Cidadania da mulher- uma questão de justiça

Transcrição

Cidadania da mulher- uma questão de justiça
Maria Avelina Imbíriba Hesketh
(Organizadora)
CIDADANIA DA MULHER,
UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
Maria Avelina Imbiriba Hesketh
(Organizadora)
CIDADANIA DA MULHER,
UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
8^ %
EDITORA
R u b e n s A p p r o b a te M achado
P residente da OAB e P residente Honorário da OAB EDITORA
Jefferson Luis K ravchychyn
P residente E xecutivo d a OAB EDITORA
Projeto Gráfico
F. J. Pereira
Capa e Diagramação
R od rigo Pereira
R evisão
D acio Lu iz Osti
Conselho Editorial
Jefferson Luis K ravch ych yn (Presidente)
Cesar Luiz P asold
H erm a n n A s s is Baeta
P aulo B o n a v id es
R a im u n d o César Britto Aragão
S ergio Ferraz
Ficha Catalográfíca
E laborada pela Bibliotecária Beatriz Costa Ribeiro - CR B-14/647
H584C
Cidadania da mulher, uma questão de justiça / Maria
Aveiina Imbiriba Hesketh (Org.). Brasília : OAB Editora,
2003.
184p.
1. Direito, 2. Direito da mulher. I. Hesketh, Maria
Aveiina Imbiriba.
CDD 340
ISBN - 85-87260-25-1
EDITORA
SAS Q uadra 05 Lote 01 Bloco M - Edifício OAB
Brasília. DF - CEP 70070-050
Tel. (61) 316-9600
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[email protected]
SUM ÁRIO
A P R E S E N T A Ç Ã O ..........................................................................7
R u b e n s A p p ro b a te M achado
IN T R O D U Ç Ã O .............................................................................11
M aria A v elina Im b irib a H e sk e th
C ID A D A N IA D A M ULH ER,
U M A Q U ESTÃ O DE J U S T IÇ A ............................................... 17
M aria José de F igueiredo Cavalcanti
M ULH ER: C Ó D IG O S LEGAIS E CÓ D IG O S
SOCIAIS - O PAPEL DOS DIREITOS E OS
DIREITOS DE P A P E L .................................................................75
O d ila d e M élo M ach ad o
M ULHERES: U M A VIDA
DE LUTAS E C O N Q U IS T A S ................................................. 135
M aria n a O liveira Pinto
REGIME DE BENS N O C A SA M EN TO
À L U Z D O N O V O C Ó D IG O C I V I L .................................... 163
M aria B ern a d eth G onçalves d a C u n h a
M U L H E R DE H O J E .................................................................. 171
M aria R egina P urri Arraes
ÉTICA E P R O F IS S Ã O ...............................................................177
R osangela M aria C arvalho V iana
K arinn e M atos de Lima e M elo
7
APRESENTAÇÃO
Em m e a d o s d a d é c a d a d e 1990, q u a n d o P re sid e n te d o Ins­
titu to d o s A d v o g a d o s d e São P aulo, escrevi u m a rtig o sob o
títu lo " A s m u lh e r e s n o m u n d o d o D ire ito " , n o q u a l, a lé m d e
c o n sid e raç õ e s conceituais sobre a a tu a ç ã o d a s m u lh e r e s n o
c a m p o d a s a tiv id a d e s jurídicas, m o stre i m in h a firm e in d ig n a ­
ção d e q u e , a té a q u e le m o m e n to , n e n h u m a m u lh e r c o m p u ­
n h a os q u a d ro s d e ju lg a d o res d o S u p re m o T rib u n a l Federal e
d o S u p e rio r T rib u n a l d e Justiça. P a ssad o s q u a se d e z a n o s d a ­
q u e le tra b a lh o , a lg u n s avanços se fizeram , n o s e n tid o d e ser
re c o n h e c id o o p ro fícu o tra b a lh o q u e as m u lh e re s d a s d iv ersa s
c a rre ira s ju ríd ic a s v ê m rea liz a n d o . A o a p re s e n ta r, a g o ra , a
edição p r o d u z id a pela C om issão N acio n al d a M u lh e r A d v o ­
g a d a , c ria d a n a a tu a l gestão, p e rm ito -m e h o m e n a g e a r to d a s
as a d v o g a d a s b ra sile ira s n a fig u ra ím p a r d a C o n s e lh e ira e
p r im e ira P r e s id e n te d a C o m issã o N a c io n a l d a M u lh e r A d ­
v o g a d a , c ria d a n esta gestão, M A R IA A V E L IN A IM B IR IB A
H E S K E T H , e to d a s as d e m a is p rofissionais d a s carre ira s ju rí­
dicas n a s p e sso a s d a s p rim e ira s m u lh e re s a c o m p o r as m ais
A ltas C o rtes d e Justiça brasileira. M inistras ELLEN G R A C IE
d o STF; F Á T IM A N A N C Y A L D R IG H I, E L IA N A C A L M O N
A LV ES e L A U R IT A H IL Á R IO VA Z, d o STJ, q u e q u e b ra ra m
b a rre ira s e a b riram , p o r m érito s p ró p rio s, ca m in h o s, tra z e r à
re c o rd a çã o a q u e le a rtig o q u e p r o d u z i h á q u a s e u m d e c ê n io ,
tr a n s c r e v e n d o - o , c o m a d e v id a v ê n ia , n a ín te g r a , a saber:
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CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
M s mulheres no mundo do Direito. É inconcebível que, n u m
pa ís com m ais d e 150 m ilhões d e h ab itan tes, n ã o haja, ainda,
u m a única m u lh e r n o S u p re m o T rib u n a l Federal e n e m no
S u p e rio r T rib u n al d e Justiça. Ao g ra n d e n ú m e r o d e m inistros,
e m a m b a s as C ortes, q u e já têm se m an ifesta d o , em público
o u e m p a rtic u la r, n o sen tid o d e p ro flig a r a lac u n a existente,
desejam os s o m a r a nossa voz. À s m u lh e res, p o r esforço p r ó ­
p rio, foi aberto, nestes ú ltim o s cinqüenta anos, a m p lo espaço,
a n te rio rm e n te re s e rv a d o aos h o m en s, tan to n a v id a e c o n ô m i­
ca, p r o d u tiv a , q u a n to na v id a pública. N a s letras, n a s artes,
n a s ciências, as m u lh e re s v ê m rec e b e n d o lá u re a s e ju sto real­
ce. Esse e sp aço foi aberto n ã o p o r concessão, m a s p o r c o n ­
quista, n u m a co n stan te, d e n o d a d a e sofrida luta co n tra o p r e ­
conceito que, infelizm ente, até hoje se faz p re se n te , m esm o
n o s m ais d e m o c rá tic o s m eios d e com unicação, referindo-se
às m u lh e re s co m o s e n d o o "sexo frágil". A força d a s m u lh e re s
n ã o está n o s m ú sc u lo s, m as no cérebro; n a ex tre m a d e d ic a ­
ção; n a v o n ta d e d e vencer. Essas são as a rm a s u tiliz a d a s na
v e rd a d e ira g u e rra q u e v ê m tra v a n d o , p e la ju sta c o n q u ista d e
espaço e p e lo rec o n h e c im e n to d e seus m érito s p o r p a rte de
to d a a sociedade. P rim eiro n a advocacia e n a s letras, d e p o is
n a m a g is tra tu ra e no M inistério Público, e m s e g u id a n o s m e i­
os políticos e econôm icos, as m u lh e re s im p u s e ra m -s e à p r e ­
co n c eitu o sa estuitice d o s q u e q u e ria m fazer crer s e re m elas
física e m e n ta lm e n te inferiores ao sexo m asculino. A sua m e ­
n o r a p tid ã o à força física tem , com o c o n tra p a rtid a , o estoicism o, a a g u d e z d e espírito, a inteligência e a in d ô m ita p e rs is ­
tência n a consecução d e seus objetivos. A lu ta - se m os "fem in ism o s " - foi e é á rd u a e extenuante. M u ito esp ec ia lm e n te do
p o n to d e vista psicológico: é q u e n o inconsciente coletivo de
u m a so c ie d a d e m u ltisse c u la rm e n te c o m a n d a d a p o r h o m e n s .
APRESENTAÇÃO
à m u lh e r teria sid o re s e rv a d o u m lu g a r se c u n d á rio , d e m era
c o a d ju v a n te d o c o m p a n h e iro n o s seus êxitos, o u fracassos.
N e s s e q u a d r o p rec o n c e itu o so , as m u lh e r e s - c o m especial
m en ç ã o às a d v o g a d a s - s o u b e ra m im p o r a sua presença. São
hoje in fo rm a d a s e info rm a tiz a d a s; cultas; firm es; corajosas e
b e m p r e p a r a d a s p a ra seus m isteres. E stão forjadas, co m o se
forja
0
aço, já q u e n a sociedade m ach ista n ã o se exige d o s h o ­
m e n s ficarem " p ro v a n d o " d e q u e são capazes. E o re p ú d io
q u e a in d a a lg u n s setores insistem em lhes d e v o ta r, p r o c u r a n ­
d o o c u lta r o seu brilho, faz com q u e sejam elas o b rig a d a s a
u m a c o n sta n te n e c essid ad e d e resp la n d ec e r. E co m o re s p la n ­
decem ! A toga o u a beca, v e stid a p o r u m a m u lh e r, p a re c e c o n ­
tra ria r as leis d a física: a ve stim e n ta e scu ra d a toga o u d a beca
e m ite LUZ. N ã o é a toga o u beca, m a s o cé re b ro d a m u lh e r
q u e a veste, d a n d o form a e força aos a rg u m e n to s q u e expende.
D á ela v id a e b rilh o p ró p rio a essas v e stim e n ta s p a ra m e n ta is.
À s m u lh e re s foi re s e rv a d o o d iv in o d o m d e g e ra r a v ida. M as
n ã o o fazem só n o sen tid o biológico. Elas d ã o v id a aos a r g u ­
m e n to s e às e xpressões d e seus p e n sam e n to s. A sua p ró p ria
p e rs o n a lid a d e é o e lo q ü en te sím bolo d a v ida. A s m u lh e res,
n a ad v o cacia e n a s carreiras jurídicas, têm tra n s m itid o esse
seu p o d e r d e d a r vida a to d o s os seus trabalhos. À s in ú m e ra s
m u lh e re s que, ao lo n g o d o tem p o , se d e d ic a ra m à justa c o n ­
q u ista d e sse s espaços - a in d a in ju stam e n te p e q u e n o s - as n o s ­
sas h o m e n a g e n s . À quelas q u e a in d a virão, a nossa fraterna
a colhida. N e n h u m a , p o ré m , iso la d a m e n te, d e v e m ere c er h o ­
m e n a g e m especial, p o rq u e o m a io r fulgor d e u m a estrela não
p o d e e n e m d e v e a p a g a r o das dem ais, sob p e n a d e se p e rd e r
a visão d e c o n ju n to d a constelação. A constelação - e n o rm e é a in d a vista e co n sid e rad a , p o r a lg u n s setores, d e form a p e ­
q u e n a . P o rq u e , se m u ito s as a d m ira m , o u tro s o tê m feito com o
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CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
se a constelação p ro c u ra s se m n ã o ver. T êm elas, c o n tu d o , luz
p r ó p ria e irra d ia m vida, graça, constância, força, firm eza e
equilíbrio. V ida, graça e constância a g ra d a m e a tra e m os olhos
m asculinos. Força, firm eza e equilíbrio pa re c e m , p o ré m , fazer
com q u e a lg u n s olhares se d esv iem , p ro c u r a n d o ignorá-las. E,
se o p rim e iro o lh a r é d e a dm iração, o s e g u n d o está, a inda,
e iv a d o d o m u ltisse c u la r preconceito. N a lu ta p a ra a definitiva
s u p e ra ç ã o d e tã o d e sca b id o s atos discrim inatórios, n este m o ­
m e n to e m q u e e sta m o s à beira d o terceiro m ilê n io d a era cris­
tã, é q u e c o n c la m am o s os m eios jurídicos e e m especial a O r ­
d e m d o s A d v o g a d o s d o Brasil, o P o d e r Judiciário, o M inisté­
rio Público, a reco n h ecerem o fato óbvio d e q u e as m u lh e re s
re p re s e n ta m , q u a n tita tiv a e q u alitativ am e n te , m e ta d e d a p o ­
pulação; a a d m itire m a justiça d e sua luta; a c o n s id e ra re m q u e
o a m p lo e sp a ç o c o n q u is ta d o é d im in u to fre n te à rele v a n te
p a rticip a ç ão fem in in a n a v id a jurídica. P o r isso é q u e re ite ra ­
m o s o b r a d o d e to d a s as forças a se re m so m a d a s, irm a n a d a s
n a lu ta d a ig u a ld a d e , p a ra v erm o s, p o r justiça, n a s m ais A ltas
C ortes, a figura segura, soberana, d e d ic a d a , in teligente, p e r ­
sistente, d a m u lh e r, a fim d e q u e os nossos p retó rio s, e m to­
d o s os s e u s g ra u s d e jurisdição, p o s s a m c o n ta r com o brilho, a
c u ltu ra , o equilíbrio, a firm eza e a força d a s m u lh e re s q u e ta n ­
to h o n r a m e dignificam as no b res carreiras ju ríd icas q u e a b ra ­
çaram : p elo D ireito e p e la Justiça!"
Rubens Approbate Machado
Presidente Nacional da OAB
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IN T R O D U Ç Ã O
N ã o m u ito d ista n te , q u a n d o se falava n a m u lh e r, d e im e d i­
ato se associava a idéia d e fitas, rosas, sedas, re n d a s , laços,
saias ro d a d a s , c u rv a s sensuais, d e n tr o d e lo n g u in h o s pretos
o u fora deles. A ssociava-se, a inda, lágrim as, fra g ilid a d e, p r o ­
teção e cu id ad o s.
D iante dessa m agia fem inina d e scendente d e Eva, longe de
se im a g in ar a existência das m ãos calejadas d a M aria, auxiliar
dom éstica; d a pele d a Benedita, e n ru g a d a e tostada, pelo trab a­
lho na roça; d a Tereza que, às cinco d a m an h ã , enfrenta d u a s
con d u çõ es p a ra chegar ao trabalho, a p ó s o p rim e iro tu rn o d o ­
méstico; d o stress d a M árcia, para ver c u m p rid a a a g e n d a de
executiva; d o corre-corre d a Sonia nos co rred o res d o F órum ,
v e n c en d o p ra z o s e enfre n ta n d o juizes e oficiais d e justiça, e de
tantas outras situações q u e m arcam a presença d a m ulher, com o
força p r o d u tiv a e in o v ad o ra, na construção d a sociedade.
Isso p o rq u e , o te m p o em q u e as m u lh e re s sa ía m d e d e n tro
d a casa d e seus pais, p a s sa v a m p a ra d e n tr o d a casa d o m a rid o
e c u id a v a m d o s filhos... até m o rre r, já p a sso u . N a q u e le te m ­
po, elas e ra m tranqüilas, devotas, a n ô n im a s, eficientes, m as
su b m issas.
V o lta n d o n a história, n a R om a A n tig a ’ , q u a n d o a p á tria
corria p e rig o , e m ap o io aos seus h o m e n s e m a rid o s, as m u lh e ’ Em G randes D iscursos da História, de Hernâni Donato, Ed. Cultrix, São Paulo,
pág. 17.
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CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
res c o n trib u ía m p a ra o sucesso d a gu e rra , com u m a p arcela
d e sacrifício pessoal; q u a n d o h a v ia n e c e ssid a d e d e a c alm ar a
fúria d o s d eu ses, p o r q u a lq u e r razão, a p a rc e la d e sacrifício
d elas era m aior; d u r a n te as g u e rra s h a v ia n e c e s s id a d e d e re ­
forçar o â n im o d o s so ld a d o s, d a n d o -lh e s s e g u ra n ç a e m o s ­
tra n d o a os céus q u e as m u lh e res c o n tin u a v a m castas, m o d e s ­
tas e p u d ica s; e n q u a n to o inim igo ro n d a s s e a m u ra lh a e os
d e u s e s n ã o m u d a s s e m o d estino d a g u e rra , c o m o sacrifício, as
m u lh e re s , n o m e a d a s p ro c u ra d o ra s d e seus h o m e n s d ia n te d o
juízo e d a ira celeste, d e v e ria m privar-se de qualquer m eio
de condução, transitavam unicam ente a pé, não usavam ador­
nos, n e m tecidos de cores, pois só p od iam se vestir com rou­
pas escuras. Era a Lei Oppia.
Irre sig n a d a s, as m u lh e re s foram às ruas, lev a n ta ra m -se em
m o v im e n to d e p re ssã o sobre o S enado e c o n se g u ira m re v o ­
g a r a Lei O p p ia , n o a n o 195 a.C.
E ntão Marco Pórcio Catão^, censor d e Rom a, h o m e m d u ro ,
eruditOy v isionário e p r e o c u p a d o com aquele m o v im e n to d a s
m u lh e res, p ro fe riu o seg u in te discurso:
"Senhores:
Se cada u m de n ó s tiv e sse sab id o conservar a a u to rid a d e e
os d ire ito s do m a rid o , no interior do lar, não te ría m o s chega­
do a este p o n to .
Eis e x a ta m e n te onde e sta m o s neste m o m e n to : após h a ver
a n iq u ila d o no ssa liberdade de ação em f a m í li a , a tira n ia d a s
m ulheres e stá p r o n ta a destruí-la ta m b é m no Senado.
L em brem -se do grande trabalho que te m o s tid o para m a n ­
ter n o s s a s m ulheres tra n q ü ila s e para refrear-lhe a licenciosidade, o que sucederá, d a q u i p o r diante, se ta is leis fo r e m revo-
^ Idem, págs. 15/16.
INTRODUÇÃO
g a d a s e se as m ulheres se puserem , legalm ente considerando,
em p é de igua ld a d e c o m os hom ens!
O s senhores s a b e m com o são as m ulheres: f a ç a m - n a s suas
iguais e im e d ia ta m e n te elas quererão subir às suas co sta s para
g o v e rn á -lo s. A ca b a re m o s p o r a s s is tir a isto: os h o m e n s do
m u n d o inteiro, que são h om ens que g o v e rn a m as s u a s m u lh e ­
res, serem g o v e rn a d o s p e lo s línicos h o m e n s que se d e ix a m g o ­
vern a r p e la s s u a s m ulheres - os ro m a n o s."
C atão tin h a razão. N ã o q u a n to à su b m issão d a m u lh e r, mas,
p o rq u e v islu m b ra v a q u e n o fu tu ro a m u lh e r c o nquistaria, pela
s u a c a p a c id a d e , o p o d e r, sob q u a lq u e r d e su a s form as.
R e a g in d o a essas p o stu ra s, d e fo rm a iso la d a o u e m m o v i­
m e n to s o rg a n iz a d o s, a luta pelos D ireitos d a m u lh e r p a u la ti­
n a m e n te rec ru d e sc e u , e, o m o v im e n to fem inista d o século XX,
c o m o re s u lta d o d e sse e m b a te m ilenar, re p a g in o u a história
d a m u lh e r.
A ssim , a O r d e m Jurídica Internacional e, p a rtic u la rm e n te ,
a d o s p a ís e s o c id e n ta is , r e c o n h e c e u a C I D A D A N I A D A
M U L H E R e, s in a liz a n d o a seg u ra n ç a ju ríd ic a d a re g ra d e q u e
h o m e n s e m u lh e re s são iguais em d ireito s e obrigações, lev o u
a c rer q u e n a d a m ais precisaria ser feito, p o r q u e a co n q u ista
d o D ireito n o r m a tiz a d o teria o p o d e r d e m o d ific a r o coração,
a consciência e a v id a d o seres h u m an o s.
Q uiçá fosse possível! A d u r a re a lid a d e m o stra as ro m a n a s
e os C atõ es d e o n tem , com u m a r o u p a g e m c o n te m p o râ n e a . E
a d e sp e ito d a rep a g in a çã o d a m u lh e r, a im p re n s a d e la ta as
d o re s e os receios q u e m u d a r a m a p e n a s d e te m p o e lugar.
A ssim , s u rp r e e n d e n te m e n te , no a n o d e 1998 d.C ., p o r t a n ­
to, 2.193 a n o s a p ó s C a tã o , a m e s m a p re o c u p a ç ã o . A rev ista
V e ja , n a e d iç ã o d e 25 d e fevereiro, a d v e rte : O s H o m e n s que
se C uidem .
14
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
E os reg istro s policiais, os d a d o s históricos e estatísticos
c o n ta m situações m ais d o lo rid a s d o q u e a q u e la d a R om a A n ­
tiga. E m to d o s os países d a A m érica Latina e C aribe, m ais de
se te n ta p o r cento d a violência contra a m u lh e r é d o m éstic a e
p e r p e tra d a p o r m a rid o s, c o m p a n h e iro s, p a is e irm ãos; os n í­
veis salariais d a s m u lh e re s é m ais baixo d o q u e o d o s h o m en s,
a té e m países d o p rim e iro m u n d o , com o E stad o s U n id o s , Ja­
p ã o e A le m a n h a ; e m a lg u m a s c o m u n id a d e s africanas, as m u ­
lheres são d esclitorizadas; o acesso ao p o d e r, sob q u a lq u e r d e
s u a s form as, é v isiv e lm e n te b o icoitado etc.
Pois bem . Essa ig u a ld a d e jurídica q u e tem a s se g u ra d o ta n ­
tos a v a n ço s n a c id a d a n ia d a m u lh e r, n ã o c o n se g u iu vencer,
a in d a , a d e s ig u a ld a d e d a vida, q u e é se n tid a n a a tu a lid a d e ,
i n d e p e n d e n te m e n te d e países, econom ias e índices d e d e s e n ­
v o lv im e n to h u m a n o . A d e s ig u a ld a d e é real e m to d a s as ca­
m a d a s sociais, esferas d e trabalho, categorias p ro fissio n a is e
re p re se n ta ç ã o política, p o n d o -se a exigir, p o r re s p o n s a b ilid a ­
d e histórica, m e d id a s afirm ativ as v isa n d o refrear e m in im iz a r
os efeitos p e rv e rs o s d e sse descom passo.
P o rtan to , sensível a essa rea lid a d e , e a c re d ita n d o n a tra n s ­
fo rm ação e v o lu tiv a d a sociedade, o Dr. R u b e n s A p p ro b a to
M a ch a d o , corajoso P re sid e n te d o C onselho Federal d a O r d e m
d o s A d v o g a d o s d o Brasil, e m sintonia com a h istó ria , criou a
C N M A - C om issão N acional d a M u lh er A d v o g a d a , a qual vem
d e s e n v o lv e n d o u m tra b a lh o v o lta d o p a ra fo rm a r u m a g ra n d e
r e d e d e consciência d a m u lh e r a d v o g a d a , sobre a potencializ ação d e se u s direitos, com o reto rn o social.
A ssim , o re s u lta d o d o I C o n c u rso d e M onografia Jurídica,
in titu la d o C id a d a n ia d a M u lh e r - U m a Q u e s tã o d e Justiça,
rea liz a d o pela C N M A , é u m d o s fru to s dessa c o n q u ista da
m u lh e r a d v o g a d a . Dos q u in ze tra b a lh o s a p re s e n ta d o s , tem os
INTRODUÇÃO
a alegria d e p u b lic a r, ju n ta m e n te com as reflexões d a s c o m p a ­
n h e ira s M a ria B ernadete C u n h a e M a ria R egina P u rri A rraes,
os três vencedores: "M u lh eres, u m a V ida d e L utas e C o n q u is ­
tas Profissionais", d a e s tu d a n te M a ria n a O liveira Pinto; "C i­
d a d a n ia d a M ulher, u m a Q u e stã o d e Justiça", d e M aria José
d e F ig u e ire d o C avalcanti, e "M ulher: C ó d ig o s Legais e C ó d i­
gos Sociais - O Papel d o s Direitos e os D ireitos d e P a p e l", d e
O dila d e M êlo M a chado, a m b o s n a categoria profissional.
Tais tra b a lh o s d isc u te m a c id a d a n ia d a m u lh e r, não, a p e ­
nas, com o u m d ire ito fu n d a m e n ta l d isp o s to n a O r d e m C o n s ­
titucional, m a s com o o d ire ito d a m u lh e r ser u m s e r q u e tem
v o n ta d e . V o n ta d e n ã o a p e n a s d e chorar, a m a r, ser c o n q u is ta ­
da , p a rir, receber rosas, cobrir-se, s e d u to ra m e n te , com re n ­
das, s e d a s e saias, longas, cu rta s ou ro d a d a s , d e ser fem inina
m a s v o n ta d e d e ser c id a d ã e ver rec o n h e c id o s e u d ire ito d e
ser m u lh e r, n a d im e n sã o d o biológico, d o social e d o político;
d e v e r re s p e ita d o seu direito d e gritar, d e d iz e r n ã o , d e d izer
sim , d e p ro te sta r, escolher e lutar; d e p a rtic ip a r d o processo
de c o n stru ç ã o d a h u m a n id a d e e c o n stru ir s u a p r ó p ria h istó ­
ria e id e n tid a d e , d e form a real, sem tra u m a s e e s p o n ta n e a ­
m en te. D e ser m u lh e r, d e ser parceira, c o m p a n h e ira e c ú m p li­
ce d o p ró p rio h o m e m , p a rtilh a n d o com ele, p o r inteiro, com
resp e ito e in te g rid a d e , u m a vida d e s o n h o e rea lid a d e .
C o m estas p a la v ra s, a C o m issã o N a c io n a l d a M u l h e r A d ­
v o g a d a e n tre g a à c o m u n id a d e jurídica o livro C ID A D A N IA
D A M U L H E R , U M A Q U E S T Ã O D E JU S T IÇ A .
Maria Avelina Imbiriba Hesketh
Presidente da Comissão Nacional da M ulher Advogada
17
C ID A D A N IA D A MULHER,
U M A Q UESTÃO DE JUSTIÇA
M a ria Jo sé d e F ig u e ire d o C a v a lc a n ti
INTRODUÇÃO
O escorço e m tem a dessa v a stid ã o e p r o f u n d id a d e e s p e c u ­
lativas le v o u -m e a p e rc o rre r u m c a m in h o q u e se b ifu rc a em
dois. O p rim e iro , se reveste d a an álise filosófica d o c o n te ú d o
p lac e n tário d o D ireito Positivo, fo rm alista e d o g m á tic o , q u e
v ige p o r u m d e te r m in a d o espaço d e te m p o e e m u m a d im e n ­
são espacial. O u, em o u tra s p a la v ra s, ver-se-á o tem a in cu rso
n o D ireito d o d e v e r- s e r a o q u a l se c o n tra p õ e o D ireito d o s e r e
q u e p o r essa ra z ã o m e s m a é suscetível d e ser re d is c u tid o em
nível d e instância filosófica.
D estarte, faz-se a q u i u m exam e crítico d e sse p rec e itu á rio
p o sitiv o a oferecer n o r m a s d e c o n d u ta aos p ro b le m a s d e c o n ­
vivência e resp o stas à p ro b lem ática d a m u lh e r, e m v á ria s e ta ­
p a s d a H istória d a H u m a n id a d e .
Portanto, coteja-se o ideal de justiça, n o pertinente, e m épocas
diferenciadas. E o procedim ento aqui ad o tad o é trazer à colação
vários exem plos d e m ulheres que ro m p e ram com o status quo e
decidiram viver o o u tro lado dessa ru p tu ra , a despeito d a contra­
p a rtid a q u e se lhes ofereceu em term os d e p u n içã o o u até de
transm utação d e sua condição d e integrante d o sexo fem inino.
18
CIDAOAN/A OA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
E sp e c u la r a essência d a Justiça n o q u e ta n g e aos d ireitos
d a s m u lh e res, n a s m ais d iv ersa s fases d a H u m a n id a d e , foi o
n ú c le o d e n o sso in te n to a o realizar esta m o nografia.
A s m u d a n ç a s nessa seara são palp áv eis, e isso v e m se d e ­
se n c a d e a n d o d e sd e os clássicos p e n sad o re s até aos nossos dias.
M eto d o lo g icam en te, a visão d o g m ática d o D ireito será c o n ­
tra sta d a p e lo estofo filosófico d a n o rm a jurídica, este, cam bia n te e d e e te rn a discussão, e aquela, fixada em critérios de
p e rm a n ê n c ia .
A "ex p e riê n c ia" d o Direito c o n d u z a c a m in h o s to rtu o so s
e m face d e u m a antítese c o n sta n te e n tre a d o g m ática jurídica
e a h isto ric id a d e d o ser h u m a n o .
Q u a n t o à s e g u n d a trilh a p e r c o r r id a - n a v e r d a d e e n tre c r u z a n d o - s e c o m a p r im e ir a - d iz r e s p e ito à p o litiz a ç ã o d o
D ireito , e m e s tá g io p o s te rio r, p ro c e s s o e s se e m q u e as m u ­
lh e re s fa z e m H is tó r ia e a ssim c o n tr ib u e m c o m c o n te ú d o s
con cretos p a r a a in se rç ã o d e le s n o n o v o c o n te x to d o D ir e i­
to. O fe re c e -se , a s sim , u m a n o v a a r g a m a s s a p a r a q u e se e fe ­
tu e o D ireito d e n tr o d a s re a lid a d e s sociais n a q u e le m o m e n ­
to, g e r a n d o n o v a id e a ç ã o d e D ireito-Ju sto, e m m o m e n to s
c ru c ia is d a m a io r significação. E, e v id e n te m e n te , g i r a n d o o
eixo d a H is tó ria .
C aso assim n ã o fosse, teríam os tão -so m e n te u m ideal u tó ­
p ic o , i r r e a liz á v e l, u m a i n ó c u a
voeis, e n g e s s a n d o a
va lo ra ç ão co m o ideação, em c h o q u e com as c a m b ia n te s cir­
cu n stâ n c ia s d a vida.
É só a n a lis a r a c a m in h a d a d e co n q u ista d o s d ire ito s d a
m u lh e r p a ra q u e se afira a consistência d a a firm ação d e q u e a
V id a H um an a objetivada d e s b o rd a n a p re m ê n c ia d a m u d a n ­
ça d o s v a lo re s d a v id a e, co n seq ü e n te m e n te, d a q u e le s referi­
d o s à A xiologia Jurídica.
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
É nessa d is p u ta e n tre id e a lid a d e e re a lid a d e q u e o Direito
recolhe os c o n te ú d o s concretos q u e re v e s te m a a v e n tu r a h u ­
m a n a n o c ria r n o v o s v a lo re s , n o v o s m o d e lo s , n o v o s
p a ra d ig m a s .
CAPÍTULO 1
DIREITOS COMO JUSTIÇA - QUAL JUSTIÇA?
A c o n s id e ra r to d a a h istória d e co n q u ista d o s d ire ito s das
m u l h e r e s e a te r c o m o p a n o d e f u n d o e s s a q u e s t ã o n a
lo b re g u id ã o e m q u e a m esm a se d e s e n v o lv e u le n ta m e n te ao
lo n g o d o s séculos, h á q u e se c o n sid e rar a q u i u m corte epistem o lógico a fim d e q u e se d istinga o conceito d e justiça com o
algo m ate ria l e q u e vem se s u b sta n c ia liz a n d o a o correr dos
tem pos. Essa linha m etodológica certam ente é c o n sid e ra d a em
cotejo com o conceito d e justiça form al, q u e se d e s e n v o lv e u
ig u a lm e n te e m p reté rito m ais a c u m u la d o n o â m b ito d o e s tu ­
d o d o D ireito e d a M oral, com o e s tu d o s ideais, p ro sp e c tiv o s,
m as d ista n c ia d o s d e u m a rea lid a d e v iv en ciad a e experienciada
n o Ser (na realid ad e), em relação ao D ever-Ser d o D ireito e d a
filosofia d a M oral.
A ssim é q u e n o processo histórico, n o q u e d iz re s p e ito à
p o siç ã o d a m u lh e r a s su m in d o espaço público, existem m u i­
tas c ontradições, pois o p e n s a m e n to h u m a n o n e ssa seara p e r ­
corre u m c a m in h o linear, p o ré m d e lu ta s e n tre a cognoscibilid a d e d o d o g m a tism o , a p a r d e u m a estim a tiv a jurídica que
p r e s s u p u n h a a m u lh e r co m o sexus imhecilitater, e tão-som ente
p ro c ria d o ra , sexo fraco e a priori sexo d e p e n d e n te e m face d e
u m a leitu ra p a triarc a l d a sociedade, q u e in fu n d iu a os séculos
s u b s e q ü e n te s u m a invariável in te rp re taç ã o d e có d ig o s s im ­
bólicos d e trim e n to so s ao sexo fem inino.
20
CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
N a v e rd a d e , n a lógica d o Direito, a p e n a s p a ra fala rm o s d o
s e n tid o ju ríd ic o d a justiça, com o conceito filosófico tra b a lh a ­
d o e h a u r id o p e la Civilização H u m a n a , p e rm ito -m e d iz e r que
a e iucu bração d o significado d e justiça d e te rm in o u a priori u m a
idéia d e u m d ire ito d e n tro d e u m a ótica d o g m a tista , o u seja,
d e u m d o g m a tis m o ju ríd ico v iv en c ia d o p o r séculos, e alicerce
c o n s tru íd o p a ra a recepção d o D ireito Positivo.
E n ã o h á q u e se d e sp re z a r, a qui, esse p rim e iro se n tir d o ser
h u m a n o , n a b u sc a e a p re e n sã o desse valor, q u e é a ig u a ld a d e ,
lin h a -m e stra d a e speculação d o s p rim e iro s filósofos, p e n s a ­
d o re s d a m atéria. E a q u i se recolhe a idéia d o u n iv e rs a l q u a n ­
d o se in v estig a o c onjunto d o m u n d o q u e n o s cerca. É e m to r­
n o d e sse n ú c le o - u n iv e rs o e a sua v a rie g a d a c o m p le x id a d e q u e o D ireito co m o C iência esp ecu lativ a vai b u s c a r n a Filoso­
fia os arte fa to s ideais p a ra a c o n stru ç ão d e se u s conceitos d e
i g u a ld a d e e d e ju stiç a , o u m elhor, d a ju stiç a , cuja essência se
revela n a ig u a ld a d e .
1.1 - A que região da filosofia do direito pertence
a igualdade
A h istó ria d a idéia form al d e justiça, co m o v alo r ju ríd ic o e
d e n a tu r e z a especulativa, veio, n o a m a n h e c e r d a filosofia, d o s
pitagóricos, com o, aliás, n o s ensina RECASENS STCHES.'
S egundo aqueles, o conceito de justiça está atrelado a u m a
relação d e igualdade. E que aquela se tra d u z e m m ed id a e em
form a m atem ática, ou seja, "a justiça é u m n ú m e ro q u a d ra d o '\^
’ o c o n c e ito p ita g ó ric o de ju s iiç a está e xp la n a d o em Luis R e ca s e n s S iches, in:
T ratado G e n e ra l de F ilo s o fia d e i Derecho, 7. ed. M é xico/D F ; E d ito ria l P orrua,
1981, p. 482.
2 A q u i R e c a s e n s S ic h e s c ita A ris tó te le s , a trib u in d o a fra se a P itá g o ra s . Ibidem ,
p. 482.
CIDADANIA PA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
P o rtan to , estabelece-se, com a justiça, u m a relação d e ig u a l­
d a d e e n tre as pessoas, se n d o estas ú ltim a s os term o s d a rela ­
ção. E n tã o , d e n t r o d e u m a p e r s p e c ti v a p o r a s s i m d i z e r
cabalística, P itágoras c o n tin u a a firm a n d o q u e o n ú m e r o q u a ­
tro é u m e s p lê n d id o e x e m p lo d e h a rm o n ia e q u e , p o rta n to ,
este v alo r é reg u la d o r d e relações, que limita o ilim itad o e ig u a ­
la o d esig u a l. D estarte, c o n s id e ra m os p ita g ó ric o s o q u a d r a d o
g eo m é tric o co m o a im a g e m d a justiça, p o r q u e tem ele q u a tro
la d o s iguais.
N a v e rd a d e , estabelecia-se, aí, u m p rin c íp io filosófico q u e
seria r e to m a d o e m in te rp re taç ã o m ais a b ra n g e n te e a p r o f u n ­
d a d a p o r filósofos q u e v iria m e m linha diac rô n ic a d o s te m ­
pos, q u a is sejam , s o b re tu d o , P latão e A ristóteles.
Q u a is as contribuições a d v in d a s d esses p e n s a d o r e s n o to ­
cante a o incansável d e s v e la m e n to d o conceito d e ig u a ld a d e ?
E a q u e se rv e ele à m ulher?
Sabe-se q u e P latão e rigiu o conceito d e justiça co m o se n d o
u m a v ir tu d e u n iv ersa l, d a qual to d a s as d e m a is v irtu d e s p r o ­
vêm . T o davia, a diké é u m valor, o q u a l d iz resp e ito originaria m e n te a u m a tra n sg re ssã o q u e m erecia co m p e n sa ç ão . À m e ­
d id a q u e o reg im e político m u d a os seus característicos q u e
e n v o lv e m u m a so c ie d a d e aristocrática, d e s b o r d a n d o n a d e ­
m ocracia, a justiça p a s sa a ser in c o rp o ra d a à so c ie d a d e , com o
v a lo r u n iv e rs a l e tra d u z id a n a lei escrita, n a nómos, a a tin g ir a
to d o s q u e e ra m d isc ip lin a d o s p o r essa lei.
Por o u tro lado , tal v a lo r n ã o se in c o rp o ra à to ta lid a d e d a ­
quela sociedade, sa b id o q u e a c id a d a n ia era restrita a alg u n s
atenienses, excluídos vário s se g m e n to s, c o m o o d a s m u lh e ­
res, o d o s estra n g eiro s e o d o s servos. O re g im e d em o crático
grego, a s se n ta d o n a de m o c ra cia dire ta, tin h a as s u a s p e c u lia ­
rid a d e s, pois a de m o c ra cia era p len a o u lim ita d a , o u c o m o no
22
CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
caso d a s m u lh e res, n ã o existia. H a v ia u m d iv is o r d e á g u a s e
essa in c a p a c id a d e relacionada à m u lh e r tin h a a s u a base id e o ­
lógica, até m e s m o e m ARISTÓTELES, ele q u e ta m b é m n ã o era
c o n s id e ra d o c id a d ã o ateniense p o r ser meteco (estrangeiro).-^
A filosofia aristoteliana q u e v in d a à p o s te r id a d e calçou o
s e n t i d o d e ju s tiç a n o D ir e ito d e n o s s o s d i a s , c o m o q u e
d o g m a tiz o u os conceitos d e justiça d is trib u tiv a e justiça c o r­
retiva, esta ú ltim a s u b d iv id id a e m justiça c o m u ta tiv a e justiça
judicial, o u judiciária.
V ê -se, a s s im , q u e o c o n c e ito d e j u s tiç a , d e s d e o s e u
n a s c e d o u ro , v e m se m e ta m o rfo se a n d o e m face d e a v a n ç o s ci­
entíficos d e o u tra s disciplinas, inclusive d o c a m in h a r d a p r ó ­
p ria T eologia, esta, q u e e m u m m o m e n to d a h u m a n i d a d e
c o n su b sta n c ia v a -se n o p ró p rio D ireito o u este se e n c o n tra v a
com a q u e la d e form a inco n fu n d ív el, p o is o ra m o d o p o d e r
civil ac h av a -se um b elica im e n te u n id o ao p o d e r d e d iz e r as
" v e r d a d e s a b so lu ta s" fora d o contexto d a n o ç ã o d e DEUS. N a
v e rd a d e , a lin g u a g e m q u e e m p e d e r n iu as m e n ta lid a d e s dizia
resp e ito a calar a m u lh e r, p o is se fazia coro d o v e rso d o poeta
que, " u m m o d e s to silêncio é a h o n ra d a mulher".**
C o n te x tu a liz a v a -se a q u e stã o te m p o ra l - social, e c o n ô m i­
ca, política - com as g ra n d e s in d ag a ç õ e s teológicas, a d e s p e i­
to d e q u e a idéia central d e justiça n ã o im p lic a v a e m m u d a r a
3 A ristóteles era m acedónio; em havendo fundado o seu Liceu, lucubrou as suas
idéias filosóficas e políticas, m áxim e as contidas em A Política, na qual categoriza
a condição de se r hum ano em a n im a l c ív ic o , o que m ostra a aptidão natural do
h um ano de vive r no seio da C idade. Sabe-se que o seu suce sso r no Liceu foi
Teofrasto, tam bém não-cidadão ateniense. A posse do terreno onde se situava a
E scola P eripatética só foi possível graças à influência de Dem étrio, este, cidadão
ateniense. Sobre essa sucessão e o fato aludido, v e r Luciano C anfora, in: A B ib li­
oteca D e s a p a re c id a - Histórias da Biblioteca de Alexandria, trad, de Federico Carotti,
S ão Paulo; C om panhia das Letras, 1989, pp. 29/32.
A frase refere-se à citação feita por AR IS TÓ TELES e atribuída a G órgias. Ver
Aristóteles, in: A Política, trad, de Roberto Leal Ferreira, 2, ed. São Paulo: M artins
Fontes, 1998, p. 36.
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTiÇA
cu ltu ra d a m isogenia o u d o a n tifem in ism o (p ara u s a r d e u m a
ex p re ssã o m o d e rn a ), ou, em o u tra s p a la v ra s, ten ta v a -se a p a ­
g a r q u a lq u e r v estíg io d e u m a e ra q u e p o r v e n t u r a p o s s a ter
ex istid o e m q u e a m u lh e r situava-se e m u m p la n o d e p o d e r
p o r a lg u n s c o n sid e ra d o d e era m atriarcal; ou, em te m p o s m ais
recentes, a a d o ra ç ã o d e d e u s a s com o era o caso d a v en eração
d o s e gípcios a ntigos à Isis, d e u s a p o d e ro s a p o r h a v e r lib e rta ­
d o o seu filho H o ru s d e toda a m a ld a d e q u e lhe h a v ia infligi­
d o o irm ã o Seth a p ó s h a v e r m a ta d o o seu pai, Osíris.
O D ireito ro m a n o a p ro p rio u -s e d a filosofia g reg a a fim de
siste m a tiz a r e d a r epnstéme aos seus institutos. U m deles, o da
justiça, referia-se ao ius sim m cíiique tribuere, conceito form al
q u e tr a d u z u m a idéia d e m e d id a , ou seja, d a r "a. c a d a u m o
q u e lhe é d e direito". O q u e significa se g u ir d e volta o c a m i­
n h o p a ra Aristóteles.
A partir d a í especula-se igualm ente se esse direito é resu ltan ­
te d e n o rm a s jurídicas positivas ou d e princípios jusnaturalistas,
isto é, se esse co n h ecim en to está relacio n ad o a u m a reg ra d e
d ire ito n a tu ra l, o u a u m a n o r m a d e direito escrito.
O b ro ca rd o jurídico antes enunciado, atrib u íd o a ULPI AN O,
d á n o v a d ire triz ao c h a m a d o direito n a tu ra l q u e p a s s a a ser
e n te n d id o co m o u m c onjunto d e leis d a n a tu r e z a , q u e im pele
os h o m e n s a d e te rm in a d a s ações. E a q u i e sta m o s a p e n a s d i­
a n te d e ações m ecânicas com o a procriação, p r o p a g a ç ã o d a
espécie etc. T rata-se, antes, d e u m a d e tu r p a ç ã o d o s e n tid o ou
a in d a d a p rim itiv id a d e d o conceito q u e veio a ser refo rm u la d o
p o r Ju stin ian o , ao ser im p rim id o n a q u e le u m c a rá ter clara­
m e n te teológico, o u seja, tal espécie d e d ire ito p r o m a n a d e
DEUS, p o rta n to , c o n te m p o râ n e o d o h o m e m d e s d e sem pre.
N e ssa linha d e raciocínio vê-se q u e a i g u a l d a d e d e todos
os h o m e n s p e rm a n e c e v in c u la d a à co n d iç ã o d e direito. N o
24
CIOADANiA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
e n tre ta n to , no tocante à m u lh e r, o d ire ito n a tu ra l p e rm a n e c e u
restrito à n a tu re z a p r o p ria m e n te dita, ou seja, a m u lh e r na
s u a m issã o d e re p ro d u ç ã o d o gê n e ro h u m a n o .
CAPÍTULO 2
“CIDADANIA” PARA CERTAS FUNÇÕES; A MULHER VIRIL
A c id a d a n ia s e m p re esteve ligada à q u e stã o d o p o d e r. Foi
assim n o Egito A ntigo, n a G récia Clássica e e m R om a, sem
fala rm o s n o p o d e r d a Igreja C atólica d u r a n te to d a a Id a d e
M édia.
O domus e ra espaço q u ase sa g ra d o n a R om a A ntiga. Era
d e n tro dele q u e se exercia o am plíssim o p o d e r d o paterfamilias.
O patria potestas era d e u m a g ra n d e z a a bsoluta. A b ra n g ia o
p a trim ô n io , os filhos, a m u lh e r c asad a ciim manu, p o is o c a sa ­
m e n to sine manu deix av a a esp o sa sob o p o d e r d o pater d a
fam ília d e q u e p ro v in h a . P o rtan to , a in c a p a c id a d e civil e p o lí­
tica d a m u lh e r era absoluta.
O fato curioso é q u e a m u lh e r p a ra a d q u ir ir u m a certa li­
b e r d a d e - e aí n ó s c o n sta tam o s u m a " c id a d a n ia " in cip ien te d e v e ria ela dirigir-se às organizações religiosas p a ra u m a vida
co n v e n tu a l. Foi assim e m R om a, foi assim d u r a n t e to d a a Id a ­
d e M é d ia e inclusive e m te m p o s m ais recentes.
A v id a c o n s a g ra d a à religião tro u x e u m e sp aço p ú b lic o à
m u lh e r, este q u e lhe era in te ira m e n te defeso. A m u lh e r ao
a b ra ç a r o Sacerdócio p a s sa v a a g o z a r d e d e te r m in a d o s p r iv i ­
lé g io s d a esfera m ascu lin a, com o o a p r e n d e r a ler e a escrever
e a d a r v a z ão à sua in te lec tu a lid a d e etc. A s V estais e m Rom a,
p o r ex em plo, p o d ia m te s te m u n h a r e m trib u n a is, fazer te sta ­
m e n to , d is p o n d o liv re m e n te d e seus bens, d ire ito s esses n e ­
g a d o s às m atro n as. E mais: a n d a v a m n a s ru a s p re c e d id a s d e
CIDADftN'AOA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
lictor (oficial r o m a n o q u e a c o m p a n h a v a os magistrados).-" N o
e n tre ta n to , p a ra q u e assim fossem reconhecidas, o seu status
sexual e ra c o m p a ra d o ao d o h o m e m , p o r ta n to refe rid a a o a r ­
q u é tip o viril.^ A fora as restrições q u e lhes e ra m exigidas, to ­
d a s d e n a tu r e z a fisiológica: n ã o terem defeitos físicos, p e rm a ­
n e c ere m v irg e n s etc.
A m u lh e r q ualificada p a ra p a rtic ip a r d o e sp aç o público,
u s a n d o o seu intelecto, d ev eria ser e q u ip a r a d a a o h o m e m , o
q u e se c o n stitu ía u m "en c ô m io ", p o r ser-lhe rec o n h e c id a essa
c ap acid ad e.
Foi assim q u e p o r interm édio de u m am igo C ristina d e Pisan
(1364) foi reconh ecida pela sua p re p a ra ç ã o intelectual e m co­
p ia r m a n u s c rito s e em realizar escritos, in clu siv e p o rta d o re s
d e reclam ações d e m u lh e res. O elogio p a rtiu d e s e u am igo
Joào G e rs o n ao afirm ar q u e C ristin a e ra insígnis femína virilis
fem ina (m u lh e r insigne, m u lh e r viril). Era necessário atingir
essa c o n d ição e ser reconhecida co m o tal a fim d e q u e fosse
p o ssív e l
0
exercício d e certas capacidades.^
F oram necessários alg u n s séculos p a ra q u e "o d ire ito da
m u lh e r a ser v a lo riz a d a e e d u c a d a livre d e p a d rõ e s este reo ti­
p a d o s d e c o m p o rta m e n to e co stu m e s sociais e c u ltu ra is b a se ­
a d o s e m conceitos d e in fe rio rid a d e o u subordinação"® fosse
p ro c la m a d o e re s p e ita d o pelo E stado e p ela Sociedade.
^ Do que se deduz que o seu status era com parado ao dos m agistrados, A sua
im p od â n cia era tam anha que a elas eram confiados os segredos dos particulares,
e às vezes até m esm o os do Estado.
®Sobre as vestais, ver S antiago M ontero. in: Deusas e A d vinhas - M ulher e A d ivi­
nhação na Rom a Antiga, trad, de Nelson Canabarro, S ão Paulo: M usa Editora.
1998, pp. 86-88.
' Ver José Rivair M acedo, in: A m ulh e r na Idade Média. 5, ed. (rev. e am p.). São
Paulo: Editora Contexto, 2002, pp. 93-97.
®C o nvenção Interam ericana para Prevenir, Punir e E rradicar a Violência C ontra a
M ulher - Art. 6®, "b". prom ulgada pelo Decreto n° 1.973. de 01/08/1996, publicado
no DOU de 02/08/1996, pp. 14470-14473.
26
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
E o b v iam e n te pelo conceito d a ig u a ld a d e e d a e q ü id a d e ,
n ã o se h a v e rá d e e d u c a r as m u lh e re s a p e n a s p a ra se re m v ir­
tuosas, co m o q u e ria ARISTÓTELES; e, sim , ta m b é m p a ra se­
r e m p a rtic ip a tiv a s d o p rocesso político, até p o r q u e a n o ç ã o d e
justiça, hoje, é lida sob o u tro â n g u lo a fim d e v e r a m u lh e r
co m o o O u tro d a parcela d a H u m a n id a d e , o u seja, o tem a d a
im a g e m d e DEUS, n o ser h u m a n o , a ssu m e h o d ie r n a m e n te u m
c a rá te r an tro p o ló g ic o , a se v e r aí a id e n tid a d e h u m a n a d a
m u lh e r e m s u a relação d e a lte rid a d e com o h o m e m .
D e p re e n d e -se q u e o caráter d o g m ático d e justiça se i m p u ­
n h a n a S ociedade a ser v iv id o com o ideal jurídico-político nas
so c ie d a d e s q u e n o s an tecederam .
A p a r , e c o n tra d ito ria m e n te , d e u m e lu c u b ra çã o b rilh a n te
d o c o n te ú d o d a ju stiç a d istrib u tiv a,^ ARISTÓTELES e x o rta ­
v a que: "... a te m p e ra n ç a e a justiça d iferem até e n tre p essoas
livres, d a s q u a is u m a é s u p e rio r e a o u tra inferior, p o r e x e m ­
plo, e n tre h o m e m e m ulher. A coragem d e u m h o m e m se a p r o ­
xim aria d a p u s ila n im id a d e se fosse a p e n a s ig u al à d e u m a
m u lh e r, e a m u lh e r pa ssa ria p o r a tre v id a se n ã o fosse m ais
r e s e rv a d a d o q u e u m h o m e m e m su a s p a la v ra s
C o m isso se v ê q u e o p r ó p r io co n ceito d e ju stiça sofre
g ra d a ç ã o e to n a lid a d e s, haja vista que, m e s m o e n tre as p e s so ­
as livres, h á d e sig u a ld a d e s. A p u s ila n im id a d e d iz resp eito à
m u lh e r; o a tre v im e n to , ao h o m em . Ao h o m e m , a virtude; à
m u lh e r, é co n ferid a a honra.
Esses d o is v o cáb u lo s so freram m u d a n ç a s e m sua se m â n ti® Em Aristóteles, a idéia de justiça distributiva, a qual integrou o Direito e hoje é um
ideal igualm ente d e natureza estruluralm ente poUlica, aplica-se à divisã o da s h o n ­
ras e do s bens públicos e se direciona ao objetivo de que cada cidadão receba
dessas honras e bens a porção adequada a seu m érito com o qual se afirm a o
princip io da igualdade.
Ver Aristóteles, op. c il, p. 51. O destaque na citação é meu.
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
ca, pois n a lin g u a g e m d o s e stereó tip o s e x istentes e n tre os se­
xos, aq u e le s v o c á b u lo s d e significados p a s s a r a m a significantes, isto é, a v irtu d e é u m a p a la v ra q u e d e n o ta c o ra g e m , v a ­
lentia, força, v ig o r m asculino, e n q u a n to a h o n r a p a s s o u a tra ­
d u z ir o p a p e l q u e a m u lh e r d ev eria exercer c o m relação ao
s e u c o m p o rta m e n to p riv a d o e p úblico. A h o n r a é a trib u to d a
n a tu r e z a fem inina. A justiça form al d e scu ro u -se , p o is o d ire i­
to e scrito estabelecia a ig u a ld a d e jurídica, m a s n ã o h a v ia u m a
p re s ta ç ã o p o sitiv a n o p rec e itu á rio ju ríd ic o -p o sitiv o n o se n ti­
d o d e d a r c u m p rim e n to ao estabelecido d o g m a tic a m e n te . Isso
q u e r d iz e r q u e a re a lid a d e q u e c irc u n d a v a a lei era outra.
M esm o as m u lh e res q u e escreviam sobre as p e ssoas d e seu
sexo - m ulher viril - eram em sua m aioria co n sid e rad a s rigoro­
sas em su a s p réd icas e enunciados, ao se referirem à m ulher.
A p ró p ria C ristin a d e Pisán, c itada lin h a s atrás, é vista po r
LEILA M E Z A N ALG RA N TI co m o a u to ra rig o ro sa e m seus
preceitos sobre a m ulher. Diz essa A utora: "O livro d e Christine
d e P izan , escrito n o início d o século XV e d irig id o às m u lh e ­
res d e to d a s a s o rigens e classes, r e ú n e u m c o n ju n to d e a d v e r­
tências so b re a c o n d u ta e a m o ra l fem ininas, e n a d a deixa a
d e seja r frente à s e v e rid a d e d o s conselhos m a sc u lin o s
A h o n r a é e x plicitam ente u m su b sta n tiv o d u p la m e n te fe­
m in in o : p e la su a etim ologia e pela lin g u a g e m c o n s tru íd a so ­
b re o im a g in á rio social d a época. E m ais: v in c u la d o à sexuali­
d a d e d a m u lh e r. Daí, o q u e não é d e a d m ir a r q u e n a práxis d a
legislação p e n a l b rasileira, "n a legítim a defesa d a h o n r a " , foi
e stabelecido u m co stu m e em q u e esse conceito d iz respeito
n ã o a u m a v irtu d e pessoal, m as ao c o m p o rta m e n to sexual fe" Sobre o conceito de honra da m ulher colonial brasileira v e r Leila M ezan Algranti,
in: H onradas e D evolas: M ulheres da Colônia - C ondição fem inina nos conventos
e recolhim entos do Sudeste do Brasil, 1750 - 1822. Rio de Janeiro: José O lym pic,
Brasília: Edunb, 1993, C apítulo 3, pp. 109-156.
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CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
m in in o , q u e d e s b o rd a p a ra o espaço p ú b lic o m asc u lin o , s e n ­
d o rejeitado p elo q u e se considera u m d esvio d e c o m p o rta ­
m e n to social, p o r e s ta r lig a d o a o a d u lté rio fem in in o . Pelo
m enos, esse conceito vig eu p o r m u ito tem po.
Fala-se ig u a lm e n te d o rigor com q u e tra to u as m u lh e re s
H ild eg ard Von Bingen, a p o n tad a com o u m a m u lh e r q u e foge
aos pad rõ es culturais da época em q u e viveu. Foi abadessa de
u m m osteiro beneditino, no século XII, na A lem anha, e que exer­
ceu u m a forte influência sobre as lideranças d e seu tem po.
Q u a n d o se le v a n to u a q u e stã o d e q u e H ild e g a rd escrevia
a le n ta d o s livros, livros q u e m a ra v ilh a v a m e q u e e ra m p r o d u ­
to d e rev elação d iv in a , foi tal fato lev a d o ao P a p a , o q u a l d e ­
s ig n o u u m a c o m issão q u e ex am in aria o fato in locum. C onsta
q u e e m p a la v ra d irig id a ao P a p a A nastácio IV, H ild e g a rd te ­
ria im p re c a d o q u e o S u m o Pontífice e stav a n e g lig e n c ia n d o a
régia virtude da justiça.’^
'2 0 costum e vem de m uito longe em projeção de tem po passado. As O rdenações
Filipinas concediam ao marido da adúltera o direito de a matar, havendo de ser a
morte civil ou natural, a depender das circunstâncias. (Livro 5, T ítulo XXV). Igual­
mente 0 m arido podia m atar o adúltero, desde que esteja certo que am bos cometem
adultério. Na hipótese de flagrante delito ou em decorrência de decisão judicial que
aplicasse a pena de morte à m ulher adúltera, todos os bens dela revertiam a favor
do m arido. (Livro 5, Título XXV).
Hildegard escreveu muito. Dizem que o C onvento por ela fundado no monte Rupert,
em Bingen, Alem anha, tornou-se a sa la de e s p e ra d a E u ro p a e que pessoas pro ­
em inentes da época vinham aconselhar-se com ela: papas, bispos e príncipes, Cfr
Kurt Allgeier, In: Receitas M ilagrosas de Médicos e M ísticos - Rem édios Naturais
de Dois M ilênios. Trad, de Célia Maria W ürth Teixeira, [s. local]: Editora Tecnoprint,
1986, p, 61. Ainda sobre Hildegard Von Btngen, ver José Rivair M acedo. In: A M u ­
lh e r na Idade Média, 5. ed. (rev. e amp,). São Paulo: Contexto, 2002, p. 87. Igual­
mente, com a inform ação de que Hildegard foi estigm atizada por cria r problem as
em função de sua inteligência e de suas idéias e em face disso haver sido-lhe nega­
dos os sacram entos por seis meses, retirando-lhe, também, o direito de ser musicista,
v e r Peter Stanford, In: A Papisa ~ A Busca pela Verdade Atrás do M istério da Papisa
Joana. Trad, de M árcia Frazão, Rio de Janeiro: Gryphus, 2000, p. 131. E com a
conotação de que Hildegard von Bingen adotou a doutrina de Agostinho quanto ao
pecado original, e tam bém fazendo alusão ao livro sobre m edicina natural escrito
por aquela Abadessa, no que tange à questão da contracepção, v e r u ta RankeHeinem ann, In: Eunucos Pelo Reino de Deus ■ M ulheres, S exualidade e a Igreja
Católica, 3. ed. Rio de Janeiro: Record - Rosa dos Ventos, 1996. pp. 199 e 216.
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO OE JUSTIÇA
O d isc u rso d a justiça im p rim ia a d e s ig u a ld a d e e n tre os
sexos, ao m e s m o te m p o q u e se d e b la te ra v a sobre u m conceito
p u r a m e n te d o g m á tic o e d e justiça terrena. H ild e g a rd v iv eu
e n tr e 1098 a 1179, m a is d e u m sé cu lo a n te s d e T o m á s de
A q u in o , p o ré m a T eologia, p ro d u to r a d o D ireito d e e n tão , v i­
via a florescência d a Patrística, q u e exaltava o p e c a d o origi­
nal, a q u e d a d o h o m e m e com fortes a c en to s d o conceito
m an iq u e ísta , d o b e m e d o mal.
O ra , a c u ltu r a re lig io s a a g o s tin ia n a i m p r e g n o u o D ireito
e aí se s e g u e u m e sfo rço d e t r a n s c e n d e n ta liz a r a d o u t r i n a
ju ríd ic a , a o l a d o d e u m a c o n c e p ç ã o p e s s im is ta e d e m e ritó ria
d a n a tu r e z a h u m a n a , o q u e le v o u a e s ta b e le c e r d e s ig u a l d a ­
d e s e n tr e o s sexos, e m v ir tu d e d o p e c a d o o rig in a l. A m u ­
lh e r, re s p o n s á v e l p e la f ra q u e z a n o É d e n , le v o u o s e u c o m ­
p a n h e ir o a p e c a r, e d a í a d e c a íd a d o se r h u m a n o e m to d a a
s u a d e s c e n d ê n c ia .
A filosofia d a justiça passa a in te g rar a recolha d a iusfilosofia
d o Bispo d e H ip o n a . A questão da justiça d o s d ire ito s d a
m u lh e r achava-se n o continente d o m an iq u e ísm o c u ltu a d o p o r
S anto A g o stin h o d u r a n te a n o s d e s u a ju v e n tu d e e p re se n te
em s u a s obras, inclusive n a auto b io g rafia q u e e s c r e v e u . E r a
a lu ta d o b e m c o n tra o m al. A n a tu re z a c o n tra o intelecto. A
Biologia c o n tra a C u ltu ra . R estou à m u lh e r, a n a tu r e z a com a
s u a c a p a c id a d e p ro c ria d o ra , p o ré m frágil p e lo s e u p e c a d o d e
te n ta r o h o m e m A d ã o n o Paraíso.
A idéia d e ig u a ld a d e c o n stru íd a p e lo s filósofos g reg o s so ­
fria injunção d e u m a exegese q u e p a rtia d o m al e d o b e m d o u trin a m a n iq u e ís ta
re s v a la n d o p a ra a q u e stã o d a subor-
Os seus livros m ais conhecidos são: De Civitate D e i (A C idade de Deus), inicia­
do em 424 d.C., e Confissões, iniciado em 396 e co m pletado em 399, com um
C a p itu lo sobre a su a v id a após a conversão. Trata-se, aqui, de sua autobiografia.
C ID A D A N IA D A MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
d in ação , d a p o larização d a existência d e u m ser s u p e rio r (sexo
m asculino), e d e u m ser inferior (sexo fem inino).’^
A q u e s tã o d a m a te rn id a d e foi ele v a d a à co n d ição d e s e r a
f u n ç ã o e x c lu s iv a d a m u lh e r , p o is a r e p r o d u ç ã o n ã o se
c o m p a tib iliz a v a com a p ro d u ç ã o , o u seja, era u m a p r o d u ç ã o
p a ra trá s - re -p ro d u ç ã o
u m a função m e ra m e n te biológica e
so c ia lm e n te genealógica. Esse era o p re d ic a m e n to a ceito pela
C u ltu ra d a época e se d im e n to u -se co m o tal.
CAPÍTULO 3
A CIDADANIA: SUBSTANTIVO DUPLAMENTE FEMININO
EM MEIO AOS MOVIMENTOS DE MASSA
O s d ire ito s d a m u lh e r e e m p a rtic u la r os seus d ire ito s de
c id a d a n ia p ro v ê m n ã o d e v alo res s e d im e n ta d o s n a C u ltu ra
d a H u m a n id a d e , e, sim , d e contravalores d e fe n d id o s e m m o ­
v im e n to s d e m assa d a C on tracu ltu ra.
N o s an o s sessenta d o século XX, irro m p e m m o v im e n to s
d e g r u p o s q u e le v a n ta m b a n d e ira s com o as q u e tra d u z ia m a
em e rg ê n cia d o pacifism o, d o m o v im e n to ecológico, e d o m o ­
v im e n to d e ig u a ld a d e d e d ireitos en tre h o m e n s e m u lh e res,
d e n tre o utros. São os c h a m a d o s g ru p o s d e p ressã o , o u seja,
p e s so a s a g ru p a d a s e m face d e u m a p a u ta d e reivindicações
0 m aniqueísm o é apontado com o o últim o grande m ovim ento reiigioso no O rie n ­
te. surgido após o Cristianism o e anterior ao Islamismo. Foi fu n da d o por M ani, de
origem persa, o qual se dizia ser o Espírito Santo prom etido por Jesus Cristo. A
sua doutrina considerava a procriaçào um ato diabólico, de vez que o hom em era
um ser g e rado p o r um a partícula de luz presa em um corpo g estado p o r dem ônios.
Por aí se d eduz a forte influência dessa doutrina nos conceitos teológicos e filo só ­
ficos desenvolvidos por Agostinho, o que levou a C ultura R eligiosa a perpassar
séculos com conceitos antinóm icos sobre o que é bom e o que é mal. Essa c o n ­
cepção, no que tange à exegese religiosa cristã, tem se m odificado em função de
enfoque antropológico, trabalhado por teólogas, que utilizam a noção de anthrópos.
isto é, do m asculino e do fem inino com o conceito universal de hum anidade. Sobre
Mani e a sua doutrina, ve r Uta R anke-Heinem ann, in: op. cit., p. 93.
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO OE JUSTIÇA.
q u e tê m u m a lin g u a g e m d e su b sta n c ia lid a d e , q u a n to a o d i­
reito à v id a e à d ig n id a d e .
N o bojo d o expressar d a C ontracultura, a m u lh e r reivindica
direitos d e cidadania, vistos estes com o u m a g a m a d e direitos
q u e incluem direitos civis - o de livre expressão, d e reunião e de
ser tratada com igualdade perante a lei; direitos políticos que
abrangem u m a ação positiva que, além d e votar e ser votada,
seja m ais participante do processo político, com lideranças em
com unidades, paróquias etc.; e direitos d e natureza socioeconômica, a ter em conta aqui o direito a p ro d u zir econom icam ente, a
ser m em b ro ativo d a sociedade p ro d u tiv a e d e c o n su m o etc.,
afora o direito a lid a r com o seu corpo e a su a sexualidade.
H á a q u i u m ro m p im e n to com a H istória C o n tín u a , com o
d iz FO U CA U LT, o u seja, há u m a r u p tu r a c om os conceitos de
c o n tin u id a d e histórica. N asce aqui o u tra v e rs ã o d e p o d e r, n ã o
m ais
0
q u e inculca e stig m a s ao c o rp o e à alm a, m a s u m a s u p e ­
ração d o patria protestas, p o r m eio d e u m a tra n sfo rm a ç ã o c u l­
tu ra l, q u e v e m a p a g a n d o a noção trad icio n al rom anística.
Essa tra n sfo rm a ç ã o , n a v e rd a d e , é p a rte d o m o v im e n to
racionalista d o Ilu m in ism o q u e detecta n o s a g ra d o - e aqui o
v o c á b u lo é extensivo a a te n d e r várias fo rm a s d e m an ifestação
religiosa - a raz ã o m a io r d e p o s tu ra s id en tific ad a s com n o ­
ções alegóricas d e se p a ra ç ã o e n tre h o m e n s e m u lh e re s , s o b re ­
tu d o q u a n d o essas ú ltim a s u tiliz a m fo rm a s racio n ais o u n ã o
d e d e te n ç ã o d e p o d e r. D o ra v a n te o p o d e r é rac io n a liz ad o , diz
WEBER, a tra v é s d e c o n d u ta s racionais - legais.
O direito político a ser estendido à m u lh e r é m ed id a m aior a
ser conquistada, algo m ais que o p o d er d e votar e d e ser votada.
N a s p e g a d a s d a H istória, com relação ao d ire ito d e voto,
há q u e se d iz e r q u e n o Brasil, d e s d e a n te s d e s u a i n d e p e n d ê n ­
cia fo rm al, u m d e p u ta d o b a ia n o , r e p r e s e n ta n te n a s C ortes
CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO OE JUSTIÇA
G erais p o r tu g u e s a s (1822), c o n trib u iu c om u m a d ita m e n to ao
a rtig o 33 d o p rojeto d a C o n stituição q u e e n tã o se e laborava,
n o q u a l p r o p u n h a q u e a m u lh e r q u e fosse m ã e d e seis filhos
legítim os tivesse d ireito a v o tar n a s eleições.
A p ro p o siç ã o foi d e rro ta d a p o r u m d e p u ta d o p o rtu g u ê s ,
ao a firm a r este e m seu p a recer q u e se tra ta v a d o exercício d e
u m d ire ito político e q u e as m u lh e re s n ã o o têm p o r se re m
in ca p a z e s.’^ E acrescenta e m latim: "M ulier in ecclesia taceat"
(a m u lh e r d e v e se calar n a s reu n iõ e s).’^
Infere-se assim o estig m a social im p u ta d o à m u lh e r, pois
m e s m o o c ritério biológico d e ser m ãe d e seis filhos n ã o a u to ­
riz o u a concessão d o d ire ito d e sufrágio,
N ã o consta o n o m e d e sse d e p u ta d o b a ia n o n o s a n a is d a
C o n stitu in te b rasile ira d e 1823, e o p rojeto d e s e n v o lv id o p e ­
los d ez m e m b ro s n o m e a d o s pelo Im p e rad o r, a p ó s a dissolvição
d a A s s e m b lé ia C o n s t it u i n te , a p a r d e a d o t a r o s u f r á g io
censitário, n ã o a d m itiu o v oto d a m u lh e r, d e fo rm a a p e rm itir
o d ireito d e p a rticip a ç ão n o p rocesso eleitoral. (Arts. 91 a 97
d a C o n stitu içã o brasileira d e 1824).
O I lu m in is m o n ã o h a v ia d is p e r s a d o a in d a o e s te re ó tip o
d a m u lh e r b iológica e a s u a in c a p a c id a d e p a ra o tra to d o e s ­
p a ç o p úblico. Este ú ltim o era a n tô n im o d o e s p a ç o d o m é s ti­
co e este u m sig n ific a n te u n ív o c o a p lic a d o a p e n a s às tare fa s
fe m in in a s m a n u a is .
Tratava-se do Deputado D om ingos Borges de Barres, representante da P rovín­
cia da Bahia às Cortes G erais portuguesas incum bidas de elaborar a prim eira C o n s ­
tituição de Portugal. A inform ação colhida de João Batista C ascudo Rodrigues acres­
centa ser aquele d eputado pai da futura C ondessa de Barrai, a q uem ajunto a
inform ação de te r sido aquela por seu turno uma m ulher do tipo “viril", pela sua
participação intensa na vida social do Segundo Im pério, havendo troca d o co rre s­
pondência com o Im perador Pedro II. A inform ação de C a scudo R odrigues está
contida em A M u lh e r Brasileira - Direitos Políticos e Civis, 3, ed. Brasília; Centro
G ráfico d o S e n a d o Federal. 1993, pp. 43-44.
A tradução é minha.
CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
CAPÍTULO 4
A MULHER E A POLÍTICA DO PODER; A CAÇA ÀS BRUXAS
O p o d e r, p a la v ra polissêm ica e q u e foi tr a d u z id a em lin­
g u a g e n s v a ria d a s, subjaz às políticas d e m a n d o , d e o b e d iê n ­
cia ou, co m o d iz MAX WEBER, às relações d e dominação.^®
In c u rs io n a n d o n a H istória d a Inquisição h á d e se verificar
q u e literalm en te a caça às b ru x as foi u m a fo rm a d e m arg in a li­
z a r as m u lh e re s q u e a g iam n a in fo rm a lid a d e d o p o d e r, n o tra ­
to d a s forças d a n a tu re z a , e p o rta n to u m a espécie d e cercea­
m e n to d a v o z fem inina d o n ã o -d ito , c o m b a tid o p elo P o d e r
Oficial co m o apostasia. A b ru x a tra b a lh a v a às c a la d a s e esse
silêncio tin h a voz a lta m e n te incôm oda.
U m a fo rm a d e n ã o -d e c la ra r d ire ito s e ra a d e p e rs e g u ir
m e d ia n te a abjuração, q u e tan to se rev estiu d e e stig m a s soci­
ais q u a n to d e co n d e n aç ã o religiosa. E a q u i o im a g in á rio d o s
a c u sa d o re s vai longe ao p o n to d e rev e la r q u e os d e m ô n io s
p o d e m p a rtic ip a r d a geração de h u m a n o s , a tra v é s d a s b ru x as
q u e e m conluio carnal com íncubos e súcubos,'^ g e ra m seres
h u m a n o s . São, assim , m u lh e res d e n o m in a d a s d e b ru x a s ou
feiticeiras p o r causa d a " m a g n itu d e d e seus a to s m aléficos". E
"enfeitiçam a m en te d o s hom ens, levando-os à loucura, ao ódio
in sa n o e à lascívia d e sre g rad a ".
Para o e slu d o da Sociologia da Dom inação, ve r M AX W E B E R , in: Econom ia y
S o c ie d a d - E.sbozo de ‘S ociologia C om preensiva’. Trad, de José M edina Echavaría
et allii. M éxico: Fondo de C ultura Econôm ica, 1992, pp. 695 a 889.
íncubos e Súcubos são dem ônios m asculinos e fem ininos que em conluio carnal
com as bruxas faziam -nas procriadoras de seres m onstruosos. Sobre a matéria,
ver verbetes ín c u b o s e s ú c u b o s in: M anfred Lurker, Dicionário de D ioses y Diosas,
D iablos y Dem ônios. Barcelona/B uenos Aires/M éxico; E diciones Paidos Ibérica
(s.d,],
" Ver sobre o tem a O M artelo das Feiticeiras - Malleus M aleficarum
Paulo Fróes, 12, ed. Rio de Janeiro: R ecord/Rosa dos Tempos, 1997.
Ver Introdução Histórica, de Rose M arie Muraro. Ibidem, pp. 5 a 17,
trad, de
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
É m ister deixar claro q u e aqui é feita u m a referência científi­
ca n o sen tid o d a H istória d a s M entalidades. Trata-se d e ação
situada n o te m p o histórico, que se apóia em saber teórico, com o
tam b é m e m regras im aginárias, os quais lev a ra m à p rática for­
m as d e agir q u e vistas a distância d o te m p o e m q u e aquelas
foram p ro d u z id a s p o d e p arecer - e parece, efetivam ente - em
evento d eclaradam ente esdrúxulo e sem cabida nos dias d e hoje.
O p o d e r, e n tre ta n to , secularizou-se e se a g a sa lh a n o d o m í­
nio d a Sociologia, d a Ciência Política e d o Direito. A secularização é d e a lg u m a form a u m m o d o d e d essacralizar. E p a ssa a
ser u m v a lo r n o com plexo d e v alo res d a Era M o d ern a.
O u d ito em o u tra s palavras: com a secu larização h á u m
e n te n d im e n to e n tre religião e c ultura, d e n tro d e u m p rocesso
d e historicização e d e m u n d ificação d o se n tim e n to religioso.
Este é e x p u rg a d o d o s elem entos q u e lhe in q u in a v a m p o r p e r ­
p e tr a r a titu d e s orto d o x as, o u fu n d a m e n ta lis ta s e com ap o io
d o p o d e r civil, e s ta n d o este a tre la d o àquele, c om o acontecia
na Id a d e M édia, e, ain d a, n o início d a Era M o d e rn a .
A q u e s tã o d o p o d e r e m conexão c om o tem a d a s b ru x a s há
de ser v ista p o r u m p ris m a "político" d o conceito u n o d o Es­
tad o , ao m e s m o te m p o tem p o ral e espiritual, a n c o ra d o n a Ig re ­
ja C atólica q u e e n tã o se institucionalizava. É o b ra resu lta n te
de vário s fatores, inclusive n a o rd e m sincrônica e diacrônica
do s fatos. H á u m d e lin e a m e n to p r o lo n g a d o a tra v é s d o s te m ­
p o s, na c o n fig u ração d o Estado.
D e sd e a Bula d e Inocêncio VIII (1484), a q u a l refo rço u o
a p a re lh a m e n to d o T ribunal Inquisitório, o u d e antes, d e vez
q u e o T r ib u n a l d o S a n to O fício foi i n s t i tu í d o p e lo P a p a
G reg ó rio IX (1170-1241)^^ com o instituição p e rm a n e n te , wrfe;
Foi esse Papa quem instituiu a Inquisição sob a direção dos dom inicanos. C o n ­
tudo, s a b e -se q ue o P apa que ap ro vo u o uso de to rtu ra na In q uisição , a fim de
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
et orbi, e com vistas ao com bate d a s heresias. Esse T rib u n a l
s e d ia d o e m T o u lo u se torna-se a m p lia d o ju risd ic io n alm en te
p a ra a tin g ir a França, E sp an h a, A le m a n h a e, e m m e n o r esca­
la, P ortugal. H avia, e v id e n te m e n te, o a p o io d o b ra ç o secular,
p o is sabe-se q u e os juizes eclesiásticos n ã o p r o n u n c ia v a m p e ­
n a s capitais, d e v e n d o os réu s ser e n tre g u e s a o ju lg a m e n to do
p o d e r civil. P raticam ente, este fun cio n av a co m o o a p a re lh am e n to ideológico d a q u e le T ribunal, haja v ista q u e o s u b stra to
filosófico d o s processos foi e m b a s a d o e m textos religiosos.
M ais u m a vez, a sim bologia está fortem ente p resente, pois
aqui
0
religioso m escla-se com o m ágico, o u seja, a perseguição
às b ru x a s tem s u p e d â n e o n o m u n d o d o im aginário, em q u e se
creu q u e o " p o d e r" delas em certa m e d id a é objeto d a im agina­
ção d e q u e m tu d o p o d ia fazer, o u seja, ter o p o d e r aliado ao
D em ônio, p a ra tu d o realizar, inclusive operações inacreditáveis,
com o, p o r exem plo, criar seres p o r m etam orfose. E, ain d a, apoi­
a d o s os a u to res d o Malleus Melleficaram em filósofos m u ç u lm a ­
nos, su g e re m aqueles que o p o d e r d a im aginação é capaz de, na
rea lid a d e o u n a aparência, m odificar os corpos d e o u tra s p es­
soas, d e s d e q u e esse p o d e r d e im aginação n ã o seja reprimido.^^
colher co nfissões de heresia, foi Inocèncio IV {1200-1254), Assim , o Papa G regório
IX é v is to c o m o um P o n tífic e v irtu o s o , h a v e n d o sid o um fo rte d e fe n s o r dos
franciscanos. Foi ele quem canonizou Francisco de Assis, seu am igo pessoal, em
1228, A n to n io de P ádua (ou de Lisboa), em 1232, e Dom ingos, em 1234. Ao criar
a Inquisição, deliberou passar às m ãos das autoridades civis a questão da pena de
m orte. Foi o m esm o Papa quem determ inou a reabertura da U niversidade de Pa­
ris, em 1231, m odificando o interdito contra obras filosóficas de Aristóteles. Ver
verbetes G regório IX e Inocéncio IV, in: Richard P. M cBrien, O s P a p a s - O s P ontí­
fices de São Pedro a João Paulo II, trad, de Bárbara Theoto Lam bert. São Paulo:
Edições Loyola, 2000, pp. 218-220 e 221-222, respectivam ente a o s dois verbetes.
22 O s filósofos m uçulm anos citados são AL-G AZALI e AVICENA, o prim eiro com
uma fo rm a çã o eclética, havendo sofrido várias influências do pen sam e n to de sua
época (1059/1111), tais como, da filosofia, teologia e do e soterism o e o segundo,
na verdade, a nterior a este. conhecido pelo nom e de AVICENA, nascido em 980 da
era cristã e fam oso com o o m aior nom e da filosofia neopla tô n ica islâm ica, bem
com o da m edicina medieval.
36
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
C o n tu d o , a q u e s tã o d a p e rs e g u iç ã o n o to ca n te às b r u x a s é
sig n ificativ o d e u m a é p o c a e m q u e se co m e ç a v a a d e s c o b rir
q u e o s a b e r g e ra p o d e r. Essa id e n tid a d e com eça a se e sb o ça r
a p a r t i r d o m a r c o g a l i l e a n o , m a r c o q u e fo i c a p a z d e
d e s c o n s tru ir d o g m a s f o rm a d o s e aceitos ao lo n g o d o s sé c u ­
los. É c o m o d ito p o r H IL T O N JAPIASSU, q u e "... o s e n tid o
d o c o n h e c e r se c o n v e rte e m ação, e m a to d e a p o d e ra r-s e , em
d o m in a ç ã o o u apropriação".^^
N a v e rd a d e , a Ciência d e to n o u o sa b er co m o fonte d e p o ­
d er, c o n h e cim en to u n iversal, ca p az d e m u d a r o c o n h e c im e n ­
to estabelecido, n a interferência d a N a tu re z a e n o p o d e r d a
d e te n ç ã o d e sse conhecim ento. É o desafio d o h o m e m d o s a ­
b e r q u e altera a c om posição d a s e s tru tu ra s d o p o d e r.
T orn a-se " in s u p o rtá v e l" v e r a b ru x a m a n ip u la n d o as for­
ças d a N a tu re z a , co m o aq u e la s d e se n v o lv id a s p o r b e n z e d e i­
ras, c u ra n d e ira s e p rin c ip a lm e n te p o r p arteiras. A in d a q u e d e
u m a fo rm a não-científica.
E era tão forte essa questão d a crença nesses elem entos que
todo
0
arcabouço d a Justiça Civil se prestava a colaborar na ulti­
m ação desses processos. O próprio Malleus Maleficariirn é um a
peça jurídico-ideológica, d ifundida p o r toda a E uropa, e m sua
prim eira versão latina e, após, em traduções, e u m a peça essenci­
al para o e stu d o d a m entalidade d a época, na qual dois teólogos
dom inicanos - H en ry K ram er e James Sprenger - eram professo­
res e delegatários para os fins d e realização d a "justiça", com
plenos e irrestritos poderes para o exercício d e seus misteres.
C u rio sa m e n te , e m época m ais recente, ISAAC N E W T O N
serve-se d e con h ecim en to s esotéricos, a lq u im istas, ocultistas,
a p o n to d e K eynes, e m 1946, h a v e r d e c la rad o q u e N E W T O N ,
Cfr. Hilton Japiassu, in: / is Paixões da Ciência - Estudos de História das C iê n ci­
as. São Paulo: Editora Letras & Letras, 1991, p, 300,
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
s e n d o o m a io r filho d e C a m b rid g e , foi n ã o o p r im e iro p e n s a ­
d o r d a era d a razão, p o ré m o ú ltim o d o s m ágicos/'^
A in d a s e g u n d o JAPIASSU, foi rele v a n te o trato d a tra d i­
ção m ágica o u h erm ética n o p e n s a m e n to d e N E W T O N , in clu ­
sive h a v e n d o este p r e c u rs o r cientista d o M u n d o M o d e rn o
h a v e r re a liz a d o u m e s tu d o tra n sd isc ip lin a r, e m q u e são e s tu ­
d a d o s P itá g o ra s - o q u e c o m p a ro u a Justiça à p erfeição d e u m
n ú m e r o q u a d ra d o - , Virgílio, São Paulo, M oisés, S alom ão e
o u tra s fig u ra s d e expressão no m u n d o d o p e n s a m e n to filosó­
fico e religioso, inclusive a firm a d o q u e P itá g o ra s conhecera
n o seu te m p o a lei d a gravitação.
São p o stu la ç õ es d e n o v a s épocas, n as q u a is falar d e " p o d e ­
res ocu lto s" já n ã o d e n o d a v a m p rocessos d e e x te rm in a ç ão d e
a postasias. E, p o r via d e conseqüência, já se via G alileu em
o u tra ótica, e a justiça tran sfig u ra-se e m n o m e d e u m o u tro
e le m e n to c h a m a d o razão, e q u e às vezes n ã o c o n firm a v a essa
confluência em to rn o d a perfeição d a igu ald ad e da justiça do
quadrado.
H á u m a s e g u n d a conciliação e n tre a ra z ã o e a fé. E o D irei­
to a b re c a m in h o p a ra q u e o ser h u m a n o com p le te a s u a obra
social e política. D issem os acim a q u e se tra ta v a d e u m a r u p t u ­
ra, m ais ao sa b o r foucaultiano. C o m efeito, h á u m a m u d a n ç a
d e r u m o d e n tro d o conceito d e sexo, p o is a d isc rim in aç ã o aí
c o n s tru íd a parece fazer p a rte d e u m a tessitu ra política e lin­
güística. E co m o o D ireito é tam b é m política e lin g u a g e m , é de
se inferir q u e a m u d a n ç a d o ru m o p e rm e ie as r eg ra s d o D irei­
to Positivo, com u m in g re d ie n te novo: a justiça v a lo ra d a pelo
e le m e n to m aterial. H á u m a interação e n tre a m u d a n ç a social
** A frase atribuída a John Keynes acha-se citada em Hilton Japiassu, op. cit., pp.
123 0 segs-, dentro do C apítulo 4. O Contexto M ágico - R eligioso - Político de
Newton,
38
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
e o a p a re lh o re c e p to r d o D ireito q u e se im p re ssio n a e p e rc u te
a n te o s fen ô m e n o s d a v id a social.
E a justiça m ate ria l se inflete n a ig u a ld a d e e x o rta d a e m to ­
d o s os prism as: n a c o n stru ç ão d e u m m u n d o m a is ig u al, nas
relações p r o d u tiv a s m ais e q u ilib ra d a s e e q ü ita tiv a s, n o e n c u r­
t a m e n t o d a s d e s i g u a l d a d e s s o c ia i s e r e g i o n a i s {vide
p r o g r a m á t i c a d a C o n s titu iç ã o b r a s ile ira d e 1988, e m s e u
exó rd io , art. 3° e incisos) e n a efetivação d a ig u a ld a d e en tre
h o m e m e m u lh e r, d e n tro d o espírito d a filosofia d o s D ireitos
H u m a n o s . A í se inicia o p rocesso d e c id a d a n ia d a o u tra m e ta ­
d e d a H u m a n id a d e .
A c id a d a n ia é vista n o contexto d e u m a justiça m aterial,
esta, n a concepção d e ser a rea liz a d o ra d a ig u a ld a d e jurídicoform al. É o c o n stru c to m aterial, isto é, a re a lid a d e c irc u n d a n te
d o D ireito, q u e v e m a se r to m a d a e m c onta p a ra q u e haja u m
e n c o n tro efetivo d o juspo sitiv ism o com a r e a lid a d e histórica
e social, já q u e n a p ró p ria tessitu ra d o D ireito fo rm al d e há
m u ito se in se riu o ele m e n to subjacente d o ius e d a aequitas,
v in d o a faltar, a p e n a s, a concreção d a s re a lid a d e s sociais na
c o n stru ç ão form alística d a lei.
H á , p o r o u tro lad o , u m crescim ento o u tran sição n a co n s­
trução sim bólica d a cidadania, até, q u e m sabe, p o r u m ac ú m u lo
d a m e n te social coletiva ou p a ra u s a r d a in su p e rá v e l e x p re s ­
são d e JU N G , m e d ia n te a r q u é tip o s ancestrais.
Jung nos dá a idéia de arquétipos no seguinte exem plo: “ P erm itam -m e a seguin­
te c o m paração: su ponham os que nos incum biram de de scre ve r e explicar um e d i­
fício cujo andar m ais alto foi construído no século XIX e cujo andar térreo data do
século XVI. Investigações mais acuradas das paredes nos revelam ainda que esse
edifício foi reconstruído a partir de uma torre do século XI, No porão descobrim os
alicerces rom anos e abaixo do porão encontra-se um a caverna soterrada. No fu n ­
do dela se encontram instrum entos de pedra na cam ada superior e restos da fauna
da é poca na ca m ada inferior. Essa construção se a ssem elha de certa fo rm a à
im agem de nossa estrutura psíquica: vivem os no andar m ais alto e só v a g a m e n te
s a b e m o s que o a n d a r té rre o é re lativa m e n te an tig o. E so b re o que se e n co ntra
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
A c o nsiderar essa revivescência há q u e se v er q u e os concei­
tos d e cid ad an ia e d e justiça atribuídos à m u lh e r v ê m d e ser
reto m ad o s e m p leno século XX, a inda q u e a princípio sob um a
ótica d e D ireito N a tu ra l a ser p o sitivado - D eclaração U niver­
sal d o s D ireitos H u m a n o s d a O N U , d e 1948 e posteriores A cor­
d o s e C onvenções assinados com vistas à ig u a ld a d e n a política,
n o trabalho, n a vida social, enfim , n o espaço público.
O u n a ótica d o s a rq u é tip o s, quiçá há u m a r e to m a d a d a p a r ­
ticipação política d a m u lh e r, igual ao o u tro g ê n e ro , c u ltu ra
essa q u e s e g u n d o e stu d io so s p ro s p e ro u e m civilizações e é p o ­
cas arcaicas, o u m ais antigas, n ã o o b sta n te tal v e rte n te não
h a v e r s id o v e rs a d a p e lo p rec la ro JU N G , a té p o r q u e d u r a n te a
su a época, o a rq u é tip o d a m u lh e r se circunscrevia à m ãe, que
é id en tific ad a ao yin chinês, e n q u a n to o a rq u é tip o d o pai, re ­
la c io n a d o ao yang, d e te rm in a v a a relação com a lei e com o
E stado, p o rta n to , acrescento eu, com o p o d e r.
O ra, h á e s tu d o s a rqueológicos q u e n o s lev a m a asse v e rar
q u e n ã o é d e to d o im p ro c e d e n te tal p o ssib ilid a d e . N ã o se qu er
com isso criar n o v a tese, c o n tu d o h á q u e se ressa lta r q u e os
e s tu d o s e p e sq u isa s sobre a v id a arcaica d a H u m a n id a d e d ã o
c onta d e q u e h á u m im p u lso inicial p a ra c o n s id e ra r u m a e ta ­
pa d a h u m a n id a d e q u e se assentava em u m a igualdade entre
ho m en s e m ulheres, ou até d e desequilíbrio nessas relações em
d etrim ento d o hom em . Tal assertiva nos vem d e BACHOFEN,^^
abaixo da superfície não tem os conhecim ento algum ” . Esse exem plo com a infor­
m ação da com plexidade da questão acha-se em CAR L G. JUNG , in: Civilização
em Transição. Trad, de Lúcia M athilde Endiich Orth, 2. ed. Petrópolis: Editora Vo­
zes, 2000, pp. 35 e segs.
" Bachofen é citado por Joseph C am pbell et allii, in: Todos os n om es da Deusa.
trad, de Beatriz Pena, Rio de Janeiro; Record - Rosa d o s Tem pos, 1997, p. 63.
Ver, igualm ente, Friedrich Engels, in: A Origem da Família da Propriedade Privada
e do Estado, trad, de João Pedro G omes, Lisboa-M oscou: Editorial “A vante!", 1985,
O a u to r citado é Johann Ja kob Bachofen (1815-1887), historiador e jurista suíço,
autor de “0 Direito M aterno” .
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
q u e c o n sid e rav a o m atria rca d o com o a form a m ais prim itiv a
d a so c ie d a d e h u m a n a . Aliás, esse ú ltim o p e s q u is a d o r é u m
d o s a u to re s e s tu d a d o s p o r ENGELS q u a n d o d o d e se n v o lv i­
m e n to d e su a s p e sq u isa s q u e v ieram e m b a sa r a su a ob ra so ­
b re a Fam ília e a P ro p rie d a d e.
P o r o u tro lado, h á evidências d e u m e q uilíbrio d e direitos
e n tre h o m e m e m u lh e r n o Egito Antigo. P rim eiro, pela rele­
vância d e su a d e u s a ISIS, q u e en c arn a v a a p ró p ria im a g e m d o
Egito, s e g u n d o a p a la v ra a u to riz a d a d a e g ip tó lo g a CHRISTIA N E DESRO CHES NOBLECOURT.
Era o u to rg a d a lib e rd ad e à m u lh e r egípcia q u e n ã o c o n h e ­
cia a tutela, com o ocorreu com a m u lh e r ro m a n a ; em m até ria
d e d ire ito s d e sucessão, os q u in h õ es e ra m ig uais p a ra os h o ­
m e n s e p a ra as m u lh e re s e p o d ia m elas escolher o seu m a ri­
d o, o q u e n ã o acontecia com as ro m a n a s, e p o r a ta v ism o cul­
tu ra l n ã o existia tam b é m tal lib e rd a d e às m u lh e re s d o m u n d o
o cidental, p a rtic u la rm e n te d a P e n ín su la Ibérica. P o r via de
conseqüência, as m u lh e re s brasileiras d a época colonial não
g o z a v a m d e ssa lib erd ad e, h a v e n d o tal fato se e s te n d id o até
a lg u m a s d é c a d a s atrás.
D á-nos conta NOBLECOURT q u e a m u lh e r egípcia gozava
d e a m p la cap acid ad e jurídica - referindo-se à m u lh e r não-escrava - e o q u e é m ais curioso é q ue a m u lh e r casada, n o início
d a XIII dinastia - cerca d e 1785 a.C. - era d e tentora d e u m a
a m p liad a cap acid ad e legal, p o d e n d o até convocar o seu pai em
Juízo, a fim d e p ro teg er os seus p ró p rio s interesses p r iv a d o s /'
A o revés, até 1962, em nosso país, à m u lh e r c a sa d a era im ­
p u ta d a u m a in c a p a c id a d e relativa, em face d o C ó d ig o Civil
q u e assim o d e te rm in a v a e m seu artigo 6 ° . Era a m arca pro2’’ Sobre a m ulher no Egito Antigo, ver C hristiane Desroches N oblecourt, in: A
M u lh e r no Tempo dos Faraós, trad, de Tânia Pellegrini. Cam pinas, SP: Papirus,
1994, Sobre as inform ações acim a, ve r pp. 207 a 216, passim.
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
fu n d a d o D ireito R om ano, tra z id a até n ó s via C ó d ig o Civil
N apoleònico, este, d esp restig iad o r d o direito d a s m u lh e res po r
força d a v elha tese d a in ca p a c id a d e d o sexo fem inino. Foi essa
v e rte n te q u e se d ifu n d iu no D ireito O cidental, fo rm u la d o ao
longo d o s séculos e d e forte laivo religioso e m face d a s d o u tri­
nas d e se n v o lv id a s d u r a n te a Id a d e M édia, e q u e n o fen ô m e ­
n o d a a c u ltu ra ç ã o p e rm e o u os vários o rd e n a m e n to s jurídicos
d o s p aíses e u ro p e u s ocidentais.
Em re s u m o d o C apítulo, im p e n d e d iz e r q u e h á u m a lin­
g u a g e m re d u c io n ista c o n stru íd a em face d e excluir a m u lh e r
d a u s u fru iç ã o d e d e te rm in a d o s e stados, s o b re tu d o q u a n d o se
trata d e e sta d o s d e "graça intelectual", forjadora d o p o d e r,
a p o n ta n d o - s e a q u i u m a p r ó p r i a r u p t u r a c o m o d is c u r s o
h e u rístic o sobre o q u a l a Justiça em su a o rig e m está a s se n ta ­
d a . N a v e rd a d e , h á u m a lu ta im plícita e silenciosa d e n tr o d a
qual se o p e ra m interesses c om o os d e se n v o lv id o s p elo T rib u ­
nal In quisitório, o q u a l o p e ra v a com a ap rio riz a ç ão d e certos
conceitos com o os e x p e n d id o s em Bulas e n o fam o so Malleus
Malleficarum, q u a n d o " d o g m a s " e ra m estabelecidos p o r v á ri­
o s p ro c e sso s intelectivos e, p o r via d e co n seq ü ê n c ia, pelos
p ro cesso s judiciais d e n a tu re z a nâo-dialética.
A o sa b o r d o s séculos, ver-se-á u m a r u p tu r a epistem ológica n o d isc u rso jurídico e p a rtic u la rm e n te no tem a d o p o d e r.
CAPÍTULO 5
O CONVENTO: LOCUS DE CIDADANIA DAS MULHERES?
T em os v isto ao lo n g o de ste trabalho q u e a c id a d a n ia é h is­
to ric am e n te e x pressão d e u m gênero - m a sc u lin o - e d e u m a
elite econôm ica e c u ltural d u r a n te o p ro ce sso d e co n q u ista
d a q u e le s direitos.
41
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
Foi assim e m A te n a s e e m Rom a. Foi assim d u r a n te a Id a d e
M édia, cujos e sta m en to s senhoriais, ao lad o d o C lero, d e ti­
n h a m a p a la v ra e o p o d e r decisório. Foi ig u a lm e n te a ssim p o r
ocasião d o Ilu m in ism o , pois afora a m arg in aliza ç ã o d a m u ­
lh e r n o p rocesso político, com o v im os, p o r e xem plo, n a C o n s­
titu iç ã o francesa d e 1793, esta e a p ró p ria R evolução F rancesa
p riv ile g ia ra m o p rin cíp io censitário, afora o h a v e r excluído o
d ire ito d e v o to às m ulheres.
O q u e se verifica em v e rd a d e é a p revalência d a lei d o p r o ­
cesso legal form al, v ale dizer, q u e os d ire ito s e fa c u ld a d e s le­
gais estã o g a ra n tid o s, sem q u e haja q u a lq u e r ten ta tiv a d e se
assistir o in d iv íd u o , n o u so d esses p o d e re s. S o b re tu d o , q u a n ­
d o esse in d iv íd u o tem p a p é is sociais fem ininos.
P o r o u tra p a rte , os critérios p ohticos d e se n v o lv id o s d u r a n ­
te e a p ó s a crescente vaga d o Ilu m in ism o e s b a rra v a m -s e na
face d a justiça form al, p o is o su frágio era exercido o u p elo
re g im e censitário o u p elo p rin cíp io capacitário.
Pelo p rim e iro , os negócios d a c o m u n id a d e n acio n al d e v e m
e s ta r afetos à q u e le s q u e d etêm interesses rea is o u p o r p o s s u í­
re m b e n s o u p o r terem re n d a s q u e ju stifiq u em o d ire ito ao
v o to e à p articip a ç ão n o n egócio público.
M e d ia n te o se g u n d o princípio, esse d ireito seria conferido
n ã o a p e n a s à q u e le s q u e c a p itu la v a m n a s itu a ç ã o a n te rio r,
p o ré m e ra b a s e a d o tam b é m n a ca p ac id a d e, n o d isc e rn im e n ­
to, n o ter títulos acadêm icos e n o ter in d e p e n d ê n c ia suficien­
te, p re s s u p o s to s , s e g u n d o a teoria, d e q u e só esses c id a d ã o s
tê m tirocínio p a ra a decisão d a s políticas a se re m a d o ta d a s
p e lo s governos.^®
H ouve um critério de voto plural existente no sistem a belga de votação, em
1893, O sufrágio m asculino universal foi aí adotado, porém com ca ra cte rísticas no
m ínim o curiosas. T ratava-se dos votos extras concedidos a p è re s de famille. que
houvessem atingido a idade de 35 anos. Essa inform ação está contida em Reinhard
CIDADANIA DA MULHER, LIMA QUESTÃO DE JUSTIÇA,
C o m o incluir aí as m u lh e res, q u e n ã o sa b ia m ler o u escre­
v e r n a m a io r p a rte delas? O ra, o sa b er n as m u lh e re s se m p re
foi e s tig m a tiz a d o e m função d e a rg u m e n to s q u e jam ais su b ­
sistiriam n o m u n d o atual. A saída p a ra o acesso à in stru çã o e
à c u ltu ra era a v id a religiosa, sem , e n tre ta n to , h a v e r co m o ex­
p a n d ir d e te rm in a d a s vocações literárias o u a p tid õ e s intelec­
tu ais m ais conspícuas. A o contrário, ten ta v a -se o b staculizar
o u a té p u n ir essas m anifestações o u " d e s v a rio s " d a m e n te fe­
m in in a m e r g u lh a d a n a e scu rid ão d a s letras.
A Inquisição e s p a n h o la lev a n to u s u sp e ita s s o b re S an ta T e­
resa D 'Á v ila , q ue, s e g u n d o A R TH U R STANLEY TURBEVILLE, é a m a io r e m ais a m á v e l d e to d o s os m ísticos espanhóis.
M e s m o a s u a a u to b i o g r a f i a e s p i r i t u a l foi d e n u n c i a d a à
Inquisição, a q u a l lev o u d e z anos p a ra d e c id ir se a leitura era
o u n ã o c o n v e n ie n te p a ra os cristãos.
U m destin o assem elhado ocorreu com Juana Ines d e la Cruz.
Im p e lid a p e la v o n ta d e d e d e s e n v o lv e r a le itu ra e h a v e n d o
d e sco b e rto q u e n ã o era p e rm itid o às m u lh e re s de d ic a r-se a
estu d o s, to m o u a decisão d e e n tra r e m u m c o n v e n to , o n d e leu
u m a im e n sid ã o d e livros d e C iências, d e H istó ria e d e p o e s i­
as, afora ser le v a d a a u m m isticism o p r ó p rio d a época. Fez
p r o fu n d a s m ed itaç õ e s e e screveu bastan te.
E c o n s id e ra d a a p rim e ira voz fem in in a d a s A m é ric a s que
teve a c o ra g e m d e d iz e r q u e to d a s as p e sso a s tin h a m o m e s ­
m o d ire ito à educação.
N ã o foi, e n tre ta n to , c o m p re e n d id a p e la s u a c o m u n id a d e ,
Bendix, in: Construção N acional e Cidadania, trad, de M ary A m azonas Leite de
Barros. São Paulo: Editora da Universidade de Brasília, 1996, p. 133. A expressão
em francês é do original.
^ Ver A rthur Stanley Turbeville, La Inquísicion EspaHola. M éxico/D F: Fondo de
C ultura Econôm ica, 1985, p. 96.
44
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
h a v e n d o sid o p ro ib id a d e co n tin u a r a escrever sob p e n a d e
ser e x p u lsa d o convento.
M u ito s são os casos o corridos e m q u e m u lh e re s d 'a n ta n h o
v ira m n a v id a religiosa e c o n v e n tu a l a form a m a is viável d e
exercer u m a cid a d a n ia, a in d a q u e lim itada.
NATALIE Z E M O N D A VIS pesquisou a história d e M arie de
rin c a m a tio n , que em igrou para a América, im pulsionada pela
v ida religiosa, in d o ao C anadá onde se d edicou à instrução dos
autóctones. A princípio, escreveu em língua francesa e, após, nas
línguas am eríndias locais. Corria o início d o século XVII.^’
Só o C o n v e n to p ro p ic iav a o direito básico d e c id a d a n ia , ou
seja, o sa b er ler e o escrever. E em e scalada g ig an te , v e r p u b li­
cad o s os se u s escritos. N a s p a la v ra s d e M Ô N IC A RECTOR:
"As religiosas ocupam uma posição ambígua dentro da socieda­
de patriarcal. A representação das freiras, até o século XX, sem­
pre ofereceu ao leitor estereótipos que variam desde criaturas
impotentes, até seres perversos e até mesmo imorais. Apesar de o
convento ser considerado abrigo para mulheres, tornar-se freira
muitas vezes significava uma rebelião contra o sistema patriar­
cal
Quando as religiosas puderam escrever, passaram a es­
crever sobre elas mesmas e a desconstruir os estereótipos, desafi­
ando
0
conceito tradicional associado às freiras"
30 Juana Ines de Ia Cruz era m exicana e desenvolveu os seus do le s de poetisa no
âm bito do C onvento para o qual entrara, “Convidada” a renunciar à literatura religi­
osa, abandona os seus escritos, vende a sua biblioteca em favor dos pobres. Para
m ais detalhes, ver Cadernos de M ulheres da Europa, n° 37, 1492: P re s e n ç a s de
M u lh e re s , C om issão das Com unidades Européias, Bruxelas, [s.d.].
Ver Natalie Z em on Davis, A/as M a rg e n s -T rê s M ulheres do século XVII, Trad, de
Hitdegard Feist, S ão Paulo: C om panhia das Letras, 1997, pp. 65-131.
= Ver M ônica Rector, in: M ulher Objeto e Sujeito da Literatura Portuguesa, PortoPorluga!: Edições Universidade Fernando Pessoa, 1999, p. 112.
A Autora relaciona várias religiosas que usaram de sua aptidão intelectual para
escre ve r poesias (S óror Violante do Céu); autos, com édias e hagiograíias (Sóror
M aria do Céu): novelas (Sóror M adalena da G lória). E Sóror M ariana Alcoforado,
que a Autora considera em lugar de realce.
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
O ra, a Id a d e M édia, longa com o foi, p o is d u r o u q u a se 11
(onze) séculos, é u m a e ta p a d a h u m a n id a d e b a s ta n te c o m p le ­
xa p a ra u m a análise rá p id a no q u e tan g e ao tem a q u e aqui é
d e sen v o lv id o .
De q u a lq u e r â n g u lo , h á q u e se ratificar q u e a relig io sid ad e
e tu d o q u e lhe foi in ere n te - a criação d e v á ria s o rd e n s religi­
osas, a sa cra lid a d e d o Direito, o m isticism o etc. - a lav an co u
u m estilo d e v id a p ró p rio , s o b re tu d o n o q u e d iz resp e ito à
co n d ição d a m u lh e r, esta q u e se d e s e n v o lv e u in te le c tu a lm e n ­
te n o recinto d e ssa s instituições. P o rtan to , a " c id a d a n ia " , q u e
tim id a m e n te d a í em ergia se c ircunscrevia n o â m b ito d o s c on­
v e n to s e d a v id a religiosa. O ra, é p rec isam e n te n o s c o n v en to s
e m o ste iro s o local e m q u e se e n c o n tra v a m bibliotecas, pelo
m e n o s d e n tro d e u m m arco tem p o ral p o r vo lta d o século oita­
vo (VIII) e m d ian te. O D ireito escrito era lim ita d o a d e te rm i­
n a d a s regiões e m fu n ção d a s U n iv e rsid a d e s, c ria d a s a p a rtir
d a d e B o lo n h a e circunscritas ao m u n d o c o n v e n tu a l, o q u e
d e u à Igreja u m a função d e v a n g u a rd a q u a n to ao a sp ec to in ­
telectual e d e p ro p a g a ç ã o d a Teologia. M as, p o r o u tro lado, às
m u lh e re s n ã o cabia e n ã o lhes era p e rm itid o in g re ssa r n essas
Escolas, as q u a is só a d m itia m h o m e n s q u e p u d e r a m se n o ta ­
bilizar, co m o o c o rre u com Santo A lberto M agno, São T om ás
de A q u in o , Santo Ivo, A b elardo e o u tro s tantos.
P o r o u tro tu rn o , sabe-se q u e n o v e m u lh e re s freiras d e s e n ­
v o lv e ra m a tiv id a d e d e copista; tal fato é c o n h e cid o e m d o c u ­
m e n to religioso existente, o q ual foi c o p ia d o p a ra o A rcebispo
d e C o lônia, e m p len o século IX, sa b id o q u e essa era u m a ati­
v id a d e in telectual d e m u ita relevância ex ercida n o s scriptoria
d o s c o n v e n to s e m osteiros.
A posteridade tom ou conhecim ento dessas m ulheres pelos seus nomes, assina­
dos no próprio docum ento. São elas: G irbalda, G isliidis, A gleberta, Aduhic, Altildes,
45
46
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
P o rta n to , o s a b er e os livros n ã o e ra m d e acesso público. O
sa b er e stav a p ra tic a m e n te c o n c en trad o n o recinto d a s O rd e n s
Religiosas e, após, já n a Baixa Id a d e M édia, n a s U n iv e rs id a ­
d e s c ria d a s n o â m b ito d a s g ra n d e s C ated rais, e.g., d e O xford,
Paris, S alam anca, P á d u a etc.
M e sm o assim , a lg u n s d o s r e g u la m e n to s d a s bibliotecas d a
Id ad e M édia e ra m rigorosos, q u a n to ao u so d a s m esm a s, com o
o re g u la m e n to d a Biblioteca d a U n iv e rs id a d e d e O xford, o n d e
foi estabelecido q u e só os g r a d u a d o s o u religiosos, a p ó s oito
an o s d e e s tu d o d a filosofia, p o d e ria m utilizá-la. A o la d o de
q u e só p o d e ria m u s a r os livros com o zelo n e cessário p a ra q u e
n e n h u m d a n o o u p rejuízo p u d e s se a d v ir d o m a n u se io , com o
ra s u ra s e e stra g o s n o s ca d ern o s o u fólios.
A p ro p ó sito , RÉGINE PE R N O U D noticia q u e o status d a
m u lh e r n a Igreja d a Id a d e M édia é o m e s m o q u e o v iv id o na
so c ie d a d e civil e o q u e conferia a u to n o m ia , in d e p e n d ê n c ia e
in strução, foi aos p o u c o s se n d o retira d o d a m u lh e r a p ó s a I d a ­
d e M édia. E cita aq u e la A u to ra a d e g ra d a ç ã o oco rrid a em te m ­
p o s m o d e rn o s q u a n d o o c o n v e n to d a O rd e m d e F o n te v ra u lt,
0
q u a l n o s p rim e iro s anos d o século XII, R obert D 'A rb rissel
h o u v e ra ali f u n d a d o dois conventos, u m m a sc u lin o e o u tro
d e m u lh e res. Tal m o ste iro foi p o sto sob a a u to r id a d e d e u m a
a b a d essa , P etro n ila d e C hem illé, a su a p rim e ira d ire to ra , que
e stav a e n tã o com 22 anos.
N o século XVI, o rei d a França, t o m a n d o a si a c o m p e tê n cia
G isledrudis, Eusebia, Vera e Agnés. Essa inform ação acha-se con tid a no prefácio
de autoria de M arina Colasanti, na obra Lais de M aria de França, trad, de Antonio
L. Furtado, Petrópolis, RJ: Vozes. 2001, p. 12,
Há d o c u m e n to intitulado M onum enta A cadêm ica o r D o cu m e n ts llustrative o f
A ca d e m ica l Life a n d Studies a t Oxford, transcrito por M aria G uadalupe Pedrero Sanchez, in: História da Idade t^édia - Textos e Testem unhas. S ão Paulo; Editora
UNESP, 2000, pp. 187-188.
CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTiÇA
d e n o m e a r a b a d e s s a s e abades, fez d e F o n tre v ra u lt u m asilo
p a ra as s u a s velhas am antes.
D o q u e se infere se r a m onja u m a p e sso a g o z a n d o d e " re ­
g a lia s” q u e d e o rd in á rio n ã o era c o m u m ter n a casa d o s pais^
a m e n o s q u e se tra tasse d e m u lh e res n o b res, s e n d o e d u c a d a s
n o s c o n v e n to s e a elas era d e s tin a d a u m a e d u c aç ã o e sm erad a.
D e q u a lq u e r sorte, n o s co n v en to s a p re n d ia -s e a ler, a escre­
ver, a cantar. A lg u m a s a p re n d ia m o latim e h á casos d e m o n ­
jas q u e sa b ia m o g reg o e o h ebraico. É o caso d a p rin c e sa Isa­
bel, irm ã d e São Luís, f u n d a d o ra d a A b a d ia d e L o n g ch am p ,
q u e , s e g u n d o relato d e GENEVIEVE D 'H A U C O U R T , c o n h e ­
cia o latim tão b e m o u m elh o r q u e os seus capelães.^^
A c id a d a n ia relacionada à m u lh e r, e m s u a acepção m ais
a m p la , n ã o e ra a p a n á g io d a v id a civil, pois o lócus o n d e era
possível vivê-la d e n tro d o s p a d rõ e s d a época, situ a v a -se na
v id a c laustral, p ois a q u i as tarefas fem ininas n ã o e ra m a p e n a s
as e sse n c ialm en te d e feitio p riv a d o , com o c u id a r d a s a tiv id a ­
d es do m ésticas, o u o u tra s tarefas q u e se d ire c io n a v a m a o p a ­
pel fem inino: saber ler os livros d e H oras, q u a n d o se tra ta v a
d e castelãs o u b u rg u e s a s e n v ia d a s aos c o n v e n to s p a ra b u r ila ­
re m a ed u c aç ã o , b o r d a r p a ra si e p a ra a s igrejas etc. O s p a p é is
d ito s " m a s c u lin o s " ta m b é m e ra m ali e x e c u ta d o s , c o m o já
m o stra m o s antes. F alam os atrás q u e a A b a d e ssa H ild e g a rd
V on B ingen foi u m a cientista, m usicista, c o m p o sito ra e escri­
tora d e livros sobre M edicina, além d e h a v e r escrito vários
tra b a lh o s m ísticos. P E R N O U D n o s revela, ig u alm en te , q u e foi
u m a m u lh e r, D 'h u e d a , q u e m e la b o ro u u m p rim e iro tra ta d o
Dados colhidos em Régine Pernoud, in: Idade M édia: o que não nos ensinaram ,
trad, de M aurício B rett M enezes, 2. ed. (rev.). Rio de Janeiro: Agir, 1994, pp. 112114.
" Ver G enevieve D’Haucourt, in: A Vida na Idade Média, trad, de O linda Fernandes,
Lisboa: Edição Livros do Brasil, [s.d.J, p. 112.
48
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
sobre educação, aliás, escrito e m latim e esse fato se d á em
to rn o d e 841-843.""
E tu d o isso ocorria e n q u a n to d o lad o d e fora d o s claustros,
e m a m b ie n te fec h a d o d a s U n iv e rsid a d e s, esp ec u la v a-se so­
b re te m a s p r o fu n d o s d a T eologia, d a Justiça e d a M oral. Pois,
n a Baixa Id a d e M édia, renascia o interesse p o r ARISTÓTELES,
rev iv id o p o r seu c o m e n ta d o r á rabe AVERRÓIS (1126-1198),^®
c a b e n d o a este a in g en te tarefa d e te n ta r in stitu ir u m d iálogo
e n tre a tra d içã o m u ç u lm a n a , o p e n s a m e n to d e s u a co n tem p o ra n e id a d e com a c u ltu ra grega clássica. A lógica aristotélica
era tra z id a à tona pe la s trad u çõ es rea liz a d a s p o r esse filósofo
m u ç u lm a n o , te n d o com o fio c o n d u to r a h isto ric id a d e e a u n i­
v e rs a lid a d e d o conhecim ento, le v a n d o a E u ro p a a s e r d e p o s i­
tária d o s a b er racional, a p ó s a a p re e n sã o d a tra d u ç ã o d o s tex­
to s clássicos p o r A lberto M a g n o e T o m á s d e A q u in o , d u r a n te
a Escolástica, e, após, ser rev iv id o p elo Ilu m in ism o ao sa b o r
d a s idéias d o s enciclopedistas e d o s cientistas cartesianos.
Assim, a categoria d o racional foi apropriada pelo m o v im en ­
to ilum inista, sep aran d o o religioso do laico, o p o d e r espiritual
d o tem poral, v in d o a atropelar a própria Igreja, acusando-a de
paralisia, d e imobilismo, d e usufruidora de privilégios, acarre­
tan d o u m a m u d an ça abrupta de rum o no M u ndo Ocidental, após
e a partir da Revolução Francesa. A cidadania continuou sendo
privilégio d o gênero m asculino, nas relações m ais contraditórias
d e u m m ovim ento d e m assas que deslocou o eixo d a História
p a ra frente e p a ra trás, com m archas e recuos, e m m eio a u m
processo quase irracional e incongruente pelos m étodos adotados.
Ver Règine Pernoud, op. cit., p. 117.
Averróis considerava AR IS TÓ TELES o mais sábio dos gregos. Dizia o filósofo
m uçulm ano que todos os que até então sucederam o insigne filósofo grego não
haviam sido capazes de acrescentar nada aos seus escritos. Ver AVERRÓ IS, tra n s ­
crito em Pedrero-Sánchez, op. cit., p. 65.
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
CAPÍTULO 6
RAZÃO l/ERSUS DESRAZÃO: A REVOLUÇÃO FRANCESA
N a d a foi m ais real q u e a Revolução Francesa. N a d a foi m ais
sim bólico q u e a m esm a R evolução Francesa.
N e sta, a Razão foi erigida a u m n icho d e adoração. Por ela,
criaram -se e d e stru íra m -se m itos q u e ro la ra m ao m e sm o tem ­
p o e m q u e ro la v a m as cabeças na guilhotina.
O liberalism o a co n ch e g a d o n a s idéias ilu m in ista s tro u x e o
p o sitiv ism o e m su a s m ais a m p la s concepções, e n o s m ais d i­
ve rso s dom ínios.
A concepção do m o n u m en to jurídico, form ado e form ador da
lei com o expressão da justiça, destronca-se d aq u ela junção aca­
dêm ica d o }us e d o Fas, q u a n d o leis e cânones se fu n d iram para a
form ação d o Direito C om um . Em outras palavras, d o In utroque
iure, com vistas a obter o jurisconsulto com pleto, aquele q ue fos­
se versado tanto no Direito Canônico com o n o Direito Civil.
Esta é u m a fase q u e se inicia a in d a no século XII, q u a n d o
D ireito R o m a n o e D ireito C anônico e ra m braços d ife ren te s d a
realização d a Justiça, p a ra , após, se e n c o n tra re m n a fo rm ação
d o D ireito C o m u m .
A p a rtir d a s e p ara ç ão d o cânone d a v e rd a d e científica, com
GALILEU, e d a div isão d o e speculativo d o e m p iris m o , com
N E W T O N , m u d a o contexto e a face d o m u n d o , e m q u e q u ase
c o m o u m m o v im e n to p e n d u la r, sai d e cena o e le m e n to m á g i­
co e e n tra n o p ro sc ê n io a R azão e o P ositivism o q u e se a n u n c i­
ará em seguida.
P rim e iro , A U G U S T O C O M TE, n a e s te ira d a s id é ia s
ilu m in ista s, tra ç a n d o os p a sso s d a Sociologia; d e p o is, o e n ­
c o n tro d e sta com a Biologia (SPENCER). O D ireito n ã o ficaria
infenso a essa vaga retu m b an te d o im pério d a razão , pois d esd e
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CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
JO H N LOCKE,
0
princípio s u p re m o d a justiça é o d e q u e a
todos é lícito fazer o q u e lhes apeteça, n a m e d id a q u e n ã o le­
sem com isso a lib e rd a d e igual d o s o utros. É a p ro v a d e q u e o
d ire ito d e u m é lim ita d o p e lo direito d o o utro. P o s tu la d o p e r ­
feito d o racionalism o.
As idéias ferv ilh a v a m e a q u e stã o d a lib e rd a d e -ig u a ld a d e
foi p o s ta n a p a u ta d a s discussões, n a m e d id a q u e se conferiu
u m p r im a d o p a ra a Razão.
A R azão foi u m a teorética e u m a experiência d a s m ais d e ­
v a sta d o ras, já n a I d ad e M oderna. A via p o r in te rm é d io d a qual
o fluxo e refluxo d e ssa s idéias to m o u c o rp o foi n o p r ó p rio d e ­
s e n ro la r d a R evolução Francesa. E e m o p e ra ç ã o m u ito reflexi­
va. p o is as ações o u o objeto d o M o v im e n to recaem n o p r ó ­
p rio sujeito d a R evolução.
N u n c a se falou tan to d e cidadania. E n u n c a ela foi tã o n e ­
g a d a e m term o s d e u m a ação d e reflexividade. A p a la v ra li­
b e rd a d e foi e n to a d a a to d o s os p u lm õ e s, ao m e s m o te m p o em
q u e a R evolução d e u u m se n tid o u n ív o co aos se u s sím bolos.
A s m u lh e re s a b rira m o seu espaço n a trajetória d o M o v i­
m e n to R ev o lu cio n ário e, o q u e é curioso, n ã o p e n s a v a m elas
d e fe n d e r a p e n a s a s s u a s v idas, o seu sexo, o seu d e s tin o in d i­
v id u a l. A p r e n d e ra m n o s tu m u lto s, n a s d e rrib a d a s d e prisões,
n a s re u n iõ e s d a A ssem bléia, n a s p a sse a ta s p a ra V ersailles, a
a g ire m d e form a coletiva, n ã o com o b a n d o , m a s c om o g ru p o ,
a exigir u m a a g e n d a d e reivindicações.
D esv elar a R evolução F rancesa é m ex er n u m m u n d o s im ­
bólico, sibilino, aliás, "tarefa difícil, p o is os m ito s e as im a ­
g e n s rec o b re m essa h istória com u m a e sp essa m o rta lh a tecida
p e lo desejo e p e lo m e d o d o s h o m en s".
Ver M ichelle Parrot, in: Os Excluídos da História - O perários, M ulheres e P risio­
neiros. Trad, de Denise Bottm ann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 187.
CIDADANIA Oft MULHER, UMA QUESTÃO D£ JUSTIÇA
A m u lh e r se e rg u e u d ian te d a q u e le s fatos e foi-lhes p e r m i­
tid o c ria r associações em to rn o d e seus interesses: associações
essas q u e v iria m a ser fechadas em n o v e m b ro d e 1793, q u a n ­
d o foram d isso lv id o s to d o s os clubes d e m ulheres.
L ev ad a a q u e stã o à C onvenção, fo ra m p o s ta s três in d a g a ­
ções ao s d e p u ta d o s d o s E stados-G erais, d u r a n te o p rocesso
rev olucionário: T’) p o d e m as m u lh e re s e x ercer d ire ito s políti­
cos e to m a r p a rte ativa n o s a ssu n to s d o G ov ern o ?; 2^) a re u ­
n ião d e m u lh e re s e m P aris d e v e ser p e rm itid a ? ; e 3‘") p o d e m
elas d e lib e ra r, re u n id a s e m associações p olíticas o u so c ie d a ­
d e s p o p u la re s ? D ian te d e ssa s q uestões, re s p o n d e r a m os co n ­
v e n c io n a is u m categórico “n ã o ", e sta b e le c e n d o a p a rtir d a í a
morte política d a s m u lh e res, já q u e p o u c o d e p o is o C ó d ig o
Civil N a p o le ô n ic o p re p a ra v a a su a morte civil.
E n q u a n to isso acontecia, p a ra d o x a lm e n te , a figura fem in i­
n a to rn o u -se sím bolo d a N ação, p ois foi a d o ta d a c o m o e m b le ­
m a d a R epública a d e u s a ro m a n a d a L ib erd ad e, a q u a l p a s so u
a se r c u n h a d a nos sinetes oficiais, n a s e s tá tu a s e n a s vin h etas.
A p re s e n ta v a a efígie o ar d e u m a jo v em o u d e m ãe , d e aspecto
f a m ilia r e q u e p a s s o u a s e r c a r in h o s a m e n te c h a m a d a d e
M A R IA N N E .
O q u e d e n o ta a forte carga d e sim b o lism o e m q u e a m u lh e r
e a m ãe, n ã o -d e te n to ra s d e c a p ac id a d e política, foram , e n tre ­
tan to , c o n v e rtid a s em e m b le m a s d a jo v em R epública q u e n a s ­
cia d o s esco m b ro s d a M o n a rq u ia A b so lu ta e d e c ad e n te .
E nesse contexto e m e rg e m as figuras d e O ly m p e d e G ouges,
d e M a d a m e R o lan d e d e ta n ta s o u tra s , q u e a s so m a ra m u m
lu g a r d e p ro a ju n to aos h o m e n s e a d e s p e ito d a s restrições
q u e d e fo rm a v e la d a o u ostensiva se n tia m n a pele. M e sm o
assim , n o s d e b a te s d a C onvenção, foi te m a tiz a d a a q u e stã o
d o v e s tu á rio fem inino, p o is a lg u m a s m u lh e re s u s a ra m touca
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CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
v e rm e lh a e assim o b rig a ram as o u tra s a im itá-las. Tal n ã o foi
v isto com a g ra d o p e lo s d e p u ta d o s , p o is te m ia m q u e a m u lh e r
se m ascu lin izasse, a p a rtir d o b a rre te v e rm e lh o e p o d e ria m
ta m b é m v ir a exigir o cinto com p istolas. Era a v e lh a q u e stã o
d a m u lh er viril d a Id a d e M édia e q u e a p arecia sob o u tra ótica
e e m o u tro contexto, a q u i m ais e x plicitam ente político.
De q u a lq u e r â n g u lo , no discu rso oficial d a R evolução, o
lu g a r d a m u lh e r e ra o lar, o espaço p riv a d o e a s u a re p re s e n ta ­
ção n o s am b ien tes públicos foi cerceada d e form a b a s ta n te c ru ­
el. P ara as m ais ativistas o u recalcitrantes, re s to u o cadafalso.
H a v ia , é certo, elem en to s q u e se p o d e ria c h a m a r hoje d e
a v a n ç a d o s p a ra a época. U sa v a m a su a v e rv e p a ra d e n u n c ia r
0
e s ta d o sob o q u a l e ra m s u b m e tid a s as m u lh e res. Foi o caso
d e T h o m a s P aine, o q u al, p a rticip a n te d o m o v im e n to re v o lu ­
cionário, d iz e m u m d e s e u s ensaios, q u e teve p o r títu lo " C a r­
ta d e circu n stân cia sobre o sexo fem inino", p a la v ra s d e u m a
análise sobre a situação d a m ulher:
"Em todas as eras e todos os climas, o homem foi para [as
mulheres] um marido insensível ou um opressor, mas elas
também suportaram ora a opressão fria e deliberada do orgu­
lho, ora a tirania violenta e temível do ciúme
Têm quase
tanto a temer da indiferença quanto do amor. Em três quar­
tos do globo, a natureza as colocou entre o desprezo e o
desvaUmento”
N ã o foi a n atureza responsável p o r esse desvalim ento; foram
os ho m en s em sociedade. A s m ulheres foram d e sp re z a d as p o r
B ernard Vincenti, in: Thom as P a in e - revolucionário da liberdade. Trad, de
Sieni M aria C am pos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p. 41. Diz B ernard Vincent
que Paine e scapou da guilhotina e que dele m uitos se afastaram em virtude de seu
“igualitarism o social” e de seus ataques im piedosos contra o cristianism o, Ibidem,
p. 13. Sem pre a questão da política e da justiça esteve presente nos m om entos de
m aior tensão e de decisão da História.
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
não terem a força física que passou a estabelecer os estereótipos
sociais, inclusive o d e sexo frágil, Era o "valor" d a época.
E n ã o o b sta n te o cutelo, já era ta rd e p a ra re p rim ir n o p r o ­
cesso histórico a m arc h a d o m o v im e n to d a s m u lh e res.
A lib e rd a d e era u m lem a; foi ta m b é m u m a a v e n id a aberta
n a e m a n c ip a ç ã o d a v id a d om éstica e - o m ais r e le v a n te - foi o
c a m in h o p a ra a libertação d e m a u s casam entos.
C o m a Lei d o D ivórcio, d e 20 d e s e te m b ro d e 1792, e com a
institu ição d o s trib u n a is d e fam ília, em a g o sto d e 1790, foi a
s e n d a a b e rta p a ra a solução d e c o n te n d a s fam iliares.
A Lei d e 1792 tin h a u m viés a c e n tu a d a m e n te liberal, pois
p re v ia sete m o tiv o s p a ra justificar o p e d id o d e divórcio. E ram
eles: 1) a in sa n id a d e ; 2) a c o n d en ação d e u m d o s cônjuges a
p e n a s aflitivas o u infam antes; 3) os crim es, sevícias o u in jú ri­
as g ra v e s d e u m cônjuge contra o o utro; 4) o d e s re g ra m e n to
p ú b lic o d e costum es: 5) o a b a n d o n o d o lar p o r d o is anos, no
m ín im o ; 6) a ausência d e u m deles, sem notícias, d u r a n te cin­
co anos, n o m ín im o ; e, finalm ente, 7) a em igração.
Ideolo g izo u -se d o ra v a n te a q u e stã o d o s d ire ito s d o c id a ­
d ã o , p o is d e d ire ito s n a tu r a is p a s sa m a d ire ito s h u m a n o s ,
p o sitiv a d o s, d e n tro a in d a d e u m a ótica religiosa c u n h a d a em
d e trim e n to d a m u lh e r.
A D eclaração d o s D ireitos d o H o m e m e d o C id a d ã o , v o ta ­
d a e m 26 d e a g o sto d e 1789, faz a inserção d e p rin c íp io s d e
atu a ç ã o in d iv id u a l, d e e s tru tu ra d o E stado, d a etiologia d o
p o d e r, a tra v é s d a lei e d o in stitu to d a rep re sen ta ç ão ; d e q u e s ­
tões d e n a tu re z a p ú b lic o -trib u tá ria e d e fo rm a re le v a n te tra ­
to u -se d e erigir a p r o p rie d a d e com o d ire ito inv io láv el e s a ­
g ra d o , o q u e era q u e stã o reco rren te d e s d e o D ireito R om ano.
E a q u i resid e o p ara d o x o : o m o v im e n to r e v o lu c io n á rio tra ­
ta o p ú b lic o d e form a d ire ta e c o n tu n d e n te , d e v a s s a n d o , in-
54
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
elusive,
0
m u n d o p riv a d o ; m as, p o r o u tro lad o , a p r o f u n d a n d o
os lim ites d o p ú b lic o e d o p riv a d o , d iferenciou os p a p é is soci­
ais, já há séculos diferenciados; o territó rio p ú b lic o p a ra os
h o m e n s, o p r iv a d o p a ra as m ulheres.
O m o v im e n to d a s m u lh e re s n o s e n tid o d e su a p a rticip a ç ão
política n o s d e stin o s d e seu p a ís foi a b o rta d o e m u m p rim e iro
m o m e n to , com a rad icalização d o reg im e e a s u a co n v ersão
n o T error, n a c o n tra m a rc h a d o m o v im e n to revolucionário.
E o p asso s eguinte foi a m u d a n ç a d o p o d e r p a ra as m ão s de
N apoleão, q u a n d o e m su a obra d e codificação d o D ireito Civil
francês, estabeleceu u m a condição ancilar p a ra a m u lh e r c a u ­
sa n d o inveja até p a ra a instituição fam iliar d o D ireito R om ano.
E a q u i se inicia o século d a técnica jurídica, d o p ositivism o,
d o s C ó d ig o s, d o fo rm alism o jurídico, d a s siste m a tiz a ç ò es e
d a s classificações a b stra ta s e genéricas.
D e n t r o d e s s a a b s t r a ç ã o e g e n e r a l i z a ç ã o h á q u e se
r e m e m o ra r q u e se o artigo 1° d a refe rid a D eclaração afirm a
q u e "O s h o m e n s n a sce m e p e rm a n e c e m livres e ig u ais e m d i­
reitos", esse p o s tu la d o é fruto d e discussões v ig o ro sa s h a v id a s
n a A ssem b léia e p r o d u to d e cadernos de queixas a p re s e n ta ­
d o s a o ensejo d o s E stados-G erais, m o m e n to n o q u a l as m u ­
lheres ta m b é m relacio n aram em cerca d e trin ta c a d e rn o s as
s u a s q u eixas e reclam ações d a condição v iv en c ia d a p o r elas.
Em n o m e d a ab stração e d a im p e s s o a lid a d e d a lei, to rn o u se a q u e la ig u a ld a d e in o p era n te , já q u e se v isu a liz a v a a p e n a s
a rac io n a lid a d e, s e m q u a lq u e r atenção às co n d içõ es subjeti­
v a s d a q u e la m in o ria social. P e rd e ra m -se n o te m p o a q u e la s
reivindicações; a b e m d a v e rd a d e , p o r u m lap so d e tem p o ,
p o is a a re n a social d o s g ra n d e s e m b a te s e d e b a te s ideológicos
su b stitu irá a a re n a d a g u e rra rev o lu c io n á ria d a q u a l p a rtic i­
p a r a m ig u a lm e n te as m ulheres.
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
N o front, m u ita s m u lh e res a c o m p a n h a ra m os m a rid o s; o u ­
tras, d isfa rç a d a s com v e stu á rio m asculino, a c o rria m na d ire ­
ção d o p e rig o d o s com bates.
Foi e le triz a n te o c h a m a d o d a Revolução. A ssim , é q u e o
C o m a n d a n te D u b o is c o m b a te u ao la d o d e s u a m u lh e r n o 7°
B atalhão d e Paris. A m b o s e n v e rg a n d o u n ifo rm e s m ilitares. O
e sp aço p úblico com eçava a ser in v a d id o p e lo s a to re s h isto ri­
c a m e n te rele g a d o s ao espaço priv ad o .
O u tra francesa d e n o m e M adeleine P eittjean foi ao en c o n ­
tro d o m arid o , s o ld a d o c a v a d o r d e trincheiras, q u e se achava
e m co m b ate contra os rebeldes d a Vendéia.'^'
A s irm ã s M arie e M aglom ar T e n a sso n e stiv e ra m ao la d o
d e irm ã o s co m o g ran a d e iro s, fa z e n d o as c a m p a n h a s d e 1792 a
1794, com os fed e ra d o s d e 83 d e p a rta m e n to s.
A lg u m a s m u lh e re s c o m b aten tes foram a g ra c ia d a s com o
títu lo d e alferes. Foi o caso d e A n g élique D u c h e m in , p e rte n ­
cente ao 42"^ R e g im e n to d e Linha; o m e s m o aco n teceu com
C a th e rin e P o c h e la t, p a rtic ip a n te d a to m a d a d a s T u lh e rie s,
u s a n d o u m ca n h ão e q u e e m v irtu d e d e s u a c o ra g e m , foi-lhe
d efe rid a a p a te n te d e alferes.
N a b a ta lh a d e Je m m a p es, M arie Schellink saiu ferida, h a ­
v e n d o s id o a ela c o ncedido, pelo G eneral R osières, a igual
p a te n te d e alferes.
D is s im u la n d o o s e u p r ó p r i o sexo, a v i ú v a d o c a ç a d o r
S o u te m a n n a , lu ta ra ao la d o d o m a rid o e h a v e n d o sid o este
m o rto e s a in d o ela ferida n a coxa, n a Batalha d e M arengo,
retiro u -se d o regim ento.
N ã o fazia sen tid o , p o rta n to , o d e s m e re c im e n to a q u e foA Vendéia se insurgiu contrarevolucionariam ente, em 1793, e pa ra enfrentar
essa dissidência foi convocado um exército de 300.000 hom ens. E ssa convocação
foi decid id a pela C o nvenção e a Vendéia esteve inflam ada até 1796.
56
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
ra m re le g a d a s as m u lh e res, n e m o refrea m e n to d e se u s d ire i­
tos, havendo-lhes sido indicado o cam inho d e volta ao território
dom éstico. N a contram archa da Revolução, foram pisados os
ideais d e liberdade, esta, q u e era o norte e a razão d e ser d o p r ó ­
prio m ovim ento sedicioso. Aliás, o hiato que se seguiu foi longo,
pois as m ulheres francesas e certam ente as d e to d o o m u n d o oci­
dental só retom ariam o elo p erdido no século XX, q u a n d o m an i­
festações d e rebeldia ocorreram no enfrentam ento d e forças con­
servadoras, para n ã o dizer m isógenas e antifeministas.
É o caso d a explosão d e m u lh e res oco rrid a e m 29 d e o u tu ­
b ro d e 1904, n a qual, em p ro te sto contra o re g im e d a m u lh e r
c a sa d a in stitu íd o n o D ireito Civil francês, d e c id ira m q u e im a r
e m p raç a pública - Quartier Latin - o C ó d ig o Civil.'*^
N o e n tre ta n to , o C ó d ig o Civil francês tin h a a m a rc a reg is­
tra d a d e N a p o le ã o B onaparte, o q ual fez q u e stã o d e fazer dela
a su a ob ra m ajestosa, p restig ia n d o as sessões d o C o n se lh o d e
Estado, e n c a rre g a d o d a feitura d o an tep ro jeto d e red a ç ã o d o
C ódigo, p re s id in d o ele p ró p rio 57 sessões d a s 140 e fe tu a d a s
p e lo C onselho, n a s q u a is d e c id iu im p o r as su a s op in iõ es p e s ­
soais n a elaboração d o s capítulos c oncernentes a o c a sa m e n to
e ao divórcio. Ele q u e dizia: "Será q u e n ã o v ã o fazer p ro m e te r
a o b ed iên cia d a s m u lh e res? ... Ela (m ulher) tem q u e s a b e r q u e
ao sair d a tu tela d a fam ília, p a s sa p a ra a d o m a rid o . O b e d iê n ­
cia! Esta p a la v ra aplica-se s o b re tu d o e m Paris, o n d e as m u ­
lheres p e n s a m te r o d ireito d e fazer tu d o o q u e querem ..
o m esm o Código que serviu de paradigm a ao nosso Código Civil de 1917, o
qual em seu artigo 6°, inciso II, considerava as m ulheres ca sadas relativam enie
incapazes, enquanto subsistisse a sociedade conjugal. Essa condição civil restritiva
de direitos só foi alterada por ocasião d o Estatuto da M ulher C asada, votado em
1962, pela Lei n° 4.121, de 27 de agosto, cham ada Lei Nelson Carneiro. Na v e rd a ­
de, a fonte primeira é d o D ireito Rom ano que considerava a s F em in a e (ou m ulieres)
relativam ente incapazes.
•*^0 p a rê n te s e é m eu. F ra se c ita d a em C a d e rn o s d e M u lh e re s d a E u ro p a , A s
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
C om efeito, o C ó d ig o Civil N a p o le ô n ic o foi u m m arco no
escopo d a re stritiv id a d e d o d ireito d a s m u lh e res, o q u e d e for­
m a d ire ta im p lico u n o re ta rd a m e n to d a c o n q u ista d a c id a d a ­
nia. A ssim , o p r ó p rio E stad o red u zia e p ro c ra s tin a v a a liber­
d a d e e a c a p ac id a d e d e ação d aq u elas.
A ntes d o C ó d ig o a lu d id o , a in d a n o século XVI, foi a lte ra d a
a m a io rid a d e d e m en in o s e m en in a s q u e era aos q u a to rz e anos
p a r a os jo v e n s m a s c u lin o s e d e d o z e p a ra as m e n in a s ; foi
tra n sfe rid a p a ra os vin te e cinco anos, e x a ta m e n te a id a d e da
c o n q u ista d a m a io rid a d e n o D ireito R om ano. E com a caracte­
rística d e q u e o p a i exercia u m p o d e r d e p ro p rie tá rio sobre os
filhos, p re c isa m e n te com o ocorria n a R om a A n tig a, o n d e o
pater familias tin h a e g o z a v a d o status de ãominus sobre to d a a
fam ília. D e tin h a o chefe da fam ília a potestas e a maniis.
O C ó d ig o C ivil tro u x e sérias restriçõ es à c a p a c id a d e da
m u lh e r q u a n to aos d ireitos civis - esses m ais a b ra n g e n te s - e
q u a n to à c id a d a n ia. A p ró p ria Lei d o D ivórcio, a n te s referida,
q u e foi c o n s id e ra d a p o r LY NN H U N T , a lei m ais liberal d o
m u n d o à época,"*^ foi m o d ificad a p elo C a p ítu lo VI d o C ó d ig o
Civil, r e d u z in d o -s e as c ausas p a ra o p e d id o e m a p e n a s três: a)
p o r c ondenação; b) p o r sevícias; e 3) p o r a d u lté rio . N o caso
dessa ú ltim a razão, o m a rid o p o d ia solicitar o d ivórcio, sob a
alegação d o a d u lté rio d a m u lh e r, e n q u a n to q u e esta só p o d eM ulheres na Fievolução Francesa. C om issão das C om unidades Européias, B ruxe­
las: n° 33, p. 24. É sintom ático aferir que Napoíeão tinha internalizado os valores
fam iliais do Direito Rom ano que punha as m ulheres sob tutela, q u alquer que fosse
a sua idade, ou estado civil - solteiras, casadas ou viúvas. A tu te la era perpétua,
pois as m ulheres se a chavam sem pre sob o p o d er do hom em . Se solteira, do
próprio pater; se ca sa d a cum manu, dependia do m arido ou d o p a te r íamiíias d e s­
te. Se casada sine manu, a tutela recaía em seu próprio pater. As solteiras sem
p a ter e as viúvas, achavam -se sob a proleção do tutor. Sobre a matéria, ver José
Cretella Júnior, in: Direito Rom ano t^oderno. 4, ed. Rio de J aneiro: Forense, 1986.
Cfr. Lynn Hunt, Revolução Francesa e Vida Privada in: História da Vida Privada
- Da Revolução Francesa à Prim eira G uerra, trad, de Denise Bottm ann (partes 1 e
2) e Bernardo Joffily (partes 3 e 4), São Paulo: C om panhia d a s Letras, 1991, p, 39.
58
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
ria fazê-lo n a h ip ó te se d e o m arid o m a n te r " s u a c o n c u b in a na
casa e m c o m u m " . (Art. 230).
N a q u e s tã o d a p u n ib ilid a d e , reco n h ecid a a culpa d a m u ­
lher, esta e staria sujeita a d o is an o s d e p risão , e n q u a n to ao
m a rid o n a d a acontecia e m hip ó tese sem elhante.
O liberalism o a c en tu o u , pois, a noção d o p ú b lic o e d o p r i­
v a d o e d o s p a p é is m ascu lin o s e fem ininos. E o E stad o p o d ia
d is p o r d e tu d o : re g u la m e n ta v a a v id a nacional, a v id a fam ili­
ar; a lte ro u o calen d ário , in stitu in d o o d a R evolução; d e c id ia o
n o m e d o s filhos, a escolha d a s r o u p a s etc. E o racio n alism o
crio u a M A R IE N N E q u e se co n su b stan ciav a n o e m b le m a da
R epública, a d e u s a ro m a n a d a L iberdade, a q u a l era m o stra d a
e s ta m p a d a com face d a m u lh e r e d a m ãe, estas "tão d e s p ro v i­
d a s d e q u a lq u e r d ire ito po lítico ", n a e x p re s s ã o d a m e sm a
LY N N HUNT.^5
É in q u estio n á v e l q u e o sim bólico se im p re g n o u n o modus
vivendi d o p r ó p rio c o rp o social d a R evolução, m itifica n d o esse
social e o D ireito e faz e n d o com q u e to d a a H istó ria d essa
C o m o ç ã o seja m a rc a d a pelo rac io n a lism o e, ta m b é m , p elo
irracion alism o, d e form a b a sta n te contraditória.
O irracio n alism o era visível e fazia p a rte d a m ecânica do
M o v im e n to R evolucionário e d e seus paro x ism o s. E n q u a n to
o a rtig o 1° d a D eclaração d o s D ireitos d o H o m e m e d o C id a ­
d ã o p ro c la m a v a a ig u a ld a d e d e direitos e n tre os h o m e n s e o
a rtig o 7° ex o rta v a q u e " N e n h u m h o m e m p o d e ser a c u sa d o ,
p re s o n e m d e tid o fora d o s casos d e te rm in a d o s p o r lei e se­
g u n d o as fo rm as p o r ela prescritas....", a g u ilh o tin a n ã o p a ra ­
v a d e co n tab ilizar o n ú m e ro d e sacrificados.
A m u lh e r a tra v é s d e seus espíritos m ais v ig o ro so s foi alvo
d a R evolução, p o r razões a p a re n te m e n te d istintas. U m a, pela
Ibidem, p. 31.
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
o u s a d ia d e falar n a s A ssem bléias e d e h a v e r re d ig id o a sua
'Declaração d o s D ireitos da M ulher e da Cidadã" - O ly m p e
d e G ouges; o u tra , M a d a m e R oland, p o r se r u m a m u lh e r le tra ­
da e p articipante, h a v e n d o se to rn a d o egéria, isto é, conselheira
d o G ru p o Girondino,**^ foi igualm ente sacrificada. A p e n a s p ara
d a r e x e m p lo s m ais relevantes.
F oram a m b a s g u ilh o tin a d a s em n o v e m b ro d e 1 7 9 3 /'
C u rio sa m e n te , d ia n te d a abstração e g e n e ra lid a d e d o arti­
go 1° d a D eclaração d o s D ireitos d o H o m e m e d o C id a d ã o ,
su rg e d esse M o v im en to , e até d e form a p a ra d o x a l, u m c o n h e ­
c im e n to d o Outro, com o u m sem elh an te, c o m o a q u e le q u e
p o d e o c u p a r o lu g a r d o eu, a quele c om q u e m o eu se iden tifi­
ca e q u e , p o r isso, é ta m b é m d e te n to r d e d ire ito s e obrigações.
D e n tro d e s s a c a te g o ria d o O u tro , a m u lh e r e m u m a e sca ­
l a d a a s c e n s io n a l v e m a o c u p a r o s e u e s p a ç o , c o m o u m a
d ire tiv a v o lta d a a p len ific a r o conceito d e Justiça, este q u e
está s e m p r e e m m o v im e n to d in â m ic o , isto é, o " d ir e ito " é
c o n fe rid o p a ra d e s ig n a r o b e m d e v id o p o r injustiça, o u em
u m a re le itu ra m o d e r n a e m ais justa d o p e n s a m e n to d e S anto
T o m á s d e A q u in o , é d ire ito o q u e é d e v id o a o u tre m , s e g u n ­
d o u m a ig u a ld a d e . A q u i, a Justiça se c o n fu n d e c o m a ig u a l­
d a d e , o u a ela é e q u ip a r a d a d e form a c o n c re ta e re a liz a d a ,
p o r a n tô n im o d a injustiça.
Os girondinos constituíam uma facção dissidente de grupos radicais que p a ssa­
ram a predom inar entre os jacobinos. Na Assem bléia Constituinte, eles perfaziam
a ala de centro-direita e tinham esse nome em função da origem de deputados que
v inham da província da Gironde.
Durante o m ês de junho de 1794, 2.000 p e ssoas foram executadas em Paris e
consta que a guilhotina chegou a funcionar até seis horas por dia. Cfr. Frédéric
B luche e t allii, in: A R evolução Francesa, trad, de Lucy M agalhães, Rio de Janeiro:
Jorge Z ah a r Editor, 1989, p. 130.
60
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
CAPÍTULO 7
DIREITO - JUSTO ENTRE A RATIO E A DIGNIDADE HUMANA
O s e stu d io so s d a Filosofia d o D ireito têm e m m e n te q u e o
conceito d e "d ire ito " é passível d e significações. N o se n tid o
nu c le a r, acha-se acrisolada a p e rsp e c tiv a d e u m d ire ito in te i­
ra m e n te ju n g id o ao conceito d e justiça. É o d ir e ito - ju s to , a q u e ­
le q u e p o r excelência form a e inform a as reg ra s d a n o rm a tiv id a d e jurídico-legal.
A ju stiç a está e n c a s to a d a n o c írc u lo d e v a lo r e s d a s n o r ­
m a s j u r í d i c a s . O s v a l o r e s sã o , n o d i z e r c o n s p í c u o d e
R E C A S E N S SIC H ES, s e re s id e a is o u o b jeto s id e a is c o m o
q u e r e m o u tr o s jusfiló so fo s. S e g u n d o R E C A SEN S, p o d e m o s
d e s c o b r ir os v a lo re s n a s coisas o u e m c o n d u ta s q u e c o n s i­
d e r a m o s v a lio s a s, m a s q u e n ã o c o n s titu e m u m "pedazo de la
realidad de esas cosas o conductas", e, sim , são u m a q u a lid a d e
q u e e la s n o s a p r e s e n ta m n a m e d id a q u e c o in c id e m c o m as
e s sê n c ia s id e a is d e valor.^*®
A ssim , a realização d e u m valor, co m o a justiça, constitui
u m a q u a lid a d e relativa d a coisa q u e se tem com o p a râ m e tro ,
o u seja, estabelece-se u m a relação en tre essa coisa e com a idéia
d e valor, a in d a se g u n d o o respeitável e s tu d io so citado.
Daí, leva-se à investigação a questão da in d ep e n d ê n c ia entre
a categoria d a re a lid a d e e a categoria d o valor, sobretud o na
p ersp ectiva de q u e os valores, ou a lg u n s valores, não se
acham realizados na vida, p ois constatam os o contraste e n ­
tre aquilo q u e deveria ser e aquilo que é.
E, a in d a n o s d iz RECASENS, q u e a justiça p erfeita é algo
inalcançável, m a s n e m p o r isso d e ix a re m o s d e rec o n h e c e r q u e
a justiça é u m v alor, m esm o q u e c om m u ita freq ü ên cia trope■‘® Cfr, Luís Recasens Siches, /n: op. cil., p. 58.
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO D£ JUSTIÇA
cem os d ia n te d a s injustiças, as q u a is n o s su sc ita m a s u a nãoaceitação, p o r injustificadas em face d o valor.
E e m r e m a te diz: "O re c o n h e c im e n to d e u m v a lo r com o
tal v a lo r n ã o im p lic a q u e esse v a lo r se a c h e e fe tiv a m e n te re ­
a liz a d o " /^
C o m o p o n to d e p a rtid a d e ssa d iscussão , h a v e re m o s d e co­
locar esse raciocínio e n tre os term o s d a q u e stã o d e ste tem a: os
direitos de cidadania da m ulh er e a sua questão de justiça.
Ser o u n ã o ser, a d ú v id a secular d o ser h u m a n o e m face de
su a s circunstâncias.
O ra, é cristalino q u e a justiça se coloca e m m eio às ações e
exigências d e m ais d e u m sujeito, com "a fu n çã o específica d e
m a rc a r e n tre elas u m lim ite e u m a proporção h a rm ô n ic a " , d a í
a justiça ser essen cialm en te d e n a tu re z a social.^*^
N o C apítulo 1 desta m onografia, fez-se alusão à m ais rem ota
e conhecida teoria d a justiça, lucubrada p o r Pitágoras e p o r seus
discípulos. Esta Escola d e form a genial tratou d e expressar a jus­
tiça relacionada à igualdade o u correspondência d e term o s con­
trapostos. Tenta-se idealm ente conseguir a síntese dessa antítese
através d o n ú m e ro quad rad o , o u seja, aquele n ú m e ro q u e m ulti­
plicado p o r si m esm o, devolve o m esm o pelo m esm o, com o dito
p o r DEL VECCHIO. É u m a equivalência perfeita.
P o rta n to , d e n tro d essa id e a lid a d e , a justiça é ig u a ld a d e e
rec ip ro c id a d e. O s term o s dessa c om posição são exa ta m en te
iguais: 2 4-2 = 4.
M e sm o assim , a filosofia d a ig u a ld a d e , n a I d a d e Clássica,
n ã o alcan ço u as m u lh e re s , com o parcela ig u al à p arcela m as-
Cfr, autor citado, in op. cit., pp. 58-65. A frase em aspas foi por m im traduzida.
0 raciocínio é de D E L V E C C H IO ín; A Jusí/pa, Saraiva, 1960, p, 40, a p u d André
Franco M ontoro, Introdução à Ciência do Direito. 25. ed. (2- tiragem , S ão Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 168. O destaque é meu.
62
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
culina. O p r ó p rio ARISTÓTELES n ã o vê assim , p o is s e g u n d o
in fo rm a DEL V ECCH IO , n ã o existe p a ra o P e rip a tético um a
ig u a ld a d e m ate ria l e sim u m a c o rre sp o n d ên c ia d e valores.
E ntão d a í d e c o rre q u e a certeza d a ig u a ld a d e d o q u a d ra d o
to rn a -se d ú v id a , ou, q u e m sabe, h o u v e u m a a p ro p ria ç ã o da
teoria com d e s v irtu a m e n to , pois co m o d iz DEL V E C C H IO , o
p e n s a m e n to d o s pitag ó rico s p o d e ter sido m ais v a s to e m ais
p r o fu n d o d o q u e se conhece hoje, ou q u e h o u v e s se sid o co­
n h e c id o p o r A ristóteles, d e form a já alterada.
De q u a lq u e r sorte, infere-se q u e a Justiça C o m u ta tiv a trata
d e a trib u ir en carg o s e d ire ito s d isc re p an te s e n tre os d o is g ê ­
n ero s, e sta b e le c e n d o u m a inflexão n o fiel d a balança, n o q u a l
u m d o s p ra to s tem m ais p eso q u e o o utro. O s term o s c o n tra ­
p o sto s n ã o são vistos a q u i com o relação d e ig u a ld a d e e d e
recip ro cid ad e.
N a su c essã o d o s tem pos, vê-se q u e o g ê n e ro h o m e m / h u ­
m a n id a d e n e m s e m p re se ju sta p ô s à c ategoria p esso a. É o q ue
acontecia com a ca te g o ria m u lh e r , com a ca te g o ria escravo,
com o e x e m p lo s d e m aio r m a g n itu d e , espécies essas fora do
raio d e scritiv o d o gênero.
A m u lh e r p re c iso u e n tra r e m u m c a d in h o se cu la r d e lutas
a fim d e c o n q u ista r a s u a condição d e pessoa. A liás, MAX
SCHELLER a d m ite h a v e r u m a conexão ind iscu tív el e n tre a
essência d a m o n o g a m ia e o rec o n h e c im e n to d a m u lh e r com o
pessoa. E a crescenta q u e n o O riente M édio a p o lig a m ia é u m a
institu ição aceita e m função d e existir estreita co n ex ão com a
crença d e q u e a m u lh e r n ã o p o ssu i alm a, o u seja, d e n ã o se
e fetivar n a q u e la a condição d e p esso a, s e g u n d o o Corão.
A p u d G erson de Britto M ello Bóson, in: Filosofia do Direito - Interpretação A n tro ­
pológica, 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 183.
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
Parece n ã o ter sido diferente o p e n s a m e n to d e a lg u n s re p re ­
se n ta n tes d a Igreja Católica, n o tocante à condição fem inina.
R ÉGINE P E R N O U D n o s inform a q u e G re g ó rio d e Tours,
em s u a "H istó ria d o s Francos" relata q u e no S inodo d e M âcon,
d e 486, u m d o s p re la d o s fez o b se rv a r q u e n ã o se d e v ia c o m ­
p r e e n d e r as m u lh e re s sob o n o m e d o s h o m e n s , e q u e a p a la ­
v ra homo d e v e ria ser in te rp re ta d a n o s e n tid o latin o d e vir.^^
N a essência d a justiça, s e m p re se v iu a q u e s tã o d a alterid ad e e m su a realização. N ã o existe justiça sem a existência d e
p esso as, o u d e p e lo m e n o s d u a s pessoas. D a í o a firm ar-se q u e
cabe à justiça a fu n çã o d e d irig ir "a s o c ie d a d e d o s h o m en s".
O u , s e g u n d o D A N TE, a justiça é u m a relação p ro p o rc io n a l d e
h o m e m a hom em .
Só q u e a concepção d e h om em era d irig id a a p e n a s ao vir,
o u seja, ao h o m em com o oposição à femina - m u lh e r
enfim , a
idéia d o h o m em , sob o p o n to d e vista d as q u a lid a d e s m ásculas,
viris, v a le d iz e r, sob o â n g u lo d e u m e s te re ó tip o q u e v eio a
se r v in c a d o p r o f u n d a m e n te n o in c o n sc ie n te coletivo.
N o e n tre ta n to , a justiça c om o v a lo r d e c o n te ú d o d o D ireito
sofre m u d a n ç a s , e m conseqüência até d e p ro b le m a s d e a p li­
cação p rá tic a d a idéia d a p ró p ria justiça, pe la s m ais á rd u a s
co n tro v é rsia s teóricas e pelas m ais s a n g re n ta s lu ta s políticas,
n a s p a la v ra s a u to riz a d a s d o insigne RECASENS SICHES. Pois
a idéia d e h a rm o n ia o u d e p ro p o rc io n a lid a d e , n ã o m in is tra o
critério p a ra p ro m o v e r a dita h a rm o n ia o u p ro p o rc io n a lid a ­
de. De vez q u e aí se está d ian te d e u m d ire ito m e ra m e n te for­
m al ou, c o m o d ito p o r a quele e s tu d io so d a Filosofia d o DireiRégine Pernoud. op, o f., pp. 108-109.
" C itação feita por André Franco Montoro, op. c/f., p. 131. referindo a sua autoria a
C icero.
Idem, ibidem.
64
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
to, h á q u e se p re s s u p o r m e d id a s m ateriais d e v a lo r a fim de
q u e aq u e la justiça seja im p le m e n tad a .
A T eoria d o s V alores o u a E stim ativa Jurídica co m o c h a ­
m a d a p o r ele, p a rte d e o u tro s valores, a fim d e d a r su b stâ n c ia
à idéia d o d ire ito form al e positivado. A q u e s tã o d a d ig n id a ­
d e hum ana en tra com o m atriz desses princípios e, n ã o obstante
ser estofo d e filosofias o u d e c o n d u ta s seculares, só rec e n te ­
m e n te a p a re c e n o D ireito com o v a lo r a ter efetividade.
A p ró p ria Igreja Católica, em seu N o v o T e sta m e n to , a p re ­
goa a v id a d e C risto, este com o u m v iv en c ia d o r d e ssa ig u a l­
d a d e e m n o m e d a pesso a n a scid a com o Filho d e D eus, p o r ­
tan to , com a m e s m a n a tu re z a e com a m e sm a essência esp iri­
tual d e criatura ligada à im agem d o Criador. N a exortação de
São Paulo: " n em judeus, n em gregos, n e m escravos, n e m livres,
nem hom ens, nem mulheres",^^ pois todos são identificados com
o Filho d e Deus, através d a d ignidade h u m an a. Descabido dis­
cutir aí discrim inações o u exclusões d entro desse espírito.
Essa idéia u n iv ersa l d a h u m a n id a d e v e m d o s c ristãos e d a
filosofia estóica, isto é, a d ig n id a d e é p a n o d e f u n d o d a p r e ­
sença d o h o m e m n o orbe e q u e o d istin g u e d o s o u tro s a n i­
m ais, sob o p o n to d e v ista d a ontologia. C o n tu d o , m u ito s sé­
culos d e sfila ra m p a ra q u e se iniciasse a d isc u ssã o d o s c h a m a ­
d o s D ireitos H u m a n o s , estrib a d o s nessa d ig n id a d e .
E n e ssa acepção, d iz RECASENS SICHES, a d o u trin a d o s
d ireitos h u m a n o s a p o n ta p a ra critérios estim ativos, em juízos
d e valo r, a fim d e q u e a o rd e m jurídica p o sitiv a im p rim a co n ­
ceitos q u e v e n h a m ao e n c o n tro d e ssa s exigências, n a co n se­
cução d o D ireito Justo, e m su a e x pressão v ivenciada.
N o m u n d o c o n te m p o râ n e o , o p rim e iro p a s so foi d a d o com
A exortaçao está contida na Epístola aos G álatas, 3. 28, in: A Bíblia de Je ru sa ­
lém. 9. ed. (rev.). São Paulo; Paulus, p. 2192. 0 destaque é meu.
CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
a D ECLA RA Ç Ã O UNIVERSAL DOS DIREITOS D O H O M EM ,
d e 1948, m e d ia n te a qual se erigiu a c o n d ição d a d ig n id a d e
d o s h o m e n s livres e iguais em direitos. (Art. 1°). E a í se trata
d e c o n c eitu ar seres h u m a n o s , em su a indefectível div isão e n ­
tre h o m e n s e m ulheres.
O corre que o racionalismo d o século XVIII n ã o resolveu os
problem as concernentes à política da cidadania. De certo â n g u ­
lo, inicia-se u m desprestígio do logos no tocante ao problem a e
u m deslocam ento do topos para se centrar a questão d a dignida­
de e m m eio aos Direitos H um anos. M esm o c onsiderando que a
lei tão sacralizada d esd e os prim órdios d o Direito Rom ano, a ssu­
m a u m a politização dentro d e u m a realidade e concretude, sob
u m enfoque d e direitos hum anos, ou direitos d a h u m a n id a d e
com o um todo, sem a cisão d o h om em e da m ulher. M as, ao in­
verso, u m direito m enos convencional, m enos abstrato, m enos
dever-ser e m ais ser, m enos absolutista, sem o fosso d o s direitos
d o hom em , com o categoria de virilidade e d e m asculinidade.
T alvez o "código"' d o D ireito se ten h a p o litiz a d o o u ideologizado, o u m e n o s lig ad o a "interesses'" casuísticos, p o is afi­
nal o D ireito é Ciência C u ltu ra l, p o rta n to , c o n s tru íd a sobre
reg ra s, usos, co stu m e s, c o n h e cim en to s e c o n d ic io n a m e n to s
sociais e acim a d e t u d o tem u m a lin g u a g e m q u e ten ta s u p e ra r
as e n tro p ia s sociais, no se n tid o d a h a rm o n iz a ç ã o e d a ig u a l­
d a d e , esta, referencial m a io r da justiça.
A interação d o texto legal com o contexto social e püblicofem in in o d á u m a v ira d a n a leitura d o texto form al, inclusive
a p e tre c h a n d o a noção d e justiça c om o algo a ser rea lm e n te
v iv en c ia d o . É co m o a firm a d o p o r B E N JA M IN C A R D O ZO :
" N o direito , assim c o m o em o u tra s ciências, m u ita s coisas
d e v e m ser a p re n d id a s com o fatos".
56 A p u d Aoóré Franco Montoro, op. c/f., p. 287.
66
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
C o m o d ito alg u res, se o po sitiv ism o tro u x e p a ra a teo ria d o
D ireito u m a espécie d e consciência a to rm e n ta d a p o r antíteses
in te rn as, h á d e certa form a u m a b a n d o n o d essa p osição, a fim
de g a ra n tir o u tro estado-de-coisas q u e d ê à lei in te rp re ta ç ã o
d e s p ro v id a d e contextos clássicos d e div isão d o s a to re s soci­
ais com o sujeitos d e direitos, ra s g a n d o o v é u sa cra liz a n te d e s ­
sa leitura a fim d e alcochoar o n o v o e strato d e justiça e d a
n o v a id eologia d o s direitos políticos. A gora, sim , os d o is se
e n c o n tra m e m u m p a ta m a r em q u e d a r u m n o v o significado à
lin g u a g e m d a ig u a ld a d e e d a justiça, se faz m ister.
P o r o u tro lad o , o E stado, já n ã o m ais s e p a ra d o d a S ocieda­
de, é ele p r ó p rio o p re s ta d o r p o sitiv o d o s d ire ito s e g a ra n tia s
fu n d a m e n ta is . N a leitura, v.g., d a C o n stitu içã o b rasile ira d e
1988, e m s e u a rtig o 5°, e inciso I, h á q u e se v e r q u e já n ã o é a
m e s m a le itu ra d o s p receitos p re c e d e n te s d a C o n stitu içã o d e
1946 (art. 141, § 1°), ou, m ais re m o ta m e n te , d a C o n stitu içã o
Im p e ria l d e 1824, q u a n d o se tra tav a d a in v io la b ilid a d e d o s
d ire ito s civis e políticos d o s c id a d ã o s brasileiros, a c o n sid e rar
q u e n essa ca te g o ria n ã o se in clu íam as m u lh e r e s (art. 179,
caput). A ig u a ld a d e , aí, era m e ra m e n te form alística.
A p r ó p r i a O r g a n iz a ç ã o d a s N a ç õ e s U n id a s (O N U ), e m
q u a s e c o n s e n s o n a fe itu ra d a D E C L A R A Ç Ã O U N IV E R S A L
D O S D IREITO S H U M A N O S , d e 10 d e d e z e m b r o d e 1948,
a s s u m e u m a p o s i ç ã o c la r a , d e s e n t i d o r i g o r o s a m e n t e
u n iv e rs a U s ta , c o m o u m id e a l a se r a tin g id o p o r to d o s os
p o v o s e p o r to d a s as n a ç õ es. E n e s s e d o c u m e n to h á u m a
b a se id e o ló g ic a - a de q u e to d o s os s e re s h u m a n o s n a scem
liv r e s e ig u a is e m d ireito s
r e c h a ç a n d o o r e d u c io n is m o ,
as d i s c r im i n a ç õ e s e d a n d o e n s a n c h a s a n o v o s m é t o d o s
e x e g é tic o s d a le itu ra d o tex to d e c la ra c io n a l. Q u a s e d e f o r ­
m a u n â n im e foi a D e c lara ç ão aceita p e la A s s e m b lé ia G e ra l
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
d a O N U /^ d a n d o origem inclusive a vário s textos p osteriores
d e re p ú d io àquelas discrim inações, com o aconteceu n a p a ssa ­
gem d o d o m ín io d a D ECLA RAÇÃO p a ra o d a s Convenções.
N o to can te às m u lh e res, d e n tre ou tras, salien ta-se a Con­
venção sobre a Eliminação de todas as Formas de D iscrim i­
n a ç ã o C on tra as M u lh e r e s , q u a n d o e m s e u a r t i g o 1° é
v e rb a liz a d o e x p re s s a m e n te q u e a d iscrim in ação contra as
m u lh eres im porta em "qualquer distinção, exclusão ou res­
trição baseada n o sexo, q u e ten h a com o efeito o u co m o obje­
tivo c o m p ro m e te r o u d e s tru ir o rec o n h e c im e n to , o g o z o o u o
exercício pe la s m u lh e res, seja qual for o s e u e s ta d o civil, com
b a s e n a igu ald ad e d os h o m e n s e das m u lh eres, d o s direitos
d o h o m e m e d a s lib e rd a d e s f u n d a m e n ta is n o s d o m ín io s p o lí­
tico, econôm ico, social, cu ltu ral e civil ou e m q u a lq u e r o u tro
d o m ín io ". (Os d e sta q u e s são m eus).
A a v o e n g a teo ria d a in fe rio rid a d e d a m u lh e r , p e lo sexo,
cai a ssim e m fu n çã o d e u m a "crise" d o d o g m a fo rm a lis ta d o
D ireito. Pois, com r e la ç ão ao â n g u lo d a justiça, in fo r m a d o r a
d a lei, p re se n c ia -se n o v o s o p ro axiológico a c o lm a ta r c o m
n o v o s v a lo re s o cerne da cid adania da m u lh er c o m o q u e s ­
tão de justiça.
CONCLUSÃO
N o te rre n o d a especulação filosófica d a Justiça, co m o se
viu, h á u m a relação dialética d e n tro d e u m a d in âm ica d o cos­
m o s, rec a in d o sobre a N a tu re z a e so b re a poiesis d a s reg ras
form ais e d o g m ática s, n o m u n d o d a criação d o D ireito.
Em Resolução de 10 de dezem bro de 1948, a A ssem bléia G eral da O NU votou o
texto da D E C LA R A Ç Ã O U N IV E R S A L DOS DIREITO S DO H O M E M . Não houve
voto contrário. Q uarenta e oito m em bros votaram a fa vo r e oito abstiveram -se.
Dentre estes, alguns países do bloco soviético; a Arábia S au d ita e a África do Sul.
CIOADANíA DA MULHER, UMA Q U E S T Ã O DE JUSTIÇA
Já se disse a lg u re s q u e a so ciedade é o c o sm o s c u ltu ra l d o
se r h u m a n o . E d e n tro dessa relação cu ltu ral, v iv en c ia m -se os
v a l o r e s , e s t e s a ç a m b a r c a d o s n o c o n t i n e n t e d a T e o r ia
A xiológica, ou, e m o u tro s d izeres, n a riq u e z a e p ro fu n d id a d e
d a E stim ativa Jurídica.
N o conceito d e justiça cabem valorações, c o n te ú d o s m ate ri­
ais q u e in fo rm a m a v id a e a realização d o Direito. N a d a é defi­
nitivo, pois as finalidades da ordenação jurídica cam biam , com o
m u d a m as folhas secas d e u m a á rvore q u e caem p a ra d a r lu g ar
a n o v a s e h íg id a s folhas, as quais retiram dessa árv o re a seiva
necessária p a ra d a r n o v a ro u p a g e m a essa m e sm a árvore. É
q u a se u m ciclo autopoiético, de a u to-reprodução, q u a n d o se
teoriza sobre n ovos valores e sobre n ovas v irtudes.
É n o íopos d a Justiça q u e se refugia o Direito. D ireito é Ju s­
tiça, o u o seu b e m m aior.
A o lo n g o d o s tem p o s, o conceito d e D ireito e d e Justiça
v e m se in te g r a n d o e m várias visões d e s d e o M u n d o A ntigo,
a tra v e ss a n d o a E ra Clássica, in clu in d o a q u i o d e s e n v o lv e r d o
D ireito R o m an o , p a s s a n d o p o r u m a c osm ovisão cultural-relig i o s a - p e la P a t r í s t i c a e E s c o lá s tic a . D o n d e , o D ir e i t o
c ristia n iz a d o d e sen v o lv ia o conceito d e justiça n ã o o b sta n te
n o m é rito se a c a c h a p a r a u m a so c ie d a d e restrita e m q u e a v i r ­
tu d e era p ro v e n ie n te d o vir, ou seja, d o v arão , c o n fu n d in d o se o a trib u to c om o sexo m asculino. O D ireito foi restrito p a ra
ãèfeminae.
M e sm o assim , n ã o se d e sm a n c h a a í a id e n tid a d e essencial
d o D ire ito c o m a Justiça. N o c o rre r d o s te m p o s , a C iê n c ia
q u e d e s s a c r a liz o u o c o n h e c im e n to tr a to u d e d a r n o v o s e n ­
tid o à s b a s e s d a C iência J u ríd ic a a fim d e a la r g a r o s e u c a m ­
p o d e e s tu d o s , p o litiz a n d o esse s a b e r e f a z e n d o d e s te u m a
fo n te d e p o d e r.
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
O racio n alism o d a Revolução F rancesa tro u x e à lu z d o dia
a q u e stã o d a s m u lh e res, as q u a is e n fre n ta ra m o m a io r jogo
dialético d o p o d e r. A m u lh e r d a í a d v in d a m u d a a s u a n a tu r e ­
za. O u será q u e a n a tu re z a d a s coisas m u d o u ? T alvez. Se a
N a tu re z a d o s p rim e iro s filósofos greg o s era m a te m á tic a , foi
preciso m u d a r a n a tu re z a dessa N a tu re z a a fim d e q u e se p u ­
d e sse c o m p re e n d e r m e lh o r o Direito-Justo.
C om a racio n alid ad e, inicia-se u m n o v o p rojeto d e in te r­
p re ta ç ã o d a s C iências C u lturais, com o o D ireito, e se d e s m e m ­
bra
0
D ireito Religioso d o D ireito Laico, a c ab a n d o , p o r fim,
e stereótipos gra vosos, com o o d a s b ru x as ou o d a m u lh e r com o
ser inferior. In a u g u ra -s e a e ra d o Anthrópos, o u seja, d o m a s ­
c u lin o / fem inino, d a ig u a ld a d e e d a re c ip ro c id a d e v istas a g o ­
ra sob u m â n g u lo d e vivência d a s u b s ta n c ia lid a d e d o se r h u ­
m an o , m e d id a p e la d ig n id a d e , sob o p á lio d e n o v a v aloração
d o b e m m a io r c h a m a d o Justiça.
É u m a n o v a sim bologia, u m n o v o signo e u m a n o v a lin­
g u a g e m q u e trata d o d ire ito d e c id a d a n ia d a m u lh e r, c o m o d e
o u tro s, d e n tro d o d ia p a s ã o d e u m a ig u a ld a d e v a lo ra d a n a
"ex p e riê n c ia" d e n o v a s m eto d o lo g ia s d a C iência d o D ireito e
q u e fazem o D ireito rea liz a r a su a id e a lid a d e , h a rm o n iz a n d o se com a concreção d a realidade.
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MULHER: C Ó D IG O S LEGAIS E
C Ó D IG O S SOCIAIS - O PAPEL D O S
DIREITOS E O S DIREITOS DE PAPEL
O d ila d e M é lo M a c h a d o
INTRODUÇÃO
F ruto d e m u ita inquietação, este trabalho é a p re s e n ta d o com
o objetivo d e refletir a q u e stã o d a m u lh e r à lu z d o D ireito n o sso s r u m o s e possíveis n e c essid ad e s d e m u d a n ç a s - com o
p ro p õ e o 1" C oncurso d e M onografias Jurídicas p ro m o v id o pela
OAB N acional. A ssim , o seu objeto p rim o rd ia l c o n fig u ra-se a
p a rtir d a relação e n tre g ên ero e Direito: o m o d o p e lo q u a l a
o rd e m ju rídica r e s p o n d e aos necessários a p e lo s d e ig u a ld a d e ,
e m u m contexto social q u e tem em si a c u ltu ra d a d o m inação.
O s conceitos a q u i tra b a lh a d o s têm c om o s u p o rte m e to d o ­
lógico a p e s q u is a bibliográfica e o seu d e se n v o lv im e n to a p re ­
senta-se c o n stitu íd o d e três partes. N a p rim e ira d e la s consta a
tra je tó ria h istó ric o -so c io ló g ic a q u e e n v o lv e a p e rs o n a g e m
m u lh e r, o n d e se q u e r m o s tra r q u e o D ireito n ã o p o d e ser
d isso c iad o d e sse contexto. O u tra raz ã o d e se r d e ssa p a rte é a
d e q u e a c o m p re e n sã o d o p resen te, o u a ela b o ra çã o d e u m a
so lução fu tu ra , im plica in te rp re ta r o p a s sa d o . N e ssa in cu rsão
iniciada n a A n tig ü id a d e g reco -ro m an a e, e m seq ü ên cia, es­
te n d id a a té o século XX, p ro cu ra -se d e m o n s tra r q u e a H istó ­
CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
ria s e m p re rele g o u a m u lh e r a u m p lan o inferior. S en d o o h o ­
m e m o c o n s tru to r d a história, d a sociedade, d a civilização p o rta n to , o sujeito d a s m esm a s - d e te rm in o u os p a râ m e tro s
d a u tilização d a m ulher.
N e sse p e rc u rso , q u e se lim ito u ao m u n d o ocidental, cada
p e río d o h istórico é a b o rd a d o em seu estilo específico. E n q u a n ­
to d e u sa , a m u lh e r era a m a d a pelos greg o s m as, u m a v ez ser
social, e ra a fa sta d a d a s relações políticas e econôm icas, c om o
re s p a ld o d o p e n s a m e n to filosófico d a época. E m R om a era
tra ta d a p e lo D ireito - d o qual o n osso é trib u tá rio - co m o u m
ser incapaz, pois assim disp u n h a o seu estatuto. A única função
valorizada era a m aterna e isso não pelo fator inerente d a repro­
dução, m as pela instituição casam ento, entenda-se m ultiplica­
ção e conservação d o patrim ônio. Saliente-se que, nesse aspecto,
R om a em n a d a se distinguiu d as sociedades antigas e, d e m o d o
geral, d a totalidade d as sociedades hu m an as, anteriores à e m a n ­
cipação d a m u lh e r no m u n d o industrial contem porâneo.
N a Id a d e M é d ia a m u lh e r sofreu o handicap d a p e rse g u içã o
às b ru x as, c o n d ição q u e m u ito p o u c o m e lh o ro u com o a d v e n ­
to d o R en ascim en to , d a R evolução Francesa e d a s G u e rra s
M u n d ia is. A ssim , o m ito d o m a tria rc a d o a p a re c e c o m o s e n d o
a p e n as u m conceito d a antropologia, n a avaliação d e Bachofen.
A d o m in a ç ã o m asc u lin a é aqui d e m o n s tra d a d e d iv e rsa s for­
m as. N o e n ta n to , esse d o m ín io n ã o significa a au sên c ia d e
p o d e r fem inino, m as m o stra a clara resistência d a articulação
d a su p re m a c ia m ascu lin a, p a ra q u e as m u lh e re s n ã o se m a n i­
festem . D essa form a, os escribas d o p o d e r re g is tra m te n d e n c i­
o s a m e n te - s e g u n d o seleção feita p o r eles - o q u e as m u lh e re s
d e v e m fazer o u dizer. A ssim , a elas d e s tin a ra m o e sp aç o p r i ­
v a d o , e n q u a n to os h o m e n s o c u p a m , com to d o o r e s p a ld o id e ­
ológico, o â m b ito público.
MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÕDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL
N a s e g u n d a p a rte é a b o rd a d a a h istória d a m u lh e r no Bra­
sil - síntese d o p e río d o colonial ao s d ia s a tu a is - o n d e se v eri­
fica q u e a situ a ç ão d a s m u lh e res n ã o d ife re d a r e a lid a d e a p re ­
se n ta d a n a p a rte inicial d e ste trabalho. D estarte, e m u m a soci­
e d a d e p atriarcal, a fam ília constituía-se n o c en tro d e to d a a
organização; econôm ica, religiosa e m e s m o política. A v irg in ­
d a d e d a m u lh e r era c o n sid e rad a fator d a m ais alta relevância,
refletindo-se e m q u e stõ e s d o Direito. N esse contexto, a m u ­
lh er e n q u a n to m ãe, p o r influência d a s trad içõ es judaico-cristãs, era asso ciad a à V irgem M aria e glorificada p o r essa fu n ­
ção vocacional. Isso a v in cu lav a ao e sp aço p riv a d o , e n q u a n to
era oficializada s u a in ferio rid ad e jurídica e social.
N o Brasil, so m e n te a p a rtir d a d é c a d a d e 1960, fru to d e
m u ita luta, a m u lh e r está - m as d e form a m u ito lenta - conse­
g u in d o e x tra ir d e si a c o n d ição d e in fe rio rid a d e q u e a socie­
d a d e , re g id a pe la s leis d a classe d o m in a n te , lhe a trib u iu . De
form a in cip ien te a m u lh e r - v ítim a d e séculos d e o p re ssã o está criando voz, abrindo espaços d e conquistas. As m ulheres
estão, a tualm ente, se inserindo n u m q u a d ro social m ais amplo.
A História não se escreve d e forma linear e está longe d e ser
estática: em intervalos d e tem po cada vez m enores sucedem -se
as alterações. Dizemos, neste início d e milênio, que o ritm o da
História acelerou. E a legislação está a c o m p a n h a n d o a acelera­
ção histórica? Todas as lutas e conquistas d a s m ulheres foram
im portantes, pois estabeleceram u m novo p a ta m a r d e direitos
h u m a n o s p a ra elas. O u sufruto desses direitos, lam entavelm en­
te, é m arc a d o pelas desigualdades sociais e étnicas, q u e caracte­
rizam a n ossa sociedade. Recentem ente - já n o século XXI - foi
a p ro v a d o o no v o texto d o Código Civil, q u e acaba - entre outras
discrepâncias - com a possibilidade d e anulação d o casam ento
p o r p e rd a d a v irgindade da m u lh e r a n te s d o m atrim ô n io .
78
CIDADANIA OA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
N a terceira p a rte de ste trabalho são trazid as à colação q u e s ­
tões específicas d a área d o D ireito enfocando-se os d ip lo m a s
legais d e a b ra n g ê n c ia internacional; C onvençõ es, T ra ta d o s e
C o n g re sso s p ro m o v id o s p e la O N U . Tais d isp o sitiv o s se d e s ­
tin a m a ale rta r o u criar v ín cu lo obrigacional - c o m os países
m e m b ro s d essa o rganização - n a oferta d e tra ta m e n to ig u ali­
tário a h o m e n s e m u lh e re s e m su a s legislações.
N a s considerações finais p ro cu ra-se sintetizar as colocações
tra b a lh a d a s nesta m o n o g rafia, acrescen tan d o -se a lg u m a s re ­
flexões q u e se s o m a m ao e n fo q u e selecionado ao tem a " C id a ­
d a n ia d a M u lh e r, u m a q u e stã o d e Justiça".
P o r ú ltim o , vale a firm ar q u e t u d o o q u e tem s id o h isto ric a ­
m en te c o n s tru íd o n ã o n ecessariam en te d e v e rá re p ro d u z ir-se ,
c a b e n d o s e m p re e sp aç o p a ra ações tra n sfo rm a d o ra s.
1 - SÍNTESE HISTÓRICA DA MULHER NO OCIDENTE
1.1 - Na Antigüidade Greco-Romana
"Na sua dupla relação com o saber, a mulher Grega é uma
figura curiosa. É um objeto apaixonante e um sujeito muito
discreto, mas teoricamente exemplar. Enquanto objeto, a m u ­
lher surge em primeiro lugar, como essa coisa viva cuja apari­
ção no mundo o mitólogo teve de imaginar antes de se tornar,
para os médicos um corpo a dissecar e, para o filósofo, uma
figura social a instituir. Como sujeito aparece, esporadicamen­
te, mas sempre às margens do exercício filosófico, médico ou
literário, vindo a exceção confirmar a regra de exclusividade
masculina no domínio intelectual...”
Giulia Sissa
MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL
F ilosofias do Gênero: Platão, A ristóteles e diferença dos
sexos
O s d e u s e s ao criarem P a n d o ra, a p rim e ira m u lh e r se g u n d o
a m ito lo g ia, d o ta ra m -n a d e v o z h u m a n a , e o m u n d o antigo
v iv eu sob esse m u rm ú rio d e vozes fem ininas, q u e ta g a re la ­
v a m e m s e u u n iv e rs o dom éstico: u n iv e rs o p riv a d o , cujas p o r ­
tas e ra m fec h a d a s e c o n sta n te m e n te vigiadas. A única p a la ­
v ra v e rd a d e ira m e n te reco n h ecid a - a p a la v ra p olítica - e s te ­
ve, p o r m u ito s séculos, fora d o alcance d a s m u lh e res. A lg u n s
h isto ria d o re s a firm a m q u e a so c ie d a d e s e m p re foi m ascu lin a,
d e o n d e d e c o rre a centralização política n as m ã o s d o s hom ens.
STRAUSS, nesse sen tid o , afirm a q u e "a a u to r id a d e p ú b lica
o u s im p le s m e n te social p erten ce s e m p re aos h o m e n s " .’
Em bora a historiografia não nos perm ita ver claramente em
seus horizontes u m direito m aterno, um a ginecocracia, MURARO
u sa e expressão "no princípio era a mãe"^ e ENGELS, p o r seu tu r­
no, disse que "...a reversão d o direito m aterno foi a grande derrota
histórica do sexo feminino".^ Colocações, nessa linha d e p en sa­
mento, nos sugerem que houve u m período d a história na qual a
m ulher exercia algum a supremacia, não no espaço privado - que
lhe foi lugar com um em todas as épocas - m as n o espaço público.
E n tre ta n to , esse p e río d o q u ase p e rd id o a tra v é s d o s te m ­
p o s, q u e c o rre s p o n d e u a u m estágio o riginal d a h u m a n id a d e ,
m e re c e u a a tenção d e BACHOFEN^ e m Das M utterrecht o u o
'A p u d BEAUVO IR , Sim one de. O S egundo Sexo. 2. ed. RJ: Nova Fronteira, 1982,
1, p . 91
V.
/ M URARO , Rose Marie. A M ulher no Terceiro M ilênio: Uma história da m ulher
através d os tem po s e suas perspectivas para o futuro. RJ: Rosa dos Tempos,
1992, p. 7.
^A O rigem da família, da propriedade privada e do Estado. In: MARX, Karl; ENGELS,
Friedrich; LENIN, Vladimir. Sobre a Mulher. 3. ed. SP: G lobal. 1981, p. 15.
^G EO RG O UDI, Stella. Bachofen, o M atriarcado e a Antigüidade; relações s o ­
bre a criação de um mito. In: DUBY. G eorges e PERROT, M ichelle. A História
das Mulheres: A antigüidade. Porto: Edições Afrontam ento, 1990, v, 1, p. 569.
80
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
d ire ito m ate rn o . De a c o rd o com a teoria d e sse jurista, "os p o ­
v o s são se m e lh an te s aos in d iv íd u o s. P ara 'g e rm in a r e m ', p a ra
c h e g a re m à m a tu rid a d e , têm n e c essid ad e d e se re m g u iad o s
p o r u m a m ão firm e, d irigente, q u e n ã o p o d e s e r s e n ã o a m ã o
tra n q ü iliz a d o ra e a u to ritá ria d e m ãe. A ssim , as o rig e n s d a
h u m a n id a d e são colocadas sob o signo e a su p re m a c ia d e u m a
única força: a m u lh e r, ou antes, o c o rp o m a te rn o q u e gera,
im ita n d o a ação d a M ãe O riginal, a Terra".^
R e c o rre n d o a in d a à m itologia grega, e n c o n tra m o s q u e o
s u rg im e n to d o n o m e d e A tenas dá-se a p ó s o c o n fro n to d o re ­
g im e m atriarcal com o patriarcal;
"Foi no tempo de Cécrope, o rei fundador de Ática que, segun­
do
0
mito, estalou uma querela entre Atena e Posídon pela
denominação e posse do país. Após consulta ao oráculo de
Delfos,
0
rei resolveu o assunto, convocou uma assembléia em
que faziam parte 'os cidadãos dos dois sexos’ porque nesse
país era então costume que as próprias mulheres tomassem
parte nos escrutínios públicos".^
A ssim , as m u lh e re s q u e a p o ia ra m A te n a foram as v e n c e ­
d o ras, o q u e g e ro u a revolta d o s h o m en s, q u e se in v estira m
d o p o d e r e d e te rm in a ra m às m u lh e re s a p e rd a d e to d o s os
direitos: d e v otar, d o u so d e n o m e p elos filhos e o d a c id a d a ­
nia ateniense.
A ssim se n d o , esse e n tre c ru z a m e n to d e m itologia e história
q u e r re p re s e n ta r a vitória d e u m sistem a p a tria rc a l in s u rg e n ­
te sobre u m a so c ie d a d e m atriarcal e m declínio. E n tre ta n to , a
H istó ria n ã o p o d e relegar esse p o d e r, q u e as m u lh e re s teriam
exercido, p a ra u m p e río d o pré-histórico - d a n d o o s e u te m p o
5 Idem, ibidem, p. 571.
® Idem, ibidem , p. 582.
MULHER-, CÓDIGOS LEGWS E CÓDIGOS SOCIWS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL 8 1
p o r a c a b a d o - p o is seria u m a form a d e excluí-las d a história
g reg a e d a p ró p ria H istória.
O m o d o co m o os gregos criaram a figura d a m u lh e r é, no
m ín im o , curiosa. Ela surge, inicialm ente, co m o u m a de u sa,
u m ente m itológico; depois, é a p re s e n ta d a pela m edicina como
u m c o rp o a ser dissecado. M ais a diante, n o p la n o filosófico,
to rn a -se a m u lh e r u m a figura social a ser in stitu íd a . Q u a n d o a
to rn a m sujeito, colocam -na à m arg e m d e q u a lq u e r prática, com
rara s exceções, à m a rg e m d a c o n stru ç ão d e q u a lq u e r história.
O d o m ín io m asc u lin o no p lan o intelectual, n a sociedade
g reg a e, co m o v erem o s m ais adiante, n a ro m a n a , é m u ito acen­
t u a d o e b e m d e m o n s tra d o nessa p a s sa g e m e m q u e Platão, d i­
rig in d o -se a G láucon, assim se expressa:
"Conheces alguma profissão humana em que o gênero mascu­
lino não seja superior, em todos os aspectos, ao gênero fem in i­
no? Não percamos o nosso tempo a falar de tecelagem e de
confecção de bolos e guizados, trabalhos em que as mulheres
parecem ter algum talento e em que seria totalmente ridícido
que fossem batidas"/
Desse m odo, os "savoir-faire" que exigissem com petência e
h abilidade raram en te eram atribuídos às m ulheres. A função
destas era a gestão d a casa, fazer tecelagem e c uidar dos filhos.
N o p e n s a m e n to d o s poetas, filósofos e m éd ic o s d a A n ti­
g ü id a d e h á u m d e n o m in a d o r c o m u m ao d escrev er-se a m u ­
lh e r co m o u m ser p a ssiv o e inferior ao h o m e m e m to d o s os
aspectos. Platão, e m República, concebeu u m a c id a d e o n d e as
m u lh e re s d e v e ria m ser e d u c a d a s com o os h o m e n s , p o is p a ra
^ SISSA, Giulia. Filosofias de Gênero: Piatão, Aristóteles e a diferença dos
sexos. In: DUBY,
G eorges e PERROT, M ichelle, op. cit. p. 95.
82
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
0
filósofo: "façam elas o q u e fizerem , e p o d e m te n ta r fazer
tu d o , fa-lo-ão m en o s bem".®
N e s s a l in h a d e ra c io c ín io , os m é d ic o s , s e g u i d o r e s d e
H ip o c ra te s, reco n h eciam q u e to d o in d iv íd u o se x u a d o - seja
ele m ac h o o u fêm ea - era p o rta d o r d e u m a s e m e n te id ên tica e
a n d ró g in a . N o e n tan to , d e scaracterizav am q u a lq u e r isonom ia
de g ê n e ro ao afirm a rem "q u e a p a rte fem inina d e s ta s u b s tâ n ­
cia é, e m si, p o r u m a q u a lid a d e intrínseca, m e n o s forte q u e a
p a rte m asculina".^
Reflexões co m o estas - c o m u n s e n tre os p e n s a d o r e s da
A n tig ü id a d e - são c o n sid e rad a s o q u e d e m e lh o r se p r o d u z iu
e se disse a resp eito d o g ên ero m u lh e r, n a tra d içã o ocidental.
P itá g o ra s via n a m u lh e r u m ser v o lta d o ao m a l q u a n d o assim
explicou a sua origem : "H á u m prin cíp io b o m q u e criou a o r­
d e m , a luz, o h o m e m ; e u m p rin cíp io m a u q u e c rio u o caos, as
trevas, a m u lh er".'"
A ssim , nesse sistem a dicotôm ico, a m u lh e r o c u p a v a o lu ­
g a r d o n e g a tiv o , d o defeito, e q u e p recisava ser in te g ra d a à
so c ie d a d e , o q u e q u e ria dizer, subm etê-la à o rd e m m asc u lin a
estabelecida. Verifica-se, desse m o d o , q u e n a s n a rra tiv a s das
lite ra tu ra s a n tig a s as m u lh e res e ra m a p re s e n ta d a s co m o um
s u p le m e n to , u m a peça acrescida ao g r u p o social. Q u a n d o se
tra ta v a d o s a b e r e d o p o d e r, as m u lh e re s n ã o e ra m n u n c a
m en c io n a d as.
O u n iv e rs o fam iliar n a A n tig ü id a d e ta m b é m e ra d u a l m ac h o s e fêm eas - e a solução p a ra os conflitos a p re se n ta v a se d a m e s m a form a d e fin id a p ela m edicina e pela filosofia,
isto é, com a p re d o m in â n c ia d e u m sexo sobre o o u tro , com o
® Idem, ibidem , p. 85-86.
® Idem, ibidem , p. 86.
BEAU V O IR , Sim one de, op. cit. p. 101.
MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL
era fo rte m e n te e x p re sso n a s leis d e M anu: " U m a m u lh e r, m e ­
d ia n te u m c a sa m e n to legítim o, a d q u ire as m e s m a s q u a lid a ­
des d e seu esposo, com o o rio q u e se p e r d e n o oceano, e é
a d m itid a d e p o is d a m o rte n o m esm o p a ra ís o c e leste".’^
N essa linha, to d as as religiões e C ó d ig o s tra ta v a m a m u ­
lh er com m u ita h o stilid a d e .’^ Em u m a época e m q u e o patria rc a d o e sta v a estabelecido, foram re d ig id o s C ó d ig o s que, n a ­
tu ra lm e n te , ofereciam à m u lh e r u m a c o n d ição s u b o rd in a d a ,
p a s s iv a e in fe rio r ao h o m e m . A ssim , as in c a p a c id a d e s da
m u lh e r ro m a n a e ra m a tra d u ç ã o institu cio n al d a situ a ç ão in ­
ferior a q u e ela se e n c o n tra v a rele g a d a, e m u m a so c ie d a d e de
d o m in â n c ia m asculina. E ntão vejam os:
“A s leis de M anu definem-na como um ser servi! que convém
manter escravizado. O heretício assimila-a aos animais de car­
ga cjue 0 patriarca possui. A s leis de Sólon não lhe conferem
nenhum direito. O Código Romano coloca-a sob tutela e pro­
clama-lhe a ‘imbecilidade'. O direito canônico considera-na a
'porta do diabo'".
D esse m o d o , as m u lh e re s d a A n tig ü id a d e e ra m excluídas
d e u m m u n d o q u e as fazia e stra n h as, p o r ser ele to ta lm e n te
d e c lin a d o n o m asculino. O p a p e l social d a m u lh e r se re strin ­
gia ao seu co n fin a m e n to às esferas do m ésticas, e n q u a n to aos
c id a d ã o s r o m a n o s cabia o m o n o p ó lio d a s relações p ú b lic a s e
d a política. As m u lh e re s e ram , c o n se q ü e n te m e n te , excluídas
” Ibidem.
Nesse sentido, ve r ENG ELS, op. cit. p, 15, que assevera “essa condição hum i­
lhante da mulher, tal qual com o aparece notadam ente, entre os gregos dos tem pos
heróicos e m ais ainda dos tem pos clássicos, foi gradualm ente cam uflada e d iss i­
m ulada e tam bém , em certos lugares revestida de form as m ais am enas, mas não
foi absolutam ente suprim ida” .
BEAU V O IR , Sim one de. op. cit. p. 101.
84
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
d a cid a d a n ia. Podia-se co n sid e rar a c id a d e an tig a - ta n to a
g reg a co m o a ro m a n a - com o c id a d e d e h o m en s.
N e s s e contexto antitético a u n iã o conjugal re d u z ia -se à re ­
n ú n c ia d a e sp o sa a tu d o o q u e d e pessoal lh e pertencia: a m i­
gos, d e u s e s , ocupações, bens, te n d o e m vista a a d a p ta ç ã o à
v id a religiosa, social e econôm ica d o esposo. O c a sa m e n to a m á lg a m a q u e d e v ia u n ir o h o m e m e a m u lh e r - significava,
então, o d e s a p a re c im e n to d a m u lh e r e m to d o s os a sp ecto s da
v id a , e sp ec ia lm e n te o econôm ico, com o b e m foi d e fin id o p o r
SISSA:
"Isto surge particularmente esmagador no respeito aos bens,
em cjue a avaliação quantitativa da ‘m istura’ se manifesta
mais claramente. O pôr em comum os respectivos haveres
deve, com efeito, ter a aparência de um patrimônio único e
indiviso, mas pertencente ao marido, mesmo que a mulher
tenha trazido parte maior que a deste... M ais precisamente:
a in d iv is ã o é apenas o m eio de f a z e r desaparecer a
especificidade e, neste caso, a real contribuição fem inina em
benefício do marido, verdadeira parte do todo''.^^
O c a sa m e n to , n o D ireito R om ano, e s tru tu ra v a -s e sobre a
n a tu re z a jurídica d o h o m e m ou " p ate rfa m ilia s" e sobre a d a
m u lh e r, ''m ate rfa m ilia s" o u " m a tro n a " . D essa u n ião - h o m e m
e m u lh e r - se p r o d u z ia e p ro lo n g a v a a d e sce n d ê n c ia p o r v á ri­
as gerações. N a posição d o s juristas d o Im p é rio R om ano,
"o encontro dos sexos comandava todo o encadeamento insti­
tucional; nele, o direito civil reunia-se ao direito natural, dado
que - assim como o declararam no século 111 O s I n s t i tu t a s
de Ulpiano, retomado nos mesmos termos pelos I n s t i tu t a s
SISSA, Giulia, op. cit. p, 119,
MULHER; CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS OE PAPEL
de Justiniano - da existência das espécies vivas deriva a união
do macho e da fêmea a que nós, os juristas, chamamos de casa­
mento."^^
A sucessão d o s d e p e n d e n te s só existia e m R o m a p o r linha
m ascu lin a, s e n d o as m ã e s p ro ib id a s desse direito. A Lei das
X II Tábuas c onstitui-se n o alicerce d e to d o o sistem a d e suces­
sões se m testa m e n to o u "intestatas". A ssim , so m e n te os d e s ­
c e n d e n te s p o r via m ascu lin a - filhas e filhos d o pai, n e ta s e
n e to s n a scid o s d o filho d o pai... h e rd a v a m e m p rim e ira linha.
E m s e g u n d a linha h e rd a v a m os colaterais d o la d o pa te rn o .
A ssim sendo, o direito sucessório ro m a n o excluía todos os
parentes d a linha m aterna: os filhos não sucediam à m ãe, n e m os
sobrinhos aos irm ãos ou irm ãs d a mãe. Estas n ã o possuíam a
"patriapotestas" e, portanto, não podiam escolher u m herdeiro
p o r adoção, p o rq u e até m esm o os seus descendentes naturais
essa exclusão atingia. Era o critério de prevalência d o gênero
m asculino sobre o fem inino presente no Direito Rom ano.
Com
0
a d v e n to d o C ristian ism o os p a d re s d a Igreja e ra m
h o m e n s que, te n d o p re s ta d o v oto d e c a stid ad e , rejeitavam ,
e m s e u s serm ões, tu d o aquilo q u e se relacionasse com o co rp o
e os desejos sexuais. A V irgem M aria to rnou-se o m o d e lo a p re ­
g o a d o a to d a s as m u lh e re s q u e d e v e ria m , a seu exem plo, m a n ­
ter-se castas. Esta m e s m a Igreja que, em se u s p rim ó rd io s , p r e ­
g a v a a libertação d a s classes o p rim id a s - o n d e a m u lh e r esta­
va in clu íd a - era ag o ra a força m ais im p o rta n te e p ro fu n d a
p a ra fortificar a s u a subm issão.
A id eo lo g ia ’^ cristã exerceu a c e n tu a d a influência n o DireiT H O M A S , Yan. A Divisão do Sexo no Direito Rom ano. In: DUBY, G eorges e
PERROT, M ichelle, op. cit. p. 130.
Ver PO ULA NTZAS , Nicos. O Estado, 0 Poder e o Socialism o. 3. ed. RJ; Graal,
1985, p. 33: "A ideologia não consiste som ente ou sim plesm ente num sistem a de
85
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
to R o m an o , c o n trib u in d o , desse m o d o , p a ra q u e a u m e n ta s s e
a o p re s s ã o d a m u lh e r. A ssim , a Igreja veio refo rçar o e ste reó ­
tipo d a m u lh e r-e sp o sa-m ãe ; to ta lm e n te s u b o rd in a d a a o m a r i­
d o , o n d e São P a u lo - m a n te n d o a tra d içã o judaica anti-fem in ista - assim p re g a e m sua Epístola: " O h o m e m n ã o foi tira d o
d a m u lh e r e sim a m u lh e r d o h o m e m , e o h o m e m n ã o foi cri­
a d o p a ra a m u lh e r e sim esta p a ra o h o m e m " .
E nfim , fo ra m as in te rp re ta ç õ e s d o s filósofos g re g o s rea li­
z a d a s p e lo s clérigos - h o m e n s d e religião e d a Ig re ja ’®- q u e
g o v e rn a v a m o escrito e tra n sm itia m o c o n h ecim en to , q u e p r o ­
p o r c io n a ra m as b a s e s teóricas p a ra , n a I d a d e M é d ia , e a lé m
d e s te s séculos, se a tr ib u ir à m u lh e r a h istó ric a s u b m is s ã o ao
hom em .
1.2 - Na Idade Média
A so c ie d a d e d a Id a d e M édia c o n tin u o u s e n d o a c e n tu a d a m e n te m a rc a d a pela h e g e m o n ia m ascu lin a, o n d e as m an ifes­
tações c u ltu rais p o s s u ía m o registro d a s lu ta s p e lo p o d e r e
d o s p rec o n c e ito s m asculinos. A m u lh e r en co n trav a-se, a inda,
e m a b so lu ta d e p e n d ê n c ia d o p a i e d o m a rid o , co m o b e m d e fi­
n e OPITZ;
idéias ou de representações. Com preende tam bém um a série de práticas m ate ri­
ais extensivas aos hábitos, aos costum es, ao m odo de vida dos agentes, e assim
se m olda c o m o cim ento no conjunto das práticas sociais, aí co m p re e nd id a s as
práticas políticas e econôm icas".
BEAUVO IR , Sim one de, op. cit. p. 118.
'®Ver LEC LE R C Q , Paulette L H e rm ite • A Ordem Feudal. In\ DUBY, G eorges e
PERROT, M ichelle. Histó ria das M ulheres: A Idade M édia, v. 2, p. 281, on d e foi
dito q ue “Ter-se-á ve rifica d o que a igreja, q ue trabalha para a e te rn id a d e , está
p a rticu la rm e n te ate nta ao tem po e, portanto, às m ulheres, q ue têm com e la um a
relaçã o particular. E a n tes de m ais, pela su a p ro g ra m a çã o g e n é tic a (...) Elas
estão na in te rs e cç ã o do te m p o cíclico - o relógio das regas, a co n c e p çã o - e do
te m p o lin e a r” .
MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL
"O s seiis desejos e idéias só podem fre q ü e n tem e n te ser
descortinados por trás do véu da tutela e da regulamentação
imposta pelos seus pais, maridos e confessores, sendo os seus
atos ainda limitados pelas normas da sociedade e pelo con­
trole social"
N essa trajetória a fam ília, a Igreja e as n o r m a s jurídicas vi­
g i a v a m e e x a l t a v a m a v i r g i n d a d e d a m u l h e r , q u e e ra
g u a rn e c id a pelo p a i e assim tra n sm itid a ao m arid o . A re p re s ­
são, nesse sentido, era m u ito forte, tanto q u e a m u lta p a ra q u e m
d eflo rasse u m a m u lh e r era o d o b ro d a m u lta a p lic a d a àquele
q u e m a ta s se u m guerreiro. C o n fo rm e LECLERCQ:
“as recompensas celestes são muito maiores para as virgens.
E 0 Evangelho fornece às mulheres o arquétipo de Maria. Isto
não é novo, mas nunca tanto nos séculos X I e X II a Igreja
exaltou a excelência desse estado. Tudo levava a isso: o medo
do fim dos tempos, a irradiação espiritual dos monges, a refor­
ma do clero e a promoção do culto mariano”
A ssim , a v id a q u o tid ia n a das m u lh e re s se m o v im e n ta v a
em u m e n q u a d ra m e n to jurídico q u e lhes era desfavorável, isto
p o r q u e a d ico to m ia público e p riv a d o era m u ito a c e n tu a d a
n e ssa fase e, ao g ê n e ro fem inino, era d e s tin a d o o e sp aço d o ­
m éstico. D essa m a n e ira as m u lh e re s p e rm a n e c ia m fechadas
n a s s u a s tra d icio n a is funções, s e rv in d o à e x p a n sã o d a espécie
o u a Deus. P o r seu tu rn o , os h o m e n s p o s s u ía m o m u n d o p a ra
d e s v e n d a r, to d a s as a v e n tu ra s a v iv er e to d a a experiência a
a c u m u la r. S e g u n d o M URARO ,
"Em geral as mulheres fiavam, teciam, cuidavam dos animais
0 Q uotidiano da M ulher no Fina! da Idade Média. In: DUBY, G eorges e PERROT,
Michelle, p. 354.
A O rdem Feudal. In; DUBY, Georges e PERROT, Michelle. Idem, p. 284.
CIDADANIA OA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
e das hortas, enquanto os homens faziam o trabalho mais pe­
sado e as guerras. A s senhoras da alta estirpe, contudo, na
ausência dos maridos, eram obrigadas a gerir suas vastas pro­
priedades. Assim,
0
papel econômico das mulheres expandia-
se ou se contraía com a presença ou ausência dos homens, e a
ausência era mais comum".
N e ssa concepção, com as restrições d e d ire ito à m u lh e r,
p re v ista s n o s C ódigos, a c a p ac id a d e jurídica d a m e s m a era
e x tre m a m e n te lim itad a, se n d o a m ais flagrante fixação d e sua
in fe rio rid a d e a instituição d a tutela d o sexo m asc u lin o sobre
o fem inino. C o n so a n te OPITZ:
"Os direitos gentílicos excluíam a mulher livre de todos os
acontecimentos públicos. Não podia aparecer em pessoa pe­
rante um tribunal tendo de se fazer substituir por um ho­
mem, o seu tutor (muntivalt). Entre as mulheres solteiras esta
era por norma o pai, entre as casadas, o marido. Por morte
destes, a tutela recaía no parente masculino mais próximo,
pertencente à família do pai. Além do direito de representar o
pupilo em tribunal, o tutor tinha o direito de dispor e de usu­
fru ir da fortuna desta, o direito de castigar - que em casos
extremos podia incluir a morte - o direito de dar em casamen­
to como entendesse e mesmo o direito de vender".
N esse p e río d o os discursos dirigidos às m u lh e re s e ra m p r o ­
feridos pelos pais, clérigos, m estres... e o tem a era a castidade,
a h u m ild a d e , o silêncio, o tra b a lh o etc. D u r a n te séculos as
m u lh e re s o u v ira m a repetição d esses princípios, a c e n tu a n d o
a s u a subm issão. E ram os h o m e n s q u e u s a v a m a p a la v ra pe2' Op. cit., p. 101.
Q uotidiano da M ulher no Final da Idade Média. In; DUBY, G eorges e PERROT,
M ichelle. História das M ulheres: A Idade Média, v. 2, p. 356.
MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÕDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL
Ias m u lh e re s , fortificando a ideologia d a Igreja, re in a n te na
so c ie d a d e e q u e d e te rm in a v a as relações fam iliares. D e acor­
d o com OPITZ:
"A doutrina do casamento por consenso defendida pela Igreja
não podia opor-se às relações de poder vigentes na sociedade e no fim d o também não o queria: a relação entre marido e
mulher não podia doravante ser de amizade e pressupor a igual­
dade de direitos: 'Sêde submissos uns aos outros no temor a
Cristo, as mulheres aos homens como ao Senhor...’ (Efésios,
5:21)... Um bom casamento era a comunhão entre o homem e
a mulher mas, segundo os ensinamentos morais da Igreja, ele
só era realmente bom quando o homem 'governava' e a m u ­
lher obedecia incondicionalmente".-^
N essa época a integração Igreja-Estado era m u ito a c e n tu a ­
da, o q u e explica a criação d o s T rib u n ais O ficiais - instância
judicial episcopal - q u e se o c u p a v a d e q u e stõ e s fam iliares.
Esses trib u n a is c u id a v a m d o s casos d e litígios m ais fre q ü e n ­
tes, o q u e c o rre sp o n d ia à violência c o m e tid a p e lo s m arid o s,
p o s s u id o re s d e u m p o d e r ab so lu to d e castigo, a m p a r a d o no
Direito, sobre a m ulher. N esses trib u n a is as m u lh e re s eram ,
m u ita s vezes, a d v e rtid a s sobre a obediência q u e d e v ia m aos
se u s m arid o s. D esse m o d o a ideologia d e te rm in a v a lim ites
re p re ssiv o s extrem os, o n d e se m o d e la v a o c o tid ia n o fem ini­
no, c o n so an te e n sin a OPITZ:
"Os maridos constituíam a primeira instância de controle
social das suas mulheres, e isso não era apenas determinado
pelas disposições legais redigidas a partir do século XII; os
decretos canônicos que converteu o marido em chefe de sua
mídher reforçam também a responsabilidade e as possibilida23 Idem, ibidem , p. 366.
89
90
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
des de controle por parte do 'senhor e mestre'. Este monopólio
de poder encontra a sua expressão mais nítida no direito que o
marido tinha de castigar a mulher, que as autoridades locais e
eclesiásticas fixavam, e no privilégio masculino de ser infiel
sem conseqüências".^'*
A ssim sendo, as n o rm a s p a ra a infidelidade conjugal eram
aplicadas com m aio r rigor às m ulheres d o que aos hom ens. Elas
p o d ia m ser p u n id a s até com a m orte, porém , e n q u a n to traídas,
nos m esm o s tribunais, não p ossuíam m eio a lg u m d e agir con­
tra seu m arido. R ecorrendo o u tra vez a OPITZ, encontram os:
um grande número de processos do tribunal episcopal de
Paris diz respeito a casos de infidelidade conjugal, 6 foram
sentenciados contra o homem e 13 contra a esposa infiel. Isto
não demonstra necessariamente que as mulheres transgredis­
sem mais as leis conjugais do que os homens, mas parece reve­
lar que a norma de infidelidade conjugal se aplicava com mais
rigor às mulheres do que aos homens, uma idéia que se tira
também dos direitos consuetudinários e regionais”.
N e sse contexto, d e safian d o os p a d rõ e s estabelecidos, s u r­
g iu n a França u m n o v o m o d e lo d e relação e n tre o h o m e m e a
m u lh e r, o amor cortês que, se g u n d o DUBY^^, teria im p licad o
Idem, ibidem, p. 368.
2®Idem, ibidem, p. 371.
Ver a respeito, 0 Am or Cortês. In: DUBY, G eorges e PERROT, M ichelle. História
das M ulheres: A Idade Média, p. 332, que sustenta “Com efeito, peça fundam ental
com o o xadrez, a dam a, no entanto, por ser m ulher - eis onde pára o seu poder não poderia dispor livrem ente do seu corpo. Este pertencia ao seu pai, pertence
agora ao marido. Contém , em depósito, a honra deste esposo, assim com o a de
to dos os m achos adultos da casa. solidários. Este corpo é, portanto, atentam ente
vigiado. Nas residências nobres (...) ela não pode escapar por m uito tem po dos
que a espiam e conjecturam que esta m ulher é enganadora, fraca com o são todas
as m ulheres. Surpreendem com sua conduta o m enor indício de afronta, e logo a
dizem culpada. Ela é e ntão passível dos piores castigos, os quais am eaçam igual­
m ente o hom em que se crê seu cúmplice".
MULHER CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL 9 1
u m a sensível m elh o ra n a condição d e v id a d a m u lh e r d a s clas­
ses sociais altas. O s e n tre te n im e n to s n o s castelos p e rm itia a
elas c ria re m a o s e u re d o r as d esco n traçõ es d a poesia, d a s con­
versações, p a ra o n d e os p o e ta s e ra m a tra íd o s, g a ra n tin d o o
p r ó p rio sustento. Assim, enquanto os costum es oficiais susten­
tavam a tirania d o esposo feudal, a m ulher tentava u m a com ­
pensação m ediante atenções de am ante fora d o casamento.
T inha-se assim , nessa form a d e re v e stim e n to d o a m o r, a
p o s s ib ilid a d e d e p e rp e tu a ç ã o d o c a sa m e n to e n q u a n to insti­
tuição, n o s p o ssib ilitan d o afirm ar que, mutatis mutandis, esse
m o d e lo d e relação p ro p a g o u -s e até os d ia s atuais. A esse res­
peito DUBY discorreu:
"Assim , as relações entre o masculino e o fe m in in o toma­
vam, na sociedade Ocidental, um rumo singular. Ainda
hoje, apesar da revolução das relações entre os sexos, os
traços que derivam das práticas do amor cortês, são aque­
las pelas quais a nossa civilização se distingue mais abrup­
tamente das outras".-^
A fase d o a m o r cortês, q u e s u a v iz o u u m p o u c o a so rte d as
m u lh e re s , n ã o a m o d ific o u n a sua essência, isso p o r q u e n ã o é
o tipo d a relação em si o u o e n c a n ta m e n to q u e p o ssa envolvêla q u e d e te r m in a m a em a n c ip aç ã o d a m u lh e r. A sua v e r d a ­
d e ira lib e rta ç ã o d a s a m a rra s c ria d a s p e la s o c ie d a d e e
ratificadas p e lo D ireito, em u m a o rd e m estabelecida, só o cor­
rerá e fe tiv a m e n te q u a n d o ela p a rtic ip a r in d is c rim in a d a m e n te
d a s decisões políticas, exercendo a cid a d a n ia. N e s s e sentido,
já n o século XX, L EN IN ensinou:
"Enquanto as mulheres não forem chamadas a participar li-
Idem, ibidem , p. 350.
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
vremente da vida pública em geral, cumprindo também as
obrigações de um serviço cívico permanente e universal, não
pode haver socialismo, nem sequer democracia integral e du­
rável. A s funções de polícia como as de assistência a doentes e
crianças abandonadas, o controle da alimentação etc., não po­
dem em geral, ter uma execução satisfatória enquanto as m u ­
lheres não hajam obtido a igualdade perante os homens, não
só nominal, mas efetiva".-^
P o r o u tro lado, u m a o u tra form a d e e m a n c ip a ç ã o d a m u ­
lher é p o r interm édio do conhecim ento. E ntretanto, foi som ente
n o final d a Id a d e M édia q u e as m u lh e re s tiv e ra m acesso aos
p e rg a m in h o s , às U n iv e rsid a d es, p a rtic ip a n d o d o u n iv e rs o d o
e stu d o . Isso re p re s e n to u u m a g ra n d e co n q u ista d o g ê n e ro fe­
m in in o , a p e sa r d e frágil e vu ln eráv el, pois os e s tu d o s d e c u ­
n h o oficial c o n tin u a v a m a ser m o n o p ó lio m asc u lin o . A ssim ,
c irc u n d a d a d e d ific u ld a d e s destacou-se, nessa fase, n o c a m p o
d a s letras, a escritora franco-italiana C ristina d e Pisano.
É in d isp e n sáv e l ressaltar que, nesse p e río d o , teve início u m
d o s m aio res genocídios d a h istória d a h u m a n id a d e - o a p o ­
g e u d a d iscrim in ação d a m u lh e r - o u seja, o p e río d o d e caça
às b ru x as. O c o rre u aí o co m p u lsó rio a fa stam e n to d a s m u lh e ­
res d a s U n iv e rs id a d e s e a proibição d a s m e s m a s d e exerce­
rem q u a lq u e r p rática atin en te à m edicina - co m o a realização
" 0 êxito de um revolução depende do grau de participação das m ulheres. In:
MARX, KarI e t alii, op. cit. p. 101.
propósito, ve r BO HLER, Régnier Danielle. Vozes Literárias, Vozes Místicas.
In: DUBY, G e o rg e s e PERRO T, M iclie lle . H is tó ria d as M ulh eres: A Id a d e M é ­
dia, p. 529, q ue diz "Na história da literatura francesa, entre 1395 a 1405, C ristina
de P isa n o im p õe -se c o m o um a fig u ra im p re ssio n a nte ... M as a su a id e n tida d e
de m u lh e r d e via in fa live lm e n te c ria r p ro b le m a s qu a nd o , o fic ia lm e n te , e em seu
p ró p rio nom e, ela fa la no q u a dro de um co n te x to s o c ia l e cu ltu ra l. E la foi a
p rim e ira a a firm a r a identidade de autora, a marcar solenem ente a sua e ntrada no
cam po das letras".
MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DÓS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL
d e p a rto s, ab o rto s e cu ra s em geral - m e d ia n te d o m ín io d a
m ile n ar quím ica n a utilização d a s plantas.
N ã o é d e m a is frisar q u e o p o d e r d a época e ra c e n tra liz ad o r
e os P a p a s p o s s u ía m u m a força ab so lu ta p a ra criar e d e s tro ­
n a r im p e rad o re s. A ssim , os e lem en to s q u e n ã o e stiv essem sob
o controle d a Igreja sofreriam exterm ínio. E isso foi o q u e ocor­
re u às m u lh e re s - c o n sid e rad a s s u b v e rsiv as - q u e d e safiara m
a c o rp o ra ç ão m asculina, isto é, o p o d e r d o s m éd ic o s e, p o r
extensão, d e to d o s os hom ens, D esse m o d o , m ilh a re s d e m u ­
lheres m o rre ra m em q u a tro séculos d e perseguição.^'
N esse d ia p a s ã o destaca-se Joana D 'A rc, a m a is fam osa fei­
ticeira, e x e cu ta d a p o r lu ta r em favor d e u m ideal d e justiça,
c o m p e tin d o e n tre os h o m e n s e, assim , d e s e s ta b iliz a n d o as re ­
gras d e c o n d u ta p o r estes estatuídas. A final, o h o m e m , se n d o
c o n s id e ra d o o s e n h o r d e to d as as iniciativas e d e to d a a cria­
ção, im p u n h a às m u lh e re s -
v alen d o -se d o ex te rm ín io - o
silêncio, a im o b ilid a d e e a subm issão.
^ Nesse sentido, FRUG O NI, Ctiíara. A M ulher nas Im agens, A M ulh er Im agina­
da. In: DUBY. G eorges e PERROT, Michelle, idem, p. 488, “a acusação de fabrica­
rem ung üe n to s m ágicos e m alefícios rem ete para o co n h ecim ento, transm itido
zelosam ente de mãe para filha, das ervas e das propriedades, precisam ente por­
que as m ulheres, fechadas em casa e destinadas a criar os filhos e a cuidar da
família, estavam ‘fu ncionalm ente’ obrigadas a co nhecer rem édios e poções. Na
perseguição das bruxas conflui tam bém o ressentim ento da m edicina douta e m as­
culina contra um a m edicina popular, feminina e rival".
A respeito, ver FRENCH, Marily, a p u d M URARO , Rose Marie, op. cit., p, 111.
"Esses dados nos fornecem um idéia da dim ensão desse holocausto: “O epicentro
das execuções das bruxas foi o Santo Império (...) 0 S udeste da Alem anha e a
Baviera foram responsáveis por m ais de 3.500 execuções cada, Na Polônia, a
segunda área m ais afligida por esse flagelo, grande número de ‘fe itice ira s’ foi q u e i­
mado entre 1675 e 1720, m esm o depois que a caça às bruxas havia term inado no
resto da Europa, Em algum as cidades alem ãs, 600 bruxas eram executadas em
apenas um ano; na Itália 1000; em Toulouse (França), 4 00 foram queim adas em
um único dia. Na diocese de Trier, 1585, duas aldeias foram deixadas apenas com
uma m oradora m ulher cada uma. M esm o crianças eram acusadas e queim adas na
fogueira. Em Londres, um escocês confessa que ele sozinho havia sido responsá­
vel pela m orte de 229 m ulheres (...) Estimativa do núm ero de pessoas m ortas na
fogueira vai de pouco m ais de cem mil a nove milhões",
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
A ssim se n d o , estas foram as bases q u e su ste n ta ra m os a c o n ­
tecim entos d o s p e río d o s históricos seguintes.
1.3 - No Renascimento e Idade Moderna
O R enascim ento tro u x e consigo n o v a s re g ra s d e c o n d u ta
p a ra as m u lh e res: o culto à d o m estic id a d e, a criação d o a m o r
m a te rn o e d o a m o r rom ântico. E ntretanto, o m o v im e n to de
caça às b ru x as, iniciado na Id ad e M édia, teve c o n tin u id a d e
n o R enascim ento. A rep re ssã o às feiticeiras a u m e n to u consi­
d e ra v e lm e n te e as m u lh e res foram re sp o n sa b iliza d a s p o r tu d o
o q u e d e ru im acontecesse: m á colheita, e p id e m ia s, m o rte s
inexplicáveis.
A caça às b ru x a s p reju d ic o u se ria m e n te as m u lh e re s em
su a im a g e m social. E, m esm o a p ó s o térm in o d e sse revoltante
m o v im e n to d e p erseguição, o esta tu to social d a s m e s m a s não
é revalorizado. D aí p o d e -se a d u z ir q u e o crim e d e feitiçaria
foi d e sq u alific ad o d e direito m as n ã o d e fato. N e sse sentido,
SA L L M A N N diz: " Q u a n d o era feiticeira a forca o u a fogueira
m an ifesta v am , n a sua c ru e ld a d e, a sua re s p o n s a b ilid a d e p e ­
nal. V ítim a d a sua im aginação ou to m a d a d e loucura, ela tra n s­
form a-se n u m ser ju rid ic a m en te d im in u íd o , com r e s p o n s a b i­
lid a d e p esso al lim itada".
P a rale la m e n te à caça às b ru x as, q u e a tin g iu as m u lh e re s
d a s classes baixas, s u rg iu , nessa fase, u m m o v im e n to d irig id o
ao a m o r p latô n ico , q u e exaltava as m u lh e re s - a lc a n ç a n d o
a q u e la s d a s classes m ais e lev ad as - p r e p a r a n d o -a s p a ra a era
in d u stria l. D esse m o d o , as p rim e ira s se ria m as o p e rá ria s d ó ­
ceis d o século e m q u e stã o e as s e g u n d a s , c u ltiv a n d o extrem a
fem in ilid a d e , se ria m as con su m id o ras.
Feiticeira. In: DUBY, G eorges e PERROT, Michelle. História d as M ulheres: Do
R enascim en to à Idade M oderna, v. 3, p. 533.
MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL
Para a c o n stru ç ão dessa fem inilidade ideal n o v a m e n te os
filósofos, sociólogos e m éd ico s e n tra m e m cena, e la b o ra n d o
u m m o ld e, à m a rg e m d o qual elas se ria m infelizes. E n tre ta n ­
to, nele e n q u a d ra d a s , seriam b e m su c e d id a s e m ere c ed o ra s
d e lo u v o re s co m o m ãe d e fam ília e g u a rd iã d a s v irtu d e s e v a ­
lores eternos. A ssim , a m u lh e r v irtu o sa é a " ra in h a d o lar",
frágil e d e s p re p a ra d a p a ra a vida pública, co m o asse v e ro u
ROUSSEAU.
"A mulher m a n té m se perpetuamente na infância; ela é in­
capaz de ver tudo o que é exterior ao mundo fechado da do­
mesticidade, que a natureza lhe legou, e daí resulta que ela
não pode praticar 'ciências exatas'. A única ciência, para além
da dos seus deveres (os quais ela conhece, aliás, intuitiva­
mente), que ela deve conhecer é a dos homens que a rodeiam
e, essencialmente, a do seu marido, e que é baseado no senti­
mento".^^
N o Século d a s Luzes, p o rta n to , o d isc u rso d o m in a n te , q u e
d isse rta v a sobre a n a tu re z a d o h o m em , p ro v in h a d e reflexões
m asc u lin a s q u e estabeleciam estreita relação d e s ta com a n a ­
tu re z a e m geral. Foi nessa linha d e p e n s a m e n to d e n o m in a d a
"se lv a g e m " p o r STRAUSS,^^ q u e a m aio r p a rte d o s filósofos
assenta seus raciocínios: a m u lh e r p e rte n c e à n a tu r e z a e o h o ­
m e m à cultura.
Por o u tro lado, o e s ta tu to d o s esposos a p re se n ta v a -se d ife­
rente d o d a m u lh e r. O m a rid o era o chefe d a fam ília, se n h o r
d a s u a m u lh e r, d o s seus filhos e m e s m o d e se u s c riados se os
tivesse. A p ro p ó sito , em Émile d e R ousseau, Sophie, a esposa
A p u d CASNABET, Michèlle Crampe, A m ulher no P en sam ento Filosófico do
Século XVIII. In: DUBY, G eorges e PERROT, M ichelle. Idem, p. 386.
CASNABET, M ichèle Cram pe, op. cit. p, 381.
95
96
CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
perfeita, p r e p a r a d a d e sd e a infância p a ra aquele, o u v ia os con­
selhos d e seu preceptor: "A o tornar-se v o sso esposo, Emile
to rn o u -se vo sso chefe, a v ó s p erten ce o b ed ecer-lh e, assim o
q u is a n a tu re z a " .
N esse contexto o casam en to n ã o era co m p atív el com a idéia
d e de m o c ra cia ratificada p e la R evolução Francesa. Este era
u m c o n tra to q u e su b m e tia a m u lh e r ao s e u sen h o r, co n fo rm e
p o d e ser c o n sta ta d o e m K A N T n a "A n tro p o lo g ia":
"No progresso da civilização, a superioridade de um elemento
deve estabelecer-se de forma homogênea: o homem deve ser
superior à mulher pela força física e pela coragem, a mulher
pela faculdade natural de se submeter à inclinação que o ho­
mem tem por ela: pelo contrário, num estado que não é ainda
0
de civilização, a superioridade encontra-se apenas do lado
do homem"
D estarte, a d m itir a ig u a ld a d e en tre os sexos e a n ec essid a ­
d e d e u m a e d u c a ç ã o c o m u m im plicaria q u e fosse reconheci­
d o às m u lh e re s o direito igualitário d e p a rticip a ç ão n a vida
política, seria reconhecer o seu direito à c id ad an ia. N e sse s e n ­
tid o , BO DIN, refletindo sobre os g ra u s d e c id a d ã o s d e u m a
república, assim p osicionou as m ulheres:
"Quanto à ordem e o grau das mulheres, não quero introme­
ter-me nisso. Penso simplesmente que devem ser mantidas
longe de todas as magistraturas, posições de comando, tribu­
nais, assembléias públicas e conselhos, deforma a que possam
dedicar toda a sua atenção às tarefas femininas e domésticas"
R O USSEAU, Jean-Jacques ap u d CASNABET, M ichèle Cram pe, op. cit. p. 389.
“ /Ip u d CASNABET, M ichèle Cram pe. op. cit. p. 390.
^ M p u d D A V IS , Natalie Zem on. A m ulher na "política" In: DÜBY, G eorges e PERROT,
M ichelle. História das Mulheres: Do Renascim ento à Idade M oderna, p. 229.
MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL 9 7
A p e sa r d e to d o esse contexto desfav o ráv el, h o u v e m u lh e ­
res q u e se d e sta c a ra m , p o r força de n a scim en to o u exercendo
d e te rm in a d a força política, p o d e n d o registrar-se, en tre outras,
M aria T u d o r, M aria Stuart e C atarin a d e Médicis.^®
A R evolução Francesa, q u e p o d e ria ter tra n s fo rm a d o o d e s ­
tino d a s m u lh e res, n ã o o fez, m u ito ao contrário, ela m o stro u se respeitosa às instituições e aos valores b u rg u e se s. A ssim ,
as m u lh e re s q u e lu ta ra m ao la d o d o s h o m e n s , n a to m a d a da
Bastilha, re iv in d ic a ra m os se u s d ireito s d e v e n c e d o ra s q u e
ta m b é m o foram , m a s tiveram os m esm o s n e g a d o s com a res­
posta: " A R evolução Francesa é u m a rev o lu ç ã o d e hom ens.
N ã o p o d e m o s c o n ced er o D ireito d a M u lh e r p o r q u e hoje foi o
dia em q u e n a sce ra m os d ireitos d o h o m e m " . O l y m p e de
Gouges,'*® a u to ra d e Declaração dos Direitos da Mulher - p o r suas
idéias d e ig u a ld a d e e n tre os gêneros - foi decapitada.^'
A s m u lh e re s tiv e ram participação decisiva em to d a s as fa­
ses d e g ra n d e s m u d a n ç a s reg istra d a s p e la história. E n tre ta n ­
to, à m e d id a q u e os n o v o s sistem as e ra m im p la n ta d o s , elas
e ra m d e v o lv id a s ã condição m arginal. Isso foi o q u e ocorreu
a p ó s a R e v o lu ç ã o F ran cesa, com os efe ito s d o C ó d ig o d e
N a p o le ã o , q u e fixou p o r séculos o d estin o d a s m u lh e re s , a tra ­
s a n d o a in d a m ais a s u a e m ancipação, ao assim d isp o r:
N esse sentido DAVIS, Natalie Zam on, idem, p. 230.
" C onform e M URARO , Rose Marie, op. c/f, p. 128.
Em. BEAUVO IR , op. cit. p. 142 encontram os: "O lympe de G ouges propôs em
1789 um a 'D eclaração de Direitos da M ulher’, sim étrica a dos Direitos do Homem,
na qual pedia que todos os privilégios masculinos fossem abolidos. Em 1790, en­
contram -se as m esm as idéias em 'Motion de Ia pauvre Ja cotte’ e outros libelos
análogos".
S L E D Z IE W S K I, E lis a b e lh G. R e v o lu ç ã o F ra n c e s a , A V ira g e m , /n: DUBY.
G eorges e PERROT, Michelle. História das Mulheres: O S éculo XIX, v. 4, p. 54.
A ssevera O lym pe de G ouges no ari. 10 da D eclaração que “A m ulher tem direito
de subir ao cadafalso; deve igualm ente ter o direito de subir à tribu n a ” .
98
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
"A mulher deve obediência a seu marido; ele pode fazer que
seja condenada à reclusão em caso de adultério e conseguir o
divórcio contra ela; se mata a culpada em flagrante, é des­
culpável aos olhos da lei; ao passo que o marido só é sujeito a
uma multa se trouxer uma concubina ao domicílio conjugal
e é, neste caso somente, que a mulher pode obter o divórcio
contra ele".^^
1 .4 - No século XIX
O século XIX iniciou sob os reflexos d a R evolução F rance­
sa q u e , com o dito, n ã o possibilitou às m u lh e re s o reconheci­
m e n to d e seus d ireitos com o cidadãs, pelo contrário, os ali­
cerces d a s bastilhas p e rm a n e c e ra m ind estru tív eis, m a n te n d o
o p rin c íp io d e h e g e m o n ia m asculina. E ntretanto, esse século
é m a rc a d o pelo n a scim en to d o fem inism o q u e d e te rm in a im ­
p o rta n te s m u d a n ç a s e stru tu ra is, e m q u e as p e rsp e c tiv a s de
v id a d a s m u lh e re s se altera.
N e sse p e río d o o d iscurso d o s filósofos, psicólogos, soció­
logos e o u tro s p e n s a d o re s é v o lta d o p a ra as e te rn a s questões
relativ as à p a rtilh a en tre n a tu re z a e civilização, p ú b lic o e p r i­
v a d o , c o rp o e espírito, já ev id e n c iad o s n o s séculos anteriores.
D essa form a, H E C EL d isp e n s o u sua a te n ç ã o à dico to m ia
p ú b lic o /p r iv a d o , re la c io n a n d o o p rim e iro com o trabalho, à
ciência e o E stado, e o s e g u n d o - o n d e s itu o u a m u lh e r - vinculou-o à fam ília, à form ação d e valores m orais, assim s e n ­
tenciand o;
“A mulher pode ser uma filha, esposa, mãe e irmã; só esta
última relação com o homem é portadora de uma relação de
BEAUVOIR, op. at. p. 143.
MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÕDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL 9 9
igualdade. Na partilha entre a família e a cidade, só o homem
árcida entre as duas. Ele pode assim dissociar em si mesmo a
universalidade de sua cidadania da singularidade de seu dese­
jo, e beneficiar-se, desse modo, da realização das duas; aí se
encontra uma liberdade, um reconhecimento em si mesmo a
que a mulher não tem acesso".*^
N e ssa linha d e in fe rio rid a d e d e tra ta m e n to d is p e n s a d o à
m u lh e r, DARWIN^*^ disse q u e a seleção n a tu ra l, q u e a c o m p a ­
n h a a seleção sexual, privilegiou o h o m e m , to rn a n d o -o s u p e ­
rio r à m u lh e r. Frisou ele q u e a d e s ig u a ld a d e n ã o p o d e rá ser
re v e r tid a com o d e s e n v o lv im e n to d a h u m a n i d a d e . D ia n te
dessa sentença, a m u lh e r teria s e m p re u m a tra s o e m relação
a o h o m e m , p e rp e tu a n d o -s e a d e sig u a ld ad e .
N a s e g u n d a m e ta d e d o século XIX, N IETZSCH E e FREUD'*^
c e n tra liz ara m su a s discussões n a q u e stã o d a d iferença entre
os sexos. O p rim e iro tra ta d o s asp ecto s inteligência e beleza,
estab elecen d o a í p a râ m e tro s p a ra d istin g u ir h o m e m e m ulher.
O p e n s a m e n to d e F reud, p o r sua vez, teve g r a n d e r e p e rc u s ­
são, e m b a s a n d o teorias c o m p o rta m e n ta is às m u lh e re s n o s é ­
culo XX, com o v e re m o s adiante.
N e s s e contexto, o d ire ito -re g u la d o r d o c onvívio social n ã o
p o d e ria ficar im u n e às influências d o s p e n s a d o re s d a época.
A ssim , teo rica m e n te ele estava a s se n ta d o n o livre-arbítrio d o
in d iv íd u o m as, n a p rática, foi o a u to rita ris m o q u e m a rc o u a
legislação. E xem plificando: o p rin cíp io d a a u to n o m ia d a v o n ­
tad e tra n sm itia a idéia d e a d e sã o d a m u lh e r ao seu e s ta tu to
/4puc/FRAISSE, G eneviére. Da Destinação do Destino. História Füosófica da
Diferença entre os Sexos. In: DUBY, G eorges e PERROT, M ichelle. História das
M ulheres: O S éculo XIX, p. 63.
A p u d FRAISSE, Genevieve, Idem, p. 88.
4 p u d F RAISSE, G enevieve. Idem, p. 88-90.
100
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
que, n o e n tan to , a tra tav a com o u m ser re la tiv a m e n te capaz.
N e sse e sta tu to a m u lh e r existia a p e n a s com o filha, e sp o sa e
m ãe, e n q u a n to o h o m e m era o ún ico sujeito d e direitos.
D esse m o d o os juristas d o século XIX leg itim a ra m a d e s i­
g u a ld a d e d e tra ta m e n to com relação ao sexo fem inino. N o
c a m p o d o D ireito Penal, até 1870, na Inglaterra, o m a r id o era
o resp o n sáv el pelos delitos d a m ulher, o n d e MICHELET^^ afir­
m o u q u e a m u lh e r, p o r ser d e m a s ia d a m e n te frágil, d ev eria
ser c o n s id e ra d a p e n a lm e n te irresponsável.
A ssim , o p o d e r d o m a rid o era justificado p e lo estereótipo
d e in fe rio rid a d e d a mulher^®. N a prática, a s u p e rio rid a d e a tri­
b u íd a ao h o m e m tinha co m o objetivo g a ra n tir-lh e a a d m in is ­
tração d a so c ie d a d e conjugal, d irig in d o a e sp o sa e os filhos.
Isso ratificava a já c o n sa g ra d a distribuição d o p a p e l d o s g ê n e ­
ros nessa e s tr u tu r a d e sociedade d o tip o patriarcal.
P o r seu tu rn o , o C ó d ig o Civil Francês, n o art. 213, p rev ia
q u e "o m a r id o d e v e proteção à sua m u lh e r, a m u lh e r d e v e
obediên cia ao seu marido".'*^ Esse dispositivo legal investia o
h o m e m n o p o d e r d e vigiar o c o m p o rta m e n to d a m u lh e r, em
n o m e d o exercício d o d e v e r d e proteção, q u e o D ireito lh e c o n ­
feria. N e sse sen tid o , D U C expressou: " O m a g is tra d o d o m és-
p ro p ó s ito , DUC, N icole A rn a u d. As C o n tra d iç õ e s d o D ire ito . In: DUBY,
G e o rg e s e PERRO T, M ichefle, H is tó ria d as M ulh eres; O S é cu lo XIX, p. 117.
“ ... S ão m á xim a s rom a n a s revisad a s pe lo s ju rista s do sé cu lo X V III e m áxim a s
c o s tu m e ira s de in s p ira çã o g e rm â n ica que pre p a ram a d e p e n d ê n c ia da m u lh e r e
su a in ca p a c id a d e ".
A p u d DUC, Nicole Arnaud. Idem, p. 112.
^8 N esse sentido, M ARX, Karl. A decom posição da fam ília burguesa. In: MARX,
KarI e t alli, op. d l p. 44. “A hum ilhação do sexo é um traço essencial e caracterís­
tico ta m bém da civilização e da barbárie, com a diferença que o vício é praticado
na barbárie sem requintes, ao passo que é elevado pela civilização a um grau de
existê n cia co m plexa, equívoca, inconveniente e hipócrita... N inguém h u m ilha o
hom em pelo crim e de tratar a m ulher com o escrava".
Ver DUC, Nicole Arnaud, op. cit. p. 118.
MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL
tico - d e v e p o d e r - com m o d eração , aliar a força à a u to rid a d e
p a ra se fazer respeitar. E n ã o se p o d e m c o n d e n a r s e m p re os
a to s d e correção o u d e v iv ac id a d e m arital... A a u to r id a d e que
a n a tu re z a e a lei co n ced eu ao m a rid o te m p o r fim d irig ir a
m u lh e r n o seu com portam ento".^^
O C ó d ig o Penai francês era ta m b é m b a s ta n te rigoroso p ara
com as m u lh e res, p resc rev e n d o , no art. 337, p e n a d e 3 m eses a
2 an o s d e prisão, se m ad m itir a te n u a n te s, p a ra o adultério.
Esse delito, c o n sid e ra d o ultrajante à lei, à m o ra l p ú b lica e à
religião, a ssu m ia o u tra conotação q u a n d o p ra tic a d o p o r u m
h o m e m , pois a p e n a , a q u e este estava sujeito, e ra u m a m u lta
d e 100 a 2.000 francos, conform e o q u e p re v ia o art. 339 d o
m e s m o C ó d ig o citado p o r DUC.^^
A essas d e s ig u a ld a d e s jurídicas acrescenta-se o u tra a in d a
m ais gritante, f u n d a d a n o art. 324 d o C ó d ig o e m p a u ta . Esse
d is p o s itiv o legal co n sid e ra d e s c u lp á v e l o a ssa ssin a to , pelo
m arid o , d a esp o sa o u seu cúm plice, s u rp re e n d id o s e m flagran­
te n o dom icílio conjugal. O país d o s D ireitos H u m a n o s m a n ­
teve até 1975, e m seus Códigos, essas c ontradições, conform e
e n sin a DUC.^^
O D ireito ta m b é m foi co n trad itó rio n a In g la terra o n d e , até
1870, os m a rid o s g o z a v am d e plena im punidade,^^ o q u e a g ra ­
v a v a a im p o tê n cia d a m u lh e r casada. A ssim , eles p o d ia m in ­
terc e p ta r c o rre sp o n d ên c ia pessoal d a e sp o sa o u p ro ib ir a e n ­
trega pelos correios - tal ato lhes conferia o g ra u d e a stu to s p o d e n d o utilizá-la p a ra p e d id o d e div ó rcio . E n tre ta n to , às
m u lh e re s n ã o era p e rm itid o o uso d o m e s m o direito.
^ Ibidem.
Op. cit. p. 122.
Ibidem.
^^DUC, Nicole Arnaud, op. cit. p. 119.
101
102
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
O s m a rid o s p o ssu ía m , ainda, p o d e re s q u e a lei lh es confe­
ria, p a ra o b rig a r as m u lh e res a residir n o dom icílio p o r eles
escolhido. Ao m a r id o era facultado o u so d a força p a ra co a ­
gir a e sp o sa q u e se afastasse, a reto rn ar ao dom icílio conjugal,
c o n fo rm e leciona DUC:
"Numerosos julgamentos ordenam que ela seja reconduzida
m a n u m ilitari, acompanhada por um oficial de diligências,
que pode recorrer à força armada, a fim de não tornar depen­
dente dos caprichos e mesmo do crime da esposa, um novo
gênero de separação de pessoas, subversivo dos direitos gerais
do corpo social".^"*
A d e m a is, e m o u tro s países e u ro p e u s e m e s m o am e ric a n o s
a m u lh e r s e m p re e stav a em condição su b a lte rn a a o h o m e m
n a sociedade e, p o r ação reflexa, nas legislações. A in d a n a Fran­
ça, a té 1965, a m u lh e r p recisav a d e p e rm iss ã o e x p re ssa d o
m a r id o p a ra exercer u m a profissão. N ã o p o s s u in d o essa a u to ­
rização, a e sp o sa n ã o p o d ia inscrever-se em u n iv e rs id a d e s ,
a b rir c o n ta b a n c á ria , re q u e r e r p a s s a p o r te e h a b ilita ç ã o d e
m o to rista e n tre o u tro s atos civis. Essa d e p e n d ê n c ia d a m u ­
lh e r to r n o u - s e e x tr e m a m e n te in c o e re n te n o a s p e c to legal,
q u a n d o p re v ia ser in d isp e n sáv e l a p e rm issã o d o m a r id o caso
ela p re te n d e s s e a n u la r o casamento.^^
Esses p receitos jurídicos, c a rre g ad o s d e antíteses, são in ­
co m p a tív e is com u m a época n a qual a m u lh e r p a rtic ip a v a em
p o sto s m e n o s q ualificados d e to d o s os setores d e p ro d u ç ã o . O
D ireito, d e sse m o d o , v e m ratificar o estereótipo, c o n sa g ra d o
p e lo im a g in ário social, d a m u lh e r c o m p le m e n to d o h o m e m .
Op. cit. p. 120.
M ARIAS, Javier. Abstrações sem significado: M ulher com o G ênero A b so lu ­
to carece de realidade. Folha de São Paulo, 04.02.96, fis. 5-9.
MULHER; CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SÓCIAlS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL
u m a p ê n d ic e q u e d e v e ser m a n tid o excluído d o setor público.
Em n o m e d e u m a necessária especificidade d e p a p é is sociais
d o h o m e m e d a m u lh e r criou-se u m a d e s ig u a ld a d e jurídica,
q u e b e m m o stra a inclinação d o Direito a p ro te g e r o seu cria­
dor. N ã o p o r acaso escreveu BARRE: " tu d o o q u e os h o m e n s
escre v e ra m sobre as m u lh e re s d e v e ser su sp eito , p o is eles são,
a u m te m p o , juiz e p a rte".
Ao final d o século XIX v a m o s e n c o n tra r L E N IN d e ­
n u n c ia n d o as contradições d o Direito com este e nsinam ento:
" N ã o p o d e h av er, n ã o há, n e m h a v e rá I g u a l d a d e ' entre
o p rim id o s e op resso res, e x p lo ra d o s e e x p lo ra d o re s. N ã o p o d e
h av er, n ã o há, n e m h a v e rá 'lib e rd a d e ' v e rd a d e ira , e n q u a n to a
m u lh e r n ã o for lib e rta d a d o s privilégios q u e a lei sanciona em
fav o r d o hom em ..
1.5 - No século XX e XXI
A h istó ria d a s m u lh e re s s e m p re foi d ita d a p e lo s h o m en s,
co m o já foi citado, pois estes têm a seu favor a força física, o
p restíg io m o ra l e o controle econôm ico. Se as m u lh e re s co n se ­
g u ira m a lg u m espaço foi p o rq u e os h o m e n s e s ta v a m d is p o s ­
tos a fazer-lhes essa concessão. S e g u n d o BEAUVOIR:
"A mulher sempre foi, senão a escrava do homem, ao menos
a sna vassala; os dois sexos nunca partilham o mundo em
condições; e ainda hoje, embora sun condição esteja evoluin­
do, a mulher arca com um pesado 'handicap'. Em quase ne­
nhum país
0
seu estatuto legal é idêntico ao do homem e,
m uitas vezes, este último a prejudica consideravelmente.
M esmo quando os direitos lhes são abstratamente reconheBEAUVO IR , Sim one, op. cit. p. 16.
0 p od er soviético e a situação da mulher. In: MARX, KarI e ta lii. op. cit. p. 120,
104
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
cidos, iim longo hábito impede que encontrem nos costumes
sua expressão concreta".
A classe d e m u lh e res tra b a lh a d o ra s era a q u e g o z a v a de
certa a u to n o m ia econôm ica m as, em c o n tra p a rtid a , carregava
o fard o d a discrim inação n o trabalho. E ntretanto, n a s classes
d o m in a n te s elas eram , e a in d a o são, parasitas, sujeitando-se
às leis m asculinas, p a ra n ã o p e rd e r posição, riq u e z a o u poder.
N e sse sistem a engenhoso, a v id a das m u lh e re s s e m p re foi
co n tro lad a. A s alavan cas d e c o m a n d o d o m u n d o n u n c a esti­
v e ra m n a s m ã o s d a s m ulheres: n ã o lh es p e rm itira m p a rtici­
p a r n a s á reas técnicas e econôm icas, n e m c o n stru ir E stados
o u d e sco b rir m u n d o s . A p ropósito, BEAUVOIR disse: " O êxi­
to d e a lg u m a s p riv ile g ia d as n ã o c o m p e n sa m , n e m d e s c u lp a m
o re b a ix a m e n to sistem ático coletivo; e o fato d e serem esses
êxitos ra ro s e lim itados, p ro v a p rec isam e n te q u e as circ u n s­
tâncias lh es são desfavoráveis".^'^
A m u lh e r profissional q u e tra b a lh a fora d e casa carrega o
ô n u s d a d u p la jo rn a d a d e trabalho. C onciliar a a tu a ç ã o n o es­
paço público, com a vida familiar: c u id a d o d o s filhos e d a casa,
n ã o lh e sobra m o m e n to a lg u m d e lazer, c o n sa g ra n d o -se o cír­
culo vicioso, conform e b e m a d v e rte STUDART: " A d o m in a ­
ção p r o d u z d e b ilid a d e m ental e a d e b ilid ad e m en ta l facilita a
dominação."^^ N e ssa m esm a linha, L EN IN ensina:
"Fazer a mulher participar do trabalho produtivo social li­
bertando-a do jugo bruto e humilhante, eterno e exclusivo,
da cozinha e do quarto dos filhos, eis a tarefa principal. Esta
Op.Cit. p. 21.
cit. p. 171.
" STUDART, Heloneida. Mulher, objeto de cama e mesa. 4. ed. RJ: Vozes, 1974,
p. 20.
MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÕDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E 0 8 DIREITOS DE PAPEL
luta será longa. E exige uma trnnsformação radical da técni­
ca social e dos costumes".^''
N ã o é d e m a is frisar q u e foi F re u d q u e m e m b a s o u as teori­
as científicas p a ra que, n este século, fosse a s se g u ra d a a d o ­
m estic id a d e d a m u lh e r. S e g u n d o M U R A R O /^ esse psic a n a ­
lista estabeleceu c o m p o rta m e n to s sexuais e m o s tro u às m u ­
lheres q u e
0
seu espaço d e d o m ín io a in d a era o p riv a d o . D es­
se m o d o , elas n ã o p o d ia m co m p e tir com o h o m e m n o m erc a ­
d o d e trabalho, p o is que, se n d o c o m p a n h e ira , significava serIhe subm issa. Afinal, form ou-se no im a g in ário social o p r e ­
conceito co n tra a m u lh e r q u e exercesse tra b a lh o fora d o lar:
era c o n sid e ra d a m asculina.
N o e n tan to , co n tra ria n d o os preceitos fre u d ian o s, su rg iram
- n o final d o século XIX e início d o século XX - os p rim eiro s
m o v im e n to s d e m u lh e res, reiv in d ic a n d o d ire ito a o voto, m e ­
lh o r a m b ie n te d e tra b a lh o e salários m ais dignos. Foi n a luta
p o r se u s d ireito s q u e e m oito d e m arç o d e 1908, n o s E stad o s
U n id o s, cento e c in q ü en ta ope rá ria s foram q u e im a d a s vivas
n o in terio r d e u m a fábrica, tra n c a d as p o r seus p atrões. Esse
dia ficou c o n sa g ra d o com o o Dia Internacional d a M ulher.
N o s E stados U nidos, n o início d o século XX, cerca d e oito
m ilh õ e s d e m u lh e re s q u e tra b a lh a v a m fora d e casa recebiam
a terça p a rte d o salário p a g o aos h o m en s, re ite ra n d o a discri­
m in a ç ã o d a m u lh e r n o c a m p o profissional, d e a c o rd o com
MURARO.^^ N o m esm o sentido, BEAUVOIR disse:
a mulher que busca a sua independência no trabalho tem
0 êxito de uma revolução depende do grau de participação das mulheres.
In: MARX, KarI et alii. op. c/f. p. 129.
Op. cit. p. 137.
M URARO . Idem, p. 138.
Idem, ibidem, p. 136.
106
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
muito menos possibilidades do que seus concorrentes mascu­
linos. Em muitos ofícios, seu salário é inferior aos dos homens;
suas tarefas são menos especializadas e, portanto, menos bem
pagas que as de um operário qualificado e, em igualdade de
condições, ela é menos bem remunerada"
A G ra n d e D e p re ssã o A m ericana (1930) e d u r a n te a S e g u n ­
d a G u e rra M u n d ia l as m u lh e res fo ra m su c essiv am e n te c h a ­
m a d a s p a ra as linhas d e p ro d u ç ã o p a ra logo em seguida, q u a n ­
d o so lu c io n a d o s os g ra n d e s espaços econôm icos e logísticos,
se re m d e v o lv id a s ao espaço p riv a d o , se m c o n seg u irem im p o r
u m p a p e l definitivo p a ra as m u lh e res n o e sp aço público. A
esses a c o n te c im e n to s históricos q u e g u in d a m a m u lh e r d o
esp aço p ú b lic o p a ra o p riv a d o e vice-versa G A D O L d e n o m i­
n a d e " m u d a n ç a progressista";
"...
0
momento em que se presume que as mulheres são parte
da humanidade no sentido mais pleno - o período ou conjunto
de eventos com os quais lidamos assume um caráter ou signi­
ficado inteiramente diverso do normalmente aceito. De fato, o
que surge é um padrão perfeitamente regular de relativa per­
da de s ta tu s para as mulheres, precisamente naqueles perío­
dos da chamada mudança progressista..."^^
P o r o u tro lado, nas sociedades d o s países s u b d e se n v o lv i­
dos, o p a p e l d e ca d a gê n e ro difere conform e o interesse d o
sistem a d o m in a n te , so fre n d o as m u lh e re s m u ita o p re ssã o em
u m a fam ília q u e é a u n id a d e d e p r o d u ç ã o e re p ro d u ç ã o . N e s ­
se sen tid o , BENHABIB ensina;
"a fam ília nuclear moderna, não é um abrigo do mundo
Op. c/f. p. 174.
" A p u d BENHABIB, Seyla e CO RNELL, Drucilla. Fem inism o com o C rítica da
M odernidade. RJ: Rosa dos Tempos, 1987, p, 171.
MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL
impiedoso, mas um lugar dc cálculo instrumental, egocêntrico
e estratégico assim como lugar de trocas geralmente explora­
doras de serviço, trabalho, dinheiro e sexo, para não mencio­
nar lugar, freqüentemente, de coerção e violência"
N e s s e tip o d e sociedade a classe m é d ia é fo rm a d a p o r p e ­
q u e n o s p ro p rie tá rio s e funcionários m e n o s g r a d u a d o s d o sis­
tem a p ro d u tiv o e d o g o verno, em q u e as m u lh e re s revestem se, exclusivam ente, d o p a p e l d e m ães e d e d o n a s d e casa, pois,
p a ra v iverem , n ã o precisam executar tra b a lh o fora d e casa.
Em reg ra , são estas m u lh e re s as d efe n so ras d e tradicionais
v a lo re s m o ra is, políticos e religiosos, c u m p rin d o o p a p e l a elas
h isto ric a m e n te rese rv ad o , n o a c o m o d a m e n to d a e s tr u tu r a so­
cial. N o d iz e r d e STUDART:
"Se participasse efetivamente da produção, a mulher abando­
naria a sua atitude conservadora. Mas prosseguindo em sua
situação atual de reserva de mão-de-obra, nao participa das
lutas do trabalho e, em conseqüência, dos avanços sociais".
E m b o ra n o final d o século XX e n c o n tre m o s as m u lh e re s
in te g ra d a s d e form a m ais efetiva n o m e rc a d o d e tra b a lh o , a
d isc rim in aç ã o econôm ica, re p re s e n ta d a p o r salários d ife re n ­
ciados p a ra tarefas idênticas, p e rd u ra . Isso ocorre especialm en­
te n a s profissões d e salário m ais baixo. "P a ra u m a m u lh e r,
esse salário ba sta ", é u m a cara m áx im a p a tro n a l.
N o alvorecer d o a tu a l século, os antigos este reó tip o s co­
m eç a m - len ta m e n te - a desfazer-se: A m u lh e r está, e m blo­
co, in g re s s a n d o n o setor p ú b lic o e, d e form a incipiente, p a rti­
lh a n d o o setor p riv a d o com o h o m em : e n v o lv e n d o -o n o s tra ­
b a lh o s d a casa e na criação d o s filhos, e sboçando-se, assim .
Op. cit. p. 53.
Op. cit. p. 20.
107
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
u m a m a io r in te g raç ã o h o m e m -m u lh e r. C a d a u m d o s lad o s
re p re s e n ta hoje, em to d o o m u n d o , a p ro x im a d a m e n te 50% da
força d e trabalho.
O D ireito, p o ré m , a in d a n ã o in co rp o ro u as n o v a s te n d ê n c i­
as, m a n te n d o -s e u m rígido p ro te to r d a s classes d o m in a n tes,
nelas a in d a in cluído o h o m e m , fa z e n d o conhecer ao s excluí­
dos, e n tre eles a m u lh e r, a p e n as o lad o coercitivo d a lei. D eve
o c o rp o d e leis agilizar seu passo, a c o m p a n h a n d o a acelera­
ção histórica, a m o b ilid a d e social, sob p e n a d e m a n te r ju rid i­
c a m e n te a c e n tu a d a s a ntigas d e s ig u a ld a d e s en tre classes soci­
ais e e n tre os gêneros, c o rro b o ran d o o q u e o b se rv a W ARAT:
"é na lei e n o saber d o D ireito q u e e n c o n tra m o s o m ito d e u m a
so c ie d a d e sem fraturas".^^
2 - SÍNTESE HtSTÓRICA DA MULHER NO BRASÍL:
DO PERÍODO COLONIAL AOS DIAS ATUAIS
M od elagem /M u lh er
A ssim foi m o d e la d o o objeto:
p a ra sobrevivência.
Tem o lhos d e ver e a p e n as
entrevê. N ã o vai longe
seu p e n s a m e n to c o rta d o
ao m eio pela ferru g em
d a s tesouras. É u m m ito sem asas,
c o n d ic io n a d o às fainas d a lareira.
Seria u m e scândalo d e b a rro afeito
a m o v im e n to s incipientes, sob tutela.
E rg u e a cabeça p o r in stantes
e logo esm orece p o r força
" WARAT, Luís Alberto ap u d STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do Júri: Sím bo los e
Rituais, 2. ed. POA; Livraria do Advogado, 1994, p. 42.
MULHER; CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL
d e séculos pen d en tes.
A o rem o v e r en tu lh o s
p a ra q u e d e justiça tenha v id a integral
p o is o m o d e lo d e v e ser, indefectível,
se g u n d o as leis d a p ró p ria m o d elag em .
H e n riq u e Lisboa
Pousada do Ser
Q u a n d o o Brasil foi descoberto, os h o m e n s q u e a q u i che­
g a ra m v ie ra m sozinhos. T ran sc o rre ra m d é c a d a s p a ra q u e as
m u lh e re s os seguissem , o p o rtu n iz a n d o - n e sse e sp aço d e tem ­
p o - q u e o corresse u m a m istu ra d e raças: b ran co s, m estiços
d e p o rtu g u e s e s c o m ín d io s e, m ais ta rd e , c o m n e g ra s. Essa
m estiç a g e m foi fu n d a m e n ta l p a ra a d e te rm in a ç ã o d a situação
social d a m u lh e r. N esse contexto a u n iã o leg a liz a d a e ra q u ase
inexistente.
S e g u n d o a h istoriografia, é a p a rtir d o século XVII q u e a p a ­
rece d o c u m e n ta ç ã o a respeito d a situação ju ríd ic a d a m u lh e r
n o Brasil, o n d e ela era tra ta d a pela legislação c o m o imbecilüus
sexus”, e q u ip a ra d a às crianças, aos d o e n te s e ao s incapazes.
N o e n ta n to , a p e sa r d a co n sid e rad a in c a p a c id a d e , ela p o d ia
h e rd a r e m e sm o a d m in istra r p ro p rie d a d e s q u a n d o h o u v e sse
o in te r e s s e o u p o r n e c e s s id a d e d a fam ília. N e s s e s e n tid o
FREIRE afirm a: "(...) m atria rca s h o u v e n o Brasil patriarcal,
a p e n a s c om o eq u iv a le n te d e p atriarcas, isto é, c o n sid e ran d o se m a tria rca s a q u e la s m u lh e re s que, p o r au sên c ia o u fraqueza
d o pai o u d o m arid o , e d a n d o e x p a n sã o a p red isp o siç õ e s, ou
características masculinóides d e p e rs o n a lid a d e foram , às vezes,
os h o m e n s d a c a sa ".^
™ A p u d CO U TIN H O . M aria Lúcia Rocha. Tecendo por trás d os Panos: A mulher
brasileira nas relações fam iliares. RJ: Rocco, 1994, p. 68.
109
110
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
N o século XVIII a família, d e o rganização p atriarcal, c o n s­
tituía-se n o centro econôm ico e político d a so c ie d a d e e, com o
tal, u m a força q u e se a n te p u n h a ao Estado. A Igreja, p o r seu
tu rn o , exercia u m a posição in te rm e d iá ria e n tre a fam ília e o
E stado, u s a n d o co m o canal p a ra estabelecer esta relação as
m u lh e re s q u e m ilita v a m na religião. Essa era ta m b é m u m a
form a d e c o m p e n s a r as m u lh e res p o r su a situ a ç ão d e in ferio ­
r id a d e social.
A m u lh e r b ran c a - n o p e río d o colonial d o Brasil e m esm o
n a R epública - casava p o r conveniência econôm ica, q u a se
s e m p re com p a re n te s, p a ra reforçar os laços fam iliares, m as
esp ec ia lm e n te p a ra p re s e rv a r o p a trim ô n io d a fam ília. A ssim
se n d o , a q u e la s m u lh e re s q u e n ã o desejassem p a rtic ip a r d esse
p a c to fam iliar e ra m e n v ia d a s p a ra os c onventos, p a ra evitar
c a sa m e n to s inter-raciais.
P o r o u tro lado, a v irg in d a d e d a m u lh e r era c o n sid e ra d a
u m a v irtu d e , u m fator d e alta im p o rtâ n c ia e, co m o tal, era
g u a r d a d a p e lo p a tria rc a e p o r o u tro s m e m b ro s d a fam ília.
A d em ais, a fam ília h o n r a d a e ra a quela q u e m a n tin h a a c o n d i­
ção d e su bserviência d a m u lh e r e su a total d e d ic a ç ã o aos afa­
zeres d om ésticos, co m o b e m define EXPILLY:
"A desconfiança, a inveja e a opressão resultantes, prejudica­
vam todos os direitos e toda a graça da mulher que não era,
para dizer a verdade senão a escrava do seu lar. Os bordados,
os doces, a conversa com as negras, o cafuné, o manejo do
chicote, e aos domingos uma visita à igreja, eram todas as
distrações que o despotismo paternal e a política conjugal per­
mitiam às inquietas esposas''/^
A m u lh e r n e g ra e a m u la ta, p o r su a vez, so friam g ra n d e s
^ M p u d C O U T IN H O , M aria Lúcia Rocha, op. d l. p. 66.
MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E ÓS DIREITOS DE PAPEL
p rivações, d e s d e a in stru çã o básica, q u e n ã o lh e s era p o ssib i­
lita d o receber. A lib e rd a d e d e d e slo c a m e n to d e ssa s m u lh e res,
e m p r e g a d a s d o m éstic a s e m su a m aioria, era co n tro lad a , as­
sim co m o o seu m o d o d e vestir. A p ro p ó sito , LISPECTOR d e s ­
c re v e a m o n o to n ia e a falta d e p e rsp e c tiv a d a v id a d e ssa s
m u lh e res:
“Sua preocupação reduzia-se a tomar cuidado na hora peri­
gosa da tarde, quando a casa estava vazia, sem precisar dela,
0
sol alto, cada membro da família distribuído em suas f u n ­
ções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um
pouco em espanto. M as na sua vida não havia lugar para
que sentisse ternura pelo seu espanto - ela o abafava com a
mesma habilidade que as lides da casa lhe haviam transm iti­
do... De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres.
Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se
voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscu­
ramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E ali­
mentava anonimamente a vida. Estava bom assim"7^
N esse d ia p a s ã o a função d a m ãe - a q u i se inclui a n e g ra e a
m u la ta - era glorificada. A figura d a m ãe - a e x e m p lo d o que
foi ex p o sto n a p rim e ira p a rte de ste tra b a lh o - era asso ciad a à
Igreja, à V irgem M aria, à im a g e m d a d ev o ção e d o sacrifício.
Ela sim b o liz a v a a h o n ra fam iliar, a s o lid a rie d a d e e a m o ra l d a
fam ília. D estarte, ela e ra a fig u ra -m o d e lo d a fam ília, p e rp e tu a n d o -se essa m istificação até os d ias atuais, o n d e m u ito s m a ­
rid o s c h a m a m a e sp o sa d e ''m ã e z in h a " , n u m a a ssociação com
su a p ró p ria m ãe. N esse se n tid o W IN N IC O T T assevera:
"A saúde do adulto forma-se durante toda a infância, mas as
funções dessa saúde, são as mães que estabelecem durante as
Laços de Família. 4. ed. RJ: Sabiá, 1970. p. 19.
111
112
CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
primeiras semanas e os primeiros meses da existência de seu
filho... Alegrem-se de que tal importância lhes seja concedida.
Alegrem-se de deixar a outros o cuidado de conduzir o mundo
enquanto põe no mundo um novo membro da sociedade"
Enquanto a m ulher-m ãe era exaltada devia, com o reconheci­
m en to e gratidão a esse tributo que a sociedade lhe conferia, per­
m anecer em seu espaço privado. Ela era m ão-de-obra gratuita n o período colonial e, n ão tão raram ente, ainda hoje - p erm itin­
d o a auto-suficiência das residências. A m u lh e r era o agente p a s ­
sivo d a m ultiplicação d a riqueza d o m arido, e m b a sa n d o o fu n ­
cionam ento d o sistem a econôm ico q u e é exterior às fam ílias e
m ais am p lo q u e estas. FRASER, a esse respeito, ensina:
"O papel do cidadão no capitalismo clássico, de dominação
masculina é, portanto, um papel masculino. Ele vincula o
Estado e a esfera pública, como afirma Habermas. M as tam­
bém vincula estes com a economia oficial e a família. E em
todas as circunstâncias, os vínculos são forjados na esfera da
identidade do gênero masculino..."^'*
A a u to rid ad e d o patriarca, com um no Brasil Colônia, prosse­
gu iu n o p e ríodo d o Império, d a República e, em m uitos casos,
até os dias atuais, conform e diz COUTINHO: "As circunstâncias
d o regim e econômico-social n o Brasil, portanto, m u ito contribu­
íram para forçar a opressão d a m ulher pelo hom em : lim itando
su a atividade à esfera dom éstica ou ao plano d a prática religiosa,
o h o m em m elhor p ôde exercer o seu d om ínio sobre ela. O absolutism o d o paterfamilias, em nossa terra só com eçou a se dissol­
ver à m ed id a q u e outras instituições e figuras cresceram.
A p u d C O UTINHO , Maria Lúcia Rocha, op. cit. p. 93.
A p u d BENHABIB, Seyía e CORNELL, Drucilia, op. cit. p. 53.
Op. cit. p. 75.
MULHER; CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL
Foi so m e n te n o século XIX, com o p rocesso d e in d u stria li­
zação e com as im igrações, q u e a u n id a d e fam iliar sofreu al­
g u m a s alterações, tais como: declínio d a a u to r id a d e p a te rn a ,
m a io r p a rticip a ç ão d a s m u lh e re s n as a tiv id a d e s lucrativas,
a lg u m a s form as d e controle d a m a te rn id a d e etc.
N esse p e río d o e m ergiu u m a nova classe social fo rm a d a po r
profissionais liberais; m édicos, a d v o g a d o s e o utros. E n tre ta n ­
to, a p e sa r d o s m u ito s avanços socioculturais, n ã o se m o d ifi­
c a ra m a lg u m a s características feu d ais q u e d iz e m respeito à
m u lh e r co m o a intolerância ao a d u lté rio c o m e tid o p o r ela,
e n q u a n to q u e p a ra o h o m e m , o m esm o c o m p o rta m e n to era
aceito; e o ta b u c o n tra a p e r d a d a v i r g in d a d e d a m u lh e r.
M U R A R O , n e sse se n tid o , assim define:
"...o a d u lté rio era
c h a m a d o d e crim e, m as a p e n as p a ra as m u lh e res. A v irg in d a ­
d e era a q u ilo q u e d istin g u ia as m u lh e res q u e iriam ter u m a
v id a m á d e u m a v id a b o a "/^
N o século XIX foram in tro d u z id a s n o Brasil teo rias cientí­
ficas p a ra justificar a n a tu re z a d o h o m e m com p re d isp o siç ã o
à in te lec tu a lid a d e, e n q u a n to a m u lh e r e ra v in c u la d a à n a tu r e ­
za afetiva. C om b ase nessas teorias e ra m ju stificadas as a titu ­
d e s racionais, a u to ritá ria s e altivas d o h o m e m , e n q u a n to às
m u lh e res eram atribuídas as variações d e fraqueza, sensibili­
dade, d o ç u ra e a conseqüente subm issão. A ciência, desse m odo,
estava reforçando os estereótipos m asculinos e fem ininos, jus­
tificando o p apel q u e cada gênero exercia n a sociedade.
A Escola era u m a d a s instituições sociais q u e ratificava o
tra ta m e n to d iferenciado oferecido aos m e n in o s e às m eninas.
E n q u a n to àq u e le s e ra e n sin a d o L ínguas, A ritm ética, G e o g ra ­
fia etc., a estas o c urrículo oferecido c o m p re e n d ia Letras, M ú ­
sica, D ança e P re n d a s D om ésticas. Saliente-se, ta m b é m , q u e o
Op. cit. p. 35.
113
114
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
acesso à e d u c aç ã o às m en in a s so m en te foi p o ssível m u ito te m ­
p o d e p o is d o s m eninos.
D essa form a, po d e-se d e d u z ir q u e o e nsino m in is tra d o às
m e n in a s v isa v a p rep a rá -la s p a ra a m issão d e p ro fe sso ra p r i­
m ária, o u seja, u m seg m en to d as funções m a te rn a is q u e lhes
e ra m p ró p ria s. N e sse círculo h erm ético e lim ita d o n ã o era
p o ssível à m u lh e r a construção d e m aiores sonhos, com o p o d e
ser visto e m M A C H A D O DE ASSIS:
"!...] aprendera a ler, escrever e cantar, francês, doutrina e
obras de agulha, não aprendeu, por exemplo, a fa zer renda;
por isso mesmo quis que prima Justina lhe ensinasse. Se não
estudou Latim com o Padre Cabral, fo i porque o padre, de­
pois de lhe propor gracejos, acabou dizendo que Latim não
era língua de m eninas”/^
O co n h ecim en to d e u m a língua estran g eira, p refe re n c ial­
m en te
0
francês, era im p rescin d ív el às m u lh e re s d a s classes
altas d a época. C om o d o m ín io d essa lín g u a e a h a b ilid a d e no
trato com as p r e n d a s dom ésticas, assim com o n o m anejo do
pian o , to rn a v a m -se sim páticas e a traen tes a o convívio social,
fator d e o rg u lh o e valorização d o m arido. Esse m o d elo d e m u ­
lher ideal foi igualm ente descrito p o r M A C H A D O DE ASSIS:
"Era doce, afável e inteligente. Não eram estes, contudo, nem
ainda a beleza, os seus dotes por excelência eficazes. O que a
tornava superior e lhe dava possibilidade de triunfar era a
arte de acomodar-se às circunstâncias do momento e a toda
casta de espíritos, arte preciosa que fa z hábeis os homens e
estimáveis as mulheres. Helena praticava de livros a alfinetes,
de bailes ou de arranjos de casa... Era pianista, sabia desenho,
falava corretamente a língua francesa, um pouco a inglesa e o
Dom Casm urro. RJ: Editora M oderna Ltda., 1983, p. 51.
MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL
italiano. Entendia de coshfrn e bordados e toda sorte de traba­
lhos fem ininos"
A ssim sendo, o casam ento, p a ra as m u lh e re s d o século XIX,
re p re s e n ta v a u m a "carreira", u m a d a s p o u c a s o p o r tu n id a d e s
d e ascensão social, p ois v alendo-se d o c a sa m e n to elas p o d e ri­
a m te r s u a p r ó p r i a a tiv id a d e , e m b o r a n ã o r e m u n e r a d a e
exercida e m reg im e d e d e p e n d ên c ia , n o in te rio r d e u m a casa.
A d u p la m o r a l c o m p o n e n te d e to d a a história, estava aqui
p re s e n te , p e rm itin d o ao h o m e m
to d a espécie d e a v e n tu ra
a m o ro sa , e n q u a n to q u e da m u lh e r se e sp e ra v a p u re z a , recato
e d e d ic a ç ã o ao m arid o , à casa e aos filhos. A ssim , s e m p re q u e
a m u lh e r saía ao espaço público, d evia e sta r a c o m p a n h a d a d e
u m h o m e m d a família. A literatura d a época é b e m clara a
esse respeito, com o p o d e m o s v e r e m JOSÉ DE ALENCAR:
" C o m p re e n d i e corei d e m in h a s im p lic id ad e p ro v in c ia n a , que
c o n fu n d ia a m á sc a ra hip ó crita d o vício c om o m o d e s to recato
d e inocência. Só então notei q u e a quela m oça e stav a só e que
a ausência d e u m pai, d e u m m a rid o o u d e u m irm ão, devia
ter-m e feito su sp e ita r a v e rd a d e ".
Esse c ontrole d ire to exercido sobre a m u lh e r a im p e d ia de
u m a relação extraconjugal e tam b é m p o rq u e a legislação cons­
p ira v a p a ra inibir q u a lq u e r ação d a m ulher. O C ó d ig o Penal
d e 1890 p re v ia p u n iç ã o p o r a d u ltério , com p ris ã o d e u m a três
anos, m as so m e n te p a ra a m ulher. O h o m e m , p a ra ser consi­
d e ra d o a d ú lte ro , p re c isa v a c o m p ro v a d a m e n te m a n te r
concubina. A s teorias a resp e ito da n a tu re z a d o h o m e m e da
m u lh e r - já referidas a n te rio rm e n te - e ra m a ssim ila d as e se
to rn a v a m c o m p o n e n te s d o im aginário social, a g in d o , assim ,
Helena, 11, ed. SP: Ática, 1983, p. 24.
Lucíola, 11. ed. SP: Ática, 1987, p, 13.
115
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
so b re a a ceitação d o tra ta m e n to d ife re n c ia d o aos gêneros.
M END ES, a esse respeito, afirm ou: “O in stin to sexual n a m u ­
lher, p o d e -se d iz e r q u e n ã o existe q u a se, d e o rd in á rio ; a m u ­
lh er se p re s ta , sacrifica-se às grosserias d o h o m e m , m a s é fu n ­
d a m e n ta lm e n te p u ra ; a p u re z a q u ase n ã o c u sta esforço à m u ­
lher, e é p o r isso q u e ela é tão severa q u a n to a este p o n to , em
relação ao seu sexo".®*^
D esse m o d o , as teorias e d iscursos d e e n tã o v in h a m refor­
çar
0
q u e e stav a p rescrito a respeito d a c o n d u ta d o h o m e m e
d a m u lh e r, e q u e d a v a à quele a certeza d e q u e o filho p o r esta
g e ra d o era seu pela exclusão d a m u lh e r d a p ro x im id a d e com
o u tro s h o m e n s. Essas colocações n o s re p o rta m à a n tig ü id a d e
ro m a n a , o n d e se afirm av a q u e a m a te rn id a d e era u m a certe­
za, e n q u a n to a p a te rn id a d e era u m a q u e stã o d e fé.
C o m a in d u stria liz a ç ão teve início a p articip a ç ão d a m u ­
lh er n o m e rc a d o d e trabalho. N o en tan to , o tra b a lh o d a m u ­
lh e r n ã o era visto com o realização profissional o u e m a n c ip a ­
ção e conôm ica d a m esm a , m a s a p e n a s c o m o u m c o m p le m e n ­
to fin an ceiro à re n d a fam iliar. P o r o u tro lado, a p a rticip a ç ão
d a m u lh e r n o m e rc a d o d e trabalho n ã o d im in u iu a carga d e
o brigações q u e ela s u p o rta v a em casa, n o c u id a d o da fam ília.
C o n sid erad a a tividade secundária, a m ão-de-obra fem inina for­
m av a u m banco d e reserva d e serviço, q u e era acionado sem ­
p re que houvesse necessidade, conform e assevera CO U TIN H O :
"Desta forma, a política do Estado com relação à m u ­
lher, foi sempre bastante contraditória; de um lado re­
forçava a permanência no lar a fim de garantir a tarefa
reprodutiva e, de outro, guardava-a como exército in­
dustrial de reserva, af im de que pudesse lançar mão de
A p u d C O UTINHO , Maria Lúcia Rocha, op. cit. p. 88.
MULHEfl: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL
seu trabalho sempre que necessário aos interesses da
Nação".^^
N o p e río d o p ó s -g u e rra - d é c ad a s iniciais d o século XX h o u v e u m a p ro fu n d a transform ação n a s so c ie d a d e s e u ro p é i­
as e n o rte -am e ric a n as - conform e já ex p o sto n a p rim e ira p a r ­
te d e s te tra b a lh o - q u e se refletiu n a so c ie d a d e brasileira. As
m u lh e res, ig u alm en te , aqui, foram in c e n tiv a d a s a c e d e re m o
seu espaço n o m e rc a d o d e tra b a lh o aos h o m e n s , com f u n d a ­
m e n to na ideologia que enfatizava o papel d e m ulher-m ãe e de
sua função indispensável e insubstituível n a educação d o s filhos.
A m a te r n id a d e e ra o eixo básico e m to rn o d o q u a l a m u lh e r
se m o v im e n ta v a , c u m p r in d o , assim , o s e u d e s tin o biológico.
Dessa form a, form ou-se a im agem este reo tip ad a d a b o a m ãe
n o lar e d a infelicidade q u e v itim a v a as crianças q u e eram
c arentes d a a tenção m ate rn a . Era to d a u m a g a m a d e p ro fissi­
o n a is l i g a d o s à p sic o lo g ia , m e d ic in a , so c io lo g ia etc. q u e
avalizaram essa corrente ideológica, que bem delim itava a esfera
pública e a p rivada p ara hom ens e m ulheres respectivam ente.
Edificou-se então, em torno d a m u lh e r, to d a u m a crença,
o n d e ela seria a c u lp a d a p elos p ro b le m as q u e oc o rre sse m aos
filhos e, e m extensão, à fam ília e m geral. A ssim , e ra n e c essá ­
rio esquecer-se a si m esm a p a ra m elh o r a m a r e c u id a r d o s que
a c irc u n d a v a m . Esse foi o m o d elo im p o rta d o d e m u lh e r ideal
q u e p e r d u r o u , m ais ou m enos, a té o ano d e 1960. O iso la m e n ­
to d a m u lh e r n o espaço p riv a d o a im p o ssib ilita v a d e p a rtici­
p a r d e q u a lq u e r m o v im e n to coletivo e m p ro l d a m e lh o ria d e
su a s condições.
Ao lado disso, era igualm ente c o n sid e rad o im p ró p rio a um a
m u lh e r ser su p e rio r ao h o m e m in te lec tu a lm e n te o u e m força
®’ O p . c i t . p . 9 5 .
117
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JU S T IÇ A
física. A m u lh e r, d esse m o d o , so m en te p o d e ria a d q u irir a lg u ­
m a p osição social a tra v é s d a s a tiv id a d e s d o m a rid o o u d o s
filhos, d e o n d e se fo rm o u o co n sag ra d o ditado: 'T o r trás de
u m g r a n d e h o m e m existe se m p re u m a g ra n d e m u lh e r" . So­
m e n te n o s te m p o s a tu a is foi aceita a a d a p ta ç ã o d e sse p o p u la r
d ita d o p a ra : "ao la d o d e u m g ra n d e hom em ...".
N o e n ta n to , a re sp o n sa b ilid a d e d a m u lh e r com relação à
casa, ao b o m rela c io n a m en to com o m a rid o e à e d u c aç ã o dos
filhos foi p o r ela m u ito b e m in te rn a liz a d a a p o n to d e , p o r
m u ita s d é c ad a s, a su a exclusiva dedicação se r v o lta d a ao es­
pa ç o p r iv a d o q u e lh e foi conferido. O d isc u rs o d o e n c la u s u ra m e n to d a m u lh e r n o lar foi d e fin id o p o r D IC K IN SO N :
"Eles me engrandecem em prosa
tal quando uma menininha.
Eles me mantêm no isolamento
porque eles me gostam tranqüila.
C o m relação à m o ra l sexual, o d u p lo p a d rã o p e r d u r a até o
os d ia s a tu a is, com o reforço d e teorias q u e a firm a ra m se r o
h o m e m d o ta d o d e im p u lso biológico, ju stifican d o o c o m p o r­
ta m e n to d e s te ao interessar-se p o r o u tra s m u lh e res, m e sm o
se ca sa d o fosse. D esse m o d o , o h o m e m conta com o aval da
so c ie d a d e q u e incentiva a su a atu a ç ã o n a q u ilo que, p o r su a
p r ó p ria n a tu re z a , d iz e m se r inerente.
P o r o u tro lad o , a esp o sa d evia ser co m p la c en te e p re s e rv a r
o c a sa m e n to , i g n o ra n d o as ligações p aralelas d o m a rid o . P ara
isso h a v ia conselheiros, q u e iam d e sd e sa ce rd o te s a m édicos,
q u e fala v a m à m u lh e r d e s u a re sp o n sa b ilid a d e n a p re s e rv a ­
ção d o c a sa m e n to - e tern o e indissolúvel. Esse tip o d e raciocí/4 p u tíC 0 U T lN H 0 , Maria Lúcia Rocha, op. c/f. p, 41. No original da poetisa norteam ericana: “T he y shut m e up in prose/as when a little girl/ T he y pu t me in the
closet/Because they liked me still” .
MULHER. CÕDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL
nio se faz p resen te, em m u ita s regiões d o Brasil, a té os d ias de
hoje, o n d e h o m e n s e m u lh e res, filhos e filhas etc, p o s s u e m
posições b e m d e fin id as n o contexto fam iliar e social. O p apel
d e c ad a sexo, in te rn a liz a d o d e sd e a infância, era p a s sa d o de
g eração a geração, conform e e nsina COSTA:
é informado por um código moral, que os sujeitos tam­
bém internalizam, que lhes permite distinguir o certo e o er­
rado,
0
que é permitido para os ocupantes de cada uma dessas
posições e, a partir destas internalizações, os sujeitos se inse­
rem nesta sociedade e se representam, no futuro, ocupando
posições análogas, com os mesmos contornos"
N a d é c ad a d e 60, em âm bito m u n d ia l, o c o rre ra m m o v im e n ­
tos e m oposição ao p o d e r socialm ente institucionalizado, com o
o q u e b a la n ç o u a e s tru tu ra d a França e m 1968 e a m obilização
e m p ro l d o s D ireitos H u m a n o s nos E stad o s U nid o s. C om o
reflexo desses m o v im e n to s gerais s u rg ira m m o v im e n to s es­
pecíficos d e fem inistas, q u e d isc u tia m a d istin ção e n tre s e x u ­
a lid a d e e procriação, req u alifican d o o p a p e l sexual d a m u lh e r
e a q u e s tã o d o s lim ites e n tre espaço p ú b lic o e p riv a d o .
O m o v im e n to fem inista se im pôs, n e g a n d o a o rd e m p a tri­
arcal q u e atrib u ía à m u lh e r u m a função se c u n d á ria e m re la ­
ção a o h o m e m . Esses m o v im e n to s frutificaram , p o is a b riram
e sp aço p a ra q u e hoje as m u lh e res o c u p e m posições d e d e s ta ­
q u e n o m e rc a d o d e tra b a lh o e n a so c ie d a d e co m o u m todo.
A tu a lm e n te as m u lh e re s se q u e stio n a m sobre o q u e desejam
na v id a e n ã o m ais aceitam u m destin o o u to rg a d o , pelo sim ­
p les fato d e se re m m ulheres.
E n tre ta n to , a p e sa r d e to d a s as c o n q u ista s o b tid a s, m u itas
m u lh e re s d e hoje a in d a c o n tin u a m v in c u la d a s ao a n tig o m o ­
" /Apud C O UTINHO , Maria Lúcia Rocha, op. cit. p. 109.
120
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
delo d e m ulher, tentando equilibrar a profissão que exercem com
as atividades d a casa. Nesse sentido, C O U T IN H O adverte:
“Enaltecida por uma florescente campanha que prometia o
paraíso para quem quisesse trabalhar, ter filhos, cuidar da
casa, ainda ser uma amante sempre disposta e disponível, a
mulher passou a se desdobrar e, exausta com o peso de todas
as responsabilidades, não conseguindo a excelência almeja­
da, começou a interiorizar uma sensação de fracasso. O pro­
blema passou a ser individualizado, como se a dificuldade
em ser múltipla o tempo todo fosse pessoal".
A ssim a c o n te c e com as m u lh e r e s d a s z o n a s r u r a is q u e
so fre m m u ita o p re s s ã o , e x e rc e n d o d u p l a o u trip la jo rn a d a
d e tra b a lh o , a lé m d e d a r e m à lu z m u ito s filh o s e, n o p la n o
se x u a l, s o fre m as m a is ríg id a s s a n ç õ e s d a s o c ie d a d e . P o r
d e s c o n fia n ç a d e a d u lté rio , o m a r id o p o d e a té m a tá -la , em
n o m e d a " le g ítim a d e fe sa d a h o n r a " , tese e sta q u e a in d a é
d e f e n d id a p o r m u ito s a d v o g a d o s n o s trib u n a is d o jú ri d e
to d o país.
N a s c id a d e s , as m u lh e r e s q u e c o n s titu e m a classe u r b a ­
n a tr a b a lh a d o r a , d e sa lá rio s m a is b a ix o s, ta m b é m s o fre m
d is c rim in a ç õ e s e m re la ç ão ao h o m e m , in c lu s iv e n o s a lá rio ,
n o exercício d e fu n ç ã o a n á lo g a . A s p e s q u is a s d e m o n s tr a m
a p e rs is tê n c ia d e a lg u m p rec o n c e ito , q u e d ific u lta o p r o ­
g re s s o n a c a rr e ir a e m a n té m os h o le rite s f e m in in o s m a is
m a g r o s q u e o s m a sc u lin o s. A s m u lh e r e s fa v e la d a s , d e m o d o
g e ra l, a p r e s e n ta m u m c o m p o r ta m e n to d ife re n te d a s m u lh e ­
res d a s c la sse s sociais m ais p riv ile g ia d a s . São elas q u e s u s ­
te n ta m a fam ília , q u e é m a tric ê n tric a n a m a io ria d a s vezes.
S e g u n d o M U R A R O : "... Isto m o s tra q u e a fam ília n u c le a r
«■' O p . c i t . p . 1 1 4 ,
MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL
SÓ é possível em cam ad as acima de u m a certa re n d a e, p o r ­
tanto, é u m privilégio de classe".®^
N esse início d e m ilênio, a m aio r tra n sfo rm aç ã o está se p r o ­
ce ssa n d o n as classes m éd ia s m o d e rn a s, n a s q u a is a m u lh e r
a v a n ça n a c o n q u ista d e espaço nos trib u n a is s u p e rio re s, nos
m inistérios, n o to p o d as g ra n d e s e m p re s a s tra n sn a cio n a is, em
org an iz a çõ e s d e p e sq u isa d e tecnologia d e p o n ta . P ilotam ja ­
tos, c o m a n d a m tro p as, o c u p a m cargos eletivos, n ã o h a v e n d o
u m ún ico e sp aç o con sid erad o , no p a ssa d o , co m o m asculino,
q u e n ã o seja o c u p a d o p o r m u lh e res, fortalecendo os apelos de
ig u a ld a d e q u e estão expressos n a C o n stitu içã o Federal b ra s i­
leira d e 1988, u m a d a s m ais a v a n ça d a s d o m u n d o e m relação
à e q u ip a ra ç ã o d o s d ireitos d o h o m e m e d a m u lh e r.
F inalm ente, é possível a firm ar q u e - c o n sid e ra n d o -se es­
ses vário s e sta m en to s sociais - os m o v im e n to s fem in istas não
d e ra m resp o sta a to d a s as d ú v id a s e anseios fem ininos. N o
e n ta n to , eles foram vitoriosos, p o rq u e tira ra m as m u lh e re s da
s o m b ra d a H istória e m ex e ra m com o m o d e lo p a triarc a l que
s e m p re v ig o ro u n o Brasil, lan ç a n d o a se m e n te d a tra n s fo rm a ­
ção e m o d ific a n d o a posição q u e a m u lh e r o c u p a na so c ie d a ­
de: n o c a m p o profissional e n a política.®^ É necessário ressal­
tar, n o e n ta n to , q u e u m a nova re a lid a d e social - ig u alitária e
p ro g re ssista - a in d a está longe d e m ilhões d e m u lh e res. N ão
há, n e m h a v e rá d e sen v o lv im e n to social e econôm ico c om jusOp. at. p. 157.
" BO CA-DE-U RNA, Caderno da Eleição. Zero Hora, Porto Alegre, fl. 08,15.09.2002;
"Apesar de corresponder a mais de 50% do eleitorado nacional, as m ulheres estão
muito mal representadas entre aqueles que buscam se eleger no dia 6 de outubro.
Elas eqüivalem a apenas 13,96% do total de candidatos. São 2 .637 representan­
tes do sexo fem inino disputando uma vaga no Senado, na Câm ara, nas A sse m ­
bléias Legislativas e nos governos estaduais. Ainda assim a taxa é recorde. Nas
últim as eleições, em 1998, as m ulheres eram 12,27% dos candidatos. Em 1994,
ainda m enos: 6%".
122
CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
tiça, se n ã o h o u v e r ig u a ld a d e d e o p o rtu n id a d e s p a ra h o m e n s
e m u lh e res, d ire ito s e d everes p a ra todos, sem discrim inação.
3 - A CONDIÇÃO DA MULHER NOS DIPLOMAS
INTERNACIONAIS: CONVENÇÕES,TRATADOS E
CONGRESSOS
"... seria hipocrisia ou ingenuidade acreditar que a lei
é feita para todo mundo em nome de todo mundo; que
é mais prudente reconhecer que ela éfeita para alguns
e se aplica a outro; que em princípio ela obriga a todos
os cidadãos, mas se dirige principalmente às classes
mais numerosas e menos esclarecidas; que, ao contrá­
rio do que acontece com as leis políticas ou civis, sua
aplicação não se refere a todos da mesma form a...”
M ichel Foucault
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão d e 1789 as­
sim previa: "A rt. 1"' Les h o m m e s na isse n t et d e m e u r e n t livres
et ég a u x e n droits. Les distinctions sociales, n e p e u v e n t être
p o n d e s q u e s u r I' u tilité commune".®^ Essa D e claração foi
p u b lic a d a com o re s u lta d o d a R evolução Francesa, m a s n a d a
d is p u n h a e m relação às m ulheres.
Em 1791, O ly m p e d e G ouges p u b lic o u a Declaração dos D i­
reitos da M ulher e da Cidadã, u m a réplica à D eclaração d o s D i­
reitos d o h o m e m e q u e prescrevia; "A m u lh e r n asce livre e
s e u s d ire ito s são os m esm o s d o s homens..."®®
N o a n o d e 1910, aconteceu n a D in a m a rc a o C o n g re sso InCUNHA, Roberto Salles. Os Novos Direitos da Mulher. SP: Atlas, S.A., 1990,
p. 31.
Ibidem.
MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÕDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL
tern acio n al d a M u lh e r, q u e in stitu iu o d ia 8 d e m a rç o com o
d ia c o m e m o ra tiv o , a n u a lm e n te , d a lu ta d a e m a n c ip a ç ã o d a
m u lh e r . Essa d a ta foi e sc o lh id a , c o m o h o m e n a g e m às o p e ­
rá r ia s q u e m o r r e r a m q u e im a d a s q u a n d o o c u p a v a m a fá b ri­
ca C o tto n , e m E ast V illage, N o v a Io rq u e , l u ta n d o p o r se u s
d ire ito s .
R ealizou-se em 2 d e m aio d e 1948, e m B ogotá, C olôm bia, a
IX C o nferência Internacional sobre a concessão d o s D ireitos
C ivis à M ulher. N e ssa convenção, 19 p aíses e m ais o Brasil
a s sin a ra m u m tra ta d o ''o u to rg a n d o à m u lh e r os m e sm o s d i­
reitos civis d e q u e g oza o h o m e m " . N o e n ta n to , esse tra tad o
so m e n te foi a p ro v a d o n o Brasil, a tra v é s d o D ecreto legislativo
n° 74, em 22.12.1951, e o in stru m e n to d e ratificação foi d e p o s i­
ta d o e m W a sh in g to n , n a sed e d a O E A e m 19.03.1952. N o ano
d e 1952, e m 23 d e o u tu b ro , foi p u b lic a d o D ecreto d o Executi­
v o d e n° 31.643, cientificando as repartições p ú b lic a s d o con­
v ê n io e d e te rm in a n d o o seu c u m p rim e n to . E n tre ta n to , a n o s ­
sa legislação n ã o foi a tu a liz a d a e o C ó d ig o Civil m a n te v e n o r ­
m a s obsoletas q u e feriam a referida convenção.
E m s e u texto inicial, esse T ra ta d o assim d isp u n h a :
"Considerando:
Que a maioria das Repúblicas Americanas, inspirados em
elevados princípios de justiça, tem concedido os direitos
civis à mulher;
Que tem sido uma inspiração da comunidade americana
equiparar homem e mulher no gozo e exercício dos direitos
civis;
Que n Resolução X X da V il Conferência Internacional
Americana expressamente declara:
CUNHA, Roberto Salles, op. cit. p. 33.
124
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
Que a mulher da América, muito antes de reclamar os seus
direitos, tinha sabido cumprir nobremente todas as suas
responsabilidades como companheira do homem;
Que
0
princípio de igualdade de direitos humanos entre
homem e mulher está contido na Carta das Nações Unidas,
Resolveram:
Autorizar os seus respectivos representantes, cujos plenos
poderes verificaram estar em boa e devida forma, para
assinar os seguintes Artigos:
A rt. 1°. Os Estados Americanos convêm outorgar à mulher
os mesmos direitos civis de que goza o homem.
A rt. 2".
Em face d o exposto, constata-se q u e so m e n te q u a tro anos
a p ó s a C o n v e n ç ã o d e Bogotá, n o Brasil, o c o rre u a d e te rm in a ­
ção d o c u m p rim e n to d o acordo. N o en ta n to , essa m o ro s id a d e
d o p rocesso legislativo g e ro u u m m o v im e n to d e reação e n c a ­
b e ç a d o p o r u m g r u p o d e juristas q u e cu lm in o u , te m p o s d e ­
pois, com a elaboração d o Estatuto da M ulher Casada, q u e cor­
rigiu a lg u m a s falhas básicas d o C ódigo Civil, co n fo rm e v e re ­
m o s adiante.
N e sse d ia p a sã o , em 1967, foi e lab o rad a p e la O N U a D ecla­
ração sobre a Elim inação d e to d as as form as d e D iscrim in a­
ção c o n tra a M ulher. O p re p a ro dessa D eclaração com eçou
e m 1963, m e d ia n te u m a Resolução e m q u e se rec o n h e c e u a
existência d e discrim inação contra a m u lh e r. Foi solicitado,
e n tão , à Comissão de Condição Jurídica e Social da M ulher a p r e ­
p a ra ç ã o d e u m projeto q u e recebeu sugestões, isso e m 1966.
Essa D eclaração, co n sid e rad a p e d ra b asilar n o tra b a lh o da
O N U p e la ig u a ld a d e d e direitos d o h o m e m e d a m u lh e r, foi
Idem, ibidem, p. 35.
MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL
a s sin a d a p elo Brasil, e m N o v a Iorque, s o m e n te e m 31 d e m a r ­
ço d e 1981, m as com reservas ao artigo 15, § 4 * e art. 16, § 1"
alíneas " a", "c", "g", "h ", q u e v in h a m d e e n c o n tro a d isp o siti­
vos d o no sso an tig o C ó d ig o Civil q u e d a ta v a d e 1916.
O s a rtig o s d o C ó d ig o Civil q u e d e v e ria m ser e lim in a d o s
p a ra a te n d e re m aos prin cíp io s d a referida C o n v e n ç ã o confe­
ria m privilégios ao m arid o , com o chefe d a so c ie d a d e conju­
gal. D o m e s m o m o d o , a diferença d e id a d e m ín im a p a ra o
ca sa m e n to , q u e p a ra a m u lh e r é 16 a n o s e p a ra o h o m e m 18
an o s, d e v e ria ser s u p rim id a . O texto legal q u e o Brasil a ssinou
com reservas 14 an o s m ais tarde, p re c e itu a v a n o art. 15, § 4°:
"O s E stados-P artes c oncederão ao h o m e m e à m u lh e r os m es­
m o s d ireitos n o q u e respeita à legislação relativa ao direito
d a s p esso as, à lib e rd ad e d e m o v im e n to e à l ib e rd a d e d e esco­
lha d e resid ên cia e dom icílio". P o r o u tro lad o , o art. 16, § 1”,
assim estabelecia:
"Os Estados-Partes adotarão todas as medidas adequadas para
eliminar a discriminação contra a mulher em todos os aspec­
tos relativos ao casamento e às relações familiares e, em par­
ticular, com base na igualdade entre homem e mulher assegurarão:
a) O mesmo direito de contrair matrimônio;
b) Os mesmos direitos e responsabilidades durante o casamento
e por ocasião de sua dissolução.
g) Os mesmos direitos pessoais como marido e mulher, inclu­
sive
0
direito de escolher o sobrenome, profissão e ocupação;
h) Os mesmos direitos a ambos os cônjuges em matéria de propriedade, aquisição, gestão, administração, gozo e disposição
dos bens, tanto a título gratuito quanto a título oneroso".
9' Nesse sentido VER U C C I, Florista, A M ulher e o Direito. SP: Livraria Nobel S.A.,
1987, p. 36.
125
126
CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
Por o u tro lado, em 1975 realizou-se, n a c idade d o México, a
Primeira Conferência Internacional da M ulher p ro m o v id a pela
O N U . Esse ano foi considerado o A no Internacional d a M u ­
lher. Em pro sseg u im en to aos trabalhos iniciados n essa C onfe­
rência, efetivou-se e m 1980, e m C o penhague, n o v a Conferência
Internacional da Mulher, o n d e ficou d e te rm in a d o q u e os países
p a rticip a n te s deveriam se e m p e n h a r p a ra a d e q u a r su a s legisla­
ções à realidade social d a m u lh e r e su a necessária cidadania.
Da m e sm a form a, em setem bro d e 1995, foi lev a d a a efeito
em P e q u im a IV Conferência Mundial da Mulher - a m a io r na
h istória m u n d ia l - p ro m o v id a ig u alm en te pela O N U . A í foi
a p o n ta d a , c om o s e n d o o ú ltim o g ra n d e p rojeto d o século XX,
a ig u a ld a d e e n tre os sexos, d e a co rd o com o q u e a sse v e ro u
GH ALI: " A s s e g u ra r a ig u a ld a d e en tre h o m e n s e m u lh e res, d e
d ireito e d e fato, é u m g ra n d e projeto político d o século XX,
m as a ig u a ld a d e n a v e rd a d e co n tin u a u m objeto ilusório em
to d o s os países. A ig u a ld a d e d a d e s ig u a ld a d e está lo n g e d e
ser alcançada com a discrim inação b a s e a d a n o sexo".^
CONSIDERAÇÕES FINAIS
N o d e c u rso d esse trabalho viu-se q u e a m u lh e r é a p re s e n ­
tada, q u a se u n iv ersa lm e n te , com o alg u ém lig a d o à n a tu re z a ,
à contin gência biológica, e n q u a n to o h o m e m é d e fin id o com o
u m ser lig ad o à cultura, à técnica. A ap ro x im aç ã o d a m u lh e r
com a n a tu re z a - a re p ro d u ç ã o - v e m justificar a su a o c u p a ­
ção d o e sp aço d om éstico, p riv a d o , ju n to aos filhos, e n q u a n to
o h o m e m d e té m as funções públicas.
A ssim , p a ra p ro v a r a condição d e su b serv iên cia d a m u ­
lher, h o u v e
0
re sp a ld o d a religião, d a filosofia e d a teologia.
®^ONU defende igualdade entre os Sexos. Porto Alegre, Zero Hora de 05.09,95, p, 34.
MULHER. CÓOIGOS LEGAIS E CÒDlQOS SOClWS - 0 PAPEL DOS DiflElTO S E OS DIREITOS DE PAPEL
n o m u n d o a ntigo, e, n o m u n d o m o d e rn o , recorreu-se à biolo­
gia, à p s ic o lo g ia e ao direito. É, e n tã o , n e s se n ív e l q u e se
e s tr u tu r a m e se p ro p a g a m os m itos, su p erstiçõ es, p reco n cei­
tos, q u e se d e stin a m a d e s tru ir o espírito d e iniciativa d a m u ­
lh er e re d u z i-la à p a ssiv id ad e . Isso p o rq u e , q u a n d o a lg u é m é
m a n tid o em p o sição d e inferioridade, torna-se inferior e, se as
m u lh e re s - n a concepção cultural - a in d a são inferiores, p o r
esse m e sm o m o d e lo cultural são oferecidas a elas m e n o s o p o r­
tu n id a d e s d e livrar-se dele.
N esse sen tid o , o escritor p o rtu g u ê s S A R A M A G O ressalta
a p o sição d e in fe rio rid a d e d a m u lh e r - p resença c o m u m na
lite ra tu ra an tig a - c o nferindo-lhe u m " sta tu s " d e d e p e n d ê n ­
cia, resp e ito e su b m issão ao h o m e m , a s se m e lh a n d o -a aos es­
cravos. N essa pa ssa g e m , elas n e m se a tre v e m a rezar, pois
D eus, s u p o s ta m e n te , teria m ais o q u e fazer a ouvi-las. A ssim ,
n o "E v a n g elh o ", é descrita a seg u in te cena:
"No momento em que iam pôr o pé na estrada, os homens, em
coro solene, alteram a voz para proferir as bênçãos próprias da
circunstância, repetindo-as as mulheres discretamente, quase
em surdina, como quem aprendeu que não ganha nada em
chamar quem de ser ouvido poucas esperanças tenha...
P o r o u tro lad o , m o stro u -se q u e a so c ie d a d e e x p lo ra d o ra
fo m e n ta a ideologia, a cu ltu ra, a e d u c aç ã o q u e se rv e a seus
interesses. Isso ela faz tam b é m com a m u lh e r, c o m o o faz com
o e m p re g a d o e, a dem ais, com to d o s os d o m in a d o s . Estes são
m a n tid o s d e lib e ra d a m e n te na ignorância, n o o b sc u ra n tism o ,
com
0
objetivo d e convencê-los a resig n a re m -se à su a situa-
C am pos, Tiny M achado de. Ser M ulher o Desafio, p. XIX. SP; Makron Books,
1992,
127
128
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
ção e, assim , inculcar-Ihes o espírito d a p a s siv id a d e e d o se r­
vilism o. A esse respeito, e n c o n tra m o s em PO U LA N TZA S:
"...a ideologia dominante invade os aparelhos de Esta­
do, os quais igualmente têm por função elaborar, apre­
goar e reproduzir esta ideologia, fato cjue é importante
na constituição e reprodução da divisão social do traba­
lho, das classes sociais e do domínio de classe. Esse é
por excelência o papel de certos aparelhos oriundos da
esfera do Estado, designados aparelhos ideológicos de
Estado (...) Igreja (aparelho religioso), aparelho esco­
lar, aparelho oficial de informações (rádio, TV), apare­
lho cultural, etc.".^*
D esse m o d o , a g ra n d e d icotom ia n ã o se form a e n tre a m u ­
lh er e o h o m e m , m a s e n tre aq u e la s e a o rd e m social, en tre
to d o s os exp lo rad o s: m u lh e re s e h o m e n s e a o rd e m social.
A ssim , é essa situação d e e x p lo ra d a q u e explicava a ausência
d a m u lh e r d e to d a s as tarefas q u e e n v o lv ia m decisão n o seio
d a so c ie d a d e - q u e a excluiu d a elaboração d a s concepções
q u e o rg a n iz a m a v id a econôm ica, social, c u ltu ra l e política m e s m o q u e seus interesses fossem afetados.
A o la d o disso, a p re se n to u -se ta m b é m que, n o a sp ec to ju rí­
dico, a evolução d a condição d a m u lh e r, co m o sujeito d e d i­
reitos, o c o rre u d e form a m u ito lenta, a tra v é s d o s séculos que
a n te c e d e ra m o p e río d o con tem p o rân eo . Foi so m e n te com a
R evolução F rancesa q u e teve início n o v a fase no D ireito C o n s­
titucional - q u e é su b stra to d o s d e m a is ram o s d o d ire ito - com
a d e c la raç ã o d a ig u a ld a d e e n tre os c id a d ã o s, m a s q u e n ã o
m u d o u a c o n d ição su b a lte rn a d a m u lh e r. N o final d o século
^"PO U LAN TZA S, Nicos. 0 Estado, o Poder e o Socialismo. 3. ed. RJ: Graal, 1985,
p. 33-34.
MULHER: CÕDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL
XIX os m o v im e n to s grevistas c o n q u ista ra m as p rim e ira s leis
tra b a lh ista s, q u e aos p o u c o s foram e s te n d id a s às m ulheres.
N o Brasil, os m o v im e n to s fem inistas d e d ire ito ao v o to c o m e ­
ç a ra m a m ex er com as e s tru tu ra s sociais e jurídicas, e m b o ra
so m e n te e m 1932 as m u lh e res o btivessem essa conquista.
A p ro p ó sito , e m term os ideais, as p rev isõ e s legais d a atual
C o n stitu içã o b rasileira são perfeitas. O art. 1° d iz q u e u m dos
fu n d a m e n to s d o E stado dem ocrático d e d ire ito é a d ig n id a d e
d a p esso a d e am b o s os sexos. Estabelece, ta m b é m , a ig u a ld a ­
d e g enérica d e to d o s p e ra n te a lei no art. 5°, q u e é c o n firm a d a
n o inciso p rim e iro , ao d isp o r q u e " h o m e n s e m u lh e re s são
ig u ais e m d ireitos e obrigações".
A ssim s e n d o , viu -se q u e a m u lh e r b rasileira m o v im e n ta -se
e n tre d o is pólos d a legislação pátria: d e u m lad o , lhe ofere­
cem co n d içõ es perfeitas d e ig u a ld a d e e, d e o u tro , lh e é a c en a ­
d o com o lado coativo d e u m C ódigo, q u e p a re c e a p e n a s lhe
p re v e r sanções. D e fato, a m u lh e r brasileira, p rin c ip a lm e n te a
d a s c a m a d a s sociais m e n o s favorecidas, te m sido, histo ric a ­
m en te, a v ítim a favorita d o c onjunto d e o fensas à v id a , à s a ú ­
de, à lib e rd a d e in d iv id u a l e à h o n ra, sob o ró tu lo d e "v io lê n ­
cia dom éstica".
D estarte, sob o regim e d e escravism o colonial, a s a lte rn a ti­
v as e ra m d u a s: s e n d o livre, a m u lh e r era e scra v iz a d a p o r u m a
tra d içã o ju rídica q u e lh e negava a condição d e sujeito d e d i­
reito, o u to rg a n d o ao m a rid o p o d e re s d isc ip lin a re s. P orém ,
e n q u a n to " e s c ra v a " , a m u lh e r era liv re m e n te e sp a n c á v e l e
violentável, pois n ã o h avia u m "C ó d ig o N e g ro " e, assim , o
d ire ito p e n a l d o m éstic o n ã o p o ssu ía lim ites legais, c o m o a
H istória b e m o d e m o n stra .
A ssim , com a evolução histórica, o co rre u a d e n o m in a d a
"libertação d o s e scravos", m as a posição d a m u lh e r em casa -
129
130
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
asilo inviolável - conform e d isp õ e a n o ssa C onstituição, n ã o
se m o d ific o u m uito. De q u e serve a lg u é m d iz e r ''M y h o m e is
m y caste]" se, a o p e n e tra r nela, encontra o seu a lg o z n o m e s ­
m o quarto: o " p o d ero so chefão" dom éstico, com seu m achism o
in te rn aliza d o , d isp o sto a discip lin ar a su a parceira.
A o lado d a violência física o u sexual h á a in d a o u tra s for­
m a s d e a gressão contra a m u lh e r, q u e se m a n ifesta m c u ltu ra l­
m en te , d e s d e a d iscrim inação no c a m p o p rofissional, n o aces­
so às c arreiras, n as re sp o n sa b ilid ad e s fam iliares, n a e d u c aç ã o
d o s filhos, na rep re sen ta ç ão política etc. Isso tu d o a p e sa r da
ressa lta d a ig u a ld a d e constitucional e n tre os gêneros. N esse
sen tid o , FRAGOSO:
“A administração da justiça criminal constitui o mais dra­
mático aspecto da desigualdade da justiça, sendo nela pura­
mente formal e inteiramente ilusório o princípio da igualdade
de todos perante a lei, dogma dos regimes democráticos. De­
masiadamente lenta, abstrata e insensível aos problemas hu­
manos e sociais que surgem no processo penal, e exercida, na
maioria dos casos, através de um judiciário conservador e tra­
dicional, aferrado à dogmática jurídica e alheio às realidades
sociais que condicionam a criminalidade"
N ã o é d e m a is lem b rar que, d e v id o à p ró p ria form ação, te ­
m o s u m a s o c ie d a d e c a ra c te riz a d a p e la d iv is ã o d e classes,
e m b a s a d a em e x tre m a d e s ig u a ld a d e n a d istrib u iç ão d e b e n s e
d e o p o r tu n id a d e s sociais. N esse tip o d e fo rm ação social o Di­
reito P enal p ro te g e , d e m o d o especial, os b en s ju ríd ic o s p r ó ­
p rio s d a m in o ria d o m in a n te. A ssim com o o E stad o fracassou
n a d istrib u iç ão d a re n d a , e com o a m á distrib u ição d a m esm a
^^A pud BATISTA, Nilo. Punidos e Mal Pagos, violência, justiça, segu ran ça p ú ­
blica e direitos hum anos no Brasil hoje. RJ: Revan, 1990, p. 95.
MULHER; CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL
gera violência, esta se reflete n a s relações d o m ésticas. E ntão o
E stado, q u e n ã o resolve o m ín im o d e ssa s q u e stõ e s d e Direito,
afasta-se d a relação fam iliar, p r o p o n d o q u e a m e s m a seja p r i­
v a d a . O q u e se f o r m a , d e s s e m o d o , é u m a e s p é c i e d e
neo liberalism o.
D estarte, so m e n te com u m E stado q u e a s se g u re os direitos
h u m a n o s d o s c id a d ã o s e c id a d ã s é q u e se to rn a p o ssível a tin ­
gir-se a g a ra n tia d e iguais condições a tod o s, com o d e v id o
rec o n h e c im e n to d a s d iferenças en tre h o m e n s e m u lh e re s n as
relações d e gênero.
F inalm ente, o q u e se p o d e afirm ar, s e g u ra m e n te , é q u e as
m u lh e re s p a s sa ra m p o r u m m u ito m a u b o c a d o ao lo n g o d a
história, e q u e u m a g ra n d e p e rc e n ta g e m d a p o p u la ç ã o m u n ­
dial fem in in a co n tin u a p a s sa n d o , d a m e sm a form a, p e s sim a ­
m en te. H á u m a lo n g a h istó ria d e preconceitos e d isc rim in a ­
ções, q u e im p e d e m a m u lh e r d o acesso às o p o r tu n id a d e s d e
realização pessoal. M u ito foi alcançado e d e v e se r c o m e m o ra ­
do, m a s resta m u ito p o r fazer, p a ra q u e alterações ju ríd ic a s
c o rre s p o n d a m a m u d a n ç a s d e fato, s e n d o n e c essá rio q u e se
reg istre o g r a n d e d e sco m p a sso e n tre a n o rm a e a prática.
P o r ú ltim o , e m u m a sociedade q u e deseje ser justa, a ig u a l­
d a d e e n tre h o m e n s e m u lh e re s d e v e ser o s e u fu n d a m e n to .
P ara tan to , é necessário q u e leis e re a lid a d e sejam c o m p a tí­
veis, sem p reju ízo ao respeito às diferenças d e g ê n e ro e d o s
d ife ren te s p a p é is q u e lh es cabe d e s e m p e n h a r e m sociedade.
A ssim , so m e n te q u a n d o o D ireito exercer a s u a fu n ção d e p r o ­
teger, d e form a igualitária fortes e fracos, ricos e pobres, h o ­
m en s e m u lh e res - o n d e as n o rm as " favorecedoras" d a m u lh e r
n ã o s e ja m a p e n a s u m a f o r m a c o m p e n s a t ó r i a p o r s u a
s u b a lte rn id a d e - é que se p o d e rá d izer q u e o D ireito c u m p riu a
sua finalidade, d e ix a n d o d e ser a p e n as u m D ireito d e papel.
131
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
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135
MULHERES:
U M A V ID A DE LUTAS E C O N Q U IST A S
Mariana O liveira Pinto
Estudante do 4" ano de Direito da
Universidade Federal de Uberlândia (MG)
INTRODUÇÃO
E m bora início d e u m n o v o século, com o b o m b a rd e a m e n to
d e ta n ta s n o v id a d e s tecnológicas, q u e facilitaram a c o m u n i­
cação e o intercâm bio d e c u ltu ra s e m nível m u n d ia l, q u e p e r­
m itira m g r a n d e s avanços n a s ciências biológicas, p a rtic u la r­
m e n te n o c a m p o genético e com a intensa p re o c u p a ç ã o com
os d ire ito s h u m a n o s , a cid ad an ia e a justiça, p e rsiste m ainda,
p a ra d o x a lm e n te , d iscursos arcaicos e a rra ig a d o s d e d isc rim i­
nações contra as m u lh e res, q u e v ê m se n d o re p a s s a d o s d e ge­
ração em geração, há séculos.
São e x e m p lo s a s frases o u v id a s n o trâ n sito , q u a n d o d ia n te
d e u m acid en te d e veículos, se escuta "Só p o d ia ser m u lh e r";
o u n a s v ezes e m q u e a m u lh e r é p ro m o v id a n a e m p re s a em
q u e tra b a lh a e logo se escutam c o m e n tá rio s d e q u e ela com
certeza d e v e ter d o rm id o com o p a trã o p a ra ter co n seg u id o
essa p ro m o ç ã o , pois n ã o a c re d ita m na s u a c a p a c id a d e intelec­
tual; o u a in d a p ia d a s veicu lad as n a In te rn e t fala n d o d a p r i­
m eira m u lh e r n o espaço e logo e m s e g u id a m o s tr a n d o a im a­
136
CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
gem d a m u lh e r e n c era n d o a n a v e espacial. E e n c o n tra m o s ta m ­
b é m falas d e q u e o m u n d o é a m a ld iç o a d o p o rq u e Eva m o r­
d e u u m p e d a ç o d a m açã p ro ib id a e a ofereceu, e m se g u id a , a
A d ã o , q u e a c o m e u ig u alm en te e foram , p o r isso, e x p u lso s d o
p a ra ís o divino.
P ercebem os, então, nessas falas q u e n a m u lh e r está a o ri­
g e m d a culpa, sendo-lhe im p o sta u m a situação d e d e p e n d ê n ­
cia c o n tín u a e d e s u b o rd in a ç ão ao hom em .
C o m o notou Vera Lúcia Vaccari (2001), ''u m d a d o interessan­
te é que hoje esse material, anteriorm ente veiculado até m esm o
em pára-choques de caminhões, passa a ser repetido pela Internet,
o q u e m ostra q u e o desenvolvim ento tecnológico n ã o está neces­
sariam ente e m com passo com o avanço d as idéias".
M as an te s d e falarm os sobre as lu ta s e as c o n q u ista s d as
m u lh e re s e m busca d e seus d ireitos e d e justiça, é im p o rta n te
fazerm os u m b rev e p arên tese sobre os e stu d o s d e gênero, a v a ­
lia n d o as relações e n tre os sexos, n ã o d o p o n to d e vista físico,
m a s sim sobre u m a óptica histórica, social e cultural. G ênero
seria assim u m elem ento constitutivo d e relações sociais fu n d a ­
d a s sobre as diferenças percebidas e ntre os sexos; é u m a form a
p rim ária d e d a r significado às relações de p o d e r, m as q u e e n ­
globa conceitos d e raça, classe social, diferenças culturais...
A p a rtir d e sse e stu d o , c o m p re e n d e m o s m elh o r q u e a d ife­
rença biológica en tre os sexos n ã o é c a p az d e explicar os " p a ­
pé is" e c o m p o rta m e n to s d o m asculino e fem inino n a so c ie d a ­
de. Tais " p a p é is " são frutos d e v alores m orais, c ulturais, reli­
giosos e científicos d e longos séculos que fizeram d a assim etria
en tre os sexos u m a relação d e p o d e r d o m asc u lin o sobre o
fem inino, q u e p e rp e tu a até hoje sob d iv ersa s form as, m esm o
d e p o is d e a sse g u ra d a pela C onstituição a iso n o m ia e n tre os
sexos, q u a n to aos direitos e obrigações.
MULHERES'. U M A V ID A DE LUTAS E CO NQ UISTAS
Essa d isc u ssã o sobre o gênero su rg e co n c o m ita n te m e n te
aos m o v im e n to s fem inistas q u e se d e s p o n ta ra m n o cenário
politico-cultural, s o b re tu d o a p a rtir d a d é c a d a d e 70. Esses
m o v im e n to s e v id e n c iav a m o desejo a rd e n te p o r d ire ito s q u e
leg itim assem a c id a d a n ia d a s m ulheres. Para isso, elas d e n u n ­
c iav am to d a s as form as d e discrim inações e d e o p ressã o cul­
tu ra l c o n s tru íd a sobre elas ao longo d o s séculos.
N a m e d id a q u e o rg an iz a v am estas reivindicações e p r o c u ­
r a v a m d iv u lg a r Lima n o v a im a g e m femirvina, livre d o s tra d i­
cionais e stereó tip o s fem ininos, esses m o v im e n to s fem inistas
tiv e ram u m a fu n d a m e n ta l im p o rtân cia n as m u d a n ç a s d o p a ­
pel social n o país.
D e sta fo rm a , e m m e a d o s d a d é c a d a d e 70, o fe m in is m o
a p a r e c e u c o m o m o v im e n to social o r g a n iz a d o , e m m e io à
d i ta d u r a m ilita r. Foi m a r c a d o p o r se c o lo c a r f re n te a o s h o ­
m e n s , q u e s tio n a n d o a s u b v a lo riz a ç ã o d e te m a s d a esfera
d o m é s tic a e m d e tr im e n to d e u m a u to p ia d e tra n s fo r m a ç ã o
social e ta m b é m p e la rejeição q u a s e to ta l à fe m in ilid a d e .
A ssim , e ra o f e m in is m o d a i g u a ld a d e , q u e p r e g a v a q u e p a ra
se re m r e s p e ita d a s , p a r a d e m o n s tr a r e m a c a p a c id a d e p a r a o
tra b a lh o e p a r a a m ilitâ n c ia p o lític a , as m u lh e r e s d e v e ria m
in c o r p o r a r v a lo r e s m a s c u lin o s n o s e u m o d o d e p e n s a r , d e
a g ir e d e tra b a lh a r.
N o s a n o s 80, la rg a n d o a tim idez, as m u lh e re s e m m eio a
u m p e río d o d e red em o cratização d a so cied ad e, lev a m p a ra a
política a ssu n to s d a n te s c o n sid e rad o s a p e n a s pessoais, com o
a se x u alid ad e , o corpo, a sa ú d e e a violência contra a m ulher.
R esgatam tam b é m a fem inilidade, com to d a a su a beleza e
força, b u s c a n d o a v alorização d o fem in in o c o m o diferen te d o
m asculino, m a s n ã o com o inferior o u s u p e rio r a esse. O lema
era lu ta r, m as ta m b é m a m a r e ser feliz.
138
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
N o s a n o s 90, a ig u a ld a d e form al - ig u a ld a d e d e to d o s p e ­
ra n te a lei, g a ra n tid a pela C onstituição d e 1988 - n ã o signifi­
cou a ig u a ld a d e m aterial. As m u lh e re s c o n tin u a m até hoje
re iv in d ic a n d o m elhorias n as relações sexistas, co m o o fim d as
discrim in açõ es salariais, d o assédio sexual, d a violência c o n ­
tra o sexo fem in in o e m u ita s o u tra s questões.
D estarte, a té hoje, e m m eio a tantos d e b a te s sobre o g ênero
e a ta n ta tecnologia e m eios d e inform ação, essa c u ltu ra d e
h iera rq u iz a çã o d o s gêneros com a su b m issão e in fe rio rid a d e
d a m u lh e r é a in d a re p ro d u z id a e m a n tid a d e d ife ren te s for­
m a s n a n o ssa sociedade, inclusive re p a ssa d a e m a n tid a pelas
p ró p ria s m ulheres.
C hauí (227) arrisca as seguintes hipóteses para compreendê-la:
"em primeiro lugar, a repetição, no interior da casa, do que se
passa na sociedade e na política como um todo, isto é, a
privatização e pessoalização das formas de autoridade; em se­
gundo lugar, também a reiteração do mecanismo sócio-político de transformação da assimetria (no caso homem-mulher,
pais -filhos, irmão-irmã) em hierarquia, a diferença sendo sim­
bolizada pelo mando e pela obediência; em terceiro lugar, a
compensação pela falta de poder real no plano sócio-político, o
machismo funcionando como racionalização, assim como a
feminilidade ('atrás de todo homem, há uma grande mulher'
indicando que há poder ou autoridade femininos que se exer­
cem sob a condição de serem dissimulados e ocultados pela
obediência e pelo recato)”.
P o rta n to , tal d iscussão sobre o g ên ero e sobre os m o v im e n ­
tos fem inistas, ao verificar as experiências sociais d a s m u lh e ­
res a b riu p o ssib ilid a d e s p a ra resg a tar a id e n tid a d e fem inina,
liberta d o m u n d o m asculino, e p a ra p ro p o rc io n a r u m a visão
MULHERES: UM A V ID A DE LUTAS E CONQUISTAS
m ais clara d a s q u e stõ e s d a s m u lh e res, q u e ora tra z e m o s para
debate.
A p re s e n ta re m o s u m a r á p id a trajetória d a m u lh e r d o sécu ­
lo XIX até a d a a tu a lid a d e , colocando e m d e b a te as p rincipais
m u d a n ç a s q u e e n v o lv e ra m as m u lh e re s n a s três ú ltim a s d é ­
cadas: a ed u cação , a sexualidade, o tra b a lh o e a violência.
EDUCAÇÃO E CRIAÇÃO DAS MULHERES
A injustiça com as m u lh e re s v in h a d o b erço , q u a n d o as
m e n in a s e ra m e n sin a d a s a p e rm a n e c e re m n o e sp aç o d o m é s ­
tico. A n a tu re z a fazia-nos m asculinos o u fem ininos, e as c ren­
ças e v alo res d e n o ssa c u ltu ra faziam -nos a e spécie d e h o m e n s
e m u lh e re s q u e n o s to rn am o s. A m u lh e r n ã o nascia m ulher.
M as to rn a v a -se m u lh e r à m e d id a q u e ia in c o rp o ra n d o os v a ­
lores já criad o s p o r u m a sociedade.
D este m o d o , as m e n in a s e ra m criadas d e s d e ce d o e m u m
a m b ie n te m ach ista e o p resso r a p re n d e n d o a in d a p e q u e n a s as
tarefas d o lar, com o a rru m a r a casa, c o z in h a r, b o r d a r , p in ta r e
c o stu ra r, p a ra p o ste rio rm en te , q u a n d o se c asarem , sa b ere m
v e la r c om zelo pela direção m aterial da casa.
Percebem os essa preocupação até m esm o n as inocentes b rin ­
cadeiras d e boneca e d e "casinha", em q u e n o ta m o s a intenção
d e se e d u c ar as m en in a s p a ra com eçarem a in d a q u a n d o p e q u e ­
n as a a p re n d e r a c u id ar d o s filhos e d o s afazeres d o lar.
A s m u lh e re s e ra m o "sexo frágil" e d e v ia m se r carinhosas,
am áv eis, c o m p re e n siv a s e "b o az in h a s". Q u a n to m ais tives­
sem esses d otes, m ais r á p id o c o n seg u iria m u m m a rid o , o q ue
era d e ta m a n h a im portância, pois so m e n te a tra v é s d o casa­
m e n to e d a m a te rn id a d e tornar-se-iam p e sso a s realizadas.
Aliás, a n tig a m e n te , p rin c ip alm en te n a s classes m ais ricas,
o c a sa m e n to era a rra n ja d o pelos pais, e n tre fam ílias d e m e s ­
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
m a classe, co m o u m a form a d e p re s e rv a r o p a trim ô n io d a s
fam ílias. À m u lh e r cabia so m en te aceitar o q u e lhe e ra im p o s ­
to p e lo pai, m e s m o q u e contra a su a v o n tad e . A ú n ica form a
e n c o n tra d a p a ra fugir d o c asam en to e ra ir p a ra u m c onvento,
e lá v iv e ria m d e a co rd o com os prin cíp io s religiosos.
A questão d a virgindade era acima de tu d o u m g ran d e tabu.
A m oça que deixava de ser virgem antes d o casam ento era um a
m u lh e r desonrada. N o livro O Cortiço, de Á lvaro d e Azevedo,
que retratava as questões d as m assas u rb an as proletárias d o fi­
nal século XIX, m as que em bora tivessem grandes diferenças de
hábitos e d e costum es d as classes burguesas d a época, percebe­
m os m uitos valores em com um q u a n d o se tratava d as m ulheres.
N o ta m o s m u ito b e m nesse ro m a n c e a p re d o m in â n c ia d e
v alo res m achistas, q u e v alo riza v a m a v irg in d a d e d a m u lh e r
até as n ú p c ia s, q u a n d o a p e rso n a g e m M arciana, ao descobrir
q u e su a filha estava g ráv id a d o caixeiro D o m in g o s disse ao
p a trã o d o m o ço " ap ro v e ita d o r":
"Venho entregar-te esta perdida! Seu caixeiro a cobriu, deve
tomar conta dela!” E e ntão p e rg u n ta ao m oço; "Se não que­
ria casar pra que fe z mal?"
Por esse diálogo, p o d e m o s n o ta r q u e a m u lh e r q u e deixava
d e ser v irg e m a n te s d o c asam ento, p e rd ia , então, a su a h o n ra ,
a s u a inocência e p u rez a . P or ter d a d o esse ''m a u p a s s o ”, seria
ag o ra u m a p e rd id a e arru in ad a .
Por su a vez, aos h o m en s era associada u m a idéia totalm ente
o p o s ta q u a n d o o a ssu n to era v irg in d a d e. A queles q u e p e rm a ­
n eciam v irg en s até se casarem , e ra m m otivo d e chacotas po r
p a rte d e am igos, fam iliares e vizinhos. E ram rid ic u la riz a d o s e
cen su ra d o s. D igam os, a in d a, q u e a su a m a s c u lin id a d e era co­
locada e m d ú v id a .
MULHERES: UM A VIDA DE LUTAS E CO NQ UISTAS
C o m relação ao a d u lté rio , verificam os t a m b é m u m g ra n d e
a b is m o d e c o m p o r ta m e n to s c o n s id e r a d o s n o r m a is e n tr e h o ­
m e n s e m u lh e r e s . A o s p r im e iro s e ra p e r m i ti d o e x e rc e r li­
v r e m e n te a s u a s e x u a lid a d e , d e s d e q u e n ã o a m e a ç a s s e o
p a tr im ô n io fam iliar, p o is su a s e x u a lid a d e e ra e x c e s s iv a m e n ­
te e x ig en te.
A q u a d rin h a abaixo releva com g ra n d e n itid e z a diferença
d e c o n d u ta sexual e as reg ras c o m p o rta m e n ta is e n tre h o m en s
e m ulheres:
"Um homem com muitas mulheres é poligamia; uma mulher
com muitos homens, é poliandria e um homem com apenas
uma mulher é monotonia".
D estarte, os h o m e n s d e s d e b e m jo vens e ra m in ce ntivados
ao sexo e com isso c riav am u m p o n to p a ra d o x a l: d e v e ria e n ­
tão h a v e r d o is g ru p o s d e m ulheres: u m d a s " co rreta s" e o o u ­
tro d a s "p erv e rtid as" .
O p rim e iro g ru p o seria d a s m u lh e re s q u e s e ria m " sa n ta s",
as m ães e esp o sas, as ideais, que d e v e ria m p e rm a n e c e r v ir­
g en s até o c a sa m e n to e serem to ta lm e n te fiéis ao s ho m en s.
M as h a v ia u m s e g u n d o g r u p o d e m u lh e re s q u e seriam c o n d e ­
n a d a s ao "p ec a d o " . E ram as p ro stitu ta s e biscates, q u e servi­
ria m p a ra a satisfação d o s desejos d o h o m e m , lev a n d o -o s ao
m u n d o d o s p razeres. Esse ú ltim o g r u p o e ra n e cessário sob o
a rg u m e n to d e q u e p a ra se ter virgens casadoiras, fu tu ra s m ães,
era preciso c o m p ro m e te r u m certo n ú m e r o d e m u lh e res.
P e n s a m e n to inclusive m u ito c o m u m n a a tu a lid a d e , q u a n ­
d o o u v im o s c o m e n tá rio s d e m en in o s q u e classificam a s m e n i­
n a s em "g alin h a s" , q u e são aquelas q u e " se rv e m " a p e n a s p a ra
"c u rtir", a p ro v e ita r e p a ssa r o tem po, o u e m m e n in a s sérias,
com q u e m q u e re m n a m o ra r e se casar.
142
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
A so c ie d a d e tam b é m en carav a d ife re n te m e n te as relações
extraconjugais p a ra h o m e n s e m ulheres: à m u lh e r q u e m a n ti­
n h a u m a m a n te e ra m a trib u íd a s p a la v ra s em se n tid o d e p re c i­
ativ o e p reco n ceitu o so , com o " p ira n h a s " , " p u ta s " e "M aria
B atalhão".
Já aos h o m e n s q u e m a n tin h a m essa c o n d u ta , u tiliz a v a m se expressões q u e valorizavam su a c o n d u ta d e "m a c h o ", com o,
p o r e xem plo, d e " d eso n e sto ", " m u lh e re n g o " , ou "insatisfeito
com o c a sa m e n to " e m u ita s o u tra s expressões.
O u tro aspecto q u e lev a n ta m o s d e n tro d a s relações fora d o
c a sa m e n to é q u e os h o m e n s q u e e ra m q u e stio n a d o s pe la s suas
m u lh e re s p e lo fato d e ter u m a am an te, rea g ia m à p e rg u n ta
com violência física e se as ferissem n a d a sofreriam , p o is eles
s e ria m c o n s id e ra d o s in im p u tá v e is, e s ta n d o e m " e s ta d o d e
c o m p le ta p riv a ç ã o d e se n tid o s e d e inteligência". E só re a g i­
ra m p o rq u e as m u lh e re s não e sta v a m e n te n d e n d o su a s " fra ­
q u e z as" d a carne.
Im p o rta n te ta m b é m frisarm os q u e aos h o m e n s in cu m b ia o
espaço p ú b lic o e a v id a política. A eles são a trib u íd a s as p a la ­
v ras p o d e r, força, coragem , agre ssiv id a d e , d o m in a ç ã o e viril,
c o n tra p o n d o -se aos adjetivos d itos fem ininos, q u a is sejam frá­
geis, invisíveis, passiv as, inferiores e d e p e n d en te s.
O s h o m e n s d e v ia m e s tu d a r, dedicar-se às ciências, escre­
v e r o bras científicas e se g u ir carreira, pois u m d ia se ria m o
chefe d a fam ília conjugal, necessitan d o a d m in istra r o p a tr i­
m ô n io e p ro v e r a su ste n taç ã o d a família. Seriam d e sta form a
políticos, m édicos, engenheiros, a d v o g a d o , juizes e h o m e n s
d e negócio, e n q u a n to as m u lh e re s c o n tin u a v a m e m casa.
T odavia, o p rocesso histórico, com o início d o q u e s tio n a ­
m e n to d a s m u lh e re s sobre suas condições sociais, e n c arreg o u se d e p ro v o c a r a lg u m a s m u d a n ç a s e as m u lh e re s p u d e r a m
M ULHERES: U M A V ID A DE LUTAS E C O NQ UISTAS
sair d o e sp aç o d o m éstic o e c o n q u ista ra m o d ire ito d e fre q ü e n ­
ta r as escolas, até e n tã o u m d ireito exclusivo d o s hom ens.
N ã o o b sta n te , p e rc e b e m o s q u e a E ducação, q u e p o d e ria ser
u m a a rm a p r iv ile g ia d a d e lib e rta ç ã o d a c u ltu r a m a c h ista ,
c o n scie n tiz a n d o as m u lh e re s d a h ie ra rq u ia e n tre os sexos e
d a n e c essid ad e d e se ro m p e r com esses vín cu lo s tradicionais,
a p re s e n to u -s e resistente à m u d a n ç a d a o rd e m existente, aca­
b a n d o p o r re p r o d u z ir os m e sm o s v alo res arcaicos.
E fácil o b se rv a rm o s q u e a e ducação n o s colégios fem ininos
c o rro b o rav a com esse e n te n d im e n to q u a n d o trazia currículos
d ife re n c ia d o s d a s escolas m ascu lin as, le v a n d o às m u lh e re s
a u la s d e religião, canto, m úsica, culinária, e co n o m ia d o m é s ti­
ca, co stu ra, etiq u eta e sim ilares, q u e refo rça v a m os a trib u to s
ditos fem ininos, e p ro d u z ia m m u lh e res " p re n d a d a s " , q u e c o n ­
tin u a v a m c o n fe rin d o a m áx im a estim a social.
E n c o n tra m o s facilm en te essa p re o c u p a ç ã o e m m a n te r o
m o d e lo v ig en te d e fam ília q u a n d o a n a lisam o s u m a in stitu i­
ção e d u c ac io n a l d a c id a d e d e U beraba, n o in terio r m in eiro , o
c o lé g io N o s s a S e n h o r a d a s D o r e s , f u n d a d o p e la s I rm ã s
D o m in ican as, em 1885, q u e se d e d ic o u à e d u c aç ã o exclusiva­
m e n te fem inina, d e sd e su a fundação, até 1973, q u a n d o p e r ­
m itiu q u e m e n in o s freq ü en tassem o colégio.
U m jornal local, a Gazeta de Uberaba, no a n o d e 1901, trazia
a se g u in te re p o rta g e m sobre a instituição:
"Tem por fim este coUegio a formação de boas mães de família,
e de criadas ou servas que possão vantajosamente substituir
as escravas. Receberá pois o coUegio meninas das famílias ri­
cas, orphã e ingênuas no internato e externato, em divisões
bem distintas. Objecto de uma solicita e sempre maternal
vigilancia, as educandas estarão constantemente sob as vistas
144
CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
de suas mestras, presidiado estas a seus trabalhos escolásticos
e manuaes como as suas refeições, recreios, etc. A s professoras
querendo dar a suas alumnas uma educação esmerada e com­
pleta terão particular cuidado de infundir-lhes o espirito de
ordem e de economia tão necessário a uma senhora, seja qual
fo r sua condição na sociedade. Para este fim , pede-se o apoio
dos paes, que tão facilmente podem auxiliar as irmãs a comba­
ter 0 luxo desordenado, que tantos males causa as famílias."
MULHERES OBJETO
A os p o u c o s as m u lh e res foram c o n q u is ta n d o m a io r e s p a ­
ço n o ensino, n ã o só m édio, m as tam b é m sup erio r.
P rim e ira m e n te in g re s s a v a m n a s L etras e P e d a g o g ia , n a
P sicolog ia, n a s C iências C o n tá v e is, n a E n fe rm a g em . E ram
e n tã o a m inoria. C o n tu d o , hoje, n o ta m o s q u e a m aio ria d as
salas d e aula, q u e r seja d e e n sino m é d io o u d a s u n iv e rs id a ­
des, estão rep le ta s d e m ulheres, q u e se d e sta c a m n ã o so m e n te
n a q u a n tid a d e , m as p rin c ip alm en te p ela s u a c a p a c id a d e in te ­
lectual e pela s u a garra.
A té m e sm o e m c ursos s u p e rio re s c o n sid e ra d o s tip ic a m e n ­
te m asculinos, com o as e n g e n h arias e ciências d a c o m p u ta ­
ção, e n c o n tra m o s forte prese n ç a d o sexo fem inino, e m b o ra
a in d a é c o m u m o u v irm o s q u e elas estão lá à p ro c u ra d e u m
m a rid o o u q u e são u n s ''c a n h õ es", u m a s "m ach as".
A liás, a in d a é r e in a n te o p re c o n c e ito q u a n to às m u lh e ­
r e s in te lig e n te s e d e d e s ta q u e n a p o lític a e n a s o c ie d a d e .
E xiste u m falso im a g in á rio d e q u e e ssa s m u lh e r e s d e v a m
s e r feias, g o r d a s e te r v e rr u g a s , p o is o ta le n to in te le c tu a l
p a r a as m u lh e r e s é in v e r s a m e n te p r o p o rc io n a l à b o a a p a ­
rê n c ia física.
M ULHERES: UMA VIDA DE LUTAS E CONQUISTAS
P ara c o m p e n s a re m essa falta d e a trib u to s físicos e o in su ­
cesso d e n ã o a rra n ja re m m arido, as "m u lh e re s-fe ia s" c o n q u is­
ta ra m e sp aço pelo e n o rm e esforço intelectual. Já às m u lh e re s
sensíveis, frágeis e " b u rrin h a s " , é a trib u íd o u m belo corpo,
e sc u lp id o p e lo s deuses.
A p ró p ria im a g e m d a "loira b u rra " , tão típica e m nossa
sociedade, é o exato retrato dessa cultura, q u e p re g a u m a idéia
d e m u lh e re s fúteis e superficiais. É im possível e n co n trarm o s
u m in d iv íd u o - e aqui frisam os q u e tra ta m o s p o r in d iv íd u o
a m b o s os sexos - q u e n ã o te n h a n a p o n ta d a lín g u a u m a p ia d a
e m referência a elas o u q u e n o m ín im o já te n h a e s c u ta d o c en ­
te n a s d e ironias nesse sentido.
A n o s s a s o c ie d a d e exige, d e ssa form a, u m a im a g e m da
m u lh e r bela e e te rn a m e n te jovem. Basta o lh a r p a ra a televi­
são, p a ra as revistas e p a ra os jornais. São im a g e n s d e m u lh e ­
res m a g ra s, m a lh a d a s, o u m elhor, ''b o a z u d a s " , m aq u ila d a s,
s e m in u a s, n a flor d a ju v e n tu d e , q u e fazem p ro p a g a n d a s de
carros, d e cigarros, d e v e stu á rio e cosm éticos, asso ciad as s e m ­
p re a idéias d e objeto sexual.
E visualizam os facilm ente o preconceito descarado: as p ro ­
p a g a n d a s d e veículo geralm ente apre se n ta m cenas n a s quais
os h o m e n s q u e têm u m d e te rm in a d o carro, têm p o d e r, e po r
isso c o nquistam e se d u ze m quaisquer m ulheres. D ão essas im a ­
g e n s a im p ressão d e m u lh e res "gasolinas" e interesseiras, que
se arra sta m pelos h o m e n s q u e d etêm m aior p o d e r econômico.
D e v e m o s frisar a in d a q u e p a ra m a n te r esse e s te reó tip o exi­
g id o p e la m íd ia e pela sociedade, as m u lh e re s p a s sa m p o r to r­
tu ra s d iárias d e regim e p a ra e m agrecer, s u b m e te m -s e a c iru r­
gias plásticas, e à lip o asp iração , colocam silicones, aplicam
bo to x p a ra r e d u z ir as ru g as, tin g e m os cabelos b ra n c o s e fa­
z e m b r o n z e a m e n to artificial.
146
CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
T u d o isso p o rq u e os m eios d e com unicação p re g a m q u e a
v id a só vale a p e n a q u a n d o a m u lh e r é jovem e m ag ra . A ssim ,
as m u lh e re s ao co m p le ta re m 30 anos já se se n te m v e lh a s d e ­
m ais e com to d a essa p reo c u p a ç ã o e m ficar e te rn a m e n te jo­
v e m e e m "se c o n serv a r", a cabam n ã o g o z a n d o e d e s fru ta n d o
d a s u a m a tu rid a d e .
C o m o assin alo u M ayra C orrêa e C astro (pág. 121):
"Além da magreza, outra neurose da ciilfura de massas é a
beleza fem inina. A grande maioria dos produtos que sofrem
publicidade são produtos de beleza ou vestuário”.
A cultura de massas quer a mulher eternamente jovem e bela.
Tal como as gordas e as velhas, as feias são eliminadas dos
circuitos eletrônicos. Por isso, a indústria de produtos de
beleza, a cosmetologia médica, a cirurgia plástica, perucas...
Tudo isso tudo está tornando a beleza acessível às mulheres,
ao menos da classe média”.
O s h o m e n s , ao contrário, n ã o b u sc a m o elixir d a e te rn a ju ­
v e n tu d e , n e m se p re o c u p a m com a id ad e, com o as m u lh e re s e
n e m p re c isa m c u id a r d e seu c o rp o físico. E n v e lh ec e m com
d ig n id a d e . A " b a rrig u in h a " é sinal d e q u e s u a esp o sa está
c u id a n d o m u ito b e m dele, ou, n o m ín im o , d e v e m ser os copos
de cerveja. O s cabelos bran co s são charm osos, as ru g a s sinal
d e m a tu r id a d e e até a careca é c o n q u istad o ra.
N o tam o s então que existe u m a cultura d a m ulher-objeto, que
preserva sua aparência física em detrim ento d a capacidade inte­
lectual. O corpo fem inino é subm etido pela m ídia a u m processo
brutal d e coisifícação e comercialização, consistente e m exibir o
corpo, com o form a d e v en d er os m ais variados produtos.
V em e n tã o u m a cultura d a " b u n d a " e d e u m b elo rosto,
q u e em certos m o m e n to s p a re c e m se c o n fu n d ir com a p r ó p ria
MULHERES: UM A VIDA DE LUTAS E CONQUISTAS
pessoa. A ssim , e n q u a n to os h o m e n s são u m ro sto com um
corpo, u m to d o físico, as m u lh e res, m u ito p e lo c o n trário , são
u m c o rp o (e p rin c ip a lm e n te u m a n á d e g a b e m saliente, m e s ­
m o q u e p a ra isso te n h a q u e recorrer ao silicone) e u m rosto.
Então, o q u e e n te n d e m o s é q u e o c o rp o d a m u lh e r co n ti­
n u a escravizado. M as e n q u a n to d a n te s seu c o rp o era p e rte n ­
cen te ao m arid o , ag o ra essa e scrav id ão se releva sob o u tra for­
m a:
0
c o rp o d a m u lh e r c o m o e scravo e su b m isso ao s p a d rõ e s
d e b e le z a d ita d o s pela m ídia.
0 DIREITO À SEXUALIDADE
U m g ra n d e m a rc o d o século XIX e q u e c o n trib u iu im e n su r a v e l m e n t e p a r a a e m a n c i p a ç ã o d a s m u l h e r e s foi o s
c o n traceptivos. A p a rtir d e então, elas p a s s a ra m a p o d e r d o ­
m in a r seu p ró p rio corpo, s e p a ra n d o assim a s e x u a lid a d e d a
procriação. Ter o u n ã o filhos e q u a n d o ter, p a s s o u a se r u m a
escolha q u e p ossibilitou a elas a m a r s em m e d o d e u m a g ra v i­
d e z indesejada.
C o m isso elas p a s sa ra m a ter d ire ito d e ter desejo e p ra z e res, p a s s a ra m a ser livres p a ra escolher s e u p a rc e iro e p a ra
co n h e ce re m seu corpo.
N esse contexto d a sex u alid ad e, os m o v im e n to s fem inistas
tiv e ram u m g r a n d e destaq u e. Eles colocavam em d e b a te o p la ­
n e ja m e n to fam iliar e p ro m o v ia m c a m p a n h a s so b re os m é to ­
d o s co n tra c ep tiv o s, c o n scie n tiz a n d o as m u lh e re s p a ra que,
ju n ta m e n te c o m s e u s c o m p a n h e iro s , p u d e s s e m d e c id ir d e
m a n e ira livre e consciente a opção d e te re m filhos o u q u a l o
m o m e n to a d e q u a d o p a ra tê-los.
C o n tu d o , a in d a hoje, e n c o n tra m o s m u ita s m u lh e re s com
u m a g ra v id e z indesejada, pois o sexo a in d a é u m ta b u e n ã o é
148
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO OE JUSüÇA
falad o a b e rta m e n te , a p e sa r d e to d a a exposição d a m ídia. Isso
sem falar q u e , m u ita s vezes, as m u lh e re s n ã o têm acesso a
serviços d e q u a lid a d e em contracepção, co m o os a n tic o n c e p ­
cionais e os preservativos.
P o r o u tro lad o , a s a ú d e d a m u lh e r ta m b é m p a ssa a ser in­
te n s a m e n te d e b a tid a ju n to com a sex u alid ad e. Ju n to com o
E stado, o m o v im e n to fem inista p ro m o v e a v a n ço s n a s a ú d e
fem inina. N a d é c a d a d e 90, p o r exem plo, intensificou-se a luta
n o c o m b a te ao câncer d e m am a. D esd e então, p e sso a s fa m o ­
s a s e c o m u n s v ã o à m íd ia p r e s t a r e m s e u d e p o i m e n t o e
co n scie n tiz a r as m u lh e re s d e se fazer p re v e n tiv a m e n te u m
e x a m e m éd ic o , ao m e n o s u m a v ez p o r ano, e d e fazer m e n s a l­
m e n te o to q u e d e m am a.
P ro m o v e m tam b é m c a m p a n h a s d e c o m b a te e p re v e n ç ã o
ao câncer n o cólo d o ú te ro (HPV) e o u tra s d o e n ç a s sexual­
m e n te tra n sm issív e is (DSTs), com o a AIDS, a sífilis e m u ita s
o u tra s , p a ra a s se g u ra r a s a ú d e d a s m u lh e res. A c a m isin h a torn a -se re q u is ito o b rig a tó rio n a lu ta c o n tra essa s d o e n ç as. A
m íd ia tem nesse m o m e n to u m im p o rta n te p a p e l p r e g a n d o q u e
as m u lh e re s d e v e m n ã o a p e n a s se p rec a v e r c o n tra a g rav id e z ,
m a s ta m b é m c o n tra as DSTs.
C u ltiv a m a idéia d e q u e as m u lh e res, m e s m o as casadas,
d e v e m exigir d e seus c o m p a n h e iro s q u e u tiliz e m a cam isi­
n h a , re v e la n d o d e p o im e n to s d e m u lh e res c a sa d a s e fiéis q u e
c o n tra íra m AIDS d e seus m aridos.
S u rg e a in d a n o final d a d é c a d a d e 90 a c a m isin h a fem ini­
n a , d a n d o m a io r a u to n o m ia às m u lh e res, q u e p o d e m a g o ra se
p re c a v e r c o n tra as DSTs, a tra v é s d a utilização d e ste recu rso
q u a n d o seus c o m p a n h e iro s n ã o q u ise re m u s a r a m asculina.
E n tre ta n to , a cam isinha fem inina, além d e ser u m p o u c o
m ais c o m p lica d a d e m a n u s e a r q u e a m ascu lin a, é d ific ilm e n ­
MULHERES: UM A VIDA DE LUTAS E CONQUISTAS
te e n c o n tra d a n o m erc a d o , e q u a n d o d isp o n ív e l o p reço é b e m
s u p e rio r à m asculina.
A d e m a is, e m b o ra sejam a m p lo s os p r o g ra m a s e as c a m p a ­
n h a s d e assistência à sa ú d e d a m ulher, as v ag as e os a te n d i­
m e n to s n o s ho sp itais são lim itados e precários, to rn a n d o -se
u rg en te a construção d e espaços nos quais a m u lh e r tenha acesso
p a ra colocar as suas n ecessidades n o tocante à su a saúde.
0 MERCADO DE TRABALHO
T a m a n h o era a resistência em se q u e b ra r os v ín cu lo s tra d i­
cionais, q u e o tra b a lh o d a s m u lh e re s fora d e casa era, a p rin c í­
p io, v isto com o u m m o m e n to transitório, a té a realização d o
c a sa m e n to , o u então, p a ra as m u lh e re s q u e ficassem solteiras
o u viúvas.
R einava a in d a a idéia d e q u e a fu n çã o p rin c ip a l d a m u lh e r
n a so c ie d a d e é se r m ãe, esposa e e d u c a d o ra , d a n d o a im p re s ­
são d e ser essa função u m privilégio, e q u e , p o r isso, e s tu d a r e
tra b a lh a r e ra m desnecessários.
M as a o s p o u c o s h o u v e u m s u rp re e n d e n te a u m e n to d o n ú ­
m ero d e m u lh e res q u e se d ed icav am às a tiv id a d e s fora d e casa.
Esse fato foi re s u lta d o n ã o a p e n a s d a e m a n c ip aç ã o fem inina,
m a s ta m b é m c onseqüência d a crise e conôm ica q u e as o b rig a ­
ra m a c o m p le ta r a re n d a salarial d a família.
C o m isso, a m u lh e r infiltrou-se n o te rritó rio m asc u lin o ,
p a s s o u a d e s e m p e n h a r funções antes d ita s d e m a c h o e hoje
são u m a g r a n d e m ão -d e -o b ra n o m e rc a d o d e tra b a lh o . O s
h o m e n s d e ix a ra m assim d e ser os ú n icos p ro v e d o re s fin a n ­
ceiros d o la r e p a s sa ra m a c o n tar c om a a ju d a d a s m ulheres.
A d v e io d a í u m g ra n d e p ro b le m a p a ra a m aio ria d a s m u ­
lheres; a d u p la jo rn a d a d e trabalho, d e n tro e fora d e casa. A s­
150
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
sim , m e s m o in g re s s a n d o n o m erc a d o d e tra b a lh o , as m u lh e ­
res c o n tin u a ra m resp o n sá v e is p elo c u id a d o com a casa, com
os filhos, le v a n ta n d o cinco d a m a n h ã p a ra d eix ar o alm oço
p r e p a r a d o p a ra a fam ília, an te s d e ir p a ra o tra b a lh o e la v a n ­
d o r o u p a s até altas h o ra s d a m a d ru g a d a .
T u d o isso, p o rq u e n ã o h o u v e u m a socialização d o trabalho
dom éstico, d e form a que ho m en s e m ulheres p artilhassem eqüitativ am en te as ativ id ad es d e casa e o c u id ad o com os filhos, ou
seja, q u e pa ssa sse m a arcar com as m esm a s o p o rtu n id a d e s e
responsabilidades. É certo q u e alguns m arid o s e filhos p a ssa ­
ra m a a ju d ar n as tarefas dom ésticas, m as isso ocorria n a m in o ­
ria d a s vezes o u em níveis n e m u m pou co satisfatórios.
D essa form a, o tra b a lh o q u e seria a ''lib e rta ç ã o " d a s m u ­
lheres, n a v e rd a d e , a p e n as as o p rim iu m ais, p o rq u e agora, além
d a s exigências d om ésticas, a in d a têm q u e c o n trib u ir com o
su s te n to d a casa, in g re ssa n d o no m e rc a d o d e trabalho.
N e sse se n tid o M a rg a re th Rago (pág. 42) p e rc e b e u q u e
"As mulheres têm denunciado o alto custo cjue elas pagam
por competir no espaço dos homens: Enquanto estes contam,
de certo modo, com uma infra-estrutura de apoio, seja fin a n ­
ceira, seja apenas psicológica, para competir no mercado de
trabalho, as mulheres devem provar duas vezes mais do que
são capazes, além de continuar a desempenhar as funções de
mãe e de rainha do lar, exigidas tanto pelos maridos, quanto
pelos filhos e familiares".
A lém d a d u p la jo rn a d a d e trabalho, p e rc e b e m o s ta m b é m
m u ita s o u tra s discrim inações c o n tra as m u lh e re s n o m ercado.
Basta o b s e rv a r q u e n a m aio ria d o s setores d e a tiv id a d e , as
m u lh e re s têm u m a p rese n ç a o u m u ito acim a o u m u ito abaixo
d a s u a taxa d e p a rticip a ç ão n a p o p u la ç ã o o c u p a d a.
MULHERES'. U M A VIDA, OE LUTAS E CO NQ UISTAS
E m o u tra s p a la v ra s, e m b o ra as m u lh e re s ex erçam a tu a l­
m en te m u ita s profissões que antes eram exclusivas d e hom ens,
a in d a existe a crença d e q u e a lg u n s e m p re g o s são d e m u lh e ­
res e o u tro s d e ho m en s. A ssim , p o r exem plo, e n c o n tra m o s
m u lh e re s c arteiras e c o b ra d o ra s d e ô n ib u s, m a s é raro en c o n ­
tra r a lg u m a m u lh e r m o to rista d e ô n ib u s o u d e táxi, o u até
m e s m o eng en h eira. A o m esm o tem po, é difícil e n c o n tra rm o s
h o m e n s recepcionistas o u secretários d e u m a e m p re sa.
O u tra g ra n d e discrim inação q u e n o ta m o s é a diferença s a ­
larial e n tre os sexos. A s m u lh e res g a n h a m e m m é d ia o e q u i­
v a le n te a 64% d o salário d o s h o m e n s no Brasil, p o r m esm a s
fun ções d e s e m p e n h a d a s .
Em geral, e n q u a n to m aio r a escolaridad e, m a io r a d ife re n ­
ça salarial e n tre h o m e n s e m u lh e res n a m e sm a o cupação. U m
d a d o im p o rta n te é q u e as m u lh e re s estã o e m o c u p a çõ e s m ais
relacionadas à repetição d e m ovim entos diários. C om isso, elas
são as m aio res v ítim a s d e LER (lesão p o r esforços repetitivos).
A lém disso, a p ro x im a d a m e n te 40% d a força d e tra b a lh o
fem in in o n o Brasil está no p ó lo m en o s q ualificado e d e m e n o r
re n d a , c om o faxineira, a ju d a n te d e serviços g erais e sim ilares.
Isso, sem falar d o g ra n d e n ú m e ro d e m u lh e re s que, e m v irtu ­
d e d a escassez d e e m p re g o s e d a n e c essid ad e d e o b te r re c u r­
sos e conôm icos p a ra a família, lançam -se p a ra a e co n o m ia in ­
form al, d e s e m p e n h a n d o a tiv id ad e s d e e m p re g a d a s d o m é s ti­
cas, lav a d e ira s, pa ssa d e ira s, v e n d e d o ra s e fa z e d o ra s d e d o ­
ces, biscoitos, refeições e salgados. T odo esse esforço e m troca
d e u m a p e q u e n a rem uneração.
Fora isso, u m a d a s m aiores injustiças está n o fato d e q u e as
e m p re g a d a s do m ésticas n ã o têm g a ra n tid a a to ta lid a d e dos
d ire ito s tra b a lh ista s e as d e m a is tra b a lh a d o ra s q u e c o m p õ e m
a e c o n o m ia in fo rm a l n ã o têm q u a lq u e r a m p a r o legal.
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
M u ito p elo contrário, essas ú ltim a s tra b a lh a d o ra s, q u e são
e m p u r r a d a s a essa form a d e tra b a lh o p o r falta d e políticas
p ú b lic a s q u e n ã o g e ra m em pregos, são tid a s co m o v e rd a d e i­
ras crim inosas, p o r serem s o n e g ad o ra s d e trib u to d e v id o ao
Estado.
O u tro grave problem a que as m u lh e res en co n tram q u a n d o
deb atem o s sobre o m erc a d o d e trabalho é o local o n d e v ã o d e i­
xar seus filhos e n q u a n to trabalham . Sabem os q u e o n ú m e ro d e
creches é b e m re d u z id o e n em se m p re a s m ãe s en co n tram v a ­
gas n a s escolas públicas p a ra m atricularem seus filhos.
D iante d a inércia d o E stado e d o preco n ceito d a s e m p re sa s
q u e n ã o oferecem creches, a solução e n c o n tra d a é q u e o s fi­
lhos m aio res c u id e m d o s m enores, e n q u a n to as m ã e s v ã o à
luta, o u e n tã o q u e as m u lh e res q u e tra b a lh a m in fo rm a lm e n te
lev em consigo os filhos p a ra a ju d a r n a v e n d a d a s q u itu te s.
P o rta n to , é in d u b itá v el q u e as m u lh e re s o c u p a m hoje u m a
g ra n d e p osição n o m erc a d o d e trabalho. M as essa c onquista,
n ã o é a in d a sin ô n im o d e ig u a ld a d e e h á m u ito p a ra ser feito
p a ra se c h e g ar à p le n itu d e d e seus direitos.
A VIDA POLÍTICA
E m b o ra as m u lh e re s estejam c o m e m o ra n d o se te n ta anos
d e co n q u ista d e d ireito ao voto, assistim os a in d a a u m a p e r ­
v e rsa exclusão d a s m u lh e re s n a esfera política. São a té hoje
p o u c a s as m u lh e re s q u e o c u p a m cargos políticos, seja n o s p a r ­
tidos, seja n o governo. N o C o n g resso N acional, p o r e xem plo,
a b a n c a d a fem inista rep re sen ta a p e n as seis p o r c ento d o total
d o s in te g ra n te s d a Casa.
C o n tu d o , a p e sa r d e serem e m u m n ú m e ro p e q u e n o , são as
m u lh e re s q u e ao colocarem em d e b a te e re a lid a d e c o tid ian a
e m q u e v iv em , colocam em xeque os p ro b le m a s sócio-econô-
MULHERES: UMA VID A DE LUTAS E CONQUISTAS
m icos d o país, d e n u n c ia n d o a falta d e creches, d e escolas p ú ­
blicas, d a s c ondições d e trabalho, a m á d istrib u iç ão d e re n d a ,
o salário m e n o r q u e o d o s h o m en s, o a u m e n to d a cesta básica
e m u ita s o u tra s questões.
D estarte, n a esfera política, a crítica fem in in a p r o m o v e u
u m a m u d a n ç a d o e n fo q u e d a concepção política tradicional,
in c o rp o ra n d o a esse m eio tem as an te s n ã o d e b a tid o s pelos
h o m e n s, p o is p e rte n c ia m a u m u n iv e rs o fem in in o , q u e até
aq u e le m o m e n to e ra m colocados à m a rg e m d o sistem a.
E ntretan to , com o as m u lh e res n ã o estão a in d a re p re s e n ta ­
d a s em u m n ú m e ro considerável n as instâncias,
"as mulheres e os trabalhadores não podem ser senão cidadãos
de segunda classe enqnanto estas instituições continuarem a
definir e estruturar nossa política". Com a pequena represen­
tação, "na melhor das hipóteses, os cidadãos têm a opção de
votar ou não, mas Inós mulheres] temos um papel pequeno na
definição ou estruturação daquilo que será votado ou no con­
sentimento ao regime enquanto tal". (M artha A ckelsberg,
pág. 255)
N o â m b ito político, d e v e m o s ta m b é m le m b ra r a g ra n d e
p a rticip a ç ão a tiva d e m u lh e re s n o s m o v im e n to s p o p u la re s . A
m aio ria d e se u s com p o n en tes, em geral, é d o sexo fem inino,
te n d o n ã o ra ra s v ezes líderes m ulheres.
Esses m o v im e n to s a s su m e m u m p a p e l f u n d a m e n ta l n a cri­
ação d e n o v a s form as d e sociabilidade e m u d a n ç a s n a esfera
p riv a d a , a p a rtir d o m o m e n to em q u e as m u lh e re s p a rtic ip a n ­
tes d o m o v im e n to q u e b ra m a rotina d o m éstica e p a s s a m a se
relacio n ar com o u tro s in d iv íd u o s, a p re n d e m a falar e m p ú b li­
co e lu ta m pela q u a lid a d e d e v id a d e seus filhos e d e toda a
c o m u n id a d e .
154
CIDADANIA OA MULHER, UMA QUESTÃO OE JUSTIÇA
VIOLÊNCIA CONTRA A S MULHERES
C o n tu d o , e m b o r a te n h a m o s a v a n ç a d o m u ito n o p la n o
n o rm a tiv o e n o d e b a te público, são m u ita s a in d a as b a rre ira s
q u e as m u lh e re s en fre n ta m e d e v e m d e n u n c ia r, p rin c ip a lm e n ­
te q u a n to à violência, q u e r seja e stru tu ra l, q u e r seja d e c o rre n ­
te d e su a condição d e gênero, q u e a in d a sofrem.
A violência contra a m u lh e r, fruto d e u m a co n d ição geral
d e s u b o r d in a ç ã o , o u seja, d e u m a o r d e m n o r m a t iv a q u e
h ie ra rq u iz a p a p é is e p a d rõ e s d e c o m p o rta m e n to p a ra os se­
xos, vem s e n d o d e n u n c ia d a d e sd e o início d a d é c a d a d e 1980,
p o r g r u p o s fem inistas e v e m se n d o b a sta n te d isc u tid a nessas
ú ltim a s décadas.
O p r ó p rio fato d a s m u lh e res serem e x p re ssã o d a d o m in a ­
ção m asc u lin a , p o r serem seres q u e existiam p a ra os h o m en s,
c o n trib u ía m p a r a legitim ar a violência d o s h o m e n s c o n tra as
m u lh e res. M as os m o v im e n to s fem inistas v ie ra m d e s tru ir esse
p e n s a m e n to .
C h a u í (1985), ao p e sq u isa r sobre o tem a d istin g u e os c o n ­
ceitos d e violência e d e relações d e força e e n tre e stes e o c o n ­
ceito d e p o d e r. E n te n d e q u e a violência é u m a d a s fo rm a s d as
relações d e força e am b o s im plicam o desejo d e m a n d o e a
o p re ssã o d e u m se g m e n to social sobre outro.
E ntretan to , n a relação d e força, deseja-se an iq u ilar-se e n ­
q u a n to relação p e la de stru iç ã o d e u m a d a s p a rte s e, n a v io ­
lência, m a n té m -se a relação d e m a n d o e a sujeição, m e d ia n te
u m p rocesso d e interiorização p e la p a rte d o m in a d a d a s v o n ­
ta d e s e ações d a p a rte dom in an te.
P o r cau sa d e s se processo, m u ita s v ezes as m u lh e re s se s e n ­
tem c oagidas a se su b m e te re m ao h o m e m , se n d o u s a d a s p e r ­
v e rs a m e n te p elo m a rid o com o objeto sexual, a servi-lo com
seu c o rp o q u a n d o ele b e m quiser.
MULHERES: UM A VIDA DE LUTAS E CONQUISTAS
M as as m u lh e re s p a s sa ra m a c o n tar com o S.O-S. M ULHER,
e n tid a d e d e a p o io e conscientização, q u e oferece orientação
ju rídica e psicológica às m u lh e res vítim as d a violência. C om
isso a u m e n to u o n ú m e ro d e d e n ú n c ia s d e violência d o m é s ti­
ca, e x p re s s a d a s d a s m ais d iv e rs a s form as: e s p a n c a m e n to s ,
to rtu ra s e a m eaças d e m orte.
Esse tem a , a n te rio rm e n te tid o c om o p a rtic u la r, g a n h a e n ­
tão u m a d im e n s ã o p ú b lica e o E stado p a s sa a p u n ir o s que
c o m e te m violência contra a m u lh e r e isso é f u n d a m e n ta l p a ra
a c o n s tr u ç ã o d e u m a n o v a s o c ie d a d e , p o is as m u lh e r e s
a g re d id a s, ao a p re se n ta re m suas queixas co lab o ram p a ra a sua
c o n stituição e su a id e n tid a d e fem inina, q u e b ra n d o os p a p é is
tradicionais, cheios d e equívocos e preconceitos.
U rg e ta m b é m a ssinalar q u e o assédio sexual, p a s s a n d o a
ser c o n sid e ra d o crim e n o início de ste século, p u n in d o h o m e n s
e tu te la n d o in ú m e ra s m u lh e res c o n stra n g id a s à p rática d e atos
sexuais, m e d ia n te g rav e am eaça o u p o r m eio d e p a la v ra s ou
gestos, é m ais u m a conquista na luta pelos d ire ito s d a m u lh e r
e m ais u m a e x p re ssã o d a su a cidadania.
O ORDENAMENTO JURÍDICO
A C o n stitu içã o d e 1988, ao g a ra n tir a m e s m a iso n o m ia em
d ire ito s e obrigações p a ra h o m e n s e m u lh e re s , a p e n a s veio
reg istra r to d o o cenário d e d é c a d a s d e lu ta s p e la s q u a is as
m u lh e re s b a ta lh a v am .
O h o m e m d e ix o u d e ser c o n sid e ra d o o chefe e re p re s e n ­
tan te legal d a fam ília e o único resp o n sá v e l p o r seu sustento.
M as, c om o já e xpom os, a p e sa r d a s g r a n d e s c o n q u ista s q u e as
m u lh e r e s a lç a ra m n a s ú ltim a s d é c a d a s , e ssa ig u a ld a d e no
o r d e n a m e n to ju ríd ico n ã o se efetivou até hoje.
156
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
C o n tu d o , n ã o p o d e m o s deixar d e m en c io n a r e festejar as
p rin c ip a is c o n q u ista s d a s m u lh e res n o ú ltim o século.
C o m o d isse m o s an te rio rm en te , a existência d a fam ília es­
tav a c o n d ic io n a d a à leg itim id a d e q u e d e riv a v a a p e n a s d o ca­
sam en to . A legislação c onstitucional d e 1988 veio te n ta r r o m ­
p e r com o c o n serv a d o rism o d o início d o século XX e a d a p ta rse à re a lid a d e fática brasileira, rec o n h e c e n d o a u n iã o estável
e n tre o h o m e m e a m u lh e r c om o e n tid a d e fam iliar, a q u a l foi
d e v id a m e n te in c o rp o ra d a ao N o v o C ó d ig o Civil d e 2003.
F oram , e n tã o , tu te la d a s as u n iõ e s e stá v e is p a r t i n d o d a s
m e s m a s re g ra s d o ca sa m e n to . C o m isso fo ra m b e n e fic ia d a s
m ilh a re s d e c o n c u b in a s, q u e v iú v as, d e p o is d e v iv e re m m ais
de v in te a n o s c o m s e u s m a rid o s, n ã o tin h a m d ire ito a o s b e n s
s im p le s m e n te p o r q u e fu g ia m à c o n v e n ç ã o d o in s titu to do
ca sa m e n to .
C o n fo rm e p ro n u n c io u R icardo P e n tea d o d e F reitas Borges
e C a e ta n o L agrasta N e to e m artigo p u b lic a d o n a Revista d a
A ssociação d o s M a g istra d o s Brasileiros (ano I, fevereiro d e
1990),
'‘Dizem eles que uma nova feição da família fo i introduzida
no nosso ordenamento jurídico pela Constituição de 1988.
Com isto, casamento e concubinato devem ser tratados como
iguais pelo Estado, padecendo de inconstitucionalidade o tra­
tamento diferenciado das duas últimas situações cujas dis­
soluções devem ser processadas nas mesmas condições, ou
seja, no juízo de família".
Aliás, o p ró p rio term o concubina foi su b s titu íd o p o r c o m ­
p a n h e ir a o u c o n v iv e n te , p o is a p a la v r a c o n c u b in a tin h a a
conotação p ejo rativ a d e m u lh e r d e so n esta e d e s tru id o ra d e
fam ílias legítim as.
M ULHERES: UMA V ID A DE LUTAS E CONQUISTAS
D e sa p a re c e u tam b é m a discrim in ação d o s filhos n ascidos
fora d o casam en to , o u d o s a d o ta d o s, q u e p a s s a ra m a ter os
m e sm o s d ire ito s e qualificações d a q u e le s p r o v e n ie n te s d o ca­
sa m e n to , t e n d o e m vista q u e foram v e d a d a s q u a is q u e r d e sig ­
n açõ es d isc rim in ató ria s relativas à filiação.
O u tra s m u d a n ç a s p o d e m ser n o ta d a s n o o r d e n a m e n to j u ­
rídico, q u e tenta se a d e q u a r às tra n sfo rm aç õ e s o c o rrid a s n a
so cied ad e, c o m o está o c o rre n d o com o N o v o C ó d ig o Civil, já
em vigor, a com eçar p e la s m u d a n ç a s n a p ró p ria lin g u ag em .
E xpressões, p o r exem plo, q u e se referem ao s d ireitos, em
q u e a n te s liam o s " d ire ito s d o h o m e m " p a ra se referir a am b o s
os sexos, ag o ra fo ra m su b stitu íd a s pela locução "'da pessoa".
A n o v a legislação tam b é m retirou dispositivos preconceituosos
e d e u m a c u ltu ra m achista, q u e p e rm itia m ao m a rid o a a n u la ­
ção d o c a sa m e n to e a su a de v o lu ç ã o ao pai, q u a n d o d e sco ­
b risse o d e flo ra m e n to d a m u lh e r.
O N o v o C ó d ig o C ivil re tiro u a in d a o s d isp o s itiv o s d a Lei
d e 1916 q u e colocava o h o m e m com o chefe e re p re s e n ta n te
legal d a fam ília e a m u lh e r com o m era c o la b o ra d o ra d o m a ri­
d o n o s en carg o s d e família.
A gora, p e lo c asam en to , h o m e m e m u lh e r a s s u m e m m u t u ­
a m e n te a c o n d ição d e consortes e resp o n sá v e is p e lo s e n c ar­
g o s d e fam ília, p o d e n d o , q u a lq u e r d o s n u b e n te s, q u e re n d o ,
acrescer ao s e u o so b re n o m e d o outro.
D iga-se a p ro p ó sito , q u e a no sso ver, o u s o d e n o m e d o
m a r id o p e la m u lh e r, te m u m a conotação sim bólica, n ã o a p e ­
n a s lig a d a a o d ire ito d e p e rs o n a lid a d e , m a s q u e significa d o ­
m inação. A ssim , o C ó d ig o Civil, e m s u a r e d a ç ã o orig in al d is ­
p u n h a q u e a m u lh e r era o b rig a d a a a c rescen tar o s a p e lid o s d o
m arid o , m a s p o d ia p e rd e r esse n o m e ao ser c o n d e n a d a n a ação
d e d esquite.
158
CIOAQANiA DA MULHER, U M A Q U E S T Ã O DE JUS^Ç A
C o m a Lei d o D ivórcio, e m 1977, o acréscim o d o n o m e torn o u -se facultativo. M as q u a n d o da se p ara ç ão judicial, a facul­
d a d e d e c o n tin u a r a u s a r o n o m e d o m a rid o so m e n te p a s s o u a
ser f a c u ld a d e se a m u lh e r fosse inocente, o u seja, a v encedora.
C aso fosse a p a rte vencida, d ev eria v o lta r a u s a r o n o m e d e
solteira, com o se lhe fosse im p o sta u m a apenação.
O N o v o C ó d ig o Civil se g u iu essa linha, p r e v e n d o q u e o
cô n ju g e d e c la ra d o c u lp a d o n a ação d e s e p ara ç ão judiciai p e r ­
d e o d ireito d e u s a r o so b re n o m e d o o utro, m a s im p õ e ressal­
vas: d e sd e q u e e xpressam ente req u erid o pelo cônjuge inocente
e se a a lteração não acarreta r preju ízo p a ra a su a iden tifica­
ção; h o u v e r m an ifesta d istinção e n tre o seu n o m e d e fam ília e
o d o s filhos h a v id o s d a u n ião dissolvida o u d e o u tro d a n o
re c o n h e c id o n a decisão judicial.
Im p o ssív e l ta m b é m falar d o o rd e n a m e n to ju ríd ico sem fa­
lar d a s m u lh e re s n a ó rbita d o Judiciário: as a d v o g a d a s , juízas,
p ro m o to ra s e deleg ad as. É certo q u e a in d a n ã o tiv e m o s n e ­
n h u m a m u lh e r no S u p re m o T rib u n a l Federal e re c e n tem e n te
tiv e m o s a p rim e ira m u lh e r n o S u p e rio r T rib u n a l d e Justiça,
m a s já com eça a q u e b ra r o c o n se rv a d o rism o d o P o d e r Ju d ic i­
ário, que, aliás, já conta com u m a notável participação d e juízas
no p rim e iro g ra u d e jurisdição, q u e e s tu d a ra m e se d e d ic a ­
ra m a o s e s tu d o s jurídicos, a té que, com su a c o m petência e ca­
p a c id a d e , in g re ssa ra m n a m agistratura.
A p a rticip a ç ão d a s m u lh e res n a esfera jurídica é sem d ú v i­
d a u m a q u e b ra d o s valores m achistas. M as, c o n fo rm e o b s e r­
v o u M a ria Berenice D ias (2002),
"indispensáz^eJ se fa z perquirir se a inserção das mulheres nas
carreiras jurídicas afetou o contexto das decisões judiciais,
passando elas a exercer o papel de agentes modificadoras do
conservador modelo vigorante".
MULHERES: UM A VIDA DE LUTAS E CO NQ UISTAS
A p ró p ria a u to ra constata que a resp o sta é n eg ativ a, pois
e m b o ra t e n h a m consciência d a n e c essid ad e d e m u d a n ç a s , elas
n ã o r o m p e m c o m o s códigos e p a d rõ e s vigentes:
"Ní?o basta o aumento do número de magistradas para cjue
determinados comportamentos sejam alterados, com o estabe­
lecimento da igualdade, o fim da discriminação e a eliminação
da violência contra a mulher. Necessário, em um primeiro
momento, desmistificar a idéia sacralizada da família. Consi­
derada como a responsável pela organização social, em que se
desenvolve o senso de justiça e cidadania, estrutura-se, no
entanto, de form a hierarquizada, tão-só pela diferença dos se­
xos, restando à mulher sempre um pape! de subordinação".
C o n tu d o , com o p ró p rio afirm a a a u to ra , a v o z diferen te das
m u lh e re s acaba p o r alterar o contexto d a s d ecisões judiciais,
p o d e n d o c om isso tra z e r sentenças n ã o m a s c u lin iz a d a s e que
tra z e m u m a visão fem inina d o cotidiano.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
C o m o d e m o n s tra m o s , não h á com o n e g a r q u e nós, m u lh e ­
res, p r o ta g o n iz a m o s as g ra n d e s m u d a n ç a s q u e a conteceram
n o m u n d o n o ú ltim o século: no trabalho, n a m úsica, n a litera­
tu r a , n a p o lític a , n a c o m u n id a d e , n a s u n i v e r s id a d e s , no
o r d e n a m e n to jurídico, n a ru a e em casa.
Em tu d o e em todos os lugares estam os reivindicando nossos
direitos, em especial o direito à cidadania. E, com isso, estam os a
cada m in u to fortalecendo nossa participação n o espaço público.
D esta form a, o sexo frágil e belo n ã o p a re c e m ais se r tão
frágil assim , b e m com o tam b ém p a sso u a lu ta r p e lo s m esm o s
d ire ito s q u e os h o m e n s , sem a b a n d o n a r o s p a r â m e tr o s e
referenciais fem ininos, p r e s e rv a n d o a s u a fe m in ilid a d e , a sua
160
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
be le z a n a tu ra l, a su a m istic id ad e e su a sim patia.
S alientam os q u e as vitórias rea lm e n te fo ra m m u ita s, m as
n e m p o r isso n o s acom odarem os. C o n tin u a re m o s q u e s tio n a n ­
d o as crenças e valores q u e m a n tê m os p a p é is trad icio n ais do
h o m e m e d a m u lh e r, re v e n d o a org an ização fam iliar; e reiv in ­
d ic a n d o d ire ito s p a ra q u e as instituições e s tim u le m o s in d iv í­
d u o s a se tra n s fo rm a re m em sujeitos políticos.
Enfim, e n fatizam os que, nós, m ulheres, lu ta m o s s e m p re em
to d a a h istória d a h u m a n id a d e , estivem os p re s e n te s e m todos
os acontecim entos, q u e r seja n a política, n a so c ie d a d e o u em
casa, m as a glória s e m p re foi a trib u íd a a o h o m em .
C o n tu d o , esta m o s r o m p e n d o a n o ssa in v isib ilid a d e h istó ­
rica e n o s fortalecem os a cada m o m e n to com o cidadãs. E afir­
m a m o s com to d a a v o n ta d e q u e c o n tin u a re m o s e n q u a n to for
preciso b a ta lh a n d o p o r respeito, p o r d ig n id a d e , q u e b ra n d o
b a r r e ir a s e p re c o n c e ito s, e rr a n d o , a p r e n d e n d o , a c e rta n d o ,
d a n d o a volta p o r cim a, a té c o n seg u irm o s o rec o n h e c im e n to
d a g u e rre ira q u e so m o s e d a nossa capacidade.
C o n tin u are m o s com nossa garra n a busca pela efetiva igual­
d a d e d e d ire ito s n a so c ie d a d e e p e la v e rd a d e ira c id a d a n ia,
q u e n ã o é so m e n te u m a q u e stã o d e direitos, m as, acim a d e
tu d o , d e justiça.
Persistirem os finalm ente ba ta lh a n d o e n q u a n to for preciso,
incessantem ente, p o r nosso espaço na sociedade, pois, afinal, o
que nós querem os, n ão é serm os m elhores q ue os hom ens, n em
d o m in a r a sociedade e quanto m enos ainda d em o n strar u m a fal­
sa superioridade entre sexos, que n a ve rd a d e n ã o existe.
N ã o q u e re m o s se r sexos opostos. Q u e re m o s se r sexos com p le m e n ta re s, com postos, na m e d id a q u e tem o s d ire ito s iguais.
E, com isso, ju n to s, c o n stru irm o s u m a so c ie d a d e m ais d e m o ­
crática, sem violência e justa.
MULHERES'. UM A V ID A DE LUTAS E CO NQ UISTAS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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das mulheres. M u lh eres, H istória e F em inism o, 1996.
DIAS, M aria Berenice. Uma ]ustiça feminina? Boletim NEG U EM
N ° 1 8 - a n o 10 -2002.
PU G A , V era Lúcia. Boletim N E G U E M N ° 18 - an o 10 - 2002.
VA CCARI, V era Lucia. Projeto cidadania e gênero: superando a
violência contra a mulher. Boletim N E G U E M N ° 18 - a n o 10 2002 .
VA SCO N C ELLO S, Eliane Leitão. A mulher na língua do povo.
Belo H o rizo n te: Itatiaia, 1988.
163
REGIME DE BENS N O CA SA M EN TO
À LUZ D O N O V O C Ó D IG O CIVIL
Maria Bernadeth G on çalves da Cunha
Consa. Federal da O A B/B A
Membro efetivo da C N M Á /O A B /C F
Presidente do IB D F Á M /B A
C o m a in tro d u ç ã o d a Lei 6 .515/77 n o o r d e n a m e n to ju ríd i­
co brasileiro, a c h a m a d a Lei d o D ivórcio, a sistem ática d o re ­
g im e d e b en s n o ca sa m e n to s o freu a lg u m a s m u d a n ç a s . A ntes
v ig o ra v a o reg im e d a c o m u n h ã o u n iv ersa l d e b e n s, q u e era o
legal, caso o u tro n ã o fosse escolhido p e lo s n u b e n te s.
D e n o m in a -se regim e legal, a q u e le im p o s to pela lei. Será
c o n v e n c io n a l o u c o n tra tu a l, e n tre ta n to , q u a n d o e s tip u la d o
p e la s p a rte s p o r m eio d e p acto a n te n u p c ial, q u e d e v e rá ser
feito e x c lu siv a m e n te p o r escritura pública, sob p e n a d e su rtir
n e n h u m efeito, sendo, p o rta n to , n u lo d e p le n o direito.
N o C ó d ig o C ivil a n terio r, p re c isa m e n te n o d isp o s to n o art.
258, ca p u t, c o m a red a ç ã o d o art. 50 d a Lei 6.515/77, ficou
e x p re s s a m e n te estabelecido q u e o regim e legal e ra o d a co­
m u n h ã o p arcial d e bens. Já os incisos d o p a rá g ra fo ún ico do
citad o a rtig o d isc o rria m sobre os casos d e o b rig a to rie d a d e da
se p a ra ç ã o d e b en s n o casam ento.
C om o advento d a Lei n" 10.406, d e 10 d e janeiro d e 2002, novo
164
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
C ódigo Civil brasileiro, em vigor, o regime de bens no casam ento
sofreu n o v a s m u d a n ç a s, consoante se d e m o n s tra rá adiante.
O regim e d a c om unhão parcial d e bens continua a ser o regi­
m e legal, conform e disposto no art. 1.640, que assim se expressa:
"Art. 2.640 - Não havendo convenção, ou sendo nula
ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônju­
ges,
0
regime da comunhão parcial".
A ssim , p o d e m as pessoas, an te s d o casam en to , e stipular,
liv re m e n te, d e n tre os q u a tro regim es a d m itid o s p e lo D ireito
p átrio, o q u e m e lh o r lhes a p ro u v e r, re s p e ita d a s , e n tre ta n to ,
as disposições legais c o n stantes d o art. 1.640.
U m a d a s n o v id a d e s tra z id a s com o n o v o C ó d ig o é a que
p e rm ite q u e o reg im e d e bens seja m o d ific a d o a p ó s o casa­
m e n to , o q u e era e x p re ssa m e n te p ro ib id o n o C ó d ig o anterior.
C o m efeito, d isp õ e o n o v o C ó d ig o (§ 2“, art. 1.639) q u e "é
a d m is s ív e l alteração do regime de hens, m e d ia n te a u to r iz a ­
ção ju d ic ia l em pedido m o tiv a d o de a m b o s os cônjuges, a p u ­
rada a procedência das razões in vo c a d a s e re ssa lv a d o s direi­
to s de terceiros".
É d e observ ar-se q u e a m u d a n ç a d o reg im e só é a d m itid a
em p e d id o m otivado ao m ag istra d o , te n ta n d o a lei com essa
p ro v id ê n c ia p re s e rv a r a e stab ilid ad e d a fam ília ta m b é m no
p la n o p a trim o n ia l, assim com o a seg u ra n ç a d a s e v e n tu a is r e ­
lações tra v a d a s c om terceiros.
O re g im e d e b e n s com eça a v ig o ra r d e s d e a d a ta d a cele­
b raç ã o d o casam ento. Pelo C ó d ig o atu al, os n u b e n te s p o d e m
o p ta r p o r u m d o s q u a tro regim es p o sto s à su a escolha, o u seja,
o d a c o m u n h ã o parcial, q u e c o n tin u a se n d o o re g im e legal, o
d a c o m u n h ã o u niversal, o d a p a rticip a ç ão final d o s a q ü e sto s
e o d a se p a ra ç ã o d e bens. N ã o h a v e n d o p a c to a n te n u p c ia l ou
REGIME DE BENS NO CASAM ENTO À LU Z DO NO VO C Ó DIG O CIVIL
165
o b rig a to rie d a d e d o reg im e d e se p ara ç ão d e b e n s, p re v a le c e ­
rá, assim , o reg im e d a c o m u n h ã o parcial.
D eve-se a in d a p o n d e ra r sobre a p o s s ib ilid a d e d e m o d ifi­
cação d o reg im e d e b e n s p a ra as p e sso a s c a sa d a s sob a é gide
d o C ó d ig o a n te rio r, p o rq u e a priori e sta m u d a n ç a e sta ria v e ­
d a d a e m raz ã o d o p rin c íp io d a irre tro a tiv id a d e d a lei.
N ã o é ju sto , e n tre ta n to , q u e as p e ssoas c a sa d a s n a vigência
d o C ó d ig o a n te rio r fiquem to lh id a s d e exercer o d ire ito d e
m u d a r o re g im e se o s e u c a sa m e n to c o n tin u a e m v ig o r, razão
p o r q u e e n te n d e m o s q u e esse d ireito lhes a ssiste tan to q u a n to
às p e sso a s c a sa d a s a p ó s a vigência d o n o v o C ódigo. Este, e n ­
tre ta n to , é a s s u n to p o lêm ico e p o r isso m e s m o d e m a n d a r á
a c irra d a s discu ssõ es d a d o u trin a e d ecisões d iv e rg e n te s d a
ju ris p ru d ê n c ia , crem os.
O bserva-se, e m b o a h o ra, a a c ertad a exclusão d o regim e
dotal. N e sse regim e, era essencial a d escrição d o s b e n s, assim
com o s u a av aliação in d iv id u a l n a p ró p ria e scritu ra e a d ecla­
ração e x p re ssa d e q u e o d o ta l era o reg im e escolhido.
O
C ó d ig o a n te rio r d e d ic a v a n a d a m e n o s q u e trin ta e q u a ­
tro artig o s à q u e le regim e, q u e n u n c a teve a m e n o r aceitação
en tre nós, d a í p o r q u e c om m u ita p r o p rie d a d e ele foi abolido
p e lo C ó d ig o atual.
É im p o r ta n te a s sin a la r q u e o n o v o C ó d ig o C ivil, a e x e m ­
p lo d o a n te rio r, lista os casos d e o b r ig a to rie d a d e d a s e p a r a ­
ção d e b e n s , n o art. 1.641, incisos I a III, v a le n d o d e s ta c a r a
in o v a ç ã o d a id a d e d o s n u b e n te s p a ra esses casos, q u e ficou
u n ifo r m iz a d a e m 60 (sessenta) a n o s, ta n to p a r a o h o m e m ,
q u a n to p a ra a m u lh e r.
C o n q u a n to se p o ssa e n te n d e r q u e h o u v e u m a v a n ço c om a
m ajo raç ã o d a i d a d e d a m u lh e r, d e 50 p a ra 60 anos, constituise, a in d a , n u m a tra so a idéia d e fixar-se id a d e lim ite p a ra ca-
166
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
sarn en to com s e p ara ç ão d e b e n s d e p e sso a s m aio res e cap azes
n o u so e g o z o d e seus direitos civis e políticos.
A dm itiu-se com o com preensível que e m 1916 tais lim itações
existissem , p o rq u a n to a qu a lid a d e d e v id a era d iferente e as
p e ssoas envelheciam precocem ente, p o d e n d o considerar-se se­
nil aos 60 (sessenta) anos, o q ue não é o caso d o s tem p o s atuais.
Portanto, esse " c u id a d o " exagerado d a lei n ã o se justifica.
A s pessoas capazes com m ais d e 60 (sessenta) a n o s sa b em e
p o d e m escolher o regim e d e b e n s q u e lhes a p ro u v e r, n ã o n e ­
cessitando d e sta a b su rd a lim itação im posta p elo n o v o C ódigo.
Feitas essas considerações iniciais, vejam os, a g o ra , as sin ­
g u la rid a d e s d e ca d a regim e.
REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL DE BENS
N e sse tip o d e regim e, os b en s q u e ca d a u m d o s cônjuges
a d q u irir a n te s d o m atrim ô n io , assim c om o a q u e le s q u e forem
d o a d o s o u h e rd a d o s , e starão excluídos d a c o m u n h ã o , salvo
se a d o a ç ã o o u h e ra n ç a for c o n ced id a e m fav o r d e am bos.
Frise-se, p o r o p o rtu n o , q u e os b en s a d q u irid o s n a c o n s tâ n ­
cia d o ca sa m e n to , a título o n ero so o u p o r fato e v e n tu a l, afora
aq u e le s casos acim a citados, com unicam -se, o u seja, p e rte n ­
cem ao casal. Estes b en s e n tra m n a c o m u n h ã o m e s m o q u e te ­
n h a m sid o a d q u irid o s e m n o m e d e u m só d o s cônjuges.
N e ssa e spécie d e regim e, a ad m in istraç ã o d o s b e n s co m u n s
c o m p e te a q u a lq u e r d o s cônjuges, d ife ren te m e n te d o e sta tu íd o
n o C ó d ig o a n te rio r e m q u e se o b serv av a a p rese n ç a m ais forte
d a s o c ie d a d e patriarcalista.
O s b e n s c o m u n s r e s p o n d e m pe la s obrigações c o n tra íd a s
p e lo m a rid o o u p e la m u lh e r p a ra a te n d im e n to a en c arg o s d a
fam ília, às d e s p e s a s d e a d m in istraç ã o e às d e c o rre n te s d e im ­
p o siç ã o legal.
REGIME DE BENS NO CASAM ENTO Â LU Z DO NO VO C Ó DIG O CIVIL
A a d m in istra ç ã o e a disposição d o s b e n s c o n stitu tiv o s d o
p a trim ô n io p a rtic u la r co m p e te m ao p ro p rie tá rio , salvo se h o u ­
v e r co n v e n çã o d iv ersa em pacto anten u p cial.
A s d ív id a s c o n tra íd a s p o r q u a lq u e r d o s cônjuges n a a d m i­
n istra ç ã o d o s se u s b e n s p a rticu la re s, e e m benefício destes,
n ã o o b rig a m os b e n s com uns.
REGIME DA COMUNHÃO UNIVERSAL DE BENS.
C o n siste n a im e d iata c o m unicação d e to d o s o s b e n s p re ­
s e n te s e fu tu ro s, assim com o d a s d ív id a s p a ssiv a s, o b s e rv a ­
d a s as exceções ex p ressas na legislação vigente.
E scolhido este regim e, os cônjuges têm consciência d e q u e
n in g u é m é titu la r d e u m a cota p ró p ria d e q u e p o ssa g o z a r e
d isp o r, m a s a m b o s titu la re s d o todo. P o r isso, m e s m o oco r­
re n d o a d isso lu ç ão d a so ciedade ou d o v ín cu lo conjugal, p o r
m o rte d e u m d o s cônjuges, tran sm ite-se a o s h e rd e iro s a p e n a s
o p e rc e n tu a l q u e lh e toca d a m eação d o “àe cu]us", p o rq u e a
o u tra m e ta d e , e m ais u m a parcela da h eran ça, p e rte n c e ao côn­
ju g e su p érstite.
S e n d o este c o n sid e ra d o u m regim e convencional, p a ra q u e
prevaleça necessário torna-se q u e os n u b e n te s celebrem o pacto
a n te n u p c ia l, sob p e n a d e n u lid a d e o u ineficácia.
O C ó d ig o C ivil b ra s ile iro , n o e n ta n to , e s ta b e le c e q u a is
s ã o o s b e n s e x c lu íd o s d a c o m u n h ã o , q u e e s tã o e n u m e r a d o s
e x a u s tiv a m e n te n o s in ciso s I a V d o art. 1.668, q u e d e s ta c a ­
m o s a se g u ir:
"Art. 1.668. São excluídos da comunhão:
I - os bens doados ou herdados com a cláusula de
incomunicabilidade e os sub-rogados em seu lugar;
II - os bens gravados defideicomisso e o direito do her-
167
168
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
deiro fideicomissário, antes de realizada a condição
suspensiva;
III - as dívidas anteriores ao casamento, salvo se provi­
erem de despesas com seus aprestos ou reverterem em
proveito comum;
I V - as doações antenupciais feitas por um dos cônju­
ges ao outro com a cláusula de incomunicabilidade;
V - o s bens referidos nos incisos V a VII do art. 1.659.''
REGIME DA SEPARAÇÃO DE BENS
A característica desse reg im e cinge-se ao fato d e c a d a cô n ­
juge c o n se rv a r o q u e é seu p a ra si, o u seja, os b e n s p e rte n c e n ­
tes a ca d a cônjuge, q u e r os a d q u irid o s a n te s d o casam en to ,
q u e r os a q ü e sto s, são incom unicáveis.
E s tip u la d a a se p ara ç ão d e bens, estes p e rm a n e c e rã o sob a
a d m in istra ç ã o exclusiva d e cada u m d o s cônjuges, q u e os p o ­
d e rá a lien ar liv re m e n te o u gravá-los d e ô n u s real.
Este reg im e tan to p o d e ser convencional q u a n to legal. Será
legal q u a n d o h o u v e r im posição d a observância aos casos p r e s ­
critos n o art. 1.641, incisos I a III.
E m a lg u n s casos, esta exigência tem c a rá ter p u n itiv o , em
o u tro s, a b s u rd a m e n te , co m o p ré-d ito , fu nciona c o m o m e d id a
a c a u te la d o ra d e interesses particulares.
N e ste tip o d e regim e, se convencional, p re v a le ce rá a co­
m u n h ã o d o s b e n s a d q u irid o s n a constância d o ca sa m e n to , se
n ã o h o u v e r c láusula expressa n o respectivo c o n tra to d is p o n ­
d o d e m o d o diverso.
Percebe-se, assim , q u e a c o m unicação d o s a q ü e sto s só é
p r e s u m id a n o s casos d e silêncio d o contrato, n u n c a , p o ré m ,
n o s casos d e im posição legal.
REGIM E DE BENS NO CASAM ENTO À LUZ DO N O VO C Ó DIG O CIVIL
O s cônjuges são o b rig a d o s a c o n trib u ir p r o p o rc io n a lm e n te
ao s r e n d im e n to s d e seu tra b a lh o e d e s e u s b e n s , p a r a as d e s ­
p e s a s d o casal, se d e m a n e ira d iv e rs a n ã o tiv e r s id o c o n v e n ­
c io n a d o .
REGIME DA PARTICIPAÇÃO FINAL DOS AQÜESTOS.
Este re g im e é a g ra n d e n o v id a d e e su b stitu i e m b o a h o ra o
re g im e do tal, q ue, com o dito, jam ais v in g o u e n tre nós. A ssim ,
n ã o h á c o rre s p o n d e n te n o C ó d ig o anterior.
P o r este regim e, to d o s os b e n s q u e p e rte n c ia m a ca d a côn­
ju g e ao casar, assim com o a q u e le s p o r c ad a u m d e le s a d q u iri­
d o s, a q u a lq u e r título, n a constância d o c a sa m e n to , in te g ra m
o p a trim ô n io p ró p rio d e c ad a um .
O s b e n s p ró p rio s d e c a d a u m são d e s u a exclusiva a d m i­
nistração, n ã o se a d m itin d o n e n h u m a ingerência d o o utro, nem
m e s m o p a ra aliená-los, se forem m óveis.
O s b e n s im óveis são d e p ro p rie d a d e d o cô n ju g e cujo n o m e
c o n s ta r d o resp e c tiv o registro, e n tre ta n to , a titu la rid a d e p o ­
d e rá se r p e lo o u tro im p u g n a d a . É im p o rta n te a ssin a la r que
ne ste reg im e o d ireito à m eação é irrenunciável, im p e n h o ráv e l,
e não-cessível.
Caso sobrevier a dissolução da sociedade conjugal, os aqüestos
serão a p u rad o s, excluindo-se, evidentem ente, d o m onte, os bens
próprios, sejam eles an te rio re s o u n ã o a o c a sa m e n to , a d q u ir i­
d o s p o r su b -ro g ação , lib eralid ad e ou sucessão. A s d ív id a s re ­
lativas a esses b e n s ta m b é m serão excluídas, n a tu ra lm e n te .
Vale ressaltar a in d a q u e se u m d o s cônjuges fizer alg u m a
alienação d o s aqüestos sem a im prescindível au to riza ç ã o do
o utro , os valores serão a p u ra d o s p a ra p a rtilh a o u reivindicação
pelo cônjuge o u h erd eiro p rejudicado na época d a dissolução.
170
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
E n tre ta n to , se os b e n s forem a d q u irid o s p o r a m b o s, ca d a
u m terá su a cota n o condom ínio o u no crédito p o r aquele m o d o
estabelecido.
A s d ív id a s s u p e rv e n ie n te s à m eação são d a o brigação d e
q u e m as c o n tra iu , se e m benefício p ró p rio .
Essas são as p rin c ip ais n o v id a d e s a p re s e n ta d a s p e lo nov o
C ó d ig o C ivil n o tocan te ao reg im e d e b e n s, q u e n a n o ssa ótica
a fig u ram -se relevantes, p e rtin en te s e a d e q u a d a s a o m o m e n to
h istórico e m q u e vivem os.
171
MULHER DE HOJE
Maria R egina Purri Arraes
Advogada, Membro da Comissão Nacional da M ulher
Advogada do Conselho Federal da O A B ; Fundadora da
Comissão Permanente da M ulher Advogada - OAB/RJ ;
Fundadora do Colégio Brasileiro das Mulheres Advogadas.
É inegável q u e as m u lh e res se p re p a ra ra m p a ra e starem hoje
o c u p a n d o os p o sto s q u e v êm alcançando. N a v e rd a d e , e m ter­
m o s profissionais e intelectuais não existem m ais lim itações para
o sexo fem inino. N o entanto, sob o aspecto político a situação
se m odifica, pois a inda estam os e n g a tin h a n d o n o q u e d iz res­
peito à m aleabilidade, estratégias d e ação e visão clara d o s m ei­
os utilizáveis p a ra a ocupação d o e spaço político.
P o r isso, a p articip a ç ão d a s m u lh e re s é m a io r e m a is visível
n o e sp aço p úblico, o n d e o sistem a c o n stitu c io n a l d e c o n c u r­
sos p a ra os c argos n ã o p e rm ite a escolha sob o critério d a p o ­
lítica, m a s sim d a co m petência, fu n c io n a n d o a e q u ivalência
salarial d a q u e le s cargos com o m ais u m e stím u lo às m u lh e re s
q u e in g re ssa m n a s carreiras públicas.
O Ju diciário te m se n tid o o efeito de sta rea lid a d e . O s ú lti­
m o s c o n c u rso s p a ra M a g istra tu ra , M in istério P úblico, P ro c u ­
ra d o ria s etc. m o stra m u m a m aio ria fem in in a a p ro v a d a , q u ase
s e m p re n o s p rim e iro s lugares.
172
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
N o s T rib u n a is S u p e rio re s so m e n te n o s ú ltim o s a n o s c o n ­
s e g u im o s fazer c h e g ar a lg u m a s M inistras, q u e m u ito a n te s de
o serem , e ra m já c o n sid erad as, todas, co m o b rilh a n te s ju ris­
tas. N o e n ta n to foi necessário u m im en so esforço e tra b a lh o
político p a ra q u e elas alcançassem as nom eações, fru to d e p e r ­
m a n e n te conscientização d a n e c essid ad e d e a d o ç ã o d a s e s tra ­
tégias d a ig u a ld a d e , pelo p o d e r público. A p ro p ó sito , existe
p r o je to d e e m e n d a c o n s titu c io n a l d e a u to r ia d o S e n a d o r
Sev erin o C a v a lca n te d e te rm in a n d o a in serção d o critério de
a lte rn â n c ia o b rig a tó ria d e sexos p a ra as n o m ea ç õ e s d o s f u tu ­
ros M in istro s d o s T rib u n a is S uperiores, p re rro g a tiv a hoje ex­
clusiva d o P re sid e n te d a República.
D e n tro d a OAB, a p e s a r d e n ã o h a v e r u m a d e c la ra d a discri­
m inação, o n ú m e ro d e m u lh e res e m cargos d e d e sta q u e é m uito
p e q u e n o . Som os, as a d v o g a d a s , m e ta d e d o s inscritos n a O r ­
d e m e, p o rta n to , resp o n sá v e is p e la m e ta d e d o o rç a m e n to d a
Instituição. N o e n ta n to a particip ação fem in in a n o s c argos d e
C o n se lh eiras F ederais o u Seccionais, D ireto ras etc. n ã o a tin g e
15% d o total. À evidência, a discrim in ação v e la d a te m to rn a ­
d o m u ito m ais difícil a su p e ra ç ã o d a q u estão , p o s to n ã o h a v e ­
re m oposições claras e p o rta n to francam ente com batíveis, p e r­
p e tu a n d o o ciclo vicioso.
D e toda sorte, as m ulheres conheceram u m a g ra n d e evolução
n as últim as d écadas que, apesar d e m uito desejada, trouxe tam ­
b é m aspectos negativos e antes desconhecidos p ara todos nós.
A s c o n seq ü ê n c ias d e sta ev o lu ção p e rm a n e n te são, e n tre
o u tras, o e n o rm e n ú m e ro d e m u lh e res vítim as d e infarto, stress
etCv a lé m d e u m a d im in u iç ã o d a q u a lid a d e d a v id a fam iliar.
C o m o to d a rev o lu ç ã o p r e s s u p õ e lu ta e a d a p ta ç ã o ao s n o v o s
tem p o s, ta m b é m a nossa, fem inina, tem n o s c o b ra d o u m p r e ­
ço significativo.
ÉTICA E PROFISSÃO
N o e n ta n to , é im p e n sá v el q u a lq u e r retro cesso p o r q u e n ó s
n o s a c o s tu m a m o s a to m a r decisões in d e p e n d e n te s , e os h o ­
m e n s - p o r u m a recusa sistem ática d e a p r e n d e r co m o lid a r
com essa n o v a m u lh e r - estão a m e d ro n ta d o s e a m e a ç a d o s com
u m a re a lid a d e p a ra a q u a l n ã o se p re p a ra ra m . N o s resta, às
m u lh e res, c a m in h a r e ir a b rin d o p o rta s e janelas q u e p e r m i­
ta m ao o u tro a v isã o d o n o v o ca m in h o q u e se abre.
É v e rd a d e q u e a s u b je tiv id a d e fem in in a tem tid o u m a rele­
v ância p rim o rd ia l nestes ú ltim o s anos. A ssim , o o lh a r fem in i­
n o sobre os fatos c o n d u z a u m raciocínio (e, m u ita s vezes, a
u m a decisão) o p o s to à quele to m a d o se a n a lis a d o sob o p r is ­
m a m asculino.
M as afinal n ã o som os, h o m e n s e m u lh e re s , tã o d ife ren te s
assim . B uscam os am bos, m e parece, a felicidade, a in d a q u e
ela te n h a conotações d iferentes p a ra u n s e o u tras.
A g r a n d e tarefa, q u a n d o já tem o s u m a legislação ig u a litá ­
ria é, sem d ú v id a , tira r d o p a p e l esses n o v o s d ire ito s e colocálos n o d ia-a -d ia d a s m u lh e re s p a ra exercê-los, e, n o d ia-a-d ia
d o s h o m e n s p a ra respeitá-los.
U m a d a s iniciativas d e co ncretizar esses d ire ito s acim a re ­
feridos, foi o p rojeto d e lei d a e n tã o v e re a d o ra , a m é d ic a A na
Lipke, n a c id a d e d o Rio d e Janeiro, q u e o b rig o u o s s e rv id o re s
p ú b lic o s a in fo rm a r às m u lh e re s v ítim a s d a v iolência d o e s tu ­
p r o d e q u e elas têm d ireito d e fazer a b o rto legal e gratuito.
O ra, a q u e stã o está tipificada n o código p e n a l - o a b o rto legal
- d e s d e 1940. O p rojeto alcançou g ra n d e re p e rc u ss ã o d e n tro
d a p r ó p ria C â m a ra d e V e re ad o re s e n a s o c ie d a d e e m geral,
m e re c e n d o a tenção especial d a m íd ia e c o m b a te f e rre n h o d o s
setores religiosos a té ser fin alm en te a p ro v a d o ; p o ré m , a in d a
hoje, e n c o n tra resistência em su a aplicação.
C onstata-se, então, q u e é preciso tra z e r à lu m e a q u e stã o
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
d a h ip o crisia e a d u b ie d a d e q u e ela gera. C o m o é afinal? Exis­
te a lei h á m ais d e 60 an o s e n ã o se p o d e in fo rm a r à p o p u la ç ã o
so b re os d ire ito s q u e ela lhe confere? Q u e ética é essa que
p ro m u lg a u m a lei m a s tenta im p e d ir q u e se d ig a d a s u a exis­
tência? A resp o sta im e d iata é a form a d e fazer política p r a ti­
c a d a p e lo s h o m e n s , e n q u a n to gênero, b e m d ife re n te d o sen so
c o m u m d a s m u lh e res.
N e sse aspecto, ético, parece-m e q u e as m u lh e re s são m ais
p o sic io n a d as, fu n c io n a n d o c o m o p ê n d u lo s à b u sc a d o eq u ilí­
b rio , com tra n s p a rê n c ia e firm eza, n u m jogo e m q u e m u ita s
v e z es são v e n c id a s p o r terem e xplicitado c la ra m e n te s e u s o b ­
jetivos finais, c o m p ro m isso c o n d u to r d e s u a atuação.
A diferença foi explicada pelo conhecido Joosteen G a a rd n er’,
q u a n d o assinalou q u e "os h o m en s estão p re o c u p a d o s com a
p ró p ria carreira e as m ulheres e m d e sem p e n h a r-se b e m d as ta ­
refas q u e escolheram " - leia-se, am bição v e rsu s dedicação.
Q u a n to à a d a p ta ç ã o d o h o m e m à n o v a rea lid a d e , o s m o v i­
m e n to s n eo -fe m in ista s se e n c a m in h a m ag o ra p a ra u m a s o lu ­
çã o q u e p a re c e m u ito lógica, sensível e realizável.
A esse respeito, recen tem en te, o p sican alista José R enato
A v z a ra d e l fez p u b lic a r a rtig o e m q u e afirm a: " sã o p o u c o s os
h o m e n s q u e se p e rm ite m c a m in h a r pela se n sib ilid a d e, sem
ter m e d o d e q u e isso p o ssa se r visto co m o e x p re ssã o d e h o ­
m o ss e x u a lid a d e " . P e n a que, n a seqüência d e s e u raciocínio,
e rro n e a m e n te , te n h a a c u sa d o as m u lh e re s e m a n c ip a d a s d e
h a v e re m " e m p u r r a d o " o h o m e m p a ra a situação crítica em
q u e s e e n c o n t r a m , c o n c l u i n d o p e la n e c e s s i d a d e d e se
a u to p e rm itire m - os h o m e n s ~ "a revelação d o u n iv erso afetivo
m asc u lin o ".
'Jo oste e n G aardner, sociólogo e e scritor nõrdico, autor de “A E scolha d e Sofia",
sucesso m undial da literatura m oderna.
ÉTICA E PROFISSÃO
T ra b a lh a m o s m u ito , n o s ú ltim o s anos, p a ra o b ter a n o ssa
in d e p e n d ê n c ia e com eçam os já a colher os f ru to s d e ste tra b a ­
lho, a in d a q u e p e rsista m e sp in h o s e asperezas. P o r isso, a g o ­
ra, c o n c o rd o q u e os n o sso s esforços d e v e rã o ser p a rc ia lm e n te
d irig id o s p a ra conscientizar e capacitar os h o m e n s a c o n v iv e ­
re m e u s u fru íre m o p r a z e r d e p a rtilh a r a c o m p a n h ia d e m u ­
lh ere s q u e n ã o são su a s d e p e n d e n te s , q u e n ã o são su b m issas
a eles. M u lh e re s q u e além d e c o m p a n h e ira s p o s s a m se r p a r ­
ceiras c o m p e te n te s n a c o n stru ç ão d a n o v a so c ie d a d e q u e se
deseja. M u lh e re s q u e livres p a ra v o a r e sco lh a m o n in h o com o
h a b ita t e o p a rc e iro c o m o c oa d ju v a n te n a p o n te e n tre a luta e
o so n h o , o m asc u lin o e o fem inino, enfim , m u lh e re s re a liz a ­
d a s e com p r a z e r d e te re m n a sc id o m ulheres.
A final o m u n d o p a s so u tan to s séculos se o rie n ta n d o pela
ótica m asc u lin a e os re su lta d o s foram c o n h e c id a m e n te d e s a s ­
trosos: g u e rra s , d is p u ta s d e p o d e r, de stru iç ã o , g an ân cia, d r o ­
gas, violências, u rg in d o refletir sobre u m a m u d a n ç a m ais p r o ­
fu n d a e a b ra n g e n te , q u e inclua e valorize o fazer fem inino,
com os benefícios q u e ele p o ssa tra z e r à sociedade.
N ã o re s ta m d ú v id a s q u e a p a la v ra ch a v e p a ra este no v o
m ilê n io seja PARCERIA, aí in cluído o resp e ito às diferenças e
à solidariedade.^
^ Interferência proferida no S em inário "Mulher. Direito e S o ciedade” prom ovido pelo
C o n sulado dos Estados Unidos, em parceria com a U niversidade E stadual do Es­
tado do Rio de Janeiro, por ocasião da visita de m agistradas a m e ricanas (atualiza­
do em 2003).
177
ÉTICA E PROFISSÃO
R osangela Maria Carvalho Viana
Conselheira Federal da OAB}CE
Membro da Comissão Nacional da M ulher Advogada
Karinne M atos de Lima e M elo
Presidente da O A B M ulher/CE
1. A ética
A Ética te m in eg áv el influência em n o ssas v id as, seja pela
história p esso al d e c ad a in d iv íd u o , seja pela escala subjetiva
d e ax io m as in eren tes à ín d o le d e c a d a u m d e nós. V alores es­
tes a rra ig a d o s e m n o sso c o tidiano q u e se rã o le v a d o s a o agir
in d iv id u a l, d e lin e a n d o de sta feita s u a c o n d u ta profissional.
T ra ta r d a p re m issa ética é d ra m a d e in eg áv el d ific u ld a d e já
q u e p e n e tra m o s , ta m b é m , n o s m e a n d ro s d o su bjetivism o, in ­
d iv id u a lism o , d a felicidade p e rs e g u id a p o r c a d a u m d e nós,
p o is está rela c io n a d a com a m oral in d iv id u a l. B uscar u m c o m ­
p o r ta m e n to ético m u ita s vezes q u e r d iz e r a b u sc a e m b a s a d a
em d ire triz e s d e u m c o m p o rta m e n to c o n d iz e n te com os id e ­
ais d e u m a so c ie d a d e livre, ju sta e igualitária.
2. A ética e a profissão
U m d o s p a ra d ig m a s d a ética, e aqui v im o s tra tar, p o is acre­
d ita m o s ser d e vital im p o rtâ n c ia p a ra a s o c ie d a d e co m o u m
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CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
tod o , é d o c o m p o rta m e n to ético d o profissional e m to d o s os
d o m ister q u e a b ra ç o u o u q u e p re te n d e abraçar.
P ortar-se d e m a n e ira salutar, q u e r d izer, p o rta r-se d e n tro
d e p a d rõ e s valorativos, m orais, b u s c a n d o a in d a u m a reflexão
lógica e o rie n ta d o ra d a c o n d u ta profissional. T o rn a-se f u n d a ­
m e n ta l a a b o rd a g e m d e ste tem a, p o is hoje m ais d o q u e outro ra h á u m a d e stin a çã o pública d a s p rofissões, u m a v e z q u e se
d irig e m à c o le tiv id a d e d e v e n d o ser re sp e ita d a s e c u ltiv ad a s
n o seio d e to d a s as profissões.
O h o m e m e m p ó s-a c irra d a b a ta lh a p a ra s en tar-se n o s b a n ­
cos d a u n iv e rs id a d e e d e p o is d e u m a rcabouço d e q u a tro , cin­
co, seis an o s d e b u sc a p e lo c o n h ecim en to específico e técnico
d e ca d a a tiv id a d e já chega lá com conceitos e n ra iz a d o s e q u e
os im p rim irá e o g u ia rá e m seu m iste r profissional. C aso em
se u â m a g o d e sta q u e m -se valores co m o h o n e s tid a d e , fid e lid a ­
de, paciência, tolerância, resp eito e h u m ild a d e , ele ta m b é m
tra n s m itirá a o u tre m a su a experiência co m o in d iv íd u o , fa­
z e n d o p rev a le ce r a ética e m seu cotid ian o profissional.
P o d e m o s d e sta c a r com o g rav e e quívoco a n ã o -a b o rd a g e m
d a d isciplina ÉTICA PROFISSIONAL co m o m até ria d e en si­
n o o b rig a tó rio n a s u n iv e rsid a d e s, p o is os pro fissio n ais m ais
d o q u e n u n c a s o m e n te estã o v is a n d o a o e n g ra n d e c im e n to
m o n etá rio , m ercantilista; n o en tan to , o g ra u d e satisfação q u e
o g a n h o m ate ria l n o s oferece está lim ita d a as n o s s a s fa c u ld a ­
d e s intelectuais, e o im p o rta n te é q u e n ó s sejam os seres h u ­
m a n o s m ais a p rim o ra d o s e nossos atos p o ssam c o n trib u ir p a ra
o b e m -e s ta r d a sociedade. Q u a n to m ais n o s d e d ic a rm o s ao
p ró x im o e rec o n h e c e rm o s as n o ssas fraquezas, m ais ética será
a n o ssa c o n d u ta , n ã o e s q u ec e n d o q u e to d o a rc a b o u ç o d e co­
n h e c im e n to s a d q u ir id o s d u r a n t e a v id a in te ira te r ã o i m p o r ­
tâ n c ia e v a li d a d e q u a n d o a lia d o s a o c o n h e c im e n to e p r á t i ­
ÉTICA E PROFISSÃO
ca d a c o n d u t a é tic a , p o is h o je as p r o f is s õ e s tê m c a r á te r
p u b lic iz a n te e d e v e m c o n tr ib u ir ta m b é m p a r a o e n g ra n d e c im e n to m o ra l d a s o c ie d a d e , f a z e n d o a s s im c re sc e r o ser
h u m a n o d e n tr o d e u m c o n ju n to d e r e g r a s q u e r e g e m u m a
c o m u n id a d e .
Esse c a rá ter p u b lic iza n te d a s p ro fissõ es se explica p e la im ­
p o rtâ n c ia d o tra b a lh o p o r elas re a liz a d o e p e la consciência
d a q u e le s q u e necessitam d estes serviços p rofissionais, já q u e
à m e d id a q u e o E stado h o d ie rn o v e m e n v e re d a n d o esforços
n o s e n tid o d e d e m o c ra tiz a r a su a fin a lid a d e social p a s sa n d o ,
p o r c o n seg u in te, a fornecer serviços b ásicos e in d isp e n sá v e is
à b u sc a incessante pela Justiça e p e la o rd e m social.
É n e cessário e p o rq u e n ã o d iz e r im p re sc in d ív e l o d e v e r d e
p rev a le ce r e n tre o profissional e o cliente u m rela c io n a m en to
d e se rie d a d e , confiança, fid e lid a d e e fra n q u e z a. O ra, cediço
q u e o profissional n ã o é o b rig a d o a d e te r m totum a im e n sid ã o
d e c o n h e cim en to s q u e ro d e ia m su a área p ro fissio n al, e n tre ­
tan to , d e v e conhecer sim seus lim ites, ter p a rc im ô n ia e h o n e s­
tid a d e q u a n d o n ã o p u d e r ou n ã o s o u b e r s o lu c io n a r o p ro b le ­
m a re p a s s a d o p elo seu cliente, d e v e n d o , sem tem o r, d e m o n s ­
tra r su a im p o ssib ilid a d e d e b u s c a r solução a d e q u a d a a difi­
cu ld ad es, d e m o n s tra n d o assim relação obrigacional lógica com
v a lo re s s e m p r e in serto s em q u a lq u e r profissão.
3. A ética e o advogado
C a b e ao a d v o g a d o , aqui e m especial, e assim o C ó d ig o d e
Ética prelecio n a q u e o m e s m o n ã o d e v e p a rtic ip a r d e form a
subjetiva d o s p ro b le m a s afetos aos se u s clientes, d e v e re p a s ­
sa r p a ra o p a p e l, o u m elhor, ela b o ra r a p eça com a c u id a d e ,
d e s ta c a n d o v o c a b u lá rio claro, objetivo, e v ita n d o a ta q u e s p e s ­
soais à p a rte a d v e rs a e ao colega q u e p a tro c in a os interesses
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opostos. É n e cessário o tra ta m e n to ético e n tre to d o s, respeito,
e c o n sid e raç ã o m ú tu o s , sem m e d o d e d e s a g r a d a r o m a g is tra ­
d o o u o re p re s e n ta n te d o M inistério P úblico, b u s c a n d o a a p li­
cação d o D ireito d a m e lh o r form a. A p re sen ta r, q u a n d o n eces­
sário, as fo rm a s d e insatisfação d e n tro d o s rig o re s legais con­
tra a decisão judicial d e form a escorreita e p ru d e n te .
A c re d ito q u e o exercício d a a dvocacia c om b a se n o E s ta tu ­
to, n o q u a l estão re g u la d o s c â n o n es d o b e m p ro c e d e r, ju n ta ­
m e n te com o C ó d ig o d e Ética e a existência d e u m T rib u n a l
que, além d e re g u la m e n ta r co n d u tas, fiscaliza os profissionais,
a p lic a n d o q u a n d o necessário p u n iç õ e s aos faltosos a té com
a d v e rtê n c ia , s u s p e n s ã o e cassação d o reg istro p ro fissio n al,
destaca-se d e form a s a lu ta r p a ra a p u b licização e v alorização
d a q u e le pro fissio n al q u e alia seu c o n h e cim en to técnico e ci­
entífico com a m o ra lid a d e e a h o n e s tid a d e , d e s e m b o c a n d o
in d u b ita v e lm e n te n a v alorização d a p ro fissã o d e a d v o g a d o
d e carreira e a pro te ç ã o d a categoria, m u ita s v ezes a ta c a d a de
fo rm a injusta.
A c re d ita m o s ser in d isp e n sáv e l, p rin c ip a lm e n te n o s te m ­
p o s h o d ie rn o s , a a b o rd a g e m de ste tem a tão p re s e n te e m to ­
d o s o s m o m e n to s d e n o ssas vidas. A s u n iv e rs id a d e s d e v e m
p re o c u p a r-s e e m o fertar condições físicas e in telectuais p a ra
busca n ã o so m en te d o a p re n d iz a d o técnico m as, p rin c ip a lm e n ­
te, b u s c a r a qualificação m o ra l e ética d o s p ro fissio n a is que
in g re ssarã o n o m e rc a d o d e trabalho. N ecessário se faz com o
d isc ip lin a o b rig a tó ria , o a p re n d iz a d o d a ética p ro fissio n a l,
p r in c ip a lm e n te n o tra ta m e n to p ro fissio n a l d o o p e r a d o r d o
d ire ito com o con stitu in te, com o o u tro colega, com o in d iv í­
d u o e c om a p ró p ria sociedade.
IMPRESSÃO:
ÍGHÂ
Mana • RS • Fone/FsK: (55] 222 3050
vwAv.p#H@M eom .br
Com himss hm éckfos.
" a força das mulheres não está nos
músculos, mas no cérebro, na extre­
ma dedicação, na vontade de vencer.
Essas são as armas utilizadas na ver­
dadeira guerra que vêm travando, pela
justa conquista de espaço e pelo reco­
nhecimento de seus méritos por parte
de toda a sociedade."
Rubens Approbate Machado
Presidente Nacional da OAB

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