A mulher do pastor veio da esquina da casa paro

Transcrição

A mulher do pastor veio da esquina da casa paro
Santuário
I
A mulher do pastor veio da esquina da casa paroquial com os braços cheios de crisântemos. Havia um
tanto de terra fértil de jardim presa nos seus resistentes
sapatos rústicos, e uns poucos grãos estavam grudados
em seu nariz, mas isso não parecia incomodá-la de
modo algum.
Ela travou uma pequena luta para abrir o enferrujado portão da casa paroquial, que se desprendia de
metade das dobradiças. Uma lufada de vento atingiu
seu desgastado chapéu de feltro, deixando-o ainda mais
surrado do que antes.
– Diabo! – disse Bunch.
Batizada Diana pelos pais otimistas, a sra. Harmon
tornara-se Bunch* ainda muito nova, por razões óbvias,
de certo modo, e o nome ficou associado a ela desde
então. Colhendo os crisântemos, ela fez seu caminho do
portão ao jardim, e daí para a porta da igreja.
O ar de novembro estava brando e úmido. As
nuvens deslizavam no céu manchado de azul aqui e ali.
Dentro, a igreja era escura e fria; não era aquecida, exceto
nos horários das missas.
– Bruuu! – arrepiou-se Bunch. – É melhor eu me
apressar com isso. Não quero morrer de frio.
* Referência a bunch of flowers, ramalhete de flores. (N.T.)
7
Com a agilidade nascida do hábito, ela reuniu a parafernália imprescindível: vasos, água e recipientes para
flores. “Gostaria que tivéssemos lírios”, pensou Bunch.
“Estou farta desses crisântemos fininhos.” Seus dedos
ágeis arrumaram as flores nos recipientes.
Não havia nada particularmente original ou artístico na arrumação, pois a própria Bunch Harmon não
era original nem artística, mas eram arranjos simples e
agradáveis. Carregando os vasos com cuidado, Bunch
subiu a nave da igreja e seguiu em direção ao santuário.
Enquanto fazia isso, o sol apareceu.
Ele brilhou através da janela do lado leste por meio
de um vidro pintado de modo rude, basicamente vermelho e azul – presente de um antigo devoto abastado. O
efeito era deveras arrebatador em sua súbita opulência.
“Como joias!”, pensou Bunch. De repente, ela parou
com o olhar fixo à frente. Nos degraus do santuário,
havia alguma coisa negra e disforme.
Bunch colocou as flores no chão com cuidado, foi
até o volume e inclinou-se sobre ele. Havia um homem
deitado ali, virado sobre si mesmo. Bunch ajoelhou-se
perto dele e, de forma cautelosa e lenta, desvirou-o. Os
dedos de Bunch alcançaram o pulso do homem – um
pulso tão fraco e irregular que denunciava sua própria
história, tanto quanto o descoramento quase esverdeado
do seu rosto. Não havia dúvida de que o homem estava
morrendo, pensou Bunch.
Era um homem com cerca de 45 anos, vestido com
um terno preto maltrapilho. Ela baixou a mão frouxa que
segurava e deu uma olhada na outra mão do homem.
Esta parecia fechada em punho sobre o peito. Ao olhar
mais de perto, viu que os dedos seguravam o que parecia
ser um maço grande ou um lenço, que ele apertava de
modo firme contra o peito. Ao redor da mão cerrada
8
havia manchas secas de um líquido castanho – sangue
seco, ela deduziu. Bunch agachou-se, circunspecta.
Até aquele momento os olhos do homem tinham
permanecido fechados, mas neste ponto eles se abriram
e fixaram-se no rosto de Bunch. Não eram olhos ofuscados nem vagos. Pareciam bastante vivos e inteligentes.
Os lábios do homem moveram-se, e Bunch curvou-se
à frente para escutar as palavras, ou melhor, a palavra.
Ele pronunciou só um vocábulo:
– Santuário.
Bunch pensou ter visto apenas um sorriso leve
quando ele sussurrou essa palavra. Não houve engano
algum, pois, passados alguns momentos, ele repetiu:
– Santuário...
Em seguida, com um desmaio, um suspiro demorado, seus olhos fecharam-se outra vez. E de novo os dedos
de Bunch examinaram seu pulso. Ainda batia, porém
mais fraco e intermitente. Ela se levantou, decidida.
– Não se mexa – disse. – Nem faça esforço. Vou
buscar ajuda.
Os olhos do homem abriram-se mais uma vez, mas
agora ele parecia dirigir a atenção para a luz colorida
que vinha da janela do lado leste. Ele murmurou algo
que Bunch quase não conseguiu entender. Ela pensou,
surpresa, ter ouvido o nome de seu marido.
– Julian? – ela disse. – Veio aqui para ver Julian?
Não houve resposta. O homem estava deitado com
os olhos cerrados, a respiração avançando de forma lenta
e superficial.
Bunch virou-se e logo deixou a igreja. Deu uma
olhadela no relógio e meneou a cabeça com determinação. Dr. Griffiths ainda devia estar no consultório. Era
apenas uma caminhada curta da igreja. Ela entrou, sem
9
bater à porta ou tocar a campainha, passando pela sala
de espera e indo até o consultório.
– O doutor precisa vir agora mesmo – disse. – Tem
um homem entre a vida e a morte na igreja.
Minutos depois, após um exame breve, dr. Griffiths
levantou-se.
– Podemos movê-lo daqui para dentro da casa
paroquial? Posso atendê-lo melhor lá... não que vá ser
de alguma valia.
– Claro – respondeu Bunch. – Vou na frente e ajeito
as coisas. Devo chamar Harper e Jones? Para ajudá-lo a
carregar o homem...
– Obrigado. Posso telefonar da casa paroquial para
pedir uma ambulância, mas receio que... pelo tempo
que leva...
Ele deixou a frase incompleta.
– Hemorragia interna? – desconfiou Bunch.
Dr. Griffiths assentiu com um gesto.
– Como ele veio parar aqui afinal? – perguntou.
– Penso que ele deve ter ficado aqui a noite toda
– presumiu Bunch. – Harper destranca a igreja pela manhã, quando vai trabalhar, mas não costuma entrar.
Haviam se passado cerca de cinco minutos quando
o dr. Griffiths pôs o fone no gancho e retornou à sala
de estar, onde o homem enfermo estava deitado no
sofá sobre cobertores arranjados de última hora. Após
o exame médico, Bunch manejava uma bacia de água e
fazia a limpeza.
– Bem, então é isso – disse Griffiths. – Chamei a
ambulância e notifiquei a polícia.
Dr. Griffiths parou, sombrio, fazendo pouco caso
do paciente estendido de olhos fechados. O médico
estava batendo a mão esquerda na lateral do próprio
corpo de um modo nervoso e violento.
10
– Ele foi baleado – informou Griffiths. – Baleado à
queima-roupa. Ele fez uma bola com o lenço e tapou o
machucado com isso, a fim de estancar o sangramento.
– Ele poderia ter ido longe após o ocorrido? – Bunch
perguntou.
– Ah, sim, é bem possível. Há um caso de um homem ferido mortalmente que conseguiu endireitar-se
e caminhar pela rua como se nada tivesse acontecido,
e então, de forma repentina, desfaleceu cinco ou dez
minutos depois. Portanto, ele não precisaria ter sido
baleado na igreja. Não mesmo. Pode ter sido atingido a
alguma distância daqui. Claro, ele pode ter atirado nele
mesmo e, em seguida, largado o revólver e cambaleado
sem direção pela igreja. Não entendo por que ele foi para
a igreja e não para a casa paroquial.
– Ah, isso eu sei – anunciou Bunch. – Ele falou:
“Santuário”.
O médico encarou-a:
– Santuário?
– Julian chegou – disse Bunch, virando a cabeça ao
ouvir os passos do marido na entrada.
– Julian! Venha aqui.
O reverendo Julian Harmon entrou na sala. Seu
jeito um tanto formal sempre o fazia parecer mais velho
do que de fato era.
– Meu Deus! – exclamou Julian Harmon, com o
olhar fixo nos instrumentos médicos e na figura debruçada sobre o sofá.
Bunch explicou-lhe com sua habitual economia
de palavras.
– Ele estava na igreja, morrendo. Foi baleado. Você
o conhece, Julian? Pensei tê-lo ouvido pronunciar seu
nome.
11
O pároco aproximou-se do sofá e baixou o olhar
para o moribundo.
– Pobre homem – disse e balançou a cabeça. – Não.
Não o conheço. Tenho quase certeza de que nunca o vi
antes.
Nesse momento, os olhos do moribundo abriramse mais uma vez. Foram do médico a Julian Harmon e
deste para sua esposa. Os olhos pararam ali, fixando-se
no rosto de Bunch. Griffiths deu um passo à frente.
– Se puder nos contar algo – disse de uma vez.
No entanto, com os olhos fixos em Bunch, o homem falou com a voz fraca:
– Por favor, por favor...
E então, com um leve tremor, morreu.
O sargento Hayes molhou o lápis com a ponta da
língua e virou a página do caderno de anotações.
– Então, isso é tudo que tem a me dizer, sra. Harmon?
– É tudo – respondeu. – Essas coisas estavam nos
bolsos do casaco dele.
Na mesa, ao alcance do sargento Hayes, estavam uma
carteira, um relógio velho bem gasto com as iniciais W.S.
e a passagem de retorno para Londres. Nada mais.
– Descobriu quem ele é? – Bunch perguntou.
– Um casal ligou para a delegacia, sr. e sra. Eccles.
O homem era irmão dela, parece. Seu sobrenome é
Sandbourne. Esteve num estado ruim de saúde e de
nervos por um período. Vinha piorando nos últimos
tempos. Anteontem ele saiu e não voltou. Levou um
revólver consigo.
– E ele veio até aqui e tirou a própria vida com o
revólver? – Bunch inquiriu. – Por quê?
– Bem, veja, ele estava deprimido...
Bunch interrompeu-o.
12
– Não perguntei isso. Perguntei, por que aqui?
Estava claro que o sargento Hayes não tinha uma
resposta para isso, então replicou de forma evasiva:
– Ele veio até aqui – disse o sargento – no ônibus
das 17h10.
– Sim – persistiu Bunch. – Mas qual o motivo?
– Não sei, sra. Harmon – respondeu o sargento
Hayes. – Não há uma explicação. Se o juízo mental é
perturbado...
Bunch terminou a frase por ele:
– Eles podem fazê-lo em qualquer lugar. Mas ainda
me parece desnecessário pegar um ônibus para uma
cidadezinha do interior como esta. Ele não conhecia
ninguém aqui, não é?
– Até onde se averiguou, não – respondeu o sargento Hayes.
Ele tossiu, se desculpando, e disse, ao levantar-se:
– É provável que o casal Eccles apareça para vê-la,
senhora. Caso não se importe, digo.
– Claro que não me importo – respondeu. – É
muito natural. Apenas gostaria de ter algo que pudesse
lhes contar.
– Continuarei investigando – assegurou o sargento
Hayes.
– Estou tão aliviada – disse Bunch, acompanhando-o até a porta de entrada – por não ter sido um
assassinato.
Um carro havia passado pelo portão da casa
paroquial. O sargento Hayes, olhando de relance, comentou:
– Parece que o casal Eccles está vindo para cá neste
momento, senhora, para vê-la.
Bunch preparou-se para enfrentar o que, ela intuiu,
parecia ser uma provação difícil. “Seja lá o que for”,
13
pensou, “sempre posso contar com a ajuda de Julian.
Um clérigo é uma ajuda e tanto quando alguém está
de luto.”
Bunch não seria capaz de dizer precisamente como
havia imaginado o sr. e a sra. Eccles, mas ela estava tomada por um sentimento de surpresa quando os cumprimentou. O sr. Eccles era um homem robusto e corado,
que em condições normais teria se mostrado animado e
zombeteiro. A sra. Eccles tinha uma aparência distraída
e fingida. Sua boca era pequena, maldosa e enrugada. A
voz era fraca e aguda.
– Foi um choque terrível, sra. Harmon, como pode
imaginar – ela disse.
– Ah, eu sei – Bunch respondeu. – Deve ter sido.
Sentem-se, por favor. Posso oferecer-lhes... Bem, talvez
ainda seja cedo para um chá...
O sr. Eccles acenou com a mão gorducha.
– Não, não. Não se importe conosco – disse. – É
muito atencioso da sua parte, sim. Queríamos apenas...
bem... o que o pobre William falou e tudo o mais, sabe
dizer?
– Ele tinha estado fora por muito tempo – comentou a sra. Eccles – e acho que ele deve ter tido algumas
experiências bem desagradáveis. Estava muito quieto
e deprimido desde que voltou para casa. Dizia que o
mundo não era um lugar para se viver e que não havia
nada o que esperar. Pobre Bill, sempre taciturno.
Bunch encarou-os por um momento em silêncio.
– Ele pegou o revólver do meu marido – continuou
a sra. Eccles. – Sem que soubéssemos. E aí, ao que tudo
indica, veio para cá de ônibus. Imagino que foi uma
gentileza da parte dele. Não teria gostado de fazê-lo na
nossa casa.
14

Documentos relacionados