caderno de textos

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caderno de textos
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
CADERNO DE TEXTOS
III MÓDULO DO CURSO REGIONAL CENTRO OESTE – 05 a 11 de abril de 2008 CESIR/CONTAG - BRASÍLIADF
III Módulo Regional Centro Oeste
CESIR/CONTAG – Brasília-DF, 05 a 11 de abril de 2008
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Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
CURSO DE FORMAÇÃO DE EDUCADORES/AS EM CONCEPÇÃO, PRÁTICA SINDICAL E
METOODLOGIA DA FOR
FORMAÇÃO.
MAÇÃO.
III MÓDULO REGIÃO CENTRO OESTE
Cesir/Contag/BSB – 05 a 11 de abril/2008.
EIXO TEMÁTICO – DESENVOLVIMENTO, SUSTENTÁVEL E SOLIDÁRIO: DESAFIOS E PERSPEC
PERSPECTIVAS
EIXO PEDAGÓGICOPEDAGÓGICO-METOOLDOÓGICO: PEDAGOGIA PARA UMA NOVA SOCIABILIDADE E ME
MEMÓRIA E IDENTIDADE
OBJETIVO: contribuir com a formação de militantes do MSTTR, de modo que aprimorem sua capacidade multiplicadora e
potencializadora da ação formativa em suas áreas de atuação.
OBJETIVOS ESPECIFICOS:
•
Socializar e aprofundar referenciais teóricos, políticos e ideológicos que fundamentam e alimentam os ideais e a luta sindical e popular.
•
Re-avaliar e fortalecer a luta sindical, numa visão e prática transformadoras, estimulando processos de mudanças de atitudes, comportamentos
e práticas individuais e coletivas, coerentes com as exigências de implementação do PADRSS.
•
Favorecer a experimentação, sistematização e apropriação de novas metodologias pedagógicas que realimentem a prática formativa do movimento sindical.
Contribuir para a constituição de uma rede de formadores/as que assumam e implementem o projeto de formação do MSTTR.
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•
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Dia 05 de abril de 2008 – sábado.
Horários
Manha
Temas/subTemas/sub-temas
Abertura política
10:00h
Acolhida
Reconstrução da vivencia:
um olhar temático para caminhada
(módulos 1º e 2º)
Acertos de trabalho: acordos de convivência e comissões de trabalho.
Objetivo
Estratégias
Estratégias Metodológicas
Construir ambientação que ajude o
grupo refletir sobre a convivência
durante o módulo
Mística ou dinâmica que retome dimensões da aprendizagem do grupo
e seus significados
Reafirmar os compromissos, princípios e objetivos do processo formativo.
Responsáveis
Equipe Escola e
Estudantes do DF
Utilizar mapas mentais para recompor tematicamente os dois módulos
anteriores.
Rememorar aspectos relevantes do
processo formativo e construir pontes entre os módulos
Dialogar com a turma sobre os compromissos a serem assumidos e a
importância de sua efetivação.
Refletir sobre as matrizes estruturadoras da formação sindical e seu
papel estratégico na ação sindical
Exposição dialogada sobre a PNF e
sues instrumentos
A Política nacional de formação – PNF e seus instrumentos.
Tarde
Territorialidade
Ruralidade
Compreender as diferentes concepções de DRS e seus impactos
no espaço rural brasileiro;
Compreender as matrizes estruturadoras do desenvolvimento e sua
lógica socioeconômica produtiva.
Exposição e debate.
Exposição: Professor Marcelo
Mina Dias – UFV
Universidade
Federal de Viçosa
Dia 06 de abril de 2008 – domingo.
domingo.
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Concepções
Concepções de DesenvolviDesenvolvimento sustentável e soli
solidário
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Horários
Temas/subTemas/sub-temas.
Objetivo
Estratégias Metodológicas
Responsáveis
Manhã
A Sócioeconomia solidária:
solidária:
abordagens, experiências (os
sujeitos e suas práti
práticas).
Refletir sobre concepção e práticas solidárias e como se expressam no cotidiano social, econômico, organizativo e produtivo.
Exposição e debate
Expositor:
Expositor:
Roberto Marinho SENAES/MTE
Tarde
Gênero e Desenvolvimento
Refletir sobre os diferentes papéis:
sociais, reprodutivos e produtivos
desenvolvidos por mulheres e homens na família e na Unidade familiar de produção.
Exposição e debate
Expositora:
Expositora
a unidade familiar de produção, os sujeitos e suas relações sociais produtivas e reprodutivas
Cristina
Buarque
Dia 07 de abril de 2008 – segunda.
Manhã
Temas/subTemas/sub-temas.
O Desenvolvimento Regio
Regional:
característi
características sócio
sócioioeconômicas e produtivas.
as frentes pioneiras e de
expansão
os grandes projetos – assalariamento rural
o pantanal e suas características
o papel formador do Estado
Objetivo
Estratégias Metodológicas
Compreender a formação do espaço regional e suas características sócio-ambiental e econômica.
Refletir sobre o desenvolvimento
regional e os desafios da ação
sindical regionalmente
Visibilizar o campo e sua diversidade social, produtiva e cultural;
Socializar os principais elementos
Exposição dialogada
Responsáveis
Exposição:
Socorro Silva
Professora da
UNB.
Ciranda: cada estado faz suas apre-
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Horários
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Políticas de desenvolvi
desenvolvimento
nos Estados: ativi
atividades interintermódulos.
Socialização
Reflexão
Preparação para visita
Tarde
identificados.
Formulação de roteiro.
Organização de equipes
de trabalho.
Refletir sobre percepções, aprendizagens, limites desafios para ação sindical.
Fazer socialização dos aspectos
organizativos da visita, seus objetivos e estratégia no processo de
aprendizagem.
Formular roteiro-guia sobre a visita
e organizar equipes de trabalho,
buscando na relação teoria:
teoria identificar como os trabalhadores compreendem as políticas de DRSS;
quais aspirações, sonhos, (visão
de futuro). Na relação com a prátiprática – sustentabilidade social, econômica e ambiental que ações são
praticadas em direção do DRSS.
Definir blocos temáticos: políticas
públicas que nos interessa investigar.
sentações de forma criativas - MT,
MS, GO e DF.
Em seguida haverá um debate sobre
as similaridades contradições, potencialidades e desafios para a ação
sindical.
Será socializado o roteiro-guia formulado na Oficina e aprimorado de modo a atingir aos objetivos da visita.
Poderá ser feito grupos para aprimorar o roteiro. Defini previamente alguns blocos temáticos e estes reformulam o roteiro.
Equipe Escola
Equipe Escola e
Gilberto Vie
Viegas.
gas
Dia 08 de abril de 2008 – terça
Manhã e
tarde
(com saída
Temas/subTemas/sub-temas.
Visita ao assentamen
assentamento
Cunha
Objetivo
Experimentar metodologia participativa, vivenciar diálogo de multiplicação de conhecimento e aprendizagens.
Promover troca de experiências,
Dialogar sobre os desejos, sonhos,
Estratégias Metodológicas
Haverá inicialmente apresentação do
grupo aos trabalhadores/as do assentamento e explicado os objetivos
da visita.
O grupo será subdividido e orientado
a fazerem as observações e diálogos
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Responsáveis
Equipe Escola e
Gilberto Vie
Viegas
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Horários
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às 6:00h e
retorno às
17:00h)
limites e potencialidades do desenvolvimento.
Perceber como os trabalhadores/as percebem o DRSS na sua
prática cotidiana.
Perceber que prática cotidiana os
trabalhadores/as desenvolvem em
direção aos desejos, sonho e visão
de futuro.
programados.
Haverá reunião com associados/as e
estudantes para falar da visita e posteriormente com as equipes para trocar impressões e sugestões e partilhar aprendizagens.
O almoço e lanche serão servidos no
assentamento.
O retorno à Brasília será no final do
dia.
Dia 09 de abril de 2008 – quarta
Manhã
(podemos
começar às
10h da
manhã). O
grupo só
terá este
período
livre
Tarde
(Terminaremos os
trabalhos
do dia às
16:00h
para organizar festa
de formatura)
Temas/subTemas/sub-temas.
Diálogo sobre a visita
Objetivo
Dialoga pedagógico:
pedagógico A ação
sindical no Desenvolvimento
Rural Sustentável e Solidário
DRSS.
Refletir sobre questões observadas, aprendizagens, impressões/lições/aprendizagens - na relação teoria prática.
Trocar experiências e dialogar sobre impressões, lições e aprendizagens relativas à visita.
Refletir sobre o papel do MSTTR
nos processos de desenvolvimento
sustentáveis e solidários, identificando: potencialidades, fragilidades, contradições, limites desafios....
Estratégias Metodológicas
Tirando do Baú:
Baú revelações, aprendizagens, contradições, inquietações;
Em que aspectos/medida as questões observadas dialogam com a prática sindical ...
Rodas de conversa ou trabalho em grugrupos
Responsáveis
Equipe Escola e
Gilberto Vie
Viegas
Equipe Escola
Acúmulo construído até então já nos
permite fazer algumas reflexões sobre a prática sindical no que se refere às questões do DRSS?
Que ensinamentos, inquietações,
lições tiramos das reflexões feitas
até o momento?
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Horários
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Noite
Formatura às 19:30h seguida de festa
Dia 10 de abril de 2008 – quinta
Temas/subTemas/sub-temas.
As tendências do DRSS e a ação
sindical (síntese temáti
temática)
Manhã
As políticas de Educação do
Campo, organização da produprodução, participação social e quesquestão agrária:
Objetivo
Refletir sobre a ação sindical frente
às tendências do DRSS e seus desafios.
Construir entendimentos comuns
sobre as concepções e estratégias
adotadas pelo MSTTR na região
quanto às políticas: de educação do
campo, organização da produção, luta pela terra, gestão e controle de políticas públicas para o campo.
Estratégias Metodológicas
Mesa redonda:
(os expositores são da Contag e
devem estar presente nos momentos de sínteses para fazerem um diálogo reflexivo sobre
proposições e desafios)
Socialização dos trabalhos dos
Dialogar sobre os desdobramentos
Construção de síntese temática
problematizadora e orientadora
da ação sindical
As exposições devem: explicitar,
concepções, estratégia política
institucional e sues desafios.
Trabalho em gru
grupos:
Em que medida estas políticas
dialoga com a realidade dos trabalhadores/as.
As estratégias adotadas correspondem às necessidades dos
trabalhadores/as?
A luz das tendências – as políticas aqui refletidas dialogam de
que maneira? O que sinalizam
de desafios para a ação sindical
regionalmente?
Como as Federações interagem
com essas políticas nos espaços
locais?
Responsáveis
Equipe Escola
Escola
Expositores/as:
Eliene (assessora
da Contag) Paulo
Poleze (assessor
da Contag), GilGilberto Viegas (assessor da Contag
e Nicinha (assessora da Contag).
Socialização dos traba
trabalhos em
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Horários
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grupos
Tarde
(termina as
17:00h)
da estratégia da Escola nos Estados.
grupos – síntese sobre principais questões
Estratégias de continuida
continuidade das
ações formativas nos es
estados:
Cursos estaduais
Grupos de Estudos Sindicais
Equipe Escola
Apresentação da estratégia política da Escola nos Estados.
Dia 11 de abril de 2008 – sexta feira
Manhã
termina às
13:00h
Temas/subTemas/sub-temas.
Avaliação do Curso e encerraencerramento
Objetivo
Refletir sobre o processo formativo:
significados e aprendizagens para
educandos/as e para a ação sindical.
Identificar lacunas - temáticas e metodológicas -, e levantar sugestões
para o aprimoramento do processo
formativo com as novas turmas.
Estratégias Metodológicas
Responsáveis
Dinâmica reconstruindo a caminhada (pensar numa forma lúdica que proporcione um reencontro com a prática pedagógica e
seu significado na caminhada
formativa).
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Horários
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Concepções sobre desenvolvimento: uma abordagem
introdutória ao debate atual 1
Marcelo Miná Dias 2
A palavra desenvolvimento mobiliza imediatamente valores positivos. Desde o
segundo pós-guerra, o termo “desenvolvimento” vem sendo utilizado para nomear
processos de mudanças econômicas que são representados como essencialmente
positivos aos grupos sociais por eles atingidos ou beneficiados. Não sem razão, ele
é usado com freqüência nos discursos políticos e em slogans governamentais. A
própria noção de desenvolvimento confunde-se assim com a idéia de um futuro qualitativamente melhor como resultado de mudanças sociais provocadas. Disto resulta,
em parte, sua enorme aceitação e uso. A promoção do desenvolvimento anima mobilizações, ações coletivas, cria e recria habilidades institucionais, competências profissionais e orienta e legitima intervenções.
Naturalizada, a noção de desenvolvimento parece inquestionável. Ao ser enunciado, o desenvolvimento parece explicar-se por si só, dispensando maiores esclarecimentos sobre sua própria definição, os modos de sua realização, as intenções
políticas das ações que buscam promovê-lo etc. Talvez este fato seja decorrência do
caráter normativo que a noção de desenvolvimento tende a assumir. Ao definir desenvolvimento elabora-se mais uma prescrição do que deve ser o desenvolvimento
do que uma descrição, uma explicação sobre o que é desenvolvimento. Por vezes
esquece-se que desenvolvimento é um conceito socialmente construído, polissêmico, contingente e sujeito a disputas para atribuição de significados e a usos políticoideológicos diversos. Neste sentido, tornam-se importantes as lições das experiências concretas que tentaram realizá-lo. Não como modelos a serem copiados e reproduzidos, mas como fatores explicativos sobre como ocorreu o desenvolvimento e
o quê contribuiu para a sua realização.
As experiências concretas, nesta perspectiva compreensiva, tornam legítimas
ou ilegítimas concepções e modos de promoção do desenvolvimento. Na prática, de
um modo geral e ao contrário desta percepção mais contingente, as visões sobre o
desenvolvimento tenderam a imaginá-lo como um processo histórico quase inevitável de constante acúmulo e progresso que, uma vez desencadeado, objetiva deixar
para trás determinados envolvimentos prévios, tradições, costumes, concepções,
valores, práticas etc. A realização do desenvolvimento ofereceria outra ordem às
realidades sociais, partindo de contextos mais simples e tradicionais, alvos destas
ações, até alcançar ordenamentos econômicos e sociais mais complexos e modernos (Giddens, 1991).
Desenvolvimento, progresso, evolução. A estas palavras poderíamos juntar
algumas outras como modernização, ocidentalização, civilização. Todas têm em
comum o fato de serem usadas para tentar expressar o movimento histórico da humanidade e sentido/orientação deste movimento (Favareto, 2007, p.40).
1
Este texto é um extrato de outro intitulado “Outras visões sobre a promoção do desenvolvimento e os desafios aos
serviços de extensão rural”, elaborado em 2007 para o Instituto Brasileiro de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
O material aqui apresentado tem modificações pontuais em relação ao texto original. Trata-se de uma primeira versão. Contribuições são muito bem-vindas: [email protected].
2 O autor é Professor Adjunto do Departamento de Economia Rural da Universidade Federal de Viçosa (DER/UFV).
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Este sentido, na concepção convencional ou dominante de desenvolvimento,
é único: do atraso à modernidade. Para Cowen & Shenton (1996), as concepções
modernas sobre desenvolvimento tiveram origem concomitante ao surgimento da
sociologia. A visão clássica construída sobre o desenvolvimento associava sua ocorrência à contínua evolução econômica de uma sociedade, que garantiria seu progresso permanente e auto-impulsionado, compreendido como a gradual superação
dos limites impostos pelos diversos tipos de apego a tradições (Latouche, 1988).
Assim, a promoção do desenvolvimento tem sido relacionada quase que exclusivamente às capacidades sociais de acumular conhecimentos e tornar os processos
produtivos mais eficientes, gerando com isso ganhos econômicos. Esta definição faz
com que desenvolvimento e crescimento econômico se tornem noções equivalentes.
O desenvolvimento passou a ser medido pelo tamanho das economias nacionais e pela capacidade dos países em produzir e acumular riquezas. O Produto Interno Bruto (PIB) tornou-se o principal meio para aferição do desenvolvimento dos
países. Com isso, disseminou-se a ideologia de que a promoção do crescimento econômico beneficiaria as sociedades como um todo; de que os frutos do crescimento
econômico seriam compartilhados socialmente. Esta ideologia sucumbiu à realidade
de pobreza, exclusão e desigualdade social que marcou o processo de desenvolvimento industrial e urbano brasileiro a partir da década de 1950.
(...) foram surgindo evidências de que o intenso crescimento econômico ocorrido durante a década de 1950 em diversos países semiindustrializados (entre os quais o Brasil) não se traduziu necessariamente em maior acesso de populações pobres a bens materiais e culturais, como ocorrera nos países considerados desenvolvidos. A começar pelo acesso à educação e à saúde (Veiga, 2005, p.19).
Esta ênfase nos resultados macroeconômicos colocava em um plano secundário outros objetivos para a promoção do desenvolvimento. Para Santos & Rodríguez (2002, p.46), houve, historicamente, uma marginalização de objetivos sociais,
econômicos e políticos. Estes objetivos incluiriam a participação mais bem qualificada das populações atingidas pelos programas, uma preocupação com a “distribuição
eqüitativa dos frutos do desenvolvimento e a preservação do meio ambiente”.
As estratégias centradas no crescimento econômico passaram a ser questionadas em sua capacidade real para promover melhorias nas condições de vida e de
trabalho das populações. De fato, o principal legado dos esforços em prol do desenvolvimento desde a Segunda Guerra Mundial havia sido as enormes desigualdades
entre países (e dentro dos próprios países), de modo que temas com a fome, a pobreza, a injustiça social e a degradação ambiental permaneciam como mazelas
(Chesnais, 1986). Neste debate, economistas não aceitavam a retórica da iniqüidade
na distribuição de renda como um traço intrínseco ao desenvolvimento. A prosperidade material das nações, avaliada pelo incremento nos índices nacionais de renda,
deixaria de ser uma medida única à aferição do desenvolvimento.
As visões difundidas por este amplo debate, embora bastante diversas, tornavam evidente que se estava discutindo a insustentabilidade, no longo prazo, das estratégias convencionais de promoção do desenvolvimento. Os padrões de produção
e consumo estariam conduzindo a um tipo de escassez diferente daquela alardeada
pelos estudos focados nos limites do crescimento da década de 1970. Ao invés de
absoluta, vivia-se uma ameaça de escassez relativa dos recursos ambientais e de
produção.
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O conceito de sustentabilidade difundido pelo “Relatório Brundtland” – também conhecido pelo título de “Nosso futuro comum”, de 1987 – projetava três dimensões fundamentais para a formulação de políticas ao desenvolvimento: a ambiental, a social e a econômica. A ambiental apontava tanto para a preservação quanto para um uso mais racional dos recursos naturais. A dimensão social estava preocupada com a qualidade de vida das populações, associando-se à noção de desenvolvimento humano, que posteriormente seria amplamente difundida pela (Organização das Nações Unidas (ONU). A dimensão econômica, por fim, propunha rever a
lógica do crescimento econômico, limitando-o à consideração da distribuição da riqueza e à racionalização do uso dos recursos naturais. Para tanto, foram feitas várias recomendações de ações para os governos, tais como: limitar o crescimento
populacional, garantir a segurança alimentar das populações, preservar a biodiversidades dos ecossistemas, desenvolver fontes de energia renováveis, limitar a produção industrial a determinantes ecológicos e satisfazer as necessidades básicas das
populações mais pobres (Guzmán, 1997).
A aceitação da sustentabilidade – social, econômica e ambiental – como parâmetro para a promoção do desenvolvimento foi referendada por representantes de
governos, cientistas, políticos e ativistas sociais durante a Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (UNCED), realizada em 1992 no Rio de Janeiro. Paralelo à conferência foi realizado o Fórum Mundial, reunião de diversas entidades da sociedade civil e ONGs de mais de 150 países. A Rio-92, como ficaram
conhecidas a conferência e seus encontros paralelos, deu enorme visibilidade ao
debate ambientalista e às organizações da sociedade civil, ao mesmo tempo em que
deixou a impressão de ter alcançado poucos avanços concretos principalmente em
relação ao aumento da capacidade global de governa a crise ambiental diagnosticada (Leis, 1999). O documento mais importante da conferência foi a Agenda 21, uma
carta de intenções que, de acordo com Fisher (1998), combina duas perspectivas de
ação sobre o desenvolvimento, uma que enfatiza a necessidade de acesso aos recursos pelos mais pobres e outra preocupada com a administração sustentável dos
recursos naturais.
Inaugurava-se uma fase de revigoramento da noção de desenvolvimento, agora qualificada de desenvolvimento humano e sustentável (Cepal, 1990). Entre
questionamentos e análises, propunha-se que o desenvolvimento deveria ter uma
“face humana”. Em Desenvolvimento como Liberdade, por exemplo, Amartya Sen
faz uma crítica poderosa às visões economicistas convencionais, ao conceituar o
desenvolvimento como um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas possuem e de expansão das capacidades do ser humano (Sen, 1999). A liberdade, para este autor, deve ser entendida de uma maneira ampla, incorporando o
reconhecimento da heterogeneidade de seus componentes.
A noção de liberdade de Sen abrange dimensões que se inter-relacionam,
como a liberdade política, as facilidades econômicas, as oportunidades sociais, a
transparência e a segurança. A efetividade instrumental da liberdade diz respeito ao
fato de que gozar a liberdade em uma de suas dimensões pode contribuir significativamente à conquista de liberdade em outras de suas dimensões. Aos indivíduos, as
suas capacidades permitem-lhes que vivam vidas nas quais façam o que valorizam
– trata-se de liberdade de escolha ou opção. Para o autor, os envolvidos com a promoção do desenvolvimento deveriam se questionar sobre quais seriam as condições
necessárias para que os sujeitos realizem seus potenciais, enriquecendo sua vida
por meio da expansão de suas capacidades.
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Além das necessidades básicas, a educação, a saúde, as oportunidades econômicas, os direitos humanos e a eqüidade social afirmavam-se como dimensões à
aferição do desenvolvimento. Na década de 1990, as novas idéias levariam o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) a lançar uma nova metodologia mais complexa de aferição do desenvolvimento, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que considera referências como qualidade de vida, longevidade e nível de conhecimentos, além do tradicional indicador de renda per capita
(Boiser, 2000).
Estes debates traziam desafios às estratégias convencionais de promoção do
desenvolvimento. Como enfoque normativo, o desenvolvimento havia se tornado um
conceito pouco referido a situações concretas e apropriado por aspirações políticas
diversas. As vozes dissidentes e críticas pediam por redefinições, redirecionamentos
e adequações dos objetivos e métodos diante do diagnóstico da falência das ações
até então empreendidas. Os resultados contestáveis dos ideais de progresso aplicados às políticas desenvolvimentistas indicaram a necessidade de se reconhecer outros valores, implicando o declínio da força normativa da idéia de história universal.
Deste modo, neste novo contexto, a concepção de modelos de desenvolvimento como processos cujas propriedades seriam transferíveis das sociedades desenvolvidas àquelas não-desenvolvidas encontrava enormes dificuldades para se
legitimar. O viés etnocêntrico foi posto em questão e a dimensão cultural do desenvolvimento assumiu um papel relevante na formulação das intenções de sua promoção (Tucker, 1996). Entre os vários qualificativos aos quais seria então sistematicamente associado, o desenvolvimento passou a ser discursado como autodependente, autêntico, endógeno, solidário, integrado, voltado à satisfação das necessidades
básicas, participativo, local, territorial, centrado nas pessoas, humano e sustentável.
Todos estes qualificativos tentavam incorporar o teor das mudanças reclamadas por
meio de novos enfoques à compreensão dos limites das estratégias convencionais
de desenvolvimento, que tinham como objetivo quase exclusivo o crescimento econômico.
Como explica Latouche (1988), a partir destas críticas a visão sobre o desenvolvimento tornar-se-ia, de um modo geral, mais complexa e preocupada com as
implicações ambientais e sócio-culturais de sua promoção. É importante perceber
que não se trata apenas de um processo de revisão conceitual. As intervenções em
prol do desenvolvimento também passaram a ser, gradualmente, menos estatais,
mais localizadas ou descentralizadas, com maior participação de agentes locais e
regionais envolvidos na elaboração e condução de projetos.
Estas mudanças na institucionalidade da promoção do desenvolvimento relacionavam-se, desde suas origens, de um lado, ao enxugamento dos Estados nacionais sob influência do neoliberalismo e, de outro, às experiências locais, aos pequenos empreendimentos ou aos projetos estimulados por organizações comunitárias,
associações, sindicatos, universidades e outras organizações não-governamentais
que agiam de modo relativamente independente aos aparatos governamentais (Fisher, 1998). A partir da década de 1970 foi-se diversificando o campo dos atores
envolvidos nesta tarefa.
Nos países mais pobres, organizações não-governamentais assumiam papéis
cada vez mais importantes à condução de ações públicas complementares ou alternativas à ação dos aparatos governamentais. Como argumenta Nerfin (1977), intervenções alternativas vingaram no terreno de um “terceiro sistema político”, aquele
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que partia do diagnóstico dos fracassos governamentais (o primeiro sistema) e do
poder econômico (o segundo sistema) para promover o desenvolvimento de modo a
atender as demandas dos setores populares das sociedades.
Para Korten (1990), a força dos discursos que propunham revisão das concepções sobre o desenvolvimento reside na necessidade de mudanças institucionais
e políticas. Reforçando este argumento, as experiências conduzidas por ONGs foram fundamentais à elaboração e à consolidação de novas estratégias à promoção
do desenvolvimento, que não estariam voltados prioritariamente ao crescimento econômico pela acumulação de capital, mas para um tipo de transformação social
mais localizada e cuja ênfase recairia na capacitação das pessoas, para que elas
pudessem organizar processos produtivos menos dependentes de fatores externos
(Santos & Rodriguez, 2002, Dias, 2004).
Nesta perspectiva, o objetivo maior seria o desenvolvimento humano, ou o
processo pelo qual os membros de uma sociedade incrementariam suas capacidades pessoais e institucionais para mobilizar e maximizar recursos e produzir com
sustentabilidade, distribuindo, por entre todos, as melhorias em qualidade de vida.
Os meios para alcançá-lo deixavam de ser unicamente o capital, a tecnologia, o comércio, o investimento estrangeiro e a presença de especialistas externos e passavam a ser, prioritariamente, as pessoas, suas habilidades, os recursos e os conhecimentos locais, organizados de modo mais cooperativo, solidário e participatório. Ao
contrário da crença nos exemplos exógenos e na transferência de tecnologias, a
modernização seria alcançada por meio da articulação e do estímulo às capacidades
locais, compreendendo tradição e modernidade como complementos (Korten, 1990).
No Brasil, as organizações do chamado “terceiro setor” contribuíram para tornar pública a mobilização e a luta cotidiana de vários atores que movimentavam a
sociedade desde suas localidades, inventando modos criativos para intervir em suas
realidades e promover o desenvolvimento. Com isso, a agenda política do desenvolvimento mudou gradativamente, abrindo espaço para novos temas como, por exemplo, a necessidade de participação mais ativa dos beneficiários das ações, a importância do fator local ou territorial para a formulação de políticas públicas, a sustentabilidade como critério para a implantação de projetos, a consideração do papel da
mulher nas relações de gênero, a necessidade de geração de tecnologias apropriadas às diversidades sociais e ambientais etc.
A partir dos anos 1990 este movimento de base dialoga, de maneiras diversificadas, com processos macrosociais de revisão do papel do Estado. Naquele momento, fortaleceu-se um discurso do imaginário democrático que, ao clamar por justiça econômica e social, direitos humanos e sociais, reivindicava do Estado um maior
protagonismo das organizações da sociedade civil na determinação dos rumos políticos da promoção do desenvolvimento. Ao mesmo tempo, no plano das políticas
macroeconômicas, o Estado fortaleceu o discurso neoliberal que reclamava, dentre
outros aspectos, a diminuição do seu tamanho, a redução de suas responsabilidades e a restrição de seu papel empreendedor, inclusive aquele relacionado às demandas sociais básicas, incentivando a ação social de organizações privadas ou
voluntárias (Doimo, 1995, Neves, 2001, Dagnino, 2002). Por força da conjuntura,
ambos os campos de elaboração de discursos sobre o desenvolvimento se encontraram na revisão da institucionalidade à sua promoção.
Esta revisão conceitual aponta para caminhos e perspectivas atuais bastante
diversas. A dimensão ambiental do desenvolvimento, por exemplo, conduz a um deIII Módulo Regional Centro Oeste
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bate sobre soluções globais, já que os riscos do desenvolvimento econômico e tecnológico não se limitam a fronteiras politicamente definidas (Giddens, 2001). Por outro lado, os instrumentos governamentais de intervenção centralizados são levados
a dialogar cada vez mais com as demandas e especificidades locais. Há neste caso
uma demanda por regulação e inserção global ao mesmo tempo em que se revelam
os condicionantes locais e específicos à definição do próprio conteúdo deste desenvolvimento.
A idéia de desenvolvimento endógeno surge justamente como reação ao paradigma produtivo fordista e à difusão de inovações tecnológicas do tipo de “cima
para baixo” ou “do centro à periferia” (Boiser, 2000), e diz respeito à capacidade local de dar respostas aos desafios globais por meio de inovações sociais e a partir
das especificidades culturais e dos recursos sociais, econômicos e naturais disponíveis (Lená, 1997).
As experiências de desenvolvimento local e endógeno ressaltam a importância do apoio às capacidades locais para reagir positivamente aos fatores externos,
inovar, desencadear mudanças e re-organizar fatores produtivos de modo a favorecer novos tipos de inserção econômica para comunidades, municípios ou regiões
(Vázquez-Barquero, 1998). Nesta perspectiva, a ênfase das estratégias de desenvolvimento recai nas organizações locais, no seu entorno institucional, nas potencialidades das pessoas, nos relacionamentos produtivos, na história e nos valores culturais locais, na exploração sustentável de recursos naturais, na construção de marcas locais com inserção global etc.
O cultural, o local e o territorial aparecem como importantes referências à
formulação de políticas de desenvolvimento. Ao serem estimuladas à formulação e à
implantação de estratégias próprias de desenvolvimento, controladas localmente, as
comunidades passariam por transformações sociais e econômicas que não dependeriam dos investimentos e das intenções das grandes corporações (Albagli & Maciel, 2002).
As especificidades de cada território (tais como um mercado de trabalho, recursos naturais, relacionamentos institucionais, estrutura produtiva, capacidade empresarial e organizativa, cultura política etc.) poderiam ser articuladas e potencializadas em prol do crescimento econômico e da melhoria da qualidade de vida da população. O território passa a ser representado como o espaço geográfico e cultural no
qual as inovações acontecem no âmbito de processos históricos de criação e reprodução de identidades ou sentimentos de pertencimento comunitário (Boiser, 2000).
No que diz respeito ao desenvolvimento rural, Abramovay (2001) sugere a inadequação das noções tradicionais que o associam à “urbanização do campo”. A
ruralidade não deveria ser encarada como uma etapa a ser vencida pelos esforços
em prol do desenvolvimento. Entre os atributos que definiriam o meio rural, a relação
mais próxima à natureza e a relativa dispersão populacional seriam valorizados diante do crescimento e da interiorização das médias e grandes cidades. Neste sentido,
o dinamismo rural dependeria da renda urbana, não somente dos mercados consumidores anônimos e distantes destinatários dos produtos agropecuários, mas, sobretudo da renda associada ao aproveitamento das virtudes rurais mais valorizadas,
entre as quais o autor cita a produção territorializada da qualidade, a paisagem, a
biodiversidade e o modo de vida das populações rurais. Estas noções fortalecem a
idéia de que a promoção do desenvolvimento, para ser efetiva, deve estar enraizada, de alguma forma, no conjunto de especificidades culturais historicamente estaIII Módulo Regional Centro Oeste
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belecidas.
Quando relacionada ao espaço rural, a concepção convencional de desenvolvimento também se fundamentou em uma simplificação, tomando o rural por simplesmente agrícola ou agropecuário. A intervenção em prol do desenvolvimento limitou-se geralmente às condições de produção ou aos processos produtivos, fomentando mudanças nas bases tecnológicas, na organização dos sistemas produtivos,
na racionalização do uso da força de trabalho e em outros fatores relacionados à
produção. Conceber o desenvolvimento rural como simplesmente desenvolvimento
agrícola ou agropecuário contribuiu para colocar em segundo plano as outras dimensões que compõem os espaços rurais e as suas complexas relações com a sociedade como um todo.
Isolado como espaço da produção agropecuária, o mundo rural foi conceitualmente reduzido à concepção de setor agrícola (para o qual as intervenções deveriam estar coerentes com o objetivo de promover a racionalização econômica e a
industrialização dos processos produtivos). Desenvolvimento agrícola e desenvolvimento rural – expressões sob enorme disputa política em relação aos seus significados – não se equivalem. De acordo com Navarro (2001), o desenvolvimento dos
processos produtivos relacionados às práticas agrícolas constitui apenas uma faceta
do desenvolvimento rural.
Para além da clássica questão agrária, o mundo rural passa por uma série de
transformações que reforçam a dissociação entre desenvolvimento agrícola, portanto setorial, e desenvolvimento rural, portanto englobante. Em muitas regiões brasileiras, por exemplo, as atividades não-agrícolas assumem cada vez maior importância
para as famílias que vivem no campo (Schneider, 2003). Da mesma forma, as políticas sociais que implicam transferência de renda, principalmente no caso das aposentadorias, têm papel importante na manutenção de muitas famílias na prática da
agricultura (Beltrão et al., 2000).
Para Veiga (2006), estudando o caso europeu, mas relacionando-o à realidade brasileira, a “nova ruralidade” baseia-se em três fatores que contribuem para outra valorização contemporânea do mundo rural: (a) o aproveitamento econômico do
rural como espaço de lazer, descanso, vínculo com a natureza e com as tradições;
(b) os esforços preservacionistas e conservacionistas que impactam sobre as paisagens e contribuem para resgate da biodiversidade ameaçada pelas monoculturas; e
(c) a busca de fontes renováveis de energia disponíveis nos espaços rurais.
Pensando estas outras visões sobre o desenvolvimento e a ruralidade, para
que façam sentido (contribua na invenção do futuro) no cotidiano das mulheres e
homens que vivem no rural brasileiro, as ações de promoção do desenvolvimento
deveriam considerar: (a) a diversidade cultural e ecológica dos espaços rurais; (b)
esta diversidade como componente da necessidade de construir, de modo participativo, alternativas de mudança que valorizem enraizamentos, pertencimentos culturais, costumes, saberes e tradições; e (c) o rural como espaço inter-relacionado à
sociedade como um todo (mas ainda é o espaço do território brasileiro onde carências e precariedades ainda se expressam de modo mais grave).
Neste contexto de mudanças, as políticas de desenvolvimento devem promover a “adequação das instituições”, o que vem se tornando prioridade na agenda
nacional e internacional. As instituições democráticas deliberativas devem ser referências importantes para os processos de promoção do desenvolvimento, envolvendo de modo contínuo os cidadãos na definição e implantação das prioridades ecoIII Módulo Regional Centro Oeste
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nômicas e sociais. Estas instituições representam um meio mais efetivo para engajar
os sujeitos em projetos ou programas, possibilitando, de acordo com Peter Evans,
“uma base mais sólida para avaliar as prioridades [locais] de desenvolvimento”. Além disso, ao enfatizarmos a ampliação das capacidades das pessoas, as instituições “expandem o que o desenvolvimento oferece, dando aos cidadãos a oportunidade de exercer a capacidade humana fundamental de fazer escolhas” (Evans,
2003).
Nesta formulação, a participação política dos envolvidos e o fortalecimento do
seu poder de decisão tornam-se essenciais para desencadear processos de tutoria
ou gestão social de projetos, promovendo competências locais essenciais à sustentabilidade do processo de mudança. Entre as iniciativas de adequação das instituições, a formulação e a implantação de políticas de desenvolvimento requerem potencializar a capacidade local de mobilização social, de forma a aglutinar interesses
e articular recursos em torno de estratégias negociadas. Neste processo, as comunidades seriam estimuladas à organização de base, que daria vazão ao inconformismo dos sujeitos com seus indicadores de qualidade de vida. O engajamento de
lideranças locais seria não só uma oportunidade ao desenvolvimento de competências, mas também a garantia de maior engajamento e respeito às especificidades
histórico-culturais da região.
A partir destas considerações, percebe-se que a promoção do desenvolvimento passa a ser uma ação principalmente relacionada a experiências e práticas
de aprendizado coletivo ou social, envolvendo tanto as populações locais quanto os
agentes ou mediadores externos. Aprender, na prática, a agir em busca de modos
de promoção do desenvolvimento. Na realidade de seus cotidianos, estes atores
sociais buscam, a partir de métodos e maneiras bastante diversificadas, superar os
limites históricos e arraigados que costumam limitar, separar ou compartimentar as
funções de cada ator nestes processos, geralmente privilegiando o técnico, o pesquisador, o assessor ou o extensionista como o detentor da autoridade profissional e
científica para determinar os rumos das ações e a direção dos processos.
A participação protagonista e efetiva, neste caso, torna-se a base para construção de processos fundados na idéia de aprendizado e os diagnósticos participativos tornam-se técnicas fundamentais para o conhecimento e ação sobre a realidade
(Verdejo, 2006). A capacidade de intervenção a partir das institucionalidades públicas disponíveis e o ensino formal e profissionalizante parecem ainda distantes das
novas demandas por habilidades e competências colocadas por este outro imaginário sobre o desenvolvimento e o rural.
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Introdução à Economia Solidária3
Capítulo II – História
1. Origens históricas da economia solidária
A economia solidária nasceu pouco depois do capitalismo industrial, como reação ao espantoso empobrecimento dos artesãos provocado pela difusão das máquinas e da organização fabril da produção. A Grã-Bretanha foi a pátria da Primeira
Revolução Industrial, precedida pela expulsão em massa de camponeses dos domínios senhoriais, que se transformaram no proletariado moderno. A exploração do
trabalho nas fábricas não tinha limites legais e ameaçava a reprodução biológica do
proletariado. As crianças começavam a trabalhar tão logo podiam ficar de pé, e as
jornadas de trabalho eram tão longas que o debilitamento físico dos trabalhadores e
sua elevada morbidade e mortalidade impediam que a produtividade do trabalho pudesse se elevar.
Por isso, industriais mais esclarecidos começaram a propor leis de proteção
aos trabalhadores. Entre eles encontrava-se o britânico Robert Owen, proprietário de
um imenso complexo têxtil em New Lanark. Em vez de explorar plenamente os trabalhadores que empregava, Owen decidiu, ainda na primeira década do século XIX,
limitar a jornada e proibir o emprego de crianças, para as quais ergueu escolas. O
tratamento generoso que Owen dava aos assalariados resultou em maior produtividade do trabalho, o que tornou sua empresa bastante lucrativa, apesar de gastar
mais com a folha de pagamento. Owen tornou-se objeto de grande admiração e respeito, adquirindo fama de filantropo. Visitantes do mundo inteiro vinham a New Lanark tentar decifrar o mistério de como o dinheiro gasto com o bem-estar dos trabalhadores era recuperado sob a forma de lucro, ao fim de cada exercício.
A Revolução Francesa provocou um longo ciclo de guerras na Europa, que se
encerrou apenas em 1815, após a vitória britânica sobre Napoleão em Waterloo.
Logo a seguir a economia da Grã-Bretanha caiu em profunda depressão. Owen apresentou uma proposta para auxiliar as vítimas da pobreza e do desemprego e restabelecer o crescimento da atividade econômica. Ele diagnosticou corretamente que
a depressão era causada pelo desaparecimento da demanda por armamentos, navios, provisões e demais produtos necessários à condução da guerra. Com a perda
do trabalho e da renda dos que estavam ocupados na produção bélica, o mercado
para a indústria civil também se contraiu. Para reverter essa situação era necessário
reinserir os trabalhadores ociosos na produção, permitindo-Ihes ganhar e gastar no
consumo, o que ampliaria o mercado para outros produtores.
Em 1817, Owen apresentou um plano ao governo britânico para que os fundos de sustento dos pobres, cujo número estava se multiplicando, em vez de serem
meramente distribuídos, fossem invertidos na compra de terras e construção de Aldeias Cooperativas, em cada uma das quais viveriam cerca de 1.200 pessoas trabalhando na terra e em indústrias, produzindo assim a sua própria subsistência. Os
excedentes de produção poderiam ser trocados entre as Aldeias. Com cálculos cuidadosos de quanto teria de ser investido em cada Aldeia, Owen tentava mostrar que
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O texto foi extraído do livro “Introdução à Economia Solidária” Capítulos 2 e 4. Autor Paul Israel Singer - Fundação
Perseu Abramo, São Paulo, 2002. Reprodução autorizada pelo autor.
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haveria imensa economia de recursos, pois os pobres seriam reinseridos à produção em vez de permanecerem desocupados. Em pouco tempo, a desnecessidade
de continuar subsidiando os ex-pobres permitiria devolver aos cofres públicos os
fundos desembolsados.
O raciocínio econômico de Owen era impecável, pois o maior desperdício, em
qualquer crise econômica do tipo capitalista (devida à queda da demanda total), é a
ociosidade forçada de parte substancial da força de trabalho. Há um efetivo empobrecimento da sociedade, que se concentra nos que foram excluídos da atividade
econômica. Portanto, conseguir trabalho para eles é expandir a criação de riqueza,
permitindo a rápida recuperação do valor investido. Isso foi demonstrado de outra
forma por John M. Keynes, também britânico, durante a terrível crise da década de
1930. Desta vez os governos atenderam o apelo e passaram a praticar políticas de
pleno emprego que funcionaram durante cerca de 30 anos, demonstrando a veracidade da tese de Keynes, antecipada 119 anos antes por Owen.
Mas, na segunda década do século XIX, o governo britânico se negou a implementar o engenhoso plano de Owen, que passou a radicalizar sua proposta.
"Quanto mais Owen explicava o seu 'plano', mais evidente se tornava que o que ele
propunha não era simplesmente baratear o sustento dos pobres, mas uma mudança
completa no sistema social e uma abolição da empresa lucrativa capitalista" (COLE,
1944, p. 20). Com isso, Owen perdeu seus admiradores da classe alta e, desiludido,
partiu para os Estados Unidos com a intenção de erguer num meio social mais novo,
e por isso menos deteriorado, uma Aldeia Cooperativa que seria um modelo da sociedade do futuro, a ser imitado por pessoas de boa vontade mundo afora. Ela foi
estabelecida, em 1825, em New Harmony, no estado de Indiana, e logo sofreu sucessivas cisões. Owen permaneceu à sua testa até 1829, quando, desiludido, voltou
à Inglaterra.
Mas, enquanto ele permanecia além-mar, seus discípulos começaram a pôr
em prática as idéias dele, criando sociedades cooperativas por toda parte. Esse movimento coincide com o surto de sindicalismo, desencadeado pela revogação dos
Combination Acts. Essa legislação proibia qualquer organização dos trabalhadores
como atentado à livre concorrência e foi usada para perseguir com grande empenho
os sindicatos existentes, dos quais muitos desapareceram e os demais foram para a
clandestinidade. Com a sua revogação, em 1824, novos sindicatos foram formados
e, juntamente com eles, cooperativas.
A primeira cooperativa owenista foi criada por George Mudie, que reuniu um
grupo de jornalistas e gráficos em Londres e propôs que formassem uma comunidade para juntos viverem dos ganhos de suas ati vidades profissionais. Em 1821 e
1822, Mudie e seus companheiros publicaram The Economist, o primeiro jornal cooperativo. Formaram a London Co-operative Society, mas após algum tempo desistiram de viver em comunidade. Em 1823 surgiu um novo jornal, The Political Economist Qnd Universal Philantropist, e no ano seguinte apareceu uma nova London Cooperative Society. Outro empreendimento owenista foi a Comunidade de Orbiston,
fundada em 1826, liderada por Abram Combe, da qual Mudie participou investindo
nela tudo o que possuía: 1.000 libras este'rlinas. Durante algum tempo a Comunidade progrediu e iniciou experimentos em educação e num sistema de repartição baseada em pagamento igual por hora de trabalho de qualquer pessoa. Infelizmente,
em agosto de 1827, Combe faleceu e seu irmão e herdeiro despejou a Comunidade
para pagar as dívidas assumidas (COLE, 1944, p. 20-22).
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Brighton, um lugar de veraneio, foi palco de importante iniciativa cooperativa encabeçada pelo Dr. William King, que era conhecido como "médico dos pobres". Em
1827 surgiu a Brighton Co-operative Trading Association (Associação Cooperativa
de Troca de Brighton), com o objetivo de formar uma comunidade cooperativa owenista, mas ela começou por funcionar como armazém cooperativo para ajudar a formar um fundo de capital. Seus sócios eram predominantemente operários. A associação arrendou terras e empregou membros no cultivo de legumes para serem
vendidos no armazém. Diversas cooperativas descendentes desta primeira se desenvolveram em Brighton, Worthington, Findon, Turnbridge Wells, Canterbury e
Gravesend. Em 1830, King deixou a associação por problemas familiares e em
1832 ela desapareceu.
A Brighton Association começou, em 1828, a publicação de um pequeno
mensário The Co-operator, redigido por King e dedicado a expor sistematicamente
os princípios do cooperativismo. Ele durou dois anos e penetrou em todo o país. Em
seu número inicial, The Co-operator registrou a existência de apenas quatro cooperativas; em meados de 1829, este número já era de 70, e no fim do ano atingiu 130,
além da abertura do London Co-operative Bazaar. Em agosto de 1830, King encerrou a publicação do The Co-operator e o número final registrou LI existência de mais
de 300 cooperativas. Nessa época, a imprensa cooperativa também se havia diversificado, com o surgimento de novos órgãos (COLE, 1944, p. 22-23).
No meio dessa ascensão do cooperativismo, o owenismo foi assumido pelo
crescente movimento sindical e cooperativo da classe trabalhadora. Um dos seus
grandes líderes, 10hn Doherty, conseguiu, em 1829, organizar os fiandeiros de algodão em um sindicato nacional. A partir desta vitória, ele passou a lutar pela organização sindical de todas as categorias de trabalhadores, logrando fundar em 183334 o Grand National Consolidated Trades Union (sucessora da Grand National Moral Union de Owen, pos sivclmentc a primeira central sindical do mundo4'). "Tornouse comum que grevistas, em ramos que podiam ser operados sem muita máquina,
em vez de cruzar os braços, se lançassem em competição com seus empregadores
à base de planos de produção cooperativa" (COLE, 1944, p. 24).
A criação desse tipo de cooperativa, estreitamente ligada à luta de classes
conduzida pelos sindicatos, conferia a essa luta uma radical idade muito maior. Os
trabalhadores em conflito com seus empregadores, em vez de se limitar a reivindicações de melhora salarial e de condições de trabalho, passavam a tentar substituílos no mercado. A greve tornava-se uma arma não para melhorar a situação do assalariado, mas para eliminar o assalariamento e substituí-lo por autogestão.
"Muitas das sociedades cooperativas que foram fundadas no fim dos
anos 20 e começo dos 30 [do século XIX] eram desta espécie, originadas ou de greves ou diretamente de grupos locais de sindicalistas, que
haviam sofrido rebaixa de salários ou falta de emprego. Algumas destas cooperativas foram definitivamente patrocinadas por sindicatos; outras foram criadas com a ajuda de Sociedades Beneficentes cujos
membros provinham do mesmo ofício. Em outros casos, pequenos
grupos de trabalhadores simplesmente se uniam sem qualquer patrocínio formal e iniciavam sociedades por conta própria" (COLE, 1944, p.
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'Todos os movimentos sociais, todos os progressos reais, que surgiram na Inglaterra, estão ligados
ao nome de Owen. [ ... ] Ele presidiu o primeiro congresso em que trade unions [sindicatos] de toda
a Inglaterra se uniram numa única grande central sindical" (ENGELS. 1894, p. 324-325).
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Ao lado destas cooperativas operárias havia sociedades de propaganda owenista, que tinham como objetivo fundar Aldeias Cooperativas, atualmente chamadas de "cooperativas integrais", pois organizavam integradamente produção e consumo. Dessas sociedades originavam-se freqüentemente armazéns cooperativos
(como o da Associação Cooperativa de Troca de Brighton, encabeçada por King),
criados para empregar alguns de seus membros, tendo em vista consumir seus próprios produtos ou trocá-los por escambo5 pelos de outras sociedades com os mesmos propósitos. Muitos dos armazéns passaram a adquirir produtos das cooperativas operárias e distribuí-los, transformando-se em centros de escambo da produção
cooperativa, denominados Exchange Bazaars (bazares de troca) ou Equitable Labour Exchanges (bolsas eqüitativas de trabalho).
Owen, como muitos socialistas da época, rejeitava o comércio visando ao lucro como essencialmente parasitário: "Os distribuidores, pequenos, médios e grandes, têm todos de ser mantidos pelos produtores e, quanto maior o número dos primeiros comparado ao destes, maior será a carga suportada pelo produtor; pois à
medida que aumenta o número de distribuidores, a acumulação de riqueza tem de
diminuir e mais tem de ser exigido do produtor. Os distribuidores de riqueza, sob o
sistema atual, são um peso morto sobre os produtores e os mais ativos desmoralizadores da sociedade" (OWEN, 1821 apud MILL, 2000, p.68).
A rejeição do comércio (assim como de toda atividade visando ao lucro) levou
as sociedades owenistas a criar os bazares ou bolsas que acabaram por polarizar
boa parte da produção das cooperativas operárias, conferindo-lhes viabilidade econômica. Urna contrapartida hodierna seria o "clube de troca", que cria mercado entre seus membros mediante urna moeda própria. Quando Owen voltou à Inglaterra,
ele deu grande impulso a esse comércio sem intermediários, criando o National Equitable Labour Exchange (Bolsa Nacional de Trabalho Eqüitativo). Sua finalidade
era oferecer a todos os cooperadores um mercado em que pudessem trocar seus
produtos. A sua primeira sucursal foi aberta em 1832, logo seguida por uma segunda, sendo imitados por cooperadores em Birmingham, Liverpool, Glasgow e em outras cidades. Em julho de 1833, Owen transferiu a gerência da bolsa a um Comitê
Sindical de Londres, que representava os sindicatos cujos membros haviam se engajado em produção cooperativa.
As trocas nessas bolsas não eram estritamente escambo, pois eram intermediadas por uma moeda própria: as notas de trabalho, cuja unidade eram horas de
trabalho. Os bens oferecidos à venda eram avaliados pelo tempo de trabalho médio
que um operário padrão levaria para produzi-los. Cada bem era avaliado por este
critério por um comitê formado por profissionais do ramo correspondente. Adotou-se
corno padrão um operário que ganhasse seis dinheiros por hora. A hora de trabalho
remunerada acima deste valor era aumentada na mesma proporção. Assim, por exemplo, uma peça de pano feita por um tecelão que ganhasse 12 dinheiros por hora
e que levasse 5 horas para ser produzida valeria 10 horas de trabalho no padrão
monetário da bolsa.
A esse respeito, Cole (1944, p. 31) observou: "Isso significava, com efeito, o
mesmo que aceitar a avaliação de mercado dos diferentes graus e espécies de trabalho, tornando as notas de trabalho meras traduções em tempo de trabalho das
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Escambo é troca direta de produto por produto, sem uso de dinheiro
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quantias de dinheiro determinadas ordinariamente pelo comércio". A primeira parte
da observação é correta, a segunda não. O que Marx chamava de "grau de complexidade do trabalho" corno gerador de valor era calculado pelo escalonamento salarial do mercado de trabalho, ou seja, aceitava-se que um trabalho pior pago gerava
um valor menor que outro mais bem pago. Mas isso não significa que os preços em
tempo de trabalho, assim calculados, equivaliam aos do comércio ordinário. Estes
últimos incluem uma margem de lucro proporcional ao valor do capital investido na
atividade e nada indica que os preços praticados nas bolsas tivessem tal margem.
As bolsas "de trabalho eqüitativo" excluíam o lucro industrial na formação de seus
preços6.
Durante certo tempo as bolsas eqüitativas tiveram notável sucesso. A de Birmingham teve lucro (o que indica que nos preços em notas de trabalho havia alguma margem para cobrir as despesas da bolsa), que ela doou a um hospital. Em
1834, a Bolsa Nacional de Trabalho Eqüitativo encerrou suas atividades, por efeito
da derrota geral do movimento operário em seu confronto com os empregadores.
A luta dos sindicatos contra os capitalistas, utilizando as cooperativas operárias como armas para disputar-lhes o mercado, estava chegando ao auge em 1833,
quando Owen reapareceu, assumindo sua liderança. Em setembro daquele ano, o
Sindicato dos Trabalhadores em Construção, formado pela união das associações
de ofício do ramo, reuniu seu Parlamento dos Construtores em Manchester. Owen
compareceu e propôs que criassem a Grande Guilda Nacional dos Construtores para suplantar os empreiteiros privados e tomar toda a indústria em suas próprias
mãos, reorganizando-a sob a forma de uma grande cooperativa nacional de construção.
Em outubro, tendo sido sua proposta aprovada pelos construtores, Owen foi
ao Congresso Cooperativo de Londres, onde propôs a criação da Grande União Nacional Moral das Classes Produtivas do Reino Unido.
"Era para ser constituída por delegados de todos os ramos organizados
de atividade à base de sindicatos paroquiais, distritais e provinciais e
parece que tinha por objetivo tomar toda a indústria do país do mesmo
modo que os construtores se propunham a tomar a indústria de construção. Os delegados partiram comprometidos com o estabelecimento
deste instrumento espantosamente ambicioso e a realização de um novo congresso em Barnsley na páscoa seguinte" (COLE, 1944, p. 2728).
Eis que o cooperativismo, em seu berço ainda, já se arvorava como modo de
produção alternativo ao capitalismo. O projeto grandioso de Owen equivalia ao que
mais tarde se chamou de República Cooperativa, e ele a propôs, não à moda dos
utópicos da época aos mecenas para que a patrocinassem, mas ao movimento ope6
Cole argumenta que as bolsas não poderiam praticar preços diferentes do comércio em geral porque, se o fizessem, "eles venderiam rapidamente todos os artigos relativamente mais baratos e ficariam sem vender os relativamente mais caros" (p. 31). Isso seria o caso se houvesse conversibilidade entre as notas de trabalho e as libras esterlinas. Deve-se supor que para obter notas de trabalho era preciso vender algo na bolsa, sendo este algo um produto cooperativo. Neste caso, o
mercado cooperativo seria fechado e poderia praticar preços diferentes dos do comércio. Mas negociantes comuns vendiam seus produtos em troca de notas de trabalho para comprar produtos
cooperativos com elas. Isso pode significar que eles praticavam arbitragem entre os preços externos e internos da bolsa ou que os últimos acabaram sendo ajustados aos primeiros, como imagina
Cole.
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rário organizado, que ainda estava lutando por seus direitos políticos. Foi um curto
mas inolvidável momento da história da Grã-Bretanha e também do cooperativismo,
que vai, deste modo, ainda imaturo, à pia batismal da revolução.
No mesmo ano memorável de 1833 é aprovado o Factory Act, que estabelece
uma legislação protetora do trabalhador de fábrica, mas recusa a limitação da jornada de Trabalho a dez horas, causando forte frustração. Em novembro, Owen lidera a
reação entre os sindicalistas do norte, criando a Sociedade pela Regeneração Nacional, para conquistar de uma vez a jornada de oito horas, não por lei, mas pela
recusa em massa de trabalhar além deste período! A Sociedade rapidamente se
expandiu, conquistando considerável número de seguidores. A fé na ação direta se
difundia num momento de mobilização intensa. Tudo parecia possível desde que
todos os trabalhadores agissem em uníssono.
Mas a reação dos empregadores já havia começado. Em junho de 1833, os
empreiteiros resolveram fazer um lock-out (greve patronal, literalmente "exclusão"),
demitindo todos os trabalhadores que pertenciam ao Sindicato dos Trabalhadores
em Construção. A luta começou em Liverpool e se estendeu a Manchester e a outros centros. Ela foi cruel e longa, terminando apenas no fim do ano com a derrota
dos trabalhadores, que tiveram de abrir mão do sindicato para poder voltar ao trabalho. Foi durante esta luta que Owen propôs ao Parlamento dos Construtores tomar a
indústria dos capitalistas e reorganizá-la como cooperativa.
Em novembro, os industriais têxteis decretaram o lock-out, demitindo todos
os sindicalizados. Estes, em resposta, abriram cooperativas operárias e tentaram
vender seus produtos nas bolsas de trabalho, em todo o país. A Grande União Nacional Moral das Classes Produtoras (GUNM), ainda em organização, resolveu cobrar uma taxa extra de seus membros para angariar fundos para os tecelões excluídos.
"Mas greves e lock-outs logo se multiplicaram em outras partes do país
e os recursos da União estavam longe de poder manter os excluídos. A
detenção e condenação dos trabalhadores de Dorchester, em março
de 1834, foi mais um golpe, pois ameaçava os sindicatos em todos os
lugares com penalidades legais, somadas à hostilidade dos empregadores. A GUNM e a maioria dos seus afiliados aboliram os juramentos,
que eram comumente parte das cerimônias de iniciação sindical e haviam fornecido a base para as condenações de Dorchester.
Mas, em face da crescente militância dos empregadores e da declarada hostilidade do governo, os sindicalistas em muitas áreas começaram a perder o ânimo. Owen e seus discípulos puseram-se à frente
da demanda pela libertação dos trabalhadores de Dorchester e entraram na GUNM em bloco, na esperança de salvar a situação. Mas uma
greve sem sucesso dos alfaiates de Londres _ que em seu decorrer
cobriram Londres de cartazes anunciando que estavam partindo em
bloco para a Produção Cooperativa piorou seriamente a situação; e os
empregadores de Yorkshire, retomando a ofensiva do ano anterior,
conseguiram em maio e junho quebrar o poder do Sindicato de Leeds.
O Sindicato dos Trabalhadores em Construção também estava ruindo
face a repetidos ataques.[...] E uma após a outra, as associações de ofício foram deixando o sindicato, que no fim de 1834 se extinguiu. As oficinas cooperativas em Derby tiveram de fechar, e os homens foram
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forçados a voltar ao trabalho nas condições impostas pelos empregadores. O Sindicato dos Oleiros, que montou uma olaria cooperativa em
junho de 1834, teve de abandoná-la seis meses depois. A grande aventura sindical estava chegando a um fim sem glória" (COLE, 1944, p.
29).
Esta é a origem histórica da economia solidária. Seria justo chamar esta fase
inicial de sua história de "cooperativismo revolucionário", o qual jamais se repetiu de
forma tão nítida. Ela tornou evidente a ligação essencial da economia solidária com
a crítica operária e socialista do capitalismo. A figura que sintetizou pensamento e
ação nesta fase foi sem dúvida Owen, exemplo acabado de pensador e homem de
ação e que inspiraria os seus sucessores. Engels colaborou na imprensa owenista e
tanto ele quanto Marx deveram muito a Owen, dívida aliás nunca contestada.
Para completar o quadro, seria preciso fazer menção ao menos à experiência
na França. Lá o grande autor foi Charles Fourier, que, no entanto, não era homem
de ação e nunca quis que seu projeto de falanstério fosse realizado por discípulos.
Seu sonho era que algum capitalista se interessasse pelo seu sistema e se dispusesse a experimentá-lo. Sua idéia central era que a sociedade se organizasse de
uma forma que todas as paixões humanas pudessem ter livre curso para produzir
uma harmonia universal. O principal objetivo dessa organização social seria dispor o
trabalho de tal forma que se tornasse atraente para todos, do que deveria resultar
enorme aumento de produtividade e de produção. Daí surge a idéia do falanstério,
uma comunidade suficientemente grande (com 1.800 pessoas trabalhando) para
oferecer a cada um ampla escolha entre trabalhos diversos. Fourier acreditava que
cada pessoa poderia encontrar um ou mais trabalhos que estivessem de acordo
com suas paixões e aos quais ela poderia se entregar quase sem se importar com a
remuneração.
Mas o falanstério não é coletivista como a Aldeia Cooperativa de Owen. Nele
se preservam a propriedade privada e a liberdade individual de mudar de trabalho.
Os meios de produção seriam de todos os membros, mas sob a forma de propriedade acionária. O resultado do trabalho de todos seria repartido de acordo com proporções fixas: 5/12 pelo trabalho, 4/12 pelo capital investido e 3/12 pelo talento. E
ele concebe um engenhoso sistema de mercado que deve conciliar as preferências
por diferentes tipos de produto dos membros enquanto consumidores e por diferentes tipos de trabalho dos mesmos enquanto produtores.
Para evitar que a sociedade se polarize entre ricos e pobres, Fourier propõe
diversos mecanismos de redistribuição: I) que as ações devem dar rendimento tanto
maior quanto menor for o número delas possuído pela pessoa, de modo que os pequenos acionistas teriam um rendimento proporcionalmente muito maior que os
grandes; 2) todos teriam uma renda mínima, "modesta mas muito decente", mesmo
que não trabalhem. Esta proposta faz sentido, pois todos trabalharão por paixão, e
não por necessidade, embora as pessoas continuem competindo por riquezas, já
que o sistema manteria propriedade, herança, juros sobre o capital e alguma desigualdade entre ricos e pobres.
"É sobre a livre iniciativa individual apenas que ele espera fazer uma experiência de seu sistema - uma iniciativa que ele solicita, implora, dirigindo-se ao grande
capitalista e a príncipes desengajados com tocante pertinácia" (GIDE, 1971, p. 22).
O sistema de Fourier é uma variedade de socialismo de mercado, centrado na liberdade individual, na livre escolha dos trabalhos, organizados em equipes e na propriIII Módulo Regional Centro Oeste
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edade por ações dos meios de produção. O sistema é coerente: para que a liberdade humana culmine na paixão pelo trabalho é necessário que ninguém dependa dele
para viver, o que requer uma renda cidadã que garanta a todos uma sobrevivência
digna.
A idéia de que todos deveriam viver em comunidades autogeridas torna o Estado dispensável, o que faz de Fourier um predecessor dos anarquistas, como nota
Gide:
"Como a nova ordem social deve se basear apenas sobre a atração,
nem é preciso dizer que Fourier não pensa em empregar a força. Nunca, de fato, ele apela a legisladores, a governo, a uma autoridade, a um
poder coercitivo de qualquer espécie; eu nem mesmo sei se a palavra
Estado, que hoje serve para caracterizar todas as escolas mais ou menos socialistas, aparece uma única vez em seus livros. Nisso ele pertence à escola liberal mais purae desde que ele não reconhece nem
mesmo a necessidade do Estado policial, pode-se ir ao ponto de dizer
que ele pertence à escola anarquista. se este termo não se chocasse
estranhamente com o seu amor à ordem e simetria" (GIDE, 1971, p.
21-22).
Fourier teve discípulos ilustres - Muiron, Considerant, Godin, Mme. Vigoureux
-, que se congregaram a pal1ir de 1825 e estabeleceram o que se chamou de "escola associativa". Em 1832 eles foram reforçados pela adesão de importantes exsaintsimonianos como Lechavalier e Transon, iniciaram a publicação de um hebdomadário - Le Phalanstere - e organizaram cursos, alguns dados pelo próprio Fourier. Com a morte de Fourier em 1837, suas doutrinas tiveram novo impulso, fazendo
com que a escola crescesse cada vez mais e atingisse 3.700 membros na véspera
da Revolução de 1848, entre os quais o próprio futuro imperador Luís Napoleão.
A experimentação prática do sistema de Fourier se deu mais nos Estados Unidos.
'Três grandes associações, aplicando em maior ou menor extensão os
princípios do fourierismo, foram criadas quase simultaneamente: The
North American Phalanx, fundada por Brisbane no estado de Nova Jersey, The Wisconsin Phalanx, no estado do mesmo nome. e a mais famosa de todas, a Brook Farm, perto de Boston, que teve homens muito
ilustres entre seus membros, alguns dos quais desempenharam papéis
de liderança na organização que se chamou Sovereigns of Industry
[Soberanos da Indústria] e nos Knights of Labour [Cavaleiros do Trabalho] e no movimento cooperativista. Até mesmo Channing e Hawthorne
ficaram algum tempo lá. Estima-se em 30 o número de tais comunidades; mas nenhuma durou mais do que cinco ou seis anos" (GIDE,
1971, p. 41-42).
Owen e Fourier foram, ao lado de Saint-Simon, os clássicos do Socialismo
Utópico. O primeiro foi, além disso, grande protagonista dos movimentos sociais c
políticos na Grã-Bretanha nas décadas iniciais do século XIX. O cooperativismo recebeu deles inspiração fundamental, a partir da qual os praticantes da economia
solidária foram abrindo seus próprios caminhos, pelo único método disponível no
laboratório da história: o da tentativa e erro.
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Capítulo IV – Presente e futuro
1. A reinvenção da economia solidária no fim do século XX
Na medida em que o movimento operário foi conquistando direitos para os
assalariados, a situação destes foi melhorando: menos horas de trabalho, salários
reais mais elevados, seguridade social mais abrangente e de acesso universal, ou
quase, tornaram-se realidade nos países desenvolvidos. Mesmo em países semiindustrializados, como o Brasil, os direitos obtidos pelos sindicatos deram a muitos
assalariados formais (com carteira de trabalho assinada) um padrão de vida de classe média.
Este avanço se acentuou e generalizou após a Segunda Guerra Mundial e
debilitou a crítica à alienação que o assalariamento impõe ao trabalhador. Em vez de
lutar contra o assalariamento e procurar uma alternativa emancipatória ao mesmo, o
movimento operário passou a defender os direitos conquistados c sua ampliação. Os
sindicatos tornaram-se organizações poderosas, cuja missão passou a ser a defesa
dos interesses dos assalariados, dos quais o mais crucial é conservar o emprego.
Por meio do emprego, os trabalhadores alcançam uma espécie de cidadania "social"
que compensaria a posição subordinada e alienada que ocupam na produção.
Esta mudança foi sem dúvida uma das causas do crescente desinteresse pela economia solidária e pela tolerância com a introdução do assalariamento nas cooperativas e da "profissionalização" de suas gerências. Em termos quantitativos, o
movimento cooperativista nunca deixou de se expandir em plano mundial, mas qualitativamente é provável que a sua degeneração tenha se acentuado. Surgiu uma
classe operária que se acostumou ao pleno emprego (que vigorou nos países centrais entre as décadas de 1940 e 1970) e se acomodou no assalariamento.
Tudo isso mudou radicalmente a partir da segunda metade dos anos 70,
quando o desemprego em massa começou o seu retorno. Nas décadas seguintes,
grande parte da produção industrial mundial foi transferida para países em que as
conquistas do movimento operário nunca se realizaram. O que provocou a desindustrialização dos países centrais e mesmo de países semi-desenvolvidos como o
Brasil, eliminando muitos milhões de postos de trabalho formal. Ter um emprego em
que seja possível gozar os direitos legais e fazer carreira passou a ser privilégio de
uma minoria. Os sindicatos se debilitaram pela perda de grande parte de sua base
social e conseqüentemente de sua capacidade de ampliar os direitos dos assalariados. Na realidade, pela pressão do desemprego em massa, a situação dos trabalhadores que continuaram empregados também piorou: muitos foram obrigados a
aceitar a "flexibilização" de seus direitos e a redução de salários diretos e indiretos.
Sobretudo a instabilidade no emprego se agravou, e a competição entre os trabalhadores dentro das empresas para escapar da demissão deve ter se intensificado.
Como resultado, ressurgiu com força cada vez maior a economia solidária na
maioria dos países. Na realidade, ela foi reinventada. Há indícios da criação em número cada vez maior de novas cooperativas e formas análogas de produção associada em muitos países. O que distingue este "novo cooperativismo" é a volta aos
princípio, o grande valor atribuído à democracia e à igualdade dentro dos empreendimentos, a insistência na autogestão e o repúdio ao assalariamento. Essa
mudança está em sintonia com outras transformações contextuais que atingiram de
forma profunda os movimentos políticos de esquerda.
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A primeira destas transformações foi a crise dos Estados do "socialismo realmente existente" da Europa Oriental, que estourou em 1985, com a Perestroika e a
Glasnost na União Soviética, e culminou em 1991 com a sua dissolução. Até mesmo
a Iugoslávia, que desenvolveu um modo de produção com traços de economia solidária, teve o mesmo destino. Subitamente ficou claro para milhões de socialistas e
comunistas de todo o mundo que o planejamento central da economia do país, imposto por uma pseudo-"ditadura do proletariado", não constrói uma sociedade que
tenha qualquer semelhança com o que sempre se entendeu que fosse socialismo ou
comunismo. Esta nova consciência levou indubitavelmente muitos a se reconciliar
com o capitalismo, mas muitos outros sentem-se desafiados a buscar um novo modelo de sociedade que supere o capitalismo, em termos de igualdade, liberdade e
segurança para todos os cidadãos.
A outra transformação contextual foi o semifracasso dos governos e partidos
social-democratas, principalmente na Europa mas também, mutatis mutandi, na
América Latina. Mesmo vencendo eleições e exercendo o poder governamental, os
social-democratas não conseguiram muito mais do que atenuar os excessos do neoliberalismo e preservar mal as instituições básicas do Estado de bem-estar social.
Não tentaram reverter a privatização dos serviços públicos nem a desregulamentação das finanças mundiais, submetendo as economias nacionais, sobretudo na periferia, aos ditames do grande capital financeiro global.
As duas transformações subverteram a concepção (até então amplamente dominante) de que o caminho da emancipação passa necessariamente pela
tomada do poder de Estado. O foco dos movimentos emancipatórios voltou-se
então cada vez mais para a sociedade civil: multiplicaram-se as organizações
não-governamentais (ONGS) e movimentos de libertação cuja atuação visa preservar o meio ambiente natural, a biodiversidade, o resgate da dignidade humana de grupos oprimidos e discriminados (de que o zapatismo mexicano talvez
seja o paradigma) e a promoção de comunidades que por sua própria iniciativa
e empenho melhoram suas condições de vida, renovam suas tradições culturais
etc.
É neste contexto que se verifica a reinvenção da economia solidária. O
programa da economia solidária se fundamenta na tese de que as contradições
do capitalismo criam oportunidades de desenvolvimento de organizações econômicas cuja lógica é oposta à do modo de produção dominante. O avanço da
economia solidária não prescinde inteiramente do apoio do Estado e do fundo
público, sobretudo para o resgate de comunidades miseráveis, destituídas do
mínimo de recursos que permita encetar algum processo de auto-emancipação.
Mas, para uma ampla faixa da população, construir uma economia solidária depende primordialmente dela mesma, de sua disposição de aprender e experimentar, de sua adesão aos princípios da solidariedade, da igualdade e da
democracia e de sua disposição de seguir estes princípios na vida cotidiana etc.
Cumpre observar, no entanto, que a reinvenção da economia solidária
não se deve apenas aos próprios desempregados e marginalizados. Ela é obra
também de inúmeras entidades ligadas, ao menos no Brasil, principalmente à
Igreja Católica e a outras igrejas, a sindicatos e a universidades. São entidades
de apoio à economia solidária, que difundem entre trabalhadores sem trabalho
e microprodutores sem clientes os princípios do cooperativismo e o conhecimento básico necessário à criação de empreendimentos solidários. Além disIII Módulo Regional Centro Oeste
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so, estas entidades de apoio treinam os cooperadores em autogestão e acompanham as novas empresas dando-lhes assistência tanto na realização de negócios como na construção do relacionamento interno da cooperativa.
2. Perspectivas da economia solidária
A reinvenção da economia solidária é tão recente que se toma arriscado
projetar a sua tendência de crescimento acelerado para o futuro. Em grande
medida, as empresas solidárias são resultados diretos da falência de firmas
capitalistas, da subutilização do solo por latifúndios (o que permite, no Brasil,
exigir sua expropriação para fins de reforma agrária) e do desemprego em
massa. Pode-se projetar a vasta crise do trabalho que atingiu a maioria dos países nos anos 80 e 90 do século xx para as próximas décadas?
É preciso considerar que a abertura de mercados ao comércio e o deslocamento de empresas para países de trabalho barato são mudanças estruturais
que tendem a se esgotar no tempo. Provavelmente, nos próximos decênios, o
deslocamento de postos de trabalho industriais e de serviços do centro da economia mundial para a periferia perderá intensidade. Muito vai depender também
do ritmo de crescimento das economias nacionais, estimuladas por novos padrões de consumo que decorrem dos efeitos não só da revolução microeletrônica mas também da genômica e de outras frentes da biotecnologia. E da capacidade das potências dominantes de manter alguma ordem no mercado financeiro
global, para evitar que crises financeiras localizadas (que são quase ininterruptas,
variando apenas de lugar a cada período) se transformem em crises globais.
Isso significa que se a economia solidária for apenas uma resposta às contradições do capitalismo no campo econômico seu crescimento poderá se desacelerar
no futuro e, pior, ela não passará de uma forma complementar da economia capitalista, cuja existência será funcional para preservar fatores de produção - trabalho,
terra, equipamentos e instalações - que, se ficassem sem utilização, estariam sujeitos a se deteriorar. Em suma, a economia solidária só teria perspectivas de desenvolvimento se a economia capitalista mergulhasse numa depressão longa e profunda (como a da década de 1930, por exemplo) ou se a hegemonia da burguesia
rentista mantivesse a economia da maioria dos países crescendo sempre menos
que a elevação da produtividade do trabalho.
Há, no entanto, uma outra alternativa. A economia solidária é ou poderá ser mais do
que mera resposta à incapacidade do capitalismo de integrar em sua economia
todos os membros da sociedade desejosos e necessitados de trabalhar. Ela poderá
ser o que em seus primórdios foi concebida para ser: uma alternativa superior ao
capitalismo. Superior não em termos econômicos estritos, ou seja, que as empresas
solidárias regularmente superariam suas congêneres capitalistas, oferecendo aos
mercados produtos ou serviços melhores em termos de preço e/ou qualidade. A economia solidária foi concebida para ser uma alternativa superior por proporcionar
às pessoas que a adotam, enquanto produtoras, poupadoras, consumidoras etc.,
uma vida melhor.
Vida melhor não apenas no sentido de que possam consumir mais com menor dispêndio de esforço produtivo, mas também melhor no relacionamento com familiares, amigos, vizinhos, colegas de trabalho, colegas de estudo etc.; na liberdade
de cada um de escolher o trabalho que lhe dá mais satisfação; no direito à autonomia na atividade produtiva, de não ter de se submeter a ordens alheias, de participar
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plenamente das decisões que o afetam; na segurança de cada um saber que sua
comunidade jamais o deixará desamparado ou abandonado. A grande aspiração
que, desde os seus primórdios, sempre animou a economia solidária tem sido superar as tensões e angústias que a competição de todos contra todos acarreta naqueles que se encontram mergulhados na lógica da "usina satânica", tão bem analisada
por Karl Polanyi.
A economia solidária foi concebida pelos "utópicos" como uma nova sociedade que unisse a forma industrial de produção com a organização comunitária da vida
social.
"Embora tenha sido a fonte do socialismo moderno, suas propostas
não se baseavam na questão da propriedade. que é apenas o aspecto
legal do capitalismo. Ao enfocar o novo fenômeno da indústria. como o
fez Saint-Simon, reconheceu o desafio da máquina. Porém o traço característico do owenismo era sua insistência no enfoque social: negava-se a aceitar a divisão da sociedade em uma esfera econômica e
uma esfera política e por essa razão rechaçava a ação política. A aceitação de uma esfera econômica separada teria implicado o reconhecimento do princípio do ganho e do lucro como força organizadora da
sociedade. Owen negou-se a fazê-Io. Seu gênio reconheceu que a incorporação da máquina só seria possível numa nova sociedade. [ ... ]
New Lanark havia lhe ensinado que na vida de um trabalhador os salários são somente um de muitos fatores tais como o ambiente natural e
doméstico. a qualidade e o preço dos bens. a estabilidade do emprego
e a segurança de sua posição. [ ... ] Mas o ajuste incluía muito mais do
que isso. A educação de meninos e adultos. a provisão de entretenimento. dança e música e o pressuposto geral de elevadas normas morais e pessoais para velhos e jovens criavam a atmosfera em que a nova posição era alcançada pela população industrial em conjunto.” (POLANY, 1944, p.174).
Trata-se duma concepção de socialismo que dominou a infância e a adolescência do movimento operário europeu e que nunca desapareceu inteiramente, mas
foi ofuscada pela perspectiva da "tomada do poder" seja pelo voto, após a conquista
do sufrágio universal, seja pela força, após a longa série de revoluções armadas vitoriosas, inaugurada pelo Outubro soviético. É a concepção de que é possível criar
um novo ser humano a partir de um meio social em que cooperação e solidariedade
não apenas serão possíveis entre todos os seus membros mas serão formas racionais de comportamento em função de regras de convívio que produzem e reproduzem a igualdade de direitos e de poder de decisão e a partilha geral de perdas e ganhos da comunidade entre todos os seus membros.
A questão que se coloca naturalmente é como a economia solidária pode se
transformar de um modo de produção intersticial, inserido no capitalismo em função dos vácuos deixados pelo mesmo, numa forma geral de organizar a economia
e a sociedade, que supere sua divisão em classes antagônicas e o jogo de gato e
rato da competição universal. O que implica que os empreendimentos solidários,
que hoje se encontram dispersos territorial e setorialmente, cada um competindo
sozinho nos mercados em que vende e nos que compra, teriam que se agregar
num todo economicamente consistente, capaz de oferecer a todos os que a desejassem a Oportunidade de trabalhar e viver cooperativamente.
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A economia solidária teria que gerar sua própria dinâmica em vez de depender das contradições do modo dominante de produção para lhe abrir caminho. Não
se pode excluir a possibilidade de que o capitalismo passe nas próximas décadas
por uma fase de alta, com ganhos de consumo, produção e produtividade análogos
aos dos 30 anos dourados do pós-Segunda Guerra Mundial. Nesta hipótese, o desemprego diminuiria, assim como a quantidade de empresas falidas e a massa dos
socialmente excluídos. Estas fontes de crescimento da economia solidária sofreriam
forte contração. Em compensação, as empresas solidárias já formadas teriam importantes estímulos de mercado para se expandir e diversificar, para não só crescer em
tamanho mas se multiplicar, seja por subdivisão das cooperativas em expansão, seja pelo apoio das mesmas à criação de novas empresas solidárias. A partir de 1956,
durante os anos dourados, o Complexo Cooperativo de Mondragón praticou todas
estas modalidades de expansão.
A trajetória de Mondragón é uma clara demonstração de que isso poderá ser
novamente possível, em qualquer país em que a economia solidária tenha se difundido. Seria imprescindível erguer um sistema de crédito cooperativo que desse suporte financeiro a esse crescimento e ao mesmo tempo incubasse os novos empreendimentos (como a Caja Laboral Popular de Mondragón tem feito sistematicamente). Outro pré-requisito seria construir um sistema de geração e difusão de conhecimento, para dar formação técnica e ideológica aos futuros integrantes da economia
solidária.
Esta via de crescimento da economia solidária pode desembocar em duas formas muito distintas de relacionamento com a economia inclusiva, dominada pelo
capital. Uma destas formas seria o isolamento: a economia solidária tenderia a
constituir um todo auto-suficiente, protegido da competição das empresas capitalistas por uma demanda ideologicamente motivada - o chamado cal/sI/mo solidário, que dá preferência a bens e serviços produzidos por empreendimentos solidários. Já existe um movimento nesse sentido, promotor do comércio "justo" (fair trade) procura convencer o público de que deve comprar não em função do seu
proveito individual (a melhor mercadoria em termos de preço e qualidade), mas
em função do modo como bens e serviços são produzidos.
Euclides Mance (2000, p. 30) escreve:
"Consumir um produto que possui as mesmas qualidades que os similares - sendo ou não um pouco mais caro - ou um Produto que tenha
uma qualidade um pouco inferior aos similares - embora seja também
um pouco mais barato - com a finalidade indireta de promover o bemviver da coletividade (manter empregos, reduzir jornadas de trabalho,
preservar ecossistemas, garantir serviços públicos não-estatais etc.) é
o que denominamos aqui como consumo solidário".
A partir desta fundamentação, Mance (2000, p. 32) abre a perspectiva
da constituição de uma sociedade pós-capitalista:
"[...] os excluídos, isoladamente, não têm como competir com o capital.
O fator preponderante até agora na permanência ativa destas novas
unidades produtivas, precárias e de pequenas proporções, é o consumo solidário que elas agenciam. Contudo, quando um movimento de
redes integrar a todas, e elas se conectarem em cadeias produtivas,
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consumindo e produzindo prioritariamente para ampliar a própria rede,
que se expande multiplicando-se em novas células, então um novo
movimento de geração de riquezas se desenvolverá progressivamente,
em razão da incorporação ao processo produtivo dos trabalhadores atualmente excluídos. A qualificação da produção e o aumento da produtividade permiti rão uma progressiva redução da jornada laboral. E
uma nova sociedade pós-capitalista estará surgindo, centrada não somente no consumo solidário, mas no consumo em razão do bem-viver".
Pela descrição do consumo solidário de Mance, fica claro que este oferece uma margem limitada de proteção às mercadorias produzidas pelos excluídos, pois para poderem ser vendidas elas podem ser apenas "um pouco" mais
caras ou "um pouco" inferiores em qualidade. É fácil perceber que, se a distância entre preço e qualidade da produção capitalista e da produção solidária for
mais do que "um pouco", a quantidade de mercadorias compradas solidariamente cai rapidamente, pois apenas um punhado de consumidores solidários
ricos e caridosos se disporia a adquiri-Ias.
Além disso, se a maioria dos que praticam consumo solidário for constituída pelos próprios trabalhadores das cooperativas autogeridas, o seu limitado
poder aquisitivo impede que o consumo solidário seja mais do que uma fração
irrisória do consumo total. O que implica que os empreendimentos solidários
precisariam vender o grosso de suas mercadorias a consumidores que não vão
lhes dar preferência por solidariedade. Eles seriam, pois, obrigados a competir
diretamente com firmas capitalistas, em termos de preço e qualidade.
Sem dúvida há um esforço militante por parte de paróquias e dioceses da
Igreja para promover o consumo solidário por parte dos fiéis, mas os resultados
são medíocres, ajulgar pelo fato de que a maioria das unidades solidárias de
produção, que dependem do mercado solidário, se mostra incapaz de crescer e
de elevar sua produtividade ao patamar da produtividade média das empresas
capitalistas. Daí se segue o principal argumento contra a proposta de consumo
solidário: ao proteger pequenas unidades solidárias de produção, o consumo
solidário lhes poupa a necessidade de se atualizar tecnicamente, levando-as a
se acomodar numa situação de inferioridade. em que ficam vegetando.
A proposta de isolar a economia solidária do seu entorno capitalista só
adquiriria efetividade, no sentido de propiciar o surgimento de uma sociedade
pós-capitalista, se as unidades produtivas e as comunidades de compras solidárias
se integrassem em rede e desenvolvessem padrões de consumo consideravelmente
diferentes dos prevalecentes na economia capitalista. Prenúncio de algo assim poderia ser a recusa das comunidades, que se opõem ao capitalismo, de consumir
produtos transgênicos e de sua preferência por alimentos provenientes da agricultura orgânica. O estilo de vida de tais comunidades favorece o consumo de produtos
artesanais e étnicos e o uso de serviços que não produzem emissões de gases que
possam agravar o efeito estufa. Não obstante, esta diferenciação do consumo é restrita demais para constituir um padrão distinto do capitalista. Os membros dessas
comunidades participam das modalidades de consumo habituais, exceto as acima
mencionadas.
Se a grande maioria do público se mantiver nos padrões de consumo desenvolvidos sob a égide do grande capital, como até agora tem feito, os empreendimentos solidários terão de se tomar realmente competitivos. E mesmo se determiIII Módulo Regional Centro Oeste
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nados produtos alternativos acabarem se tomando objeto de consumo de massa
(como os blue-jeans nos anos 60, por exemplo), nada impedirá o surgimento de
empresas capitalistas que os produzirão com máxima produtividade e os venderão
a preços mínimos, para tomar o mercado das cooperativas e das unidades familiares de produção.
Então a forma mais provável de crescimento da economia solidária será continuar integrando mercados em que compete tanto com empresas capitalistas como
com outros modos de produção, do próprio país e de outros países. O consumo solidário poderá ser um fator de sustentação de algumas empresas solidárias, do mesmo modo como o são os clubes de troca. Mas a economia solidária só se tornará
uma alternativa superior ao capitalismo quando ela puder oferecer a parcelas crescentes de toda a população oportunidades concretas de auto-sustento, usufruindo
o mesmo bem-estar médio que o emprego assalariado proporciona. Em outras palavras, para que a economia solidária se transforme de paliativo dos males do
capitalismo em competidor do mesmo, ela terá de alcançar níveis de eficiência na
produção e distribuição de mercadorias comparáveis aos da economia capitalista e
de outros modos de produção, mediante o apoio de serviços financeiro e científico-tecnológico solidários.
Atualmente, a maioria dos empreendimentos solidários é de caráter intersticial. Surgiram corno respostas a crises nas empresas, ao desemprego e à exclusão
social. Mas, em determinadas regiões, a economia solidária atingiu densidade tal
que domina a vida econômica e pauta a sua expansão. Mondragón é o exemplo
mais acabado, mas no mesmo contexto cabe citar Emilia Romana na Itália, Québec
no Canadá, Grande Buenos Aires na Argentina (em que prevalecem clubes de troca), o Grameen Bank em Bangladesh c, quem sabe, nos próximos anos a região de
Catende, no sul da Zona da Mata pernambucana, onde a maior agroindústria açucareira da América Latina se encontra em autogestão desde 1995.
No Brasil, a reinvenção da economia solidária é recente, mas apresenta grande vigor e notável criatividade institucional. São invenções brasileiras a Associação
Nacional de Trabalhadores de Empresas de Autogestão e de Participação Acionária
(Anteag), que já orientou a conversão de centenas de empresas em crise em cooperativas, e as Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCPS) inseridas em universidades, das quais 13 formam uma rede e outras tantas desenvolvem
atividades análogas ligadas à Fundação Unitrabalho, integrada por mais de 80 universidades de todo o país. As incubadoras organizam comunidades periféricas em
cooperativas mediante a incubação, um complexo processo de formação pelo
qual as práticas tradicionais de solidariedade se transformam em instrumentos
de emancipação.
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Economia Solidária no Brasil
O cooperativismo chegou ao Brasil no começo do século XX trazido pelos emigrantes europeus. Tomou principalmente a forma de cooperativas de consumo
nas cidades e de cooperativas agrícolas no campo. As cooperativas de consumo eram em geral por empresa e serviam para proteger os trabalhadores dos
rigores da carestia. Nas décadas mais recentes, as grandes redes de hipermercados conquistaram os mercados e provocaram o fechamento da maioria das
cooperativas de consumo. As cooperativas agrícolas se expandiram e algumas
se transformaram em grandes empreendimentos agroindustriais e comerciais.
Mas nenhuma destas cooperativas era ou é autogestionária. Sua direção e as
pessoas que as operam são assalariadas, tanto nas cooperativas de consumo
como nas de compras e vendas agrícolas. Por isso não se pode considerá-las
parte da economia solidária.
Com a crise social das décadas perdidas de 1980 e de 1990, em que o país se
desindustrializou, milhões de postos de trabalho foram perdidos, acarretando
desemprego em massa e acentuada exclusão social. a economia solidária reviveu no Brasil. Ela assumiu em geral a forma de cooperativa ou associação produtiva. sob diferentes modalidades mas sempre autogestionárias, de que trataremos resumidamente a seguir.
Ainda nos 1980, a Cáritas, entidade ligada à Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil (CNSS), financiou milhares de pequenos projetos denominados PACS,
Projetos Alternativos Comunitários. Uma boa parte dos PACs destinava-se a gerar trabalho e renda de forma associada para moradores das periferias pobres
de nossas metrópoles e da zona rural das diferentes regiões do país. Uma boa
parte dos PACs acabou se transformando em unidades de economia solidária,
alguns dependentes ainda da ajuda caritativa das comunidades de fiéis, outros
conseguindo se consolidar economicamente mediante a venda de sua produção
no mercado. Há PACS em assentamentos de reforma agrária liderados pelo
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), confluindo com o cooperativismo agrícola criado pelos trabalhadores sem-terra.
Outra modalidade foi a tomada de empresas falidas ou em via de falir pelos
seus trabalhadores, que as ressuscitam como cooperativas autogestionárias.
Foi uma forma encontrada pelos trabalhadores de se defender da hecatombe
industrial, preservando os seus postos de trabalho e se transformando em seus
próprios patrões. Após casos isolados na década de 1980, o movimento começou em 1991 com a falência da empresa calçadista Makerli, de Franca (SP),
que deu lugar à criação da Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão e Participação Acionária (Anteag), à qual estão hoje filiadas
mais de uma centena de cooperativas. A mesma atividade de fomento e apoio à
transformação de empresas em crise em cooperativas de seus trabalhadores é
desenvolvida pela União e Solidariedade das Cooperativas do Estado de São
Paulo (UNISOL).
O MST conseguiu assentar centenas de milhares de famílias em terras desapropriadas de latifúndios improdutivos. O movimento decidiu que promoveria a
agricultura sob a forma de cooperativas autogestionárias. dando lugar a outra
modalidade de economia solidária no Brasil. Para realizar isso, "criou em 1989 e
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1990 o Sistema Cooperativista dos Assentados (SCA). Passados dez anos de
sua organização, o SCA conta com 86 cooperativas distribuídas em diversos estados brasileiros, divididas em três formas principais em primeiro nível: Cooperativas de Produção Agropecuária, Cooperativas de Prestação de Serviços e
Cooperativas de Crédito"1.
Um outro componente da economia solidária no Brasil é formado pelas cooperativas e grupos de produção associada, incubados por entidades universitárias,
que se denominam Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares
(ITCPS). As ITCPS são multidisciplinares, integradas por professores, alunos de
graduação e pós-graduação e funcionários, pertencentes às mais diferentes áreas do saber. EIas atendem grupos comunitários que desejam trabalhar e produzir em conjunto. dando-Ihes formação em cooperativismo e economia solidária e apoio técnico, logístico e jurídico para que possam viabilizar seus empreendimentos autogestionários.
Desde 1999, as ITCPS constituíram uma rede, que se reúne periodicamente para trocar experiências. aprimorar a metodologia de incubação e se posicionar
dentro do movimento nacional de economia solidária. No mesmo ano, a rede se
filiou à Fundação Unitrabalho, que reúne mais de 80 universidades e presta serviços, nas mais diferentes áreas, ao movimento operário. A Unitrabalho desenvolve desde 1997 um programa de estudos e pesquisas sobre economia solidária. Um crescente número de núcleos da Unitrabalho em universidades acompanha e assiste às cooperativas, numa atividade que. sob muitos aspectos, se
assemelha às das ITCPS.
Prefeituras de diversas cidades e alguns governos de estados têm contratado
ITCPS, a Anteag, a UNISOL e outras entidades de fomento da economia solidária para capacitar beneficiados por programas de renda mínima, frentes de trabalho e outros programas congêneres. O objetivo é usar a assistência social
como via de acesso para combater efetivamente a pobreza mediante a organização dos que o desejarem em formas variadas de produção associada, que
Ihes permita alcançar o auto-sustento mediante seu próprio esforço produtivo.
A Central Única dos Trabalhadores (CUT), a maior central sindical brasileira,
criou em 1999, em parceria com a Unitrabalho e o Departamento Intersindical
de Estatísticas e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese), a Agência de Desenvolvimento Solidário (ADS). A ADS vem difundindo conhecimentos sobre a economia solidária entre lideranças sindicais e militantes de entidades de fomento da
economia solidária, por meio de cursos pós-graduados em várias universidades,
em parceria com a Unitrabalho. Uma de suas atividades prioritárias é a criação
de cooperativas de crédito com o objetivo de estabelecer uma rede nacional de
crédito solidário, em parceria com o Rabobank, importante banco cooperativo
holandês.
Por ocasião do primeiro Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre em
2001, foi lançada a Rede Brasileira de Sócio-Economia Solidária, integrada por
diversas entidades de fomento da economia solidária de todo o país. É uma rede eletrônica que enseja o intercâmbio de notícias e opiniões e está se transformando também em rede eletrônica de intercâmbio comercial entre cooperativas e associações produtivas e de consumidores.
Este quadro sintético da economia solidária no Brasil é incompleto, pois se restringe às informações disponíveis no momento (fevereiro de 2002). É muito proIII Módulo Regional Centro Oeste
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vável que outras iniciativas de economia solidária estejam se desenvolvendo no
vasto território de nosso país.
Nota:
1.
FERREIRA, Elenar. "A cooperação no MST: da luta pela terra à gestão
coletiva dos meios de produção." In SINGER e SOUZA (org.). Economia Solidária no Brasil: autogestão como resposta ao desemprego. São Paulo, Editora
Contexto, 2000.
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em 1997; edição brasileira: O banqueiro dos pobres. São Paulo, Ática, 2000).
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RELAÇÕES DE GÊNERO E AGRICULTURA FAMILIAR
Miriam Nobre
Nos últimos anos, a agricultura familiar tem estado no centro das atenções do
movimento sindical, dos pesquisadores, do Governo e dos organismos internacionais relacionados com a questão. Ela aparece como a base de um modelo alternativo de desenvolvimento para o meio rural capaz de reduzir a pobreza, as disparidades de renda e o uso irracional dos recursos naturais. O debate predominante em
torno da agricultura familiar trata de como torná-la mais eficiente e com maior capacidade de resistência ao mercado cada vez mais concentrado. Para isso, buscam
entendê-la melhor, definindo características, como tamanho, produção, presença ou
não de empregados e classificando-a em grupos. Infelizmente, muitos ainda pensam
essa atividade apenas como um setor da economia ou, no máximo, enquanto função
social com potencial para conter o êxodo rural, o qual contribui para aumentar o desemprego nas cidades. Poucos se detêm sobre as pessoas que vivem e trabalham
na agricultura familiar — seus sonhos e anseios, os direitos que constroem e procuram tornar realidade. Quanto à família, quando considerada, apenas o é na figura do
chefe da família. O trabalho e a visão de mulheres, filhas e filhos são negligenciados, como se os interesses do pai incluíssem os de todos.
A idéia de um pai que decide pela vida de todos parece uma coisa do passado,
pelo menos no discurso voltado para o meio urbano. Por que então é aceita sem
questionamentos para as famílias de trabalhadores rurais? Talvez porque, para os
agricultores que trabalham a terra por conta própria, a forma de combinar a disponibilidade de trabalho da família com as exigências das diferentes etapas do ciclo de
produção agrícola propicie uma divisão do trabalho que se naturaliza pelo sexo e
pela idade. A naturalização da divisão sexual do trabalho impede que esta se torne
um problema a ser enfrentado pela sociedade. Mesmo o grande estudioso da produção econômica camponesa, Alexander Chayanov, ao se deparar com as estatísticas
que apontavam o tempo de trabalho muito maior das mulheres na Rússia do princípio do século, em relação ao dos homens, afirmou:
“Uma grande parte do trabalho do homem é empregada nas atividades artesanais, comércio e agricultura. A força de trabalho da mulher se utiliza de forma
predominante no trabalho doméstico. Em geral a mulher trabalha mais do que o
homem, mas seu trabalho não é tão duro. Os adolescentes trabalham menos
dias que os adultos. A distribuição de seu trabalho nos setores da fazenda é de
acordo com o sexo; em geral os jovens se ocupam mais da agricultura e as jovens dedicam muitos dias ao trabalho doméstico” (Chayanov, 1985, p. 210).
Ainda hoje a divisão sexual do trabalho parte do princípio de que os homens
são responsáveis pelo trabalho produtivo (a agricultura, a pecuária, enfim tudo o que
se associa ao mercado) e as mulheres, pelo trabalho reprodutivo (o trabalho doméstico, o cuidado da horta e dos pequenos animais, tudo o que é feito para uso e consumo próprio, sem contar a reprodução da própria família pelo nascimento e cuidado
dos herdeiros). Nos estudos brasileiros sobre campesinato essa divisão se expressou na oposição entre casa e roçado.
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DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO NA AGRICULTURA:
UM PESO, DUAS MEDIDAS
Beatriz Heredia e outros (1984), estudando pequenos produtores ligados à
plantação açucareira no Nordeste brasileiro, apontam a relação entre roçado e casa
como definidora das áreas de trabalho e de não-trabalho. No roçado se produz farinha, feijão e milho, considerados, pelos agricultores, fundamentais à sobrevivência,
de modo que as atividades aí realizadas são reconhecidas como trabalho. O pai encarna essas atividades, logo o trabalho é dele. Mesmo que os filhos e a esposa desempenhem tarefas no roçado, essas são consideradas “ajuda”. Por oposição ao
roçado, a casa é o lugar da mulher, mãe de família, e as atividades aí desenvolvidas
são consideradas um não-trabalho. O produto das atividades femininas no cuidado
de pequenas criações ou no artesanato é comercializado para a compra de outros
bens para a casa, como, por exemplo, utensílios de cozinha, roupa de cama etc. As
mulheres geralmente não participam da comercialização de produtos. Quando estão
nas feiras, localizam-se na venda de produtos considerados secundários, tais como
verduras, frutas e condimentos.
A idéia de que, em última instância, a hierarquia entre os produtos determina
os conceitos de trabalho e ajuda merece melhor análise. O Deser (Departamento
Sindical de Estudos Rurais) e a Comissão da Mulher Trabalhadora Rural da CUT —
Central Única dos Trabalhadores — do Paraná realizaram uma pesquisa sobre a
participação das mulheres na produção de leite, cujo resultado evidenciou que elas
são responsáveis por grande parte das etapas dessa produção (Deser e CEMTRPR, 1996). Porém, à medida que a produção de leite se tecnifica e passa a contribuir
com maior peso para a renda das famílias, as tarefas passam progressivamente a
ser desenvolvidas pelos filhos maiores e, depois, pelos maridos. Enquanto fruto de
uma produção complementar, o resultado da venda do leite contribui para o pagamento da conta de luz e para a compra do “rancho” (produtos de consumo doméstico industrializados como macarrão, óleo de soja, fósforo), o que é essencial para a
manutenção dessas famílias; contudo, tal aspecto não é facilmente reconhecido.
Para as agricultoras presentes ao seminário de apresentação da pesquisa, isso ocorre “porque o dinheiro sai todo mês e não faz volume”.
Quando a produção agrícola é vendida, entra o “dinheiro grande”, com o qual
são compradas novas roupas para toda a família, eletrodomésticos de maior custo, e
decidem-se os novos investimentos na produção — este último, um assunto que não
é considerado “de mulher”.
A divisão sexual do trabalho estaria então profundamente relacionada com as
representações sociais vinculadas a mulheres e homens. Em estudo publicado em
1975, Verena Martinez-Alier já trazia a fala das mulheres bóias-frias: “O homem trabalha porque é homem; a mulher porque precisa”. Isto é, o trabalho constitui a própria identidade masculina, enquanto as mulheres estão como que provisórias no
mundo do trabalho. O título de “provisórias” ou “estranhas” a um mundo onde sempre estiveram serve a uma desvalorização do trabalho das mulheres. Maria Ignez
Paulilo (1987), analisando os trabalhos agrícolas no sertão e no brejo paraibano, e
na cultura de fumo na região sul de Santa Catarina, percebeu como traço comum
entre eles a distinção entre trabalho leve e trabalho pesado: o primeiro, atribuição de
mulheres e crianças; o segundo, incumbência masculina. Segundo a autora, o trabalho é considerado leve por quem o executa, e não pela natureza do trabalho em si.
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Mesmo que as mulheres e crianças trabalhem o mesmo número de horas que os
homens e suas tarefas exijam habilidade, paciência e rapidez, elas recebem menos,
pois o valor da diária é determinado pelo sexo e idade de quem a recebe.
O esforço físico é sempre apontado como uma das razões para os homens
serem considerados mais importantes do que as mulheres no trabalho agrícola.
Mas, quando se olha para a realidade, não há tarefa que elas não executem se não
for possível prescindir de seus braços. Mulheres já fizeram destoca, araram a terra,
puxando o burro ou “no muque”, e carregaram sacos de 60 kg na cabeça. Mas, toda
vez que essas tarefas são mecanizadas e, portanto exige menor força física, contraditoriamente, elas são excluídas, ou seja, é muito mais fácil ver uma mulher carpindo
com a enxada do que dirigindo o trator para a realização do trabalho agrícola.
Outro estudo interessante é o de Maria Aparecida Moraes (1987) sobre as mulheres
agricultoras do Vale do Jequitinhonha (Minas Gerais). Segundo essa autora:
“No tocante às mulheres, não existe uma separação rígida entre casa e roçado.
Ela transita por esses dois espaços. As mulheres fazem ou podem fazer todos
os serviços nessas unidades camponesas, dependendo não só do ciclo produtivo, como também da ausência ou permanência do marido e filhos adultos na
terra” (p. 9).
Permanece, entretanto, a valorização diferente entre homens e mulheres. Nas
regras para a troca de dias, prática fundamental na organização do trabalho ao longo do ciclo agrícola, mulheres não trocam dias com homens, havendo mesmo locais
em que isso é proibido. Quando o fazem, elas têm de trabalhar dois dias para pagar
um dia de serviço de um homem.
AS RELAÇÕES DE GÊNERO
A valorização diferente do trabalho de mulheres e homens se explica pela existência de uma relação de hierarquia entre os gêneros. Essa relação tem sua base
material na divisão sexual do trabalho, mas organiza, sem ordem de prioridades,
aspectos econômicos, sociais, vivências particulares, símbolos e representações em
imagens de constante movimento, como em um caleidoscópio.
Olhar para a complexidade das relações de gênero é querer, mais do que ver
suas formas aparentes, entender sua dinâmica, a forma como produzem e reproduzem desigualdades para poder superá-las. Um dos aspectos a se considerar é o
processo de socialização de gênero desenvolvendo habilidades e capacidades diferentes nos homens e nas mulheres. Quando resgatamos, em uma linha da vida, o
desenvolvimento de meninos e meninas, percebemos que, na área rural, eles estão
juntos, sem grandes diferenças até por volta dos 5 anos. Depois, as meninas começam a seguir as mães, aprendendo com elas o trabalho doméstico e contribuindo
para a realização deste. Os meninos passam a seguir o pai, a aprender com ele e a
brincar entre meninos nas horas de lazer que geralmente são maiores que as das
meninas. Os rapazes também saem mais, vão mais longe, enquanto as moças ficam
mais com a família, não só pelo trabalho, mas pelo medo dos pais de que elas “caiam na vida”.
Quando se tornam adultos, se ocupam das tarefas consideradas do sexo oposto, sentem dificuldades pessoais e sofrem reprovações sociais de parentes e amigos. Se a mulher está de resguardo e o casal não tem filhas com idade suficiente
para fazer o serviço da casa, o homem o faz. E, sempre que necessário, as mulhe39
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res fazem o serviço considerado dos homens. Algumas temem a igualdade derivada
do fato de assumirem “oficialmente” a responsabilidade pelo serviço que muitas vezes já fazem: “Se eu aprender o serviço dele, ele não vai fazer nem isso”. Ademais,
os homens resistem ao novos aprendizados das mulheres: “Se você souber dirigir,
não vai parar mais aqui”, e elas se sentem pressionadas por uma grande exigência
interna e externa de não poderem errar. Na maioria das vezes, o que acontece é
que as aprendizagens de homens e mulheres no “campo oposto” só servem para
complementar o serviço do/a outro/a ou para cobrir uma ausência, e não para redividir as tarefas de forma mais permanente, e muito menos o poder e o reconhecimento social que as recobre.
Os estudos sobre a agricultura familiar que utilizam o conceito de gênero como instrumentos de análise ainda são recentes. Destaca-se o de Ellen Woortmann
(1995) sobre as relações de parentesco entre colonos de origem alemã do Sul do
Brasil e entre sitiantes do Nordeste. A hierarquia de gêneros é aí detectada não só
na produção agrícola, mas na sexualidade, na posição na comunidade (na “oposição
simbólica mulheres à esquerda, homens à direita, no interior da igreja”) e na família.
Entre os colonos alemães do Sul, por exemplo, os nomes masculinos expressam
relações de compadrio e parentesco, e o fazer parte de uma família. Os nomes das
mulheres são “nomes fantasia”, pois elas serão reconhecidas em relação com o nome do pai e, depois, com o do marido.
Para Ellen Woortmann, a reprodução camponesa depende de sua capacidade
de resistência e adaptação, o que, para ela, se baseia, nos dois casos estudados,
“no valor atribuído à família e ao trabalho familiar, e na lealdade à tradição, mas, ao
mesmo tempo, na dinâmica conservadora de sua organização social”.
Entre os colonos alemães do Sul, a insatisfação da mulher com respeito a esse modelo tem como resposta a migração para a cidade, onde ela terá “ao menos seu salário”. Uma leitura possível é, então, a de que a hierarquia entre os gêneros constitui
de tal forma o modelo de existência da agricultura familiar que seu questionamento,
por parte das mulheres, comprometeria a sua própria reprodução enquanto agricultoras.
Outro estudo, de Maria José Carneiro (1996), analisa as unidades de produção agrícola familiar da França atual, que combinam o trabalho na terra com o assalariamento em fábricas da região. Esse fenômeno é conhecido como pluriatividade.
Apesar de já ser comum no Brasil há muitos anos (exemplificado pelos migrantes
que trabalham na cidade e mandam dinheiro para a família no campo), vem chamando a atenção como uma característica que se projeta no futuro da agricultura
familiar. Na França, o homem sai para trabalhar e a mulher passa a ter o status de
chefe do estabelecimento, para continuar recebendo o incentivo oficial dirigido aos
trabalhadores exclusivamente agrícolas. As mulheres fazem todo o trabalho, inclusive o manejo das máquinas, mas se vêem como se fossem um “prolongamento dos
braços de seus maridos”. Na prática, as esposas de agricultores não tomam jamais
o lugar de seus maridos na hierarquia familiar, mesmo que elas os substituam no
trabalho e obtenham um estatuto legal junto às entidades que regulamentam a profissão de agricultor. Da mesma maneira, elas não ocupam posições de poder nos
organismos deliberativos voltados para a agricultura.
A autora conclui, por isso, que o papel da mulher na produção não seria o determinante para a redefinição da sua posição na família ou na sociedade, mas sim a
ideologia que cimenta as relações de hierarquia entre os gêneros.
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As análises de Ellen Woortmann e de Maria José Carneiro têm em comum o
fato de buscarem ir além de uma interpretação exclusivamente econômica da desigualdade entre os gêneros. Mas a impressão que fica é a de que a cultura, a tradição e a ideologia são entidades autônomas, não estando profundamente imbricadas
na produção material da vida e dificilmente sendo mudadas. Essas análises nos fazem refletir sobre as questões estratégicas envolvidas no fortalecimento das mulheres enquanto agricultoras. O fundamental é ter sempre presente as mulheres como
sujeitos que, por sua ação política, definem quais questões adquirem formas estratégicas para mudar as relações de gênero.
AS TRANSFORMAÇÕES EM CURSO
Os movimentos de mulheres trabalhadoras rurais, nas suas mais diferentes
vertentes (autônomos, ligados ao movimento sindical, a associações de pequenos
produtores etc.), vêm construindo a identidade política das agricultoras no seu reconhecimento público. Eles obtêm a cidadania destas por seu acesso à documentação
profissional e por seu auto-reconhecimento enquanto trabalhadora e pela aceitação,
pelos agentes públicos, da profissão de agricultora na declaração para o Censo, na
certidão de casamento, na emissão da nota conjunta do produtor e no gozo dos direitos previdenciários (auxílio maternidade e aposentadoria). Apesar de todos esses
avanços, muitos funcionários do INSS ou de cartórios ainda resistem, na prática, a
reconhecer as mulheres enquanto agricultoras, sem contar os gerentes de banco.
Por isso, uma vitória importante do Grito da Terra de 1998 foi a criação de linhas
especiais de crédito para mulheres no Procera (Programa de Crédito Especial para a
Reforma Agrária).
A visibilidade e a valorização do trabalho das mulheres, porém, são mais restritos na sua relação com a família. A maioria das agricultoras não decide sobre o
dinheiro que é fruto de seu suor ou sobre os investimentos que poderiam melhorar
suas condições de trabalho. Por exemplo, nas regiões onde são responsáveis por
tirar leite, é comum as mulheres terem de cuidar de duas a três vacas, que, somadas, atingem a produção de uma mais produtiva, ou ter de cortar o capim e trazer
para os animais, porque não podem decidir sobre um pequeno pedaço de terra para
fazer um piquete.
As propostas para enfrentar essa questão ainda são poucas. Geralmente restringem-se à de que o marido pague um salário à esposa ou divida a terra em lotes
individuais a serem explorados em separado pelos membros da família. Essas propostas contrariam a lógica tradicional da agricultura camponesa, de utilizar de forma
combinada seu principal recurso disponível, que é à força de trabalho de todos os
seus integrantes para garantir sua sobrevivência e reprodução.
Outra questão é a da herança da terra. Mesmo quando nos dirigimos diretamente aos jovens, ela permanece um tabu. A divisão igualitária de tão pouca terra e
instrumentos de trabalho pode significar que nenhum dos filhos e filhas tenha como
continuar sua vida na condição de agricultores. Mas, se permanecerem as regras
tradicionais, as mulheres continuarão a ser excluídas — destinadas ao convento, a
receber uma máquina de costura e uma vaca para viver com a família do marido ou
à migração para a cidade em busca de um emprego. A opção por essa última alternativa tem aumentado cada vez mais, e começa a chamar a atenção da sociedade
(Veja, 05-08-98). A saída das mulheres do campo pode não se explicar somente por
uma maior oferta de empregos para mulheres na cidade ou por sua maior escolari-
41
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
dade, mas por uma negação da condição de vida da mãe de família, esposa de agricultor.
Para o delicado problema da herança, a novidade foi trazida pelo Movimento
dos Sem-Terra, que abriu, pela luta política, a possibilidade de acesso a terra e à
condição de agricultor para os filhos, infelizmente não na mesma proporção para as
filhas. A luta política cria identidades de classe — os sem-terra — e de gênero. Essas identidades parecem algumas vezes contraditórias, mas a própria luta cria formas de mediação entre tais interesses, produzindo mesmo novas representações
sociais. Por exemplo, a pesquisa “Mulheres na Produção do Leite” (DeserCEMTR/PR, 1996) registrou que os homens que tiram leite, tarefa considerada feminina naquela região do país, eram identificados como “do PT”. Isso significa que
maneiras diferentes de viver em família e organizar o trabalho dentro dela, pelo menos na idéia, se associam rapidamente com uma maneira diferente de ver o mundo
e querer transformá-lo. Os movimentos sociais podem, portanto, em interação com
outras forças, construir na sua ação política respostas para dilemas que ainda não
estão conscientemente colocados.
Cabem, ainda, algumas reflexões na tentativa de uma formulação mais próxima da realidade das agricultoras familiares. Para Delma Pessanha (1997), a sobreposição do que move a unidade de produção nos interesses da unidade familiar,
e de cada um de seus membros, é simplista e tende a subordinar o segundo ao primeiro por uma determinação econômica. Esse olhar nos faz entender novas realidades, como, por exemplo, o manejo de pequenas unidades de produção de cana no
interior de São Paulo ou do Rio de Janeiro, feito por especialistas com o acompanhamento de apenas um membro da família proprietária, que pode bem ser uma
mulher viúva ou solteira.
Mesmo que a família, como uma reunião de sujeitos, e a unidade econômica de produção possa ter movimentos próprios, estes se relacionam e, para fortalecer a autonomia das mulheres, é preciso considerar a maneira como elas se inserem em cada
uma dessas dimensões.
Nas oficinas que realizamos, conhecemos Rosa, uma mulher solteira que
administra a propriedade de sua família, onde ainda vivem sua mãe viúva e seu irmão mais novo. Desde criança, ela preferia ir para a roça a dividir o trabalho ao redor da casa com suas irmãs. Perto do pai, aproveitava para observar e aprender sua
forma de agir, de organizar o trabalho, de decidir os negócios. Já adulta, era sempre
ela que o agrônomo da ONG local procurava para falar das novidades tecnológicas,
pensarem propostas para a exploração agrícola de sua família. Foi assim que Rosa
montou a criação e o abatedouro de frangos que garante uma renda pequena, mas
estável, para o sustento de todos. Na região, um antigo e atuante movimento de mulheres cria o ambiente favorável para que ela não seja a exceção que justifica a regra. Sempre pensando novas formas de produzir, sustentáveis dos pontos de vista
financeiros e ecológicos, para sua roça e para a comunidade, Rosa tornou-se presidente da associação de pequenos produtores local. A trajetória pessoal e organizada no movimento de mulheres e nas iniciativas alternativas de produção se combina
na história dessa mulher, que construiu para si um destino diferente do de muitas de
suas amigas e contemporâneas. Para que outras rosas, margaridas, açucenas floresçam, ainda é preciso que a desigualdade entre os gêneros na sociedade, inclusive na agricultura familiar, não lhes tire o viço.
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Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
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Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
DESENVOLVIMENTO RURAL NA REGIÃO CENTRO OESTE7
Os processo de ocupação regional
Dois fatores são fundamentais no processo de ocupação regional do CentroOeste - a construção de Brasília e a instalação, ali, do Distrito Federal (antes disso,
em 1933 a construção de Goiânia havia desempenhado papel semelhante) e, principalmente. a "abertura de fronteiras agrícolas"
Foi no período pós-64 que se deu a etapa de maior ênfase na expansão da
fronteira agrícola da região. Os incentivos governamentais (especialmente os subsídios agrícolas), o investimento na criação de redes de transporte e armazenagem, o
baixo custo das terras (em relação a regiões como o Sul e o Sudeste) e a introdução
de culturas adaptáveis aos Cerrados, contribuíram decisivamente para o desenvolvimento desta proposta que, além de promover a ocupação desta região, visava ainda amortecer as tensões sociais crescentes no meio rural, incentivando o deslocamento de correntes migratórias.
Os Censos Demográficos de 60, 70, 80 e 91, e as PNADs demonstram o espantoso crescimento da população do Centro Oeste em conseqüência dos programas governamentais. Segundo estes dados, ocorreu um aumento populacional na
ordem de 250% entre 1960 e 1995 na Região.
Em conseqüência destes investimentos deu-se a grande ocupação do Estado
de Mato Grosso na década de 70, especialmente através de assentamentos dirigidos de colonização. Até maio de 1995 se contabilizavam 94 projetos de assentamentos, dos quais 70 foram executados pelo Governo Federal, 18 pelo Governo Estadual e 6 pelos Municípios. Estes projetos acabaram se transformando posteriormente em núcleos urbanos com funções típicas de serviços a atividades agropecuárias regional.
Na década de 90 percebe-se uma diminuição no ritmo do crescimento populacional. As migrações são quase que exclusivamente sazonais (trabalhadores do
Sudeste e do Nordeste que vêm para as colheitas da cana-de-açúcar e atividades
das carvoarias). O estado que recebeu maior fluxo migratório, entre as décadas de
80 e 90, foi Mato Grosso. Sua população quase que dobrou em 10 anos.
A retirada dos subsídios agrícolas governamentais provocou um decréscimo
significativo da migração no país nos últimos anos, no entanto o Centro Oeste mantém-se como um polo de atração. Atualmente, a Região possui o índice mais alto de
população migrante do país. O número de pessoas residentes que não são originárias do Estado em que vivem chega a mais de 36%. As demais regiões possuem
entre 12,5% (Região Sul) e 18,8% (Região Sudoeste) de sua população proveniente
de outros Estados. Estes dados demonstram que a região Centro Oeste tem se
constituído em polo de atração de pessoas que buscam melhores oportunidades de
vida.
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Projeto CUT e CONTAG de Pesquisa e Formação Sindical (1996-98). Desenvolvimento e Sindicalismo Rural
no Brasil.
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Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
Características da população
Quanto à distribuição populacional por sexo e local de moradia, é possível
perceber que há uma nítida maioria de mulheres na população urbana. Isto indica
que também na região Centro-Oeste pode estar ocorrendo um processo de "masculinização" do meio rural, semelhante a outras regiões.
Outro dado importante, é o contínuo movimento migratório das populações rurais para as áreas urbanas. Podemos ver que em apenas três anos (93-95) houve
um fluxo migratório rural-urbano de aproximadamente 330 mil pessoas. As projeções feitas pelos órgãos públicos, para os anos de 1995 a 2000, mantém a tendência destes deslocamentos. Para uma população total que cresceu em torno de 400
mil pessoas, este fluxo é extremamente alto.
Quanto a composição da população por faixa etária, a região Centro-Oeste tem uma
composição próxima ao padrão nacional. Há, porém, pequenas variações que mostram, por exemplo, que a população desta região é mais jovem que a média do Brasil. Provavelmente porque a constituição desta população e a ocupação dos espaços
são recentes. O processo migratório é praticado por pessoas de faixa etária média
jovem.
Os homens são a maior parcela da PEA, representando 62% do total existente em 1995. Já a situação das mulheres é inversa. Elas participam da PEA com 38%
do total e representam 70,9% do total da população não ativa, no mesmo ano.
Apesar do índice de urbanização no CentroOeste ser alto, o trabalho agrícola
absorve 25,5% da PEA. Ou seja, muitos moradores das cidades desenvolvem atividades agrícolas, o que pode ser explicado pelo fato de que o número de assalariados é significativo, puxando para cima o índice de residentes nas cidades e trabalhadores do campo e muitos agricultores de economia familiar mudam para as cidades, mas mantém suas atividades rurais.
Características da mão-de-obra regional
Especificamente quanto ao deslocamento de mão-de-obra assalariada, as informações obtidas atráves de pesquisa Contag/PNUD/MTb indicam, no caso do Mato Grosso do Sul, a existência de trinta e três fluxo de trabalhadores, sendo doze de
origem (a pessoa entrevistada está localizada no ponto de saída) e vinte e um de
destino (a pessoa está no local de chegada dos trabalhadores). Envolvem um contingente de aproximadamente 54.500 trabalhadoras e trabalhadores.
No Caso do Mato Grosso e de Goiás não se chegou a números de trabalhadores na condições de "migrante estrutural". A pesquisa indica que a origem destas
populações é sempre a mesma: Vale do Jequetinhonha-MG, todos os estados do
Nordeste e desempregados do interior de São Paulo e Paraná. Eles trabalham nas
lavouras de laranja, algodão, café, cana-de-açúcar e ainda nas derrubadas de matas
e nas carvoarias.
Nos três estados da região há indícios de trabalho escravo, utilização do trabalho infantil e descumprimento da legislação trabalhista. Dos 43 fluxos de deslocamento de mão-de-obra apenas 8 afirmaram que "sempre" há algum tipo de contrato
de trabalho, 11 "nunca" e 22 "eventualmente".
Segundo dados do IBGE, 17,8% das crianças de 10 a 14 anos já trabalham nas
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Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
lavouras do Centro Oeste. Este índice chega a 22,2% em Goiás e 21,1 % no
Mato Grosso. As culturas do tomate, algodão, alho e cebola têm a maior incidência de trabalho infantil em Goiás. Segundo o levantamento da CONTAG,
existem pelo menos duas mil crianças trabalhando nos fornos de carvão na região do Maciço Florestal (MS), sendo que a maioria trabalha no município de
Ribas do Rio Pardo.
Porém, pode-se afirmar que houve mudanças substanciais nas atividades
empregadoras de mãode-obra. Por exemplo, as lavouras de café, que em 1990 demandavam 55,6 mil trabalhadores, em 1996 atingia apenas 12,1 mil. Com a redução
das áreas plantadas, houve uma brutal diminuição do volume de emprego nesta cultura. As outras grandes oscilações ficam por conta da cultura da soja que, em 1990
demandava 59, 1 mil servidores, em 96 baixou para 57,1 mil. Também o feijão cortou emprego agrícola. Como a área diminuiu de 319 mil hectares para 138, a demanda por emprego baixou de 23,1 mil para 10 mil.
O que se pode perceber é a diminuição de áreas destinadas às lavouras em
toda a região do Centro-Oeste brasileiro. Em apenas cinco safras agrícolas (90/96),
aproximadamente 200 mil hectares de terras deixaram de ser plantados. Em algumas culturas, dois aspectos favoreceram a diminuição de áreas e de trabalhadores.
No caso das lavouras de cana-de-açúcar, por exemplo, a produtividade de sacarose
e de tonelagem por hectare aumentaram, bem como a produtividade do trabalho no
corte da cana queimada também elevou-se e com isso muitos postos de trabalho
foram fechados.
O desemprego é a principal conseqüência de todo este processo de tecnificação e modernização agrícola. De acordo com o PNUD/IPEA, a Região Centro Oeste
tinha 28% de sua força de trabalho no campo em 1983. Este percentual caiu para
apenas 23% em 1990. Certamente, após este período, os efeitos do desemprego
estrutural baixaram ainda mais o índice de mão-de-obra ocupada na agricultura.
Apesar do crescimento dos níveis de desemprego, a região continua atraindo
mão-de-obra volante de outros estados do país. O vai-e-vem da sobrevivência não
se dá pelas levas migratórias como nas décadas anteriores, mas pelo deslocamento
temporário de mão-de-obra assalariada rural. De acordo com o estudo realizado pela CONTAG, só Mato Grosso recebe anualmente mais de 6 mil trabalhadores para
trabalho sazonal. O Mato Grosso do Sul recebe mais de 40.mil. Estes contingentes
são deslocados de longas distâncias (Minas Gerais e Estados do Nordeste como
Bahia, Alagoas) ou de Estados vizinhos (deslocamentos dentro da própria região e
outros Estados próximos).
Índice de qualidade de vida da população
Apesar de ser uma região rica, exportadora de grãos, carne e minérios, o
Centro Oeste se caracteriza por índices baixos de qualidade de vida de sua população. Os índices mais elevados de analfabetos entre a população rural demonstram
que a distribuição dos benefícios da "modernização" não chegou no campo.
Os dados sobre o nível de emprego e os rendimentos mensais da população
também mostram a precariedade das condições de vida no Centro Oeste. Quase
20% da PEA ganha até um salário mínimo e quase 15% da população ganha entre
um e dois salários mínimos.
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Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
O Relatório sobre o Índice de Desenvolvimento Humano (lDH) que classificou o Brasil como o país com o maior índice de concentração de renda do planeta, demonstrou também que as desigualdades na distribuição da renda são
maiores no Centro Oeste.
Os Estados de Mato Grosso e Goiás foram classificados como "Estados com
qualidade de vida mediana". Estes dois estados ficaram em 12° e 13° lugares em
relação aos demais estados da federação. O Mato Grosso do Sul foi classificado
como "estado com melhor qualidade de vida", em 7° lugar na colocação nacional.
A região tem 2,4 milhões de pessoas vivendo abaixo do nível de pobreza, ou seja,
24,8% da população da região. No Brasil são 41,9 milhões de pessoas, ou seja,
30,2% da população do país vive em níveis abaixo da linha de pobreza (não ganham
o suficiente para viver).
Infra-Estrutura
O principal fator de integração do Mato Grosso do Sul são as rodovias, que
estão estruturadas em dois grandes eixos: a BR 262, transversal, cruzando o estado
de Corumbá (fronteira com a Bolívia) a Três Lagoas (divisa com São Paulo), e a BR
163, que liga a capital do Mato Grosso do Sul (Campo Grande) aos estados de Mato
Grosso e Paraná. A rede ferroviária conta com 1.200 Km de extensão e as hidrovias
são constituídas pelos rios Paraná e Paraguai.
Os principais corredores envolvidos com a movimentação dos granéis agrícolas são: Corredor Cuiabá-Santarém; Araguaia- Tocantins; Fronteira Noroeste e Corredor do Cerrado.
O Estado do Mato Grosso não tem malha ferroviária, porém desde 1994 vem
sendo planejada pela FERRONORTE, com a concepção global de integração à rede
nacional através do sistema intermodal. Segundo esta concepção, Cuiabá se integrará aos Portos de Santos, Vitória, Paranaguá, Porto Velho e portos do Pacífico
via futuro corredor ferroviário Cáceres-Santa Cruz-Arica. A interligação também ocorrerá com as malhas ferroviárias do triângulo mineiro e São Paulo. Em outra direção, Cuiabá ligará dois corredores de exportação: Cuiabá-Porto Velho (exportação
Rio Madeira) e Cuiabá-Santarém (Rio Amazonas).
Em Goiás, está concentrado o maior número de armazéns e de estradas pavimentadas, ligandoo ao Sudeste, Norte e Nordeste do Brasil, além de contar com
um sistema de hidrovia operando deste o início da década de 90.
A Energia elétrica de MS é produzida quase que totalmente fora do Estado.
92,7% dela vem da Eletrosul (92,3%), CESP-SP com 6,3% e CAIUÁ, CELG-GO e
CEMAT-MT com, 1,3%. Usina Mimoso produz 95,9% da energia própria do Estado.
Estrutura fundiária
As "frentes de expansão agrícola" provocaram um aumento significativo da
produção e produtividade das lavouras regionais. Houve um processo de modernização da agricultura através da tecnificação, mecanização e uso de insumos agrícolas industrializados. Apesar desta "modernização" ter atraído grandes contingentes populacionais, houve uma ampliação da concentração da propriedade da terra
no Centro Oeste.
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Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
De acordo com dados do IBGE, as propriedades com áreas menores ou iguais a 500 hectares representam 88,2% dos estabelecimentos rurais regionais. No
entanto, estes ocupam apenas 18% da área total. Por outro lado, os estabelecimentos com áreas acima de mil hectares representam apenas 5% mas ocupam 72% da
área total.
Há uma grande semelhança entre Mato Grosso e Mato Grosso do Sul no que
diz respeito à distribuição das áreas entre 1.000 a 10.000 ha. Outra semelhança fica
constatada nas menores áreas. Nos três estados, os proprietários de áreas de O a
10 ha não controlam 1% do total das terras, porém representam uma média de 30%
no número de estabelecimentos.
No caso do Mato Grosso a concentração da propriedade indica patamares
assustadores. 46% do total das terras estão concentradas nas áreas com tamanho
acima de 10.000 ha e para melhor entender a gravidade do problema, esta área é
controlada por apenas 645 estabelecimentos, que representam 0,8% do total.
Goiás tem uma perfomance um pouco diferente dos outros Estados. Os estabelecimentos de 100 a 1.000 ha representam 31,4% do total e 42,2% da área. No
Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, estes índices não ultrapassam a casa dos 30%
e 20% respectivamente. Em Goiás a distribuição de terras se deu com maior intensidade. O mesmo movimento percebe-se nos grupos de áreas de 10 a 100 ha.
A concentração da propriedade da terra é agravada pela improdutividade de
muitos latifúndios. De acordo com dados do INCRA, há 35.083 latifúndios improdutivos no Brasil. Estes latifúndios (com áreas superiores a mil hectares) abrangem
uma extensão de 153 milhões de hectares. Isto significa que 1% dos imóveis cadastrados no INCRA são latifúndios improdutivos e abrangem mais de 43% da área
total dos imóveis cadastrados, ou 18% do território nacional. Só a Região Centro
Oeste abriga 15.567 destes imóveis (quase 45% dos latifúndios improdutivos do
país), totalizando uma área de 71 milhões de hectares (46% da área dos imóveis
considerados improdutivos). A região abriga, portanto, o maior número de latifúndios improdutivos do país.
Além da situação particular de latifúndios improdutivos, a utilização das terras
indica, em 1985, que a maioria absoluta das áreas eram utilizadas para a criação de
gado. Se compararmos o número de estabelecimentos que declararam atividades
pecuária e agrícolas, veremos que a diferença não é tão grande, 140 para 112 mil,
porém a utilização em área é muito diferente, 77,2 milhões para 17,7 milhões de
hectares.
A reforma agrária no contexto fundiário do centro-oeste
Segundo os dados oficiais, durante os últimos 15 anos tivemos na região, o
assentamento de 28 mil famílias de trabalhadores sem terra, em quase duzentos
projetos de assentamento. Para sua realização, foram desapropriados 2,3 milhões
de hectares. Guardando as diferenças de cada estado da região, os assentados obtiveram uma área média de 83 hectares por família.
Se comparados à estrutura fundiária apresentada no Censo Agropecuário de
1985, todos os projetos regionais de Reforma Agrária atingiram 2,35% do total das
áreas disponíveis para agropecuária. No que se refere ao número de estabelecimentos houve um acréscimo na ordem de 25% dos declarados na classe 10 a 100
ha. Continua-se num processo de parcelamento de terra, mas sem mudar as estru-
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Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
turas existentes.
No caso do Mato Grosso, além dos projetos de assentamentos do Incra e do
governo estadual, abriu-se espaços para a realização de colonizações privadas e
oficiais. A Agricultura
A partir da década de 70, os novos fluxos de migração oriundos das Regiões
Sul e Sudeste formaram uma categoria de produtores familiares e não-familiares no
Centro Oeste. Estes foram apoiados por políticas governamentais de infra-estrutura
e de colonização, das quais o POLOCENTRO e o PRODECER (Projeto de Desenvolvimento do Cerrado, conhecido inicialmente como Projeto JICA) são as mais importantes.
Essas "frentes de agricultura comercial" ocorreram graças aos incentivos governamentais e ao desenvolvimento de culturas em escala nos Cerrados. Os órgãos
oficiais de pesquisa adaptaram variedades de grãos, plantas perenes e pastagens
tolerantes à toxidez do alumínio dos Cerrados. Desenvolveram também técnicas de
correção da fertilidade do solo das chapadas, com métodos de correção, adubação
e manutenção das propriedades físicas do solo. Além disto, a possibilidade de produção em escala foi motivada pela maior facilidade de acesso à terra, devido aos
preços mais baixos em relação às terras do Sul. Estas vantagens motivaram também as "frentes especulativas". Estas, porém, visavam apenas os benefícios gerados pelos incentivos fiscais dos programas governamentais e seus reflexos ainda
estão muito presentes na Região, como se verá mais adiante:
O cultivo da soja, até então com problemas de adaptação em áreas de baixa
latitude, foi o carrochefe da implantação do atual modelo agrícola na Região. Como
uma cultura totalmente mecanizável, desde o preparo do solo à colheita, ela se adaptou ao cultivo em grande escala nos chapadões, compensando os altos requerimentos de insumos quím icos. O seu cultivo, portanto, consolidou as frentes de
agricultura comercial e marginalizou a maioria dos agricultores familiares da "modernização agrícola" no Centro Oeste.
As "frentes de subsistência" formaram a categoria de agricultores familiares
do Centro Oeste, com suas práticas de cultivo baseadas no trabalho familiar e na
exploração da fertilidade natural do solo. Este ciclo de fertilidade foi se encurtando à
medida que as terras mais férteis foram se esgotando e as distâncias dos mercados
iam aumentando. Os agricultores se dirigiam às frentes em movimento contínuo de
posseiros, arrendatários e pequenos proprietários para a prática da agricultura intinerante ou "do toco", que se transformavam posteriormente em áreas de cultivo
contínuo ou pastagens para os proprietários. A prática se iniciava com a derrubada
das matas ou da vegetação, que em muitos casos eram transformados em carvão,
que supriam as grandes usinas siderúrgicas em Minas Gerais. Depois da derrubada
e queimada da vegetação nativa, cultivava-se milho, feijão, arroz e mandioca. A
produção de arroz, considerada cultura desbravadora de áreas, passou a ser uma
fonte de abastecimento importante até a década de 80, declinando nos anos mais
recentes.
O processo de expulsão e marginalização dos agricultores familiares aconteceu dentro deste processo pois as terras desmatadas e manejadas produtivamente
incorporaram trabalho e passaram a ter valor de troca. Foram então sistematicamente reapropriadas pelos seus proprietários para o plantio de pastagens e cultivo de
grãos ou usadas para fins especulativos. Este processo de marginalização dos agri-
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Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
cultores familiares e incentivos governamentais à agricultura em escala provocou a
concentração da propriedade da terra e gerou muitos conflitos sociais, envolvendo
posseiros e arrendatários de um lado e os fazendeiros e grileiros de outro.
Assim, os projetos governamentais e o desenvolvimento do atual modelo não
abriram espaço de reprodução para os agricultores familiares na região que, pobres
de recursos, foram obrigados a refugiarem-se em espaços cada vez mais precários
em termos de recursos naturais (solos frágeis, pouco férteis e distantes dos centros
urbanos consumidores).
Segundo dados do Censo Agropecuário, as áreas ocupadas nos Cerrados
cresceram rapidamente de 1970 em diante, passando de 20,3 milhões de hectares
para 50,7 milhões de hectares em 1985. Com o processo de intensificação, as áreas de lavoura cresceram neste mesmo período de 4,1 para 9,5 milhões de hectares, e as áreas de pastagens cultivadas passaram ,de 8,7 para 30,9 milhões de hectares.
Pode-se perceber que a cultura da soja manteve-se como a que mais utilizou
áreas agricultáveis na região. O estado do Mato Grosso teve uma grande oscilação
em área plantada. Na safra de 1989 atingiu 1,7 milhões de hectares em 1991 baixou
para 1.1 milhões, e em 1994 saltou para 2,02 milhões de hectares, e ainda é onde
encontramos a melhor produtividade. Este Estado atingiu 2.629 Kg/ha, frente aos
2.080 Kh/ha de Goiás e de 2.171 Kg/ha de Mato Grosso do Sul.
A produção de milho da região Centro-Oeste, acompanhou a evolução das
áreas com soja. Teve um grande crescimento em área plantada a partir da década
de 70, com a migração sulista e com a abertura do mercado nordestino ao produto.
O Centro-Oeste foi, até a metade da década de 90 o maior fornecedor do produto
àquela região. Com a consolidação do Mercosul, o principal comprador do milho
regional, o estado do Pernambuco, passou a adquiri-lo da Argentina, pois o preço
era mais baixo e a qualidade superior.
Para os produtores regionais, uma das saídas encontradas foi a instalação
dos grandes complexos de criação de aves e suínos. As empresas Perdigão, Sadia
e Seara entre outras de menor porte, têm consumido uma parte substancial do milho produzido na região. Nesta cultura, Goiás é o maior produtor, destacando-se em
área plantada com mais de 900 mil hectares, que significa mais que o dobro dos outros Estados, e com produtividade de 3.476 Kg/ha, bem acima também.
As culturas da soja e do milho são as principais demandadoras de empregos
agrícolas. Apenas o café, até o início da década de 90 superava o milho. Nem
mesmo a cultura da cana-de-açúcar utiliza mão-de-obra como elas. Além disso, a
soja e o milho são destaques regionais no que se refere às exportações. Neste caso
a soja é a grande vedete. Representa 75.83% dos produtos exportados do Mato
Grosso do Sul e 63,31 % das exportações goianas, no ano de 1995. É ainda, uma
das culturas que tem passado por um processo de industrialização local, com a
montagem de grandes complexos de esmagamento.
Tecnificação e mecanização
As políticas governamentais de ocupação dos espaços "vazios" e de expansão das áreas para lavouras no Cerrado brasileiro, aliado a topografia plana, aceleraram a utilização de máquinas e insumos na região. Ao mesmo tempo que para a
correção do solo, de baixa fertilidade para as culturas da soja, milho e arroz (produ50
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
zidas em escala empresarial), foi necessário a implantação de uma grande quantidade de fertilizantes. Os governos estaduais também contribuíram neste processo
de ocupação e expansão agrícola. O Programa Goiás rural, por exemplo, lançado
nos anos 70 pelo governo do estado, colocou 500 tratores de esteira e. toda lima
infra-estrutura de transporte a serviço dos produtores que decidiram investir na agricultura.
A consolidação do modelo de "modernização conservadora" pode ser percebido pelo crescimento significativo da mecanização e uso de insumos agrícolas nas
lavouras da região.
As regiões Norte, Nordeste e Centro Oeste detinham apenas 19,76% do
número de tratores existentes no Brasil em 1980. Apesar deste desequilíbrio entre
as regiões, os dados demonstram o avanço da mecanização na região Centro Oeste, que evoluiu de 2.194 tratores em 1960 para 63.391 em 1980. Este crescimento
representa um aumento de 30 vezes em apenas 20 anos. O número aumentou ainda mais no início dos anos 80, pois só o Estado de Goiás já possuía mais de 33.500
tratores, em atividade, em suas lavouras em 1985.
Além da evolução na utilização de tratores e máquinas, a evolução no uso de
fertilizantes comprova o processo de tecnificação da agricultura regional.
A Pecuária
A pecuária é responsável pela ocupação de 77,9% da área agricultável da região Centro-Oeste e gerou pouco mais que 6% de exportações regionais em 1995.
Juntamente com o sistema de criação de suínos e aves, a pecuária bovina vem
crescendo em quantidade de cabeças e também de abate e industrialização de seus
derivados. O Centro-Oeste tem o maior rebanho de bovinos do Brasil. O abate vem
crescendo no período 90/95. Goiás e Mato Grosso do Sul aumentaram consideravelmente o abate. A chegada de muitas empresas (que também atuam no abate de
aves) são responsáveis pelo crescimento no setor.
Em apenas quatro anos, 89,5 mil novas vacas passaram a produzir leite no
Mato Grosso do Sul, e em Goiás este número cresceu em 295,5 mil. A produtividade média vaca/dia é muito baixa. No MS cada animal produz 1,85 litros/cabeça/dia.
Esta média foi obtida no ano de 1994. Para o início da década de 90, a média era
de 1,87. A produtividade manteve-se a mesma nos últimos quatro anos. Em Goiás
a média vaca/dia de leite era ainda mais baixa em 1994, atingindo à casa dos 1,5
litros/vaca. Esta produtividade leiteira fica bem abaixo da média nacional, que chega a 2,5 litros/cabeça/dia.
No início dos anos 90, com a liberação das linhas de crédito através dos
Fundos Constitucionais, houve um incremento na pecuária leiteira. Este fundo atendeu basicamente a agricultura familiar e aos assentados de Reforma Agrária,
numa clara investida pública para ampliar o setor leiteiro na região. Os financiamentos concentraram-se em dois agrupamentos: 1. "Apoio à Política de Reforma
Agrária" e 2. "Desenvolvimento rural". Em sua maioria estes financiamentos destinavamse à compra de vacas leiteiras, melhoramento de pastagens, pequenos equipamentos (trituradoras, por exemplo) e reparo em cercas.
No tocante ao trato cultural com os sistemas de criação, percebe-se que este
permanece sem muitas alterações. Não há indicativos de que, mesmo com uma ação direta de linha de crédito, tenham ocorrido mudanças técnicas e buscas de au-
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Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
mento de produtividade. O reforço alimentar (silagens, qualidade das pastagens,
rações) não foi colocado como condição necessária à melhoria do sistema produtivo.
Segue-se apenas os tratamentos sanitários obrigatórios.
A avicultura de corte vem apresentando importante crescimento nos últimos
anos, principalmente devido à instalação de empresas incubadoras e abatedoras
de ave:; no estado, aumentando a capacidade de abate de 537 m il cabeças em
1990 para 51 milhões em 1995. Na metade da década de 80 e início da década de
90 instalaram-se no estado do Mato Grosso do Sul, as empresas Frangosul, Swift,
Sadia, Fatisul, Armour, Matosul.
Linhas de crédito
Na alocação geral dos recursos provenientes das linhas de crédito destinadas
ao setor rural no Centro-Oeste, podem-se destacar alguns aspectos:
• os programas de financiamento agrícola priorizaram a aquisição de máquinas pesadas: tratores e colheitadeiras e/ou pequenos implementos;
• o item melhoramento para exportação foi outro contemplado com uma grande quantidade de recursos. Os itens que receberam investimentos em melhorias,
foram nas áreas de armazenamento e correção do solo, mas ficou evidente que há
uma relação direta entre crédito, mecanização e exportação;
• a pecuária de corte é nitidamente privilegiada na obtenção de crédito. Isto
pode ser visto também no crescimento do número absoluto do rebanho bovino sulmato-grossense. Também há um claro avanço nos investimentos e financiamentos
da pecuária leiteira. Os dados indicam que entre 1988 e 1993 os créditos tiveram
um acréscimo de 3,5 vezes. É necessário averiguar a relação com este fato e a aprovação dos Fundos Constitucionais para áreas em desenvolvimento, na Constituinte de 1988. Nos anos subseqüentes houve uma grande procura do FCO por parte
de agricultores familiares;
• na relação investimento agrícola x pecuária, verificou-se uma acentuada opção para a pecuária. Do total dos investimentos relacionados pela SEPCT, em
1988, a agricultura recebeu cinco vezes mais recursos que a pecuária. Já em 1993
houve uma inversão de rumos, os pecuaristas obtiveram mais que o dobro dos recursos para investirem em seus negócios;
• no final da década de 80 ficou clara a priorização para melhorar as condições do comércio exterior do estado. Do total dos financiamentos agrícolas de MS,
quase que 50% foram destinados a este item. Em 1993, um terço foi destinado a
melhorar as condições da exportação estadual;
• os principais produtos que receberam custeio agrícola foram: soja, milho, arroz, algodão, trigo e feijão. Constatamos uma grande redução de atendimento ao
crédito no período de 1988 a 1993. Das principais culturas agrícolas, o algodão recebeu 2.452 contratos de créditos em 1988, baixou para 1.171 em 1993. O arroz
caiu de 1.589 para 780. As maiores baixas foram: Soja de 9.269 para 2.467; e o
trigo de 4.758 para 487.
• a pecuária não é receptora de grandes quantidades de crédito para custeio.
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Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
Fundos Constitucionais do Centro-Oeste - FCO
No ano de 1994, foram alocados recursos para aplicação nos seguintes programas: Programa de Desenvolvimento Rural, Programa de Desenvolvimento Industrial, Programa de Infra-estrutura Econômica, Programa de Desenvolvimento do
Turismo Regional e Programa de Apoio à Política de Reforma Agrária.
Foram transferidos, no ano de 1994, para crédito do FCO, o total de R$
491.318.400,00. Deste volume de recursos, foram realizadas um total de 12.824
operações. As operações com Desenvolvimento Rural e Apoio à Política de Reforma Agrária consumiram 98,4% do volume total de recursos. Pequenos e miniprodutores rurais foram contemplados com 12.712 operações.
Segundo informações obtidas, o FCO destinou-se basicamente a financiar a
transição do agricultor que desenvolvia atividades de subsistência (lavouras de arroz, milho, mandioca, pequenos pomares), para a pecuária leiteira. A esmagadora
maioria das operações foram realizadas nesta direção.
Programa Nacional de Valorização da Agricultura Familiar - PRONAF
O PRONAF, criado a partir da campanha "Grito da Terra Brasil", coordenado
pela CONTAG/CUT, foi pouco implementado no estado do Mato Grosso do Sul. Durante o ano de 1996 foram realizadas 497 operações de crédito para custeio e investimento.
No estado de Goiás, dez municípios foram escolhidos para a aplicação dos
recursos do PRONAF-Global. Durante 1996 foram constituídos os Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural nestes municípios e elaborados os Planos Municipais de Desenvolvimento. Estes Planos foram aprovados e enviados para a Comissão Nacional do PRONAF, onde estão sendo avaliados. Até o momento não foram
liberados os recursos orçados nos Planos Municipais.
Esses recursos do PRONAF não estão sendo liberados com facilidade aos agricultores familiares. Eles estão disponíveis nos bancos porém, não chegam às
mãos dos agricultores. A avaliação é que o principal problema refere-se ao empecilho que os gerentes de bancos colocam para aprovação do contrato, exigindo garantias para liberação dos recursos.
Foram realizados até dezembro de 1996, 1.519 contratos de custeio e investimento, totalizando R$ 4.859.284,89 em Goiás. Este número ainda é insignificante
em relação ao total de agricultores familiares do Estado. No Estado do Mato Grosso,
em 1995, 14 municípios tiveram acesso à linha de crédito do PRONAF. Em 1996
foram 785 contratos efetivados num total de R$2.839.225,33.
Inovações e tendências da agropecuária regional
Apesar dos problemas enfrentados pelo setor rural, inclusive com retirada
de incentivos governamentais, a criação de novos pólos agrícolas demonstram a
continuidade da política de expansão agrícola no Cerrado. A continuidade do
PRODECER está sendo realizada através de novas estratégias nos processos de
colonização e expansão das lavouras de soja na Região. Os investimentos do
PRODECER nas regiões Sul e Nordeste de Goiás e Barreiras (BA), nos anos 80,
foram realizados dentro da estratégia de favorecer a produção em escala utilizan-
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Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
do-se de grandes extensões de terras. A fase 111 deste projeto (em implantação
nos Cerrados do Tocantins e sul do Maranhão) está financiando projetos cooperativados de colonização e cultivo em áreas não superiores a 500 hectares. Estes
projetos, no entanto, não diminuíram o grau de destruição dos Cerrados causada
pela prática do cultivo da agricultura moderna.
O processo de modernização agrícola, portanto, adquiriu novas formas e a
manutenção do modelo agrícola não está mais assentada exclusivamente sobre
as grandes áreas de monoculturas. A decisão de manter a produção voltada para
a exportação (em detrimento da produção para o mercado interno) levou a adotar
o pacote neo-liberal: baixar custos para elevar o grau de produtividade e competitividade. O desenvolvimento tecnológico ampliou seu raio de ação, intensificando
a utilização da biotecnologia, reduzindo o tempo necessário para completar o ciclo
produtivo. As pesquisa têm se voltado para o desenvolvimento de novas variedades de sementes adaptadas às diversidades climáticas e de solo, caso da soja para as regiões de clima temperado.
Outro aspecto das novas formas de modernização está relacionado com os
chamados sistemas agro-ecológicos. Os casos das usinas e destilarias em Goiás
(destilarias de Goianésia e Santa Helena) são exemplos claros da implantação de
novas tecnologias e novas formas de gerenciamento da mão-de-obra. O plantio da
cana e a produção de álcool/açúcar tornaram-se apenas um elemento da cadeia
produtiva. Estas usinas estão também realizando consorciamento, utilizando o bagaço da cana como alimento animal. É comum na região, as usinas também criarem gado de corte (ou de leite). Utilizam o bagaço da cana também para a geração
de energia elétrica. Além de baixar o custo operacional, o excedente de energia é
vendido para as prefeituras da região da usina. O vinhoto está sendo canalizado
para as lavouras como uma forma de evitar a poluição de rios e córregos e aumentar a fertilidade do solo.
As inovações não se restringem ao setor industrial. Além da mecanização
crescente, também o plantio da cana é realizado de forma a aumentar a produtividade da mão-de-obra assalariada. As formas de seleção e gerenciamento de pessoal são feitas a partir da separação dos cortadores com maior experiência e produtividade por hora trabalhada, e os de média ou baixa produção. Este mecanismo
força a competição e especialização entre os trabalhadores, aumentando o ritmo e
a produtividade dos cortadores de cana, ao mesmo tempo que não há retorno financeiro, em forma de salário. Por outro lado, as usinas não cumprem muitos itens
das cláusulas sociais dos acordos coletivos do setor. O processo de modernização
está sendo implantado também em outras culturas. A mecanização e as novas formas de gerenciamento da mão-de-obra estão presentes nas lavouras do tomate e
algodão.
A utilização dos PIVOTS CENTRAIS na agricultura ampliam o poder de concorrência e produtividade do setor. Ao mesmo tempo este processo exclui os agricultores familiares, pois seu custo de manutenção é caro e exige alto giro de recursos na propriedade. O Governo do Estado deu incentivos para a implantação dos
pivots através do FCO (Fundo Constitucional do Centro Oeste) e da redução das
taxas de energia elétrica, porém não se tem notícias de estudos sobre o impacto
ambiental causado por este tipo de tecnologia.
A quantidade de pivots vem crescendo a passos largos. Há cerca de cinco anos, os pivots existentes em Goiás podiam ser contados sem muitas dificuldades,
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não ultrapassando duas dezenas. Hoje são aproximadamente 700 pivots instalados
e em funcionamento. Segundo dados do Conselho de Desenvolvimento Econômico,
o FCO financiou em torno de 70 projetos de irrigação em Goiás só em 1993. Destes,
49 eram projetos para a instalação de pivots centrais.
Os pivots centrais são os maiores consumidores de energia elétrica no meio
rural. Para torná-los economicamente viáveis, o Governo do Estado implantou a
TARIFA VERDE. Esta tarifa só beneficia produtores com consumo acima de 2,3 KW.
Pagam sempre pela demanda contratada com a CELG, não importando se o consumo atingiu ou não aquele patamar. Mas quando não há utilização (no caso do período das chuvas), o faturamento é de 10% sobre o maior consumo no período de 11
meses precedentes.
Se o consumo for registrado fora dos chamados horários de pico, o produtor
recebe ainda mais incentivos e descontos. Se os pivots funcionarem entre a meianoite e às 5 da manhã há mais descontos nas taxas de energia elétrica, diminuindo
sensivelmente o custo final de produção.
Os pivots provocam sérios danos ao lençol freático. Os danos ecológicos se
dão em, pelo menos, outros dois níveis. Os produtos químicos . (pesticidas, fertilizantes), utilizados em grandes quantidades, são acrescidos na água, o que contamina o solo e os rios. Há também um alto desperdício de água porque apenas aproximadamente 20% dela retorna aos lençóis freáticos.
Esta tecnologia tem aumentado significativamente a produção e a produtividade do milho e do feijão. Elas formavam, junto com o arroz, o tripé da lavoura de subsistência em Goiás, base da agricultura de economia familiar. Com a adoção da irrigação, as lavouras de feijão do estado tem alcançado as mais altas taxas de produtividade do país (mais de 2.340 kg/ha). Esta alta produtividade, associada aos incentivos governamentais, pressiona os preços, reduzindo sensivelmente o custo final da
produção. Os agricultores familiares, carentes de recursos e tecnologia, não conseguem competir inviabilizando a sua produção e provocando a constante transição
deste setor para a pecuária leiteira, pois o rendimento de suas lavouras mal ultrapassa o limite do auto-consumo.
As últimas administrações do estado de Goiás têm investido na eletrificação
rural. Estes investimentos, no entanto, não atingem o conjunto dos agricultores familiares. Apenas 26% dos agricultores familiares entrevistados em Formosa e 38% em
Porangatu possuíam energia elétrica em suas residências. Os demais municípios
pesquisados apresentaram índices em torno de 60%. Estes índices demonstram que
as políticas governamentais não estão voltadas para o favorecimento da agricultura
familiar no estado e na Região.
Como já vimos anteriormente, o processo histórico de ocupação da região e
as políticas governamentais excluíram a agricultura familiar no desenvolvimento regional. Os dados sistematizados e analisados pela FAO e INCRA confirmam esta
afirmação. Segundo estas organizações, o número de estabelecimentos da agricultura familiar no Centro Oeste corresponde a apenas 24% dos estabelecimentos regionais e 2% do total de estabelecimentos a nível nacional.
Principais características e perspectivas do desenvolvimento rural
Um aspecto que merece ser melhor trabalhado, mas para o qual não se encontraram dados confiáveis/disponíveis diz respeito ao aumento/ redução da contra-
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Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
tação da mão-de-obra e as possibilidades de crescimento dos trabalhos não-agrícola
no meio rural.
Com relação aos movimentos populacionais, pode-se observar que os índices
da região atingem a casa dos 80% de população urbana frente ao total regional. Para se chegar a este índice houve um movimento migratório constante, a partir do início da década de 70, em duas frentes distintas. Uma, refere-se às populações originais dos estados estudados, que a partir de uma política de concentração fundiária
passaram a migrar para as cidades. A segunda onda migratória se dá com a expansão da fronteira agrícola para a região e as sucessivas crises do setor, levando outros tantos milhões de agricultores às cidades. Os migrantes vindos de Minas Gerais, São Paulo, e dos três estados do Sul do Brasil, instalaram-se em pequenas e
médias áreas de lavouras e também como assalariados rurais. Foram igualmente
atingidos pelo processo de concentração fundiária e crises na agricultura, que os
levaram ao deslocamento para os centros urbanos. Podemos ainda identificar uma
terceira onda migratória, pequena, mas também constante. Um grande número de
agricultores familiares, além de suas residências nas propriedades rurais, passaram
a procurar povoados e cidades próximas para transferirem suas esposas e filhos em
idade escolar. Os dados da distribuição da população poderiam confirmar isto. Por
exemplo, no Mato Grosso do Sul, a população rural, dividida em sexo, identifica um
número maior de homens que de mulheres, o mesmo ocorrendo com o estado de
Goiás.
No setor da agricultura familiar, há uma tendência para a especialização e desenvolvimento da pecuária leiteira, cabendo o cultivo da agricultura para autoconsumo (produção de arroz, milho, mandioca e feijão). Quanto à consolidação da agricultura familiar na região, pouco pode-se afirmar, face à precariedade e à relativamente recente ocupação regional. Esta consolidação encontra um forte condicionante no desempenho produtivo do setor frente à pecuária leiteira.
Quanto à utilização das terras e preservação do ecossistema dos cerrados,
houve grande incorporação de áreas nestes últimos vinte anos. Do início da década
de 70 até o ano de 1985, quando foi realizado o último Censo Agropecuário, foram
colocados nos sistemas produtivos 30 milhões de hectares de novas terras de Cerrados. Estas áreas, em sua maioria foram utilizadas para ampliar as pastagens. Como neste processo utiliza-se as queimadas e derrubadas das matas, houve grande
prejuízo para o equilíbrio do ecossistema. No caso da agricultura, a utilização de
herbicidas e a aplicação de fertilizantes para correção do solo na produção em escala da monocultura (soja, milho, cana, algodão) tem prejudicado, e muito, as terras da
região. Técnicos da Embrapa estão fazendo um Zoneamento dos Cerrados e alertam para os perigos deste processo.
Também as áreas do Pantanal estão quase que totalmente ocupadas. Além
das grandes fazendas de criação de gado de corte, ali concentram-se as maiores
reservas indígenas do Estado.
Reforma Agrária e desenvolvimento global estão ainda dissociados nesta região do Brasil. Ao se analisar o número de, famílias assentadas e o total das áreas
ocupadas, se verá que na estrutura fundiária quase nada foi alterado. Claro, com a
ressalva de que, com o assentamento, as famílias passaram a sobreviver das próprias forças. Seus sistemas produtivos são limitados, porém os mantém trabalhando
e subsistindo.
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Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
As linhas de crédito especiais (PRONAF, FCO, PROCERA), têm priorizado as
operações de financiamento que incentivam o produtor a transitar da agricultura de
subsistência para a pecuária leiteira. Quanto ao PRONAF, a tônica geral é de que os
recursos não chegam aos destinatários. Em algumas áreas os gerentes dos bancos
têm feito tantas exigências que o torna inviável, por não haver como cumprí-las.
A referência maior para a ação dos governos estaduais e federal, assim como
do setor empresarial, é a produção para a exportação em grande escala. A produção de soja, milho e arroz são.o carro-chefe da agricultura, sendo que a soja destina-se ao mercado internacional, já os outros grãos ao mercado nacional. A pecuária
de corte é dominante no que se refere à utilização das terras e também é exportada
para fora da região Centro-Oeste.
Na busca de tornar estes produtos mais competitivos, seja no mercado nacional, ou frente ao Mercosul e à globalização, os Governos estão viabilizando a construção de novos meios de transportes. A interligação multimodal é uma realidade
regional que atualmente tem ligado o Centro-Oeste ao Sudeste/Sul do Brasil através
do Porto de São Simão em Goiás, utilizando-se do· Rio Paranaíba, divisa de Goiás
com Minas Gerais, Rio Tietê e Paraná, até chegar com a produção de Grãos no Porto Marítimo de Paranaguá, no Estado do Paraná. Além desta hidrovia, que está operando deste o inicio da década de 90, o governo federal tem feito estudos para viabilizar uma nova linha de escoamento. Pensa em utilizar os Rios das Mortes e Araguaia no estado do Mato Grosso, interligando- os ao Rio Tocantins, nos estados de
Goiás e Tocantins, à ferrovia Norte-Sul no Maranhão. Todo este esquema servirá para
transportar a produção de grãos no sentido Norte do Brasil.
Dois outros pontos merecem destaque nas perspectivas do desenvolvimento regional. O primeiro, já citado, diz respeito à agricultura familiar, que vem recebendo incentivos
rumo à especialização leiteira. Na década de 90 investiu-se muito na capacitação do agricultor para a produção de silagens e de outros reforços alimentares, bem como na melhoria
da raça do gado leiteiro. O segundo está relacionado ao campo industrial. O Centro-Oeste
apresenta-se como alternativa para a implantação de novos complexos agro-industriais e
até mesmo de industrias automobilísticas e têxteis. A Perdigão, Sadia, Seara, Swit, Ceval,
Parmalat, Nestlé é, entre outras, vêm ampliado suas instalações e influências econômicas
na região, influenciando decisivamente nos rumos do setor.
Por fim, considerando-se o tipo de atividade econômica predominante no setor rural
(agricultura patronal ou familiar, extensiva ou intensiva, níveis de capitalização, tecnificação
e rendimentos) e as característidcas do entorno sócio-econômico (disponibilidade de infraestrutura, acesso a mercados, capacidade de absorção de mão-de-obra), podemos sugerir
a existência dos seguintes padrões de desenvolvimento rural no Centro-Oeste:
DINÂMICA 4.1 - agricultura familiar + entorno com urbanização intensa
Não há possibilidades para agricultura patronal. Há indícios de uma consolidação da
agricultura familiar, porém, esta tendência ainda não se encontra totalmente definida. É uma
região de entorno flexível, com algumas possibilidades de absorver mão-de-obra e onde há
um grande processo de urbanização e industrialização. Enquadra-se nesta dinâmica a mesorregião de Goiânia, o entorno de Brasília.
DINÂMICA 4.2-agricultura patronal intensiva + entorno com urbanização descentralizada
É o que tende a combinar a afirmação da agricultura patronal, mas com
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Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
um entorno sócio-econômico absorvedor de mão-de-obra, isto é, gerador de
oportunidades de trabalho não agrícolas, rurais e urbanas. Possui estas características a região leste do Mato Grosso do Sul. Há um forte desenvolvimento
da agricultura patronal e também o fortalecimento de uma agricultura familiar
especializada e diversificada, que vem se adaptando a novos padrões tecnológicos. Ainda possui um entorno sócio-econômico bastante flexível e absorvedor
de mão-de-obra. É uma região na qual vem ocorrendo recente processo de industrialização. As mesorregiões que se enquadram nesta dinâmica são: CentroSul Goiano e Sul Goiano. Existem grandes possibilidades de caminhar em direção a uma consolidação da agricultura familiar.
DINÂMICA 4.3 - agricultura patronal intensiva + entorno pouco urbanizado
Tende para a constituição de sistemas produtivos patronais, porém ainda não tão definidos. Além disso seu entorno sócio-econômico não é tão flexível na geração de oportunidades de trabalho não agrícola. No entanto, há grandes tendências de caminhar na direção
da Dinâmica 2. As mesorregiões que apresentam estas características são: Sudeste MatoGro!isense e Centro-sul Mato-Grossense.
DINÂMICA 4.4 - agricultura patronal extensiva + entorno pouco urbanizado
Apresenta três situações distintas mas em todas há prevalência de uma agricultura
patronal extensiva com um entorno sócio-econômico rígido e incapaz de absorver mão-deobra. Numa dessas situações a ocupação territorial é tão recente, e a precariedade ou incipiência do entorno é tão grande, que ainda não estão definidas as chances de viabilização
de uma dinâmica precisa, mesmo assim se identificam tendências de sistemas produtivos
extensivos, principalmente com lavouras de grãos e pecuária. Apresentam esta característica as mesorregiões: Norte Mato-Grossense, Parecis-Alto Teles Pires, Alto Guaporé e Paraguai-Jaurú. Em suma, todo o noroeste do Estado do Mato Grosso. Uma segunda situação
dentro desta mesma dinâmica apresenta sistemas produtivos bem extensivos, em
geral pecuária, com um entorno sócio-econômico rígido, especializado e poupador
de mão-de-obra, envolve as mesorregiões Nordeste do Araguaia (MT) e Oeste do
MS. A terceira situação combina áreas de marasmo da agricultura, familiar e patronal com uma pecuária extensiva em crescimento e um entorno sócio-econômico
também incapaz de absorver mão-de-obra. São áreas ainda não tão definidas, encontram-se nesta condição as seguintes mesorregiões: Noroeste Goiano, Aragarças
e Norte Goiano.
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Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
Dinâmicas Predominantes de Desenvolvimento no
Meio Rural Região Centro-Oeste
Dinâmica 41
Dinâmica 42
Dinâmica 43
Dinâmica 44
Fonte:Projeto CUT/Contag de
Pesquisa e Formação Sindical
Junho - 1997
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PROJETO ALTERNATIVO DE DESENVOLVIMENTO RURAL SUSTENTÁVEL
E SOLIDÁRIO - PARDRSS
- através de uma ampla e massiva reforma agrária e da valorização e fortalecimento da agricultura familiarINTRODUÇÃO:
Os anos 80, marcados pelo processo de democratização do país, trouxeram
para a cena pública diversos e diferentes sujeitos políticos: Movimento Sindical, Movimento Popular, Movimento Feminista, Movimento Indígena, Igrejas, partidos políticos, entre outros, que se aglutinaram em torno da construção de um projeto democrático, popular, justo e igualitário para o Brasil. Para tanto, era necessário e urgente
reorientar e fortalecer as instituições políticas brasileiras para torná-las aptas à construção de tal projeto de sociedade.
Especialmente no campo, surge o debate sobre a emergência de novos sujeitos se organizando dentro da estrutura e organização sindical, em especial as mulheres trabalhadoras rurais que optaram por articular a luta feminista com a luta sindical, bem como, a juventude e a 3ª idade.
Os anos 90 ou a era dos governos Collor e FHC se traduziram em momentos
de grave crise política e econômica, mobilizando diversos setores da sociedade brasileira para se contrapor ao projeto neoliberal. Neste período, o Movimento Sindical
de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais – MSTTR, em seu 5º CNTR, pautou o debate sobre a construção de um Projeto Alternativo de Desenvolvimento, que orientasse a ação sindical para a superação dos problemas oriundos dos modelos de
desenvolvimento excludentes, que sempre foram impostos ao campo brasileiro.
Para se tornar sujeito protagonista no processo de implementação deste projeto era preciso definir políticas de fortalecimento das entidades de sua estrutura sindical e compreender as diversas dinâmicas de desenvolvimento rural. Essa tarefa foi
fortalecida e tomou uma dimensão mais estratégica com a filiação da CONTAG à
CUT, em abril de 1995.
A partir do 6º CNTTR, foi desencadeado um amplo processo de discussão sobre a construção de um Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural para o MSTTR. Este processo se deu por meio de seminários regionais para construção de um
diagnóstico da realidade, que subsidiaram o Projeto CUT/CONTAG de Pesquisa e
Formação Sindical e mobilizaram mais de 5 mil trabalhadores e trabalhadoras rurais.
Esta pesquisa se somou ao embrionário Projeto Alternativo que vinha sendo construído pelo MSTTR, desde 1995 por aprovação do 7º CNTTR.
As primeiras mobilizações do Grito da Terra Brasil foram, por sua vez, os espaços de formulação, articulação, proposição e negociação de políticas públicas que
buscaram dar materialidade às proposições do PADRSS.
O 8º CNTTR, bem como o 2º CNETTR, a 1ª PNTTR, os “GRITOS DA TERRA
BRASIL”, as “MARCHAS DAS MARGARIDAS”, as ocupações de terras e de prédios
públicos e outras ações de massa foram incorporando novas temáticas, ampliando a
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Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
concepção e fortalecendo a prática do PADRSS nas várias dimensões: concepção,
tática, estratégia propositiva e de negociação.
O 9º CNTTR aprofundou as discussões em torno dos conceitos de sustentabilidade e deliberou pela inclusão do termo “solidariedade” ao nome do PADRS, passando a ser denominado de Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário - PADRSS.
PADRSS – estratégia de enfrentamento ao neoliberalismo e ao modelo de
desenvolvimento rural excludente e insustentável
O PADRSS foi concebido como estratégia de enfrentamento ao projeto neoliberal e de superação do modelo agrário e agrícola vigente no país, pautado no latifúndio e no agronegócio. As bases essenciais para construção deste Projeto de Desenvolvimento são a realização de ampla e massiva reforma agrária e a ampliação,
valorização e fortalecimento da Agricultura Familiar. Quanto aos assalariados e assalariadas rurais, considerados os proletários agrícolas, a estratégia é torná-los protagonistas deste projeto de desenvolvimento, principalmente nas áreas de maior resistência da agricultura patronal.
O PADRSS, ao propor a construção e implementação permanente e sistemática do desenvolvimento sustentável no meio rural, definiu que a sustentabilidade
deste projeto depende das lutas das trabalhadoras e trabalhadores pela terra, política agrícola diferenciada, defesa e ampliação dos direitos trabalhistas e previdenciários, política permanente de valorização do salário mínimo, erradicação do trabalho
infantil e escravo, educação do campo, saúde integral pública e gratuita, respeito à
autodeterminação das populações tradicionais, preservação do meio ambiente e
superação da desigualdade de gênero e de todas as formas de discriminação, inclusive, a luta dos jovens.
O PADRSS se apresenta, também, como uma alternativa aos padrões de desenvolvimento rural conservadores, parciais, excludentes e insustentáveis que aceleraram a exclusão social e a degradação ambiental no campo brasileiro.
Para tanto, são imprescindíveis as lutas por pressão e reivindicações, históricas e atuais, do MSTTR para superar os prejuízos sociais e políticos causados pelo
modelo agrário e agrícola imposto ao país.
CONCEPÇÃO E PRÁTICA DO PADRSS E A RELAÇÃO COM AS NOVAS
TENDÊNCIAS SOBRE DESENVOLVIMENTO E SUSTENTABILIDADE:
O ponto de partida para a elaboração e implantação de um projeto alternativo
é a concepção de desenvolvimento. Havia uma identificação entre desenvolvimento
e crescimento econômico. Isto permitia que o desenvolvimento dos países fosse
medido apenas pelos níveis da renda per capita. Esta identificação, porém, tem sido
amplamente contestada especialmente porque crescimento e desigualdade social
têm andado lado a lado. Análises que levam em conta apenas a renda per capita
mascaram o grau de concentração da riqueza numa sociedade.
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Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
O debate sobre o significado real de desenvolvimento levou a estudos para
estabelecer parâmetros capazes de avaliar o nível de vida das pessoas de uma
forma mais adequada. A criação do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é
fruto deste esforço por uma melhor avaliação da qualidade de vida em cada país.
Este índice inclui três dimensões básicas de desenvolvimento: longevidade (viver
uma vida longa e saudável), conhecimento (ser instruído) e padrão de vida (gozar
de um nível de vida adequado). A partir daí se criou três variáveis para medir o desenvolvimento humano dos diferentes países: esperança de vida, nível educacional
(alfabetização de adultos e escolaridade nos três níveis) e PIB real per capita.
O PADRRS nasce questionando o conceito de desenvolvimento, no qual o
crescimento econômico-financeiro se sobrepõe à dimensão social, política, cultural e
ambiental das populações. No PADRSS, o desenvolvimento deve privilegiar o ser
humano na sua integralidade, possibilitando a construção da cidadania. As questões
econômicas, portanto, têm que estar articuladas às questões sociais, culturais, políticas, ambientais e às relações sociais de gênero e raça.
O conceito de desenvolvimento e sustentabilidade utilizado pelo MSTTR é
uma idéia em construção, portanto não existe um caminho único para sua realização. Esta proposta incorpora e se articula com o pensamento de diversos setores da
sociedade nacional e internacional, que utiliza a noção de desenvolvimento sustentável como portadora de um novo projeto de sociedade, capaz de garantir, no presente e no futuro, a sobrevivência dos grupos sociais e preservação da natureza.
O que levou o MSTTR a construir o PADRSS foi a esperança de uma vida melhor para os que vivem no campo. Porém, não se alcança este desenvolvimento ou
“esta vida melhor” com ações de combate à pobreza. É fundamental criar políticas e
programas para a distribuição de renda. Segundo estudos realizados por Ricardo
Paes de Barros, pesquisador do IPEA, um crescimento contínuo de 5% ao ano no
Brasil levaria a uma redução de 13% no grau de pobreza em uma década.
É importante também salientar que existem cada vez mais evidências de que
o crescimento dos países chamados de economia semi-periférica depende da redução das desigualdades. Vários estudos econométricos demonstraram que níveis de
desigualdade, como os do Brasil, dificultam ou mesmo impedem o crescimento econômico.
As lutas históricas e atuais das trabalhadoras e trabalhadores ganham importância ainda maior quando somadas às demais políticas necessárias à qualidade de
vida e trabalho. Isto porque, não há desenvolvimento sustentável sem educação,
saúde, garantias previdenciárias, salários dignos, erradicação do trabalho infantil e
escravo, respeito à autodeterminação dos povos indígenas e preservação do meio
ambiente.
O PADRSS propõe, também, a romper com o preconceito anti-rural incorporado na cultura brasileira de que o campo está associado ao passado e ao atraso. A-
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Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
lém deste, se propõe a romper com outro senso comum de campo, enquanto espaço
de guerra por conta dos conflitos agrários ou ultra moderno projetado pelo agronegócio.
No PADRSS o meio rural é concebido como um espaço político, social, econômico, produtivo, ambiental e cultural, que têm sujeitos organizados e dinâmicas de
desenvolvimento potencializadoras da sustentabilidade. Do total de 5.507 municípios
brasileiros existentes até o ano 2000, mais de 4.485 municípios fazem parte do Brasil Rural, pois têm menos de 50 mil habitantes e cerca de 80 habitantes por Km2.
Neste sentido, o PADRSS se propõe a ser um processo permanente de produção e reprodução de qualidade vida para o conjunto das trabalhadoras e trabalhadores rurais, contribuindo para a melhoria de vida das populações rurais e urbanas,
por meio de elaboração e negociação de políticas públicas que superem a exclusão
e a desigualdade.
Nesta perspectiva, muitas estratégias estão sendo desenvolvidas, como por
exemplo a territorialidade que já é adotada pelo MSTTR em diversas ações, inclusive em parceria com programas e projetos governamentais.
Além disso, é fundamental a participação efetiva do MSTTR nos processos
políticos e eleitorais e nos espaços de concepção e gestão de políticas públicas, em
todos os níveis, para reverter o processo neoliberal e viabilizar políticas públicas necessárias à implementação do PADRSS.
É fundamental, também, que os STTRs, FETAGs e CONTAG estabeleçam um
diálogo amplo e permanente com a sociedade, em torno da concepção de espaço
rural e do desenvolvimento sustentável que propomos.
Este diálogo deve se orientar na construção de relações sociais que na prática
incorporem a solidariedade e a cooperação mútua entre os trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade, em contraposição ao individualismo, que é a marca
central do neoliberalismo.
Elementos centrais do Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural
Sustentável e Solidário – PADRSS:
O eixo central das estratégias de desenvolvimento no PADRSS é a ampliação
das oportunidades de emprego e renda no meio rural. Ocupa um lugar privilegiado
nestas estratégias, a realização de uma ampla reforma agrária, como um instrumento fundamental na expansão, fortalecimento e viabilização da agricultura familiar.
A geração de emprego e renda não se resume, evidentemente, à expansão e
fortalecimento da agricultura familiar. Ela inclui a melhoria das condições de vida de
imensos contingentes de assalariados agrícolas e a criação de outras ocupações
rurais não-agrícolas e “urbanas” no campo.
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Da mesma forma, não é possível pensar em qualidade de vida, sem se preocupar com a qualidade do ambiente em que as pessoas vivem e no fortalecimento
de novas relações entre os seres humanos e a natureza. É preciso também, pensar
a soberania alimentar, padrões de desenvolvimento agrícola diversificados e sustentáveis a longo prazo, que restaurem as condições ecológicas da produção e respeitem o potencial de cada ecossistema, apoiando-se nas bases científicas da agroecologia.
Portanto, ao defender o desenvolvimento rural embasado na agricultura familiar, o MSTTR demonstra que é ela que incorpora valores sociais, econômicos, culturais e ambientais, garante a segurança alimentar das famílias, abastece o mercado
interno, tem viabilidade econômica para ser competitiva, amplia as oportunidades de
geração de renda e de ocupações produtivas, se estabelece através de formas cooperativas e associativas do trabalho, deve estar associada à produção agroecológica
e na convivência equilibrada com o meio ambiente.
A agricultura familiar responde por 38% do Valor Bruto da Produção Agropecuária, ocupa 77% da mão-de-obra no campo e é responsável por 51% da produção
de alimentos que chegam à mesa da população brasileira. Apesar de seu bom desempenho, a agricultura familiar ocupa apenas 21% das terras agricultáveis e tem
acesso a menos de 25,3% do volume de crédito que o governo federal disponibiliza
para a agricultura brasileira.
No entanto, existe uma disputa política e ideológica entre diversos setores da
sociedade e setores governamentais sobre qual modelo de desenvolvimento rural
deve ser implementado no Brasil.
A concepção do PADRSS se contrapõe ao modelo de desenvolvimento rural
que o setor ruralista defende. Este setor, representado pela CNA, por numerosa
bancada no Congresso Nacional e apoiados pela grande mídia e alguns intelectuais
e economistas, tem defendido o agronegócio como o modelo de desenvolvimento
redentor para o campo e para o Brasil.
Como contraposição a essa concepção do agronegócio a agricultura familiar
precisa resgatar a importância da comercialização de seus produtos excedentes, na
perspectiva da economia solidária.
Para fazer a defesa de sua concepção, os ruralistas e seus aliados se apropriaram do conceito de Agronegócio, incorporando nele um significado que extrapola a
simples tradução de “negócios da agricultura”. Mais do que os negócios da agricultura, este setor defende um modelo de desenvolvimento para o campo baseado na
grande propriedade, na produção de monoculturas para o mercado externo, utilização de agrotóxicos e de organismos geneticamente modificados, além de tecnologias que dispensam o uso de mão-de-obra. Tudo isso em nome do lucro e da produtividade, sem considerar as implicações sociais e ambientais que este modelo acarreta para esta e para as futuras gerações.
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Da mesma forma, os defensores do agronegócio têm afirmado que o problema
agrário e agrícola será resolvido por este modelo, que será capaz de responder à
demanda de produção e de emprego, por meio do aumento da produtividade e das
exportações. Nesta proposta, caberia ao Estado proporcionar aos trabalhadores e
trabalhadoras não inseridos como força de trabalho do agronegócio, políticas sociais
compensatórias para evitar os conflitos no campo.
No entanto, o discurso da auto-suficiência e eficácia do agronegócio, não tem
sustentação. Pelo contrário, o incremento deste padrão de desenvolvimento concentra a terra e a renda, aumenta a dependência tecnológica, desrespeita a legislação
trabalhista e ambiental, agrava a exclusão social, promove a degradação ambiental,
o desemprego e a violência no campo. Da mesma forma, se mostra incapaz de superar a fome e a miséria no País, já que priorizam a produção e exportação apenas
do que seja rentável economicamente, sem se preocupar com as necessidades alimentares da população, especialmente dos mais pobres.
Os dados do 2º PNRA demonstram que as propriedades rurais com área superior a 2.000 hectares, demandam 67 hectares para gerar uma única ocupação,
chegando a demandar 217 hectares na região Centro Oeste.
Do ponto de vista ambiental, não há como negar os danos irreparáveis que
vêm sendo produzidos pelo agronegócio. Especialmente o cerrado, onde hoje se
concentra o ambiente de expansão da fronteira agrícola, tem apenas 20% de sua
área em estado original e mais de 57% totalmente desmatada. Da mesma forma sofre a Amazônia que já tem 600 mil Km2 de suas terras desflorestadas, situação que
se agrava na região “do arco do desmatamento”, com forte expansão de áreas exploradas com monoculturas.
É preciso exigir dos grandes latifundiários o cumprimento do percentual definido em lei de reflorestamento e preservação nas áreas devastadas de suas propriedades, principalmente nas margens dos rios, priorizando a vegetação nativa.
Ao considerarmos as relações sociais e trabalhistas, constatamos que muitas
vezes o setor patronal da agricultura continua impondo aos trabalhadores e trabalhadoras rurais, práticas do período colonial. Além da exploração no trabalho, mantendo inclusive mão de obra escrava, praticam todo tipo de repressão e violência
contra as pessoas que lutam pela democratização da terra. Há um processo acentuado de expulsão de inúmeras famílias de pequenos posseiros, inclusive populações
tradicionais e povos indígenas que estão tendo suas terras tomadas para ampliar as
grandes fazendas.
É relevante considerar, também, que este processo de expansão pelo agronegócio faz reduzir a capacidade de se encontrar terras passíveis de desapropriação,
já que a interpretação da legislação agrária é bastante restritiva na constatação do
cumprimento da função social das propriedades. Isto faz estabelecer uma aliança
estratégica entre o latifúndio e o agronegócio.
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AVANÇOS, DESAFIOS E PERSPECTIVAS PARA A REFORMA AGRÁRIA E
A AGRICULTURA FAMILIAR NO PADRSS
O papel da Reforma Agrária para o desenvolvimento sustentável
Com a construção do PADRSS, a dimensão dada pelo MSTTR ao papel da
Reforma Agrária no desenvolvimento rural evoluiu. Além de medida essencial para o
enfrentamento ao latifúndio e ao agronegócio, a reforma agrária foi compreendida
como estratégica para a ampliação e o fortalecimento da Agricultura Familiar.
A reforma agrária é o principal instrumento político para a ruptura com o modelo de desenvolvimento excludente, concentrador de terra e renda e reprodutor do
poder oligárquico, representado pelo Agronegócio e pelo latifúndio.
A democratização da propriedade da terra impulsiona a democratização do
poder político, econômico e social. Promove a geração de emprego e ocupações
produtivas para todo um segmento sem alternativas de inserção social e produtiva, a
eqüidade, sustentabilidade ambiental e o desenvolvimento das comunidades envolvidas, processos essenciais para o fortalecimento da agricultura familiar e a construção de alternativas de desenvolvimento para o País.
A realização de uma verdadeira reforma agrária toca nos pilares que fundamentam a exclusão social e o frágil desenvolvimento brasileiro, promovendo a inclusão social, a formação e a consolidação de um forte mercado interno no País. Um
amplo processo de mobilização de massa, a exemplo da ocupação dos latifúndios
improdutivos, força as desapropriações e quebra a espinha dorsal do conservadorismo, pois ataca o poder econômico e político do latifúndio. Aliada à imediata regularização das terras ocupadas por posseiros e posseiras, à implantação de um programa de crédito fundiário e de um massivo apoio à consolidação da agricultura familiar, fundamentam a construção de alternativas de desenvolvimento.
A reforma agrária, não apenas como mecanismo distributivo de terras, mas
como medida eficaz para promover a ampliação, valorização e o fortalecimento da
agricultura familiar, é um instrumento essencial para promover o desenvolvimento
democrático da agricultura e o resgate da cidadania para milhões de trabalhadores e
trabalhadoras que, expulsos da terra, se viram excluídos do processo produtivo.
A consolidação dos assentamentos de reforma agrária representa a passagem
dos trabalhadores e trabalhadoras de um quadro de exclusão para o de inserção
produtiva. Os projetos de assentamento, além de possibilitar o acesso à terra e ao
crédito, atuam como fator gerador de postos de trabalho em atividades agrícolas e
não agrícolas e com isto, dinamiza o comércio local com a diversificação e o rebaixamento dos preços de produtos alimentícios. Outras inovações também têm sido
introduzidas, como novas formas de comercialização e beneficiamento da produção,
surgimento de cooperativas e associações, implantação de pequenas agroindústrias,
constituição de marcas próprias como sendo “produto da reforma agrária”.
Mesmo com estes avanços, é preciso qualificar e universalizar as políticas
públicas para que os projetos de assentamento se tornem, de fato, espaços de ampliação e fortalecimento da agricultura familiar. É preciso melhorar a política de crédito, assistência técnica e investimentos em infra-estrutura social e produtiva volta-
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das à organização da produção e ao bem estar das famílias assentadas. A formação
profissional e os instrumentos de política de desenvolvimento, como créditos e outros, devem ser aplicados imediatamente após o assentamento dos trabalhadores e
trabalhadoras. Devem também ser garantidos recursos orçamentários para a cobertura do total de assentamentos realizados no País, bem como a imediata legalização
da área.
Portanto, para que haja avanço efetivo na implementação da reforma agrária
será necessário superar os limites de ordem política, financeira, legal, jurídica, administrativa e social, que dificultam a solução definitiva para o problema agrário brasileiro.
A agricultura familiar e a potencialização do desenvolvimento:
A opção pela agricultura familiar se justifica pela sua capacidade de geração
de emprego (da família e de outros) e renda com baixo custo de investimento. A sua
capacidade de retenção da população fora dos grandes centros urbanos é fator fundamental na construção de alternativas de desenvolvimento. Sua capacidade de
produzir alimentos a menor custo e, potencialmente, com menores danos ambientais, impulsiona o crescimento de todo o entorno sócio-econômico local. A falta de
incentivos à agricultura familiar tem gerado a marginalidade dos jovens trabalhadores e trabalhadoras.
A agricultura familiar é, portanto, o principal agente propulsor do desenvolvimento comercial e, conseqüentemente, dos serviços nas pequenas e médias cidades do interior do Brasil. É também condição fundamental para que haja uma sobrevida para a economia da grande maioria dos municípios brasileiros. É o desenvolvimento com distribuição de renda no setor rural que viabiliza e sustenta uma qualidade de vida do setor urbano.
Segundo pesquisa feita pela CONTAG/CUT, em várias áreas do país, a agricultura familiar ainda é a forma preponderante de produção agrícola. Se devidamente apoiada por políticas públicas e ancorada em iniciativas locais, pode se transformar no grande potencializador de um desenvolvimento descentralizado e voltado
para uma perspectiva de sustentabilidade.
O desenvolvimento e o fortalecimento da agricultura familiar se dará através
da implementação de diversas iniciativas, que deverão estar interligadas para que
possam produzir os efeitos desejados. O Programa Nacional de Apoio à Agricultura
Familiar (PRONAF) e os Fundos Constitucionais são algumas iniciativas, não podendo, entretanto, a ação estatal se esgotar apenas na disponibilização de recursos
para crédito de custeio. É fundamental acelerar os procedimentos das linhas de crédito de custeio e investimento, assim como a reformulação de toda a infra-estrutura
produtiva e social, para atender às necessidades da agricultura familiar.
As políticas de apoio à agricultura familiar devem, inclusive, contemplar aquelas atividades não-agrícolas, como por exemplo, a industrialização, a produção artesanal e turismo rural, atividades com grande potencial de geração de renda e ocupação.
Outro elemento que deve estar integrado às políticas fundamentais de fortalecimento da agricultura familiar diz respeito à priorização de investimentos públicos
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para garantir serviços de pesquisa, experimentação, difusão, assistência técnica e
extensão rural, comprometidos com a sustentabilidade e adaptada aos meios de
produção familiar.
Existe um conjunto de iniciativas para o fortalecimento da agricultura familiar
que dependem muito da ação sindical, por exemplo, organização, comercialização e
gestão da produção; diversificação agroecológica e planos de desenvolvimento local. Este conjunto de proposições deve estar articulado a uma política de produção
de alimentos e soberania alimentar da população brasileira, como parte integrante
da estratégia de desenvolvimento.
É preciso promover a articulação entre a produção e o consumo, construindo
mecanismos de diálogo entre as famílias que produzem com as famílias que consomem, valorizando, assim, a agricultura familiar e os assalariados e assalariadas rurais. Há que se estabelecer parcerias com outras instituições, órgãos públicos, capazes de superar a falta de incentivos e de políticas públicas municipais, promovendo a conscientização dos agricultores e agricultoras familiares da necessidade de
agregação de valor à matéria prima e esclarecê-los sobre os benefícios da agricultura agroecológica.
A gestão da unidade produtiva precisa ser considerada como o exercício prático da democracia. Se todos os membros da família têm um papel e uma função no
processo produtivo, têm direito a tomar parte nas decisões e nos resultados. Para
isso, é preciso valorizar o trabalho das mulheres e dos jovens na agricultura em regime de economia familiar, construindo relações sociais de gênero, geração e etnia
igualitárias e solidárias no cotidiano dos trabalhadores e trabalhadoras. É preciso
entender que a agricultura familiar só se viabiliza a partir de uma economia solidária.
Neste sentido, a gestão coletiva da produção se apresenta como uma alternativa
concreta, por meio da prática da cooperação.
Um dos grandes desafios do processo de organização da produção é construir
estratégias políticas que permitam a inserção não-subordinada da agricultura familiar
no mercado. A agricultura familiar só se viabiliza a partir de uma economia solidária
combinada ao uso de novas tecnologias e diversificação dos meios tradicionais de
produção. As formas coletivas de produção e comercialização se apresentam como
uma alternativa concreta.
O desenvolvimento rural sustentável passa necessariamente pela garantia de
documentação do uso da terra, o que também contribui para a construção da cidadania da população rural.
Gênero e Geração na Reforma Agrária e na Agricultura Familiar:
Além das funções econômicas, sociais e ambientais em torno da luta pela reforma agrária e pelo fortalecimento da agricultura familiar, o MSTTR deve olhar também para as estruturas que sustentam as relações entre as pessoas seja nos acampamentos, assentamentos ou nas propriedades familiares.
Na Reforma Agrária, as mulheres e jovens estão presentes em todas as etapas da luta pela terra, resistindo nas ocupações, acampamentos e nas posses. Con-
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traditoriamente, nos processos de implantação e organização dos assentamentos a
importância das mulheres e jovens passa a ser relativizada.
As mulheres estão em todas etapas dos processos produtivos e reprodutivos
na unidade familiar. Elas não querem ser invisíveis, muito menos serem tratadas
como domésticas ou ajudantes do pai, do marido ou do filho. Ou seja, não são as
mulheres que se ocultam, são as relações de dominação patriarcal que lhes atribui
um lugar menor nos processos produtivos.
O patriarcado também estabelece uma hierarquia nas relações entre pai e filhos e filhas, que têm participação cerceada nos processos de produção, gestão e
posse da propriedade familiar.
Outra questão que não pode ser relativizada é a participação das pessoas da
3ª idade e idosos na unidade produtiva, que além de sua experiência de vida no
campo, investem parte de seus rendimentos da aposentadoria no fomento da mesma.
O modelo de família patriarcal continua influenciando a concepção das políticas públicas, que excluem ou restringem a participação das mulheres e jovens como
beneficiários. Isto ocorre porque os planejadores e executores das ações entendem
que somente os homens são os chefes de família e respondem pela propriedade
familiar. Sendo assim, compreendem que ao beneficiar os homens estão atendendo
a todos os membros da família.
A prática discriminatória e excludente em relação às mulheres, incorporado
em nossa cultura, foi por muito tempo respaldado pelo Código Civil Brasileiro, instituído em 1918, que vigorou até 2002, ignorando os avanços conquistados pelas mulheres na Constituição Federal de 1988.
Existia um “Estatuto da Mulher Casada”, pelo qual a mulher casada não podia
legalmente assinar um contrato, administrar um negócio ou realizar trabalho assalariado sem consentimento do marido. O novo Código Civil Brasileiro, que entrou em
vigor a partir de janeiro de 2003, reconhece a igualdade entre homens e mulheres
perante a lei, onde tanto o homem quanto a mulher podem representar os interesses
da família e serem considerados representantes legais da propriedade, independente de estarem em relações de casamento ou em uniões consensuais.
Fruto da luta das mulheres, especialmente na Marcha das Margaridas, se obteve um importante avanço. O MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário instituiu a obrigatoriedade da emissão do título de posse da terra em nome do homem e
da mulher. Entretanto, este direito, por si só, não é suficiente para garantir igualdade
de participação quanto ao controle e gestão da propriedade ou assentamento, pois
não será o documento sozinho que fará romper com práticas seculares de opressão
às mulheres.
O MSTTR precisa se comprometer com a construção de relações igualitárias
entre mulheres e homens, jovens, adultos, 3ª idade e idosos, desde os processos de
luta pela terra, na gestão dos assentamentos e propriedades familiares.
Assalariados e assalariados rurais
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Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
Não podemos falar em desenvolvimento rural sustentável sem levar em consideração os 5 milhões de assalariados e assalariadas rurais que constituem a parte
mais explorada e marginalizada da categoria trabalhadora rural.
Destes 5 milhões de trabalhadores e trabalhadoras assalariadas rurais, existem 2 milhões de postos de trabalho fixo, em que o contrato é por prazo indeterminado. 1,5 milhão trabalha pelo menos uma vez por ano de 4 a 8 meses, no período
da safra (contrato de safra) e 1,5 milhão trabalha em culturas de curta duração (feijão, milho, tomate, hortifrutigranjeiros, colheita do café, etc), neste caso grande
quantidade de trabalhadores (as) não possuem carteira de trabalho assinada e a
duração no trabalho é no máximo de 15 dias. Muitos trabalham em 3 ou 4 estados
durante o ano.
Segundo dados da PNAD/IBGE - Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de 2002, existem cerca de 3,1 milhões de trabalhadores e trabalhadoras com vínculo empregatício sem carteira assinada na área rural. Muitos desses profissionais moram nas periferias das pequenas
e médias cidades, e devido ao alto índice de desemprego e baixos salários pagos,
essas pessoas também se constituem no setor mais empobrecido da categoria.
A regra geral é de empresas ricas em municípios pobres, onde o lucro acaba
indo para o sistema financeiro e/ou investidos nos grandes centros urbanos. Já os
assalariados e assalariadas rurais gastam os seus salários nos municípios onde moram, dinamizando o comércio e a economia local.
Neste sentido, a melhoria na remuneração dos assalariados e assalariadas rurais tem repercussões diretas e concretas no local. Com melhoria do poder de compra dos assalariados e assalariadas rurais ocorrerá ampliação do mercado consumidor local com possibilidades de crescimento de venda dos produtos da agricultura
familiar.
O principal instrumento para a melhoria do salário e das condições de trabalho
dos assalariados e assalariadas é a negociação coletiva (convenção coletiva, acordo
coletivo ou dissídio coletivo). Outro instrumento por melhores condições são as ações de fiscalização realizadas pelos auditores fiscais do trabalho, vinculada às Delegacias Regionais do Trabalho, importantes para avançar no cumprimento da legislação trabalhista, previdenciária, de medicina e segurança no trabalho. Neste processo, são imprescindíveis o envolvimento do Sindicato dos Trabalhadores(as) Rurais e das FETAGs quando da denúncia de irregularidades nas relações de trabalho
e de denúncias relacionadas ao trabalho escravo. Nesse sentido, exige-se a ratificação imediata da Convenção 184 da OIT.
A construção de alternativas de desenvolvimento com base na expansão e fortalecimento da agricultura familiar não irá eliminar, por si só, a agricultura patronal.
Não representará, portanto, o fim do assalariamento rural. Continuará existindo e
demandando políticas específicas para o setor.
Por outro lado, a realidade demonstra que muitos agricultores e agricultoras
familiares dependem de contratação de mão-de-obra externa para garantir o desenvolvimento de sua produção. Esta realidade vem sendo objeto de muitas discussões
no movimento sindical, pois demanda políticas e participação diferenciadas na base
sindical.
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Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
Qualquer projeto alternativo de desenvolvimento deve pressupor a democratização nas relações de trabalho, renda digna e respeito aos direitos trabalhistas, como condições básicas para a qualidade de emprego e vida, independentemente de
quem quer que seja o empregador.
Os assalariados rurais constituem a parcela mais empobrecida da agricultura
e, por decorrência, de toda população brasileira. As alternativas de desenvolvimento
devem abarcar este setor, interferindo diretamente na criação de novos postos de
trabalho, na redução do desemprego e na criação de melhores condições de vida e
trabalho, e melhores salários, priorizando as seguintes questões:
•
Assentamento de trabalhadoras e trabalhadores rurais assalariados, em
especial os desempregados e subempregados que optarem por desenvolver a sua
própria agricultura através de um programa de reforma agrária.
•
Criação de agroindústrias ligadas à agricultura familiar, com legislação
específica.
•
Geração de emprego no interior da unidade produtiva familiar.
•
Incremento das atividades não-agrícolas no entorno sócio-econômico da
unidade produtiva familiar.
•
Melhoria das condições de vida, relações de trabalho e garantia de aumento de salários (ganho real), através da adoção de um contrato coletivo de trabalho.
•
Combate ao trabalho escravo e infantil, a todas as formas ilegais de contratação de trabalho e às cooperativas de mão-de-obra.
•
Igualdade de oportunidades, sem discriminação de gênero, geração e
etnia.
•
Programas de qualificação profissional e reconversão produtiva.
•
Realizar campanhas de educação e prevenção sobre uso de agrotóxicos
e suas conseqüências, garantindo o atendimento aos trabalhadores e trabalhadoras
envolvidas nessa atividade.
As mulheres no trabalho assalariado:
O aumento das oportunidades de trabalho e emprego para as mulheres assalariadas no campo, especialmente as mais jovens, não significa dizer que há igualdade de oportunidades entre os trabalhadores do sexo feminino e masculino. A
mão–de-obra feminina tem sido absorvida nas atividades temporárias, sem garantia
de direitos e benefícios, sem investimento na formação profissional e sem nenhum
equipamento de uso coletivo nos locais de trabalho, como creches, banheiros, refeitórios.
O tipo de inserção que as mulheres têm no mercado de trabalho assalariado
reproduz a divisão-sexual do trabalho. Ao selecionar e contratar mulheres, as empresas destinam a elas funções consideradas “tipicamente femininas”. Exemplo disso é o uso massivo da mão-de-obra feminina na fruticultura (morango, uva), hortigranjeiros, entre outros. Em muitas situações, para se manter empregada, a mulher
precisa apresentar produção igual ou maior do que a do homem, ainda que isto implique no recebimento de salários menores.
Erradicação do Trabalho Escravo no Campo
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Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
O trabalho escravo constitui uma grave violação aos direitos humanos. A escravidão está baseada na coação física e às vezes na coação moral utilizadas por
maus empregadores e capatazes que subjugam o trabalhador e trabalhadora. Nesta
relação, os trabalhadores(as) não são reconhecidos(as) como portadores(as) de
direitos que vendem a sua força de trabalho em troca de um salário, mas sim como
propriedade de quem detém os meios de produção. Esta prática viola o direito à vida, pois priva a pessoa de sua liberdade e de exercer um trabalho com dignidade,
submetendo-a a condições de trabalho degradantes, onde não há cumprimento de
normas básicas de segurança e saúde.
Outro fator que dificulta as ações de fiscalização, bem como a organização
dos trabalhadores(as) é a utilização do trabalho migrante, onde empresas rurais/fazendas empregam grande quantidade de mão-de-obra de trabalhadores de
várias regiões do estado ou do país,
Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente
Estudos indicam que o trabalho precoce exercido por crianças e adolescentes
compromete o seu desenvolvimento físico, emocional e psíquico. Além disso, o trabalho precoce prejudica o acesso e rendimento escolar da criança e do adolescente.
É preciso que se avance a partir dos estudos e pesquisas na definição precisa do
que seja trabalho e aprendizado para crianças e adolescentes.
Todas essas questões precisam ser discutidas pelo MSTTR, de forma a se ter
uma concepção clara sobre o trabalho infantil, especialmente no âmbito da agricultura familiar. O MSTTR deve definir estratégias para superar este problema que afeta
milhares de crianças e adolescentes no meio rural, já que a prática do trabalho infantil é incompatível com o desenvolvimento sustentável que coloca o ser humano como centro de sua ação.
Política Permanente de Valorização do Salário Mínimo
No meio rural, o salário mínimo é importante para o valor dos benefícios previdenciários, reflete na remuneração dos assalariados e assalariadas rurais e é fonte
de incremento na agricultura familiar.
É também uma ferramenta poderosa para aumentar a renda das mulheres,
uma vez que são elas que na grande maioria da classe trabalhadora recebem o salário mínimo.
O salário mínimo provoca ainda impacto direto na economia local, especialmente nos setores de bens e serviços. Isto porque, em 4.323 municípios rurais, os
salários mínimos pagos através dos benefícios previdenciários de trabalhadores e
trabalhadoras rurais superam os repasses feitos pela União através do Fundo de
Participação dos Municípios.
Uma política de valorização e ampliação do poder aquisitivo do salário mínimo, que altere o perfil distributivo da renda nacional, é urgente e necessária, contribuindo para a redução da miséria, pobreza e exclusão social.
É fundamental que o governo e o Congresso Nacional definam uma política
consistente para o salário mínimo, que garanta a sua valorização, assegure o
cumprimento integral do texto constitucional, seja instrumento de distribuição
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Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
igualitária da renda, possibilitando aos milhões de brasileiros e brasileiras excluídos
uma vida digna e o pleno exercício de sua cidadania.
Políticas sociais para o campo
As políticas sociais desempenham um papel fundamental na construção de alternativas de desenvolvimento para o campo. A educação, saúde, lazer, previdência
e assistência social, a formação profissional, a pesquisa e a assistência técnica são
elementos estruturais de qualquer proposta de desenvolvimento.
Educação do Campo
Em um mundo em constante mutação, onde a questão tecnológica assume
papel preponderante na capacidade de integrar-se ao sistema produtivo, é preciso
uma mudança radical do ambiente educacional até agora oferecido aos trabalhadores e trabalhadoras rurais. É preciso estabelecer uma maior relação entre o ensino
regular básico, formação profissional, redes de extensão rural e assistência técnica e
suas relações com a pesquisa.
Em 2000, realizamos o IV Fórum CONTAG de Educação que mobilizou todas
as instâncias do MSTTR, universidades, organismos internacionais, ONGs, entre
outras. O resultado foi uma agenda de trabalho visando acumular um debate sobre
as bases de uma política específica de educação voltada para o desenvolvimento
rural sustentável.
No ano de 2001, o MSTTR e outras entidades parceiras que têm experiência
com educação formal e não-formal8 sistematizaram uma proposta de política pública,
constituída por princípios e diretrizes da educação do campo que já vem sendo implementada em alguns municípios rurais.
Esta proposta foi incorporada ao documento aprovado pelo Conselho Nacional
de Educação ao instituir as “Diretrizes Operacionais de Educação Básica para as
Escolas do Campo”, através da Resolução n.º1, de 03 de abril de 2002.
Nas Diretrizes Operacionais da Educação Básica das Escolas do Campo a
educação não se restringe ao espaço da escola, ela acontece também nos diferentes espaços em que os sujeitos vivem e trabalham, alimentando e fortalecendo o
vínculo entre a cultura, a educação escolar e a educação não-escolar (formação política, formação profissional, etc).
O que define a identidade das escolas do campo não é necessariamente a
sua localização geográfica, mas seu projeto político pedagógico e os sujeitos a
quem ela se destina. Entretanto, é fundamental que essas escolas, em todos os níveis e modalidades de ensino, estejam localizadas nas comunidades, povoados,
assentamentos, etc.
O projeto político pedagógico das escolas do campo deve estar a serviço da
promoção do desenvolvimento humano e sustentável, e ter como referência a con-
8
MOC – Movimento de Organização Comunitária, SERTA, Secretaria Municipal de Educação de Curaçá/BA, IRPAA/BA,
ARCAFAR, UNEFAB, GT/UnB, Instituto Agostim Castejon, Escola de Formação da CUT da Amazônia, Escola do Campo
Casa Familiar Rural de Pato Branco/PR, dentre outros.
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Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
cepção e prática pedagógica construída pelos movimentos sociais e sindical que
atuam no campo.
O momento aponta para a necessidade do MSTTR desenvolver nos estados
e municípios estratégias de sensibilização e formação de dirigentes e lideranças sindicais, em especial a juventude rural, e parceiros de outros movimentos sociais. A
sensibilização e formação de gestores públicos também são necessárias, uma vez
que cabe a estes a responsabilidade de implementar esta política.
O MSTTR deve também intervir nos espaços de formulação e gestão dos Planos Municipais, Estaduais e Nacional de educação com a finalidade de incorporar a
política de educação do campo.
Saúde Integral
O funcionamento efetivo do Sistema Único de Saúde (SUS) é o caminho para
assegurar atendimento médico, odontológico e hospitalar adequado às necessidades das populações rurais, que exigem atendimento específico, face às próprias
características de localização em que se encontram. Além da luta pela manutenção
do SUS, é preciso redirecionar o investimento público em saúde para ações estruturadoras de médio e longo prazo que visem a melhoria da qualidade de vida e garantia do bem estar social da população.
Com o PADRSS o MSTTR redimensionou o conceito de saúde passando a
concebê-lo em sua integralidade física, mental, emocional e psicológica, além das
interfaces: saúde do trabalhador, saúde da mulher, saúde da criança e do adolescente, saúde do idoso, saúde mental, saúde sexual e reprodutiva, saúde nutricional,
atenção primária ambiental, inclusive tratando como problema de saúde a violência
sexual e doméstica, uso de drogas e do álcool.
As mobilizações e pressões políticas do MSTTR levaram o Ministério da Saúde a assinar um convênio com a CONTAG para implementar em todos estados o
“Projeto de Formação de Multiplicadores(as) em Gênero, Saúde e Direitos Sexuais e
Reprodutivos”. Este projeto articula diversas áreas da saúde (sexual, reprodutiva,
mental, bucal, nutricional, etc), está voltado às pessoas nos vários ciclos da vida e
tem o objetivo a formação de atores/atrizes sociais. O projeto também deverá contribuir na formulação e adequação de uma Política Pública de Saúde para a População
do Campo.
Em maio de 2004, o Ministério da Saúde constituiu um grupo denominado
“Grupo da Terra”, com representação de diversas áreas técnicas do Ministério da
Saúde e movimentos sociais e sindicais. A este grupo cabe a responsabilidade de
formular a política de saúde para a População do Campo em parceria com outros
ministérios.
Esta política em construção tem por base a intersetoralidade da saúde com
outras políticas voltadas para o desenvolvimento sustentável; uma nova sistemática
de financiamento para a Atenção Básica assegurando um adicional de 50% nos valores pagos por equipe de saúde da família em 100% dos municípios da Amazônia
Legal com população inferior a 50 mil habitantes e indicadores de desenvolvimento
humano muito baixo (0,7), também em 100% dos municípios com população inferior
a 30 mil habitantes e indicadores de desenvolvimento humano muito baixo (0,7),
bem como áreas de assentamento e de quilombos.
74
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
A Política Pública de Saúde para a População do Campo, entretanto, só atingirá os resultados se os estados e municípios assumirem a sua parte, uma vez que
lhes competem a responsabilidade de promover a assistência integral médica, laboratorial, hospitalar e farmacêutica à população, em especial a rural.
O MSTTR está presente nos conselhos nacional, estaduais e municipais de
saúde, entretanto, esta representação deve fazer uma intervenção efetiva e qualificada com a finalidade de fiscalizar a implementação desta política e aplicação dos
recursos. Umm dos caminhos é a realização de cursos de capacitação para todos/as
os/as conselheiros/as que representam os diversos conselhos em seus respectivos
municípios, por meio das FETAGs.
Previdência Social
O acesso dos trabalhadores e trabalhadoras rurais aos benefícios da Previdência e Assistência Social é fundamental para o resgate da dignidade e cidadania
de milhões de pessoas. Além disso, os recursos da aposentadoria têm se mostrado
um importante instrumento de transferência de renda para o interior do País, chegando a ser fator de dinamização de diversos municípios. Esta tendência reverte,
em parte, a orientação histórica de transferência de recursos do setor rural para o
setor urbano.
Embora a aposentadoria constitua, em parte dos municípios rurais, a principal
fonte de renda e, portanto, um fator propulsionador do desenvolvimento local, mais
de 1 milhão de pessoas tiveram seus benefícios represados e indeferidos pela burocracia do INSS, no período de 1994 a 1997.
No PADRSS a Previdência Social é um instrumento importante para produzir
processos de desenvolvimento e distribuição de renda. Na área rural, houve uma
evolução significativa de proteção social devido a universalização dos benefícios da
Previdência Social ocorrida a partir do início de 1990.
AS POLÍTICAS TRANSVERSAIS DO PADRSS: GÊNERO, GERAÇÃO, RAÇA,
ETNIA E MEIO AMBIENTE:
O MSTTR deve assumir o compromisso de transformar as estruturas que sustentam as relações entre as pessoas, pois não haverá sustentabilidade nos processos
de desenvolvimento sem o estabelecimento de relações sociais, justas, democráticas, igualitárias e solidárias.
Neste sentido o MSTTR deve estar em constante diálogo com todos os sujeitos políticos que compõem a categoria trabalhadora rural, garantindo a sua participação, reconhecendo as suas diferenças e especificidades e incorporando as suas
respectivas demandas, especialmente os mais excluídos e discriminados como mulheres, jovens, 3ª idade, idosos.
O MSTTR já promoveu avanços, a exemplo da aprovação da cota de mulheres, participação crescente de mulheres e jovens nos cargos de direção do MSTTR,
ampliação e fortalecimento das comissões de mulheres, ações de massa como a
Marcha das Margaridas, e mais recentemente a criação das comissões de jovens e
pessoas da 3ª idade.
75
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
É importante entender que a cota mínima de participação no MSTTR surge
como instrumento de democratização das relações de poder entre mulheres e homens, contribuindo para o reconhecimento das mulheres como sujeitos políticos,
assegurando a sua participação direta em todos espaços formativos e de decisão da
CONTAG, FETAGs e STRs. Embora importantes e necessárias, a cota sozinha e a
estruturação de uma secretaria de mulheres não tem sido suficientes para superar
os problemas relacionados as desigualdades de gênero. É urgente e necessário
também ampliar e fortalecer as comissões de mulheres em todas as instâncias do
MSTTR, pois são nesses espaços que as mulheres se articulam e buscam construir
unidade em torno de questões comuns, refletem sobre sua realidade específica e
elaboram propostas para serem articuladas e incorporadas às lutas gerais do MSTTR.
Gênero no PADRSS é um conceito em construção, que articula a dimensão
de classe, geração, raça e etnia, e serve para entender as relações de poder e de
hierarquia estabelecidas entre mulheres e homens na família, na comunidade, no
local de trabalho, no sindicato, e na sociedade em geral.
É importante compreender que estas desigualdades estão fundamentadas em
aspectos culturais, estruturais e institucionais, tendo pôr base o modelo de família
patriarcal e a divisão sexual do trabalho. A ideologia patriarcal se sustenta na idéia
de que o homem representa a família em todos os assuntos externos e é o administrador da propriedade familiar. Já a divisão sexual do trabalho fundamenta a idéia do
homem ser socialmente reconhecido como agricultor e a mulher como doméstica ou
“ajudante”. Essa visão discriminatória revela uma profunda desigualdade nas relações entre mulheres e homens, uma vez que não valoriza e não reconhece a quantidade de tempo que as mulheres dedicam às atividades agrícolas e não-agrícolas
produtivas. Muito menos atribuem um valor econômico ao trabalho doméstico, fundamental para viabilizar a agricultura familiar, não fazendo a inter-relação entre o
trabalho doméstico, o cuidado com os filhos e a reprodução e manutenção da força
de trabalho na agricultura familiar.
Por esta razão, o foco central da nossa política transversal de gênero é contribuir para a construção de novas relações entre mulheres e homens baseadas na
igualdade de direitos e oportunidades. A estratégia política é reconhecer e empoderar as mulheres como sujeitos políticos, contrapondo-se à condição de opressão e
subordinação imposta pelo capitalismo e patriarcado.
Geração no PADRSS é um conceito que explicita o papel social que cada
pessoa cumpre nas diferentes fases da vida: infância, adolescência, juventude, adulto, terceira idade e idosos. Estes papéis se alteram de acordo com a época e história
de cada sociedade. Diferente das questões de gênero que dirigem um apelo para o
fim da desigualdade, subordinação e opressão das mulheres, o enfoque geracional
faz um apelo sobre a valorização e as oportunidades de inserção social de jovens, 3ª
idade e idosos na sociedade.
Juventude Rural: Para o MSTTR jovem rural são mulheres e homens que vivem e trabalham no meio rural, e se encontram na idade de 16 a 32 anos. Ser jovem
é uma condição relativa e transitória, pois logo entrarão nas outras fases da vida.
Entretanto, é na fase da juventude que as pessoas vão afirmando suas identidades
sociais e profissionais, e definindo sua formação física, intelectual, psicológica e emocional. Dessa forma, é importante estarmos abertos para entender os processos
76
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
de mudanças e definições que se apresentam nesta fase da vida. Neste sentido,
ressaltamos que os critérios de faixa etária (18 a 24 anos), estabelecidos pelos gestores públicos e instituições multilaterais e bilaterais não dialogam com a realidade
da juventude rural, precisando ser avaliados e alterados, para que seja adotado o
conceito de juventude utilizado pelo MSTTR.
O foco central de nossa política é elevar a auto-estima da juventude, incentivar
e fortalecer a sua organização e formação política, apresentar propostas de políticas
sindicais e políticas públicas que promovam e efetivem a inserção social da juventude no meio rural em nível nacional reafirmando a consciência de classe e o fortalecimento do trabalho coletivo e solidário.
A construção de políticas voltadas para atender os anseios da juventude é um
investimento que o MSTTR está fazendo para os (as) jovens trabalhadores e trabalhadoras rurais de hoje e os (as) adultos de amanhã. Neste sentido, as questões da
juventude devem perpassar todas as políticas e ações sindicais. As propostas políticas da juventude devem ser de responsabilidade compartilhada entre as Coordenações e Comissões de Jovens trabalhadores e trabalhadoras do MSTTR e as demais
secretarias e setores do movimento sindical.
3ª idade no PADRSS é uma forma de valorizar os conhecimentos e saberes
de mulheres e homens que estão acima dos 50 anos de idade, que vivem e trabalham no meio rural . É também uma forma de reconhecer a contribuição dessas pessoas na construção do Movimento Sindical, na vida familiar, na vida comunitária e na
sociedade em geral.
No MSTTR é predominante a participação de mulheres e homens acima dos
50 anos de idade nos espaços de direção do MSTTR. É visível também como associados dos STTRs, até porque é nesta fase da vida que essas pessoas procuram
assegurar seu direito à aposentadoria. Mesmo desempenhando papel importante na
vida familiar e comunitária, infelizmente muitas dessas pessoas sofrem discriminação e preconceitos, ficando à margem na sociedade. É neste sentido que surge o
debate sobre a organização da 3ª Idade e Idosos na estrutura sindical. A finalidade é
elaborar e implementar políticas sindicais e políticas públicas que elevem a autoestima dessas pessoas, assegurem seus direitos e garantam sua inserção social na
vida familiar, comunitária, sindical e na sociedade em geral.
Raça e Etnia - A pessoa é portadora de diferentes identidades sociais. Além
de sermos mulheres e homens, trabalhadoras e trabalhadores rurais, em diferentes
fases da vida, somos também portadores de uma identidade racial e étnica.
Raça é uma categoria que serve para definir a identidade racial de uma pessoa ou grupos sociais. Esta categoria considera as características físicas de um determinado grupo de pessoas que são transmitidas de geração em geração, bem como sua origem e história de vida. Estas pessoas incorporam e difundem expressões
culturais especificas, como religião, língua, dança, arte, literatura, entre outras.
Etnia é uma categoria que serve para entender a identidade de um povo. Cada povo tem seu território, costumes, hábitos, tradições e formas próprias de organização social, política, econômica, bem como de convivência com o meio ambiente.
As abordagens transversais de gênero, geração, raça e etnia têm contribuído
para entender alguns fenômenos sociais que vêm ocorrendo no meio rural, como a
feminização da pobreza, a masculinização do campo, o envelhecimento das pesso-
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Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
as com diminuição das taxas de natalidade (nascimentos) e a tendência de saída da
juventude em busca de outras oportunidades de vida e de futuro. Tem contribuído
também para quebrar a indiferença frente às discriminações e preconceitos de raça
e etnia.
Meio Ambiente
O debate sobre sustentabilidade, além de refletir sobre o uso racional e adequado dos recursos naturais, incorpora as discussões quanto à necessidade de se
promover a democratização da terra e da água e a distribuição das riquezas entre as
nações e internamente em cada País.
A sustentabilidade não pode estar associada ao mero crescimento econômico,
baseado na exploração dos recursos naturais como se estes fossem infinitos.
O grande desafio para a agricultura familiar é o de se afirmar enquanto a alternativa viável para a construção do desenvolvimento rural sustentável. Para tanto,
a agricultura familiar deverá orientar, cada vez mais, suas formas produtivas e organizativas de modo a incorporar valores ambientais.
Neste sentido, o PADRSS define a agroecologia como estratégia a ser adotada pela agricultura familiar, porque este padrão produtivo, além de significar rentabilidade, incorpora valores essenciais da sustentabilidade.
A CONTAG, FETAGs e STTRS, deverão ampliar seus esforços para promover
a capacitação e sensibilização do conjunto dos assentados (as) e agricultores(as)
familiares, estimulando para que adotem a agroecologia como forma produtiva que
melhor responde à demanda pelo equilíbrio entre a exploração econômica e a conservação ambiental. Inclusive promovendo a recomposição e conservação das matas ciliares e de reserva legal com a utilização de plantas frutíferas.
É urgente incorporar, também, no debate sobre sustentabilidade a discussão
sobre o uso racional e democrático dos recursos hídricos, conscientizando sobre o
direito à água enquanto um direito humano e um bem público, universal e não privatizável.
O cuidado com os mananciais, a recomposição de matas ciliares, investimento
em políticas de saneamento, dentre outras, são medidas essenciais e urgentes. Da
mesma forma, é preciso que o MSTTR aprofunde o debate (que vem sem feito por
vários setores da sociedade), quanto à proposta de construir uma legislação ampla
sobre os valores da água e sua dimensão como um direito humano.
Construção de estratégias e alianças para a consolidação do PADRSS:
A construção de um projeto alternativo para o campo, demanda uma ação
permanente de (re)elaboração de propostas e de ações estratégicas, que depende
de um envolvimento social que vai além da base de representação do MSTTR. É
preciso, portanto, articular o acúmulo teórico e prático do movimento sindical e dos
seus parceiros e aliados, em suas diversas instâncias e organizações. A ação sindical deve combinar a proposição, negociação, com mobilização social, a luta política
e articulação com outras organizações.
A construção do projeto para o campo, articula e é articulado por uma estratégia democrática de desenvolvimento global que, além de garantir a inclusão social,
possibilita a produção e a reprodução da qualidade de vida para o conjunto da sociedade.
78
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
O crescimento econômico nas cidades, por mais forte que venha a ser, será
incapaz de reduzir ou estabilizar o atual desemprego urbano e suas conseqüências
diretas: fome, miséria, marginalização e violência. Qualquer anseio de desenvolvimento sustentável global para o País será mero sonho se não partir da ampliação
das oportunidades de geração de renda no meio rural. Por outro lado, a permanente
disputa de hegemonia com os setores dominantes exige a formulação de propostas
amplas, na busca de unificar as lutas na construção de alternativas para todos os
trabalhadores e trabalhadoras brasileiras.
É estratégica a aliança de classe no enfrentamento ao projeto neoliberal. A
CONTAG, a partir de seu espaço de atuação, organiza os trabalhadores e trabalhadoras rurais para a luta e disputa de hegemonia na sociedade e, junto com a CUT,
estabelece processos de aliança entre os trabalhadores do campo e a cidade.
No âmbito da organização sindical, é preciso construir entidades com maior
organicidade, democracia e participação nas estruturas e nas ações, além de maior
investimento na formação política da militância.
A ação sindical local na construção de alternativas de desenvolvimento:
Este projeto de desenvolvimento interessa à maioria da sociedade e todos os
atores sociais devem estar envolvidos. A mobilização da comunidade é condição
imprescindível para o início e perenidade de um desenvolvimento alternativo. As instâncias do MSTTR, em especial os STTRs e seus parceiros, deverão qualificar a sua
atuação para participar ativamente na construção deste desenvolvimento. As ações
dos STTRs não poderão se dar isoladamente nem apenas na defesa dos interesses
dos seus representados, mas propor ações concretas para o conjunto dos movimentos sociais frente à atual realidade econômica e social dos municípios. Portanto, cabe aos STTRs articular o processo de discussão nos municípios, envolvendo outros
setores da sociedade, sensibilizando e estimulando este processo.
O primeiro esforço deve ser de elaborar os projetos de desenvolvimento locais, através de processos democráticos. A participação popular deve ser constante.
Um instrumento importante a ser utilizado para assegurar o debate e a efetivação de
alternativas de desenvolvimento são os Conselhos Municipais de Desenvolvimento.
O desafio é fazer com que estes conselhos sejam, de fato, instrumentos importantes
de participação social, garantindo legitimidade política.
Além do acompanhamento e atuação junto às Câmaras Municipais e participação nos conselhos municipais, o MSTTR deverá atuar também na discussão e
definição do processo de planejamento e orçamento municipal, direcionando a sua
aplicação a serviço do desenvolvimento sustentável. Os Planos Plurianuais, a Lei de
Diretrizes Orçamentárias e a Lei Orçamentária Anual são importantes instrumentos,
definidos na Constituição Federal, Constituições Estaduais e Leis Orgânicas dos
Municípios, que podem e devem ter participação direta dos movimentos sociais.
O MSTTR deve ser um ator estimulador da comunidade, propondo novas alternativas de desenvolvimento, buscando a retomada da auto-estima da população e
o incremento das suas capacidades produtivas e gestão das políticas sociais pelo
conjunto da população. Neste sentido, é importante lembrar que a Agenda 21 é um
espaço privilegiado para o debate do desenvolvimento sustentável.
79
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
A partir do debate e compromisso dos candidatos ao Executivo e Legislativo
municipais, o MSTTR deve investir na eleição de candidatos que se comprometam
com a defesa e implementação de um Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural
Sustentável através de ampla e massiva reforma agrária e do fortalecimento e valorização da agricultura familiar.
Relações internacionais:
As relações internacionais desenvolvidas pelo MSTTR são importantes para
consolidar o projeto político centrado no fortalecimento da ação sindical e na construção do PADRSS.
A parceria com as agências de cooperação técnica, organizações nãogovernamentais e organizações sindicais são fundamentais para a divulgação e afirmação do nosso projeto político.
Resguardando independência e autonomia, o diálogo do MSTTR com organismos internacionais: FAO, PNUD, IICA, OIT e outras têm obtido apoio e cooperação na elaboração de estudos técnicos para a construção de políticas públicas que
visam o fortalecimento da agricultura familiar e a promoção do desenvolvimento rural.
A filiação da CONTAG à CUT e à UITA foi estratégica para ampliar as relações do MSTTR com outras organizações sindicais no nível nacional e internacional,
levando para estas, a necessidade de fortalecerem ações em defesa da agricultura
familiar e da melhoria das condições de vida e trabalho dos assalariados e assalariadas rurais.
A CONTAG vem ampliando as relações com as organizações nãogovernamentais comprometidas com MSTTR, estabelecendo parcerias que visam,
principalmente, a divulgação, afirmação e implementação do PADRSS. Nesse sentido, por meio da CUT, a CONTAG assegura representação e defesa dos interesses
dos agricultores familiares e dos assalariados rurais no Fórum Consultivo Econômico
e Social – FCES do Mercosul, e ao mesmo tempo, amplia as relações de política
sindical no cenário regional e internacional.
As negociações em curso na Organização Mundial do Comércio – OMC - representa outro grande desafio para o MSTTR. As rodadas de negociação poderão
estabelecer regras de comércio que afetarão a vida de milhares de trabalhadores e
trabalhadoras. Neste sentido, a CONTAG participa e intervém nos espaços de discussão e formação de posição sobre o processo de negociação na OMC, defendendo seu projeto e reafirmando a necessidade do tratamento especial e diferenciado
para a agricultura familiar do Brasil e dos países em desenvolvimento.
A CONTAG ocupa um espaço estratégico do ponto de vista político sindical,
atuando como referência da sociedade civil da América Latina para o CIP-FAO, onde destaca suas propostas de desenvolvimento sustentável para a soberania e segurança alimentar.
A CONTAG também assumiu a secretaria executiva da COPROFAM, fortaleceu as relações entre as organizações desta Coordenadora e dinamizou suas ações
no MERCOSUL, possibilitando a COPROFAM assumir um papel estratégico de articulação e de intervenção nos espaços de formulação e de decisão das políticas de
desenvolvimento rural sustentável no MERCOSUL.
80
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
As relações internacionais têm um papel importante no processo de consolidação dos PADRSS e no fortalecimento das ações do MSTTR na perspectivas do
desenvolvimento rural sustentável.
O papel da formação no PADRSS:
O papel da formação é qualificar a ação sindical enquanto agente transformador da realidade, dialogando e colaborando com o processo de formulação e implementação do PADRSS. Para isso, é preciso que a formação contribua para que a
categoria analise criticamente a sua realidade social, potencializando a construção
de alternativas de enfrentamento e transformação social. Esta é uma das razões para que o MSTTR compreenda a formação enquanto investimento e não como despesa.
Aspectos da Formação:
A formação é um instrumento político - pedagógico que favorece a expressão
e afirmação da pluralidade de idéias e pensamentos, abrindo caminho para a construção da unidade política sindical.
Princípios Pedagógicos da Formação
São princípios pedagógicos da formação do MSTTR:
•
Analisar os fatos a partir de uma visão de movimento, onde tudo está em
constante mudança.
•
Compreender formação de modo sistêmico, ou seja, a formação não é
só um instrumento meio que permeia toda a ação sindical, mas também um início e
um fim, que tem por finalidade construir produtos/resultados claros.
•
Interpretar e entender os interesses das partes a partir da dinâmica do
todo.
•
Compreender que a ação formativa é uma ação política, nela não há
neutralidade.
•
Compreender que a ação sindical é sempre uma ação formativa.
•
Trabalhar não só com uma única verdade, mas perceber as possibilidades de estabelecer consensos, entre as várias verdades existentes sobre um dado
conhecimento.
•
Direcionar sua ação no caminho do fortalecimento da cooperação, da
não-violência e da justiça social.
•
Avaliação permanente da prática sindical.
•
Repensar a ação e a organização sindical de forma que ambas estejam
pautadas num amplo processo de democratização das relações políticas no interior
do MSTTR. Nesta perspectiva, as relações sociais de gênero, geração, raça e etnia
devem ser trabalhadas enquanto base para a superação da exclusão e aumento da
participação das mulheres, das pessoas da terceira idade e dos jovens nos processos de formulação das políticas e das instâncias de decisão.
A abordagem metodológica da formação:
• Estar centrada no enfoque da construção coletiva, na garantia da afirmação e negociação entre os diversos saberes, desejos, necessidades e
potencialidades das pessoas envolvidas na definição dos procedimentos
e dos conteúdos trabalhados. O objetivo é estabelecer um processo de
81
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
cooperação ativa entre os participantes, desenhando de forma progressiva, consensos táticos e estratégicos.
• Ter como ponto de partida o resgate e a garantia do diálogo entre os interesses de todos os envolvidos. A perspectiva política é potencializar,
ampliar e radicalizar o conceito e a prática da democracia.
• Ser planejada com indicadores de resultados definidos para que se saiba
o que se quer alcançar, acompanhadas de avaliações periódicas. O processo deve ser realimentado pela análise dos serviços que estão sendo
prestados à categoria. A análise coletiva da prática é o referencial de avaliação a ser utilizado. Para termos segurança se o que estamos avaliando é verdadeiro ou falso precisamos identificar alguns indicadores de
resultados. Desta forma, devem ser garantidos recursos financeiros, humanos e técnicos próprios, para executar as propostas planejadas, pois
do contrário, o MSTTR continuará fazendo formação de forma esporádica e amadora.
• Propiciar a inserção dos diversos segmentos que fazem parte da classe
trabalhadora (mulheres, homens, jovens, pessoas da terceira idade, etc.)
no processo político pedagógico, respeitando suas especificidades e favorecendo a troca de aprendizagem.
• Realizar permanente de atividades de capacitação do PADRSS dentro
do MSTTR, que além dos dirigentes alcance os trabalhadores e trabalhadoras rurais, ressaltando os aspectos da busca da igualdade, preservação ambiental e da solidariedade.
• Capacitar e mobilizar as mulheres trabalhadoras rurais para uma participação mais qualificada nos fóruns e conselhos, onde ocorre a construção do PADRSS.
A IMPORTÂNCIA DA PARTICIPAÇÃO ATIVA DO MOVIMENTO SINDICAL DOS
TRABALHADORES E TRABALHADORAS RURAIS PARA A CONSTRUÇÃO DO
PROJETO ALTERNATIVO DE DESENVOLVIMENTO RURAL SUSTENTÁVEL E
SOLIDÁRIO (PADRSS)
Antonio Gilberto Viegas da Silva9
Somos o que fazemos, mas somos principalmente, o
que fazemos para mudar o que somos.
9
Médico Veterinário, Assessor Regional da CONTAG para a Região Centro-Oeste.
E-mail: [email protected]
82
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
Eduardo Galeano.
A população brasileira deve guardar na lembrança a figura do então constituinte Ulisses Guimarães erguendo o exemplar do texto constitucional e bradando:
”esta é a constituição cidadã”, aquela afirmação não era apenas uma figura de retórica, mas a mensagem significativa que a sociedade havia conquistado através de
seus representantes, um instrumento de orientação da vida democrática da nação.
A simbologia do gesto do líder político indicava que os movimentos sociais e
toda a sociedade brasileira tinham uma participação efetiva na conquista de espaços
fundamentais de discussão e implementação de políticas de interesse de toda a sociedade.
O tema aqui colocado surge a partir de debates e reflexões com lideranças de
trabalhadores e trabalhadoras rurais sobre os desafios do movimento sindical, em
encontros realizados em um dos módulos de formação político-sindical da Escola
Nacional de Formação (ENFOC) da Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Agricultura (CONTAG), em que se objetivou a formação e capacitação de suas lideranças e parceiros. Nesses debates evidenciou-se uma posição, até certo ponto
compreensível, de alguns dos participantes, que entendiam que o Movimento Sindical dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (MSTTR) não deveria participar de
alguns espaços de discussão no município porque estaria fortalecendo o Projeto
Neoliberal, o projeto hegemônico. Achava essa mesma corrente, que a base do movimento é que deveria ser trabalhada para se contrapor a essa hegemonia. Outros
sustentavam que era necessário participar efetivamente, tanto na base, sensibilizando e capacitando as lideranças, como nos diversos espaços de participação conquistados pelo próprio movimento. Foi essa diversidade de opiniões, muito salutar
para o desenvolvimento coletivo, que induziu às reflexões e idéias tratadas neste
texto. Entende-se que é fundamental sensibilizar a base do movimento, estar ligado
às suas questões, mas não se pode prescindir dos diversos espaços conquistados e
que devem ser valorizados com uma participação qualificada de nossas lideranças
na busca de novas conquistas e na reafirmação das já consolidadas. Gandim (1994)
observa que do ponto de vista prático tem-se três tipos de ações:
1. Dos extremos conservadores: para os quais não há distinção entre a realidade desejada e a existente.
Realidade Existente
Realidade Desejada
2. Dos extremos revolucionários: para os quais não há ponto de contato entre a
realidade desejada e a realidade existente.
Realidade
Existente
83
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
Realidade Desejada
3. Dos que querem mudanças a partir do que existe: para os quais a realidade
desejada e a realidade existente têm pontos de contato e pontos discordantes.
Realidade Existente
Realidade Desejada
Dentre as alternativas mostradas, esta última é a mais indicada para a implementação do PADRSS, uma vez que a primeira não é pretendida porque o MSTTR
não está conformado com uma realidade de exclusão e reprodução da pobreza e de
manutenção do projeto conservador. Por outro lado, não existe ambiente para extremos revolucionários, no sentido de se pegar em armas para uma mudança radical, uma vez que a mudança está sendo processada com a participação da sociedade civil e o movimento sindical dos trabalhadores (as) rurais tem sido um protagonista de extremo significado na construção de um ambiente democrático.
Todos concordam que as ações na base devem ser processadas com bastante efetividade buscando sensibilizar as lideranças para uma participação nos espaços conquistados com mais propriedade e de maneira qualificada. A grande maioria
dos municípios brasileiros tem formado os seus Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural Sustentável (CMDRS), onde vários segmentos da sociedade civil têm
assento. Mas sabe-se por outro lado que, na grande maioria desses municípios existe uma manipulação significativa por parte do poder local.
A esmagadora maioria dos conselhos de desenvolvimento rural formou-se no Brasil a partir de 1997 como condição para
que os municípios recebessem recursos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) em
sua “linha” de infra-estrutura e serviços. (ABRAMOVAY, 2001).
Quanto mais ativos forem os movimentos sociais, menos serão essas interferências negativas dos poderes locais. Sabe-se que são poucos os municípios brasileiros que não contam com a presença de um sindicato de trabalhadores (as) rurais.
O que é um fator que motiva a intensificação do trabalho de base para se contrapor
à essa dominação. E como se faz esse contraponto? Certamente fortalecendo as
lideranças do movimento sindical para uma participação reflexiva, a fim de reverter
essa interferência negativa do poder local. Desse modo, é praticamente impossível
trabalhar a base sem fazer com que seus atores sociais possam estar ocupando esses espaços para a reversão do processo hegemônico que se instala em primeira
84
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
instância, no município e, posteriormente em toda sociedade. Nesse aspecto é importante atentar para a observação de Furtado:
Assim, a capacitação direcionada a formar atores reflexivos e
interativos permite a construção de uma abordagem pedagógica para intervenção, que tenta desenvolver ações no sentido da formação de capital social, para tornar possível encaminhar soluções para os problemas crônicos do rural, tendo
como referência o desenvolvimento local. (2000, p. 47).
É com a visão de cada vez mais se intensificar a formação de lideranças na
base, para potencializar a capacidade endógena dos diversos atores para influenciar
de maneira positiva as definições de políticas que venham de encontro aos interesses dos agricultores (as) familiares. Não se consegue avançar nesse sentido apenas
trabalhando mobilizações de massa, sem buscar aproveitar todas as conquistas que
a sociedade civil organizada tem conseguido. Dentre essas conquistas está aquela
em que as verbas do governo federal não são repassadas para os municípios se
não houver o aval de cada conselho, por exemplo. Esse é um sinal claro que indica
a necessidade de acompanhamento nesses espaços pelos representantes do MSTTR, não apenas como elemento fiscalizador dos recursos públicos, mas para proposição de ações que visem o interesse coletivo em cada município. Esse pensamento
não representa uma coisa nova para o movimento como um todo, é evidente que
existem, como já foi colocado anteriormente idéias discordantes, mas é emblemática
a afirmação da CONTAG:
A CONTAG se propõe, a partir de seu espaço de atuação – o
setor rural, organizar os trabalhadores e trabalhadoras para a
luta e a disputar a hegemonia na sociedade, para chegar a
transformações capazes de garantir melhores condições de
vida e trabalho para todos, resgatando a cidadania em todos
os espaços sociais. (2000).
Esses espaços de participação não podem se tornar meros assentos de expectadores passivos a escutarem as decisões que emanam dos poderes locais dominantes. “Quem acredita em participação, estabelece uma disputa com o poder”.
(DEMO, 2001, p. 20).
Verifica-se que na grande maioria dos municípios o poder local tem uma certa
tranqüilidade com relação à “participação” das entidades nos conselhos. Mantém
segundo essas entidades uma “boa” relação com os prefeitos, concordando com
tudo que lhes são apresentados. Esquecem esses representantes dos vários segmentos da sociedade civil que muitas vezes o conflito se estabelece para se chegar
ao consenso. Mas para que isso aconteça há necessidade de re-significar a participação.
A CONTAG tem se preocupado com a formação e capacitação não apenas
de suas lideranças, mas de seus parceiros e colaboradores, o que tem melhorado
sensivelmente essas intervenções em vários locais. O que vem a ser consubstanciado pela afirmação de Demo:
*
Os fenômenos participativos, sobretudo as formas de organização da sociedade civil, precisam manifestar pelo menos
85
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
quatro marcas qualitativas para corresponderem àquilo que
estamos chamando de qualidade política: representatividade,
legitimidade, participação da base e planejamento participativo
auto-sustentado.(2001, p. 45).
É nesse aspecto que a atuação da ENFOC toma um caráter fundamental no
processo de formação e capacitação de seus educandos, estimulando a disseminação de toda experiência vivenciada, mas também buscando a re-significação de
pensamento desses mesmos educandos, nos vários momentos em que os educadores são convidados a refletirem a atuação sindical, frente aos diversos desafios apresentados pelo projeto hegemônico.
Portanto, dentre tantos elementos que a ENFOC traz para discussão do movimento sindical, uma delas é dar visibilidade para o próprio movimento sobre a necessidade de ruptura com a passividade que alguns membros têm, contribuindo inclusive, com o fortalecimento do projeto neoliberal. É preciso estar atento a esse desafio de caráter interno do Movimento Sindical dos Trabalhadores e Trabalhadoras
Rurais.
86
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG
BIBLIOGRAFIA
GANDIN, Danilo. A Prática do Planejamento Participativo. Petrópolis, RJ: Vozes,
1994.
ABRAMOVAY, Ricardo. In Conselhos Além dos Limites. 2001. Texto preparado
para o Seminário Desenvolvimento Local e Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural organizado pela EMATER/RS, pela FETAG/RS com apoio da GTZ, nos
dias 20 e 21 de junho de 2001.
FURTADO, Ribamar e Eliane. A Intervenção Participativa dos Atores- INPA. Uma
Metodologia de Capacitação para o Desenvolvimento Local Sustentável. IICA.
Brasília, 2000.
CONTAG. Nossa Luta, Nossa História. Brasília/DF: Multimeios, 2000.
DEMO, Pedro. Participação é Conquista:noções de política social. 5.ed. São
Paulo: Cortez, 2001.
__________.Pobreza Política. 6. ed. Campinas,SP: Autores Associados, 2001.
87

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