A VIDA DE NELSON MANDELA NA CONCEPÇÃO DE SUJEITO

Transcrição

A VIDA DE NELSON MANDELA NA CONCEPÇÃO DE SUJEITO
1
A VIDA DE NELSON MANDELA NA CONCEPÇÃO DE SUJEITO SOCIOLÓGICO
DE STUART HALL
Olga Maria Lima Pereira1
Adail Sobral2
Resumo
O presente artigo tem como objetivo descrever a trajetória de vida de Nelson
Mandela, o grande líder africano que, em nome de um ideal coletivo, lutou e dedicou sua
existência à busca da liberdade na África do Sul. Num primeiro momento, descrevemos a
vida de Mandela. Num segundo momento, iremos tecer algumas considerações sobre o
regime de segregação racial, o Apartheid, que, ao discriminar o negro na sociedade africana,
maculou para sempre as páginas da história, numa degradante forma de desrespeito e
preconceito à humanidade. Num terceiro e último momento e, amparados nas concepções de
identidade e sujeito sociológico de Stuart Hall, relacionar e abrir discussões sobre a
importância de um homem que, para além de interesses pessoais, dedicou sua vida a defender
uma coletividade, no caso uma nação.
Palavras-chaves: Mandela, Apartheid, identidade, sujeito sociológico.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
“Seja qual for o castigo que sua crença considera justo para me impor pelo crime
pelo qual fui condenado ante esta corte, tenha certeza de que quando minha sentença for
completada, ainda serei compelido pelo o que os homens sempre são: pela consciência”3.
Quando a proposta desse trabalho foi descrever uma pequena parcela da trajetória de
vida de Nelson Mandela, pudemos observar o quanto esse artigo estaria fadado à
incompletude. Porém, devemos ter o total discernimento para compreender que, por mais que
sejam positivas as intenções de uma pesquisa acadêmica, ela sempre irá representar um
referencial a mais disponível para outras indagações.
Entendemos também que qualquer descrição que se venha a fazer sobre o papel que
Nelson Mandela exerceu e continua desempenhando em favor de uma África do Sul
humanamente mais justa, sempre irá representar um gesto a mais de reconhecimento e
1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Católica de Pelotas.
Professor Orientador.
3
Disponível em: <http://jmeirelles.files.wordpress.com/2011/10/c3a1frica-de-mandela-e-copa-do-mundo.pps.>
Frases de Mandela. Acessado em:14/05/2012.
2
respeito por homem que nos presenteou com uma das mais lindas lições de amor à
humanidade: a luta pelo fim do regime do apartheid.
Porém, para que possamos entender sua trajetória de luta contra o regime de
segregação racial, torna-se interessante conhecer um pouquinho de sua infância, sua
convivência e ensinamentos familiares e a grande lição de vida que Mandela recebeu de seus
pais através dos ensinamentos provenientes da cultura da matriz africana. .
As análises de pequenos trechos que versam sobre os diversos momentos que
nortearam e, ainda perduram no cotidiano de Nelson Mandela, servirá para uma reflexão por
demais significativa sobre o verdadeiro papel desempenhado por um homem que transformou
e abdicou de sua liberdade em nome de uma nação inteira.
1 INFÂNCIA DE NELSON MANDELA: PRIMEIRAS LIÇÕES DE VIDA
Na cultura africana, os filhos e as filhas das nossas tias e tios são
considerados irmãos e não primos. Não fazemos as mesmas distinções de parentesco
que os brancos fazem. Não temos meios irmãos ou meias-irmãs, a irmã da minha
mãe é minha mãe, o filho do meu tio e meu irmão e os filhos do meu irmão são
meus filhos (ANTUNES, 2012, p. 22).
Nelson Mandela nasceu no dia dezoito de julho de 1918, em Mvezo4, um pequeno
lugarejo nas margens do rio Mbashe, no distrito de Umtata, capital do Transkei5. No livro
“Longo Caminho para a Liberdade”, Mandela descreve Mvezo como “um lugar à parte, um
espaço ínfimo, afastado dos grandes eventos do mundo, onde a vida decorria como tinha sido
durante centenas de anos” (2012, p. 17). No livro podemos perceber que, a riqueza de detalhes
que Mandela se utiliza para falar do lugar onde nasceu, retrata o grande orgulho pela nação
xossa6 do qual era pertencente. Nas palavras de Nelson Mandela:
A sociedade xossa caracterizava-se por uma ordem social harmoniosa e
equilibrada, na qual todos os indivíduos tinham consciência do seu lugar. Todos os
xossas pertencem a um clã, que tem um antepassado comum. Eu faço parte do clã
Madiba, que recebeu o nome de um chefe tembo que governou o Transkei no século
XVII. É frequente interpelarem-me por Madiba, o nome do meu clã, o que é uma
manifestação de respeito (ANTUNES, 2012, p. 18).
4
Mvezo é uma pequena vila, localizada nas margens do rio Mbashe, no Distrito de Livingstone. Durante o
período do apartheid, Mvezo pertencia a Transkei.
5
Transkei: foram pseudoestados de base tribal criados pelo regime do apartheid na África do Sul, de forma a
manter os negros fora dos bairros e terras brancas, mas suficientemente perto delas para servirem de fontes de
mão-de-obra barata.
6
Xhosa Tradição africana, onde uma de suas características é o ritual de circunsição do prepúcio que marca a
passagem da adolescência para a vida adulta. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Circuncis> Acessado
em: 31.12.2011
3
Em relação a seu pai, Mandela o descreve como um homem alto de pele escura, com
uma pose austera, qualidades essas que Mandela se orgulha ter carregado como herança. A
figura do pai foi por demais significativo na infância de Mandela que, mesmo reconhecendo a
rigidez com a qual o pai tratava seus filhos, na mesma proporção, representava o desejo de ser
igual:
Mesmo por cima da testa ostentava uma madeixa de cabelos brancos, e
quando eu era garoto tinha por costume esfregar a cabeça com cinzas brancas para
me parecer com ele. Era um homem austero, que não dispensava a vara quando se
tratava de disciplinar os filhos. A sua teimosia era inexcedível, outra característica
que, infelizmente, parece ter passado de pai para filho (ANTUNES, 2012, p. 22).
Devemos considerar que, a preocupação com o lado social e a maneira solidária e
justa de tratar as pessoas, Nelson Mandela tenha herdado, de maneira mais contundente, dos
exemplos vindos de seus pais, familiares e amigos. Em relação a sua mãe, ele a descreve com
uma mulher forte, disponível para ajudar a todos, Responsável por três cubatas7, em Qunu,,
onde a primeira servia para dormir, a segunda para o preparo das refeições e a terceira como
armazém para guardar todo o tipo de cultivo feito pelos moradores locais. Nas palavras de
Mandela, sua mãe estava sempre em volta no cuidado e no trato com as crianças, parentes, e
amigos. Essa convivência diária com várias pessoas e a forma participativa como o trabalho
era determinado na aldeia, talvez tenha sido a grande responsável pela identidade social que
estava sendo construída. A certeza e a importância do coletivo em sua vida ficaram latentes
através da expressão: “Não me consigo lembrar de nenhuma situação da minha infância em
que tenha estado sozinho” (ANTUNES, 2012, p. 22).
A infância de Mandela foi repleta de ações, onde a figura do outro sempre lhe foi
significativa. Passeava muito pelos campos, fazia seus próprios brinquedos e simulava
batalhas e lutas com os meninos da aldeia, mas quando a noite chegava, e o frio e a fome se
tornavam presentes, Mandela nunca deixou de partilhar seu cobertor e comida. Várias são as
experiências vividas por Mandela em sua infância, tão ricas e repletas de significações, que
não caberia no propósito de um simples artigo. Porém, não se pode deixar de lado a primeira
experiência que Mandela teve quando estava aprendendo a montar um burro. À primeira vista
pode parecer algo comum a meninos que vivem no campo, porém, o que marca a citação
desse episodio é a lição de vida que Mandela absorve diante dessa inocente aventura:
Tínhamos estado a montá‑lo e quando chegou a minha ocasião saltei-lhe
para as costas. O animal desatou a correr em direção a um arbusto espinhoso.
7
O termo cubata designa uma habitação rústica e precária, coberta de palha, que serve para abrigar nativos na
África. Disponível em: <http://www.dicionarioinformal.com.br/cubata/> Acessado em: março de 2012.
Baixou a cabeça, para me fazer cair, o que conseguiu, não sem que antes os espinhos
me picassem e arranhassem a cara, para minha grande vergonha perante os outros
rapazes. Tal como os orientais, os africanos tem um profundo sentido da dignidade,
aquilo a que os chineses chamam “a face”. Perdi a face na presença dos meus
Amigos. Embora tenha sido um burro a atirar-me ao chão, aprendi que humilhar
outra pessoa é faze‑la sofrer de maneira desnecessariamente cruel. Ainda em rapaz,
quando derrotava os meus adversários, não os humilhava (ANTUNES, 2012, p. 23).
Podemos sentir que foi através dos exemplos e ensinamentos de seus pais que
Mandela, adquiriu a força de um líder e espalhou pelo mundo o verdadeiro sentido da palavra
alteridade. Seus pais, apesar da falta de escolaridade, transmitiram a verdadeira cultura que
todo o homem precisa absorver para viver num mundo de tantas desigualdades raciais, sociais
e econômicas. Através de seus exemplos e histórias sempre reforçaram a Mandela que um
homem não se deve deixar endurecer como as rochas ,nem tampouco, ser frágil a ponto de
negar os enfrentamentos necessários mas, acima de tudo, que ele preservasse o melhor de um
verdadeiro homem: seu caráter, humildade e a certeza que, acima de todas as coisas, é
necessário olhar com o coração:
Do mesmo modo que dantes o meu pai nos contava historias de batalhas e
de feitos heroicos dos guerreiros xossas, a minha mãe deliciava‑nos com lendas e
fábulas transmitidas por inúmeras gerações. Eram fabulas que estimulavam a minha
imaginação de criança, para além de conterem um fundamento moral qualquer.
Recordo‑me de uma história que a minha mãe me contava, de um viajante que era
interpelado por uma velha de olhos velados por grossas cataratas. A mulher pediulhe ajuda e o homem virou a cara. Depois chegou outro homem, que foi abordado
pela mesma velha. A mulher pediu que ele lhe limpasse os olhos, e, embora achasse
a ideia repugnante, o homem atendeu ao pedido. Por milagre, as escamas caíram dos
olhos da velha, que se transformou numa lindíssima rapariga. O homem casou com
ela e teve uma vida prospera e abastada. E uma historia muito simples, mas a
mensagem que transmite e eterna: a recompensa da virtude e da generosidade pode
chegar por meios impossíveis de imaginar (ANTUNES, 2012, p. 24).
Nessa trajetória tão intensa e, ao mesmo tempo tão fugaz, que representa a infância,
Mandela teve o privilégio de receber as mais belas e sólidas lições de vida: o amor ao
próximo, a importância do ato de dividir, o respeito aos seus antepasssados, a gratidão pela
obra do Criador e a importância da educação na construção dos sujeitos. A primeira vez que
Mandela vai à escola, nos traz um relato que não poderia deixar de ser registrado:
Eu tinha sete anos e no dia anterior ao começo das aulas o meu pai puxoume a parte e disse que eu tinha de ir decentemente vestido para a escola. Até então, e
a semelhança de todos os garotos de Qunu, sempre tinha usado uma manta enrolada
a volta do ombro e apertada na cintura. O meu pai pegou num par de calcas suas e
cortou-as por altura do joelho. Mandou-me que as vestisse e o comprimento estava
mais ou menos bom; o pior era a cintura, demasiado larga. O meu pai pegou então
num cordel e cingiu-me as calças. A minha figura devia dar vontade de rir, mas
nunca tive um fato que me orgulhasse mais de vestir do que aquelas calças cortadas
pelo meu pai (autor, ano, p. 26).
5
Mandela foi para a escola, orgulhoso de suas vestes e recebendo uma educação
inglesa, tanto no que se refere às ideias como à cultura. Não precisou muito tempo para sentir
a imposição da superioridade britânica e a ratificação da invisibilidade da cultura africana.
Porém, ao carregar consigo o firme propósito de perseverança, Mandela se fez mais forte que
os deboches direcionadas e o desprezo por sua cultura. Aos nove anos de idade Mandela
perde seu pai, vítima de problemas pulmonares. A análise mais precisa que hoje poderia se
fazer é que tenha sido o fumo a causa de sua morte, pois, conforme Mandela: “O meu pai
fumou e acalmou‑se. Continuou a fumar mais ou menos durante uma hora e quando morreu o
cachimbo ainda estava aceso” (2012, p. 27).
Com a morte do pai, a vida de Mandela foi transformada abruptamente e, a sensação
de estar a deriva é reforçada no livro Longo Caminho para a Liberdade. Para Mandela, o pai
representava o verdadeiro referencial de homem e herói. Porém, foi através do comunicado de
sua mãe que eles teriam que deixar a aldeia e sair de Qunu que Mandela percebeu sua maior
perda:
“Chorei menos a perda do meu pai que a do mundo que deixava para trás. Qunu era
tudo quanto conhecia e amava a aldeia com o afecto incondicional” (2012, p. 27).
Nessas poucas palavras de Nelson Mandela podemos observar o amor que nutria pela
sua aldeia e pelo seu povo. Não devemos esquecer, entretanto, que essa expressão foi em
relação a sua partida da aldeia onde morava. Mas foi esse amor ao seu lugar e o sentimento
pelos seus amigos que transformaram Mandela no verdadeiro herói de uma nação se observa é
o amor coletivo superando sentimentos individuais. A grande verdade presente na trajetória de
vida de Mandela foi esse sentimento de amor coletivo, de orgulho a sua terra e de indignação
pelas desigualdades presentes na África do Sul.
2 TRAJETÓRIA POLITICA DE NELSON MANDELA E O APARTHEID
Nosso grande medo não é o de que sejamos incapazes. Nosso maior medo é que
sejamos poderosos além da medida. É nossa luz, não nossa escuridão, que mais nos
amedronta. Nós perguntamos: “Quem sou eu para ser brilhante, atraente, talentoso e
incrível?” Na verdade, quem é você para não ser tudo isso?... Bancar o pequeno não ajuda o
mundo. Não há nada de brilhante em encolher-se para que as outras pessoas não se sintam
inseguras em torno de você. E à medida que deixamos nossa própria luz brilhar,
inconscientemente damos às outras pessoas permissão para fazer o mesmo8.
O jovem Nelson Mandela, tido para muitos como um exímio guerrilheiro, para
outros, ao contrário, um terrorista, na verdade representou e permanece sendo o símbolo e o
grito de liberdade na África do Sul. No vigor de sua mocidade, e com ideais bem traçados
contra todos os tipos de injustiça presentes com a imposição do regime do Apartheid, (que
negava aos negros direitos políticos, econômicos e sociais) Mandela não mediu esforços na
luta contra tudo e a todos que, em nome de uma soberania branca, relegava o negro a mais
indigna representação social. Em 1942, junto com outros companheiros, como Walter Sisulu e
Oliver Tambo, Mandela uniu-se ao Congresso Nacional Africano (CNA), em busca de um
fortalecimento e maior dinamismo na luta contra a segregação racial na África do Sul.
Podemos dizer que esse dinamismo foi mais significativo na Liga Jovem do CNA, fundada
pelos companheiros supracitados e, que representava uma extensão mais atuante do CNA.
Após as eleições de 1948, que dava a vitória ao Partido Nacional que apoiava a
política de segregação racial, Mandela não só se torna o braço direito do Congresso Nacional
Africano, como também, toma parte do Congresso do Povo (1955) divulgando a Carta da
Liberdade que, trazia em sua essência, um programa fundamental de combate a qualquer tipo
de política segregacional.
No livro Conversas que Tive Comigo, baseado em anotações que Mandela fez
durante os vinte e sete anos que esteve no cárcere, podemos destacar que Mandela não
pensava ter de usar atos violentos contra o apartheid, isso só viria a acontecer após o massacre
de Sharpeville (ocorrido em março de 1960), onde policiais sul-africanos atiraram em
manifestantes negros desarmados, contabilizando 69 mortos e 180 feridos e a ratificação da
ilegalidade não só do Congresso Nacional Africano, mas de qualquer tipo de grupo ou
associações que faziam oposição ao apartheid. Nesse espaço de tempo entre 1960 e 1962,
Mandela intensificou e coordenou uma campanha de sabotagem ferrenha contra alvos
militares e do governo com o objetivo de acabar de vez com o apartheid. Realizou várias
viagens de forma clandestina, em busca de orientações com outros líderes de estado,
conseguindo angariar não somente fundos para um treinamento e atuação paramilitar, como
estar preparado caso uma guerrilha se fizesse necessária. A luta, perseverança e o desejo de
justiça simbolizou o ideal de vida de Nelson Mandela:
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Disponível em: <http://jmeirelles.files.wordpress.com/2011/10/c3a1frica-de-mandela-e-copa-do-mundo.pps.>
Frases de Mandela. Acessado em:14/05/2012.
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Os ideais que cultivamos, nossos maiores sonhos e esperanças mais
ardentes podem não se realizar durante a nossa vida. Mas isto não é o principal.
Saber que em seu tempo você cumpriu seu dever e viveu de acordo com as
expectativas de seus companheiros é em si uma experiência compensadora e uma
realização magnífica (2010, p. 233).
Nelson Mandela, mais do que ninguém, pode entender o que representou o
Apartheid, e as sequelas deixadas por esse regime na África do Sul. Um regime que, ao
legitimizar as atrocidades contra o povo africano, foi o responsável pela mais perversa forma
de menosprezo cultural, humano e social já visto na história da humanidade:
Meu principal interesse era descobrir que tipo de homens havia fundado a
alta civilização dos tempos antigos que floresceu no Vale do Nilo desde 5000 a.C.
Não era simplesmente uma questão de interesse arqueológico, mas uma questão de
suprema importância para os pensadores africanos, que estão essencialmente
interessados na coleção de evidências científicas, para explodir a fictícia afirmação
dos propagandistas brancos de que a civilização começou na Europa e que os
africanos não têm um passado rico que se compare ao deles (2010, p. 105-106).
Em nome da liberdade de uma nação cuja identidade encontrava-se fragmentada,
Nelson Mandela, ficou no cárcere por quase três décadas. Várias foram as denúncias em seu
nome: de líder guerrilheiro, de incentivador da luta armada e por clandestinidade. Porém, em
nenhum momento Mandela aceitou a liberdade condicional em troca da recusa de seu ideal de
vida: a ferrenha busca pelo fim do apartheid e por todos os danos por ele ocasionados:
Hábitos são difíceis de desaparecer e deixam marcas claras, as cicatrizes
invisíveis que estão gravadas em nossos ossos e fluem em nosso sangue, que
provocam nos principais atores danos irreparáveis, que podem confrontar seus
descendentes seja lá onde apareçam, privando-os da dignidade, da pureza e da
felicidade que deveriam ser deles. Essas cicatrizes retratam as pessoas como elas são
e trazem ao escrutínio público as contradições embaraçosas com que as pessoas
vivem suas vidas. Essas contradições são, por sua vez, o espelho que dá uma
representação fiel dos afetados e proclamam quaisquer que sejam meus ideais na
vida, isto é o que sou (2010, p. 226).
Mandela, nem sempre resignado, acatou as consequências advindas de seu
aprisionamento. Em um cela minúscula, submetido a trabalhos forçados e com uma
permanente fiscalização em suas correspondências enviadas e recebidas, nunca deixou de
acreditar numa África do Sul humanamente, mais justa, onde o povo africano, independente
do pigmento de sua pele, pudesse viver com o mínimo de dignidade humana e social. Esse foi
o ideal de vida que Mandela, diante da minúscula janela de sua cela, perseverou a vida inteira:
Tenho nutrido o ideal de uma sociedade democrática e livre, na qual todas
as pessoas possam conviver em harmonia e com igualdade de oportunidades. É um
ideal pelo qual espero viver e que espero ver realizado. Mas, meu Senhor, se preciso
for, é um ideal pelo qual estou preparado para morrer (MANDELA, 2010)9.
Em fevereiro de 1990, após vinte sete anos na clausura, Nelson Mandela é posto em
liberdade, diante de um grande clamor de Viva Mandela. Quatro anos depois é eleito o
primeiro presidente negro da África do Sul. Uma das infinitas expressões célebres ditas por
Mandela depois da solenidade de posse como presidente da África do Sul foi: Nunca, nunca e
nunca de novo esta bela terra experimentará a opressão de um sobre o outro10. Durante os
cincos que esteve na presidência, de 1994 a 1999, Mandela desenvolveu vários projetos de
políticas reparatórias como forma de minimizar as mais perversas atrocidades impostas ao
povo africano durante o período do apartheid.
3 MANDELA NAS CONCEPÇÕES DE IDENTIDADE E SUJEITO SOCIOLÓGICO
DE STUART HALL
“A identidade somente se torna uma questão quando está em crise, quando algo que
se opõe como fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza”
(MERCER, 1990, p. 43).
No livro de Stuart Hall, “A identidade cultural na pós-modernidade”, o autor deixa
claro sua posição simpática à afirmação
de que as identidades modernas estão sendo
“descentradas ou fragmentadas”. O que o autor tem como objetivo é explorar essas
afirmações e, através de reflexões mais aprofundadas, discutir quais as consequências
prováveis capazes de afirmar ou negar tais fragmentações. O que Stuart Hall reforça no seu
livro e, que por se tratar do conceito de identidade, é bastante pertinente, seu trabalho não tem
caráter conclusivo e encontra-se aberto a novas contestações. Porém, para que possamos
entender a ligação feita entre Mandela e os conceitos de identidade e sujeito sociológico de
Stuart Hall (2006, p.10-12) faz-se necessário alguns conceitos descritos pelo autor em relação
aos mesmos. O autor, assim distingue Três concepções de identidade que servirá de apoio
para novas argumentações:
a) Sujeito do iluminismo;
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Disponível em: <http://jmeirelles.files.wordpress.com/2011/10/c3a1frica-de-mandela-e-copa-do-mundo.pps.>
Frases de Mandela. Acessado em:14/05/2012.
10
Disponível em: <http://www.rivalcir.com.br/frases/nelsonmandela.html> Acessado em: 10/06/2012.
9
b) Sujeito sociológico; e
c) Sujeito pós-moderno.
Como não é objetivo desse artigo aprofundar as concepções de sujeito do iluminismo
e do pós-modernismo, faremos uma breve explanação dos mesmos, uma vez que a proposta
prevalecente é a concepção de sujeito sociológico identificada na trajetória de vida de Nelson
Mandela.
Portanto, podemos dizer que, segundo Stuart Hall, o sujeito do iluminismo se
caracterizava pela capacidade da razão, da consciência e da ação. Embora essas características
emergissem a partir do seu nascimento e, com ele se desenvolvia, o mesmo permanecia
contínuo e idêntico. O centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa (2006, p.11).
Em relação ao sujeito pós-moderno, Stuart assim o caracteriza: “A identidade tornase uma ‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas
pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”
(HALL, 1987, p. 22.):
“Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é
apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora
narrativa do eu” (HALL, 1990, p. 24).
A noção de sujeito sociológico, assim como as demais concepções de identidade
descritas por Stuart Hall, nas palavras do próprio autor representa simplificações que se
tornarão mais complexas e qualificadas na medida em que aprofundarmos as reflexões
pertinentes a cada uma dela. Por isso, entendemos que o conceito de sujeito sociológico
abaixo citado, será apenas um norte para uma compreensão desse conceito inserido nas
diversas etapas da vida de Nelson Mandela. Segundo Stuart Hall (2006, p. 11), baseado na
concepção ‘interativa’ da identidade e do eu de G. H. Mead, C. H., Cooley:
A noção de sujeito sociológico refletia a crescente complexidade do
mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era
autônomo e auto-suficiente, mas era formado na relação com “outras pessoas
importantes para ele”, que mediavam o sujeito os valores, sentidos e símbolos – a
cultura – dos mundos que ele/ela habitava.
De acordo com essa visão, podemos compreender que a completude da identidade de
um sujeito sociológico somente se realiza na interação permanente entre o eu real e os
diversos mundos culturais. Nessa concepção sociológica, conforme Stuart Hall (2006, p. 1112): “A identidade preenche o espaço entre o “interior e o exterior” entre o mundo pessoal e
o mundo público”.
Discorrer sobre a obra de Stuart Hall, especificamente, sobre identidade e as mais
diversas concepções mutantes do ser sujeito, demandariam um tempo e uma reflexão
cuidadosa e, consequentemente, repleta de outros questionamentos. Segundo o autor:
“Embora o produtor codifique seu texto de uma forma particular, o leitor irá
decodificá-lo de uma maneira levemente diferente – o que Hall chama de ‘margem de
entendimento’” (2006, p.15).
No entanto, não é sobre essa premissa que o artigo se desenvolve. O objetivo é
compreender essas divisões de identidade e de sujeito postuladas por Stuart Hall e, a partir de
suas contextualizações exotópicas, perceber a figura do lider africano Nelson Mandela, sendo
contemplada através de suas experiencias e ideais de vida.
Compreender Nelson Mandela como sujeito sociológico que não se deixou
fragmentar diante das diversas imposições sociais, políticas, culturais e econômicas presentes
na África do Sul, especificamente, no regime do apartheid, é elevar a conceituação de sujeito
sociológico para patamares bem mais complexos. Nelson Mandela, conhecia e vivia para seu
povo e lutava pelo reconhecimento da cultura africana que estava fragilizada pela segregação
racial. Nunca deixou de enaltecer seus amigos, nem tão pouco, de reconhecer e de se inserir
nas diversas faces presentes em cada ser humano:
Na vida real não lidamos com deuses, mas com humanos tão comuns
quanto nós mesmos. São homens e mulheres cheios de contradições, que são
estáveis e inconstantes, fortes e fracos, famosos e infames, pessoas em cujas veias a
mesquinharia resiste a fortes pesticidas (2010, p. 16).
O pensamento de Mandela retrata não só as múltiplas vozes presentes nas relações
humanas, mas acima de tudo, naturaliza esses discursos. O outro que vejo e, que pelas
circunstâncias mais diversas sou convidado a dialogar e conviver, estão na mesma direção e
na mesma intensidade horizontal de minha visão. Parafraseando Stuart Hall:
“O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o “eu real”, mas este é
formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as
identidades que esses mundos oferecem” (HALL, 2006, p. 11).
Em relação a Nelson Mandela, podemos afirmar que é justamente esse “eu real” que
não se deixou fragmentar. Em um pequeno trecho de uma carta para Joy Mosielo, datada de
17 de fevereiro de 1986, Mandela descreve as origens de todos os riscos que correu por
defender a luta contra o apartheid, mas acima de tudo, deixa registrado uma das maiores
provas de amor a uma nação:
11
Se eu tivesse sido capaz de prever tudo o que aconteceu desde então,
certamente teria tomado a mesma decisão, ou pelo menos assim creio. Mas
certamente essa decisão teria sido muito mais pesada e algumas das tragédias
subsequentes teriam derretido quaisquer traços de aço que houvesse dentro de mim
(2010, p. 29-30).
O pensamento de Mandela, de certa forma, se encaixa na descrição de Stuart Hall em
relação a identificação como um processo em andamento:
“A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós
como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é preenchida a partir de nosso exterior,
pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros” (HALL, 2006, p. 39).
Na trajetória de vida de Nelson Mandela, podemos identificar vários traços que
definem um sujeito sociológico: a concepção de que entre o interior e o exterior prevaleça o
social, a consciência de que ninguém é auto-suficiente ou autônomo, mas acima de tudo, a
certeza que somente através da interação com os outros com suas qualidades e defeitos é que
podemos desenhar o verdadeiro significado de nossa existência. Mandela sempre deixou
registrado o seu amor à terra, ao povo africano, aos seus ancestrais e a preservação da cultura
como a verdadeira responsável pela identificação de uma nação. Porém, nenhuns desses ideais
devem ser concebidos individualmente. Caso a situação venha a promover a escolha de um
em detrimento de outro, Nelson Mandela respondia:
Considero-me obrigado a manter o devido respeito a meus costumes e
tradições, desde que esses costumes e tradições ajudem a manter a nossa união e de
forma alguma conflitem com os objetivos e o objeto da luta contra a opressão racial.
Mas não imporei meus costumes aos outros nem seguirei qualquer prática que possa
ofender meus companheiros, principalmente agora que a liberdade está custando tão
caro (2010, p. 45).
No livro de Stuart Hall, Identidade Cultural na Pós-Modernidade, tivemos acesso a
diversos conceitos de identidade e dos avanços culturais tidos como responsáveis pela
fragmentação desses sujeitos. De sujeito do iluminismo, dotado pela razão e de um núcleo
interior que emergia pela primeira com o nascimento e com ele se desenvolvia, ainda que
permanecendo essencialmente o mesmo a sujeito pós-moderno, conceitualizado como
desprovido de uma identidade fixa, essencial ou permanente, desta forma, podemos
caracterizar Nelson Mandela como o exemplo vivo de sujeito sociológico, ou seja, aquele que
foi construindo sua identidade mediante uma interação permanente com o outro, a sociedade e
uma nação.
CONCLUSÃO
Fazer uma ligação entre o conceito de sujeito sociológico de Stuart Hall e a vida de
Nelson Mandela, ou melhor, dizendo identificar Nelson Mandela inserido nas múltiplas vozes
presentes na concepção sociológica de sujeito é de, certa forma, desmistificar a afirmação que
o homem é um ser fadado à fragmentação. Sabemos que as generalizações nunca serviram
para especificar e identificar os processos sociais como inalteráveis. É necessária uma
dedicação nas análises que nos propomos a desenvolver, para poder afirmar que, embora a
humanidade esteja condenada à fragmentação imposta pelos mais diversos avanços
tecnológicos e científicos, existem pessoas que não se deixaram contaminar pelo
conformismo ou por uma liberdade individual. Uma dessas personalidades é Nelson Mandela,
e não estamos aqui promovendo nenhum um tipo de endeusamento de um homem presente
entre nós e que escreveu e participou de sua auto-biografia, apenas queremos reforçar o
quanto é delicado generalizar e utilizar certas conceituações como especificas. Nelson
Mandela, se assim podemos nos atrever a dizer foi um todo e um pouco do muito que a
historia deixou registrado: um homem dócil, às vezes arrogante, um solidário, as vezes
perspicaz, líder assumido, por diversas vezes um bom ouvinte. Amava sua família e não raras
foram as vezes que se culpava pela ausência que o seu ideal representava, mas, acima de todas
as coisas impossíveis de serem transcritas nesse artigo, Mandela não se deixou fragmentar
diante de uma causa que foi sedimentada na sua infância: o amor a todos os irmãos africanos e
a luta incansável contra o regime do Apartheid.
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