07.03.2002 Contornos da Realidade Brasileira. A realidade

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07.03.2002 Contornos da Realidade Brasileira. A realidade
07.03.2002
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Contornos da Realidade Brasileira.
A realidade brasileira é feita, na maioria das vezes, de sobressaltos e
desajeitos, seja na cultura, seja na saúde, nos cenários tributários, na
economia, na segurança e por aí vai. Ciclos de melhorias, em algumas
ocasiões, inegavelmente são contabilizados, mas, estruturalmente, os avanços
são pequenos.
Roda-se o filme, mas o texto central é sempre o mesmo: falta de credibilidade
no próprio Estado. É o jogo do theatrum mundi que Platão (64) via em suas
Leis ou em Satíricon de Petrônio (65), isso se sabe. Concretos mesmo são os
sacrifícios repetidos que a sociedade brasileira tem feito nos últimos anos.
Impostos absurdos, uma enorme imposição tributária — que se cobra do
cidadão e das empresas em doses cavalares —, e mesmo assim não
conseguimos resolver reclames básicos que povoam o social e, principalmente,
a gestão da coisa pública.
Tem-se a impressão de que estamos andando para trás em pautas
substanciais.O
povo
tem
sempre
feito
sua
parte
na
vida
nacional
independetemente de quem esteja no comando. O consumidor, o trabalhador,
as empresas são exemplares, atendendo com apreciável obediência a todos os
“convites”
da
Nação,
seja
por
compulsórios
confiscos
indigestos,
racionamentos, e sempre com expectativas que se vençam nossas crises
institucionais. Mesmo assim, no entanto, a dívida social que se acumula ainda
parece cada vez mais impagável. A dívida social que a nação tem com o nosso
povo é assustador.
Há um Brasil real feio, que vem sendo construído com omissões, o da crônica
diária da segurança, da impunidade, da miséria, do desemprego, da falta de
oportunidades equitativas, o da fraca empresa nacional.Por descabida que seja
a comparação, é conhecido que um esfacelamento moral contínuo enfraqueceu
o poder de Roma para governar, e as sociedades contemporrênas anda
sofrendo também do mesmo mal de nossos antepassados.
O paralelo didático é que se está construindo uma crise de confiança
assemelhada. Um cidadão aborda suas negociações com o Estado, com um
espírito de aquiescência resignada, mas a debilitação pública de confiança tem
um alcance muito mais amplo do que as transações meramente públicas.
O Estado brasileiro, em especial,é doente e esse parece ser o grande
problema de não se enfrentarem ainda questões essenciais. Estado fraco não
transmite estabilidade, confiança; ao contrário, parece deformar as relações
sociais, estimulando a “chaga da sonegação”, pela pouca visibilidade do uso do
tributo. O último governo saiu do cenário sem ter implantado uma reforma
tributária; é deixar um vazio irreparável. Pergunta-se: quem a fará agora? O
próximo governo conseguirá implementar mesmo uma reforma desta grandeza
em nosso painel tributário?
Uma parcela enorme de pessoas está cada vez mais dispersando sua vontade
de atuar mais socialmente, cristalizada que está de descréditos. A
administração brasileira nos passa, a muito tempo, a impressão de “uma
passagem episódica”, que se submete temporariamente a ciclos de uns
comandantes e depois de outros, do que nos transmite a noção do Estado
contínuo, voltado para a direção de valores permanentes de uma nação mais
justa.
A ausência de fundamentos estáveis e duradouros talvez seja o centro difusor
da crise do Estado brasileiro Ser um Estado contínuo. Virão as eleições mais
uma vez... Aí, talvez, sejamos submetidos aos novos processos de
descontinuidades, de desmontes, de novas orientações, e, quem sabe? de
pouquíssimos avanços verdadeiros.
Esse observar atento de qualquer homem comum, tão apropriado também para
a coisa pública, que Balzac (66) chamou, sabiamente, de “a gastronomia dos
olhos”, não pode apetecer o paladar comum ou encantar os olhos se o cheiro
vindo da cozinha não tem o bom aroma da comida caseira ou quando não se
confia nem nos cozinheiros nem na receita.
(Artigo publicado no Jornal do Commercio, caderno Economia & Negócios
Recife, Pernambuco, em 07.03.2002)
Notas:
(64) Platão: Discípulo de Sócrates, fundador da Academia e mestre de Aristóteles. Sua filosofia é
de grande importância e influência. Platão ocupou-se com vários temas; entre eles, ética, política,
metafísica e teoria do conhecimento.
Platão nasceu em Atenas, provavelmente em 427 a.C,. e morreu em 347 a.C., um ano após a
morte do estadista Péricles. Por volta dos 20 anos, encontrou o filósofo Sócrates e tornou-se seu
discípulo até a morte deste. Pouco depois de 399 a.C., Platão esteve em Mégara com alguns
outros discípulos de Sócrates, hospedando-se na casa de Euclides. Em 388 a.C., quando já
contava quarenta anos, Platão viajou para a Magna Grécia com o intuito de conhecer mais de
perto comunidades pitagóricas. Nessa ocasião, veio a conhecer Arquitas de Tarento. Ainda
durante essa viagem, Dionísio I convidou Platão para ir a Siracusa, na Sicília. Platão partiu para lá
com a esperança de lá implantar seus ideais políticos. No entanto, acabou se desentendendo com
o tirano local e retornou para Atenas.
Em seu retorno, fundou a Academia. A instituição logo adquiriu prestígio, e a ela acorriam
inúmeros jovens em busca de instrução e até mesmo homens ilustres a fim de debater ideias. Em
367 a.C., Dionísio I morreu, e Platão retornou para lá a fim de mais uma vez tentar implementar
suas idéias políticas na corte de Dionísio II. No entanto, o desejo do filósofo foi novamente
frustrado. Em 361 a.C. voltou pela última vez à Siracusa com o mesmo objetivo e pela terceira vez
fracassa. De volta para Atenas em 360 a.C., Platão permaneceu na direção da Academia até sua
morte.
Em linhas gerais, Platão desenvolveu a noção de que o homem está em contato permanente com
dois tipos de realidade: a inteligível e a sensível. A primeira é a realidade, mais concreta,
permanente, imutável, igual a si mesma. A segunda são todas as coisas que nos afetam os
sentidos, são realidades dependentes, mutáveis e são imagens das realidades inteligíveis.
Tal concepção de Platão também é conhecida por Teoria das Ideias, ou Teoria das Formas. Foi
desenvolvida como hipótese no diálogo Fédon e constitui uma maneira de garantir a possibilidade
do conhecimento e fornecer uma inteligibilidade relativa aos fenômenos.
Para Platão, o mundo concreto percebido pelos sentidos é uma pálida reprodução do mundo das
Idéias. Cada objeto concreto que existe participa, junto com todos os outros objetos de sua
categoria, de uma ideia perfeita. Uma determinada caneta, por exemplo, terá determinados
atributos (cor, formato, tamanho, etc). Outra caneta terá outros atributos, sendo ela também uma
caneta, tanto quanto a outra. Aquilo que faz com que as duas sejam canetas é, para Platão, a
idéia de caneta, perfeita, que esgota todas as possibilidades de ser caneta.
A ontologia de Platão diz, então, que algo é na medida em que participa da ideia desse objeto. No
caso da caneta, isso é irrelevante, mas o foco de Platão são coisas como o ser humano, o bem ou
a justiça, por exemplo.
O problema que Platão propõe-se a resolver é a tensão entre Heráclito e Parmênides. Para o
primeiro, o ser é a mudança, tudo está em constante movimento e é uma ilusão a estaticidade, ou
a permanência de qualquer coisa. Para o segundo, o movimento é que é uma ilusão, pois algo que
é não pode deixar de ser e algo que não é não pode ser; assim, não há mudança.
Platão também elaborou uma teoria gnosiológica, ou seja, uma teoria que explica como se pode
conhecer as coisas, ou, ainda, uma teoria do conhecimento. Segundo ele, ao ver um objeto
repetidas vezes, uma pessoa lembra-se, aos poucos, da ideia daquele objeto, que viu no mundo
das idéias. Para explicar como se dá isso, Platão recorre a um mito (ou uma metáfora) que diz
que, antes de nascer, a alma de cada pessoa vivia em uma estrela, onde localizam-se as idéias.
Quando uma pessoa nasce, sua alma é "jogada" para a Terra, e o impacto que ocorre faz com que
esqueça o que viu na estrela. Mas, ao ver um objeto aparecer de diferentes formas a alma
recorda-se da idéia daquele objeto que foi vista na estrela. Tal recordação, em Platão, chama-se
anamnesis.
Platão compara a raça humana a carros alados. Tudo o que fazemos de bom dá forças às nossas
asas. Tudo o que fazemos de errado tira força das nossas asas. Ao longo do tempo, fizemos
tantas coisas erradas que nossas asas perderam as forças e, sem elas para nos sustentarmos,
caímos no mundo sensível, onde vivemos até hoje. A partir deste momento, fomos condenados a
vermos apenas as sombras do mundo das idéias.
Platão acreditava que a alma depois da morte reencarnava em outro corpo, mas a alma que se
ocupava com a filosofia e com o bem, era privilegiada com a morte do corpo. A ela era concedida
o privilégio de passar o resto de seus tempos em companhia dos deuses.
(65) Petrônio ou Petronius : Foi um escritor romano, mestre na prosa da literatura latina, satirista
notável, autor de Satíricon. Não existem provas seguras acerca da identidade de Petrônio, mas é
hoje quase certo que se trata de Gaius Petronius Arbiter ou Titus Petronius, distinto frequentador
da corte do imperador Nero.
Petrônio nasceu em Marselha no ano de 14 a.C. Nascido de uma família aristocrática e abastada,
mostrou toda sua competência política ao ocupar os cargos de governador e depois o de cônsul
da Bitínia, atual Turquia. Depois ocupou o cargo de conselheiro de Nero, sendo nomeado arbiter
elegantiae (árbitro da elegância, em 63). Em 65, acusado de participar na conspiração contra o
imperador e caindo em desfavor, acabou com sua estranha vida, uma mistura de atividade e de
libertinagem, no ano de 66 d.C., cometendo um lento e relaxado suicídio, abrindo e fechando as
veias, enquanto discursava sobre temas joviais, mandando para Nero um documento no qual
detalhava seus abomináveis passatempos.
Sobre ele, na famosa obra Anais, o historiador Tácito traçou uma imagem viva, que vale a pena
ser lembrada e transcrita.
Petrônio consagrava o dia ao sono, e a noite aos deveres e aos prazeres. Se outros chegam à
fama pelo trabalho, ele adquiriu-a pela sua vida descuidada. Não tinha a reputação de dissoluto ou
de pródigo, como a maioria dos dissipadores, mas a de um voluptuoso refinado em sua arte. A
própria incúria, o abandono que se notava nas suas ações e nas suas palavras, davam-lhe um ar
de simplicidade, emprestando-lhe um valor novo. Contudo, procônsul na Bitínia e depois cônsul,
deu prova de vigor e de capacidade. Voltando aos seus vícios ou à imitação calculada dos vícios,
foi admitido entre os poucos íntimos de Nero e tornou-se na corte o árbitro do bom gosto: nada
mais delicado, nada mais agradável do que aquilo que o sufrágio de Petrônio recomendava ao
príncipe, sempre embaraçado na escolha.
Nasceu daí a inveja de Tigelino, o prefeito do pretório e poderoso conselheiro de Nero, que
receava um concorrente mais hábil do que ele na ciência da volúpia. Conhecendo a crueldade do
imperador, sua qualidade dominante, insinuou que Petrônio era amigo do conjurado Flávio
Scevino; em seguida comprou um delator entre os escravos do acusado, vedando-lhe qualquer
defesa e mandando prender membros da sua família. O imperador encontrava-se então na
Campânia, e Petrônio tinha-o acompanhado até Cumes, onde recebeu ordem de ficar. Ele,
sabendo que o seu destino já estava marcado, repeliu tanto o temor quanto a esperança, mas não
quis se afastar bruscamente da vida. Abriu as veias, fechou-as depois, abrindo-as novamente ao
sabor da sua fantasia, falando aos amigos e ouvindo-os por sua vez, mas nada havia de grave
nas suas palavras, nenhuma ostentação de coragem; não quis ouvir reflexões sobre a imortalidade
da alma nem sobre as máximas dos filósofos: pediu que lhe lessem somente versos zombeteiros
e poesias ligeiras. Recompensou alguns escravos e mandou castigar outros; chegou a passear,
entregou-se ao sono a fim de que sua morte, ainda que provocada, parecesse natural. Não adulou
no seu testamento Nero ou Tigelino ou qualquer outro poderoso do dia, como fazia a maioria dos
que pereciam. Mas, em nome de jovens impudicos ou de mulheres perdidas, narrou as
davassidões do príncipe e os seus refinamentos; mandou o escrito a Nero, fechado, imprimindolhe o sinete de seu anel, que destruiu para que não fizesse vítimas mais tarde.
Era esse o ambiente da corte de Nero. Porém, havia nela um personagem desse mundo cheio de
contrastes — Petrônio. A maioria de seus críticos admite que foi ele o “arbiter elegantiarum” da
época, o autor do “Satíricon”. E, entre os muitos estudiosos interessados no assunto, houve
inclusive opiniões divergentes, mas o parecer mais acertado parece ter sido o do estudioso italiano
Marchesi: “Petrônio, nos últimos momentos da vida, teria acrescentado alguma página ao seu
romance, enviando-a ao imperador, feroz e desequilibrado, como presente de uma vítima
aristocrática e refinada. O filósofo Sêneca enviou alguma página de moral; Petrônio, a pintura e a
descrição daquele mundo terrivelmente corrupto”. O Satíricon não nos chegou íntegro e sim
fragmentário. Mesmo assim, o que ficou dele basta para considerar as páginas de Petrônio um
monumento literário de incomparável beleza artística e de inestimável valor para a reconstrução da
vida particular da antiga Roma.
(66) Honoré de Balzac (Tours, 1799 — Paris, 1850) Foi um romancista francês, um dos maiores
nomes do realismo na literatura. As suas obras são, no entanto, cunhadas sobre a tradição literária
do romantismo francês. Sua A Comédia Humana (La comédie humaine), que reúne 88 obras,
procura retratar a realidade da vida burguesa da França na sua época.
Os hábitos de trabalho de Balzac tornaram-se lendários — escrever cerca de quinze horas por
dia, impulsionado por um sem-número de chávenas de café. Com uma produção volumosa, é
frequente que se apontem pequenas imperfeições em sua obra — o que, no entanto, não é
suficiente para retirar de muitas delas o epíteto de obras-primas.
A prosa realista de Balzac e seu fôlego como um retratista quase enciclopédico de sua época
sobrepujam eventuais características menos invejáveis de seu estilo e o posicionam como um
bastião da literatura francesa.
Balzac foi sepultado no cemitério do Père Lachaise, em Paris, e seu jazigo conta com uma estátua
realizada por Auguste Rodin. O discurso foi feito por Victor Hugo.