Que bom te ver viva (1989), de Lúcia Murat Bárbara Framil Que bom
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Que bom te ver viva (1989), de Lúcia Murat Bárbara Framil Que bom
Que bom te ver viva (1989), de Lúcia Murat Bárbara Framil1 Que bom te ver viva, dirigido por Lúcia Murat, é um documentário sobre mulheres que participaram da luta armada contra o regime militar do Brasil e sobreviveram à prisão e às torturas sem perderem a lucidez. A obra mistura elementos ficcionais, guiados pelos monólogos da atriz Irene Ravache, com os testemunhos e o cotidiano das oito mulheres entrevistadas. A proposta do filme parte da ideia de dar voz para as mulheres torturadas no regime militar. Isso se expressa tanto pelo olhar da diretora, que viveu experiências semelhantes às das entrevistadas, quanto pela escolha de priorizar a apresentação das histórias das mulheres pelo testemunho delas próprias. Todas as mulheres, Maria do Carmo Brito, Estrela Bohadana, Maria Luiza Garcia Rosa (Pupi), Rosalinda Santa Cruz (Rosa), Criméia Schimidt de Almeida, Regina Toscano, Jesse Jane e uma sobrevivente que preferiu manter-se anônima, ganham espaço para apresentar a sua versão de seu passado e de seu presente. A própria diretora se coloca no filme mais abertamente por meio da ficção, na qual aborda uma visão mais íntima das experiências de uma sobrevivente. Com o intuito de diferenciar os elementos documentais dos ficcionais, a diretora optou pelo aproveitamento da luz natural nos testemunhos e nas cenas do cotidiano das mulheres sobreviventes e pelo uso de iluminação cinematográfica nos monólogos de Irene Ravache. Também se diferenciam os papeis das mulheres e da personagem fictícia no início do filme: Irene Ravache é introduzida assistindo, em uma televisão, às fitas dos testemunhos que farão parte do documentário, como se no campo da ficção ela atuasse como realizadora da obra, o que a aproxima de um possível alterego da diretora. Nessa cena, sua fala em voz over já indica sua outra função, a de narradora. As mulheres, por sua vez, são apresentadas de forma mais objetiva por telas que resumem seus envolvimentos na luta contra o regime militar, os eventos de suas prisões e suas situações no momento do filme. Assim, elas são colocadas em campos opostos, tanto pela diferenciação da ficção e do documentário, como pela divisão entre “realizadora” e entrevistadas. Apesar disso, essa introdução também aproxima a personagem fictícia das 1 Este estudo faz parte do projeto de pesquisa A história e a memória individual no documentário brasileiro: Um estudo de Que bom te ver viva, Diário de uma busca e Os dias com ele, CNPq, Bolsa PIBIC Edital 2014/2015, sob a orientação do Prof. Dr. Eduardo Victorio Morettin. entrevistadas, já que a caracteriza como alguém que compartilha experiências semelhantes, mas ressalta a individualidade delas, já que ela busca as respostas para os seus dilemas pessoais com o auxílio das vivências específicas das outras. Assim como as outras mulheres, Jessie Jane é apresentada logo no início do filme, com um resumo de seu envolvimento com a luta armada, da ocasião de sua prisão e de sua situação no momento do filme. O uso da narração em voz over com a voz da personagem fictícia aproxima o elemento ficcional do documentário. A narradora se coloca numa posição de observadora das entrevistadas, tentando entender suas trajetórias e suas respostas às experiências da tortura. Essa posição permite que a narradora conduza o pensamento do filme, por meio dos comentários e das reflexões que elabora a partir das palavras e das imagens apresentadas ao espectador. Isso se coloca logo após o início do primeiro testemunho, quando o cotidiano de Maria do Carmo é apresentado. Maria corta legumes em sua cozinha, em um plano próximo de suas mãos. Após um corte, vê-se Maria mais distante, em plano americano. Novo corte, plano geral, a câmera está fora da cozinha, e Maria pode ser vista de corpo inteiro através do portal da porta aberta. Em voz over, a narradora explica “observando do lado de fora, como um voyeur olha pela janela da vizinha, meu olhar é igual ao de todo mundo”. A narração também é utilizada para apresentar informações às quais o espectador não poderia ter acesso de outra maneira. Por exemplo, após Regina falar sobre sua epilepsia, a voz over revela que, durante toda a entrevista, o remédio contra suas convulsões estava ao lado dela. Como já estabelecido, grande parte do filme é constituída pelos testemunhos das oito sobreviventes. Ainda que a obra apresente momentos do cotidiano das mulheres, entrevistas com seus amigos e familiares, e as cenas de ficção, a ênfase está na palavra dessas mulheres, no que elas têm a dizer sobre suas experiências. A importância dada ao testemunho não se observa apenas em Que bom te ver viva, como Fernanda Alves explica: “A prática do testemunho é intensa depois das catástrofes, mais especialmente depois da Segunda Guerra Mundial, num esforço de dar conta das atrocidades praticadas pelo nazismo; e duas décadas mais tarde, na América Latina, o testemunho surge como um gênero que tenta dar conta da exploração sofrida pelas minorias, das torturas realizadas durante as ditaduras.” 2 Nos testemunhos apresentados na obra, as mulheres, com exceção daquela que preferiu manter-se anônima, são retratadas com câmera fixa em um plano próximo de seus rostos centralizados. Essa aproximação permite uma melhor leitura de suas expressões, o que ajuda o espectador a vislumbrar os seus sentimentos e sensações. Quando as entrevistadas não conseguem exprimir o que sentem, em virtude da dificuldade de reconstituir o momento traumático, o prolongamento do silêncio ganha uma força maior do que a das palavras, como quando Regina inicia o seu relato sobre a sua ida para o DOI-CODI, e a sua pausa, expressão e suspiro expressam a dor dessas memórias. Outra particularidade dos testemunhos está na escolha técnica de filmá-los em vídeo, o que, segundo a diretora, “permitiu que se gravassem longos depoimentos, capazes de captar a emoção das entrevistadas, sem a preocupação com o tempo, o que seria impossível com negativo de cinema3, muito mais caro”4. Essas escolhas formais condizem com a abordagem da obra de contar a história pelos olhar daqueles que a viveram. Todos os outros entrevistados, amigos, familiares, colegas de trabalho, etc., são filmados em planos médios ou gerais, um distanciamento maior em relação à câmera que respeita a posição secundária de suas vozes dentro do filme. 2 ALVES, Fernanda Andrade do Nascimento. A morte e a donzela e Que bom te ver viva: O teor testemunhal. Literatura em debate, v. 4, n. 6, 2010. p. 106. 3 Além de ter um preço elevado, uma bobina de filme 35 ou 16 mm tinha em média 10/12 minutos para gravação, o que não permitiria captar na íntegra os longos depoimentos planejados pela diretora. 4 MURAT, Lúcia. Um mergulho corajoso. Rio de Janeiro: 1989. Última Hora. Entrevista concedida a Helena Salem. Maria do Carmo dá o seu testemunho, retratada em plano próximo e no centro da tela. No espaço do documentário, a diretora se coloca por meio da narração (na voz de Irene Ravache), mas se omite no campo da imagem, na sua posição de voyeur. Nas cenas do cotidiano, o uso da luz natural e a montagem clássica com corte seco ocultam o aparato cinematográfico, o que cria uma atmosfera de naturalidade. Nas entrevistas, não se escutam perguntas feitas aos entrevistados e suas falas parecem livres, sem cortes até que eles concluam seus raciocínios. Os entrevistados falam olhando para um ponto atrás da câmera, provavelmente na direção da própria diretora, mas em nenhuma das falas há uma menção direta a ela ou a outra pessoa fora de campo. Em particular nos testemunhos das sobreviventes, a exclusão da diretora transmite a ideia de que as mulheres estão no controle daquilo que compartilham com o filme, realizando suas próprias reflexões pessoais. Apesar da dificuldade de se falar sobre experiências traumáticas, o filme não se aproveita da fragilidade das entrevistadas. Embora haja momentos de maior comoção das mulheres, a diretora não tem a intenção de fazê-las chegar a seus limites. Na época do lançamento, ela declarou: “Quando a emoção das entrevistadas, a voz embargada, as lágrimas, ameaçavam o tom de denúncia do documentário, eu mandava as câmeras pararem, à revelia dos operadores. Eu não pretendia explorar a dor de ninguém, apelar para o lado fácil da coisa.” 5 Na montagem das cenas do espaço do documentário, as transições se dão por cortes secos, por fades e pelo uso de uma tela preta que atravessa o quadro. São poucos os momentos em que há corte de um ponto de um testemunho para outro ponto dele mesmo e, nesses casos, ao invés do usual jump cut, utiliza-se a transição da tela preta que atravessa o quadro. Em geral, alternam-se momentos de testemunhos com cenas do 5 ALMEIDA, Carlos Helí de. O cinema nos anos negros. 1989. cotidiano das mulheres e entrevistas com conhecidos delas, o que ocorre de maneira natural, tanto pelo ritmo construído pela montagem quanto pela narração em voz over que conduz o caminho do filme. A alternância dos testemunhos com as cenas cotidianas é muito importante para uma representação mais justa dessas mulheres. A obra não tem a intenção de mostrá-las apenas como “mulheres torturadas”, não pretende recortar apenas esse pedaço de suas vidas. Ela dá ênfase para a vida que continuou após o trauma, para a sobrevivência, de fato. Sobre isso, Angela Medeiros e Thalita Ramalho dissertam: “Talvez uma das questões que perpassa o filme seja: o que resta desse passado no presente? O fato é que os depoimentos nos mostram que mesmo diante do horror, a vida continua e se expressa por meio da existência cotidiana. Aquilo que menos conhecemos dos tempos de repressão, os detalhes e sentimentos, aparece em primeiro plano no filme de Lúcia Murat; é o plano do trivial, das pessoas comuns, que nos aproxima, e nos identifica, via humanização das personagens envolvidas, com o sentimento do incompreensível.” 6 Embora o campo do presente abra espaço para essa representação do cotidiano de forma mais natural, o passado (e os “fantasmas do passado”, que afligem a personagem de Irene) é retratado com uma atmosfera sombria. Na transição do espaço do documentário para o espaço ficcional, utiliza-se a montagem de fotos em preto e branco que remetem à prisão e à tortura, associadas a uma música que cria uma atmosfera de tensão. Nesses momentos, o recurso de montagem utilizado é peculiar, com a criação da ideia de movimento a partir das imagens still, pontuadas pela música. Por exemplo, em uma das transições, são usadas três fotos de uma bota pisando no chão. Na primeira foto, a bota está no ar, na segunda, está mais próxima do chão e, na terceira, termina de pisar. Em outros momentos dessas transições, também há uso de outros recursos para criar movimento com as imagens still, como quando se trabalha com uma única foto de uma barata. Nesse caso, utiliza-se o zoom out e o desfoque duas vezes e, na terceira vez, a foto gira confusa e rapidamente na tela. O uso de recursos como zoom e giro da tela também pode ser observado na introdução de recortes de jornais e fotos antigas no meio dos testemunhos das sobreviventes. Essa peculiaridade de uma montagem mais explícita, que causa estranhamento e até desconforto, está associada às imagens das memórias do período traumático das mulheres sobreviventes. 6 MEDEIROS, Angela Cordeiro; RAMALHO, Thalita Aragão. Que bom te ver viva – Memória das Mulheres. O Olho da História, n. 14, jun. 2010. Representando os horrores da prisão e da tortura, as fotos em branco e preto ganham movimento na tela. Os recortes de jornais e as fotos antigas são utilizados para contextualizar os testemunhos, mas também são fundamentais como recursos para legitimá-los. No início do filme, nas telas de apresentação das mulheres entrevistadas, há um resumo de seu envolvimento com a oposição ao regime militar. Todavia, antes do início do testemunho de cada uma delas, ocorre uma nova introdução, por meio de recortes de jornais sobre eventos dos quais elas participaram. Durante os testemunhos, outros recortes de jornais e fotos antigas delas mesmas e de amigos ou familiares são introduzidas como ilustração daquilo que elas falam. Esses recursos funcionam como provas da veracidade desses eventos, o que concede uma maior legitimação dos testemunhos das mulheres. Com o auxílio desses recursos, as falas das mulheres se tornam mais reais e palpáveis, de modo a permitir que o público se sinta mais próximo daquilo que elas narram, e que se confira a eles um estatuto de verdade. Quando Rosa conta sobre o impacto que o desaparecimento de seu irmão Fernando teve em sua vida, o uso da foto dele associado à edição cria uma maior carga de emoção para o relato. Em seu testemunho, ela conta sobre o episódio em que acreditou ter visto o irmão na rua e correu para abraçá-lo. Um zoom na foto de Fernando aproxima-se do rosto do rapaz, enquanto, em off, Rosa diz “eu senti o olhar de Fernando, só que ele não me reconhecia”. O zoom continua até a foto tornar-se desfocada, “eu olhei novamente para o rosto dele”. A tela fica preta e, por poucos instantes, uma música prolonga a antecipação. De volta para o plano próximo de Rosa, ela declara, “e não era Fernando”. Enquanto Rosa divide histórias de sua busca por Fernando e a dor de sua ausência, a câmera se aproxima da foto dele até que ela fique desfocada. Em Que bom te ver viva, Lúcia Murat parte do ponto de vista de quem viveu a repressão para compartilhar as experiências de sobrevivência, mesmo que ela não divida o seu próprio testemunho com o público. Pode-se apreender que a importância do testemunho das mulheres dentro do filme advém de um entendimento da diretora sobre o desejo de recuperar a autonomia sobre sua própria história. Logo no início da obra, o espectador é apresentado à situação ficcional da personagem de Irene Ravache, que tem seu relato sobre tortura sexual utilizado por um jornalista sem a sua permissão. Nos relatos das mulheres, um tema comum é a relutância dos outros em ouvir sobre as experiências pessoais delas, mesmo que eles não se importem de se informar sobre a tortura por outros meios - um dos alunos de Rosa chega a dizer que prefere procurar sobre a ditadura nos livros do que perguntar a ela. Em um monólogo, a personagem ficcional se revolta contra a situação e, direcionando sua raiva para o espectador, declara “essa é a minha história e vocês vão ter que me suportar”. Pode-se compreender que essa personagem, na posição de alterego da diretora, representa a situação de uma sobrevivente da repressão que cansa de ser um objeto de estudo e passa a ser o sujeito atuante. Ao negar o olhar imparcial e distanciado, Lúcia Murat procura trabalhar em sua obra o indizível. Ela tenta encontrar a si mesma no filme, responder a seus próprios dilemas, mas privilegia o espaço para as questões das oito mulheres que abrem suas vidas para a obra, tratando-as com o respeito e a sensibilidade de quem compreende suas experiências. Dessa forma, o testemunho é explorado como algo coletivo, mas que parte do indivíduo. Segundo Seligmann-Silva: “A memória, antes de ser individual, é coletiva. No caso específico dos que sofreram sob o terrorismo de Estado, esta coletividade é a daqueles que se opuseram ao Estado de exceção. Mas sabemos também – como vimos com Celan – que é impossível testemunhar pelo outro.” 7 7 SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local do testemunho. Tempo e argumento, v. 2, n. 1, 2010. p. 12. O respeito à vivência das mulheres entrevistadas e ao direito delas de contarem suas próprias histórias começa pelo espaço dado para elas se expressarem. Dentro da obra, os testemunhos se configuram numa posição de destaque, o que se evidencia pelas escolhas estéticas e técnicas. Pela montagem, aproximam-se as similaridades das entrevistadas, como no agrupamento dos relatos de tortura com o uso de animais ou na associação dos testemunhos de Regina e Pupi sobre seus trabalhos na Baixada Fluminense. Todavia, respeitam-se as individualidades delas, por meio da abertura para que elas esbocem as suas histórias pessoais e compartilhem seus modos particulares de lidar com o passado e o presente. Desse modo, todas elas recebem a possibilidade de emprestar à obra seus próprios olhares íntimos sobre a sobrevivência. Lúcia Murat não se coloca à frente das câmeras, mas expõe sua intimidade no espaço da ficção, artifício que encontrou para dividir as suas experiências. Roteirizados por ela, os monólogos parecem expressar os pensamentos íntimos de alguém que convive com as memórias de situações-limites – aquilo que uma sobrevivente teria dificuldade de mostrar publicamente, mas que a atormenta. Sua posição “fictícia” permite uma abertura de temas maior que as das entrevistadas, como analisa Azevedo: “O recurso ficcional à personagem Irene, a quem falta um interlocutor ‘real’, permite a liberdade de falar o que para as entrevistadas esbarra em suas relações sociais: o que os filhos, maridos, amigos, parentes e até os próprios amigos sobreviventes são capazes de ouvir, de acordo com padrões de moralidade associadas ao parentesco e ao sexo/gênero e com a delimitação cultural e política do que constituía socialmente a violência.” 8 Irene Ravache transborda revolta, cinismo e indignação. Seus discursos nem sempre fazem sentido, as associações são justificadas por emoção e não por lógica. Além das diferenciações da iluminação e da câmera em movimento, os monólogos também se distinguem do resto do filme pela atuação de Irene Ravache. A proposta não é misturá-la com as outras mulheres, fazer com que suas ações e palavras pareçam tão naturais quanto às delas. Pelo contrário, a atriz apresenta uma intensidade particular, uma exaltação que a afasta do universo do “real”. Mas a realidade está no que Ravache transmite por meio de sua atuação. Os temas dos monólogos antecedem assuntos que aparecem nos testemunhos das sobreviventes ou que se comprovam nas falas daqueles que convivem com elas. Na ficção, percebe-se a confusão de sentimentos e pensamentos que não podem ser racionalizados, parecendo quase beirar à loucura, mas com momentos de uma lucidez ácida que questiona o espectador. 8 AZEVEDO, Desirée de Lemos. O que falamos da Ditadura? Memórias da violência e da sobrevivência no filme "Que bom te ver viva!". Revista Espaço Acadêmico, v. 12, n. 143, abr. 2013. p. 16. Como Que bom te ver viva se propõe a dar a palavra para pessoas que foram forçadas a se calar por muito tempo, seria impossível não analisar o seu valor para a construção da memória brasileira. A obra privilegia a história da sobrevivência pelos olhos dos sobreviventes. Sobre a rememoração, Calegari conclui, “Por mais doloroso que seja, o ato de lembrar envolve um componente político, ou seja, ele se coloca contra o esquecimento e, o que é o principal nisso tudo, trabalha no sentido de evitar a repetição do que já aconteceu”9. Por meio desse movimento de lembrar e compartilhar, as mulheres tentam levar ao conhecimento os horrores pelos quais passaram e que jamais devem ser repetidos. Além disso, com a liberdade que o filme lhes dá, elas são capazes de apresentarem a si mesmas de forma muito diferenciada do que a mídia costuma fazer. Como parte das visões íntimas delas, não caberia na proposta tratar essas mulheres como heroínas míticas e distanciadas da realidade. A existência desse tipo de representação não é importante apenas para suscitar novos olhares sobre os eventos do período, mas também para respeitar as experiências daqueles que são representados. Ao longo dos testemunhos, as mulheres se mostram desconfortáveis com a maneira como são retratadas pela história, como quando Criméia exprime seu desagrado quanto ao fato de ser guerrilheiro ter se tornado algo de “contos de fada”, o que distancia as pessoas de sua história de vida. Em sua obra, Lúcia Murat contribui para a memória brasileira ao abordar as marcas que o regime militar deixou pelo olhar daqueles que sofreram e ainda sofrem com elas. Lúcia Murat revela que, antes lançamento do filme, ouviu muitos comentários preconceituosos sobre seu projeto10. A reação geral quanto ao tema era semelhante a uma frase proferida no filme por um dos amigos de Pupi: “mas quem vai ver um filme sobre tortura”? A partir dos testemunhos das mulheres, percebe-se que o silêncio não é uma escolha das sobreviventes, mas sim uma imposição. Rosa discute como as pessoas a consideram “rancorosa” por não conseguir “passar uma borracha” no que aconteceu. Criméia se opõe a um suposto “acordo de silêncio” com o qual não concordou. Jane, em seu trabalho de historiadora, tem como objetivo “resgatar todas as memórias perdidas durante a repressão”. Na ficção, Irene Ravache ironiza um jornalista que acredita que falar sobre a ditadura está “out”. A recepção do filme em 1989 comprova que as memórias individuais dessas mulheres faziam falta para a memória coletiva brasileira. 9 CALEGARI, Lizandro Carlos. Testemunho, trauma e identidade em Que bom te ver viva, de Lúcia Murat, Amerika, v. 8, maio 2013. 10 ALMEIDA, Carlos Helí de. op. cit., Os elogios dispensados ao filme pela crítica à época não se limitavam à sua qualidade formal, ressaltavam também a importância da retratação desse tema “tabu”. Para as sobreviventes envolvidas no projeto, o filme foi a oportunidade de dar vazão a experiências censuradas por muito tempo. Nas palavras de Lúcia Murat, “foi uma sensação prazerosa; pela primeira vez, depois de tanta violência sofrida, podíamos falar”11. Segundo Seligmann-Silva, a importância do testemunho não é só para o indíviduo, mas também para a sociedade: “Aqueles que foram perseguidos no período de exceção são, antes de mais nada, vítimas. Mas existe a possibilidade de esta comunidade sair desta posição de vítima. O testemunho pode, justamente, servir de caminho para a construção de uma nova identidade pós-catástrofe. A uma era de violência e de acúmulo de crimes contra a humanidade corresponde também uma nova cultura do testemunho. O testemunho tanto artístico/literário como o jurídico pode servir para se fazer um novo espaço político para além dos traumas que serviram tanto para esfacelar a sociedade como para construir novos laços políticos. Esta passagem pelo testemunho é, portanto, fundamental tanto para indivíduos que vivenciaram experiências-limite, como para sociedades pósditadura.”12 Hoje, 25 anos após sua estreia, as críticas presentes no filme ainda permanecem atuais. Apesar das iniciativas para a investigação desse passado e punição para os crimes cometidos, as pessoas ainda apresentam uma tendência a se distanciar dos sobreviventes e da vivência íntima deles. Seligmann-Silva acrescenta: “Nossas vítimas não puderam se transformar em acusadores , os eventos da ditadura não puderam sequer ser transformados em fatos. O fantástico e escandaloso sequestro das provas e dos testemunhos mantém o Brasil como que congelado no tempo, quando se trata do enfrentamento político-jurídico e do trabalho de memória da nossa ditadura. As elites simplesmente decidiram que ‘a página da história deve ser virada’.” 13 Em Que bom te ver viva, o distanciamento é impossível. Nos monólogos ficcionais, o uso do olhar para a câmera de Irene Ravache atinge diretamente o espectador. Não há espaço para a neutralidade e apatia. O público é jogado no íntimo dessa personagem e é forçado a lidar com a sua revolta. Em um dos monólogos, ela ironiza o espectador que se vê isento de culpa por não ter participado da tortura. O teor de denúncia presente na obra não é exclusivo para os crimes de tortura, ele também é lançado para a hipocrisia, para o esquecimento e para a passividade diante destes fatos. 11 NAGIB, Lúcia. O Cinema da Retomada - Depoimentos de 90 Cineastas dos anos 90. São Paulo: Editora 34, 2002. p. 324. 12 SELIGMANN-SILVA, Márcio. op. cit.,. p. 12. 13 Idem, ibidem, p. 13. Na parte final do espaço documental, recortes de jornais apresentam notícias sobre a anistia de 1979 – que acontecera exatamente 10 anos antes do lançamento do filme. Os testemunhos das mulheres e as cenas de seu cotidiano se intercalam. Em conjunto, as últimas declarações das mulheres alternam momentos de resignação e de esperança. Não uma esperança de esquecimento ou de cura, visto que seriam impossíveis, mas uma esperança de que a luta irá continuar. Predominam nas palavras finais a impossibilidade do esquecimento, a importância de continuar lutando e o reconhecimento de força e de vitórias. Para Estrela, “a maior vitória é essa busca, é esse desejo de se reintegrar internamente.” Nas cenas do cotidiano, as mulheres com seus filhos, com seus amigos, em momentos de felicidade e descontração, que comprovam as palavras de Regina, “a vida continua e a gente tem que tocar para frente mesmo.” No último testemunho, Jane, emocionada, ressalta que não há como esquecer, mas termina com a palavra “pronto” e um sorriso. Na transição para o espaço ficcional, a montagem das fotos em preto e branco cria o movimento da abertura de uma cela, junto de uma música esperançosa. Quando se corta para a cena de ficção, porém, a música de tensão - muito presente no decorrer do filme – volta à tona, enquanto Irene Ravache anda de um lado para o outro de seu quarto, em uma atmosfera muito diferente daquela indicada pela esperança na cena de transição. Em seu último monólogo, a personagem não vê a vida como uma benção, mas como uma sina. “Eu gostaria que houvesse uma outra opção à vida que não fosse a tortura”, ela diz. Em comparação com as frases finais dos testemunhos, a resignação de Irene Ravache parece reconhecer, assim como as outras, a impossibilidade do esquecimento, a vida como uma batalha constante. Mesmo após a cela ter se aberto, no plano final, a personagem permanece atrás das grades, dessa vez as de sua janela. A câmera se afasta da personagem, que fica cada vez mais distante, presa atrás das grades. A aproximação do espectador com o íntimo da personagem, explorada ao longo do filme, é quebrada nesse momento. Ao fim do filme, o espectador pode escolher esquecer, escolher não lutar. Para a sobrevivente, não há como escapar. Na cena final, a personagem de Irene Ravache permanece atrás das grades. Bibliografia ALMEIDA, Carlos Helí de. O cinema nos anos negros. 1989. ALVES, Fernanda Andrade do Nascimento. A morte e a donzela e Que bom te ver viva: O teor testemunhal. Literatura em debate, v. 4, n. 6, 2010. p. 106. AZEVEDO, Desirée de Lemos. O que falamos da Ditadura? Memórias da violência e da sobrevivência no filme "Que bom te ver viva!". Revista Espaço Acadêmico, v. 12, n. 143, abr. 2013. CALEGARI, Lizandro Carlos. Testemunho, trauma e identidade em Que bom te ver viva, de Lúcia Murat, Amerika, v. 8, maio 2013. MEDEIROS, Angela Cordeiro; RAMALHO, Thalita Aragão. Que bom te ver viva – Memória das Mulheres. O Olho da História, n. 14, jun. 2010. MURAT, Lúcia. Um mergulho corajoso. Rio de Janeiro: 1989. Última Hora. Entrevista concedida a Helena Salem. NAGIB, Lúcia. O Cinema da Retomada - Depoimentos de 90 Cineastas dos anos 90. São Paulo: Editora 34, 2002. p. 324. SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local do testemunho. Tempo e argumento, v. 2, n. 1, 2010.
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