã o c o n s titu e m u m "pedazo de la realidad de esas cosas o conductas", e, sim , são u m a q u a lid a d e q u e e la s n o s a p r e s e n ta m n a m e d id a q u e c o in c id e m c o m as e s sê n c ia s id e a is d e valor.^*® A ssim , a realização d e u m valor, co m o a justiça, constitui u m a q u a lid a d e relativa d a coisa q u e se tem com o p a râ m e tro , o u seja, estabelece-se u m a relação en tre essa coisa e com a idéia d e valor, a in d a se g u n d o o respeitável e s tu d io so citado. Daí, leva-se à investigação a questão da in d ep e n d ê n c ia entre a categoria d a re a lid a d e e a categoria d o valor, sobretud o na p ersp ectiva de q u e os valores, ou a lg u n s valores, não se acham realizados na vida, p ois constatam os o contraste e n tre aquilo q u e deveria ser e aquilo que é. E, a in d a n o s d iz RECASENS, q u e a justiça p erfeita é algo inalcançável, m a s n e m p o r isso d e ix a re m o s d e rec o n h e c e r q u e a justiça é u m v alor, m esm o q u e c om m u ita freq ü ên cia trope■‘® Cfr, Luís Recasens Siches, /n: op. cil., p. 58. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO D£ JUSTIÇA cem os d ia n te d a s injustiças, as q u a is n o s su sc ita m a s u a nãoaceitação, p o r injustificadas em face d o valor. E e m r e m a te diz: "O re c o n h e c im e n to d e u m v a lo r com o tal v a lo r n ã o im p lic a q u e esse v a lo r se a c h e e fe tiv a m e n te re a liz a d o " /^ C o m o p o n to d e p a rtid a d e ssa d iscussão , h a v e re m o s d e co locar esse raciocínio e n tre os term o s d a q u e stã o d e ste tem a: os direitos de cidadania da m ulh er e a sua questão de justiça. Ser o u n ã o ser, a d ú v id a secular d o ser h u m a n o e m face de su a s circunstâncias. O ra, é cristalino q u e a justiça se coloca e m m eio às ações e exigências d e m ais d e u m sujeito, com "a fu n çã o específica d e m a rc a r e n tre elas u m lim ite e u m a proporção h a rm ô n ic a " , d a í a justiça ser essen cialm en te d e n a tu re z a social.^*^ N o C apítulo 1 desta m onografia, fez-se alusão à m ais rem ota e conhecida teoria d a justiça, lucubrada p o r Pitágoras e p o r seus discípulos. Esta Escola d e form a genial tratou d e expressar a jus tiça relacionada à igualdade o u correspondência d e term o s con trapostos. Tenta-se idealm ente conseguir a síntese dessa antítese através d o n ú m e ro quad rad o , o u seja, aquele n ú m e ro q u e m ulti plicado p o r si m esm o, devolve o m esm o pelo m esm o, com o dito p o r DEL VECCHIO. É u m a equivalência perfeita. P o rta n to , d e n tro d essa id e a lid a d e , a justiça é ig u a ld a d e e rec ip ro c id a d e. O s term o s dessa c om posição são exa ta m en te iguais: 2 4-2 = 4. M e sm o assim , a filosofia d a ig u a ld a d e , n a I d a d e Clássica, n ã o alcan ço u as m u lh e re s , com o parcela ig u al à p arcela m as- Cfr, autor citado, in op. cit., pp. 58-65. A frase em aspas foi por m im traduzida. 0 raciocínio é de D E L V E C C H IO ín; A Jusí/pa, Saraiva, 1960, p, 40, a p u d André Franco M ontoro, Introdução à Ciência do Direito. 25. ed. (2- tiragem , S ão Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 168. O destaque é meu. 62 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA culina. O p r ó p rio ARISTÓTELES n ã o vê assim , p o is s e g u n d o in fo rm a DEL V ECCH IO , n ã o existe p a ra o P e rip a tético um a ig u a ld a d e m ate ria l e sim u m a c o rre sp o n d ên c ia d e valores. E ntão d a í d e c o rre q u e a certeza d a ig u a ld a d e d o q u a d ra d o to rn a -se d ú v id a , ou, q u e m sabe, h o u v e u m a a p ro p ria ç ã o da teoria com d e s v irtu a m e n to , pois co m o d iz DEL V E C C H IO , o p e n s a m e n to d o s pitag ó rico s p o d e ter sido m ais v a s to e m ais p r o fu n d o d o q u e se conhece hoje, ou q u e h o u v e s se sid o co n h e c id o p o r A ristóteles, d e form a já alterada. De q u a lq u e r sorte, infere-se q u e a Justiça C o m u ta tiv a trata d e a trib u ir en carg o s e d ire ito s d isc re p an te s e n tre os d o is g ê n ero s, e sta b e le c e n d o u m a inflexão n o fiel d a balança, n o q u a l u m d o s p ra to s tem m ais p eso q u e o o utro. O s term o s c o n tra p o sto s n ã o são vistos a q u i com o relação d e ig u a ld a d e e d e recip ro cid ad e. N a su c essã o d o s tem pos, vê-se q u e o g ê n e ro h o m e m / h u m a n id a d e n e m s e m p re se ju sta p ô s à c ategoria p esso a. É o q ue acontecia com a ca te g o ria m u lh e r , com a ca te g o ria escravo, com o e x e m p lo s d e m aio r m a g n itu d e , espécies essas fora do raio d e scritiv o d o gênero. A m u lh e r p re c iso u e n tra r e m u m c a d in h o se cu la r d e lutas a fim d e c o n q u ista r a s u a condição d e pessoa. A liás, MAX SCHELLER a d m ite h a v e r u m a conexão ind iscu tív el e n tre a essência d a m o n o g a m ia e o rec o n h e c im e n to d a m u lh e r com o pessoa. E a crescenta q u e n o O riente M édio a p o lig a m ia é u m a institu ição aceita e m função d e existir estreita co n ex ão com a crença d e q u e a m u lh e r n ã o p o ssu i alm a, o u seja, d e n ã o se e fetivar n a q u e la a condição d e p esso a, s e g u n d o o Corão. A p u d G erson de Britto M ello Bóson, in: Filosofia do Direito - Interpretação A n tro pológica, 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 183. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA Parece n ã o ter sido diferente o p e n s a m e n to d e a lg u n s re p re se n ta n tes d a Igreja Católica, n o tocante à condição fem inina. R ÉGINE P E R N O U D n o s inform a q u e G re g ó rio d e Tours, em s u a "H istó ria d o s Francos" relata q u e no S inodo d e M âcon, d e 486, u m d o s p re la d o s fez o b se rv a r q u e n ã o se d e v ia c o m p r e e n d e r as m u lh e re s sob o n o m e d o s h o m e n s , e q u e a p a la v ra homo d e v e ria ser in te rp re ta d a n o s e n tid o latin o d e vir.^^ N a essência d a justiça, s e m p re se v iu a q u e s tã o d a alterid ad e e m su a realização. N ã o existe justiça sem a existência d e p esso as, o u d e p e lo m e n o s d u a s pessoas. D a í o a firm ar-se q u e cabe à justiça a fu n çã o d e d irig ir "a s o c ie d a d e d o s h o m en s". O u , s e g u n d o D A N TE, a justiça é u m a relação p ro p o rc io n a l d e h o m e m a hom em . Só q u e a concepção d e h om em era d irig id a a p e n a s ao vir, o u seja, ao h o m em com o oposição à femina - m u lh e r enfim , a idéia d o h o m em , sob o p o n to d e vista d as q u a lid a d e s m ásculas, viris, v a le d iz e r, sob o â n g u lo d e u m e s te re ó tip o q u e v eio a se r v in c a d o p r o f u n d a m e n te n o in c o n sc ie n te coletivo. N o e n tre ta n to , a justiça c om o v a lo r d e c o n te ú d o d o D ireito sofre m u d a n ç a s , e m conseqüência até d e p ro b le m a s d e a p li cação p rá tic a d a idéia d a p ró p ria justiça, pe la s m ais á rd u a s co n tro v é rsia s teóricas e pelas m ais s a n g re n ta s lu ta s políticas, n a s p a la v ra s a u to riz a d a s d o insigne RECASENS SICHES. Pois a idéia d e h a rm o n ia o u d e p ro p o rc io n a lid a d e , n ã o m in is tra o critério p a ra p ro m o v e r a dita h a rm o n ia o u p ro p o rc io n a lid a de. De vez q u e aí se está d ian te d e u m d ire ito m e ra m e n te for m al ou, c o m o d ito p o r a quele e s tu d io so d a Filosofia d o DireiRégine Pernoud. op, o f., pp. 108-109. " C itação feita por André Franco Montoro, op. c/f., p. 131. referindo a sua autoria a C icero. Idem, ibidem. 64 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA to, h á q u e se p re s s u p o r m e d id a s m ateriais d e v a lo r a fim de q u e aq u e la justiça seja im p le m e n tad a . A T eoria d o s V alores o u a E stim ativa Jurídica co m o c h a m a d a p o r ele, p a rte d e o u tro s valores, a fim d e d a r su b stâ n c ia à idéia d o d ire ito form al e positivado. A q u e s tã o d a d ig n id a d e hum ana en tra com o m atriz desses princípios e, n ã o obstante ser estofo d e filosofias o u d e c o n d u ta s seculares, só rec e n te m e n te a p a re c e n o D ireito com o v a lo r a ter efetividade. A p ró p ria Igreja Católica, em seu N o v o T e sta m e n to , a p re goa a v id a d e C risto, este com o u m v iv en c ia d o r d e ssa ig u a l d a d e e m n o m e d a pesso a n a scid a com o Filho d e D eus, p o r tan to , com a m e s m a n a tu re z a e com a m e sm a essência esp iri tual d e criatura ligada à im agem d o Criador. N a exortação de São Paulo: " n em judeus, n em gregos, n e m escravos, n e m livres, nem hom ens, nem mulheres",^^ pois todos são identificados com o Filho d e Deus, através d a d ignidade h u m an a. Descabido dis cutir aí discrim inações o u exclusões d entro desse espírito. Essa idéia u n iv ersa l d a h u m a n id a d e v e m d o s c ristãos e d a filosofia estóica, isto é, a d ig n id a d e é p a n o d e f u n d o d a p r e sença d o h o m e m n o orbe e q u e o d istin g u e d o s o u tro s a n i m ais, sob o p o n to d e v ista d a ontologia. C o n tu d o , m u ito s sé culos d e sfila ra m p a ra q u e se iniciasse a d isc u ssã o d o s c h a m a d o s D ireitos H u m a n o s , estrib a d o s nessa d ig n id a d e . E n e ssa acepção, d iz RECASENS SICHES, a d o u trin a d o s d ireitos h u m a n o s a p o n ta p a ra critérios estim ativos, em juízos d e valo r, a fim d e q u e a o rd e m jurídica p o sitiv a im p rim a co n ceitos q u e v e n h a m ao e n c o n tro d e ssa s exigências, n a co n se cução d o D ireito Justo, e m su a e x pressão v ivenciada. N o m u n d o c o n te m p o râ n e o , o p rim e iro p a s so foi d a d o com A exortaçao está contida na Epístola aos G álatas, 3. 28, in: A Bíblia de Je ru sa lém. 9. ed. (rev.). São Paulo; Paulus, p. 2192. 0 destaque é meu. CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA a D ECLA RA Ç Ã O UNIVERSAL DOS DIREITOS D O H O M EM , d e 1948, m e d ia n te a qual se erigiu a c o n d ição d a d ig n id a d e d o s h o m e n s livres e iguais em direitos. (Art. 1°). E a í se trata d e c o n c eitu ar seres h u m a n o s , em su a indefectível div isão e n tre h o m e n s e m ulheres. O corre que o racionalismo d o século XVIII n ã o resolveu os problem as concernentes à política da cidadania. De certo â n g u lo, inicia-se u m desprestígio do logos no tocante ao problem a e u m deslocam ento do topos para se centrar a questão d a dignida de e m m eio aos Direitos H um anos. M esm o c onsiderando que a lei tão sacralizada d esd e os prim órdios d o Direito Rom ano, a ssu m a u m a politização dentro d e u m a realidade e concretude, sob u m enfoque d e direitos hum anos, ou direitos d a h u m a n id a d e com o um todo, sem a cisão d o h om em e da m ulher. M as, ao in verso, u m direito m enos convencional, m enos abstrato, m enos dever-ser e m ais ser, m enos absolutista, sem o fosso d o s direitos d o hom em , com o categoria de virilidade e d e m asculinidade. T alvez o "código"' d o D ireito se ten h a p o litiz a d o o u ideologizado, o u m e n o s lig ad o a "interesses'" casuísticos, p o is afi nal o D ireito é Ciência C u ltu ra l, p o rta n to , c o n s tru íd a sobre reg ra s, usos, co stu m e s, c o n h e cim en to s e c o n d ic io n a m e n to s sociais e acim a d e t u d o tem u m a lin g u a g e m q u e ten ta s u p e ra r as e n tro p ia s sociais, no se n tid o d a h a rm o n iz a ç ã o e d a ig u a l d a d e , esta, referencial m a io r da justiça. A interação d o texto legal com o contexto social e püblicofem in in o d á u m a v ira d a n a leitura d o texto form al, inclusive a p e tre c h a n d o a noção d e justiça c om o algo a ser rea lm e n te v iv en c ia d o . É co m o a firm a d o p o r B E N JA M IN C A R D O ZO : " N o direito , assim c o m o em o u tra s ciências, m u ita s coisas d e v e m ser a p re n d id a s com o fatos". 56 A p u d Aoóré Franco Montoro, op. c/f., p. 287. 66 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA C o m o d ito alg u res, se o po sitiv ism o tro u x e p a ra a teo ria d o D ireito u m a espécie d e consciência a to rm e n ta d a p o r antíteses in te rn as, h á d e certa form a u m a b a n d o n o d essa p osição, a fim de g a ra n tir o u tro estado-de-coisas q u e d ê à lei in te rp re ta ç ã o d e s p ro v id a d e contextos clássicos d e div isão d o s a to re s soci ais com o sujeitos d e direitos, ra s g a n d o o v é u sa cra liz a n te d e s sa leitura a fim d e alcochoar o n o v o e strato d e justiça e d a n o v a id eologia d o s direitos políticos. A gora, sim , os d o is se e n c o n tra m e m u m p a ta m a r em q u e d a r u m n o v o significado à lin g u a g e m d a ig u a ld a d e e d a justiça, se faz m ister. P o r o u tro lad o , o E stado, já n ã o m ais s e p a ra d o d a S ocieda de, é ele p r ó p rio o p re s ta d o r p o sitiv o d o s d ire ito s e g a ra n tia s fu n d a m e n ta is . N a leitura, v.g., d a C o n stitu içã o b rasile ira d e 1988, e m s e u a rtig o 5°, e inciso I, h á q u e se v e r q u e já n ã o é a m e s m a le itu ra d o s p receitos p re c e d e n te s d a C o n stitu içã o d e 1946 (art. 141, § 1°), ou, m ais re m o ta m e n te , d a C o n stitu içã o Im p e ria l d e 1824, q u a n d o se tra tav a d a in v io la b ilid a d e d o s d ire ito s civis e políticos d o s c id a d ã o s brasileiros, a c o n sid e rar q u e n essa ca te g o ria n ã o se in clu íam as m u lh e r e s (art. 179, caput). A ig u a ld a d e , aí, era m e ra m e n te form alística. A p r ó p r i a O r g a n iz a ç ã o d a s N a ç õ e s U n id a s (O N U ), e m q u a s e c o n s e n s o n a fe itu ra d a D E C L A R A Ç Ã O U N IV E R S A L D O S D IREITO S H U M A N O S , d e 10 d e d e z e m b r o d e 1948, a s s u m e u m a p o s i ç ã o c la r a , d e s e n t i d o r i g o r o s a m e n t e u n iv e rs a U s ta , c o m o u m id e a l a se r a tin g id o p o r to d o s os p o v o s e p o r to d a s as n a ç õ es. E n e s s e d o c u m e n to h á u m a b a se id e o ló g ic a - a de q u e to d o s os s e re s h u m a n o s n a scem liv r e s e ig u a is e m d ireito s r e c h a ç a n d o o r e d u c io n is m o , as d i s c r im i n a ç õ e s e d a n d o e n s a n c h a s a n o v o s m é t o d o s e x e g é tic o s d a le itu ra d o tex to d e c la ra c io n a l. Q u a s e d e f o r m a u n â n im e foi a D e c lara ç ão aceita p e la A s s e m b lé ia G e ra l CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA d a O N U /^ d a n d o origem inclusive a vário s textos p osteriores d e re p ú d io àquelas discrim inações, com o aconteceu n a p a ssa gem d o d o m ín io d a D ECLA RAÇÃO p a ra o d a s Convenções. N o to can te às m u lh e res, d e n tre ou tras, salien ta-se a Con venção sobre a Eliminação de todas as Formas de D iscrim i n a ç ã o C on tra as M u lh e r e s , q u a n d o e m s e u a r t i g o 1° é v e rb a liz a d o e x p re s s a m e n te q u e a d iscrim in ação contra as m u lh eres im porta em "qualquer distinção, exclusão ou res trição baseada n o sexo, q u e ten h a com o efeito o u co m o obje tivo c o m p ro m e te r o u d e s tru ir o rec o n h e c im e n to , o g o z o o u o exercício pe la s m u lh e res, seja qual for o s e u e s ta d o civil, com b a s e n a igu ald ad e d os h o m e n s e das m u lh eres, d o s direitos d o h o m e m e d a s lib e rd a d e s f u n d a m e n ta is n o s d o m ín io s p o lí tico, econôm ico, social, cu ltu ral e civil ou e m q u a lq u e r o u tro d o m ín io ". (Os d e sta q u e s são m eus). A a v o e n g a teo ria d a in fe rio rid a d e d a m u lh e r , p e lo sexo, cai a ssim e m fu n çã o d e u m a "crise" d o d o g m a fo rm a lis ta d o D ireito. Pois, com r e la ç ão ao â n g u lo d a justiça, in fo r m a d o r a d a lei, p re se n c ia -se n o v o s o p ro axiológico a c o lm a ta r c o m n o v o s v a lo re s o cerne da cid adania da m u lh er c o m o q u e s tão de justiça. CONCLUSÃO N o te rre n o d a especulação filosófica d a Justiça, co m o se viu, h á u m a relação dialética d e n tro d e u m a d in âm ica d o cos m o s, rec a in d o sobre a N a tu re z a e so b re a poiesis d a s reg ras form ais e d o g m ática s, n o m u n d o d a criação d o D ireito. Em Resolução de 10 de dezem bro de 1948, a A ssem bléia G eral da O NU votou o texto da D E C LA R A Ç Ã O U N IV E R S A L DOS DIREITO S DO H O M E M . Não houve voto contrário. Q uarenta e oito m em bros votaram a fa vo r e oito abstiveram -se. Dentre estes, alguns países do bloco soviético; a Arábia S au d ita e a África do Sul. CIOADANíA DA MULHER, UMA Q U E S T à O DE JUSTIÇA Já se disse a lg u re s q u e a so ciedade é o c o sm o s c u ltu ra l d o se r h u m a n o . E d e n tro dessa relação cu ltu ral, v iv en c ia m -se os v a l o r e s , e s t e s a ç a m b a r c a d o s n o c o n t i n e n t e d a T e o r ia A xiológica, ou, e m o u tro s d izeres, n a riq u e z a e p ro fu n d id a d e d a E stim ativa Jurídica. N o conceito d e justiça cabem valorações, c o n te ú d o s m ate ri ais q u e in fo rm a m a v id a e a realização d o Direito. N a d a é defi nitivo, pois as finalidades da ordenação jurídica cam biam , com o m u d a m as folhas secas d e u m a á rvore q u e caem p a ra d a r lu g ar a n o v a s e h íg id a s folhas, as quais retiram dessa árv o re a seiva necessária p a ra d a r n o v a ro u p a g e m a essa m e sm a árvore. É q u a se u m ciclo autopoiético, de a u to-reprodução, q u a n d o se teoriza sobre n ovos valores e sobre n ovas v irtudes. É n o íopos d a Justiça q u e se refugia o Direito. D ireito é Ju s tiça, o u o seu b e m m aior. A o lo n g o d o s tem p o s, o conceito d e D ireito e d e Justiça v e m se in te g r a n d o e m várias visões d e s d e o M u n d o A ntigo, a tra v e ss a n d o a E ra Clássica, in clu in d o a q u i o d e s e n v o lv e r d o D ireito R o m an o , p a s s a n d o p o r u m a c osm ovisão cultural-relig i o s a - p e la P a t r í s t i c a e E s c o lá s tic a . D o n d e , o D ir e i t o c ristia n iz a d o d e sen v o lv ia o conceito d e justiça n ã o o b sta n te n o m é rito se a c a c h a p a r a u m a so c ie d a d e restrita e m q u e a v i r tu d e era p ro v e n ie n te d o vir, ou seja, d o v arão , c o n fu n d in d o se o a trib u to c om o sexo m asculino. O D ireito foi restrito p a ra ãèfeminae. M e sm o assim , n ã o se d e sm a n c h a a í a id e n tid a d e essencial d o D ire ito c o m a Justiça. N o c o rre r d o s te m p o s , a C iê n c ia q u e d e s s a c r a liz o u o c o n h e c im e n to tr a to u d e d a r n o v o s e n tid o à s b a s e s d a C iência J u ríd ic a a fim d e a la r g a r o s e u c a m p o d e e s tu d o s , p o litiz a n d o esse s a b e r e f a z e n d o d e s te u m a fo n te d e p o d e r. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA O racio n alism o d a Revolução F rancesa tro u x e à lu z d o dia a q u e stã o d a s m u lh e res, as q u a is e n fre n ta ra m o m a io r jogo dialético d o p o d e r. A m u lh e r d a í a d v in d a m u d a a s u a n a tu r e za. O u será q u e a n a tu re z a d a s coisas m u d o u ? T alvez. Se a N a tu re z a d o s p rim e iro s filósofos greg o s era m a te m á tic a , foi preciso m u d a r a n a tu re z a dessa N a tu re z a a fim d e q u e se p u d e sse c o m p re e n d e r m e lh o r o Direito-Justo. C om a racio n alid ad e, inicia-se u m n o v o p rojeto d e in te r p re ta ç ã o d a s C iências C u lturais, com o o D ireito, e se d e s m e m bra 0 D ireito Religioso d o D ireito Laico, a c ab a n d o , p o r fim, e stereótipos gra vosos, com o o d a s b ru x as ou o d a m u lh e r com o ser inferior. In a u g u ra -s e a e ra d o Anthrópos, o u seja, d o m a s c u lin o / fem inino, d a ig u a ld a d e e d a re c ip ro c id a d e v istas a g o ra sob u m â n g u lo d e vivência d a s u b s ta n c ia lid a d e d o se r h u m an o , m e d id a p e la d ig n id a d e , sob o p á lio d e n o v a v aloração d o b e m m a io r c h a m a d o Justiça. É u m a n o v a sim bologia, u m n o v o signo e u m a n o v a lin g u a g e m q u e trata d o d ire ito d e c id a d a n ia d a m u lh e r, c o m o d e o u tro s, d e n tro d o d ia p a s ã o d e u m a ig u a ld a d e v a lo ra d a n a "ex p e riê n c ia" d e n o v a s m eto d o lo g ia s d a C iência d o D ireito e q u e fazem o D ireito rea liz a r a su a id e a lid a d e , h a rm o n iz a n d o se com a concreção d a realidade. BIBLIOGRAFIA A BÍBLIA DE JERUSALÉM. 9. ed. (rev.). São P aulo: P a u lu s, 1995. ALG R A N TI, Leila M ezan. Honradas e Devotas: Mulheres da Co lônia - C o n d ição fem inina n o s co n v en to s e rec o lh im e n to s do S u d este d o Brasil, 1750 - 1822. Rio d e Janeiro: José O lym pio. Brasília: E d u n b , 1993. CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA ALLGEIER, K urt. Receitas Milagrosas de Médicos e Místicos R e m é d io s N a tu ra is d e D ois M ilênios. T rad, d e C élia M aria N ü r t h Teixeira, [s.local]: E diouro, [s.d.J. ARISTÓTELES. 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O s conceitos a q u i tra b a lh a d o s têm c om o s u p o rte m e to d o lógico a p e s q u is a bibliográfica e o seu d e se n v o lv im e n to a p re senta-se c o n stitu íd o d e três partes. N a p rim e ira d e la s consta a tra je tó ria h istó ric o -so c io ló g ic a q u e e n v o lv e a p e rs o n a g e m m u lh e r, o n d e se q u e r m o s tra r q u e o D ireito n ã o p o d e ser d isso c iad o d e sse contexto. O u tra raz ã o d e se r d e ssa p a rte é a d e q u e a c o m p re e n sã o d o p resen te, o u a ela b o ra çã o d e u m a so lução fu tu ra , im plica in te rp re ta r o p a s sa d o . N e ssa in cu rsão iniciada n a A n tig ü id a d e g reco -ro m an a e, e m seq ü ên cia, es te n d id a a té o século XX, p ro cu ra -se d e m o n s tra r q u e a H istó CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA ria s e m p re rele g o u a m u lh e r a u m p lan o inferior. S en d o o h o m e m o c o n s tru to r d a história, d a sociedade, d a civilização p o rta n to , o sujeito d a s m esm a s - d e te rm in o u os p a râ m e tro s d a u tilização d a m ulher. N e sse p e rc u rso , q u e se lim ito u ao m u n d o ocidental, cada p e río d o h istórico é a b o rd a d o em seu estilo específico. E n q u a n to d e u sa , a m u lh e r era a m a d a pelos greg o s m as, u m a v ez ser social, e ra a fa sta d a d a s relações políticas e econôm icas, c om o re s p a ld o d o p e n s a m e n to filosófico d a época. E m R om a era tra ta d a p e lo D ireito - d o qual o n osso é trib u tá rio - co m o u m ser incapaz, pois assim disp u n h a o seu estatuto. A única função valorizada era a m aterna e isso não pelo fator inerente d a repro dução, m as pela instituição casam ento, entenda-se m ultiplica ção e conservação d o patrim ônio. Saliente-se que, nesse aspecto, R om a em n a d a se distinguiu d as sociedades antigas e, d e m o d o geral, d a totalidade d as sociedades hu m an as, anteriores à e m a n cipação d a m u lh e r no m u n d o industrial contem porâneo. N a Id a d e M é d ia a m u lh e r sofreu o handicap d a p e rse g u içã o às b ru x as, c o n d ição q u e m u ito p o u c o m e lh o ro u com o a d v e n to d o R en ascim en to , d a R evolução Francesa e d a s G u e rra s M u n d ia is. A ssim , o m ito d o m a tria rc a d o a p a re c e c o m o s e n d o a p e n as u m conceito d a antropologia, n a avaliação d e Bachofen. A d o m in a ç ã o m asc u lin a é aqui d e m o n s tra d a d e d iv e rsa s for m as. N o e n ta n to , esse d o m ín io n ã o significa a au sên c ia d e p o d e r fem inino, m as m o stra a clara resistência d a articulação d a su p re m a c ia m ascu lin a, p a ra q u e as m u lh e re s n ã o se m a n i festem . D essa form a, os escribas d o p o d e r re g is tra m te n d e n c i o s a m e n te - s e g u n d o seleção feita p o r eles - o q u e as m u lh e re s d e v e m fazer o u dizer. A ssim , a elas d e s tin a ra m o e sp aç o p r i v a d o , e n q u a n to os h o m e n s o c u p a m , com to d o o r e s p a ld o id e ológico, o â m b ito público. MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÕDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL N a s e g u n d a p a rte é a b o rd a d a a h istória d a m u lh e r no Bra sil - síntese d o p e río d o colonial ao s d ia s a tu a is - o n d e se v eri fica q u e a situ a ç ão d a s m u lh e res n ã o d ife re d a r e a lid a d e a p re se n ta d a n a p a rte inicial d e ste trabalho. D estarte, e m u m a soci e d a d e p atriarcal, a fam ília constituía-se n o c en tro d e to d a a organização; econôm ica, religiosa e m e s m o política. A v irg in d a d e d a m u lh e r era c o n sid e rad a fator d a m ais alta relevância, refletindo-se e m q u e stõ e s d o Direito. N esse contexto, a m u lh er e n q u a n to m ãe, p o r influência d a s trad içõ es judaico-cristãs, era asso ciad a à V irgem M aria e glorificada p o r essa fu n ção vocacional. Isso a v in cu lav a ao e sp aço p riv a d o , e n q u a n to era oficializada s u a in ferio rid ad e jurídica e social. N o Brasil, so m e n te a p a rtir d a d é c a d a d e 1960, fru to d e m u ita luta, a m u lh e r está - m as d e form a m u ito lenta - conse g u in d o e x tra ir d e si a c o n d ição d e in fe rio rid a d e q u e a socie d a d e , re g id a pe la s leis d a classe d o m in a n te , lhe a trib u iu . De form a in cip ien te a m u lh e r - v ítim a d e séculos d e o p re ssã o está criando voz, abrindo espaços d e conquistas. As m ulheres estão, a tualm ente, se inserindo n u m q u a d ro social m ais amplo. A História não se escreve d e forma linear e está longe d e ser estática: em intervalos d e tem po cada vez m enores sucedem -se as alterações. Dizemos, neste início d e milênio, que o ritm o da História acelerou. E a legislação está a c o m p a n h a n d o a acelera ção histórica? Todas as lutas e conquistas d a s m ulheres foram im portantes, pois estabeleceram u m novo p a ta m a r d e direitos h u m a n o s p a ra elas. O u sufruto desses direitos, lam entavelm en te, é m arc a d o pelas desigualdades sociais e étnicas, q u e caracte rizam a n ossa sociedade. Recentem ente - já n o século XXI - foi a p ro v a d o o no v o texto d o Código Civil, q u e acaba - entre outras discrepâncias - com a possibilidade d e anulação d o casam ento p o r p e rd a d a v irgindade da m u lh e r a n te s d o m atrim ô n io . 78 CIDADANIA OA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA N a terceira p a rte de ste trabalho são trazid as à colação q u e s tões específicas d a área d o D ireito enfocando-se os d ip lo m a s legais d e a b ra n g ê n c ia internacional; C onvençõ es, T ra ta d o s e C o n g re sso s p ro m o v id o s p e la O N U . Tais d isp o sitiv o s se d e s tin a m a ale rta r o u criar v ín cu lo obrigacional - c o m os países m e m b ro s d essa o rganização - n a oferta d e tra ta m e n to ig u ali tário a h o m e n s e m u lh e re s e m su a s legislações. N a s considerações finais p ro cu ra-se sintetizar as colocações tra b a lh a d a s nesta m o n o g rafia, acrescen tan d o -se a lg u m a s re flexões q u e se s o m a m ao e n fo q u e selecionado ao tem a " C id a d a n ia d a M u lh e r, u m a q u e stã o d e Justiça". P o r ú ltim o , vale a firm ar q u e t u d o o q u e tem s id o h isto ric a m en te c o n s tru íd o n ã o n ecessariam en te d e v e rá re p ro d u z ir-se , c a b e n d o s e m p re e sp aç o p a ra ações tra n sfo rm a d o ra s. 1 - SÍNTESE HISTÓRICA DA MULHER NO OCIDENTE 1.1 - Na Antigüidade Greco-Romana "Na sua dupla relação com o saber, a mulher Grega é uma figura curiosa. É um objeto apaixonante e um sujeito muito discreto, mas teoricamente exemplar. Enquanto objeto, a m u lher surge em primeiro lugar, como essa coisa viva cuja apari ção no mundo o mitólogo teve de imaginar antes de se tornar, para os médicos um corpo a dissecar e, para o filósofo, uma figura social a instituir. Como sujeito aparece, esporadicamen te, mas sempre às margens do exercício filosófico, médico ou literário, vindo a exceção confirmar a regra de exclusividade masculina no domínio intelectual...” Giulia Sissa MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL F ilosofias do Gênero: Platão, A ristóteles e diferença dos sexos O s d e u s e s ao criarem P a n d o ra, a p rim e ira m u lh e r se g u n d o a m ito lo g ia, d o ta ra m -n a d e v o z h u m a n a , e o m u n d o antigo v iv eu sob esse m u rm ú rio d e vozes fem ininas, q u e ta g a re la v a m e m s e u u n iv e rs o dom éstico: u n iv e rs o p riv a d o , cujas p o r tas e ra m fec h a d a s e c o n sta n te m e n te vigiadas. A única p a la v ra v e rd a d e ira m e n te reco n h ecid a - a p a la v ra p olítica - e s te ve, p o r m u ito s séculos, fora d o alcance d a s m u lh e res. A lg u n s h isto ria d o re s a firm a m q u e a so c ie d a d e s e m p re foi m ascu lin a, d e o n d e d e c o rre a centralização política n as m ã o s d o s hom ens. STRAUSS, nesse sen tid o , afirm a q u e "a a u to r id a d e p ú b lica o u s im p le s m e n te social p erten ce s e m p re aos h o m e n s " .’ Em bora a historiografia não nos perm ita ver claramente em seus horizontes u m direito m aterno, um a ginecocracia, MURARO u sa e expressão "no princípio era a mãe"^ e ENGELS, p o r seu tu r no, disse que "...a reversão d o direito m aterno foi a grande derrota histórica do sexo feminino".^ Colocações, nessa linha d e p en sa mento, nos sugerem que houve u m período d a história na qual a m ulher exercia algum a supremacia, não no espaço privado - que lhe foi lugar com um em todas as épocas - m as n o espaço público. E n tre ta n to , esse p e río d o q u ase p e rd id o a tra v é s d o s te m p o s, q u e c o rre s p o n d e u a u m estágio o riginal d a h u m a n id a d e , m e re c e u a a tenção d e BACHOFEN^ e m Das M utterrecht o u o 'A p u d BEAUVO IR , Sim one de. O S egundo Sexo. 2. ed. RJ: Nova Fronteira, 1982, 1, p . 91 V. / M URARO , Rose Marie. A M ulher no Terceiro M ilênio: Uma história da m ulher através d os tem po s e suas perspectivas para o futuro. RJ: Rosa dos Tempos, 1992, p. 7. ^A O rigem da família, da propriedade privada e do Estado. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich; LENIN, Vladimir. Sobre a Mulher. 3. ed. SP: G lobal. 1981, p. 15. ^G EO RG O UDI, Stella. Bachofen, o M atriarcado e a Antigüidade; relações s o bre a criação de um mito. In: DUBY. G eorges e PERROT, M ichelle. A História das Mulheres: A antigüidade. Porto: Edições Afrontam ento, 1990, v, 1, p. 569. 80 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA d ire ito m ate rn o . De a c o rd o com a teoria d e sse jurista, "os p o v o s são se m e lh an te s aos in d iv íd u o s. P ara 'g e rm in a r e m ', p a ra c h e g a re m à m a tu rid a d e , têm n e c essid ad e d e se re m g u iad o s p o r u m a m ão firm e, d irigente, q u e n ã o p o d e s e r s e n ã o a m ã o tra n q ü iliz a d o ra e a u to ritá ria d e m ãe. A ssim , as o rig e n s d a h u m a n id a d e são colocadas sob o signo e a su p re m a c ia d e u m a única força: a m u lh e r, ou antes, o c o rp o m a te rn o q u e gera, im ita n d o a ação d a M ãe O riginal, a Terra".^ R e c o rre n d o a in d a à m itologia grega, e n c o n tra m o s q u e o s u rg im e n to d o n o m e d e A tenas dá-se a p ó s o c o n fro n to d o re g im e m atriarcal com o patriarcal; "Foi no tempo de Cécrope, o rei fundador de Ática que, segun do 0 mito, estalou uma querela entre Atena e Posídon pela denominação e posse do país. Após consulta ao oráculo de Delfos, 0 rei resolveu o assunto, convocou uma assembléia em que faziam parte 'os cidadãos dos dois sexos’ porque nesse país era então costume que as próprias mulheres tomassem parte nos escrutínios públicos".^ A ssim , as m u lh e re s q u e a p o ia ra m A te n a foram as v e n c e d o ras, o q u e g e ro u a revolta d o s h o m en s, q u e se in v estira m d o p o d e r e d e te rm in a ra m às m u lh e re s a p e rd a d e to d o s os direitos: d e v otar, d o u so d e n o m e p elos filhos e o d a c id a d a nia ateniense. A ssim se n d o , esse e n tre c ru z a m e n to d e m itologia e história q u e r re p re s e n ta r a vitória d e u m sistem a p a tria rc a l in s u rg e n te sobre u m a so c ie d a d e m atriarcal e m declínio. E n tre ta n to , a H istó ria n ã o p o d e relegar esse p o d e r, q u e as m u lh e re s teriam exercido, p a ra u m p e río d o pré-histórico - d a n d o o s e u te m p o 5 Idem, ibidem, p. 571. ® Idem, ibidem , p. 582. MULHER-, CÓDIGOS LEGWS E CÓDIGOS SOCIWS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL 8 1 p o r a c a b a d o - p o is seria u m a form a d e excluí-las d a história g reg a e d a p ró p ria H istória. O m o d o co m o os gregos criaram a figura d a m u lh e r é, no m ín im o , curiosa. Ela surge, inicialm ente, co m o u m a de u sa, u m ente m itológico; depois, é a p re s e n ta d a pela m edicina como u m c o rp o a ser dissecado. M ais a diante, n o p la n o filosófico, to rn a -se a m u lh e r u m a figura social a ser in stitu íd a . Q u a n d o a to rn a m sujeito, colocam -na à m arg e m d e q u a lq u e r prática, com rara s exceções, à m a rg e m d a c o n stru ç ão d e q u a lq u e r história. O d o m ín io m asc u lin o no p lan o intelectual, n a sociedade g reg a e, co m o v erem o s m ais adiante, n a ro m a n a , é m u ito acen t u a d o e b e m d e m o n s tra d o nessa p a s sa g e m e m q u e Platão, d i rig in d o -se a G láucon, assim se expressa: "Conheces alguma profissão humana em que o gênero mascu lino não seja superior, em todos os aspectos, ao gênero fem in i no? Não percamos o nosso tempo a falar de tecelagem e de confecção de bolos e guizados, trabalhos em que as mulheres parecem ter algum talento e em que seria totalmente ridícido que fossem batidas"/ Desse m odo, os "savoir-faire" que exigissem com petência e h abilidade raram en te eram atribuídos às m ulheres. A função destas era a gestão d a casa, fazer tecelagem e c uidar dos filhos. N o p e n s a m e n to d o s poetas, filósofos e m éd ic o s d a A n ti g ü id a d e h á u m d e n o m in a d o r c o m u m ao d escrev er-se a m u lh e r co m o u m ser p a ssiv o e inferior ao h o m e m e m to d o s os aspectos. Platão, e m República, concebeu u m a c id a d e o n d e as m u lh e re s d e v e ria m ser e d u c a d a s com o os h o m e n s , p o is p a ra ^ SISSA, Giulia. Filosofias de Gênero: Piatão, Aristóteles e a diferença dos sexos. In: DUBY, G eorges e PERROT, M ichelle, op. cit. p. 95. 82 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA 0 filósofo: "façam elas o q u e fizerem , e p o d e m te n ta r fazer tu d o , fa-lo-ão m en o s bem".® N e s s a l in h a d e ra c io c ín io , os m é d ic o s , s e g u i d o r e s d e H ip o c ra te s, reco n h eciam q u e to d o in d iv íd u o se x u a d o - seja ele m ac h o o u fêm ea - era p o rta d o r d e u m a s e m e n te id ên tica e a n d ró g in a . N o e n tan to , d e scaracterizav am q u a lq u e r isonom ia de g ê n e ro ao afirm a rem "q u e a p a rte fem inina d e s ta s u b s tâ n cia é, e m si, p o r u m a q u a lid a d e intrínseca, m e n o s forte q u e a p a rte m asculina".^ Reflexões co m o estas - c o m u n s e n tre os p e n s a d o r e s da A n tig ü id a d e - são c o n sid e rad a s o q u e d e m e lh o r se p r o d u z iu e se disse a resp eito d o g ên ero m u lh e r, n a tra d içã o ocidental. P itá g o ra s via n a m u lh e r u m ser v o lta d o ao m a l q u a n d o assim explicou a sua origem : "H á u m prin cíp io b o m q u e criou a o r d e m , a luz, o h o m e m ; e u m p rin cíp io m a u q u e c rio u o caos, as trevas, a m u lh er".'" A ssim , nesse sistem a dicotôm ico, a m u lh e r o c u p a v a o lu g a r d o n e g a tiv o , d o defeito, e q u e p recisava ser in te g ra d a à so c ie d a d e , o q u e q u e ria dizer, subm etê-la à o rd e m m asc u lin a estabelecida. Verifica-se, desse m o d o , q u e n a s n a rra tiv a s das lite ra tu ra s a n tig a s as m u lh e res e ra m a p re s e n ta d a s co m o um s u p le m e n to , u m a peça acrescida ao g r u p o social. Q u a n d o se tra ta v a d o s a b e r e d o p o d e r, as m u lh e re s n ã o e ra m n u n c a m en c io n a d as. O u n iv e rs o fam iliar n a A n tig ü id a d e ta m b é m e ra d u a l m ac h o s e fêm eas - e a solução p a ra os conflitos a p re se n ta v a se d a m e s m a form a d e fin id a p ela m edicina e pela filosofia, isto é, com a p re d o m in â n c ia d e u m sexo sobre o o u tro , com o ® Idem, ibidem , p. 85-86. ® Idem, ibidem , p. 86. BEAU V O IR , Sim one de, op. cit. p. 101. MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL era fo rte m e n te e x p re sso n a s leis d e M anu: " U m a m u lh e r, m e d ia n te u m c a sa m e n to legítim o, a d q u ire as m e s m a s q u a lid a des d e seu esposo, com o o rio q u e se p e r d e n o oceano, e é a d m itid a d e p o is d a m o rte n o m esm o p a ra ís o c e leste".’^ N essa linha, to d as as religiões e C ó d ig o s tra ta v a m a m u lh er com m u ita h o stilid a d e .’^ Em u m a época e m q u e o patria rc a d o e sta v a estabelecido, foram re d ig id o s C ó d ig o s que, n a tu ra lm e n te , ofereciam à m u lh e r u m a c o n d ição s u b o rd in a d a , p a s s iv a e in fe rio r ao h o m e m . A ssim , as in c a p a c id a d e s da m u lh e r ro m a n a e ra m a tra d u ç ã o institu cio n al d a situ a ç ão in ferior a q u e ela se e n c o n tra v a rele g a d a, e m u m a so c ie d a d e de d o m in â n c ia m asculina. E ntão vejam os: “A s leis de M anu definem-na como um ser servi! que convém manter escravizado. O heretício assimila-a aos animais de car ga cjue 0 patriarca possui. A s leis de Sólon não lhe conferem nenhum direito. O Código Romano coloca-a sob tutela e pro clama-lhe a ‘imbecilidade'. O direito canônico considera-na a 'porta do diabo'". D esse m o d o , as m u lh e re s d a A n tig ü id a d e e ra m excluídas d e u m m u n d o q u e as fazia e stra n h as, p o r ser ele to ta lm e n te d e c lin a d o n o m asculino. O p a p e l social d a m u lh e r se re strin gia ao seu co n fin a m e n to às esferas do m ésticas, e n q u a n to aos c id a d ã o s r o m a n o s cabia o m o n o p ó lio d a s relações p ú b lic a s e d a política. As m u lh e re s e ram , c o n se q ü e n te m e n te , excluídas ” Ibidem. Nesse sentido, ve r ENG ELS, op. cit. p, 15, que assevera “essa condição hum i lhante da mulher, tal qual com o aparece notadam ente, entre os gregos dos tem pos heróicos e m ais ainda dos tem pos clássicos, foi gradualm ente cam uflada e d iss i m ulada e tam bém , em certos lugares revestida de form as m ais am enas, mas não foi absolutam ente suprim ida” . BEAU V O IR , Sim one de. op. cit. p. 101. 84 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA d a cid a d a n ia. Podia-se co n sid e rar a c id a d e an tig a - ta n to a g reg a co m o a ro m a n a - com o c id a d e d e h o m en s. N e s s e contexto antitético a u n iã o conjugal re d u z ia -se à re n ú n c ia d a e sp o sa a tu d o o q u e d e pessoal lh e pertencia: a m i gos, d e u s e s , ocupações, bens, te n d o e m vista a a d a p ta ç ã o à v id a religiosa, social e econôm ica d o esposo. O c a sa m e n to a m á lg a m a q u e d e v ia u n ir o h o m e m e a m u lh e r - significava, então, o d e s a p a re c im e n to d a m u lh e r e m to d o s os a sp ecto s da v id a , e sp ec ia lm e n te o econôm ico, com o b e m foi d e fin id o p o r SISSA: "Isto surge particularmente esmagador no respeito aos bens, em cjue a avaliação quantitativa da ‘m istura’ se manifesta mais claramente. O pôr em comum os respectivos haveres deve, com efeito, ter a aparência de um patrimônio único e indiviso, mas pertencente ao marido, mesmo que a mulher tenha trazido parte maior que a deste... M ais precisamente: a in d iv is ã o é apenas o m eio de f a z e r desaparecer a especificidade e, neste caso, a real contribuição fem inina em benefício do marido, verdadeira parte do todo''.^^ O c a sa m e n to , n o D ireito R om ano, e s tru tu ra v a -s e sobre a n a tu re z a jurídica d o h o m e m ou " p ate rfa m ilia s" e sobre a d a m u lh e r, ''m ate rfa m ilia s" o u " m a tro n a " . D essa u n ião - h o m e m e m u lh e r - se p r o d u z ia e p ro lo n g a v a a d e sce n d ê n c ia p o r v á ri as gerações. N a posição d o s juristas d o Im p é rio R om ano, "o encontro dos sexos comandava todo o encadeamento insti tucional; nele, o direito civil reunia-se ao direito natural, dado que - assim como o declararam no século 111 O s I n s t i tu t a s de Ulpiano, retomado nos mesmos termos pelos I n s t i tu t a s SISSA, Giulia, op. cit. p, 119, MULHER; CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS OE PAPEL de Justiniano - da existência das espécies vivas deriva a união do macho e da fêmea a que nós, os juristas, chamamos de casa mento."^^ A sucessão d o s d e p e n d e n te s só existia e m R o m a p o r linha m ascu lin a, s e n d o as m ã e s p ro ib id a s desse direito. A Lei das X II Tábuas c onstitui-se n o alicerce d e to d o o sistem a d e suces sões se m testa m e n to o u "intestatas". A ssim , so m e n te os d e s c e n d e n te s p o r via m ascu lin a - filhas e filhos d o pai, n e ta s e n e to s n a scid o s d o filho d o pai... h e rd a v a m e m p rim e ira linha. E m s e g u n d a linha h e rd a v a m os colaterais d o la d o pa te rn o . A ssim sendo, o direito sucessório ro m a n o excluía todos os parentes d a linha m aterna: os filhos não sucediam à m ãe, n e m os sobrinhos aos irm ãos ou irm ãs d a mãe. Estas n ã o possuíam a "patriapotestas" e, portanto, não podiam escolher u m herdeiro p o r adoção, p o rq u e até m esm o os seus descendentes naturais essa exclusão atingia. Era o critério de prevalência d o gênero m asculino sobre o fem inino presente no Direito Rom ano. Com 0 a d v e n to d o C ristian ism o os p a d re s d a Igreja e ra m h o m e n s que, te n d o p re s ta d o v oto d e c a stid ad e , rejeitavam , e m s e u s serm ões, tu d o aquilo q u e se relacionasse com o co rp o e os desejos sexuais. A V irgem M aria to rnou-se o m o d e lo a p re g o a d o a to d a s as m u lh e re s q u e d e v e ria m , a seu exem plo, m a n ter-se castas. Esta m e s m a Igreja que, em se u s p rim ó rd io s , p r e g a v a a libertação d a s classes o p rim id a s - o n d e a m u lh e r esta va in clu íd a - era ag o ra a força m ais im p o rta n te e p ro fu n d a p a ra fortificar a s u a subm issão. A id eo lo g ia ’^ cristã exerceu a c e n tu a d a influência n o DireiT H O M A S , Yan. A Divisão do Sexo no Direito Rom ano. In: DUBY, G eorges e PERROT, M ichelle, op. cit. p. 130. Ver PO ULA NTZAS , Nicos. O Estado, 0 Poder e o Socialism o. 3. ed. RJ; Graal, 1985, p. 33: "A ideologia não consiste som ente ou sim plesm ente num sistem a de 85 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA to R o m an o , c o n trib u in d o , desse m o d o , p a ra q u e a u m e n ta s s e a o p re s s ã o d a m u lh e r. A ssim , a Igreja veio refo rçar o e ste reó tipo d a m u lh e r-e sp o sa-m ãe ; to ta lm e n te s u b o rd in a d a a o m a r i d o , o n d e São P a u lo - m a n te n d o a tra d içã o judaica anti-fem in ista - assim p re g a e m sua Epístola: " O h o m e m n ã o foi tira d o d a m u lh e r e sim a m u lh e r d o h o m e m , e o h o m e m n ã o foi cri a d o p a ra a m u lh e r e sim esta p a ra o h o m e m " . E nfim , fo ra m as in te rp re ta ç õ e s d o s filósofos g re g o s rea li z a d a s p e lo s clérigos - h o m e n s d e religião e d a Ig re ja ’®- q u e g o v e rn a v a m o escrito e tra n sm itia m o c o n h ecim en to , q u e p r o p o r c io n a ra m as b a s e s teóricas p a ra , n a I d a d e M é d ia , e a lé m d e s te s séculos, se a tr ib u ir à m u lh e r a h istó ric a s u b m is s ã o ao hom em . 1.2 - Na Idade Média A so c ie d a d e d a Id a d e M édia c o n tin u o u s e n d o a c e n tu a d a m e n te m a rc a d a pela h e g e m o n ia m ascu lin a, o n d e as m an ifes tações c u ltu rais p o s s u ía m o registro d a s lu ta s p e lo p o d e r e d o s p rec o n c e ito s m asculinos. A m u lh e r en co n trav a-se, a inda, e m a b so lu ta d e p e n d ê n c ia d o p a i e d o m a rid o , co m o b e m d e fi n e OPITZ; idéias ou de representações. Com preende tam bém um a série de práticas m ate ri ais extensivas aos hábitos, aos costum es, ao m odo de vida dos agentes, e assim se m olda c o m o cim ento no conjunto das práticas sociais, aí co m p re e nd id a s as práticas políticas e econôm icas". BEAUVO IR , Sim one de, op. cit. p. 118. '®Ver LEC LE R C Q , Paulette L H e rm ite • A Ordem Feudal. In\ DUBY, G eorges e PERROT, M ichelle. Histó ria das M ulheres: A Idade M édia, v. 2, p. 281, on d e foi dito q ue “Ter-se-á ve rifica d o que a igreja, q ue trabalha para a e te rn id a d e , está p a rticu la rm e n te ate nta ao tem po e, portanto, às m ulheres, q ue têm com e la um a relaçã o particular. E a n tes de m ais, pela su a p ro g ra m a çã o g e n é tic a (...) Elas estão na in te rs e cç ã o do te m p o cíclico - o relógio das regas, a co n c e p çã o - e do te m p o lin e a r” . MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL "O s seiis desejos e idéias só podem fre q ü e n tem e n te ser descortinados por trás do véu da tutela e da regulamentação imposta pelos seus pais, maridos e confessores, sendo os seus atos ainda limitados pelas normas da sociedade e pelo con trole social" N essa trajetória a fam ília, a Igreja e as n o r m a s jurídicas vi g i a v a m e e x a l t a v a m a v i r g i n d a d e d a m u l h e r , q u e e ra g u a rn e c id a pelo p a i e assim tra n sm itid a ao m arid o . A re p re s são, nesse sentido, era m u ito forte, tanto q u e a m u lta p a ra q u e m d eflo rasse u m a m u lh e r era o d o b ro d a m u lta a p lic a d a àquele q u e m a ta s se u m guerreiro. C o n fo rm e LECLERCQ: “as recompensas celestes são muito maiores para as virgens. E 0 Evangelho fornece às mulheres o arquétipo de Maria. Isto não é novo, mas nunca tanto nos séculos X I e X II a Igreja exaltou a excelência desse estado. Tudo levava a isso: o medo do fim dos tempos, a irradiação espiritual dos monges, a refor ma do clero e a promoção do culto mariano” A ssim , a v id a q u o tid ia n a das m u lh e re s se m o v im e n ta v a em u m e n q u a d ra m e n to jurídico q u e lhes era desfavorável, isto p o r q u e a d ico to m ia público e p riv a d o era m u ito a c e n tu a d a n e ssa fase e, ao g ê n e ro fem inino, era d e s tin a d o o e sp aço d o m éstico. D essa m a n e ira as m u lh e re s p e rm a n e c ia m fechadas n a s s u a s tra d icio n a is funções, s e rv in d o à e x p a n sã o d a espécie o u a Deus. P o r seu tu rn o , os h o m e n s p o s s u ía m o m u n d o p a ra d e s v e n d a r, to d a s as a v e n tu ra s a v iv er e to d a a experiência a a c u m u la r. S e g u n d o M URARO , "Em geral as mulheres fiavam, teciam, cuidavam dos animais 0 Q uotidiano da M ulher no Fina! da Idade Média. In: DUBY, G eorges e PERROT, Michelle, p. 354. A O rdem Feudal. In; DUBY, Georges e PERROT, Michelle. Idem, p. 284. CIDADANIA OA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA e das hortas, enquanto os homens faziam o trabalho mais pe sado e as guerras. A s senhoras da alta estirpe, contudo, na ausência dos maridos, eram obrigadas a gerir suas vastas pro priedades. Assim, 0 papel econômico das mulheres expandia- se ou se contraía com a presença ou ausência dos homens, e a ausência era mais comum". N e ssa concepção, com as restrições d e d ire ito à m u lh e r, p re v ista s n o s C ódigos, a c a p ac id a d e jurídica d a m e s m a era e x tre m a m e n te lim itad a, se n d o a m ais flagrante fixação d e sua in fe rio rid a d e a instituição d a tutela d o sexo m asc u lin o sobre o fem inino. C o n so a n te OPITZ: "Os direitos gentílicos excluíam a mulher livre de todos os acontecimentos públicos. Não podia aparecer em pessoa pe rante um tribunal tendo de se fazer substituir por um ho mem, o seu tutor (muntivalt). Entre as mulheres solteiras esta era por norma o pai, entre as casadas, o marido. Por morte destes, a tutela recaía no parente masculino mais próximo, pertencente à família do pai. Além do direito de representar o pupilo em tribunal, o tutor tinha o direito de dispor e de usu fru ir da fortuna desta, o direito de castigar - que em casos extremos podia incluir a morte - o direito de dar em casamen to como entendesse e mesmo o direito de vender". N esse p e río d o os discursos dirigidos às m u lh e re s e ra m p r o feridos pelos pais, clérigos, m estres... e o tem a era a castidade, a h u m ild a d e , o silêncio, o tra b a lh o etc. D u r a n te séculos as m u lh e re s o u v ira m a repetição d esses princípios, a c e n tu a n d o a s u a subm issão. E ram os h o m e n s q u e u s a v a m a p a la v ra pe2' Op. cit., p. 101. Q uotidiano da M ulher no Final da Idade Média. In; DUBY, G eorges e PERROT, M ichelle. História das M ulheres: A Idade Média, v. 2, p. 356. MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÕDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL Ias m u lh e re s , fortificando a ideologia d a Igreja, re in a n te na so c ie d a d e e q u e d e te rm in a v a as relações fam iliares. D e acor d o com OPITZ: "A doutrina do casamento por consenso defendida pela Igreja não podia opor-se às relações de poder vigentes na sociedade e no fim d o também não o queria: a relação entre marido e mulher não podia doravante ser de amizade e pressupor a igual dade de direitos: 'Sêde submissos uns aos outros no temor a Cristo, as mulheres aos homens como ao Senhor...’ (Efésios, 5:21)... Um bom casamento era a comunhão entre o homem e a mulher mas, segundo os ensinamentos morais da Igreja, ele só era realmente bom quando o homem 'governava' e a m u lher obedecia incondicionalmente".-^ N essa época a integração Igreja-Estado era m u ito a c e n tu a da, o q u e explica a criação d o s T rib u n ais O ficiais - instância judicial episcopal - q u e se o c u p a v a d e q u e stõ e s fam iliares. Esses trib u n a is c u id a v a m d o s casos d e litígios m ais fre q ü e n tes, o q u e c o rre sp o n d ia à violência c o m e tid a p e lo s m arid o s, p o s s u id o re s d e u m p o d e r ab so lu to d e castigo, a m p a r a d o no Direito, sobre a m ulher. N esses trib u n a is as m u lh e re s eram , m u ita s vezes, a d v e rtid a s sobre a obediência q u e d e v ia m aos se u s m arid o s. D esse m o d o a ideologia d e te rm in a v a lim ites re p re ssiv o s extrem os, o n d e se m o d e la v a o c o tid ia n o fem ini no, c o n so an te e n sin a OPITZ: "Os maridos constituíam a primeira instância de controle social das suas mulheres, e isso não era apenas determinado pelas disposições legais redigidas a partir do século XII; os decretos canônicos que converteu o marido em chefe de sua mídher reforçam também a responsabilidade e as possibilida23 Idem, ibidem , p. 366. 89 90 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA des de controle por parte do 'senhor e mestre'. Este monopólio de poder encontra a sua expressão mais nítida no direito que o marido tinha de castigar a mulher, que as autoridades locais e eclesiásticas fixavam, e no privilégio masculino de ser infiel sem conseqüências".^'* A ssim sendo, as n o rm a s p a ra a infidelidade conjugal eram aplicadas com m aio r rigor às m ulheres d o que aos hom ens. Elas p o d ia m ser p u n id a s até com a m orte, porém , e n q u a n to traídas, nos m esm o s tribunais, não p ossuíam m eio a lg u m d e agir con tra seu m arido. R ecorrendo o u tra vez a OPITZ, encontram os: um grande número de processos do tribunal episcopal de Paris diz respeito a casos de infidelidade conjugal, 6 foram sentenciados contra o homem e 13 contra a esposa infiel. Isto não demonstra necessariamente que as mulheres transgredis sem mais as leis conjugais do que os homens, mas parece reve lar que a norma de infidelidade conjugal se aplicava com mais rigor às mulheres do que aos homens, uma idéia que se tira também dos direitos consuetudinários e regionais”. N e sse contexto, d e safian d o os p a d rõ e s estabelecidos, s u r g iu n a França u m n o v o m o d e lo d e relação e n tre o h o m e m e a m u lh e r, o amor cortês que, se g u n d o DUBY^^, teria im p licad o Idem, ibidem, p. 368. 2®Idem, ibidem, p. 371. Ver a respeito, 0 Am or Cortês. In: DUBY, G eorges e PERROT, M ichelle. História das M ulheres: A Idade Média, p. 332, que sustenta “Com efeito, peça fundam ental com o o xadrez, a dam a, no entanto, por ser m ulher - eis onde pára o seu poder não poderia dispor livrem ente do seu corpo. Este pertencia ao seu pai, pertence agora ao marido. Contém , em depósito, a honra deste esposo, assim com o a de to dos os m achos adultos da casa. solidários. Este corpo é, portanto, atentam ente vigiado. Nas residências nobres (...) ela não pode escapar por m uito tem po dos que a espiam e conjecturam que esta m ulher é enganadora, fraca com o são todas as m ulheres. Surpreendem com sua conduta o m enor indício de afronta, e logo a dizem culpada. Ela é e ntão passível dos piores castigos, os quais am eaçam igual m ente o hom em que se crê seu cúmplice". MULHER CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL 9 1 u m a sensível m elh o ra n a condição d e v id a d a m u lh e r d a s clas ses sociais altas. O s e n tre te n im e n to s n o s castelos p e rm itia a elas c ria re m a o s e u re d o r as d esco n traçõ es d a poesia, d a s con versações, p a ra o n d e os p o e ta s e ra m a tra íd o s, g a ra n tin d o o p r ó p rio sustento. Assim, enquanto os costum es oficiais susten tavam a tirania d o esposo feudal, a m ulher tentava u m a com pensação m ediante atenções de am ante fora d o casamento. T inha-se assim , nessa form a d e re v e stim e n to d o a m o r, a p o s s ib ilid a d e d e p e rp e tu a ç ã o d o c a sa m e n to e n q u a n to insti tuição, n o s p o ssib ilitan d o afirm ar que, mutatis mutandis, esse m o d e lo d e relação p ro p a g o u -s e até os d ia s atuais. A esse res peito DUBY discorreu: "Assim , as relações entre o masculino e o fe m in in o toma vam, na sociedade Ocidental, um rumo singular. Ainda hoje, apesar da revolução das relações entre os sexos, os traços que derivam das práticas do amor cortês, são aque las pelas quais a nossa civilização se distingue mais abrup tamente das outras".-^ A fase d o a m o r cortês, q u e s u a v iz o u u m p o u c o a so rte d as m u lh e re s , n ã o a m o d ific o u n a sua essência, isso p o r q u e n ã o é o tipo d a relação em si o u o e n c a n ta m e n to q u e p o ssa envolvêla q u e d e te r m in a m a em a n c ip aç ã o d a m u lh e r. A sua v e r d a d e ira lib e rta ç ã o d a s a m a rra s c ria d a s p e la s o c ie d a d e e ratificadas p e lo D ireito, em u m a o rd e m estabelecida, só o cor rerá e fe tiv a m e n te q u a n d o ela p a rtic ip a r in d is c rim in a d a m e n te d a s decisões políticas, exercendo a cid a d a n ia. N e s s e sentido, já n o século XX, L EN IN ensinou: "Enquanto as mulheres não forem chamadas a participar li- Idem, ibidem , p. 350. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA vremente da vida pública em geral, cumprindo também as obrigações de um serviço cívico permanente e universal, não pode haver socialismo, nem sequer democracia integral e du rável. A s funções de polícia como as de assistência a doentes e crianças abandonadas, o controle da alimentação etc., não po dem em geral, ter uma execução satisfatória enquanto as m u lheres não hajam obtido a igualdade perante os homens, não só nominal, mas efetiva".-^ P o r o u tro lado, u m a o u tra form a d e e m a n c ip a ç ã o d a m u lher é p o r interm édio do conhecim ento. E ntretanto, foi som ente n o final d a Id a d e M édia q u e as m u lh e re s tiv e ra m acesso aos p e rg a m in h o s , às U n iv e rsid a d es, p a rtic ip a n d o d o u n iv e rs o d o e stu d o . Isso re p re s e n to u u m a g ra n d e co n q u ista d o g ê n e ro fe m in in o , a p e sa r d e frágil e vu ln eráv el, pois os e s tu d o s d e c u n h o oficial c o n tin u a v a m a ser m o n o p ó lio m asc u lin o . A ssim , c irc u n d a d a d e d ific u ld a d e s destacou-se, nessa fase, n o c a m p o d a s letras, a escritora franco-italiana C ristina d e Pisano. É in d isp e n sáv e l ressaltar que, nesse p e río d o , teve início u m d o s m aio res genocídios d a h istória d a h u m a n id a d e - o a p o g e u d a d iscrim in ação d a m u lh e r - o u seja, o p e río d o d e caça às b ru x as. O c o rre u aí o co m p u lsó rio a fa stam e n to d a s m u lh e res d a s U n iv e rs id a d e s e a proibição d a s m e s m a s d e exerce rem q u a lq u e r p rática atin en te à m edicina - co m o a realização " 0 êxito de um revolução depende do grau de participação das m ulheres. In: MARX, KarI e t alii, op. cit. p. 101. propósito, ve r BO HLER, Régnier Danielle. Vozes Literárias, Vozes Místicas. In: DUBY, G e o rg e s e PERRO T, M iclie lle . H is tó ria d as M ulh eres: A Id a d e M é dia, p. 529, q ue diz "Na história da literatura francesa, entre 1395 a 1405, C ristina de P isa n o im p õe -se c o m o um a fig u ra im p re ssio n a nte ... M as a su a id e n tida d e de m u lh e r d e via in fa live lm e n te c ria r p ro b le m a s qu a nd o , o fic ia lm e n te , e em seu p ró p rio nom e, ela fa la no q u a dro de um co n te x to s o c ia l e cu ltu ra l. E la foi a p rim e ira a a firm a r a identidade de autora, a marcar solenem ente a sua e ntrada no cam po das letras". MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DÓS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL d e p a rto s, ab o rto s e cu ra s em geral - m e d ia n te d o m ín io d a m ile n ar quím ica n a utilização d a s plantas. N ã o é d e m a is frisar q u e o p o d e r d a época e ra c e n tra liz ad o r e os P a p a s p o s s u ía m u m a força ab so lu ta p a ra criar e d e s tro n a r im p e rad o re s. A ssim , os e lem en to s q u e n ã o e stiv essem sob o controle d a Igreja sofreriam exterm ínio. E isso foi o q u e ocor re u às m u lh e re s - c o n sid e rad a s s u b v e rsiv as - q u e d e safiara m a c o rp o ra ç ão m asculina, isto é, o p o d e r d o s m éd ic o s e, p o r extensão, d e to d o s os hom ens, D esse m o d o , m ilh a re s d e m u lheres m o rre ra m em q u a tro séculos d e perseguição.^' N esse d ia p a s ã o destaca-se Joana D 'A rc, a m a is fam osa fei ticeira, e x e cu ta d a p o r lu ta r em favor d e u m ideal d e justiça, c o m p e tin d o e n tre os h o m e n s e, assim , d e s e s ta b iliz a n d o as re gras d e c o n d u ta p o r estes estatuídas. A final, o h o m e m , se n d o c o n s id e ra d o o s e n h o r d e to d as as iniciativas e d e to d a a cria ção, im p u n h a às m u lh e re s - v alen d o -se d o ex te rm ín io - o silêncio, a im o b ilid a d e e a subm issão. ^ Nesse sentido, FRUG O NI, Ctiíara. A M ulher nas Im agens, A M ulh er Im agina da. In: DUBY. G eorges e PERROT, Michelle, idem, p. 488, “a acusação de fabrica rem ung üe n to s m ágicos e m alefícios rem ete para o co n h ecim ento, transm itido zelosam ente de mãe para filha, das ervas e das propriedades, precisam ente por que as m ulheres, fechadas em casa e destinadas a criar os filhos e a cuidar da família, estavam ‘fu ncionalm ente’ obrigadas a co nhecer rem édios e poções. Na perseguição das bruxas conflui tam bém o ressentim ento da m edicina douta e m as culina contra um a m edicina popular, feminina e rival". A respeito, ver FRENCH, Marily, a p u d M URARO , Rose Marie, op. cit., p, 111. "Esses dados nos fornecem um idéia da dim ensão desse holocausto: “O epicentro das execuções das bruxas foi o Santo Império (...) 0 S udeste da Alem anha e a Baviera foram responsáveis por m ais de 3.500 execuções cada, Na Polônia, a segunda área m ais afligida por esse flagelo, grande número de ‘fe itice ira s’ foi q u e i mado entre 1675 e 1720, m esm o depois que a caça às bruxas havia term inado no resto da Europa, Em algum as cidades alem ãs, 600 bruxas eram executadas em apenas um ano; na Itália 1000; em Toulouse (França), 4 00 foram queim adas em um único dia. Na diocese de Trier, 1585, duas aldeias foram deixadas apenas com uma m oradora m ulher cada uma. M esm o crianças eram acusadas e queim adas na fogueira. Em Londres, um escocês confessa que ele sozinho havia sido responsá vel pela m orte de 229 m ulheres (...) Estimativa do núm ero de pessoas m ortas na fogueira vai de pouco m ais de cem mil a nove milhões", CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA A ssim se n d o , estas foram as bases q u e su ste n ta ra m os a c o n tecim entos d o s p e río d o s históricos seguintes. 1.3 - No Renascimento e Idade Moderna O R enascim ento tro u x e consigo n o v a s re g ra s d e c o n d u ta p a ra as m u lh e res: o culto à d o m estic id a d e, a criação d o a m o r m a te rn o e d o a m o r rom ântico. E ntretanto, o m o v im e n to de caça às b ru x as, iniciado na Id ad e M édia, teve c o n tin u id a d e n o R enascim ento. A rep re ssã o às feiticeiras a u m e n to u consi d e ra v e lm e n te e as m u lh e res foram re sp o n sa b iliza d a s p o r tu d o o q u e d e ru im acontecesse: m á colheita, e p id e m ia s, m o rte s inexplicáveis. A caça às b ru x a s p reju d ic o u se ria m e n te as m u lh e re s em su a im a g e m social. E, m esm o a p ó s o térm in o d e sse revoltante m o v im e n to d e p erseguição, o esta tu to social d a s m e s m a s não é revalorizado. D aí p o d e -se a d u z ir q u e o crim e d e feitiçaria foi d e sq u alific ad o d e direito m as n ã o d e fato. N e sse sentido, SA L L M A N N diz: " Q u a n d o era feiticeira a forca o u a fogueira m an ifesta v am , n a sua c ru e ld a d e, a sua re s p o n s a b ilid a d e p e nal. V ítim a d a sua im aginação ou to m a d a d e loucura, ela tra n s form a-se n u m ser ju rid ic a m en te d im in u íd o , com r e s p o n s a b i lid a d e p esso al lim itada". P a rale la m e n te à caça às b ru x as, q u e a tin g iu as m u lh e re s d a s classes baixas, s u rg iu , nessa fase, u m m o v im e n to d irig id o ao a m o r p latô n ico , q u e exaltava as m u lh e re s - a lc a n ç a n d o a q u e la s d a s classes m ais e lev ad as - p r e p a r a n d o -a s p a ra a era in d u stria l. D esse m o d o , as p rim e ira s se ria m as o p e rá ria s d ó ceis d o século e m q u e stã o e as s e g u n d a s , c u ltiv a n d o extrem a fem in ilid a d e , se ria m as con su m id o ras. Feiticeira. In: DUBY, G eorges e PERROT, Michelle. História d as M ulheres: Do R enascim en to à Idade M oderna, v. 3, p. 533. MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL Para a c o n stru ç ão dessa fem inilidade ideal n o v a m e n te os filósofos, sociólogos e m éd ico s e n tra m e m cena, e la b o ra n d o u m m o ld e, à m a rg e m d o qual elas se ria m infelizes. E n tre ta n to, nele e n q u a d ra d a s , seriam b e m su c e d id a s e m ere c ed o ra s d e lo u v o re s co m o m ãe d e fam ília e g u a rd iã d a s v irtu d e s e v a lores eternos. A ssim , a m u lh e r v irtu o sa é a " ra in h a d o lar", frágil e d e s p re p a ra d a p a ra a vida pública, co m o asse v e ro u ROUSSEAU. "A mulher m a n té m se perpetuamente na infância; ela é in capaz de ver tudo o que é exterior ao mundo fechado da do mesticidade, que a natureza lhe legou, e daí resulta que ela não pode praticar 'ciências exatas'. A única ciência, para além da dos seus deveres (os quais ela conhece, aliás, intuitiva mente), que ela deve conhecer é a dos homens que a rodeiam e, essencialmente, a do seu marido, e que é baseado no senti mento".^^ N o Século d a s Luzes, p o rta n to , o d isc u rso d o m in a n te , q u e d isse rta v a sobre a n a tu re z a d o h o m em , p ro v in h a d e reflexões m asc u lin a s q u e estabeleciam estreita relação d e s ta com a n a tu re z a e m geral. Foi nessa linha d e p e n s a m e n to d e n o m in a d a "se lv a g e m " p o r STRAUSS,^^ q u e a m aio r p a rte d o s filósofos assenta seus raciocínios: a m u lh e r p e rte n c e à n a tu r e z a e o h o m e m à cultura. Por o u tro lado, o e s ta tu to d o s esposos a p re se n ta v a -se d ife rente d o d a m u lh e r. O m a rid o era o chefe d a fam ília, se n h o r d a s u a m u lh e r, d o s seus filhos e m e s m o d e se u s c riados se os tivesse. A p ro p ó sito , em Émile d e R ousseau, Sophie, a esposa A p u d CASNABET, Michèlle Crampe, A m ulher no P en sam ento Filosófico do Século XVIII. In: DUBY, G eorges e PERROT, M ichelle. Idem, p. 386. CASNABET, M ichèle Cram pe, op. cit. p, 381. 95 96 CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA perfeita, p r e p a r a d a d e sd e a infância p a ra aquele, o u v ia os con selhos d e seu preceptor: "A o tornar-se v o sso esposo, Emile to rn o u -se vo sso chefe, a v ó s p erten ce o b ed ecer-lh e, assim o q u is a n a tu re z a " . N esse contexto o casam en to n ã o era co m p atív el com a idéia d e de m o c ra cia ratificada p e la R evolução Francesa. Este era u m c o n tra to q u e su b m e tia a m u lh e r ao s e u sen h o r, co n fo rm e p o d e ser c o n sta ta d o e m K A N T n a "A n tro p o lo g ia": "No progresso da civilização, a superioridade de um elemento deve estabelecer-se de forma homogênea: o homem deve ser superior à mulher pela força física e pela coragem, a mulher pela faculdade natural de se submeter à inclinação que o ho mem tem por ela: pelo contrário, num estado que não é ainda 0 de civilização, a superioridade encontra-se apenas do lado do homem" D estarte, a d m itir a ig u a ld a d e en tre os sexos e a n ec essid a d e d e u m a e d u c a ç ã o c o m u m im plicaria q u e fosse reconheci d o às m u lh e re s o direito igualitário d e p a rticip a ç ão n a vida política, seria reconhecer o seu direito à c id ad an ia. N e sse s e n tid o , BO DIN, refletindo sobre os g ra u s d e c id a d ã o s d e u m a república, assim p osicionou as m ulheres: "Quanto à ordem e o grau das mulheres, não quero introme ter-me nisso. Penso simplesmente que devem ser mantidas longe de todas as magistraturas, posições de comando, tribu nais, assembléias públicas e conselhos, deforma a que possam dedicar toda a sua atenção às tarefas femininas e domésticas" R O USSEAU, Jean-Jacques ap u d CASNABET, M ichèle Cram pe, op. cit. p. 389. “ /Ip u d CASNABET, M ichèle Cram pe. op. cit. p. 390. ^ M p u d D A V IS , Natalie Zem on. A m ulher na "política" In: DÜBY, G eorges e PERROT, M ichelle. História das Mulheres: Do Renascim ento à Idade M oderna, p. 229. MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL 9 7 A p e sa r d e to d o esse contexto desfav o ráv el, h o u v e m u lh e res q u e se d e sta c a ra m , p o r força de n a scim en to o u exercendo d e te rm in a d a força política, p o d e n d o registrar-se, en tre outras, M aria T u d o r, M aria Stuart e C atarin a d e Médicis.^® A R evolução Francesa, q u e p o d e ria ter tra n s fo rm a d o o d e s tino d a s m u lh e res, n ã o o fez, m u ito ao contrário, ela m o stro u se respeitosa às instituições e aos valores b u rg u e se s. A ssim , as m u lh e re s q u e lu ta ra m ao la d o d o s h o m e n s , n a to m a d a da Bastilha, re iv in d ic a ra m os se u s d ireito s d e v e n c e d o ra s q u e ta m b é m o foram , m a s tiveram os m esm o s n e g a d o s com a res posta: " A R evolução Francesa é u m a rev o lu ç ã o d e hom ens. N ã o p o d e m o s c o n ced er o D ireito d a M u lh e r p o r q u e hoje foi o dia em q u e n a sce ra m os d ireitos d o h o m e m " . O l y m p e de Gouges,'*® a u to ra d e Declaração dos Direitos da Mulher - p o r suas idéias d e ig u a ld a d e e n tre os gêneros - foi decapitada.^' A s m u lh e re s tiv e ram participação decisiva em to d a s as fa ses d e g ra n d e s m u d a n ç a s reg istra d a s p e la história. E n tre ta n to, à m e d id a q u e os n o v o s sistem as e ra m im p la n ta d o s , elas e ra m d e v o lv id a s ã condição m arginal. Isso foi o q u e ocorreu a p ó s a R e v o lu ç ã o F ran cesa, com os efe ito s d o C ó d ig o d e N a p o le ã o , q u e fixou p o r séculos o d estin o d a s m u lh e re s , a tra s a n d o a in d a m ais a s u a e m ancipação, ao assim d isp o r: N esse sentido DAVIS, Natalie Zam on, idem, p. 230. " C onform e M URARO , Rose Marie, op. c/f, p. 128. Em. BEAUVO IR , op. cit. p. 142 encontram os: "O lympe de G ouges propôs em 1789 um a 'D eclaração de Direitos da M ulher’, sim étrica a dos Direitos do Homem, na qual pedia que todos os privilégios masculinos fossem abolidos. Em 1790, en contram -se as m esm as idéias em 'Motion de Ia pauvre Ja cotte’ e outros libelos análogos". S L E D Z IE W S K I, E lis a b e lh G. R e v o lu ç ã o F ra n c e s a , A V ira g e m , /n: DUBY. G eorges e PERROT, Michelle. História das Mulheres: O S éculo XIX, v. 4, p. 54. A ssevera O lym pe de G ouges no ari. 10 da D eclaração que “A m ulher tem direito de subir ao cadafalso; deve igualm ente ter o direito de subir à tribu n a ” . 98 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA "A mulher deve obediência a seu marido; ele pode fazer que seja condenada à reclusão em caso de adultério e conseguir o divórcio contra ela; se mata a culpada em flagrante, é des culpável aos olhos da lei; ao passo que o marido só é sujeito a uma multa se trouxer uma concubina ao domicílio conjugal e é, neste caso somente, que a mulher pode obter o divórcio contra ele".^^ 1 .4 - No século XIX O século XIX iniciou sob os reflexos d a R evolução F rance sa q u e , com o dito, n ã o possibilitou às m u lh e re s o reconheci m e n to d e seus d ireitos com o cidadãs, pelo contrário, os ali cerces d a s bastilhas p e rm a n e c e ra m ind estru tív eis, m a n te n d o o p rin c íp io d e h e g e m o n ia m asculina. E ntretanto, esse século é m a rc a d o pelo n a scim en to d o fem inism o q u e d e te rm in a im p o rta n te s m u d a n ç a s e stru tu ra is, e m q u e as p e rsp e c tiv a s de v id a d a s m u lh e re s se altera. N e sse p e río d o o d iscurso d o s filósofos, psicólogos, soció logos e o u tro s p e n s a d o re s é v o lta d o p a ra as e te rn a s questões relativ as à p a rtilh a en tre n a tu re z a e civilização, p ú b lic o e p r i v a d o , c o rp o e espírito, já ev id e n c iad o s n o s séculos anteriores. D essa form a, H E C EL d isp e n s o u sua a te n ç ã o à dico to m ia p ú b lic o /p r iv a d o , re la c io n a n d o o p rim e iro com o trabalho, à ciência e o E stado, e o s e g u n d o - o n d e s itu o u a m u lh e r - vinculou-o à fam ília, à form ação d e valores m orais, assim s e n tenciand o; “A mulher pode ser uma filha, esposa, mãe e irmã; só esta última relação com o homem é portadora de uma relação de BEAUVOIR, op. at. p. 143. MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÕDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL 9 9 igualdade. Na partilha entre a família e a cidade, só o homem árcida entre as duas. Ele pode assim dissociar em si mesmo a universalidade de sua cidadania da singularidade de seu dese jo, e beneficiar-se, desse modo, da realização das duas; aí se encontra uma liberdade, um reconhecimento em si mesmo a que a mulher não tem acesso".*^ N e ssa linha d e in fe rio rid a d e d e tra ta m e n to d is p e n s a d o à m u lh e r, DARWIN^*^ disse q u e a seleção n a tu ra l, q u e a c o m p a n h a a seleção sexual, privilegiou o h o m e m , to rn a n d o -o s u p e rio r à m u lh e r. Frisou ele q u e a d e s ig u a ld a d e n ã o p o d e rá ser re v e r tid a com o d e s e n v o lv im e n to d a h u m a n i d a d e . D ia n te dessa sentença, a m u lh e r teria s e m p re u m a tra s o e m relação a o h o m e m , p e rp e tu a n d o -s e a d e sig u a ld ad e . N a s e g u n d a m e ta d e d o século XIX, N IETZSCH E e FREUD'*^ c e n tra liz ara m su a s discussões n a q u e stã o d a d iferença entre os sexos. O p rim e iro tra ta d o s asp ecto s inteligência e beleza, estab elecen d o a í p a râ m e tro s p a ra d istin g u ir h o m e m e m ulher. O p e n s a m e n to d e F reud, p o r sua vez, teve g r a n d e r e p e rc u s são, e m b a s a n d o teorias c o m p o rta m e n ta is às m u lh e re s n o s é culo XX, com o v e re m o s adiante. N e s s e contexto, o d ire ito -re g u la d o r d o c onvívio social n ã o p o d e ria ficar im u n e às influências d o s p e n s a d o re s d a época. A ssim , teo rica m e n te ele estava a s se n ta d o n o livre-arbítrio d o in d iv íd u o m as, n a p rática, foi o a u to rita ris m o q u e m a rc o u a legislação. E xem plificando: o p rin cíp io d a a u to n o m ia d a v o n tad e tra n sm itia a idéia d e a d e sã o d a m u lh e r ao seu e s ta tu to /4puc/FRAISSE, G eneviére. Da Destinação do Destino. História Füosófica da Diferença entre os Sexos. In: DUBY, G eorges e PERROT, M ichelle. História das M ulheres: O S éculo XIX, p. 63. A p u d FRAISSE, Genevieve, Idem, p. 88. 4 p u d F RAISSE, G enevieve. Idem, p. 88-90. 100 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA que, n o e n tan to , a tra tav a com o u m ser re la tiv a m e n te capaz. N e sse e sta tu to a m u lh e r existia a p e n a s com o filha, e sp o sa e m ãe, e n q u a n to o h o m e m era o ún ico sujeito d e direitos. D esse m o d o os juristas d o século XIX leg itim a ra m a d e s i g u a ld a d e d e tra ta m e n to com relação ao sexo fem inino. N o c a m p o d o D ireito Penal, até 1870, na Inglaterra, o m a r id o era o resp o n sáv el pelos delitos d a m ulher, o n d e MICHELET^^ afir m o u q u e a m u lh e r, p o r ser d e m a s ia d a m e n te frágil, d ev eria ser c o n s id e ra d a p e n a lm e n te irresponsável. A ssim , o p o d e r d o m a rid o era justificado p e lo estereótipo d e in fe rio rid a d e d a mulher^®. N a prática, a s u p e rio rid a d e a tri b u íd a ao h o m e m tinha co m o objetivo g a ra n tir-lh e a a d m in is tração d a so c ie d a d e conjugal, d irig in d o a e sp o sa e os filhos. Isso ratificava a já c o n sa g ra d a distribuição d o p a p e l d o s g ê n e ros nessa e s tr u tu r a d e sociedade d o tip o patriarcal. P o r seu tu rn o , o C ó d ig o Civil Francês, n o art. 213, p rev ia q u e "o m a r id o d e v e proteção à sua m u lh e r, a m u lh e r d e v e obediên cia ao seu marido".'*^ Esse dispositivo legal investia o h o m e m n o p o d e r d e vigiar o c o m p o rta m e n to d a m u lh e r, em n o m e d o exercício d o d e v e r d e proteção, q u e o D ireito lh e c o n feria. N e sse sen tid o , D U C expressou: " O m a g is tra d o d o m és- p ro p ó s ito , DUC, N icole A rn a u d. As C o n tra d iç õ e s d o D ire ito . In: DUBY, G e o rg e s e PERRO T, M ichefle, H is tó ria d as M ulh eres; O S é cu lo XIX, p. 117. “ ... S ão m á xim a s rom a n a s revisad a s pe lo s ju rista s do sé cu lo X V III e m áxim a s c o s tu m e ira s de in s p ira çã o g e rm â n ica que pre p a ram a d e p e n d ê n c ia da m u lh e r e su a in ca p a c id a d e ". A p u d DUC, Nicole Arnaud. Idem, p. 112. ^8 N esse sentido, M ARX, Karl. A decom posição da fam ília burguesa. In: MARX, KarI e t alli, op. d l p. 44. “A hum ilhação do sexo é um traço essencial e caracterís tico ta m bém da civilização e da barbárie, com a diferença que o vício é praticado na barbárie sem requintes, ao passo que é elevado pela civilização a um grau de existê n cia co m plexa, equívoca, inconveniente e hipócrita... N inguém h u m ilha o hom em pelo crim e de tratar a m ulher com o escrava". Ver DUC, Nicole Arnaud, op. cit. p. 118. MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL tico - d e v e p o d e r - com m o d eração , aliar a força à a u to rid a d e p a ra se fazer respeitar. E n ã o se p o d e m c o n d e n a r s e m p re os a to s d e correção o u d e v iv ac id a d e m arital... A a u to r id a d e que a n a tu re z a e a lei co n ced eu ao m a rid o te m p o r fim d irig ir a m u lh e r n o seu com portam ento".^^ O C ó d ig o Penai francês era ta m b é m b a s ta n te rigoroso p ara com as m u lh e res, p resc rev e n d o , no art. 337, p e n a d e 3 m eses a 2 an o s d e prisão, se m ad m itir a te n u a n te s, p a ra o adultério. Esse delito, c o n sid e ra d o ultrajante à lei, à m o ra l p ú b lica e à religião, a ssu m ia o u tra conotação q u a n d o p ra tic a d o p o r u m h o m e m , pois a p e n a , a q u e este estava sujeito, e ra u m a m u lta d e 100 a 2.000 francos, conform e o q u e p re v ia o art. 339 d o m e s m o C ó d ig o citado p o r DUC.^^ A essas d e s ig u a ld a d e s jurídicas acrescenta-se o u tra a in d a m ais gritante, f u n d a d a n o art. 324 d o C ó d ig o e m p a u ta . Esse d is p o s itiv o legal co n sid e ra d e s c u lp á v e l o a ssa ssin a to , pelo m arid o , d a esp o sa o u seu cúm plice, s u rp re e n d id o s e m flagran te n o dom icílio conjugal. O país d o s D ireitos H u m a n o s m a n teve até 1975, e m seus Códigos, essas c ontradições, conform e e n sin a DUC.^^ O D ireito ta m b é m foi co n trad itó rio n a In g la terra o n d e , até 1870, os m a rid o s g o z a v am d e plena im punidade,^^ o q u e a g ra v a v a a im p o tê n cia d a m u lh e r casada. A ssim , eles p o d ia m in terc e p ta r c o rre sp o n d ên c ia pessoal d a e sp o sa o u p ro ib ir a e n trega pelos correios - tal ato lhes conferia o g ra u d e a stu to s p o d e n d o utilizá-la p a ra p e d id o d e div ó rcio . E n tre ta n to , às m u lh e re s n ã o era p e rm itid o o uso d o m e s m o direito. ^ Ibidem. Op. cit. p. 122. Ibidem. ^^DUC, Nicole Arnaud, op. cit. p. 119. 101 102 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA O s m a rid o s p o ssu ía m , ainda, p o d e re s q u e a lei lh es confe ria, p a ra o b rig a r as m u lh e res a residir n o dom icílio p o r eles escolhido. Ao m a r id o era facultado o u so d a força p a ra co a gir a e sp o sa q u e se afastasse, a reto rn ar ao dom icílio conjugal, c o n fo rm e leciona DUC: "Numerosos julgamentos ordenam que ela seja reconduzida m a n u m ilitari, acompanhada por um oficial de diligências, que pode recorrer à força armada, a fim de não tornar depen dente dos caprichos e mesmo do crime da esposa, um novo gênero de separação de pessoas, subversivo dos direitos gerais do corpo social".^"* A d e m a is, e m o u tro s países e u ro p e u s e m e s m o am e ric a n o s a m u lh e r s e m p re e stav a em condição su b a lte rn a a o h o m e m n a sociedade e, p o r ação reflexa, nas legislações. A in d a n a Fran ça, a té 1965, a m u lh e r p recisav a d e p e rm iss ã o e x p re ssa d o m a r id o p a ra exercer u m a profissão. N ã o p o s s u in d o essa a u to rização, a e sp o sa n ã o p o d ia inscrever-se em u n iv e rs id a d e s , a b rir c o n ta b a n c á ria , re q u e r e r p a s s a p o r te e h a b ilita ç ã o d e m o to rista e n tre o u tro s atos civis. Essa d e p e n d ê n c ia d a m u lh e r to r n o u - s e e x tr e m a m e n te in c o e re n te n o a s p e c to legal, q u a n d o p re v ia ser in d isp e n sáv e l a p e rm issã o d o m a r id o caso ela p re te n d e s s e a n u la r o casamento.^^ Esses p receitos jurídicos, c a rre g ad o s d e antíteses, são in co m p a tív e is com u m a época n a qual a m u lh e r p a rtic ip a v a em p o sto s m e n o s q ualificados d e to d o s os setores d e p ro d u ç ã o . O D ireito, d e sse m o d o , v e m ratificar o estereótipo, c o n sa g ra d o p e lo im a g in ário social, d a m u lh e r c o m p le m e n to d o h o m e m . Op. cit. p. 120. M ARIAS, Javier. Abstrações sem significado: M ulher com o G ênero A b so lu to carece de realidade. Folha de São Paulo, 04.02.96, fis. 5-9. MULHER; CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SÓCIAlS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL u m a p ê n d ic e q u e d e v e ser m a n tid o excluído d o setor público. Em n o m e d e u m a necessária especificidade d e p a p é is sociais d o h o m e m e d a m u lh e r criou-se u m a d e s ig u a ld a d e jurídica, q u e b e m m o stra a inclinação d o Direito a p ro te g e r o seu cria dor. N ã o p o r acaso escreveu BARRE: " tu d o o q u e os h o m e n s escre v e ra m sobre as m u lh e re s d e v e ser su sp eito , p o is eles são, a u m te m p o , juiz e p a rte". Ao final d o século XIX v a m o s e n c o n tra r L E N IN d e n u n c ia n d o as contradições d o Direito com este e nsinam ento: " N ã o p o d e h av er, n ã o há, n e m h a v e rá I g u a l d a d e ' entre o p rim id o s e op resso res, e x p lo ra d o s e e x p lo ra d o re s. N ã o p o d e h av er, n ã o há, n e m h a v e rá 'lib e rd a d e ' v e rd a d e ira , e n q u a n to a m u lh e r n ã o for lib e rta d a d o s privilégios q u e a lei sanciona em fav o r d o hom em .. 1.5 - No século XX e XXI A h istó ria d a s m u lh e re s s e m p re foi d ita d a p e lo s h o m en s, co m o já foi citado, pois estes têm a seu favor a força física, o p restíg io m o ra l e o controle econôm ico. Se as m u lh e re s co n se g u ira m a lg u m espaço foi p o rq u e os h o m e n s e s ta v a m d is p o s tos a fazer-lhes essa concessão. S e g u n d o BEAUVOIR: "A mulher sempre foi, senão a escrava do homem, ao menos a sna vassala; os dois sexos nunca partilham o mundo em condições; e ainda hoje, embora sun condição esteja evoluin do, a mulher arca com um pesado 'handicap'. Em quase ne nhum país 0 seu estatuto legal é idêntico ao do homem e, m uitas vezes, este último a prejudica consideravelmente. M esmo quando os direitos lhes são abstratamente reconheBEAUVO IR , Sim one, op. cit. p. 16. 0 p od er soviético e a situação da mulher. In: MARX, KarI e ta lii. op. cit. p. 120, 104 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA cidos, iim longo hábito impede que encontrem nos costumes sua expressão concreta". A classe d e m u lh e res tra b a lh a d o ra s era a q u e g o z a v a de certa a u to n o m ia econôm ica m as, em c o n tra p a rtid a , carregava o fard o d a discrim inação n o trabalho. E ntretanto, n a s classes d o m in a n te s elas eram , e a in d a o são, parasitas, sujeitando-se às leis m asculinas, p a ra n ã o p e rd e r posição, riq u e z a o u poder. N e sse sistem a engenhoso, a v id a das m u lh e re s s e m p re foi co n tro lad a. A s alavan cas d e c o m a n d o d o m u n d o n u n c a esti v e ra m n a s m ã o s d a s m ulheres: n ã o lh es p e rm itira m p a rtici p a r n a s á reas técnicas e econôm icas, n e m c o n stru ir E stados o u d e sco b rir m u n d o s . A p ropósito, BEAUVOIR disse: " O êxi to d e a lg u m a s p riv ile g ia d as n ã o c o m p e n sa m , n e m d e s c u lp a m o re b a ix a m e n to sistem ático coletivo; e o fato d e serem esses êxitos ra ro s e lim itados, p ro v a p rec isam e n te q u e as circ u n s tâncias lh es são desfavoráveis".^'^ A m u lh e r profissional q u e tra b a lh a fora d e casa carrega o ô n u s d a d u p la jo rn a d a d e trabalho. C onciliar a a tu a ç ã o n o es paço público, com a vida familiar: c u id a d o d o s filhos e d a casa, n ã o lh e sobra m o m e n to a lg u m d e lazer, c o n sa g ra n d o -se o cír culo vicioso, conform e b e m a d v e rte STUDART: " A d o m in a ção p r o d u z d e b ilid a d e m ental e a d e b ilid ad e m en ta l facilita a dominação."^^ N e ssa m esm a linha, L EN IN ensina: "Fazer a mulher participar do trabalho produtivo social li bertando-a do jugo bruto e humilhante, eterno e exclusivo, da cozinha e do quarto dos filhos, eis a tarefa principal. Esta Op.Cit. p. 21. cit. p. 171. " STUDART, Heloneida. Mulher, objeto de cama e mesa. 4. ed. RJ: Vozes, 1974, p. 20. MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÕDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E 0 8 DIREITOS DE PAPEL luta será longa. E exige uma trnnsformação radical da técni ca social e dos costumes".^'' N ã o é d e m a is frisar q u e foi F re u d q u e m e m b a s o u as teori as científicas p a ra que, n este século, fosse a s se g u ra d a a d o m estic id a d e d a m u lh e r. S e g u n d o M U R A R O /^ esse psic a n a lista estabeleceu c o m p o rta m e n to s sexuais e m o s tro u às m u lheres q u e 0 seu espaço d e d o m ín io a in d a era o p riv a d o . D es se m o d o , elas n ã o p o d ia m co m p e tir com o h o m e m n o m erc a d o d e trabalho, p o is que, se n d o c o m p a n h e ira , significava serIhe subm issa. Afinal, form ou-se no im a g in ário social o p r e conceito co n tra a m u lh e r q u e exercesse tra b a lh o fora d o lar: era c o n sid e ra d a m asculina. N o e n tan to , co n tra ria n d o os preceitos fre u d ian o s, su rg iram - n o final d o século XIX e início d o século XX - os p rim eiro s m o v im e n to s d e m u lh e res, reiv in d ic a n d o d ire ito a o voto, m e lh o r a m b ie n te d e tra b a lh o e salários m ais dignos. Foi n a luta p o r se u s d ireito s q u e e m oito d e m arç o d e 1908, n o s E stad o s U n id o s, cento e c in q ü en ta ope rá ria s foram q u e im a d a s vivas n o in terio r d e u m a fábrica, tra n c a d as p o r seus p atrões. Esse dia ficou c o n sa g ra d o com o o Dia Internacional d a M ulher. N o s E stados U nidos, n o início d o século XX, cerca d e oito m ilh õ e s d e m u lh e re s q u e tra b a lh a v a m fora d e casa recebiam a terça p a rte d o salário p a g o aos h o m en s, re ite ra n d o a discri m in a ç ã o d a m u lh e r n o c a m p o profissional, d e a c o rd o com MURARO.^^ N o m esm o sentido, BEAUVOIR disse: a mulher que busca a sua independência no trabalho tem 0 êxito de uma revolução depende do grau de participação das mulheres. In: MARX, KarI et alii. op. c/f. p. 129. Op. cit. p. 137. M URARO . Idem, p. 138. Idem, ibidem, p. 136. 106 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA muito menos possibilidades do que seus concorrentes mascu linos. Em muitos ofícios, seu salário é inferior aos dos homens; suas tarefas são menos especializadas e, portanto, menos bem pagas que as de um operário qualificado e, em igualdade de condições, ela é menos bem remunerada" A G ra n d e D e p re ssã o A m ericana (1930) e d u r a n te a S e g u n d a G u e rra M u n d ia l as m u lh e res fo ra m su c essiv am e n te c h a m a d a s p a ra as linhas d e p ro d u ç ã o p a ra logo em seguida, q u a n d o so lu c io n a d o s os g ra n d e s espaços econôm icos e logísticos, se re m d e v o lv id a s ao espaço p riv a d o , se m c o n seg u irem im p o r u m p a p e l definitivo p a ra as m u lh e res n o e sp aço público. A esses a c o n te c im e n to s históricos q u e g u in d a m a m u lh e r d o esp aço p ú b lic o p a ra o p riv a d o e vice-versa G A D O L d e n o m i n a d e " m u d a n ç a progressista"; "... 0 momento em que se presume que as mulheres são parte da humanidade no sentido mais pleno - o período ou conjunto de eventos com os quais lidamos assume um caráter ou signi ficado inteiramente diverso do normalmente aceito. De fato, o que surge é um padrão perfeitamente regular de relativa per da de s ta tu s para as mulheres, precisamente naqueles perío dos da chamada mudança progressista..."^^ P o r o u tro lado, nas sociedades d o s países s u b d e se n v o lv i dos, o p a p e l d e ca d a gê n e ro difere conform e o interesse d o sistem a d o m in a n te , so fre n d o as m u lh e re s m u ita o p re ssã o em u m a fam ília q u e é a u n id a d e d e p r o d u ç ã o e re p ro d u ç ã o . N e s se sen tid o , BENHABIB ensina; "a fam ília nuclear moderna, não é um abrigo do mundo Op. c/f. p. 174. " A p u d BENHABIB, Seyla e CO RNELL, Drucilla. Fem inism o com o C rítica da M odernidade. RJ: Rosa dos Tempos, 1987, p, 171. MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL impiedoso, mas um lugar dc cálculo instrumental, egocêntrico e estratégico assim como lugar de trocas geralmente explora doras de serviço, trabalho, dinheiro e sexo, para não mencio nar lugar, freqüentemente, de coerção e violência" N e s s e tip o d e sociedade a classe m é d ia é fo rm a d a p o r p e q u e n o s p ro p rie tá rio s e funcionários m e n o s g r a d u a d o s d o sis tem a p ro d u tiv o e d o g o verno, em q u e as m u lh e re s revestem se, exclusivam ente, d o p a p e l d e m ães e d e d o n a s d e casa, pois, p a ra v iverem , n ã o precisam executar tra b a lh o fora d e casa. Em reg ra , são estas m u lh e re s as d efe n so ras d e tradicionais v a lo re s m o ra is, políticos e religiosos, c u m p rin d o o p a p e l a elas h isto ric a m e n te rese rv ad o , n o a c o m o d a m e n to d a e s tr u tu r a so cial. N o d iz e r d e STUDART: "Se participasse efetivamente da produção, a mulher abando naria a sua atitude conservadora. Mas prosseguindo em sua situação atual de reserva de mão-de-obra, nao participa das lutas do trabalho e, em conseqüência, dos avanços sociais". E m b o ra n o final d o século XX e n c o n tre m o s as m u lh e re s in te g ra d a s d e form a m ais efetiva n o m e rc a d o d e tra b a lh o , a d isc rim in aç ã o econôm ica, re p re s e n ta d a p o r salários d ife re n ciados p a ra tarefas idênticas, p e rd u ra . Isso ocorre especialm en te n a s profissões d e salário m ais baixo. "P a ra u m a m u lh e r, esse salário ba sta ", é u m a cara m áx im a p a tro n a l. N o alvorecer d o a tu a l século, os antigos este reó tip o s co m eç a m - len ta m e n te - a desfazer-se: A m u lh e r está, e m blo co, in g re s s a n d o n o setor p ú b lic o e, d e form a incipiente, p a rti lh a n d o o setor p riv a d o com o h o m em : e n v o lv e n d o -o n o s tra b a lh o s d a casa e na criação d o s filhos, e sboçando-se, assim . Op. cit. p. 53. Op. cit. p. 20. 107 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA u m a m a io r in te g raç ã o h o m e m -m u lh e r. C a d a u m d o s lad o s re p re s e n ta hoje, em to d o o m u n d o , a p ro x im a d a m e n te 50% da força d e trabalho. O D ireito, p o ré m , a in d a n ã o in co rp o ro u as n o v a s te n d ê n c i as, m a n te n d o -s e u m rígido p ro te to r d a s classes d o m in a n tes, nelas a in d a in cluído o h o m e m , fa z e n d o conhecer ao s excluí dos, e n tre eles a m u lh e r, a p e n as o lad o coercitivo d a lei. D eve o c o rp o d e leis agilizar seu passo, a c o m p a n h a n d o a acelera ção histórica, a m o b ilid a d e social, sob p e n a d e m a n te r ju rid i c a m e n te a c e n tu a d a s a ntigas d e s ig u a ld a d e s en tre classes soci ais e e n tre os gêneros, c o rro b o ran d o o q u e o b se rv a W ARAT: "é na lei e n o saber d o D ireito q u e e n c o n tra m o s o m ito d e u m a so c ie d a d e sem fraturas".^^ 2 - SÍNTESE HtSTÓRICA DA MULHER NO BRASÍL: DO PERÍODO COLONIAL AOS DIAS ATUAIS M od elagem /M u lh er A ssim foi m o d e la d o o objeto: p a ra sobrevivência. Tem o lhos d e ver e a p e n as entrevê. N ã o vai longe seu p e n s a m e n to c o rta d o ao m eio pela ferru g em d a s tesouras. É u m m ito sem asas, c o n d ic io n a d o às fainas d a lareira. Seria u m e scândalo d e b a rro afeito a m o v im e n to s incipientes, sob tutela. E rg u e a cabeça p o r in stantes e logo esm orece p o r força " WARAT, Luís Alberto ap u d STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do Júri: Sím bo los e Rituais, 2. ed. POA; Livraria do Advogado, 1994, p. 42. MULHER; CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL d e séculos pen d en tes. A o rem o v e r en tu lh o s p a ra q u e d e justiça tenha v id a integral p o is o m o d e lo d e v e ser, indefectível, se g u n d o as leis d a p ró p ria m o d elag em . H e n riq u e Lisboa Pousada do Ser Q u a n d o o Brasil foi descoberto, os h o m e n s q u e a q u i che g a ra m v ie ra m sozinhos. T ran sc o rre ra m d é c a d a s p a ra q u e as m u lh e re s os seguissem , o p o rtu n iz a n d o - n e sse e sp aço d e tem p o - q u e o corresse u m a m istu ra d e raças: b ran co s, m estiços d e p o rtu g u e s e s c o m ín d io s e, m ais ta rd e , c o m n e g ra s. Essa m estiç a g e m foi fu n d a m e n ta l p a ra a d e te rm in a ç ã o d a situação social d a m u lh e r. N esse contexto a u n iã o leg a liz a d a e ra q u ase inexistente. S e g u n d o a h istoriografia, é a p a rtir d o século XVII q u e a p a rece d o c u m e n ta ç ã o a respeito d a situação ju ríd ic a d a m u lh e r n o Brasil, o n d e ela era tra ta d a pela legislação c o m o imbecilüus sexus”, e q u ip a ra d a às crianças, aos d o e n te s e ao s incapazes. N o e n ta n to , a p e sa r d a co n sid e rad a in c a p a c id a d e , ela p o d ia h e rd a r e m e sm o a d m in istra r p ro p rie d a d e s q u a n d o h o u v e sse o in te r e s s e o u p o r n e c e s s id a d e d a fam ília. N e s s e s e n tid o FREIRE afirm a: "(...) m atria rca s h o u v e n o Brasil patriarcal, a p e n a s c om o eq u iv a le n te d e p atriarcas, isto é, c o n sid e ran d o se m a tria rca s a q u e la s m u lh e re s que, p o r au sên c ia o u fraqueza d o pai o u d o m arid o , e d a n d o e x p a n sã o a p red isp o siç õ e s, ou características masculinóides d e p e rs o n a lid a d e foram , às vezes, os h o m e n s d a c a sa ".^ ™ A p u d CO U TIN H O . M aria Lúcia Rocha. Tecendo por trás d os Panos: A mulher brasileira nas relações fam iliares. RJ: Rocco, 1994, p. 68. 109 110 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA N o século XVIII a família, d e o rganização p atriarcal, c o n s tituía-se n o centro econôm ico e político d a so c ie d a d e e, com o tal, u m a força q u e se a n te p u n h a ao Estado. A Igreja, p o r seu tu rn o , exercia u m a posição in te rm e d iá ria e n tre a fam ília e o E stado, u s a n d o co m o canal p a ra estabelecer esta relação as m u lh e re s q u e m ilita v a m na religião. Essa era ta m b é m u m a form a d e c o m p e n s a r as m u lh e res p o r su a situ a ç ão d e in ferio r id a d e social. A m u lh e r b ran c a - n o p e río d o colonial d o Brasil e m esm o n a R epública - casava p o r conveniência econôm ica, q u a se s e m p re com p a re n te s, p a ra reforçar os laços fam iliares, m as esp ec ia lm e n te p a ra p re s e rv a r o p a trim ô n io d a fam ília. A ssim se n d o , a q u e la s m u lh e re s q u e n ã o desejassem p a rtic ip a r d esse p a c to fam iliar e ra m e n v ia d a s p a ra os c onventos, p a ra evitar c a sa m e n to s inter-raciais. P o r o u tro lado, a v irg in d a d e d a m u lh e r era c o n sid e ra d a u m a v irtu d e , u m fator d e alta im p o rtâ n c ia e, co m o tal, era g u a r d a d a p e lo p a tria rc a e p o r o u tro s m e m b ro s d a fam ília. A d em ais, a fam ília h o n r a d a e ra a quela q u e m a n tin h a a c o n d i ção d e su bserviência d a m u lh e r e su a total d e d ic a ç ã o aos afa zeres d om ésticos, co m o b e m define EXPILLY: "A desconfiança, a inveja e a opressão resultantes, prejudica vam todos os direitos e toda a graça da mulher que não era, para dizer a verdade senão a escrava do seu lar. Os bordados, os doces, a conversa com as negras, o cafuné, o manejo do chicote, e aos domingos uma visita à igreja, eram todas as distrações que o despotismo paternal e a política conjugal per mitiam às inquietas esposas''/^ A m u lh e r n e g ra e a m u la ta, p o r su a vez, so friam g ra n d e s ^ M p u d C O U T IN H O , M aria Lúcia Rocha, op. d l. p. 66. MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E ÓS DIREITOS DE PAPEL p rivações, d e s d e a in stru çã o básica, q u e n ã o lh e s era p o ssib i lita d o receber. A lib e rd a d e d e d e slo c a m e n to d e ssa s m u lh e res, e m p r e g a d a s d o m éstic a s e m su a m aioria, era co n tro lad a , as sim co m o o seu m o d o d e vestir. A p ro p ó sito , LISPECTOR d e s c re v e a m o n o to n ia e a falta d e p e rsp e c tiv a d a v id a d e ssa s m u lh e res: “Sua preocupação reduzia-se a tomar cuidado na hora peri gosa da tarde, quando a casa estava vazia, sem precisar dela, 0 sol alto, cada membro da família distribuído em suas f u n ções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. M as na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto - ela o abafava com a mesma habilidade que as lides da casa lhe haviam transm iti do... De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscu ramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E ali mentava anonimamente a vida. Estava bom assim"7^ N esse d ia p a s ã o a função d a m ãe - a q u i se inclui a n e g ra e a m u la ta - era glorificada. A figura d a m ãe - a e x e m p lo d o que foi ex p o sto n a p rim e ira p a rte de ste tra b a lh o - era asso ciad a à Igreja, à V irgem M aria, à im a g e m d a d ev o ção e d o sacrifício. Ela sim b o liz a v a a h o n ra fam iliar, a s o lid a rie d a d e e a m o ra l d a fam ília. D estarte, ela e ra a fig u ra -m o d e lo d a fam ília, p e rp e tu a n d o -se essa m istificação até os d ias atuais, o n d e m u ito s m a rid o s c h a m a m a e sp o sa d e ''m ã e z in h a " , n u m a a ssociação com su a p ró p ria m ãe. N esse se n tid o W IN N IC O T T assevera: "A saúde do adulto forma-se durante toda a infância, mas as funções dessa saúde, são as mães que estabelecem durante as Laços de Família. 4. ed. RJ: Sabiá, 1970. p. 19. 111 112 CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA primeiras semanas e os primeiros meses da existência de seu filho... Alegrem-se de que tal importância lhes seja concedida. Alegrem-se de deixar a outros o cuidado de conduzir o mundo enquanto põe no mundo um novo membro da sociedade" Enquanto a m ulher-m ãe era exaltada devia, com o reconheci m en to e gratidão a esse tributo que a sociedade lhe conferia, per m anecer em seu espaço privado. Ela era m ão-de-obra gratuita n o período colonial e, n ão tão raram ente, ainda hoje - p erm itin d o a auto-suficiência das residências. A m u lh e r era o agente p a s sivo d a m ultiplicação d a riqueza d o m arido, e m b a sa n d o o fu n cionam ento d o sistem a econôm ico q u e é exterior às fam ílias e m ais am p lo q u e estas. FRASER, a esse respeito, ensina: "O papel do cidadão no capitalismo clássico, de dominação masculina é, portanto, um papel masculino. Ele vincula o Estado e a esfera pública, como afirma Habermas. M as tam bém vincula estes com a economia oficial e a família. E em todas as circunstâncias, os vínculos são forjados na esfera da identidade do gênero masculino..."^'* A a u to rid ad e d o patriarca, com um no Brasil Colônia, prosse gu iu n o p e ríodo d o Império, d a República e, em m uitos casos, até os dias atuais, conform e diz COUTINHO: "As circunstâncias d o regim e econômico-social n o Brasil, portanto, m u ito contribu íram para forçar a opressão d a m ulher pelo hom em : lim itando su a atividade à esfera dom éstica ou ao plano d a prática religiosa, o h o m em m elhor p ôde exercer o seu d om ínio sobre ela. O absolutism o d o paterfamilias, em nossa terra só com eçou a se dissol ver à m ed id a q u e outras instituições e figuras cresceram. A p u d C O UTINHO , Maria Lúcia Rocha, op. cit. p. 93. A p u d BENHABIB, Seyía e CORNELL, Drucilia, op. cit. p. 53. Op. cit. p. 75. MULHER; CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL Foi so m e n te n o século XIX, com o p rocesso d e in d u stria li zação e com as im igrações, q u e a u n id a d e fam iliar sofreu al g u m a s alterações, tais como: declínio d a a u to r id a d e p a te rn a , m a io r p a rticip a ç ão d a s m u lh e re s n as a tiv id a d e s lucrativas, a lg u m a s form as d e controle d a m a te rn id a d e etc. N esse p e río d o e m ergiu u m a nova classe social fo rm a d a po r profissionais liberais; m édicos, a d v o g a d o s e o utros. E n tre ta n to, a p e sa r d o s m u ito s avanços socioculturais, n ã o se m o d ifi c a ra m a lg u m a s características feu d ais q u e d iz e m respeito à m u lh e r co m o a intolerância ao a d u lté rio c o m e tid o p o r ela, e n q u a n to q u e p a ra o h o m e m , o m esm o c o m p o rta m e n to era aceito; e o ta b u c o n tra a p e r d a d a v i r g in d a d e d a m u lh e r. M U R A R O , n e sse se n tid o , assim define: "...o a d u lté rio era c h a m a d o d e crim e, m as a p e n as p a ra as m u lh e res. A v irg in d a d e era a q u ilo q u e d istin g u ia as m u lh e res q u e iriam ter u m a v id a m á d e u m a v id a b o a "/^ N o século XIX foram in tro d u z id a s n o Brasil teo rias cientí ficas p a ra justificar a n a tu re z a d o h o m e m com p re d isp o siç ã o à in te lec tu a lid a d e, e n q u a n to a m u lh e r e ra v in c u la d a à n a tu r e za afetiva. C om b ase nessas teorias e ra m ju stificadas as a titu d e s racionais, a u to ritá ria s e altivas d o h o m e m , e n q u a n to às m u lh e res eram atribuídas as variações d e fraqueza, sensibili dade, d o ç u ra e a conseqüente subm issão. A ciência, desse m odo, estava reforçando os estereótipos m asculinos e fem ininos, jus tificando o p apel q u e cada gênero exercia n a sociedade. A Escola era u m a d a s instituições sociais q u e ratificava o tra ta m e n to d iferenciado oferecido aos m e n in o s e às m eninas. E n q u a n to àq u e le s e ra e n sin a d o L ínguas, A ritm ética, G e o g ra fia etc., a estas o c urrículo oferecido c o m p re e n d ia Letras, M ú sica, D ança e P re n d a s D om ésticas. Saliente-se, ta m b é m , q u e o Op. cit. p. 35. 113 114 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA acesso à e d u c aç ã o às m en in a s so m en te foi p o ssível m u ito te m p o d e p o is d o s m eninos. D essa form a, po d e-se d e d u z ir q u e o e nsino m in is tra d o às m e n in a s v isa v a p rep a rá -la s p a ra a m issão d e p ro fe sso ra p r i m ária, o u seja, u m seg m en to d as funções m a te rn a is q u e lhes e ra m p ró p ria s. N e sse círculo h erm ético e lim ita d o n ã o era p o ssível à m u lh e r a construção d e m aiores sonhos, com o p o d e ser visto e m M A C H A D O DE ASSIS: "!...] aprendera a ler, escrever e cantar, francês, doutrina e obras de agulha, não aprendeu, por exemplo, a fa zer renda; por isso mesmo quis que prima Justina lhe ensinasse. Se não estudou Latim com o Padre Cabral, fo i porque o padre, de pois de lhe propor gracejos, acabou dizendo que Latim não era língua de m eninas”/^ O co n h ecim en to d e u m a língua estran g eira, p refe re n c ial m en te 0 francês, era im p rescin d ív el às m u lh e re s d a s classes altas d a época. C om o d o m ín io d essa lín g u a e a h a b ilid a d e no trato com as p r e n d a s dom ésticas, assim com o n o m anejo do pian o , to rn a v a m -se sim páticas e a traen tes a o convívio social, fator d e o rg u lh o e valorização d o m arido. Esse m o d elo d e m u lher ideal foi igualm ente descrito p o r M A C H A D O DE ASSIS: "Era doce, afável e inteligente. Não eram estes, contudo, nem ainda a beleza, os seus dotes por excelência eficazes. O que a tornava superior e lhe dava possibilidade de triunfar era a arte de acomodar-se às circunstâncias do momento e a toda casta de espíritos, arte preciosa que fa z hábeis os homens e estimáveis as mulheres. Helena praticava de livros a alfinetes, de bailes ou de arranjos de casa... Era pianista, sabia desenho, falava corretamente a língua francesa, um pouco a inglesa e o Dom Casm urro. RJ: Editora M oderna Ltda., 1983, p. 51. MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL italiano. Entendia de coshfrn e bordados e toda sorte de traba lhos fem ininos" A ssim sendo, o casam ento, p a ra as m u lh e re s d o século XIX, re p re s e n ta v a u m a "carreira", u m a d a s p o u c a s o p o r tu n id a d e s d e ascensão social, p ois v alendo-se d o c a sa m e n to elas p o d e ri a m te r s u a p r ó p r i a a tiv id a d e , e m b o r a n ã o r e m u n e r a d a e exercida e m reg im e d e d e p e n d ên c ia , n o in te rio r d e u m a casa. A d u p la m o r a l c o m p o n e n te d e to d a a história, estava aqui p re s e n te , p e rm itin d o ao h o m e m to d a espécie d e a v e n tu ra a m o ro sa , e n q u a n to q u e da m u lh e r se e sp e ra v a p u re z a , recato e d e d ic a ç ã o ao m arid o , à casa e aos filhos. A ssim , s e m p re q u e a m u lh e r saía ao espaço público, d evia e sta r a c o m p a n h a d a d e u m h o m e m d a família. A literatura d a época é b e m clara a esse respeito, com o p o d e m o s v e r e m JOSÉ DE ALENCAR: " C o m p re e n d i e corei d e m in h a s im p lic id ad e p ro v in c ia n a , que c o n fu n d ia a m á sc a ra hip ó crita d o vício c om o m o d e s to recato d e inocência. Só então notei q u e a quela m oça e stav a só e que a ausência d e u m pai, d e u m m a rid o o u d e u m irm ão, devia ter-m e feito su sp e ita r a v e rd a d e ". Esse c ontrole d ire to exercido sobre a m u lh e r a im p e d ia de u m a relação extraconjugal e tam b é m p o rq u e a legislação cons p ira v a p a ra inibir q u a lq u e r ação d a m ulher. O C ó d ig o Penal d e 1890 p re v ia p u n iç ã o p o r a d u ltério , com p ris ã o d e u m a três anos, m as so m e n te p a ra a m ulher. O h o m e m , p a ra ser consi d e ra d o a d ú lte ro , p re c isa v a c o m p ro v a d a m e n te m a n te r concubina. A s teorias a resp e ito da n a tu re z a d o h o m e m e da m u lh e r - já referidas a n te rio rm e n te - e ra m a ssim ila d as e se to rn a v a m c o m p o n e n te s d o im aginário social, a g in d o , assim , Helena, 11, ed. SP: Ática, 1983, p. 24. Lucíola, 11. ed. SP: Ática, 1987, p, 13. 115 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA so b re a a ceitação d o tra ta m e n to d ife re n c ia d o aos gêneros. M END ES, a esse respeito, afirm ou: “O in stin to sexual n a m u lher, p o d e -se d iz e r q u e n ã o existe q u a se, d e o rd in á rio ; a m u lh er se p re s ta , sacrifica-se às grosserias d o h o m e m , m a s é fu n d a m e n ta lm e n te p u ra ; a p u re z a q u ase n ã o c u sta esforço à m u lher, e é p o r isso q u e ela é tão severa q u a n to a este p o n to , em relação ao seu sexo".®*^ D esse m o d o , as teorias e d iscursos d e e n tã o v in h a m refor çar 0 q u e e stav a p rescrito a respeito d a c o n d u ta d o h o m e m e d a m u lh e r, e q u e d a v a à quele a certeza d e q u e o filho p o r esta g e ra d o era seu pela exclusão d a m u lh e r d a p ro x im id a d e com o u tro s h o m e n s. Essas colocações n o s re p o rta m à a n tig ü id a d e ro m a n a , o n d e se afirm av a q u e a m a te rn id a d e era u m a certe za, e n q u a n to a p a te rn id a d e era u m a q u e stã o d e fé. C o m a in d u stria liz a ç ão teve início a p articip a ç ão d a m u lh er n o m e rc a d o d e trabalho. N o en tan to , o tra b a lh o d a m u lh e r n ã o era visto com o realização profissional o u e m a n c ip a ção e conôm ica d a m esm a , m a s a p e n a s c o m o u m c o m p le m e n to fin an ceiro à re n d a fam iliar. P o r o u tro lado, a p a rticip a ç ão d a m u lh e r n o m e rc a d o d e trabalho n ã o d im in u iu a carga d e o brigações q u e ela s u p o rta v a em casa, n o c u id a d o da fam ília. C o n sid erad a a tividade secundária, a m ão-de-obra fem inina for m av a u m banco d e reserva d e serviço, q u e era acionado sem p re que houvesse necessidade, conform e assevera CO U TIN H O : "Desta forma, a política do Estado com relação à m u lher, foi sempre bastante contraditória; de um lado re forçava a permanência no lar a fim de garantir a tarefa reprodutiva e, de outro, guardava-a como exército in dustrial de reserva, af im de que pudesse lançar mão de A p u d C O UTINHO , Maria Lúcia Rocha, op. cit. p. 88. MULHEfl: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL seu trabalho sempre que necessário aos interesses da Nação".^^ N o p e río d o p ó s -g u e rra - d é c ad a s iniciais d o século XX h o u v e u m a p ro fu n d a transform ação n a s so c ie d a d e s e u ro p é i as e n o rte -am e ric a n as - conform e já ex p o sto n a p rim e ira p a r te d e s te tra b a lh o - q u e se refletiu n a so c ie d a d e brasileira. As m u lh e res, ig u alm en te , aqui, foram in c e n tiv a d a s a c e d e re m o seu espaço n o m e rc a d o d e tra b a lh o aos h o m e n s , com f u n d a m e n to na ideologia que enfatizava o papel d e m ulher-m ãe e de sua função indispensável e insubstituível n a educação d o s filhos. A m a te r n id a d e e ra o eixo básico e m to rn o d o q u a l a m u lh e r se m o v im e n ta v a , c u m p r in d o , assim , o s e u d e s tin o biológico. Dessa form a, form ou-se a im agem este reo tip ad a d a b o a m ãe n o lar e d a infelicidade q u e v itim a v a as crianças q u e eram c arentes d a a tenção m ate rn a . Era to d a u m a g a m a d e p ro fissi o n a is l i g a d o s à p sic o lo g ia , m e d ic in a , so c io lo g ia etc. q u e avalizaram essa corrente ideológica, que bem delim itava a esfera pública e a p rivada p ara hom ens e m ulheres respectivam ente. Edificou-se então, em torno d a m u lh e r, to d a u m a crença, o n d e ela seria a c u lp a d a p elos p ro b le m as q u e oc o rre sse m aos filhos e, e m extensão, à fam ília e m geral. A ssim , e ra n e c essá rio esquecer-se a si m esm a p a ra m elh o r a m a r e c u id a r d o s que a c irc u n d a v a m . Esse foi o m o d elo im p o rta d o d e m u lh e r ideal q u e p e r d u r o u , m ais ou m enos, a té o ano d e 1960. O iso la m e n to d a m u lh e r n o espaço p riv a d o a im p o ssib ilita v a d e p a rtici p a r d e q u a lq u e r m o v im e n to coletivo e m p ro l d a m e lh o ria d e su a s condições. Ao lado disso, era igualm ente c o n sid e rad o im p ró p rio a um a m u lh e r ser su p e rio r ao h o m e m in te lec tu a lm e n te o u e m força ®’ O p . c i t . p . 9 5 . 117 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JU S T IÇ A física. A m u lh e r, d esse m o d o , so m en te p o d e ria a d q u irir a lg u m a p osição social a tra v é s d a s a tiv id a d e s d o m a rid o o u d o s filhos, d e o n d e se fo rm o u o co n sag ra d o ditado: 'T o r trás de u m g r a n d e h o m e m existe se m p re u m a g ra n d e m u lh e r" . So m e n te n o s te m p o s a tu a is foi aceita a a d a p ta ç ã o d e sse p o p u la r d ita d o p a ra : "ao la d o d e u m g ra n d e hom em ...". N o e n ta n to , a re sp o n sa b ilid a d e d a m u lh e r com relação à casa, ao b o m rela c io n a m en to com o m a rid o e à e d u c aç ã o dos filhos foi p o r ela m u ito b e m in te rn a liz a d a a p o n to d e , p o r m u ita s d é c ad a s, a su a exclusiva dedicação se r v o lta d a ao es pa ç o p r iv a d o q u e lh e foi conferido. O d isc u rs o d o e n c la u s u ra m e n to d a m u lh e r n o lar foi d e fin id o p o r D IC K IN SO N : "Eles me engrandecem em prosa tal quando uma menininha. Eles me mantêm no isolamento porque eles me gostam tranqüila. C o m relação à m o ra l sexual, o d u p lo p a d rã o p e r d u r a até o os d ia s a tu a is, com o reforço d e teorias q u e a firm a ra m se r o h o m e m d o ta d o d e im p u lso biológico, ju stifican d o o c o m p o r ta m e n to d e s te ao interessar-se p o r o u tra s m u lh e res, m e sm o se ca sa d o fosse. D esse m o d o , o h o m e m conta com o aval da so c ie d a d e q u e incentiva a su a atu a ç ã o n a q u ilo que, p o r su a p r ó p ria n a tu re z a , d iz e m se r inerente. P o r o u tro lad o , a esp o sa d evia ser co m p la c en te e p re s e rv a r o c a sa m e n to , i g n o ra n d o as ligações p aralelas d o m a rid o . P ara isso h a v ia conselheiros, q u e iam d e sd e sa ce rd o te s a m édicos, q u e fala v a m à m u lh e r d e s u a re sp o n sa b ilid a d e n a p re s e rv a ção d o c a sa m e n to - e tern o e indissolúvel. Esse tip o d e raciocí/4 p u tíC 0 U T lN H 0 , Maria Lúcia Rocha, op. c/f. p, 41. No original da poetisa norteam ericana: “T he y shut m e up in prose/as when a little girl/ T he y pu t me in the closet/Because they liked me still” . MULHER. CÕDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL nio se faz p resen te, em m u ita s regiões d o Brasil, a té os d ias de hoje, o n d e h o m e n s e m u lh e res, filhos e filhas etc, p o s s u e m posições b e m d e fin id as n o contexto fam iliar e social. O p apel d e c ad a sexo, in te rn a liz a d o d e sd e a infância, era p a s sa d o de g eração a geração, conform e e nsina COSTA: é informado por um código moral, que os sujeitos tam bém internalizam, que lhes permite distinguir o certo e o er rado, 0 que é permitido para os ocupantes de cada uma dessas posições e, a partir destas internalizações, os sujeitos se inse rem nesta sociedade e se representam, no futuro, ocupando posições análogas, com os mesmos contornos" N a d é c ad a d e 60, em âm bito m u n d ia l, o c o rre ra m m o v im e n tos e m oposição ao p o d e r socialm ente institucionalizado, com o o q u e b a la n ç o u a e s tru tu ra d a França e m 1968 e a m obilização e m p ro l d o s D ireitos H u m a n o s nos E stad o s U nid o s. C om o reflexo desses m o v im e n to s gerais s u rg ira m m o v im e n to s es pecíficos d e fem inistas, q u e d isc u tia m a d istin ção e n tre s e x u a lid a d e e procriação, req u alifican d o o p a p e l sexual d a m u lh e r e a q u e s tã o d o s lim ites e n tre espaço p ú b lic o e p riv a d o . O m o v im e n to fem inista se im pôs, n e g a n d o a o rd e m p a tri arcal q u e atrib u ía à m u lh e r u m a função se c u n d á ria e m re la ção a o h o m e m . Esses m o v im e n to s frutificaram , p o is a b riram e sp aço p a ra q u e hoje as m u lh e res o c u p e m posições d e d e s ta q u e n o m e rc a d o d e tra b a lh o e n a so c ie d a d e co m o u m todo. A tu a lm e n te as m u lh e re s se q u e stio n a m sobre o q u e desejam na v id a e n ã o m ais aceitam u m destin o o u to rg a d o , pelo sim p les fato d e se re m m ulheres. E n tre ta n to , a p e sa r d e to d a s as c o n q u ista s o b tid a s, m u itas m u lh e re s d e hoje a in d a c o n tin u a m v in c u la d a s ao a n tig o m o " /Apud C O UTINHO , Maria Lúcia Rocha, op. cit. p. 109. 120 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA delo d e m ulher, tentando equilibrar a profissão que exercem com as atividades d a casa. Nesse sentido, C O U T IN H O adverte: “Enaltecida por uma florescente campanha que prometia o paraíso para quem quisesse trabalhar, ter filhos, cuidar da casa, ainda ser uma amante sempre disposta e disponível, a mulher passou a se desdobrar e, exausta com o peso de todas as responsabilidades, não conseguindo a excelência almeja da, começou a interiorizar uma sensação de fracasso. O pro blema passou a ser individualizado, como se a dificuldade em ser múltipla o tempo todo fosse pessoal". A ssim a c o n te c e com as m u lh e r e s d a s z o n a s r u r a is q u e so fre m m u ita o p re s s ã o , e x e rc e n d o d u p l a o u trip la jo rn a d a d e tra b a lh o , a lé m d e d a r e m à lu z m u ito s filh o s e, n o p la n o se x u a l, s o fre m as m a is ríg id a s s a n ç õ e s d a s o c ie d a d e . P o r d e s c o n fia n ç a d e a d u lté rio , o m a r id o p o d e a té m a tá -la , em n o m e d a " le g ítim a d e fe sa d a h o n r a " , tese e sta q u e a in d a é d e f e n d id a p o r m u ito s a d v o g a d o s n o s trib u n a is d o jú ri d e to d o país. N a s c id a d e s , as m u lh e r e s q u e c o n s titu e m a classe u r b a n a tr a b a lh a d o r a , d e sa lá rio s m a is b a ix o s, ta m b é m s o fre m d is c rim in a ç õ e s e m re la ç ão ao h o m e m , in c lu s iv e n o s a lá rio , n o exercício d e fu n ç ã o a n á lo g a . A s p e s q u is a s d e m o n s tr a m a p e rs is tê n c ia d e a lg u m p rec o n c e ito , q u e d ific u lta o p r o g re s s o n a c a rr e ir a e m a n té m os h o le rite s f e m in in o s m a is m a g r o s q u e o s m a sc u lin o s. A s m u lh e r e s fa v e la d a s , d e m o d o g e ra l, a p r e s e n ta m u m c o m p o r ta m e n to d ife re n te d a s m u lh e res d a s c la sse s sociais m ais p riv ile g ia d a s . São elas q u e s u s te n ta m a fam ília , q u e é m a tric ê n tric a n a m a io ria d a s vezes. S e g u n d o M U R A R O : "... Isto m o s tra q u e a fam ília n u c le a r «■' O p . c i t . p . 1 1 4 , MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL SÓ é possível em cam ad as acima de u m a certa re n d a e, p o r tanto, é u m privilégio de classe".®^ N esse início d e m ilênio, a m aio r tra n sfo rm aç ã o está se p r o ce ssa n d o n as classes m éd ia s m o d e rn a s, n a s q u a is a m u lh e r a v a n ça n a c o n q u ista d e espaço nos trib u n a is s u p e rio re s, nos m inistérios, n o to p o d as g ra n d e s e m p re s a s tra n sn a cio n a is, em org an iz a çõ e s d e p e sq u isa d e tecnologia d e p o n ta . P ilotam ja tos, c o m a n d a m tro p as, o c u p a m cargos eletivos, n ã o h a v e n d o u m ún ico e sp aç o con sid erad o , no p a ssa d o , co m o m asculino, q u e n ã o seja o c u p a d o p o r m u lh e res, fortalecendo os apelos de ig u a ld a d e q u e estão expressos n a C o n stitu içã o Federal b ra s i leira d e 1988, u m a d a s m ais a v a n ça d a s d o m u n d o e m relação à e q u ip a ra ç ã o d o s d ireitos d o h o m e m e d a m u lh e r. F inalm ente, é possível a firm ar q u e - c o n sid e ra n d o -se es ses vário s e sta m en to s sociais - os m o v im e n to s fem in istas não d e ra m resp o sta a to d a s as d ú v id a s e anseios fem ininos. N o e n ta n to , eles foram vitoriosos, p o rq u e tira ra m as m u lh e re s da s o m b ra d a H istória e m ex e ra m com o m o d e lo p a triarc a l que s e m p re v ig o ro u n o Brasil, lan ç a n d o a se m e n te d a tra n s fo rm a ção e m o d ific a n d o a posição q u e a m u lh e r o c u p a na so c ie d a de: n o c a m p o profissional e n a política.®^ É necessário ressal tar, n o e n ta n to , q u e u m a nova re a lid a d e social - ig u alitária e p ro g re ssista - a in d a está longe d e m ilhões d e m u lh e res. N ão há, n e m h a v e rá d e sen v o lv im e n to social e econôm ico c om jusOp. at. p. 157. " BO CA-DE-U RNA, Caderno da Eleição. Zero Hora, Porto Alegre, fl. 08,15.09.2002; "Apesar de corresponder a mais de 50% do eleitorado nacional, as m ulheres estão muito mal representadas entre aqueles que buscam se eleger no dia 6 de outubro. Elas eqüivalem a apenas 13,96% do total de candidatos. São 2 .637 representan tes do sexo fem inino disputando uma vaga no Senado, na Câm ara, nas A sse m bléias Legislativas e nos governos estaduais. Ainda assim a taxa é recorde. Nas últim as eleições, em 1998, as m ulheres eram 12,27% dos candidatos. Em 1994, ainda m enos: 6%". 122 CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA tiça, se n ã o h o u v e r ig u a ld a d e d e o p o rtu n id a d e s p a ra h o m e n s e m u lh e res, d ire ito s e d everes p a ra todos, sem discrim inação. 3 - A CONDIÇÃO DA MULHER NOS DIPLOMAS INTERNACIONAIS: CONVENÇÕES,TRATADOS E CONGRESSOS "... seria hipocrisia ou ingenuidade acreditar que a lei é feita para todo mundo em nome de todo mundo; que é mais prudente reconhecer que ela éfeita para alguns e se aplica a outro; que em princípio ela obriga a todos os cidadãos, mas se dirige principalmente às classes mais numerosas e menos esclarecidas; que, ao contrá rio do que acontece com as leis políticas ou civis, sua aplicação não se refere a todos da mesma form a...” M ichel Foucault A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão d e 1789 as sim previa: "A rt. 1"' Les h o m m e s na isse n t et d e m e u r e n t livres et ég a u x e n droits. Les distinctions sociales, n e p e u v e n t être p o n d e s q u e s u r I' u tilité commune".®^ Essa D e claração foi p u b lic a d a com o re s u lta d o d a R evolução Francesa, m a s n a d a d is p u n h a e m relação às m ulheres. Em 1791, O ly m p e d e G ouges p u b lic o u a Declaração dos D i reitos da M ulher e da Cidadã, u m a réplica à D eclaração d o s D i reitos d o h o m e m e q u e prescrevia; "A m u lh e r n asce livre e s e u s d ire ito s são os m esm o s d o s homens..."®® N o a n o d e 1910, aconteceu n a D in a m a rc a o C o n g re sso InCUNHA, Roberto Salles. Os Novos Direitos da Mulher. SP: Atlas, S.A., 1990, p. 31. Ibidem. MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÕDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL tern acio n al d a M u lh e r, q u e in stitu iu o d ia 8 d e m a rç o com o d ia c o m e m o ra tiv o , a n u a lm e n te , d a lu ta d a e m a n c ip a ç ã o d a m u lh e r . Essa d a ta foi e sc o lh id a , c o m o h o m e n a g e m às o p e rá r ia s q u e m o r r e r a m q u e im a d a s q u a n d o o c u p a v a m a fá b ri ca C o tto n , e m E ast V illage, N o v a Io rq u e , l u ta n d o p o r se u s d ire ito s . R ealizou-se em 2 d e m aio d e 1948, e m B ogotá, C olôm bia, a IX C o nferência Internacional sobre a concessão d o s D ireitos C ivis à M ulher. N e ssa convenção, 19 p aíses e m ais o Brasil a s sin a ra m u m tra ta d o ''o u to rg a n d o à m u lh e r os m e sm o s d i reitos civis d e q u e g oza o h o m e m " . N o e n ta n to , esse tra tad o so m e n te foi a p ro v a d o n o Brasil, a tra v é s d o D ecreto legislativo n° 74, em 22.12.1951, e o in stru m e n to d e ratificação foi d e p o s i ta d o e m W a sh in g to n , n a sed e d a O E A e m 19.03.1952. N o ano d e 1952, e m 23 d e o u tu b ro , foi p u b lic a d o D ecreto d o Executi v o d e n° 31.643, cientificando as repartições p ú b lic a s d o con v ê n io e d e te rm in a n d o o seu c u m p rim e n to . E n tre ta n to , a n o s sa legislação n ã o foi a tu a liz a d a e o C ó d ig o Civil m a n te v e n o r m a s obsoletas q u e feriam a referida convenção. E m s e u texto inicial, esse T ra ta d o assim d isp u n h a : "Considerando: Que a maioria das Repúblicas Americanas, inspirados em elevados princípios de justiça, tem concedido os direitos civis à mulher; Que tem sido uma inspiração da comunidade americana equiparar homem e mulher no gozo e exercício dos direitos civis; Que n Resolução X X da V il Conferência Internacional Americana expressamente declara: CUNHA, Roberto Salles, op. cit. p. 33. 124 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA Que a mulher da América, muito antes de reclamar os seus direitos, tinha sabido cumprir nobremente todas as suas responsabilidades como companheira do homem; Que 0 princípio de igualdade de direitos humanos entre homem e mulher está contido na Carta das Nações Unidas, Resolveram: Autorizar os seus respectivos representantes, cujos plenos poderes verificaram estar em boa e devida forma, para assinar os seguintes Artigos: A rt. 1°. Os Estados Americanos convêm outorgar à mulher os mesmos direitos civis de que goza o homem. A rt. 2". Em face d o exposto, constata-se q u e so m e n te q u a tro anos a p ó s a C o n v e n ç ã o d e Bogotá, n o Brasil, o c o rre u a d e te rm in a ção d o c u m p rim e n to d o acordo. N o en ta n to , essa m o ro s id a d e d o p rocesso legislativo g e ro u u m m o v im e n to d e reação e n c a b e ç a d o p o r u m g r u p o d e juristas q u e cu lm in o u , te m p o s d e pois, com a elaboração d o Estatuto da M ulher Casada, q u e cor rigiu a lg u m a s falhas básicas d o C ódigo Civil, co n fo rm e v e re m o s adiante. N e sse d ia p a sã o , em 1967, foi e lab o rad a p e la O N U a D ecla ração sobre a Elim inação d e to d as as form as d e D iscrim in a ção c o n tra a M ulher. O p re p a ro dessa D eclaração com eçou e m 1963, m e d ia n te u m a Resolução e m q u e se rec o n h e c e u a existência d e discrim inação contra a m u lh e r. Foi solicitado, e n tão , à Comissão de Condição Jurídica e Social da M ulher a p r e p a ra ç ã o d e u m projeto q u e recebeu sugestões, isso e m 1966. Essa D eclaração, co n sid e rad a p e d ra b asilar n o tra b a lh o da O N U p e la ig u a ld a d e d e direitos d o h o m e m e d a m u lh e r, foi Idem, ibidem, p. 35. MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL a s sin a d a p elo Brasil, e m N o v a Iorque, s o m e n te e m 31 d e m a r ço d e 1981, m as com reservas ao artigo 15, § 4 * e art. 16, § 1" alíneas " a", "c", "g", "h ", q u e v in h a m d e e n c o n tro a d isp o siti vos d o no sso an tig o C ó d ig o Civil q u e d a ta v a d e 1916. O s a rtig o s d o C ó d ig o Civil q u e d e v e ria m ser e lim in a d o s p a ra a te n d e re m aos prin cíp io s d a referida C o n v e n ç ã o confe ria m privilégios ao m arid o , com o chefe d a so c ie d a d e conju gal. D o m e s m o m o d o , a diferença d e id a d e m ín im a p a ra o ca sa m e n to , q u e p a ra a m u lh e r é 16 a n o s e p a ra o h o m e m 18 an o s, d e v e ria ser s u p rim id a . O texto legal q u e o Brasil a ssinou com reservas 14 an o s m ais tarde, p re c e itu a v a n o art. 15, § 4°: "O s E stados-P artes c oncederão ao h o m e m e à m u lh e r os m es m o s d ireitos n o q u e respeita à legislação relativa ao direito d a s p esso as, à lib e rd ad e d e m o v im e n to e à l ib e rd a d e d e esco lha d e resid ên cia e dom icílio". P o r o u tro lad o , o art. 16, § 1”, assim estabelecia: "Os Estados-Partes adotarão todas as medidas adequadas para eliminar a discriminação contra a mulher em todos os aspec tos relativos ao casamento e às relações familiares e, em par ticular, com base na igualdade entre homem e mulher assegurarão: a) O mesmo direito de contrair matrimônio; b) Os mesmos direitos e responsabilidades durante o casamento e por ocasião de sua dissolução. g) Os mesmos direitos pessoais como marido e mulher, inclu sive 0 direito de escolher o sobrenome, profissão e ocupação; h) Os mesmos direitos a ambos os cônjuges em matéria de propriedade, aquisição, gestão, administração, gozo e disposição dos bens, tanto a título gratuito quanto a título oneroso". 9' Nesse sentido VER U C C I, Florista, A M ulher e o Direito. SP: Livraria Nobel S.A., 1987, p. 36. 125 126 CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA Por o u tro lado, em 1975 realizou-se, n a c idade d o México, a Primeira Conferência Internacional da M ulher p ro m o v id a pela O N U . Esse ano foi considerado o A no Internacional d a M u lher. Em pro sseg u im en to aos trabalhos iniciados n essa C onfe rência, efetivou-se e m 1980, e m C o penhague, n o v a Conferência Internacional da Mulher, o n d e ficou d e te rm in a d o q u e os países p a rticip a n te s deveriam se e m p e n h a r p a ra a d e q u a r su a s legisla ções à realidade social d a m u lh e r e su a necessária cidadania. Da m e sm a form a, em setem bro d e 1995, foi lev a d a a efeito em P e q u im a IV Conferência Mundial da Mulher - a m a io r na h istória m u n d ia l - p ro m o v id a ig u alm en te pela O N U . A í foi a p o n ta d a , c om o s e n d o o ú ltim o g ra n d e p rojeto d o século XX, a ig u a ld a d e e n tre os sexos, d e a co rd o com o q u e a sse v e ro u GH ALI: " A s s e g u ra r a ig u a ld a d e en tre h o m e n s e m u lh e res, d e d ireito e d e fato, é u m g ra n d e projeto político d o século XX, m as a ig u a ld a d e n a v e rd a d e co n tin u a u m objeto ilusório em to d o s os países. A ig u a ld a d e d a d e s ig u a ld a d e está lo n g e d e ser alcançada com a discrim inação b a s e a d a n o sexo".^ CONSIDERAÇÕES FINAIS N o d e c u rso d esse trabalho viu-se q u e a m u lh e r é a p re s e n tada, q u a se u n iv ersa lm e n te , com o alg u ém lig a d o à n a tu re z a , à contin gência biológica, e n q u a n to o h o m e m é d e fin id o com o u m ser lig ad o à cultura, à técnica. A ap ro x im aç ã o d a m u lh e r com a n a tu re z a - a re p ro d u ç ã o - v e m justificar a su a o c u p a ção d o e sp aço d om éstico, p riv a d o , ju n to aos filhos, e n q u a n to o h o m e m d e té m as funções públicas. A ssim , p a ra p ro v a r a condição d e su b serv iên cia d a m u lher, h o u v e 0 re sp a ld o d a religião, d a filosofia e d a teologia. ®^ONU defende igualdade entre os Sexos. Porto Alegre, Zero Hora de 05.09,95, p, 34. MULHER. CÓOIGOS LEGAIS E CÒDlQOS SOClWS - 0 PAPEL DOS DiflElTO S E OS DIREITOS DE PAPEL n o m u n d o a ntigo, e, n o m u n d o m o d e rn o , recorreu-se à biolo gia, à p s ic o lo g ia e ao direito. É, e n tã o , n e s se n ív e l q u e se e s tr u tu r a m e se p ro p a g a m os m itos, su p erstiçõ es, p reco n cei tos, q u e se d e stin a m a d e s tru ir o espírito d e iniciativa d a m u lh er e re d u z i-la à p a ssiv id ad e . Isso p o rq u e , q u a n d o a lg u é m é m a n tid o em p o sição d e inferioridade, torna-se inferior e, se as m u lh e re s - n a concepção cultural - a in d a são inferiores, p o r esse m e sm o m o d e lo cultural são oferecidas a elas m e n o s o p o r tu n id a d e s d e livrar-se dele. N esse sen tid o , o escritor p o rtu g u ê s S A R A M A G O ressalta a p o sição d e in fe rio rid a d e d a m u lh e r - p resença c o m u m na lite ra tu ra an tig a - c o nferindo-lhe u m " sta tu s " d e d e p e n d ê n cia, resp e ito e su b m issão ao h o m e m , a s se m e lh a n d o -a aos es cravos. N essa pa ssa g e m , elas n e m se a tre v e m a rezar, pois D eus, s u p o s ta m e n te , teria m ais o q u e fazer a ouvi-las. A ssim , n o "E v a n g elh o ", é descrita a seg u in te cena: "No momento em que iam pôr o pé na estrada, os homens, em coro solene, alteram a voz para proferir as bênçãos próprias da circunstância, repetindo-as as mulheres discretamente, quase em surdina, como quem aprendeu que não ganha nada em chamar quem de ser ouvido poucas esperanças tenha... P o r o u tro lad o , m o stro u -se q u e a so c ie d a d e e x p lo ra d o ra fo m e n ta a ideologia, a cu ltu ra, a e d u c aç ã o q u e se rv e a seus interesses. Isso ela faz tam b é m com a m u lh e r, c o m o o faz com o e m p re g a d o e, a dem ais, com to d o s os d o m in a d o s . Estes são m a n tid o s d e lib e ra d a m e n te na ignorância, n o o b sc u ra n tism o , com 0 objetivo d e convencê-los a resig n a re m -se à su a situa- C am pos, Tiny M achado de. Ser M ulher o Desafio, p. XIX. SP; Makron Books, 1992, 127 128 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA ção e, assim , inculcar-Ihes o espírito d a p a s siv id a d e e d o se r vilism o. A esse respeito, e n c o n tra m o s em PO U LA N TZA S: "...a ideologia dominante invade os aparelhos de Esta do, os quais igualmente têm por função elaborar, apre goar e reproduzir esta ideologia, fato cjue é importante na constituição e reprodução da divisão social do traba lho, das classes sociais e do domínio de classe. Esse é por excelência o papel de certos aparelhos oriundos da esfera do Estado, designados aparelhos ideológicos de Estado (...) Igreja (aparelho religioso), aparelho esco lar, aparelho oficial de informações (rádio, TV), apare lho cultural, etc.".^* D esse m o d o , a g ra n d e d icotom ia n ã o se form a e n tre a m u lh er e o h o m e m , m a s e n tre aq u e la s e a o rd e m social, en tre to d o s os exp lo rad o s: m u lh e re s e h o m e n s e a o rd e m social. A ssim , é essa situação d e e x p lo ra d a q u e explicava a ausência d a m u lh e r d e to d a s as tarefas q u e e n v o lv ia m decisão n o seio d a so c ie d a d e - q u e a excluiu d a elaboração d a s concepções q u e o rg a n iz a m a v id a econôm ica, social, c u ltu ra l e política m e s m o q u e seus interesses fossem afetados. A o la d o disso, a p re se n to u -se ta m b é m que, n o a sp ec to ju rí dico, a evolução d a condição d a m u lh e r, co m o sujeito d e d i reitos, o c o rre u d e form a m u ito lenta, a tra v é s d o s séculos que a n te c e d e ra m o p e río d o con tem p o rân eo . Foi so m e n te com a R evolução F rancesa q u e teve início n o v a fase no D ireito C o n s titucional - q u e é su b stra to d o s d e m a is ram o s d o d ire ito - com a d e c la raç ã o d a ig u a ld a d e e n tre os c id a d ã o s, m a s q u e n ã o m u d o u a c o n d ição su b a lte rn a d a m u lh e r. N o final d o século ^"PO U LAN TZA S, Nicos. 0 Estado, o Poder e o Socialismo. 3. ed. RJ: Graal, 1985, p. 33-34. MULHER: CÕDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL XIX os m o v im e n to s grevistas c o n q u ista ra m as p rim e ira s leis tra b a lh ista s, q u e aos p o u c o s foram e s te n d id a s às m ulheres. N o Brasil, os m o v im e n to s fem inistas d e d ire ito ao v o to c o m e ç a ra m a m ex er com as e s tru tu ra s sociais e jurídicas, e m b o ra so m e n te e m 1932 as m u lh e res o btivessem essa conquista. A p ro p ó sito , e m term os ideais, as p rev isõ e s legais d a atual C o n stitu içã o b rasileira são perfeitas. O art. 1° d iz q u e u m dos fu n d a m e n to s d o E stado dem ocrático d e d ire ito é a d ig n id a d e d a p esso a d e am b o s os sexos. Estabelece, ta m b é m , a ig u a ld a d e g enérica d e to d o s p e ra n te a lei no art. 5°, q u e é c o n firm a d a n o inciso p rim e iro , ao d isp o r q u e " h o m e n s e m u lh e re s são ig u ais e m d ireitos e obrigações". A ssim s e n d o , viu -se q u e a m u lh e r b rasileira m o v im e n ta -se e n tre d o is pólos d a legislação pátria: d e u m lad o , lhe ofere cem co n d içõ es perfeitas d e ig u a ld a d e e, d e o u tro , lh e é a c en a d o com o lado coativo d e u m C ódigo, q u e p a re c e a p e n a s lhe p re v e r sanções. D e fato, a m u lh e r brasileira, p rin c ip a lm e n te a d a s c a m a d a s sociais m e n o s favorecidas, te m sido, histo ric a m en te, a v ítim a favorita d o c onjunto d e o fensas à v id a , à s a ú de, à lib e rd a d e in d iv id u a l e à h o n ra, sob o ró tu lo d e "v io lê n cia dom éstica". D estarte, sob o regim e d e escravism o colonial, a s a lte rn a ti v as e ra m d u a s: s e n d o livre, a m u lh e r era e scra v iz a d a p o r u m a tra d içã o ju rídica q u e lh e negava a condição d e sujeito d e d i reito, o u to rg a n d o ao m a rid o p o d e re s d isc ip lin a re s. P orém , e n q u a n to " e s c ra v a " , a m u lh e r era liv re m e n te e sp a n c á v e l e violentável, pois n ã o h avia u m "C ó d ig o N e g ro " e, assim , o d ire ito p e n a l d o m éstic o n ã o p o ssu ía lim ites legais, c o m o a H istória b e m o d e m o n stra . A ssim , com a evolução histórica, o co rre u a d e n o m in a d a "libertação d o s e scravos", m as a posição d a m u lh e r em casa - 129 130 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA asilo inviolável - conform e d isp õ e a n o ssa C onstituição, n ã o se m o d ific o u m uito. De q u e serve a lg u é m d iz e r ''M y h o m e is m y caste]" se, a o p e n e tra r nela, encontra o seu a lg o z n o m e s m o quarto: o " p o d ero so chefão" dom éstico, com seu m achism o in te rn aliza d o , d isp o sto a discip lin ar a su a parceira. A o lado d a violência física o u sexual h á a in d a o u tra s for m a s d e a gressão contra a m u lh e r, q u e se m a n ifesta m c u ltu ra l m en te , d e s d e a d iscrim inação no c a m p o p rofissional, n o aces so às c arreiras, n as re sp o n sa b ilid ad e s fam iliares, n a e d u c aç ã o d o s filhos, na rep re sen ta ç ão política etc. Isso tu d o a p e sa r da ressa lta d a ig u a ld a d e constitucional e n tre os gêneros. N esse sen tid o , FRAGOSO: “A administração da justiça criminal constitui o mais dra mático aspecto da desigualdade da justiça, sendo nela pura mente formal e inteiramente ilusório o princípio da igualdade de todos perante a lei, dogma dos regimes democráticos. De masiadamente lenta, abstrata e insensível aos problemas hu manos e sociais que surgem no processo penal, e exercida, na maioria dos casos, através de um judiciário conservador e tra dicional, aferrado à dogmática jurídica e alheio às realidades sociais que condicionam a criminalidade" N ã o é d e m a is lem b rar que, d e v id o à p ró p ria form ação, te m o s u m a s o c ie d a d e c a ra c te riz a d a p e la d iv is ã o d e classes, e m b a s a d a em e x tre m a d e s ig u a ld a d e n a d istrib u iç ão d e b e n s e d e o p o r tu n id a d e s sociais. N esse tip o d e fo rm ação social o Di reito P enal p ro te g e , d e m o d o especial, os b en s ju ríd ic o s p r ó p rio s d a m in o ria d o m in a n te. A ssim com o o E stad o fracassou n a d istrib u iç ão d a re n d a , e com o a m á distrib u ição d a m esm a ^^A pud BATISTA, Nilo. Punidos e Mal Pagos, violência, justiça, segu ran ça p ú blica e direitos hum anos no Brasil hoje. RJ: Revan, 1990, p. 95. MULHER; CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL gera violência, esta se reflete n a s relações d o m ésticas. E ntão o E stado, q u e n ã o resolve o m ín im o d e ssa s q u e stõ e s d e Direito, afasta-se d a relação fam iliar, p r o p o n d o q u e a m e s m a seja p r i v a d a . O q u e se f o r m a , d e s s e m o d o , é u m a e s p é c i e d e neo liberalism o. D estarte, so m e n te com u m E stado q u e a s se g u re os direitos h u m a n o s d o s c id a d ã o s e c id a d ã s é q u e se to rn a p o ssível a tin gir-se a g a ra n tia d e iguais condições a tod o s, com o d e v id o rec o n h e c im e n to d a s d iferenças en tre h o m e n s e m u lh e re s n as relações d e gênero. F inalm ente, o q u e se p o d e afirm ar, s e g u ra m e n te , é q u e as m u lh e re s p a s sa ra m p o r u m m u ito m a u b o c a d o ao lo n g o d a história, e q u e u m a g ra n d e p e rc e n ta g e m d a p o p u la ç ã o m u n dial fem in in a co n tin u a p a s sa n d o , d a m e sm a form a, p e s sim a m en te. H á u m a lo n g a h istó ria d e preconceitos e d isc rim in a ções, q u e im p e d e m a m u lh e r d o acesso às o p o r tu n id a d e s d e realização pessoal. M u ito foi alcançado e d e v e se r c o m e m o ra do, m a s resta m u ito p o r fazer, p a ra q u e alterações ju ríd ic a s c o rre s p o n d a m a m u d a n ç a s d e fato, s e n d o n e c essá rio q u e se reg istre o g r a n d e d e sco m p a sso e n tre a n o rm a e a prática. P o r ú ltim o , e m u m a sociedade q u e deseje ser justa, a ig u a l d a d e e n tre h o m e n s e m u lh e re s d e v e ser o s e u fu n d a m e n to . P ara tan to , é necessário q u e leis e re a lid a d e sejam c o m p a tí veis, sem p reju ízo ao respeito às diferenças d e g ê n e ro e d o s d ife ren te s p a p é is q u e lh es cabe d e s e m p e n h a r e m sociedade. A ssim , so m e n te q u a n d o o D ireito exercer a s u a fu n ção d e p r o teger, d e form a igualitária fortes e fracos, ricos e pobres, h o m en s e m u lh e res - o n d e as n o rm as " favorecedoras" d a m u lh e r n ã o s e ja m a p e n a s u m a f o r m a c o m p e n s a t ó r i a p o r s u a s u b a lte rn id a d e - é que se p o d e rá d izer q u e o D ireito c u m p riu a sua finalidade, d e ix a n d o d e ser a p e n as u m D ireito d e papel. 131 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS A L EN C A R , José de. Lucíola. 11. ed. SP: Ática, 1 9 8 7 ,128p. ASSIS, José M aria M a c h a d o de. Helena. 11. ed. SP: Á tica, 1983, 130p. ASSIS, José M a ria M a ch a d o de. Dom Casmurro. 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São e x e m p lo s a s frases o u v id a s n o trâ n sito , q u a n d o d ia n te d e u m acid en te d e veículos, se escuta "Só p o d ia ser m u lh e r"; o u n a s v ezes e m q u e a m u lh e r é p ro m o v id a n a e m p re s a em q u e tra b a lh a e logo se escutam c o m e n tá rio s d e q u e ela com certeza d e v e ter d o rm id o com o p a trã o p a ra ter co n seg u id o essa p ro m o ç ã o , pois n ã o a c re d ita m na s u a c a p a c id a d e intelec tual; o u a in d a p ia d a s veicu lad as n a In te rn e t fala n d o d a p r i m eira m u lh e r n o espaço e logo e m s e g u id a m o s tr a n d o a im a 136 CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA gem d a m u lh e r e n c era n d o a n a v e espacial. E e n c o n tra m o s ta m b é m falas d e q u e o m u n d o é a m a ld iç o a d o p o rq u e Eva m o r d e u u m p e d a ç o d a m açã p ro ib id a e a ofereceu, e m se g u id a , a A d ã o , q u e a c o m e u ig u alm en te e foram , p o r isso, e x p u lso s d o p a ra ís o divino. P ercebem os, então, nessas falas q u e n a m u lh e r está a o ri g e m d a culpa, sendo-lhe im p o sta u m a situação d e d e p e n d ê n cia c o n tín u a e d e s u b o rd in a ç ão ao hom em . C o m o notou Vera Lúcia Vaccari (2001), ''u m d a d o interessan te é que hoje esse material, anteriorm ente veiculado até m esm o em pára-choques de caminhões, passa a ser repetido pela Internet, o q u e m ostra q u e o desenvolvim ento tecnológico n ã o está neces sariam ente e m com passo com o avanço d as idéias". M as an te s d e falarm os sobre as lu ta s e as c o n q u ista s d as m u lh e re s e m busca d e seus d ireitos e d e justiça, é im p o rta n te fazerm os u m b rev e p arên tese sobre os e stu d o s d e gênero, a v a lia n d o as relações e n tre os sexos, n ã o d o p o n to d e vista físico, m a s sim sobre u m a óptica histórica, social e cultural. G ênero seria assim u m elem ento constitutivo d e relações sociais fu n d a d a s sobre as diferenças percebidas e ntre os sexos; é u m a form a p rim ária d e d a r significado às relações de p o d e r, m as q u e e n globa conceitos d e raça, classe social, diferenças culturais... A p a rtir d e sse e stu d o , c o m p re e n d e m o s m elh o r q u e a d ife rença biológica en tre os sexos n ã o é c a p az d e explicar os " p a pé is" e c o m p o rta m e n to s d o m asculino e fem inino n a so c ie d a de. Tais " p a p é is " são frutos d e v alores m orais, c ulturais, reli giosos e científicos d e longos séculos que fizeram d a assim etria en tre os sexos u m a relação d e p o d e r d o m asc u lin o sobre o fem inino, q u e p e rp e tu a até hoje sob d iv ersa s form as, m esm o d e p o is d e a sse g u ra d a pela C onstituição a iso n o m ia e n tre os sexos, q u a n to aos direitos e obrigações. MULHERES'. U M A V ID A DE LUTAS E CO NQ UISTAS Essa d isc u ssã o sobre o gênero su rg e co n c o m ita n te m e n te aos m o v im e n to s fem inistas q u e se d e s p o n ta ra m n o cenário politico-cultural, s o b re tu d o a p a rtir d a d é c a d a d e 70. Esses m o v im e n to s e v id e n c iav a m o desejo a rd e n te p o r d ire ito s q u e leg itim assem a c id a d a n ia d a s m ulheres. Para isso, elas d e n u n c iav am to d a s as form as d e discrim inações e d e o p ressã o cul tu ra l c o n s tru íd a sobre elas ao longo d o s séculos. N a m e d id a q u e o rg an iz a v am estas reivindicações e p r o c u r a v a m d iv u lg a r Lima n o v a im a g e m femirvina, livre d o s tra d i cionais e stereó tip o s fem ininos, esses m o v im e n to s fem inistas tiv e ram u m a fu n d a m e n ta l im p o rtân cia n as m u d a n ç a s d o p a pel social n o país. D e sta fo rm a , e m m e a d o s d a d é c a d a d e 70, o fe m in is m o a p a r e c e u c o m o m o v im e n to social o r g a n iz a d o , e m m e io à d i ta d u r a m ilita r. Foi m a r c a d o p o r se c o lo c a r f re n te a o s h o m e n s , q u e s tio n a n d o a s u b v a lo riz a ç ã o d e te m a s d a esfera d o m é s tic a e m d e tr im e n to d e u m a u to p ia d e tra n s fo r m a ç ã o social e ta m b é m p e la rejeição q u a s e to ta l à fe m in ilid a d e . A ssim , e ra o f e m in is m o d a i g u a ld a d e , q u e p r e g a v a q u e p a ra se re m r e s p e ita d a s , p a r a d e m o n s tr a r e m a c a p a c id a d e p a r a o tra b a lh o e p a r a a m ilitâ n c ia p o lític a , as m u lh e r e s d e v e ria m in c o r p o r a r v a lo r e s m a s c u lin o s n o s e u m o d o d e p e n s a r , d e a g ir e d e tra b a lh a r. N o s a n o s 80, la rg a n d o a tim idez, as m u lh e re s e m m eio a u m p e río d o d e red em o cratização d a so cied ad e, lev a m p a ra a política a ssu n to s d a n te s c o n sid e rad o s a p e n a s pessoais, com o a se x u alid ad e , o corpo, a sa ú d e e a violência contra a m ulher. R esgatam tam b é m a fem inilidade, com to d a a su a beleza e força, b u s c a n d o a v alorização d o fem in in o c o m o diferen te d o m asculino, m a s n ã o com o inferior o u s u p e rio r a esse. O lema era lu ta r, m as ta m b é m a m a r e ser feliz. 138 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA N o s a n o s 90, a ig u a ld a d e form al - ig u a ld a d e d e to d o s p e ra n te a lei, g a ra n tid a pela C onstituição d e 1988 - n ã o signifi cou a ig u a ld a d e m aterial. As m u lh e re s c o n tin u a m até hoje re iv in d ic a n d o m elhorias n as relações sexistas, co m o o fim d as discrim in açõ es salariais, d o assédio sexual, d a violência c o n tra o sexo fem in in o e m u ita s o u tra s questões. D estarte, a té hoje, e m m eio a tantos d e b a te s sobre o g ênero e a ta n ta tecnologia e m eios d e inform ação, essa c u ltu ra d e h iera rq u iz a çã o d o s gêneros com a su b m issão e in fe rio rid a d e d a m u lh e r é a in d a re p ro d u z id a e m a n tid a d e d ife ren te s for m a s n a n o ssa sociedade, inclusive re p a ssa d a e m a n tid a pelas p ró p ria s m ulheres. C hauí (227) arrisca as seguintes hipóteses para compreendê-la: "em primeiro lugar, a repetição, no interior da casa, do que se passa na sociedade e na política como um todo, isto é, a privatização e pessoalização das formas de autoridade; em se gundo lugar, também a reiteração do mecanismo sócio-político de transformação da assimetria (no caso homem-mulher, pais -filhos, irmão-irmã) em hierarquia, a diferença sendo sim bolizada pelo mando e pela obediência; em terceiro lugar, a compensação pela falta de poder real no plano sócio-político, o machismo funcionando como racionalização, assim como a feminilidade ('atrás de todo homem, há uma grande mulher' indicando que há poder ou autoridade femininos que se exer cem sob a condição de serem dissimulados e ocultados pela obediência e pelo recato)”. P o rta n to , tal d iscussão sobre o g ên ero e sobre os m o v im e n tos fem inistas, ao verificar as experiências sociais d a s m u lh e res a b riu p o ssib ilid a d e s p a ra resg a tar a id e n tid a d e fem inina, liberta d o m u n d o m asculino, e p a ra p ro p o rc io n a r u m a visão MULHERES: UM A V ID A DE LUTAS E CONQUISTAS m ais clara d a s q u e stõ e s d a s m u lh e res, q u e ora tra z e m o s para debate. A p re s e n ta re m o s u m a r á p id a trajetória d a m u lh e r d o sécu lo XIX até a d a a tu a lid a d e , colocando e m d e b a te as p rincipais m u d a n ç a s q u e e n v o lv e ra m as m u lh e re s n a s três ú ltim a s d é cadas: a ed u cação , a sexualidade, o tra b a lh o e a violência. EDUCAÇÃO E CRIAÇÃO DAS MULHERES A injustiça com as m u lh e re s v in h a d o b erço , q u a n d o as m e n in a s e ra m e n sin a d a s a p e rm a n e c e re m n o e sp aç o d o m é s tico. A n a tu re z a fazia-nos m asculinos o u fem ininos, e as c ren ças e v alo res d e n o ssa c u ltu ra faziam -nos a e spécie d e h o m e n s e m u lh e re s q u e n o s to rn am o s. A m u lh e r n ã o nascia m ulher. M as to rn a v a -se m u lh e r à m e d id a q u e ia in c o rp o ra n d o os v a lores já criad o s p o r u m a sociedade. D este m o d o , as m e n in a s e ra m criadas d e s d e ce d o e m u m a m b ie n te m ach ista e o p resso r a p re n d e n d o a in d a p e q u e n a s as tarefas d o lar, com o a rru m a r a casa, c o z in h a r, b o r d a r , p in ta r e c o stu ra r, p a ra p o ste rio rm en te , q u a n d o se c asarem , sa b ere m v e la r c om zelo pela direção m aterial da casa. Percebem os essa preocupação até m esm o n as inocentes b rin cadeiras d e boneca e d e "casinha", em q u e n o ta m o s a intenção d e se e d u c ar as m en in a s p a ra com eçarem a in d a q u a n d o p e q u e n as a a p re n d e r a c u id ar d o s filhos e d o s afazeres d o lar. A s m u lh e re s e ra m o "sexo frágil" e d e v ia m se r carinhosas, am áv eis, c o m p re e n siv a s e "b o az in h a s". Q u a n to m ais tives sem esses d otes, m ais r á p id o c o n seg u iria m u m m a rid o , o q ue era d e ta m a n h a im portância, pois so m e n te a tra v é s d o casa m e n to e d a m a te rn id a d e tornar-se-iam p e sso a s realizadas. Aliás, a n tig a m e n te , p rin c ip alm en te n a s classes m ais ricas, o c a sa m e n to era a rra n ja d o pelos pais, e n tre fam ílias d e m e s CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA m a classe, co m o u m a form a d e p re s e rv a r o p a trim ô n io d a s fam ílias. À m u lh e r cabia so m en te aceitar o q u e lhe e ra im p o s to p e lo pai, m e s m o q u e contra a su a v o n tad e . A ú n ica form a e n c o n tra d a p a ra fugir d o c asam en to e ra ir p a ra u m c onvento, e lá v iv e ria m d e a co rd o com os prin cíp io s religiosos. A questão d a virgindade era acima de tu d o u m g ran d e tabu. A m oça que deixava de ser virgem antes d o casam ento era um a m u lh e r desonrada. N o livro O Cortiço, de Á lvaro d e Azevedo, que retratava as questões d as m assas u rb an as proletárias d o fi nal século XIX, m as que em bora tivessem grandes diferenças de hábitos e d e costum es d as classes burguesas d a época, percebe m os m uitos valores em com um q u a n d o se tratava d as m ulheres. N o ta m o s m u ito b e m nesse ro m a n c e a p re d o m in â n c ia d e v alo res m achistas, q u e v alo riza v a m a v irg in d a d e d a m u lh e r até as n ú p c ia s, q u a n d o a p e rso n a g e m M arciana, ao descobrir q u e su a filha estava g ráv id a d o caixeiro D o m in g o s disse ao p a trã o d o m o ço " ap ro v e ita d o r": "Venho entregar-te esta perdida! Seu caixeiro a cobriu, deve tomar conta dela!” E e ntão p e rg u n ta ao m oço; "Se não que ria casar pra que fe z mal?" Por esse diálogo, p o d e m o s n o ta r q u e a m u lh e r q u e deixava d e ser v irg e m a n te s d o c asam ento, p e rd ia , então, a su a h o n ra , a s u a inocência e p u rez a . P or ter d a d o esse ''m a u p a s s o ”, seria ag o ra u m a p e rd id a e arru in ad a . Por su a vez, aos h o m en s era associada u m a idéia totalm ente o p o s ta q u a n d o o a ssu n to era v irg in d a d e. A queles q u e p e rm a n eciam v irg en s até se casarem , e ra m m otivo d e chacotas po r p a rte d e am igos, fam iliares e vizinhos. E ram rid ic u la riz a d o s e cen su ra d o s. D igam os, a in d a, q u e a su a m a s c u lin id a d e era co locada e m d ú v id a . MULHERES: UM A VIDA DE LUTAS E CO NQ UISTAS C o m relação ao a d u lté rio , verificam os t a m b é m u m g ra n d e a b is m o d e c o m p o r ta m e n to s c o n s id e r a d o s n o r m a is e n tr e h o m e n s e m u lh e r e s . A o s p r im e iro s e ra p e r m i ti d o e x e rc e r li v r e m e n te a s u a s e x u a lid a d e , d e s d e q u e n ã o a m e a ç a s s e o p a tr im ô n io fam iliar, p o is su a s e x u a lid a d e e ra e x c e s s iv a m e n te e x ig en te. A q u a d rin h a abaixo releva com g ra n d e n itid e z a diferença d e c o n d u ta sexual e as reg ras c o m p o rta m e n ta is e n tre h o m en s e m ulheres: "Um homem com muitas mulheres é poligamia; uma mulher com muitos homens, é poliandria e um homem com apenas uma mulher é monotonia". D estarte, os h o m e n s d e s d e b e m jo vens e ra m in ce ntivados ao sexo e com isso c riav am u m p o n to p a ra d o x a l: d e v e ria e n tão h a v e r d o is g ru p o s d e m ulheres: u m d a s " co rreta s" e o o u tro d a s "p erv e rtid as" . O p rim e iro g ru p o seria d a s m u lh e re s q u e s e ria m " sa n ta s", as m ães e esp o sas, as ideais, que d e v e ria m p e rm a n e c e r v ir g en s até o c a sa m e n to e serem to ta lm e n te fiéis ao s ho m en s. M as h a v ia u m s e g u n d o g r u p o d e m u lh e re s q u e seriam c o n d e n a d a s ao "p ec a d o " . E ram as p ro stitu ta s e biscates, q u e servi ria m p a ra a satisfação d o s desejos d o h o m e m , lev a n d o -o s ao m u n d o d o s p razeres. Esse ú ltim o g r u p o e ra n e cessário sob o a rg u m e n to d e q u e p a ra se ter virgens casadoiras, fu tu ra s m ães, era preciso c o m p ro m e te r u m certo n ú m e r o d e m u lh e res. P e n s a m e n to inclusive m u ito c o m u m n a a tu a lid a d e , q u a n d o o u v im o s c o m e n tá rio s d e m en in o s q u e classificam a s m e n i n a s em "g alin h a s" , q u e são aquelas q u e " se rv e m " a p e n a s p a ra "c u rtir", a p ro v e ita r e p a ssa r o tem po, o u e m m e n in a s sérias, com q u e m q u e re m n a m o ra r e se casar. 142 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA A so c ie d a d e tam b é m en carav a d ife re n te m e n te as relações extraconjugais p a ra h o m e n s e m ulheres: à m u lh e r q u e m a n ti n h a u m a m a n te e ra m a trib u íd a s p a la v ra s em se n tid o d e p re c i ativ o e p reco n ceitu o so , com o " p ira n h a s " , " p u ta s " e "M aria B atalhão". Já aos h o m e n s q u e m a n tin h a m essa c o n d u ta , u tiliz a v a m se expressões q u e valorizavam su a c o n d u ta d e "m a c h o ", com o, p o r e xem plo, d e " d eso n e sto ", " m u lh e re n g o " , ou "insatisfeito com o c a sa m e n to " e m u ita s o u tra s expressões. O u tro aspecto q u e lev a n ta m o s d e n tro d a s relações fora d o c a sa m e n to é q u e os h o m e n s q u e e ra m q u e stio n a d o s pe la s suas m u lh e re s p e lo fato d e ter u m a am an te, rea g ia m à p e rg u n ta com violência física e se as ferissem n a d a sofreriam , p o is eles s e ria m c o n s id e ra d o s in im p u tá v e is, e s ta n d o e m " e s ta d o d e c o m p le ta p riv a ç ã o d e se n tid o s e d e inteligência". E só re a g i ra m p o rq u e as m u lh e re s não e sta v a m e n te n d e n d o su a s " fra q u e z as" d a carne. Im p o rta n te ta m b é m frisarm os q u e aos h o m e n s in cu m b ia o espaço p ú b lic o e a v id a política. A eles são a trib u íd a s as p a la v ras p o d e r, força, coragem , agre ssiv id a d e , d o m in a ç ã o e viril, c o n tra p o n d o -se aos adjetivos d itos fem ininos, q u a is sejam frá geis, invisíveis, passiv as, inferiores e d e p e n d en te s. O s h o m e n s d e v ia m e s tu d a r, dedicar-se às ciências, escre v e r o bras científicas e se g u ir carreira, pois u m d ia se ria m o chefe d a fam ília conjugal, necessitan d o a d m in istra r o p a tr i m ô n io e p ro v e r a su ste n taç ã o d a família. Seriam d e sta form a políticos, m édicos, engenheiros, a d v o g a d o , juizes e h o m e n s d e negócio, e n q u a n to as m u lh e re s c o n tin u a v a m e m casa. T odavia, o p rocesso histórico, com o início d o q u e s tio n a m e n to d a s m u lh e re s sobre suas condições sociais, e n c arreg o u se d e p ro v o c a r a lg u m a s m u d a n ç a s e as m u lh e re s p u d e r a m M ULHERES: U M A V ID A DE LUTAS E C O NQ UISTAS sair d o e sp aç o d o m éstic o e c o n q u ista ra m o d ire ito d e fre q ü e n ta r as escolas, até e n tã o u m d ireito exclusivo d o s hom ens. N ã o o b sta n te , p e rc e b e m o s q u e a E ducação, q u e p o d e ria ser u m a a rm a p r iv ile g ia d a d e lib e rta ç ã o d a c u ltu r a m a c h ista , c o n scie n tiz a n d o as m u lh e re s d a h ie ra rq u ia e n tre os sexos e d a n e c essid ad e d e se ro m p e r com esses vín cu lo s tradicionais, a p re s e n to u -s e resistente à m u d a n ç a d a o rd e m existente, aca b a n d o p o r re p r o d u z ir os m e sm o s v alo res arcaicos. E fácil o b se rv a rm o s q u e a e ducação n o s colégios fem ininos c o rro b o rav a com esse e n te n d im e n to q u a n d o trazia currículos d ife re n c ia d o s d a s escolas m ascu lin as, le v a n d o às m u lh e re s a u la s d e religião, canto, m úsica, culinária, e co n o m ia d o m é s ti ca, co stu ra, etiq u eta e sim ilares, q u e refo rça v a m os a trib u to s ditos fem ininos, e p ro d u z ia m m u lh e res " p re n d a d a s " , q u e c o n tin u a v a m c o n fe rin d o a m áx im a estim a social. E n c o n tra m o s facilm en te essa p re o c u p a ç ã o e m m a n te r o m o d e lo v ig en te d e fam ília q u a n d o a n a lisam o s u m a in stitu i ção e d u c ac io n a l d a c id a d e d e U beraba, n o in terio r m in eiro , o c o lé g io N o s s a S e n h o r a d a s D o r e s , f u n d a d o p e la s I rm ã s D o m in ican as, em 1885, q u e se d e d ic o u à e d u c aç ã o exclusiva m e n te fem inina, d e sd e su a fundação, até 1973, q u a n d o p e r m itiu q u e m e n in o s freq ü en tassem o colégio. U m jornal local, a Gazeta de Uberaba, no a n o d e 1901, trazia a se g u in te re p o rta g e m sobre a instituição: "Tem por fim este coUegio a formação de boas mães de família, e de criadas ou servas que possão vantajosamente substituir as escravas. Receberá pois o coUegio meninas das famílias ri cas, orphã e ingênuas no internato e externato, em divisões bem distintas. Objecto de uma solicita e sempre maternal vigilancia, as educandas estarão constantemente sob as vistas 144 CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA de suas mestras, presidiado estas a seus trabalhos escolásticos e manuaes como as suas refeições, recreios, etc. A s professoras querendo dar a suas alumnas uma educação esmerada e com pleta terão particular cuidado de infundir-lhes o espirito de ordem e de economia tão necessário a uma senhora, seja qual fo r sua condição na sociedade. Para este fim , pede-se o apoio dos paes, que tão facilmente podem auxiliar as irmãs a comba ter 0 luxo desordenado, que tantos males causa as famílias." MULHERES OBJETO A os p o u c o s as m u lh e res foram c o n q u is ta n d o m a io r e s p a ço n o ensino, n ã o só m édio, m as tam b é m sup erio r. P rim e ira m e n te in g re s s a v a m n a s L etras e P e d a g o g ia , n a P sicolog ia, n a s C iências C o n tá v e is, n a E n fe rm a g em . E ram e n tã o a m inoria. C o n tu d o , hoje, n o ta m o s q u e a m aio ria d as salas d e aula, q u e r seja d e e n sino m é d io o u d a s u n iv e rs id a des, estão rep le ta s d e m ulheres, q u e se d e sta c a m n ã o so m e n te n a q u a n tid a d e , m as p rin c ip alm en te p ela s u a c a p a c id a d e in te lectual e pela s u a garra. A té m e sm o e m c ursos s u p e rio re s c o n sid e ra d o s tip ic a m e n te m asculinos, com o as e n g e n h arias e ciências d a c o m p u ta ção, e n c o n tra m o s forte prese n ç a d o sexo fem inino, e m b o ra a in d a é c o m u m o u v irm o s q u e elas estão lá à p ro c u ra d e u m m a rid o o u q u e são u n s ''c a n h õ es", u m a s "m ach as". A liás, a in d a é r e in a n te o p re c o n c e ito q u a n to às m u lh e r e s in te lig e n te s e d e d e s ta q u e n a p o lític a e n a s o c ie d a d e . E xiste u m falso im a g in á rio d e q u e e ssa s m u lh e r e s d e v a m s e r feias, g o r d a s e te r v e rr u g a s , p o is o ta le n to in te le c tu a l p a r a as m u lh e r e s é in v e r s a m e n te p r o p o rc io n a l à b o a a p a rê n c ia física. M ULHERES: UMA VIDA DE LUTAS E CONQUISTAS P ara c o m p e n s a re m essa falta d e a trib u to s físicos e o in su cesso d e n ã o a rra n ja re m m arido, as "m u lh e re s-fe ia s" c o n q u is ta ra m e sp aço pelo e n o rm e esforço intelectual. Já às m u lh e re s sensíveis, frágeis e " b u rrin h a s " , é a trib u íd o u m belo corpo, e sc u lp id o p e lo s deuses. A p ró p ria im a g e m d a "loira b u rra " , tão típica e m nossa sociedade, é o exato retrato dessa cultura, q u e p re g a u m a idéia d e m u lh e re s fúteis e superficiais. É im possível e n co n trarm o s u m in d iv íd u o - e aqui frisam os q u e tra ta m o s p o r in d iv íd u o a m b o s os sexos - q u e n ã o te n h a n a p o n ta d a lín g u a u m a p ia d a e m referência a elas o u q u e n o m ín im o já te n h a e s c u ta d o c en te n a s d e ironias nesse sentido. A n o s s a s o c ie d a d e exige, d e ssa form a, u m a im a g e m da m u lh e r bela e e te rn a m e n te jovem. Basta o lh a r p a ra a televi são, p a ra as revistas e p a ra os jornais. São im a g e n s d e m u lh e res m a g ra s, m a lh a d a s, o u m elhor, ''b o a z u d a s " , m aq u ila d a s, s e m in u a s, n a flor d a ju v e n tu d e , q u e fazem p ro p a g a n d a s de carros, d e cigarros, d e v e stu á rio e cosm éticos, asso ciad as s e m p re a idéias d e objeto sexual. E visualizam os facilm ente o preconceito descarado: as p ro p a g a n d a s d e veículo geralm ente apre se n ta m cenas n a s quais os h o m e n s q u e têm u m d e te rm in a d o carro, têm p o d e r, e po r isso c o nquistam e se d u ze m quaisquer m ulheres. D ão essas im a g e n s a im p ressão d e m u lh e res "gasolinas" e interesseiras, que se arra sta m pelos h o m e n s q u e d etêm m aior p o d e r econômico. D e v e m o s frisar a in d a q u e p a ra m a n te r esse e s te reó tip o exi g id o p e la m íd ia e pela sociedade, as m u lh e re s p a s sa m p o r to r tu ra s d iárias d e regim e p a ra e m agrecer, s u b m e te m -s e a c iru r gias plásticas, e à lip o asp iração , colocam silicones, aplicam bo to x p a ra r e d u z ir as ru g as, tin g e m os cabelos b ra n c o s e fa z e m b r o n z e a m e n to artificial. 146 CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA T u d o isso p o rq u e os m eios d e com unicação p re g a m q u e a v id a só vale a p e n a q u a n d o a m u lh e r é jovem e m ag ra . A ssim , as m u lh e re s ao co m p le ta re m 30 anos já se se n te m v e lh a s d e m ais e com to d a essa p reo c u p a ç ã o e m ficar e te rn a m e n te jo v e m e e m "se c o n serv a r", a cabam n ã o g o z a n d o e d e s fru ta n d o d a s u a m a tu rid a d e . C o m o assin alo u M ayra C orrêa e C astro (pág. 121): "Além da magreza, outra neurose da ciilfura de massas é a beleza fem inina. A grande maioria dos produtos que sofrem publicidade são produtos de beleza ou vestuário”. A cultura de massas quer a mulher eternamente jovem e bela. Tal como as gordas e as velhas, as feias são eliminadas dos circuitos eletrônicos. Por isso, a indústria de produtos de beleza, a cosmetologia médica, a cirurgia plástica, perucas... Tudo isso tudo está tornando a beleza acessível às mulheres, ao menos da classe média”. O s h o m e n s , ao contrário, n ã o b u sc a m o elixir d a e te rn a ju v e n tu d e , n e m se p re o c u p a m com a id ad e, com o as m u lh e re s e n e m p re c isa m c u id a r d e seu c o rp o físico. E n v e lh ec e m com d ig n id a d e . A " b a rrig u in h a " é sinal d e q u e s u a esp o sa está c u id a n d o m u ito b e m dele, ou, n o m ín im o , d e v e m ser os copos de cerveja. O s cabelos bran co s são charm osos, as ru g a s sinal d e m a tu r id a d e e até a careca é c o n q u istad o ra. N o tam o s então que existe u m a cultura d a m ulher-objeto, que preserva sua aparência física em detrim ento d a capacidade inte lectual. O corpo fem inino é subm etido pela m ídia a u m processo brutal d e coisifícação e comercialização, consistente e m exibir o corpo, com o form a d e v en d er os m ais variados produtos. V em e n tã o u m a cultura d a " b u n d a " e d e u m b elo rosto, q u e em certos m o m e n to s p a re c e m se c o n fu n d ir com a p r ó p ria MULHERES: UM A VIDA DE LUTAS E CONQUISTAS pessoa. A ssim , e n q u a n to os h o m e n s são u m ro sto com um corpo, u m to d o físico, as m u lh e res, m u ito p e lo c o n trário , são u m c o rp o (e p rin c ip a lm e n te u m a n á d e g a b e m saliente, m e s m o q u e p a ra isso te n h a q u e recorrer ao silicone) e u m rosto. Então, o q u e e n te n d e m o s é q u e o c o rp o d a m u lh e r co n ti n u a escravizado. M as e n q u a n to d a n te s seu c o rp o era p e rte n cen te ao m arid o , ag o ra essa e scrav id ão se releva sob o u tra for m a: 0 c o rp o d a m u lh e r c o m o e scravo e su b m isso ao s p a d rõ e s d e b e le z a d ita d o s pela m ídia. 0 DIREITO À SEXUALIDADE U m g ra n d e m a rc o d o século XIX e q u e c o n trib u iu im e n su r a v e l m e n t e p a r a a e m a n c i p a ç ã o d a s m u l h e r e s foi o s c o n traceptivos. A p a rtir d e então, elas p a s s a ra m a p o d e r d o m in a r seu p ró p rio corpo, s e p a ra n d o assim a s e x u a lid a d e d a procriação. Ter o u n ã o filhos e q u a n d o ter, p a s s o u a se r u m a escolha q u e p ossibilitou a elas a m a r s em m e d o d e u m a g ra v i d e z indesejada. C o m isso elas p a s sa ra m a ter d ire ito d e ter desejo e p ra z e res, p a s s a ra m a ser livres p a ra escolher s e u p a rc e iro e p a ra co n h e ce re m seu corpo. N esse contexto d a sex u alid ad e, os m o v im e n to s fem inistas tiv e ram u m g r a n d e destaq u e. Eles colocavam em d e b a te o p la n e ja m e n to fam iliar e p ro m o v ia m c a m p a n h a s so b re os m é to d o s co n tra c ep tiv o s, c o n scie n tiz a n d o as m u lh e re s p a ra que, ju n ta m e n te c o m s e u s c o m p a n h e iro s , p u d e s s e m d e c id ir d e m a n e ira livre e consciente a opção d e te re m filhos o u q u a l o m o m e n to a d e q u a d o p a ra tê-los. C o n tu d o , a in d a hoje, e n c o n tra m o s m u ita s m u lh e re s com u m a g ra v id e z indesejada, pois o sexo a in d a é u m ta b u e n ã o é 148 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO OE JUSüÇA falad o a b e rta m e n te , a p e sa r d e to d a a exposição d a m ídia. Isso sem falar q u e , m u ita s vezes, as m u lh e re s n ã o têm acesso a serviços d e q u a lid a d e em contracepção, co m o os a n tic o n c e p cionais e os preservativos. P o r o u tro lad o , a s a ú d e d a m u lh e r ta m b é m p a ssa a ser in te n s a m e n te d e b a tid a ju n to com a sex u alid ad e. Ju n to com o E stado, o m o v im e n to fem inista p ro m o v e a v a n ço s n a s a ú d e fem inina. N a d é c a d a d e 90, p o r exem plo, intensificou-se a luta n o c o m b a te ao câncer d e m am a. D esd e então, p e sso a s fa m o s a s e c o m u n s v ã o à m íd ia p r e s t a r e m s e u d e p o i m e n t o e co n scie n tiz a r as m u lh e re s d e se fazer p re v e n tiv a m e n te u m e x a m e m éd ic o , ao m e n o s u m a v ez p o r ano, e d e fazer m e n s a l m e n te o to q u e d e m am a. P ro m o v e m tam b é m c a m p a n h a s d e c o m b a te e p re v e n ç ã o ao câncer n o cólo d o ú te ro (HPV) e o u tra s d o e n ç a s sexual m e n te tra n sm issív e is (DSTs), com o a AIDS, a sífilis e m u ita s o u tra s , p a ra a s se g u ra r a s a ú d e d a s m u lh e res. A c a m isin h a torn a -se re q u is ito o b rig a tó rio n a lu ta c o n tra essa s d o e n ç as. A m íd ia tem nesse m o m e n to u m im p o rta n te p a p e l p r e g a n d o q u e as m u lh e re s d e v e m n ã o a p e n a s se p rec a v e r c o n tra a g rav id e z , m a s ta m b é m c o n tra as DSTs. C u ltiv a m a idéia d e q u e as m u lh e res, m e s m o as casadas, d e v e m exigir d e seus c o m p a n h e iro s q u e u tiliz e m a cam isi n h a , re v e la n d o d e p o im e n to s d e m u lh e res c a sa d a s e fiéis q u e c o n tra íra m AIDS d e seus m aridos. S u rg e a in d a n o final d a d é c a d a d e 90 a c a m isin h a fem ini n a , d a n d o m a io r a u to n o m ia às m u lh e res, q u e p o d e m a g o ra se p re c a v e r c o n tra as DSTs, a tra v é s d a utilização d e ste recu rso q u a n d o seus c o m p a n h e iro s n ã o q u ise re m u s a r a m asculina. E n tre ta n to , a cam isinha fem inina, além d e ser u m p o u c o m ais c o m p lica d a d e m a n u s e a r q u e a m ascu lin a, é d ific ilm e n MULHERES: UM A VIDA DE LUTAS E CONQUISTAS te e n c o n tra d a n o m erc a d o , e q u a n d o d isp o n ív e l o p reço é b e m s u p e rio r à m asculina. A d e m a is, e m b o ra sejam a m p lo s os p r o g ra m a s e as c a m p a n h a s d e assistência à sa ú d e d a m ulher, as v ag as e os a te n d i m e n to s n o s ho sp itais são lim itados e precários, to rn a n d o -se u rg en te a construção d e espaços nos quais a m u lh e r tenha acesso p a ra colocar as suas n ecessidades n o tocante à su a saúde. 0 MERCADO DE TRABALHO T a m a n h o era a resistência em se q u e b ra r os v ín cu lo s tra d i cionais, q u e o tra b a lh o d a s m u lh e re s fora d e casa era, a p rin c í p io, v isto com o u m m o m e n to transitório, a té a realização d o c a sa m e n to , o u então, p a ra as m u lh e re s q u e ficassem solteiras o u viúvas. R einava a in d a a idéia d e q u e a fu n çã o p rin c ip a l d a m u lh e r n a so c ie d a d e é se r m ãe, esposa e e d u c a d o ra , d a n d o a im p re s são d e ser essa função u m privilégio, e q u e , p o r isso, e s tu d a r e tra b a lh a r e ra m desnecessários. M as a o s p o u c o s h o u v e u m s u rp re e n d e n te a u m e n to d o n ú m ero d e m u lh e res q u e se d ed icav am às a tiv id a d e s fora d e casa. Esse fato foi re s u lta d o n ã o a p e n a s d a e m a n c ip aç ã o fem inina, m a s ta m b é m c onseqüência d a crise e conôm ica q u e as o b rig a ra m a c o m p le ta r a re n d a salarial d a família. C o m isso, a m u lh e r infiltrou-se n o te rritó rio m asc u lin o , p a s s o u a d e s e m p e n h a r funções antes d ita s d e m a c h o e hoje são u m a g r a n d e m ão -d e -o b ra n o m e rc a d o d e tra b a lh o . O s h o m e n s d e ix a ra m assim d e ser os ú n icos p ro v e d o re s fin a n ceiros d o la r e p a s sa ra m a c o n tar c om a a ju d a d a s m ulheres. A d v e io d a í u m g ra n d e p ro b le m a p a ra a m aio ria d a s m u lheres; a d u p la jo rn a d a d e trabalho, d e n tro e fora d e casa. A s 150 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA sim , m e s m o in g re s s a n d o n o m erc a d o d e tra b a lh o , as m u lh e res c o n tin u a ra m resp o n sá v e is p elo c u id a d o com a casa, com os filhos, le v a n ta n d o cinco d a m a n h ã p a ra d eix ar o alm oço p r e p a r a d o p a ra a fam ília, an te s d e ir p a ra o tra b a lh o e la v a n d o r o u p a s até altas h o ra s d a m a d ru g a d a . T u d o isso, p o rq u e n ã o h o u v e u m a socialização d o trabalho dom éstico, d e form a que ho m en s e m ulheres p artilhassem eqüitativ am en te as ativ id ad es d e casa e o c u id ad o com os filhos, ou seja, q u e pa ssa sse m a arcar com as m esm a s o p o rtu n id a d e s e responsabilidades. É certo q u e alguns m arid o s e filhos p a ssa ra m a a ju d ar n as tarefas dom ésticas, m as isso ocorria n a m in o ria d a s vezes o u em níveis n e m u m pou co satisfatórios. D essa form a, o tra b a lh o q u e seria a ''lib e rta ç ã o " d a s m u lheres, n a v e rd a d e , a p e n as as o p rim iu m ais, p o rq u e agora, além d a s exigências d om ésticas, a in d a têm q u e c o n trib u ir com o su s te n to d a casa, in g re ssa n d o no m e rc a d o d e trabalho. N e sse se n tid o M a rg a re th Rago (pág. 42) p e rc e b e u q u e "As mulheres têm denunciado o alto custo cjue elas pagam por competir no espaço dos homens: Enquanto estes contam, de certo modo, com uma infra-estrutura de apoio, seja fin a n ceira, seja apenas psicológica, para competir no mercado de trabalho, as mulheres devem provar duas vezes mais do que são capazes, além de continuar a desempenhar as funções de mãe e de rainha do lar, exigidas tanto pelos maridos, quanto pelos filhos e familiares". A lém d a d u p la jo rn a d a d e trabalho, p e rc e b e m o s ta m b é m m u ita s o u tra s discrim inações c o n tra as m u lh e re s n o m ercado. Basta o b s e rv a r q u e n a m aio ria d o s setores d e a tiv id a d e , as m u lh e re s têm u m a p rese n ç a o u m u ito acim a o u m u ito abaixo d a s u a taxa d e p a rticip a ç ão n a p o p u la ç ã o o c u p a d a. MULHERES'. U M A VIDA, OE LUTAS E CO NQ UISTAS E m o u tra s p a la v ra s, e m b o ra as m u lh e re s ex erçam a tu a l m en te m u ita s profissões que antes eram exclusivas d e hom ens, a in d a existe a crença d e q u e a lg u n s e m p re g o s são d e m u lh e res e o u tro s d e ho m en s. A ssim , p o r exem plo, e n c o n tra m o s m u lh e re s c arteiras e c o b ra d o ra s d e ô n ib u s, m a s é raro en c o n tra r a lg u m a m u lh e r m o to rista d e ô n ib u s o u d e táxi, o u até m e s m o eng en h eira. A o m esm o tem po, é difícil e n c o n tra rm o s h o m e n s recepcionistas o u secretários d e u m a e m p re sa. O u tra g ra n d e discrim inação q u e n o ta m o s é a diferença s a larial e n tre os sexos. A s m u lh e res g a n h a m e m m é d ia o e q u i v a le n te a 64% d o salário d o s h o m e n s no Brasil, p o r m esm a s fun ções d e s e m p e n h a d a s . Em geral, e n q u a n to m aio r a escolaridad e, m a io r a d ife re n ça salarial e n tre h o m e n s e m u lh e res n a m e sm a o cupação. U m d a d o im p o rta n te é q u e as m u lh e re s estã o e m o c u p a çõ e s m ais relacionadas à repetição d e m ovim entos diários. C om isso, elas são as m aio res v ítim a s d e LER (lesão p o r esforços repetitivos). A lém disso, a p ro x im a d a m e n te 40% d a força d e tra b a lh o fem in in o n o Brasil está no p ó lo m en o s q ualificado e d e m e n o r re n d a , c om o faxineira, a ju d a n te d e serviços g erais e sim ilares. Isso, sem falar d o g ra n d e n ú m e ro d e m u lh e re s que, e m v irtu d e d a escassez d e e m p re g o s e d a n e c essid ad e d e o b te r re c u r sos e conôm icos p a ra a família, lançam -se p a ra a e co n o m ia in form al, d e s e m p e n h a n d o a tiv id ad e s d e e m p re g a d a s d o m é s ti cas, lav a d e ira s, pa ssa d e ira s, v e n d e d o ra s e fa z e d o ra s d e d o ces, biscoitos, refeições e salgados. T odo esse esforço e m troca d e u m a p e q u e n a rem uneração. Fora isso, u m a d a s m aiores injustiças está n o fato d e q u e as e m p re g a d a s do m ésticas n ã o têm g a ra n tid a a to ta lid a d e dos d ire ito s tra b a lh ista s e as d e m a is tra b a lh a d o ra s q u e c o m p õ e m a e c o n o m ia in fo rm a l n ã o têm q u a lq u e r a m p a r o legal. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA M u ito p elo contrário, essas ú ltim a s tra b a lh a d o ra s, q u e são e m p u r r a d a s a essa form a d e tra b a lh o p o r falta d e políticas p ú b lic a s q u e n ã o g e ra m em pregos, são tid a s co m o v e rd a d e i ras crim inosas, p o r serem s o n e g ad o ra s d e trib u to d e v id o ao Estado. O u tro grave problem a que as m u lh e res en co n tram q u a n d o deb atem o s sobre o m erc a d o d e trabalho é o local o n d e v ã o d e i xar seus filhos e n q u a n to trabalham . Sabem os q u e o n ú m e ro d e creches é b e m re d u z id o e n em se m p re a s m ãe s en co n tram v a gas n a s escolas públicas p a ra m atricularem seus filhos. D iante d a inércia d o E stado e d o preco n ceito d a s e m p re sa s q u e n ã o oferecem creches, a solução e n c o n tra d a é q u e o s fi lhos m aio res c u id e m d o s m enores, e n q u a n to as m ã e s v ã o à luta, o u e n tã o q u e as m u lh e res q u e tra b a lh a m in fo rm a lm e n te lev em consigo os filhos p a ra a ju d a r n a v e n d a d a s q u itu te s. P o rta n to , é in d u b itá v el q u e as m u lh e re s o c u p a m hoje u m a g ra n d e p osição n o m erc a d o d e trabalho. M as essa c onquista, n ã o é a in d a sin ô n im o d e ig u a ld a d e e h á m u ito p a ra ser feito p a ra se c h e g ar à p le n itu d e d e seus direitos. A VIDA POLÍTICA E m b o ra as m u lh e re s estejam c o m e m o ra n d o se te n ta anos d e co n q u ista d e d ireito ao voto, assistim os a in d a a u m a p e r v e rsa exclusão d a s m u lh e re s n a esfera política. São a té hoje p o u c a s as m u lh e re s q u e o c u p a m cargos políticos, seja n o s p a r tidos, seja n o governo. N o C o n g resso N acional, p o r e xem plo, a b a n c a d a fem inista rep re sen ta a p e n as seis p o r c ento d o total d o s in te g ra n te s d a Casa. C o n tu d o , a p e sa r d e serem e m u m n ú m e ro p e q u e n o , são as m u lh e re s q u e ao colocarem em d e b a te e re a lid a d e c o tid ian a e m q u e v iv em , colocam em xeque os p ro b le m a s sócio-econô- MULHERES: UMA VID A DE LUTAS E CONQUISTAS m icos d o país, d e n u n c ia n d o a falta d e creches, d e escolas p ú blicas, d a s c ondições d e trabalho, a m á d istrib u iç ão d e re n d a , o salário m e n o r q u e o d o s h o m en s, o a u m e n to d a cesta básica e m u ita s o u tra s questões. D estarte, n a esfera política, a crítica fem in in a p r o m o v e u u m a m u d a n ç a d o e n fo q u e d a concepção política tradicional, in c o rp o ra n d o a esse m eio tem as an te s n ã o d e b a tid o s pelos h o m e n s, p o is p e rte n c ia m a u m u n iv e rs o fem in in o , q u e até aq u e le m o m e n to e ra m colocados à m a rg e m d o sistem a. E ntretan to , com o as m u lh e res n ã o estão a in d a re p re s e n ta d a s em u m n ú m e ro considerável n as instâncias, "as mulheres e os trabalhadores não podem ser senão cidadãos de segunda classe enqnanto estas instituições continuarem a definir e estruturar nossa política". Com a pequena represen tação, "na melhor das hipóteses, os cidadãos têm a opção de votar ou não, mas Inós mulheres] temos um papel pequeno na definição ou estruturação daquilo que será votado ou no con sentimento ao regime enquanto tal". (M artha A ckelsberg, pág. 255) N o â m b ito político, d e v e m o s ta m b é m le m b ra r a g ra n d e p a rticip a ç ão a tiva d e m u lh e re s n o s m o v im e n to s p o p u la re s . A m aio ria d e se u s com p o n en tes, em geral, é d o sexo fem inino, te n d o n ã o ra ra s v ezes líderes m ulheres. Esses m o v im e n to s a s su m e m u m p a p e l f u n d a m e n ta l n a cri ação d e n o v a s form as d e sociabilidade e m u d a n ç a s n a esfera p riv a d a , a p a rtir d o m o m e n to em q u e as m u lh e re s p a rtic ip a n tes d o m o v im e n to q u e b ra m a rotina d o m éstica e p a s s a m a se relacio n ar com o u tro s in d iv íd u o s, a p re n d e m a falar e m p ú b li co e lu ta m pela q u a lid a d e d e v id a d e seus filhos e d e toda a c o m u n id a d e . 154 CIDADANIA OA MULHER, UMA QUESTÃO OE JUSTIÇA VIOLÊNCIA CONTRA A S MULHERES C o n tu d o , e m b o r a te n h a m o s a v a n ç a d o m u ito n o p la n o n o rm a tiv o e n o d e b a te público, são m u ita s a in d a as b a rre ira s q u e as m u lh e re s en fre n ta m e d e v e m d e n u n c ia r, p rin c ip a lm e n te q u a n to à violência, q u e r seja e stru tu ra l, q u e r seja d e c o rre n te d e su a condição d e gênero, q u e a in d a sofrem. A violência contra a m u lh e r, fruto d e u m a co n d ição geral d e s u b o r d in a ç ã o , o u seja, d e u m a o r d e m n o r m a t iv a q u e h ie ra rq u iz a p a p é is e p a d rõ e s d e c o m p o rta m e n to p a ra os se xos, vem s e n d o d e n u n c ia d a d e sd e o início d a d é c a d a d e 1980, p o r g r u p o s fem inistas e v e m se n d o b a sta n te d isc u tid a nessas ú ltim a s décadas. O p r ó p rio fato d a s m u lh e res serem e x p re ssã o d a d o m in a ção m asc u lin a , p o r serem seres q u e existiam p a ra os h o m en s, c o n trib u ía m p a r a legitim ar a violência d o s h o m e n s c o n tra as m u lh e res. M as os m o v im e n to s fem inistas v ie ra m d e s tru ir esse p e n s a m e n to . C h a u í (1985), ao p e sq u isa r sobre o tem a d istin g u e os c o n ceitos d e violência e d e relações d e força e e n tre e stes e o c o n ceito d e p o d e r. E n te n d e q u e a violência é u m a d a s fo rm a s d as relações d e força e am b o s im plicam o desejo d e m a n d o e a o p re ssã o d e u m se g m e n to social sobre outro. E ntretan to , n a relação d e força, deseja-se an iq u ilar-se e n q u a n to relação p e la de stru iç ã o d e u m a d a s p a rte s e, n a v io lência, m a n té m -se a relação d e m a n d o e a sujeição, m e d ia n te u m p rocesso d e interiorização p e la p a rte d o m in a d a d a s v o n ta d e s e ações d a p a rte dom in an te. P o r cau sa d e s se processo, m u ita s v ezes as m u lh e re s se s e n tem c oagidas a se su b m e te re m ao h o m e m , se n d o u s a d a s p e r v e rs a m e n te p elo m a rid o com o objeto sexual, a servi-lo com seu c o rp o q u a n d o ele b e m quiser. MULHERES: UM A VIDA DE LUTAS E CONQUISTAS M as as m u lh e re s p a s sa ra m a c o n tar com o S.O-S. M ULHER, e n tid a d e d e a p o io e conscientização, q u e oferece orientação ju rídica e psicológica às m u lh e res vítim as d a violência. C om isso a u m e n to u o n ú m e ro d e d e n ú n c ia s d e violência d o m é s ti ca, e x p re s s a d a s d a s m ais d iv e rs a s form as: e s p a n c a m e n to s , to rtu ra s e a m eaças d e m orte. Esse tem a , a n te rio rm e n te tid o c om o p a rtic u la r, g a n h a e n tão u m a d im e n s ã o p ú b lica e o E stado p a s sa a p u n ir o s que c o m e te m violência contra a m u lh e r e isso é f u n d a m e n ta l p a ra a c o n s tr u ç ã o d e u m a n o v a s o c ie d a d e , p o is as m u lh e r e s a g re d id a s, ao a p re se n ta re m suas queixas co lab o ram p a ra a sua c o n stituição e su a id e n tid a d e fem inina, q u e b ra n d o os p a p é is tradicionais, cheios d e equívocos e preconceitos. U rg e ta m b é m a ssinalar q u e o assédio sexual, p a s s a n d o a ser c o n sid e ra d o crim e n o início de ste século, p u n in d o h o m e n s e tu te la n d o in ú m e ra s m u lh e res c o n stra n g id a s à p rática d e atos sexuais, m e d ia n te g rav e am eaça o u p o r m eio d e p a la v ra s ou gestos, é m ais u m a conquista na luta pelos d ire ito s d a m u lh e r e m ais u m a e x p re ssã o d a su a cidadania. O ORDENAMENTO JURÍDICO A C o n stitu içã o d e 1988, ao g a ra n tir a m e s m a iso n o m ia em d ire ito s e obrigações p a ra h o m e n s e m u lh e re s , a p e n a s veio reg istra r to d o o cenário d e d é c a d a s d e lu ta s p e la s q u a is as m u lh e re s b a ta lh a v am . O h o m e m d e ix o u d e ser c o n sid e ra d o o chefe e re p re s e n tan te legal d a fam ília e o único resp o n sá v e l p o r seu sustento. M as, c om o já e xpom os, a p e sa r d a s g r a n d e s c o n q u ista s q u e as m u lh e r e s a lç a ra m n a s ú ltim a s d é c a d a s , e ssa ig u a ld a d e no o r d e n a m e n to ju ríd ico n ã o se efetivou até hoje. 156 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA C o n tu d o , n ã o p o d e m o s deixar d e m en c io n a r e festejar as p rin c ip a is c o n q u ista s d a s m u lh e res n o ú ltim o século. C o m o d isse m o s an te rio rm en te , a existência d a fam ília es tav a c o n d ic io n a d a à leg itim id a d e q u e d e riv a v a a p e n a s d o ca sam en to . A legislação c onstitucional d e 1988 veio te n ta r r o m p e r com o c o n serv a d o rism o d o início d o século XX e a d a p ta rse à re a lid a d e fática brasileira, rec o n h e c e n d o a u n iã o estável e n tre o h o m e m e a m u lh e r c om o e n tid a d e fam iliar, a q u a l foi d e v id a m e n te in c o rp o ra d a ao N o v o C ó d ig o Civil d e 2003. F oram , e n tã o , tu te la d a s as u n iõ e s e stá v e is p a r t i n d o d a s m e s m a s re g ra s d o ca sa m e n to . C o m isso fo ra m b e n e fic ia d a s m ilh a re s d e c o n c u b in a s, q u e v iú v as, d e p o is d e v iv e re m m ais de v in te a n o s c o m s e u s m a rid o s, n ã o tin h a m d ire ito a o s b e n s s im p le s m e n te p o r q u e fu g ia m à c o n v e n ç ã o d o in s titu to do ca sa m e n to . C o n fo rm e p ro n u n c io u R icardo P e n tea d o d e F reitas Borges e C a e ta n o L agrasta N e to e m artigo p u b lic a d o n a Revista d a A ssociação d o s M a g istra d o s Brasileiros (ano I, fevereiro d e 1990), '‘Dizem eles que uma nova feição da família fo i introduzida no nosso ordenamento jurídico pela Constituição de 1988. Com isto, casamento e concubinato devem ser tratados como iguais pelo Estado, padecendo de inconstitucionalidade o tra tamento diferenciado das duas últimas situações cujas dis soluções devem ser processadas nas mesmas condições, ou seja, no juízo de família". Aliás, o p ró p rio term o concubina foi su b s titu íd o p o r c o m p a n h e ir a o u c o n v iv e n te , p o is a p a la v r a c o n c u b in a tin h a a conotação p ejo rativ a d e m u lh e r d e so n esta e d e s tru id o ra d e fam ílias legítim as. M ULHERES: UMA V ID A DE LUTAS E CONQUISTAS D e sa p a re c e u tam b é m a discrim in ação d o s filhos n ascidos fora d o casam en to , o u d o s a d o ta d o s, q u e p a s s a ra m a ter os m e sm o s d ire ito s e qualificações d a q u e le s p r o v e n ie n te s d o ca sa m e n to , t e n d o e m vista q u e foram v e d a d a s q u a is q u e r d e sig n açõ es d isc rim in ató ria s relativas à filiação. O u tra s m u d a n ç a s p o d e m ser n o ta d a s n o o r d e n a m e n to j u rídico, q u e tenta se a d e q u a r às tra n sfo rm aç õ e s o c o rrid a s n a so cied ad e, c o m o está o c o rre n d o com o N o v o C ó d ig o Civil, já em vigor, a com eçar p e la s m u d a n ç a s n a p ró p ria lin g u ag em . E xpressões, p o r exem plo, q u e se referem ao s d ireitos, em q u e a n te s liam o s " d ire ito s d o h o m e m " p a ra se referir a am b o s os sexos, ag o ra fo ra m su b stitu íd a s pela locução "'da pessoa". A n o v a legislação tam b é m retirou dispositivos preconceituosos e d e u m a c u ltu ra m achista, q u e p e rm itia m ao m a rid o a a n u la ção d o c a sa m e n to e a su a de v o lu ç ã o ao pai, q u a n d o d e sco b risse o d e flo ra m e n to d a m u lh e r. O N o v o C ó d ig o C ivil re tiro u a in d a o s d isp o s itiv o s d a Lei d e 1916 q u e colocava o h o m e m com o chefe e re p re s e n ta n te legal d a fam ília e a m u lh e r com o m era c o la b o ra d o ra d o m a ri d o n o s en carg o s d e família. A gora, p e lo c asam en to , h o m e m e m u lh e r a s s u m e m m u t u a m e n te a c o n d ição d e consortes e resp o n sá v e is p e lo s e n c ar g o s d e fam ília, p o d e n d o , q u a lq u e r d o s n u b e n te s, q u e re n d o , acrescer ao s e u o so b re n o m e d o outro. D iga-se a p ro p ó sito , q u e a no sso ver, o u s o d e n o m e d o m a r id o p e la m u lh e r, te m u m a conotação sim bólica, n ã o a p e n a s lig a d a a o d ire ito d e p e rs o n a lid a d e , m a s q u e significa d o m inação. A ssim , o C ó d ig o Civil, e m s u a r e d a ç ã o orig in al d is p u n h a q u e a m u lh e r era o b rig a d a a a c rescen tar o s a p e lid o s d o m arid o , m a s p o d ia p e rd e r esse n o m e ao ser c o n d e n a d a n a ação d e d esquite. 158 CIOAQANiA DA MULHER, U M A Q U E S T à O DE JUS^Ç A C o m a Lei d o D ivórcio, e m 1977, o acréscim o d o n o m e torn o u -se facultativo. M as q u a n d o da se p ara ç ão judicial, a facul d a d e d e c o n tin u a r a u s a r o n o m e d o m a rid o so m e n te p a s s o u a ser f a c u ld a d e se a m u lh e r fosse inocente, o u seja, a v encedora. C aso fosse a p a rte vencida, d ev eria v o lta r a u s a r o n o m e d e solteira, com o se lhe fosse im p o sta u m a apenação. O N o v o C ó d ig o Civil se g u iu essa linha, p r e v e n d o q u e o cô n ju g e d e c la ra d o c u lp a d o n a ação d e s e p ara ç ão judiciai p e r d e o d ireito d e u s a r o so b re n o m e d o o utro, m a s im p õ e ressal vas: d e sd e q u e e xpressam ente req u erid o pelo cônjuge inocente e se a a lteração não acarreta r preju ízo p a ra a su a iden tifica ção; h o u v e r m an ifesta d istinção e n tre o seu n o m e d e fam ília e o d o s filhos h a v id o s d a u n ião dissolvida o u d e o u tro d a n o re c o n h e c id o n a decisão judicial. Im p o ssív e l ta m b é m falar d o o rd e n a m e n to ju ríd ico sem fa lar d a s m u lh e re s n a ó rbita d o Judiciário: as a d v o g a d a s , juízas, p ro m o to ra s e deleg ad as. É certo q u e a in d a n ã o tiv e m o s n e n h u m a m u lh e r no S u p re m o T rib u n a l Federal e re c e n tem e n te tiv e m o s a p rim e ira m u lh e r n o S u p e rio r T rib u n a l d e Justiça, m a s já com eça a q u e b ra r o c o n se rv a d o rism o d o P o d e r Ju d ic i ário, que, aliás, já conta com u m a notável participação d e juízas no p rim e iro g ra u d e jurisdição, q u e e s tu d a ra m e se d e d ic a ra m a o s e s tu d o s jurídicos, a té que, com su a c o m petência e ca p a c id a d e , in g re ssa ra m n a m agistratura. A p a rticip a ç ão d a s m u lh e res n a esfera jurídica é sem d ú v i d a u m a q u e b ra d o s valores m achistas. M as, c o n fo rm e o b s e r v o u M a ria Berenice D ias (2002), "indispensáz^eJ se fa z perquirir se a inserção das mulheres nas carreiras jurídicas afetou o contexto das decisões judiciais, passando elas a exercer o papel de agentes modificadoras do conservador modelo vigorante". MULHERES: UM A VIDA DE LUTAS E CO NQ UISTAS A p ró p ria a u to ra constata que a resp o sta é n eg ativ a, pois e m b o ra t e n h a m consciência d a n e c essid ad e d e m u d a n ç a s , elas n ã o r o m p e m c o m o s códigos e p a d rõ e s vigentes: "Ní?o basta o aumento do número de magistradas para cjue determinados comportamentos sejam alterados, com o estabe lecimento da igualdade, o fim da discriminação e a eliminação da violência contra a mulher. Necessário, em um primeiro momento, desmistificar a idéia sacralizada da família. Consi derada como a responsável pela organização social, em que se desenvolve o senso de justiça e cidadania, estrutura-se, no entanto, de form a hierarquizada, tão-só pela diferença dos se xos, restando à mulher sempre um pape! de subordinação". C o n tu d o , com o p ró p rio afirm a a a u to ra , a v o z diferen te das m u lh e re s acaba p o r alterar o contexto d a s d ecisões judiciais, p o d e n d o c om isso tra z e r sentenças n ã o m a s c u lin iz a d a s e que tra z e m u m a visão fem inina d o cotidiano. CONSIDERAÇÕES FINAIS C o m o d e m o n s tra m o s , não h á com o n e g a r q u e nós, m u lh e res, p r o ta g o n iz a m o s as g ra n d e s m u d a n ç a s q u e a conteceram n o m u n d o n o ú ltim o século: no trabalho, n a m úsica, n a litera tu r a , n a p o lític a , n a c o m u n id a d e , n a s u n i v e r s id a d e s , no o r d e n a m e n to jurídico, n a ru a e em casa. Em tu d o e em todos os lugares estam os reivindicando nossos direitos, em especial o direito à cidadania. E, com isso, estam os a cada m in u to fortalecendo nossa participação n o espaço público. D esta form a, o sexo frágil e belo n ã o p a re c e m ais se r tão frágil assim , b e m com o tam b ém p a sso u a lu ta r p e lo s m esm o s d ire ito s q u e os h o m e n s , sem a b a n d o n a r o s p a r â m e tr o s e referenciais fem ininos, p r e s e rv a n d o a s u a fe m in ilid a d e , a sua 160 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA be le z a n a tu ra l, a su a m istic id ad e e su a sim patia. S alientam os q u e as vitórias rea lm e n te fo ra m m u ita s, m as n e m p o r isso n o s acom odarem os. C o n tin u a re m o s q u e s tio n a n d o as crenças e valores q u e m a n tê m os p a p é is trad icio n ais do h o m e m e d a m u lh e r, re v e n d o a org an ização fam iliar; e reiv in d ic a n d o d ire ito s p a ra q u e as instituições e s tim u le m o s in d iv í d u o s a se tra n s fo rm a re m em sujeitos políticos. Enfim, e n fatizam os que, nós, m ulheres, lu ta m o s s e m p re em to d a a h istória d a h u m a n id a d e , estivem os p re s e n te s e m todos os acontecim entos, q u e r seja n a política, n a so c ie d a d e o u em casa, m as a glória s e m p re foi a trib u íd a a o h o m em . C o n tu d o , esta m o s r o m p e n d o a n o ssa in v isib ilid a d e h istó rica e n o s fortalecem os a cada m o m e n to com o cidadãs. E afir m a m o s com to d a a v o n ta d e q u e c o n tin u a re m o s e n q u a n to for preciso b a ta lh a n d o p o r respeito, p o r d ig n id a d e , q u e b ra n d o b a r r e ir a s e p re c o n c e ito s, e rr a n d o , a p r e n d e n d o , a c e rta n d o , d a n d o a volta p o r cim a, a té c o n seg u irm o s o rec o n h e c im e n to d a g u e rre ira q u e so m o s e d a nossa capacidade. C o n tin u are m o s com nossa garra n a busca pela efetiva igual d a d e d e d ire ito s n a so c ie d a d e e p e la v e rd a d e ira c id a d a n ia, q u e n ã o é so m e n te u m a q u e stã o d e direitos, m as, acim a d e tu d o , d e justiça. Persistirem os finalm ente ba ta lh a n d o e n q u a n to for preciso, incessantem ente, p o r nosso espaço na sociedade, pois, afinal, o que nós querem os, n ão é serm os m elhores q ue os hom ens, n em d o m in a r a sociedade e quanto m enos ainda d em o n strar u m a fal sa superioridade entre sexos, que n a ve rd a d e n ã o existe. N ã o q u e re m o s se r sexos opostos. Q u e re m o s se r sexos com p le m e n ta re s, com postos, na m e d id a q u e tem o s d ire ito s iguais. E, com isso, ju n to s, c o n stru irm o s u m a so c ie d a d e m ais d e m o crática, sem violência e justa. MULHERES'. UM A V ID A DE LUTAS E CO NQ UISTAS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ACKELSBERG, M arth a. Ampliando o estudo sobre a participação das mulheres. M u lh eres, H istória e F em inism o, 1996. DIAS, M aria Berenice. Uma ]ustiça feminina? Boletim NEG U EM N ° 1 8 - a n o 10 -2002. PU G A , V era Lúcia. Boletim N E G U E M N ° 18 - an o 10 - 2002. VA CCARI, V era Lucia. Projeto cidadania e gênero: superando a violência contra a mulher. Boletim N E G U E M N ° 18 - a n o 10 2002 . VA SCO N C ELLO S, Eliane Leitão. A mulher na língua do povo. Belo H o rizo n te: Itatiaia, 1988. 163 REGIME DE BENS N O CA SA M EN TO À LUZ D O N O V O C Ó D IG O CIVIL Maria Bernadeth G on çalves da Cunha Consa. Federal da O A B/B A Membro efetivo da C N M Á /O A B /C F Presidente do IB D F Á M /B A C o m a in tro d u ç ã o d a Lei 6 .515/77 n o o r d e n a m e n to ju ríd i co brasileiro, a c h a m a d a Lei d o D ivórcio, a sistem ática d o re g im e d e b en s n o ca sa m e n to s o freu a lg u m a s m u d a n ç a s . A ntes v ig o ra v a o reg im e d a c o m u n h ã o u n iv ersa l d e b e n s, q u e era o legal, caso o u tro n ã o fosse escolhido p e lo s n u b e n te s. D e n o m in a -se regim e legal, a q u e le im p o s to pela lei. Será c o n v e n c io n a l o u c o n tra tu a l, e n tre ta n to , q u a n d o e s tip u la d o p e la s p a rte s p o r m eio d e p acto a n te n u p c ial, q u e d e v e rá ser feito e x c lu siv a m e n te p o r escritura pública, sob p e n a d e su rtir n e n h u m efeito, sendo, p o rta n to , n u lo d e p le n o direito. N o C ó d ig o C ivil a n terio r, p re c isa m e n te n o d isp o s to n o art. 258, ca p u t, c o m a red a ç ã o d o art. 50 d a Lei 6.515/77, ficou e x p re s s a m e n te estabelecido q u e o regim e legal e ra o d a co m u n h ã o p arcial d e bens. Já os incisos d o p a rá g ra fo ún ico do citad o a rtig o d isc o rria m sobre os casos d e o b rig a to rie d a d e da se p a ra ç ã o d e b en s n o casam ento. C om o advento d a Lei n" 10.406, d e 10 d e janeiro d e 2002, novo 164 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA C ódigo Civil brasileiro, em vigor, o regime de bens no casam ento sofreu n o v a s m u d a n ç a s, consoante se d e m o n s tra rá adiante. O regim e d a c om unhão parcial d e bens continua a ser o regi m e legal, conform e disposto no art. 1.640, que assim se expressa: "Art. 2.640 - Não havendo convenção, ou sendo nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônju ges, 0 regime da comunhão parcial". A ssim , p o d e m as pessoas, an te s d o casam en to , e stipular, liv re m e n te, d e n tre os q u a tro regim es a d m itid o s p e lo D ireito p átrio, o q u e m e lh o r lhes a p ro u v e r, re s p e ita d a s , e n tre ta n to , as disposições legais c o n stantes d o art. 1.640. U m a d a s n o v id a d e s tra z id a s com o n o v o C ó d ig o é a que p e rm ite q u e o reg im e d e bens seja m o d ific a d o a p ó s o casa m e n to , o q u e era e x p re ssa m e n te p ro ib id o n o C ó d ig o anterior. C o m efeito, d isp õ e o n o v o C ó d ig o (§ 2“, art. 1.639) q u e "é a d m is s ív e l alteração do regime de hens, m e d ia n te a u to r iz a ção ju d ic ia l em pedido m o tiv a d o de a m b o s os cônjuges, a p u rada a procedência das razões in vo c a d a s e re ssa lv a d o s direi to s de terceiros". É d e observ ar-se q u e a m u d a n ç a d o reg im e só é a d m itid a em p e d id o m otivado ao m ag istra d o , te n ta n d o a lei com essa p ro v id ê n c ia p re s e rv a r a e stab ilid ad e d a fam ília ta m b é m no p la n o p a trim o n ia l, assim com o a seg u ra n ç a d a s e v e n tu a is r e lações tra v a d a s c om terceiros. O re g im e d e b e n s com eça a v ig o ra r d e s d e a d a ta d a cele b raç ã o d o casam ento. Pelo C ó d ig o atu al, os n u b e n te s p o d e m o p ta r p o r u m d o s q u a tro regim es p o sto s à su a escolha, o u seja, o d a c o m u n h ã o parcial, q u e c o n tin u a se n d o o re g im e legal, o d a c o m u n h ã o u niversal, o d a p a rticip a ç ão final d o s a q ü e sto s e o d a se p a ra ç ã o d e bens. N ã o h a v e n d o p a c to a n te n u p c ia l ou REGIME DE BENS NO CASAM ENTO À LU Z DO NO VO C Ó DIG O CIVIL 165 o b rig a to rie d a d e d o reg im e d e se p ara ç ão d e b e n s, p re v a le c e rá, assim , o reg im e d a c o m u n h ã o parcial. D eve-se a in d a p o n d e ra r sobre a p o s s ib ilid a d e d e m o d ifi cação d o reg im e d e b e n s p a ra as p e sso a s c a sa d a s sob a é gide d o C ó d ig o a n te rio r, p o rq u e a priori e sta m u d a n ç a e sta ria v e d a d a e m raz ã o d o p rin c íp io d a irre tro a tiv id a d e d a lei. N ã o é ju sto , e n tre ta n to , q u e as p e ssoas c a sa d a s n a vigência d o C ó d ig o a n te rio r fiquem to lh id a s d e exercer o d ire ito d e m u d a r o re g im e se o s e u c a sa m e n to c o n tin u a e m v ig o r, razão p o r q u e e n te n d e m o s q u e esse d ireito lhes a ssiste tan to q u a n to às p e sso a s c a sa d a s a p ó s a vigência d o n o v o C ódigo. Este, e n tre ta n to , é a s s u n to p o lêm ico e p o r isso m e s m o d e m a n d a r á a c irra d a s discu ssõ es d a d o u trin a e d ecisões d iv e rg e n te s d a ju ris p ru d ê n c ia , crem os. O bserva-se, e m b o a h o ra, a a c ertad a exclusão d o regim e dotal. N e sse regim e, era essencial a d escrição d o s b e n s, assim com o s u a av aliação in d iv id u a l n a p ró p ria e scritu ra e a d ecla ração e x p re ssa d e q u e o d o ta l era o reg im e escolhido. O C ó d ig o a n te rio r d e d ic a v a n a d a m e n o s q u e trin ta e q u a tro artig o s à q u e le regim e, q u e n u n c a teve a m e n o r aceitação en tre nós, d a í p o r q u e c om m u ita p r o p rie d a d e ele foi abolido p e lo C ó d ig o atual. É im p o r ta n te a s sin a la r q u e o n o v o C ó d ig o C ivil, a e x e m p lo d o a n te rio r, lista os casos d e o b r ig a to rie d a d e d a s e p a r a ção d e b e n s , n o art. 1.641, incisos I a III, v a le n d o d e s ta c a r a in o v a ç ã o d a id a d e d o s n u b e n te s p a ra esses casos, q u e ficou u n ifo r m iz a d a e m 60 (sessenta) a n o s, ta n to p a r a o h o m e m , q u a n to p a ra a m u lh e r. C o n q u a n to se p o ssa e n te n d e r q u e h o u v e u m a v a n ço c om a m ajo raç ã o d a i d a d e d a m u lh e r, d e 50 p a ra 60 anos, constituise, a in d a , n u m a tra so a idéia d e fixar-se id a d e lim ite p a ra ca- 166 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA sarn en to com s e p ara ç ão d e b e n s d e p e sso a s m aio res e cap azes n o u so e g o z o d e seus direitos civis e políticos. A dm itiu-se com o com preensível que e m 1916 tais lim itações existissem , p o rq u a n to a qu a lid a d e d e v id a era d iferente e as p e ssoas envelheciam precocem ente, p o d e n d o considerar-se se nil aos 60 (sessenta) anos, o q ue não é o caso d o s tem p o s atuais. Portanto, esse " c u id a d o " exagerado d a lei n ã o se justifica. A s pessoas capazes com m ais d e 60 (sessenta) a n o s sa b em e p o d e m escolher o regim e d e b e n s q u e lhes a p ro u v e r, n ã o n e cessitando d e sta a b su rd a lim itação im posta p elo n o v o C ódigo. Feitas essas considerações iniciais, vejam os, a g o ra , as sin g u la rid a d e s d e ca d a regim e. REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL DE BENS N e sse tip o d e regim e, os b en s q u e ca d a u m d o s cônjuges a d q u irir a n te s d o m atrim ô n io , assim c om o a q u e le s q u e forem d o a d o s o u h e rd a d o s , e starão excluídos d a c o m u n h ã o , salvo se a d o a ç ã o o u h e ra n ç a for c o n ced id a e m fav o r d e am bos. Frise-se, p o r o p o rtu n o , q u e os b en s a d q u irid o s n a c o n s tâ n cia d o ca sa m e n to , a título o n ero so o u p o r fato e v e n tu a l, afora aq u e le s casos acim a citados, com unicam -se, o u seja, p e rte n cem ao casal. Estes b en s e n tra m n a c o m u n h ã o m e s m o q u e te n h a m sid o a d q u irid o s e m n o m e d e u m só d o s cônjuges. N e ssa e spécie d e regim e, a ad m in istraç ã o d o s b e n s co m u n s c o m p e te a q u a lq u e r d o s cônjuges, d ife ren te m e n te d o e sta tu íd o n o C ó d ig o a n te rio r e m q u e se o b serv av a a p rese n ç a m ais forte d a s o c ie d a d e patriarcalista. O s b e n s c o m u n s r e s p o n d e m pe la s obrigações c o n tra íd a s p e lo m a rid o o u p e la m u lh e r p a ra a te n d im e n to a en c arg o s d a fam ília, às d e s p e s a s d e a d m in istraç ã o e às d e c o rre n te s d e im p o siç ã o legal. REGIME DE BENS NO CASAM ENTO  LU Z DO NO VO C Ó DIG O CIVIL A a d m in istra ç ã o e a disposição d o s b e n s c o n stitu tiv o s d o p a trim ô n io p a rtic u la r co m p e te m ao p ro p rie tá rio , salvo se h o u v e r co n v e n çã o d iv ersa em pacto anten u p cial. A s d ív id a s c o n tra íd a s p o r q u a lq u e r d o s cônjuges n a a d m i n istra ç ã o d o s se u s b e n s p a rticu la re s, e e m benefício destes, n ã o o b rig a m os b e n s com uns. REGIME DA COMUNHÃO UNIVERSAL DE BENS. C o n siste n a im e d iata c o m unicação d e to d o s o s b e n s p re s e n te s e fu tu ro s, assim com o d a s d ív id a s p a ssiv a s, o b s e rv a d a s as exceções ex p ressas na legislação vigente. E scolhido este regim e, os cônjuges têm consciência d e q u e n in g u é m é titu la r d e u m a cota p ró p ria d e q u e p o ssa g o z a r e d isp o r, m a s a m b o s titu la re s d o todo. P o r isso, m e s m o oco r re n d o a d isso lu ç ão d a so ciedade ou d o v ín cu lo conjugal, p o r m o rte d e u m d o s cônjuges, tran sm ite-se a o s h e rd e iro s a p e n a s o p e rc e n tu a l q u e lh e toca d a m eação d o “àe cu]us", p o rq u e a o u tra m e ta d e , e m ais u m a parcela da h eran ça, p e rte n c e ao côn ju g e su p érstite. S e n d o este c o n sid e ra d o u m regim e convencional, p a ra q u e prevaleça necessário torna-se q u e os n u b e n te s celebrem o pacto a n te n u p c ia l, sob p e n a d e n u lid a d e o u ineficácia. O C ó d ig o C ivil b ra s ile iro , n o e n ta n to , e s ta b e le c e q u a is s ã o o s b e n s e x c lu íd o s d a c o m u n h ã o , q u e e s tã o e n u m e r a d o s e x a u s tiv a m e n te n o s in ciso s I a V d o art. 1.668, q u e d e s ta c a m o s a se g u ir: "Art. 1.668. São excluídos da comunhão: I - os bens doados ou herdados com a cláusula de incomunicabilidade e os sub-rogados em seu lugar; II - os bens gravados defideicomisso e o direito do her- 167 168 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA deiro fideicomissário, antes de realizada a condição suspensiva; III - as dívidas anteriores ao casamento, salvo se provi erem de despesas com seus aprestos ou reverterem em proveito comum; I V - as doações antenupciais feitas por um dos cônju ges ao outro com a cláusula de incomunicabilidade; V - o s bens referidos nos incisos V a VII do art. 1.659.'' REGIME DA SEPARAÇÃO DE BENS A característica desse reg im e cinge-se ao fato d e c a d a cô n juge c o n se rv a r o q u e é seu p a ra si, o u seja, os b e n s p e rte n c e n tes a ca d a cônjuge, q u e r os a d q u irid o s a n te s d o casam en to , q u e r os a q ü e sto s, são incom unicáveis. E s tip u la d a a se p ara ç ão d e bens, estes p e rm a n e c e rã o sob a a d m in istra ç ã o exclusiva d e cada u m d o s cônjuges, q u e os p o d e rá a lien ar liv re m e n te o u gravá-los d e ô n u s real. Este reg im e tan to p o d e ser convencional q u a n to legal. Será legal q u a n d o h o u v e r im posição d a observância aos casos p r e s critos n o art. 1.641, incisos I a III. E m a lg u n s casos, esta exigência tem c a rá ter p u n itiv o , em o u tro s, a b s u rd a m e n te , co m o p ré-d ito , fu nciona c o m o m e d id a a c a u te la d o ra d e interesses particulares. N e ste tip o d e regim e, se convencional, p re v a le ce rá a co m u n h ã o d o s b e n s a d q u irid o s n a constância d o ca sa m e n to , se n ã o h o u v e r c láusula expressa n o respectivo c o n tra to d is p o n d o d e m o d o diverso. Percebe-se, assim , q u e a c o m unicação d o s a q ü e sto s só é p r e s u m id a n o s casos d e silêncio d o contrato, n u n c a , p o ré m , n o s casos d e im posição legal. REGIM E DE BENS NO CASAM ENTO À LUZ DO N O VO C Ó DIG O CIVIL O s cônjuges são o b rig a d o s a c o n trib u ir p r o p o rc io n a lm e n te ao s r e n d im e n to s d e seu tra b a lh o e d e s e u s b e n s , p a r a as d e s p e s a s d o casal, se d e m a n e ira d iv e rs a n ã o tiv e r s id o c o n v e n c io n a d o . REGIME DA PARTICIPAÇÃO FINAL DOS AQÜESTOS. Este re g im e é a g ra n d e n o v id a d e e su b stitu i e m b o a h o ra o re g im e do tal, q ue, com o dito, jam ais v in g o u e n tre nós. A ssim , n ã o h á c o rre s p o n d e n te n o C ó d ig o anterior. P o r este regim e, to d o s os b e n s q u e p e rte n c ia m a ca d a côn ju g e ao casar, assim com o a q u e le s p o r c ad a u m d e le s a d q u iri d o s, a q u a lq u e r título, n a constância d o c a sa m e n to , in te g ra m o p a trim ô n io p ró p rio d e c ad a um . O s b e n s p ró p rio s d e c a d a u m são d e s u a exclusiva a d m i nistração, n ã o se a d m itin d o n e n h u m a ingerência d o o utro, nem m e s m o p a ra aliená-los, se forem m óveis. O s b e n s im óveis são d e p ro p rie d a d e d o cô n ju g e cujo n o m e c o n s ta r d o resp e c tiv o registro, e n tre ta n to , a titu la rid a d e p o d e rá se r p e lo o u tro im p u g n a d a . É im p o rta n te a ssin a la r que ne ste reg im e o d ireito à m eação é irrenunciável, im p e n h o ráv e l, e não-cessível. Caso sobrevier a dissolução da sociedade conjugal, os aqüestos serão a p u rad o s, excluindo-se, evidentem ente, d o m onte, os bens próprios, sejam eles an te rio re s o u n ã o a o c a sa m e n to , a d q u ir i d o s p o r su b -ro g ação , lib eralid ad e ou sucessão. A s d ív id a s re lativas a esses b e n s ta m b é m serão excluídas, n a tu ra lm e n te . Vale ressaltar a in d a q u e se u m d o s cônjuges fizer alg u m a alienação d o s aqüestos sem a im prescindível au to riza ç ã o do o utro , os valores serão a p u ra d o s p a ra p a rtilh a o u reivindicação pelo cônjuge o u h erd eiro p rejudicado na época d a dissolução. 170 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA E n tre ta n to , se os b e n s forem a d q u irid o s p o r a m b o s, ca d a u m terá su a cota n o condom ínio o u no crédito p o r aquele m o d o estabelecido. A s d ív id a s s u p e rv e n ie n te s à m eação são d a o brigação d e q u e m as c o n tra iu , se e m benefício p ró p rio . Essas são as p rin c ip ais n o v id a d e s a p re s e n ta d a s p e lo nov o C ó d ig o C ivil n o tocan te ao reg im e d e b e n s, q u e n a n o ssa ótica a fig u ram -se relevantes, p e rtin en te s e a d e q u a d a s a o m o m e n to h istórico e m q u e vivem os. 171 MULHER DE HOJE Maria R egina Purri Arraes Advogada, Membro da Comissão Nacional da M ulher Advogada do Conselho Federal da O A B ; Fundadora da Comissão Permanente da M ulher Advogada - OAB/RJ ; Fundadora do Colégio Brasileiro das Mulheres Advogadas. É inegável q u e as m u lh e res se p re p a ra ra m p a ra e starem hoje o c u p a n d o os p o sto s q u e v êm alcançando. N a v e rd a d e , e m ter m o s profissionais e intelectuais não existem m ais lim itações para o sexo fem inino. N o entanto, sob o aspecto político a situação se m odifica, pois a inda estam os e n g a tin h a n d o n o q u e d iz res peito à m aleabilidade, estratégias d e ação e visão clara d o s m ei os utilizáveis p a ra a ocupação d o e spaço político. P o r isso, a p articip a ç ão d a s m u lh e re s é m a io r e m a is visível n o e sp aço p úblico, o n d e o sistem a c o n stitu c io n a l d e c o n c u r sos p a ra os c argos n ã o p e rm ite a escolha sob o critério d a p o lítica, m a s sim d a co m petência, fu n c io n a n d o a e q u ivalência salarial d a q u e le s cargos com o m ais u m e stím u lo às m u lh e re s q u e in g re ssa m n a s carreiras públicas. O Ju diciário te m se n tid o o efeito de sta rea lid a d e . O s ú lti m o s c o n c u rso s p a ra M a g istra tu ra , M in istério P úblico, P ro c u ra d o ria s etc. m o stra m u m a m aio ria fem in in a a p ro v a d a , q u ase s e m p re n o s p rim e iro s lugares. 172 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA N o s T rib u n a is S u p e rio re s so m e n te n o s ú ltim o s a n o s c o n s e g u im o s fazer c h e g ar a lg u m a s M inistras, q u e m u ito a n te s de o serem , e ra m já c o n sid erad as, todas, co m o b rilh a n te s ju ris tas. N o e n ta n to foi necessário u m im en so esforço e tra b a lh o político p a ra q u e elas alcançassem as nom eações, fru to d e p e r m a n e n te conscientização d a n e c essid ad e d e a d o ç ã o d a s e s tra tégias d a ig u a ld a d e , pelo p o d e r público. A p ro p ó sito , existe p r o je to d e e m e n d a c o n s titu c io n a l d e a u to r ia d o S e n a d o r Sev erin o C a v a lca n te d e te rm in a n d o a in serção d o critério de a lte rn â n c ia o b rig a tó ria d e sexos p a ra as n o m ea ç õ e s d o s f u tu ros M in istro s d o s T rib u n a is S uperiores, p re rro g a tiv a hoje ex clusiva d o P re sid e n te d a República. D e n tro d a OAB, a p e s a r d e n ã o h a v e r u m a d e c la ra d a discri m inação, o n ú m e ro d e m u lh e res e m cargos d e d e sta q u e é m uito p e q u e n o . Som os, as a d v o g a d a s , m e ta d e d o s inscritos n a O r d e m e, p o rta n to , resp o n sá v e is p e la m e ta d e d o o rç a m e n to d a Instituição. N o e n ta n to a particip ação fem in in a n o s c argos d e C o n se lh eiras F ederais o u Seccionais, D ireto ras etc. n ã o a tin g e 15% d o total. À evidência, a discrim in ação v e la d a te m to rn a d o m u ito m ais difícil a su p e ra ç ã o d a q u estão , p o s to n ã o h a v e re m oposições claras e p o rta n to francam ente com batíveis, p e r p e tu a n d o o ciclo vicioso. D e toda sorte, as m ulheres conheceram u m a g ra n d e evolução n as últim as d écadas que, apesar d e m uito desejada, trouxe tam b é m aspectos negativos e antes desconhecidos p ara todos nós. A s c o n seq ü ê n c ias d e sta ev o lu ção p e rm a n e n te são, e n tre o u tras, o e n o rm e n ú m e ro d e m u lh e res vítim as d e infarto, stress etCv a lé m d e u m a d im in u iç ã o d a q u a lid a d e d a v id a fam iliar. C o m o to d a rev o lu ç ã o p r e s s u p õ e lu ta e a d a p ta ç ã o ao s n o v o s tem p o s, ta m b é m a nossa, fem inina, tem n o s c o b ra d o u m p r e ço significativo. ÉTICA E PROFISSÃO N o e n ta n to , é im p e n sá v el q u a lq u e r retro cesso p o r q u e n ó s n o s a c o s tu m a m o s a to m a r decisões in d e p e n d e n te s , e os h o m e n s - p o r u m a recusa sistem ática d e a p r e n d e r co m o lid a r com essa n o v a m u lh e r - estão a m e d ro n ta d o s e a m e a ç a d o s com u m a re a lid a d e p a ra a q u a l n ã o se p re p a ra ra m . N o s resta, às m u lh e res, c a m in h a r e ir a b rin d o p o rta s e janelas q u e p e r m i ta m ao o u tro a v isã o d o n o v o ca m in h o q u e se abre. É v e rd a d e q u e a s u b je tiv id a d e fem in in a tem tid o u m a rele v ância p rim o rd ia l nestes ú ltim o s anos. A ssim , o o lh a r fem in i n o sobre os fatos c o n d u z a u m raciocínio (e, m u ita s vezes, a u m a decisão) o p o s to à quele to m a d o se a n a lis a d o sob o p r is m a m asculino. M as afinal n ã o som os, h o m e n s e m u lh e re s , tã o d ife ren te s assim . B uscam os am bos, m e parece, a felicidade, a in d a q u e ela te n h a conotações d iferentes p a ra u n s e o u tras. A g r a n d e tarefa, q u a n d o já tem o s u m a legislação ig u a litá ria é, sem d ú v id a , tira r d o p a p e l esses n o v o s d ire ito s e colocálos n o d ia-a -d ia d a s m u lh e re s p a ra exercê-los, e, n o d ia-a-d ia d o s h o m e n s p a ra respeitá-los. U m a d a s iniciativas d e co ncretizar esses d ire ito s acim a re feridos, foi o p rojeto d e lei d a e n tã o v e re a d o ra , a m é d ic a A na Lipke, n a c id a d e d o Rio d e Janeiro, q u e o b rig o u o s s e rv id o re s p ú b lic o s a in fo rm a r às m u lh e re s v ítim a s d a v iolência d o e s tu p r o d e q u e elas têm d ireito d e fazer a b o rto legal e gratuito. O ra, a q u e stã o está tipificada n o código p e n a l - o a b o rto legal - d e s d e 1940. O p rojeto alcançou g ra n d e re p e rc u ss ã o d e n tro d a p r ó p ria C â m a ra d e V e re ad o re s e n a s o c ie d a d e e m geral, m e re c e n d o a tenção especial d a m íd ia e c o m b a te f e rre n h o d o s setores religiosos a té ser fin alm en te a p ro v a d o ; p o ré m , a in d a hoje, e n c o n tra resistência em su a aplicação. C onstata-se, então, q u e é preciso tra z e r à lu m e a q u e stã o CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA d a h ip o crisia e a d u b ie d a d e q u e ela gera. C o m o é afinal? Exis te a lei h á m ais d e 60 an o s e n ã o se p o d e in fo rm a r à p o p u la ç ã o so b re os d ire ito s q u e ela lhe confere? Q u e ética é essa que p ro m u lg a u m a lei m a s tenta im p e d ir q u e se d ig a d a s u a exis tência? A resp o sta im e d iata é a form a d e fazer política p r a ti c a d a p e lo s h o m e n s , e n q u a n to gênero, b e m d ife re n te d o sen so c o m u m d a s m u lh e res. N e sse aspecto, ético, parece-m e q u e as m u lh e re s são m ais p o sic io n a d as, fu n c io n a n d o c o m o p ê n d u lo s à b u sc a d o eq u ilí b rio , com tra n s p a rê n c ia e firm eza, n u m jogo e m q u e m u ita s v e z es são v e n c id a s p o r terem e xplicitado c la ra m e n te s e u s o b jetivos finais, c o m p ro m isso c o n d u to r d e s u a atuação. A diferença foi explicada pelo conhecido Joosteen G a a rd n er’, q u a n d o assinalou q u e "os h o m en s estão p re o c u p a d o s com a p ró p ria carreira e as m ulheres e m d e sem p e n h a r-se b e m d as ta refas q u e escolheram " - leia-se, am bição v e rsu s dedicação. Q u a n to à a d a p ta ç ã o d o h o m e m à n o v a rea lid a d e , o s m o v i m e n to s n eo -fe m in ista s se e n c a m in h a m ag o ra p a ra u m a s o lu çã o q u e p a re c e m u ito lógica, sensível e realizável. A esse respeito, recen tem en te, o p sican alista José R enato A v z a ra d e l fez p u b lic a r a rtig o e m q u e afirm a: " sã o p o u c o s os h o m e n s q u e se p e rm ite m c a m in h a r pela se n sib ilid a d e, sem ter m e d o d e q u e isso p o ssa se r visto co m o e x p re ssã o d e h o m o ss e x u a lid a d e " . P e n a que, n a seqüência d e s e u raciocínio, e rro n e a m e n te , te n h a a c u sa d o as m u lh e re s e m a n c ip a d a s d e h a v e re m " e m p u r r a d o " o h o m e m p a ra a situação crítica em q u e s e e n c o n t r a m , c o n c l u i n d o p e la n e c e s s i d a d e d e se a u to p e rm itire m - os h o m e n s ~ "a revelação d o u n iv erso afetivo m asc u lin o ". 'Jo oste e n G aardner, sociólogo e e scritor nõrdico, autor de “A E scolha d e Sofia", sucesso m undial da literatura m oderna. ÉTICA E PROFISSÃO T ra b a lh a m o s m u ito , n o s ú ltim o s anos, p a ra o b ter a n o ssa in d e p e n d ê n c ia e com eçam os já a colher os f ru to s d e ste tra b a lho, a in d a q u e p e rsista m e sp in h o s e asperezas. P o r isso, a g o ra, c o n c o rd o q u e os n o sso s esforços d e v e rã o ser p a rc ia lm e n te d irig id o s p a ra conscientizar e capacitar os h o m e n s a c o n v iv e re m e u s u fru íre m o p r a z e r d e p a rtilh a r a c o m p a n h ia d e m u lh ere s q u e n ã o são su a s d e p e n d e n te s , q u e n ã o são su b m issas a eles. M u lh e re s q u e além d e c o m p a n h e ira s p o s s a m se r p a r ceiras c o m p e te n te s n a c o n stru ç ão d a n o v a so c ie d a d e q u e se deseja. M u lh e re s q u e livres p a ra v o a r e sco lh a m o n in h o com o h a b ita t e o p a rc e iro c o m o c oa d ju v a n te n a p o n te e n tre a luta e o so n h o , o m asc u lin o e o fem inino, enfim , m u lh e re s re a liz a d a s e com p r a z e r d e te re m n a sc id o m ulheres. A final o m u n d o p a s so u tan to s séculos se o rie n ta n d o pela ótica m asc u lin a e os re su lta d o s foram c o n h e c id a m e n te d e s a s trosos: g u e rra s , d is p u ta s d e p o d e r, de stru iç ã o , g an ân cia, d r o gas, violências, u rg in d o refletir sobre u m a m u d a n ç a m ais p r o fu n d a e a b ra n g e n te , q u e inclua e valorize o fazer fem inino, com os benefícios q u e ele p o ssa tra z e r à sociedade. N ã o re s ta m d ú v id a s q u e a p a la v ra ch a v e p a ra este no v o m ilê n io seja PARCERIA, aí in cluído o resp e ito às diferenças e à solidariedade.^ ^ Interferência proferida no S em inário "Mulher. Direito e S o ciedade” prom ovido pelo C o n sulado dos Estados Unidos, em parceria com a U niversidade E stadual do Es tado do Rio de Janeiro, por ocasião da visita de m agistradas a m e ricanas (atualiza do em 2003). 177 ÉTICA E PROFISSÃO R osangela Maria Carvalho Viana Conselheira Federal da OAB}CE Membro da Comissão Nacional da M ulher Advogada Karinne M atos de Lima e M elo Presidente da O A B M ulher/CE 1. A ética A Ética te m in eg áv el influência em n o ssas v id as, seja pela história p esso al d e c ad a in d iv íd u o , seja pela escala subjetiva d e ax io m as in eren tes à ín d o le d e c a d a u m d e nós. V alores es tes a rra ig a d o s e m n o sso c o tidiano q u e se rã o le v a d o s a o agir in d iv id u a l, d e lin e a n d o de sta feita s u a c o n d u ta profissional. T ra ta r d a p re m issa ética é d ra m a d e in eg áv el d ific u ld a d e já q u e p e n e tra m o s , ta m b é m , n o s m e a n d ro s d o su bjetivism o, in d iv id u a lism o , d a felicidade p e rs e g u id a p o r c a d a u m d e nós, p o is está rela c io n a d a com a m oral in d iv id u a l. B uscar u m c o m p o r ta m e n to ético m u ita s vezes q u e r d iz e r a b u sc a e m b a s a d a em d ire triz e s d e u m c o m p o rta m e n to c o n d iz e n te com os id e ais d e u m a so c ie d a d e livre, ju sta e igualitária. 2. A ética e a profissão U m d o s p a ra d ig m a s d a ética, e aqui v im o s tra tar, p o is acre d ita m o s ser d e vital im p o rtâ n c ia p a ra a s o c ie d a d e co m o u m 178 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA tod o , é d o c o m p o rta m e n to ético d o profissional e m to d o s os d o m ister q u e a b ra ç o u o u q u e p re te n d e abraçar. P ortar-se d e m a n e ira salutar, q u e r d izer, p o rta r-se d e n tro d e p a d rõ e s valorativos, m orais, b u s c a n d o a in d a u m a reflexão lógica e o rie n ta d o ra d a c o n d u ta profissional. T o rn a-se f u n d a m e n ta l a a b o rd a g e m d e ste tem a, p o is hoje m ais d o q u e outro ra h á u m a d e stin a çã o pública d a s p rofissões, u m a v e z q u e se d irig e m à c o le tiv id a d e d e v e n d o ser re sp e ita d a s e c u ltiv ad a s n o seio d e to d a s as profissões. O h o m e m e m p ó s-a c irra d a b a ta lh a p a ra s en tar-se n o s b a n cos d a u n iv e rs id a d e e d e p o is d e u m a rcabouço d e q u a tro , cin co, seis an o s d e b u sc a p e lo c o n h ecim en to específico e técnico d e ca d a a tiv id a d e já chega lá com conceitos e n ra iz a d o s e q u e os im p rim irá e o g u ia rá e m seu m iste r profissional. C aso em se u â m a g o d e sta q u e m -se valores co m o h o n e s tid a d e , fid e lid a de, paciência, tolerância, resp eito e h u m ild a d e , ele ta m b é m tra n s m itirá a o u tre m a su a experiência co m o in d iv íd u o , fa z e n d o p rev a le ce r a ética e m seu cotid ian o profissional. P o d e m o s d e sta c a r com o g rav e e quívoco a n ã o -a b o rd a g e m d a d isciplina ÉTICA PROFISSIONAL co m o m até ria d e en si n o o b rig a tó rio n a s u n iv e rsid a d e s, p o is os pro fissio n ais m ais d o q u e n u n c a s o m e n te estã o v is a n d o a o e n g ra n d e c im e n to m o n etá rio , m ercantilista; n o en tan to , o g ra u d e satisfação q u e o g a n h o m ate ria l n o s oferece está lim ita d a as n o s s a s fa c u ld a d e s intelectuais, e o im p o rta n te é q u e n ó s sejam os seres h u m a n o s m ais a p rim o ra d o s e nossos atos p o ssam c o n trib u ir p a ra o b e m -e s ta r d a sociedade. Q u a n to m ais n o s d e d ic a rm o s ao p ró x im o e rec o n h e c e rm o s as n o ssas fraquezas, m ais ética será a n o ssa c o n d u ta , n ã o e s q u ec e n d o q u e to d o a rc a b o u ç o d e co n h e c im e n to s a d q u ir id o s d u r a n t e a v id a in te ira te r ã o i m p o r tâ n c ia e v a li d a d e q u a n d o a lia d o s a o c o n h e c im e n to e p r á t i ÉTICA E PROFISSÃO ca d a c o n d u t a é tic a , p o is h o je as p r o f is s õ e s tê m c a r á te r p u b lic iz a n te e d e v e m c o n tr ib u ir ta m b é m p a r a o e n g ra n d e c im e n to m o ra l d a s o c ie d a d e , f a z e n d o a s s im c re sc e r o ser h u m a n o d e n tr o d e u m c o n ju n to d e r e g r a s q u e r e g e m u m a c o m u n id a d e . Esse c a rá ter p u b lic iza n te d a s p ro fissõ es se explica p e la im p o rtâ n c ia d o tra b a lh o p o r elas re a liz a d o e p e la consciência d a q u e le s q u e necessitam d estes serviços p rofissionais, já q u e à m e d id a q u e o E stado h o d ie rn o v e m e n v e re d a n d o esforços n o s e n tid o d e d e m o c ra tiz a r a su a fin a lid a d e social p a s sa n d o , p o r c o n seg u in te, a fornecer serviços b ásicos e in d isp e n sá v e is à b u sc a incessante pela Justiça e p e la o rd e m social. É n e cessário e p o rq u e n ã o d iz e r im p re sc in d ív e l o d e v e r d e p rev a le ce r e n tre o profissional e o cliente u m rela c io n a m en to d e se rie d a d e , confiança, fid e lid a d e e fra n q u e z a. O ra, cediço q u e o profissional n ã o é o b rig a d o a d e te r m totum a im e n sid ã o d e c o n h e cim en to s q u e ro d e ia m su a área p ro fissio n al, e n tre tan to , d e v e conhecer sim seus lim ites, ter p a rc im ô n ia e h o n e s tid a d e q u a n d o n ã o p u d e r ou n ã o s o u b e r s o lu c io n a r o p ro b le m a re p a s s a d o p elo seu cliente, d e v e n d o , sem tem o r, d e m o n s tra r su a im p o ssib ilid a d e d e b u s c a r solução a d e q u a d a a difi cu ld ad es, d e m o n s tra n d o assim relação obrigacional lógica com v a lo re s s e m p r e in serto s em q u a lq u e r profissão. 3. A ética e o advogado C a b e ao a d v o g a d o , aqui e m especial, e assim o C ó d ig o d e Ética prelecio n a q u e o m e s m o n ã o d e v e p a rtic ip a r d e form a subjetiva d o s p ro b le m a s afetos aos se u s clientes, d e v e re p a s sa r p a ra o p a p e l, o u m elhor, ela b o ra r a p eça com a c u id a d e , d e s ta c a n d o v o c a b u lá rio claro, objetivo, e v ita n d o a ta q u e s p e s soais à p a rte a d v e rs a e ao colega q u e p a tro c in a os interesses 180 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA opostos. É n e cessário o tra ta m e n to ético e n tre to d o s, respeito, e c o n sid e raç ã o m ú tu o s , sem m e d o d e d e s a g r a d a r o m a g is tra d o o u o re p re s e n ta n te d o M inistério P úblico, b u s c a n d o a a p li cação d o D ireito d a m e lh o r form a. A p re sen ta r, q u a n d o n eces sário, as fo rm a s d e insatisfação d e n tro d o s rig o re s legais con tra a decisão judicial d e form a escorreita e p ru d e n te . A c re d ito q u e o exercício d a a dvocacia c om b a se n o E s ta tu to, n o q u a l estão re g u la d o s c â n o n es d o b e m p ro c e d e r, ju n ta m e n te com o C ó d ig o d e Ética e a existência d e u m T rib u n a l que, além d e re g u la m e n ta r co n d u tas, fiscaliza os profissionais, a p lic a n d o q u a n d o necessário p u n iç õ e s aos faltosos a té com a d v e rtê n c ia , s u s p e n s ã o e cassação d o reg istro p ro fissio n al, destaca-se d e form a s a lu ta r p a ra a p u b licização e v alorização d a q u e le pro fissio n al q u e alia seu c o n h e cim en to técnico e ci entífico com a m o ra lid a d e e a h o n e s tid a d e , d e s e m b o c a n d o in d u b ita v e lm e n te n a v alorização d a p ro fissã o d e a d v o g a d o d e carreira e a pro te ç ã o d a categoria, m u ita s v ezes a ta c a d a de fo rm a injusta. A c re d ita m o s ser in d isp e n sáv e l, p rin c ip a lm e n te n o s te m p o s h o d ie rn o s , a a b o rd a g e m de ste tem a tão p re s e n te e m to d o s o s m o m e n to s d e n o ssas vidas. A s u n iv e rs id a d e s d e v e m p re o c u p a r-s e e m o fertar condições físicas e in telectuais p a ra busca n ã o so m en te d o a p re n d iz a d o técnico m as, p rin c ip a lm e n te, b u s c a r a qualificação m o ra l e ética d o s p ro fissio n a is que in g re ssarã o n o m e rc a d o d e trabalho. N ecessário se faz com o d isc ip lin a o b rig a tó ria , o a p re n d iz a d o d a ética p ro fissio n a l, p r in c ip a lm e n te n o tra ta m e n to p ro fissio n a l d o o p e r a d o r d o d ire ito com o con stitu in te, com o o u tro colega, com o in d iv í d u o e c om a p ró p ria sociedade. IMPRESSÃO: ÍGH Mana • RS • Fone/FsK: (55] 222 3050 vwAv.p#H@M eom .br Com himss hm éckfos. " a força das mulheres não está nos músculos, mas no cérebro, na extre ma dedicação, na vontade de vencer. Essas são as armas utilizadas na ver dadeira guerra que vêm travando, pela justa conquista de espaço e pelo reco nhecimento de seus méritos por parte de toda a sociedade." Rubens Approbate Machado Presidente Nacional da OAB