Vocação Monástica Beneditina por Dom João Paulo

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Vocação Monástica Beneditina por Dom João Paulo
Vocação Monástica Beneditina
O monaquismo é um fenômeno universal e milenar, encontrado nas mais
antigas civilizações, de forma que se pode afirmar, com D. Colombás (†), que
foi monge da Abadia de Montserrat, na Espanha, que, “com a história das
religiões e a disciplina do monaquismo comparado, descobriram-se
manifestações monásticas, semimonásticas ou paramonásticas em quase todas
as partes e em todos os tempos, tais como o bramanismo, o hinduísmo, o
jainismo, o budismo, o judaísmo, o maniqueísmo, o islamismo; entre os incas
do Peru, os astecas do México, os iroqueses do Canadá, na África negra, ou
mesmo em certas escolas e movimentos mais religiosos e filosóficos do mundo
greco-romano” (Tradição Beneditina, Ed.Monte Cassino, 1989,p.25)
Como fenômeno essencialmente espiritual, ainda na expressão de D.
Colombás, o monaquismo pode ser descrito, mas não definido, pois sua
natureza nos escapa e não se pode aprisionar um espírito em uma forma
literária. Entretanto, podemos notar suas características próprias tais como
afastamento da sociedade, busca da dimensão do Absoluto, do silêncio e solidão
que tornam propícios o encontro/contato com o transcendente, vida de
celibato, pobreza, trabalho e simplicidade; em suma, uma forma de vida que vai
na direção contrária de tudo aquilo que a cultura e a sociedade chamada
“normal” vivem e, com isso, apontando para valores mais estáveis que a
efemeridade do mundo conhecido e verificado pelos sentidos. Assim, a palavra
monge, do grego monos –, significa aquele que é só, vive sozinho, e
tende para a unificação de seu ser na busca do que é Absoluto.
Neste sentido, dentro do cristianismo, quando, no século IV, com a
cessação das perseguições que fizeram muitos mártires cristãos e com o Edito
de Milão, do Imperador Constantino no ano de 313, que reconhece aos cristãos
a liberdade de culto e, em 380, com o Imperador Teodósio I, passa a ser a
religião oficial do Império, a vida de verdadeiro seguimento de Cristo começa
a arrefecer em meio à cristandade imperial, pois converter-se cristianismo passa
a ser uma obrigação e não mais impulso suave do Espírito da Verdade que
impele a Cristo, surgem homens e mulheres que, retirando-se ao deserto, vão
em busca da vivência radical de seu batismo, através de uma vida de
despojamento, silêncio e solidão que lhes propiciará encontrarem o Deus
escondido do bulício do “mundo”. Surge, assim, o monaquismo cristão
propriamente dito, fenômeno de cultura oposta à estabelecida e vigente.
São Bento, Patriarca do Monaquismo do Ocidente, no século VI, foi o
herdeiro de uma rica e sólida tradição monástica cristã que remonta ao IV século
de nossa era, com S. Antão, S. Pacômio e outros muitos Padres do monaquismo
que deram origem a diversas tradições paralelas e variadas, ainda que com um
núcleo em comum. Ainda muito jovem, oriundo de nobre estirpe da província
de Núrcia, na Itália, sendo encaminhado a Roma para o estudo das letras e,
vendo que muitos, em meio a essa cultura romana mais refinada, rolavam pelo
despenhadeiro dos vícios, Bento desprezou tais estudos e, “deixando a casa e
os bens paternos, e, no desejo de agradar somente a Deus, procurou o santo
hábito do monaquismo” (II Livro dos Diálogos, S. Gregório Magno, Pról.).
Chegou, a princípio, um lugar ermo chamado Enfide, sendo acompanhado
apenas por sua aia que o amava com ternura, mas, fugindo da admiração do
povo que aí habitava, devido a um conserto milagroso de um crivo, uma espécie
de peneira, “mais apetecendo os maus tratos que os louvores do mundo, e
preferindo fatigar-se de trabalhos por Deus a ser alçado pelos favores desta
vida” (Diál., I), foi para um retiro deserto chamado Subiaco, a caminho do qual
encontra um monge chamado Romano, o qual lhe presta auxílio e lhe dá o
hábito do monacato. Recolhe-se aí a uma gruta onde morou por três anos
ignorado de todos, exceto do monge Romano, o qual, vivendo num mosteiro
próximo, sob a regra do abade Deodato, leva a Bento, em determinados dias,
parte do pão subtraída ao próprio consumo. Bento, passando a aí viver,
confronta-se consigo mesmo e seus próprios vícios, aos quais, com a ajuda da
graça divina, vence e “como terra bem cultivada e expurgada de espinhos,
produziu com maior abundância o fruto da seara das virtudes” (id., III),
podendo, assim, tornar-se Mestre de outros homens.
Apenas após duras lutas, pondo-se a viver consigo mesmo e – na
expressão de São Gregório – “sob o olhar do Contemplador Superno”, pôde
São Bento redigir sua Regra para os Monges, a qual é conhecida por sua
sabedoria e discrição. Através dela, São Bento pretende “constituir uma escola
do serviço do Senhor”, na qual espera “nada estabelecer de áspero ou pesado”,
exceto “por motivo de equidade, para a emenda dos vícios ou conservação da
caridade” (RB, Pról.,45-47).
Inicia, pois, São Bento sua Regra com as palavras: “Escuta, filho, os
preceitos do Mestre, e inclina o ouvido do teu coração...” (id., 1). “Escutar” é a
primeira tarefa daquele que é chamado à vida cristã, mas principalmente à vida
monástica, remontando, assim, à tradição bíblica de tantos e tantos Servos de
Iahweh que, escutando-O, puseram-se a caminhar com Ele e a realizar aquilo
que lhes pedia. Esta ação de “escutar”, entretanto, deve ser acompanhada de
um modo que potencializa sua qualidade: escutar “inclinando o ouvido do
coração”, ou seja, não é um escutar meramente intelectual, com a “cabeça”, mas
com o coração que é o símbolo, para grande parte das culturas, o centro vivo
da pessoa, fundamento da complexidade das faculdades, energias e
experiências, na íntima unidade da pessoa. Além disso, o coração é símbolo da
profundidade e autenticidade dos sentimentos e palavras, portanto, de sua finte
profunda: o amor. Assim foi a “escuta” de Noé ,que “sendo um homem justo,
íntegro entre seus contemporâneos e andava com Deus ” (cf. Gn 6,9), escutou
Sua Palavra e construiu a arca pela qual salvou-se e aos seus das águas, dando
origem à nova aliança de Deus com o homem, após o dilúvio; assim com
Abraão que, também escutando à Iahweh, saiu da sua casa e do meio de sua
parentela, para a terra que o Senhor lhe mostraria e, depois, crendo em Sua
Palavra, obteve a graça de ter um filho na sua velhice, Isaac, o qual, por sua vez,
também ouviu a Palavra do Senhor e este pôde reafirmar com ele a aliança feita
com seu pai Abraão; também assim com Jacó que, em sonho, ouviu a Palavra
de Deus e lhe obedeceu (Gn 28,13ss), com José que, deixando-se conduzir pela
providência de Deus, ainda que de forma desconcertante, salvou a vida de seus
irmãos (id. 45,5), com Moisés que ouviu a Iahweh que lhe falava na sarça (Ex
3, 4ss), Josué, os vários Juízes de Israel, Samuel (“Fala, pois teu servo escuta” –
I Sm 3,10) e tantos outros profetas que, escutando a Voz do Senhor Deus e
obedecendo a sua Palavra, puseram-se a realizá-la em suas vidas. Na economia
da Nova Aliança, temos o modelo sem igual da Virgem de Nazaré, cujo SIM à
Palavra do Senhor (Lc 1,38), tornou possível a Encarnação do Próprio Deus no
mundo, o Emanuel.
E continua S. Bento, no Prólogo de sua Regra: “...recebe de boa vontade
e executa eficazmente o conselho de um bom pai...” (RB, Pról., 1). Assim, tendo
escutado a Palavra d’Aquele que o chama, cabe ao bom discípulo, recebe-la de
boa vontade e executar o conselho do bom pai – traduzi-la em obras –, encarnar
em sua própria vida a Palavra d’Aquele que lhe fala. Escutar, com efeito, não é
meramente ouvir, pois neste exato momento estamos ouvindo muitos sons ao
nosso redor, mas escutando apenas àquilo a que dirigimos conscientemente a
atenção; mas não pára aí: o “escutar” significa realizar, pela graça de Deus,
aquilo que escutamos, concretizar a Palavra, torná-la realidade em nossa vida e
em nosso meio, enfim, tendo inclinado pala ela “o ouvido de nosso coração”,
desse coração cujo “amor de Deus foi derramado” (cf. Rm 5,5), obedecê-la,
colaborando, assim, com o poder d’Aquele que, no princípio da Criação, “falou
e toda a terra foi criada, Ele ordenou e as coisas todas existiram” (cf. Sl 32/33,9):
“Deus disse: ‘Haja luz!’ E houve luz” (Gn 1,3).
Tornamo-nos, assim, participantes da Vida e da Sabedoria do Altíssimo,
Sabedoria que “tudo pode e, sem nada mudar, tudo renova, estendendo-se com
vigor de um a outro extremo da terra e governando todo o universo com
bondade” (Sb 7,27.8,1). Com efeito, é pela obediência à Palavra do Senhor que
retornamos a Ele, convertemo-nos para Ele, entrando, assim, no seu desígnio
de amor e Salvação: “...para que voltes, pelo labor da obediência, Àquele de
quem te afastastes pela desídia da desobediência” (RB, Pról.,2). Na expressão
de S. Paulo: “como pela desobediência de um só homem (Adão) todos se
tornaram pecadores, assim, pela obediência de um só (Jesus Cristo), todos se
tornarão justos” (Rm 5,19), é imitando a Sua obediência, d’Ele que
“despojando-se de sua condição divina, tomou a forma de servo e tornou-se
semelhante aos homens, e humilhou-se, obedecendo até a morte e morte de
cruz” (Fl 2,6ss) que retornaremos àquela Imagem e Semelhança do Criador, na
qual Ele plasmou Adão no Jardim do Éden e pela qual Adão tinha a Sabedoria
e discernimento para “dominar sobre os peixes do mar, as aves do céu, os
animais domésticos, todas as feras e répteis que rastejam sobre a terra” (Gn
1,26).
Assim, a Regra de S. Bento é um convite a “quem quer que sejas que,
renunciando às próprias vontades, empunhas as gloriosas e poderosíssimas
armas da obediência para militar sob o Cristo Senhor, verdadeiro Rei” para que,
“com os olhos abertos à Luz deífica, ouçamos, ouvidos atentos, o que nos
adverte a voz divina que clama todos os dias: ‘Hoje, se ouvirdes a sua voz, não
endureçais os vossos corações’ (Sl 94,7s), e de novo: ‘Quem tem ouvidos, ouça
o que o Espírito diz às Igrejas’ (Ap 2,7). E que diz? – ‘Vinde, meus filhos, ouvime, e vos ensinarei o temor do Senhor’ (Sl 33,12)” (RB Pról., 3.9-12). É, pois,
por este “temor de Deus, princípio do conhecimento e da Sabedoria” (cf. Pr.
1,7), que o monge de S. Bento se dispõe a “cingir os rins com a fé e a
observância das boas obras” e “guiado pelo Evangelho”, trilha os caminhos do
Senhor para, enfim, “ver Aquele que o chamou para o Seu Reino” e “habitar na
Sua Tenda Real” (Pról., 21s).
Este “cingir os rins com a fé e a observância das boas obras” é, pois, a
tarefa do monge por toda a sua vida, ele que almeja “ver o Senhor e habitar na
sua tenda Real”, pois, conforme S. Bento, “de outra forma nunca se há de
chegar lá” (id.,22), pois esse Reino deve ser iniciado já nesta vida, para aquele
que “caminha sem pecado e realiza a justiça; aquele que fala a verdade no seu
coração, que não traz o dolo em sua língua, que não faz o mal a seu próximo”, e
por fim, para aqueles que “temendo o Senhor, não se tornam orgulhosos por
sua boa observância, julgando que as coisas boas que têm em si não as puderam
por si mesmos, mas foram feitas pelo Senhor, e glorificam Aquele que neles
opera: ‘Não a nós, Senhor, mas ao vosso Nome dai Glória’” (id.,24-27.29s).
Entretanto, nesse “caminho da salvação, que nunca se abre senão por estreito
início... com o progresso da vida monástica e da fé, dilata-se o coração e com
inenarrável doçura de amor é percorrido o caminho dos mandamentos de
Deus”, de modo que o monge, “perseverando no mosteiro, sob Sua doutrina,
até a morte, participa, pela paciência, dos sofrimentos de Cristo, a fim de
também merecer ser co-herdeiro de Seu Reino” (id.,48ss).